V.22, 49 - 2024 (setembro-dezembro) ISSN: 1808-799 X SER UM JOVEM TRABALHADOR NO CAPITALISMO É SOBREVIVER TODOS OS DIAS 1 Marco Aurélio Santana 2 Maria Cristina Rodrigues 3 Isabelle Lopes 4 (Dia do Trabalhador - 1 de maio de 2024, acervo de Saulo Benicio) 4 Graduanda do curso de Serviço Social da Universidade Federal Fluminense (UFF) - Brasil. e bolsista de Iniciação Científica da Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio de Janeiro (Faperj) - Brasil. E-mail: isabelle_lopes@id.uff.br . Lattes: htpp://lattes.cnpq/350368880377811 . ORCID: https://orcid.org/0009-0002-1320-7011 . 3 Doutora em Políticas Públicas e Formação Humana pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) - Brasil. Professora da Escola de Serviço Social da Universidade Federal Fluminense (UFF) - Brasil. E-mail: mcristina@id.uff.br . Lattes: http://lattes.cnpq.br/0279905252377710 . ORCID: http://orcid.org/0000-0003-0545-2260 . 2 Doutor em Sociologia e Antropologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) - Brasil. Professor do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia do IFCS-UFRJ - Brasil. E-mail: msantana@ifcs.ufrj.br . Lattes: http://lattes.cnpq.br/1729257049926692 . ORCID: http://orcid.org/0000-0002-3181-6964 . 1 Entrevista recebida em 24/11/2024. Aprovada pelos editores em 27/11/2024. Publicada em 05/12/2024. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v22i4 9.65488 . O título foi retirado de uma fala do entrevistado. 1
Entrevista com o jovem trabalhador Saulo Benicio (Aliança dos Entregadores de Aplicativo) Saulo Benicio é um jovem trabalhador, morador de Nilópolis, na Baixada Fluminense, entregador e produtor cultural. No dia 14 de novembro último, conversamos com ele sobre o que pensa, como atua, vive e trabalha. A seguir, reproduzimos suas ideias, partilhadas generosamente conosco. A trajetória familiar A minha trajetória... o meu pai veio da Bahia, tentando uma oportunidade melhor, na verdade, ele foi trazido criança, a família dele veio de lá, para tentar algo melhor aqui no Sudeste, como é a realidade de várias pessoas. Começou a trabalhar bem cedo, numa época que era permitido ainda criança trabalhar - começou a trabalhar com 12 anos. Foi constituindo família, se estabelecendo, sobretudo na Baixada Fluminense, até que ele passou no primeiro concurso público dele, e, desde então, ele sempre foi funcionário público e foi criando a gente. A minha mãe tem origem na Zona Oeste, Pedra de Guaratiba. Minha avó era de lá, minha mãe foi criada também, e eles se conheceram, eles haviam tido outra família e filhos, eles se conheceram, se juntaram, eu fui o primeiro filho dessa união. Tenho uma outra irmã e tenho outros irmãos, fruto de outros relacionamentos deles dois, então, fui criado vendo a casinha que eles conseguiram, com suor, sendo construída desde o primeiro andar até o terraço. Eu lembro muito bem disso: quando era criança, casa de pobre era dividida por móvel, era bem essa a nossa realidade. Eu nunca cheguei a passar fome ou outras coisas; venho de uma origem bem pobre mesmo, sem muito luxo, porém, meu pai e minha mãe sempre se esforçaram muito para que eu tivesse pelo menos acesso à educação, e o investimento deles era mais voltado para isso, naquela época, escolher entre o melhor produto do mercado ou pagar uma mensalidade para mim em uma escolinha de bairro. Eu venho dessa criação, nascido e criado na igreja Batista. Minha mãe sempre atuou nas áreas mais sociais da igreja, eu sempre lembro disso - doação de sopa, doação de roupa... muitas vezes eu estava com ela, mas criança, a gente não entende muito bem porque a pessoa está pegando uma doação de sopa na rua, mas eu acho que em relação à justiça social, eu absorvi isso muito da minha mãe. Mesmo que 2
