José Barata-Moura3
Agradeço ao Professor Doutor Domingos Leite Lima Filho, e à Universidade Tecnológica Federal do Paraná, a amizade no acolhimento em Curitiba, e a honra de um convite para esta palestra.
Escolhi, como tema para hoje, uma pequena meditação sobre o pensar filosófico.
Funciona, para mim, como uma ocasião mais de reencontro com uma companhia antiga.
O meu contacto com a filosofia – num cara-a-cara quotidiano – ultrapassou já as fronteiras do primeiro meio século.
Aprendi muito. Ainda sei pouco. Duvido que tenha ensinado grande coisa – não obstante, profissionalmente, esse ser o meu ofício. Prossigo – sem fingimento do prazer – nas minhas buscas.
Desiludam-se, porém.
1 DOI: https://doi.org/10.22409/tn.15i27.p9632
2 Conferência de abertura do III Intercrítica, proferida em agosto de 2015, na Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UFTPr). Texto conforme enviado pelo autor.
3 Universidade de Lisboa.
Não esperem desta fala nem um panegírico encantado da dama bem- amada, nem umas cachoeiras de sabença para lavagem dos porões e deslumbramento das gentes, nem uma revelação bombástica dos «segredos» do negócio, nem um relato divertido de anedotas e episódios da vida de um andarilho caixeiro-viajante.
Procurarei tão-só dar-vos conta de umas coisas que me foram acontecendo ao pensar. Que, para mim, têm valor de uso. Mas que, só na circulação da troca com a vossa experiência pensada, poderão realizar algum benefício em efectivo.
Aliás, «conferência» é – numa dupla vertente – um partilhado acto de conferir.
Como entrega de um pensado que, pensando, se expressa.
E como con-fronto crítico de aquilo que vai sendo escutado com as vivências re-flectidas que, em cada um dos auditores sedimentadas, se revolvem.
Uma con-ferência é um abandono em desafio à relação.
Costumam comparar-se os discursos à espada de Carlos Magno. Que era, ao que consta: chata, e comprida.
No que toca ao comprimento, talvez consiga abreviar; mas da chateza, vocês não ficarão livres.
Comecemos, então.
Haverá umas almas devotas que se inclinam para o culto da santa em recinto fechado. Não comungo destas predilecções pela clausura. Mesmo quando o claustro tem canteiros floridos, e arejo na ventilação.
O pensar não é uma coutada exclusiva. Com acesso reservado. Aonde somente aos sócios do «Clube da Filosofia», e com a quotização em ordem, está permitido o recreio nessas actividades.
Nos tempos de Marx, «a batida sagrada» (die heilige Hetzjagd) estava dirigida contra «o espectro do comunismo» (das Gespenst des Kommunismus)3.
Mas outros calejados dialécticos fizeram da «caçada» um uso mais metafórico.
Nicolau de Cusa, por exemplo, chamou aos filósofos «caçadores da sabedoria» (venatores sapientiae)4, num como desenvolvimento, aliás, das velhas alusões de Platão a uma «caça» () do «saber fundamentado» ()5, mediante a procura do «verdadeiro» () e a pergunta por
«aquilo que é» ( )6.
No entanto, o matagal para as expedições cinegéticas do pensamento é campina aberta.
O porte de arma requer perícia, e algum treino; mas não carece de licença. E os praticantes regulares da função excedem largamente o rol dos que têm ficha arquivada nos cadastros do grémio.
Na diferença das porções do ser que se interrogam, da maneira e das incidências no interrogar:
Os cientistas pensam. Os poetas pensam. O engenheiro pensa. Os artistas pensam. O homem comum pensa. As crianças… pensam.
Não obstante, ocorre que é própria dos filósofos uma ocupação com o
pensar.
