V.23, nº 50 - 2025 (janeiro-abril) ISSN: 1808-799 X
A QUESTÃO ÉTNICO-RACIAL NO CENTRO DA LUTA DE CLASSES: A
OBJETIVIDADE ESMAGADORA EM FRANTZ FANON E A CULTURA NEGRA
COMO RESISTÊNCIA EM LÉLIA GONZALEZ1
Jacqueline Botelho2
Resumo
Este artigo se propõe a abordar a luta antirracista no centro da luta de classes, a partir da
contribuição de Frantz Fanon e Lélia Gonzalez no enfrentamento da questão etnico-racial, a partir da
compreensão do racismo como objetividade esmagadora, que atua como complexo de violências
sobre os negros. Gonzalez, nos demonstra a relação entre racismo e sexismo na cultura brasileira,
recuperando a noção de negritude como resistência, e propondo a crítica ao lugar de negro através
de processos de aquilombamento.
Palavras-chave: racismo, violência, capitalismo, cultura negra, aquilombamento.
LA CUESTIÓN RACIAL-ÉTNICA EN EL CENTRO DE LA LUCHA DE CLASES: LA OBJETIVIDAD
ABRUMADORA EN FRANTZ FANON Y LA CULTURA NEGRA COMO RESISTENCIA EN LÉLIA
GONZÁLEZ
Resumen
Este artículo tiene como objetivo abordar la lucha antirracista en el centro de la lucha de clases, a
partir del aporte de Frantz Fanon y Lélia González en el enfrentamiento de la cuestión étnico-racial, a
partir de la comprensión del racismo como una objetividad abrumadora, que actúa como un complejo
de violencia contra los negros. González nos muestra la relación entre racismo y sexismo en la
cultura brasileña, recuperando la noción de negritud como resistencia y proponiendo una crítica al
lugar de los negros a través de procesos de quilombamento.
Palabras clave: racismo, violencia, capitalismo, quilombamento.
THE ETHNIC-RACIAL QUESTION AT THE CENTER OF THE CLASS STRUGGLE: THE
OVERWHELMING OBJECTIVITY IN FRANTZ FANON AND BLACK CULTURE AS RESISTANCE IN
LÉLIA GONZALEZ
Abstract
This article aims to address the anti-racist struggle at the heart of the class struggle, based on the
contribution of Frantz Fanon and Lélia Gonzalez in confronting the ethnic-racial issue, based on the
understanding of racism as an overwhelming objectivity that acts as a complex of violence against
black people. Gonzalez demonstrates the relationship between racism and sexism in Brazilian culture,
recovering the notion of blackness as resistance, and proposing a critique of the place of black people
through the processes of quilombola settlement.
Keywords: racism, violence, capitalism, quilombola settlement.
2Doutora em Serviço Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Professora
Adjunta da Escola de Serviço Social da Universidade Federal Fluminense (UFF/Brasil).
E-mail: botelho.jacque@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/7423332568707388.
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1989-5089.
1Artigo recebido em 10/12/2024. Primeira Avaliação em 28/01/2025. Segunda Avaliação em
04/02/2025. Aprovado em 13/03/2025. Publicado em 09/04/2025.
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v23i50.67148.
1
Introdução
Partimos da compreensão de que não existe capitalismo sem racismo, e que
o aprofundamento do segundo garante condições de sobrevivência do atual modo
de produção. O racismo, além de arma ideológica de dominação, nos termos de
Moura (2023), é arma de produção de hegemonia dos dominantes (Botelho, 2024).
Ele é um complexo de violências que atua objetivamente e subjetivamente contra
indivíduos negros, operando a consolidação de uma realidade supremacista branca
que produz convencimento de que a subordinação do negro é fruto da sua natureza.
Os negros representaram o contingente populacional massivo segregado na
sociedade capitalista no pós-abolição, cujo desafio torna-se, para além de
demonstrar objetivamente esta segregação, denunciar o mito da democracia racial,
uma estratégia de dominação burguesa, onde está viva a supremacia imperialista
branca.
Bell Hooks realiza uma reflexão sobre o processo de integração dos negros
nos EUA, quando se decreta o fim do regime de segregação, constatando que
conforme a luta pela libertação das pessoas negras ganhava
atenção, a ênfase não estava mais no racismo internalizado. A
supremacia branca raramente era mencionada. Líderes negros
começaram a equiparar a conquista da liberdade à conquista de
poder econômico, apenas com o que se supunha que pessoas
brancas tinham (Hooks, 2022, p. 46-47).