indiretamente, sem perceber, eu acho que as coisas se direcionaram para esse caminho de lutar contra a desigualdade, contra a fome. Minha mãe sempre foi dona de casa. Acho que é muito comum também, uma realidade de periferia, de favela, mas não de periferia. No geral, eu acho que dentro da sociedade [mais] patriarcal, o homem sempre acaba tendo que assumir essa função de provedor, e a mulher trabalha de graça dentro de casa, digamos assim. Isso nunca foi um problema dentro da minha família, porque era o que dava na época: um dos dois tinha que sair para trabalhar, e um dos dois tinha que estar em casa com as crianças. Minha mãe, quando era criança, até trabalhava, mas chegou um momento que ela se tornou dona de casa, e ficou nessa tarefa mesmo, de estar no dia a dia com os filhos, e meu pai chegava da rua muito cansado também. Tipo a rotina seis por um. Chegar, dormir, e, no outro dia, trabalhar de novo. E, até por causa disso, eu acredito que tive muito contato também com a rotina da minha mãe, porque independente disso, ela sempre atuou bastante nessa questão das políticas sociais que se perpassam pela igreja. E minha mãe está para se aposentar, porque ao longo desses anos que meu pai trabalhou - meu pai é aposentado, acho que vai fazer uns 10 anos - ele sempre procurou pagar a previdência da minha mãe, então, falta pouco tempo para minha mãe se aposentar. Mas em relação a essa questão profissional, minha mãe sempre esteve mais presente nessa questão da casa, da igreja, acho que o comum na periferia e na favela. De Chapeiro, a fuzileiro naval, a entregador por aplicativo Então, o meu pai acho que por essa origem muito humilde do meu pai e da minha mãe, eles sempre procuraram dar uma criação, não para mim, como para minha irmã, mas eu acho que eu peguei... Eu sou o mais velho. Eu não tinha as melhores roupas, não usava roupas de marca, não consumia os melhores produtos, mas sempre fui incentivado a estudar bastante. Até quando ele estava ali numa situação um pouco melhor, que tem muito a ver também com o governo do PT ali em 2002, aquela política de acesso ao consumo, mas também do pobre poder ter acesso a coisas que a classe média podia ter. Eu lembro que eu sempre ia pedir alguma coisa para o meu pai, relacionada a dinheiro, e ele sempre era mais negativo do que me dava. E aí, eu sempre tive um espírito mais independente, nesse sentido, 3
e eu sempre ficava perturbando meu pai, minha mãe: “Pô, arruma alguma coisa para eu fazer e tal”. Eu sempre tive algumas coisas que não necessariamente é a CLT, digamos assim; acho que eu chamaria de informalidade. Comecei sendo chapeiro em um traillerzinho que tinha na frente da minha casa, trabalhei com venda de cartão, entregando gás, água, minha vida no mundo do trabalho sempre foi por fora da CLT. Tem uma coisa que eu sempre procuro reforçar, que é a nossa juventude, na periferia, favela, mas eu vou fazer o recorte, na periferia não tem tantas opções. Eu acho que no mundo do trabalho, para além de tentar, talvez, uma vaga na universidade pública, se passa muito pelo militarismo, pelo trabalho precarizado, pelo trabalho informal. Nesse sentido, comigo não foi diferente. Apesar do meu pai e da minha mãe terem conseguido mudar de vida um pouco, terem conseguido melhorar de vida, meu pai sempre me incentivava muito a fazer concurso público, é o que meu pai mais amava. Eu acho que, na verdade, todo pai, se for pensar em estabilidade, ele vai querer ver o filho em um concurso público, ou então, vai querer ver o filho em uma universidade pública. Foi quando eu fiz prova para fuzileiro naval, em 2011. Em 2012, eu faço o curso. Em 2014, eu estava de saco cheio com disciplina e hierarquia. Assim, eu devo muita coisa, eu aprendi muita coisa no militarismo, não foi de tudo ruim, mas, infelizmente, esse sistema de divisão de praças e oficiais traz muita desigualdade de relações ali. Então, assim, um dia eu cheguei no meu pai, estava até meio que em depressão mesmo. Cheguei no meu pai e falei: “Pai, não estou aguentando mais”. Ele falou: “Até te apoio a sair, mas tu precisa garantir outra coisa”. A minha trajetória é muito controversa, sabe? eu fui e fiz prova para PM, Polícia Militar, em 2014, e passei. Mas era aquela época que o Brasil estava numa crise terrível, sobretudo o Rio de Janeiro, um dos estados que mais devia a dívida pública do Estado, mas estava sofrendo com os cortes da União e demorou muito para esse processo, de exames, de ter que ir no CEFAP, etc. E, nesse período, eu estava meio que acostumado a ter um salário fixo todo dia primeiro de cada mês, que é assim que funciona no militarismo, não atrasa. Foi daí que eu comecei a trabalhar com entregas, porque eu tinha uma moto. Comecei a trabalhar com entregas, entrega de quentinha, e volta e meia aparecia algum free la também. Sempre alguém estava mencionando. Na verdade, eu inverti - eu comecei primeiro no mototáxi, e do mototáxi eu comecei a fazer entrega. Logo, eu entrei no mundo 4
