V.23, nº 50 - 2025 (janeiro-abril) ISSN: 1808-799 X
MOVIMENTO DOS CURSOS PRÉ-VESTIBULARES POPULARES:
EXPERIÊNCIAS NA LUTA PELO ACESSO DA POPULAÇÃO NEGRA
AO ENSINO SUPERIOR1
Priscila Beralda Moreira de Oliveira2
Resumo
Este artigo em como objetivo refletir sobre as experiências e particularidades da formação realizada
no interior do Movimento dos Cursos Pré-Vestibulares Populares (MCPVP) pelos cursos que, a partir
do protagonismo do Movimento Negro (MN), trabalham a questão racial. A partir da escolha pelo
método histórico-dialético, foi um estudo com abordagem qualitativa que recorreu a pesquisa
bibliográfica, documental e de campo com os cursos pré-vestibulares populares Educafro e UNEafro.
Palavras-chave: Movimento dos Cursos Pré-Vestibulares Populares; Questão racial; acesso ao
ensino superior.
MOVIMIENTO DE CURSOS PREUNIVERSITARIOS POPULARES: EXPERIENCIAS EN LA LUCHA
POR EL ACCESO DE LA POBLACIÓN NEGRA A LA EDUCACIÓN SUPERIOR
Resumen
Este artículo tiene como objetivo reflexionar sobre las experiencias y particularidades de la formación
realizada dentro del Movimento dos Cursos Cursos Pre-Vestibulares Populares (MCPVP) a través de
cursos que, a partir del protagonismo del Movimiento Negro (MN), trabajan cuestiones raciales. A
partir de la elección del método histórico-dialéctico, se trató de un estudio con enfoque cualitativo que
utilizó investigación bibliográfica, documental y de campo con los cursos preuniversitarios populares
Educafro y UNEafro.
Palabras clave: Movimiento de Cursos Preuniversitarios Populares; Cuestión racial; acceso a la
educación superior.
MOVEMENT OF POPULAR PRE-UNIVERSITY COURSES: EXPERIENCES IN THE FIGHT FOR
ACCESS OF THE BLACK POPULATION TO HIGHER EDUCATION
Abstract
This article aims to reflect on the experiences and particularities of the training carried out within the
Movimento dos CursosCursos Pre-Vestibulares Populares (MCPVP) through courses that, based on
the protagonism of the Black Movement (MN), work on racial issues. Based on the choice of the
historical-dialectic method, it was a study with a qualitative approach that used bibliographic,
documentary and field research with the popular pre-university courses Educafro and UNEafro.
Keywords: Movement of Popular Pre-University Courses; Racial issue; access to higher education
2Doutora em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), São Paulo
- Brasil. Docente na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) e Assistente Social na
Prefeitura Municipal de São Paulo (PMSP), atuando na Secretaria Municipal de Assistência e
Desenvolvimento Social (SMADS) E-mail: prinicanor@gmail.com.
Lattes: https://lattes.cnpq.br/5321515084704942. ORCID: https://orcid.org/0009-0006-7836-2281.
1Artigo recebido em 07/01/2025. Primeira Avaliação em 28/01/2025. Segunda Avaliação em
11/02/2025. Terceira Avaliação em 11/02/2025. Aprovado em 13/03/2025. Publicado em 09/04/2025.
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v23i50.66051
1
Introdução3
O contexto histórico de 2003 a 2014 é marcado pela ampliação da política de
acesso à educação superior brasileira e pela primeira experiência no país de uma
IES pública a adotar a política de cotas raciais4 para o ingresso de negros e negras a
este nível de ensino, sendo estas expressões das ações afirmativas no Brasil.
Houve neste contexto histórico, como nos apresentam Moreira et al. (2017), a
ampliação do número de vagas no ensino superior brasileiro e a criação de turmas
no período noturno em vários cursos de graduação não integrais, o que contempla a
realidade de expressiva parcela da classe trabalhadora cujas condições de trabalho
interferem e dificultam o ingresso e permanência no curso superior.
Essas adaptações podem ser consideradas conquistas de movimentos sociais
dos quais podemos destacar o Movimento Negro (MN) 5, que vem historicamente
denunciando a falta de acesso da população não branca aos bancos universitários e
que alcançou, como resposta, a implantação de políticas públicas6 para aumentar o
acesso ao ensino superior com maior inclusão social deste grupo (Moreira et al.,
2017).
No entanto, também neste contexto, direcionado pela hegemonia do
neoliberalismo, e das leis de mercado7, um profundo investimento de recursos
7Como afirma Roberto Leher (2021, p. 1), “o que efetivamente particulariza a mercantilização da
educação superior no Brasil é a vertiginosa tendência de crescimento da modalidade a distância, a
presença de fundos de investimentos no controle das instituições de ensino e a abertura de capital
6 Políticas públicas para a ampliação, acesso e permanência ao ensino superior público: Programa de
Reestruturação e Expansão das Universidades (Reuni), iniciado em 2003, o Programa Nacional de
Assistência Estudantil (PNAES), criado em 2008, e o Sistema de Seleção Unificada (Sisu),
implantado em 2010, permitindo a utilização das notas do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem),
criado em 1998. Ao ensino superior privado: Programa Universidade para Todos (ProUni), criado em
2005, e o Fundo de Financiamento Estudantil (Fies), criado em 1999 (Moreira et al., 2017).
5 Adotamos a definição de MN trazida por Gomes (2019,p.24) “uma das mais diversas formas de
organização e articulação das negras e dos negros politicamente posicionados na luta contra o
racismo e que visam a superação deste perverso fenômeno na sociedade. Participam desta definição
os grupos políticos, acadêmicos, culturais, religiosos, e artísticos com o objetivo explícito de
superação do racismo e da discriminação racial, de valorização e afirmação da história e da cultura
negras no Brasil, de rompimento das barreiras racistas impostas aos negros e às negras na ocupação
de diferentes espaços e lugares na sociedade(...)”. Esta definição de MN nos contempla porque nos
provoca a entendê-lo não como um movimento único, homogêneo e estático. É uma perspectiva que
nos permite identificar atores diversos, em contextos diversos com a função comum de questionar os
pilares racistas da sociedade brasileira.
4 Vale registrar que não sem pressão do MN a Lei de Cotas (Lei 2.711 de 29 de agosto de 2012) só
foi aprovada em 2012.Com ela, todas as IES federais do país foram obrigadas a reservar parte de
suas vagas para alunos oriundos de escolas públicas, de baixa renda, e negros, pardos e indígenas.
3 Uma versão simplificada deste texto foi apresentada no XIII Congresso Brasileiro de Pesquisadores
(as) Negros(as) setembro/2024 com o título “Movimento dos cursos pré-vestibulares populares e raça:
a disputa pela questão racial e o acesso da população preta, pobre e moradora da periferia ao ensino
superior”.
2
públicos no setor privado, concretizando esta ampliação de ofertas de vagas
majoritariamente nas IES privadas na cidade São Paulo.
Interessa-nos, a partir destas contradições, olhar para os limites e
possibilidades de fortalecimento da luta travada pelos movimentos sociais na defesa
de projetos de educação que disputem outra hegemonia na contramão do viés
mercadológico que direciona esta ampliação, com a escolha pelo recorte racial.
Entre os atores que tencionam para que as políticas de ampliação de acesso ao
ensino superior atendam aos interesses da classe trabalhadora encontra-se o
Movimento dos Cursos Pré-Vestibulares Populares (MCPVP).
Nascimento (2012) defende ser esse movimento composto por uma grande
diversidade de cursos pré-vestibulares populares, sendo o ponto que os une o fato
de serem destinados à preparação de estudantes que compõem “camadas
populares” e pertencentes a grupos sociais discriminados e marginalizados, como
pobres, negros, indígenas, nordestinos, população lgbtquia+ etc.
Para mensurar a diversidade deste movimento, recorremos a Maia (2022) que
registra existir em 2004 cerca de 1.800 pré-vestibulares “cada um com uma linha de
trabalho específica, mas todos com o mesmo objetivo: contribuir para o ingresso dos
grupos sociais populares ao ensino superior” (Maia, 2022, p.1).
