V.23, nº 50 - 2025 (janeiro-abril) ISSN: 1808-799 X
PROCESSOS DE FORMAÇÃO DO SER SOCIAL QUILOMBOLA: EXPERIÊNCIAS DA
CLASSE TRABALHADORA ALARGADA NA AMAZÔNIA1
Ellen Rodrigues Da Silva Serrão2
Resumo
Trata-se de alguns resultados de pesquisa realizada entre 2020-2024, ancorados no método dialético
materialista histórico, decorrente do curso de doutoramento do Programa de Pós-graduação em
Educação na Amazônia/UFPA. Caracterizados na experiência das lutas das trabalhadoras/es da Terra
ao construir modos de vida centrados no trabalho ontológico, na contradição com o capitalismo e ao
compor a classe trabalhadora em seu fazer-se alargada, construiu evidências através do
Quilombolar-se em Mocajuba/PA, Amazônia região Tocantina, de outras lutas rumo à construção de
outro mundo necessário.
Palavras-chave: Processos de formação; Educação Quilombola; Classe trabalhadora alargada
PROCESOS DE FORMACIÓN DEL SER SOCIAL QUILOMBOLA: EXPERIENCIAS DE LA CLASE
TRABAJADORA AMPLIADA EN LA AMAZONÍA
Resumen
Estos son algunos resultados de investigaciones realizadas entre 2020-2024, ancladas en el método
dialéctico materialista histórico, resultantes del curso de doctorado del Programa de Posgrado en
Educación en la Amazonía/UFPA. Caracterizado por la experiencia de las luchas de las trabajadoras
en la Tierra al construir modos de vida centrados en el trabajo ontológico, en contradicción con el
capitalismo y al componer la clase obrera en su yo expandido, construyó evidencia a través del
Quilombolar-se en Mocajuba/PA, región amazónica de Tocantina, de otras luchas por la construcción
de otro mundo necesario.
Palabras-clave: Procesos de formación; Educación Quilombola; Amplia clase trabajadora
PROCESSES OF FORMATION OF THE QUILOMBOLA SOCIAL BEING: EXPERIENCES OF THE
EXTENDED WORKING CLASS IN THE AMAZONIA
Abstract
These are some results of research carried out between 2020-2024, anchored in the historical
materialist dialectical method, resulting from the doctoral course of the Postgraduate Program in
Education in the Amazon/UFPA. Characterized by the experience of the struggles of female workers
on Earth when building ways of life centered on ontological work, in contradiction with capitalism and
when composing the working class in its expanded self, it built evidence through Quilombolar-se in
Mocajuba/PA, Amazon region of Tocantina, of other struggles towards the construction of another
necessary world.
Key words: Quilombola training processes; Quilombola Education; Broad working class;
2 Ellen Silva Yansà. Doutora em Educação pela Universidade Federal do Pará (UFPA) - Brasil.
Professora atuando na Direção do Departamento da Educação do Campo da Secretaria Municipal de
Educação, Esporte e Cultura de Mocajuba/PA. Membra do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre
Trabalho e Educação GEPTE e Grupo de Estudos Ampliados – MINKA. E-mail: ellensilva@ufpa.br.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/3349356526857497. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2030-463X.
1Artigo recebido em 11/12/2024. Primeira Avaliação em 04/02/2025. Segunda Avaliação em
04/02/2025. Aprovado em 22/02/2025. Publicado em 09/04/2025.
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v23i50.65710.
1
Introdução
“A minha melhor escola é ser quilombola. A educação
e o movimento social nos transformam...” (Mulher
quilombola, liderança do Segundo Distrito de
Mocajuba/PA, em 29 de maio de 2021)
A escola de ser, de tornar-se. A educação, o movimento social acontece no
chão da luta de cada dia, mobiliza o vento da gira que gira os mundos e constrói
relações entre natureza-humanos-natureza; nos ensinam mulheres e homens
quilombolas ao produzirem a vida na Amazônia. Relações entre seres da Mãe Terra,
numa unidade do diverso configuram processos de formação tão econômicos quanto
culturais. São “outras escolas” que estão nos rios, dançar das águas; na cheia e
vazante; no tempo de chuva, de lua, das nuvens; nas flores e roças; na floresta,
plantas, folhas, raízes, sementes; também está nos animais, não-humanos,
encantados em meio a atalhos, esconderijos, varadas, rasgos, galhos, furos, cipós,
igapós, igarapés; na forma de andar, falar, cantar; nos cheiros, sabores, saberes que
circulam. Nos indicou mulheres quilombolas, como rosas dos ventos, o caminho do
Quilombolar-se.
Eis alguns elementos do fazer-se ser social com identidades de classe,
gênero, quilombola na Amazônia. Experiências sentidas, percebidas, vividas e
modificadas conforme Thompson (1981). Achados sobre Educação quilombola,
evidenciados por meio de entrevistas e rodas de conversas com 13 quilombolas
(quatro lideranças quilombolas, quatro professores/as quilombolas, uma
coordenadora pedagógica quilombola, três jovens quilombolas, e uma mulher
quilombola - mãe de estudante quilombola), considerados3 para fins deste artigo.
De tal modo, tendo o fio método dialético materialista histórico e algumas de
suas principais categorias: mediação, contradição, particularidade e totalidade, tal
qual fio de Ananse4 entremeado aos dedos, teceu-se o panô5 – modo de exposição.
5 Panô aqui é referente a técnica africana de contar histórias através de estampas em tecido. Palavra
de origem angolana é carregada de várias denominações. Assim como as técnicas, a nomeação dos
tecidos africanos depende de cada grupo étnico e região.
4 Trata-se de mitologia africana relacionado ao fio de prata da Deusa Aranha ou Ananse. Pode ser
verificada no livro da Profa. Dra. Zélia Amador de Deus (2019), intitulado “Ananse tecendo teias na
diáspora: uma narrativa de resistência e luta das herdeiras e dos herdeiros de Ananse”. Conferir:
AMADOR DE DEUS, Zélia. Ananse tecendo teias na diáspora: uma narrativa de resistência e luta das
herdeiras e dos herdeiros de Ananse. Belém: Secult-Pará, 2019.
3 Registra-se que ao todo foram 53 quilombolas (trinta e seis mulheres e dezessete homens)
participantes diretos da pesquisa.
2
Isso porque, buscou-se neste percurso problematizar a hipótese que a partir
de lutas sociais, “escola da experiência” (Luxemburgo, 2018), em defesa de modos
de vida não capitalistas, a citar a experiência quilombola na Amazônia região
Tocantina, ocorrem processos que em si são de formação econômico-cultural da
classe trabalhadora alargada.
Nesse sentido, lutas comunitárias cotidianas em defesa da vida dos territórios
quilombolas: lutas por demarcação, por acesso a saúde, educação específica, lutas
contra privatização da água, lutas contra barragens, hidrovias, ferrovias, rodovias,
que tentam passar como se “passa a boiada” por cima dos
territórios-comunidades/povos tradicionais, e ainda monocultivos e plantations,
dentre outras, se despontaram em evidências.
Contudo, tomada pelo entendimento de acordo com Thompson (1981) de que
evidências não respondem por si mesmas, nos debruçamos a interrogá-las. Afinal,
em que elementos de afirmação do ser social podemos apontar processos de
formação econômico-cultural em contraposição ao modo capitalista de produção da
existência humana? Diante desse contexto, como compreender relações dialéticas
entre trabalho-educação e economia-cultura que conformam o fazer-se da classe
trabalhadora de forma a compreendê-la como classe alargada?
