O BID e a agenda do capital na Rede Municipal de Educação de Florianópolis¹


Allan Kenji Seki2 Hellen Balbinotti Costa3 Mariano Moura Melgarejo4 Olinda Evangelista5


Resumo

A Prefeitura Municipal de Florianópolis (PMF) e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) apresentaram uma minuta de acordo, negociada desde 2012, cujo objetivo declarado é expandir a cobertura e melhorar a qualidade da educação infantil e do ensino fundamental. Nosso trabalho examina o acordo e discute algumas de suas concepções e possíveis desdobramentos funestos para a educação municipal. Sem pretensões de esgotar a questão, buscamos compreender algumas das determinações mais gerais que possibilitaram o Acordo PMF-BID e argumentamos, principalmente, em torno de três eixos (gestão, avaliação e formação docente), que possibilitam aproximações sobre o sentido da reforma proposta.

Palavras-chave: Política educacional. Educação Municipal de Florianópolis. Banco Interamericano de Desenvolvimento.


Abstract

The Florianopolis City Hall (PMF) and the Inter-American Development Bank (IDB) presented a draft agreement, negotiated since 2012, whose stated goal is to expand the coverage and improve the quality of early childhood education and elementary school. Work examines the agreement and discusses some of its conceptions and possible disastrous developments for city education. Without exhausting the question, we sought to understand some of the more general determinations that made possible the PMF-IDB Agreement and we argue, mainly, around three points (management, evaluation and teacher training), which allow approximations on the meaning of the proposed reform.


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1 DOI: https://doi.org/10.22409/tn.15i26.p9625

  1. Mestre em Educação. Doutorando em Educação no Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Membro do Grupo de Pesquisa sobre Política Educacional e Trabalho (GEPETO). E-mail: allan.seki@gmail.com.

  2. Acadêmica do Curso de Pedagogia da UFSC, bolsista PIBIC/UFSC. Membro do GEPETO. E- mail: hellenbalbinottic@gmail.com.

  3. Professor da Rede Municipal de Ensino de Florianópolis. Mestrando em Educação no PPGE/UFSC. Membro do GEPETO. Bolsista UNIEDU/FUMDES/SC. E-mail: marianom@gmail.com.

  4. Doutora em Educação. Professora Aposentada Voluntária no PPGE/UFSC. Bolsista CNPq. Membro do GEPETO. E-mail: olindaevangelista35@hotmail.com.

Keywords: Educational policy. Municipal Education of Florianópolis. Inter- American Development Bank.


  1. Introdução

    Dinheiro público é para o serviço público! Essa é a insígnia do Sindicato dos Trabalhadores no Serviço Público Municipal de Florianópolis (Sintrasem, 2015a), expressão de sua posição contrária ao repasse de recursos públicos municipais para o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID)5 previsto no acordo negociado, pelo menos, desde 2010, entre a Prefeitura Municipal de Florianópolis (PMF) e a instituição. A versão classificada como aprovada veio a público em novembro de 2013, Proyecto de Expansión y Mejoramiento de la Educación Infantil y la Enseñanza Fundamental en Florianópolis (BR-L1329) (BID, [2013])6, e selou compromissos cruciais para a escola pública municipal. Sua análise demanda atenção redobrada, pois atinge não apenas o erário público, mas a vida escolar em suas múltiplas facetas. O Acordo PMF-BID expressa a presença na RME de um sujeito educador fundamental, o capital, bem como o sujeito que se pretende educar, o trabalhador ou o “Capital Humano”:


    Este análisis estimó los beneficios sociales de este proyecto, que se vinculan a la ampliación de la oferta de creches y preescolar, que mejora el nivel educativo, a la eliminación de la distorsión de edad grado y a los beneficios surgidos por una mejor calidad de la enseñanza en la formación de capital humano. (BID, [2013], p. 14)


    Mota Júnior (2016, p. 144) chama a atenção para um ponto fundamental desse tipo de intervenção:


    As agências multilaterais – FMI, BM, BID – admitem, agora, que o crescimento econômico, por maior que possa vir a ser, não é


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    5 O primeiro financiamento direcionado pelo BID à Educação no Brasil deu-se em 1964 para formar técnicos em nível superior (2,36% do montante de empréstimos para o país) (Deitos, 2000), articulados no âmbito da Aliança para o Progresso e da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID). Entre 1961 e 1998, 4% dos empréstimos do BID destinaram-se à Educação. O setor “reforma e modernização do Estado” foi o que mais consumiu recursos, 38,5% do total, assumindo destaque principalmente a partir da década de 1990. De 1964 a 1989, 13 projetos haviam sido aprovados; de 1992 a 2015, outros 35 saíram do papel, sendo 22 entre 2008 e 2015 (BID, 2015).

    6 O Proyecto de Expansión y Mejoramiento de la Educación Infantil y la Enseñanza Fundamental en Florianópolis (BR-L1329) (BID, 2013) é a peça principal do empréstimo de 58,86 milhões de dólares pelo BID, com uma contrapartida municipal de igual valor, num total de US$ 118.430 milhões de dólares.

    suficiente para reduzir a pobreza e promover o desenvolvimento social. Daí que a diretriz proposta pelos organismos internacionais para as políticas sociais é a focalização na pobreza extrema, estimulando programas sociais compensatórios destinados ao cidadão-pobre, com renda abaixo da linha de pobreza. A palavra de ordem passou a ser “equidade”, isto é, não igualdade.