A historiografia sobre o negro brasileiro oculta que, no pós-abolição, havia três
portas fechadas para o negro no Brasil: o acesso à terra, o acesso à escola e o
acesso ao trabalho. Esta historiografia nega a política de embranquecimento da
população, a ação eugenista do Estado, assim como a educação racista no Brasil,
que traz como referências toda uma primeira geração de romancistas (1836-1852)
que difundiu o pensamento patriarcal, racista colonialista de interesse dos setores
dominantes. Moura (2020) nos demonstra que
Quando se cria uma Literatura Brasileira, uma ensaística brasileira,
ela é, praticamente, toda racista e não apenas em Oliveira Viana. Na
obra de Euclides da Cunha, de Silvio Romero, de Tobias Barreto,
este inclusive era mulato, assim como nos romances de Graça
Aranha, Julio Ribeiro e outros, vamos encontrar, como uma
constante, aquela determinação de dizer que o que sujou, o que
atrapalhou a dinâmica da sociedade brasileira não foi o fato de existir
a escravidão, mas o fato de existir o negro como raça inferior (Moura,
2020, p. 241).
2
Desta forma, Moura demonstra como o negro na literatura brasileira sempre
foi o anti-herói:
Não temos praticamente - salvo algumas tentativas residuais -
nenhum livro que mostre o negro como herói, a não ser os anti-heróis
de Moleque Ricardo de José Lins do Rego, do Jubiabá de Jorge
Amado e do próprio o Bom Crioulo de Adolfo Caminha (Moura, 2020,
p. 240).
Monteiro Lobato, escritor que manteve correspondências com Renato Kehl,
um dos expoentes do pensamento eugenista no Brasil, com a finalidade de pensar
formas de livrar o país dos negros, ainda segue como referência a ser lida por
crianças nas escolas. Com isto, quero dizer que a literatura brasileira racista veio
fortalecer a ideologia do branqueamento, que estabelece a estética branca como
referência de beleza, sucesso e desenvolvimento do país. Tudo isso é esteio de
sustentação de uma sociedade brutalmente racista.
Frantz Fanon (2008) nos permite compreender a relação dialética entre
racismo e antirracismo, bem como a autoalienação do povo negro provocada pela
imposição da cultura europeia, pelo apelo à brancura e desumanização de negros e
negras. A partir do autor, compreendemos que a consciência étnico-racial é
produzida nas relações sociais, a partir dos processos de sócio interação. O resgate
da história milenar de experiência do povo negro sobre a mineração, a agricultura e
arquitetura, antes do surgimento do capitalismo, é parte da denúncia da violência
dos colonizadores contra os territórios negros, impondo morte, e organizando a
negação da cultura desses povos para a dominação.
A negridão de Fanon é anunciada pelo autor como fruto da violência do outro,
ressignificada em resistência, que recupera a ancestralidade e sua negritude como
necessárias. A consciência do racismo como violência é condição para que não haja
margem ao perdão, tomado como categoria cristã, que representa culturalmente a
condenação daqueles que não são brancos. “Pele Negra Máscaras Brancas” retrata
a experiência como elemento fundamental para a produção da consciência,
destacando a universalidade do grito de opressão vivida por negros e negras.
3
A desumanização do negro no escravismo como base para o racismo
No ano de 1700, o quantitativo de escravos somava aproximadamente
330.000, chegando a quase três milhões no ano de 1800. O mercado de carne
humana para o trabalho no tráfico negreiro contribuiu de forma decisiva para o
crescimento do poder absoluto do homem sobre o homem no mundo liberal. A
escravidão não permaneceu ao largo do sucesso das três revoluções liberais, visto
que, ao contrário, ela conheceu o ápice de seu desenvolvimento em virtude desse
sucesso. Nos anos 50 do século XIX a população escrava nas Américas alcançava o
pico de mais de 6 milhões de escravos (Losurdo, 2006).
Se quisermos revelar quem de fato é a Europa, precisaremos considerar que
na metade do século XVIII a Grã-Bretanha possuía o maior número de escravos
(878.000). A Espanha, embora com império mais extenso, a seguia a muita
distância. Portugal ocupava o segundo lugar, com “700.000 escravos, atuando como
uma espécie de semicolônia da Grã-Bretanha, em que boa parte do ouro extraído
pelos escravos brasileiros acabava em Londres” (Losurdo, 2006).
