V.21 nº 44 / jan-abr (2023) ISSN: 1808-799 X
Universidade Federal Fluminense Faculdade de Educação
NEDDATE - NÚCLEO DE ESTUDOS, DOCUMENTAÇÃO E DADOS SOBRE TRABALHO E EDUCAÇÃO
REVISTA TRABALHO NECESSÁRIO: http://periodicos.uff.br/trabalhonecessario
Redação: R. Professor Waldemar Freitas Reis, s/n°, bloco D, sala 525, Gragoatá - São Domingos, Niterói - RJ, CEP 24210-201 - revistatrabalhonecessario@gmail.com
EDITORES
Lia Tiriba, Jacqueline Botelho e Regis Arguelles
CONSELHO EDITORIAL
Caridad Perez García (UCPEJV – Cuba), Celso Ferretti (UNISO - Brasil), Gaudêncio Frigotto (UFF / UERJ- Brasil), José Claudinei Lombardi (UNICAMP – Brasil), Maria Ciavatta (UFF - Brasil), Roberto Leher (UFRJ - Brasil), Tomás Rodrigues Villasante (UCM – Espanha), Sonia Maria Rummert (UFF - Brasil) e Virgínia Fontes (UFF / EPJV / Fiocruz - Brasil).
COMITÊ CIENTÍFICO
Alexandre Maia do Bomfim (IFRJ), Ana Motta (UFF), André Feitosa (EPSJV/FIOCRUZ), André Martins (UFJF), Andrea Araújo Vale (UFF), Anita Handfas (UFRJ), Angela Siqueira (UFF), Angela Tamberlini (UFF), Claudio Fernandes da Costa (UFF), Célia Regina Vendramini (UFSC), Daniela Motta (UFJF), Dante Moura (IFRN), Deise Mancebo (UERJ), Domingos Leite Lima Filho (UTFPR), Dora Henrique da Costa (UFF), Doriedson do Socorro Rodrigues (UFPA), Edison Oyama (UFRR), Edson Caetano (UFMT), Eneida Oto Shiroma (UFSC), Eraldo Leme Batista (UNIVAS-MG), Eveline Algebaile (UERJ), Filippina Chinelli (EPSJV/FIOCRUZ), Flávio Anício (UFRRJ), Francisco José Lobo Neto (FIOCRUZ), Guadelupe Teresinha Bertussi (UNAM e UFSC), Hajime Nozaki (UFMS e UFJF), Henrique Tahan Novaes (UNESP), Ivo Tonet (UFAL), Jacqueline Botelho (UFF), Jaqueline Ventura (UFF), João dos Reis da Silva Jr. (UFSCar), José dos Santos Souza (UFRRJ), José Luiz Cordeiro Antunes(UFF), Júlio Cesar França Lima (FIOCRUZ), Justino de Souza Junior (UFC), Kátia Lima (UFF), Laura Souza Fonseca (UFRGS), Lea Calvão (UFF),Lia Tiriba (UFF), Lígia Klein (UFPR), Luciana Requião (UFF), Marcelo Lima (UFES), Maria Clara Bueno Fischer (UFRGS), Maria Cristina Paulo Rodrigues (UFF), Maria Inês do Rego Monteiro Bomfim (UFF), Maria de Fátima Félix Rosar (UNICAMP), Marcia Alvarenga (UERJ), Mariléia Maria da Silva (UDESC), Marisa Brandão (CEFET-RJ), Marise Ramos (UERJ,FIOCRUZ), Marlene Ribeiro (UFRGS), Myriam Feldfeber (UBA - Argentina), Ney Luiz Teixeira Almeida (UERJ), Olinda Evangelista (UFSC), Ramon de Oliveira (UFPE), Raquel Varela (Universidade Nova de Lisboa- Portugal), Roberto Leher (UFRJ), Ronaldo Lima (UFPA), Rosilda Benacchio (UFF), Rui Canário (Universidade de Lisboa – Portugal), Sandra Maria Siqueira (UFBA), Sandra Morais (UNIRIO), Sérgio Lessa (UFAL), Susana Vasconcellos Jimenez (UFC), Tatiana Dahmer (UFF), Valdemar Sguissardi (UFSCar), Vania Motta (UFRJ), William Kennedy do Amaral Souza (IFRO) e Zuleide Silveira (UFF).
ORGANIZAÇÃO DA TN 44 (2023)
Lucas Pelissari (Unicamp; GT 09 - Trabalho e Educação da Anped) e Marise Ramos (Grupo THESE – Projetos Integrados em História, Trabalho, Educação e Saúde- UFF/UERJ/Fiocruz)
ASSISTENTES/COLABORADORES DE EDIÇÃO
Cláudio Fernandes da Costa, Daniel Tiriba, José Luiz Cordeiro Antunes, Lândhor Borges Camello (UFF) e William Kennedy do Amaral Souza (IFRO)
FOTO DA CAPA
Manifestación (1934), de Antonio Berni (1905-1981). 180 X 249 cm. Museu de Artes Latino-Americanas de Buenos Aires (MALBA). Buenos Aires, Argentina. Dez.2015
MONTAGEM DA CAPA
Daniel Tiriba
V.20 nº 43 / set-dez (2022) ISSN: 1808-799 X
Indexado por / Indexed by
Apoio:
Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoatá/SDC/UFF Bibliotecária:
Mahira de Souza Prado CRB-7/6146
V.21, nº 44, 2023 (janeiro-abril) ISSN: 1808-799 X
Conforme ensina o melhor da tradição marxiana, o desenrolar da história nunca nos é dado previamente, mesmo que esse desenrolar seja limitado pelas determinações que atravessam o campo das possibilidades de ação política. Ou seja, a luta de classes “a quente” pode nos reservar eventos que, para muitos doutos da análise política mainstream, são classificados como improváveis.
Após 4 anos de real ameaça neofascista – e, no mínimo, 6 de instabilidade político-institucional – a importante vitória da ampla frente democrática nas eleições presidenciais de 2022 não deve ser subestimada. Na perspectiva da classe trabalhadora, a vitória de Lula aponta para uma efetiva oportunidade de suspensão da política de morte e de fome que foi fomentada de 2019 a 2022. Todavia, nunca é demais ressaltar que se trata de apenas um capítulo da luta contra as forças de extrema-direita, pois o bolsonarismo não foi definitivamente vencido com a derrota eleitoral do ano passado.
A equipe da Revista Trabalho Necessário, ciente da relevância da derrota eleitoral do candidato neofascista, saúda com júbilo todos os seus colaboradores e leitores que, com certeza, se mantiveram firmes no combate à barbárie reacionária e conservadora dos últimos tempos. Temos ciência de que a luta não se encerra nos processos eleitorais da democracia burguesa, mas o fato é que sobrevivemos à fase mais grave da pandemia de Covid-19 e a um governo abertamente genocida. Isso não deve ser esquecido.
É imperioso, contudo, olhar para os enormes desafios que teremos de enfrentar após o último período catastrófico. Como sempre, o campo da educação carrega
1Editorial recebido em 10/04/2023. Aprovado pelos editores em 11/04/2023. Publicado em 13/04/2023. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v21i44.58039.
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consigo um conjunto de questões urgentes, fruto do avanço da política neofascista, da crise econômica, dos estragos causados pela pandemia e da consolidação de uma nova fase da agenda empresarial para o setor.
