V.23, nº 51 - 2025 (maio-agosto) ISSN: 1808-799 X
CENTROS DE REFERÊNCIA DAS JUVENTUDES E PERSPECTIVAS DE FORMAÇÃO HUMANA1
Emily da Silva Dias2 Priscila Monteiro Chaves3
Trata-se de uma apreciação do sentido educativo, pela dimensão da formação estética, dos Centros de Referência das Juventudes, política pública destinada aos jovens trabalhadores, moradores das periferias capixabas. Toma-se como principal objeto de apreciação e debate o documento Metodologia dos Centros de Referência das juventudes do governo do estado do Espírito Santo (2022). Junto a isso, é apresentada uma breve síntese de contribuições do marxismo, sobretudo a partir de Marx, Lênin, Lukács e Gramsci, à função da arte na luta de classes e na formação humana omnilateral.
Se trata de una apreciación del sentido educativo, a través de la dimensión de la formación estética, de los Centros de Referencia Juvenil, una política pública dirigida a los jóvenes trabajadores que viven en la periferia de Espírito Santo. El principal objeto de apreciación y debate es el documento Metodología de los Centros de Referencia Juvenil del gobierno del estado de Espírito Santo (2022). Además, se presenta un breve resumen de las contribuciones marxistas, especialmente de Marx, Lenin, Lukács y Gramsci, sobre el papel del arte en la lucha de clases y en la formación humana omnilateral.
This is an assessment of the educational meaning, through the dimension of aesthetic training, of the Youth Reference Centers, a public policy aimed at young workers living on the outskirts of Espírito Santo. The main object of appreciation and debate is the document Methodology of the Youth Reference Centers of the government of the state of Espírito Santo (2022). Alongside this, a brief summary of Marxism's contributions is presented, especially from Marx, Lenin, Lukács and Gramsci, to the role of art in the class struggle and in omnilateral human formation.
Keywords: CRJ; Youth; Education; Human formation.
1Artigo recebido em 30/03/2025. Primeira Avaliação em 24/06/2025. Segunda Avaliação em 30/09/2025. Aprovado em 21/07/2025. Publicado em 06/08/2025.
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v23i51.67185.
2Mestranda em Educação na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) - Brasil. Email: emily.dias@edu.ufes.br. Lattes: http://lattes.cnpq.br/4932899967624262.
ORCID: https://orcid.org/0009-0005-6964-7712.
3Doutora e Mestra em Educação pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel), Rio Grande do Sul - Brasil. Professora do Departamento de Linguagens, Cultura e Educação (DLCE), vinculada à linha de pesquisa Educação e Linguagens (PPGE) da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes).
Email: priscila.chaves.ufes@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/8817909868659161. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3986-6157.
Pra que se evite granada, fuzil e guerra civil
O Centro de Referência das Juventudes (CRJ) é considerado a principal política pública para os jovens no estado do Espírito Santo (ES). Com base nos documentos oficiais, em especial a Metodologia, publicada em 2022, é possível identificar aspectos que indicam relações muito estreitas da política com um apelo às artes, com o campo das linguagens e da cultura popular, indicando a importância das expressões artísticas para os jovens público-alvo. Nesse sentido, por meio da retórica de resolução de conflitos, da promoção de uma cultura de paz, formação profissional e socioeducativa, o Governo Estadual tem envolvido a juventude que sobrevive na periferia do capitalismo com oficinas, eventos, atividades e pequenos cursos. Apesar do imaginário coletivo cultural que permeia o senso comum de dádiva em relação a políticas públicas sociais como esta em tela, em sua grande maioria, elas são encampadas para minorar tensões e conflitos de classe. Na educação, elas deságuam em um histórico dualismo na formação dos indivíduos que se atualiza: profissionalização compulsória, rasa e de baixíssimo custo para a classe trabalhadora e formação geral para quem não precisa vender sua força de trabalho desde a infância e/ou juventude.
Levando em consideração que Antonio Gramsci (1891-1937) amplia a noção de cultura, visto que a atribui um lugar nas lutas dos diversos processos de dominação de classe, é crucial compreender a formação humana como parte de um processo complexo e contraditório de luta política e cultural que não se inicia nem se conclui na esfera da sociabilidade. Contudo, o acesso a uma grande fração dos bens culturais historicamente esteve restringido na sociedade de classes a uma pequena parte da população. Por outro lado, Gramsci apostou no potencial da linguagem como uma ferramenta de renovação cultural, moral e intelectual, que dela depende a capacidade de formar, instruir e organizar as classes subalternas. Para isso, seria necessário ter como prioridade o movimento de transformação da realidade econômica, social e política, mudança que implica a renovação do modo de pensar e de sentir.
No que tange à educação para a formação da classe trabalhadora, o projeto político do autor consiste em um grande projeto educacional, em que uma reforma intelectual e moral somente poderá ocorrer baseando-se em uma perspectiva ampla de educação que é a chave para a construção de uma nova hegemonia, que está
relacionada a uma concepção de mundo elaborada filosoficamente, em que o sujeito reconhece que ele faz parte de uma força.
Considerando a formação humana omnilateral, o objetivo maior da educação ampla, sólida, humanista e formativa para qualquer perspectiva que se reivindique classista, sob o viés da arte, estudiosos marxistas ajudam a pensar a sua função social em uma sociedade marcada pela alienação. Não se trataria de inventar “[…] una nueva cultura proletaria, sino [del] desarrollo de los mejores modelos, tradiciones y resultados de la cultura existente desde el punto de vista de la concepción marxista del mundo y de las condiciones de vida y de lucha del proletariado” (Lenin, 1979, p. 272, grifos do original).
No entanto, no interior da relação de exploração capital-trabalho, sob o paradigma da educação para a cidadania, “[...] a marcha progressista de inclusão dentro da lógica capitalista tem representado [...] a própria salvação do sistema [...]” e diferentes fases e formas sociais de incremento de parcas parcelas de direitos humanos e sociais têm representado, via de regra, a participação mais harmoniosa de massas trabalhadoras precarizadas no trabalho mais degradante, extenuante e no mercado de consumo (Mascaro, 2022, p. 142).
