V.22, 49 - 2024 (setembro-dezembro) ISSN: 1808-799 X A ATUALIDADE DE LÊNIN EM “AS TAREFAS DA JUVENTUDE” 1 Sandra Luciana Dalmagro 2 Resumo O texto tem por objetivo apresentar e discutir o discurso de Lênin “As tarefas das Uniões da Juventude”, realizado em 1920 por ocasião do Congresso da Juventude Comunista da Rússia. Metodologicamente assinalamos o contexto russo à época, apresentamos o texto de Lênin e articulamos este à teoria educacional marxista com base em Marx, Suchodolski e Manacorda. Também indicamos que na fala de Lênin se encontram princípios fundamentais da Escola Única do Trabalho (Krupskaya, Pistrak e Shulgin), experiência escolar dos primeiros anos da Rússia Soviética. Concluímos que, mesmo passado um século deste discurso, ele continua atual pois as questões abordadas permanecem como desafios à formação das novas gerações: a superação da sociedade de classes, a necessária articulação teoria e prática e o engajamento dos jovens nas lutas sociais e no domínio do conhecimento elaborado. Palavras-chave : Lênin; Juventude Comunista; Teoria Marxista da Educação; Escola Única do Trabalho. LA ACTUALIDAD DE LENIN EN “LAS TAREAS DE LA JUVENTUD” Resumen El objetivo de este artículo es presentar y discutir el discurso de Lenin “Las tareas de las Uniones Juveniles”, pronunciado en 1920 con ocasión del Congreso de la Juventud Comunista de Rusia. Metodológicamente señalamos el contexto ruso de la época, presentamos el texto de Lenin y lo articulamos a la teoría educativa marxista basada en Marx, Suchodolski y Manacorda. También indicamos que el discurso de Lenin contiene los principios fundamentales de la Escuela Única de Trabajo (Krupskaya, Pistrak y Shulgin), experimento escolar de los primeros años de la Rusia Soviética. Concluimos que, aunque pasado un siglo de este discurso, él continua actual porque las cuestiones abordadas siguen como desafíos para la educación de las nuevas generaciones: la superación de la sociedad de clases, la necesaria articulación de teoría y práctica y el compromiso de los jóvenes en las luchas sociales y en el dominio del conocimiento desarrollado. Palabras-clave : Lenin; Juventud Comunista; Teoría Marxista de la Educación; Escuela Única de Trabajo. THE CURRENTNESS OF LENIN IN “THE TASKS OF YOUTH” Abstract The aim of this article is to present and discuss Lenin’s speech “The tasks of the Youth Unions”, given in 1920 in the occasion of the Communist Youth Congress of Russia. Methodologically we point out the Russian context at the time, present Lenin’s text and link it to the Marxist educational theory based on Marx, Suchodolski and Manacorda. We also indicate that Lenin’s speech contains the basic principles of the Single Labor School (Krupskaya, Pistrak and Shulgin), a school experience from the early years of the Soviet Russia. We conclude that, even though a century has passed since this speech, it keeps being relevant because the issues approached on it remain as educational challenges to the new generations: overcoming class society, the necessary articulation of theory and practice and the commitment of young people in social struggles and in mastering the knowledge. Key-words : Lenin; Communist Youth; Marxist Theory of Education; Single Labor School 2 Doutora em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina. Professora do Centro de Ciências da Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação. Núcleo de Estudos sobre as Transformações do Mundo do Trabalho TMT/CED/UFSC. Email: sandra.dalmagro21@gmail.com . Lattes: http://lattes.cnpq.br/9400207409329063 . ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9639-7070 . 1 Artigo recebido em 29/09/2024. Primeira Avaliação em 30/09/2024. Segunda Avaliação em 09/10/2024. Aprovado em 30/10/2024. Publicado em 05/12/2024. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v22i49.64869 1
Introdução Realizamos uma apresentação e algumas reflexões sobre o texto clássico de Lênin “As Tarefas das Uniões da Juventude”, popularmente conhecido como “As Tarefas da Juventude”. 3 Trata-se de um discurso proferido em 2 de outubro de 1920, por ocasião do III Congresso da União Comunista da Juventude de toda a Rússia e publicado originalmente na Revista Pravda, revista oficial do Partido Comunista da União Soviética. Utilizamos aqui da versão disponível no site marxista.org , o qual publica a partir das Obras Escolhidas de Lênin, Edições Avante!, ligada ao Partido Comunista Português. O texto também pode ser encontrado em edições brasileiras como as Obras Escolhidas, pela editora Alfa e Ômega (Lênin, 1980). O discurso/texto possui cerca de dez páginas. A União da Juventude Comunista, também conhecida como Komsomol (contração de Kommunisticheskiy Soyuz Molodiozhi) foi a organização dos jovens comunistas