V.23, nº 50 - 2025 (janeiro-abril) ISSN: 1808-799 X
QUEM FOI LÉLIA GONZALEZ?
COMENTÁRIOS AO ARTIGO A JUVENTUDE NEGRA BRASILEIRA
E A QUESTÃO DO DESEMPREGO, DE 1979.1
Kenia Antonio Cardoso2
Lélia Gonzalez nasceu em 1935, na cidade de Belo Horizonte. Filha de mãe
indígena, Urcinda Serafim de Almeida, nascida por volta 1889, no Espírito Santo, e
pai negro-ferroviário, Acácio Joaquim de Almeida. Não há muitas informações sobre
seu pai.
Sabe-se que Dona Urcinda provavelmente descende dos grupos que
habitavam a região àquela época: os tupiniquins, no espírito santo, e os maxacalis e
krenaks, em Minas Gerais. Foram as etnias que, no século XIX, mais entraram em
conflito e causaram resistência aos construtores das estradas de ferro que ligavam
Minas Gerais, Espírito Santo e Bahia. Eles são descendentes dos botocudos e dos
aimorés, povos que foram tidos como “índios bravos” pelas narrativas coloniais.
(Ratts e Rios, 2010)
Seu Almeida faleceu quando Lélia ainda era criança e sua família mudou para
o Rio de Janeiro, cidade em que cresceu a partir de seus sete anos de idade. A
princípio, morando no bairro do Leblon, àquela época ainda não era um bairro de
elite, depois mudou-se para Ricardo de Albuquerque para morar na casa comprada
por seu irmão, Jaime de Almeida.
Almeida foi um jogador de futebol de destaque, jogando primeiro no Clube
Atlético Mineiro e, quando ganha notoriedade, no Flamengo. Jaime conquistou
mobilidade social e econômica para si e sua família, o que favoreceu o
desenvolvimento intelectual de Lélia. Jaime e, posteriormente Lélia romperam, a
2Mestre em Economia Política Mundial pela Universidade Federal do ABC (UFABC), São Paulo -
Brasil.Coletivo Novo Bandung e Sociedade Brasileira de Economia Política (SEP).
E-mail: keniaantonio.c@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/6157745287685432.
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8059-2701.
1Artigo recebido em 12/03/2025. Aprovado pelos editores em 22/03/2025. Publicado em 09/04/2025.
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v23i50.66969.
1
barreira do que Lélia chamou “lugar de negro”, já que tiveram uma trajetória pessoal
e profissional bastante ímpar para as pessoas negras de sua época. Jaime como
jogador e Lélia, posteriormente, na área da educação.
Lélia chegou a trabalhar como babá na passagem da infância para a
adolescência, na casa dos diretores do clube em que Jaime jogava. Era um lugar
bastante comum para meninas negras naquela época. Lélia resistiu bastante a esse
lugar de “criada da casa” e acabou seguindo outros rumos
Como relatou com frequência a pensadora, Jaime, como seu irmão mais
velho, desempenhou papel fundamental em sua criação. Eles tinham quinze anos de
diferença e Jaime foi, na década de 40, um dos jogadores mais importantes do
Flamengo, de 1941 a 1950, quando se aposentou. Em 1962 transferiu-se para o
futebol peruano, onde chegou a ser técnico. Lélia gostava de enfatizar que foi a
penúltima filha de dezoito irmãos, e que sua trajetória de estudos foi possível por ser
uma das mais novas.
Durante o colégio, na transição da adolescência para a juventude, Lélia se
tornou uma pessoa tímida, retraída e distante dos movimentos negros. Ela descreve
seu processo de embranquecimento promovido pelos espaços educacionais e seu
lugar de exceção com uma mulher negra cuja trajetória superou os lugares comuns
de suas iguais: Aos 27 anos Lélia era graduada em História, Geografia e Filosofia na
Universidade Estadual da Guanabara (atual Universidade do Estado do Rio de
Janeiro), era solteira e sem filhos.
Em 1950, os brancos representando 63,5% da população total detinham
97% dos diplomas universitários, 94% dos secundários e 84% dos diplomas da
escola primária.” (Hasenbalg, 2005, pg. 193)
Contexto de sua produção
A carreira docente de Lélia Gonzalez iniciou-se no ensino superior em 1963,
com passagens pelas Faculdades de Filosofia de Campo Grande (Feuc) e Filosofia,
Ciências e Letras da UEG. Seu trabalho ganhou destaque na Universidade Gama
Filho e nas Faculdades Integradas Estácio de Sá, onde ocupou cargos de
coordenação e direção entre 1973 e 1975 (Vianna, 2006 apud Ratts e Rios, 2010).