    Neste aspecto, o documento do BID ([2013], p. 2) é cristalino:


    Dada la división de funciones en las políticas y programas educativos entre las tres esferas de la Federación (unión, estados y municipios), la Secretaría Municipal de Educación (SME) tiene responsabilidad en los niveles de Educación Infantil (EI) y Enseñanza Fundamental (EF), atendiendo a población de estratos socioeconómicos bajos.


    Não se trata, apenas, de um programa de expansão e melhoria da Educação, mas da introdução de um projeto político cujas repercussões no que- fazer docente articula-se a interesses que pretendem preparar força de trabalho para o trabalho simples – incrementando o exército industrial de reserva – e transformar a esfera pública em nicho de negócios rentáveis, envolvendo outras empresas na partilha do espólio, sob a forma de construção, compra de tecnologias e contratação de consultorias. É o mesmo Sintrasem (2015b) que denuncia:


    No caso da Prova Floripa7, o contrato nº 146/EDUC/BID fechado com a Universidade de Juiz de Fora-MG, custou R$ 3.603.173,59. Este tipo de convênio coloca o dinheiro público que deveria ser destinado à educação do Município nas mãos de consultores externos que estão a serviço da implementação das políticas do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) que têm como foco a privatização da educação pública, por meio de mecanismos de controle que estimulam a competição entre as escolas, estabelece a meritocracia e coloca o problema da educação pública na esfera individual e não como coletivo.


    A amplitude do Acordo PMF-BID oferece dificuldades para seu exame e, neste texto, trataremos algumas das questões candentes que o perpassam. A



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    7 O redesenho da Prova Floripa terá como base a Teoria da Resposta ao Item. Para a melhoria da Educação Infantil serão usadas escalas de observação, o Infant and Toddler Environmental Rating Scale (ITERS) e o Early Childhood Environment Rating Scale (ECERS). O sistema de monitoramento e os mecanismos de retroalimentação da Prova Floripa retornarão às escolas e subsidiarão as formações profissionais.

    escola tornou-se um “campo sacralizado”, posto que foi ungida como esfera capaz de solucionar os problemas da pobreza, supostamente derivada de projetos desenvolvimentistas inadequados e da ausência de um sistema de gestão e monitoramento que potencializasse recursos humanos e financeiros. Em 2014, o BID lançou Dimensiones del éxito en educación anunciando o seu maior desafio: a consecução de sua qualidade! O “êxito” educacional abrange cinco dimensões, das quais marcamos duas: os estudantes devem ter acesso a docentes eficazes e os graduados devem ter as habilidades necessárias para serem exitosos no mercado. Nessa relação se esclarece o sentido de um Banco financiar projetos educativos em redes públicas de ensino. O professor, para o BID (2014), juega un rol muy importante en el aprendizaje estudiantil, o que o leva a propor alterações na carreira e na formação tendo em vista atraer, desarrollar, motivar y retener a los mejores profesionales en la carrera docente. Tal perspectiva reforça a “sacralização” da escola, associada à inclusão social, à redução da pobreza e ao aumento da equidade, obliterando-se as determinações de classe que a constituem. Atende a esse desiderato a brilhante síntese operada após os anos 2000, a do professor responsabilizado, cujo trabalho deveria redundar em boa qualidade de ensino:


    Adicionalmente, el programa (...) [contribuirá] a la meta de reducción de la pobreza y aumento de la equidad y dentro de las esferas prioritarias de la estrategia del BID para una política social favorable a la igualdad y productividad (GN-2241-1), vinculada a la inversión en la primera infancia y a la mejora de la calidad de la escolarización. BID ([2013], p. 6)


    A ladainha salvacionista que coloca o professor como central no desenvolvimento econômico do país articula-se após os anos de 1990. Em documento de 1999, por exemplo, o Banco Mundial afirmava: “todos concordam que a educação é a chave mais importante para o desenvolvimento e o alívio de pobreza.” Entre suas orientações constava: “o efetivo treinamento de professores e a supervisão são fatores que contribuem para o estabelecimento de programas educacionais prósperos.” (World Bank, 1999, p. iii apud Mota Júnior, 2016, p. 162- 163). Evangelista e Shiroma (2006, p. 46-47), confirmando o investimento de diferentes Organizações Multilaterais na área, assinalaram que



    Agências multilaterais, como o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), detectaram a necessidade de um “ajuste com rosto humano” mediante a ação em prol dos grupos mais vulneráveis (CORAGGIO, 1996, p.34). Porém, era necessária uma fundamentação não apenas moral, mas também econômica. A pobreza adquiriu uma nova centralidade no discurso quando o Banco Mundial difundiu seu informe de 1990, no qual alertava para a necessidade de promover o uso produtivo do recurso mais abundante dos pobres: o trabalho. Para tanto, era necessário prover-lhes serviços sociais básicos. O melhor caminho aventado para aumentar tal recurso era o investimento em educação.


    O Acordo PMF-BID, pois, faz parte de um estratagema maior do capital para a formação das camadas subalternas na qual estão envolvidas, de diferentes maneiras, inúmeras Organizações Multilateriais. A Estrategia de país con Brasil 2012-2014 (GN 2662-1), do BID, por exemplo, objetivava propiciar la inclusión social en el sector prioritario de educación (BID, [2013], p. 6), privilegiando dois aspectos:

    1. mejorar la calidad de la educación básica, por medio del entrenamiento y capacitación de los profesores y del perfeccionamiento y mayor utilización de los instrumentos de evaluación disponibles; y ii) expandir la cobertura de educación infantil a través de la reforma de las instituciones de enseñanza, la adquisición y desarrollo de material didáctico y la calificación del cuerpo docente.