Nessa perspectiva, ao analisar elementos dos processos de formação
econômico-cultural da classe trabalhadora alargada, que conformam a afirmação do
ser social com identidades de classe, gênero, quilombola na contradição
trabalho-capital, verificada na experiência da Amazônia, região Tocantina6, a
experiência demonstrou que mulheres e homens quilombolas lutam pela vida como
trabalhadoras/es da Terra. Ao construir modos de vida centrados no trabalho
ontológico, na contradição com o capitalismo, e ao compor a classe trabalhadora em
seu fazer-se, aponta processos do seu alargamento, verificado através do
Quilombolar-se da Comunidade São José de Icatu; das Comunidades: Vizânia,
Santo Antônio do Vizeu, São Bendito do Vizeu, Itabatinga, Uxizal, Porto Grande,
6 Trata-se da mesorregião do Nordeste Paraense e na microrregião do Baixo Tocantins, que também
temos pensado a partir do termo Amazônia Tocantina, ou seja, em termos histórico-políticos do que
base para essa noção de Região Tocantina. Portanto, a noção, o termo, ou a expressão de
Amazônia Tocantina se constrói a partir da região que é banhada pelo Rio Tocantins, no Estado do
Pará, a partir dos municípios a jusante da hidrelétrica de Tucuruí: Baião, Cametá, Mocajuba, Limoeiro
do Ajuru, Oeiras. Registra-se que esse termo, noção, ou expressão pode se tornar categoria ou
conceito, não sendo, encontra-se em processo de fazer-se.
3
Mangabeira (Segundo Distrito); e Tambaí-Açu em Mocajuba/PA, Amazônia região
Tocantina.
Destaca-se nesse sentido, que o termo “Quilombolar-se” é um neologismo
(que pode vir a ser categoria/conceito) criado a partir da fala dos participantes da
pesquisa de forma a expressar o fazer-se Quilombola na Amazônia, com base em
Gramsci (1999, p. 414), ao nos dizer que se homens e mulheres podem controlar
seus próprios destinos, se podem fazer-se, podem criar suas próprias vidas.
Portanto, sendo mulheres e homens “um processo, precisamente o processo de
seus atos” (Gramsci, 1999, p. 414) criando sua própria vida vão “quilombolando”,
como nos disse a professora quilombola (entrevista 57, ago.2023).
Assim, em vez de tratarmos como fazer-se quilombola, nomeamos essa
experiência do ser social de Quilombolar-se, compreendendo-a como sinônimo de
fazer-se enquanto trabalho, cultura, educação e identidade.
Isso implica que, para tratarmos sobre o alargar da classe trabalhadora com
base na experiência do Quilombolar-se, precisamos partir de alguns elementos
entendidos como processos, ou seja, que mulheres e homens quilombolas se fazem
classe trabalhadora como identidade de trabalhadoras/es da Terra ao produzirem
seus territórios coletivos por meio de lutas comunitárias cotidianas (lutas que
alargam as lutas da classe trabalhadora) contrárias ao sentido produtivo impetrado
pelo capitalismo (individualista, consumista, acumulador, lucrativo, explorador,
violento) produzem a si mesmas.
À medida que experienciam lutas comunitárias cotidianas em defesa de seus
modos de vida e se contrapõem ao modo de produção capitalista, acontecem
processos de formação. A essas lutas podemos denominar de luta[s] de classes,
observando que o “[s]”, em destaque, comporta o sentido da “unidade do diverso”,
conforme Marx (1976, p. 116), das lutas que formam econômica e culturalmente a
classe trabalhadora, que também são lutas contra hierarquias sociais (etnia,
racismo, gênero, mulheres e LGBTQI+ ), ou “miseráveis”, como nos disse Prachad
(2023). Isto é, os feitos excluídos, “minorias” pelo capitalismo.
Daí a compreensão do “alargar-se” da experiência da classe trabalhadora ao
integrarmos os conceitos tanto de Gramsci (1989) quanto de Williams (2011) como
7 Optou-se por nomear e diferenciar os participantes diretos da pesquisa, nessa exposição, dada as
diretrizes éticas deste periódico, de acordo com a ordem em que se deram as entrevistas e rodas de
conversas.
4
processos em termos de hegemonia, que ambos incorporam que a classe não
sendo estática pode ser entendida por meio da junção entre os elementos da
base-superestrutura. Portanto, de acordo com Thompson (1987) como processos
permanentes de formação tanto econômico quanto cultural, o alargamento da classe
trabalhadora estando para além das lutas dos chãos das fábricas, partidos,
sindicatos, também podem ser verificados em lutas comunitárias cotidianas.
Nesses termos, considerando o espaço-tempo restrito desta exposição,
apresentamos em duas seções que se articulam, alguns elementos do
“Quilombolar-se” considerando as experiências de “outras” escolas da Educação
Quilombola. E, para continuarmos a fazer-pensar outras pesquisas, encerramos com
considerações.8
“Outras” Escolas da Experiência: Lutas Comunitárias Cotidianas
“Escolas”, “outras escolas” assim se faz a Educação Quilombola ou “escolas
da inspiração ou da brincadeira”, como nos disse Bispo (2023), “escolas da
oralidade” de mestras e mestres que falam, ensinam pelo olhar, pelo corpo, por
desenhos, oralidade, pois
no quilombo, contamos histórias na boca da noite, na lua cheia, ao
redor da fogueira. As histórias são contadas de modo prazeroso e
por todos. [...] Nós contamos histórias sem cobrar nada de ninguém,
o fazemos para fortalecer a nossa trajetória. E não contamos apenas
as histórias dos seres humanos, contamos também histórias de
bichos: macacos, onças e passarinhos; vizage e encantados (Bispo,
2023, p.24, grifos nossos).
As comunidades quilombolas e suas “escolas” diversas, também nos contam
suas lutas, suas dores, recontam e nos encantam os ensinos de seus saberes.
Como “outras escolas” são a própria Educação Quilombola, que “infelizmente ainda
não está na escola”, nos disse a liderança quilombola da ACREQTA9 (entrevista 10,
ago.2023). Porém, parafraseando Mészáros (2008), felizmente se faz traço da
educação que tem formado a classe trabalhadora alargada na Amazônia. Educação
9 Associação da Comunidade Remanescente de Quilombo Tambaí-Açu.
8Uma primeira versão desse texto foi apresentada no XIII Seminário Nacional sobre Trabalho e
Educação na Amazônia, realizado no campus Belém da UFPA em novembro de 2024.
5
dos movimentos sociais que interrogam espaços sistematizados de educação,
universidades (Arroyo, 2006) e “escolas escrituradas” segundo Bispo (2023).
Educação Quilombola que estremece as estruturas das escolas do campo e
da cidade ao questionar suas bases, seus princípios, suas matrizes curriculares, sua
organização pedagógica, sua alimentação, seu tipo de transporte, enfim, põe em
evidência “outras escolas” do quilombo, onde, de acordo com a professora
quilombola da Vila Vizânia (Roda de conversa 2, jul.2023) “há pessoas que não
conhecem”, professores/as que não são do chão das comunidades quilombolas,
mas estão em sala de aula de escolas quilombolas. A nossa interlocutora destaca,
ao reforçar a necessidade da Educação Quilombola estar na Escola Quilombola,
“[...] o professor que não é quilombola, não se cria aqui. Quem não conhece a nossa
realidade aqui, não buia”.
São essas percepções, baseadas na experiência vivida de professoras e
professores quilombolas, assim como na de lideranças, crianças e jovens
quilombolas, que permeiam esta seção na qual apresentamos achados evidenciados
em conteúdo de falas, tais como: “no movimento da educação, principalmente, a
gente se redescobriu. Temos direito!”, como nos disse a coordenadora pedagógica
quilombola da Vila Vizânia (Roda de conversa 2, jul.2023). Essa redescoberta nas
palavras da mesma é uma das evidências do acontecer dos processos de formação
econômico-cultural em curso do ser social com identidades de classe, gênero e
quilombola em Mocajuba/PA.
