V.23, nº 51 - 2025 (maio-agosto) ISSN: 1808-799 X
IDENTITARISMO, NEOLIBERALISMO E INDÚSTRIA CULTURAL NA LUTA ANTIRRACISTA NOS EUA1
Este texto tem como objetivo identificar os limites das políticas de identidade realizadas nos Estados Unidos a partir da década de 1960, e suas repercussões para a população negra nas esferas econômicas, políticas e culturais. Por meio de uma abordagem materialista-dialética em Haider (2019), Ture e Hamilton (2021), foram apontadas as contradições dessas políticas perante a realidade material dessa população.
Este texto tiene como objetivo identificar los límites de las políticas de identidad llevadas a cabo en los Estados Unidos a partir de la década de 1960 y sus repercusiones para la población negra en los ámbitos económico, político y cultural. A través de un enfoque materialista-dialéctico en Haider (2019), Ture y Hamilton (2021), se señalaron las contradicciones de estas políticas frente a la realidad material de la población negra.
This text aims to identify the limits of identity policies implemented in the United States since the 1960s, and their repercussions for the black population in economic, political, and cultural spheres. Through a materialist-dialectical approach in Haider (2019), Ture and Hamilton (2021), the contradictions of these policies in relation to the material reality of the country's black population were pointed out.
1Artigo recebido em 30/03/2025. Primeira Avaliação em 28/05/2025. Segunda Avaliação em 26/05/2025. Terceira Avaliação em 22/07/2025. Aprovado em 23/07/2025. Publicado em 06/08/2025. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v23i51.66930
2Mestre e Doutor em Letras (Teoria da Literatura) pela Unesp. Pós-doutorado em Letras (Teoria da Literatura) pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) - Brasil. Autor dos livros: O X de Malcolm e a questão racial norte-americana e Escravidão, abolição e democracia racial na História e Literatura brasileiras. Email: vlamigrod@hotmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/7135334473333438. ORCID: https://orcid.org/0009-0002-7704-4303.
As décadas de 1950 e 1960 assistiram ao protagonismo do movimento negro norte-americano. Foi um movimento de massa operário, liderado pelo Dr. Martin Luther King Jr. e por Malcolm X, os quais espalharam pelo país incontáveis marchas, boicotes aos ônibus, dentre outras ações.
A pressão das ruas trouxe resultados históricos. Em 1964, no governo de Lyndon Johnson, foi aprovada a Lei dos Direitos Civis, proibindo as leis segregacionistas que impediam os negros de, entre outras coisas, ingressarem às universidades. No ano seguinte, a pressão pela universalidade do sufrágio deu resultado efetivo e o voto sem restrições foi alcançado. Malcolm X acreditava, inicialmente, que essa conquista levaria à população negra dos EUA a um outro patamar de qualidade de vida, algo registrado em seu famoso discurso “O voto ou a bala”.
O voto, enquanto instrumento político de uma sociedade burguesa, de fato, deu a esse contingente populacional um peso de decisão importante, sobretudo nas cidades e estados do Sul onde ainda são grande número ou maioria. Mas, será que isso teria sido suficiente para mudar a estrutura material desigual e modificado o aparelho de segurança, historicamente conhecido pelo morticínio de negros e negras? Após a aprovação dessas leis, os governos norte-americanos, ora Democratas,
ora Republicanos, da década de 1960 até o início do século XXI, agiram em duas grandes direções quando o assunto era o engajamento político da população negra: por um lado, perseguiram, prenderam e executaram direta ou indiretamente as suas principais lideranças, o FBI de Edgar Hoover agiu como uma célula terrorista no país que jurava defender a liberdade no auge da Guerra Fria; por outro, a política de Segurança Pública agiu no sentido de promover, ano a ano, o encarceramento em massa da população negra, associando-a à criminalidade e às drogas, cujo auge teve início com a máxima “Lei e ordem” de Nixon na década de 1970, como recorda Haider em Armadilha da identidade, raça e classe nos dias de hoje:
O pânico moral e a instabilidade econômica legitimaram o recurso do Estado à repressão como gestão da crise, racionalizando e normalizando o policiamento. Essa campanha também teve uma vantagem menos óbvia: legitimava a iniciativa do Estado não apenas para conter a criminalidade, mas também para disciplinar a classe trabalhadora intransigente, cujas greves eram inflexíveis e poderosas (Haider, 2019, p. 119).
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Ao mesmo tempo, ambos os partidos que se alteraram no poder realizaram políticas públicas de inclusão de negros e negras no sistema político e econômico do país, com destaque para as políticas de cotas nas universidades e de promoção do emprego. A representatividade da população negra cresceu, significativamente, desde então. De certa maneira, o sonho do líder Booker T. Washington, do início do século XX, teria sido alcançado: a população negra com acesso à educação básica e participação política, condição fundamental para a superação do racismo. Será? Hamilton e Ture, no clássico Black power, a política de libertação nos Estados Unidos, discordam:
Outra lição frequentemente esquecida da carreira de Washington diz respeito ao aspecto de sua postura que convocava os brancos a ‘recompensar’ os negros com a inclusão ‘definitiva’ no processo político. Washington acreditava firmemente que, uma vez que os negros adquirissem habilidades úteis à realidade do Sul (ferraria, carpintaria, cozinha, agricultura etc.), uma vez que adquirissem uma base econômica sólida, uma vez que comprassem casas e se tornassem cidadãos que agem conforme as leis da comunidade, os brancos deveriam e os ‘aceitariam’ como ‘cidadãos de primeira classe’ (Hamilton; Ture, 2021, p. 156).
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Marxistamente, é sabido há tempos, que a superestrutura é incapaz de mudar a estrutura material em uma sociedade capitalista consolidada. Cada vez mais negros e negras votaram, mas seus representantes mudaram a opressão sofrida pela coletividade? Haider, em Armadilha da identidade, pontuou:
Em 2014, vimos muito bem o quão ineficaz é o multiculturalismo liberal. Apesar de uma família negra estar na Casa Branca, a violência contra a comunidade negra não parou. Quando um jovem negro chamado Michael Brown foi linchado por um policial branco, que não foi punido por isso, uma explosão de revolta eclodiu (Haider, 2019, p. 55).
A permanência dos problemas centrais pelos quais ainda passa a população negra norte-americana pós-1964 está relacionada diretamente às políticas de identidade criadas pelo establishment político do país. As críticas realizadas por Haider e Butler à essas políticas são de fundamental importância para o entendimento da raiz do problema. Elas foram criadas e expandidas no país a partir da década de 1960 e estão intimamente relacionadas ao Estado liberal burguês. Butler, em Problemas de gênero, ressaltou:
Identidades são formadas dentro das formações políticas contemporâneas em relação a certos requisitos do Estado liberal; [...] a afirmação de direitos e reivindicação de benefícios só podem ser feitas com base numa identidade singular. [...] O que chamamos de política identitária é produzido por um Estado que só pode dar reconhecimento e direitos a sujeitos totalizados pela particularidade que constitui seu status de demandante (Butler, 1999, p. 189).
