V.23, nº 50 - 2025 (janeiro-abril) ISSN: 1808-799 X
O AVESSO DAS EVIDÊNCIAS: PESQUISA E POLÍTICA EDUCACIONAL
EM TEMPOS DE NEGACIONISMO
[Lalo Watanabe Minto]
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Gustavo Romero
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Doutorando em Economia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), São Paulo - Brasil.
Professor e coordenador do departamento de Economia e Negócios do Centro Universitário Faveni
(Unifaveni), São Paulo - Brasil. E-mail:
gustavoromero.academia@gmail.com.
Lattes:
http://lattes.cnpq.br/3852240305646541. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5570-2670.
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Resenha recebida em 25/10/2024. Aprovado pelos editores em 28/02/2025. Publicado em
09/04/2025. DOI:
https://doi.org/10.22409/tn.v23i50.65136.
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A recente aprovação reformada do Novo Ensino Médio não afasta o tom de
lamento e destaca a importância de trabalhos como o livro “O avesso das
evidências: pesquisa e política educacional em tempos de negacionismo”, publicado
em 2023 pela editora Lutas Anticapital. Nele, o professor Lalo Watanabe Minto
brinca com a semântica da evidência: o livro evidencia como a Educação Baseada
em Evidências (EBE), apresentada como uma resposta aos desafios educacionais
contemporâneos, é na verdade uma estratégia para legitimar reformas que atendem
a interesses gerencialistas, distorcendo a concepção de educação. O livro se
estrutura em três partes, cuja lógica acompanha a formação da EBE, sua introjeção
nas políticas educacionais brasileiras para, enfim, refletir sobre sua deletéria
repercussão no processo educacional. A primeira parte acompanha a consolidação
e gradual migração, de uma proposta metodológica para uma prática política e
ideológica. A origem da EBE está intimamente ligada à teoria do capital humano,
formulada por economistas da Universidade de Chicago entre as décadas de 1950 e
1960. Nessa teoria, a educação era considerada componente do capital fixo,
sugerindo que o investimento em educação era comparável a outros tipos de capital.
Nesse momento se implantou a ideia de que a educação seria quantificável e
mensurável, à maneira de um ativo econômico. Ao longo do tempo, essa abordagem
evoluiu para o movimento da EBE, que compartilha a lógica de mensuração, mas
aplica uma visão tecnocrática, focada em resultados e eficiência. A EBE redefine a
pesquisa educacional ao priorizar “o que funciona” e enfatizar variáveis quantitativas,
ignorando aspectos sociais e culturais. Isso gera uma "circularidade apologética",
(Minto, 2023, p.21), em que o resultado justifica o próprio critério tecnocrático.
Legitimam-se as desigualdades como falhas de investimento educacional, sem
abordar suas causas estruturais.
Ao alegar “objetividade” (Minto, 2023, p. 26), a EBE tenta esvaziar o crivo
crítico e qualitativo das ciências humanas e da pedagogia, desvalorizando suas
contribuições em favor de abordagens tecnicamente orientadas. Ao restringir o
debate a métricas de desempenho, a EBE elimina a pluralidade de perspectivas e
bloqueia interpretações que questionam as finalidades sociais da educação. A
questão se resume, como dito, ao que “funciona”. Mas quem decide o que
funciona, curiosamente, é o próprio “método” da EBE. É esse silogismo (Minto,
2023, p. 47) o responsável por desvalorizar métodos qualitativos e análises críticas e
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estruturais, deslocando a autoridade científica das universidades e centros
pedagógicos para os aparelhos privados de hegemonia (APHs). Essa nova
configuração altera as relações de poder no campo educacional, favorecendo a
centralidade de grupos empresariais e enfraquecendo atores tradicionais, como
professores e sindicatos. Não por acaso, a EBE se apresenta como uma “vitória da
ciência sobre as posições ideológicas, subjetivas, achismos e similares” (Minto,
2023, p. 35).
Minto ressalta a utilização de instrumentos avaliativos quantificáveis como o
PISA ou o TALIS por organismos de alcance internacional, como a OCDE e o Banco
Mundial. Com suas avaliações padronizadas, estabelece-se uma narrativa de
qualidade educacional baseada na competitividade e na accountability (Minto, 2023,
p. 43), reforçando uma lógica de gestão educacional que se alinha ao ideário
neoliberal. Essas práticas consolidam uma visão tecnocrática da educação, onde
dados e evidências são utilizados não para compreender as dinâmicas
educacionais, mas para legitimar reformas alinhadas aos interesses do capital.
Na segunda parte, Minto enfoca a absorção da EBE no Brasil. Começando
com o Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE) de 2007, que introduziu a
lógica de mensuração de resultados por meio do IDEB, o processo ganhou força
com o Plano Nacional de Educação (PNE) 2014-2024, que reforçou o uso de
indicadores quantitativos para avaliar a qualidade educacional. Esse percurso
conformou uma “lógica tirânica de auditoria” (Minto, 2023, p. 79). A avaliação
externa, que ocupa um papel central nessa cultura da auditoria, não apenas
mensura o desempenho, mas induz mudanças na cultura escolar e nos processos
pedagógicos.
Tais ações normativas, em conjunto à atuação dos APHs, configuraram um
“simulacro de consenso” (Minto, 2023, p 54). Nesse processo, os dados
tradicionalmente produzidos pelo INEP e pelo IBGE foram desfavorecidos pelos
dados coletados pela “rede de evidências” - normatizada, inclusive, pela Portaria
Mec 950/2021 (Minto, 2023, p. 57) -, cujo compromisso, em última instância, está
assentado em interesses empresariais homogêneos, associados a grandes grupos
econômicos. Esse simulacro reorientou, inclusive, a atuação de agências de fomento
à pesquisa, como a Fapesp e o CNPq, que promoveram em 2022 seminário em que
se discutia a “pesquisa orientada à missão” (Minto, 2023, p. 66). O seminário contou
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com a participação extensiva de agentes privados interessados na educação e
fomentou discussões sobre metrificação de resultados.