Assim, professor que não buia10, para a professora quilombola da Vila
Vizânia (34 em roda de conversa 2, jul.2023) significa ser aquele que não emerge
por não sentir o pertencimento do ser quilombola, não sente a energia ancestral,
conforme Krenak (2022). Energia que vem de dentro de si. “Ela vem de dentro, de
dentro ela vem, toda energia que o quilombo tem”, nos ensina o Movimento Social
Quilombola que forma o povo e abala as estruturas da escola sistematizada11,
11 Compreende-se a escola sistematizada como aquela operada, organizada e gerida pelo sistema
formal de ensino, seja local, estadual ou federal. Assim, a Escola Sistematizada operada a reproduzir
a ideologia do sistema hegemônico vigente, tende a também reproduzir a educação ocidentalizada e
em geral reproduz a perspectiva cultural de educação para o capitalismo, pautada em valores
meritocráticos, individualista, focada na competição e no consumismo. Nesses termos, a escola
sistematizada torna-se um aparelho reprodutor de um sistema operado, segundo Abdias Nascimento
(1978), para “abater” no campo simbólico, subjetivo o povo negro no Brasil. Ampliando, nesse
sentido, o lugar da escola sistematizada é um dos lugares onde o racismo se manifesta com
10 Trata-se de regionalismo amazônico e significa boiar, flutuar, manter-se à tona d’água (Anotação de
campo, jul.2023).
6
eurocentrada, ocidentalizada, embranquecida, racista, ao ecoar a voz força da
identidade.
Lutas identitárias (composto das lutas comunitárias cotidianas) que giram o
movimento e produzem reconstruções do ser em si e ser para si, como movimento
social que educa e assim como Givânia Silva (2016, p. 34) percebeu que “a partir de
um encontro comigo mesma é que me oriento e busco perspectivas que respondam
a mim e a um coletivo do qual também pertenço”, a coordenadora pedagógica
quilombola da Vila Vizânia (Roda de conversa 2, jul.2023) também “parece” nos
dizer que se reencontrou ao se reconstruir na luta pela educação do coletivo ao qual
pertence “quilombola das águas da Vila Vizânia”, educação que “hoje entendo,
precisa ser construída por nós mesmas, como nada pra nós sem nós”, continuou.
Elementos do ser em si que ao se formar no movimento social entendeu que
suas lutas comunitárias cotidianas, as questões que levantam e as necessidades
que sentem “[...] interessam a nós mesmos” (Silva, 2016, p. 29), por isso as
soluções para as problemáticas voltadas à educação escolar quilombola, não podem
ser produzidas sem a escuta e a participação das comunidades.
Desse modo, na construção histórica da Educação Escolar Quilombola no
Brasil, sua base fundamental é a Educação Quilombola e na medida em que o
processo de reconhecimento dos quilombos avança, outros direitos emergem de
forma a garantir a permanência nesses espaços. Assim, foram elaboradas diretrizes
curriculares pelo Conselho Nacional de Educação, através da Resolução CNE/CEB
08 de 20 de novembro de 201212. Contudo, para se chegar à normativa de 2012, um
longo processo precisou ser realizado, discutido.
Pensando na analogia do antes do antes da semente, delineada desde as
primeiras linhas que costuram e tecem este Panô, é necessário destacar, como nos
demonstraram nossos participantes diretos da pesquisa, dentre estes a liderança
quilombola da ACREQTA (Entrevista 10, ago.2023) na Comunidade Quilombola
Tambaí-Açu que
12Disponível:
http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=11963-rceb008-12-pdf
&category_slug=novembro-2012-pdf&Itemid=30192 . Acesso em 20 de dezembro de 2020.
veemência e precisa ser combatido pelo fato de a forma de sua organização e sua gestão tender à
reprodução do racismo institucional historicamente enraizado no racismo estrutural brasileiro.
7
[...] essa luta não é de agora. Essa luta é antiga. Essa luta é uma luta
desde quando nossos ancestrais foram arrancados da África. Isso
não podemos esquecer. Por isso a importância de uma educação
que nos represente, pois corremos o risco de tudo que é nosso
desaparecer, se a nossa educação não se fortalecer, inclusive na
escola.
Luta antiga que atravessa a história. Luta pela educação quilombola que se
apresenta como preocupação em todas as nove comunidades quilombolas
pesquisadas, a saber: São José de Icatu, Tambaí-Açu, Santo Antônio do Vizeu, São
Benedito do Vizeu, Vila Vizânia, Itabatinga, Uxizal, Mangabeira, Porto Grande. Isso
porque, essas comunidades se viram ameaçadas de diferentes formas, entre elas
pela iminência das escolas em territórios quilombolas serem ocupadas por
profissionais, sobretudo professoras/es, não quilombolas.
um sentimento geral entre todas entrevistadas/os, que aponta
enfraquecimentos dos territórios a partir das escolas sistematizadas, caso
permaneça a situação atual de as aulas serem ministradas por pessoas não
quilombolas. Isso, por exemplo, foi manifestado nas palavras da mulher quilombola
(Entrevista 7, ago.2023), mãe de estudante quilombola no Tambaí-Açu:
[...]aqui, depois dessas mudanças na escola, observei algumas
mudanças com as nossas crianças, pois não vemos mais as
professoras cantarem as músicas do quilombo e nem incentivando
as crianças a tocarem o samba. Acho que é porque elas [professoras
novas] não sabem...”.
As mudanças que a mulher quilombola mãe de estudante (Entrevista 7,
ago.2023) levanta se referem às ações ocorridas no município de Mocajuba/PA,
ocasionadas pela substituição de professoras quilombolas da própria comunidade,
por concursados/as que, em geral, moram na cidade. Situação complexa que o
espaço restrito desta exposição não nos permite aprofundar, mas que podemos
apontar como característica da educação sistematizada ao não escutar as
comunidades e não considerar a necessidade que conduz comunidades e povos
tradicionais a lutarem por escolas, parafraseando a professora anciã quilombola da
Comunidade Itabatinga (entrevista 19, jan.2024), preenchidas de vida do quilombo, o
que fundamentalmente perpassa por uma educação de base comunitária, uma
8
educação que precisa ser realizada pelas próprias pessoas da comunidade,
conforme orientam as diretrizes CNE 08/2012 e CME 039/202213.
Diante desse contexto, quando não é garantido o direito à Educação Escolar
Quilombola nas bases comunitárias da Educação Quilombola, constrói-se uma
lacuna que, segundo a professora quilombola da Vila Vizânia (Roda de conversa 2,
jul.2023), “não é qualquer pessoa, principalmente sem formação, que vai conseguir
fazer”, ou preencher.
Essas situações relacionadas à Educação Quilombola e à Educação Escolar
Quilombola têm causado preocupações entre as/os quilombolas que lutam pelo
direito fundamental à educação, pois o Estado se mostra inerte a promoção desse
direito ao negar essas existências em termos, sobretudo enquanto organização
como “outras” escolas, “outros” currículos.
Assim, as comunidades quilombolas em Mocajuba/PA têm se constituído por
múltiplas mediações, conforme Marx e Engels (2009). Não isoladas,
potencializam-se ao se fazerem classe na contradição entre mediações de primeira
ordem e mediações de segunda ordem, de acordo com Mészáros (2016). Processos
que produzem, segundo Tiriba (2022) baseada em Williams (2011), estruturas de
sentimento, ao se mostrarem como movimento de organização contra as ações da
hegemonia vigente.
