V.23, nº 50 - 2025 (janeiro-abril) ISSN: 1808-799 X
O MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO (MNU):
47 ANOS DE LUTA POR UMA SOCIEDADE ANTIRRACISTA:
[ENTREVISTA A REGINA LUCIA SANTOS]
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Jane Barros Almeida
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(Marcha das Mulheres Negras de São Paulo- 25 de julho 2021- Acervo de Regina Lúcia Santos)
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Doutora em Sociologia pela Universidade de Campinas (UNICAMP), São Paulo - Brasil. Professora
Adjunta do Departamento de Ciências Sociais e Educação da Universidade Estadual do Rio de
Janeiro (UERJ) - Brasil. E-mail:
janebarrosuerj@gmail.com.
Lattes:
http://lattes.cnpq.br/9178503996055564. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3878-0837
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Entrevista recebida em 16/02/2025. Aprovado pelos editores em 23/03/2025. Publicado em
09/04/2025. DOI:
https://doi.org/10.22409/tn.v23i50.66334.
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O MNU completará 47 anos esse ano (2025), se aproximando de meio século
de lutas antirracistas, com contribuições históricas para o avanço das pautas do
povo negro, inclusive no campo da educação. Como destaca Lélia Gonzalez, a
memória é um elemento necessário à luta antirracista. Portanto, resgatar as
experiências de resistência dos movimentos sociais é resgatar também parte
importante da nossa história. A revista tem a oportunidade de ouvir uma mulher
negra, militante, que tem construído o Movimento desde os anos noventa. Regina
Lucia Santos é geógrafa, especialista em educação para as relações étnico-raciais e
coordenadora estadual de formação do Movimento Negro Unificado MNU - SP
Jane B. Almeida - Você poderia falar um pouco do seu ingresso e
trajetória no MNU. Para nós seria interessante você destacar o que
te impulsionou e o que te impulsiona a estar na construção deste
movimento?
Regina Lúcia - Eu comecei a militar sem perceber. Eu fiz o que se chama
hoje ensino médio, no antigo colegial nos anos de 1973, 74 e 75 numa escola num
bairro de Osasco/SP, e nessa escola não tinha nada, então comecei a primeiro por
perguntar ao diretor da Escola se a gente podia fazer um grêmio, e obviamente não
podia. comecei a procurar formas da gente ter uma biblioteca, e no último ano do
Colégio, em 1975, uma professora que lecionava sociologia passou um seminário no
começo do ano, em março, para ser realizado em setembro, sobre diversos
assuntos: capitalismo, comunismo, comunismo real, socialismo, socialismo real, e
quando estávamos dando os seminários morre Vladimir Herzog, e chega uma ordem
da diretoria, via secretaria de educação de Osasco, que não poderíamos continuar
abordando o assunto nos seminários. Minha professora resolveu “peitar” e disse:
“Olha gente, a gente vai falando, não põe nada na lousa e se entrar alguém diferente
na sala, a gente muda de assunto”, isso me fez perceber que tinha alguma coisa
fora da ordem e a minha militância foi passando por diversos setores. Eu fui
militante do movimento estudantil e fiz parte de uma organização trotskista, fui
militante do movimento de mulheres e do movimento sindical. E assim com estas
experiências, eu via que faltava alguma coisa. Numa campanha do PT, nem era
campanha ainda, estávamos discutindo quem seria o candidato no ano seguinte,
conheci o Milton Barbosa - que é um dos fundadores do MNU e começamos a
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conversar muito, cada vez mais. Depois de pouco mais de um mês, ele me
convidou, no final de 95 início de 96, para fazer parte do MNU. E eu que me achava,
por ser de uma família mestiça, e por isso tinha muita consciência racial, fui
perceber que, na verdade, eu não tinha nenhuma consciência, que estava tomada
por estereótipos racistas, mesmo sem perceber. Entrei no MNU e comecei a estudar
muito para superar essa colonização da cabeça e portanto, estou 29 anos neste
movimento. O que me motivou nestes quase 50 anos de militância, foi que sendo
uma mulher libertária, revolucionária e de esquerda, percebi que não existe a
possibilidade de nenhum processo de libertação e de revolução que não passe pela
derrocada do racismo. Então, é isso que me fez estar no MNU, e é isso que continua
me motivando a estar no MNU.