      Estes dois pontos, para o BID, seriam fundamentais para a reducción de la pobreza y aumento de la equidad e para una política social favorable a la igualdad y productividad (BID, [2013], p. 6). Sua atuação no setor subordina-se, pois, a objetivos econômicos. A preocupação central do Acordo recai sobre as ações que devem ser desenvolvidas para prover aos alunos as habilidades requeridas pelo “mercado”. No resumo da Matriz de Efectividad en el Desarrollo (BID, [2013], Anexo I, p. 1) duas passagens merecem destaque:


      1. Promover la inclusión social y productiva (sector prioritario: educación);

      2. Un fortalecimiento del sector educativo en los años iniciales de educación básica (educación infantil y enseñanza fundamental) resultará en que los jóvenes lleguen a la educación media com un mayor capital de conocimiento y habilidades y por tanto mejorando sus posibilidades de conclusión escolar y de empleabilidad.



      Esclarecida sua proposição central, o Banco precisava de acólitos que executassem partes de seu projeto. E os encontrou. A Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul) elaborará a proposta de matriz curricular para a Educação Básica contemplando a educação em tempo integral e a transição entre Educação Infantil (EI) e Ensino Fundamental (EF); o Centro de Políticas Públicas e Avaliação da Educação (CAEd), vinculado à Universidade Federal de Juiz de Fora, reproporá a Prova Floripa; a Fundação Carlos Chagas (FCC) deverá desenhar, capacitar e implementar um sistema de monitoramento e avaliação da EI. O processo de intervenção na RME é vasto, alcançando desde mudanças na Educação Infantil até a completa reestruturação da carreira docente, configurando-se, ademais, num campo altamente lucrativo também para os, assim chamados, consultores externos.


  2. Os motivos alegados para o Acordo PMF-BID

    Entre os argumentos tendo em vista produzir consenso em torno da pertinência do Acordo, citam-se constatações favoráveis a um investimento na melhoria da qualidade educacional no município derivadas de pesquisa realizada pela FCC, Ministério da Educação (MEC) e BID, intitulada Educação Infantil no Brasil: avaliação quantitativa e qualitativa (Campos, 2010)8. Tendo-se avaliado a EI em seis capitais brasileiras de modo articulado com os resultados alcançados por crianças de segundo ano do EF na Provinha Brasil, concluiu-se que: 1) há um impacto quantitativo positivo na Provinha Brasil derivado da frequência das crianças às creches e pré-escolas; 2) persistiriam problemas nas escalas e observações realizadas nas avaliações e 3) Florianópolis apresentava melhores pontuações que as outras capitais.


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    8 A pesquisa realizada pela FCC, MEC e BID foi coordenada por Maria Malta Campos e os pesquisadores responsáveis foram Yara Lúcia Esposito, Fúlvia Rosemberg, Dalton Francisco de Andrade, Nelson Rodrigues e Sandra Ubehaum. Propunha-se três objetivos: 1) avaliar a qualidade de 150 instituições de Educação Infantil (EI) em seis capitais brasileiras (Belém, Campo Grande, Florianópolis, Fortaleza, Rio de Janeiro e Teresina); 2) estimar o impacto da frequência a creches e pré-escolas nos resultados obtidos na Provinha Brasil por alunos de segunda série do Ensino Fundamental (EF) em Campo Grande (MS), Florianópolis (SC) e Teresina (PI) e 3) caracterizar a política municipal de EI das seis capitais. O relatório da pesquisa foi publicado em julho de 2010 (Campos, 2010).

    O BID ([2013]) teria, então, decidido apostar na melhoria da qualidade educativa da rede municipal. O então Secretário Municipal da Educação, Rodolfo Pinto da Luz9, ratifica essa proposição:


    [...] no ano de 2010 houve uma avaliação por amostragem da educação infantil feita pelo próprio BID, pelo Ministério da Educação e pela Fundação Carlos Chagas, e Florianópolis ficou em primeiro lugar entre as capitais pesquisadas. Diante deste resultado, a prefeitura solicitou que a pesquisa fosse aplicada a todas as unidades de educação infantil do município. O BID, então, resolveu ampliar o financiamento para expandir e melhorar ainda mais a educação infantil e inclusive incluir a educação fundamental tanto na melhoria da qualidade quanto na expansão do período integral. (Martini, 2014).


    O suposto interesse do BID começou a se articular na gestão do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), do prefeito Dário Elias Berger (2005- 2012), na qual Rodolfo Joaquim Pinto da Luz foi Secretário Municipal de Educação em dois mandatos, reconduzido pelo prefeito César Souza Junior (2013-2016), do Partido Social Democrático (PSD). As diligências preliminares, incluindo sua aprovação pela Procuradoria Geral da República e pelo Senado Federal, parecem ter sido concluídas e o contrato começou a vigorar em 14 de julho de 2014 (Brasil, 2014). Um obstáculo inicial referiu-se à existência de dívidas municipais na Gestão Berger que a PMF tratou de solucionar, incluindo a renegociação de dívidas do município (Florianópolis, 2013).