Ao relacionar as falas de todos os participantes da pesquisa nos termos
trazidos pela professora quilombola da Vila Vizânia (Roda de conversa 2, jul.2023),
observamos semelhanças entre a luta pela educação quilombola e o que vivenciam
expresso na percepção de estarem “rodeadas” por todos os lados, tal qual ilhas, por
outras ameaças que vão desde questões ambientais a questões
produtivas-culturais, ou à permanência da juventude nas comunidades.
No que concerne, especificamente, a permanência da juventude nas
comunidades, a ameaça das novas tecnologias compreendidas como “redes
sociais” ou redes cibernéticas tem sido acompanhada de perto pelas lideranças
quilombolas, pois elas estão diretamente ligadas aos interesses da juventude que
são seus filhos, sobrinhos, primos, enfim “somos todos parentes aqui na
13 Documento que trata sobre as Diretrizes Municipais para Educação Escolar Quilombola de
Mocajuba/PA. Pode ser verificado na íntegra no site da Malungu:
https://malungu.org/luta-do-movimento-quilombola-para-implantar-diretrizes-curriculares-municipais-p
ara-educacao-escolar-quilombola/. Acesso em 06 de abril de 2024.
9
comunidade”, como afirmou a professora quilombola Vila Vizânia (Roda de
conversa 2, jul.2023).
Assim, não é uma experiência observada de fora, mas algo que experienciam
em suas próprias famílias e comunidades e estão, como nos disseram as próprias
vozes das juventudes nas comunidades quilombolas, “observando que as redes
sociais tiram atenção dos jovens. Hoje isso é muito forte, por isso estamos lutando
para mudar essa ideia e fazer com que a rede social caminhe conosco para nos
ajudar”, afirmou a jovem quilombola (entrevista 40), de 19 anos, coordenadora do
Grupo de Jovens Igreja Católica, da Vila Vizânia (Roda de conversa 2, jul.2023).
Trata-se de processos de formação na contradição com processos “deformadores”
pensados a partir de Lélia González (2021).
Ao serem “deformadores”, parece-nos que estão carregados por mediações
de alienação, de acordo com Meszáros (2016). Sendo as tecnologias, em tempos
atuais, instrumentos ideológicos capitalistas, portanto altamente capazes de
potencializar necessidades do ter em detrimento do ser já que estão concebidas de
forma a conduzir indivíduos ao culto do consumo, à necessidade enquanto desejo.
Daí a assertiva das lideranças em relação à preocupação com a educação e
com as juventudes quilombolas, pois as tecnologias e a alienação capitalista
inerentes, sobretudo, nas tais redes sociais, podem “quem sabe até levar o jovem a
pensar que sair daqui é melhor”, nos disse a liderança quilombola da CRESQJI14 no
Quilombo São José de Icatu (Roda de conversa 1, jul.2023). Preocupações com a
juventude reveladas não apenas por lideranças da Comunidade Quilombola São
José de Icatu, mas também pelas lideranças da juventude quilombola, como
observamos nas falas em roda de conversa (2, jul.2023), no Quilombo Vila Vizânia.
Contudo, que se compreender, embora o capitalismo tente, o ser humano
não é essencialmente egoísta a ponto de não ser transformado ou a ponto de que
[...] sua natureza humana seja fixa (ou, de fato, qualquer coisa fixa).
Na visão de Marx, o ser humano não é nem egoísta nem altruísta.
Ele [gênero humano em toda sua diversidade] é feito por sua própria
atividade, naquilo que ele é a qualquer tempo. Assim sendo, se a
atividade for transformada, a natureza humana egoísta de hoje
mudará no devido tempo (Mészáros, 2016, p. 135, grifos nossos).
14 Associação da Comunidade dos Remanescentes de Quilombo São José de Icatu.
10
Daí a necessidade da educação transformadora, no sentido de potencializar a
socialidade, essa sim inerente aos seres humanos (Mészáros, 2016, p. 35).
Educação atenta ao que também nos pontuou o jovem quilombola da Comunidade
São José de Icatu (Roda de conversa 1, jul.2023) em relação à falta de participação
da juventude nas atividades da associação. Para ele, a dificuldade é, por exemplo,
manter a juventude presente por muito tempo [nas oficinas de
formação], pois a juventude tem agenda própria, né? (risos) Tem jogo
de futebol, tem vôlei, tem outras coisas mais, não sei o quê, mas
sempre tem, principalmente jogar, a juventude gosta muito, muito
mesmo é de jogar bola e daí é tudo é mulher, homem, tudo aí gostam
da bola (risos).
A fala do jovem quilombola da Comunidade São José de Icatu está
relacionada aos processos de construção do protocolo de consulta15 na Comunidade
Quilombola São José de Icatu, dos quais ele participou integralmente junto à
coordenação da CRESQJI. Como processos de formação, essas observações sobre
a dificuldade de manter a juventude presente”, conforme nos revelou, também
percebemos nas “outras” lutas, das “outras” escolas que formam a juventude
quilombola.
Dessa forma, tanto o jovem quilombola de São José de Icatu (Roda de
conversa 1, jul. 2023), quanto a jovem quilombola da Vila Vizânia (Roda de conversa
2, jul.2023) ao nos trazerem as vozes da juventude em formação nas comunidades
quilombolas nos remetem aos estudos de Givânia Silva (2016) sobre esse tema, nos
quais ela faz aproximações ao observar, no Quilombo Conceição de Crioulas/PE,
que a juventude por também preferia jogar bola, assistir televisão, olhar o celular.
Assim, construíram possibilidades por meio do Projeto Político Pedagógico Territorial
Quilombola (PPPTQ) para que a Juventude se sentisse parte do processo, criando
dois mecanismos: “jornal ‘Crioulas: a voz da resistência e o Crioulas Vídeo’” (Silva,
2016, p. 170).
Semelhante a esse processo de formação também ocorreu, conforme nos
relatou a jovem quilombola da Vila Vizânia (Roda de conversa 2, jul.2023) na
Comunidade Quilombola Vila Vizânia, durante a Pandemia, precisando, no entanto,
essa experiência ir com “força para dentro da escola quilombola, estamos
15 Trata-se de direito garantido às Comunidades Tradicionais através da Convenção 169/OIT
Organização Internacional do Trabalho.
11
trabalhando nessa direção”, nos disse a professora quilombola da Vizânia em
mesma roda de conversa (2, jul.2023), pois
[...] o envolvimento do conjunto das pessoas que ali reside, para
pensar coletivamente uma estratégia que tenha como pano de fundo
a metodologia de construção do Projeto Político Pedagógico do
Território [...] e da busca de autonomia do grupo e ‘fazer’ com que os
jovens, as mulheres e as lideranças estejam elas ligadas diretamente
à educação ou não, sejam protagonistas, o que foge das lógicas e
modelos estabelecidos pela educação em nosso país (Silva, 2016, p.
172).
Isso é o que estão fazendo as/os professoras/es quilombolas em
Mocajuba/PA na luta pela educação que os representa a Educação Quilombola,
conforme prevista na resolução construída pelo Movimento Social Quilombola em
Mocajuba, resolução CME 039/2022. Educação essa que ainda não está nos chãos
das escolas sistematizadas. Daí o receio da liderança da ACREQTA (Entrevista 10,
ago.2023) ao nos revelar que “isso não podemos esquecer”, ou seja, esquecer a
história que arrancou seus ancestrais da África para territórios brasileiros, história
escravista, história das violências que enfrentaram, das perdas irreparáveis e do
risco do desaparecimento de toda sua história e identidade. Esses são sentimentos
que mobilizam as comunidades quilombolas para o enfrentamento, para a luta por
seus territórios.