articulados em diversas células em todo o país e que perdurou ao longo do período soviético. O Komsomol foi a mais relevante e longeva organização juvenil, ligada ao Partido Comunista da União Soviética (PCUS), reunindo milhares de jovens a partir de 14 anos 4 . Antes dos 14 anos havia uma organização infantil denominada Pioneiros. Ambas, no período fértil dos primeiros anos da revolução, se pautavam pela auto-organização (Pistrak, 2018; Shulgin, 2013), ou autogestão, princípio marxista-leninista também exercitado nos soviets. Vladimir Ilich Lênin (1870-1924) foi o líder mais destacado da Revolução Russa e do Partido Bolchevique, desempenhando um trabalho teórico e prático essencial. Estudioso do marxismo, em seus escritos sobressaem os temas do partido, do Estado e da filosofia marxista. A questão da instrução pública como política estratégica da revolução socialista é recorrente em sua obra (Bittar e Ferreira Jr., 2011). Lênin foi casado com Nadezhda Krupskaya, reconhecida revolucionária e pedagoga soviética que atuou junto ao Comissariado do Povo para a Educação NARKOMPROS, órgão similar ao Ministério da Educação. 4 Em seu discurso, Lênin aponta que a União da Juventude Comunista tem 400 mil membros. 3 Este artigo foi escrito para a sessão Textos Clássicos da Revista Trabalho Necessário cujo objetivo é tecer comentários sobre obras consagradas. O texto de Lênin encontra-se na íntegra nos anexos desta Edição n. 49, cuja temática é Juventude Trabalhadora. 2
Lunatcharski, o Comissário da Educação entre 1917 a 1929, reconhecido intelectual e militante, considerava Krupskaya a “alma do NARKOMPROS” (Freitas, 2017). Antes de adentrarmos na exposição do texto vamos localizar brevemente o contexto econômico e cultural da Rússia quando do discurso de Lênin. Contexto histórico 5 Outubro de 1917 é a síntese de um processo longo de lutas dos trabalhadores russos contra o poder absoluto do czar. A aristocracia russa era composta de pequena classe cheia de privilégios, enquanto grande parte da população vivia na pobreza e miséria. Houve tentativas anteriores de acabar com o czarismo. Destaca-se o ano de 1905, denominado “Ensaio Geral”, repleto de greves e insurreições que foram duramente reprimidas, porém o resultado mais significativo desse momento foi a criação dos soviets conselhos de trabalhadores que funcionavam como um duplo poder, controlando a partir de 1905 os alimentos, as armas, o debate e a formação política. São os soviets que têm papel decisivo em 1917, como indicava a consigna “Todo poder aos soviets”. A Rússia era um país atrasado, com uma imensa massa de camponeses pobres vivendo em condições de exploração análogas ao feudalismo. Nas cidades, principalmente Moscou e São Petersburgo, a urbanização e a industrialização se desenvolviam, mas onde milhares de desempregados e trabalhadores viviam em situação precária. O processo revolucionário emerge das condições de vida do povo russo que foram agravadas pela primeira guerra mundial e devido a existência de organizações dos trabalhadores e sua articulação em um partido revolucionário. As principais reivindicações dos camponeses e trabalhadores foram sintetizadas pelo slogan bolchevique que conduziu à revolução em 1917: “Pão, Paz e Terra”. O povo russo passava fome, estava cansado de guerras e a questão da terra era um problema secular. Os operários concentrados nas grandes cidades comandam o processo revolucionário, mas os camponeses constituíam a imensa 5 Para esta parte do texto nos apoiamos em uma síntese que produzimos por ocasião do centenário da Revolução Russa (Bahniuk e Dalmagro, 2017). 3
maioria da população russa. A aliança entre operários e camponeses é um ponto essencial que possibilitou unir forças em prol da revolução. As medidas imediatas após a tomado do poder se referem à paz, à terra e ao controle operário da vida social (Serge, 2007), as quais buscam reverter o contexto da guerra civil, a fome e as forças produtivas pouco desenvolvidas, em particular a produção industrial atrelada ao capital internacional, o qual decretou embargo econômico à Rússia. A tomada do poder não encerra as lutas, antes abre um novo ciclo. Os desafios são imensos: o enfrentamento ao exército branco contrarrevolucionário, o boicote dos países ocidentais à revolução, dispor de quadros políticos e técnicos aos desafios da tomada do poder em um contexto de pouca escolaridade e a morte de destacados militantes no contexto das guerras. No ano de 1920 a Rússia sofreu uma seca de enorme proporção, implicando na volta da fome, agravada pela especulação com os alimentos exercida pelos kulaks, camponeses ricos que controlavam as terras e se opunham às transformações em curso. Os primeiros anos da revolução são chamados de Comunismo de Guerra, assinalando