Os cursos pré-vestibulares populares se entendem e são reconhecidos como
movimento social, têm na ativa presença da militância negra um ator fundamental
para seu surgimento, assim como para a disputa em seu interior pela hegemonia da
questão racial na luta pelo acesso da classe trabalhadora pobre e negra ao ensino
superior.
Importa-nos compreendê-lo em sua potência e enfatizar as dimensões mais
reveladoras de seu caráter emancipatório, reivindicativo e afirmativo, que o
caracterizam “como um importante ator político e como um educador de pessoas,
coletivos e instituições sociais ao longo da história e percorrendo as mais diversas
gerações” (Gomes, 2019, p. 24).
Este artigo tem como objetivo refletir sobre as experiências e particularidades
da formação realizada no interior do Movimento dos Cursos Pré-Vestibulares
Populares (MCPVP) pelos cursos que a partir do protagonismo do Movimento Negro
das empresas líderes na bolsa de valores. Com efeito, grande parte dessas novas matrículas é
ofertada na modalidade de graduação a distância: entre 2012 e 2019 as matrículas nesta modalidade
mais do que dobraram, alcançando perto de dois milhões de estudantes”.
3
(MN) trabalham e disputam a questão racial contribuindo para a disputa por um
projeto de educação antirracista. É derivado da pesquisa de Doutorado realizada no
Programa de Estudos Pós-graduação em Serviço Social da PUC-SP8.
Partimos do pressuposto de que as experiências de formação antirracista dos
cursos pré-vestibulares populares que trabalham de maneira direta ou indireta a
questão racial e que compõem o MCPVP podem constituir-se como possibilidade de
uma preparação da classe trabalhadora que não se restrinja à formalidade do
acesso à formação superior, tal como expressar estratégias de organização e
pressão pela efetivação de políticas públicas.
Escolhemos para direcionar nosso olhar nesta investigação e análise do
nosso objeto o método materialismo histórico-dialético em que o conhecimento da
realidade não é apenas a simples transposição dessa realidade para o pensamento,
pelo contrário, consiste na reflexão crítica que se a partir de um conhecimento
acumulado e que irá gerar uma síntese, o concreto pensado (Quiroga, 1991 apud
Lima; Mioto, 2007, p. 40).
A análise das informações obtidas durante a realização da pesquisa
privilegiou enquanto referencial teórico as categorias centrais do pensamento
marxista: a totalidade, a história e a contradição.
De acordo com Minayo (2010, p. 300), “é esse caráter de abrangência que
tenta, de uma perspectiva histórica, cercar o objeto de conhecimento por meio da
compreensão de todas as suas mediações e correlações, constituindo a riqueza, a
novidade e a propriedade da dialética marxista”.
A dialética, enquanto método dialético de abordagem da realidade, propõe
que o pesquisador se coloque diante dos fatos, interrogando-se sobre todos os
aspectos, procurando sua compreensão global e reconhecendo nele seu dinamismo
histórico com vistas a desvendar algo ainda não percebido de forma imediata.
Esta foi uma pesquisa social com abordagem qualitativa. A pesquisa
qualitativa apreende um nível da realidade que não pode ser quantificado. Trabalha
com o “universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, o
8 Tese de doutorado intitulada “O Movimento dos Cursos Pré-Vestibulares Populares na cidade de
São Paulo (2003-2014) e a questão racial: impacto na formação do assistente social” defesa realizada
em 06 de novembro de 2023.
4
que corresponde a um espaço mais profundo das relações, dos processos e dos
fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis” (Minayo,
1994, p. 22).
A escolha pela abordagem qualitativa se deu a partir da compreensão de que
temos uma prática que perpassa “demandas, carências e necessidades”, e é
possível conhecê-las e identificá-las por meio da escuta do que o outro tem a nos
dizer e não somente “trabalhando com indicadores, com tabelas, com índices, com
referências teóricas que a universidade nos oferece” (Martinelli, 199, p. 24).
Nosso objeto de estudo se constitui a partir de profundas contradições que se
revelaram pouco exploradas, com uma bibliografia restrita no que se refere ao
MCPVP, porém densa e orgânica por se tratar majoritariamente de produções
teóricas de militantes do MN e do MCPVP.
A pesquisa qualitativa que aqui recorremos nos direcionou para analisar para
além do que se produziu sobre esta realidade, não se tratando de negar os fatos,
mas de buscarmos compreender com maior cuidado particularidades e contradições
a partir das experiências dos diferentes sujeitos que o compõem.
Para além de comprovarmos ou negarmos uma afirmativa inicial a partir de
números, buscamos identificar novos elementos sobre esta realidade inédita no
país, quando pensamos o amplo acesso do(a) trabalhador(a) ao nível superior a
partir de uma análise cuidadosa das contradições que direcionam este processo,
com foco no papel dos cursos pré-vestibulares populares que trabalham a questão
racial para o acesso da população preta, pobre e moradora da periferia ao ensino
superior.
Neste estudo exploramos a pesquisa bibliográfica, a pesquisa de campo e a
pesquisa documental.
A partir do objetivo geral do nosso estudo, considerações possíveis com a
aproximação do campo por meio da pesquisa exploratória e de leituras e análise
bibliográfica sobre o tema, identificamos o protagonismo de dois cursos
pré-vestibulares ligados diretamente ao MN e que disputam a questão racial no
interior do MCPVP, sendo eles o Educafro e o UNEafro Brasil.
Segundo Castro (2019) entre os atores expressivos que contribuíram para
fortalecer o Movimento Negro e a luta pela democratização do ensino superior estão
5
os cursos pré-vestibulares populares que definimos como sujeitos para nossa
pesquisa.
Em 1993 nasce, segundo o autor, uma das maiores e mais importantes
expressões e referências da luta contemporânea pela igualdade racial e
democratização do acesso ao ensino superior no Brasil, o Pré-Vestibular para
Negros e Carentes(PVNC), que se inicia no Rio de Janeiro por meio da influência e
da ação militante de Frei David e, de outro lado, de militantes do Movimento Negro
além de populares que almejavam um movimento popular autônomo a qualquer
instituição. O PVNC teve crescimento significativo durante os anos de 1993 a 1997
(Castro, 2019).
Divergências internas levam “à criação, em 1997 em São Paulo, da Educação
para Afrodescendentes e Carentes (Educafro), sob a liderança de Frei David e dos
Agentes Pastorais Negros (APNs)” (Castro, 2019, p. 201).
Em 2009, novas divergências de concepções de movimento e posicionamento
individuais levaram a Educafro a uma ruptura, desembocando em mais um
movimento na luta pela democratização do acesso ao ensino superior e combate
antirracista, a União de Educação Popular para Negros(as) e Classe Trabalhadora
(UNEafro), “movimento social surgido a partir de contradições inconciliáveis no
interior da Educafro” (Castro, 2019, p. 206).
Quadro 1– Cursos pré-vestibulares populares escolhidos para a pesquisa
Curso/
sujeito coletivo
Ano de criação do movimento de origem
Ano de criação do
movimento independente
Educafro
1993 –PVNC (Pré-Vestibular para Negros e Carentes)
1997
UNEafro
1997 – Educafro
2009
Fonte: Elaborado pela autora (2023)
Norteadas pelo objetivo geral da nossa pesquisa, escolhemos entrevistar
duas lideranças/coordenadores(as)dos cursos pré-vestibulares populares, definidos
como sujeitos deste estudo, cujo vínculo tenha se realizado no contexto histórico
que definimos para nosso estudo (2003-2014); uma liderança por curso.
Entrevistamos 04 assistentes sociais9, escolhidas por dois expressivos
motivos: 1) no início do contexto histórico demarcado para nosso estudo
9 A escolha por entrevistar assistentes sociais que se formaram em IES na cidade de SP cujo curso
de serviço social é quase que exclusivamente oferecidos por IES privadas justifica-se pelo objetivo
geral da tese que deu origem e a este artigo.