Educação Quilombola que não pode continuar do lado de fora da escola, que
precisa estar no currículo, daí a necessidade da “educação que nos represente”,
como reforçou a liderança quilombola da ACREQTA (Entrevista 10, ago.2023).
Educação “plantada em outras bases e em outros contextos adversos enfrenta as
dificuldades e as transforma em força e ferramenta de lutas” (Silva, 2016, p. 173).
Bases essas que a juventude quilombola precisa preencher, pois a escola,
sobretudo da cidade que tem recebido essa juventude (anos finais e ensino médio),
está “ameaçando” essas raízes plantadas como “outra” educação, as quais a
liderança quilombola da ACREQTA (Entrevista 10, ago.2023) frisou que não podem
e não devem ser esquecidas.
Contudo, para se compreender os elementos dessa educação reivindicada
pelas comunidades quilombolas de Mocajuba/PA, sobretudo a partir de 2018, temos
que relembrar, por exemplo, baseado em Givânia Silva (2016), as reivindicações
12
nesse campo anteriormente referenciadas e construídas pelo Movimento Negro
Brasileiro, a citar o “Quilombismo” de Abdias Nascimento (2002).
Essas e outras mobilizações resultaram “em propostas concretas [...]
‘culminando na realização da Convenção Nacional O negro na Constituinte’” (Silva,
2016, p.59) e por meio dela, os desdobramentos bases ao reconhecimento dos
Quilombos no Brasil que se deu em 1988 com a redemocratização e promulgação
da nova Constituição Federal (Silva, 2016).
Entretanto, embora esse ato de reconhecimento oficial dos Quilombos no
Brasil tenha sido avaliado como um avanço, muitas lacunas permaneceram, já que a
implementação de políticas públicas não se apenas por decreto. Daí iniciou-se
uma “corrida” para definir concretamente o que eram os “Remanescentes de
Quilombos” nomeados na CF/1988.
Nesse sentido, as comunidades quilombolas são resultantes de longas
experiências históricas e aos seus modos “têm se oposto, por meio de suas formas
de fazer, viver e pensar, aos modelos de desenvolvimento impostos pelo lucro do
capital” (Silva, 2016, p. 62). Por isso, das características mais comuns que uma
comunidade pode possuir, podendo ser verificada em qualquer região do país, o ato
de se manter em território por um sentimento de pertencimento à terra, como lugar
onde nasceu, se criou e viveu e por conta disso fundamentalmente se luta para
permanecer nessa terra de heranças passadas de geração em geração é algo ainda
latente nos quilombos contemporâneos, onde se luta por água, por demarcação,
pelas florestas, por políticas públicas, tais como educação, visando sempre o
fortalecimento do território coletivo.
Partindo dessa perspectiva pensar quilombo como ‘o presente’, é
necessário nos despirmos do conceito de quilombo como algo
estático e reconhecê-lo na atualidade. Essa visão estática não
reconhece as mudanças que ocorreram, ora por força das
organizações próprias dos quilombos, ora pelas novas formas de
escravização. a partir de uma compreensão nova, em que se
considere a diversidade quilombola, suas características e
especificidades culturais, regionais, geográficas e políticas é que
podemos compreender melhor quem são os quilombos, suas lutas e
resistências como estratégias de construção de seus modelos de
desenvolvimento e processos organizativos próprios. É preciso
pensar em um presente que coloque o Estado brasileiro na condição
de agente devedor, mas, ao mesmo tempo, responsável pela
elaboração e execução das políticas públicas para os quilombos,
13
rompendo com as marcas do passado escravo que as colocou em
situação de desigualdade (Silva, 2016, p. 62).
Dessa maneira, o quilombo como não estático é um quilombo em processo e
os sujeitos históricos que o compõe estando em um permanente vir a ser são a
própria ação que estamos a chamar de Quilombolar-se, tornar-se ser social com
identidades de classe, gênero e quilombola, um dos indicativos de que o alargar-se
da classe trabalhadora acontece no pleno fazer-se.
Daí ser necessário compreender a Educação Quilombola como instrumento
de luta contra o capitalismo, portanto, ponto de integração entre escola
sistematizada e comunidade, por entender que o ser social com identidades de
classe, gênero e quilombola, em seu processo de Quilombolar-se, não pode
acontecer fora da Educação Quilombola dada a luta de classes ser também luta a
um só tempo contra o racismo e o machismo.
Por isso, embora essa compreensão seja “escurecida” no Movimento Social
Quilombola, temos que considerar outros elementos para a implementação de
políticas públicas no sentido de garantir a representatividade necessária, mas sem
esquecer da luta maior, a luta contra o capital. Para tanto, a Convenção 169 torna-se
educativa ao estabelecer que povos e comunidades tradicionais
[...] deverão participar da formulação, aplicação e avaliação dos
planos e programas de desenvolvimento nacional e regional
suscetíveis de afetá-los diretamente. O Brasil além de ser signatário
da convenção 169 da OIT, transformou-a em Lei Ordinária, com a
aprovação do Congresso Nacional. O autorreconhecimento traz
outras questões importantes e tem causado incômodos, sobretudo às
forças conservadoras de nossa sociedade (Silva, 2016, p. 63).
Em que pese tudo isso, torna-se também emblemático registrar que esses tais
“incômodos” também operam contraditoriamente no interior das comunidades
quilombolas, em algumas situações. Nesses termos, também observamos nos
quilombos reproduções dessas tais “forças conservadoras” colocadas por Silva
(2016), as quais apontamos, com base em Lélia González (2021), como ações de
“deformação” ou alienadoras, de acordo com Mészáros (2016).
Isso tem operado, embora possam parecer ações pontuais, “umas aqui outras
alí, de vez enquanto a gente ouve, a gente presencia”, como nos disse a professora
quilombola liderança do coletivo de mulheres da Comunidade São Benedito do
14
Vizeu (Entrevista 16, nov.2023), em comportamentos individualistas nas
comunidades, a citar a “reinvindicação por cargos, a gente vê muito isso acontecer”,
continuou ela. Com isso, apontou-se que em algumas situações essas
manifestações não acontecem no sentido de tornar alguém necessário à
comunidade, mas sim, de torná-lo importante, conforme Bispo (2023).
Somam-se ainda a esses detalhes, negociações pessoais (em termos
individuais), “principalmente no período de politicagem”, conforme nos afirmou a
professora quilombola liderança do coletivo de mulheres da Comunidade São
Benedito do Vizeu (Entrevista 16, nov.2023), isto é, ao não diferenciarem que a
política é um bem comum e politicagem é outra coisa que beneficia alguns e
prejudica a maioria”, segundo a liderança anciã quilombola (Entrevista 23, março,
2024), podendo produzir “deformações” nos processos de formação do ser social
com identidades de classe, gênero e quilombola.
Assim, de forma a não “romantizar” as comunidades quilombolas, observamos
que as pessoas que vivem, sentem, percebem suas cotidianidades, para além de
vivenciarem suas identidades, também coexistem com pessoas no território que,
embora sejam da comunidade, não se autorreconhecem quilombolas, dizem não
serem quilombolas mesmo tendo nascido, sido criado ou residirem ali. Na vida
cotidiana pessoas nos quilombos que afirmam não se identificarem com as lutas.
Não participam e até mesmo não são associados.
