V.23, nº 50 - 2025 (janeiro-abril) ISSN: 1808-799 X
Tese de doutorado
1
SILVA, Sandra R. V.
2
A centralidade da questão racial nas lutas de classes no
Brasil: um estudo a partir de organizações da esquerda brasileira entre a ditadura
e a redemocratização. 2024. 346f. Tese (Doutorado em Serviço Social) UFRJ,
Rio de Janeiro, 2024.
Resumo expandido
O trabalho é resultado da pesquisa realizada no doutoramento pelo Programa
de Pós-graduação em Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Tendo como objetivo estudar a confluência entre racismo, capitalismo e lutas de
classes no Brasil, buscou desvelar as determinações que impuseram a emergência
e centralidade da questão racial, entre os períodos da ditadura-civil militar e
empresarial até a redemocratização brasileira.
Referenciada no materialismo histórico-dialético como método de pesquisa, a
proposta de tese está estruturada em 4 (quatro) capítulos que partiram da
compreensão de que é possível através da teoria social crítica, sobretudo através
dos estudos marxiano e marxista, compreender a realidade brasileira e a
particularidade de sua formação social, com base na análise das categorias raça e
racismo como elementos centrais, fundantes e norteadores da pesquisa.
Essa perspectiva buscou, por um lado, responder aos limites colocados em
torno da temática “marxismo e questão racial”, ora apontada como passível de
referencial teórico insuficiente e fadado ao “eurocentrismo” e “ocidentalismo”, ora
apontada como campo “identitário” e “fragmentador da luta de classes”,
especialmente por suas experiências atravessadas pela estética, cultura e política.
Embora a tese não tenha se dedicado diretamente a um embate com tais categorias
2
Doutora em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ.
Email:
sandravaz@id.uff.br. Lattes: http://lattes.cnpq.br/5882497845485160.
ORCID:
https://orcid.org/0000-0002-2218-7318.
1
Resumo Expandido recebido em 17/02/2025. Aprovada pelos editores em 08/03/2025. Publicado em
09/04/2025. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v23i50.66647.
1
(identitarismo e eurocentrismo), a análise empreendida no decorrer desta produção
procura demonstrar os limites e equívocos em torno de tais interpretações, quando
relacionadas à confluência entre raça e classe social e interpretadas a partir da
teoria social crítica marxista e marxiana, mas sem desconsiderar as contradições em
torno dessa relação.
O percurso metodológico se orientou através de pesquisa empírica, quali e
quantitativa, que partiu de análise bibliográfica, análise de dados e documentos
consultados nos seguintes acervos: Memórias Reveladas (Arquivo Nacional), que
apresentou relatórios e documentos sobre o movimento negro e a questão racial,
elaborados pelos serviços de espionagem do regime militar; Arquivo Edgard
Leuenroth (AEL/Unicamp), que disponibilizou consulta aos documentos sobre o
movimento negro entre os anos 1960 e 1980; Acervo histórico do Centro Sérgio
Buarque de Holanda (Fundação Perseu Abramo), para compreender o antirracismo
nos períodos iniciais de emergência do Partido dos Trabalhadores (PT); a coluna
Afro-Latino-América do jornal Versus (1975-1979), que apresentou o caráter
teórico-político do movimento negro no período.
Foi possível evidenciar através de documentos e relatórios elaborados por
todo o período, que os órgãos oficiais de vigilância para o controle e repressão no
regime militar, como o Sistema Nacional de Informação (SNI), estiveram atentos as
lutas negras no Brasil, pois acreditavam estar em curso uma revolta propagada pela
cultura negra que acabaria com a harmonia racial do país, e poderia incitar a luta de
classes.
Intitulado “Racismo Negro no Brasil”, esse foi um dos documentos compilados
pelo SNI, que partia de relatórios produzidos por suas agências regionais sob o
mesmo título, e apresenta cerca de 400 páginas.
Também, o arquivo Edgard Lauenroth (AEL) da Unicamp, subsidiou a
presente pesquisa, por meio de um acervo de documentos históricos que tratou da
emergência e dos anos iniciais do Movimento Negro Unificado (MNU), que fora
denominado inicialmente por Movimento Unificado Contra a Discriminação Racial
(MUCDR). Foi possível analisar os primeiros documentos programáticos, suas
posições teórico-políticas e pautas centrais no processo de redemocratização do
Brasil.