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    9 “Rodolfo Joaquim Pinto da Luz havia sido Secretário de Educação de 2005 a 2012, sendo reconduzido ao cargo pelo Prefeito Cesar Souza Júnior. Na esfera municipal, já foi também Superintendente da Fundação Franklin Cascaes, órgão cultural da prefeitura, de 2009 a 2012. No ano de 1989 esteve à frente do Instituto de Planejamento Urbano de Florianópolis- IPUF. Graduou-se em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina, instituição pela qual é professor. Foi reitor da UFSC por três vezes, entre os anos de 1984 a 1988, 1996 a 2000, sendo reeleito em 2000 e permanecendo no cargo até 2004. Presidente do Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras – CRUB, de 1987 a 1988. Foi Secretário de Educação Superior do Ministério da Educação e do Desporto de 1993 a 1994 e exerceu interinamente os cargos de Ministro da Educação, Secretário Executivo do MEC e Presidente da CAPES, Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior. Presidente da Associação Nacional de Dirigentes das Instituições federais de Ensino Superior – ANDIFES. É Membro Titular do Conselho Estadual de Educação (SC) e Secretário de Comunicação da União dos Dirigentes Municipais de Educação

    - UNDIME - Nacional e Secretário de Finanças da UNDIME – Santa Catarina. Foi Presidente da UNDIME – SC, entre 2007 e 2013, e Presidente da UNDIME – Região Sul. Recebeu inúmeras distinções, entre elas a Ordem do Mérito da Educação e a Ordem do Mérito Judiciário de Santa Catarina. Por sua reputação, virtude e ações, também foi contemplado com o título de Doutor Honoris Causa da Universidade Federal de Roraima, Medalha João David Ferreira Lima e Medalha de Honra ao Mérito da ACIF, Dias Velho.” (FLORIANOPOLIS, 2016)

    Contudo, outra hipótese coloca no centro das negociações o Secretário Municipal de Educação. Não é difícil supor que sua permanência no cargo pode ter a ver com suas vinculações ao BID, à União dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime), ademais de uma história pregressa como Reitor da UFSC, Secretário Executivo do Ministério da Educação, entre outras posições políticas. Pinto da Luz teria reunido condições para ser um articulador dos interesses do capital de tal maneira que sua permanência no cargo transcendeu as disputas políticas mais imediatas, como as legendas partidárias10.

    É questionável que Florianópolis, tendo sido a capital que melhor se posicionou de acordo com os critérios de qualidade da pesquisa realizada pela FCC (Campos, 2010), tenha sido escolhida para receber os recursos financeiros, em detrimento das outras capitais com maiores carências de recursos e infraestrutura para os padrões do BID. É interessante pensarmos acerca da posição do Brasil na hierarquia do BID: segunda, abaixo apenas dos EUA. Embora tenha uma inserção subalterna no imperialismo mundial, segundo Fontes (2010) nosso país cumpre um papel subimperialista em relação a outros, especialmente na região latino-americana e africana. No documento Brasil 2022 (Brasil, 2010, p. 23) assinala-se que


    O Brasil daqui até 2022 terá, de um lado, de ampliar e aprofundar suas políticas domésticas de redução de desigualdades, de toda ordem, de afirmação dos direitos humanos e de acesso aos bens públicos – educação, saúde, saneamento, habitação, informação e cultura – através, inclusive, da expansão do emprego e de sua proteção. Simultaneamente, deverá ampliar seus programas de cooperação social, em especial com os países vizinhos e da África, e contribuir do ponto de vista financeiro e técnico para o fortalecimento de sua infraestrutura, condição indispensável para seu desenvolvimento e redução da pobreza.


    Muitos dos meandros e da correlação de forças que engendrou essa negociação são desconhecidos, mas sem dúvidas ela expressa o avanço do

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    10 Em 2012, Rodolfo Joaquim Pinto da Luz concorreu ao cargo de vice-prefeito na chapa de Gean Marques Loureiro, pelo PMDB, ficando em segundo lugar nas eleições municipais que conferiram a vitória ao Partido Social Democrático (PSD) do prefeito Cesar Souza Júnior (2013-2016). Ainda assim, Pinto da Luz foi reconduzido ao cargo de Secretário Municipal de Educação na gestão Cesar Souza. Nas eleições municipais de 2016, concorreu pelo PSD como vice da chapa de Ângela Regina Heinzen Amin Helou, do Partido Progressista (PP) e viu seu antigo parceiro Gean Loureiro vencer por uma margem estreita de votos. Em janeiro de 2017 foi conduzido à presidência da Fundação Catarinense de Cultura, no governo Raimundo Colombo (PSD, 2011-).

    capital organizado sobre a escola pública local. O Acordo resulta não de um desejo caridoso do BID de transformar Florianópolis em modelo, mas das negociações entre a burguesia local e o Banco para fazer de Florianópolis uma cidade capaz de representar internacionalmente um modelo de boa educação que produz força de trabalho a preços baixos, investindo na formação de crianças francamente denominadas capital humano, processo mediante o qual se promoverá la inclusión social y productiva, bem como a empleabilidad (BID, [2013], grifo nosso). O bebê entrará com quatro meses na escola; ao sair dela, aos 14, terá se tornado não um ser humano com formação humana, mas um potencial sujeito para o mercado de trabalho. E o instrumento indispensável para essa empreitada é o professor!


  3. O sentido da reforma

    As negociações entre o Brasil e instituições financeiras, como o BID e o BM, como se viu, vem de longa data e essa relação recrudesceu substancialmente após a década de 1990, tendo sofrido uma mudança significativa, pois podem ser operadas diretamente por governos estaduais e municipais. O compromisso do capital expresso no Acordo PMF-BID para a Educação municipal tem suas raízes fincadas justamente naquela década, quando um projeto de reforma internacional foi articulado e disparado na famosa Conferência de Jomtien com o slogan Educação para Todos (Shiroma; Moraes; Evangelista, 2007)11, com repercussões para a América Latina e Caribe por meio de projetos específicos, caso do Programa para Reforma Educacional na América Latina e Caribe (PREAL) (Preal, 2016).