as dificuldades do período no qual o principal desafio era assegurar a vitória da revolução. O momento que se abre após estes difíceis primeiros anos é a necessidade de desenvolver economicamente o país. A Nova Política Econômica (NEP) tem como coluna vertebral o desenvolvimento industrial, a maquinização e a coletivização no campo. Para isso é preciso eletrificar o país e fomentar a indústria de base. Os extratos mais conscientes da revolução têm a clareza de que o socialismo é uma fase transitória ao comunismo. As classes ainda não estão extintas. Em particular na Rússia da época, país feudal, a indústria é incipiente, coube ao socialismo promover a base técnica que em outros países fora obra do capitalismo. A NEP assume o modelo taylorista, reproduzindo a divisão entre concepção e execução, além de realizar diversas concessões à propriedade privada, entendidos pelo comando do Partido como recuos necessários para desenvolver o país, retirar a população da miséria e ampliar as bases políticas de apoio à revolução. As contradições e desafios são imensos e emergiram críticas no seio do próprio comunismo quanto aos caminhos que a revolução traçou (ver por exemplo Aued, 1995). 4
Note-se que o discurso de Lênin ocorre transcorridos menos de 3 anos da revolução de 1917. Momento em que se transita do Comunismo de Guerra à Nova Política Econômica. Os elementos da transição, do longo processo que atravessa gerações para construir o comunismo e os desafios de edificar os fundamentos econômicos e culturais da nova sociedade estão explícitos no texto. Em que pesem as contradições e mesmo o fim do “socialismo real”, o processo revolucionário nos seus primeiros anos assegurou o direito ao trabalho, a jornada laboral de 8 horas, equiparou os salários de homens e mulheres, garantiu a assistência médica e a educação gratuitas, o direito à habitação, entre outros (Serge, 2007). Em relação às mulheres formulou-se uma legislação progressista outorgando à igualdade dos direitos civis e políticos, o direito ao divórcio, ao aborto legal e gratuito e a socialização do trabalho doméstico por meio de lavanderias, creches e restaurantes públicos. Aos jovens também se dedica atenção especial na área educacional, no campo profissional e na participação na vida social e política, como fica evidente no discurso aqui em análise. No campo educacional e cultural se realiza um processo de socialização dos bens culturais como o acesso a bibliotecas, museus, universidades, meios de comunicação e à arte em suas diversas expressões. Em particular, entre 1917 e 1931, um vasto empreendimento para transformar a velha escola elitista, verbalista e autoritária em uma escola sintonizada aos interesses das crianças e jovens e aos desafios sociais mais amplos colocados pela revolução. A escolaridade torna-se obrigatória e o ensino gratuito, contrastando com a lógica excludente existente na Rússia antes da revolução, na qual 4/5 das crianças e adolescentes não frequentavam a escola e aproximadamente 75% da população era analfabeta. Nas regiões mais remotas da Rússia o índice de analfabetismo chegava a 90%. As questões brevemente relatadas demonstram o caráter expansivo da Revolução Russa a qual buscou outras bases para a produção da vida, trazendo à tona questões que no curto período da revolução desenvolveram-se de forma prematura. O desenrolar do socialismo russo foi limitado por diversos fatores como a segunda guerra mundial, a inexistência de outras revoluções no ocidente, a instauração do stalinismo e a concentração do poder econômico e político na burocracia estatal e partidária. Mas as conquistas de outubro se expandiram além da Rússia (Hobsbawn,1995), pautando no mundo todo melhores condições para os 5
trabalhadores e à causa das mulheres, além de inspirar a luta pelo socialismo por muitas décadas até a atualidade, estimulando revolucionários e revoluções. O contexto do discurso de Lênin, acima brevemente referido, ganha vida em sua fala aos jovens e é a base concreta a partir da qual ele pergunta: afinal, o que é ser um comunista? Como se aprende a ser um comunista? Nossa exposição seguirá a sequência do seu discurso, o qual responde às questões acima referidas de modo dialético em três pontos: i) a necessidade de estudar, se apropriar das conquistas da ciência e do conhecimento elaborados; ii) a inserção dos jovens nas lutas do povo russo para a construção do socialismo e iii) convocação dos jovens e de sua organização na campanha de alfabetização e combate à fome do povo russo, questões prementes à época. Nosso objetivo nestas páginas é apresentar o texto de Lênin e tecer alguns comentários que buscam contextualizar e apoiar o seu entendimento. Trazemos algumas contribuições de outros pensadores marxistas, principalmente