V.23, nº 50 - 2025 (janeiro-abril) ISSN: 1808-799 X
EDUCAÇÃO E PROCESSOS DE LUTA ANTIRRACISTA: CONTRIBUIÇÕES DE
CARTER WOODSON E CLÓVIS MOURA1
Jane Barros Almeida2
Resumo
Este artigo parte da premissa de que a educação pode cumprir um papel de canalização do
descontentamento social e, portanto, catalisar novos projetos societários, inclusive projetos que
possuem o antirracismo como perspectiva, indicando uma potência estratégica. Apesar do
estadunidense Carter G. Woodson e do brasileiro Clóvis Moura experienciarem contextos sociais
distintos, ambos contribuíram para pensar o papel da educação no interior de uma sociedade
racializada no início século XX, indicando pistas e caminhos, para a superação da hierarquização
racial em ambos os contextos. Trata-se, então, de um exercício de sistematização e análise que pode
auxiliar a pensar elementos teóricos, epistemológicos e programáticos para o devir, assim como o
enfrentamento do racismo estrutural.
Palavra-chave: Educação; luta antirracista; século XX.
EDUCACIÓN Y PROCESOS DE LUCHA ANTIRACISTA: APORTES DE CARTER WOODSON Y
CLÓVIS MOURA
Resumen
Este artículo parte de la premisa de que la educación puede desempeñar un papel en la canalización
del descontento social y, por lo tanto, catalizar nuevos proyectos de sociedad, incluidos los proyectos
que tienen el antirracismo como perspectiva, lo que indica un poder estratégico. Aunque el
estadounidense Carter G. Woodson y el brasileño Clóvis Moura vivieron contextos sociales diferentes,
ambos contribuyeron a pensar el papel de la educación dentro de una sociedad racializada a
principios del siglo XX, indicando pistas y caminos para superar la jerarquización racial en ambos
contextos. Se trata, pues, de un ejercicio de sistematización y análisis que puede ayudarnos a pensar
elementos teóricos, epistemológicos y programáticos para el futuro, así como a enfrentar el racismo
estructural.
Palabra clave: Educación; lucha antirracista; Siglo XX.
EDUCATION AND PROCESSES OF ANTI-RACIST STRUGGLE: CONTRIBUTIONS FROM
CARTER WOODSON AND CLÓVIS MOURA
Abstract
This article starts from the premise that education can play a role in channeling social discontent and
therefore catalyze new societal projects, including projects that have anti-racism as a perspective,
indicating a strategic power. Although the American Carter G. Woodson and the Brazilian Clóvis
Moura experienced different social contexts, they both contributed to thinking about the role of
education within a racialized society at the beginning of the 20th century, indicating clues and paths for
overcoming racial hierarchization in both contexts. This is therefore an exercise in systematization and
analysis that can help us think about theoretical, epistemological and programmatic elements for the
future, as well as confronting structural racism.
Keyword:Education; anti-racist struggle; 20th century.
2Doutora em Sociologia pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), São Paulo - Brasil. Professora
Adjunta do Departamento de Ciências Sociais e Educação da Universidade Estadual do Rio de Janeiro
(EDU/UERJ), Rio de Janeiro - Brasil. E-mail: jane.barros@uerj.br.
Lattes: https://lattes.cnpq.br/9178503996055564. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3878-0837.
1Artigo recebido em 10/12/2024. Primeira Avaliação em 28/01/2025. Segunda Avaliação em 04/02/2025.
Aprovado em 13/03/2025. Publicado em 09/04/2025. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v23i50.66121
1
A primeira metade do século XX foi determinante nas Américas para as lutas
antirracistas, sobretudo num contexto de intenso (norte) e início (sul) processo de
urbanização e mudança do modelo produtivo. Neste cenário, a educação como
direito social se apresentava como universal e inserida na tese do projeto
republicano (Almeida, 2016 apud Cárceres,1964, p.15). Sem desconsiderar todas as
diferenças entre um país de capitalismo dependente como o Brasil e o imperialismo
dos EUA, é possível constatar a existência de debates entre intelectuais orgânicos,
sobretudo negros(as), no que se refere as demandas, lutas sociais e questões
advindas das relações sociorraciais, potencializadoras da opressão de corpos
negros e não bancos nestes territórios. As diferenças existentes podem inclusive
revelar substanciosas estratégicas divergentes, tendo a educação como lente dos
processos e relações sociais.
O texto em questão parte da premissa de que a educação - na perspectiva da
formação humana - pode cumprir um papel de canalização do descontentamento
social e, portanto, catalisar novos projetos societários, inclusive projetos que
possuem o antirracismo como perspectiva, o que delegaria à educação uma
potência estratégica (Almeida, J.B.,2016). Apesar de Carter G. Woodson
(1875-1950) e Clóvis Moura (1925-2003) não serem a rigor contemporâneos,
experienciando inclusive contextos sociais distintos, ambos contribuíram para pensar
o papel da educação no interior de uma sociedade racializada, no início século XX,
indicando pistas e caminhos para a superação da hierarquização racial em ambos
os contextos.
Trata-se de um exercício de sistematização e análise que pode auxiliar a
pensar elementos teóricos, epistemológicos e programáticos para o devir, assim
como o enfrentamento do racismo estrutural dos nossos tempos. Este texto é parte
de uma pesquisa em andamento intitulada: Lutas antirracistas, movimentos negros e
educação: sujeitos coletivos apontando caminhos3. Portanto, num primeiro momento
(1) apresentará uma breve caracterização sobre a concepção de educação aqui
trabalhada, ampliando de maneira a compreendê-la na perspectiva da formação
humana; (2) em seguida Moura e Woodson serão apresentados e contextualizados
no que se refere a discussão da temática educacional, possibilitando por fim, à guisa
3 Pesquisa apresentada como projeto para a obtenção da modalidade Dedicação exclusiva na UERJ
e submetido a processos de solicitação de bolsas e recursos, como o PIBIC 2024-UERJ, Faperj e
CNPQ (em processo, de acordo com cronograma das instituições).