dos aplicativos, foi quando eu acho que começou a ter um boom maior. Até no início, todos os entregadores falam que era bem melhor o valor por cada corrida. Mas é isso, quanto mais pessoas entraram, mais foram se precarizando. E desde então a minha atuação foi nesse horizonte, fazer as entregas por aplicativo, me inserir mais nos movimentos em relação a lutar por direitos. Então, assim, essa foi a minha trajetória. Eu não vivi o mundo da CLT, digamos assim. Eu sempre estive no mercado informal, sempre estive ali trabalhando, como dizem por aí, para mim mesmo. O sonho (e os percalços) do concurso público Então, assim, eu acho que se fizesse essa pergunta hoje para os brasileiros, eu acho que a grande maioria iria querer [entrar no serviço público]. Tudo bem que a questão do empreendedorismo, à la Marçal, tomou conta completamente. Não digo completamente, mas é algo que pega muito as pessoas que vêm de uma origem mais humilde. Quem não quer melhorar de vida? Eu acho muito difícil a pessoa responder que não, mas eu acho que não passa nem por você, um dia, chegar a ser rico. Eu acho que hoje temos tanto o mínimo, que as pessoas estão tão acostumadas com o mínimo que pensar uma melhoria mínima pega muito na periferia, na favela. Então, assim, eu ainda penso. Eu quero, inclusive, fazer concurso público porque eu tenho duas filhas. Então, eu sempre fico olhando as páginas, tipo, Folha Dirigida, para ver algum concurso para fazer, porém, é muito difícil ter tempo para estudar. Eu acho que a maior dificuldade, hoje, de passar no concurso é porque as pessoas, meio que se profissionalizaram em fazer concursos, tanto é que tem vários cursinhos. Então, é uma concorrência que também, muitas das vezes, quem tem uma rotina mais desgastante, tipo, trabalha seis vezes na semana, em relação às mulheres, é mãe, tem que estar cuidando de casa, enquanto o marido está na rua trabalhando, o cara que sai para fazer entrega. Então, é uma realidade muito distante para muitas pessoas, fazendo recortes das pessoas próximas a mim. Tem pessoas que não terminaram o ensino médio, não terminaram o ensino fundamental, então também tem isso, mas é um grande sonho. Ter estabilidade, acho que para qualquer um. Então, está dentro do meu horizonte, sim, passar em algum concurso público. Eu acho que é tentar mesmo, ver a melhor forma de estar estudando para isso, porque hoje em dia tem concursos que tem 5
gente que tira 9.1, que é o primeiro colocado. Então, é muito difícil passar para um concurso. Mas assim, ao longo da minha vida, eu fiz vários. Passei em alguns, outros eu passei, mas não estava dentro do número de vagas. Eu estou sempre me aventurando, mas eu confesso que de uns anos para está muito difícil estudar para um concurso público. Sem contar que é muito desgastante emocionalmente também, mentalmente. Mas assim, é um grande sonho. E lutar para que haja mais concursos, tenha mais vagas também. Principalmente para a galera que vem de uma escola pública, que não teve tanto acesso a uma educação mais qualificada . Patrão de si mesmo? Questões em torno da “autonomia” do trabalho É muito comum quem tem moto trabalhar com a sua moto, se torna algo mais confortável, porque você acaba conseguindo um pouco fazer a sua própria rotina. Muito entre aspas, você tem um pouco mais de autonomia ali, de regramento do seu horário de trabalho, e acaba que é o que para você acumular um pouco mais de grana. Inclusive, isso é o que tem muito de discurso entre os entregadores: por que eles vão se prender à CLT, que hoje é um salário-mínimo, que a escala majoritariamente é seis por um, se você pode estar em cima de uma moto 12 horas por dia? Infelizmente, acaba se tornando uma escolha para muitos, mas também envolve o discurso