3 «Ronda um espectro pela Europa – o espectro do comunismo. Todos os poderes da velha Europa se coligaram numa batida sagrada contra este espectro: o Papa e o Tsar, Metternich e Guizot, radicais franceses e polícias alemães.» -- «Ein Gespenst geht um in Europa – das Gespenst des Kommunismus. Alle Mächte des alten Europa haben sich zu einer heiligen Hetzjagd gegen dies Gespenst verbündet, der Papst und der Zar, Metternich und Guizot, französische Radikale und deutsche Polizisten.», Karl MARX -- Friedrich ENGELS, Manifest der Kommunistischen Partei (1848); Marx-Engels Werke, ed. IML (doravante: MEW), Berlin, Dietz Verlag, 1974, vol. 4, p. 461.
4 «Os filósofos, contudo, não são senão caçadores da sabedoria, que cada um a seu modo investiga, à luz da lógica que lhe é conata.» -- «Nihil enim sunt philosophi nisi venatores sapientiae, quam quisque in lumine logicae sibi conatae suo modo investigat.», NICOLAU DE CUSA, De Venatione Sapientiae (1463), I, n. 5; Philosophisch-theologische Werke, ed. Karl Bormann, Darmstadt, Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 2002, vol. 4, p. 10.
5 Cf. PLATÃO, Político, 264 a.
6 Cf. PLATÃO, Fédon, 66 bc.
Para além de existirem, porventura, traços característicos do modo
filosófico de se embrenhar pelo pensamento.
Os quais – por certo, e documentadamente – se vêm a plasmar numa multidão de doutrinas, disparam por sendeiros metodológicos diversos, reflectem imagens distintas do mundo e da vida, aportam a balcões de perspectiva e a posicionamentos existenciais diferenciados.
O que acarreta, na aparência, compreensíveis distúrbios. E as queixas são antigas.
Desde o batido argumento cepticista de que, perante a «diafonia» () ou a discrepância das opinações, o melhor é suspender o juízo (a famosa )7, até à observação irónica de Descartes – recolhida, aliás, de Cícero --, segundo a qual não se pode imaginar uma coisa que, por mais disparatada ou mais incrível, não tenha sido dita já por algum dos filósofos8.
No entanto, a perturbação profunda, a meu ver, transparece de outro
canto.
Quando deparamos com esporádicas situações de desgraça em que
diplomados – profissionais da Filosofia com certidão carimbada, e títulos vários
– multiplicam, por vezes em ambiente escolar, os sintomas de não possuirem um vislumbre sequer do que seja propriamente a experiência do pensar.
Seguramente que se podem expôr em calhamaços, e despejar nas aulas, catervas de opiniões dos filósofos mais ilustres.
E, apesar de tudo, podemos ficar pelo pórtico, sem verdadeiramente
entrar.
7 Cf. SEXTO EMPÍRICO, Hipotiposes pirrónicas, I, n. 165.
8 «Não se poderia imaginar nada de tão estranho, e de tão pouco crível, que não tenha sido dito por algum dos filósofos» -- «On ne saurait rien imaginer de si étrange et de si peu croyable, qu’il n’ait été dit par quelqu’un des philosophes», René DESCARTES, Discours de la Méthode, pour bien conduire sa raison et chercher la vérité dans les sciences (1637), II; Oeuvres, ed. Charles Adam e Paul Tannery, reimpr. Paris, Librairie Philosophique Jean Vrin, 1996, vol. VI, p.
16. A propósito da pitagórica dietética, em que a ingestão de favas era objecto de interdito, a fim de não perturbar a boa qualidade dos sonhos, Cícero comenta: «Mas ignoro de que modo nada de tão absurdo possa ser dito que não tenha sido dito [já] por algum dos filósofos.» --
«Sed nescio quo modo nihil tam absurde dici potest quod non dicatur ab aliquo philosophorum.», Marcus Tullius CICERO, De divinatione, I, LVIII, n. 119.
Somos capazes de descrever, com minúcia, o que «lá» está. E até de um modo correcto. Mas nós não pensamos lá.
Somos capazes de enunciar sentidos à «matéria». Mas, para nós, é um madeiro que não faz sentido.
Conhecemos os filosofemas. Mas não investimos pelo filosofar. Terrível exigência a deste nosso mester:
Sem exercício efectivo do pensar, não há filosofia. Haverá umas movimentações de vultos pelo palco, uma lenga-lenga de ruídos que parecem som; mas falta a festa.