2
de uma conclusão (3) indicações e pistas tendo a educação como lente, para mirar
caminhos à construção de uma perspectiva societária antirracista.
Educação na perspectiva da formação humana e as relações raciais
Pensar a partir da contribuição da educação para a luta antirracista impõe a
necessidade de definir a concepção de educação em curso. A educação na
perspectiva da formação humana dialoga com as premissas gramscianas e a
compreende inserida num contexto em que existem projetos sociais em disputa que
expressam específicas visões sociais de mundo. Nesta direção, a educação é
compreendida para além das dimensões institucionais escolares (formal x informal),
mas como parte de um processo forjado a partir das relações sociais expressas no
modo de vida4 existente, capaz de indicar o seu importante papel no interior da
dinâmica social, podendo revelar os diferentes projetos de poder existentes.
Edmund Dias (2012) descreve a dinâmica complexa do modo de vida
capitalista através da materialização da passagem das macroestruturas (relações
capital-trabalho na sua forma mais abstrata) às microrrelações (o cotidiano das
classes), que se realiza nas instituições e fora das mesmas, mas que impõe um
padrão, “(...) a chamada normalidade; vale dizer, o que é certo ou errado” (Dias,
2012, p.51). Dias, de forma rigorosa, indica com precisão que o modo de vida se
conecta às formas de produzir e consumir, sejam bens, valores ou formas de pensar.
Portanto, este modo de vida revela uma determinada cultura hegemônica, sendo-a
plenamente política e atravessada pelas contradições estruturais que expressam
interesses de sujeitos, grupos e classes sociais específicas. Da família ao trabalho,
passando pela escola, universidade, este sujeito que trabalha é ao mesmo tempo
explorado e oprimido, sendo formado e educado para a vida em sociedade
hegemonizada pelo capital.
Entretanto, se o modo de vida é o espaço onde a “vida vivida” (Gusmão,2015)
acontece é salutar a constatação de que esta hegemonia não se impõe sem
resistências, em algum nível e das mais variadas formas. Este texto sustenta a
argumentação de que a educação possa ser um potente espaço de expressão desta
4 O conceito “modo de vida” aqui utilizado referencia-se na literatura gramsciana, mais precisamente
nos trabalhos do sociólogo Edmundo Fernandes Dias (2012), compreendendo a dinâmica do
cotidiano social conectado as estruturas sociais historicamente construídas.
3
resistência, desde que seja possível compreendê-la como parte e produto de um
processo ampliado de lutas sociais existentes, inserida neste contexto do “modo de
vida”. A compreensão desta dinâmica caminha para uma desnaturalização das
verdades construídas e “normalizadas”, assim como do reconhecimento de um
projeto de educação hegemonicamente forjado pelas estruturas de poder,
alimentadas pela intensa e complexa dinâmica dos interesses de grupos
dominantes.
O quadro referencial epistemológico gramsciano, sistematizado por Dias
(2012) e Carlos Vieira (1999), auxilia a pensar o processo educativo como questão
estratégica da configuração do modo de vida. “Distaste dos ímpetos iluministas e da
compreensão salvífica do papel da educação, ele pensa a formação do indivíduo
nos marcos da luta hegemônica entre os vários projetos em disputa no quadro
societário” (Vieira, 1999, p93). Para Vieira, trata-se de uma teoria da formação
humana que evita a redução do processo formativo ao desenvolvimento intelectual
do homem concebido isoladamente, da mesma forma que evita a pendular inversão,
que supõe a formação da personalidade de forma demasiadamente determinista, do
homem como produto passivo do meio social. Em síntese, uma teoria que permite
ampliar a noção de educação, percebendo-a como síntese de múltiplas
determinações e conectada a específicas visões sociais de mundo. Algo
corroborado por Vicente Zatti e Marcos Pagotto-Euzébio,
Educação é processo que perdura a vida toda, portanto, não está
restrita à educação formal; (...) A educação entendida como processo
de formação humana confunde-se com cultura. (...) Como processo
de formação humana, a educação apresenta-se como um processo
desinteressado, embora aprender as técnicas e conhecimentos úteis
e necessários para a reprodução material da vida faça parte da
educação, ela não se reduz a isso (...) Educação é a arte do cultivo
do humano e, a humanização depende de uma série de saberes
humanísticos geralmente não detentores de utilidade imediata (Zatti;
Pagotto-Euzebio, 2023, p12).
Neste sentido, esta concepção de educação permitiria superar as leituras
deterministas e indicar a possibilidade de compreender o sujeito numa dimensão
omnilateral. Ao recuperar a noção de totalidade a partir de singularidades concretas,
pavimenta caminhos para uma educação contra hegemônica, de maneira a superar
este modo de vida específico e historicamente construído, que não prescinde da
4
hierarquização das raças. Segundo Aníbal Quijano (2005), é impossível separar,
teórica e epistemologicamente, a noção de classe e raça para a leitura do sistema
mundo.
