Bruno Gawryszewski2 Vânia Cardoso da Motta3
O objetivo deste artigo é contribuir com uma análise crítica sobre a pauta “conservadora-liberal” no âmbito das políticas públicas da educação brasileira, concentrando esforços na atuação do movimento Escola sem Partido. Calcada no referencial teórico-metodológico de Antonio Gramsci, trabalhamos com o conceito de hegemonia e situamos a atual dinâmica histórica e política advinda da complexificação da sociedade civil e da sociedade política. Concluímos que os grupos conservadores-liberais, embora heterogêneos e difusos, articulam-se no âmbito das reformulações na educação a uma concepção restrita de formação humana e se alinham às forças materiais dominantes.
Abstract
The aim of this article is to contribute with a critical analysis on the "conservative- liberal" agenda in the scope of public policies of the Brazilian education, focusing the movement called School without Party. Based on Antonio Gramsci as theoretical-methodological framework, we use the concept of hegemony and situate the current historical and political dynamics arising from the complexification of civil society and political society. We conclude that although the conservative-liberal groups are heterogeneous and diffuse, they are linked by the framework of reformulations in education, with a narrow conception of human formation and aligned with the dominant material forces.
Keywords: conservative-liberal offensive; Public policies of Brazilian education; School without Party.
1 DOI: https://doi.org/10.22409/tn.15i26.p9624
2 Professor da Faculdade de Educação/UFRJ e integrante do Coletivo de Estudos em Marxismo e Educação (COLEMARX). E-mail: brunogawry@gmail.com
3 Professora da Faculdade de Educação/UFRJ e integrante do Coletivo de Estudos em Marxismo e Educação (COLEMARX). E-mail: vaniacmotta@gmail.com
O objetivo deste artigo é contribuir com uma análise crítica sobre aspectos da ofensiva de valores e pautas conservadoras no âmbito da educação brasileira, concentrando esforços na atuação do movimento político-ideológico de extrema- direita Escola sem Partido. Calcados no referencial teórico-metodológico de Antonio Gramsci, trabalhamos com o conceito de hegemonia, que articula força e consenso, tendo em vista as correlações de forças que estabelece um “equilíbrio instável” nas relações sociais. E nos pautamos em pesquisadores brasileiros para situar a recente constituição da linhagem conservadora-liberal,nos âmbitos econômico, político e ideológico, na dinâmica histórica e política brasileira advinda da complexificação da sociedade civil da sociedade política no pós-ditadura.
Na primeira parte, resgataremos de forma breve alguns elementos históricos do pós-ditadura que ajudam a identificar o processo de complexificação da sociedade civil, nos termos de Gramsci, quando ela se torna do tipo “ocidental”, em meio ao processo de recomposição de forças sociais em torno da agenda do sistema-mundo do capital imperialista. Consideramos esse movimento analítico fundamental para situar a ofensiva de grupos “conservadores-liberais”na atual crise política e econômica brasileira. Na segunda parte, trazemos a pauta do grupo de extrema-direita no âmbito da educação, o Escola sem Partido, buscando empreender uma análise que a identifica com a agenda conservadora-liberal, segundo Bianchi (2015), extremamente heterogênea e não consolidada, mas que tem primado por uma pauta que investe fortemente em padrões morais e éticos e se articula de forma contraditória.
Passados os anos de maior repressão aberta como componente da política de “segurança nacional” operada pelos aparelhos repressivos do Estado e apoiada materialmente de diversas maneiras por frações do empresariado brasileiro, gradativamente a legitimidade que sustentava a militarização do Estado foi se corroendo pela questão econômica e pelas tensões políticas internas. No âmbito econômico, o sistema-mundo do capital imperialista enfrentou a crise do petróleo, a mudança do padrão ouro-dólar e neoprotecionismo baseado nas medidas não tarifárias que perdurou nos anos 1970(GONÇALVES, 2012, p. 640).
A crise da dívida externa brasileira, nos anos 1981-82, foi um marco relevante, mas também, em parte pelas próprias contradições no âmbito do empresariado que disputavam entre si maior preponderância sobre o mercado nacional e acesso aos subsídios estatais, e ainda pelo próprio desgaste de sustentar por mais de uma década a ordem social baseada em um altíssimo grau de coerção sobre a população, que, por sua vez, padecia com a crescente inflação e deterioração das suas condições de vida.
Sendo assim, Fontes (2010) atenta para o fato de que, prevendo a ascensão das lutas populares por acesso e extensão dos serviços públicos, as principais organizações sociais empresariais de cada segmento econômico (na concepção gramsciana, os aparelhos privados de hegemonia), mesmo tendo organicamente constituído os espaços de governo do Estado, passaram a se descolar da imagem do mesmo, criticando as medidas tomadas pelos governantes e reivindicando outro projeto que pudesse manter as bases de controle social. Isso, frente à sinalização para um novo conjunto de políticas macroeconômicas e uma nova divisão internacional do trabalho (o que não muito tempo depois viria a se expressar no que genericamente podemos denominar como neoliberalismo).
Contudo, o processo de abertura política conduzido desde o início sob o estrito controle dos setores dominantes que se assenhoravam do Estado, e deveras acidentado e marcado por oscilações entre medidas de abertura e de fechamento de mecanismos de participação política, pode ser expresso no famoso lema declamado pelo então Presidente Ernesto Geisel em meio à tímida medida de permissão da propaganda eleitoral gratuita na televisão e no rádio: a transição do regime será “lenta, gradual e segura”. Na visão de Coutinho (2006), um processo conduzido pelo alto, “com o objetivo de promover uma ‘descompressão’ fortemente seletiva” (p.187). Tão logo a então oposição eleitoral, representada pelo partido Movimento Democrático Brasileiro (MDB), venceu as eleições legislativas. Em alguns governos estaduais, os setores contrários à abertura política iniciaram em 1974, uma violenta ofensiva contra qualquer tentativa de insurgência contra a ordem social, o que culminou no Pacote de Abril de 1977, lançado por Geisel, que fechou temporariamente o Congresso Nacional. Quando seu sucessor assumiu em 1979, o General João Figueiredo, impelido pelas condições políticas, confirmou que conduziria o processo de restauração da
democracia no Brasil pela emblemática frase: "É pra abrir mesmo. Quem não quiser que abra, eu prendo e arrebento!".