6
(2003-2014), a UNEafro ainda não se constituía um movimento autônomo, sendo a
ruptura com a Educafro marcada no ano de 2009; 2) o fato de a Educafro ser um
movimento que trabalha fortemente o acesso do trabalhador ao ensino superior em
IES privadas por meio de convênios facilitou o contato com profissionais que
puderam indicar assistentes sociais no perfil definido para o estudo (quatro
assistentes sociais que tiveram vínculo com MCPVP em cursos que trabalhem a
questão racial antes do acesso à graduação em IES privada no período de 2003 a
2014).
O conteúdo da pesquisa de campo foi sistematizado em instrumental
elaborado para este fim e utilizado como referência metodológica neste estudo. As
referências às falas do(a)s sujeito(a)s entrevistado(a)s serão expostas conforme a
identificação que registramos no quadro tal como segue: sujeito(a)s numerados de 1
a 6 e identificados como coordenador(a)[CD] e assistente social [AS].
Quadro 2–Descrição dos sujeitos entrevistados
7
COORDENADORESENTREVISTADOS
Ano
pré-vestib
ular
Graduação
ano
Bolsa
Autodeclaração
racial
Idade
Sujeito
1 [CD]
2014
Ciências
Sociais,
2015
IES pública
Negro
23
Sujeito
2 [CD]
2006
Pedagogia,
2007
100%
Educafro
Não registrado
33
ASSISTENTESSOCIAIS ENTREVISTADAS
Bairro
durante
cursinho/
faculdade
Núcleo
Educafro
Ano
Curso
Ano
Gradua-
ção
IES
Bolsa
Autodeclara-ç
ão racial
Idade
Sujeito
3 [AS]
Casa Verde
Pari
2004
2005-20
08
Universidade
São
Francisco
Pari
100%
Educafro
Preta
40
Sujeito
4 [AS]
Mandaqui
Armênia
2004
2005-20
08
Universidade
São
Francisco
Pari
100%
Educafro
Negra
47
Sujeito
5 [AS]
Brasilândia
Brasilândi
a
2003
2004-20
07
Universidade
São
Francisco
Pari
100%
Educafro
Negra
51
Sujeito
6 [AS]
Tremembé
Pari
2003
2005-20
08
Universidade
São
Francisco
Pari
100%
Educafro
Descendente
de japoneses
38
Na organização deste artigo, inicialmente realizaremos breve reflexão sobre a
luta e resistência do movimento negro pelo acesso da população negra à educação
formal desde o período posterior a abolição da escravatura.
Em seguida abordaremos a luta pelo acesso da população negra à educação
como uma ponte de luta comum nas diferentes fases do MN, enfatizando o caráter
emancipatório deste acesso defendido pelo Movimento Negro Unificado (MNU) já na
década de 1980.
Refletiremos sobre o MCPVP enfatizando a fundamental importância do MN
para sua gênese tal como para a disputa pela centralidade da questão racial no
interior deste movimento na luta pelo acesso da população negra, pobre e moradora
das periferias ao ensino superior. Finalizaremos com algumas considerações.
Trajetórias de luta do movimento negro pelo acesso a educação formal
(1888-1980): a resistência sempre existiu
As primeiras décadas depois da Abolição da Escravatura, em 1888, e a
Proclamação da República, em 1889, foram decisivas para o futuro da população
negra no Brasil (Domingues, 2008, p. 517) que se tornou um presente marcado
pelas profundas desigualdades raciais.
Isto porque a chamada ‘liberdade’ da população afrodescendente foi fruto do
desgaste das relações econômicas, políticas e sociais em um contexto histórico em
que já não comportava a escravidão.
[…] Em uma escala econômica e cultural, as desigualdades
presentes nas vidas da população negra têm resquícios
incontestáveis dos quase 400 anos em que o Brasil estruturou um
dos regimes escravocratas mais cruéis do mundo. O país foi o último
da América do Sul a abolir formalmente a escravidão, que tinha uma
organização econômica baseada na exploração da força do trabalho
de pessoas negras, configurando uma característica estrutural que
permanece marcante no panorama em que essa população ainda
(sobre)vive (Lisboa, 2021, p. 71).
Era impossível para a população afrodescendente ser livre, isto é, ser cidadã,
em um contexto no qual predominavam os ideários do racismo científico (como
darwinismo social, determinismo evolucionista, arianismo, eugenia) e as teorias do
branqueamento da nação (Domingues, 2008, p. 517-518). Assim, a ideia de raça e
8
superioridade racial foi – e ainda é – um dos pensamentos que tendem a legitimar as
relações de dominação (Lisboa, 2021 p. 71).
Muitos intelectuais atribuíam a inferioridade do povo brasileiro à herança
biológica e cultural da “raça negra” impressa no fenômeno da mestiçagem. Porém,
esses pressupostos racistas não ficaram limitados aos meios acadêmicos, tendo
sido divulgados por jornalistas por meio da imprensa, incorporados nos postulados e
discursos médicos e debatidos por políticos, que, aliás, os utilizaram na elaboração
e implementação de programas governamentais (Dávila, 2006 apud Domingues,
2008, p. 517-518).
Tais práticas tornam, ainda hoje, naturalizados valores e crenças sobre a
inferioridade da população negra, alimentando o pensamento hegemônico de
dominação e opressão.
Para a população negra, o contexto pós-Abolição foi marcado por uma
inclusão marginal e de práticas de discriminação racial e tratamento diferenciado em
relação à população branca. A cidadania plena não contemplava a população negra
recente e oficialmente liberta (Domingues, 2008, p. 518).
No entanto, diferente do que se tem historicamente afirmado na perspectiva
do colonizador, a população de negros e negras brasileiras sempre se organizaram
contra a exploração e as condições desumanas as quais foram submetidos, seja a
partir da exploração do trabalho escravo, seja após este contexto até os dias atuais.
Como nos apresenta Santos (2014) no prefácio que elabora para coroar
Gomes (2019) na necessária reflexão sobre o papel educador do MN:
[…] A trajetória de luta do MN brasileiro e a produção engajada da
intelectualidade negra como integrantes do pensamento que se
coloca contra os processos de colonização incrustados na América
Latina e no mundo; movimento e intelectualidade negra que indagam
a primazia da interpretação e da produção eurocentrada de mundo e
do conhecimento científico. Questionam o processo de colonização
de poder, do ser e do saber presentes na estrutura, no imaginário
social e pedagógico latino-americanos e de outras regiões do mundo
(Gomes, 2019, p. 14-15).
Santos (2015) problematiza o fato de educadores e cientistas sociais não
reconhecerem o papel do MN em sua diversidade na luta por educação formal e de
qualidade, assim como a reprodução de sua não existência no campo científico,
aspecto evidente em pesquisas e estudos sobre educação popular, em que feitos e
9
narrativas de intelectuais negros(as) são, inúmeras vezes, ignorados(as) (apud
Lisboa, 2021, p. 72-73).
Na contramão desta realidade, nos cabe afirmar que frente à situação em que
se encontrava a população negra pós-escravidão
houve a união e luta coletiva por meio de reivindicações e projetos,
pela conquista de respeito, reconhecimento, dignidade,
empoderamento, participação política, emprego, educação, terra.
Dessas bandeiras de luta, uma das prioritárias foi a da defesa da
educação. Afinal, o analfabetismo era um dos principais problemas
que assolavam a “raça negra”. Em 1918, o jornal O Alfinete [de 22
set. 1918] revelava que o analfabetismo “predominava em mais de
dois terços de tão infeliz raça” (Domingues, 2008, p. 518, grifo
nosso).
Nesta breve contextualização da luta pelo acesso da população negra à
educação formal, vale ressaltar que a Imprensa Negra (IN) paulista e as associações
negras que nasceram nas primeiras décadas do século XX, foram importantes
instrumentos desta luta e depositavam na educação, senão a solução, pelos menos
um pré-requisito indispensável para a resolução dos problemas da “gente de cor” na
sociedade brasileira (Domingues, 2008, p. 518).