Dito isso, não passam despercebidas as lutas populares, conduzidas por setores engajados, que ainda apostam na reconstrução de um Estado que promova uma sociedade mais justa, em que a dignidade humana e os direitos sociais sejam respeitados. Entretanto, em uma perspectiva gramsciana, o Estado burguês, além da sociedade política, é também composto por históricas elites e grandes corporações que tendem a renovar suas estratégias para manter o controle sobre o Estado e formular consensos que afetam de forma mais imediata a classe trabalhadora no Brasil (Dreifuss, 1987). Com objetivo de preservar um sistema determinado pela acumulação incessante de capitais, pela exploração e expropriação, a população trabalhadora juvenis das periferias tem feito parte desse cenário da forma mais perversa, sendo chamada a legitimar a manutenção das estruturas de poder com suas condições de existência e reprodução da vida cada vez mais aviltantes.
Nesse sentido, este ensaio, que compõe uma pesquisa em andamento, soma- se àqueles que vêm abordando as formas de atuação burguesa no processo de formação da consciência e de pacificação da juventude trabalhadora. Neste recorte em específico, relacionamos as determinações dessa atuação às condições de
formação humana promovida pelos CRJs do ES, observando o seu sentido educativo, as formas como a população jovem tem sido alocada no palco das políticas públicas sociais e, sobretudo, como as manifestações artísticas têm sido manejadas junto ao público-alvo do CRJ. Além disso, possui a intenção de destacar a centralidade da formação humana omnilateral e da formação estética para os jovens, relacionando-as à percepção crítica de uma política de controle que busca o apaziguamento das massas, uma vez que estamos tratando de uma sociabilidade que considera a juventude negra das camadas mais exploradas como potencialmente perigosa e marginal.
Este trabalho toma como principal objeto de apreciação e debate o documento público referente à implementação da política do CRJ no ES, a saber: Metodologia dos Centros de Referência das juventudes do governo do estado do Espírito Santo (2022). Junto a isso, dedica duas seções a uma breve síntese de contribuições do marxismo, sobretudo a partir de Marx, Lênin, Lukács e Gramsci, à função da arte na luta de classes e na formação humana omnilateral.
Debater propostas políticas e educativas dos CRJs, que nos ajuda a entender e atualizar como a atuação burguesa tem condicionado a formação da juventude em ambientes escolares e não escolares de forma geral. Nesse sentido, consideramos que os registros documentais elegidos para nossa apreciação são formados por orientações que, de alguma forma, afetam o desenvolvimento de uma nova consciência para a juventude capixaba e nos indicam a razão de ser dessa política, sobretudo em um país na condição de dependente periférico nas relações imperialistas (Lênin, 2021, Fontes, 2010), haja vista as implicações dessa determinação na divisão internacional do trabalho (Marx, 2011).
No Brasil, os CRJs começaram a dar indícios de funcionamento ainda na década de 1990. Inicialmente, foram chamados de Centros de Juventude (CJ), a fim de compor a organização da política de assistência social para suprir a demanda por políticas públicas direcionadas para os jovens. No ES, o primeiro CRJ de Vitória foi criado em 2006, sob comando do governo municipal, como um espaço de interação entre jovens de 15 a 29 anos, com o propósito de promover atividades baseadas em quatro pilares fundamentais: convivência, formação, informação e expressão,
reforçando o engodo do protagonismo juvenil4 nas definições das ações voltadas para eles.
Em 2022, o governo do Estado do ES finalizou a entregou quatorze unidades dos CRJs nas dez cidades do Programa Estado Presente em Defesa da Vida (Espírito Santo, 2022a): Aracruz, Cachoeiro de Itapemirim, Cariacica, Colatina, Guarapari, Linhares, São Mateus, Serra, Vila Velha e Vitória. Esses Centros são gerenciados por Aparelhos Privados de Hegemonia (APHs) e focados no atendimento a jovens residentes em áreas da periferia urbana. O Projeto Estado Presente: Segurança Cidadã é uma iniciativa do governo do ES, que conta com financiamento do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) para a implementação de ações de prevenção e combate à violência. Segundo o contrato de financiamento, o objetivo é contribuir para a redução dos elevados índices de crimes violentos (homicídios e roubos) entre jovens de 15 a 24 anos, nas regiões de maior vulnerabilidade social e, historicamente, mais atingidas pela violência.
Com base na Metodologia da política, os CRJs estão organizados estruturalmente por meio de núcleos e eixos. Ambos se referem a ofertas de serviços e atividades específicas de acordo com a demanda da juventude de cada CRJ. O Núcleo Socioafirmativo e de Acesso agrega os eixos: a) Cola Aê; b) Fortalece Família; e c) #FicaADica. Ele é composto pelos serviços de promoção da convivência cidadã pautada nos Direitos Humanos, como um espaço de respeito e colaboração mútua. Em resumo, o eixo Cola Aê funciona como um acolhimento inicial para a identificação de demandas e encaminhamentos aos demais núcleos e eixos de trabalho. Os serviços oferecidos e atividades são desde empréstimos de equipamentos e agendamento de salas até a oferta de passagens para cursos e eventos, tidos como benefícios pontuais. O eixo Fortalece Família está relacionado com o desenvolvimento do Plano de Possibilidades para a Vida (PVida), que se justifica sob o objetivo de
4 O termo é discutido no campo das políticas públicas educacionais desde a década de 1990, quando ocorre a preocupação de alocar as juventudes brasileiras em espaços coletivos de ação juvenil. O protagonismo buscou promover a esperança de ascensão das novas gerações, uma falácia que até então muito serviu para atenuar os antagonismos de classe, pela facilitação e harmonização menos conflituosa possível sob as mutações do capitalismo e com os novos arranjos tecnológicos. O termo, hoje bastante massificado, foi amplamente difundido pela Fundação Odebrecht, através de seus projetos, especialmente com o Programa de Desenvolvimento e Cidadania Sustentável (PDCIS), e definido pela Fundação como a capacidade do jovem de ser um ator social, capaz de tomar decisões e agir em seu próprio desenvolvimento e no de sua comunidade. Essa produção no imaginário social da ideia de capacidade de escolha dos estudantes, ocultando as determinações sociais estruturantes da sobrevivência juventudes brasileiras recebeu atualizações com o Novo Ensino Médio, sobretudo com o componente curricular Projeto de Vida.