Para citar apenas algumas das lutas que mobilizam movimentos e intelectuais progressistas que militam na educação, destacamos a questão das escolas militarizadas em todos os níveis e modalidades, que são uma afronta aos princípios democráticos e inclusivos que devem nortear a organização da educação brasileira; a redução das receitas de estados e municípios por conta da demagógica alteração no recolhimento do ICMS, que compõe boa parte do orçamento público da educação (PINTO, 2019); o fracasso do “ensino remoto” no período pandêmico, que abriu uma “janela de oportunidades” para a inclusão massiva e acrítica das novas tecnologias digitais de informação e comunicação, cujos interesses são monopolizados pelas “big techs” e cujo uso indiscriminado ameaça a profissão docente (SOUZA e EVANGELISTA, 2020). E por último, as contrarreformas educacionais ditadas pelo empresariado nacional e transnacional, que normalizam a precarização da educação pública e conformam suas práticas cotidianas à ideologia de mercado e à cultura de performance (LAVAL, 2019).
Considerando especialmente as contrarreformas aprovadas nos últimos 6 anos – ainda que diversas já foram apontadas no Plano Nacional de Educação vigente -, salta aos olhos o problema do Novo Ensino Médio (NEM, Lei nº 13.415/17), aprovado em 2016, no governo Temer, via Medida Provisória. A urgência de sua aprovação e implementação já vem causando reações contrárias dos diversos segmentos que integram a escola de ensino médio, expressas na manifestação pela revogação da referida lei, ocorrida no dia 22 de abril último. Desta feita, a luta contra o NEM se torna, na atualidade, um polo aglutinador para aqueles que defendem a educação pública popular e radicalmente democrática.
É bem verdade que o NEM tem sido duramente criticado pelo movimento combativo docente e discente, por associações científicas e por diversos intelectuais, desde seu nascedouro. Uma das críticas mais candentes se refere à ideia vaga de “protagonismo estudantil”. O que os defensores do “protagonismo” não discutem é a padronização rebaixada deste nível de ensino, o empobrecimento do currículo e a cristalização da homogeneização cultural pela escola, cuja marca é a produção de um trabalhador conformado à nova morfologia do trabalho. Ou seja, trata-se de uma
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normalização da ocupação de cargos de trabalho precarizados pelos mais pobres, via oferta de uma formação rebaixada para os filhos da classe trabalhadora. Sob a ideologia relativista e empreendedora, o NEM transita no terreno do esvaziamento da produção científica, caríssima aos educadores que pautaram historicamente o currículo de formação politécnica no ensino médio. Na negação desse esforço histórico, alicerçado pelas lutas sociais, o NEM oferece um currículo que força uma percepção de que os indivíduos são os produtores da própria sorte via escolhas “corretas” de “projetos de vida”.
A ampliação das horas obrigatórias para a formação em nível médio abre caminho, sob o signo da “educação integral”, para a introdução de disciplinas funcionais na manutenção das relações de poder hegemônicas através dos “projetos de vida” dos discentes, como “empreendedorismo” e “educação financeira”, que reduzem o potencial crítico da escola, colonizada pelo empresariado e suas fundações e institutos. Além disso, a “base diversificada” do currículo abre caminho para o uso indiscriminado de EaD e de parcerias com o setor privado em sua integralização, aprofundando processos que se desenvolvem há mais de 30 anos na educação brasileira, especialmente na formação profissional de nível médio.
Ao fim e ao cabo, os maiores prejudicados pela imposição do NEM são os docentes e discentes. Os primeiros vêm sendo impedidos de oferecer as disciplinas para os quais foram concursados, tendo que complementar carga horária com componentes do “projeto de vida”, dos quais quase nenhum tem formação ou informação suficiente para lecionar ou, ainda, são obrigados a dividir suas cargas horárias em diversas escolas diferentes. Já os discentes também padecem da desinformação sobre as mudanças, são submetidos aos conteúdos desarticulados dos itinerários flexíveis, muitas vezes sendo obrigados a escolher um determinado percurso formativo, pois trata-se de o único disponibilizado pela escola.
No momento que escrevemos essas linhas existe um movimento em prol da revogação do Novo Ensino Médio, organizado por movimentos sociais e intelectuais. No entanto, apesar de estratégias consultivas do governo que buscam dar o tom mais democrático ao debate sobre o NEM junto à sociedade, o projeto empresarial presente no Ministério da Educação ainda se coloca claramente resistente à revogação e reativo às mobilizações populares do Revoga NEM. A mobilização deve continuar nas ruas e no parlamento, pois o fim mais consequente desta movimentação é a
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revogação dos termos atuais da reforma, seguida de uma ampla discussão de base sobre o tema, envolvendo alunos, professores, entidades científicas, sindicatos e movimentos sociais. Só a unidade destas forças será capaz de sustar o lobby empresarial que segue atuando com muita tranquilidade e respaldo no MEC e no Consed.
Com isto, é importante destacar que as lutas atuais pela revogação do NEM são parte do processo de resistência para fazer avançar o projeto que, nas eleições de 2022, se propôs a recuperar os direitos sociais vilipendiados especialmente no longo período de ataques à democracia que assombrou o país desde 2016, culminando nos 4 anos do governo Bolsonaro, que representou a ascensão da extrema-direita brasileira e a disseminação da política de ódio e violência desmedidos, cujas consequências ainda acompanhamos.
O desprestígio da profissão docente, o incentivo ao desrespeito aos professores e ao pensamento crítico no ambiente escolar têm resultado em ações violentas nas escolas. No último dia 27 de março uma professora foi assassinada por um aluno na capital paulista, após se posicionar contra ofensas racistas disparadas contra outro estudante. Em menos de 10 dias depois, cinco crianças foram brutalmente assassinadas em Blumenau (Santa Catarina) por um homem que invadiu uma creche. Identificamos tais episódios como fruto da barbárie e da política de ódio e incentivo à violência do bolsonarismo. Para além de estratégias de segurança nas escolas e de garantias de acolhimento nesses espaços, é preciso enfrentar a grave crise ética herdada dos últimos 4 anos, e que atualmente ainda insiste em impor, além da desumanização como projeto, o modelo de americanização da vida.
Somente com a organização popular nas escolas, universidades e nos territórios onde vive a classe trabalhadora (favelas, quilombos, periferias das cidades e do campo) será possível recuperar o potencial de mobilização por educação pública e colocar na ordem do dia um projeto societário de respeito à vida e à diversidade do gênero humano, em detrimento da onda de violência material e simbólica da extrema direita.
Na atual conjuntura/estrutura das lutas históricas entre trabalho e capital, é com imenso prazer que apresentamos o número 44 da Revista Trabalho Necessário, cujo tema versa sobre Crise do capital, luta de classes e educação hoje: utopia ou barbárie, e no qual recuperamos os debates travados durante V INTERCRÍTICA –
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Intercâmbio Nacional dos Núcleos de Pesquisa em Trabalho e Educação, realizado na cidade do Rio de Janeiro, em outubro de 2022. Importante destacar que, como demanda espontânea, recebemos contribuições de autores e autoras que adensam a discussão nas diversas seções da Revista. A TN 44 foi organizada pelo GT 09 – Trabalho e Educação da Anped e pelo Grupo These – Projetos Integrados de Pesquisa em Trabalho, História, Educação e Saúde (UFF/UERJ/Fiocruz), tendo à frente Lucas Pelissari (GT 09 e Unicamp) e Marise Ramos (UERJ/ Fiocruz).
Por último, por que acreditamos no trabalho coletivo, queremos declarar nossa gratidão aos organizadores e, também aos autores, leitores e, em particular, aos colaboradores da Revista Trabalho Necessário. O trabalho será sempre necessário!
