V.23, nº 51 - 2025 (maio-agosto) ISSN: 1808-799 X
INVISIBILIDADE DOS TRABALHADORES E SUA REPRESENTAÇÃO NO CINEMA: “VAMOS ROUBAR UM BANCO!”1
O presente texto tem como objetivo apresentar a partir das representações cinematográficas, os trabalhadores invisibilizados socialmente, culturalmente e politicamente. Trabalhadores que possuem sua representação em filmes como uma possibilidade plano de “roubar um banco sem ser visto”. Através de uma seleção cinematográfica é apresentado filmes que permitem a discussão dessa invisibilidade, não só no cinema, mas na sociedade. O cinema como uma representação e ao mesmo um disparador da problemática.
Este texto tiene como objetivo presentar, a partir de representaciones cinematográficas, trabajadores social, cultural y políticamente invisibles. Trabajadores que tienen su representación en películas como un posible plan para “robar un banco sin ser vistos”. A través de una selección cinematográfica se presentan películas que permiten discutir esta invisibilidad, no sólo en el cine sino en la sociedad. El cine como representación y al mismo tiempo detonante del problema.
This text aims to present, based on cinematographic representations, workers who are socially, culturally and politically invisible. Workers who have their representation in films as a possible plan to “rob a bank without being seen”. Through a cinematographic selection, films are presented that allow the discussion of this invisibility, not only in cinema but in society. Cinema as a representation and at the same time a trigger for the problem.
1Ensaio recebido em 26/12/2024. Primeira Avaliação em 23/06/2025. Segunda Avaliação em 22/07/2025. Aprovado em 24/07/2025. Publicado em 06/08/2025.
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v23i51.65919.
2Doutor em Políticas Públicas e Formação Humana na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPFH/UERJ) - Brasil. Professor-Pesquisador da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), Rio de Janeiro - Brasil. Email: gregoriogalbuquerque@gmail.com.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/4949064010027837. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5668-5729.
As coisas que mais importam na vida são caras.
Rebeldia. Liberdade. Ideais. (La Casa de Papel – Berlim)
Roubar um banco? Como vamos fazer para não sermos vistos? E a resposta é sempre a mesma em todos os filmes: “entraremos como trabalhadores da limpeza, da cozinha, da obra,” aqueles que nunca são vistos por consequências das relações que são estabelecidas socialmente.
Esses trabalhadores invisibilizados refletem as desigualdades sociais e culturais da nossa sociedade. Trabalhadores que são essenciais para a manutenção da ordem e da higiene, elétrica, construção, que muitas vezes passam sem um nenhum “bom dia!”. O trabalho que esses trabalhadores são essenciais, mas raramente reconhecidos, sendo sempre considerado menor e menos digno de valorização por ser um trabalho “fácil”.
No cotidiano, esses profissionais são muitas vezes ignorados e treinados para serem imperceptíveis nos ambientes. Invisíveis aos olhos de quem está usando o mesmo espaço físico. Reflexo da desvalorização da contribuição do trabalho desses trabalhadores que mantém todos os lugares limpos sem serem vistos, ou ignorados. Seus salários são baixos e possuem longas horas de trabalho, realizadas nos horários menos visíveis, como nas primeiras horas da manhã ou durante a noite.
Outras condutas levam ainda mais a precarização é a rotatividade e a terceirização frequente em tais posições contribuem para a sua condição de invisibilidade e substitutibilidade. Essa falta de visibilidade é observada não somente no âmbito social, mas político também, onde as vozes desses trabalhadores raramente são ouvidas e debatidas.
A invisibilidade política social é um impedimento para que esses trabalhadores sejam atendidos, tornando um ciclo de desvalorização do trabalho, reafirmando a necessidade de torná-los visíveis e escutar suas demandas trabalhistas e de vida social, cultural e de saúde.
E quando essa invisibilidade se torna visível com o cinema? O objetivo deste texto é apresentar alguns filmes que apresentam a problemática da precarização do trabalhador de forma artística e crítica. A invisibilidade visível nas telas de forma crítica e artística.
No seu livro “Sub-humanos, o capitalismo e a metamorfose da escravidão”, o autor Tiago Muniz Cavalcanti (2021) apresenta um resgate histórico da transformação do conceito de escravidão até os dias atuais, e a perda da humanidade dos trabalhadores, como os entregadores de aplicativos.
