V.22, 49 - 2024 (setembro-dezembro) ISSN: 1808-799 X APRENDENDO A SER TRABALHADOR NA ESCOLA: RESISTÊNCIA, REBELDIA E MARCAS DE AUTOCONDENAÇÃO. 1 Sonia Rummert 2 Capa da edição inglesa, 1977 Capa da edição brasileira, 1991 2 Doutora em Ciências Humanas Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), Rio de Janeiro - Brasil. Professora colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF), Rio de Janeiro - Brasil. Pesquisadora do CNPq. Área de estudo: Educação de Jovens e Adultos Trabalhadores. E-mail: rummert@gmail.com . Lattes: http://lattes.cnpq.br/9928452814893376. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1187-8786. 1 Texto Clássico recebido em 30/09/2024. Aprovado pelos editores em 20/10/2024. Publicado em 05/11/2024. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v22i49 .64890 1
No final dos anos de 1960 foi criado o Centro de Estudos Culturais Contemporâneos (Centre for Contemporary Cultural Studies CCCS) da Universidade de Birmingham, Inglaterra, cujos fundamentos teórico-metodológicos inspiravam-se em contribuições de intelectuais como Edward P. Thompson, Raymond Williams e Richard Hoggart, seu primeiro diretor. Foi no CCCS que Paul Willis, em 1969, se tornou um de seus primeiros estudantes e cursou a pós-graduação, tendo nele permanecido por 13 anos. O CCCS não existe mais, entretanto, muitos dos trabalhos nele produzidos permanecem atuais e constituem referência para pesquisadores de diferentes áreas das Ciências Humanas, dentre elas a Educação. No caso particular de Paul Willis, o livro que lhe conferiu maior destaque nessa área foi o famoso, Learning to labour. How working class kids get working class jobs, publicado em Londres no ano de 1977 e, 14 anos depois, editado em língua portuguesa com o título: “Aprendendo a ser trabalhador. Escola, resistência e reprodução social, pela Editora Artes Médicas”. A obra, que pode ser considerada um clássico na área dos estudos críticos em educação, foi amplamente discutida quando de sua publicação, constituindo referência importante, sobretudo, na sociologia da educação e, também, em estudos sobre a relação entre o mundo do trabalho e a educação. Esse livro de Paul Willis, constitui um exemplo marcante de sua contribuição aos estudos da cultura juvenil e popular –, compreendida na pluralidade de suas dimensões como parte de uma totalidade complexa e multifacetada. Na obra, Willis se fundamenta em pesquisa na qual, a partir de estudo etnográfico interpretativo do que denomina como cultura “contra escolar”, desvela aspectos essenciais para a compreensão da forma de estar no mundo capitalista adotada por um grupo de doze jovens da classe operária, do sexo masculino, que cursavam o currículo secundário não acadêmico de uma escola à qual deu o nome fictício de Hammertown Boys, localizada em uma região industrial tradicional da Inglaterra. Essa escola contava, na ocasião da pesquisa, com aproximadamente 600 alunos, entre os quais, um contingente significativo de filhos de imigrantes, em particular da Ásia e do Caribe. Sua escolha, entre outros aspectos, decorreu do fato de estar situada numa área que se constituiu como região operária no período entreguerras, localizada no centro de Hammertown e todos os estudantes procederem de famílias operárias. Conforme Willis, a região da escola constitui uma cidade industrial típica, com todas as suas características clássicas, assim como as 2
do capitalismo monopolista moderno, em combinação com um proletariado que é precisamente o mais antigo do mundo” (Willis, 1991, p. 18.) O trabalho, dedicado ao estudo dos jovens desse grupo, que se autointitulavam lads [rapazes] e se apresentavam como um grupo anti-escola, ressalta o fato de que “As pessoas realmente vivem (e não simplesmente tomam emprestado) seu destino de classe quando aquilo que é dado é re-formado, reforçado e aplicado a novos propósitos” (Willis, 1991, p.13). Para além disso, o autor explicita aspectos da contradição, inerente a todos os processos histórico-sociais, afirmando que “existe um certo elemento de autocondenação na adoção de papéis subordinados no capitalismo ocidental” (Willis, 1991, p.12-13). Porém, de