2
o acervo histórico do Centro Sérgio Buarque de Holanda, da Fundação
Perseu Abramo, possibilitou compreender a trajetória do PT sobretudo até a
década de 1990, e a incorporação do debate racial e seus desdobramentos nas
décadas posteriores, evidenciando o processo de institucionalização do
antirracismo, a vasta mobilização da militância negra no ano do centenário da
abolição, a questão racial mediante as mudanças em torno da linha política do PT,
algumas polêmicas e rupturas de quadros importantes do movimento negro com o
partido.
O PT foi a aposta e a saída defendida pelas organizações políticas,
movimentos sociais, sindicais e populares na redemocratização brasileira, que
culminou numa luta por direitos sociais e cidadania. Nesse período, a questão
democrática esteve no centro dos debates.
A questão democrática é uma pauta fundamental para a população negra no
Brasil e, por isso, foi necessária uma compreensão especial em torno deste debate.
Para isso, a tese partiu da particularidade da formação social brasileira até o
processo de redemocratização, de modo a compreender essa trajetória histórica,
acompanhada pela trajetória do movimento negro e suas principais reivindicações
na realidade brasileira.
Por fim, a análise documental da edição fac-similar da coluna
Afro-Latino-América (1977-1979) do jornal Versus (1975-1979), disponível na
biblioteca digital da Fundação Perseu Abramo, revelou a tônica da proposta desse
estudo, que possibilitou conhecer o diálogo e a aproximação de setores do
movimento negro com as organizações de esquerda no período. Uma articulação
que resultou no adensamento teórico e político sobre raça, classe e revolução no
Brasil, que, partindo de fatores internos e externos, levou a setores da militância
negra a uma radicalidade, possibilitando um salto político qualitativo em torno do
antirracismo no Brasil, seu espraiamento na sociedade, conformação de uma
agenda política institucional em âmbito nacional, produções intelectuais significativas
em torno das categorias raça e racismo, que na atualidade são conhecidas como
“racismo estrutural”. A experiência do Núcleo Negro Socialista que integrou a
Convergência Socialista, através da Coluna Afro-Latino-América do jornal Versus
(1975-1979), demonstra a sintonia e alinhamento com intelectuais negros marxistas
e/ou que se inspiraram no marxismo e estiveram envolvidos com as lutas
3
anticoloniais, sobretudo do continente africano, além da luta por direitos-civis e
latino-americana.
Embora a presente tese não apresente um ineditismo com relação a temática,
é preciso evidenciar que poucas são as interpretações que partem de uma
perspe
ctiva orientada pela teoria social crítica, ou estabeleçam algumas
aproximações, e não
caiam em um reducionismo ou até mesmo antimarxismo, que
buscam ocultar e/ou negar o acervo e contribuição desta perspectiva sem deixar as
polêmicas e contradições de fora desta análise. Essas são algumas tendências
atuais, algumas delas utilizadas como referências na tese, que procurou estabelecer
mediações e absorções sobre as suas contribuições ao objeto de estudo. É possível
afirmar que, no bojo do ciclo ditatorial, inúmeros foram os vetores de caráter
universal e particular que contribuíram na formação e florescimento de uma cultura
predominantemente de esquerda a partir dos anos 1960, que, em meio a derrotas e
ascensos, protagonizaram a luta de classes e fizeram girar a roda da história.