auxiliar as juventudes a pensar as possibilidades da vida e criar interesses a partir da apresentação de possibilidades, ideia similar ao que é proposto pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC) (Brasil, 2017) e pelo Novo Ensino Médio (Brasil, 2017), em que o Projeto de Vida (PV) é um componente curricular obrigatório nas escolas do Brasil (Chaves; Formigheri, 2022, Formigheri, 2023). Já o eixo #FicaADica diz respeito aos projetos, programas, ações e atividades que devem subsidiar os trabalhos no CRJ.
O Núcleo de Economia Criativa, Trabalho e Renda merece destaque, pois está atrelado a geração de renda, o trabalho e ao emprego. Com isso, o discurso do empreendedorismo juvenil se faz presente como a solução para os problemas de desemprego entre os jovens, ou seja, o empreendedorismo de si mesmo, onde a “vitória” coincide com o enriquecimento pela via de sua própria arte e trabalho. De acordo com os documentos oficiais, o núcleo pretende articular parcerias, buscando amenizar o impacto do desemprego nas juventudes.
O eixo Tô no Topo auxilia a formalização de novos negócios e a construção de um Plano de Possibilidades de Trabalhos Individuais ou Coletivos (PTrampo). O objetivo é a organização pessoal, de tempo, perspectivas e desejos, com foco no alcance de objetivos concretos. Além disso, cursos e oficinas profissionalizantes também fazem parte do eixo. Eles podem ocorrer em diferentes áreas, como escrita de projeto, produção cultural, culinária, marcenaria, jardinagem etc. Ademais, o eixo Trampo Coletivo está atrelado à ideia de coworking, em que o espaço é destinado aos jovens que já estariam com uma “frente de trabalho realizada”, mas tem dificuldade para organizar e falta espaço para a efetivação de ideias. Ainda, o eixo LABPoca é sobre economia criativa de base comunitária. Nesse sentido, busca “a solução de problemas comuns e a geração de renda”, por meio da disponibilização de equipamentos e instrumentos. É nesse eixo que afirmam que os jovens poderão desenvolver produtos e serviços a serem comercializados. Por fim, o Núcleo de Parcerias se justifica pelas intervenções que podem ser realizadas tanto pelo governo do estado, quanto pelas prefeituras e a iniciativa privada. Ou seja, tem por princípio articular serviços já ofertados em outros espaços, para ampliar o atendimento nos territórios. Dessa forma, o eixo #TamoJunto garantiria, por exemplo, que os CRJs estabeleçam relações com empresas privadas em troca de vagas de emprego para os jovens público-alvo.
Baseado em documentos oficiais, a escolha do público prioritário tem como critério o histórico de violência sofrida por jovens negros no território capixaba. A criação da política é justificada a partir da necessidade de estabelecer “oportunidades” de inclusão social ao seguinte público prioritário:
Jovens homens, negros, entre 15 e 24 anos, moradores das regiões de implantação dos Centros e que não estão acessando serviços da rede (escola, assistência, saúde), estão em condição de evasão escolar, ou que passaram pelo sistema socioeducativo, ou que sejam egressos do sistema prisional, ou mesmo jovens que passaram por situações diversas de violação de direitos (Espírito Santo, 2022b, p. 28).
De fato, a escolha do público-alvo da política não é aleatória, visto que essa população é a mais atingida pela violência (sobretudo de Estado) no estado capixaba. Trata-se de uma política que oferece “oportunidades” para um público expropriado. Perpetuando as estruturas de um sistema político que impede o acesso do proletariado a um padrão mínimo de sobrevivência digna, a oferta a conta-gotas de “direitos de cidadania” (Acanda, 2006) são propagandeados a essa população e realizados por meio de instituições como essa.
Segundo o Anuário Estadual da Segurança pública (2024), 89% das vítimas de homicídios são do sexo masculino e 79% de cor negra/parda. Ainda, os dados apontam que a proporção de vítimas negras (somando pretos e pardos) aumentou no ano de 2023, representando 79%, enquanto em 2012 essa proporção era de 63,9%. Há uma concentração na juventude que representa a faixa etária dos 15 aos 29 anos, com 50% do total de vítimas. Sendo assim, a política se utiliza desses dados para alertar e justificar a urgência de implementação de políticas públicas para os jovens moradores das periferias que tenham como objetivo maior o fim do extermínio de corpos negros. O que se elide é que, na estreita relação entre exploração e opressão, “[...] o capitalismo tende tanto a dividir os trabalhadores nas bases das opressões específicas dentro da classe quanto, ao mesmo tempo, pressioná-los em uma experiência comum de opressão enquanto classe” (Bakan, 2016, p. 61).
Os índices de violência mais recentes referem-se ao ano de 2023, pois o Anuário de 2025, que contém informações referentes ao ano de 2024, ainda não foi publicado até o presente momento. Neste ano ocorreu uma redução de 3,2% em relação a 2022 (1.008 registros), com 32 vítimas a menos, ou seja, no ano de 2023 foram registrados 976 homicídios dolosos. Apesar da diminuição, as altas taxas
continuam sendo motivo de preocupação, principalmente em relação ao padrão específico das vítimas, que alertam sobre como a população negra é afetada desproporcionalmente pela violência de Estado, desigualdade no acesso aos parcos recursos sociais, discriminação racial e truculência do sistema de segurança pública. Por fim, cabe informar que há uma grande quantidade de mortes violentas por causas indeterminadas ocorridas no Brasil, inclusive no estado do ES, que são os chamados “casos ocultos”, que não aparecem nas estatísticas oficiais e que podem esconder um cenário ainda mais hostil de violação da dignidade humana.