Para Quijano, a ideia de raça, no sentido moderno, não existia antes da
“descoberta” da América, o que levou a produção de identidades sociais
historicamente novas: indígenas, negros e mestiços, transformando a raça no
“primeiro critério fundamental para a distribuição da população mundial em
camadas, lugares e papéis da estrutura de poder na nova sociedade” (Quijano,
2005, p38). Este é um ponto de forte impacto que a partir dele, conjuntamente
com Immanuel Wallerstein, entende que raça e racismo ambos advindo do
processo de dominação, violento e doutrinador da colonização são “princípios
organizadores da acumulação de capital em escala mundial e das relações de poder
do sistema mundo” (Bernardino-Costa; Grosfoguel, 2016, p15). Para Quijano, este
padrão de poder se apresenta através do trabalho, do controle do Estado e da
produção de conhecimento. A colonialidade do poder, que expressa a continuidade
contemporânea deste padrão, existe desde a colonização e aparece como
conceito-chave, que se conecta com a colonialidade do conhecimento/saber. Neste
sentido, a construção da ideia de raça atribuída a sujeitos tidos como inferiores
passiveis de controle e violência implica na construção de uma teoria social que
legitima a escravidão, o racismo e a construção de sujeitos mercadorias, como
condição para a acumulação de capital e de construção do império colonial europeu.
Portanto, a desconstrução da naturalização da ideia de inferioridade racial afronta de
maneira ativa a referida teoria social.
A negação da inferioridade do negro (a) como sujeito é uma premissa de
Moura e Woodson, identificável em várias passagens. Ambos reforçam o
conhecimento acumulado por negros e negras de maneira coletiva, desterrando a
lógica de inferioridade científica, cognitiva ou mesmo moral. Clóvis reconhece que
negros(as) advindos da África tinham conhecimento na área de metalurgia, assim
como foram adquirindo experiências artesanais, hábeis e agrárias durante a
experiência como “escravos de ganho” (Moura, 1988), conhecimento superior ao dos
não negros. Para Woodson, o não reconhecimento intencional de que o continente
africano possui história, faz com que seja ignorado o fato de “(...) que os africanos
foram pioneiros da domesticação de ovelhas, cabras e vacas, desenvolveram a ideia
5
de julgamento de júri, produziram os primeiros instrumentos de corda e deram ao
mundo seu maior benefício na descoberta do ferro” (Woodson, 2021, p.24).
A premissa de Quijano adensa uma leitura sobre as relações capital-trabalho
ao inserir a raça como categoria estruturante para a construção e manutenção deste
sistema mundo, que impõe os modos de vida específicos e negrita o papel da
educação neste cenário de disputa de projetos, a partir dos corpos subalternizados e
racializados, sujeitos considerados hierarquicamente inferiores. Ao “vestir a lente”
da educação como formação humana, amplia-se a possibilidade de compreender as
especificidades dos conflitos advindos das relações étnico-raciais, alargando o
escopo de análise de modo a permitir vê-la como capaz de contribuir à construção
de projetos sociais, sobretudo antissistêmico, na direção de uma outra hegemonia.
Contribuições de Clóvis Moura ao debate educacional: lentes sensíveis
Clóvis Moura, importante marxista brasileiro, não foi um especialista em
educação, mas desde sempre alcançou o papel estrutural da raça para a
compreensão da realidade brasileira, visando o projeto de transformação radical na
sociedade. Contudo, apresentou diálogos substanciais sobre a relação dos
movimentos negros e educação, assim como inseriu conteúdo relevante à formação
daquelas que necessitam compreender a realidade brasileira, para transformá-la.
Sob estas bases, este texto sustenta a contribuição da educação para a luta
antirracista a partir das lentes de Clóvis Moura. Neste momento, foram trabalhados
de modo mais central dois textos de Clóvis Moura que miram a primeira metade do
século XX, apesar de produzidos entre os anos de 1970-80: “A Imprensa negra em
São Paulo”5e “Organizações Negras em São Paulo”6.
A educação na perspectiva da formação humana permite pensar a educação
e os processos formativos de modo mais ampliado. A figura do intelectual orgânico,
quando conceituado por A. Gramsci (2001), nos aproxima de uma das teses de
Nilma Lino Gomes (2021) que compreende o Movimento Negro como educador.
Como bem apontou Gramsci, “todo grupo social, nascendo no terreno originário de
6 MOURA, Clóvis. Brasil. Organizações Negras em São Paulo In: Raízes do protesto negro, São
Paulo: Dandara 2023.
5 MOURA, Clóvis. “A Imprensa negra em São Paulo”. In: Imprensa Negra. Estudo crítico de Clóvis
Moura. Legendas Miriam Nicolau Ferrara. São Paulo: Imprensa Oficial, Sindicato dos Jornalistas no
Estado de São Paulo, 2002, Edição fac-similar.
6
uma função essencial no mundo da produção econômica, cria para si, ao mesmo
tempo, organicamente, uma ou mais camadas de intelectuais que lhe dão
homogeneidade e consciência da própria função, não apenas no campo econômico,
mas no social e político” (Gramsci, 2001, p.15). Negros e negras brasileiros tiveram
papel determinante e essencial para o processo de colonização e construção da
Europa moderna, como sujeitos escravizados e depois como trabalhadores. Ao
mesmo tempo que forjaram ao longo da história ferramentas coletivas para sua
resistência e garantia de vida produzindo, portanto, camadas de intelectuais
orgânicos. Gomes ao definir o Movimento Negro (MN) como educador, o apresenta
com letra maiúscula para negritar seu papel de sujeito, sem deixar de considerar sua
pluralidade, diversidade e variedade, reconhecendo o “(...) Movimento Negro
Brasileiro como educador, produtor de saberes emancipatórios e um sistematizador
de conhecimento sobre a questão racial no Brasil” (Gomes, 2021, p14).
Os movimentos sociais são produtores e articuladores dos saberes
construídos pelos grupos não hegemônicos e contra hegemônicos da
nossa sociedade. Atuam como pedagogos nas relações políticas e
sociais. Muito do conhecimento emancipatório produzido pela
sociologia, antropologia e educação no Brasil se deve ao papel
educativo desempenhado por esses movimentos, que indagam o
conhecimento científico, fazem emergir novas temáticas, questionam
conceitos e dinamizam o conhecimento” (Gomes, 2021: p.16-17).