Lia Tiriba, Jacqueline Botelho e Regis Arguelles (Editores)2
Niterói-RJ, 09 de abril de 2023.
LAVAL, C. A escola não é uma empresa: o neoliberalismo em ataque ao ensino público. São Paulo, Boitempo, 2019.
PINTO, J. M. de R. A política de fundos no Brasil para o financiamento da educação e os desafios da equidade e qualidade. Propuesta Educativa, Año 28, núm. 52, 2019. SOUZA, A. G. e EVANGELISTA, O. Pandemia! Janela de oportunidade para o capital educador. Contraponto [blog], 15 abr. 2020. Disponível em: https://contrapoder.net/colunas/pandemia-janela-de-oportunidade-para-o-capital- educador/. Acesso em 03 de abril de 2023.
2Doutora em Ciências Políticas e Sociologia pela Universidade Complutense de Madrid (UCM), Espanha. Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF) – Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: liatiriba@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/2006259738336754.
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0117-4160.
Doutora em Serviço Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Professora Adjunta da Escola de Serviço Social da Universidade Federal Fluminense (UFF) - Rio de Janeiro, Brasil. Pesquisadora do Núcleo de Estudos, Documentação e Dados sobre Trabalho e Educação (Neddate/UFF). Líder no CNPQ do grupo de pesquisa NEPEQ - Núcleo de Pesquisa e Extensão sobre Projetos Societários, Educação e Questão Agrária na Formação Social Brasileira (ESS/UFF). Membro da coordenação do Grupo THESE (Projetos Integrados de Pesquisas sobre Trabalho, História, Educação e Saúde-UERJ-UFF-EPSJV/Fiocruz). E-mail: jbotelho@id.uff.br
Lattes: http://lattes.cnpq.br/7423332568707388. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1989-5089. Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) - Rio de Janeiro, Brasil. Professor da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense. Pesquisador do Núcleo de Estudos, Documentação e Dados sobre Trabalho e Educação (Neddate/UFF), do Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas sobre Marx e Marxismo (Niep-Marx/UFF) e do Laboratório de Investigação em Estado, Poder e Educação da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (LIEPE/UFRRJ). E-mail: regisarguelles@id.uff.br. Lattes: http://lattes.cnpq.br/0075852341880711. ORCID: http://orcid.org/0000-0001-6103-4659.
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V.21, nº 44, 2023 (janeiro-abril) ISSN: 1808-799 X
Marise Ramos2 Lucas Pelissari3
Este número da Revista Trabalho Necessário se dedica ao tema do V Intercrítica - Intercâmbio de Grupos de Pesquisa em Trabalho e Educação - realizado nos dias 10 e 11 de outubro de 2023 na Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, da Fundação Oswaldo Cruz (EPSJV/Fiocruz), e na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). O encontro foi organizado pela Coordenação e membros do Grupo de Trabalho 09 (GT 09) da Associação Nacional de Pós- Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd), juntamente com a Coordenação do Grupo de Projetos Integrados de Pesquisa em Trabalho, História, Educação e Saúde (Grupo These – UFF/Uerj/Epsjv-Fiocruz).
A pesquisa em Ciências Sociais e Humanas não se sustenta no plano do formalismo acadêmico ou do mito da neutralidade, sob pena de cair no idealismo, no empirismo ou perder-se na abstração ideológica. Se não se enraíza na concretude
1 Apresentação recebido em 09/04/2023. Aprovado pelos editores em 11/04/2023. Publicado em 13/04/2023.
2 Doutora em Educação pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Rio de Janeiro - Brasil. Pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio da Fundação Oswaldo Cruz (EPSJV/Fiocruz), Rio de Janeiro - Brasil e professora associada da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Rio de Janeiro - Brasil, na linha de pesquisa Estado e Políticas Públicas. É uma das coordenadoras do Grupo These – Projetos Integrados de Pesquisa em Trabalho, História, Educação e Saúde UFF/UERJ/EPSVJ-Fiocruz. Bolsista CNPq -PQ-2 e Cientista do Nosso Estado Faperj.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/3796863111902233. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5439-3258.
3 Doutor em Políticas Públicas e Formação Humana pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Rio de Janeiro - Brasil. Professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp),
São Paulo - Brasil.
E-mail: lucasbp@unicamp.br. Lattes: http://lattes.cnpq.br/8723394397607851. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3659-5424.
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dos fatos e das relações sociais, a produção do conhecimento nessa área se destitui da própria historicidade que lhe dá sentido.
O ano de 2022 caracterizou-se por tensões geopolíticas representadas dramaticamente pelo conflito político e bélico entre Rússia e Ucrânia o qual somente por cinismo ou ignorância pode ser julgado com maniqueísmos como “bem x mal”, “certo ou errado", “justiça x injustiça”. Ao contrário, trata-se de um fenômeno construído por mediações históricas como oposições entre países e blocos de países ao longo da guerra-fria; da unificação econômica – sempre tensa – do continente europeu; da emergência de potencialidades naturais, políticas, tecnológicas e militares de países subdesenvolvidos, como os dos BRICS, soprando ares em outra direção que não a do norte. Na América Latina, aglutinações como o Mercosul e a Unasul também sinalizaram possíveis novas relações no continente e deste com os países considerados desenvolvidos.
A reação ao que seria uma ameaça à hegemonia estadunidense logo se manifestou pela onda neo e ultraconservadora em todo o mundo, sendo obrigatório citar a própria América do Norte, com Donald Trump, e o Brasil, com Jair Bolsonaro, este produzido como um “mito” desde o golpe jurídico-parlamentar-midiático que depôs a presidenta Dilma Rousseff e prendeu Luís Inácio Lula da Silva. Trata-se de processos permeados por artimanhas tecidas na relação contaminada entre instâncias do aparelho do Estado e frações da classe dominante, com a colaboração da mídia.
Ao longo de seis anos, o Brasil se tornou um cenário da barbárie do capital na crise atual, com o desmonte de políticas públicas que representavam expressivas conquistas da classe trabalhadora, cujos tijolos foram sendo retirados um a um por meio de reformas constitucionais e de outras legislações consolidadas nos marcos de uma democracia frágil e recentemente construída. A democracia, aliás, foi aterrada para dar lugar ao negacionismo, à manipulação ideológica, religiosa, midiática e cibernética e às fake news. Processos sem os quais Jair Bolsonaro não teria sido eleito e se mantido, para cerca de 30% da população brasileira, como um “mito” dos ignorantes, oportunistas e fascistas.
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“Necropolítica”4 define o caminho seguido pelo governo na gestão da pandemia do Coronavírus, que se valeu do negacionismo para negligenciar a morte e o sofrimento de famílias de mais de 600 mil pessoas. Um luto que ainda não está totalmente superado. Controladas as mortes pela Covid, mantém-se a violência policial que mata principalmente jovens negros; escancara-se a dizimação de populações indígenas, como é o caso mais noticiado dos Yanomamis, tendo na degradação ambiental, no garimpo e na exploração madeireira ilegais algumas de suas causas. O fenômeno de invasões a escolas por homicidas, acontecimentos há pouco tempo relativamente distantes ou esporádicos para nós, assustam; tragédias anunciadas desde que a apologia às armas passou a ser slogan discursivo e imagético veiculado pelo presidente da república e sua família.