Pensando, estamos juntos de nós mesmos. No aconchego da nossa
«casinha».
É o momento subjectivo da «vivência» do pensar.
Um território «endógeno» ao qual Ortega y Gasset tantas vezes aludiu. Mesmo se para o converter em moldura (idealista) de um «mundo» (representado) de que nos incumbiria o resgate da perdição no anonimato:
«Eu sou eu e a minha circunstância, e se não a salvo a ela não me salvo
eu.»9.
O momento subjectivo do pensar afeiçoa-nos – até na cartesiana dúvida
– a uma presença com-partida da intimidade.
Todavia – mesmo no dilacerado das cisões, e no indecidido das hesitações – nós pensamos o real.
Assentados, mas não sentados, na deveniência concreta do ser – que habitamos, e onde vamos sendo. Numa acidentada, mas constante, dialogia com ele. No horizonte prático de um viver que se prolonga.
Pensamos no real.
Mas, acaso, o mais importante é que pensamos de dentro do real, e a partir dele.
9 «Yo soy yo y mi circunstancia, y si no la salvo a ella no me salvo yo.», José ORTEGA Y GASSET, Meditaciones del Quijote (1914), Lector…; ed. Julián Marías, Madrid, Ediciones Cátedra, 19843, p. 77.
Pensamos de dentro do real, quando o descrevemos em conto, e o medimos com a régua. Quando intentamos compreendê-lo. Quando procuramos orientação no mundo – inclusivamente, no nosso mundo dos afectos (que não é só um quartito esconso na cave monadológica: sem janelas10, e com pouco ar).
Pensamos ainda de dentro do real, quando nos enganamos. Quando distorcemos. Quando mentimos. Quando soltamos as rédeas no galope à imaginação. Quando trans-gredimos a positividade rigidificada do existente, assestando o rumo a outras andanças e a figuras transformadas do ser.
Continuamos a pensar o real, e de dentro do real, mesmo quando – num enredo de aflições – pretendemos converter a cogitação num sofisticado aparelho de fuga para os subúrbios desempestados de uma «realidade» pestilenta.
O nosso pensar está efectivamente montado sobre um viver.
Caberia evocar aqui uma bela e ajustada expressão de Marx. Musicalmente soa muito bem no alemão, mas vale a pena meditar nela, não apenas pelos seus atributos estéticos:
10 A expressão é de Leibniz. E, a partir dela (e do património que condensa), muitas outras peregrinações ao íntimo foram tentadas. Segundo a metafísica leibniziana, «as Mónadas não têm de todo janelas» (les Monades n’ont point de fenêtres), porque «cada Mónada é um espelho vivo, ou dotado de acção interna, representativo do universo, segundo o ponto de vista dela, e tão regulado quanto o próprio universo» -- «chaque Monade est un miroir vivant, ou doué d’action interne, representatif de l’univers, suivant son point de veue, et aussi reglé que l’univers luy même». Cf. Gottfried Wilhelm LEIBNIZ, Monadologie (1712-1714), 7, e Principes de la Nature et de la Grace, fondés en raison (1712-1714), 3; Die philosophischen Schriften, ed. Carl Immanuel Gerhardt (doravante: PS), reprod. Hildesheim, Georg Olms Verlagsbuchhandlung, 1965, vol. 6, respectivamente, pp. 607 e 599. Como fundamento e instância reguladora deste harmonismo, emerge uma criativa actuosidade teogénica. Porque
«Deus é tudo em todos» (Dieu est tout en tous), «somente Deus faz a ligação ou a comunicação das substâncias, e é por ele que os fenómenos de uns se encontram e se acordam com os de outros, e que, por consequência, há realidade nas nossas percepções» --
«Dieu seul fait la liaison ou la communication des substances, et c’est par luy que les phenomenes des uns se rencontrent et s’accordent avec ceux d’ autres, et par consequent qu’il y a de la realité dans nos perceptions». Cf. LEIBNIZ, Discours de Métaphysique (1686), § 32; PS, vol. 4, respectivamente, pp. 457 e 458. A via da harmonização monadológica na constituição transcendental intersubjectiva do mundo objectivo teve também outras derivas, e cultores. Cf., por exemplo, Edmund HUSSERL, Cartesianische Meditationen. Eine Einleitung in die Phänomenologie (1929), § 49; Gesammelte Werke (Husserliana), ed. Hermann Leo Van Breda, Den Haag, Martinus Nijhoff, 19732, vol. I, pp. 137-138.