Sendo assim, Nilma Lino Gomes entende que este Movimento Negro amplo e
plural, por meio das suas principais lideranças e ações de seus militantes, elegeu e
destacou a educação como um importante espaço-tempo passível de intervenção e
emancipação social, mesmo em meio a ondas de regulação conservadora e da
violência capitalista. Isso em razão de uma leitura de que a educação não é um
campo fixo e nem somente conservador, por ser um espaço de formação humana
imanentemente, se modifica e transforma a partir das relações sociais engendradas
e, portanto, das forças sociais em disputa “(...) repletos, ao mesmo tempo, de um
dinamismo incrível e de uma tensão conservadora” (Ibidem, p.25).
Moura encontra na imprensa negra uma expressão dos sujeitos coletivos,
que parte considerável vocacionava as posições de movimentos negros existentes,
reconhecendo-a também como uma forma objetiva de combater o mito da
democracia racial, que entende a cultura negra como um subproduto na dinâmica de
negros e negras como sub cidadãos, uma espécie de painel ideológico no universo
7
negro. A imprensa negra é um aparelho privado de hegemonia que expressa a
disputa superestrutural contra hegemônica, e de cara Moura logo constata, “A
preocupação com a educação é uma constante. O negro deve educar-se para subir
socialmente. Para isso, deve deixar os vícios como o alcoolismo e a boemia, deve
abster-se de praticar arruaças, deve ser modelo de cidadão” (Moura, 2002, p.7).
Entretanto, imbuído de um forte elemento moral para a conquista da suposta
mobilidade social, este coletivo de jornais a imprensa negra - acabou por
secundarizar a importância de pressionar e demandar do Estado as condições para
a garantia da educação formal para negros e negras, segundo Clóvis Moura.
A percepção de Clóvis é de que os textos expressam a posição do negro
diante do mundo branco, por vezes assumindo um caráter mais reivindicatório e, por
outras mais pedagógico, contudo, o centro das preocupações é a busca pela
integração social. Essa integração deveria ocorrer pela educação e cultura, “das
boas maneiras, do bom comportamento e do negro” (Ibidem, p.9). “Por outro lado, a
educação é considerada uma missão de família. A educação é uma questão privada
e somente uma vez, ao que apuramos, uma referência explicita ao recurso do
ensino público como veículo capaz de solucionar o problema dos negros, num artigo
de Evaristo de Morais” (Ibidem, p.11). Um limite identificado sobretudo a partir da
experiência do Jornal Voz da Raça, referência da Frente Negra Brasileira, mas não
apenas, pois denunciava os limites de compreender a educação como algo
específico à esfera do privado, das famílias, ou ainda à moral do negro.
A lógica central é de que a mobilidade social dependeria centralmente da
educação formal, negada pelo Estado na sua prática cotidiana, e assumida pela
intelectualidade orgânica negra, seja através da imprensa e a partir dos movimentos
negros existentes. Clóvis denuncia a ausência de reivindicações que forcem o
Estado a garantir as condições objetivas deste acesso. Isso é corroborado pela sua
leitura de que um apoliticismo da imprensa negra em relação à luta de classes.
“Há uma cautela, parece que deliberada, dos diretores desses jornais que os
levaram a não abordar certos problemas críticos possivelmente considerados
perigosos por eles” (Ibidem, p.12), algo que muda após os anos de 1945 com o
Jornal Alvorada e a Fundação da Associação dos negros Brasileiros, segundo
Moura.
8
Em “Brasil: as raízes do protesto negro”, livro em que está inserido o texto
sobre “Organizações Negras em São Paulo”, Clóvis Moura negrita o sujeito negro(a)
como emergente, rebelde, “na medida que adquire uma consciência crítica em
relação ao mundo que o cerca, à sua situação neste mundo” (Moura, 2023, p.29),
livro que dedica atenção à rebeldia dos sujeitos coletivos, movimentos negros
emergente e a sistematização dos mesmos. Na tese de Moura, o negro brasileiro
sempre foi um grande organizador.
Em toda a história social vemos o negro se organizando, procurando
um reencontro com as suas origens étnicas ou lutando, por meio
dessas organizações, para não ser destruído social, cultural e
biologicamente. houve por isso mesmo quem se referisse a um
espírito associativo do negro brasileiro (Moura, 2023, p.90).
A organização coletiva aparece como uma estratégia de sobrevivência. Do
quilombo aos movimentos contemporâneos, como o Movimento Negro Unificado, os
processos coletivos foram sendo engendrados. Os Quilombos (séculos XIV-XIX)
para Clovis eram “basicamente um grupo armado” (Ibidem, p.23) materializando a
luta de classes, necessário num momento em que a possibilidade de resistência à
escravidão necessitava da força material, física e armada para a busca da liberdade.
As irmandades, a exemplo da Irmandade dos Rosários dos Homens Pretos em São
Paulo, foram amostras da construção de espaços de vivência e proteção dos
escravos africanos livres. Espaço este profundamente atacado e combatido pela
igreja e sociedade por verem como uma ameaça à ordem estabelecida, que
contribuíam para a construção de uma sociabilidade negra livre, fortalecendo as
condições de enfrentamento.
A existência, em 1931, da Frente Negra Brasileira articulando seu jornal “A
Voz da Raça” foi um salto qualitativo do processo de organização de negros e
negras. Sob orientação integralista, a ideia estruturante de integrar os negros (as) à
sociedade que se modernizava, provocou proximidades com setores mais
conservadores à época. Apesar de ter seu escopo ideológico mais estruturado, para
Moura sua ideologia ainda é confusa.