Trata-se de expressões da coexistência das mediações de primeira ordem
com as mediações de segunda ordem presentes nas comunidades quilombolas,
que não estão fora do mundo do capital, mas em contradição com ele e vivenciam
cotidianamente ações e tentativas de desarticulação dos territórios que vão, por
exemplo, do estímulo à venda de roças, aos desentendimentos internos, usando
inclusive fatores que o capital produz, a citar o egoísmo inerente à propriedade
privada.
Como ação contrária, as lutas comunitárias cotidianas têm procurado
fortalecer os quilombos através de processos de formação para Educação
Quilombola como instrumento combativo às ações individualistas que de vez
enquanto”, como nos disse a professora quilombola liderança do coletivo de
mulheres da Comunidade São Benedito do Vizeu (Entrevista 16, nov.2023), tentam
enfraquecer a luta para manter o quilombo unido”, isso requer que a gente esteja
15
atento todo tempo”, continuou ela. Sendo os territórios quilombolas coletivos não
podem permitir que ações individualistas, a citar o agronegócio e seus plantations,
instalem-se no seu interior. Por isso, compreendemos que as lutas comunitárias
cotidianas também são parte das lutas da classe trabalhadora e operam no seu
alargamento.
Registra-se, nesse sentido, uma observação: o ato de filiação nas
associações e o autodefinir-se quilombola não é ação obrigatória para se manter nos
territórios. Mas, no momento em que não filiados e não autoidentificados
quilombolas se manifestam contrários às lutas quilombolas acabam estimulando a
desmobilização e isso tem conduzido lideranças entrevistadas a se sentirem, de
“certa” forma, ameaçadas. Em algumas falas dos/das participantes diretos da
pesquisa, notamos preocupações com essas não adesões ao modo de vida
quilombola, por pessoas que se dizem não quilombolas mesmo vivendo nos
territórios. Assim, a liderança quilombola da ACREQTA (Entrevista 10, ago.2023), ao
ser perguntado sobre como o Ser social com identidades acontece no Quilombo
Tambaí-Açu, nos disse:
O quilombola acontece de diversas formas. Mas quero iniciar falando
de uma forma de quilombola aqui, ou pelo menos que se diz
quilombola, que tem me incomodado muito, que é aquele que é
quilombola na hora do benefício, ou seja, ele aparece aqui na
associação quando ele sabe que vai receber alguma coisa e o pior
ainda sai falando coisas que não deve dizer, porque não sabe como
é, mas mesmo assim sai falando. E fala coisas, tipo ‘eu não vou
participar ‘eu não sei o que é isso de quilombola’, - ‘ah! esse
pessoal da associação estão com besteira, nem precisa de tanto
essa coisa de quilombola, não sei pra que ser quilombola’. Isso me
preocupa muito sabe? Me deixa triste demais até... (Entrevista 10,
ago.2023)
Nesse sentido, escutamos outras lideranças afetadas com falas que
desmobilizam a organização nas comunidades quilombolas, como a professora
quilombola da Comunidade Itabatinga (Entrevista 5, ago.2023), por exemplo, me
sinto cansada às vezes, porque a gente convida, convida e não tem participação e
quando a gente consegue reunir, tem gente aqui que diz está o pessoal
quilombola reunido. E eu pergunto e tu não é quilombola?”. Isso nos revela a não
uniformidade da cultura que, conforme Amílcar Cabral (2024, p. 186), “[...] embora
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tenha um caráter de massa, não se desenvolve igualmente em todos os setores da
sociedade”, daí a necessidade da educação transformadora.
Fazendo, portanto, um paralelo com a identidade quilombola, embora esteja
no mesmo território, a compreensão da cultura libertadora não acontece
mecanicamente, isto é, sem as mediações que lhe são inerentes, a citar as
reproduções ampliadas da vida. Essas falas entendidas como “deformações”
revelam muitas questões cruzadas que vão além do “incômodo” atingindo algo que
nos é central, o modo (ou meios) de vida capitalista de ser que tem tentado se diluir
na cultura de base comunitária quilombola ou no modo de vida quilombola de ser,
conduzindo algumas pessoas à “dependência” de pensar ser um ser independente,
individual, que não precisa viver em comunidade, não precisa da associação, nem
do Movimento Social Quilombola. Esse ser egoísta, meritocrático enfraquece
relações baseadas em princípios comunitários, daí que alguns desses conflitos se
apresentam nas falas das lideranças e novamente evidenciam a necessidade da
Educação Quilombola, de forma a fortalecer a perspectiva de outro acontecer
quilombola que, de acordo com a liderança quilombola da ACREQTA (Entrevista 10,
ago.2023), se dá quando
[...] a gente ver aquele feliz participando das atividades aqui, não
da Associação, mas nos eventos, nos cursos que vem. Ele participa,
ele se integra, ajuda, contribui, partilha. E nem precisa ter nascido
aqui para ser quilombola, não. O quilombola para mim está muito
além de ter nascido aqui. Ter nascido aqui, pra mim não é condição
central para ser quilombola, pois tenho visto muita gente que nasceu
aqui, vive aqui e não é quilombola. Quilombola é identidade e a
identidade a gente entende se lutar, é na luta, na participação que
a gente entende. Então, se não participa da comunidade para mim
não é quilombola de luta, é quilombola pra pegar benefício
(Entrevista 10, ago.2023).
A partir do que nos afirmaram tanto a liderança quilombola da ACREQTA
(Entrevista 10, ago.2023), quanto a professora quilombola da Comunidade
Itabatinga (Entrevista 5, ago.2023) podemos pensar nas diversas formações e
“deformações” dos processos que formam o ser social com identidades de classe,
gênero e quilombola. Percebem como dialético esse acontecer que se faz na
mediação entre afirmação de ser e de não ser. Ao conflitar o ser e o não ser
produzem reafirmações, reencontros do ser em si que, ao se reconstruir, pode se
tornar seres para si. Afinal, o Ser quilombola não pode ser visto estaticamente de
17
acordo com Silva (2016), muito menos como ser pronto e acabado. O Ser
quilombola como Ser social é um constante vir a ser histórico, tal qual verificamos
em Gramsci (2017).
Nesse sentido, continuamos a concordar com Mészáros (2016) que não
como pensar os processos que formam o ser social com identidades de classe,
gênero e quilombola apenas pela perspectiva do campo produtivo, isto é,
econômico. O Ser social com identidades, como observado a partir de todas as falas
registradas aqui, é resultado de múltiplas mediações específicas.
De tal modo, destaca-se o sentido da Educação Quilombola enquanto
processo de formação econômico-cultural do ser social com identidades de classe,
gênero e quilombola por ser uma das particularidades “intricadas”, conforme
Mészáros (2016), na gama que compõe as múltiplas mediações específicas que
constituem os seres sociais.
Educação Quilombola: Espaços-Tempos de Luta
Viver na terra, ser trabalhador da Terra é produzir identidades, desse modo
aprendemos com as mulheres e homens quilombolas em Mocajuba/PA, que a vida
se produz e se reproduz sem fronteiras, cercas e/ou como espaços-tempos de
produzir a vida associativamente conforme Tiriba e Fischer (2023). Afinal o território
da educação quilombola se faz de acordo as/os participantes diretos da pesquisa no
fazer-se pertencimento, sentir-se pertencente a terra e nesse pertencer lutar “todo
dia e toda hora” tal qual diz o canto do Movimento Social Quilombola para
permanecer, continuar a existir, pois o Quilombo existe se houver luta. É na/da
luta que se faz a Comunidade Quilombola, assim nos ensinou a liderança da
ACREQTA (Entrevista 10, ago.2023). De tal modo esse é o sentimento que guia
essa seção, ou seja, fazer-pensar o território da educação quilombola, como
processo de formação econômico-cultural.