Mesmo diante de fatos que não condizem exatamente por ações em vista de democratizar as estruturas de poder no país e jamais perdendo de vista a tutela dos setores dominantes, Coutinho (2006) traz o entendimento que, na prática, esse processo se desenvolveu de modo menos controlado do que o previsto por Geisel e Figueiredo, por conta de uma sociedade civil organizada em movimentos populares que impulsionaram um processo de abertura mais ampliado, vide os casos de anistia aos exilados políticos e a reorganização partidária a partir do fim do bipartidarismo.
Virgínia Fontes (2010) enriquece o debate chamando a atenção de que as décadas de 1970 e 1980 foram marcadas pela constituição de organizações, tanto de base empresarial quanto sindical e populares, o que complexificou de sobremaneira as disputas pela direção intelectual-moral da sociedade que, conforme tem se constatado até os nossos dias, a luta pela hegemonia não caberia apenas na conquista de vencer uma disputa eleitoral e ter sob sua responsabilidade a máquina do Estado.
Nesse sentido, a fundação do Partido dos Trabalhadores (PT) no âmbito político-partidário, da Central Única dos Trabalhadores (CUT) no âmbito sindical e do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no âmbito da luta pela reforma agrária permitiu que os diferentes segmentos da classe trabalhadora atuassem razoavelmente em unidade nacional e conferissem especial importância na busca por espaços na sociedade civil, contrapondo-se às já existentes entidades empresariais3, o que leva Fontes (2010, p.257) a entender que
A capacidade de aglutinação – de agir como um “estado-maior” – do PT e a multiplicidade de movimentos que coordenava ameaçavam desestruturar os esquemas de dominação tradicionais, obrigando a uma recomposição, realizada às pressas com Collor de Mello e depois, finalmente azeitada com a ascensão de FHC (Fernando Henrique Cardoso, acréscimo
3 A título de exemplificação daquele momento histórico, conforme listado por Fontes (2010), podemos mencionar o Instituto Liberal (IL), a Confederação Nacional das Instituições Financeiras (CNF), a União Democrática Ruralista (UDR), o Movimento Cívico de Recuperação Nacional (MCRN), além das entidades corporativas históricas que persistem até hoje como as respectivas federações de bancos, indústria, comércio, agricultura, transporte e seus serviços de qualificação profissional do sistema S, dentre outras.
nosso) ao papel de porta-voz obediente das burguesias brasileiras e seus sócios prioritários.
Devido aos limites de espaço e da proposta desse texto, não pretendemos nos aprofundar na descrição e análise das disputas em torno da hegemonia política brasileira nas décadas que findaram o século XX, levando em conta outros elementos que também poderiam ser abordados, tais como: o surgimento de organizações políticas fora da esfera dos partidos políticos, as Organizações não-governamentais (ONGs) e seus congêneres, o que ajudou a ressignificar o sentido de militância e da implementação das políticas públicas; a gradual burocratização e domesticação das organizações surgidas dos movimentos populares, principalmente o PT e a CUT; o crescimento de uma concepção de política sindical baseado em resultados pragmáticos e imediatos e, por isso mesmo, fomentado e apoiado pelos setores dominantes; a ascensão da aplicação das ideias do neoliberalismo sobre o governo dos Estados nacionais, acompanhado de uma profunda reestruturação do mundo do trabalho baseado em novas tecnologias que atuaram sobre o processo de produção, a fim de reverter a crise de reprodução de valor do capital, somente para citar alguns dos aspectos mais relevantes que reconfiguraram o cenário político. No entanto, o que desejamos frisar é que a complexificação da sociedade civil, especialmente a partir do período de fim da ditadura militar, teve como alguns frutos a multiplicação de espaços e organizações que viriam a disputar a direção da política brasileira e a reivindicação da universalização de serviços públicos como agenda obrigatória para a consecução dos direitos sociais dos cidadãos.
A disputa pela hegemonia política que nos referenciamos nesse texto tem amparo nas formulações de Antonio Gramsci que, ao se indagar sobre o fracasso da revolução operária na sociedade italiana do início do século XX, procura fazer de suas reflexões formas de operar sobre o real, a fim de transformá-lo. O que nos parece mais pertinente para os limites do texto é que o entendimento de Gramsci sobre o conceito de sociedade civil (e dos aparelhos privados de hegemonia) é inseparável da luta de classes, portanto, não está em oposição ao Estado, mas atravessa-o a partir da formulação de estratégias dos setores dominantes em convencer os subalternos a aderir ao seu projeto de mundo, sem
deixar de recorrer a práticas coercitivas, sempre que necessário. Enfatiza o próprio Gramsci (2000, p.95) que:
O exercício “normal” da hegemonia, no terreno tornado clássico do regime parlamentar, caracteriza-se pela combinação da força e do consenso, que se equilibram de modo variado, sem que a força suplante em muito o consenso, mas, ao contrário, tentando fazer com que a força pareça apoiada no consenso da maioria, expresso pelos chamados órgãos da opinião pública – jornais e associações – os quais, por isso, em certas situações, são artificialmente multiplicados (grifo nosso).
Conforme disserta Coutinho (1996), Gramsci compreende que nas formações sociais em que há uma relação equilibrada entre sociedade civil e sociedade política, que a caracteriza como do tipo “ocidental”, a luta de classes tem como terreno prévio as disputas em torno dos aparelhos privados de hegemonia, pois essa disputa visa a obtenção da direção política do processo revolucionário; uma tática de “guerra de posição”.
Decidimos destacar esse entendimento de hegemonia por Gramsci, tendo em vista que nos anos 1980 a intensificação das lutas e de uma ampliação da pauta reivindicatória de direitos sociais no Brasil. A esse respeito, Fontes (2010, p.138-9) explicita que
Gramsci observou que o Estado podia agregar em sua própria estrutura elementos oriundos das reivindicações das classes dominadas, ampliando-se também na direção da incorporação de demandas dos grupos subalternos e em peculiar democratização, na qual a incorporação ampliava a política, mas mantinha a subalternização de classes.