Logo, ao conceder os direitos políticos e civis à população afro-americana, o Estado norte-americano passou a reconhecê-los, juridicamente, por meio de uma identidade baseada na cor como um instrumento de promoção da cidadania que se estende a “uma gama de práticas sociais: a divisão do trabalho na fábrica, a organização espacial da sala de aula e, é claro, aos procedimentos disciplinares da prisão. Nessas instituições, coletividades de pessoas são separadas em indivíduos que são subordinados a um poder dominante”, lembrou Haider em Armadilha da Identidade. Por meio dessa lógica, o sujeito possui a capacidade de agir individualmente, exercendo um poder na sociedade, atomizado, baseado na sua identidade, como também é subordinado a um poder. Consequentemente, como expôs Haider em seu livro:
Se podemos reclamar que somos de algum modo lesados com base em nossa identidade, como se apresentassem uma queixa num tribunal, podemos demandar reconhecimento do Estado com base nisso. E, uma vez que são a condição liberal, as identidades se tornam cada vez mais totalizantes e reducionistas. Nossa capacidade de ação política através da identidade é exatamente o que nos prende ao Estado, o que assegura nossa contínua sujeição (Haider, 2019, p. 44).
Nessa conjuntura, a partir do final dos anos de 1960, as minorias historicamente oprimidas conquistaram cargos importantes na estrutura do poder do país. Relacionada ao quadro político e cultural da época, a questão da identidade favoreceu não só a ascensão de políticos negros e negras, como Jesse Jackson, Colin Powell, Condoleeza Rice e Barack Obama, mas também criou ainda mais oportunidades para o talento da comunidade afro-americana nos esportes e na indústria audiovisual, tornando comum a expressão “é a primeira negra” em tal modalidade ou a alcançar algum prêmio de destaque. A ascensão desses sujeitos foi capaz de mudar a opressão vivida pelo grupo de onde vieram? Quando chegaram ao poder, o que defendem? Aos poucos, uma elite negra foi sendo formada e para Hamilton e Ture,
em Black power, ela se afastou daquilo que é fundamental para o sucesso coletivo, o pertencimento à uma comunidade:
Esse processo de cooptação e um subsequente aumento da distância entre as elites negras e as massas é comum em situações coloniais. Desenvolveu-se neste país uma classe inteira de “líderes cativos” nas comunidades negras. São pessoas negras com certas habilidades técnicas e administrativas que poderiam desempenhar funções úteis de liderança nas comunidades negras, mas não o fazem porque se tornaram dependentes da estrutura de poder branca (Hamilton; Ture, 2021, p. 43).
Ao mesmo tempo que essa parcela da população ascendeu às estruturas liberais do poder, esses autores apontaram, dialeticamente, que, naquele contexto da década de 1960:
(em) Birmingham, Alabama – morrem anualmente quinhentos bebês negros por falta de alimentos adequados, abrigo e instalações médicas [...]. Quando uma família negra se muda para uma casa em um bairro branco e é apedrejada, queimada ou expulsa do bairro, ela é vítima de um ato de racismo individual explícito que muitas pessoas condenam – pelo menos com palavras. Mas é o racismo institucional que mantém as pessoas negras trancadas em cortiços nos guetos, vivendo diariamente como presas de proprietários exploradores (Hamilton; Ture, 2021, p. 34).
Se por um lado as vitórias históricas dos movimentos pelos Direitos Civis não modificaram a estrutura material desigual dos Estados Unidos, por outro, criaram, na sociedade liberal-burguesa, uma democracia multiculturalista que passava a incorporar, via políticas da identidade, cada vez mais homens e mulheres negras em suas esferas de poder.
Haider percebeu que:
Mas essa era claramente a situação em que estávamos nos metendo nos Estados Unidos, enquanto liberais otimistas celebravam a substituição de movimentos de massa, distúrbios e células armadas por um plácido multiculturalismo. Ao longo de várias décadas, o legado dos movimentos antirracistas foi canalizado para o progresso de indivíduos como Barack Obama e Bill Cosby, que iriam liderar o ataque contra movimentos sociais e comunidades marginalizadas. Keenga- Yamahtta Taylor chama a atenção para esse fenômeno em From #BlackLivesMatter to Black Liberation: “A transformação mais significativa na vida dos negros nos últimos cinquenta anos foi o surgimento de uma elite negra, fortalecida pela classe política negra, que tem sido responsável por administrar cortes e impor orçamentos escassos nas costas de eleitores negros” (Haider, 2019, p. 44).
Essa ascensão de alguns às esferas de poder incluiu a cada vez maior presença de homens e mulheres negras na indústria audiovisual e nas modalidades esportivas. A representatividade negra, sem dúvida, quebrou barreiras históricas, impensáveis na época, inclusive, do aparecimento do personagem supostamente cômico, Jim Crow, que se vestia de maneira esfarrapada, uma alusão preconceituosa à população negra, e que deu nome às leis do país segregacionista. A representatividade pode ser também associada à uma crescente autoestima da comunidade negra, representada em esferas nunca antes vistas. E, em última instância, como veremos, pode servir de instrumento de denúncia do racismo. Entretanto, em um momento de ascensão da extrema-direita, nos EUA e no mundo, o propósito deste texto é identificar os limites das políticas de identidade, as quais reproduzem as estruturas capitalistas, não sendo suficientes para a superação dos problemas, seguindo a proposta estabelecida por Hamilton e Ture:
Isso não significa simplesmente colocar caras negras nos cargos. A visibilidade negra não é o Poder Negro3. A maioria das pessoas negras na política de todo o país hoje não são exemplos de Poder Negro. O poder deve ser da comunidade, e daí emanar (Hamilton; Ture, 2021, p. 77).
Quantos negros e negras apoiam Trump e negam a existência do racismo, advogando contra as lutas históricas do passado?
Sendo assim, utilizando de uma análise dialética - identidade x materialismo - levantei, de maneira panorâmica, importantes expoentes da cultura norte-americana no cinema/televisão, música, literatura e artes plásticas, provenientes da comunidade negra, como símbolos dessa política identitária das últimas quatro décadas no país, contrastando-os com a realidade material desta população.
3 Hamilton e Ture (2021, p. 85), importantes referências no movimento dos Panteras Negras, definem o conceito de “Poder Negro”: “em primeiro lugar, o povo negro não sofreu como indivíduos, mas como membros de um grupo, sua libertação está na ação em grupo”.
Bill Cosby foi quase que uma unanimidade como ator e comediante no país até as recentes denúncias, posteriormente comprovadas, de assédio sexual feitas por mulheres que acabaram por levá-lo à prisão (atualmente, ele se encontra em liberdade)4. Dentre filmes e séries de sucesso, merece destaque o seriado The Cosby Show, no qual ele interpretava o protagonista Cliff Huxtable. O seriado foi exibido por oito temporadas, entre 1984 e 1992, sendo uma referência para a televisão do país. No contexto em que foi ao ar, a população negra foi intimamente associada à criminalidade urbana, com destaque à guerra às drogas realizada por Ronald Reagan (HAIDER, 2019), cujas políticas econômicas, referências neoliberais, cortaram, ano a ano, o auxílio às comunidades mais pobres economicamente.