Mediante a exposição da estrutura de funcionamento dos CRJs na seção em destaque, indicamos como o estado (e o Estado) se fazem presentes na periferia capixaba, o que nos ajuda a compreender a necessidade de “controle em um grupo social específico”. Logo, conhecer as atividades que têm sido ofertadas pelos eixos e núcleos da política ajuda a pensar sobre a formação cultural, política e educacional que a burguesia tem promovido para as classes subalternas, à luz do que marxistas como Gramsci e Lênin propuseram a partir dos seus escritos sobre cultura e educação.
Gramsci foi um dos maiores pensadores marxistas de seu tempo, é estudado há décadas e compõe o referencial teórico sobretudo de pesquisas acadêmicas ideologicamente orientadas por uma perspectiva classista. Atualmente, os estudos italianos quase não se detêm na questão política em Gramsci, sendo o autor lido e estudado principalmente nos países da América Latina.
A Itália da juventude do escritor estava marcada por acentuadas desigualdades entre norte e sul, as dominações de potências estrangeiras e também o domínio da Igreja Católica em Roma. O país vivia uma situação política extremamente conturbada. Sua unificação só se completou sob o comando do Reino Piemontês, dez anos antes do nascimento de Gramsci. Logo, eram tempos difíceis para as classes populares da população italiana. Dito isso, na busca por uma sociedade anticapitalista, o intelectual orgânico avançou os ideais e conceitos de Karl Marx (1818-1883), criando, assim, um pensamento próprio que avança na compreensão de como as diferentes frações de classe disputam consensos na sociedade civil burguesa.
Em 1922, o regime fascista na Itália não estava preocupado em encontrar soluções por vias democráticas para os problemas econômicos, culturais e educativos. Era questão de tempo para que o governo de Mussolini desfizesse o Parlamento italiano e todas as organizações de oposição. Gramsci, sendo um parlamentar e ocupando o cargo de secretário geral do Partido Comunista Italiano, foi encarcerado, uma vez que ocorreu um aprisionamento em massa nesse período. O regime fascista enxergava no teórico político uma oposição extremamente perigosa, pois a associação da crítica com a ação de intelectuais e políticos poderia superá-los por meio de uma formação prática e organizada das consciências. Existia, assim, uma preocupação em manter “aquele cérebro sem funcionar”, como foi dito pelo procurador-geral no julgamento de Gramsci em 1928. Em contrapartida, foi na clausura que os Cadernos do Cárcere foram desenvolvidos e hoje são referenciados como um dos textos mais importantes sobre a função educativa e política dos intelectuais.
Fresu (2019) conceitua o fascismo da seguinte forma:
[...] é uma forma nova e moderna de regime autoritário, típica de uma fase histórica marcada pela política de massa, porque se impõe a tarefa de envolver o povo em todas as manifestações de existência e autorrepresentação do regime, organizando todos os aspectos da vida individual em função do interesse nacional (Fresu, 2019, p. 19).
Segundo Gramsci, o fascismo não tem uma ideologia própria, mas recolhe sugestões de outras doutrinas. Tendo como exemplo, o Manifesto Futurista, de autoria do italiano Filippo Tommaso Marinetti (1876 - 1944), publicado em Paris, em 1909. O Futurismo fez parte das vanguardas européias do início do século XX. Com o intuito de renovar a tradição estética da arte, o movimento artístico colocou os olhos no futuro, porém, de uma forma extrema, radical e sem considerar a sociedade e toda a sua complexidade e pluralidade. Assim, a arte foi utilizada para alimentar o fascismo, inclusive com o investimento de recursos para a utilização de instrumentos de massa como o cinema, rádio e jornais a fim de construir o consenso desse regime.
Partindo desta ideia, de acordo com Vanderlei J. Zacchi (2006), a percepção de linguagem em Gramsci guarda similaridades com a noção articulada por Mikhail Bakhtin (1895-1975). Para Zacchi (2006), ambos consideram a linguagem e o sujeito como dinâmicos e inacabados, capazes de questionar e resistir a poderes e discursos dominantes. Com o afastamento de teorias positivistas na linguística e nas ciências
sociais, os filósofos se aproximam de uma ideia fundamental de que uma língua não somente representa uma visão de mundo, mas expressa e modifica consciências. Nessa perspectiva, a linguagem é fundamental para manter e mudar a maneira como os seres humanos vivem, compreendem o mundo e a si próprios, conformando a sociabilidade e a inteligibilidade sobre ela.
Gramsci fornece elementos para uma estratégia abrangente de educação, com a finalidade de engendrar uma reforma intelectual e moral. Ele assume o materialismo histórico como paradigma científico e filosófico de análise da realidade concreta e guia para a ação sociopolítica e educacional-cultural. Uma de suas contribuições mais duradouras é, sem dúvida, a ênfase dada à dimensão cultural da prática revolucionária. No que compete à cultura, ele a sinaliza como um lugar de sínteses das lutas entre os diversos projetos em disputa na sociedade, com relativa autonomia, o que o diferencia da maioria dos autores que se dedicam a debater transformações sociais no campo dos estudos culturais. A cultura apresenta-se, em sua obra, como um saber que se produz articulado com a ação, que pode estar voltada tanto para conservar o instituído quanto para transformá-lo. Assim, ela é capaz de exercer a sua função de transformação social e emancipação humana atendendo a um objetivo coletivo. Contudo, como dissemos, o acesso a uma parte importante dos bens culturais mais prestigiados sempre esteve restringido a uma fração da sociedade de classes, no âmbito da existência de dirigentes e dirigidos. No entanto, como afirmava Lênin (1979, p. 267-8),
[…] sin comprender con claridad que esta cultura proletaria sólo puede crearse conociendo con precisión la cultura que ha creado la humanidad en todo su desarrollo y transformándola, sin comprender eso, no podremos cumplir dicha tarea. La cultura proletaria no surge de la nada, no es una invención de los que se llaman especialistas en cultura proletaria. Eso es pura necesidad. La cultura proletaria tiene que ser el desarrollo lógico del acervo de conocimientos conquistados por la humanidad bajo el yugo de la sociedad capitalista, de la sociedad terrateniente, de la sociedad burocrática. Todos esos caminos y senderos han conducido y conducen a la cultura proletaria, del mismo modo que la economía política, transformada por Marx, nos ha mostrado a dónde debe llegar la sociedad humana, nos ha indicado el paso a la lucha de clases, al comienzo de la revolución proletaria.