Tomados por essa base, entendemos, por exemplo, que, integrada aos
sentidos das territorialidades, a Educação Quilombola reflete o direito ao território
(Souza; Silva, 2021). Sendo uma parte da outra, terra e educação se coadunam no
mesmo sentido a luta pela vida dos territórios não é um fim voltado apenas ao
acesso a demarcação, é preciso garantir a sua permanência e isso perpassa pelo
18
acesso aos direitos. Portanto, refletem-se outras evidências como indicadores do
alargar-se da classe trabalhadora em processo, já que
Não é possível apreender o ‘específico’ sem identificar suas múltiplas
interconexões com um sistema dado de mediações complexas. Em
outras palavras, é preciso ser capaz de ver os elementos
(sistemáticos) ‘atemporais’ na temporalidade e os elementos
temporais nos fatores sistemáticos. [...] O determinismo econômico
enquanto hipótese histórica é uma contradição de termos, porque
implica a negação última da história. Se história significa alguma
coisa, ela deve ser ‘inconclusa’ (Mészáros, 2016, p. 108-109).
Nos cabe, portanto, ampliar as percepções e incluir nas múltiplas mediações
“outras” experiências de classe, de lutas de classes (Ciavatta, 2018) para entender
os processos que constroem a “história inconclusa” como experiência para além das
lutas sociais do século XIX, isto é, como elas se movem, como acontecem nos
tempos atuais, incluindo as lutas por direitos, lutas identitárias, que também formam
consciências de ser ou não ser alienado, por exemplo.
Muitas são as lutas nesse sentido no tempo-espaço histórico presente. Para
se ter acesso a direitos, mesmo estando eles garantidos por lei, a realidade exige
lutas, tensionamentos. Nesse momento acontece o perceber que a luta não é só por
representatividade e ocupação de espaços é também contra a organização e a
gestão do sistema da sociedade de classes. Já que, na prática,
as comunidades têm vivenciado historicamente efeitos do racismo
estrutural (Almeida, 2018). Diversas barreiras no acesso a políticas
públicas fundamentais, com as educacionais, as de saúde, as
ambientais e as voltadas à regularização fundiária de seus territórios
tradicionais, estão presentes gerações nas comunidades. O
significativo grau de vulnerabilidade nos quilombos se aprofunda em
situações de crises graves como atual (Souza; Silva, 2021, p.33).
O sentimento de pertencimento a um território revelado como principal
característica da identidade quilombola é o traço principal da Educação Quilombola,
por isso a luta pela terra é a luta por um futuro, o qual aprendemos com Krenak que
é ancestral, isto é, um futuro que se constrói no agora fundado no ontem em si,
“porque estava aqui” (Krenak, 2022, p. 11) e estando é enraizado na terra, como a
própria terra é ancestral. Isso tem muito a nos dizer, pois envolve identidade[s]. Do
mesmo modo, pensar essa terra ancestral nos recordou a inquietação da liderança
19
anciã quilombola (Entrevista 23, mar.2024) sobre a diferença entre trabalhador rural
e trabalhador quilombola, pois nos disse ele:
[...] é diferente, pois antes uma identidade no trabalhador
quilombola que não combina com o trabalhador que trabalha pro
outro. Talvez porque, o trabalhador quilombola produz o trabalho pra
si, possui sua terra, não precisa sair da sua roça pra trabalhar, ele
mora lá. Não é assalariado como é o trabalhador rural, talvez a
diferença esteja e por isso tem que ser considerada, pois é a
identidade do trabalhador. Talvez a diferença eu tenho pensado, está
na identidade com a sua terra, trabalho da comunidade, que se
acabar, acaba a comunidade inteira (Entrevista 23, mar.2024).
Identidade da terra é a relação com Terra Ancestral passada de geração em
geração e é também Educação Quilombola, como parece nos apontar a liderança
anciã quilombola (Entrevista 23, mar.2024). Diante das ameaças aos territórios, a
exemplo do desmatamento crescente na região, e da percepção que se acabar, a
caba a comunidade inteira”, compreendemos que essa relação com a terra que
produz alimento, produz também a identidade do trabalhador que, de acordo com o
mesmo, “não combina com o trabalho pro outro”. Nesse sentido, a terra que alimenta
a identidade precisa ser compreendida como processo de formação, de forma a
construir bases para entendimentos do acontecer quilombola por meio também da
Educação Escolar Quilombola,
[...] num outro sentido, [...] saber trazer para o primeiro plano a
própria história, pesquisada, construída pelo alunado e professorado
da comunidade, onde se vivem os problemas reais e se enfrentam as
dificuldades, procurando os caminhos de esperança em melhores
tempos de luta e consciência comum. Na escureza do seu projeto
político pedagógico, na incorporação do dia a dia escolar de práticas
de uma Pedagogia Crioula (Nascimento, 2017), nesse modo de as
mulheres guerreiras estenderem as lutas da comunidade para as
salas de aula e para fora delas, revalorizando a história, pesquisando
os saberes ancestrais, provocando os saberes existentes,
entendendo a possibilidade de viver em harmonia com a natureza e
valorizando o respeito pelos recursos oferecidos, encarando as
transformações contemporâneas e estudando as perspectivas que se
apresentam, dando voz a cada aluna e a cada aluno para que
encontrem o seu futuro na consciência de cada um é um ‘nós’ (Paiva,
2021, p. 176, grifo nosso).
Nessa experiência da Pedagogia Crioula apresentada por Paiva (2021)
observamos as matrizes temáticas do currículo escolar, as mesmas que almeja o
Movimento Social Quilombola na implementação da Educação Escolar Quilombola –
20
“Putirum Quilombola” no município de Mocajuba/PA. Caminhada que se iniciou em
2018, no município de Baião/PA, por meio da realização do I Encontro da Educação
Quilombola da Regional Tocantina, realizado pelo GT/Quilombola em parceria com a
Malungu. O encontro se configurou, a partir de tensionamentos, na Coordenação de
Formação da Educação Escolar Quilombola (CFFEQ) no interior da Secretaria
Municipal de Educação, Esporte e Cultura (SEMEC) em Mocajuba entre os anos de
2021 e 2022, desenvolvendo os primeiros passos da implementação, com as
comunidades quilombolas, da Resolução CNE 08/2012 que trata sobre as Diretrizes
Curriculares Nacionais da Educação Escolar Quilombola.
Ações educativas ao produzirem “outras pedagogias”, conforme Arroyo
(2012). Da mesma forma, também nos revela, de acordo com Gomes (2017, p. 38,
grifos nossos) “[...] o protagonismo desse movimento social como ator e/ou sujeito
político e educador. Ator e/ou sujeito que produz, constrói, sistematiza e articula
saberes emancipatórios”.
O Movimento Social Quilombola de Mocajuba/PA foi reconhecido, inclusive
nacionalmente através da Coordenação Nacional de Articulação de Comunidades
Negras Rurais Quilombolas - CONAQ, pela implementação da Educação Escolar
Quilombola nesse município, sobretudo após conseguir elaborar diretrizes
municipais próprias (Resolução CME 039/2022) por meio da realização dos
Encontros de Formação, os chamados “Putiruns Quilombolas”, cuja metodologia
pretagogizada pode ser verificada em Miranda e García (2022).
Os Putiruns Quilombolas configurados como espaços de formação do
Movimento Social Popular Quilombola de Mocajuba/PA têm contribuído
concretamente com os processos de formação econômico-cultural do ser social com
identidades de classe, gênero e quilombola em toda região da Amazônia região
Tocantina. Ecos desse trabalho proporcionado pela parceria entre Comunidades
Quilombolas e Movimento Social Quilombola têm transcendido fronteiras municipais,
ocasionando que experiências sejam vivenciadas mesmo indiretamente pelas
diversas comunidades que compõem essa região, a citar o Território Terra da
Liberdade no município de Cametá/PA, dentre outros.