Dessa forma, possivelmente o caso brasileiro é exemplar, pois há que se destacar que a vitória do PT à Presidência sintetizou uma mudança histórica na forma de conduzir a política, pois este foi constituído no âmbito das lutas sociais, tendo, ao longo do tempo, forjado uma relação próxima com os diversos segmentos organizados da classe trabalhadora, por meio de sua intervenção nos segmentos estudantis, populares, sindicais, trabalhadores rurais e movimentos sociais contra opressões. Esse lastro político lhe permitiu dirigi-los em torno de um projeto de poder sob o mote de construir um novo contrato social, em que se
colocava como uma das prioridades a abertura de canais e mecanismos institucionais para uma participação mais efetiva da população.
A chegada do PT ao controle do Poder Executivo do país incorporou as frações mais organizadas da classe trabalhadora que estavam sob a direção das correntes majoritárias do partido, como os grupos que operavam o controle da central sindical CUT e diversos outros movimentos e entidades vinculadas ao partido, sob a promessa de estreitar canais de diálogo entre os diversos segmentos da vida social brasileira e o governo. Dessa proximidade entre PT e os movimentos sociais resultou a nomeação de muitos militantes e quadros do partido para cargos públicos nas estatais, empresas mistas, fundos de pensão vinculados às empresas públicas, promovendo enorme processo de cooptação de grande parte dos setores combativos nos movimentos políticos. Antonio Gramsci denominou como transformismo o deslocamento de antigos opositores para o bloco de poder até então antagônico e, tal como ocorrera na Itália no século XIX a partir do seu processo de unificação, no Brasil nos apropriamos das palavras de Gramsci (2001, p. 387) de que “[...] torna-se claro que pode e deve haver uma atividade hegemônica mesmo antes da ida ao poder e que não se deve contar apenas com a força material que o poder confere para exercer uma direção eficaz”.
Tratando especificamente a conjuntura brasileira já no final da década de 2000 – portanto, com Lula no seu segundo mandato e desfrutando de altíssima popularidade, o que valeu a eleição de sua sucessora nunca antes candidata, Dilma Rousseff –, Francisco de Oliveira caracteriza o governo petista como um caso de “hegemonia às avessas”, porque os setores historicamente subalternizados e dominados ascenderam ao poder do Estado e aparentemente conferem a direção moral da sociedade, mas implementava até então com retidão o programa destinado a atender as frações burguesas locais e o capital internacional. Assim, Oliveira (2010, p. 27) justifica o porquê de essa hegemonia ser às avessas, pois, segundo seu entendimento:
Não são mais os dominados que consentem em sua própria exploração; são os dominantes – os capitalistas e o capital, explicite-se – que consentem em ser politicamente conduzidos pelos dominados, com a condição de que a “direção moral” não questione a forma da exploração capitalista.
Diversos pesquisadores se dedicaram a analisar o, de certa forma, longo governo petista. A ascensão de uma entidade representante da classe trabalhadora como dirigente da “função estabilizadora do Estado” (GONÇALVES, 2012), em meio à constante e cada vez mais aguda crise do sistema-mundo capital imperialista está envolta em complexidades que dificultam a realização de uma síntese. Todavia, consideramos importante registrar que o referido consentimento da classe dominante para dirigir o Estado burguês, em conformidade com Oliveira (2010), também contou com a política de conciliação que foi sendo construída em prol da governabilidade. Na base de governo conviviam frações da política partidária e de setores econômicos de interesses diversos e até antagônicos ocupando cargos públicos de níveis de poder decisórios variáveis e, bem como, em instâncias de consultorias e de conselhos. Os empresários locais protagonizaram políticas públicas importantes, e mesmo aquelas voltadas para a classe trabalhadora, particularmente, as focadas na população mais pobre, foi realizada com reconhecimento de organismos internacionais (MOTTA, 2012). O governo PT também contou com um período de condições econômicas favoráveis na dinâmica do mercado internacional que resultou em elevação das taxas de crescimento e a possibilidade de introduzir a política macroeconômica novo-desenvolvimentista4. Esta dinamizou a expansão da exportação de commodities, concebida como motor de crescimento, combinado com um mercado interno forte e com políticas de redução das
4Gonçalves (2012) analisa a política macroeconômica do governo PT, tendo como base a política implementada com a denominação novo-desenvolvimentista. Para o autor, na virada do milênio, países latino-americanos adotaram um modelo de política econômica que o definiu como “Modelo Liberal Periférico”. Em suas palavras: “Este modelo caracteriza‑se por: liberalização, privatização e desregulação; subordinação e vulnerabilidade externa estrutural; e dominância do capital financeiro. O modelo é liberal porque é estruturado a partir da liberalização das relações econômicas internacionais nas esferas comercial, produtiva, tecnológica e monetário‑financeira; da implementação de reformas no âmbito do Estado (em especial na área da Previdência Social) e da privatização de empresas estatais, que implicam a reconfiguração da intervenção estatal na economia e na sociedade; e de um processo de desregulação do mercado de trabalho, que reforça a exploração da força de trabalho. O modelo é periférico porque é uma forma específica de realização da doutrina neoliberal e da sua política econômica em um país que ocupa posição subalterna no sistema econômico internacional, ou seja, um país que não tem influência na arena internacional, ao mesmo tempo em que se caracteriza por significativa vulnerabilidade externa estrutural nas suas relações econômicas internacionais. E, por fim, o modelo tem o capital financeiro e a lógica financeira como dominantes em sua dinâmica macroeconômica” (p. 662). Nesse sentido, para Gonçalves, a proposta do novo-desenvolvimentismo foi gerenciar o Modelo Liberal Periférico, com ênfase na função estabilizadora do Estado – implementar políticas de estabilização macroeconômica (p. 663-664).
desigualdades sociais, entre outros fatores (GONÇALVES, 2012) que, no curto período de seu auge, ampliou a capacidade de consumo, de emprego e de gerar renda, principalmente, da classe trabalhadora situada na base da pirâmide.