    O contrato em tela não expressa apenas um projeto de reforma da Educação local, mas interesses político-econômicos do capital posto em andamento nos anos 90 do século XX para responder às questões que enfrentava derivadas da crise dos anos de 1970 e que redundaram no neoliberalismo. O empréstimo capitaneado por Pinto da Luz integra um processo de longo alcance temporal de intervenção do capital. Ou seja, longe de cumprir um papel prestamista, o Acordo PMF-BID privilegia uma forma específica de realizar

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    11 Esta Conferência foi financiada pelo BM, PNUD, UNESCO e UNICEF (Shiroma; Moraes; Evangelista, 2007, p. 48).

    reformas educacionais em favor da acumulação de capital, com consequências deletérias para a vida geral da classe trabalhadora e para as políticas públicas, em particular.

    De nosso ponto de vista o capital está em busca constante de meios para contornar, sempre provisoriamente, os ciclos de crises próprios à acumulação capitalista. Isso implica necessariamente no alargamento da dinâmica de acumulação ao ponto de envolver na forma mercantil todo o conjunto da vida social. Para uma economia capitalista-dependente como a nossa, isso significará que as burguesias internas recorram, quase sempre, a apropriação, por um lado, do fundo público convertendo-o em fundo de acumulação do capital. Por outro lado, significa, necessariamente, profundas alterações nas políticas sociais de modo a transferir a riqueza social para o fundo de acumulação capitalista.

    O discurso presente nos documentos (BID, 2010; 2012; [2013]; 2014; 2015) investe na produção de um consenso que visa legitimar a necessidade dos recursos financeiros objeto do contrato que, bem utilizados, gerariam uma qualidade de educação referenciada nos padrões internacionais da OCDE. “Enquanto muitas prefeituras buscam financiamentos para obras e asfalto, a nossa administração trabalha em prol da formação das crianças e adolescentes”, afirmou o prefeito César Souza Junior, que considera o financiamento “o mais importante da história de Florianópolis”. (Florianópolis, 2013).

    O objetivo do Acordo PMF-BID é a realização de uma profunda reforma na rede municipal de ensino cujas faces – qualitativa e quantitativa – atuarão sobre a formação docente e dos alunos e beneficiarão o setor de construção e a aquisição de equipamentos e consultorias:


    Atualmente, os serviços de educação integral cobrem apenas 69% dos alunos da educação infantil, que, no Brasil, inclui o sistema de creches e a pré-escola, e 21% dos alunos do ensino fundamental. Espera-se agora alcançar 100% na educação infantil e 68% no nível fundamental. Segundo dados da Prova Brasil de 2010, o município também enfrenta desafios importantes na qualidade da educação: apenas 22,4% e 14,2% dos alunos alcançam um nível de aprendizagem adequado em português e matemática, respectivamente. Para enfrentar esses desafios, o projeto destina US$ 42,1 milhões à melhoria da infraestrutura escolar para expandir a cobertura da educação infantil e fundamental e incorporar 4.000 novos alunos da educação básica à jornada ampliada do sistema educacional e 2.600 crianças a programas

    de pré-escola. Adicionalmente, US$ 9,9 milhões seriam dedicados à melhoria da qualidade da educação pela revisão do processo de seleção e contratação de professores e do investimento em cursos de capacitação em educação integral e ensino de habilidades pedagógicas a esses profissionais. [...] O empréstimo também tem um componente de gestão, monitoramento e avaliação que busca destinar US$ 4,4 milhões ao fortalecimento da capacidade da Secretaria Municipal de Educação para administrar a rede educacional, em uma das primeiras experiências de monitoramento sistemático da qualidade da educação infantil. (FLORIANOPOLIS, 2013).


    O Acordo desconsidera os conhecimentos produzidos pela própria RME a seu respeito, sua experiência e suas proposições, como são os casos da Proposta curricular (Florianópolis, 2008) e Ensino Fundamental de nove anos: em construção (Florianópolis, 2011). Se as mudanças na rede, conforme o projeto PMF-BID, ocorrerem tendo como objetivo os parâmetros internacionais, as produções e construções de professores da rede estarão em risco, bem como um projeto que considere necessária a apropriação crítica e ativa, pelo educando, dos conhecimentos científicos, filosóficos e artísticos que visem sua constituição como sujeito histórico.

    Preocupa-nos, sobremaneira, a vinculação operada tanto no documento do BID ([2013]), quanto no estudo realizado pela Fundação Carlos Chagas (Campos, 2010) entre a frequência das crianças à escola e seus possíveis sucessos escolares, tomadas como alvos das políticas, como crianças-mercadorias, como objetos secundarizados. O bordão da inclusão social, do benefício popular, do combate à pobreza faz desaparecer alunos e professores do Acordo, evidenciando um diálogo de mercado para mercado no qual bebes-alunos aparecem como trabalhadores do futuro numa cínica potencialização dessa força de trabalho do porvir. Por isso, a reforma em curso contempla de forma inseparável três grandes eixos – gestão, avaliação e formação de professores – tanto na Educação Infantil, quanto no Ensino Fundamental.