A compreensão e defesa deste acesso como uma possibilidade de
enfretamento de ciclos de pobreza e desigualdade da população negra brasileira
desde contexto pós-escravidão dialogam com elementos que se destacaram em
nossa pesquisa de campo, quando ainda em contexto atual, o acesso à educação,
também quando focamos no ensino superior, é um importante valor defendido pela
população negra, como acesso fundamental para uma ‘vida melhor10, como
podemos identificar nas falas que seguem:
[…] Pensar no curso superior, na verdade isto foi incentivado em
casa. A minha mãe […], a minha mãe sempre incentivou eu e a
minha irmã, né? Nós somos as duas, então desde pequena ela
sempre colocou a importância do estudo já que para gente conseguir
algo melhor na vida, até porque ela teve uma vida bem simplória, né?
Então ela sempre valorizou e incentivou muito. (Sujeito 3 [AS], 2023).
10 Vale enfatizar, como podemos observar nas falas, que este acesso ainda se apresenta em defesa
de ‘uma vida melhor’ intimamente vinculada a uma melhor colocação no mercado de trabalho, a partir
do pensamento hegemônico, sem crítica ao sistema capitalista, realidade que explicita a importância
de espaços que apresentem reflexões sobre o caráter emancipatório da educação e /ou minimamente
a importância da disputa por projetos de educação que dispute outra hegemonia.
10
[…] Inserir as pessoas mais carentes, que nem eu e outras pessoas,
de passarem por uma universidade, entendeu? Então isto é, mudou
a vida de muita gente, como mudou a minha, por exemplo. Se eu não
tivesse feito a faculdade, eu ia fazer o quê? Porque com o nível de
escolaridade do ensino médio hoje em dia você trabalha, você não
tem tanta chance de trabalhar de alguma coisa assim para ganhar
um pouquinho mais, entendeu? Então você ia ficar sempre naquela
estaca do salário-mínimo, do salário-mínimo e meio, entendeu? E ia
construir o que da vida? Ia proporcionar o que para os filhos? (Sujeita
5 [AS], 2023).
Entre as associações que lutavam pela educação formal para a população
negra, destaca-se a Frente Negra Brasileira (FNB), considerada uma das
organizações mais importante dos movimentos negros (Lisboa, 2021, p. 75).
Com o golpe de estado de 3 de outubro de 1930, Getúlio Vargas assume o
poder no Brasil, iniciando uma conjuntura de polarização política. As forças políticas
mobilizaram-se em duas frentes: a da esquerda e a da direita. No entanto, tanto as
organizações políticas de base popular quanto os partidos das elites não incluíam
em seus programas a luta em favor da população negra.
Desamparados pelo sistema político tradicional e acumulando a experiência
de décadas em suas associações, um grupo de “homens de cor” fundou a Frente
Negra Brasileira (FNB), no dia 16 de setembro de 1931 (Domingues, 2008 p. 521),
cunhando o recorte racial na luta contra as injustiças sociais.
A importância da educação como uma pauta expressiva de luta neste
movimento pode ser percebida considerando que o Departamento de Instrução da
FNB, também conhecido como Departamento de Cultura ou Intelectual, foi o maior e
mais expressivo neste coletivo.
Um de seus motes propagandísticos conclamava: “Eduquemos mais
e mais os nossos filhos, dando-lhes uma educação e uma instrução
de acordo com as suas aspirações” (A Voz da Raça, 28 out. 1933, p.
2). O conceito de educação articulado pela entidade era amplo,
compreendendo tanto o ensino pedagógico formal quanto a formação
cultural e moral do indivíduo. A palavra educação era usada
frequentemente com esses dois sentidos. a palavra instrução
tinha um sentido mais específico: de alfabetização ou escolarização
(Domingues, 2008, p. 522).
Acreditava-se que os negros, pela própria dificuldade de acesso ao ensino
formal, na medida em que se desenvolvessem no campo educacional, seriam
respeitados, reconhecidos e apreciados pela sociedade mais abrangente. A
11
educação teria o poder de abolir o preconceito racial e, em última instância, de
erradicá-lo (Domingues, 2008).
Historicamente ao negro e a negra os territórios escolares foram negados ou,
quando havia obrigatoriedade da lei, era oferecida de maneira hostil e excludente,
explicitando o pensamento dominante de que o conhecimento deveria ser restrito à
população branca.
Olímpio Moreira da Silva (apud Domingues, 2008) denunciava a existência de
“grupos escolares” que aceitavam os negros porque eram obrigados, porém, seus
professores procuravam “menosprezar a dignidade das crianças negras,
deixando-as ao lado para que não aprendessem, e os pais, pobres e desacorçoados
pelo pouco desenvolvimento dos filhos, resolvessem tirá-los” (A Voz da Raça, 17 fev.
1934, p. 2 apud Domingues, 2008, p. 527).
Em que pese não nos interessa explorar esta trajetória educacional, à luz dos
elementos expostos até aqui, - no que se refere aos obstáculos historicamente
impostos a população negra para a permanência nos ambientes escolares -, nos
permite refletir ainda em contextos atuais sobre a hostilidade em que a população
negra é recebida pelos ambientes escolares e IES no Brasil, assim como a
dificuldade de elaboração de políticas públicas comprometidas para além do acesso,
com a permanência desta população.
Também, nos aproxima da compreensão desta construída naturalização de
um sentimento de não pertencimento da população negra ao ensino inclusive o
ensino superior, tal como identificamos nas falas da(o)s sujeita(o)s na pesquisa de
campo.
[…] Eu nem imaginava como ingressava no ensino superior, eu não
tinha ideia, e não tinha muita expectativa de um curso específico até
porque eu fui o primeiro a entrar na universidade na minha família, da
minha família por parte de mãe e da minha família por parte de pai
também, né? E dentro do meu núcleo familiar (Sujeito 1 [CD], 2023)
[…] Eu fiz ensino médio supletivo, porque na época eu engravidei
jovem, eu tive meu filho, esperei ele crescer um pouquinho para
voltar a estudar, voltei a estudar, concluí o ensino médio, mas
naquela ocasião a gente não tinha a menor possibilidade de entrar
em uma universidade, isso nem passava pela cabeça da gente, né?
A pobre de periferia, né? E, tipo, mãe e tal essas coisas, então, eu
nem imaginava, né? (Sujeito 2 [CD], 2023)
12
[…] Quando eu cheguei na oitava série minha mãe falou assim: “até
a oitava série eu consegui te dar, agora você vai ter que trabalhar e
se você quiser fazer o colegial, assim, você vai ter que se virar,
entendeu? (Sujeita 5 [AS], 2023)
[…] Para mim fazer faculdade era um sonho, minha mãe sempre
falou que faculdade era coisa de rico, entendeu? Não era [coisa de],
pobre não fazia faculdade, né? (Sujeita 5 [AS], 2023)
[…] Quando eu entrei na faculdade, no primeiro dia de aula, foi muito
emocionante, sabe? Eu comecei a chorar, era para mim, era uma
coisa muito emocionante assim, sabe? Parecia que era um outro
universo, né? Era inacessível para mim esse universo da faculdade
(Sujeita 5 [AS], 2023).
Fica evidente nas falas da(o)s sujeita(o)s a reprodução de um valor
perpetuado pelo racismo, todas são de pessoas negras que tinham no imaginário a
certeza de que a formação superior não seria uma realidade, ou estaria tão distante
que muito provavelmente não seria alcançada.
O enfrentamento desses mecanismos para manter a população negra
afastada da educação em seus diferentes níveis, com ações concretas de denúncia
e enfrentamento do racismo, materializa-se pela atuação ativa do MN.
Santos (2014) aponta
[…] Podemos dizer, sem exageros, que os movimentos negros se
empenharam desde seus primórdios no reajustamento das políticas
educacionais com vistas a realocar, com justiça e dignidade, um
contingente que esteve desde sempre marginalizado da vida
nacional, exceto como força de trabalho escravo (Santos, 2015 apud
Lisboa, 2021, p. 74).