Pretende-se, fundamentalmente, a uma filosofia educacional,
acreditando que o negro venceria à medida que conseguisse
firmar-se nos diversos níveis de ciência, das artes e da literatura.
Cabia, também, à Frente Negra orientar os seus membros, pois o
9
negro, segundo seus dirigentes, após a abolição se ressentia de
‘melhores noções de instrução e educação’. Essa ideologia era,
básica e praticamente, a plataforma do partido político (que a Frente
formou mais tarde)”(Ibidem, p.28).
São compreendidos por Moura (2023) como sujeitos coletivos organizados os
responsáveis por processo de formação humana, seja na política, cultura/religião:
associações culturais do negro, escolas de samba, a macumba - umbanda e
quimbanda -, às organizações de protesto. Todas essas expressões coletivas
dialogam com o momento específico da luta de classes e, em todos os fenômenos
coletivos citados a dimensão formativa educacional não foi abandonada, indicando a
potencialidade dos processos coletivos organizados numa perspectiva antirracista. A
ideia de coletividade é aprendida, socializada e educada às gerações futuras,
indicando que sem este processo pedagogicamente articulado não base para a
construção da luta antirracista.
A relação entre capitalismo e racismo foi constantemente reforçada por
Clóvis, seja negritando a experiência do quilombo como a gênese da luta de classes
no Brasil, no seu livro Rebeliões e Senzala de 1959, ou ainda no texto preambular
inserido na obra que sustenta um dos trabalhos do autor aqui mencionados na
introdução, onde explicita que o “preconceito de cor (...) funciona como um
mecanismo regulador do capitalismo dependente a fim de manter os baixos padrões
de salários dessas massas plebéias e da classe operária por abrangência. O
sistema mantém o negro sob controle” (Moura, 2023, p.48), nesta direção uma
relação intrínseca entre capitalismo e racismo. Entretanto, Moura (2023) ao
identificar o negro como sujeito, reforça a potência da coletividade como
sobrevivência e resistência.
Florestan Fernandes (1972) entende que centralmente nos países de
capitalismo dependente uma elite que “joga os problemas para debaixo do
tapete”, violenta, obstinada e intolerante. Portanto, este modelo de sociedade não
pode prescindir da concentração racial da renda e do poder. Neste sentido, os
movimentos negros e a imprensa no período de 1920-40 teriam constituído uma
contra ideologia racial, corroborando as teses de Moura, ao combater o mito da
democracia racial dentro da ordem burguesa negrita a educação como um dos
principais instrumentos. O que levou ao Protesto Negro e à demanda pela segunda
abolição, pelo acesso às benesses da democracia republicana. Pautavam a
10
liberdade e a igualdade em termos raciais, uma espécie de revolução dentro da
ordem, contudo, de “baixo para cima”, indicando o potencial revolucionário desta
ação. Uma revolução racial, um “desmascaramento” da situação racial no Brasil que
oportunizaria uma dupla libertação: (1) da ideologia racial dominante e da (2) tutela
dos brancos, possibilitando após os anos 40 um contexto mais favorável ao
radicalismo igualitário na esfera das relações raciais (Florestan, 1972, p.311), seja
pela incorporação de novas táticas individuais/coletivas de mobilidade social, pela
construção de um terreno mais propicio ao reconhecimento das “vantagens” da
democratização racial de modo mais coletivo ou, ainda, da potencialidade de
retomada dos movimentos sociais de protesto.
De modo geral, as questões apontadas por Clóvis Moura a partir das ações
dos movimentos negros, sujeitos coletivos, na primeira metade do século XX
indicam fortemente que a educação foi tática e central para estes. Demandavam a
inserção no “mundo dos brancos”, organizada e executada pelos movimentos
negros que o Estado negligente revelava sua dimensão racializada, onde a
inferiorização dos negros era uma das táticas desprendidas pela elite dominante. A
posição de Clóvis e os alertas ao “apoliticismo”, indicavam que a pressão sobre o
Estado, para garantir educação pública para o povo negro, era o caminho e
poderia ser realizado com pressão social coletiva. Contemporaneamente, com o
auxílio de Nilma Lino Gomes e Florestan Fernandes, é possível negritar o papel dos
movimentos negros neste processo e a abertura a posições mais “críticas” a partir
dos anos de 1940.
O papel dos movimentos negros, ao assumir a educação como central para a
sua mobilidade, dentro ou fora da ordem, revela a potência dos mesmos ao realizar
isso de baixo para cima, forjando espaços coletivos para sistematizar demandas e
garantir a sobrevivência, no interior de uma sociedade fortemente racista que
objetivava subalternizar de todas as formas possíveis estes corpos. Em síntese, a
educação assumiu centralidade, seja como eixo dos movimentos ou como resultado
pedagógico das ações coletivas, não abandonando a perspectiva antirracista como
estruturante, independentemente da tática engendrada em momentos históricos
específicos.
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Carter Woodson e a (des) educação do Negro7 como projeto
Carter Woodson escreve na primeira metade do século XX como a educação
é um instrumento de poder que intenciona (des)educar o Negro. De maneira não
abstrata, localiza e historiciza a educação formal/institucional ofertada pelo Estado
capitalista estadunidense. Trata-se de um projeto e uma ferramenta política para a
manutenção da hierarquia de raça. A tese do autor se sofistica ao revelar que
mesmo a educação mais elementar e ultrapassada possibilita elementos para a
construção intelectual deste Negro, mas não na dimensão política/coletiva. Fazendo
com que os quadros “mais estudados” se tornem mais pacíficos e rejeite a “política”,
por conta do medo das sanções e do próprio extermínio.