O desenvolvimento da trama e seus personagens são um bom exemplo das consequências das políticas de identidade para o país. Contextualizado duas décadas depois da Lei dos Direitos Civis (1964) e da Lei do Voto (1965), Cosby é o patriarca de uma família de classe média alta, que ascendeu graças às políticas afirmativas dos governos anteriores, com destaque para a política de cotas. Ele é médico, obstetra, sua esposa, advogada. Vivem o padrão burguês da sociedade capitalista: uma bela
4 Disponível em https://www.nytimes.com/2021/07/01/arts/television/bill-cosby-conviction-overturned- why.html, acesso em 5 de março de 2025.
casa em Nova York, gozam de prestígio proveniente das funções que ocupam e estão sempre a valorizar os feitos da população negra, como a Marcha a Washington, que o pai de Cliff Huxtable sempre ressalta ter participado, na trama. Na visão de Ture, essa integração ao capitalismo dos brancos não significou o “Poder Negro”, pois a ascensão de alguns acabou levando ao seu “embranquecimento”, afastando-se das raízes afro-americanas:
A “integração” também significa que negros e negras devem renunciar à sua identidade, negar sua herança. Recordamos a conclusão de Killian e Grigg: “Atualmente, a integração como solução para o problema racial exige que o negro renuncie sua identidade como negro”. O fato é que a integração, como tradicionalmente articulada, aboliria a comunidade negra. O fato é que o que deve ser abolido não é a comunidade negra, mas o status colonial dependente que lhe foi infligido (Ture, 2021, p. 86).
O seriado que alçou Will Smith à celebridade nacional foi ao ar de 1990 a 1996, fazendo um imenso sucesso nos EUA e também no Brasil. A série merece um destaque no que concerne à questão racial. Há algumas aproximações em relação à tendência já percebida em The Cosby Show, mas também há diferenciações importantes.
Primeiramente, trata-se de uma família negra muito bem-sucedida do ponto de vista econômico. Liderada pelo tio de Will, Phil, todos moram em um dos bairros mais badalados de Los Angeles, Bel-Air, em uma bela mansão que lembra a Casa Branca. Tio Phil formou-se em Direito e se tornou um juiz poderoso que vislumbra carreira política. Toda a família usufrui de um estilo de vida burguês, com roupas sofisticadas, carros das melhores marcas e as melhores escolas. É o reflexo das políticas de identidade que tornaram possível a ascensão de algumas famílias à elite econômica via educação, de maneira semelhante à proposta do The Cosby Show e, consequentemente, pela crítica de Hamilton e Ture (2021), teriam embranquecido. Com um elenco predominantemente negro, a trama também ressaltou as lutas negras do passado, destacando importantes lideranças do país, como Malcolm X, que aparece como pôster no quarto de Will, o qual também valoriza o seu discurso.
Na esteira da do liberalismo progressista, típico das políticas de identidade, o seriado aproveitou a oportunidade aberta pela indústria cultural para realizar, em diversos momentos, uma crítica ao racismo do país, algo que foi feito com maior profundidade do que em The Cosby Show: embora uma família negra conseguisse ascender à elite econômica e passasse a absorver hábitos da própria elite branca – como frequentar espaços de poder e ter carros de luxo – ela ainda sofria com a discriminação policial, como retratado em algumas oportunidades por personagens como o próprio Will, seu primo Carlton e seu amigo Jazz.
Spike Lee é o maior diretor de cinema negro nos EUA, único dos seus pares na sua função a vencer o Oscar, feito ocorrido em 2019 pelo seu filme O infiltrado na Klan, apesar de ter recebido um Oscar honorário no ano de 2006. Nas suas palavras de agradecimento, em 2019, afirmou:
Hoje é 24 de fevereiro, o mês mais curto do ano. Também é o mês do ano da história negra. 1619... Há 400 anos nós fomos roubados da África e trazidos para a Virginia, escravizados. A minha avó, que viveu até 100 anos de idade, apesar de sua mãe ter sido escrava, conseguiu se formar. Ela viveu anos com seu seguro social, e conseguiu me levar para a universidade NYU. Diante do mundo, eu gostaria de reverenciar os ancestrais que construíram esse país, e também os que sofreram genocídios. Os ancestrais que vão ajudar a voltarmos a ganhar nossa humanidade. As eleições de 2020 estão chegando, vamos pensar nisso. Vamos nos mobilizar, estar do lado certo da história. É uma escolha moral. Do amor sobre ódio. Vamos fazer a coisa certa.5
O teor de seu discurso revela o caráter de sua obra: valorizar a História afro- americana, expor seus problemas atuais, denunciando a presença do racismo no país, algo já explícito no nome de sua própria produtora 40 acres and a mule, em referência à promessa do Estado norte-americano à população negra após a abolição da escravidão. Seu primeiro filme de grande repercussão, Faça a coisa certa, lançado em 1989 é um relato de um país que não superou as diferenças entre brancos e negros. Narrado a partir de um verão acalorado no Brooklyn, reduto da sua obra, Lee ressalta a importância dos negros na construção material e imaterial do país, mas que, ainda naquele contexto, final dos anos de 1980, sofriam com a desigualdade econômica e, principalmente, as perseguições policiais. No clímax da obra, o personagem Radio Raheem, que aparece na imagem acima, é preso em uma discussão e é morto asfixiado pela polícia na frente de dezenas de populares. O fato causou o início de uma convulsão social desencadeada pelo personagem Mookie, interpretado pelo próprio Spike Lee, o qual inicia a destruição da pizzaria de um ítalo- americano, local onde teve início o confronto racial. A cena, emblemática, associada ao título do filme, Do the right thing, ressalta o caráter revolucionário da obra ao defender o uso da força como selfdefense por parte da população negra contra o terror institucional, algo que remonta à luta de Malcolm X. O filme possui inúmeras outras passagens que renderia uma tese sobre a questão racial, com destaque para as
5 Disponível em https://g1.globo.com/pop-arte/cinema/oscar/2019/noticia/2019/02/25/spike-lee-ganha- primeiro-oscar-oficial-apos-levar-premio-honorario-em-2016.ghtml, acesso em 1 de março de 2025.
entrelinhas sugeridas por Spike Lee, sempre atento à ascensão da população negra e seus ícones da época, como Michael Jordan e seus sneakers, Air Jordan, que na lógica da indústria cultural esportiva, passou a ser a coqueluche da sociedade do consumo. Também merece destaque a defesa da comunidade negra contra a Justiça controlada por brancos e a união negra em prol do seu candidato, o democrata Jesse Jackson.
Em Malcolm X6, Spike Lee filmou um épico. Inspirado na Autobiografia de Malcolm X de Alex Halley, o diretor produziu um longa de quase três horas sobre as fases da vida do líder negro e que foi lançado em 1992 com muito alarde, mas pouca repercussão no Oscar, apesar da fotografia, direção e, principalmente, a atuação de Denzel Washington (seria a tendência racista da Academia?). Lee propôs sacramentar a vida e obra de Malcolm X, ainda visto como um terrorista pelo Estado norte-americano, como figura heróica do país. Um afro-americano respeitável e fundamental para que o american dream pudesse ser alcançado pela população negra. Na batalha das narrativas, Lee procurou construir, artisticamente, um legado de Malcolm importante para a negritude do mundo, um Malcolm pan-africanista, mostrando que a luta da população negra se fez nos EUA, em toda a Diáspora Africana e também na África do Sul contra o apartheid, conectando-o à luta liderada por Nelson Mandela naquele contexto. Por fim, confundindo ficção com realidade, iniciou o filme com cenas que foram reproduzidas inúmeras vezes no país naquela conjuntura, a da brutalidade policial contra um homem negro, Rodney King, explicitando que mesmo depois de ¼ de século após a morte de Malcolm, os problemas continuam presentes na sociedade. O cinema é capaz de modificar a realidade material?