Em ordem cronológica, os diferentes momentos da acumulação primitiva
repartem-se pela Espanha, Portugal, Holanda, França e Inglaterra. Em fins do
século XVII, na Inglaterra, estes momentos são resumidos sistematicamente no
sistema colonial, no sistema da dívida pública, no moderno sistema tributário e no
sistema protecionista. Estes métodos estiveram baseados na mais brutal violência
concentrada e organizada da sociedade. Mas, não dúvidas de que quem ocupa
destaque a partir da sua “posição absolutamente eminente é o país que está no
mesmo tempo na frente do movimento liberal e que conquistou o seu primado no
comércio e na posse dos escravos negros exatamente a partir da Revolução
Gloriosa” (Losurdo, 2006, p. 48).
No Brasil, o cativeiro da terra foi a matriz estrutural e histórica de nossa
sociedade, que condenou a modernidade e a entrada no mundo capitalista no Brasil
a uma modalidade de coerção do trabalho que nos assegurou um modelo de
economia concentracionista e extremamente desigual. Antes da abolição da
escravidão, a Lei de Terras de 1850 instituía um novo modelo de propriedade em
que a condição de proprietário não dependia somente da condição de homem livre,
mas de pecúlio para a compra da terra, ainda que ao próprio Estado. Desta forma,
de modo diferente do Brasil Colônia, a terra não seria mais concessão da Coroa
4
Portuguesa ao sesmeiro, que recebera a terra para cultivo, e também não seria de
domínio do Estado (Martins, 2010).
O domínio sobre a terra seria uma concessão junto ao título de propriedade
que garantia ao proprietário o direito de fazer das terras um uso indiscriminado, o
que trouxe graves limitações à regulação pública do seu uso. Estes elementos
históricos formam evidências comprovadoras de que o desenvolvimento capitalista
brasileiro não seguiu o modelo clássico, sendo definido por determinações de
origem que não devem ser ignoradas pelos pesquisadores que pretendem entender
as contradições do capitalismo no campo brasileiro (Martins, 2010).
Reconhecemos que o trabalho escravo no Brasil esteve diretamente ligado às
relações comerciais, o que imprimiu diferenças entre a escravização negra e
indígena, sendo o escravo negro a marca do escravo mercadoria em substituição ao
escravo cativo e indígena. O desenvolvimento da extração do ouro no final do
Seiscentismo deixava nítida tal relação, quando se estabeleceu que a mineração do
ouro e das pedras preciosas seria realizada não mais por índios cativos, mas
mediante o emprego de escravos africanos.
Ao mesmo tempo em que a acumulação da riqueza expropriava o homem das
terras, criava a imagem social do homem diferente e inferior, pois que toda forma de
dominação de terras esteve sustentada em ideologias, à exemplo da expansão
marítima europeia para a América, justificada pela alegação de que “abaixo da linha
do Equador” estaria um povo inacabado, sem cultura e sem alma (Gorender, 2016).
Da mesma forma, a escravização negra demonstra a perversidade desta
lógica de acumulação instituinte do capitalismo no Brasil, visto que além de tornar o
homem mercadoria cria ideologicamente a lógica do merecimento do castigo do
trabalho a quem o realiza, ajudando a tornar ainda mais negativa a imagem social do
trabalho braçal em nossa sociedade, pois quem trabalha é majoritariamente o
escravo negro. É verdadeiro e necessário resgatar a luta dos escravizados contra a
exploração dos colonizadores que invadiram terras litorâneas matando as
populações locais, impondo uma forma de produção baseada na economia
escravista e latifundiária para produção e exportação de mercadorias.
Tal situação perdurou por três séculos e meio. Não poderíamos deixar de
dizer o quanto foi grandiosa a resistência destes trabalhadores escravizados,
destacando-se a resistência na execução do trabalho, a apropriação de bens por
eles produzidos, a fuga, o aquilombamento, a revolta e a insurreição e o suicídio
5
diante da repressão. O autoferimento, o sabotamento de ferramentas eram formas
de resistência indígena contra o trabalho escravo.
Entre o final do século XVIII e princípio do século XIX, mudanças importantes
ocorreram na Europa. Na tentativa de derrotar uma ordem baseada em privilégios
corporativos tradicionais, os iconoclastas do Antigo Regime recorreram à filosofia
dos direitos naturais. Num investimento contra o que definiam como instituições
corruptas e considerando sua sociedade como fonte de todos os males, eles foram
levados a idealizar os povos e as sociedades primitivas. Uma nova filosofia e nova
crítica social lançaram as sementes do abolicionismo que abalariam as antigas
afirmações de que os negros seriam selvagens, primitivos pondo em xeque a
escravidão, agora pensada como uma “aberração no mundo do liberalismo”
(Gorender, 2016).