Esse Movimento Social Quilombola que produz educação em si, segundo
Gomes (2017), e ainda como movimento que produz Pretagogias, como nos
demonstraram Miranda e García (2022), aponta evidências de que os Putiruns
21
Quilombolas, enquanto incorporações desse sentido de fazer “outras escolas”,
também formam a classe trabalhadora dos nossos tempos.
O processo de formação do Movimento Social Quilombola em Mocajuba/PA
(em curso) se configura como curricularidades, por ser o próprio caminho de se
pensar a educação com base na identidade de povos e comunidades tradicionais.
Por isso, concordamos com Gomes (2017) que o Movimento Quilombola, ao propor
e lutar pela educação de base comunitária a exemplo do que tem ocorrido na
experiência de Mocajuba/PA, reconstrói saberes de emancipação ancestrais e isso é
o próprio ato educativo do trabalho, por ser histórico.
Portanto, as Comunidades Quilombolas da Amazônia região Tocantina
apontam “outras escolas” que são base comunitária de seus saberes, como a escola
do movimento que gira em torno de suas ações, suas bandeiras de lutas por direitos
conquistados, de forma que, como nos disse a liderança quilombola da ACREQTA
(Entrevista 10, ago.2023), Educação Quilombola não se faz sem o Movimento
Social”. Elemento esse garantido por meio de suas lutas na forma de diretriz na
Resolução CME 039/202216. Por isso, ouvimos no Movimento Educador Quilombola
dos Putiruns que, nesses espaços, as pessoas se sentem mais livres e ao cantarem
convocam “traga a bandeira de luta, deixa a bandeira passar... Essa é a nossa
conduta, vamos unir para mudar17.
Esse é o espírito em que todas as dimensões da educação podem
ser reunidas. Dessa forma, os princípios orientadores da educação
formal devem ser desatados do seu tegumento da lógica do capital,
de imposição de conformidade, e em vez disso mover-se em direção
a um intercâmbio ativo e efetivo com práticas educacionais mais
abrangentes (Mészáros, 2008, p.59).
Dimensões da educação formal que precisam se integrar à Educação
Quilombola. Essa é a luta, é a bandeira que passa e convida à mudança, pois o
Movimento Educador Quilombola percebeu e nos aponta que, se não houver
mudança, a Educação Escolar Quilombola não se constituirá.
Daí a necessidade de se fazer-pensar o projeto da escola quilombola mirando
os processos de formação da identidade com um “leve estiramento” conforme Fanon
17Cantos da Pastoral da Juventude, Movimento da Juventude Católica.
16Documento que trata sobre as Diretrizes Municipais para Educação Escolar Quilombola de
Mocajuba/PA. Pode ser verificado na íntegra no site da Malungu:
https://malungu.org/luta-do-movimento-quilombola-para-implantar-diretrizes-curriculares-municipais-p
ara-educacao-escolar-quilombola/. Acesso em 06 de abril de 2024.
22
(1968) do que pensou Bogo (2010), já que talvez não caiba aqui o seu entendimento
de que o popular (a massa) apenas “circunda” à classe, ou seja, não é classe, por
isso precisa ser, segundo suas palavras, “formulada pela classe organizada” (Bogo,
2010, p. 153). Ou seja, a classe que possui a cartilha, o manual de instruções, o
receituário dos iluminados?
Alargando, continuamos a reivindicar, conforme Mariátegui (2023), que a luta
de classes na Amazônia não pode ser “decalque” ocidental e que o “popular”
também é classe em potencial (Fernandes, 1975), até porque as classes não são
prontas e acabadas, de acordo com Hobsbawm (2015). Portanto, compreendendo a
classe em formação econômico-cultural e determinada pela produção e reproduções
da vida (Vendramini, 2022), isto é, pelo contínuo vir a ser, conforme Thompson
(1987). Por isso, o que se almeja é fortalecer as bases da escola que produz a
comunidade, mas como escola construída por nós”, de acordo com o jovem
quilombola da Vila Vizânia (Roda de conversa 2, jul.2023), enquanto aspiração de
liberdade, emancipação não apenas dos espaços escolares formais, mas de todos
os espaços sistematizados e dominados pela ocidentalidade de base capitalista.
Guiadas por “outras” bases, de acordo com Silva (2016), a Educação
Quilombola compreendida como um organismo amplo, portanto, como educação
inteira, necessita de “outros” espaços-tempos não orientados pela lógica do bater
ponto empresarial neoliberal que invadiu as escolas sistematizadas, mas pelas
curricularidades ao se construir na mistura de saberes ancestrais e circulares, se
constituem conforme Bispo (et. al. 2022) em “compostos de escolas” e/ou “outras”
escolas que educam a classe trabalhadora alargada.
Considerações
Educação e Movimento Social que transformam a vida, se despontam nas
lutas comunitárias cotidianas, como “melhor escola de ser quilombola” nos
demonstrou a Mulher Quilombola (epígrafe dessa exposição). Evidências de que
tanto educação, quanto movimento social são a um tempo processos de
formação.
Nessa perspectiva, considerando os elementos apontados como
características de formação econômico-cultural nos processos de luta contra lógica
23
capitalista, faz-se necessário ressaltar, focados na Educação Quilombola, que o ato
de Quilombolar-se perpassa fundamentalmente desse fazer-se, ou seja, dos
processos que movimentam e constroem as lutas comunitárias cotidianas. Por isso,
compreendemos que a Educação Quilombola é o principal composto dessa
experiência de formação social, por se tratar de uma gama de processos que se
entrecruzam em experiências de lutas desde a diáspora Africana, formações de
quilombos no Brasil, formação dos Movimentos Sociais Negros, Movimentos Sociais
Quilombolas e suas lutas até o tempo-presente, ou seja, a Educação Quilombola é o
elo “nós” que a filosofia africana nomeia por Ubuntu.
Nesse sentido, entendemos essas noções, como elementos que alargam
conceitos de lutas e produzem "outras” perspectivas para lutas de classes,
alargando inclusive as percepções de classe trabalhadora, para além dos chãos da
fábrica e de trabalhadoras/es assalariados no sentido clássico. Ao lutarem por
modos de vida, por suas identidades produzem “outras” lutas contra o capitalismo e
“outras” formas de se fazer social.
De base dessas percepções como experiências vividas, sentidas e
modificadas conforme Thompson (1981), observamos também, a necessidade de
pensar a formação da classe trabalhadora de nossos tempos, compreendendo-a por
meio de lutas identitárias, lutas comunitárias cotidianas, lutas de povos/comunidades
tradicionais como lutas descoloniais, contra-coloniais, contra hierarquias herdadas.
Lutas que aos seus modos também são lutas contra o capitalismo, portanto, lutas
das classes trabalhadoras, inclusive trabalhadores da terra, da Mãe Terra.
Portanto, como lutas produtoras de educação, consideramos para continuar
fazendo-pensando outras pesquisas, que o território da educação quilombola é o
Quilombo, ou seja, nessa experiência território e educação são a um só tempo forma
e conteúdo. Daí, como tornar o Quilombo, território da Educação Escolar Quilombola
e/ou educação sistematizada? Eis o convite que a mulher quilombola (epígrafe)
parece nos fazer, ousemos também ser movimento para transformar realidades e
construirmos processos realmente emancipatórios não somente para seres
humanos, mas para todo o organismo vivo chamado Terra.
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