Contudo, o que servia como leitura fiel da conjuntura brasileira em 2010, já nos idos de 2016, mostrou o quanto a hegemonia, no sentido de articular força e consenso, é dotada de um equilíbrio instável nas relações entre os grupos sociais que se defrontam na luta de classes. A derrota inesperada das frações burguesas que apoiavam a coligação capitaneada pelo Partido Social Democrático Brasileiro (PSDB) de Aécio Neves nas eleições presidenciais em 2014 não foi aceita desde a proclamação do resultado, sendo contestada de todas as formas, inclusive sob a acusação de fraude na contagem de votos. Diante da impossibilidade de impugnação eleitoral, entrou em cena o discurso de “Fora, Dilma!” baseado na moralidade ética e na retomada da credibilidade do governo, o que implicaria por fim ao ciclo do PT na presidência da República, a fim de levar adiante medidas que implementassem da forma mais dura possível o ajuste fiscal e, consequentemente, um maior escoamento do orçamento público para as frações burguesas que dão as cartas para o bloco no poder (capital financeiro-rentista, o agronegócio e o capital produtivo) 5. É necessário levar em conta que a partir de 2010 o Brasil começou a sentir a crise do sistema-mundo do capital imperialista de 2008 que resultou na queda dos preços das commodities e do barril do petróleo. Estremeceu a base econômica brasileira que encaminhou para a reprimarização da economia e para os arranjos com as oligarquias regionais (GONÇALVES, 2012), isto é, corroeu a política “novo-desenvolvimentista” e a função estabilizadora do Estado foi colocada em risco.
Nesse sentido, concordamos com Alves (2016, s/p) que
O que se disputa na virada para a década de 2010 é o modo de resolução das contradições abertas pela crise financeira de 2008/2009 no plano histórico mundial. Trata-se de uma disputa no interior da ordem burguesa [...] (pois) as “crises” do capitalismo histórico possuem uma função histórica crucial – elas tratam de oportunidades de renovação para que o sistema-mundo do capital se recomponha num patamar superior, constituindo assim, uma
forma social no interior da qual ele irá desenvolver suas contradições candentes no século XXI.
Ou seja, predominando a “pequena política”6, a “captura da gestão macroeconômica pelo oportunismo eleitoral” (GONÇALVES, 2011, p. 2), trata-se de uma disputa pela direção política da função estabilizadora do Estado e pela manutenção no poder, com níveis diferenciados do equilíbrio da combinação força-consenso.
Conforme amplamente difundido pelos órgãos de imprensa em massa, o processo de impeachment de Dilma Rousseff, além de amplamente impactado pelas incursões policiais da Polícia Federal na Operação Lava Jato, também foi fartamente amparado no que Mascaro (2016) denomina como ideologia jurídica, pois se nem o Estado nem o Direito podem ser pensados como aparatos consolidados e acabados por si mesmos no momento em que existem, logo: “Havendo descompasso entre forças econômicas e posições político-jurídicas, a resolução da reprodução social capitalista se faz sempre em detrimento do plano institucional” (s/p). Por isso, no momento em que as frações burguesas locais se associam no sentido de se articularem com o capital imperialista, a ideologia jurídica serve tanto aos conspiradores que fazem a injunção em favor da moralidade ética e vale como pretexto para a condução de golpes parlamentares quanto pelos que sofrem a deposição, pois segundo o mesmo Mascaro (idem)
O direito é arma privilegiada para tal injunção. [...] A ideologia jurídica conduz golpes que não aceitam ser narrados como tais e, ao mesmo tempo, a mesma ideologia jurídica tem sido a bandeira requerida por governos e movimentos sociais progressistas latino- americanos. Até mesmo aqueles depostos por golpe, como o caso do PT no Brasil, conclamam pelo respeito às leis e às instituições…
Por fim, essa seção se dispôs ao debate político, trazendo brevemente fatos que marcaram, na história recente, os processos de condução do Estado brasileiro, seus aparelhos executivos, jurídicos e ideológicos, em meio aos momentos de crise do sistema-mundo do capital imperialista, à relação
6Fazendo referência ao pensamento de Gramsci, Coutinho (2010) compreende que as análises sobre os governos petistas devem considerar o contexto de hegemonia da pequena política; o predomínio da prática que limita o horizonte estratégico da política na perspectiva da luta ético- política e até político-estatal, em meios para obter apoio de parlamentares, esvaziado dos embates ideológicos da grande política.
subordinada às frações burguesas dominantes e às correlações de forças dos movimentos de base progressistas. Seguiremos analisando essa conjuntura de investida conservadora-liberal, em especial, no âmbito da educação.
Conforme foi abordado na seção anterior, a análise da conjuntura nacional parece indicar que há uma recomposição de forças sociais em torno de uma pauta ajustada ao sistema-mundo do capital imperialista e que se expressaria hodiernamente na defesa do ajuste fiscal e suas derivações pela contrarreforma trabalhista e previdenciária, em meio à crise orgânica do sistema capital.
Uma célebre análise de Gramsci (2000) é sobre a crise orgânica do capital. Tomando como base as reflexões de Marx de que crise faz parte da natureza do capital e pensando o seu tempo, na Itália fascista, o autor vai indicar que na correlação entre forças de grupos A e B, uma terceira força pode surgir. Ou que nos momentos de crise orgânica, quando o velho mundo agoniza e o novo mundo tarda a nascer, podem irromper monstros. Provavelmente, esse monstro para Gramsci tinha elementos fascistas. E isso nos remete a ressaltar que a crise orgânica do capital não se restringe aos âmbitos econômico e político, mas ideológico também7 e que, provavelmente, um monstro luta para irromper.
A ofensiva ideológica em curso, no entender de Bianchi (2015), representa uma linhagem de pensamento contemporâneo, o qual denominou como conservadora-liberal, que, apesar de extremamente heterogênea e não consolidada, estaria primando por uma pauta que investe fortemente em padrões morais e éticos, mas que se articula de forma contraditória. Nesse sentido, basta lembrar que nos mesmos protestos contra “a corrupção dos governos petistas”, havia cartazes expostos defendendo a sonegação como autodefesa contra o Estado; ou ainda a exigência de que o Estado não se intrometa na vida privada dos cidadãos, mas defendem o enquadramento criminal de usuários de drogas, de mulheres que decidem interromper a gravidez e a regulamentação legislativa sobre o conceito de família.