neoliberal, que vai prosperar mais sendo o patrão de si. Hoje em dia, pelo que eu percebi nas últimas movimentações, isso mudou bastante, mas mudou numa bolha que eu estava, que tinham pessoas de todos os tipos, seja de direita, de esquerda, anarquista, odiadores do PT, ou odiadores da esquerda... Eu acho que mudou, que os entregadores se situaram um pouco de que ninguém é patrão de si e de que a gente precisa correr atrás de direitos. Mas, no mercado informal minha trajetória foi essa, por isso que eu nunca trabalhei de CLT, eu sempre trabalhei na informalidade mesmo, que foi o que me contemplou, digamos assim. Conhecer e enfrentar a realidade da Uber Na época, quando eu passei para a PM em 2014, que foi ao mesmo tempo que eu saí do quartel, eu percebi que esse processo de entrar para a Polícia Militar ia demorar muito ainda, sabe? E eu precisava, por mais que eu estivesse 6
morando na casa dos meus pais, não é a mesma coisa você sair de uma realidade que você, todo dia primeiro tem um salário fixo e ficar pedindo dinheiro para o seu pai. Aqui em Nilópolis, até diminuiu bastante, mas os pontos de mototáxi sempre tinha muita gente trabalhando, eu tinha vários amigos que eram mototaxistas, tu mototáxi toda hora passando. Aí, automaticamente tu pensa: “essa galera aí, que é mototáxi, está fazendo dinheiro. Não é possível!” Até que vem a realidade cruel. Entro no mototáxi, aquela parada toda, realidade difícil, moto quebrando, gasolina cara, até que... eu acho que eu fiquei uns dois anos, quase, eu falei: “aqui não está dando”. Entrei nesse mundo das entregas, geralmente entrega diária, mas o valor que tu recebe é por cada entrega que tu faz. Eu comecei a ir pegando a visão da Uber, entro, faço a minha conta ali. Na Uber, começo a entender melhor e, assim, é uma rotina difícil, porque trabalho é direito zero, nenhuma relação trabalhista. Inclusive, muitas coisas mínimas, mínimo do mínimo, a gente conquistou a partir de 2020 com o breque dos aplicativos, mas, coisas mínimas como máscara, álcool gel, durante a pandemia, foi por causa disso, então, algumas coisas foram conquistadas, que, ainda assim, é algo mínimo. A dor... Chegou um momento, eu sentia muito, eu acho que, assim, acaba com o psicológico, porque são várias coisas que você tem que passar durante o seu dia de trabalho, sabe? Eu, por ser cria de periferia, Nilópolis é um local colado com a Chatuba de Mesquita, que é uma favela. E acaba tendo uma integração de quem mora em Nilópolis com quem mora na Chatuba. Eu nunca tive problema de entrar em favela, por exemplo, mas, você ter essa rotina direto, ver a arma - às vezes, tu entra até no [meio do] confronto. Teve uma época que eu trabalhei muito, que eu trabalhava muito de madrugada, até na periferia, porque a minha moto não estava em dia. Tinha um esquema de bug do aplicativo, que a gente conseguia botar primeiro como bicicleta, depois passava para moto; que isso daí, os pedidos vinham para mim de madrugada. Me ajudou muito em relação à conta, sabe, mas também é muito desgastante. Não tem nenhum entregador que eu converse, que esteja fazendo entrega, que não fale isso: “a coluna vai com Deus, saúde mental vai também, você não tem tempo para praticar um exercício, para se alimentar direito, não tem ponto de apoio para você parar, carregar o celular”. 7
... e a delícia (crítica) de ser quem se é Então, teve coisas boas, e eu acho que as coisas boas têm mais relação com as pessoas que eu conheci, com o universo que eu conheci, de entender a realidade. Eu acho que é uma coisa que, às vezes, falta um pouco... Eu vi muito discurso como se o entregador fosse uma pessoa idiota, mas infelizmente, o entregador, ele está ali dentro de uma rotina alienante, e eu acho que serviu muito para mim, como ser humano, conhecer muitas realidades, muitas visões. Também de respeitar e eu estou longe de ser contra qualquer polarização, sabe? Eu acho que se não existe polarização, existe ditadura do centro, então, foi importante para mim a formação como pessoa, como militante, como político. Também serve para se enxergar como parte da classe trabalhadora, dos trabalhadores. É meio que... essa experiência teve mais coisas ruins por causa da relação com o aplicativo, mas teve muitas coisas boas, de lideranças que eu conheci, de realidade que eu conheci, de perspectiva de luta. Eu acho que ficaria essa balança. Acaba que, no final de tudo, essa balança sempre tende a dar mais benefícios para os donos das empresas; para os empregados, porém, ainda tem muito caldo para estar lutando por melhores condições, independente do espectro político dos empregadores. A militância partidária: “não ser um comentarista da luta de classes” (Em campanha/2024, acervo de Saulo Benicio) 8