«A consciência» (das Bewußtsein) é «o ser consciente» (das bewußte Sein), e «o ser dos humanos» (das Sein der Menschen) é o seu «processo [efectivamente] real de vida» (wirklicher Lebensprozeß)11.
Acresce que, no plano ontológico, o ser não se reduz ao momento imediato de cada existência isolada.
A historicidade empapa – de movimento, de mudança, de transformação
– o corpo mesmo de aquilo que (tantas vezes, para o fixar) chamamos o real.
Ao contrário do que com frequência se supõe: identidade não é mesmidade.
A identidade é sempre uma unidade em processo, que entrelaça e reconfigura a mediação do «mesmo» e do «outro».
Por outra parte, o pensar – no seu modo, modelação, e modulações – não é de todo estranho à qualidade, ao espessor, à densidade, do nosso viver.
O pensar requer e mobiliza uma protagonização.
Kant converteu o assumir desta atitude em emblema daquele programa de Luzes (Aufklärung)12 – procuradas, e acendidas – que há-de alicerçar-se num exercício da autonomia:
«Pensar por si» (Selbstdenken).
Pondo a uso a razão. Submetendo tudo ao tribunal de uma dilucidação crítica reflexiva. Desinibindo uma criatividade própria. Soltando-se das tutelas que do «Alto» comandam, e das andadeiras que do lado pastoreiam, uma
«menoridade» acomodada, tolhida, heterónoma. Para abrir o passo à liberdade de se dar um destino.
O comentário de Hegel é contundente.
11 Cf. MARX-ENGELS, Die deutsche Ideologie. Kritik der neuesten deutschen Philosophie in ihren Repräsentanten Feuerbach, B. Bauer und Stirner, und des deutschen Sozialismus in seinen verschiedenen Propheten (1845-1846), I, A; MEW, vol. 3, p. 26.
12 Cf. Immanuel KANT, Beantwortung der Frage: Was ist Aufklärung? (1784); Gesammelte Schriften, ed. Königlich Preussische Akademie der Wissenschaften (doravante: AK.), Berlin, Georg Reimer, 19232, vol. VIII, pp. 53-61.
Pela defenestração seca dos aguados fantasismos românticos que no dito de Kant julgavam encontrar peanha para as entronizações flamantes do meramente «subjectivo»:
«”Omeu pensar próprio” é propriamente um pleonasmo. Cada um tem que pensar por si [mesmo]; ninguém pode pensar pelo outro.»13.
Há, sem dúvida, um momento subjectivo. Imprescindível na activação do pensar. Sem a comparência do qual, ele seria nulo.
Todavia, este requisito interno, necessário, não é condição suficiente. Porque nos deixa encapsulados numa «redoma», num reduto isolado e abstracto, ao qual falta a concreção das determinações e dos seus desenvolvimentos.
O pensamento pode ser acto solitário, mas nunca pensamos sozinhos. Tal como o ser, o pensar apenas se dá no marco da relacionalidade.
Pensamos em relação com o mundo. Pensamos desde, e na respiração de, uma cultura. Pensamos e vivemos sempre em comunidade – mesmo quando dela estamos fisicamente apartados, ou quando apetecemos apartar- nos do seu convívio directo.
O nosso singularismo, a nossa individualidade – aspectos que não são para votar ao menosprezo – somente ganham efectiva estação no incontornável contorno de uma trama complexa e lábil de relacionamentos.
O próprio Kant – à maneira do seu idealismo transcendental, um pensador profundo da realidade – não deixou, aliás de conferir o devido destaque a esta vertente.