Em outras palavras, os antagonismos subjacentes à educação nacional foram
abrigados sob um suposto consenso, mas que nada tem de educacional. A presença
ostensiva dos dados e das evidências se resume na questão: “o que está à venda?”
(Minto, 2023, p. 79). Além de converter o processo educacional legítimo em
atividades pulverizadas (e passíveis de capitalização) como coaching, mentorias e
“soluções” educacionais, a EBE mira também os “ganhos materiais disputando
acesso a fundos públicos e orçamentos para pesquisa, além das vantagens fiscais”
(Minto, 2023, p. 81). O assalto da educação pelas APHs mira sobretudo a
possibilidade de estabelecer ações pró-hegemômicas, seja pela presença em
atividades estratégicas no Estado, seja pela massificação do acesso e divulgação
dos achados “científicos” da EBE. Aqui reluzem expressões como “melhores
práticas”, benchmarking”, “oportunidades de aprendizado”, são todas sintomáticas
da modularização do processo educacional como resultado de aplicação
sistemática, e não de formação continuada.
Os resultados concretos sobre a educação são, enfim, mapeados na parte
conclusiva, quando Minto delineia as principais contradições desse “admirável
mundo novo” da educação (Minto, 2023, p. 94). A primeira está na retórica de
"alargamento" da concepção de educação promovida pelo APHs. Embora defendam
uma (vaga) ideia de que a educação deve se expandir para além dos muros da
escola e incluir novas formas de aprendizagem, como ambientes virtuais e
experiências extracurriculares, o que realmente ocorre é um estreitamento das
práticas pedagógicas (Minto, 2023, p. 108). A multiplicidade de ambientes de
aprendizagem é avaliada por meio de métricas simplificadas e padronizadas, que
acabam por reduzir a diversidade educativa a indicadores de desempenho e
eficiência. O léxico utilizado, como "aprendizagem ao longo da vida" e
"competências socioemocionais", escamoteia as reais implicações dessas
mudanças, que muitas vezes resultam na desvalorização da educação formal e no
enfraquecimento das instituições públicas.
A outra contradição está na relativização temporal. Ao focar em resultados
imediatos e na produção constante de dados, a EBE ignora as causas profundas
dos problemas educacionais, tratando-os como fenômenos isolados e
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descontextualizados. O resultado é, evidentemente, um enfraquecimento das
ciências humanas e sociais no campo da educação, substituídas por uma
abordagem tecnicista e gerencialista. Ao mesmo tempo, esse "mundo paralelo de
dados e evidências" (Minto, 2023, p. 127) apenas tangencia a realidade educacional,
sem proporcionar uma compreensão profunda ou soluções efetivas.
A derradeira contradição está na associação entre EBE e negacionismo.
Apesar de ativada em discurso socioemocional que valoriza a “positividade” das
atitudes, a EBE compartilha com o negacionismo a estratégia de desqualificar o
conhecimento estabelecido para promover uma agenda particular. Assim como os
negacionistas atacam as ciências estabelecidas, a EBE acusa as pesquisas
educacionais tradicionais de serem "ideológicas" e de carecerem de rigor científico.
Ao fazer isso, a EBE apresenta-se como a única alternativa "científica", apesar de
utilizar seletivamente as evidências para justificar políticas pré-definidas. Durante a
pandemia, muitos defensores da EBE utilizaram a suspensão das atividades
escolares regulares para reforçar a narrativa de que a educação pública era ineficaz,
o que “não disfarça, assim, seu viés autorreferenciado: reconhecemos a tragédia,
mas ela confirma que estávamos certos” (Minto, 2023, p. 120)
A articulação entre essas contradições coloca um quadro desafiador à prática
docente. Se o papel dos professores se resume ao tratamento de dados, sua função
se limita assim à mera execução de “planos” educacionais. Mais do que a perda da
autonomia docente, essa lógica esvazia a sala de aula como espaço de incremento
da capacidade crítica. O papel formativo perde espaço para o espaço “evidenciado”.
Essa desvalorização reflete uma ofensiva contra as ciências humanas, substituindo
a formação crítica por uma educação instrumental fundada no "solucionismo" (Minto,
2023, p. 115), que trata problemas complexos como questões técnicas resolvíveis
por algoritmos.
Em suma, a EBE é mais do que uma abordagem metodológica; ela é uma
expressão do aprofundamento do neoliberalismo no campo educacional. Em última
instância, a EBE não apenas promove reformas educacionais tecnocráticas, mas
também contribui para a desvalorização do potencial emancipatório da educação. Ao
utilizar a linguagem da “ciência” para justificar reformas, a EBE constrói uma
narrativa de neutralidade que oculta sua natureza ideológica. A transformação da
educação em um campo de disputa entre o certo (baseado em evidências) e o
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errado (ideológico e subjetivo) desvirtua o espaço deliberativo do processo
educacional. Em lugar de seu potencial emancipatório, a educação se torna
instrumento de controle social e conformação, reafirmando as estruturas de poder
existentes e promovendo um modelo que perpetua desigualdades, em vez de
transformá-las.
Referências
MINTO, L. W. O avesso das evidências: pesquisa e política educacional em tempo
de negacionismo. Marília: Lutas Anticapital, 2023.
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