Então, é até engraçado, eu começo a notar mais o PSOL através do Freixo e do Jean Wyllys. Eu acompanhava de longe, que eu era bem subversivo, assim, digamos, dentro do militarismo, com 16 anos, porque eu saio da igreja virando ateu. Então, todo adolescente é chato naturalmente, imagina abandonando completamente a religião! Mas, no próprio militarismo, eu não estava dentro daquele quadrado ali da mente mais fechada. Me lembro de ter tido alguns conflitos relacionados à sexualidade, à religião, eu acho que isso acaba me aproximando muito mais de um cara antissistêmico, muito mais do campo progressista de esquerda, do que do cara antissistêmico ali de direita. Então, eu começo a acompanhar mais o partido do PSOL ele existia em Nilópolis porque eu era mototaxista e lembro que estava no mototáxi na campanha de 2016, em que não participei tanto, mas participei minimamente ali. Sempre tive muito atrás com partido, com política. No trabalho, a galera foi me convencendo porque acabou sendo algo que, pra mim, fazia sentido, pela educação popular, atuar ali ao lado dos trabalhadores; e também a própria atuação específica na minha cidade, pela contravenção e o jogo do bicho, aqui, para esquerda, tem pouco espaço. Então, eu comecei a me aproximar mais em 2016: com muito atrás, comecei a acompanhar alguns espaços, debates, até que, em algum momento, eu me convenci de que eu não podia ser um comentarista da luta de classes. Se eu de fato queria mudanças concretas, efetivas, eu acho que eu tinha que dar meu corpo à luta, o que não é uma tarefa fácil. Em 2018, estava tendo uma reorganização dos movimentos, das ferramentas do partido, não do partido aqui, mas quem construiu o partido, eu tive o convite em 2020 para começar uma preparação de dois anos para me tornar figura pública, candidato. Eu comecei isso tudo muito cru, era muito ruinzinho, e fui melhorando mesmo na prática, participando de espaços, de mesas de debates, como até hoje. Batendo quase 10 anos já, foi assim que foi minha participação, lembrando aqui que a minha pauta principal, digamos assim, acabou sendo o trabalho por aplicativo. E, assim, hoje eu diria que as pautas principais que eu estou construindo é a questão do movimento hip hop, que dialoga com a cultura popular, a educação popular, e a questão do mundo do trabalho. Então, a minha militância, naturalmente, foi ao encontro, por exemplo, do breque dos aplicativos, das lideranças que ali nasceram. 9
Breque dos Apps e a formação de lideranças (Breque dos App/2020, acervo de Saulo Benício) Muitas lideranças, de fato, foram se formando mesmo de 2020 para cá, porque ainda não era um debate que estava quente antes de 2020. Então, assim, eu fui conhecendo as pessoas, Galo, Ralf, e tinha toda essa parada do breque dos aplicativos e tal, que ainda levou um tempinho depois do breque para isso começar a se tornar organizações mais orgânicas, digamos assim: crescimento de associação, de sindicato, de movimentos, que também é o meu caso. Então, eu faço parte da Aliança Nacional dos Entregadores de Aplicativo , que é um movimento que surgiu em 2022, a partir daquele período de 2020 e que conta com lideranças do Brasil todo. Tem representantes do sindicato, representantes de associação, representantes de movimento, e eu acho que essa articulação institucional, digamos assim, ela se ampliou a partir disso. Agora, as outras articulações se passavam muito pela política partidária, porque os parlamentares estão ali para servir o povo, mas também eles estão ali para se reeleger, então, eles apostam nos perfis que têm a ver com o tipo de trabalho que eles querem priorizar. 10