do campo da teoria educacional e da pedagogia marxista, uma vez que o texto em questão aborda centralmente a educação das novas gerações. Como se aprende a ser comunista? Lênin inicia seu discurso afirmando que cabe precisamente à juventude criar a sociedade comunista, porque “a geração de militantes educada na sociedade capitalista pode, no melhor dos casos, realizar a tarefa de destruir as bases do velho modo de vida capitalista baseado na exploração”. Não se trata da retórica de Lênin por estar em um Congresso Juvenil. Está a destacar que a construção do comunismo é tarefa de longo prazo, de muitas gerações e que mudar a educação de forma radical é um empreendimento que leva tempo e que se articula com as condições objetivas em que a educação se processa. Portanto, segue Lênin, as tarefas da juventude poderiam ser expressas com uma palavra: “a tarefa consiste em aprender”. Mas, pergunta ele: “que aprender e como aprender?” Sua resposta, como um bom materialista dialético começa: “O ensino, a educação e a formação da juventude devem partir do material que nos ficou da velha sociedade.” A nova sociedade não deve se parecer com a antiga, são necessários conhecimentos, comportamentos e valores novos, mas isso se constroi com base e partindo do que a velha sociedade nos deixou. Afirma que as novas 6
gerações precisam aprender o que é o comunismo, mas em seguida diz que esta é uma afirmação demasiado genérica. Por certo, aprender o comunismo não é aprender por meio de manuais. A realidade é viva, em movimento e complexa e não se trata de aplicar a teoria marxista na realidade, como uma mecânica. “Comunistas” de manuais, de frases prontas, são um perigo ao comunismo, adverte-nos. Neste ponto, Lenin se refere ao “divórcio” entre os livros e a vida, questão ainda bastante atual. Sob a era czarista, medieval, tal divórcio era ainda mais gritante. A articulação entre o livro e a vida, ou entre o conhecimento e a realidade será o ponto central a partir da qual se construirá a escola soviética (Krupskaya, 2017; Pistrak, 2015 e 2018; Shulgin, 2013 e 2022). Percebamos que “o livro” é uma referência ao conhecimento humano sistematizado e validado em cada época e que é atravessado por ideologia, interesses e forças em luta. Para o Materialismo Histórico-dialético o conhecimento, e nele a ciência, são históricos, expressam os modos e os métodos de conhecer de seu tempo (Andery et al, 1999), assim como o que é tido como verdadeiro está atravessado pelas relações sociais. Na resposta à pergunta o que e como aprender a ser comunista, Lênin passa a falar da escola. Ele sabe que a escola é uma instituição de classe, dual, que forma para as funções correspondentes às diferenças de classes no capitalismo. Não por acaso a escola que se constroi no período dos pioneiros soviéticos se chama Escola Única do Trabalho. Única porque não dual (Cverdlov et al, 2017; Lunacharski, 2017). A velha escola era a escola do estudo livresco, obrigava as pessoas a assimilar uma quantidade de conhecimentos inúteis, supérfluos, mortos, que atulhavam a cabeça e transformavam a jovem geração num exército de funcionários talhados todos pela mesma medida. Mas se tentásseis tirar a conclusão de que se pode ser comunista sem ter assimilado os conhecimentos acumulados pela humanidade cometeríeis um enorme erro. Seria errado pensar que basta assimilar as palavras de ordem comunistas, as conclusões da ciência comunista, sem assimilar a soma de conhecimentos de que o comunismo é consequência. O marxismo é um exemplo que mostra como o comunismo surgiu da soma dos conhecimentos humanos (LÊNIN, 1977, s/p). Atentemos que a escola, sob o período czarista era acessível a menos de 5% da população, portanto, frequentar a escola era condição da aristocracia e classes médias que precisavam das letras para as funções que desempenhavam. a 7
escola que se tornou acessível às amplas massas nos países capitalistas, se universaliza a partir de seu caráter dual, ou seja, quando frequentar a escola não é sinônimo de status ou mobilidade social e, depois, nem mesmo garantia de estabilidade no trabalho. Manacorda (2000) demonstra que, para os trabalhadores, a escola não tem o objetivo de ensinar a ciência ou o pensamento complexo, mas difundir conhecimentos rudimentares e moldar comportamentos como a disciplina, hierarquia e submissão, necessários ao trabalho industrial. Lênin afirma que a teoria marxista alcançou importância e milhares de proletários no mundo pois está apoiada nos conhecimentos adquiridos no capitalismo, se erguendo sob o acúmulo anterior. Uma “cultura proletária”, para nosso autor, somente seria possível com base no conhecimento preciso da cultura criada por todo o desenvolvimento da humanidade e com a reelaboração desta. Não é possível, para ele, uma cultura proletária sem lastro, que emerja do vazio. Nesta passagem Lênin está a criticar o Proletktut, movimento que propunha uma “cultura proletária autêntica”, de base idealista, e que teve enorme adesão nos primeiros anos da Revolução de Outubro. 