Por fim, Spike Lee inseriu plenamente sua obra na era da mercantilização. Aproveitando das oportunidades das políticas de identidade, tornou ícones de seus filmes mercadorias vendidas da República do Brooklyn, como ele gosta de ressaltar, para o mundo todo: bonés, camisetas, pôsteres e tudo quanto é mercadoria associada à História afro-americana e aos seus filmes. Dessa maneira, Lee aproveitou da indústria cultural para crescer economicamente, realizando um afroempreendedorismo, e em prestígio pelo mundo, veiculando em suas obras uma
6 Para uma visão mais aprofundada, ler o meu livro O X de Malcolm e a questão racial norte-americana
(Edunesp, 2013).
mensagem de crítica à sociedade norte-americana, ainda profundamente racista. Mesmo após milhões de pessoas assistirem aos seus filmes, 25 anos após o lançamento de "Faça a coisa certa", Eric Garner foi morto à luz do dia por um policial, em imagens que correram o mundo, da mesma forma que seu personagem Radio Raheem. Poucos anos depois, em 2020, foi a vez de George Floyd sofrer da mesma brutalidade. E tantos outros homens e mulheres negras que não tiveram suas mortes televisionadas. Por que esses crimes ainda ocorrem apesar da mensagem passada nos blockbusters de Spike Lee?
O início do século XXI assistiu, cinematograficamente, à ascensão e à consolidação das adaptações das histórias em quadrinhos. Dezenas de filmes foram produzidos, enriquecendo estúdios e grandes artistas. Uma gama infinita de produtos, na lógica da indústria cultural, foi criada gerando incontáveis lucros. Em um contexto no qual as políticas neoliberais ganharam ainda mais corpo no país com a administração Bush e alavancadas com a chegada de Barack Obama ao poder em 2009, as políticas de identidade ganharam um impulso ainda maior. Junto à Obama, mais negros e negras ocuparam cargos de alto escalão pela indicação do próprio presidente. Na mídia, Michelle Obama encantava com seus discursos e comportamentos elegante e inteligente. A negritude virou algo ainda mais pop, reivindicando uma participação cada vez maior em todas as esferas da sociedade. Essa exposição mercantilizada provocou uma cegueira quanto aos limites de suas conquistas?
A cena da indústria cultural, patrocinada pelo establishment do país, percebeu ali um grande negócio, reproduzindo na lógica do capital a presença negra nos filmes e séries de super-heróis. Luke Cage, personagem secundário da Marvel, conhecido por sua indumentária, um moletom encapuzado, furado por tiros, tornou-se referência para jovens negros do gueto se sentirem representados e defendidos da brutalidade policial em um momento no qual o jovem Trayvon Martin havia sido morto na Florida por um patrulheiro voluntário, George Zimmerman, um homem branco que acreditava que, pela maneira como andava e se vestia – um moletom com capuz – Martin seria um criminoso suspeito que poderia violenta-lo. Logo o atacou com uma pistola e o matou legitimado por uma lei, conhecida como “não ceda terreno”7. O patrulheiro foi absolvido. Marchas ocorreram pelo país com o lema Million Hoodies March para protestar contra mais uma morte de um jovem negro. A exibição do seriado para milhões via streaming da Netflix e a venda de outros tantos moletons como o de Luke Cage conseguiram evitar novas mortes? Ou a própria morte de negros se torna uma oportunidade lucrativa na indústria cultural?
No mesmo contexto, o Universo Marvel atento às demandas das políticas de identidade, criou uma riquíssima seara para histórias de ação e lucratividade. Waakanda e o seu Pantera Negra atraíram milhões, ao redor do mundo, para celebrar um local na África onde há fartura, produção tecnológica única e um rei agraciado com super poderes graças a uma força sobrenatural nativa. O sucesso estrondoso foi acompanhado por uma linha de produção de produtos que não cabe na descrição do texto e nem no bolso da esmagadora maioria que assistiu ao filme, com destaque para o relógio mencionado na imagem acima. Só de bilheteria o filme arrecadou quase $1,5 bilhão. Por meio de símbolos que remontam às tradições africanas, apelando à uma utopia que encanta na proposta do espetáculo da sociedade do consumo, Pantera Negra foi, possivelmente, o ápice da política da identidade na indústria cultural. Não há dúvidas perante a importância de sua representatividade para toda a comunidade, elevando a sua autoestima, por exemplo. Entretanto, lançado em 2018 e assistido por milhões de norte-americanos, o filme conseguiu diminuir a violência policial e as diferenças socioeconômicas em relação à população branca?
7 Disponível em https://www.washingtonpost.com/nation/2022/02/25/stand-your-ground-trayvon- martin/, acesso em 5 de março de 2025.
Descendente de porto-riquenhos e haitianos, Jean-Michel Basquiat (1960- 1988) foi um dos artistas de maior relevância nos EUA na segunda metade do século
XX. Sobre a sua obra, de profundo caráter racial, ele afirmou:
I think there are a lot of people who are neglected in art, I don’t know if it’s who made the paintings or what, but I know black people are never really portrayed realistically, or they’re not, they’re not even portrayed in modern art at all. Just for a change you know... (Basquiat apud Ross, 2017, p. 1).
Basquiat grafitou a realidade urbana nova-iorquina em um contexto de muitos problemas raciais, agravados pelas políticas de encarceramento em massa realizadas, a nível federal, pelo presidente republicano Ronald Reagan. As ações provenientes da política de “lei e ordem” (Haider, 2019) contra a criminalidade e as drogas levaram milhares de homens e mulheres negras para as penitenciárias. No
cenário das artes plásticas, artistas, em sua maioria brancos, faziam fama e dinheiro com suas exposições. Ross afirmou a respeito:
Prices demanded for the work of popular new artists soared, and artists gained celebrity status, fêted by art dealers and businessmen alike, they were encouraged towards prolific production, flooding the market. National banks offered loans for purchases of works of art and also began accepting these as collateral against investments. Art was big business. It was against this backdrop that twenty-two year old Jean- Michel Basquiat took the art world by storm with his first solo exhibition at Anina Nosei’s New York gallery in March, 1982 (Ross, 2017, p. 1).
Inserido em uma conjuntura background, conhecida pela ascensão do movimento Hip Hop da cidade, Basquiat iniciou sua carreira pixando pelos muros de Nova York com a tag SAMO. Sua descendência caribenha legou a ele as características da Diáspora Africana, agindo como um griot africano:
[...] Basquiat adopted the role of the griot, or storyteller, as he researched his own heritage, and simultaneously invoked the spiritual qualities associated with this mythical emblem. Basquiat is known to have read Robert Farris Thompson’s book Flash of the Spirit: African and AfroAmerican Art and Philosophy (1984) upon publication, and this seminal diaspora study, a precursor to Hall’s later work, which traces the migration of the Yoruba people and their culture to America and the Caribbean islands sparked an interest in West African mysticism, which is reflected within Basquiat’s work (Ross, 2014, p. 7).