    1. A gestão

      Sob a justificativa de melhorar a qualidade da aprendizagem, o Acordo faz uma série de avaliações relativas à gestão escolar. Critica a capacidade dos diretores de escola em exercer suas funções com as seguintes palavras:



      La gestión de la red de la SME presenta varios desafíos. En cuanto a los directores de escuelas, pese a contar con un sistema participativo de elección de los mismos, su calificación para gestionar las escuelas es una cuestión pendiente, así como la virtual continuidad en sus cargos. Diseñar un nuevo modelo de elección y asignación y mejorar sus opciones de calificación, aparecen como un elemento necesario para mejorar la gestión e implementar con éxito mejoras de la calidad educativa. (BID, [2013], p. 5)


      Atribuindo à qualificação do diretor escolar e ao sistema de eleição a responsabilidade por padrões pouco producentes de gestão e qualidade educativa, o Regulamento Operativo (BID, 2012, p. 20, grifo nosso) expõe a pretensão do BID: “o projeto financiará a contratação de um estudo com o intuito de propor mudanças que tornem mais meritocrático o processo de seleção, contratação e alocação de gestores escolares da rede municipal.”. O Projeto complementa esse propósito:


      Mejorar los procesos de selección de gestores escolares y los criterios para su elección, privilegiando los aspectos vinculados a la capacidad y experiencia en la gestión y al conocimiento de cuestiones educativas y pedagógicas, así como capacitar directores y supervisores de EI, EF y del equipo central de la SME (BID, [2013], p. 8).


      Supomos que este processo aprofundará as transformações no trabalho do diretor das escolas da RME, estudadas por Cardoso (2008). Em sua dissertação, constatou que no período de 1997 a 2007 houve


      uma nova concepção de gestão para o setor público e muitos princípios do gerencialismo, tão recomendados por Organismos Multilaterais, foram introduzidos nas escolas municipais por uma empresa privada. [...] foi possível afirmar que o trabalho do diretor sofreu profundas transformações com essa reforma da gestão, o que acarretou sobrecarga nas atribuições administrativas e o distanciou, contra a sua vontade, do fazer pedagógico, aproximando sua prática àquela de um gerente escolar. (Cardoso, 2008, p. 6).


      O que se tem em vista é um maior controle na seleção de diretores, hoje eleitos pela comunidade escolar, procurando garantir-se que o profissional

      escolhido para a função aplique com mais eficiência as políticas da SME, deslocando-o de compromissos com o Projeto Político-Pedagógico construído no local de trabalho, com a participação da comunidade escolar, e com outras inspirações que não as da formação para o mercado de trabalho.


    2. A avaliação

      No Acordo PMF-BID o eixo avaliação é central e desafiante para o banco, pois o tema da avaliação em massa por meio de escalas ha sido políticamente sensible:

      [...] como en el resto de las redes municipales de Brasil, la SME carece de prácticas de monitoreo y evaluación rutinaria de la calidad de los servicios, reflejando las condiciones de infraestructura y de trabajo de los docentes, la implementación de las propuestas pedagógicas, y de otros insumos necesarios para asegurar la calidad de servicio brindado. (BID, [2013], p. 5).


      A avaliação de crianças pequenas por meio de escalas, como o ITERS e o ECERS, almeja consolidar a tendência de que as avaliações educacionais foquem seus objetos nos comportamentos de gestores, professores e estudantes, ao invés de nos processos educacionais. No Acordo, a rede aparece como laboratório para o aprimoramento desse tipo de avaliação que, sem engano, tem a ver com a vinculação do trabalho docente ao desempenho dos estudantes. É o que fica claro nas argumentações a seguir:


      La EF, además de la Prova Brasil cuenta con una herramienta poderosa para evaluar el rendimiento de los alumnos: la Prova Floripa que, realizada anualmente, abarca todos los años focalizándose en portugués y matemática, pero cubriendo también temas de otras disciplinas. Este instrumento tiene algunas oportunidades de mejora. Dado el diseño del mismo y la estrategia de autoaplicación, los resultados no son comparables entre escuelas, ni en el tiempo. Esta herramienta no ha sido apropiada por la red en cuanto a su uso para la mejora de la gestión a nivel escolar y de la sala de aula, sub aprovechándose las potencialidades que tiene para orientar acciones de monitoreo, apoyo a la red y de capacitación de los profesores: la SME ha concentrado sus esfuerzos en el diseño y aplicación de la prueba, em desmedro de las más estratégicas acciones mencionadas anteriormente de mejora de la gestión a nivel escolar y de sala de aula. (BID, [2013], p. 5-6).

      O estudo realizado pela FCC objetivou demonstrar que as crianças que frequentam a pré-escola obtêm melhor desempenho em avaliações futuras, razão pela qual a reforma articula temas e metas de aprendizagens na EI e no EF. Confirma-se a ideia-força: Florianópolis é um campo de experimentação e amadurecimento de propostas de políticas educacionais, estabelecendo novas formas de dominar os professores:


      La evaluación de impacto ex post del proyecto arrojará pruebas empíricas para cerrar las brechas de conocimiento en el sector, que fueron identificadas en el documento de proyecto o el plan de evaluación. [...] La evaluación busca generar evidiencia sobre programas de acompañamiento en la región, en donde hasta el momento no hay estudios empíricos concluyentes (BID, [2013], Anexo I, p. 1, negrito nosso).