Ouvimos, com frequência, dizer que ninguém nos pode retirar «a liberdade de pensar» (die Freiheit zu denken). Mas logo Kant se apressa a contrapôr:
«Quanto haveríamos nós de pensar, e com que correcção [Richtigkeit], se não pensássemos de algum modo [gleichsam] em comunidade com outros
13 «”Mein eigenes Denken” ist eigentlich ein Pleonasmus. Jeder muß für sich denken; es kann keiner für den anderen denken.», Georg Wilhelm Friedrich HEGEL, Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie, Einleitung, B, 2, a; Theorie Werkausgabe, red. Eva Moldenhauer e Karl Markus Michel (doravante: TW), Frankfurt am Main, Suhrkamp Verlag, 1971, vol. 18, p. 80.
[in Gemeinschaft mit andern], com os quais partilhamos os nossos pensamentos, e que partilham os deles connosco?»14.
E, apesar das incompreensões no que a Hegel diz respeito, seria de não esquecer aqui um celebrado aforismo de Feuerbach:
«A verdadeira dialéctica não é nenhum monólogo [kein Monolog] do pensador solitário consigo mesmo; ela é um diálogo [ein Dialog] entre Eu e Tu.»15.
No patamar intersubjectivo da descoberta conjunta, e da feitura, do mundo e da vida, esta observação de Feuerbach tem, pela certa o seu fundamento. Não obstante, é indispensável não perder também de vista todas as demais dialécticas (subjacentes, e adjacentes) que, conferindo arcaboiço aos tabuleiros da comunicação, e modelando-lhe o viso determinado dos conteúdos, enterram o seu raizame na materialidade – histórica e humanamente mediada – do ser.
Seria, de resto, um interessante assunto mais para a reflexão filosófica.
Tendo por fundo esta paisagem ontológica, vale, então, perguntar:
Que traços característicos, muito genéricos, poderíamos nós discernir no pensar filosófico?
Vou cingir-me a uns quantos apontamentos.
Esqueléticos na ossatura, e telegráficos no percutir da tecla.
A crítica. Um rastilho muito palrado, mas que nem sempre serve de mecha ao detonar das meditações.
Criticar não é dizer-mal; é procurar ver bem.
14 «Wie viel und mit welcher Richtigkeit würden wir wohl denken, wenn wir nicht gleichsam in Gemeinschaft mit andern, denen wir unsere und die uns ihre Gedanken mitteilen, dächten!», KANT, Was heißt: sich im Denken orientieren? (1786); Ak., vol. VIII, p. 144.
15 «Die wahre Dialektik ist kein Monolog des einsamen Denkers mit sich selbst, sie ist ein Dialog zwischen Ich und Du.», Ludwig FEUERBACH, Grundsätze der Philosophie der Zukunft (1843),
§ 64; Gesammelte Werke, ed. Werner Schuffenhauer, Berlin, Akademie-Verlag, 19822, vol. 9, p. 339.
Tão-pouco criticar é contrapôr, de um modo abstracto e mecanista, enunciações que entre si se excluem. Uns ficam com a moral, outros com o subsistente, e o impasse prepara, não raro, uma saída elegante para o salão dos cepticismos.
O assunto em causa é outro.
A crítica é um exame: um fazer passar pelos «crivos» da racionalidade, e do discernimento, tudo aquilo que imediatamente se nos apresenta – ou nos é na bandeja oferecido – como uma «datidade» inquestionável.
Por isso o pensar filosófico aponta também a uma demanda de
fundamentação.
Não, como entono cadenciado de uma ladaínha de «motivos» justificantes.
Não, com o sorrateiro propósito de erigir solenemente «A Filosofia» em pedra angular inamovível de todo o edifício da ciência universal.
Mas, como porfiada linha de uma busca dos supostos que suportam e estruturam – inclusivamente, na sua dinâmica – tudo aquilo por cuja inteligibilidade importa que se pergunte.
E, para isso, há que cuidar de um estabelecimento correcto dos problemas.
A labuta do pensamento não visa simplesmente as respostas que, em prémio, hão-de obter-se.
Precisa de madrugar.
Começa mais cedo. Pela elaboração dos questionários.
As «soluções» não caem do céu. De paraquedas. Numa revoada de luz.
Ou no piar de um passarinho.