Dentre suas centenas de obras, muitas delas retratam a situação da população negra, criticando o racismo onipresente nas relações sociais. Uma delas, em especial, merece destaque nesta breve análise, pois se conecta às políticas da identidade. Em Irony of the negro policemen, Basquiat problematiza a presença de policiais negros na corporação militar. A obra é uma tentativa de explicitar a maneira pela qual a elite branca domina a população negra no cenário de integração racial, deixando-a participar das esferas de poder com o objetivo de controlá-la. Para ele, seria irônico um homem negro na polícia para impor regras criadas por homens brancos para dominar e violentar a própria comunidade negra. Pode-se interpretar, a partir dos seus traços, que o homem negro tem uma máscara no rosto, seu chapéu lembra uma gaiola e no canto inferior direito há a menção paw, um peão, ou seja, o policial negro é uma massa de manobra, uma bucha de canhão, a serviço do próprio sistema capitalista que deu a oportunidade a um negro de adentrar às fileiras das forças da segurança para encarcerar e matar os seus pares. Como se um policial negro dentro de uma
corporação, fundamental para um sistema opressor, fosse mudar as estruturas de dominação do próprio capitalismo, como retratou Haider (2019, p. 44):
mas, ao mesmo tempo, falar de racismo sem falar de capitalismo é esconder o que é necessário para que o povo tenha de fato o poder em suas mãos. Apenas cria uma situação em que o policial branco é substituído pelo policial negro (Haider, 2019, p. 44).
A política da identidade tem sido aplicada nos EUA como um método puramente individualista (Haider, 2019), relacionado ao sonho americano, burguês por excelência. É curioso ressaltar como a crítica de Basquiat se faz mais atual do que nunca, em um contexto de eclosão do Black Lives Matter, principalmente após um linchamento de um jovem negro, Michael Brown, por um policial branco, o qual não sofreu punição, desencadeando revoltas por todo o país. E o então presidente Barack Obama não fez nada de concreto, a não ser lamentar. Não seria a crítica de Basquiat, atualizada, uma Irony of the black president? Seguindo essa linha de raciocínio, Haider concluiu a respeito dos confrontos raciais a Era Obama (2009-2016):
Não foi apenas a persistência da supremacia branca que foi exposta nesse momento. Também ficaram visíveis as contradições de classe na comunidade negra. Enquanto as elites políticas negras, como o pastor Al Sharpton, clamavam por controle, os levantes demonstravam querer mais que apenas espaço para os negros no sonho americano de mobilidade social. A juventude negra continuava a ser enviada à prisão ou assassinada pela polícia, e as comunidades negras eram mantidas em estado de inconcebível pobreza. Os rebeldes nas ruas viam claramente que colaborar com Sharpton ou Obama não faria sua luta avançar. Essas contradições e tensões se aceleraram com o passar do tempo, incorporando a indignação com o caso semelhante de Eric Garner em Nova York, desembocando no movimento conhecido como Black Lives Matter (Haider, 2019, p. 55).
Basquiat morreu jovem, vítima das drogas. Seu legado artístico é reconhecido até os dias de hoje e, apesar de ter criticado o sistema econômico racista por meio de seus traços, após a sua morte suas obras, que já eram valiosas naquele contexto, se tornaram, mais do que nunca, mercadorias reproduzidas na lógica do capital, sendo que uma de suas últimas grandes vendas, In this case (1983) foi arrematada por quase
8 Disponível em https://www.bloomberg.com/news/articles/2021-05-12/a-basquiat-painting-just-sold- for-93-1-million-at-christie-s, acesso em 2 de março de 2025.
Tony Morrison (1931-2019) possui uma relevância artístico-literária e importância histórica para a comunidade afro-americana, sendo a primeira escritora negra a receber o Nobel de Literatura. Também é preciso recordar que se trata de uma autora muito bem inserida no establishment cultural norte-americano, que vendeu milhões de cópias ao longo das últimas décadas. Autora de diversos livros de sucesso, ela escreveu também livros infantis, peças de teatro, ensaios e outras obras culturais, tendo inclusive, assistido à adaptação para o cinema de um de seus famosos livros, Amada.
Seus romances abordam a questão racial por diversos pontos de vista, com destaque para O olho mais azul, Amada, Jazz, Paraíso e Deus ajude essa criança. De maneira geral, a autora problematizou a questão racial utilizando vários meios, com uma estética inovadora que ora ocultava a cor dos personagens, ora criava situações racistas fictícias envolvendo a população branca com o objetivo de provocar reflexão em seus leitores, evidenciando os problemas comuns que a comunidade afro- americana ainda sofria, como confidenciou:
Eu me interessei pela ideia de retratar os negros por cultura, em vez da cor da pele: quando só sua cor já era sua bête noire, quando ela era algo incidental, e quando era impossível de ser determinada, ou deliberadamente omitida. Esta última questão me proporcionou uma oportunidade interessante de ignorar o fetiche da cor, bem como uma certa liberdade, acompanhada de alguma escrita muito cuidadosa. Em alguns romances, teatralizei essa questão não apenas me recusando a me apoiar em sinais de raça, mas também alertando o leitor quanto à minha estratégia (Morrison, 2019, p. 76).
A escritora também se dedicou a descontruir os estereótipos criados por autores brancos acerca da população negra, que ainda pairavam na mentalidade da população branca, a saber: uma visão romântica da escravidão, responsável por criar a imagem do escravizado submisso, bem como reconstruir a beleza negra, diretamente afetada pelos padrões estabelecidos pela branquitude na literatura, como expôs:
Objeto de constante fascínio para mim são as maneiras como a literatura usa a cor da pele para revelar caráter ou impelir a narrativa, sobretudo se o personagem fictício principal for branco (o que quase sempre é o caso). Seja pelo horror de uma única gota do místico sangue “negro”, ou por sinais de superioridade branca inata, ou de um poder sexual perturbado e excessivo, a identificação e o significado da cor são muitas vezes o fator decisivo (Morrison, 2019, p. 66).
Essas imagens negativas acerca da população negra, na literatura, são frequentemente associadas ao clássico A cabana do Pai Tomás de Harriet Beecher Stowe, como Morrison afirmou:
Diferentes, mas não menos reveladoras, são as tentativas literárias de “romantizar” a escravidão, de torná-la aceitável, preferível até, humanizando-a e até mesmo valorizando-a. O controle, seja bem- intencionado, seja ganancioso, no fim das contas talvez nem seja necessário. Entendem? É o que diz Harriet Beecher Stowe para seus leitores (brancos). Calma, ele diz. Os escravos sabem se controlar. Não tenham medo. Os negros só querem servir. O instinto natural do escravo, sugere ela, é o da gentileza, instinto esse que só é perturbado por brancos maus que, como Simon Legree (nascido no Norte, detalhe significativo) os ameaçam e maltratam (Morrison, 2019, p. 32).
Outro expoente da literatura norte-americana que, na visão de Morrison, foi responsável pela criação de estereótipos da população negra, foi Ernest Hemingway, o qual em obras como Ter ou não ter e Jardim do Éden, abusou de construções narrativas que mostram a população negra de maneira negativa:
Igualmente fascinante, se não mais, é o emprego do colorismo por Ernest Hemingway. O uso que ele faz desse mecanismo facilmente disponível passa por várias modalidades de colorismo, de negros desprezíveis a negros tristes, mas dignos de empatia, a um erotismo exacerbado abastecido pela negritude. Nenhuma dessas categorias é externa ao mundo do escritor ou à sua façanha narrativa, mas o que me interessa é como esse mundo é articulado. O colorismo é tão fácil... é o derradeiro atalho narrativo (Morrison, 2019, p. 32).