      Tomados de assalto, a formação e o trabalho docente, a gestão da rede e os próprios alunos serão submetidos à permanente sabatina elaborada por experts – aí a FCC logrou obter seu nicho de exploração – ou um monitoreo rutinario (!):


      La SME recibirá apoyo especializado para realizar uma revisión crítica y adaptación a la realidad brasilera de instrumentos internacionales que permitan a los profesores y auxiliares evaluar el desempeño y aprendizaje de los niños. Existirá un vínculo estrecho entre estas actividades de monitoreo y las de capacitación; y v) diseñar e implementar las evaluaciones de proceso y de los impactos generados por el programa (BID, [2013], p. 8, negrito nosso).


      A entrada do BID como “banco educador” na rede municipal vem acompanhada pela força da ideologia burguesa que se apoia na gestão, na avaliação e no controle social como meios de impor a noção de que professores e alunos só produziriam resultados “eficientes” na medida em que fossem submetidos permanentemente ao escrutínio, enquanto que “muitos aspectos que interferem no aprendizado por parte dos estudantes, são desconsiderados, recebendo atenção maior o rendimento dos alunos em testes ou provas que intentam mensurar seus conhecimentos” (Zanardini, 2012, p. 74). Os resultados das avaliações de larga escala propiciam as condições para a alavancagem de

      novos processos de mercadorização da educação, por exemplo, ao fornecer dados, pretensamente neutros e científicos para fomentar verdadeiras indústrias de formação ou capacitação de professores, coaching, entre outras. Estamos diante de um grave solapamento do conteúdo de humanidade de professores e estudantes na rede de Florianópolis a serviço do mercado. Neste sentido, a profunda reforma em andamento encontra, certamente, na avaliação um instrumento “eficiente” aos seus desígnios.


    3. A formação docente

    As questões atinentes ao docente vêm envolvidas por uma perspectiva empobrecedora mediante a qual os professores são meros objetos do Acordo: não são produtores de conhecimento sobre a rede, sobre seu trabalho, sobre a escola, sobre o aluno ou sobre a gestão. O lugar de produção de conhecimento sobre a rede foi preenchido pela Fundação Carlos Chagas (além da Unisul/SC e da Universidade de Juiz de Fora/MG), contratada sem licitação,


    por un período de hasta 48 meses a la Fundación Carlos Chagas, [...], por un monto de hasta US$800 mil, para la provisión del diseño e implantación del sistema de monitoreo de la calidad de los servicios de EI. [...] Esta consultoría, además de desarrollar el mencionado sistema, evaluará la calidad del 100% de los establecimientos educativos de EI. La fundación [...] combina capacidades de diseño e implementación de sistemas, de capacitación y de diálogo y consenso, vitales para esta actividad pionera en Brasil. (BID, [2013], p. 13, negrito nosso).


    Aprofunda-se uma lógica marcadamente presente nas políticas educacionais: o Estado e as Organizações Multilaterais apresentam inúmeras preocupações em relação aos professores e, embora tergiversem, o que lhes interessa é sobretudo inibir suas capacidades de lutas e resistências contra as reformas, ademais de providenciar repasses de recursos públicos para instituições privadas. Certamente é preciso construir uma racionalidade que justifique tal Acordo e ressalta-se a desqualificação dos profissionais da RME, especialmente do docente, posto que, para o BID, suas mayores fragilidades se encuentran en las actividades ofrecidas en el aula [...] algo directamente

    relacionado con la inadecuada formación de los profesores [...]. (BID, [2013], p. 3- 4).

    Esse modus operandi é marcado por um caráter autoritário e avesso à participação de trabalhadores, familiares e crianças nos destinos da RME. Um ardil central para a formatação e subordinação do professor ao Acordo encontra- se na mudança da carreira e num sistema de avaliação ainda não inteiramente explicitados. No Regulamento Operativo (BID, 2012, p. 4) se prevê a “contratação de consultoria para revisão do Plano de Carreira do Magistério”; no Projeto (BID, [2013], p. 7) se propõe mejora de la evaluación del profesor para agregar otros aspectos vinculados a su desempeño, además de los ya utilizados como capacitación y años de servicio. Na análise econômica afirma-se que


    [...] não há, ainda, uma ação de política educacional que resulte em melhores salários para os profissionais melhor qualificados e que, efetivamente, coloquem em sua prática diária na sala de aula tal qualificação no futuro. Entretanto, no componente 2, umas das atividades é exatamente propor um redesenho da carreira docente com este objetivo, e que poderá servir como parâmetro futuro para a mensuração dos supostos benefícios diretos a tais profissionais (BID, 2010, p. 3, grifo nosso).


    Uma vez que a Rede possui uma política de progressão na carreira, garantida por lei (Florianópolis, 1988), que leva em conta o tempo de serviço e assiduidade, acesso (mudança de categoria funcional de acordo com o nível de formação) e aperfeiçoamento (participação em cursos de formação continuada), o excerto insinua que estes aspectos não contribuem efetivamente para a melhoria da prática pedagógica do professor, o que soa como um contrassenso ou mesmo uma provocação, dada a luta da categoria pela manutenção de seu plano de carreira.