O tema cultural nos Cadernos do Cárcere é tratado de forma ampla e observado por ângulos diferentes. Gramsci acreditava que, para existir uma “reforma cultural” seria preciso pensar em uma reforma econômica, visto que há uma codependência
entre cultura e estrutura social. Por certo, em um contexto de luta, a cultura é fundamental para a organização social contra-hegemônica, pois também significa um modo de viver que se produz e se reproduz por meio de um projeto de formação, ou seja, é organização da vida social e formas de relações humanas diversas. “É organização, disciplina do próprio eu interior, é tomada de posse da própria personalidade, é conquista de consciência superior pela qual se consegue compreender o próprio valor histórico, a própria função na vida, os próprios direitos” (Gramsci, 2012, p. 143-144). Nessa perspectiva, um partido político é um importantíssimo aparelho formador de organizadores da cultura, pois a forma como ele se estrutura e disputa consciências em uma dada conjuntura política tem a ver com esse sentido mais amplo do termo destacado.
Em uma sociedade dividida em classes, a cultura popular que é própria das classes subalternas aparece nos textos gramscianos como sinônimo de folclore. O gênero é apresentado como uma concepção de mundo e não como algo pitoresco. Historicamente, a cultura popular foi enxergada de forma preconceituosa como uma manifestação de grau inferior. Em oposição, a “alta cultura” restrita à classe dominante permanece sendo um mundo ainda pouco explorado pelas classes populares da sociedade. Portanto, não há uma sobreposição perfeita entre os dois termos.
Está claro que esses dois níveis representam momentos distintos dentro de uma possibilidade dialética, realizada historicamente pela filosofia da práxis5. Em virtude disso, a formação de uma alta cultura capaz de elevar o nível cultural das massas é fundamental por lidar com o ser genérico. Todavia, somente poderá ser efetivada em um contexto de democratização do saber e de uma consequente expansão da base intelectual da sociedade. Para isso, a função do intelectual orgânico se realiza na organização da vida prática, na sistematização de ideias “[...] trabalho constante que visa à construção de uma hegemonia. Para tanto, a competência
5 O termo é utilizado na obra gramsciana para se referir a uma interpretação particular de Gramsci sobre o materialismo histórico de Marx, reconhecendo o caráter revolucionário do marxismo e a necessidade de burlar a censura de seus escritos. A expressão compreende os indivíduos como seres histórico-sociais, a partir de uma concepção original e integral do mundo, por meio da totalidade. Para tanto, “[…] o significado da dialética só pode ser concebido em toda a sua fundamentalidade se a filosofia da práxis for concebida como uma filosofia integral e original, que inicia uma nova fase na história e no desenvolvimento mundial do pensamento, na medida em que supera (e, superando, integra em si os seus elementos vitais) tanto o idealismo quanto o materialismo tradicional, expressões das velhas sociedades” (Gramsci, 2011, p.143).
técnica e o compromisso político tornam-se essenciais para a formação” (Gramsci, 2000, p. 52).
No cárcere, Gramsci se preocupou em encontrar maneiras de despertar e desenvolver uma consciência política que fosse capaz de se opor efetivamente à sociedade burguesa dominante. Logo, seria necessária uma batalha cultural que constitui-se um bloco histórico capaz de obter a hegemonia: o momento do consenso indispensável para chegar ao domínio. Sob o mesmo ponto de vista, o movimento socialista seria a chave para gerar organizações disciplinadas, que lutassem pelo objetivo de difundir a cultura entre os operários e os camponeses trabalhadores expropriados. Com o propósito de promover a iniciativa e a autonomia intelectual por meio da cultura, as classes subalternas precisam ter os seus próprios intelectuais orgânicos, defendia ele, uma vez que sem a presença desses líderes, transformar suas ideias em força hegemônica capaz e criar uma nova concepção de mundo elaborada filosoficamente seria muito menos viável.
Para Gramsci, os processos de ensino-aprendizagem desenvolvidos na escola e fora dela estão articulados à disputa pela hegemonia entre as classes. Conforme Zacchi (2006), a noção de hegemonia torna possível a transformação social e enfatiza as resistências que a ideologia dominante deve superar, mas que não pode eliminar totalmente, para se manter no poder. Ademais, a hegemonia constitui o próprio poder político, sendo uma relação que existirá enquanto o capitalismo for o sistema econômico vigente.
Evidentemente, é relevante indagar como as classes subalternas saem dessa situação. Não há uma resposta completa e direta, mas a importância de uma organização política é um início que não deve ser por nós ignorado e quem tem estado na mira das frações da burguesia que tem destinado sua organização, seus intelectuais e algum recurso a organizar os trabalhadores antes que eles próprios se organizem. “La burguesía no siente escrúpulos por traficar ni aun con el honor y la conciencia. Y hay también incautos que, por irreflexión o por la fuerza de la costumbre, defienden las ideas predominantes en ciertos medios burgueses” (Lenin, 1979, p. 71). Os dominantes, para se manterem dirigentes, têm se empenhado de muitas maneiras para promover valores, crenças, normas e princípios sociais em prol de sua permanência no poder, trabalhando com o objetivo de perpetuar consensos a cada
atualização e novas demandas do sistema produtivo, para que nada se altere acerca da dinâmica econômica e social.