As vias resolutivas engendram-se, surgem, e transpiram, de dentro de uma problemática, que lhes define um horizonte.
Confirma-se que os filósofos parecem ter predilecção pelo accionamento de uma estranha maquineta que dá pelo nome sugestivo de «complicómetro».
Mas não é porque eles estejam possuídos por uma indebelável mania congénita de ensarilhar os lotes.
O sarilho está metido no próprio enredamento das coisas.
E para desenvencilhar a trama é preciso trazê-la à mastigação do pensamento.
Sem um ensaio de penetração inteligente na contraditoriedade complexa do real – nas suas distintas camadas, articulações, e movimentos – permanecemos apenas pela água rala de um presumível «conhecimento», circunscrito à representação dos «factos» momentâneos (mesmo quando fidedigna).
À míngua de remédio, ficamos sem remedeio encravados no lamaçal torço da imediatez existenciada.
Por isso, ao pensar filosófico igualmente incumbe empreender uma sondagem, e o desbravamento, do leque de possíveis – sobretudo, das possibilidades reais – que cada existência com-porta, e que ao adiante de si, pro-jecta.
Não, para fazer carreira no ramo a que se dedicam as conceituadas indústrias da vidência profética.
Não, para que a filosofia se reconverta num cosmopolita aeroporto espiritual de voos intercontinentais com aterragem feliz prometida nos impossíveis da «utopia» (que deseja tanto mais «os fins», quanto menos tem na conta os meios, e nem trabuca para os pôr de pé).
Não, para desembocar na confecção magnífica de um «dever-ser» moral (que deixa intacta a materialidade do ser, satisfeito por lhe sobrepôr uma generosa ordem normativa de sonhos).
Mas, para intentar compreender – e, no limite: transformar (o que não acontece sem a energia de um outro trabalho) – as realidades no seu devir. As quais, na estadia do presente, não só transportam carregos do passado nas cafurnas, como aproam a um por vir em carência de materialização.
Esbocei por alto – olhando para baixo – alguns rasgos, que rasgam.
No seu conjunto, e por trajectórias diversas, todos estes traços permitem explicar que a filosofia – sem dúvida que nem sempre, mas já desde a sua primeira aparição na Grécia antiga como instituto cultural – tenha podido apresentar-se, umas vezes, como perigosa ameaça ao império indisputado das representações hegemónicas, e, amiúde, como um luminoso marcador de incomodidades generalizadas.
Tudo por causa do trato que dispensa àquele indispensado interrogar molesto, que muita gente despede, mas de que ela não tem maneira de se despedir.
Na verdade da sua realidade, a filosofia -- por vocação -- é uma pro- vocação. Ao tirocínio do pensar.
Radical, no sentido que já Marx apontava, porque se alimenta de um descenso à raiz das coisas16.
Para -- na dialéctica materialidade dos seus processos -- as surpreender, abrir, e sopesar:
Criticamente. Fundamentadamente. Problematizadamente. Juntando sal na perspectiva. Trazendo sol à prospectiva.
Repete-se – pelo menos, desde Platão17 e Aristóteles18 -- que a filosofia principia com «o admirar-se» ( ).
Isso é certo. Se o entendermos bem, sobremaneira, no movimento que introduz.
Admirar-se não é infusão prolongada dos assombros da pasmaceira do basbaque. Com alguma agitação periférica, na quietude de um estupor conservado.
A estranheza, a perplexidade, a discrepância, que pressentimos – apanhadas na órbita do pensar – levam a que nos demos conta de que algo de
«esquisito» se passa, pelo qual é preciso inquirir.
E é deste enfaixado feixe de perguntas em incoação, e em equacionamento, que arranca a estrada em que se palmilha o caminho de tornar as coisas inteligíveis.
A inteligibilidade não vem de repente. Tem curvas, contracurvas, e recurvos. Em rigor, ela somente se alcança mediante um «dar razão» (
16 «Ser radical é agarrar a coisa na raiz.» -- «Radikal sein ist die Sache an der Wurzel fassen.», MARX, Zur Kritik der Hegelschen Rechtsphilosophie. Einleitung (1844); Marx-Engels Gesamtausgabe, ed. Günter Heyden e Anatoli Jegorow (MEGA2), Berlin, Dietz Verlag, 1982, vol. I/2, p. 177.