Seu trabalho, auxilia a compreender a educação na perspectiva da formação
humana, a partir das instituições escolares, mas a conectando com os projetos
políticos em curso, de modo a inseri-la na dinâmica do modo de vida, identificando
os limites e a percebendo como potência para uma educação antirracista. um
convite à coletividade e à organização de negros e negras a partir da educação,
mirando projetos que se desprendam da hierarquização das raças. No contexto do
pós-guerra civil nos Estados Unidos, o debate nas escolas para negros (as) e igrejas
era se o negro teria que ter uma educação clássica ou prática,
(...) aqueles que de fato fizeram algum esforço para obter educação
não receberam nem a educação industrial nem a clássica. (....) Os
negros que frequentaram escolas industriais, fizeram treinamento
prescrito e receberam diplomas;” mas, a “educação industrial que
estes negros receberam, então, era apenas para dominar uma
técnica descarta nos centros progressistas (...)Exceto pelo valor
que tal treinamento pudesse ter para o desenvolvimento da mente,
em virtude das aplicações práticas de matemática e ciência, foi
dessa forma, um fracasso” (Woodson, 2021, p.20).
Woodson ainda aponta que mesmo os negros “treinados” nas fases
avançadas da literatura, filosofia e política não prosperavam no uso de seu
conhecimento porque tiveram que atuar nas esferas “inferiores da ordem social.” A
7 Carter Woodson no seu texto apresenta o Negro com N maiúsculo, de modo intencional e
demarcador. Uma forma de contrapor a leitura marginal do negro(a) pela sociedade estadunidense,
visibilizando-o como sujeito. Ao longo do texto, utilizaremos com letra maiúscula sempre que for uma
citação direta do autor. Este texto parte da mesma premissa, de que negros e negras são sujeitos,
assim como outras identidades não brancas que aparecem ao longo do texto, contudo será feita esta
distinção entre maiúsculo e minúsculo, como forma de destaque à diferenciação do autor.
12
escassez de oportunidades diante das leis restritivas e portarias, como a Jim Crow8,
acabava por delegar o trabalho de negros e negras às condições mais vulneráveis,
precárias e subalternas.
O sistema atual sob o controle dos brancos treina o Negro para ser
branco e, ao mesmo tempo, convence-o da inconveniência ou da
impossibilidade de ele se tornar branco. Obriga o Negro a se tornar
um bom Negro pelo desempenho de sua educação mal adaptada”
(...) “O resultado, então, é que o Negro desse modo (des)educado de
nada servem para si mesmo, tampouco para o homem branco”
(Ibidem, p. 26).
Interessante perceber que mesmo quando o Estado capitalista assume a
tarefa de “educar”, acaba por fazer dentro das linhas e limites estabelecidos,
contribuindo para que este corpo negro possa ser visto como passivo, controlado e
subsumido à lógica dominante, pois ao reconhecer seu suposto lugar o negro se
(des)educa para os processos que deveriam interessar enquanto “povo”. Afinal,
“Infelizmente, Negros que protestam e ousam se expressar são tidos como
opositores da cooperação inter-racial” (Ibidem, p.29). A política hegemônica cria
condições para uma educação, dentro dos limites impostos, como forma de impedir
o acesso ao conhecimento que possibilite uma leitura do processo de racialização,
propondo o afastamento da política e, centralmente, dos processos de organização
coletiva.
O afastamento das questões políticas – de poder, como estratégia da
elite branca. Em nome de uma “suposta paz” na comunidade, os
poucos negros que atuam em esferas de poder (escola, igreja,
instituições) foram convencidos de que “não se deve estimular a
atividade política”, mesmo sendo ela o direito mais básico moderno,
como o voto. “Em, certas partes, portanto, os Negros sob tal
terrorismo deixaram de pensar em questões políticas como sua
esfera” (Ibidem, p. 61)
A educação é um instrumento tão potente para organizar projetos de poder
que Woodson destaca o quanto a tese no “negro que deu certo, bem-educado” é
uma armadilha, ao reforçar a conexão com pessoas capazes de “prejudicar seu
8 Trata-se de um regime de dominação racial, vivenciado por pessoas negras sob o regime Jim Crow.
Este sistema estabelecia uma rígida segregação racial entre brancos e negros e perdurou por cerca
de nove décadas, findando nos anos de 1964 quando a luta social pressionou pela Lei dos Direitos
Civis, abolindo este sistema de apartheid. Para saber mais ver: MORRIS, A.; TREITLER, V. B. O
ESTADO RACIAL DA UNIÃO: compreendendo raça e desigualdade racial nos Estados Unidos da
América. Caderno CRH, v. 32, n. 85, p. 15–31, jan. 2019.
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povo” diante da negação do espaço pretendido com a formação conquistada.
Portanto, a resistência e a organização coletiva seriam caminhos para uma
educação que não deseduque. “A raça se libertará dos exploradores assim que
decidir fazê-lo. Ninguém mais pode realizar esta tarefa para a raça. Ela deve
planejar e fazer por si só” (Ibidem, p.77) e nesta direção aposta nos adultos negros
que ainda não entraram no projeto dominantemente (des)educador, “(...) contando
com o despertar das massas por meio da educação de adultos, podemos fazer
muito mais para dar ao Negro um novo ponto de vista à empresa econômica e a
cooperação de grupo” (Ibidem, p.73).