A realidade mostra que essas formas “pré-capitalistas” de exploração foram metamorfoseadas, reconfiguradas e ajustadas à produção de mercadorias em benefício do capital. A escravidão é, portanto, um resultado das tendências atuais do capitalismo mundial, que obriga o trabalhador a aceitar toda e qualquer forma de exploração para sobreviver. (Cavalcanti, 2021, p. 126).
A expropriação dos trabalhadores não acontece somente da geração uberizada, de aplicativo, mas também de trabalhadores por exemplo de telemarketing representavam a exploração do capitalismo do trabalho e sua apropriação da sua humanidade. No curta “Bom dia, meu nome é Sheila”, o diretor Angelo Defanti, em 2009, mostra a partir de uma linguagem de documentário ficcional, a vida desses trabalhadores do setor de telemarketing e a expropriação do trabalhador e sua humanidade.
Figura 1- Imagem do curta "Bom dia, meu nome é Sheila00223
O curta mostra o processo de “coisificação” das relações desses trabalhadores que segundo o autor Cavalcanti é a escravização do trabalhador.
(...) escravizar, é portanto, coisificar. É suprimir ou restringir de maneira significativa a autonomia alheia. É privar o homem da sua dignidade ontológica, sua humanidade, furtar-lhe seus direitos mais caros, recusar-lhe seus direitos mais caros, recusar-lhe sua racionalidade e renegá-lo a mero objeto fungível, uma mercadoria descartável, uma coisa facilmente substituível. (Cavalcanti, 2021, p. 127)
3 Disponível em https://tamandua.tv.br/filme/?name=bom_dia_meu_nome_e_sheila. Acesso em 24 de dezembro de 2024.
No campo da imagem e da representação, o cinema transforma a relação da realidade visível. Segundo Aumont (1993, p.161) “A imagem cinematográfica é marcada por isso em sua relação com o tempo e sua credibilidade “documentária”. Analogia, dupla realidade, representação, signo, símbolo. ” A forma como vemos o mundo reflete a maneira como o produzimos imageticamente e como realizamos a crítica sobre ele. O modo como vemos é reflexo de como consumimos a própria realidade e as imagens produzidas dele.
A representação de um cachimbo é o próprio cachimbo, porém em uma leitura da semiótica a representação transforma o seu sentido, dependendo da sua contextualização social e cultural. Essa transformação de sentido pode acontecer também quando se faz uma modificação na própria imagem, seja digitalmente ou na própria criação
O autor Jacques Aumont (1993, p.14) discute a relação da imagem com a realidade e elabora a seguinte pergunta: “Que relação ela estabelece com o mundo real – ou seja: como ela o representa?”. Nesse sentido que se estabelece a relação dos filmes apresentados no texto com a realidade que eles representam, estabelecendo uma visão artística, porém crítica da realidade apresentada.
Segundo o autor Adorno,
O cinema e o rádio não precisam mais se apresentar como arte. A verdade é que não passam de um negócio, eles [os dirigentes] a utilizam como uma ideologia destinada a legitimar o lixo que propositalmente produzem. Eles se definem a si mesmos como indústrias, e as cifras publicadas dos rendimentos de seus diretores gerais suprimem toda dúvida quanto à necessidade social de seus produtos (Adorno e Horkheimer, 1985, p.114).
Então, esses filmes são uma forma de refuncionalizar essa indústria cultural com representações que façam pensar sobre determinadas realidades. Na concepção de Benjamin (1987 apud Graça, 1997), retiradas das experiências de Brecht no teatro, o cinema, assim como os meios de comunicação em massa, poderia ser usado para “refuncionalizar”, ou seja, reaproveitar a “capacidade comunicativa e produção extensiva da Indústria Cultural, em uma intenção educativa e conscientizadora, contra a própria dominação e alienação capitalista” (Benjamin, 1987 apud Graça, 1997, p.16). Uma educação que permitiria usar dos próprios produtos culturais para questioná-los e criticá-los, fazendo também assim uma crítica não somente a cultura e sim toda a estrutura da sociedade capitalista industrial.
“No fundo, Berlim e o Professor eram parecidos. Ambos criaram planos com base em um conceito poderoso: a ilusão.”
La Casa de Papel - Tóquio
Qual seria o plano perfeito para assaltar um banco, segundo os filmes? A resposta inicial seria “não ser pego”. Mas como isso aconteceria? Sendo invisível! Uma ilusão! E como seria? A resposta é sempre a mesma, “vamos entrar se vestindo de trabalhador da limpeza, ninguém vai nos ver.” Parece um plano perfeito, mas ao mesmo tempo demonstra uma invisibilidade de trabalhadores realizando seu cotidiano de trabalho, invisíveis diante as pessoas ao redor e a sociedade.
