V.23, nº 50 - 2025 (janeiro-abril) ISSN: 1808-799 X
MARXISMO E INDIGENISMO: MARIÁTEGUI E O
SOCIALISMO INDO-AMERICANO1
Matheus de Carvalho Barros2
A obra de José Carlos Mariátegui representa um marco essencial do
marxismo latino-americano, sendo amplamente reconhecido como o primeiro autor a
desenvolver uma análise original sobre a realidade da América Latina com base no
materialismo histórico. Embora, em termos cronológicos, não seja possível afirmar
que o jornalista peruano tenha sido o primeiro marxista do continente, Mariátegui é
considerado por diversos analistas como o mais original e criativo marxista do “Novo
Mundo”, e o fundador de um marxismo genuinamente latino-americano (Kyser,
2012; Rubbo, 2021).
Para Gerardo Leibner (1999), a originalidade e a potência de Mariátegui como
pensador são expressas justamente em sua análise sobre a história peruana a partir
da denominada “questão indígena”. Através de uma perspectiva anticolonial,
Mariátegui articulou o radicalismo político derivado das análises marxistas com a
linguagem dos movimentos populares e indígenas da América Latina. Na esteira
desse argumento, Ruy Braga (2021) ressalta que o comunista peruano soube
sintetizar as dimensões universal e particular em um projeto político singular,
combinando os movimentos subalternos regionais com a teoria revolucionária
marxista, conformando aquilo que ficou conhecido como “socialismo
indo-americano”.
Entretanto, quais seriam as fontes do “marxismo Quéchua” 3 de Mariátegui?
Como bem destaca Tible (2020), as influências europeias, marxista e não marxista,
3Expressão utilizada por Deni Rubbo e Leandro Galastri no texto de apresentação da 51° edição da
Revista Crítica Marxista (2020), em homenagem aos noventa anos da morte de Mariátegui.
2Doutorando em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da
Universidade Federal do Rio de Janeiro. (PPGSA/UFRJ), Rio de Janeiro - Brasil.
E-mail: carvalho_barros@id.uff.br. Lattes: http://lattes.cnpq.br/1827391223830793.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3895-3961.
1Artigo recebido em 14/03/2025. Aprovado pelos editores em 20/03/2025. Publicado em 09/04/2025.
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v23i50.66970.
1
estão, em geral, bem desenvolvidas na literatura (Aricó, 1987; Löwy, 2011; Quijano,
1982). Mas as referências às fontes peruanas geralmente estão centradas no debate
com Haya de La Torre4. Se Mariátegui promoveu o encontro entre Leni e Tupac
Amaru, este empreendimento precisou ser mediado, já que o jornalista não falava as
línguas indígenas e nem pôde visitar as comunidades andinas devido seus
problemas de saúde.
Provavelmente a pesquisa mais importante sobre as fontes peruanas do
pensamento de Mariátegui seja a obra El mito del socialismo indígena: Fuentes y
contextos peruanos de Mariátegui, publicada em 1999 pelo historiador uruguaio
Gerardo Leibner. O autor investiga e localiza as fontes do pensador peruano, de um
lado, nos camponeses indígenas e militantes indigenistas, de outro lado, nos
revolucionários de origem europeia. Leibner (1999) destaca que as diversas revoltas
e o início de uma organização indígena em âmbito nacional foram fundamentais
para o desenvolvimento das teses mariateguianas. Segundo o historiador uruguaio,
foram essas lutas que colocaram a questão indígena na pauta política, social,
cultural e econômica do Peru. Nesse contexto, “algo muito profundo se movia e
Mariátegui foi um dos poucos limenhos a percebê-lo” (Leibner, 1999, p. 182).
No debate nacional peruano no início do século XX, a discussão girava em
torno da possibilidade de integração dos indígenas ao processo de desenvolvimento
do Peru moderno. O usual termo “problema indígena” é um indicativo da tendência
da maioria dos intelectuais criollos em considerar a presença indígena como um
obstáculo para o progresso (Deveza, 2022). Como demonstra Leibner (1999), no
lado mais racista deste debate havia inclusive algumas “soluções” genocidas ou
mesmo propostas de políticas de desapropriação em massa e colonização branca.
Contudo, o fato dessas ideias quase não aparecerem registradas por escrito pode
indicar que elas não possuíam suficiente legitimidade ideológica.
Neste contexto, as principais questões postas no debate eram: como
transformar os indígenas em um fator proveitoso para o desenvolvimento nacional?
Como resgatá-los do seu estado de degeneração? Em meio à variedade de
propostas e ideias, um grupo político se torna pioneiro no debate nacional e uma
4 Víctor Raúl Haya de La Torre foi um político e intelectual peruano, fundador da Aliança Popular
Revolucionária Americana (APRA). Mariátegui rompe com o movimento em 1928, quando este decide
se transformar em partido político de caráter reformista, disposto a agregar em suas fileiras as frações
nacionalistas da burguesia peruana (Galastri, 2017).