    Outra política sugere uma desqualificação do professor, a implantação do sistema de coaching:


    O sistema de assistência técnica a professores (coaching) beneficiará inicialmente 1.400 profissionais que atuam em sala de aula, ao longo de 3 anos da execução do Projeto [...]. Esse sistema será desenvolvido por consultoria especializada, a qual proporá também o melhor mecanismo para seu funcionamento:

    presencial, semi-presencial ou totalmente remoto (virtual). Esse serviço se alimentará de dados coletados no Sistema de Gestão da RME, a ser desenvolvido e implantado com recursos do Projeto, e permitirá que professores recebam uma avaliação do seu desempenho em sala de aula, e instruções para aprimorá-lo, a partir da observação in loco ou de gravações (vídeo) feitas nas unidades educativas e enviadas para a SME. (BID, 2012, p. 17, grifo nosso)


    De fato, o trabalho do professor será esquadrinhado, seja em sala de aula, seja em outras atividades – como as ligadas à gestão – porque seu pecado capital é o de ser “frágil” em sala de aula, ser mal formado, ser débil nas atividades pedagógicas que implementa, não praticar o uso ativo da língua para que as crianças possam aprender ciência e matemática (BID, [2013]). As inúmeras “falhas” dos professores não impedem que seja reconhecido como el recurso más importante (BID, [2013], p. 5) do processo educativo, razão pela qual urge mejorar la selección, contratación y entrenamiento de profesores para atender esta nueva demanda, además de la necesidad de fortalecer los procesos de acompañamiento (coaching) a todo el cuerpo docente (BID, [2013], p. 5), entendido como un sistema de acompañamiento a los profesores al frente de classe (BID, [2013], p. 5). O sistema de assessoramento para docentes eficazes contará com instrumentos adicionales de diagnóstico de lecto-escritura y matemática [...], así como instrumentos de diagnóstico de prácticas en el aula. (BID, [2013], p. 15). Propõe-se ademais a construção de uma plataforma de formación permanente para los docentes (BID, [2013], p. 8).

    No que se refere à melhoria da qualidade da Educação, entre outras medidas, deverá ser revisto o


    proceso de selección y contratación de profesores, incorporando módulos de práctica docente en los concursos, así como la revisión del período de prueba por el que pasan los profesores contractados; ii) la formación y calificación de profesionales de educación con cursos de capacitación en educación integral, contenidos específicos y habilidades pedagógicas requeridas para cada nivel, con énfasis en mejorar las capacidades en la sala de aula [...]; iv) la elaboración de una propuesta de matrices curriculares para la educación básica (0 a 14 años), que orienten la atención en tiempo integral y que faciliten las transiciones de un nivel educativo al siguiente; v) el desarrollo de proyectos de enseñanza de matemática, portugués y ciencia, y de utilización de tecnologías de información en la clase que refuercen los

    desempeños y la permanencia en el sistema escolar. (BID, [2013], p. 7).


    As observações feitas pelo BID sobre os professores da Rede não soam bem. Admite que existe un cuerpo de profesores con buen nivel de formación, 68,7% que cuentan con alguna especialización además de la formación básica y 10% con maestrías, mas tal formação não seria suficiente dado que problemas de desempenho refletiriam nas notas obtidas pelos alunos, em português e matemática, na Prova Brasil de 2010. (BID, [2013], p. 4). O não alcance dos escores desejados justificaria a prática de coaching a todos os professores, melhorando não apenas sua prática pedagógica, como a própria gestão da escola e da sala de aula. (BID, [2013]). Para o Banco, investir na capacitação e acompanhamento do professor para o melhor desempenho dos alunos é uma “evidência robusta” comprovada pela literatura (sic) da área (BID, [2013], Anexo I,

    p. 1). Trata-se de fato de um ataque frontal ao professor, particularmente no serviço de coaching, também denominado mentoría, escrutínio direto da ação docente cujos desdobramentos meritocráticos estão explícitos. Há aqui um objetivo de produção de alienação: o professor é basilar na escola dado que interfere diretamente na formação humana objetivada nas relações ensino- aprendizagem.


  4. Considerações finais

O esforço analítico por nós realizado foi o de compreender as determinações mais gerais que possibilitaram o Acordo PMF-BID, embora não estejam claras todas as negociações que o envolveram. De todo modo, foi possível verificar que, numa economia capitalista dependente como a nossa, as burguesias internas procuram apropriar-se do fundo público, convertendo-o em fundo de acumulação do capital. Também os recuos nas políticas sociais podem ser entendidos por esse viés: a contrarreforma transfere a riqueza social para esse fundo. Não é outro o sentido do que vive o país nesse momento histórico, meados de 2016, quando os interesses burgueses internos, articulados aos interesses internacionais, lançam mão de todas as suas armas para manterem suas condições de acumulação e espoliação do trabalhador brasileiro. Nesse

âmbito encontramos o sentido das mudanças propostas para a Educação pública municipal.

Interessou-nos chamar atenção para o modo como o discurso presente nos documentos do BID e da PMF procura tornar o Acordo uma necessidade, especialmente porque os recursos financeiros, objeto do contrato, conduziriam à qualidade da educação referenciada nos padrões internacionais da OCDE e, assim, ao sucesso no mercado de trabalho em um futuro imprevisível. Aos interesses econômico-políticos presentes na PMF confere-se uma aparência de demanda social, impondo-se um projeto educativo aos professores e alunos e à sociedade calcado sobre padrões de qualidade produtivistas e meritocráticos. Estamos frente a uma armadilha de convencimento poderosa, pois sobre a ideia de melhoria da qualidade da educação, da qualificação de capital humano, da conquista da empregabilidade acusa-se os professores da rede de frágeis e sutilmente se responsabiliza as universidades públicas pelo seu despreparo. Faz parte desse discurso de justificação da reforma e de produção de consentimento um argumento que apela à vaidade dos incautos: tornar as práticas exitosas da RME um padrão internacional (Florianópolis, 2014). Mas, quanto realmente vai custar para a população produzir essa demanda de qualidade internacionalizada?


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Recebido em: 27 de março de 2017 Aprovado em: 15 de maio de 2017 Pubicado em: 4 de junho de 2017