A FNB, por meio de suas lideranças, alertava sobre as repercussões
negativas das abordagens preconceituosas com que autores de livros enfocavam a
história do negro e de sua participação na formação do Brasil. “Exercer no aluno
negro, ao transmitirem uma imagem de fracasso, uma imagem que contribuía para
diminuí-lo e não para elevá-lo, como deveria ser a função da escola” (Pinto, 1993
apud Domingues, 2008, p. 528).
Essas lideranças procuraram esboçar ainda que por um prisma mítico e
esquemático uma nova abordagem para a história do negro. Alguns fatos da
história do Brasil Colônia (como a “heroica” expulsão dos holandeses do Nordeste
brasileiro e a “epopeia” do Quilombo dos Palmares) eram frequentemente
13
relembrados; o objetivo era comprovar a participação decisiva do elemento negro no
berço da “civilização” brasileira (Domingues, 2008, p. 528).
Outra tentativa nesta perspectiva por parte dos dirigentes frente negrinos foi
de formar um centro de estudo, agregando os negros “cultos, os que estudam e os
que querem aprender” (A Voz da Raça, jun. 1936, p. 4 apud Domingues, 2008, p.
529). Pensaram ainda em criar um Clube dos Intelectuais, para reunir “estudiosos,
poetas, jornalistas ou escritores” negros. Além de espaço de intercâmbio social e
cultural, o clube ansiaria garantir a publicação tanto de um jornal literário como de
livros dos intelectuais negros (A Voz da Raça, ago. 1937, apud Domingues, 2008, p.
529).
A atuação da FNB foi tão expressiva a ponto de em 1936 deixar de ser um
movimento social e se tornar um partido político. Porém, por um curto prazo, pois no
ano de 1937 o golpe deflagrado pela ditadura de Getúlio Vargas dissolveria todos os
partidos, entre eles a FNB (Lisboa, 2021, p. 75).
Outra organização negra expressiva na luta antirracista e que resgatamos
para exaltar sua importância na preparação do terreno que será semeado pós-1980
no que tange à pressão ao Estado para olhar e concretizar políticas públicas no
campo da educação foi o Teatro Experimental do Negro (TEN), fundado em 1944, no
estado do Rio de Janeiro, por Abdias Nascimento. Entre seus principais objetivos
destacava-se a formação de atores negros engajados na luta contra o racismo e a
reconstrução da herança africana na sociedade brasileira (Lisboa, 2021, p. 75).
Interessa-nos destacar que a IN, a FNB e o TEN foram movimentos sociais
organizados pela população negra para enfrentar o racismo e lutar por direitos
elementares, como a educação formal (Lisboa, 2021, p. 75).
Para Santos (2014) essas três instituições são expressão do empenho do MN
para a garantia da educação para a população negra no período pós-escravismo.
Para o autor, o ponto de partida dessas entidades pode não ter sido o mesmo, mas
o porto de chegada indiscutivelmente é: elas destacaram-se por proporcionar um
conjunto complexo de propostas comprometidas com a formação educacional dos
negros, apontando um projeto amplo de inclusão dos grupos historicamente
discriminados.
14
As ações afirmativas, por exemplo, são fruto da luta travada por tais
organizações, considerando que “eram reivindicadas pelos movimentos negros
desde o ano de 1945” (Santos, 2014 apud LISBOA, 2021, p. 75).
Frutos cujas sementes foram sufocadas pelo período da ditadura militar
(1964-1985), contexto histórico que, como afirma Santos (2014), foi marcado por um
profundo refluxo nos movimentos sociais, principalmente entre 1964 e 1977, ainda
que diversas organizações sociais negras tivessem desempenho irretocável no
aguerrido combate ao racismo.
Ainda segundo o autor, as tentativas de eliminar o fluxo das ações dos
movimentos sociais se mostraram eficazes até determinado momento, mas
provocaram, ao contrário do esperado, no final da década de 1970 e início da
década de 1980, uma explosão de organizações sociais, cuja demanda reprimida
veio à tona (Santos, 2014, p. 1134). Estas sementes puderam então ser regadas,
fortalecidas e ainda hoje estão sendo colhidas e também semeadas.
Passados os anos mais duros da ditadura, entre as diversas reivindicações da
sociedade, entidades antirracistas se fortaleceram e passaram a “traçar emergentes
linhas divisórias na história dos movimentos negros brasileiros. O ano de 1978 é um
marco fundamental, posto que instaura um novo tempo discursivo para as
organizações negras(Santos, 2014, p. 1134).
Foi dos anos de 1977 em diante que se intensificaram as ações dos
movimentos sociais contra as perversidades da ditadura, “o momento era de
efervescência política, apesar do regime de exceção, que buscava a todo custo
restringir a participação política popular (Santos, 2014).
Engrossando este caldo, a conjuntura racial internacional também propiciava
todo esse fervilhar, dado que as lutas dos negros pelos direitos civis nos Estados
Unidos da América, tal como aquelas por independência ou libertação de vários
países africanos de língua portuguesa contra o racismo colonial, transformavam-se
em referências a serem seguidas internamente. Os resultados positivos dessas
ações reverberavam no Brasil, tendo significativa influência no meio da juventude
negra (Santos, 2014).
Na década de 1980, a necessidade de se denunciar o racismo e sua
incidência na população afro-brasileira era explicitada, consensual e urgente, assim
15
como a formulação de propostas de natureza antirracista à sociedade (Santos,
2014)
O acesso à educação da população negra a formalidade do ensino
constitui-se uma bandeira de luta historicamente defendida mesmo na diversidade
do MN, sendo ponte de resistência a ser explorada e fortalecida em contexto
histórico onde ainda se experimenta acesso restrito e permanência desta população
principalmente ao Ensino Superior.
Movimento Negro e educação: mesma ponte para novos horizontes
A partir da década de 1980, destaca-se que dois períodos cumulativos
contribuíram para o alargamento da base social e organização do MN, sendo que
tais períodos são fundamentais para a compreensão dos cursos pré-vestibulares
populares criados por esse movimento e as estratégias adotadas para o acesso à
educação superior.
Na primeira fase, destaca-se a criação do Movimento Unificado contra a
Discriminação Racial (MUCDR) - posteriormente denominado de Movimento Negro
Unificado (MNU) -, momento em que o discurso hegemônico entre as entidades do
MN em sua diversidade era aquele trazido por este movimento “que com viés
esquerdizante ou, caso se prefira, de raça e classe, criticava duramente a sociedade
capitalista/racista brasileira (Santos, 2014, p. 1314).
Embora haja divergências e rupturas entre esta fase e a que abordamos no
item anterior (contexto histórico de 1888-1980), expressas principalmente pela FNB,
“permanece no bojo das reivindicações dos movimentos negros a luta por educação
formal. Esta sempre foi uma prioridade da comunidade negra e do conjunto do MN
brasileiro” (Cardoso, 2002 apud Santos, 2014, p. 1328).
Em 18 de junho de 1978, diversas entidades negras, mobilizadas contra a
discriminação racial vivida cotidianamente pelos afro-brasileiros, fundam, em São
Paulo, o MUCDR, que, em dezembro de 1979, na data do seu primeiro congresso
na cidade do Rio de Janeiro, reduziu o nome para Movimento Negro Unificado
(MNU) (Santos, 2014, p. 1157).
A fundação do MNU registra um novo e expressivo momento para o MN na
sociedade brasileira.
16
Segundo Santos (2014), esse movimento, o MNU, torna-se um polo
aglutinador do problema racial no final da década de 1970. Para o autor, assim como
o surgimento da FNB resultou de décadas de confrontação com o racismo, da
dedicação das várias organizações negras fundadas no início do século XX, a
fundação do MNU também foi o coroamento da insurreição negra das entidades
nascidas no início da década de 1970, fortemente marcada pela repressão e pelo
silenciamento dos problemas nacionais (Santos, 2014, p. 1236).