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influência decisiva para formação teórica de José Carlos Mariátegui. Refiro-me aqui
aos “anarco-sindicalistas”.
Mariátegui e seus companheiros do núcleo fundador do Partido Socialista
Peruano (1928) não foram os primeiros a “peruanizar” uma ideologia revolucionária
moderna e universalista de origem europeia. Os anarco-sindicalistas são os
primeiros a efetuar esse movimento teórico-político. O surgimento da questão
indígena levou o movimento anarquista a uma reavaliação de suas posições
eurocêntricas. E isso foi resultado justamente do contato com a realidade andina e
suas convulsões sociais. Nesse sentido, os indígenas deixam de ser objeto de
exploração, análise ou instruções e passam a ser, enfim, visto como sujeitos
rebeldes contra a exploração e portadores da herança de um passado incaico
comunista (Tible, 2020).
Sendo assim, Leibner (1999) destaca que Mariátegui não inventou a ideia de
um “socialismo indo-americano”, mas sua contribuição chave se situa na formulação
de uma proposta política radical de emancipação dos indígenas. Portanto, “a origem
de sua criação marxista tão original (...) se radica em suas fontes de inspiração
peruanas não menos nas versões heterodoxas do marxismo que adotou na Europa”
(Leibner, 1999, p.42).
Em seu regresso da Europa, em 1923, Mariátegui empreendeu um esforço
consciente e sistemático para acessar diversas fontes de informação, tanto escritas
quanto orais, sobre a realidade andina. Através da relação com autores indigenista,
além da leitura de artigos sobre a “questão do índio” e de estudos históricos, sociais,
econômicos, “Mariátegui foi se peruanizando” (Tible, 2020, p. 35).
Os Sete Ensaios
Entre 1925 e 1928, Mariátegui escreveu e publicou em jornais e revistas uma
série de artigos sobre a realidade peruana, os quais posteriormente foram reunidos,
reorganizados e ampliados. O resultado dessa compilação e reformulação foi
publicado em novembro de 1928, com o título de Siete ensayos de interpretación de
la realidad peruana. É a partir desta obra que podemos localizar as formulações
mais maduras de Mariátegui sobre a questão indígena.
Apesar de Mariátegui (2004) afirmar na Advertência que abre o livro que a
obra não se constitui como um “livro orgânico”, podemos afirmar que os Sete
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Ensaios se apresentam como seu trabalho mais sistemático. Como salienta André
Kaysel (2012), é possível observar, justamente pela ordem que os textos aparecem,
uma estrutura interna que muito provavelmente foi previamente concebida. O
revolucionário peruano começa a obra com uma breve história econômica do Peru,
seguindo com a questão do índio; a questão agrária; a educação; a religião; o
problema regional e por último, a literatura. Desta forma, “esse caminho é bastante
coerente com o método do materialismo histórico, o qual parte das contradições na
infraestrutura e segue para os domínios da superestrutura nos quais essas
contradições se expressam e se complexificam” (Kaysel, 2012, p. 145).
Analisando o desenvolvimento desigual e combinado do Peru, Mariátegui
(2004) afirma que a formação social de seus país era um amálgama de três
“economias” (ou “modos de produção”): o socialismo ou comunismo primitivo, o
feudalismo e o capitalismo (este último em fase de desenvolvimento). O socialismo
ou comunismo primitivo sobrevivia nas comunidades rurais dos indígenas (o ayllú)
do altiplano andino que havia sobrevivido à conquista e à colonização espanholas.
Por outro lado, Mariátegui (2004) destaca que, legado pela colônia, o
latifúndio feudal permaneceu e também se fortaleceu após o processo de
independência a partir do seu entrelaçamento com a nascente economia capitalista.
Esta, originada na costa, apoiava-se na exportação de produtos primários (minerais
e agrícolas) e era dominada por capitais estrangeiros (britânicos em um primeiro
momento e, posteriormente, norte-americanos).
Mariátegui (2004) demonstra que, mesmo com o desenvolvimento capitalista
mais complexo do período imperialista – que envolve, sobretudo, a mineração e uma
incipiente industrialização ,o regime burguês derivado da Revolução de
independência peruana, por sua associação umbilical com o latifúndio, é incapaz de
alterar as relações sociais que excluem o índio. Nesse sentido, tendo em vista que o
capitalismo é um sistema mundial, “a independência sul-americana apresenta-se
ditada pelas necessidades do desenvolvimento da civilização ocidental ou, mais
exatamente, capitalista” (Mariátegui, 2004, p. 6).
Portanto, para o nosso autor, a economia peruana de então mantinha um
caráter colonial: isto é, seus dinamismos eram ditados “de fora”, pelos interesses do
capital financeiro internacional. O capitalismo, consolidado pela penetração do
capital monopolista anglo-saxão, se integrou e fortaleceu as relações “arcaicas” de
produção, em vez de dissolvê-las. O legado colonial permanece como algo vivo e
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atuante no presente peruano. A “inorganicidade” da formação social do país andino
aparece como resultado da permanência da herança da conquista.