Jane B. Almeida - Qual a relação do marxismo com o MNU?
Regina Lúcia- Trata-se de uma forte relação. Na verdade, não existe
possibilidade da derrubada do racismo se não derrubarmos o capitalismo, porque o
racismo estrutura a exploração capitalista. O Marxismo é um instrumental
valiosíssimo para a análise do capitalismo, para compreensão do capitalismo na sua
totalidade, e por isso é muito importante para o movimento negro que a gente
conheça toda a obra de Marx para poder fazer uma avaliação correta. O nosso
inimigo é o capitalismo! O inimigo dos lutadores contra o racismo é o capitalismo, ele
vai minando nossa ação de combate ao racismo, e por isso precisamos do marxismo
para fazer uma análise completa deste sistema.
Jane B. Almeida - Como você percebe a relação entre teoria e
prática na construção do MNU? Há uma relação perceptível?
Regina Lúcia- Eu, particularmente, acredito que a teoria e a prática têm que
andar de mãos dadas. O racismo é uma coisa que quem sofre sabe a dimensão
exata do que é, mas, o racismo brasileiro em especial é de uma complexidade
impressionante. Eu sou muito admiradora daquela frase do Kabengele, o racismo é
um crime perfeito! E é muito isso, e se você não tem a teoria, não tem um
conhecimento da teoria, se você não tem formulação acerca das formas de combate
ao racismo, se você não tem formulação sobre como as mazelas do racismo se
travestem e são naturalizadas, se você não tem formulação acerca das formas de
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descolonização mental etc., a sua ação é uma ação limitada. Então, por isso, e
diante da minha experiência em muitos grupos de estudos e formulação nesses
quase 30 anos de MNU, acho que são perceptíveis sim: a relação entre teoria e
prática, em especial entre as lideranças, entre as pessoas com mais tempo. Eu, por
exemplo, entendo que minha ação pessoal de combate ao racismo ganhava outro
patamar a cada possibilidade de discussão e formulação que tínhamos. É muito
importante a relação entre teoria e prática, diante de uma luta tão complexa como a
luta de enfrentamento ao racismo, em especial no Brasil.
Jane B. Almeida - Qual o papel da educação para o MNU, como ela
se revela no programa, nas ações e na política do movimento?
Regina Lúcia- A educação tem um papel essencial e primordial. Desde que
entrei no MNU, eu advogo para que tenhamos uma estrutura do curso de formação
que abranja toda a militância, mas ainda não alcançamos esse patamar por causa
da complexidade que é o MNU, que paga um preço muito alto por ser uma entidade
do movimento negro que é toda de voluntariado, uma entidade autônoma
independente, apartidária, não religiosa, e isso tem seu preço. Então eu advogo pela
formação dos vários militantes, pois o letramento racial é uma das tarefas que se
colocam muito fortemente para o movimento negro em geral e para toda a
sociedade. Uma educação antirracista para combater a alienação racial imposta pela
educação; para transformar a educação brasileira que é uma educação branca,
eurocêntrica etc. numa educação plural, multirracial, pluriétnica. A educação é a
grande porta para ação de combate ao racismo.
Jane B. Almeida - Lélia Gonzalez foi uma das fundadoras do MNU,
e trouxe uma grandiosa contribuição para os movimentos negros.
Como analisa a influência do seu pensamento na luta antirracista?