6 O conhecimento elaborado, destituído de inverdades e ilusões, precisa ser assimilado pelas novas gerações de modo crítico, ou seja, em confronto e diálogo com a realidade viva e pulsante. Sob camadas de poeira e ideologia, encontram-se pérolas, verdades históricas, o saber que a humanidade construiu sob gerações. Esta limpeza precisa ser feita e trata-se de um esforço coletivo, mas caberá também a cada estudante, jovem e revolucionário, o espírito crítico e atento para saber distinguir o conhecimento verdadeiro da ideologia. Vemos como Lênin opera com a contradição e a dialética: o novo nasce do velho, como no poema de Brecht (1987) A Parada do Velho Novo , mas à primeira vista não é fácil distingui-los pois estão misturados. 6 O Proletkult emergiu em 1917 como movimento autônomo e ganhou muitos adeptos nos primeiros anos da revolução, chegando a milhares de membros. Lênin e Krupskaya, dentre outros, opuseram-se ao Proletkult pelo seu idealismo e espontaneísmo. Em Materialismo e Empiriocriticismo, escrito em 1909, Lênin (1946) faz duras críticas à Bogdanov, que se tornaria o principal expoente do Proletkult. Em meados dos anos 1920 o Proletkult adentra as estruturas do Estado soviético o que leva a perda de vitalidade e à sua extinção. Leher (2017) tece críticas à posição de Lênin e Krupskaya quanto ao Proletkult, com o argumento de que uma força popular importante é burocratizada, obstaculizando a ruptura com a cosmovisão burguesa. Também tem força o argumento que a ciência e a técnica produzidas sob o capitalismo, em muitos aspectos não servem às necessidades dos trabalhadores pois a tecnologia consubstancia relações sociais. 8
se pode chegar a ser comunista depois de ter enriquecido a memória com o conhecimento de todas as riquezas que a humanidade elaborou. Não precisamos da aprendizagem de cor, mas precisamos de desenvolver e aperfeiçoar a memória de cada estudante com o conhecimento de factos fundamentais, porque o comunista transformar-se-ia numa palavra vazia, transformar-se-ia num rótulo fútil, e o comunismo não seria mais do que um simples fanfarrão se não reelaborasse na sua consciência todos os conhecimentos adquiridos. Não deveis assimilá-los, mas assimilá-los com espírito crítico para não atulhar a vossa inteligência com trastes inúteis, e enriquecê-la com o conhecimento de todos os factos sem os quais não é possível ser um homem moderno culto (LÊNIN, 1977, s/p). São muitos os ensinamentos que podemos extrair desta passagem, como a oposição a um “comunismo” baseado apenas em palavras sem atos, o entusiasmo tão necessário, mas que sem articulação com a realidade concreta se desvanece. Lênin traz presente a complexidade de construir o socialismo e que para tal, a vontade é importante, mas absolutamente insuficiente. Está a dizer aos jovens: estudem, estudem!! Se apropriem da ciência, de todas as áreas do conhecimento! Sem isto não transformamos a realidade. Lembra que o socialismo não se viabiliza em um país e que o capitalismo em escala global se alia contra a Rússia. A realidade russa, de atraso econômico e cultural, precisava ser transformada para que o socialismo tivesse chances de se manter vivo. Esta é a urgência que Lênin alerta. Devemos ocupar a velha escola capitalista e dela retirar tudo que servia aos interesses burgueses. Em seu lugar devemos colocar a disciplina consciente, a capacidade de união e organização coletiva. Estas questões, como afirmamos, estão desenvolvidas pelos pedagogos da primeira década da revolução. Chegamos então a um segundo momento do texto, no qual o autor fala do desafio de construir a sociedade socialista. Em poucas linhas resume as condições objetivas em que o processo revolucionário se encontra e seus principais desafios. Começa pela urgência em eletrificar o país, o que era condição para desenvolver a indústria e o maquinário agrícola. Fala da necessidade de coletivizar o campo, rompendo não apenas com a grande propriedade, mas também com o isolamento do camponês. Assinala para superar o analfabetismo, questão que retomará ao final de seu discurso. Em um parágrafo, Lênin desenha as grandes questões que a revolução enfrentava nas suas primeiras décadas. 9