17 Cf. PLATÃO, Teeteto, 155 d.
18 Cf. ARISTÓTELES, Metafísica, A, 2, 982 b 12-13.
)19. Necessita de que se venham a estabelecer determinadas
conexões fundamentais.
É nesta onda, aliás, que, para Platão, o «filósofo» () é também o «filólogo» (): alguém que parte em busca da «razão» () de «aquilo que é» ( )20.
Todavia, na fidelidade ao preenchimento da sua missão vital, o pensar não pode ensimesmar-se nas delícias cogitativas do umbigo e das suas cercanias.
Nem perfazer-se em parálise do agir.
Nem esfarrapar-se num alibi pomposo para a renúncia ao nosso artesanato de viventes.
Marx trazia carradas de razão na caixa aberta da camioneta quando – castigando obediências filosóficas do seu tempo, e todas quantas, alhures no espaço e no tempo, de achaques aparentados enfermem – descarrega:
«Os filósofos têm apenas interpretado [interpretieren] o mundo de diversas maneiras [verschieden]; trate-se de o transformar [verändern].»21.
Porém, ao arrepio de algumas hermenêuticas precipitadas – vulgares na praça, e vulgarizadas em compêndio -- por onde acaso deambula algum remorso serôdio à cata de desobriga, entendo que esta sentença não configura um indiscriminado e peremptório decreto de expulsão a aplicar ao pensar filosófico sem mais tardanças.
Pelo contrário. Na dança, há contradança.
Um dos resultados principais das Teses sobre Feuerbach, a meu ver, consiste, precisamente, em – pelo aclaramento crítico da origem dos desmandos perpetrados, e pela instalação consistente num materialismo novo
– recolocar a filosofia no seu posto: que é também uma trincheira de combates. Não é fatal que a filosofia tenha que ir desaguar num oceano de consagração apoteótica (e espiritualmente assistida) das dominações vigentes
19 Cf. PLATÃO , República, VII, 534 b.
20 Cf. PLATÃO, República, IX, 582 e.
21 «Die Philosophen haben die Welt nur verschieden interpretiert, es kömmt drauf an, sie zu
verändern.», MARX, Thesen über Feuerbach (1845), 11; MEW, vol. 3, p. 7.
em cada episódio. Como fatal não é também que a ordem instalada – um sistema organizado de desordens, aliás – seja, por desígnio superior da Providência, inelutável.
No horizonte (e no miolo) de uma crítica que praticamente transforma, não perde funcionalidade (e dinâmica) o desempenho necessário de uma crítica teórica. Ou seja: o esforço racional por «conceber» (begreifen) a realidade – nas suas contradições (as flagrantes, e as atabafadas), e no seu processo de desenvolvimento (que abre o passo à realização de possibilidades novas, materialmente fundadas).
A metafísica – submetida ao império daquele ressequido primado da identidade abstracta que lhe enclausura o intervalo, e tolhe a movimentação – não logra triunfar das antinomias: opõe a «teoria» à «prática», e a «prática» à
«teoria».
A dialéctica, porém, pensa o concreto enlace de ambas. Porque constitui a bacia vascularizada por onde irrompe, na história dos humanos, o pulsar mesmo do ser.
O apregoado poder das ideias possui um limite material. Altera outras ideias. Por si, não transforma o mundo (a não ser nas algazarras do pregão).
E, na fronteira porosa destes tristes infortúnios, convém que não se esqueça: uma prática cega é o correlato confrangedor de uma teoria autista.
Na sua indeclinável premência, o desafio é, pois, outro: Compreender, para transformar; transformar, compreendendo.
De ordinário, passa despercebido. Mas, na realidade, é de ontologia política que Lénine está a falar, quando, castigando a tentação oportunista em que certos activismos atarantados se estatelam, adverte: «Sem teoria revolucionária não pode haver também movimento revolucionário.»22.