Morrison, na prática, realizou aquilo que Chimamanda Adichie (2019) chamou de “o perigo de uma história única”, contada sempre pelos brancos que dominavam os meios políticos e estéticos-artísticos para contar não só a História que quiseram, mas a maneira como os outros são, algo que Morrison realmente se preocupou em desconstruir. Como refletiu Adichie, sobre a imagem que se constrói da população negra a partir da literatura ou cinema:
O poder é a habilidade não apenas de contar a história de outra pessoa, mas de fazer que ela seja sua história definitiva. O poeta palestino Mourid Barghouti escreveu que, se você quiser espoliar um povo, a maneira mais simples é contar a história dele e começar em “segundo lugar”. Comece a história com as flechas dos indígenas americanos, e não com a chegada dos britânicos, e a história será completamente diferente. Comece a história com o fracasso do Estado africano, e não com a criação colonial do Estado africano, e a história será completamente diferente (Adichie, 2019, p. 23).
Morrison analisou as consequências da autodepreciação racial em O olho mais azul, a questão da superioridade racial em Paraíso, cujo título, irônico, remete à sua distopia racial, invertendo as relações entre brancos e negros; e os problemas e limitações do “colorismo” em Deus ajude essa criança, dentre outras temáticas. Produziu sua literatura com o objetivo de “neutralizar o racismo barato, a aniquilar e desacreditar o fetiche da cor rotineiro, fácil e disponível, que remete à própria escravidão (Morrison, 2019, p. 81).
Sua importância para a cultura afro-americana é incontestável. É, definitivamente, um talented teenth (DU BOIS, 2021) e por isso seu sucesso precisa ser analisado enquanto uma consequência da política de identidades colocada em discussão neste texto, afinal é a “primeira escritora negra a receber o Nobel de Literatura”. Morrison faleceu em 2019, pouco depois do fim da Era Obama (2016), o qual, aliás, apoiou entusiasticamente. Inserida em uma indústria literária, Morrison revelou que:
Vários dos projetos que apresentei ao meu comitê editorial foram aprovados: livros de Toni Cade Bambara, Angela Davis, Gayl Jones e Huey Newton, entre outros. Tirando a biografia de Muhamamd Ali, as vendas foram inexpressivas. O assunto surgiu certo dia numa reunião de vendas, quando um vendedor regional disse que não dava para vender livros “dos dois lados da rua”. O que ele queria dizer era que as pessoas brancas compravam a maioria dos livros e os negros compravam menos, se é que compravam (Morrison, 2019, p. 105- 106).
Se o consumidor principal de suas obras é a população branca, qual o impacto da literatura de Tony Morrison para a diminuição dos problemas derivados do racismo em uma sociedade que baseia a sua luta em políticas identitárias que reproduzem a lógica capitalista? Infelizmente, mesmo que se produza uma “literatura do contra”, denunciando práticas do sistema dominante, e que possa promover algum tipo de conscientização por parte da população branca e de autoestima na comunidade
negra, uma literatura, como elemento superestrutural, inserida em uma estrutura capitalista de profunda desigualdade, vai produzir belas narrativas que interessam mais às grandes corporações que veem nas políticas de identidade uma forma de lucrar milhões com livros que falam sobre o tema, podem se tornar best sellers, como os de Morrison, sendo levados ao cinema para multidões assistirem, terminando em bonecos articulados nas prateleiras da classe média do país e menos à superação dos problemas oriundos do racismo, os quais são inerentes ao próprio sistema capitalista.
Até a década de 1960, negros e negras monopolizavam as paradas de sucesso por meio do blues e do jazz, os quais, apesar de ainda estarem presentes na década seguinte, foram perdendo espaço para a cena do rock, do funk até que, nos anos de 1980 o rap e o pop contagiaram a juventude do país. Talvez essa mudança de tendência esteja associada diretamente ao avanço e interesses da indústria cultural na área musical. Como consequência das políticas de identidade, cada vez mais homens e mulheres negras passaram a protagonizar o mainstream do país.
Genericamente, a cena musical norte-americana, a partir da década de 1980 tomou dois rumos bem delineados: o primeiro, essencialmente de entretenimento, foi protagonizado por Michael Jackson, estabelecendo o seu reinado na pop music, por outro lado, o rap, como elemento do movimento Hip Hop, utilizou da música, inicialmente, como um instrumento de questionamento da suposta democracia norte- americana, a qual proporciona à comunidade negra das grandes cidades, principalmente suburbana, a brutalidade policial da guerra às drogas, o vício, o desemprego e a miséria. Grupos de destaque aparecem em Nova York, como uma tendência contracultural, como o Public Enemy e, posteriormente, em uma tendência semelhante, mas que iniciava o Gangsta rap, na Costa Oeste, Califórnia, o grupo NWA (Niggas with attitude). É curioso perceber que a voz pesada e poderosa de um Fight the power, clássico do Public Enemy, cujo videoclipe foi dirigido por Spike Lee em 1989, foi sendo substituído por uma nova safra, principalmente após a morte de Tupac em 1996, conhecida por rappers que ganharam visibilidade ao falar de amor, sexo, armas, dinheiro e fama. Saem as críticas e permanecem as imagens da identidade, as camisetas e calças largas, bandanas e bonés acompanhados de refrões-chiclete
que se tornam um prato cheio para os bolsos das grandes gravadoras. A identidade, no interesse da indústria cultural, virou um grande negócio.
Percebendo a tendência musical que passava a incorporar cada vez mais afro- americanos para suas fileiras, a indústria cultural passou a dar cada vez mais visibilidade a essas pessoas, incluindo a produção de videoclipes. Viu-se neste universo um grande mercado em expansão. Pensando a função da indústria cultural por meio de Adorno (2002), os consumidores da indústria cinematográfica não necessitam mais refletir acerca daquilo que lhes é apresentado. Eles somente replicam e repetem produtos prontos que lhe são vendidos, aprofundando um cenário de alienação, algo que acomete não só os consumidores, mas os próprios artistas. Michael Jackson foi o maior exemplo dessa tendência, algo que se tornou ainda mais comum na virada do século XX para o XXI, com destaque para a ascensão de Beyoncé. É preciso constatar algumas peculiaridades da conjuntura da indústria cultural. Apesar de possibilitar a veiculação de mensagens e comportamentos críticos ao racismo, que vão desde Black or White de Michael Jackson em 1991 até o mais recente disco Lemonade de Beyoncé, todos aqueles que estão inseridos no mass media norte-americano usufruem da dimensão de alcance de suas estruturas, podendo, acima de tudo, reproduzir os ganhos do capital. Além disso, com as raríssimas exceções do casal Beyoncé e Jay-Z e do mega produtor e rapper Dr. Dre, há uma dialética radical nas relações empresariais da indústria cultural: artistas negras e negros fazem o show, controlado por empresários e donos das grandes corporações, brancos.
Recentemente, no ano de 2016, na cidade de Nova Orleans, quando da polêmica envolvendo a ausência de negros e negras nas principais premiações do Oscar algo que, historicamente, sempre foi uma reprodução do racismo no país, a NFL (National Football League)9, responsável por organizar o esporte de maior abrangência do país, o futebol americano, levou para o palco do maior evento esportivo nacional do mundo, o Super Bowl, sua final de campeonato, um show com a participação de Beyoncé, no qual a cantora interpretou Formation: uma canção de valorização da identidade negra, cuja performance contava com mulheres negras com
9 A entidade também estava no centro do racismo do país quando um de seus jogadores, Kaepernick, foi excluído do esporte ao se ajoelhar durante o hino nacional em resposta à brutalidade policial. É bom lembrar que o futebol americano sempre foi uma alegoria do racismo no país: homens brancos dominaram no passado e continuam sendo a maioria na função de quarterback, aquele que comanda o jogo, enquanto os negros sempre estiveram nas funções de defesa ou de corrida.
jaquetas e boinas pretas, recordando a imagem dos Panteras Negras. De um lado, as palmas dos liberais-progressistas, do outro, as críticas dos reacionários, os quais afirmavam que era uma ofensa à polícia. O programa Saturday Night Live chegou a ironizar, por meio de um vídeo que circulou pelo mundo, que esta apresentação foi The day Beyoncé turned black10. Seria uma alusão a um possível embranquecimento presente em sua carreira?