O escravo no período Colonial funcionava como dinheiro em sentido estrito,
como meio de troca ou meio de circulação3 e, na condição em que o escravo
representa o investimento de uma determinada soma de recursos, pode realizar a
função do capital-dinheiro emprestado a juros. O aluguel de escravo foi prática
comum no Brasil, onde vivia um bom contingente de indivíduos a partir da aplicação
do seu dinheiro na compra de escravos (destinados a render sob locação ou como
negros de ganho).
Para o escravo, a liberdade não era o resultado imediato do seu trabalho, mas
a negação do trabalho, visto que na sociedade escravista é representado
realmente como livre quem não precisa trabalhar para viver. Na medida em que o
trabalho escravo se baseia na vontade do senhor, o trabalho livre baseava-se na
vontade do trabalhador, na aceitação da legitimidade da exploração do trabalho pelo
capital, visto que, enquanto o primeiro assumia a forma de capital e de renda
capitalizada, o segundo assumiria a forma de força de trabalho estranha e
contraposta ao capital. Por estes motivos, a questão abolicionista foi conduzida para
garantia da substituição do trabalhador escravo pelo trabalhador livre, em que, no
caso das fazendas paulistas, se traduzia na substituição física do negro pelo
imigrante.
3 Segundo Marx, no entendimento do processo de circulação do dinheiro e na possibilidade de sua
relativa autonomia, temos o capital usurário (pré-capitalista) e o capital bancário, que é capitalista na
acepção típica (Gorender, 2016).
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Mais do que a emancipação do negro cativo para reintegrá-lo como
homem livre na economia de exportação, a abolição o descartou e
minimizou, reintegrando-o residual e marginalmente na nova
economia capitalista que resultou no fim da escravidão. O resultado
não foi apenas a transformação do trabalho, mas também a
substituição do trabalhador, a troca de um trabalhador por outro. O
capital se emancipou, e não o homem (Martins, 2010, p. 35).
Diante do esgotamento do escravismo e da inevitabilidade do trabalho livre, o
Brasil optou em 1850, pelo fim do tráfico negreiro, pelo trabalho livre e pela
imigração estrangeira. Foi o imigrante quem se tornou a força de trabalho oficial do
Brasil e não a população negra. As escolas podiam ou não aceitar crianças pretas e
pardas. Apesar disto, é a população negra, “a antiga escravaria” , que irá organizar
as primeiras experiências de greve no Rio de Janeiro, uma cidade negra.
A objetividade esmagadora em Frantz Fanon e sua atualidade
Como moradora da cidade de Niterói, uma das cidades mais racistas do
Brasil, não quem transite pela Avenida Amaral Peixoto e não perceba a cor
daqueles que dormem nas calçadas, debaixo das marquises dos prédios. São
negros a maioria dos corpos sem-teto, favelados, encarcerados, impondo aos olhos
de qualquer criança a objetividade do racismo, naturalizando, pela repetição do
abandono do Estado, a posição dos negros como subalternos. A desumanização do
negro educa aos olhos dos transeuntes, reforçando no cotidiano as bases materiais
do racismo. Contraditoriamente explicita a desumanização a que estão relegados,
tornando o abandono uma vergonha para o ethos católico dominante, como dizia
Fernandes (1974) ao mencionar o “preconceito de não ter preconceito”. A saída
defendida pelo Estado na cidade de Niterói tem sido a internação compulsória dessa
população que mora nas ruas, o que gera protestos e resistência popular contra o
que pode significar mortes e desaparecimentos, frente ao histórico de políticas
higienistas em nosso país.
Fanon (2008) anuncia uma conexão orgânica entre racismo, capitalismo e
colonialismo, bem como a centralidade do antirracismo na luta de classes. Dois
pólos permitem essa observação: o colonialismo destacado como colonização do
ser, e “a objetividade esmagadora”, onde negros se encontram.
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A paz não faz parte do mundo do negro, considerando que o mundo branco é
pra ele violento. Falar do negro é falar de traumas como experiência vivida, que o
colocam como necessário organizador da luta social contra a opressão capitalista.
O racismo é objetividade esmagadora, o que quer dizer que a violência do
cotidiano contra negras e negros o constituem. Esta violência se revela quando o
negro é forçado a ver os seus irmãos numa condição de sofrimento permanente
nesta sociedade.