forma aparentemente paradoxal, essa autocondenação é experienciada pelos jovens “como um verdadeiro aprendizado, como uma afirmação, como uma apropriação e como uma forma de resistência” (Willis, 1991, p.13). Ao explorar, de forma própria, a categoria cara ao materialismo histórico, a contradição, o livro ‘Aprendendo a ser trabalhador’ de certa forma inaugura, na pesquisa acadêmica europeia, um movimento de ruptura com a tradição de bases francesas, da teoria da reprodução, para lançar fundamentos da teoria da resistência, que marca o cotidiano escolar de frações juvenis da classe trabalhadora. Cabe aqui assinalar que Paul Willis não era marxista, embora o pensamento marxiano permeie a análise etnográfica que deu origem ao livro aqui abordado. Também, importantes contribuições de Antonio Gramsci se fazem presentes nesse trabalho e em outros. Essa opção fica clara, por exemplo, em entrevista concedida a Roger Martinez em 1998 e publicada no Brasil no ano de 2005, em que afirma acerca da pesquisa e do livro que dela derivou: em muitos sentidos Learning to labour é uma luta, tanto dentro de mim como no papel, entre um humanismo etnográfico inicial (os jovens criando e sabendo o que estavam fazendo) e uma perspectiva marxista, que também aceitei, segundo a qual eles se encontravam em uma situação clara de exploração, por mais criativos que parecessem, que ficava evidenciada pelo fato de acabarem ou trabalhando em fábricas ou na fila do desemprego (WILLIS, 2005). Na mesma entrevista, Willis sintetiza sua forma particular de produzir conhecimento acerca de temas da cultura, com base na etnografia interpretativa, valendo-se também, das contribuições do marxismo, ao afirmar que 3
O fato de partir do respeito pela cultura abriu uma via mais adequada, e depois, quando levamos a sociologia e o marxismo a sério, o fizemos à luz de um enorme respeito pela autonomia ou relativa autonomia da forma cultural. Minha própria formação consistiu, se se quiser, na força boa do humanismo transferida para as formas culturais vivas e, além disso, adicionando a tudo isso todas as questões importantes em torno da estrutura, da constrição estrutural, da reprodução e, depois, do gênero e da raça (WILLIS, 2005). Ainda sobre a questão da ideologia e da cultura Willis, desenvolve, na Segunda Parte do livro, as noções etnográficas, ou elementos de análise, de penetração e de limitação. Para o autor, a noção de penetração se refere a “impulsos no interior de uma forma cultural dirigidos à compreensão das condições de existência de seus membros e de suas posições no tecido social”, mas não possuem caráter autocentrado, essencialista ou individualista, constituindo, na verdade, de modo “rigorosamente exato”, uma “penetração parcial” (Willis, 1991, p. 151). a noção de limitação diz respeito àqueles “bloqueios, digressões e efeitos ideológicos que confundem e dificultam o desenvolvimento desses impulsos” (Willis, 1991, p. 151), do que decorre o fato de as penetrações serem apenas parciais, como ressaltado acima. Em reflexão de grande atualidade, o pesquisador destaca o potencial transformador das manifestações da cultura contra escolar, mas argumenta, numa primeira aproximação, que elas não se tornam base de “ação política transformadora (...) por lhes faltar uma organização política, por não existir nenhum partido de massa que tente mobilizar o nível cultural” (Willis, 1991, p. 180). Entretanto, vai adiante na análise afirmando ser tal conclusão estrito sensu, simplista, uma vez que “A própria ausência de organização política pode ser vista como um resultado da parcialidade das penetrações não o contrário” (Willis, 1991, p. 180). Tais constatações levam o autor a acrescentar à afirmação acima uma nota ao fim do capítulo, que denomina como opinião, considerando que “antes que qualquer partido de massa possa se articular de forma adequada como representante da classe trabalhadora, ele deve compreender a consciência e a cultura operárias e aprender com elas. Antes desse esforço, a relação dialética entre partido e consciência é letra morta” (Willis, 1991, p. 191). A totalidade da obra de Paul Willis, desde os primeiros trabalhos, foi marcada pela preocupação em respeitar a essência das manifestações coletivas 4