7Para Gramsci (1999, p. 238): “as forças materiais são o conteúdo e as ideologias são a forma, distinção entre forma e conteúdo puramente didática, já que as forças materiais não seriam historicamente concebíveis sem forma e as ideologias seriam fantasias individuais sem as forças materiais”.
Sem querer transpor mecanicamente essa reaglutinação no âmbito geral da sociedade, nosso objetivo é refletir sobre alguns possíveis aspectos dessa ofensiva de valores e pautas no âmbito da educação. Tendo em vista que essa tarefa seria demasiadamente extensa para caber em um artigo, concentraremos nosso esforço na atuação do movimento político Escola sem Partido.
Primeiramente, esse movimento (mais tarde regulamentado como associação) que a muitos surpreendeu e ganhou a devida atenção somente a partir de 2015, já existe enquanto ação política desde 2004 colhendo as ditas “provas irrefutáveis” e denunciando a suposta prática de doutrinação político- ideológica nas instituições de ensino e nos materiais didáticos utilizados no Brasil. A sua principal figura é o Procurador do Estado de São Paulo, Miguel Nagib, que afirma ter decidido reagir contra a doutrinação quando, em setembro de 2003, sua filha teria chegado da escola e dito que seu professor de História comparou Che Guevara a São Francisco de Assis8.
Sua atuação passou a ter maior visibilidade quando em agosto de 2008, o periódico semanal Veja – que, por sinal, nunca aceitou a derrota eleitoral para o PT desde 2003 e empreendeu uma oposição sistemática e quase irracional contra o partido – publicou a matéria Você sabe o que estão ensinando a ele?,9 na qual se destina a chamar à responsabilidade os pais e mães, leitores do semanário sobre a doutrinação que estaria ocorrendo nas escolas, sobretudo nas particulares: “Muitos professores e seus compêndios enxergam o mundo de hoje como ele era no tempo dos tílburis.10Com a justificativa de ‘incentivar a cidadania’, incutem ideologias anacrônicas e preconceitos esquerdistas nos alunos”. E até se dispõem a criticar a falta de vigilância sobre a rotina educacional dos filhos, pois:
De modo geral, com as nobilíssimas exceções que todos conhecemos, os pais brasileiros de todas as classes não se envolvem como deveriam na vida escolar dos filhos [...] A
8EL PAÍS, “O professor da minha filha comparou Che Guevara a São Francisco de Assis”, publicado em 25 jun. 2016, disponível em http://brasil.elpais.com/brasil/2016/06/23/politica/1466654550_367696.html, acesso em 14 ago. 2016.
9A reportagem assinada por Mônica Weinberg e Camila Pereira em 20 de agosto de 2008, na edição nº 2074, publicizado amplamente no momento de sua publicação, não está mais disponível no site da revista e só foi possível ter acesso a parte de seu conteúdo devido ao trabalho de republicação em blogs e sites sobre a temática educacional. Tivemos acesso ao conteúdo através do endereço http://www.midiaindependente.org/pt/red/2008/09/427390.shtml, acesso em 14 ago. 2016.
10Pequena carruagem para duas pessoas puxada por um animal.
reportagem que se vai ler pretende chamar atenção para as raízes dessa cegueira e contribuir para que pais, professores, educadores e autoridades acordem para a dura realidade cuja reversão vai exigir mais do que todos estão fazendo atualmente.
Depois de relatar explicitamente dois casos ocorridos em escolas particulares, inclusive citando nominalmente os professores envolvidos nas respectivas aulas, a reportagem traz uma pesquisa de opinião (figura abaixo) encomendada pela revista e que tem se constituído numa das principais “provas” que o Escola sem Partido vem se baseando para comprovar a doutrinação nas instituições de ensino brasileiras. Miguel Nagib (s/d) alega que
Não admira que para 78% dos professores, segundo a mesma pesquisa do Instituto Sensus, a principal missão da escola seja “formar cidadãos”, e para apenas 8%, “ensinar as matérias”. Será que é por isso que, no Brasil, a educação vai tão mal, e o PT vai tão bem?(grifos por Nagib)
Figura 1 – Pesquisa de opinião divulgada pela Revista Veja
Fonte: Instituto Sensus
Após a grande repercussão que a reportagem gerou, a Revista Veja, bem como outros veículos de comunicação em massa, passaram sistematicamente a publicar “evidências” de casos de doutrinação nas instituições de ensino, geralmente vinculando as denúncias a um projeto articulado pelo Partido dos Trabalhadores valendo-se de sua prerrogativa de comandar a Presidência da República. Tendo em vista o acolhimento da grande mídia, os setores ligados ao Escola sem Partido deram um passo adiante na “guerra de posição” na disputa pela adesão da opinião pública a respeito de suas ideias.
A partir da conjuntura de acirramento das contradições sociais, materializadas no contexto de crise do capitalismo neoliberal com o esgotamento do projeto novo-desenvolvimentista como modelo de governança no Brasil e as manifestações políticas de massa ocorridas em 2013/2014, o pensamento conservador-liberal passou a interferir de maneira ainda mais efetiva na cena política geral e o mesmo também ocorreria na educação. Imbuídos de levar adiante sua pauta, o Escola sem Partido passou a investir fortemente na atuação junto ao Poder Legislativo e Judiciário. No caso do Poder Legislativo, a investida foi no sentido de formular projetos de lei padronizados, a fim de difundir iniciativas correlatas por todo o Brasil. No caso da Justiça, o Escola sem Partido se constituiu em associação, de modo que pudessem entrar com ações legais. Em consulta ao site oficial do movimento, é possível notar profusão de representações legais, questionando temas como a prova de redação do Enem 2015 que tratava de dissertar sobre direitos humanos; a atuação de professores praticando militância nas instituições de ensino; e um modelo de notificação extrajudicial a ser utilizado por famílias que se sintam violadas por um professor. Enfim, trata-se de uma investida visando aproximar segmentos da sociedade civil aos aparelhos repressores do Estado.