A pobreza passa a ser coisa dos pobres e não do sistema. Os pobres são
vistos como pragas que se multiplicam nas ruas. Eles são quase sempre pretos, em
analogia à linguagem de Pele Negra Máscaras brancas, que empresta ao branco um
coração negro na denúncia à desumanização.
A relação dialética entre racismo e antirracismo existe em Fanon (2008),
quando somente o racismo produz o antirracismo, que não vem do coração puro,
mas da reação à violência, que sempre coloca o negro como sujeito ativo dessa
resistência, que pode ser capturada pelo espírito conciliador liberal para
conservação do capitalismo.
As reflexões de Fanon são fundamentais para a leitura atual do racismo no
Brasil. O racismo e seu complexo de violências e ideologias autoriza que o Estado
seja livre para realizar e incentivar investimentos onde possa haver “retorno”, na
mercantilização da vida social. Sob a lógica racialista, os territórios majoritariamente
negros (favelas, quilombos, assentamentos) são condenados como territórios
“atrasados” (pela suposta incapacidade natural dos seus habitantes), e perigosos,
onde justifica-se o baixo investimento do Estado em políticas públicas para esta
população (reforma agrária, educação, saúde, saneamento básico) e a violência
como mecanismo de controle.
Dessa forma, a ação capitalista volta-se para o controle sobre territórios e
corpos negros, bem como à criminalização de experiências de movimentos
populares que buscam apontar alternativas ao capitalismo. Como tática de
convencimento, utiliza-se a propaganda da guerra às drogas, ao mesmo tempo em
que cresce a indústria de armas, favorecendo o capitalismo pela eliminação e
isolamento dos inimigos potenciais ao sistema e ampliação de lucros pelo controle
de armamentos (Botelho, 2022).
Neste sentido, buscar combater a desigualdade apontando apenas para a
generalidade da classe, tornaria invisível a maioria negra da população. É
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necessário avançar no conhecimento e compreensão sobre o modo de vida da
população negra e indígena, seus saberes e cultura que, apesar de servirem como
resistência, foram antes violentados pelo capitalismo, desde a acumulação primitiva
do capital até a ação devastadora de expropriação de terras quilombolas, indígenas
e ribeirinhas.
O racismo sabota as análises sobre desemprego estrutural, questão agrária e
urbana, precarização da educação, entre outras que interessam à classe
trabalhadora, posto que produz, pela relação orgânica com o modo de produção
capitalista, um “lugar de negro”, que é um lugar da escassez material, da ausência
de condições dignas de saúde e moradia, de formação escolar.
A violência como forma de fazer política está presente em nossa formação
social. Nas Américas, a experiência da escravidão moderna apresenta como farsa a
liberdade prometida pelo liberalismo. A existência da população negra nas Américas
é a denúncia da violência empregada contra negras e negros.
A religiosidade africana, o jongo, a capoeira são ainda hoje tomados como
profanos, e aos negros, especialmente quando mulheres negras, foi reforçada a
exploração sexual de seu corpo e autorizados abusos de ordem física e psicológica.
O racismo, na medida em que anda de mãos dadas com a meritocracia, e, na
atualidade com a empregabilidade e com a pedagogia das competências, é
amálgama necessária ao capitalismo. A produção neoliberal da imagem de uma
sociedade civil harmônica, com ausência de conflitos, garante uma aparência de
enfrentamento ao racismo, tomado como elemento que transborda nas relações
humanas em atitudes de preconceito e discriminação, fruto de ações individuais. Tal
imagem sugere uma leitura do racismo em sua aparência, ou seja, meramente como
reação. No plano das reações, o capitalismo convida para interpretações imbuídas
de subjetivismos, que desconsideram a relação entre objetividade e subjetividade na
reprodução social da vida.
Contribuições de Gonzalez
Quando falamos de Gonzalez, estamos recuperando a contribuição de uma
mulher, intelectual negra, para além da. interseccionalidade como categoria
sistematizada por Crenshaw (1989) - e dentro da qual muitos pesquisadores situam
Gonzalez - que ganhou sentidos diversos na academia e no campo das políticas
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públicas. Gonzalez nos fornece uma leitura de raça, classe e gênero sem
hierarquizações entre as categorias citadas, e nos ajuda a recuperar a perspectiva
socialista do feminismo negro, quando traz a cultura, a América Latina e a economia
para o centro do debate sobre resistências.