Uma das táticas de Woodson foi a de denunciar a literatura que “andava
circulando” no mundo moderno, onde a inferioridade do negro teria sido
constantemente reificada. Os negros (des)educados do início do século XX
começavam a se atentar para isso, ainda que tardiamente, “(...) quanto mais
“educação” o negro recebe, pior ele fica. Ele acabou tendo muito mais tempo para
aprender a criticar e a desprezar a si mesmo” (Ibidem, p.73). Carter indicava a
necessidade de revisão do conteúdo, questionando a necessidade de compreender
a história universal, sem reduzir o feito, mas reforçava a dimensão de dominação
presente. Reformular o foco, pautar a história africana (futuramente incluída) do
ponto de vista da antropologia, história e apresentar a sociologia para compreender
e estudar o camponês ou proletário Negro, seria importante tarefa. Mas para isso
indicava como necessária a organização de uma coletividade negra, que
reconhecesse estes elementos como demanda. Deveria forjar o “novo Negro na
política” não para restringir a esta forma, formato de disputa, mas sim para conseguir
visualizar “toda a ordem social e econômica com sua raça como parte dela (Ibidem,
p.114).
Neste momento, ele faz uma “cunha” em relação aos ditos “negros radicais”
que leram Karl Marx, doutrina esta trazida segundo Woodson pelos brancos
“insanos” para os negros. Essa crítica se alicerçava na leitura de que os Negros não
podem depender de nenhum grupo para organizar suas demandas e a disputa pelo
poder, que historicamente os grupos mais vulneráveis, quando não autônomos,
acabam sendo subalternizados no novo governo ou regime. O marxismo é aqui visto
como sendo uma força “estrangeira”, que pouco conhece sobre a questão negra. Em
outra passagem, chama atenção para os riscos de um radicalismo que mira a
14
destruição do sistema econômico por conta dos problemas centralmente sociais.
Contudo, o mesmo autor destaca a importância do negro se radicalizar, “mas este
radicalismo deve vir de dentro (...) não movimento no mundo do trabalho
especialmente para o negro. Ele deve aprender a fazer isso por si mesmo ou será
exterminado” a exemplo dos indígenas americanos (Ibidem, p.115).
Esta crítica ao marxismo, supostamente pelo seu “estrangeirismo” que
desconheceria a história dos negros, revela certo desconhecimento por uma
literatura negra e marxista9, que objetivava compreender os fenômenos e
transformá-los, radicalmente. Ao mesmo tempo que dialoga com leituras mais
contemporâneas de uma “tradição radical negra” e dos limites do marxismo europeu
(Robinson, 2023).
A educação, a política e uma certa consciência coletiva negra aparecem como
categorias que se articulam no pensamento do autor. Uma ação educacional
consciente organizada e dirigida pelos negros é condição para superar a dinâmica
imposta pelo opressor, que para Carter Woodson o opressor ao convencer o
negro do auto ódio consegue: conquistar, explorar, oprimir e aniquilar o Negro em
razão do ocultamento da verdade. É inegável uma crença na ciência como arma de
libertação que dialoga com intelectuais iluministas e utópicos que produziram no
século XIX, mas o adensamento desta leitura se encontra com a percepção de que é
necessário para além da ciência, compreender a história e a estrutura da sociedade
existente, de modo a revelar o projeto intencional de (des)educação de Negros (as).
A agenda então, segundo Carter, seria a de construir afastamentos de
missões impostas por “outros” que não os negros, superar o projeto das elites de
(des) educação de negros, construir um novo projeto educativo que valorize a
comunidade, a história, o passado e possibilite condições de pensar num presente e
futuro, dignos. “A educação do negro deve ser cuidadosamente dirigida a fim de que
a raça não perca tempo tentando fazer o impossível, controlando seu pensamento e
o inferiorizando” (Woodson, 2021, p. 118).
9 Para conhecer mais, ver: PICO, Daniel Montañez. Marxismo Negro: pensamento descolonizador do
Caribe Anglófono. São Paulo: Editora Dandara, 2024.
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À guisa de conclusão
A tentativa de síntese a partir da exposição da visão social de mundo de dois
intelectuais orgânicos negros, Clóvis Moura e Carter Woodson pode ser lido como
uma ousadia anacrônica. Clóvis Moura, sociólogo brasileiro que viveu entre
1925-2003, começa a escrever nos anos de 1940, mas tem sua primeira publicação
apenas em 1959. Carter Woodson viveu entre os anos de 1875-1950, tendo
publicado o livro sob o qual referenciamos a exposição em 1933. Nesta toada, é
constatável que Woodson não teria como ter conhecido, ainda que fizesse um
grande esforço, a primeira publicação de Moura. Além disso, falamos de dois
pensadores que se localizam em tipos de desenvolvimentos específicos do
capitalismo como sistema, estando Woodson num grande império e Moura num país
de capitalismo dependente, que por si só já apresenta dinâmicas distintas, desiguais
e combinadas.
Mas em comum, este texto argumenta na direção de que ambos tematizaram
a educação de negros (as) sobre a primeira metade do século XX, expressando
projetos de sociedade e estratégias de superação da condição existente a partir de
visões sociais de mundo distintas. Contudo, a suposta ousadia se encontra na tese
de que a educação foi capaz de relevar as tensões existentes, os projetos em
disputa e indicar os processos de organização coletiva de negros(as) como chave,
ou instrumento de enfrentamento, resistência e criação do novo.
Ambos, Moura e Woodson reconhecem os conhecimentos prévios e
formativos dos descendentes de africanos escravizados. Seja desde África, como
indicam o conhecimento de metalurgia, agricultura e outras “ciências”, mas também
conhecimentos adquiridos durante o processo de escravização, a exemplo dos
denominados como “escravos de ganho” que Moura apresenta. Neste sentido, a
construção do mito da inferioridade é constatada pelos dois autores, seja na
construção de um currículo, na ausência do Estado na garantia da educação como
direito, no processo de (des) educação do Negro, ou ainda pelo mito da democracia
racial.