Regina Lúcia - Bom, como você disse, as contribuições da Lélia são
fundamentais para o movimento negro. É importante que a gente diga que de uma
certa forma a Lélia foi a primeira pessoa a abordar a questão da descolonização
mental. Voltando ao Kabengele, o racismo é um crime perfeito porque o maior
prêmio do racista é o fascinar, seduzir a consciência da vítima do racismo, então a
Lélia quando ela fala da nossa amefricanidade, ela está exatamente falando da
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necessidade da gente se apossar das nossas raízes e descolonizar a cabeça.
Descolonizar a cabeça é na verdade para mim é a única e verdadeira forma de se
tornar um antirracista. Além disso, eu acho que é de fato uma das coisas mais
importantes com o que a Lélia contribuiu, somada a da formação de vários
intelectuais, e tem uma outra questão: sem a sua discussão sobre descolonização e
gênero, não teríamos um movimento feminista negro com a força que tem hoje no
Brasil. Lélia é um dos baluartes do pensamento negro no Brasil.
Jane B. Almeida - Quais os desafios do MNU hoje, frente a
intensificação das políticas neoliberais, do crescimento da extrema
direita e de uma constatação da persistência do racismo na
sociedade em que vivemos?
Regina Lúcia - Penso que o primeiro desafio que se coloca ao longo dos 46,
quase 47 anos de MNU, e é atualíssimo, é manter o povo negro vivo, estancar e
barrar o genocídio do povo negro. Isso significa deter a violência do Estado
brasileiro, na sua forma mais bruta, que é a violência policial, o encarceramento,
mas também lutar por políticas de saúde para a população negra, e este primeiro
desafio, um pilar de existência, nos leva a todos os outros. Evidentemente que
nestes quase 47 anos passamos por muitas tristezas, muitas perdas, mas muitas
conquistas, transformamos o racismo numa pauta política nacional. De uma pauta
absolutamente invisibilizada, conseguimos impor que os meios de comunicação
falem sobre o racismo, sobre o povo negro, e de algum modo a violência do Estado,
tornando esperado uma reação como a da extrema direita. Tornar a pauta racial uma
pauta nacional tirou a extrema direita do armário, pois ela sempre existiu. Ela está
desde o início do século XX, na verdade desde a abolição da escravatura, e eles
têm se pronunciado com mais força no século XX, especialmente depois do auge do
fascismo e do nazismo. Eles sempre estiveram reservados, mas nos odiando a
distância, então acho que era meio esperado que avançassem. Tenho plena
convicção de que foi a nossa luta de combate ao racismo que tirou a extrema direita
do armário. Acredito que a Lélia Gonzalez e a Neusa Santos estão muito em voga
nesse momento, eu tenho falado muito sobre por conta da bobagem da Jojo
Todynho ter dito que ser negro é muito mais do que ter a pele e traços negros, a
afirmação da Jojo não cabe numa mesma frase. Qualquer pessoa pode ser de
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direita, agora a pessoa de pele escura ser de extrema direita. Então, ela pode ter a
pele escura o quanto ela quiser, se ela não tiver a consciência de que o lugar social
que ela ocupa, que as discriminações que ela sofre é por conta da sua pele e que
sua pele tem uma história, ela não é negra. Enfim, temos enormes desafios, o
primeiro eu disse, os demais eu acho que passa pela questão do letramento
racial, a tarefa dos negros (as) acadêmicos com consciência é barrar o epistemicídio
nas universidades brasileiras, temos muitos e muitos desafios.
Jane B. Almeida - Na sua leitura como dirigente do movimento,
quais as principais tarefas de um movimento que combate o racismo
hoje?