Não foi difícil desembaraçarmo-nos do tsar - bastaram para isso alguns dias. Não foi muito difícil desembaraçarmo-nos dos latifundiários, pudemos fazê-lo em alguns meses, não foi muito difícil desembaraçarmo-nos também dos capitalistas. Mas suprimir as classes é incomparavelmente mais difícil (…) A luta de classe continua; apenas mudaram as suas formas. É a luta de classe do proletariado para que não possam voltar os velhos exploradores, para unir a massa dispersa do campesinato ignorante (LÊNIN, 1977, s/p). Como sabemos, a revolução não se faz por decreto e nem acaba com a tomada de poder. Este último apenas abre uma nova etapa na luta de classes. Estas precisam ser extinguidas na realidade, o que leva tempo e acerto nas estratégias de ação. O contexto deste momento é que os grandes proprietários rurais não tinham sido desarticulados e jogavam contra a revolução, especulando com a produção de alimentos, numa conjuntura de fome, guerra e secas que se seguiram à revolução. Esta não estava garantida. Lênin alerta aos jovens comunistas que o egoísmo, o desejo de enriquecer, sempre assentados na exploração dos outros e na indiferença com o próximo, são fundamentos das classes dominantes. Está a atentar aos jovens quanto ao cuidado com seus desejos e interesses 7 , pois, se estes se voltam para escalar o poder, ocupar cargos burocráticos, então não temos um comunista, mas um burguês ou um opressor disfarçado. Este tema é de enorme atualidade pois em nossos tempos o empreendedorismo é vendido como o modo para “vencer na vida” pelos próprios méritos, escondendo a ganância de uns poucos sob a exploração e exclusão da maioria. Tem sido difícil combater essa ideologia pois nela se expressam os pilares da sociedade burguesa: a propriedade privada e a ideia de indivíduo destituído do coletivo. Este modo de produzir e se educar é que precisa ser modificado, caminho que a revolução estava a trilhar. É preciso criar condições para que crianças e jovens se desenvolvam em novas relações nas quais sua educação possa emergir voltada à coletividade. 7 A Teoria Histórico-cultural discute as bases materiais dos interesses e motivos. Os motivos são aqueles que mobilizam, portanto estão na base da atividade, são sínteses da formação humana no sujeito, expressão da personalidade. Para esta Teoria, de base marxista e desenvolvida ao longo do período soviético, os motivos e interesses precisam ser educados e desenvolvidos na direção do social, do coletivo (Vigotski, 2009; Leontiev, 1983). Segundo Prestes (2017) Vigotski tinha grande contato com Krupskaia e Lunatcharski. Podemos ver muitas conexões entre sua obra, voltada à psicologia educacional e a dos pioneiros da pedagogia soviética expressas por Krupskaya, Pistrak e Shulgin. 10
Quando nos falam de ética, dizemos: para um comunista, toda a ética reside nessa disciplina solidária e unida e nessa luta consciente das massas contra os exploradores. Não acreditamos na ética eterna e desmascaramos a mentira de todas as fábulas acerca da ética. A ética serve para que a sociedade humana se eleve mais alto, se liberte da exploração do trabalho (LÊNIN, 1977, s/p). Suchodolski é um autor que aprofunda a teoria educacional do marxismo e, como Lênin, chama a atenção para a dimensão da educação social. Trata-se de tema frequentemente negligenciado e cuja importância está em proporção à complexidade e dilemas da vida em sociedade. Ele escreveu nos anos 1970, mas continua atual ao afirmar que não possuímos sequer um esquema preliminar de uma moral laica e social para uso das escolas e da juventude e continuamos a descurar o papel da educação dos sentimentos na educação moral. Em tempos de grave crise climática e social como os que vivemos, armas cada vez mais destrutivas, contradição entre as colossais forças produtivas, concentração da riqueza e milhares de famintos e despatriados, a educação social e ética se torna um tema premente. “A educação moral, justamente, diz respeito à nossa vida cotidiana em situações concretas. A educação moral é o problema do homem no pleno sentido da palavra” (Suchodolski, 2002, p. 104). Suchodolski nos ajuda a compreender as palavras de Lênin e trazer a ética para o cotidiano, para sua dimensão concreta da vida humana. Os valores, os motivos e a ética são formados pelas condições objetivas em que vivemos, portanto, colocar os jovens nas lutas da classe é profundamente educativo. Vejamos uma passagem preciosa do texto de Lênin acerca de como se aprender a ser comunista: Quando os homens viram como os seus pais e mães viveram sob o jugo dos latifundiários e capitalistas, quando eles próprios participaram nos sofrimentos que se abatiam sobre aqueles que iniciaram a luta contra os exploradores, quando viram que sacrifícios custou a continuação dessa luta para defender aquilo que foi conquistado e que inimigos furiosos são os latifundiários e os capitalistas, esses homens educam-se nesse ambiente como comunistas. A base da ética comunista está na luta pela consolidação e realização completa do comunismo. Eis em que consiste também a base da educação, da formação e do ensino comunistas. Eis em que consiste a resposta à questão de como se deve aprender o comunismo (LÊNIN, 1977, s/p). 11