Poderíamos sintetizar a atuação política que orienta o Escola sem Partido11 pelo princípio norteador da denúncia contra a doutrinação político-ideológica nas instituições de ensino e, a partir desse princípio, alguns desdobramentos. A fim de ser coerente com o seu princípio norteador, o movimento alega que tem como mote a defesa da pluralidade de ideias, a partir da neutralidade política, como forma de respeitar a integridade intelectual e moral dos estudantes. No entanto, o que encontramos fartamente nos materiais difundidos pelo Escola sem Partido e seus respectivos apoiadores é o caráter unilateral de denúncias contra uma “ideologia esquerdizante” e a restrição de posicionamentos nos conteúdos a serem ensinados. Apoiando o dito acima, Nagib (s/d) relaciona o processo pedagógico como doutrinação o fato dos profissionais da educação defenderem a “construção de uma sociedade mais justa. (pois) É isso o que eles aprendem e ensinam nas faculdades de educação, história, geografia, sociologia, etc.” e, consequentemente, esses profissionais de educação por terem sido “doutrinados”
11O site oficial do movimento em que pode ser encontrada a maior parte das observações citadas direta ou indiretamente é http://escolasempartido.org
em sua formação universitária seriam “agentes transmissores do vírus gramsciano que se espalhou por todo o sistema de ensino. De tanto escutar e repetir que a educação é um ato político, sequer reconhecem a ideologização como um mal a ser evitado”.
Não obstante que apenas nos deparamos com denúncias contra a “doutrinação esquerdista”, tampouco pudemos comprovar textos em que façam uma defesa robusta da pluralidade de ideias. Uma de suas principais bandeiras de luta se empenha em combater aquilo que denominam como “ideologia de gênero”, traçando uma relação de causalidade entre a abordagem pedagógica na discussão sobre gênero e sexualidade e a manifestação de orientação sexual diferente da heterossexualidade. A Psicóloga e Psicanalista Rejane Soares (s/d) escrevendo em nome do Escola sem Partido entende que
[...] é urgente o combate a ideologia de gênero que, com a noção de igualdade de gênero e o incentivo às relações homoparentais, coloca em risco as diferenças sexuais que possuem função estruturante no desenvolvimento psíquico da criança. O grande dano provocado pela ideologia de gênero consiste em subverter os papéis sociais atribuídos a cada sexo, que reafirmam e consolidam a identidade sexual. Esse dano vai muito além de um desvio dos desejos heterossexuais, de uma estética corporal ou até mesmo de uma revolução dos costumes. Ele chega, na verdade, às raias de uma confusão mental deliberada.
Já no horizonte mais ampliado do espectro político-ideológico, sem muito esforço é possível encontrar artigos de apoiadores da pauta do Escola sem Partido entre think tanks12do pensamento liberal, tais como o Instituto Millenium, o Instituto Ludwig von Mises Brasil e o Instituto Liberal13. No texto de Burke (2016, s/p), o autor relata um caso de sucesso (do ponto de vista liberal) em que um professor de física e matemática estaria aplicando conceitos básicos de microeconomia e empreendedorismo pela corrente da escola austríaca de economia. Tomando tal atitude, o professor estaria contribuindo para que não
12Os think tanks são instituições dedicadas a produzir e difundir conhecimentos, pautando o debate político por meio da publicação de estudos, artigos de opinião e da exposição de seus membros nos meios de comunicação e que almejam alcançar seus objetivos por meio da influência (e não raro, pelo amplo suporte financeiro que recebem).
13Sobre a influência dessas organizações sugerimos a leitura do livro organizado por Patschiki ETAL, “Tempos conservadores: estudos críticos sobre as direitas. Goiânia. Edições Gárgula, 2016.
haja “alunos lobotomizados por um único discurso, e usufruindo da chance de analisar vários pontos de vista e eleger qual deles norteará sua vida”.
Haja vista a citação acima, não nos parece que há qualquer incentivo a um debate plural de ideias em exposição “neutra” dos conteúdos. Por sinal, Miguel Nagib (s/d), a despeito de seguidamente proclamar pela neutralidade política do Escola sem Partido, afirmou que “Toda ideologia – seja de esquerda, de direita ou de outro gênero – atrapalha a nossa compreensão da realidade. Mas nada atrapalha mais essa compreensão do que ver o mundo sob as lentes de uma única ideologia.”. Contudo, Aquino (2016) demonstrou em publicação que Nagib era um colaborador do Instituto Millenium e, dentre outros textos, escrevera um artigo em 2009 com o título Por uma escola que promova os valores do Millenium e figurara no rol de colaboradores do think tank até 2010.
Poderíamos ilustrar diversos textos e exemplos similares que remetem ao mesmo princípio norteador, justamente a falta de pluralidade e a interdição do debate, o que contrariaria o entendimento da educação como processo interativo e inventivo do conhecimento numa relação mediada pelo docente com seus alunos. Sob a justificativa que cabe à instituição de ensino transmitir os “conhecimentos básicos” ao desenvolvimento das pessoas: matemática, lógica, linguagem e ciências, esta concepção vai ao encontro de outra tendência que está em curso e que conduz ao “estreitamento curricular” (FREITAS, 2014), a dos grupos empresariais que vêm atuando ativamente nas redes públicas de ensino, em articulação com as recomendações de organismos internacionais, visando a melhoria do desempenho nas avaliações em larga escala, nacionais (o IDEB e outros das redes municipais e estaduais) e internacional (o PISA)14. Trata-se da lógica de conferir ênfase nos conteúdos cognitivos e disciplinares previstos nas avaliações de larga escala em detrimento do desenvolvimento dos sentidos psicomotor, estético, artístico.
14Luiz Carlos de Freitas, entre outros pesquisadores, vêm analisando o processo de empresariamento da educação que não se restringe somente à ampliação do mercado educacional, mas a um processo de privatização por dentro que conduz à reformulação curricular da educação básica nos estreitos marcos da administração da “questão social” e do “capital humano”. Este processo tem forte influência da Organização de Cooperação para o Desenvolvimento Econômico (OCDE), por meio do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA) – que foca no ensino de português, matemática e, mais recentemente, noções de ciências – e do Banco Mundial, que articula educação com administração da pobreza.