A educação para Clóvis e Woodson aparece como instrumento potente para a
construção de perspectivas antirracistas. Contudo, diferenças sobre qual a
melhor tática ou estratégia a ser engendrada.
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Para Clóvis Moura, a questão educacional aparece em alguns momentos
centrais. Na constatação de que a imprensa negra, os movimentos negros, do início
do século XX elegeram a educação como instrumento para a superação do racismo
- ao ponto de as organizações negras pegarem para si esta tarefa -, e na crítica ao
“apoliticismo” das mesmas em não perceberem a necessidade de cobrar do Estado
este direito. Apesar de críticas de Moura a respeito de uma leitura supostamente
insuficiente sobre a inserção social de negros(as) a potência é inegável sobretudo se
pensarmos a educação como formação humana, encontrando-a nas experiências e
lições dos processos coletivos engendrados pelos movimentos negros. Nos textos
de Clóvis Moura indícios de que a educação, além de instrumento tático, aparece
como elemento organizador dos sujeitos coletivos a partir da leitura do “movimento
negro como educador” de Nilma Lino Gomes, indicando oportunidades para
enfrentar o Estado capitalista e racista, assim como aponta brechas estratégicas
para construção de um projeto emancipador, a partir de outra base de produção do
conhecimento. Neste sentido, as indicações de Moura encontram uma síntese
robusta nas reflexões de Gomes,
O reconhecimento do Movimento Negro como produtor,
sistematizador e articulador de saberes nos coloca em contato com a
possiblidade de construção de um pensamento com potencial de
“derrubar os muros que separam o conhecimento e as experiências
sociais”, permitindo a construção de uma reflexão teórica, bem como
uma ação política alicerçada em uma “prática
política-epistemológica” de caráter emancipatório, com muitas
“entradas e saídas e sem perder a identidade (Gomes, 2021, p.140).
A tese que o sociólogo apresenta do negro como um organizador indica os
processos coletivos e negrita o caminho para a construção de uma sociedade que
não seja pautada no racismo e na hierarquização das raças, o “negro rebelde”
adquire consciência crítica de modo coletivo, em relação ao mundo que o cerca. O
movimento negro educa, organiza e constrói esperança para a criação do novo. Esta
dinâmica é pensada no interior da sociedade de classes e visa a superação da
sociedade capitalista a partir de uma perspectiva antirracista, apontando para a
criação de um novo projeto de sociedade.
Carter Woodson mira o processo educacional dos Negros na sociedade
capitalista como (des)educativo, desagregador, que intenciona isolar os sujeitos,
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pacificando-os e retirando a radicalização dos mesmos para pensar os processos de
mudança. Os currículos e os tipos de curso ofertados possibilitam uma dinâmica
intelectual em algum nível, mas subsume a perspectiva mais coletiva e a capacidade
de mirar a comunidade negra como um todo, sobretudo os não eleitos para o
processo de educação projeto da elite estadunidense. A proposta de construir
novos focos, a partir da denúncia dos currículos existentes, aponta a necessidade de
conhecer a história, cultura e memória dos negros para superar a tentativa de
inferiorizar, que esta objetiva oprimir e controlar estes corpos. Contudo, nega o
marxismo por enxergar nesta visão de mundo um certo “estrangeirismo” oportunista,
que se trataria de uma ciência da ação não pensada, dirigida e formulada pelos
Negros. Em comum, uma ideia de coletividade e organização da comunidade
negra, a partir das provocações advindas da educação.
Woodson, numa perspectiva ainda dentro da ordem, separa os problemas
econômicos das questões sociais e percebe na educação a possibilidade
instrumental de organização da comunidade Negra, uma vez que reconheçam a
necessidade de resgatar a história, a memória e a riqueza dos afro-americanos,
desde África. Isso como possibilidade de romper com a imposição (des)educativa
do projeto das elites brancas, que acabam por corroborar a manutenção da estrutura
social e de abandonar os Negros quando conquistam seus interesses. Carter
Woodson entende que os processos de transformação social devem partir dos
próprios negros que se percebem enquanto comunidade e que os valorizem.
Entretanto, não faz uma associação articulada entre Capitalismo e Racismo, como
bem indica Moura.
Apresentar um diálogo, a partir dos textos selecionados, entre estes dois
intelectuais orgânicos que se debruçaram sobre os processos que envolviam as
relações raciais no Brasil e EUA, foi provocada pelo fato dos autores terem
identificado a educação como importante instrumento no início do século XX para
indicar projetos políticos racializados. A educação de negros e negras se apresentou
como espaço potente de canalização do descontentamento social em relação à
hierarquização racial e inferiorização de sujeitos e, direta ou indiretamente,
questionou o modelo de sociedade em curso que produz este fenômeno. Isso
ocorreu seja, pela constatação da negligência do Estado em garantir a educação
como direito fazendo com que os movimentos negros assumissem a tarefa, ou ainda
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por apresentar uma proposta de educação pouco eficaz para a mobilidade social,
com a intenção de manter a hierarquia sociorracial funcionando via captura da
história potente da comunidade negra. A tese compartilhada é que serão negros e
negras que devem estar à frente de projetos que denunciem, mas que também
organizem processos de luta antirracista. Apesar das diferenças estratégicas, com o
auxílio de Woodson e Moura é possível realizar a leitura de que a educação na
perspectiva da formação humana é capaz de motivar a organização de uma
coletividade, da comunidade e movimentos negros, consciente do racismo como um
problema, de modo a catalisar novas perspectivas ou novos projetos societários. A
despeito de datados, ao reforçar a dimensão da ação política coletiva, os textos
retomam uma questão ainda muito pertinente na atualidade: é possível superar o
racismo sem superar o capitalismo?
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