Como mulher negra, Gonzalez vai demonstrar a relação
objetividade-subjetividade no racismo ao trazer o seu processo subjetivo como
expressão da particularidade sócio-histórica brasileira. A autora recupera a
escravização negra e a opressão capitalista como elementos de subordinação
permanente numa sociedade de desenvolvimento desigual e combinado
(Botelho, 2024).
Ela demonstra como esses aspectos avançados e atrasados no processo de
desenvolvimento econômico do país contribuem para a produção do “lugar de
negro”, que é parte da estratégia de dominação. Desta forma, são apresentadas as
conexões classe, raça e gênero, denunciando a estratégia cotidiana do
branqueamento, via objetificação dos corpos de mulheres negras, na percepção
de que tal branqueamento é ofertado como alternativa dos brancos dominantes
para que o povo negro possa romper com um pertencimento étnico-racial, capaz
pra ela, através do enegrecimento, de operar um resgate da negritude e da cultura
negra, que foram apagadas da memória do negro como processo de formação de
uma consciência favorável à dominação.
Resgatar a importância do pensamento de Gonzalez é perguntar sobre os
desafios atuais na estratégia necessária de enegrecimento, sabendo que seu
conteúdo é disputado por setores capitalistas na sua comercialização, numa
apropriação de pautas negras, que apagam a cisão de classe que a ideia de
enegrecimento (numa perspectiva liberal) pode promover. Diante desses desafios,
podemos concluir que sem o aquilombamento nas periferias, perderemos o
conteúdo material dirigente desse processo, em que a classe trabalhadora é
constituída por uma maioria de mulheres negras. Estas mulheres sofrem a violência
da divisão social, sexual e racial do trabalho, sustentada pelo racismo e pelo
sexismo, através de uma ação ideológica sofisticada.
Essa sociedade, na construção de um convencimento da inferioridade do
negro, ainda olha para mulher negra como inferior, porque é essa imagem que
justifica uma divisão social do trabalho extremamente desigual e o privilégio de
poucos. Desta forma, essa luta cotidiana contra a discriminação racial é necessária,
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porque é no cotidiano que o racismo se fortalece. Nessa sociedade capitalista, onde
também uma divisão racial e sexual do trabalho, a maioria esmagadora da
população negra está vivendo o desemprego aberto, tentando sobreviver num
trabalho temporário.
Destaca-se, na experiência de vida de Gonzalez, o processo de migração
regional, que é uma realidade experimentada pelo povo negro migrado do campo à
cidade, do Nordeste ao Sudeste e das fazendas mineiras para os grandes centros.
Nascida em Belo Horizonte, vai residir na Baixada Fluminense e nos ajuda a pensar
sobre esse território, constituído por cidades dormitórios e extremamente controlado
e vigiado pelo Estado. Sinaliza a urgência do combate ao mito da democracia racial,
que em 1930 ganha expressão com Gilberto Freyre e a sua teoria do
lusotropicalismo, uma espécie de romantização do colonialismo português.
Gonzalez nos demonstra o resgate histórico do que foi Palmares, seus cem
anos de resistência, e o protagonismo de mulheres negras. Palmares que
representou uma experiência concreta organizada por negros (na construção de
uma sociedade alternativa ao escravismo), e o grito de liberdade dos escravizados.
Gonzalez irá se opor a uma ideia de latinidade homogênea, e esta é uma importante
contribuição para pensarmos as contradições socioeconômicas na América Latina
como conteúdos presentes.
Em referência a diferentes autores da tradição marxista (Fanon, Octavio Ianni,
Clóvis Moura, Florestan Fernandes), a autora convoca diferentes grupos de
resistência negra da atualidade a revisitar a contribuição da tradição marxista no
debate étnico-racial. Sem dúvidas, o seu diálogo com a apreensão da realidade
brasileira através da abordagem crítica ao modo de produção capitalista recupera
categorias fundamentais como a totalidade, a historicidade e a contradição,
essenciais para a interpretação do racismo.
A sua análise sobre o Estado como auxiliador na manutenção da ordem
capitalista vigente e de práticas de discriminação, é essencial na compreensão do
racismo, que é sempre estrutural e violento. Tais conteúdos são nítidos quando
analisamos o funcionamento do modo de produção capitalista.
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Como destaca a autora:
(...) vale ressaltar que a maioria das crianças negras, nas escolas de
primeiro grau, são vistas como indisciplinadas, dispersivas,
desajustadas ou pouco inteligentes. De um modo geral, são
encaminhadas a postos de saúde mental para que psiquiatras e
psicólogos as submetam a testes e tratamentos que as tornem
ajustadas (Gonzalez, 2020, p. 39).