A forma pragmática e imediatista como a arte vem sendo abordada nas escolas e fora dela oculta algo fundamental produzido historicamente pelo conhecimento artístico e estético: a sua função social. Em primeiro lugar, a arte não consegue realizar plenamente o seu papel humanizador enquanto a sociedade geradora de alienação não for superada. Nos Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844, Marx já identificava a alienação causada pelo trabalho e os rebatimentos disso na forma como homens e mulheres conseguem se apropriar dos sentidos que estão no mundo. O processo de alienação do trabalhador se apresenta quando o produto gerado por meio da atividade produtiva não somente assume uma existência externa como também adquire um poder autônomo em relação ao trabalhador. Do mesmo modo a arte, quando transformada em mercadoria a ser realizada, perde grande parte de suas potencialidades de formação humana, como autodesenvolvimento mais pleno dos seres humanos, e passa a ser meio de valorização do valor e pautada por princípios utilitaristas. Eis o que Marx (2011, p. 44) chamou de “[...] relação geral entre produção, distribuição, troca e consumo”. A produção, segundo Marx, “[...] dá ao consumo sua determinabilidade, seu caráter, seu fim”. Assim, “[...] não é somente o objeto do consumo que é produzido pela produção, mas também o modo do consumo, não apenas objetiva, mas também subjetivamente. A produção cria, portanto, os consumidores [...]”, gerando, dessa forma, “[...] uma necessidade ao material”. Desse debate, ao relacionarmos com a arte e a formação humana engendradas na relação de exploração capital-trabalho, queremos destacar que a produção, “[...] produz não somente um objeto para o sujeito, mas também um sujeito para o objeto, [...] [quando] cria o modo determinado do consumo e, depois, o estímulo ao consumo, a própria capacidade de consumo como necessidade” (Marx, 2011, p. 47-8).
No horizonte das manifestações artísticas, Duarte (2012) aponta que as obras estético-literárias trazem para a vida das pessoas situações nas quais decisivas experiências humanas aparecem intensificadas e configuradas de tal maneira que mobilizam a subjetividade para muito além da cotidianidade, num movimento em direção tanto ao núcleo da própria personalidade como da realidade social. A
literatura, por exemplo, como uma exteriorização da linguagem não existe fora de um sistema político, econômico, social e cultural. De acordo com Corrêa (2019), os elementos da vida social são inseridos no texto literário pelo trabalho do escritor, que sintetiza contradições sociais na estrutura das obras literárias para ampliar e tornar visível o que está diluído na sociedade. Por isso, não é possível entender a literatura como uma forma desligada da vida concreta. Logo, a eficácia estética refere-se à capacidade da manifestação literária envolver o leitor a ponto de levá-lo a experimentar dialeticamente os problemas e as contradições da vida, ou seja, dito de modo mais simplificado, representar a realidade. Com base na análise lukacsiana:
[...] toda boa arte e toda boa literatura também é humanista na medida em que não apenas estuda apaixonadamente o homem, a verdadeira essência de sua constituição humana, mas também, ao mesmo tempo, defende apaixonadamente a integridade humana do homem (Lukács, 1989, p. 213).
Para Lukács, a função social da arte está atrelada ao processo de desenvolvimento do gênero humano, e não como um instrumento de busca pelo prazer. A arte é capaz de promover uma compreensão mais profunda da totalidade da vida social e das condições históricas dos sujeitos. Em contrapartida, a massificação da cultura produzida em um contexto capitalista serve à distração e ao consumo superficial, o que empobrece a experiência estética e o potencial transformador que artefatos culturais têm, ou seja, degrada-se seu efeito humanizador, diante da criação de necessidades instantâneas geradas pelo sistema. Desse modo, não há preocupação em educar os subalternos pela arte, procura-se divertir e distrair no pouco tempo livre que lhes resta.
Similarmente, Gramsci reconheceu em seus escritos a importância de uma formação cultural por meio da expressão artística para a classe operária. Ele deu enorme importância às atividades contra-hegemônicas em todas as esferas da vida social. Segundo Mayo (2017), o espaço industrial foi um importante local de aprendizado com os chamados centros culturais organizados por Gramsci. Entre eles, está o Club di Vita Morale, organizado em 1917, que era um centro cultural em que os trabalhadores liam obras literárias e faziam apresentações uns para os outros. “Alguns dos escritos de Gramsci revelam um anseio, de sua parte, para a criação de uma cultura para os trabalhadores, que oferecesse um espaço onde se pudesse debater tudo o que é do interesse do movimento da classe operária" (Mayo, 2017, p. 275).
Ainda no campo da literatura, Carli (2022) considera que as anotações deixadas pelo escritor, ainda que breves, são de enorme fecundidade e apontam para a continuação de uma crítica literária marxista. Neste contexto, um romance, no pensamento gramsciano, necessita de conteúdo histórico, uma vez que a “beleza” puramente formal não é capaz de conferir valor estético em uma obra, ou seja, o autor chama atenção para a relação entre forma e conteúdo, dando primazia ao conteúdo sobre a forma, para que não seja produzida uma literatura que pertença a uma cultura certamente degradada, que fortaleça relações de dominação, alienação e passividade. Da mesma maneira, Lukács (1982) argumenta que o princípio determinante é o conteúdo e que a forma artística é forma de expressar um conteúdo socialmente necessário, de modo que se realize um efeito evocativo concreto e geral, que é também uma necessidade social.
Era, a respeito do trato com esse conteúdo, da assimilação necessariamente crítica, que Vladimir Lênin apostava na conquista do marxismo em seu significado e contribuição histórica no campo das artes para o proletariado. Nas palavras do autor:
El marxismo ha conquistado su significación histórica universal como ideología do proletariado revolucionario porque no ha rechazado en modo alguno las más valiosas conquistas de la época burguesa, sino, por el contrario, ha asimilado y reelaborado todo lo que hubo de valioso en más de dos mil años de desarrollo del pensamiento y la cultura humanos. Sólo puede ser considerado desarrollo de la cultura verdaderamente proletaria el trabajo ulterior sobre esa base y en esa misma dirección, inspirado por la experiencia práctica de la dictadura del proletariado como lucha de éste contra toda explotación (Lenin, 1979, p. 271).