(Em Brasília, acervo de Saulo Benicio, julho de 2024) De dois anos para cá, eu consegui crescer muito no sentido de estar conhecendo pessoas, de estar mapeando pessoas a partir desse movimento que se desdobrou do breque dos aplicativos e é a partir disso, que eu também estava na mesa de negociação [com o governo Lula, para regulamentação do trabalho de entrega por aplicativo] que não avançou em nada, mas a articulação se deu dessa forma. E também para fora de quem não constrói partido, quem não constrói movimento, se muito através das redes sociais, de fazer atividades com esse debate, de estar pautando isso mesmo. Então, acho que tem toda a articulação para dentro e a articulação para fora, como uma figura pública. Ser figura pública me ajudou muito a alcançar outras pessoas que não necessariamente estão dentro da política, dentro do partido, do movimento, do sindicato, das associações, da academia e outras. Ser um jovem trabalhador Cara, ser um jovem trabalhador na perspectiva do sistema capitalista é você literalmente ser um batalhador, porque as coisas acontecem muito mais para te desanimar desse processo que você está vivendo dentro desse regime, seja agora nesse debate da escala 6x1, seja no trabalho por aplicativo, que é uma escala 7x0, 11
sem uma folga certa. Por mais que as empresas insistam em dizer que muita gente está trabalhando por aplicativo como renda extra, isso não exclui o fato que, independente disso, essas pessoas estão acumulando dois ou três trabalhos para poder chegar no final do mês, poder pagar as contas e encher sua geladeira. Então, acho que tem que ser muito batalhador para sustentar essa rotina. E, muitas das vezes, ser batalhador envolve não ter saídas, não ter perspectivas de melhora - muitas coisas que acontecem são humilhantes. Nos últimos períodos, a gente estava vendo todo dia um caso de um trabalhador sendo agredido, sendo humilhado, um caso de racismo. Então, todas as opressões que têm dentro do sistema capitalista, que a gente sabe que tem, elas parecem e se multiplicam quando você está em cima de uma moto com uma bag nas costas, porque esse conflito é acentuado por uma falta de controle sobre os usuários dos aplicativos. Sendo específico: os conflitos aumentam mais porque o entregador não tem algo que blinde ele de que ele não pode subir no apartamento. Por outro lado, o cara que está no apartamento, por N motivos, ele vai ficar puto que o entregador não subiu. Então, isso acaba virando um conflito que é por falta de uma regulamentação, algo concreto que possa blindar os entregadores, às vezes os usuários também. E assim, ser um jovem trabalhador no capitalismo é sobreviver todos os dias mesmo. É uma questão de sobrevivência, você passar por um regime exaustivo de trabalho, você ter poucos direitos, você ter pouca folga, pouco tempo para a família, para se cuidar, não ter acesso a cuidar da sua saúde mental. Então, é muito difícil. A minha perspectiva, e pelo que eu luto, é que os trabalhadores tenham, de fato, direitos plenos. Agora a gente está, graças a Deus, nesse debate; graças a Erika Hilton, a gente está nesse debate da escala seis por um, e para mim isso é animador, por mais que eu ainda tenha muito ceticismo. Não devido a gente, que está lutando por essa melhoria, mas devido aos empresários, ao mercado, à mídia hegemônica, à própria direita. Mas o que eu acredito, pelo que eu estou na luta, é para ver melhorias. Eu sempre falo muito isso, que se fosse para melhorar individualmente eu nem estaria, provavelmente, nem estaria, porque tudo que, por exemplo, a direita ou o mercado quer, a gente solta que pode ser liderança para botar essa pessoa ali, para divulgar o mercado financeiro, divulgar a financeirização, se promover através das pautas de identidade. Então, eu penso muito que a vitória coletiva, que eu prefiro, está acima da vitória individual. Sim, eu quero ter uma boa vida, dar boa vida para as minhas filhas, 12