Nesta passagem, Lênin informa que a palavra comunista significa comum e que naquela sociedade “tudo é comum: a terra, as fábricas, o trabalho de todos - eis o que é o comunismo”. Porém, “o trabalho comum não se cria de repente”. É preciso forjá-lo e isto se faz na luta. Portanto, ser comunista “significa consagrar o seu trabalho, as suas forças, à causa comum”. Lênin retoma as bases postas por Marx (1989, 1996): é na luta real que constroi o comunista. Diferente da perspectiva burguesa de educação, pautada na palavra divorciada da realidade mais ampla assim como na visão religiosa a educação socialista tem base na prática, na luta de classes contra a exploração, a qual, como enfatizado na primeira parte do texto de Lênin, alia-se à teoria de modo fértil. É conhecida e verdadeira a expressão de Lênin no livro “Que Fazer?” de 1902, segundo a qual sem teoria revolucionária não prática revolucionária. no discurso de 1920, Lênin nos assinala o mesmo princípio de articulação, mas de modo invertido: sem prática revolucionária, não revolucionários; o que vida à teoria revolucionária são as lutas concretas, o que produz o comunista são as lutas comuns, isto é, coletivas. Suchodolski (1976), novamente nos ajuda a entender a teoria educacional implícita na teoria marxista acionada por Lênin: é nas lutas da classe, no movimento revolucionário que se encontram as bases para mudar a consciência, transformado esta em interdependência com a transformação da vida social. Conforme Marx (1989 e 1987), o ser humano cria-se na história por sua própria atividade (não entendida de modo apenas individual, mas enquanto coletividade) e a alienação pode ser superada mediante a criação de condições de vida humanizadas. Na terceira tese Ad Feuerbach está sintetizado o princípio teórico-prático da autoprodução e da autoformação humana em sua atividade : (...) a doutrina materialista que pretende que os homens sejam produto das circunstâncias e da educação, e que, consequentemente, homens transformados sejam produtos de outras circunstâncias e de uma educação modificada, esquece que são precisamente os homens que transformam as circunstâncias e que o próprio educador precisa ser educado. (...) A coincidência da mudança das circunstâncias e da atividade humana ou automudança pode ser concebida e entendida racionalmente como práxis revolucionária (MARX, 1989, p. 94). 12
O elemento decisivo no processo de formação humana é a atividade socioprodutiva do homem que transforma seu ambiente (Suchodolski, 1976). O que produz os humanos é sua própria prática social. Através dela se configura tanto o ambiente quanto a consciência, que os homens são tão educados pelo meio quanto o fazem. Portanto, o estudo da doutrina comunista, enfatizado por Lênin, se torna consequente quanto articulado às lutas pela construção do socialismo, em condições concretas. Não acreditaríamos no ensino, na educação e formação se estes estivessem encerrados apenas na escola e separados da vida tempestuosa. Enquanto os operários e os camponeses continuarem oprimidos pelos latifundiários e capitalistas, enquanto as escolas continuarem nas mãos dos latifundiários e capitalistas, a geração da juventude permanecerá cega e ignorante. Mas a nossa escola deve dar à juventude as bases do conhecimento, a capacidade de forjar por si mesmos concepções comunistas, deve fazer deles homens cultos. A escola deve, durante o tempo que os homens estudam nela, fazer deles participantes na luta pela libertação em relação aos exploradores. A União Comunista da Juventude justificará o seu nome, justificará que é a União da jovem geração comunista, se ligar cada passo da sua instrução, educação e formação à participação na luta comum de todos os trabalhadores contra os exploradores. (…) Deste modo, ser comunista significa organizar e unir toda a jovem geração, dar o exemplo de educação e de disciplina nesta luta. Então podereis começar e levar até ao fim a construção do edifício da sociedade comunista (LÊNIN, 1977, s/p). está mais uma vez afirmada a necessária articulação da escola com a vida fora da escola, do vínculo entre teoria e prática, coluna vertebral da Escola Única do Trabalho. A auto-organização, o Trabalho Socialmente Necessário e a atualidade são as ferramentas desenvolvidas pelos pioneiros da pedagogia soviética para dar consequência ao princípio da unidade teórico-prática (Pistrak, 2015 e 2018; Shulgin 2018 e 2022). A União dos Jovens Comunistas, o Komsomol, se estrutura fora da escola e independente desta, se articulada com os trabalhadores e seus coletivos locais, mas também deve atuar na escola, estimulando a auto-organização dos estudantes e apoiando a escola na direção do projeto do Narkompros. Um terceiro e último momento de seu discurso Lênin consequência ao que afirmou anteriormente. Ele convoca a União dos Jovens Comunistas para contribuírem em duas frentes na construção do socialismo: a alfabetização do povo e a construção de hortas para combate à fome. Ele afirma que a agricultura ainda se 13