Estes grupos empresariais, denominados por Freitas de “reformadores da educação”, estão organizados por meio do movimento Todos Pela Educação (TPE) 15e protagonizam os encaminhamentos de políticas públicas de educação desde a sua fundação em 2006 (SAVIANI, 2007), inclusive ocupando cargos públicos nas várias instâncias de decisão: em Secretarias e Conselhos do Ministério da Educação e das redes estaduais e municipais de ensino, bem como em Fóruns da sociedade civil de abrangência nacional, estadual e municipal (MAGALHÃES; MOTTA, 2015). No entanto, até o momento o TPE não declarou publicamente apoio à pauta do Escola sem Partido. Mas outras figuras públicas ligadas à agenda do TPE, a exemplo do colunista da revista Veja, Gustavo Ioschpe (2014), referenda esse estreitamento curricular e apoia a pauta do Escola sem Partido, que parte da prerrogativa do “direito de aprender pelo menos essas competências básicas, e deixemos as discussões ideológicas para outras áreas e outros momentos”.
Ou seja, a concepção de educação que se busca hegemonizar, articula a falta de pluralidade, de debates e de criatividade com o estreitamento do conteúdo escolar, priorizando aqueles considerados úteis para o suposto desenvolvimento econômico, em conformidade com a agenda da OCDE. Esta concepção de educação estabelece uma relação direta e restrita da formação humana à dinâmica do mercado e concebe o trabalhador como um dos fatores da produção que, se adquirir habilidades e competências em especificidades do processo produtivo, pode gerar produtividade e competitividade. Trata-se da concepção de educação como capital humano que se afirmou no campo da economia nos anos 1950 para explicar o fenômeno da desigualdade entre as nações e entre indivíduos ou grupos sociais, sem desvendar os fundamentos reais que a produzem (FRIGOTTO, 2009).16
15Associação que reúne várias frações do empresariado e respectivos braços sociais para atuar na educação pública.
16Esta concepção econômica de educação foi amplamente difundida no Brasil nos anos 1960- 1970. A reforma da educação básica realizada no período da ditadura empresarial-militar – Lei 5.692/1971 – tem em seu escopo a ideia de capital humano; daí implementar a educação profissional compulsória. O mote era investir em capital humano como motor de desenvolvimento, que fazia parte das ideologias do desenvolvimento e da modernização difundidas no ciclo econômico conhecido como nacional-desenvolvimentismo. Sobre a “ideologia do desenvolvimento” um clássico referencial é a obra de Miriam Limoeiro Cardoso: Ideologia do Desenvolvimento no Brasil: JK-JQ. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
Ainda chamamos a atenção que o Escola sem Partido e seus apoiadores coloca em relevo dois personagens fundamentais: os pais dos alunos e os professores. Aos primeiros, atribui a precípua responsabilidade de vigiar se seus filhos estão sendo doutrinados, apontando a falta de cuidado e a indiferença que a classe média e alta vem tendo com seus herdeiros. Ioschpe (2014) acusa os pais de serem os maiores culpados, pois:
Esse trecho do articulista da Veja se alia ao pressuposto advogado pelo Escola sem Partido de que os conteúdos difundidos em sala de aula não podem implicar violação ao direito dos pais sobre a educação moral recebida por seus filhos, o que ressuscita antiga polêmica no âmbito educacional de quem competiria o dever e o direito de educar17, colocando em polos opostos o Estado e a família, de modo que ao primeiro é atribuída uma tendência esquerdista e de destruir valores morais da família cristã18. No debate contemporâneo, o Escola sem Partido parte do pressuposto de que à família caberia educar e, ao professor, ensinar, dissociando o processo de ensino do ato de educar.
Aos professores é destinado o papel de serem veículos de transmissão da doutrinação, disseminando uma desconfiança prévia do seu caráter e da sua qualidade profissional e o constante estímulo para a delação de professores que violem o caráter de “neutralidade do conhecimento”. A fim de demonstrar sua vigilância sobre possíveis desvios dos docentes, o Escola sem Partido criou para o dia 5 de outubro, o dia nacional contra a doutrinação nas escolas, em que
17A expressão “direito de educar” que nos remete à educação como direito também vem sendo retirada do vocábulo dos “reformadores” da educação. A prática tem sido imprimir o termo “direito à aprendizagem”, a exemplo de Ioschpe na citação acima.
18Este debate foi abordado por diversos autores, tratando de passagens importantes da história educacional brasileira como o processo constituinte de 1946 e a LDB de 1961. Tais discussões podem ser encontradas, por exemplo, em Oliveira (2001) e Pinto (2008).
deseja tornar norma prevista em lei a afixação de um cartaz que contenha os “deveres do professor”, tal como “não se aproveitar da audiência cativa dos alunos para promover seus próprios interesses, nem prejudicando, nem favorecendo a estes por suas crenças” 19. Por sinal, uma prática que guarda semelhança em seu propósito com aquele difundido pelos “reformadores empresariais” (liberais) que vem influenciando as políticas curriculares para formação de professores e sistemas remuneratórios de bonificação aos docentes ancorados no desempenho dos alunos nas avaliações em larga escala de caráter meritocrático. Ou seja, em ambas as situações, trata-se de uma relação pedagógica baseada numa profunda desconfiança no intuito de exercer controle e pressão sobre o professor.
Enfim, o avanço ideológico da linhagem conservadora-liberal na educação pública brasileira concilia, mesmo que não imediatamente, elementos da concepção econômica de educação com o da extrema-direita que abarca “articulações políticas envolvendo grupos religiosos fundamentalistas, lideranças ruralistas e tradicionais grupos políticos antipopulares” (CALIL, 2016, p. 9). Essas duas forças sociais vêm atuando por meio de seus aparelhos privados de hegemonia, porém, não somente difundindo seus ideais e concepções de mundo, de homem e de formação humana nos meios de comunicação, mas, principalmente, buscando introduzir políticas públicas nos âmbitos nacional, estaduais e municipais. A crescente atuação dessas forças políticas nas redes de ensino federal, estaduais e municipais apresentam práticas diferenciadas. No caso dos empresários a atuação vem se dando por meio de execução de programas e projetos educativos, além da ocupação de cargos públicos em esferas de poder decisório. Já os representantes do Escola sem partido operam prioritariamente pela contestação e repressão, aproximando os aparelhos repressivos do Estado do espaço escolar.