Para o autor o MNU marca uma nova fase dos movimentos negros, onde se
registra
sobretudo o distanciamento com relação à primeira etapa da
organização negra no pós-Abolição, tipificada como um período no
qual “as associações de negros no Brasil tinham uma tendência
culturalista e objetivos assimilacionistas” (Telles, 2003, p. 69), visam
à integração dos negros à sociedade de classes, sem questionar
profundamente os princípios fundantes da sociedade, além de terem
os valores dos brancos como referência (Santos, 2014, p. 1314).
Neste sentido, se constrói crítica ao acesso à educação como entendeu o MN
na fase anterior ao MNU, em que não se questionava a raiz desigual do sistema
capitalista, nutrida pelo racismo que sustenta uma hierarquia socialmente construída
de raças, onde o branco tem por sua pretensa e forjada superioridade,
historicamente, ocupado os lugares de poder político, econômico e social no Brasil,
mesmo sendo este grupo minoria no país.
Aqui enfatizamos “o branco” como referência de homem universal,
necessário na legitimação do sistema capitalista.
Foram as circunstâncias históricas de meados do século XVI que
forneceram um sentido específico à ideia de raça. A expansão
econômica mercantilista e a descoberta do novo mundo forjaram a
base material a partir da qual a cultura renascentista iria refletir sobre
a unidade e a multiplicidade da existência humana. Se antes deste
período ser humano relacionava-se ao pertencimento de uma
comunidade política ou religiosa, o contexto da expansão comercial
burguesa e da cultura renascentista abriu as portas para a
construção do moderno ideário filosófico que mais tarde
transformaria o europeu no homem universal (atentar ao gênero aqui
é importante) e todos os povos e cultura não condizentes com os
sistemas culturais europeus em variações menos evoluídas
(Almeida, 2021, p. 24-25).
17
Era necessário estabelecer um pensamento que fortalecesse a nova ordem
sem questionamento do grupo dominante que mantinha o poder, sendo a “raça”11um
elemento importante no atendimento dessa necessidade, pois legitimaria a
hierarquização, sem colocar em xeque os “novos” valores de sociabilidade
necessários ao sistema.
Neste sentido, fica evidente a intrínseca relação entre classe e raça para
leitura crítica da realidade denunciando a naturalização de uma pretensa igualdade
humana que está muito longe social, política e economicamente de ser alcançada
em solo brasileiro, ou de ser enfrentada apenas com o recorte de classe.
Como nos alerta Almeida (2021), um dos profundos problemas
experimentados em uma sociedade permeada por conflitos e antagonismos de
classe, de raça e sexuais é “como compatibilizar a desigualdade com parâmetros
culturais baseados em ideologias universalistas, cosmopolitas e, portanto,
politicamente impessoais, neutras e pautadas pela igualdade formal” (Almeida, 2021,
p. 81), impossibilitando a operacionalização de políticas que de fato enfrentem as
desigualdades raciais.
Neste sentido o MNU passa a denunciar particularidades desta realidade que
precisam ser consideradas para uma análise comprometida com o enfrentamento
das desigualdades econômicas, sociais e raciais no país.
Aqui vale enfatizar que na definição de MN apresentada por Gomes (2019) há
a superação da visão romântica sobre a relação entre os negros brasileiros, a
ancestralidade africana etc., buscando, para além da valorização da cultura africana,
e sendo “preciso que nas ações deste coletivo se faça presente de forma explícita
uma postura política de combate ao racismo” (Gomes, 2019, p. 24) e
acrescentamos – de defesa de um projeto de educação antirracista.
Esta passagem nos alerta para a limitação de ações voltadas para a
ampliação do acesso ao ensino superior da classe trabalhadora pobre, restrita a
consumo, ou permeada por um discurso de diversidade pautado na meritocracia12,
12 Nos cabe recorrer ao conceito de meritocracia que, como nos apresenta Almeida (2021), facilita a
operacionalização da pretensa neutralização racial em nome de uma humanidade única. A
meritocracia é “não apenas economicamente eficaz, mas também um fator de estabilização
política”(Balibar, 2010 apud Almeida, 2021, p. 81).Logo, a soma do racismo histórico e da
11 Nos cabe alertar que o conceito “raça” não é um termo fixo, estático. Seu sentido está fatalmente
ligado às circunstâncias históricas em que é utilizado. “Por trás da raça sempre contingência,
conflito, poder e decisão, de tal sorte que se trata de um conceito relacional e histórico” (Almeida,
2021, p. 24-25).
18
sem o real compromisso com o enfrentamento do racismo e a defesa de um projeto
de educação alimentado e que alimente outra hegemonia.
Ações antirracistas a partir dos acúmulos do MN precisam superar a
tendência culturalista e os objetivos assimilacionistas, oferecendo novas
perspectivas para se pensar e viver as relações sociais, políticas e econômicas.
A formação superior em suas inúmeras contradições tem historicamente se
colocado como uma condição, principalmente para a população negra e pobre para
acesso ao mercado de trabalho de forma melhor remunerada, enfrentando, muitas
vezes, ciclos de total precarização e permitindo o acesso ao consumo que lhe foi
durante gerações negado, sendo este uma aspecto a ser aprofundado em outro
momento em uma perspectiva crítica.
Melhores condições de trabalho e melhor remuneração, resultados do acesso
à educação superior, permitem materializar projetos individuais, mas que também
podem ser projetos coletivos de melhores condições de vida etc.
A perenidade da educação nas propostas elencadas pelos
movimentos negros brasileiros no nascedouro da República […]
revela o papel instituinte do processo educacional na aparição do
humano. Mais do que formação técnica, a educação nos fornece o
passaporte para ingresso à cidadania plena, é o fator primário de
desenvolvimento social, categoria decisiva para a biografia de
qualquer pessoa, capaz de tirá-la das margens da sociedade
(Santos, 2014, p. 1764).
Nesta direção o Sujeito 1 [CD] apresenta ser o curso popular uma experiência
peculiar para o acesso ao ensino superior de um/uma estudante trabalhador(a)
como uma conquista individual e também coletiva
Hoje eu vejo […] que as pessoas elas têm expectativas com o
cursinho que não necessariamente passam pelo filtro do MN, mesmo
pessoas negras; as pessoas têm expectativas é de mudar de vida,
de ter ascensão social, querem entrar no ensino superior, e é muito,
não é que é raro, mas também, tipo, é muito difícil você ver em todo
mundo a mesma necessidade que eu senti de militar, porque as
pessoas elas têm histórias diferentes na periferia, as pessoas elas
enfrentam realidades diferentes, muitas pessoas elas por mais que
se dediquem e entendam que é importante discutir a pauta racial elas
estão preocupadas com outras coisas, né? Em ordem, eu acho que a
pauta racial ela pode ser importante, ela aparece como uma coisa
meritocracia permite que a desigualdade racial experimentada na forma de pobreza, desemprego e
privação material seja compreendida como falta de mérito dos indivíduos (Almeida, 2012).
19
importante, mas elas estão querendo superar outros problemas
muitas vezes, querem superar a fome, querem criar condições para
poder ajudar a família a realizar um sonho, né? Que é individual, mas
eu acho que, nessa coisa de realizar o sonho individual de estar no
ensino superior, estudar e se formar, aparece mais, tipo, como o
lugar onde eles descobrem que quando a gente está ali no cursinho
é quando alguém consegue entrar, isso é a realização coletiva, acho
que assim, talvez esta é a coisa que mais pega nas pessoas (Sujeito
1 [CD], 2023).
Para este sujeito, a perspectiva coletiva para o discente que acessa a
formação superior se materializa no reconhecimento da importância do curso
pré-vestibular no caminho percorrido até seu ingresso, sendo este pautado pela
imposta naturalização de um não lugar que passa a ser questionado e ocupado.
Reconhecimento que identificamos na fala da Sujeita 6 [AS].
Essa questão mesmo de reforçar o quanto é importante, o quanto
impacta os cursinhos pré-vestibulares comunitários na vida das
pessoas […] foi um grande impactador e um grande influenciador
para formar quem eu sou hoje, né? Porque se não existisse talvez eu
nem estaria aqui […], não teria feito uma faculdade […]. Então assim,
a importância da dimensão social que os cursinhos pré-vestibulares
têm na vida das pessoas, como possibilitando o acesso ao ensino
(Sujeita 6 [AS], 2023).