faz à maneira antiga, pouco racional e produtiva, e que os “elementos mais conscientes” devem apoiar a multiplicação de hortas, portanto, pondo-se ao trabalho útil, atuando como organizadores e fomentadores de novas formas de produção. É um exemplo simples, mas que articula o trabalho social e o conhecimento mais desenvolvido disponível às novas gerações - ambos estruturadores do discurso de Lênin para se tornar um trabalho social. Nas palavras de Shulgin (2013), um Trabalho Socialmente Necessário. Quanto à alfabetização, Lênin oferece uma lição basilar: “sabeis que num país analfabeto é impossível edificar a sociedade comunista”. Com base nesta convicção o país desenvolvia ampla Campanha de Alfabetização, e, naquele ano de 1920, fora criada a Comissão Extraordinária da Rússia de Combate ao Analfabetismo (Bittar e Ferreira Jr, 2011). A tarefa era gigante pois, como indicamos, 75% da população era analfabeta em um país continental e com poucos professores. Os jovens tinham muito a contribuir, tornando esta a sua causa. Naquelas condições históricas, alfabetizar é agir como comunista, é construir o socialismo, afirma Lênin. É o trabalho útil, necessário, coletivo, que constroi concretamente a sociedade nova. “A juventude comunista terá o respeito geral quando contribuir para as grandes tarefas na construção do Comunismo”, de modo que alfabetizar, produzir comida, cuidar dos idosos e crianças, pautados nas necessidades e organização coletiva, adquire um sentido especial, revolucionário. Eis como se aprende a ser comunista. Considerações finais Passados 104 anos deste discurso de Lênin, o mundo submergindo ao capitalismo continua com milhares de analfabetos, famintos, crianças e idosos abandonados. Mulheres seguem violentadas, as populações originárias expulsas de suas terras, o desemprego, a pobreza e as guerras produzem uma massa de migrantes vagando pelo mundo ser terra e sem lar. As guerras imperialistas seguem disputando as partes do mundo, ignorando a população local. A produção destrutiva levou-nos a uma pandemia e a uma catástrofe climática que ameaça a continuidade da vida humana no planeta. Os jovens se sentem impotentes e sem esperanças. 14
Infelizmente o discurso de Lênin segue profundamente atual. Mas felizmente ele permanece bastante inspirador. Nos lembra que a luta emerge das contradições. Sim, resistências em nosso tempo, espaços de esperança! E se ainda são poucos ou contra hegemônicos, precisamos torná-los regra. Lênin, Marx e Suchodolski nos lembram que é apenas na luta por um mundo mais humano que a nova geração pode se formar, somente por meio das lutas é que se produz esperança e futuro. A articulação entre teoria e prática, entre a escola e seu meio, portanto, a unidade entre o conhecimento elaborado, a luta de classes e a organização coletiva é caminho inevitável para que as novas gerações possam construir o futuro, transformando o que herdam em uma sociedade comum. Referências ANDERY, M. A. et al. Para compreender a Ciência . Uma perspectiva histórica. 8 ed. Rio de Janeiro: Editora Espaço e Tempo; São Paulo: EDUC, 1999. AUED, I. M. Estratégias e contradições na construção da sociedade socialista soviética : socialismo de menos, capitalismo de mais (1917-1929). 1996. 329f. Tese (Doutorado em Geografia Humana) - USP, São Paulo. BAHNIUK, C. e DALMAGRO, S. L. Cem anos da Revolução Russa: por que comemoramos? Informativo Andes UFSC , n. 30. Florianópolis. 1 nov. 2017. BITTAR, M; FERREIRA JR, A. A Educação na Rússia de Lênin. Revista HISTEDBR On-line . Campinas, número especial, p. 377- 396, abr 2011. BRECHT, B. Parada do velho novo. In: BRECHT, B. Poemas 1913 1956 . ed. São Paulo: Brasiliense, 1987. CVERDLOV, Ya. et al. Deliberação do Comitê Executivo Central de toda a Rússia. Publicado originalmente em 1918. In: KRUPSKAYA, Nadezhda K. A construção da Pedagogia Socialista : escritos selecionados. São Paulo: Expressão Popular, 2017, p. 267-274. FREITAS, L. C. de. Prefácio. In: KRUPSKAYA, Nadezdha K. A construção da Pedagogia Socialista : escritos selecionados. São Paulo: Expressão Popular, 2017. HOBSBAWM, E. Era dos extremos : o breve século XX (1914-1991). Tradução: Marcos Santarrita. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. KRUPSKAYA, N. K. A construção da Pedagogia Socialista : escritos selecionados. São Paulo: Expressão Popular, 2017. 15
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