É desse modo que esses pensadores marxistas atestam a importância da representação do momento histórico-social na literatura, ou seja, a “beleza” não basta, porque é preciso expressar e assimilar um conteúdo humano, estético, ético e, por vezes, moral. Com base nesse pensamento, a literatura popular nos escritos de Gramsci indica a relevância de uma literatura capaz de satisfazer exigências e aspirações efetivamente sentidas pelas classes populares, por mais instintivas e elementares que possam ser. Por isso, foge de uma concepção romantizada e “pedagogizante” da literatura para os subalternos.
Sobre a literatura popular, Brunetti aponta que Gramsci estabelece críticas e hipóteses até nos últimos cadernos miscelâneos (Q 14, Q 15, Q 17). Uma das ideias estabelecidas diz respeito ao povo desejar uma arte histórica, que se exprime em
termos de culturas universais, objetivas, históricas e sociais, assim como defendia Lênin. A criação de uma arte histórica exige criar um novo homem, uma vez que o homem é a própria matéria de que se serve a reflexão artística. Portanto, “[...] no preciso instante em que esse novo homem vier à existência, a nova arte terá a sua razão de ser” (Carli, 2022, p. 152).
No âmbito dos estudos sobre a formação humana, o termo omnilateral surge pela primeira vez na obra de Marx nos Manuscritos, na seção em que aborda a propriedade privada e o comunismo. O vocábulo aparece no contexto explicativo de tornar-se humano na célebre passagem:
O homem se apropria da sua essência omnilateral de uma maneira omnilateral, portanto, como um homem total. Cada uma das suas relações humanas com o mundo, ver, ouvir, cheirar, degustar, sentir, pensar, intuir, perceber, querer, ser ativo, amar, enfim todos os órgãos da sua individualidade, assim como os órgãos que são imediatamente em sua forma como órgãos comunitários, são no seu comportamento objetivo ou no seu comportamento para com o objeto a apropriação do mesmo, a apropriação da efetividade humana (por isso ela é precisamente tão multíplice quanto multíplices são as determinações essenciais e atividades humanas), eficiência humana e sofrimento humano, pois o sofrimento, humanamente apreendido, é uma autofruição do ser humano (Marx, 2004, p. 108).
O trecho retirado da obra é uma oposição à constituição do humano a partir de uma apropriação equivocada que se dá por meio de uma fruição imediata, unilateral, no sentido do consumo, em que a essência humana é reduzida à absoluta miséria, que não é apenas material, mas também existencial e espiritual. O ser humano ao se tornar unilateral está à serviço do trabalho e da capitalização, por consequência, o indivíduo é cada vez mais afastado de sua essência humana e do controle sobre seu próprio trabalho.
A formação omnilateral parte da ideia de emancipação completa de todas as qualidades e sentidos humanos em prol de um desenvolvimento integral e completo, que nada tem a ver com uma educação multiprofissional, pois na dinâmica do capital a formação integral tende a ser compreendida de forma utilitarista e ideologicamente orientada para o trabalho mais precarizado possível, sob um viés de que os indivíduos devem ser preparados para desempenhar e aprender o maior número possível de atividades profissionais, a fim de manter e ocupar os mais variados postos de trabalho para garantir a sua sobrevivência, em ambientes precários e sem garantia alguma de seguridade social.
O lugar da formação humana nos CRJs
Exposta uma breve síntese sobre aspectos da estética e da formação humana em parte do campo marxista nas seções anteriores, voltemos ao documento que motivou nosso debate sobre a formação humana nos CRJs. Para isso, merece destaque alguns dos registros oficiais referentes à política que, à primeira vista, sinalizam certa relevância dada às manifestações culturais e artísticas por meio das oficinas, escolha pedagógica bastante presente nos Centros:
O CRJ deve oferecer permanentemente ao menos três oficinas com temas/áreas diferentes. Dentre as opções, mas não se restringindo a elas, estão as seguintes sugestões: audiovisual e mídia (fotografia, edição de imagens e vídeos, rádio, gerenciamento de redes sociais, produção de conteúdo para internet etc.); artes (escrita criativa, teatro, grafite, pintura, desenho, circo etc.); música e dança (instrumentos musicais, ritmos musicais – dança e composição etc.); esportes (capoeira, futebol, vôlei, futsal, badminton etc.); línguas estrangeiras, identidade étnico-racial (dança, poesia, penteados, produção de elementos da cultura afro); informática, profissionalizantes e com foco na geração de renda (organização de currículo, técnica para entrevista, escrita de projeto etc.), entre outras (Espírito Santo, 2022b, p. 50).
De acordo com o excerto acima, o contato dos jovens com atividades voltadas para o seu desenvolvimento estético e sensível está articulado, principalmente, com a participação em oficinas e cursos que abordam áreas da poesia, teatro, fotografia, cinema, dança etc. Ademais, cabe mencionar que nas periferias urbanas as diferentes linguagens artísticas têm se destinado também a dar outro sentido à expressão “periferia” e à produção de uma “cultura própria”, o que, por muitas vias, poderia ser bastante profícuo se tratado com base nas determinações econômicas e não somente culturais, próprias da superfície discursiva.
Com base na Metodologia da política, “[...] as oficinas que compõem a programação permanente dos CRJs são parte da estratégia de mobilizar e movimentar o espaço com programações avulsas (saraus, sessões de cineclube, batalhas de rimas, rodas de conversas, entre outros” (Espírito Santo, 2022b, p.50). Ainda, essas oficinas “[...] não devem acontecer deslocadas dos princípios que regem o CRJ, mas serem espaços em que os direitos humanos devem aparecer de forma transversal” (Espírito Santo, 2022b, p.51). Após a finalização de um ciclo de oficinas, o objetivo da política é promover as “mostras semestrais” que servem para apresentar para a comunidade os resultados das atividades realizadas pelos CRJs, “Os encontros
semanais provocados pelas oficinas permanentes gerarão produtos diversos, tais como textos, fotos, vídeos, danças, músicas, peças, games, etc.” (Espírito Santo, 2022b, p.54). Importante dizer que essas “mostras semestrais” podem se configurar em eventos artístico-culturais para a divulgação dos trabalhos desenvolvidos.