O mesmo sujeito 1[CD], aponta não ser apenas os discentes impactados pela
formação política destes coletivos, apresenta a importância do envolvimento do
corpo docente responsável pela organização e atuação dos cursos como um ponto
potente neste caminho.
[…] A questão racial, eu acho que ela aparece muito importante
dentro do MN quando a gente consegue levar esse estudante, esse
professor, coordenador que vai contribuir com a organização do
cursinho a se organizar fora do cursinho fazendo outras atividades
dentro do MN; é quando ele/ela vai para a marcha da Consciência
Negra, é quando participa em uma reunião que tem membros do
MNU que estão 50 anos e fazendo militância e você,
caraca, dá um despertar (Sujeito 1 [CD], 2023).
Isso porque parte expressiva de pessoas que compõem o MCPVP não
necessariamente tornam-se militantes, passam por ele, apropriam-se das
discussões propostas, participam das atividades externas convocadas pelo MN e
outros movimentos, mas após o ingresso no ensino superior e outros motivos se
20
afastam dessa experiência, mas podem tornar-se sujeito coletivo desta luta nos
diferentes caminhos trilhados a partir deste marco.
Neste sentido, para o Sujeito 1 [CD], o curso pré-vestibular popular precisa
aprofundar experiências na formação oferecida à classe trabalhadora que possibilite
aproximação as pautas de luta do MN, potencializando assim a compreensão do
racismo como estruturante das relações sociais brasileiras e a necessidade de
enfrentá-lo coletivamente. Pontua
Eu acho que o cursinho ele ainda é muito, por ter esse aspecto
comunitário, ele ainda está muito ligado às experiências cotidianas
que as pessoas têm no bairro; as pessoas, hoje mais, mas ainda
assim não veem o racismo no cotidiano, as pessoas não veem o
racismo no cotidiano; é quando elas vão em espaços onde você
pode compartilhar experiências especificas, mais amplas sobre o
racismo que elas se aprofundam mais sobre esse aspecto […]
(Sujeito 1 [CD], 2023).
Identificamos neste posicionamento o reconhecimento do papel educador do
MN, como bem defende Gomes (2019), no interior do MCPVP que direciona ações
para o enfrentamento do racismo, tendo como horizonte a educação na perspectiva
emancipatória.
Na perspectiva trazida por este sujeito, entendemos que a passagem pelo
MCPVP pode ser uma possibilidade de pensar a ampliação do acesso à formação
superior em uma perspectiva de enfrentamento à lógica mercantil.
Neste universo, como sinalizado, a questão racial precisa ser estimulada e
entendida como um elemento para o combate ao estrutural racismo que compõe as
desigualdades sociais, econômicas e políticas no cenário nacional, alimentando a
disputa por um projeto de educação antirracista que deslumbre outras possibilidades
de sociabilidade.
Como aprendizado, na nova fase do MN, a partir da década de 1980, a
educação permanece como pauta de luta, mas por um projeto de educação
emancipatória. E nesse caminhar é fundamental o enfretamento do debate sobre a
articulação da questão de raça, questão de classes e questão de gênero13 que tem
13 Sobre a relação classe, raça e gênero ver: AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. São Paulo:
Sueli Carneiro; Jandaíra, 2020; Pico, Daniel Montañez.Marxismo Negro:pensamento descolonizador
do Caribe Anglófono/Daniel Montañez Pico; Tradução:Eveline Silva- São Paulo:Editora dandara,2024;
Garcia, Jeferson, Racismo, capital e emancipação humana:notas sobre a questão negra na tradição
comunista /Jeferson Garcia.São Paulo :Instituto Caio Parado Junior, 2022.
21
sido discutido no contexto histórico atual, pautado como fruto da árdua luta contínua
do MN.
Ainda sobre o MNU e a centralidade na luta pelo acesso da população negra
ao ensino superior, Santos (2014) registra que a comprovação da importância da
educação se expressa no primeiro programa de ação do MNU, aprovada no seu III
Congresso Nacional, que se realizou em Belo Horizonte, em abril de 1982.
Neste evento foi redigido um texto para direcionar os/as militantes negros/as
no combate ao racismo, explicitando um conjunto de propostas concretas e
objetivas. na introdução do programa identifica-se um questionamento incisivo da
suposta democracia racial brasileira, pondo em destaque a ausência da população
negra nas Instituições de Ensino Superior (IES): “Por que são tão poucos os negros
nas universidades públicas e particulares de ensino superior” (Santos, 2014, p.
1328), questionamento fértil para ampliar as reivindicações pelo acesso da parcela
da população brasileira excluída dos bancos universitários.
Na medida em que o MN luta pelo acesso da população negra ao ensino
superior, compreendendo-o como direito, “articulou-se para desordenar essa
estrutura, com a criação de cursos populares direcionados à preparação dos
estudantes negros e negras” (Lisboa, 2021, p. 75).
Neste caminho contribuiu para o surgimento do MCPVP que a partir destas
experiências foi ganhando forma e força, tornando-se um movimento social voltado
para o acesso de parcela da classe trabalhadora historicamente impossibilitada de
ocupar os bancos universitários.
Movimento dos Cursos Pré-Vestibulares Populares (MCPVP): protagonismo do
Movimento Negro (MN) na luta por um projeto de educação antirracista em seu
interior
O debate sobre o movimento social no Brasil não é recente. Muitos são os
acúmulos teóricos que nos permitem analisá-lo em suas ações de enfrentamento do
pensamento hegemônico, na perspectiva de questionar a ordem, lutar pela
conquista, ampliação e/ou manutenção de direitos e pressionar para a existência de
novas possibilidade no âmbito das políticas públicas e no enfrentamento da
sociedade de classes.
22
O Movimento dos Cursos Pré-Vestibulares Populares (MCPVP) pode ser
considerado uma arena de disputas por projetos de educação popular, de formação
política, para o acesso da classe trabalhadora ao ensino superior.
Passa a se delinear enquanto movimento social autônomo a partir de
experiências de cursinhos preparatórios criados pelo MN concretizando ações
coletivas fundamentadas por uma consciência da cor ou da racialidade (Almeida,
2016, p. 46-47) com destaque para a experiência do Pré Vestibular para negros e
carentes (PVNC).
O destaque para esta experiência se dá pela diversidade de núcleos criados e
agrupados em seu caráter seminal em que muitos cursos “mesmo que
desvinculados dele, surgiram a partir da ação direta ou da influência de seus
militantes, difundindo seu formato e alguns de seus princípios organizativos e
ideológicos (Santos, 2014, p. 233-234).
Faz muito sentido olharmos para esse movimento na perspectiva de sua
totalidade, dos diferentes movimentos sociais de onde emergem os militantes que
nele atuam e também os que nascem e se reconhecem na luta desse movimento,
dando densidade e potencializando a luta dos trabalhadores com o objetivo de
ocupar o ensino superior de forma a fortalecer outra hegemonia, pautada por
relações que superem o racismo, as questões de gênero, fortaleça a questão
indígena etc.
Concordamos com Gomes (2019) na reflexão sobre a definição do Movimento
Negro (MN), mas que também nos ajuda a pensar a definição de movimentos
sociais, que alguns autores os definem com base nas conexões disciplinares das
quais fazem parte no interior do amplo campo das humanidades. Assim como outros
autores e autoras construirão análises semelhantes ou divergentes. “Trata-se de
caminhos interpretativos diferentes, mas para elucidar um mesmo fenômeno”
(Gomes, 2019, p. 23).
Na reflexão sobre a definição do Movimento dos Cursos Pré-Vestibulares
Populares, Nascimento (2012) pontua que este movimento
configura-se como um movimento de movimentos, pois é constituído
por múltiplos movimentos (cursos autônomos, redes de cursos e
cursos que são projetos de ONGs, sindicatos, universidades,
associações, igrejas etc.) e constituinte de formas não convencionais
de fazer política e organizar a luta (não instância centralizadora,
23
uma direção ou coordenação geral, como as formas de organização
mais tradicionais). Mas podemos dizer, entretanto, que as práticas
deste movimento de movimentos convergem para uma demanda
comum: o acesso ao ensino superior (Nascimento, 2012, p. 61).