No campo heterogêneo dos movimentos sociais, é fato que alguns setores
tenham realizado um debate mais genérico sobre a classe, esquecendo que ela tem
cor e sexo. Para nós, aqueles que não reconhecem que a classe tem uma maioria
negra e que não se preocupam em estudar a história, lutas e demandas da
população negra, não assumem um compromisso real com a classe trabalhadora,
compromisso este que passa pelo estudo e aproximação com os sujeitos da classe
e sua realidade. Ao mesmo tempo, é necessário superar a crítica genérica aos
movimentos sociais que reconhecem a classe como categoria necessária à leitura
da questão étnico-racial. Não podemos ler a classe, a raça e o gênero, sem estudar
a luta de classes.
Nessa direção, compreender a classe na tradição marxista é interpretar
criticamente as formas de dominação no capitalismo, o que necessariamente inclui o
estudo do racismo. Outras vertentes teóricas, para além do marxismo, ajudaram a
constituir o pensamento de Lélia sobre a questão étnico-racial no Brasil. Entre elas
encontramos o feminismo de Simone de Beauvoir, a psicanálise. Também está
presente a influência de Amílcar Cabral, Walter Rodney, Aimé Césaire. A partir de
Fanon, ela chega à reflexão sobre os processos de internalização do racismo pelos
negros.
Gonzalez (1982) analisa a situação da população negra do país no período da
ditadura militar e no chamado “milagre brasileiro”. No golpe de 1964 ela está
explicitando o chamamento à “pacificação” da sociedade na época, que ela
interpreta como o velho silenciamento e repressão impostos a ferro e fogo ao povo
negro. Desta forma, Gonzalez recupera elementos do passado para analisarmos o
presente, e pensarmos processos de transformação de uma ordem societária
racista. O chamado milagre brasileiro se coloca, a partir de um cenário de extrema
repressão, perseguição às lideranças, extinção das ligas camponesas, combinado
com o alijamento das massas da partilha dos frutos esperados do crescimento
econômico.
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O que ocorre na vida dessas pessoas é um grande empobrecimento e
arrocho salarial. Torna-se evidente a contradição de um país que experimenta a
abertura para os capitais estrangeiros, via a implantação dos parques industriais,
crescimento do latifúndio, elevados índices de desemprego. No censo dos anos
1980, a população urbana passou a constituir 67,5%, fruto do êxodo rural, com
cidades inchadas. Ao perguntarmos onde está o negro nesse cenário, o
identificamos na construção civil, na limpeza urbana, nos serviços domésticos, como
trabalhadores dos transportes, como imigrantes do campo para a cidade, do
Nordeste para o Sudeste (Gonzalez,1982).
Em 1976, quando aumenta a participação da força de trabalho do negro, não
necessariamente isso significava uma melhoria nas condições materiais de
existência dessa população (Gonzalez, 1982). Nessa altura da sua análise, o que
Gonzalez está nos dizendo diretamente é que as condições de existência
material de negros e negras remetem a condicionamentos psicológicos que
precisam ser desmascarados.
A autora sugere uma reinterpretação da teoria do lugar natural de Aristóteles.
“Desde a época colonial aos dias de hoje, a gente saca a existência de uma
evidente separação quanto ao espaço físico ocupado por dominadores e
dominados” (Gonzalez, 1982, p.15).
Ela continua:
o lugar natural do grupo branco dominante são moradias amplas,
espaçosas, situadas nos mais belos recantos da cidade ou do
campo e devidamente protegidas por diferentes tipos de
policiamento(...)Já o lugar natural do negro é o oposto,
evidentemente: da senzala às favelas, cortiços, porões, invasões,
alagados e conjuntos “habitacionais”(cujos modelos são os guetos
dos países desenvolvidos) dos dias de hoje, o critério também
tem sido simetricamente o mesmo: a divisão racial do espaço
(Gonzalez, 1982, p. 15).
Um outro lugar natural do negro no capitalismo são as prisões e os antigos
manicômios. Ela lembra o caráter racista da repressão policial, que impõe uma
submissão psicológica através do medo. O racismo serve como mecanismo de
controle do Estado sobre “o assalariado abolicionista”. Na sua percepção crítica,
para essa força coercitiva, “todo crioulo é marginal até que se prove o contrário”
(Gonzalez, 1982, p.16).