No ano de 2022, no mesmo Super Bowl, agora em Los Angeles, foi a vez de um show com alguns dos maiores ícones do rap da Califórnia e do país, com destaque para Snoop Dogg e Dr. Dre, o qual é proveniente de uma das regiões mais criativas e ao mesmo tempo violentas daquele estado, a cidade de Compton. No palco, cantaram seus sucessos, expuseram para o mundo a sua identidade e a crítica à violência policial, estrutura fundamental do racismo no país em mais uma performance histórica. Entretanto, qual o impacto desses instrumentos da indústria cultural na superação do racismo? Ele serve mais ao show ou à luta por igualdade social? Após os 15 minutos de euforia proporcionados pelas estrelas negras brilharem no palco, a
realidade da maioria da população negra é descortinada:
Assim como a maioria dos californianos, não sabe que seu estado lidera o resto da nação no número de assassinatos por policiais. Eles não sabem que o número de prisões no país é maior do que o número de universidades. Ainda mais alarmante é que – de acordo com as estatísticas do FBI – dois negros inocentes, homens, mulheres ou crianças, são mortos a cada semana pela polícia.11
Um comercial de 30 segundos durante o Super Bowl custa $6,5 milhões12 para empresas de todos os setores lançarem seus produtos, um grande filão para angariar novos consumidores em um momento no qual artistas negros fazem sucesso, ou seja, passa-se a utilizar da ideia de raça, mas sem combater o racismo, com a finalidade mercadológica intrínseca aos negócios capitalistas, como bem percebeu Haider:
10 Disponível em https://www.latimes.com/entertainment/tv/showtracker/la-et-st-beyonce-turned-black- snl-skit-20160214-story.html, acesso em 5 de março de 2022.
11 Disponível em http://www.utsandiego.com/news/2014/dec/25/worlds-faithful-must-join- together/2/?#article-copy, acesso em 5 de março de 2022.
12 Disponível em https://www.sportingnews.com/us/nfl/news/super-bowl-commercials-cost- 2022/v9ytfqzx74pjrcdvxyhevlzd, acesso em 4 de março de 2022.
A sociedade de consumo apresentou possíveis recursos para uma solução; o crescente uso estatal da comunicação de massa foi direcionado para formar uma espécie de consenso público e transformar os valores de acordo com as necessidades da acumulação capitalista (Haider, 2019, p. 118).
Pode-se inferir que as políticas da identidade possibilitaram o surgimento de uma elite negra e até um aumento da autoestima por parte da população afro- americana, quebrando o monopólio branco da narrativa histórica e cultural (Adichie, 2019). Esse contingente passou a ter uma significativa representatividade nas esferas do poder político, econômico, cultural e esportivo. Os pais da atual geração de jovens negros e, principalmente os seus avós que cresceram durante as leis Jim Crow, identificam isso com facilidade perante a realidade dos filhos e netos, como identifica Haider:
enorme progresso foi feito no nível cultural, mudando sobretudo nossa linguagem. Mas as estruturas materiais fundamentais foram poupadas”, ou seja, a melhoria, quando ocorre, ainda está exclusiva para os talented tenth (Haider, 2019, p. 132).
É salutar que cada vez mais negros, mulheres, gays (comunidade LGBTQIAPN+) participem ativamente do processo político, sendo protagonistas em todas as esferas da sociedade, na tentativa de agir para a supressão da estrutura econômica responsável pela criação das desigualdades. Mas, o que se viu até agora, a nível de EUA, é que as pessoas que ascenderam, via políticas da identidade de cunho individual, não conseguiram mudar as estruturas de opressão, às quais estão na base do próprio sistema, como bem pensou Haider:
Porém, quando as reivindicações identitárias perdem sua base em movimentos de massa, o ideal masculinista burguês se apressa em preencher o vazio. [...] Se esse ideal não for questionado, pessoas de cor, junto com outros grupos oprimidos, não têm escolha a não ser articular suas demandas políticas em termos de inclusão no ideal burguês masculinista (Haider, 2019, p. 47-48).
Ou ainda, nas palavras de Hamilton e Ture:
Os negros haviam alcançado educação e segurança econômica – duas coisas consideradas nacionalmente como remédios para os problemas dos negros -, mas os brancos continuaram a impor e cobrar impostos, governar o sistema escolar, determinar as práticas da aplicação da lei. A razão é bastante óbvia: o povo negro não tinha o poder político. (Hamilton; Ture, 2021, p. 164).
Dessa maneira, a porção da população negra que ascende na estrutura capitalista nos seus moldes atuais, de um neoliberalismo agressivo, não é capaz de modificá-la. Tornando-se parte da classe média do país, podendo agir, segundo Brown com uma “identidade conservadora” (Brown, 1995, p. 59), que se origina em um “passado fantasmagórico, um momento idílico imaginado (implicitamente localizado em torno de 1955), sem restrições e não corrompido, quando a vida era boa” (Brown, 1995, p. 59). A ascensão de uns levou à reparação individual às custas do sofrimento da coletividade, desmobilizada pelas ações neoliberais. Hamilton, em posfácio de 1992 para o seu próprio livro com Ture, mostrou pesar acerca das políticas de identidade:
Quando Thurgood Marshall renunciou à Suprema Corte dos Estados Unidos e foi substituído por um negro conservador, alguns negros liberais se sentiram forçados a não se opor ao novo nomeado. Afinal de contas, era importante ter um afro-estadunidense na corte. Tal opinião focava principalmente na raça, e dava pouca atenção às opiniões do nomeado. [...] Um resultado definitivo foi abrir o caminho para aqueles da comunidade negra que aproveitaram a oportunidade para progredir sozinhos usando a raça. Eles não mostram nenhuma indicação de compromisso nem com a esquerda nem com a direita. São simplesmente trapaceiros, usando sua raça como cobertura para seu ganho pessoal e individual, sabendo que podem usar sempre a acusação de racismo contra aqueles que se oponham a eles (Hamilton; Ture, 2021, p. 242).
Em uma sociedade que foi aprofundando suas características neoliberais na economia, as consequências para o plano ideológico foram terríveis para a classe trabalhadora que viu não só o desmonte do Estado de bem-estar-social, como também a incorporação, no plano individual de ideais conservadores e repressivos por parte dessa mesma população – quantos apoiaram Trump em sua reeleição? Essas políticas, levadas a cabo, sobretudo, a partir de Reagan, ganharam um toque especial com Clinton, o qual soube jogar bem as cartas das políticas de identidade: deu representatividade para afro-americanos no seu governo, o qual apoiou leis
decisivas para diminuir a seguridade social e aumentar o já obsceno encarceramento em massa dessa população:
Bill Clinton, que seguiu o caminho de Thather e Reagan [...] não nos trouxe apenas o Nafta, a Crime Bill (foi a maior lei criminal da história dos EUA) e a Welfare Reform Bill, mas também incorporou à política a um estilo cultural específico, dirigida por grupos focais e consultores de imagem, que atuavam na diversidade dos novos tempos – levando ao famoso comentário de Toni Morrison a respeito de Clinton ser “o primeiro presidente negro”. No entanto, enquanto Bill tocava saxofone no Arsenio Hall Show, Hillary Clinton descrevia jovens negros como “superpredadores” – um comentário que os ativistas do Black Lives Matter lembraram a ela durante sua campanha em 2016. Uma expressão além de populismo autoritário provavelmente será necessária para descrever esse fenômeno [...] (Haider, 2019, p. 133).