Nascimento (2012) defende ser esse movimento composto por uma grande
diversidade de cursos pré-vestibulares, sendo o ponto que os une o fato de serem
destinados à preparação de estudantes que compõem “camadas populares” e
pertencentes a grupos sociais discriminados e marginalizados, como pobres, negros,
indígenas, nordestinos etc.
Para Castro (2019), esse movimento se constitui
como um meio de ação contrário ao projeto hegemônico do capital,
pois combatem a forma e a estrutura atual que estabelecem os
acessos aos mais altos níveis de educação e que está intimamente
ligado e submisso aos interesses do mercado, com a anuência do
governo e a determinação política do Estado, por meio da hegemonia
política e cultural exercida pelo bloco histórico no poder (Castro,
2019, p. 173).
Cursos pré-vestibulares populares se entendem e são reconhecidos como
movimento social e têm na ativa presença da militância negra um ator fundamental
para seu surgimento, assim como na disputa no interior deste movimento composto
por diversas pautas, pela hegemonia da questão racial na luta pelo acesso da classe
trabalhadora pobre ao ensino superior.
Na pesquisa de campo, identificamos que ao mesmo tempo que a diversidade
que compõe o MCPVP é um ponto positivo por explicitar, como abordado, as
múltiplas demandas para o acesso ao ensino superior da população brasileira
historicamente impossibilitada de acessar este nível de formação (negros, negras,
indígenas, mulheres, pobres entre outros) , também representa obstáculos para a
materialização de um projeto de educação crítico e antirracista, como podemos
observar na fala do Sujeito 1 (CD) como um desafio no direcionamento do curso, o
que nos permite identificar uma possível desvinculação teórica e prática sobre a luta
de classe e a questão racial na formação superior brasileira.
[…] Eu acho que os professores, talvez sejam as formações que eles
recebem muitas vezes nas universidades, onde o currículo é um
currículo embranquecido muitas vezes que não pensa o racismo e
não pensa o antirracismo como prática de formação intelectual e
muitas vezes a gente se encontra em professores que não vêm com
uma necessidade de se dedicar com a luta contra o racismo, que ela
24
é que embasa o trabalho da educação popular que a gente acredita,
né? Da educação popular como um aspecto da formação humana,
não apenas ligada aos conhecimentos, mas à compreensão do
mundo, no sentido freiriano mesmo. […] (Sujeito 1 [CD], 2023).
É válido registrar que na etapa de levantamento de cursos pré-vestibulares
populares que atuam na cidade de São Paulo, identificamos nos sites, onde estes
projetos de educação são defendidos e divulgados, que nesse movimento a questão
racial não é negligenciada, mas aparece de maneira secundária nos cursos não
vinculados diretamente ao MN.
nos cursos vinculados ao MN, sujeitos do nosso estudo, fica evidente, em
que pese não seja exclusiva, a hegemonia desta pauta na luta pelo acesso da
classe trabalhadora ao ensino superior.
Identificamos o protagonismo do MN na perspectiva de afirmar a pauta racial,
dentro do MCPVP, na fala do Sujeito 1 [CD]
É um movimento misto, né? Você tem gente, branca, negra,
indígena, tem gente amarela também, você tem pessoas LGBTQIA+
branca, negra também que participa do movimento […],então você
tem experiências muito diversas, né? Então eu acho que, talvez, o
caráter de organização política […] (deste curso pré-vestibular que é
um movimento dentro do movimento dos cursos pré-vestibulares)traz
a responsabilidade do MN de politizar a sociedade, o que significa é
uma democracia, né? É claro, né? Mas a gente é MN, a gente não é
o Estado, então a gente precisa dar poder mais, não é poder, né? É
dar mais espaço para articulação política para as pessoas negras
dentro do Movimento, então as nossas pautas que definem o
movimento são as pautas raciais, é isto que define o movimento, não
única e exclusivamente as pautas raciais, porque a gente sabe que
tem muitos outros problemas que atravessam e que são
atravessados pelas pautas raciais e que a gente precisa apreender
também estas questões se a gente quer se tornar o poder, né? A
expectativa é esta, a gente não se organiza politicamente pela
educação, mas de entender que a educação é uma ferramenta de
disputa do poder, né? Eu acho que isto caracteriza muito o nosso
trabalho e principalmente nossa forma de organização política.
(Sujeito 1 [CD], 2023).
Segundo Castro (2019), entre os atores expressivos que contribuíram para
fortalecer o MN e a luta pela democratização do ensino superior estão os cursos
pré-vestibulares populares que definimos como sujeitos para nossa pesquisa:
Educafro e UNEafro.
Em contexto anterior ao ano de 2009 estes cursos pré-vestibulares
compunham uma unidade, porém, divergências de concepções de movimento e
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posicionamentos individuais levaram a Educafro a uma ruptura desembocando em
mais um movimento na luta pela democratização do acesso ao ensino superior e de
combate antirracista, sendo ele a União de Educação Popular para Negros(as) e
Classe Trabalhadora (UNEafro), “movimento social surgido a partir de contradições
inconciliáveis no interior da Educafro” (Castro, 2019, p. 206). De acordo com Castro
(2019)
O movimento de ruptura na Educafro, que deu origem à UNEafro, se
fez necessário diante da impossibilidade desse grupo dissidente
influir nos rumos tomados pela Educafro e diante da necessidade de
se continuar em outras frentes os objetivos que se inviabilizavam
naquela organização. Assim, foram desencadeadas ações e disputas
no interior da Educafro, como a luta por democratização das relações
internas, pela construção coletiva da linha de atuação política, e por
uma formação crítica de viés claramente anticapitalista e antirracista,
associadas à compreensão de que essas lutas precisam estar
ligadas ao combate mais amplo contra as superestruturas que geram
as desigualdades sociais (Castro, 2019, p. 200).
Como abordado, no interior do MCPVP a disputa pela pauta racial ganha
relevância pela peculiar contribuição do MN tanto para seu surgimento quanto para a
manutenção da hegemonia da questão racial em seu interior.
Entendemos que esse protagonismo se materializa pelo fato de o MN em sua
diversidade ter historicamente sido o mais expressivo ator na denúncia do racismo e
suas mais perversas expressões, inclusive sobre a interdição da população negra e
pobre ao ensino superior, colocando luz ao fato de que não basta o enfrentamento
da pobreza e da desigualdade apenas na perspectiva de classe e gênero,
enfatizando a urgente necessidade da centralidade questão racial neste debate.
Considerações finais
A realização da pesquisa aponta alguns resultados dos quais destacamos
que a luta do MN pelo acesso da população à educação é uma ponte entre a
multiplicidade e a diversidade do próprio MN, conforme pudemos identificar na fase
que antecede a criação do MNU e após este contexto histórico, que não sem
contradições, vai ultrapassando gerações e chegando como pauta comum de luta à
cena contemporânea. Este se coloca como um elemento importante para a análise
do MCPVC por ser a experiência do MN solo fértil para que o mesmo pudesse se
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delinear e se fortalecer na heterogeneidade em que se materializa ainda hoje na luta
pela diversidade do acesso ao ensino superior para onde esteve historicamente
direcionada a burguesia branca.
É importante pautar que a questão racial no interior do MCPVP não se impõe
naturalmente, sendo o MN ator fundamental para sua hegemonia na luta pelo
acesso da classe trabalhadora negra ao ensino superior, deixando evidente o fato de
que não basta o enfrentamento da pobreza e da desigualdade apenas na
perspectiva de classe e gênero, enfatizando a urgente necessidade da centralidade
questão racial neste debate. Fica evidente ser o MCPVP uma experiência peculiar
de formação política pouco convencional em comparação a forma como os
movimentos sociais têm se organizado historicamente, mas com um potencial a ser
melhor compreendido na perspectiva da luta por uma educação emancipatória.
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