A lógica das ações sociais ditas preventivas, destinadas à juventude trabalhadora mais marginalizada, funciona com eficiência na reprodução da condição subalterna dessas juventudes. Ainda que perspectivas progressistas apostem nesses espaços como campo de formação, e não há como negar que algo desse campo possa acontecer, o sentido da existência de centros de referência da juventude como esses tem se apresentado como criação de estratégias de apaziguamento e apassivamento político a fim de conter possíveis focos de insatisfação, restando assegurada a natureza primeira do Estado burguês de contenção dos antagonismos das classes (Engels, 1977).
A formação dos indivíduos por meio de atividades socioeducativas ofertadas pela política chama atenção para a importância da individualidade para si como máxima possibilidade da formação dos sujeitos, em contraponto à individualidade em si, construída a partir do início da vida humana, momento em que o sujeito aprende a viver sua cotidianidade (Duarte, 2013). Dito isso, ambos conceitos não são independentes pois, para o desenvolvimento da individualidade para si, não há como negar a base da individualidade em si. Contudo, essa relação pode tornar-se autoproclamatória (ou ensimesmada), quando não se busca o avanço da individualidade em si à individualidade para si. Não é a arte com o horizonte de uma objetivação genérica que está posta para a juventude que frequenta o CRJ, nem o envolvimento com um conjunto complexo de fatores. O que nos aponta o documento (Espírito Santo, 2022b) é a primazia da socialização de manifestações mais espontâneas que se encerram nelas mesmas.
O CRJ já foi objeto de estudo em outros estados da região sudeste, com aprofundamento no campo do ativismo juvenil, políticas públicas e a relação entre pobreza e violência. A título de exemplo, observa-se o caso do CRJ - Cidade de Deus (RJ), em que Motta (2016) sinaliza que quase metade dos cursos oferecidos por essa política são apresentados por policiais cedidos pelo batalhão da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP). Nesse aspecto, a juventude marginalizada é vista como potencialmente perigosa, ou seja, agente da violência. A política em destaque
apresenta uma preocupação maior em promover o controle dos jovens das camadas populares por meio dos agentes de segurança em detrimento de qualquer compromisso formativo. O monitoramento, a pacificação e a distração, como observamos na política em questão, minoram os riscos que esses jovens podem oferecer à sociedade em uma visão que apenas enxerga as periferias como um local de produção de violência. Essa abordagem é baseada em medidas conjuntas de consenso e coerção (Gramsci, 2001) e nos afasta ainda mais das causas subjacentes e estruturais da violência.
A formação humana está completamente atrelada ao sentido do trabalho. Durante esse processo de formação social parece ser fundamental promover, em alguns momentos, um distanciamento das vivências cotidianas dos sujeitos. Esse distanciamento, no entanto, não se trata de um afastamento da realidade, mas sim uma forma de refletir sobre ela, possibilitando que os indivíduos alcancem diferentes mundos a partir de uma ação consciente. No cenário de uma sociedade regida por classes sociais, as classes subalternas ficam restritas apenas às manifestações culturais que são próprias do seu universo. O acesso a um conjunto de bens culturais que universalizam experiências e feitos humanos, e o que trazem de sínteses dessas experiências que mais provocaram modificações nos modos de pensar e de organização social, permanece sonegado. Até mesmo “[...] a apropriação de novas formas através das quais se podem expressar os próprios conteúdos do saber popular [...]” (Saviani, 1991, p. 29) ficam prejudicadas. Assim, quando a política se apresenta como principal aparelho de promoção de ações destinadas à juventude no ES, “[...] como resposta às demandas históricas das juventudes [...]” (Espírito Santo, 2022b, p.22), não é de formação propriamente que se trata. Trata-se de ações de custódia e contingência em relação às consequências que a violência de Estado provoca.
O dia em que o morro descer e não for carnaval
Reconhecendo o valor universal do conhecimento científico, filosófico e artístico para a humanidade, fazemos menção ao que afirmam Duarte e Della Fonte (2010, p. 113) quando discernem que “[...] o fato de boa parte da produção científica e artística ter sido apropriada pela burguesia [...] e [tido] seu sentido associado ao universo material e cultural burguês, não significa que os conhecimentos artísticos e as obras artísticas sejam inerentemente burgueses”. É de preocupação semelhante
àquela apresentada por Lênin (1979) a que se referem os autores. Uma cultura proletária, ou outros sentidos à periferia, só podem ser criados através da compreensão do que a humanidade criou e acumulou no decorrer das suas metamorfoses. Nossa organização demanda, para a constituição desses outros sentidos, do acesso ao desenvolvimento lógico e crítico radical do acervo de conhecimento adquirido pela humanidade sob o jugo da sociedade capitalista, da sociedade latifundiária, da sociedade burocrática (Lenin, 1979).
Políticas como a do CRJ, à primeira vista, parecem ser soluções para problemas que afetam diretamente aqueles que mais sofrem com a relação de exploração capital-trabalho. De fato, a juventude trabalhadora tem sido muito disputada em prol da manutenção de um projeto burguês de sociedade, principalmente pelo seu grande potencial de luta e de mobilização política. Embora o discurso seja de avanços na promoção da cidadania, da cultura, da arte e da inclusão social, o que temos visto são conduções políticas e pedagógicas que muito fazem ampliar a base social do capital, quando sonegam vida digna e capacidade organizativa.
Há uma tensão cada vez mais apaziguada entre a promoção de uma formação cultural libertadora e o uso da política como formas de controle social pra que o morro não desça organizado. Em conjuntura em que a juventude trabalhadora é altamente explorada no trabalho mais precarizado possível, vê-la como potencialmente perigosa ajuda e muito na manutenção dessa exploração. Nesse campo, a proposta das atividades culturais pode ser tanto espaço de formação quanto uma estratégia de contenção de revoltas. E essa tem prevalecido quando o assunto é formação da juventude.
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