O desmoronamento da farsa da operação “Lava Jato” tornou Lula elegível novamente. A face desastrosa do neofascismo no Brasil, comparado ao que significaram os governos do Partido dos Trabalhadores quanto às políticas nacionais e internacionais, o fez novamente o candidato favorito a vencer as eleições de 2022. No entanto, para emplacar a vitória eleitoral, a aliança com frações liberais “esclarecidas” da burguesia brasileira foi necessária, o que conformou uma frente ampla de enfrentamento ao bolsonarismo articulada em torno da defesa da democracia. O V Intercrítica ocorreu no intervalo entre o primeiro e o segundo turno das eleições, com esse favoritismo apontado, mas não definido. Era fundamental que uma análise da conjuntura, da correlação de forças em jogo e dos desafios que seriam enfrentados em um dos cenários que se definiria logo a seguir - a vitória da democracia ou do fascismo - marcasse o sentido desse encontro, dando-nos uma perspectiva do esquadro no qual se situavam nosso cotidiano e nossas pesquisas. Que problemas nos provocaram mais diretamente em um ou em outro cenário? Como o conhecimento produzido em Trabalho-Educação seria interrogado e precisaria interrogar a realidade?
A programação do V Intercrítica procurou seguir essa leitura, de modo que a primeira mesa trouxe como tema “A produção científica das pesquisas em Trabalho- Educação como ‘força material’: experiências e perspectivas da práxis política”. O
4 MBEMBE, Achille. Arte & Ensaios. Revista do PPGAV/EBA/UFRJ, n. 32, dezembro 2016. Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/ae/article/view/8993/7169
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debate foi composto por exposições iniciais de cinco pesquisadoras que participaram de momentos importantes da constituição do GT09 e da trajetória política e acadêmica do campo Trabalho e Educação. Neste número, as quatro intervenções constam como artigos de autoria de Maria Ciavatta, Marise Ramos, Carmen Sylvia Vidigal Moraes, e Maria Clara Bueno Fischer, junto com Lia Tiriba.
Dentre esses, o primeiro artigo tem por base os estudos de historiografia que a autora desenvolveu sobre história da educação e de trabalho-educação, partindo da elaboração marxiana sobre as relações sociais de produção e as formas de consciência social, para analisar a historicidade das forças produtivas e a contribuição da história do presente para a pesquisa face à urgência de se compreender e agir sobre a realidade social. Com base nela, a autora discute questões sobre trabalho-educação mediante o uso de fontes documentais recentes (2020 a 2022) publicadas na imprensa. Sob este enfoque, fenômenos candentes deste tempo em nosso país como o desemprego, a pandemia de Covid 19 e as eleições presidenciais são analisados na perspectiva da relação entre problemas sociais estruturais e situações de conjuntura.
Em seguida, leitores encontrarão análises históricas de lutas sociais e de disputas no interior do Estado estrito senso pelo direito da classe trabalhadora à educação básica e à formação profissional públicas e de qualidade, sob responsabilidade do Estado, mas com a presença efetiva de sujeitos coletivos na construção e consolidação desses direitos. O artigo de Marise Ramos enfoca o período de 2003 a 2016, quando a presidência da República foi ocupada por Lula e por Dilma, do Partido dos Trabalhadores. Ela destaca processos dos quais a autora participou diretamente no interior do governo, principalmente a revogação do decreto
n. 2.208/1997 e a defesa do Ensino Médio Integrado. Carmen Sylvia Vidigal Moraes, por sua vez, contextualiza a práxis acadêmica e de militância social no âmbito das lutas do movimento popular e sindical em São Paulo, nos anos de 1980 aos 2000. Ambos os textos convergem no reconhecimento da potência do conhecimento produzido por pesquisadores em Trabalho e Educação nessas lutas, tendo sido a atuação de intelectuais desse campo fundamental para resistir ao conservadorismo da burguesia brasileira e para desenvolver políticas que acirraram contradições em benefício da classe trabalhadora. Prova disto são as reações da elite dirigente cuja cultura contrarreformista é recorrentemente reiterada em benefício de sua hegemonia.
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O princípio de que as pesquisas em trabalho e educação constituem força material expressa como práxis política é explicitado também por Maria Clara Bueno Fischer e Lia Tiriba. As autoras apresentam como questão central de sua análise o quanto essas pesquisas possibilitam apreender o trabalho na sua diversidade. Num fecundo diálogo com filósofos e historiadores marxistas, elas perquirem o campo de estudos em Trabalho e Educação do ponto de vista teórico e metodológico com a intenção de tornar mais visíveis os mundos do trabalho, a classe trabalhadora, as relações trabalho-educação e a luta de classes. Coerentemente com a ontologia do materialismo histórico dialético, encontramos a defesa pela ampliação dos campos do real abordados pela ciência a fim de captarmos mediações que o configuram como unidade do diverso.
A conferência de abertura do V Intercrítica intitulada “Economia, Educação e Desenvolvimento” foi pronunciada por Pedro Rossi. O texto de sua autoria apresenta abordagem interdisciplinar que convida o leitor a articular a reflexão sobre o papel das políticas educacionais à ciência econômica. Mais especificamente, essa articulação parte da crítica à economia neoclássica - corolário da crítica ao neoliberalismo - como doutrina calcada na defesa do individualismo e na diminuição dos direitos sociais. Para o autor, essa vertente da economia se fundamenta na leitura da sociedade como um jogo de concorrência entre indivíduos. O jogo, que é arbitrado pelo mercado, seleciona as pessoas conforme suas produtividades, de modo a justificar as diferenças de renda como situação natural e inelutável.
Assim, para Rossi, quando a cartilha neoclássica é aplicada a programas governamentais, reduz o papel das políticas públicas no enfrentamento das desigualdades sociais mais gerais. Esse diagnóstico permite ampliar o olhar crítico à corrente pedagógica do neotecnicismo, que, orientada pela mesma base doutrinária utilitarista, define as políticas educacionais em termos da relação custo/benefício embutida no gasto público. Nesse sentido, o texto contribui de maneira decisiva para análise das políticas aplicadas no período pós-golpe no Brasil e para visualizar as repercussões da retomada do neoliberalismo no país.
Marcio Pochmann proferiu a conferência de encerramento do V Intercrítica e seu título dá nome ao texto do autor presente neste número: “Conjuntura Brasileira, Contrarreformas Educacionais e Perspectivas para a Luta Popular”. O texto é um registro rigoroso da conjuntura brasileira naquele momento histórico, caracterizada
pela disputa de projetos às vésperas de uma das eleições presidenciais mais
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importantes da Nova República. Pochmann apresenta um pressuposto fundamental: as formações sociais capitalistas passam por uma transformação de natureza estrutural que coloca em xeque todo um conjunto de métodos e perspectivas de análise da realidade. Tal situação, segundo ele, reflete nas conjunturas específicas, nacionais e internacionais, conduzindo a uma significativa mudança de época.
Envelhecimento demográfico, impactos do desenvolvimento tecnológico e informacional na natureza das relações de trabalho, crise do padrão dólar definido em Breton-Woods, deslocamentos significativos nas relações de poder internacionais são apenas alguns sinais da metamorfose estrutural diagnosticada pelo autor. Como se situa o Brasil frente a esse cenário, caracterizado, em síntese, pela passagem da Era Industrial para a Era Digital? É a pergunta que Marcio Pochmann busca responder, apresentando os desafios que um governo de frente ampla encabeçado por Lula teria de assumir caso se sagrasse vencedor das eleições de outubro de 2022. Impõe-se, segundo ele, a necessidade de romper com a linha adotada entre 2016 e 2022, centrada no aprofundamento do subdesenvolvimento. Pochmann nos convida, com isso, a pensar coletivamente uma nova história para o país, não deixando essa tarefa a cargo das classes dominantes.