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O discurso dominante justifica a atuação dessa violência, falando em ordem e
segurança. Então o que é a comunidade negra para Lélia Gonzalez? Ela é “mão de
obra reserva”, utilizável de acordo com as necessidades do sistema. Os negros não
formam um bloco monolítico de características imutáveis, mas representam uma
heterogeneidade dos movimentos negros, com grande diversidade, a partir da
contribuição da cultura africana (iorubas ou nagôs, daomeanos, malês, angolanos,
congoleses, ganenses, moçambicanos).
Lélia nos lembra do processo de desarticulação sofrido pelas entidades
negras com o golpe de 1964. E quais foram os fatores que para a autora corroboram
para isso? A desarticulação das elites intelectuais negras e o processo de
integração das entidades de massa numa perspectiva capitalista, à exemplo do
ocorrido com as escolas de samba (Gonzalez, 1982).
Será o avanço das mulheres negras dentro do movimento negro carioca que
irá marcar a diferença. Lélia faz referência ao Encontro de mulheres realizado na
Associação Brasileira de Imprensa em 1975, quando escreve um documento
denunciando que a mulher negra no continente americano tem sido um objeto de
produção e reprodução sexual. Então, foi a partir da convivência de Lélia Gonzalez
com essas mulheres negras, numa conclamação ao princípio de irmandade, que ela
no Movimento Negro Unificado passa a se preocupar em trabalhar a
especificidade da mulher negra. Nesses circuitos, Lélia está analisando a rebeldia da
mulher negra. Irá referenciar os circuitos itinerantes do IPCN, e, depois, em 1976, a
criação do Centro de Estudos-Brasil-África, localizado em São Gonçalo.
Ainda na década de 1970, o Grupo de Trabalho André Rebouças realizava a
sua primeira Semana de estudos sobre o negro na formação social brasileira, na
Universidade Federal Fluminense, reunindo especialistas sobre a questão negra. No
mesmo ano, um grupo de compositores sambistas, sob a liderança de Antônio
Candeia Filho criava o Grêmio Recreativo de Arte Negra e Escola de Samba
Quilombo (Gonzalez, 1982). Segundo a autora, vale destacar que a ideologia do
branqueamento consiste no fato de os aparelhos ideológicos (família, escola, igreja,
meios de comunicação), veicularem valores que juntamente com o mito da
democracia racial, apontam para uma suposta superioridade cultural e racial do
branco.
É pela relação articulada entre memória e ideologia que se deve compreender
o caráter disfarçado do racismo brasileiro (Gonzalez, 1984). As reflexões acerca do
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pensamento de Lélia Gonzalez apontam desafios aos movimentos negros brasileiros
comprometidos com a luta antirracista e anticapitalista. Evidencia-se como
necessário identificarmos como o racismo atua auxiliando na construção da
hegemonia das classes dominantes. As lutas anticapitalistas e antirracistas são
componentes indissociáveis, e cabe aos movimentos negros recuperarem o
processo histórico e permanente de aquilombamento do povo negro como conteúdo
pedagógico na construção da luta organizada da classe trabalhadora.
Considerações finais
Cresce o investimento no individualismo como uma das ideologias. motoras
do desenvolvimento capitalista, abrindo sendas para a consolidação do
empreendedorismo como alternativa à classe trabalhadora. Tal estratégia,
estabelece elos importantes entre capitalismo, racismo e sexismo, posto que torna
do indivíduo o que é da sociedade. No caso do encontro com o racismo, ajuda a
identificar na grande maioria da classe trabalhadora indivíduos classificados pela
“raça” e cor como naturalmente desajustados e não-empregáveis, restando-lhes os
postos de trabalho mais precarizados (Botelho, 2022).
A questão étnico racial está no centro e não na periferia da luta de classes. A
luta antirracista é de resistência pelo aquilombamento, de resgate da memória do
povo negro, no reconhecimento de que o Brasil é um país de cultura negra. Neste
artigo buscamos demonstrar as contribuições especialmente de Frantz Fanon e Lélia
Gonzalez para a leitura histórica e crítica do racismo, a partir do capitalismo,
considerando a particularidade latino-americana, de enfrentamento às violências
racistas e colonialistas.
A luta do povo negro está no combate às violências sofridas e sentidas de
silenciamentos, de apagamentos históricos, de perseguições, extermínios. A
resistência do povo negro sempre existiu, bem como sua sabedoria ancestral e
forjada na experiência do trabalho no Brasil.
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