2
Lélia foi uma intelectual destacada por sua capacidade pedagógica,
habilidade de instigar a reflexão nos(as) estudantes e capacidade argumentativa.
Como se enquadrava em alguns padrões de comportamento da época, usava seus
cabelos alisados e havia absorvido códigos de comportamento burgueses, seu
trânsito em escolas de diferentes perfis, inclusive escolas militares, foi viabilizado no
início.
Durante a segunda metade da década de 60 e início da década de 70, Lélia
traduziu importantes livros do francês para o português, momento da ditadura militar
em que ainda havia brecha para produção política. Também neste período, Lélia
casou-se com Luiz Carlos Gonzalez, de quem mantém o sobrenome por uma
homenagem dedicada. Lélia relata que o embranquecimento pelo qual passou caiu
por terra no contexto deste casamento, bastante condenado pela família dele, um
homem branco. Luiz Carlos se formou em filosofia na mesma universidade que
Lélia, e desempenhou um papel importante em seu despertar para questões
políticas.
A década de 60 foi dura para Lélia, pois seu marido cometeu suicídio e sua
mãe falecera. Essa dupla perda representou um marco para que ela buscasse sua
identidade social e racial. Neste momento, ela volta a olhar para sua mãe de outra
forma e reconhece nela uma forma simples, porém sofisticada de processar a
sociedade de sua época. Olha para a comunidade pobre da qual se afastou para
questionar seus processos de embranquecimento.
Quando se casou com um homem que atualmente seria denominado como
“pardo”, começou a questionar as armadilhas psíquicas da ideologia racial, porque
via nele uma recusa de se reconhecer negro. Foi neste mesmo período que se
voltou à psicanálise e construiu o conceito de Amefricanidade.
Em 1979, sendo a única pessoa negra entrevistada para o livro Patrulhas
ideológicas, que continha depoimentos de artistas, intelectuais e militantes, Lélia
rememorou e conjugou sua busca pela psicanálise e pela cultura negra,
especialmente ao candomblé. Isso aconteceu após sua “tomada de consciência”
racial e de gênero e diante da crítica aos circuitos que pertencia. (Ratts e Rios, 2010,
pg. 50).
Este período marcou o trânsito intenso da pensadora nos movimentos sociais
e de cultura negra, como o Ilê Ayê, movimentos negros do Rio de Janeiro e São
3
Paulo, e sua aproximação do candomblé. Gonzalez foi uma das fundadoras do MNU
(Movimento Negro Unificado), ao lado de João Adão de Oliveira e Milton Barbosa
em dezoito de junho 1978. Essa participação significa um marco do aumento da
vigilância sob sua atividade política. Antes dele, seu nome havia aparecido nos
arquivos do DOPS apenas uma vez, "juntamente com o professor Lincoln Penna",
com quem supostamente estaria "desenvolvendo trabalhos de recrutamento de
adeptos à doutrina marxista".
Ela passou, então, a ser vista como uma figura subversiva. Em 30 de outubro
de 1978, seu nome foi registrado em um relatório do DOPS, juntamente com o de
Abdias Nascimento este com uma longa trajetória no movimento negro e era
monitorado pelo DOPS desde a década de 1940. O mesmo documento que
registrou o encontro entre Lélia Gonzalez e Abdias Nascimento também mencionava
o envolvimento de Abdias com o Teatro Experimental do Negro, destacando suas
conexões com "artistas, radialistas e músicos". (Hasenbalg e Rios, 2010).
Comentários sobre o artigo em questão e seus fundamentos teóricos
As décadas de 1970 e 1980 marcam intensa produção de Lélia. Foi neste
período que suas obras marcam a influência das teorias marxistas da dependência
(TMD), como nos textos “Cultura, etnicidade e trabalho: Efeitos linguísticos e
políticos da exploração da mulher negra”, “A juventude negra brasileira e a questão
do desemprego” e “A mulher negra na sociedade brasileira: Uma abordagem
político-econômica”, os três escritos em 1979, durante o período de distensão da
ditadura militar, bem como durante a fase de amadurecimento da “Lélia” ativista.
O artigo “A juventude negra brasileira e a questão do desemprego” foi
apresentado pela primeira vez no encontro anual da African Heritage Studies
Association, em Pittsburgh, com o título Brasilian Black Youth and Unemployment”.