Ainda que não presente no V Intercrítica, Giovanni Alves tem colaborado com o GT 09 e levanta reflexões que enriquecem as contribuições dos textos anteriormente descritos. Enreda-se, no trabalho do autor que integra este número, uma trama absolutamente criativa sobre o neoliberalismo nos tempos atuais. A matriz de análise adotada articula Sociologia do Trabalho, Economia e Psicanálise, no exame de uma quadra histórica caracterizada pela barbárie social. Para Alves, a relação entre crise do Estado capitalista, neoliberalismo e ascensão do neoconservadorismo conduz a uma situação que faz emergir novas formas de extração de mais-valia, muito mais refinadas e baseadas em uma captura original da subjetividade. O conceito elaborado pelo autor que permite descrever teoricamente tal cenário é o de hipnocapitalismo.
Giovanni Alves conclui seu texto convidando-nos a “ir além da economia política e desvelar a nova economia psíquica do capital”. A noção psicanalítica de pulsão é, nessa chave, fundamental para desvendar “os investimentos libidinais que sustentam a fábrica da barbárie social”. Trata-se, na verdade, de um complemento às discussões desenvolvidas no V Intercrítica, permitindo ancorar os distintos olhares
sobre a conjuntura brasileira em um panorama global do neoliberalismo. O novo
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metabolismo social trazido pela era do hipnocapitalismo vincula a retirada de direitos típica do programa neoliberal às estratégias de dominação próprias da barbárie, acionando métodos, ideologias e formas de organização neofascistas. Nesse sentido, o texto em questão é de leitura obrigatória àqueles que não buscam respostas simples para problemas complexos como os que se apresentam nas conjunturas contemporâneas.
Também com contribuição de natureza mais geral que ilumina as reflexões do V Intercrítica, Jaime Ortega Reyna pensa a realidade latinoamericana. O texto do autor, intitulado Ya Es un Nuevo Tiempo Presente: América Latina en la Tercera Década del Siglo XXI, é um ensaio que busca analisar tendências das lutas e correlações de forças sociais e políticas na região, ajudando-nos a melhor situar internacionalmente a conjuntura brasileira.
Reyna parte do pressuposto de que a história da América Latina é caracterizada, desde sua integração subordinada ao capitalismo mundial, pela negociação da implantação dos modelos de dominação econômica impostos ao continente. Tais processos de negociação originaram estratégias de resistência que fizeram emergir formas societárias específicas, concretizadas ou não em políticas de Estado. Esse problema foi analisado pelo marxismo latinoamericano a partir de diferentes perspectivas, sempre buscando encontrar saídas autônomas.
No cenário atual, de reordenamento do capitalismo mundial resultante de dois fatos históricos de grande envergadura - a crise de 2008 e a pandemia de covid-19 em 2020 -, o problema novamente se apresenta. Contrastam-se, agora, o “progressismo” antineoliberal e um novo reacionarismo que alia o neoliberalismo a bases de massas provenientes dos setores médios, como ocorre no Brasil. São, na visão do autor, contratendências do contexto de vitórias eleitorais de governos de esquerda desde o fim dos anos 1990 na América Latina. Nesse sentido, não há dúvidas de que o texto de Reyna contribui para a análise do momento atual, registrando a permanência de utopias, reações populares e projetos emancipatórios, ainda que observemos a emergência de uma ultradireita com novos contornos na América Latina.
É, ao mesmo tempo, complexa e rigorosa a contribuição que os textos comentados até aqui fornecem à análise da realidade brasileira. Em uma dinâmica de complementação mútua, que envolve continuidade de debates, aprofundamento
de reflexões e preenchimento de lacunas, os trabalhos cumprem com êxito o objetivo
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a que se propôs o V Intercrítica: analisar a luta de classes na sociedade brasileira da terceira década do século XXI, contribuindo com a elaboração de projetos de formação dos trabalhadores. Nesse sentido, o presente número fornece contribuição decisiva.
Outro conjunto de artigos compõem este número de forma densa e orgânica. Sobre eles podemos afirmar, de imediato, que mostram o quanto, no marxismo, a batalha das ideias5 é também material. O primeiro a fazê-lo é Giovanni Frizzo, ao identificar o negacionismo, ampliado com a crise pandêmica, como expressão ideológica da crise do capital hoje. Superar a representação pela conceituação dos fenômenos é um desafio do pensamento e sua negação redunda da afirmação do senso comum, da crença e da religião como forma de conhecer equivalente ou superior à atividade científica. O relativismo pode ser um passo para o negacionismo e ambos tendem ao irracionalismo. Não se trata de um fenômeno limitado ao campo das ideias, mas, ao contrário, suas motivações e consequências são materiais, posto que vinculadas à manutenção da dominação. Por isto, “a superação da alienação da consciência está diretamente ligada à superação da forma material que constitui a alienação, isto é, as relações sociais de produção capitalistas”.
Se no contexto da pandemia do Covid-19 o negacionismo científico ficou muito evidente na postura negligente quanto à gravidade sanitária e à vacinação como meio eficaz de imunização, no contexto de neoliberalismo global e, particularmente no Brasil, a negação da crise do capital se apoia na exacerbação do individualismo como meio de responsabilizar os trabalhadores pela sua própria destruição. Afinal, “não pensar em crise” e sim, “trabalhar”, slogan do governo golpista de Michel Temer; fazê-lo às custas de si mesmo no processo de autoexploração que pode levar à morte com a deterioração do trabalho uberizado/plataformizado; e falseando ideológica e discursivamente essas (necro)estratégias sob o véu do empreendedorismo, é uma face assustadora da barbárie.
Essas manipulações ideológicas são desveladas por três artigos que se seguem, evidenciando as características históricas da relação trabalho e educação hoje. Compreende-se, assim, porque a educação como prática social e escolar é tão disputada pelos empresários. Na busca pela obtenção do consenso, a ideologia do empreendedorismo se torna a liga dessa relação, fazendo da escola o lugar da
5 KONDER, Leandro. O marxismo na batalha das ideias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
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formação instrumental e pragmática, esvaziada dos conteúdos sistematizados e clássicos – mais um matiz do negacionismo – em nome do desenvolvimento de competências flexíveis. Trata-se de um movimento que aconteceu no Brasil nos anos de 1990, mas que se amplia e aprofunda nos dias de hoje, quando a reprodução do capital visa, na lógica da superacumulação, eliminar força de trabalho. À classe trabalhadora resta “negociar” suas próprias condições de vida para sobreviver. Trata- se de uma verdadeira dialética da barbárie sobre a qual nos fazem pensar os artigos de Maria Carolina de Andrade e Vânia Cardoso Motta; Maria Raquel Caetano; Fernanda Denise Siems e Marcos Edgar Bassi; Tiago Fávero de Oliveira; Carlos Soares Barbosa e Michelle Paranhos; e Maria Amélia Dalvi e Victor Gagno Grillo.
O primeiro artigo remonta às jornadas de junho de 2013 recuperando mediações sociais, políticas e econômicas usadas para justificar o golpe de 2016 e como este abre as portas para o conjunto de contrarreformas operadas de forma integrada a partir de então, expressando uma nova etapa do neoliberalismo. O “Novo Ensino Médio” é uma dessas contrarreformas operadas na relação entre estrutura e superestrutura pelo processo de empresariamento da educação de novo tipo.