Começámos o périplo da faladura pelas cumeadas rarefeitas do pensar filosófico. E acabamos por vir parar às «planices» do quotidiano chão.
22 Vladímir Ilitch LÉNINE, Que fazer? Problemas candentes do nosso movimento (1902), I, d; Obras Escolhidas em Três Tomos, Lisboa – Moscovo, Edições Avante – Edições Progresso, 1977, vol. I, pp. 96-97.
Talvez, porque o pensar, sem os frumentos da vida, é um eixo ao rodopelo pela imensidão do vazio.
E porque o pensamento, apesar de tudo, constitui uma ferramenta com préstimo, nas carpintarias do nosso viver.
Faz falta pensar.
Até porque o desencorajamento a essa exercitação nos vem de mansinho soprado de não poucos quadrantes: É uma maçada, e só traz complicações…
Num mundo, onde simulacros e aparências nos são diariamente servidos como a ementa que esgota o deslavado das realidades sem encorpadura, urge ter «a coragem da verdade» (der Mut der Wahrheit) -- que, como Hegel sublinhava aos alunos, é «a condição primeira» (die erste Bedingung) que o estudo filosófico exige23.
O temor reverencial pela «Verdade» que soletrada se repete – sem que mereça as canseiras e distúrbios de uma investigação – poderá ser treinado em cantos e descantes de madrassa.
Mas a filosofia não é propriamente uma guitarrada para madraços assustadiços.
Partir em demanda do verdadeiro é uma autêntica expedição de esclarecimento pensante.
Supõe um mergulho na materialidade dialéctica do ser. No seu enrugamento. Nas suas relações retorsas. Naquele encaixado surdir das contradições que a polarizam. Para surpreender a unidade concreta que ela forma, sem desperdiçar a multiplicidade (com estrutura) de que ela se tece e entretece.
Trata-se de um endereço inexaurível, a cuja porta o pensar filosófico sempre acaba por ir bater.
São estes trajectos que Heraclito nos retrata, quando cuida de destacar:
23 Cf. HEGEL, Konzept der Rede beim Antritt des philosophischen Lehramtes an der Universität Berlin. Einleitung zur Enzyklopädie-Vorlesung (1818); TW, vol. 10, p. 404.
24 Cf. HERACLITO, Fragmento B 10; Die Fragmente der Vorsokratiker, ed. Hermann Diels e Walther Kranz, Berlin, Weidmannsche Verlagsbuchhandlung, 19568, vol. I, p. 153.
«A partir de todas as coisas, [o] uno» ( ), «e, a partir do uno, todas as coisas» ( )24.
E, no que diz respeito ao tabuleiro complementar – em que as fainas se rebatem sobre quem as leva a cabo --, invocaria também, à saída, uma cutilada famosa.
Nesta formulação, provém de Henri Bergson. Sendo recomendável, no entanto, fornecer-lhe um sortimento (ontológico, e prático) acentuadamente distinto da mobília (idealista) peculiar que o autor lhe havia encomendado. Reza assim:
«É preciso agir como homem de pensamento, e pensar como homem de acção.»25.
A frase é lapidária no sonante da soada. Mas não nos dispensa dos transpirados suores da lapidação trabalhada.
O viver, tal como o pensar – que nós apanhamos sempre na marcha, com a composição em andamento --, des-equilibram ao feituro. São um permanente a-fazer do por fazer.
Sentir-me-ia gratificado se as minhas palavras desta tarde – pobres, a despeito das exuberâncias do verbo – houvessem, de alguma maneira, contribuído para o reforço de uma sensibilização ao grato empreender destas aventuras de descobrimento.
Muito obrigado, pela permanência paciente da vossa escuta.
Lisboa, Julho de 2015.
Recebido em: 08 de outubro de 2017 Aprovado em: 26 de outubro de 2017 Publicado em: 5 de dezembro de 2017
25 «Il faut agir en homme de pensée et penser en homme d’action», Henri BERGSON, L’Académie Française vue de New York par un de ses membres (1935); Écrits et Paroles, ed. Rose-Marie Mossé-Bastide, Paris, Presses Universitaires de France, 1959, vol. III, p. 613.