A pensadora inicia o texto descrevendo de forma sucinta o que significa
“subdesenvolvimento” no quadro geral das trocas comerciais internacionais e como
ele caracteriza a condição da dependência para o Brasil, a partir da leitura marxista
[...] Queremos falar da problemática do desenvolvimento desigual e
combinado. Nesse sentido, o Brasil não deixa de ser uma espécie de
modelo, uma vez que sua dependência econômica neocolonial
exportação de alimentos e de matéria-prima para as metrópoles do
capitalismo internacional – juntamente com a permanência de formas
4
produtivas anteriores e a formação de uma massa marginal
caracterizam essa problemática. (Gonzalez, 1979. p. 45).
Pelas referências usadas ao longo dos três textos citados, Gonzalez denúncia
forte influência da produção de José Nun, especificamente em seu artigo
“Superpopulação Relativa, Exército Industrial de Reserva e Massa Marginal”, onde o
autor cria uma sistematização para a compreensão das categorias de trabalho
derivadas do modelo de desenvolvimento econômico brasileiro sob o
neocolonialismo, e sua sazonalidade conforme as oscilações de aquecimento ou
enrijecimento da estrutura produtiva brasileira.
Nun afirma que há, nas estruturas produtivas dependentes, faixas de
trabalhadores e trabalhadoras que extrapolam a função do exército industrial de
reserva como formulado por Karl Marx em O Capital, volume I, durante o período da
Inglaterra industrial espaço-tempo das observações de Marx e Friedrich Engels.
Se esta faixa da classe trabalhadora tem por função pressionar para baixo o nível de
assalariamento do proletariado, na América Latina existe uma camada da população
que sequer exerce esta função. Ou seja, Nun denomina “massa marginal” uma
terceira categoria de trabalhadores e trabalhadoras cuja absorção pelo mercado de
trabalho é esporádica e supérflua.
Lélia Gonzalez em seu artigo faz menção direta a esta categoria, atrelada à
ideologia racial:
Se colocamos a questão da funcionalidade da superpopulação
relativa, constatamos que, no caso brasileiro, grande parte dela se
torna supérflua e se constitui em uma massa marginalizada em face
do processo hegemônico. Claro está que todas as questões relativas
ao desemprego e ao subemprego incidem justamente sobre essas
populações. E, “coincidentemente”, os mais baixos níveis de
participação na força de trabalho pertencem à população negra
brasileira. (Gonzalez, 1979, p. 45).
É importante ressaltar que o conceito de superpopulação relativa, também
marxista, denomina de forma pedagógica um “excesso” de população que apenas
existe “em relação a” um modelo produtivo, o modelo capitalista. Por ser um sistema
que tende a maximizar lucros por sua essência concorrencial, a composição
orgânica do capital tendencialmente aumenta seu componente morto máquinas e
suas inovações tecnológicas -, e diminui o componente vivo, a força de trabalho
humana. Quando não a reduz em quantidade, reduz em remuneração. E o exército
5
industrial de reserva e as massas marginais desempenham papel central neste
rebaixamento, pois condicionam o trabalhador à falta de opção. Isso implica em más
condições de trabalho, exploração e, em última instância, o genocídio da população
negra (Borges, 2020; Moura, 2021; Góes, 2023).
Lélia afirma que o Brasil é caracterizado por uma divisão racial que
fundamenta o sistema econômico e é reafirmada por ele. Ou seja, a ideologia racial
organiza a racionalidade econômica do país a tal ponto de viabilizar uma
superexploração do trabalho que favorece o desenvolvimento capitalista em esfera
global.
Enfim, a produção de Lélia é inovadora, e une forças ao pensamento de
Clóvis Moura, por vincular o modelo de desenvolvimento econômico brasileiro à
questão racial. Lélia vai adiante pois vincula as estruturas econômicas, a partir de
uma leitura marxista, às ideologias de raça e gênero. Em “A juventude negra
brasileira e a questão do desemprego”, artigo curto, porém sofisticado, a autora
denuncia a contínua perseguição, opressão e violência policial como algo derivado
da marginalização econômica dos jovens negros e não da “vadiagem”, como o
Estado brasileiro e o mito da democracia racial difundidos à época afirmavam. Uma
escrita lúcida em pleno período de ditadura e que permanece atual em pleno século
XXI.
Referências
BORGES, J. Encarceramento em Massa. São Paulo: Jandaíra, 2020.
MOURA, C. Negro: de bom escravo a mal cidadão? 2. ed. São Paulo: Dandara.
2021.
GÓES, W L. Racismo, Eugenia no Pensamento Conservador Brasileiro: a
proposta do povo em Renato Kehl. Editora Liber Ars, 2023.
RATTS, A. RIOS, F. Lélia Gonzalez. Coleção Retratos do Brasil Negro.
Coordenação: Vera Lúcia Benedito. São Paulo: Selo Negro, 2010.
6