Talvez o professor da “Casa de Papel” tenha percebido essa ilusão através da invisibilidade e a primeira parte do plano iniciava com o mapeamento e estudo da rotina do Banco da Espanha. Esse estudo dos processos de trabalho sem ser vistos era realizado pela equipe vestida de trabalhadores da limpeza e sendo clientes comuns.
Figura 2 - Banner da série Casa de Papel
Já no filme, RED 2 - Aposentados e Ainda Mais Perigosos (2013), o objetivo da invisibilidade é entrar na embaixada do Irã em busca de informações.
Figura 3 - Cartaz do filme Red2
Na cena da ilusão, a equipe de limpeza é chamada para atender a uma emergência no banheiro, que está completamente alagado devido a uma bomba colocada em uma das privadas.
O cantor Stromae4, pensando na saúde desses trabalhadores, seja física ou mental, produziu uma música e um clipe chamado “Santé!(Saúde)5” que aborda a saúde desses trabalhadores invisíveis. A saúde como um brinde para esses trabalhadores que são explorados e invisibilizados e realizam uma insurgência no seu cotidiano de trabalho explorado a partir da dança e gestos.
Figura 4 - Frame do clipe - Trabalhador Atendente
O interessante na música é a representação que esses trabalhadores são apresentados através de uma forma oprimida e com frases como “para quem não tem
4 Stromae, cujo nome verdadeiro é Paul Van Haver, é um renomado cantor, compositor e produtor musical belga. Ele nasceu em 12 de março de 1985, em Bruxelas. Stromae ganhou fama internacional com seu hit "Alors on danse", que se tornou um sucesso em vários países ao redor do mundo em 2009. Ele é conhecido por seu estilo distinto que mistura hip hop, música eletrônica e influências da música francesa, com letras que frequentemente exploram temas sociais e pessoais com um toque de ironia e crítica social.
5 Clipe disponível em https://www.youtube.com/watch?v=P3QS83ubhHE. Acesso em 23 de dezembro de 2024.
(À ceux qui n'en ont pas) (...) Você passa a festa no banheiro (Toi, la fête tu la passes aux toilettes) (...) Sim, vamos comemorar quem não comemora (Oui, célébrons ceux qui ne célèbrent pas) (...) Mais uma vez, gostaria de levantar uma taça para quem não tem (Encore une fois, j'aimerais lever mon verre à ceux qui n'en ont pas). Saúde do trabalhador ou Saúde! Da comemoração da insurgência desse trabalhador.
Figuras 5-6-7 – Frames do clipe com diversos trabalhadores invisibilizados
O capitalismo rompe com este vínculo ao separar o trabalho da criação e transformá-lo em algo repetitivo, e extenuante, deixando para a arte, a criação. O trabalho industrial transforma o homem em um produto, fazendo-o perder seu domínio de criador do mundo material e assim perder também a realidade. "A autêntica realidade é o mundo objetivo das coisas e das relações humanas reificadas, diante das quais o homem é uma fonte de erros, de subjetividade, de inexatidão, de arbítrio e por isto é uma realidade imperfeita." (Kosik, 2011, p.123).
O ser do homem, em algumas fases do desenvolvimento social, perde a própria humanidade na medida em que o seu aspecto objetivo é separado de sua subjetividade. O aspecto objetivo é transformado em uma objetividade alienada e desumana, e a subjetividade humana em miséria, necessidade, vazio e meramente baseada no desejo. Para Kosik (2011) conhecer a realidade humana no seu conjunto e sua autenticidade, o homem dispõe da filosofia e da arte. "Porém qual a realidade que a arte revela para o homem? Talvez uma realidade que o homem já conhece e da qual deseja apenas apropriar-se sob outra forma, isto é, representando-a sensivelmente?" (Kosik, 2011, p.130).
Diante destas perguntas, o autor apropria-se do caráter dialético da práxis humana para demonstrar que a realidade revelada pelo homem através da arte imprime ao mesmo tempo a representação da realidade e a sua criação.
O cinema se torna a mediação das representações das relações estabelecidas com a realidade social desses trabalhadores, seguindo o caminho do autor Kosik quando ele diz que
Uma catedral da Idade Média não é apenas expressão e imagem do mundo feudal, é ao mesmo tempo um elemento da estrutura daquele mundo. Não só reproduz artisticamente a realidade da Idade Média, mas ao mesmo tempo também a produz artisticamente. Toda obra de arte apresenta um duplo caráter em indissolúvel unidade: é expressão da realidade, mas ao mesmo tempo cria a realidade, uma realidade que não existe fora da obra ou antes da obra, mais precisamente apenas na obra. (Kosik, 2011, p.128).