Enquanto os países de hegemonia capitalista transitavam entre a expansão e
a crise do capitalismo tardio (MANDEL, 1982) resultando numa “explosão
contestatória” nas diferentes vertentes da vida cultural, política e acadêmica, que
levou ao protagonismo da juventude universitária, e, posteriormente das camadas de
trabalhadoras/es, mulheres, LGBTQIAP+, negras/os, imigrantes e afins –, a América
Latina se inspirava na revolução continental a partir da tática do foquismo
revolucionário
3
. E como observou Paulo Netto (2014): “Como o mundo, a América
Latina se movia, e nela, também o Brasil” (p. 113). Nessa conjuntura, o antirracismo
adquiriu capilaridade, motivado pelo ideário da negritude francófona e sua
3
Da revolução cultural Chinesa emergia uma aspiração sobre a potência revolucionária do
campesinato, compreendendo-o como uma força à guerra popular que derrubaria as muralhas das
cidades, vistas como a sede do opressor. E foi com as elaborações teóricas de Ernesto Che Guevara
e Régis Debray que o Brasil toma conhecimento sobre a teoria do foco, sobretudo pela experiência da
Revolução Cubana. De acordo com Gorender (1987), essa teoria apontava para a existência de
condições objetivas para a revolução nos países latino-americanos. E, por ser uma revolução
continental, Guevara compreendia que a revolução latino-americana deveria estar acima das
diferenças nacionais secundárias e em linha reta, socialista. No caso das condições subjetivas, ou
seja, a condição das forças sociais para se fazer a revolução, estas deveriam ocorrer pela ação de
um foco guerrilheiro. Com tática e treinamento de guerrilha, o foco se caracterizava por homens que
atuavam entre os camponeses em regiões que tinham possibilidades naturais de defesa contra os
ataques do Exército. Posteriormente as colunas guerrilheiras se deslocavam para outras regiões e se
juntavam ao exército rebelde para derrotar o inimigo. Assim, numa crítica ao burocratismo e a
corrupção, misturada a ideia prioritária do fator militar sobre o político, o foco guerrilheiro tinha a
iniciativa de instituir a luta, ficando o processo revolucionário em torno desta iniciativa e subordinado à
dinâmica da guerrilha rural, ou seja, “desde a luta de massas nas cidades à formação do novo partido
revolucionário” (GORENDER, 1987, p. 81).
4
receptividade no Brasil, os ventos revolucionários “terceiro-mundistas”
4
, a
radicalidade pan-africanista, as experiências do Partido dos Panteras Negras para a
Autodefesa (Black Panther Party –– BPP) e ampliação do trotskismo no mundo e
seu estreitamento com a “questão negra”, especialmente sob a influência de C. L. R.
James (1901-1989).Esses foram alguns dos elementos externos da formação e do
florescimento de uma cultura predominantemente de esquerda no Brasil, gestado
durante, e, muito tempo antes de seu espraiamento pelo mundo, especialmente
através do movimento comunista e das formulações de Lênin na III Internacional
Comunista (1919-1943), que apresentou uma tese sobre a “questão negra” e o
direito de autodeterminação dos povos oprimidos.
Com base em tais premissas, foi possível verificar que as décadas de 1960,
1970 e 1980 foram cruciais para o aprofundamento do modo de produção capitalista
brasileiro e seu caráter dependente, cuja vinculação da noção de raça e racismo
tiveram vários desdobramentos no contexto contemporâneo.
As respostas em torno das contradições postas pelo “milagre econômico
brasileiro” possibilitaram evidenciar as tendências teórico-políticas contemporâneas,
mas também identificar que, no contexto de lutas e rebeldias, a classe trabalhadora
se levantou em sua concretude, nos diferentes grupos, gerações, gênero, raça-etnia,
território e formas heterogêneas de organização, a partir de uma cultura
predominantemente de esquerda.
A antidemocracia, o terrorismo do estado e a crise do “milagre econômico”
brasileiro forjaram a organização dos movimentos populares numa luta em torno da
questão democrática e dos direitos sociais, seja através das associações de bairros,
da luta por transporte, saneamento básico, emprego e cultura, seja através dos
movimentos sociais organizados, como o movimento negro, cujas reivindicações
perpassavam pelo mesmo horizonte, além do antirracismo.
Por fim, a tese procura demonstrar a atualidade do marxismo e a necessidade
de reafirmação dos clássicos da teoria social crítica de Marx, enquanto perspectiva
teórica e de luta frente aos modismos acadêmicos e perspectivas liberais que
permeiam as lutas sociais contemporâneas.
4
O “Terceiro Mundo” era considerado um bloco intermediário entre os países de “primeiro mundo”,
composto por países ricos e altamente industrializados, como EUA, Inglaterra, França Alemanha e
Japão, e o bloco do “segundo mundo” formado pelos países socialistas, liderados pela URSS. Este
bloco intermediário foi composto por Brasil e países recém-saídos da dominação colonial como Índia
e China, além de Argélia, Egito, Gana, Senegal entre outros países africanos.
5
Referências
GORENDER, J. Combate nas trevas A esquerda brasileira: das ilusões perdidas
à luta armada, 2. ed. São Paulo: Ática, 1987.
MANDEL, E. O capitalismo tardio. São Paulo: Abril Cultural, 1982.
PAULO NETTO, J. Pequena história da ditadura brasileira (1964-1985). São
Paulo: Cortez, 2014.
6