características das diferentes expressões da contracultura. Em sua primeira pesquisa, durante o doutoramento, e enfrentando dificuldades às quais se refere afirmando lecionar “em cinco lugares diferentes para poder sobreviver”, recebeu recursos da UNESCO para analisar os “motards” 3 . A pesquisa visava compreender a razão desses grupos não frequentarem o teatro, as galerias de arte e a ópera”, bem como, encontrar uma forma de fazê-los passar a frequentar esses lugares. Repensei o assunto e disse que o problema não era que eles não tivessem cultura, mas que tinham a sua própria cultura. Então fiz um estudo etnográfico dos hippies e dos motards e disse à Unesco que uns e outros possuíam formas simbólicas, e que talvez fosse o caso de entendê-las e apoiá-las, em vez de tentar atraí-los para a ópera como se fossem recipientes vazios, sem nada com o que começar (WILLIS, 2005 grifos do tradutor). A pesquisa que deu origem ao livro “Aprendendo a ser trabalhador”, não se afasta dessa concepção inicial sobre a importância do respeito às formas de cultura de grupos marginalizados nas sociedades contemporâneas. Por outro lado, deve-se assinalar que sua perspectiva não abriga resquícios de romantização e idealização de tais manifestações, equívoco reducionista frequente nas análises sobre o tema, até a atualidade. No livro, Willis destaca o fato de que nas manifestações de cultura contra escolar dos “rapazes”, estavam presentes os pressupostos da cultura machista dominante na sociedade de faziam parte bem como a decorrente divisão sexista dos papéis sociais. Não era outro o caso das manifestações segregacionistas derivadas do racismo. Tais elementos, também fortemente presentes no tecido social e, portanto, também nas práticas da escola, reforçavam as divisões sexuais e raciais de suas concepções acerca do mundo do trabalho e do papel deles próprios. Ao ressaltar tais aspectos, Paul Willis, evidenciou a tendência daqueles estudantes em reforçarem sua condição de origem operária, marcada por processos de expropriação, a partir da produção de uma cultura contra escolar. Ao fazê-lo, recusavam, também, as possibilidades de acesso ao conhecimento, mesmo limitadas, que a escola lhes propiciava e concorriam, em certa medida, para um 3 Os motards se caracterizam por integrar espaços de convívio e concentrações organizadas exclusivamente para pessoas aficionadas por motocicletas. Normalmente, os motards têm um estilo pessoal e um sentimento de companheirismo bastante apurados e, no mais das vezes. se aglutinam em grupos que denominam como “famílias”. Seu auge, na Europa, data dos anos de 1960. 5
movimento de manutenção da lógica dominante de expropriação, agora legitimada pela recusa, subjacente às reações de resistência sistemática. Acerca dessa questão, na entrevista mencionada, nosso autor afirmou: Entendendo por que aqueles garotos aceitavam aquele caminho (por que o grupo mais baixo aceita sua sorte?) torna-se mais fácil entender por que outros grupos se reproduzem: porque sempre podem encontrar alguém inferior quanto ao “status” ou à ordem econômica. O mais difícil é descobrir, ou entender, ao mesmo tempo que se transmite respeito humano e dignidade, porque aqueles em uma situação inferior aceitam sua sorte. (WILLIS, 2005). “Aprendendo a ser trabalhador”, sem dúvida, merece integrar a cuidadosa seleção de Textos Clássicos que a Revista Trabalho Necessário vem reunindo ao longo de vários anos. Sua leitura atenta e não dogmática apresenta ricas contribuições à educação dos jovens da classe trabalhadora, bem como nos exige refletir, considerando novos elementos, acerca de concepções e práticas pedagógicas no espaço-tempo escolar e fora dele. Os desafios que nos apresenta, bem como importantes contribuições nele contidas, permanecem atuais, quase cinquenta anos após sua publicação na Inglaterra. Também o fato de ser originalmente publicado em país colonizador que exerceu terríveis práticas de expropriação e de espoliação, assim como a Bélgica, a Espanha, a França e Portugal, não anula suas válidas