Contudo o valor artístico da realidade criada pela arte permanece mesmo com
o desaparecimento do seu mundo histórico e funções sociais. Kosik (2011) pergunta
o porquê dessa permanência e responde que na obra de arte a realidade fala ao homem.
A partir de um palácio renascentista é possível fazer induções sobre o mundo renascentista; por meio do palácio renascentista é possível adivinhar a posição do homem na natureza, o grau de realização da liberdade individual, da divisão do espaço e a expressão do tempo, a concepção da natureza. A obra de arte, contudo, exprime o mundo enquanto o cria. Cria o mundo enquanto revela e verdade da realidade, enquanto a realidade se exprime na obra de arte.(Kosik, 2011, p.131).
A realidade da obra é baseada na concepção dela, conscientemente e inconscientemente. Segundo o autor
Toda concepção de realismo ou do não realismo é baseada sobre uma consciente ou inconsciente concepção da realidade. O que seja realismo ou não realismo em arte depende sempre do que é a realidade e de como se concebe a própria realidade. (Kosik, 2011, p.121).
A criação, seja de uma realidade ou de um produto, é algo nobre que estabelece o vínculo direto entre o trabalho, como criação, e seus produtos mais elevados, isto é,
Os produtos indicam o seu criado, isto é, o homem, que se acha acima deles, e expressam do homem não apenas o que ele já é e o que ele já alcançou, mas também tudo o que ele ainda pode vir a ser. Os produtos não testemunham apenas a atual capacidade criativa do homem, mas também e em especial as suas infinitas potencialidades: Tudo o que nos circunda é obra nossa, obra do homem: as casas, os palácios, as cidades, os esplêndidos edifícios esparsos por toda a
terra. Mas parecem obras de anjos, contudo são obras dos homens... Quando vemos tais maravilhas, compreendemos que podemos criar coisas melhores, mais belas, mais graciosas, mas perfeitas do que criamos até hoje. (Kosik, 2011, p.122).
Para o autor, a alienação do trabalho no capitalismo e a emancipação potencial através da arte ressalta uma reflexão crítica essencial sobre a natureza do trabalho humano e sua expressão na arte e através dela que podemos não apenas refletir, mas também reconstruir a realidade, em um processo que vai além da mera representação para se tornar uma verdadeira criação, desvendando possibilidades para uma nova forma de existência humana que ultrapassa as limitações impostas pela lógica capitalista. Essa capacidade de a arte moldar e refletir a realidade oferece um poderoso contraponto à alienação do trabalho, propondo um caminho para a recuperação da totalidade e da humanidade perdidas no processo de trabalho moderno.
Na série “A casa de Papel”, o personagem Moscou fala “espere a tempestade passar. Quando você descobrir para onde o vento sopra, e quando ela se acalmar, só então você faz sua jogada.”
O autor Kosik (2011) não só critica a redução do trabalho a uma função mecânica sob o capitalismo, mas também celebra a arte como um meio vital de resistência e revelação, capaz de inspirar uma transformação social e individual profunda.
Em "A Casa de Papel", o conselho de Moscou sobre esperar para ver a direção do vento antes de agir ressoa profundamente com a análise de Kosik sobre a condição humana sob o capitalismo e o papel da arte. Essa ideia de paciência e observação pode ser vista como uma metáfora para a estratégia de resistência e mudança.
Enquanto Kosik destaca como o capitalismo transforma o trabalho em uma atividade desprovida de significado criativo, a arte surge como um campo de possibilidades, um espaço onde a resistência pode ser cultivada e a realidade, reimaginada. Portanto, tanto na arte quanto na vida, entender o ambiente e escolher o momento certo para agir são essenciais para transcender as estruturas existentes e forjar novas realidades. Essa dualidade entre a espera estratégica e a ação transformadora reflete uma poderosa lição sobre como a consciência e a criatividade
podem se entrelaçar para desafiar e alterar as dinâmicas de poder em nossas sociedades.
AUMONT, J. A imagem. Campinas, SP: Papirus, 1993.
GRAÇA, M. da S. et all. Cinema brasileiro: três olhares. Niterói: EDUFF, 1997.
KOSIK, K. Dialética do concreto. Trad. Célia Neves e Alderico Toríbio. 2.ed. 9ª reimpressão. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2011.