O empresariamento da educação é tema também do estudo de Maria Raquel Caetano, convergindo com a abordagem anterior de que o neoliberalismo se encontra numa nova etapa, com pressupostos e consequências importantes no ordenamento da sociabilidade capitalista da qual a educação é constitutiva. O empreendedorismo é a palavra-chave que define não somente os sujeitos deste tempo, mas o próprio Estado, cuja função se revela no gerencialismo. Além de atualizar teoricamente o tema, o enfoque metodológico documental sobre documentos de organizações da América Latina dá prova do aprofundamento da instrumentalização atual da escola e do Estado em benefício do capital.
A influência de organismos internacionais compõe a história da educação brasileira e, contemporaneamente, esses têm ordenado o processo de contrarreformas alinhado ao empresariamento da educação. A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) adquiriu protagonismo nos últimos anos, em certa medida até mesmo superior à Unesco, vinculada à Organização das Nações Unidas (ONU) voltada para a educação.
Fernanda Denise Siems e Marcos Edgar Bassi verificam que o Conselho Estadual de Educação de Santa Catarina chancelou as recomendações de natureza
privatista desse organismo para o Estado. Numa simbiose entre o público e o privado,
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o privatismo se revela na forma de parcerias, no regime gerencialista de gestão escolar e até mesmo nos componentes e conteúdos escolares. Na relação Estado estrito senso e sociedade civil, os conselhos podem ser reconhecidos como parte da ossatura material do Estado6 e, nesse sentido, trata-se de uma instância disputada por representantes das classes dominante e dominada, sendo historicamente hegemonizadas pela primeira, de tal forma que os sistemas estaduais de ensino tendem a ser aliados ao processo contrarreformista mais amplo da educação.
Como uma ideia que parece tão fecunda ao senso comum – o empreendedorismo – pode revelar, no contexto atual, faces da barbárie? A resposta exige compreender que a ideologia se produz não por mera elocubração daqueles que querem falsear a realidade, mas, como nos avisa novamente o filósofo Leandro Konder7, por mecanismos no “nível da percepção cotidiana da realidade” e das ultrageneralizações, como nomeou Agnes Heller8 e nos mostrou o artigo de Giovanni Frizzo. Konder explica: “no nível da cotidianidade, o sujeito tende a se adaptar passivamente às circunstâncias, adquire e conserva hábitos, tende à imitação e à repetição. Suas crenças e convicções se simplificam e ocupam um grande espaço na sua percepção da realidade”. Tiago Fávero de Oliveira desvela o caráter ideológico do discurso do empreendedor que chega à educação básica e sustenta em seu artigo: “ele aprofunda a alienação, intensifica o trabalho e oculta os mecanismos de exploração e desigualdade”. Por acirrar a barbárie, é mais uma mediação a ser considerada na luta de classes.
Mas a ideologia do empreendedorismo tem orientado a reformulação curricular de sistemas estaduais de educação e o Rio de Janeiro é exemplar, pois teria funcionado como laboratório das matrizes curriculares “empresariais” antes mesmo da vigência da Lei n. 13.415/2017, como demonstram Carlos Soares Barbosa e Michelle Paranhos. Um dado de sofisticação dessa experiência é a associação do empreendedorismo com a proposta de desenvolvimento de competências socioemocionais.
A barbárie produzida pela crise do capital hoje se manifesta concretamente nas relações de trabalho, enquanto o discurso conservador tenta ocultá-la e o faz ao
6 POULANTZAS, Nicos. O Estado, o poder e o socialismo. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1985.
7 KONDER, Leandro. A questão da ideologia. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, pp. 237-247.
8 HELLER, Agnes. O quotidiano e a história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1970.
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nível da consciência cotidiana, termo que o filósofo já citado toma de Lukács9. O confronto com esse nível de apreensão da realidade vem do conhecimento filosófico, científico e artístico.
Maria Amélia Dalvi e Victor Gagno Grillo impõem a si tal desafio e abordam o tema da uberização do trabalho com base no filme “Você não estava aqui”, de Ken Loach. Assim como os autores anteriores problematizam fenômenos da realidade contemporânea analisando-os sob a dialética do que o empírico revela e esconde, neste, a autora e o autor não somente expõem a uberização do trabalho como estratégia de exploração humana – autoexploração disfarçada de autoempreendedorismo, diríamos – como perscrutam o cinema como uma arte que pode contribuir para o desvelamento crítico de fenômenos sociais, encontrando no referido filme uma referência para desvelar o caráter dramático da uberização do trabalho. Interessados na disputa pela educação básica, defendem o cinema como mediação da formação humana o qual, no sentido conservador, está ausente ou é utilizado instrumentalmente na educação básica. É difícil não lembrar do que fala Kosik10 sobre a arte: “a obra de arte, porém, não é um reconhecimento das representações da realidade. Sendo obra e sendo arte ela reconhece a realidade e ao mesmo tempo, em unidade indissolúvel com tal expressão, cria a realidade, a realidade da beleza e da arte”.
Um dos ícones do movimento ultraconservador na educação foi o chamado “Escola sem partido”, que julgou como doutrinação o ensino de qualquer conteúdo que possibilitasse a leitura crítica do mundo, pautando-se pelo denuncismo e pela perseguição de professores. No governo de Jair Bolsonaro, a dimensão coercitiva da escola foi exacerbada ao ponto de adotar o militarismo como modelo (de)formativo. No período de duração de seu governo, quatro ministros assumiram a pasta da educação, somando-se descalabros que vão do favorecimento financeiro de pastores, ao porte de arma ilegal no aeroporto, redundando no ferimento de uma trabalhadora. Um (falso)moralismo foi instituído como “princípio educativo”, apoiado na articulação igreja-quartéis como pano de fundo que servia como justificativas para essas várias "exceções", na forma das “escolas cívico-militares”.
9 LUKÁCS, George. Introdução a uma estética marxista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.
10 KOSIK, Karel. Dialética do concreto. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976, p. 115.
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O artigo de Alexandre Marinho Pimenta argumenta sobre a possibilidade da utilização heurística e articulada da teoria dos Aparelhos Ideológicos de Estado de Louis Althusser e do poder disciplinar de Michel Foucault para construir fundamentos dessa lógica repressivo-disciplinar da educação no capitalismo, especialmente face a sua materialização e naturalização nas escolas cívico-militares.
A maioria dos artigos que compõem essa seção explicita as múltiplas determinações estruturais e superestruturais da barbárie vivida atualmente em suas várias faces, sentida e/ou dissimulada na práxis cotidiana. A utopia é a antítese dessa dialética que nos move em busca da superação dessas determinações. Os sinais dessa utopia estão dados nas experiências concretas da classe trabalhadora e no seu “fazer-se” como tal. Uma delas é enfocada por Mauro Rogério de Almeida Vieira: a articulação da economia solidária com a educação profissional e sua potência no restabelecimento de ligações entre os anseios dessa classe e a educação, processo analisado mediante observação participante de um projeto específico.
Um número da Revista Trabalho Necessário que sistematiza tantas questões teóricas e práticas mobilizadoras da pesquisa em Trabalho e Educação opta por homenagear uma pesquisadora rigorosa e produtiva a qual, na mesma proporção desses atributos, carrega em sua práxis firmeza e ternura. Trata-se de uma intelectual cuja produção nunca se descolou do projeto de transformação social radical em benefício da classe trabalhadora. E, como tal, assim agiu pedagogicamente nas salas de aula e em outros ambientes universitários, seguindo, até hoje, na coordenação de grupos de pesquisa. Trata-se de Maria Ciavatta, que recebe palavras de reconhecimento das tintas de Ramón de Oliveira, um de seus primeiros orientandos de doutorado no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense.