Foi por meio dessas estratégias que as políticas de identidade foram ganhando campo na política, na cultura e no esporte do país. Cada vez mais a população negra se via representada nessas esferas ao passo que a desmobilização da classe trabalhadora foi perdendo força na mesma proporção, enfraquecendo o poder dos movimentos de massa. E o que ocorreu de efetivo? “O erro [...] foi ter achado que colocando um homem negro no lugar de um político branco estaríamos de fato no caminho da libertação” (Haider, 2019, p. 108-109), prontamente de acordo com a Ironia do policial negro de Basquiat. Ter trocado a cor do presidente, do proprietário da corporação, do secretário de Estado e consumido produtos ligados à negritude mudou a situação socioeconômica da população negra? O fetiche do capital e das suas benesses foi atraindo e alienando a população que, ideologicamente, passou a crer que viveríamos em uma sociedade pós-racial.
Malcolm X, se vivo, insistiria na raiz do problema, lembrando um discurso seu de 1964: “é impossível para um branco acreditar no capitalismo e não acreditar no racismo” (Malcolm X, 2021, p. 39), afinal, de acordo com a experiência histórica, materialista de como a população negra produziu a riqueza, lidou e resistiu à exploração, “raça é a maneira como a classe é vivida” (Hall, 2013, p. 386). Se as políticas de identidade em todos os seus níveis não foram suficientes para resolver os problemas provenientes da escravidão e, por extensão, das leis Jim Crow, quais os caminhos para a sua real superação? Haider aponta para uma direção que sempre esteve presente na História do movimento negro, na América, e exposta em uma carta de C.R.L. James endereçada a Louis Armstrong e a Dr. Martin Luther King Jr., que destacava o poder dos movimentos de massa:
Elaborando sobre o encontro numa carta a seus companheiros dos Estados Unidos, ele resumiu, o que todas as ações políticas bem- sucedidas tinham em comum: “o poder sempre ignorado do movimento de massas”. Foi esse movimento de massa que acabaria com a segregação nos anos 1960, estabelecendo um novo campo de luta política, no qual continuamos tentando achar nosso caminho (Haider, 2019, p. 149).
Nos momentos de crise do capitalismo neoliberal a nível mundial e, consequentemente, a ascensão da extrema-direita e do aprofundamento dos problemas raciais, é preciso olhar para o passado e recordar as formas de mobilização e resistência da população negra, intrínsecas à Diáspora Africana em todo o continente. Das lutas contra a escravidão no passado colonial, passando pela Revolução Haitiana (1791-1804) que venceu Napoleão Bonaparte até o movimento pelos Direitos Civis, a população negra sempre venceu, onde quer que ela estivesse, pela mobilização de massa, pela elaboração de um amplo “programa, estratégia e táticas” (HAIDER, 2019, p. 150), algo que vem sendo resgatado, é verdade, pela atuação do movimento Black Lives Matter, o qual vem ganhando força e espaço após os horrores da brutalidade policial. Sua atuação tem sido feita no sentido de eliminar a ordem neoliberal:
A participação de grandes esportistas neste movimento, inclusive, foi essencial para o seu metabolismo. Esse engajamento, aliás, serve de exemplo para a participação daqueles artistas que pretendem utilizar de sua fama um instrumento de luta contra o sistema que os alavancou. Após o assassinato de George Floyd, em 2020, vários jogadores da NBA14 participaram de atos pelo país, ameaçando
13 Disponível em https://www.opendemocracy.net/en/cornel-west-black-america-s-neo-liberal- sleepwalking-is-coming-to-end/, acesso em 5 de março de 2025.
14 Disponível em https://www.theguardian.com/sport/gallery/2020/aug/27/nba-strike-athletes-kneeling- black-lives-matter-protest, acesso em 4 de março de 2025.
abandonar as competições se a maior liga de basquete do mundo não apoiasse o movimento, incentivando algo muito além de uma hashtag, mas utilizando as arenas para cadastro de eleitores para a votação que, no final do ano, tirou, naquele momento Trump do poder. É pouco, é verdade, mas é um início de mobilização coletiva, que também esteve presente em outras modalidades esportivas. É utilizar das brechas do sistema, que abriu a oportunidade da ascensão da população negra, para superá-lo. De acordo com Kelley, essa estratégia sempre esteve presente nas associações negras no passado, com destaque para a união da população negra ao Partido Comunista, criando uma base popular, no início do século XX:
Representantes da associação de desempregados muitas vezes dissuadiam os proprietários de despejar seus inquilinos descrevendo o possível desmanche que ocorreria, uma vez que uma casa abandonada se tornava uma fonte gratuita de lenha para qualquer um. Quando a energia elétrica de uma família era desligada por falta de pagamento, ativistas da associação de desempregados costumavam fazer ligações clandestinas de locais públicos ou de outras casas, usando fios de cobre grossos. Os membros da associação também encontravam maneiras de reabrir a água após ela ser cortada, embora esse processo fosse mais complicado do que roubar energia elétrica. E, pelo menos uma vez, um grupo de mulheres negras fez ameaças verbais para que um funcionário municipal não desligasse a água de uma família (Kelley, 1994, p. 21).
Não por acaso, o Black Power capitaneado pelos Panteras Negras, herdeiro do movimento de massa que conquistou os direitos civis, entendeu que se o capitalismo é antinegro, logo, a luta dos negros deve ser, sobretudo, anticapitalista (HAIDER, 2019) para que os afro-americanos conquistem sua autodeterminação. Expoente dessa tendência, Hamilton e Ture, afirmaram:
É absolutamente evidente que a iniciativa para tais mudanças terá que vir da comunidade negra. A menos que e até que o povo negro estadunidense comece a se mover, não podemos esperar que a parcela branca deste país se movimento de forma significativa para solucionar esses problemas. Isso significa que os negros devem se organizar sem considerar o que é tradicionalmente aceitável, exatamente porque as abordagens tradicionais falharam. Significa que os negros devem fazer exigências sem considerar a “aceitação” inicial delas, precisamente porque exigências “aceitáveis” não têm sido suficientes (Hamilton; Ture, 2021, p. 195).
É nesse sentido que a revolução negra contemporânea, via movimento de massa, como reconfigurado no Black Lives Matter, deve atuar, resgatando ações que tiveram sucesso no passado, utilizando de recursos contemporâneos, como as redes
sociais no sentido facilitar a união das pessoas, fortalecendo a consciência de classe para a realização de boicotes, greves, passeatas, selfdefense, reconstruindo os sindicatos para a superação da estrutura capitalista, da qual provêm os seus principais problemas. Quando isso ocorrer, todos poderão dar as mãos e cantar o famoso spiritual negro que embalou a luta pelos direitos civis, We shall overcome, com a certeza de que superaram, enfim, a pérfida herança da escravidão.
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