contribuições à reflexão acerca da educação da classe trabalhadora nos países do Sul. A atualidade do trabalho foi avaliada pelo próprio Willis que realçou a importância do consumo, hoje tão exacerbado, na conformação da resistência de frações da classe trabalhadora. Afirma o autor: (...) ainda que seja um livro sobre a antiga cultura operária de produção, muitos dos mecanismos implicados não eram os dos sindicatos, da cooperação, da mutualidade e de tudo aquilo que historicamente tendemos a identificar como típico da classe trabalhadora. Sua identidade situava-se completamente no terreno da cultura dos artigos de consumo. Ainda que agora estejam desempregados e sejam pobres, não se veem a si mesmos como trabalhadores que votam em um partido de trabalhadores, mas como consumidores que votam nos conservadores, ou no partido trabalhista de [Tony] Blair, que está mais à direita do que os conservadores estavam antes. Assim, alguma coisa muito profunda e importante mudou nas relações culturais e nessas formas culturais piramidais (estrutura, localização, experiência e atividade). (WILLIS, 2005). 6
Essas considerações nos aproximam, de forma instigante, de traços da cultura bastante atuais e descritivos de comportamentos correntes no atual estágio do modo de produção capitalista, em particular sob a forma de capitalismo dependente que nos caracteriza. Como por exemplo, o acolhimento de teses sobre o empreendedorismo e a teologia da prosperidade, que nos provoca a formular questionamentos que não se esgotam na tese da inculcação ideológica, estrito senso. Esta é uma das contribuições de Willis, que ressalta a pertinência de ainda nos determos em seu trabalho. Finalizo esses comentários com uma referência ao tema do último capítulo do livro, em que somos instigados a pensar o trabalho educativo, na escola ou no campo da orientação vocacional também objeto de sua análise para além da rotina imposta pela demanda cotidiana que muitas vezes nos esteriliza. Willis nos convida a pensar que o peso dessas conclusões e do livro em geral pode ser visto como uma forma de exploração da unidade entre a teoria e a prática (Willis, p. 232). Ainda para nosso autor, ao nos debruçarmos com acuidade sobre o tema da cultura e o compreenderemos em sua dimensão política, o que a torna, potencialmente, “força material”, estaremos nos movendo em pré-condições para “a mudança estrutural de longo prazo” (Willis, p. 232). Essa perspectiva oferece a possibilidade de compreender, em sua plenitude a afirmação de Gramsci que Willis apresenta como epígrafe do Capítulo 9, na qual o filósofo italiano destaca a importância histórica do trabalho que pretende concorrer para que a massa de pessoas pense de forma coerente, ressaltando ser essa prática mais relevante do uma descoberta “genial” que fique restrita ao domínio de poucos. Ressalta ainda Gramsci, que não se trata de “introduzir do zero uma forma científica na vida de todo indivíduo, mas de renovar e tornar ‘crítica’ uma atividade existente” (Gramsci, apud. Willis, p. 224). Sem dúvida, a leitura de “Aprendendo a ser trabalhador” oferece ricas possibilidades de reflexão, seja para seguir trilhas que sua pesquisa e análise nos proporcionam, seja para questionar aspectos que pareçam carecer de melhor compreensão do pensamento de Marx e de Gramsci. Entretanto, é inegável que o diálogo que emerge de suas instigantes contribuições e, mais que isso, o exercício cotidiano de ações como as que suas proposições sugerem, certamente concorrerão para reconhecermos, na prática, que “A manhã de segunda-feira não precisa levar a 7
uma sucessão sem fim das mesmas segundas-feiras” (Willis, 1991, p. 233. Grifo do autor). Referências WILLIS, P. Aprendendo a ser trabalhador : escola, resistência e reprodução. Porto Alegre: Artes Médicas, 1991. Disponível em: https://pt.scribd.com/document/580335362/WILLIS-Aprendendo-a-Ser-Trabalhador . WILLIS, P. Cultura viva: entrevista com Paul Willis. Entrevistas (em Dois Tempos). Concedida a Roger Martínez. Tempo Social . São Paulo: USP, 17 (2), Nov, 2005. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ts/a/Tr7CD8kGxBmv6WgtknJFBqG/?lang=pt# . 8