Pesquisadores, educadores, estudantes e outros conhecedores da produção científica em Trabalho e Educação com alguma frequência encontrarão referências a José Barata-Moura, cujos textos se tornaram clássicos para intelectuais marxistas brasileiros, ainda que o conhecimento de sua vasta obra entre nós seja relativamente recente. Quem é esse intelectual? Justino de Souza Junior o define como “um artista, um militante comunista e filósofo”, e escolhe três de suas obras totalmente dedicadas ao tema da práxis para comentar: Da representação à práxis – itinerários do idealismo contemporâneo (1986); Ontologias da ‘práxis’ e idealismo (1986) e Prática
– para uma aclaração do seu sentido como categoria filosófica (1994). Como nos diz
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o autor do artigo, a intenção poderia ser uma homenagem, mas ele falharia se o fizesse apenas em tons elogiosos. O desafio que se impõe nosso comentarista é demonstrar o quanto as pesquisas do filósofo e militante português sobre a práxis são fundamentais para as pesquisas em educação.
Um dos pesquisadores que mediou a presença de José Barata-Moura pessoalmente entre nós juntamente com o acesso à sua obra foi Gaudêncio Frigotto. Essa menção é, em parte, circunstancial. Mas o sócio-fundador da ANPEd, com sua experiência e leitura fina da conjuntura brasileira colocada sob as lentes do materialismo histórico dialético, é o entrevistado deste número. Além de ser um dos organizadores do V Intercrítica, Gaudêncio Frigotto foi debatedor na mesa de encerramento com Márcio Pochmann. Sua inserção no GT 09 é histórica e orgânica, tendo sido um dos que argumentou pelo nome Trabalho e Educação, por expressar mais coerentemente seu objeto na perspectiva do materialismo histórico dialético. Em sua entrevista, o mundo de hoje, que se encontra entre a utopia e a barbárie, é tema de reflexões desse intelectual. Ele nos fala sobre a ascensão do neoconservadorismo no mundo e no Brasil nas últimas décadas, destaca desafios a serem enfrentados pelas forças progressistas no contexto do atual governo e discorre sobre interesses que estão em jogo na disputa pelo ensino médio. Suas respostas às questões que lhe foram apresentadas pelos organizadores deste número estão fincadas, como ele diz, no “pessimismo da razão”, mas para que a vontade otimista não se dilua em ideias e sim se erga como práxis.
A seção Memória e Documentos reservou espaço para registros do presente e análise do passado. No primeiro caso, destaque é dado ao Documento Síntese do V Intercrítica, elaborado pela coordenação do Grupo These, comentado pelos atuais coordenadores do GT 09, Doriedson Rodrigues e Lucas Pelissari. Este documento, porém, transcende as discussões travadas nos dois dias de evento, mas recorre à história da ANPEd, do GT e do próprio Intercrítica. Isto, com a finalidade de refletirmos sobre a historicidade das questões sobre as quais nos debruçamos, no movimento de mudanças sociais que nos desafiam a persistir sobre algumas delas e a construir outras tantas, bem como da teoria que nos fundamenta e do conhecimento produzido. Afinal, como nos diz Florestan Fernandes, “quando desenvolvidas com propriedade [as atividades intelectuais], elas conduzem a um conhecimento objetivo da realidade no qual esta é reproduzida, segundo graus de
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aproximação empírica que variam com a natureza e os propósitos das investigações nos seus aspectos essenciais”11
De uma conjuntura passada, com determinações estruturais que voltam a se manifestar atualmente, recuperamos o Projeto de Lei n. 1603, publicado no Diário Oficial da União de 03/04/1996. Esta foi a primeira tentativa do governo de Fernando Henrique Cardoso de separar ensino médio e educação profissional, contra a qual a sociedade reagiu fortemente. A aprovação da Lei n. 9.394/1996, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de caráter minimalista, levou o governo a retirar o projeto da Câmara dos Deputados e a efetuar a contrarreforma por meio do Decreto
n. 2.208/1997.
Ao analisar o contexto histórico deste documento, Acácia Kuenzer demonstra que o PL foi um expediente usado pelo governo para obter adesão de Secretários Estaduais de Educação e de outras redes às políticas educacionais de corte neoliberal, num movimento que mostrava e escondia, ao mesmo tempo, certo dissenso interno ao governo representado por formas distintas de condução da política de formação de trabalhadores pelos Ministérios do Trabalho e da Educação. Essa recuperação histórica nos ajuda a entender os mecanismos utilizados pela burguesia para a obtenção do consenso em torno do “Novo Ensino Médio”, a atual política neoliberal na educação por excelência. A unidade desta classe e a utilização dos aparelhos privados de hegemonia e órgãos do Estado atualmente para tornar essa contrarreforma inabalável é comparável ao que ocorreu nos anos de 1990, porém com uma mediação ainda mais complexa que é a resistência em revogá-la, manifestada pelos próprios governantes ligados ao Partido dos Trabalhadores, incluindo o Ministro da Educação e, mais recentemente, também o Presidente da República.
O tema da formação de professores e do trabalho docente ocupa espaço importante neste número de três maneiras, a saber: no ensaio de Elza Margarida de Mendonça Peixoto, que conecta formação de professores e formação da classe trabalhadora, problematizando a construção de um “Sistema Nacional de Educação” em sociedades marcadas pela concentração de forças produtivas e pela luta de classes; na resenha do livro “Trabalho docente sob fogo cruzado, no labirinto do
11 FERNANDES, Florestan. A reconstrução da realidade nas Ciências Sociais. Rev. Mediações, Londrina v. 2. n. 1, P 47 56, jan./jun. 1997, p. 47.
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capital e no contexto da pandemia” (organização de Jonas Magalhães e outros), elaborada por Katharine Pinto Silva; e no resumo da dissertação “Os saberes docentes necessários ao trabalho do professor de Biologia no Ensino Médio Integrado, de João Kaio Cavalcante de Morais. A particularidade do trabalho docente no contexto atual é também objeto da tese de doutorado de Vera Nepomuceno: “A reforma do ensino médio no Brasil: uma contrarreforma trabalhista para o trabalho docente".
Um convite à análise das políticas para o Ensino Médio também é feito pelo resumo da dissertação de Alana Lemos Bueno - A reforma do Ensino Médio: do projeto de Lei n. 6.840/2013 à Lei n. 13.415/2017 - que mostra os movimentos de forças políticas em torno do projeto de lei até a consolidação da lei a qual, por sua vez, adveio de uma Medida Provisória. Mais uma vez os Secretários Estaduais de Educação têm papel importante no desfecho desse enredo. A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) é a pedra de toque da contrarreforma do ensino médio no Brasil e esta recoloca a pedagogia das competências como central na política curricular. Às competências cognitivas que orientaram as políticas dos anos de 1990 agregam- se hoje as competências socioemocionais. Jonas Emanuel Pinto Magalhães, no resumo de sua tese de doutorado, fala do escrutínio a que submeteu essa noção, visando compreender origem, fundamentos e usos, demonstrando se tratar de um slogan pedagógico, abordada em diversos campos disciplinares e largamente difundida pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Relacionada com essas problemáticas, a Educação Profissional no Brasil do século XXI é o tema do livro organizado por Domingos Leite Filho e outros, que mereceu a resenha de Hemerson Moura e Ana Carolina Bordini Brabo Caridá.