mas eu não quero isso para mim ou para as minhas filhas, eu tenho a ambição de que isso torne algo universal. Então, a perspectiva, hoje, do jovem que está em cima de uma moto se passa única e exclusivamente, por chegar em casa e ter algo para alimentar a sua família e pagar conta. Mas eu acho que a gente pode muito mais, e os movimentos dos últimos anos, que se reacenderam com o breque dos aplicativos, mostram sim que tem espaço para a esquerda institucional voltar a priorizar, pautar o que, de fato, a população está falando que quer como prioridade. Pelo que eu percebi nas últimas eleições, o que a população quer, como prioridade, é ter emprego com direitos, ter acesso à saúde, a uma educação - pode parecer clichê, mas é o que a galera está pedindo. Então, eu acho que, a não ser que sejam os casos das emergências climáticas, que não tem direito se não tiver planeta, a não ser que sejam coisas urgentes do agora, que põem em risco a sobrevivência humana, a esquerda tem que ter humildade de inverter as prioridades. E inverter as prioridades, o que o Mano Brown falou atrás - eu sempre gosto de citar o Mano Brown porque eu construo um movimento hip-hop, eu tenho uma roda cultural e eu vejo de perto a solidariedade que existe entre essas pessoas. Por óbvio, não é perfeito, mas é algo muito voltado e pensando na comunidade. (Roda Cultural, acervo de Saulo Benício) 13
Então, inverter as prioridades, ouvir a população primeiramente; não ouvir, como ter um contato mais direto com a população. Então, eu acho que, finalizando a questão da perspectiva, o que o trabalhador que hoje não está inserido nos grandes debates da política nacional, estadual, da academia, quer é se sentir ouvido e também perceber que as suas prioridades estão sendo, de fato, as nossas prioridades (de quem estamos num campo mais progressista). E dialogar mesmo, não tem pra onde correr. Eu acho que polarização é importante, mas a depender de como ela é feita, ela não funciona para a população média que não está inserida nos grandes debates, e nos debates também que envolvem clima, sexualidade, gênero, linguagem. E eu não estou falando isso aqui como se não fosse algo importante; é porque, de fato, a população média está muito mais preocupada com a questão do trabalho do que com a eleição do Trump agora. Então, eu acho que se a gente... não estou dizendo para abandonar pautas, mas se a gente não inverter as prioridades, a gente vai cada vez mais perder gente dentro dos trabalhadores, que não estão se sentindo contemplados pelos debates, que muitas vezes até fazem parte de uma bolha específica, mas que acaba que é o que a direita usa para bater na gente. Então, minha perspectiva é a gente voltar a pautar o mundo do trabalho como uma prioridade, de forma mais humilde, digamos assim. E ouvindo mais os trabalhadores, não necessariamente o que esteja dentro das nossas utopias e convicções. A gente tem que pensar alguma forma de ter um consenso ali, por exemplo, escala seis por um: a gente está apoiando agora a escala quatro por três, que é algo muito avançado em vários países capitalistas; se a gente tiver que recuar para uma escala cinco por dois, é uma pequena vitória, sabe? Eu acho que a gente tem que apostar mais nas pequenas vitórias e aproveitar dessas pequenas vitórias para estar ganhando mais gente, não necessariamente para o partido, os sindicatos, os movimentos, mas, independente disso, ganhar as pessoas. Mesmo no discurso, por exemplo: “Eu odeio a esquerda, mas isso daqui faz muito sentido.” Para a gente chegar num cenário em que as pessoas não sejam contra as coisas porque existe PT no meio, PSOL no meio, a esquerda. Então, assim, a perspectiva é de sempre estar na luta enquanto puder. A juventude também está lutando muito, está batalhando e eu acho que se for mais envolvida nesses debates, a partir de uma reorientação de prioridades, a gente tem muita coisa para conquistar. E, por fim, tem que acabar a escala seis por um! E, aproveitando que vocês estão na academia, tem que acabar o vestibular! Todo mundo tem que ter acesso à 14
universidade pública, sem fazer vestibular. Seria ótimo mesmo. Vamos ver um dia! Um passo de cada vez. Eu acho que amanhã é dia de estar na Cinelândia [no ato contra a escala 6x1], aproveitar, porque furou a bolha, e eu acho que é uma oportunidade muito boa. 15