Regina Lúcia - Entendo que as políticas neoliberais são políticas que na
verdade impactam a vida da população negra de forma a inviabilizá-la. Portanto, é
papel do movimento negro também o combate às políticas neoliberais porque eu
digo o seguinte, enquanto a gente não faz a revolução, a gente tem que se manter
vivo para fazer a revolução na frente. Apesar de eu querer acabar com
capitalismo, eu tenho que deter as políticas neoliberais para manter o povo negro
vivo e por isso um enfrentamento, e a necessidade, por exemplo, da participação
negra nos parlamentos, levando as nossas pautas. Não adianta só ter um pretinho lá
eleito como o Fernando Holiday (PL), tem que ter negros eleitos como vários no
Brasil que conheçam nossa pauta e que lutam por dignidade de vida da população
negra, Para encerrar essa questão, as tarefas são muitas, eu digo que para
combater o racismo, a luta passa por diversas frentes: questão ambiental, racismo
climático, por uma educação de qualidade, laica, acesso à saúde pública de
qualidade, por emprego, moradia, cultura, lazer e etc. Então, são muitos os desafios,
precisamos estar atentos a todas as armadilhas que racismo, por conta da sua
complexidade, nos coloca no nosso caminhar. Uma luta constante para que essas
armadilhas sejam desmontadas, expondo as mazelas que racismo coloca para a
sociedade brasileira. Eu estou me restringindo a falar do Brasil, mas guardadas as
devidas proporções e especificidades, isso vale para os Estados Unidos, para a
Europa, para o combate ao racismo no mundo.
Jane B. Almeida - Qual sua avaliação sobre o enfrentamento do
racismo nos anos 80 e atualmente? Em 2023 o MNU fez 45 anos,
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destes boa parte experienciada por você. Houve avanços
conquistados nestas mais de quatro décadas?
Regina Lúcia - No final dos anos 70 e início dos anos 80, o que caracteriza a
luta de combate ao racismo é o pioneirismo da pauta. Depois de mais de 40 anos,
do processo de banimento da Frente Negra, a militância negra se resumia a
questões culturais até por conta do longo período da ditadura militar que proibia a
abordagem da questão racial. No início dos anos 80 estava sendo retomada a luta e,
portanto, apresentando para a sociedade questões que eram muito antigas, mas que
não faziam parte das discussões, da observação da população negra no país. Tudo
parece muito novo embora a gente saiba que não é, mas a denúncia o “se apossar”,
que mesmo com a frente Negra, observávamos nas fotos que não existia o “se
apossar” da sua figura de negro, algo muito presente no movimento no final da
década de 70 e 80 aqui no Brasil: Os cabelos, a estética negra sendo colocada e é
tudo muito novidade. E agora eu entendo que houve mudanças, mas uma grande
parte da pauta persiste, mas houve muitos avanços. A questão racial sempre foi
uma pauta historicamente invisibilizada, uma das lutas do Movimento Negro
Unificado, no início, era o combate à invisibilidade do negro nos meios de
comunicação. Hoje o maior conglomerado de comunicação do Brasil e das Américas
é obrigado a nos colocar em toda sua programação, e isso não se deve pelo fato da
Globo deixar de ser racista e nada disso, se deve mesmo a nossa luta, a imposição
da pauta, a imposição de sermos mercado consumidor, que por ser a maioria da
população nós sustentamos o país. Por exemplo, quando eu entrei no Movimento
Negro Unificado, eu não imaginava que hoje a população perceberia que a violência
do Estado se deve ao fato dela ser negra, e isso não era cogitado. Isso é apontado
pelo movimento de mães negras vítimas do estado, que traz para o seio do
movimento negro, mas muito cutucada pelo movimento negro. O movimento negro
se solidariza com a luta da perda, a luta do luto dessas mulheres, contribuindo
muitíssimo para que o luto destas mães vítimas do estado brasileiro se
transformasse em luta, deixassem de ser luto para se transformar em luta. Eu jamais
imaginaria ver crianças se referenciando em personalidades negras da televisão, eu
jamais pensaria 20 anos, de ver a meninada negra na periferia, especialmente
dos saraus e das batalhas de rap, tão abonadas de sua história. Eu entendo que
mudanças muito fortes aconteceram e ainda vão continuar acontecendo.
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