Que implicações essa formulação de educação pode trazer para a população brasileira?
Em nossas análises, tendo em vista a especificidade da formação social brasileira, profundamente desigual, social e economicamente, destacamos que a média de escolaridade da população sequer completa o ensino fundamental (7,7
19O modelo de cartaz pode ser conferido no site oficial do movimento, disponível em http://escolasempartido.org/deveres-do-professor, acesso em 4 jan. 2017.
anos) e que a ampla maioria dos estudantes da educação básica é atendida pelas redes públicas de ensino. Conforme documento do MEC (BRASIL, 2015a), em 2014, do total de 49.771.371 matrículas na educação básica, 40.680.590, ou seja, 81,7% eram da rede pública. Especificamente no ensino médio, o referido documento indica que foram matriculados nas redes públicas 7.229.831 alunos, sendo que: na rede federal, 146.613 alunos; nas redes estaduais, 7.026.734; nas redes municipais, 56.489 alunos. Na rede privada foram 1.070.358 estudantes. Ainda segundo Censo Escolar Inep – 2015 (BRASIL, 2016), estavam matriculados no ensino médio regular nas redes estaduais urbanas e rurais 6.459.859 e na modalidade EJA (Educação de Jovens e Adultos) eram 879.244 alunos. Isto é, também no ensino médio os estudantes brasileiros estão na rede pública de ensino.
Visto a abrangência das redes públicas de ensino básico – ressaltamos, são elas que atendem a maior parte da população – podemos identificar que essas forças sociais de espectro conservador-liberal, para além do estreitamento do currículo escolar, disputam o amplo controle das massas de trabalhadores que possuem baixa escolaridade. Ainda considerando suas perspectivas de formação humana, seja priorizando o fator econômico, seja o fator moral, podemos cogitar o quadro de retrocesso que encaminham com a débil formação cultural. A fórmula investimento em capital humano + controle moral conservador-liberal de extrema direita sinaliza a conjunção de uma ideologia ajustada à recomposição do sistema-capital imperialista nos quadros de uma economia subordinada e dependente, que tende a perpetuar e até aprofundar essa condição.
Na perspectiva do Estado ampliado gramsciano, foi possível identificar que a dinâmica de forças que se estabeleceu no período de abertura política no final dos anos 1970, deu uma feição mais complexa à sociedade brasileira – do tipo “ocidental” e envolveu os diversos aparelhos executivos, jurídicos e ideológicos do Estado restrito e os “privados de hegemonia” nos momentos agudos de crise do sistema-mundo do capital imperialista.
Com o passar do tempo e com base no trabalho de aglutinação de um campo genericamente denominado como democrático-popular, resultou na eleição do PT para o comando da Presidência da República e, com isso, a
inserção de representantes de organizações dos trabalhadores na base do governo. Porém, à luz de Oliveira (2010), isso ocorreu desencadeando um processo às avessas em relação à direção hegemônica e, a nosso ver, de transformismo, na concepção de Gramsci (2001), num contexto de hegemonia da pequena política. Isto até o aprofundamento da crise econômica de 2008 e o rebatimento na economia brasileira a partir de 2010, com a queda do preço das commodities e do petróleo, que cunhou as condições favoráveis para forças políticas internas conservadoras de oposição reagir à continuidade do governo petista e disputarem a direção política da função estabilizadora do Estado.
A partir de então, constituída uma sociedade civil do tipo ocidental, também se estruturou uma linhagem conservadora-liberal, assaz heterogênea e difusa, primando uma agenda calcada em padrões morais e éticos que se articula de forma contraditória, mas que recompunha a pauta das forças materiais em meio à crise orgânica do sistema capital. Diante da emergência de grupos sociais de extrema-direita que, a nosso ver, robusteceu a ideologia da linhagem conservadora-liberal, nosso objetivo foi averiguar como essas forças sociais vêm atuando no âmbito da educação, sob maior expressão do movimento Escola sem Partido e possíveis implicações para a educação brasileira. Concluímos que ambas se alinham com as forças materiais nesse momento de crise, e que para obter hegemonia implementam um processo pedagógico que requer o amplo controle da educação pública, principalmente, das redes públicas de ensino básico onde acata a grande parte da população estudantil. Destacamos como uma das implicações, os marcos da concepção de formação humana dessa linhagem conservadora-liberal, que encaminha o estreitamento do currículo escolar e busca introduzir aspectos morais e éticos que dilaceram a pluralidade de ideias e a função social criativa e crítica da educação. Aplicando o argumento da livre expressão ou da necessidade de ajustar os currículos escolares para os novos tempos, o que se promove é a doutrinação do mercado por meio da expropriação dos conhecimentos que a humanidade acumulou. Consideramos que esta formulação pode trazer consequências trágicas para uma sociedade que se mantém como uma das maiores economias mundiais alimentando e reforçando, e agora até podendo aprofundar, as desigualdades econômicas e sociais.
Contudo, mesmo com a ofensiva conservadora-liberal tomando volume e procurando cada vez mais se estruturar no intuito de fazer valer sua hegemonia na “guerra de posição”, é no seio dessa ofensiva que também surge o espaço do contraditório, que se afirma reivindicando uma formação humana que ultrapasse os estreitos limites educacionais das avaliações de larga escala e o padrão moral para educar o conformismo da sociabilidade burguesa. As ocupações dos estudantes secundaristas por todo o Brasil em 2015/2016, além de denunciar a falta de infraestrutura adequada para funcionamento das escolas ao mesmo tempo em que privilegiaram investimentos em megaeventos esportivos e isenções fiscais que beneficiaram tão somente o grande capital, mostraram que a luta pela educação pública segue viva e pulsante.
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Recebido em: 25 de abril de 2017 Aprovado em: 15 de maio de 2017 Publicado em: 4 de junho de 2017