Sendo assim, na concepção de Mariátegui (2004), não apenas a economia
nacional era dependente e desarticulada como também a cidadania era negada às
massas populares. Nesse contexto, como então constituir uma nação sem a
integração econômica, política e social da massa da população?
Mariátegui começa o segundo dos sete ensaios afirmando que todas as teses
que não consideram a questão indígena como um problema socioeconômico, não
passam de “estéreis exercícios teóricos condenados a total descrédito”. O
revolucionário peruano advoga uma crítica que busque as raízes do problema do
índio não nas determinações jurídicas, culturais ou morais, mas sim na estrutura
econômica da sociedade peruana. Pois,
a questão indígena emerge de nossa economia. Suas raízes estão
no regime de propriedade da terra. Qualquer tentativa de resolvê-la
através de medidas administrativas ou policiais, através de métodos
de ensino ou com obras de viação, constitui um trabalho superficial
ou adjetivo, enquanto subsistir o método feudal dos “gamonales
(Mariátegui, 2004, p. 21).
Os “Gamonales” eram essencialmente os latifundiários peruanos da região
serrana que exploravam a força de trabalho do camponês local num regime de
servidão - muito parecido com a forma feudal -, o que leva Mariátegui a caracterizar
o fenômeno da pobreza camponesa como problema da “feudalidade” peruana
(Galastri, 2017). Desta forma, a marginalidade da massa quéchua poderia ser
entendida como resultado do regime de dominação social dos grandes proprietários
rurais, onde o latifúndio e as relações de trabalho servil representavam os pilares
dessa configuração social.
Na esteira dessa argumentação, Mariátegui (2004) destaca que o regime de
propriedade da terra condiciona o regime político de seu país. Ou seja, o problema
agrário perpassa por todos os problemas do Peru, impedindo a formação e o
funcionamento de qualquer instituição democrática e até mesmo liberal. Desta
forma, tendo em vista a relação de dominação e servidão as quais os povos
indígenas estão submetidos, Mariátegui defende que não como resolver o
“problema do índio” sem extinguir o latifúndio.
Com base em uma visão materialista e dialética da realidade, o comunista
peruano desloca a questão indígena de um viés culturalista, moralista e religioso
5
para uma análise econômica e política. Sendo assim, “a solução do problema do
índio tem de ser uma solução social. Os índios é que devem realizá-la” (Mariátegui,
2004, p. 31).
Considerações finais
Em abril de 2025, completam-se 95 anos da morte de José Carlos Mariátegui.
Pensar na atualidade de um autor que produziu, sobretudo, na década de 1920 não
é tarefa fácil. No entanto, apesar do século que nos separa, questões fundamentais
suscitadas pelas “heresias” do revolucionário peruano continuam a nos interpelar no
presente.
Em 1994, Florestan Fernandes publica o texto Significado atual de José
Carlos Mariátegui, publicado no Anuário Mariateguiano.5 Na ocasião, o sociólogo
paulistano relembra a importância histórica do intelectual peruano e suas temáticas
inovadoras. Segundo Florestan, os Sete ensaios enriqueceram o marxismo fora e
acima dos eixos eurocêntricos. Nesse contexto, Mariátegui continuaria sendo
(...) o farol que ilumina dentro da pobreza e do atraso da América
Latina, os limites intransponíveis da civilização capitalista e as
exigências elementares da civilização sem barbárie, que as
revoluções proletárias não lograram concretizar (Fernandes, 2015, p.
20).
Portanto, José Carlos Mariátegui construiu um pensamento crítico
descolonizador, onde a articulação entre raça e classe não é apenas um imperativo
para a compreensão da realidade latino-americana, mas também um
empreendimento fundamental para a construção de uma práxis radical de libertação
dos povos oprimidos pela dominação colonial e imperialista. Ao analisar a sociedade
peruana a partir da ótica das populações indígenas, Mariátegui compreende o
racismo como um fator estruturante do capitalismo periférico, antecipando questões
presentes nos chamados “estudos pós-coloniais”.
Enquanto não superarmos a dicotomia entre raça e classe no entendimento
das particularidades da América Latina, ficaremos fadados a fazer uma análise
insuficiente da realidade concreta, e impossibilitados de construir uma sociedade
que não seja baseada na exploração e na opressão “do homem pelo homem”. A
5 Esse texto também foi publicado em um dos seus livros póstumos: A contestação necessária:
retratos intelectuais de inconformistas e revolucionários de 1995.
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partir das contribuições de José Carlos Mariátegui, podemos argumentar que os
marxistas devem se situar entre aqueles que concebem o racismo como uma práxis
orgânica do capitalismo, que o reforça e consolida seu desenvolvimento. Desta
forma, não pode haver nenhuma perspectiva de transformação social sem a
destruição de ambos.
Referências
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