Diante de um conteúdo de tamanha riqueza e complexidade e tão atual, pode- se esperar que algumas perguntas sejam provisoriamente respondidas, outras permaneçam na dinâmica da história e mais umas tantas sejam elaboradas. Por hora, temos o registro de que a democracia desafiou o neofascismo nas eleições de 2022 e conquistou seu espaço no aparelho de Estado; espaço este tão simbolicamente louvado como “do povo brasileiro” em sua diversidade representada pelos que ladearam o Presidente Lula na subida da rampa do Palácio do Planalto para seu discurso de posse e pelos momentos emocionantes marcados na história pela posse de vários e várias ministros e ministras. Ao mesmo tempo, temos a trágica
lembrança do 8 de janeiro de 2023, com a tentativa fracassada de golpe de Estado
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e o ataque ao patrimônio e à ética pública. Apesar das investigações que correm contra seus executores e idealizadores, as sombras ainda pairam sobre a democracia e essas condensam o obscurantismo, o negacionismo e o ultraconservadorismo que, como “miasmas”, ainda adentram os interstícios da sociedade brasileira e de outros países. Manifesta-se a recuperação do importante papel do Brasil na política internacional, mas há tensões geopolíticas muito significativas que impactam as relações internacionais em dimensões que precisam ser estudadas e enfrentadas.
Em síntese: temos um governo de coalizão, frente às necessárias alianças para enfrentar o neofascismo. As frações da burguesia que compõem o bloco no poder tendem à hegemonia. Que cenários temos pela frente? Como as forças populares organizadas e a teoria produzida por intelectuais de esquerda podem se mover nesses cenários? Esperamos que a leitura deste número nos ajude a alimentar essas análises e dar a elas consequências práticas para enfrentar a barbárie e seguir buscando a utopia.
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V.21, nº 44, 2023 (janeiro-abril) ISSN: 1808-799 X
Ramon de Oliveira2
O que constitui a verdade nos objetos e nos acontecimentos. O que constitui a sua interioridade, a sua essência. O que importa conhecer não se dá imediatamente na consciência. Não é aquilo que se nos oferece à primeira vista, desde o primeiro momento. É preciso refletir, e eu acrescentaria, refletir obstinadamente, insistentemente, para chegar à verdadeira natureza do objeto, ou seja, a sua essência, a sua universalidade, a sua totalidade (IANNI, 2011, p. 399).
1Artigo recebido em 02/03/2023. Aprovado pelos editores em 11/03/2023. Publicado em 13/04/2023. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v21i44.57611.
2 Doutor em Educação pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Rio de Janeiro - Brasil. Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Pernambuco - Brasil. Bolsista PQ – CNPQ. E-mail: proframondeoliveira1966@gmail.com.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/9016348910585182. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6441-1488.
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Produzir um texto para homenagear uma pesquisadora com vastíssima produção científica, larga experiência na formação de recursos humanos para o trabalho científico, para o exercício da profissão docente, bem como para a atuação em espaços nos quais se exige a formação acadêmica e científica, é uma tarefa extremamente difícil e, de certa forma, delicada. Delicada, em mais de um sentido.
Primeiro, antes de tudo, no sentido de ser uma honra ter sido convidado para escrever sobre uma pesquisadora cuja história de vida profissional confunde-se com uma das áreas mais combativas na academia brasileira: GT 09 – da ANPEd – Trabalho e Educação, no qual a Professora Maria Ciavatta já atuou como coordenadora e tem uma contribuição efetiva desde a sua criação, ainda na década de 1980.
Também deve-se considerar a importância que este GT tem tido na proposição e no embate no âmbito das discussões sobre as políticas para o ensino médio e para a educação profissional. Neste sentido, não se está escrevendo sobre uma personagem qualquer, mas sobre alguém que carrega consigo a marca de uma militância política e acadêmica que tem ressonância no âmbito acadêmico e científico, como também nos espaços relativos ao debate sobre os rumos da educação básica brasileira.
Delicado também no referente ao ser respeitoso. O respeito à sua obra tem um pouco de sinônimo de cuidado, pois como, ao homenageá-la, não considerar a diversidade de obras e temáticas que marcam a sua respeitosa e bela trajetória profissional? São dezenas de artigos publicados em periódicos nacionais e internacionais, 37 livros e mais de uma centena de capítulos de livros. Seria impossível conseguir, em um texto como este, contemplar, o minimamente possível, toda a sua produção e fazer a justa homenagem que ela merece, considerando a sua produção científica e sua trajetória política e acadêmica.
Também se faz necessário considerar a sua grande expressividade na formação de pesquisadores, a qual se expressa pela orientação de mais de 50 mestres e doutores. Aqui a delicadeza para mim tem mais uma vez o sinônimo de honra, pois tive o prazer e a felicidade de ter sido sua primeira orientação de doutorado concluída.
Embora tenhamos feito referência a um pouco do que tem sido a Professora Ciavatta quanto à produção científica e à formação de recursos humanos, inclusive alunos de iniciação científica, não vamos conduzir este texto por tal caminho.
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Embora saibamos que estes indicadores sejam atualmente os critérios mais valorizados para se mensurar o quanto um pesquisador produz retornos para a sociedade, entendemos que se procedemos assim, submetemos a homenagem à valoração de aspectos quantitativos, reproduzindo aqui o propagado e estimulado pelas instituições de fomento à pesquisa ou pelo que é estruturante da avaliação da pós-graduação no Brasil.
Não temos a competência de fazer esta homenagem adentrando-nos na sua história de vida, articular sua vida profissional com sua trajetória enquanto mulher, mãe, esposa etc. Para nossa felicidade, este tipo de homenagem já foi feita, de forma ímpar por Eunice Trein e José da Silveira Lobo Neto (TREIN; LOBO NETO, 2004).
Como ex-aluno e orientando de doutorado, sabemos da importância da Professora para a Universidade Federal Fluminense, particularmente na sua atuação no Núcleo de Estudos, Documentação e Dados sobre Trabalho e Educação – Neddate, vinculado à Faculdade de Educação e ao Programa de Pós-Graduação em Educação. O grupo de pesquisa criado por ela e pelo Professor Gaudêncio Frigotto, em 1985.
Preferimos então dialogar com a produção e o pensado pela Professora Maria Ciavatta, a partir de uma questão central para o processo de pesquisa e balizador da obra da nossa querida professora: para quem e para o que se produz conhecimento? Logo, considerando a sua obra, o que deve ser valorado não é o quantitativo do que se produz, mas o objetivo que leva à realização desta produção, o que se espera com a socialização destes resultados e quem são os principais destinatários destas produções.
Neste sentido, peço, com muito respeito, licença à Professora Ciavatta, para fazer esta homenagem privilegiando o debate não em temáticas que nortearam sua produção científica: estudos comparados, a história da educação dos trabalhadores, a relação trabalho e educação, a historiografia em trabalho e educação, a fotografia como mediação, o ensino médio integrado etc, mas para focar este texto no que tem sido e representa a sua contribuição – a partir de suas obras e de suas intervenções nos variados espaços acadêmicos, políticos e de Estado –, enquanto uma educadora militante na construção de uma sociedade menos desigual e na construção de um projeto de escola e de formação humana atento aos interesses da classe trabalhadora.
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Quando levamos em consideração o que se produz e para quem se produz, o discurso da homenagem toma outro sentido e estrutura-se a partir de outros conteúdos, os quais normalmente não são aqueles mais valorizados pelas instituições de fomento e nem por aqueles que detêm o poder de selecionar e disseminar o conhecimento produzido.
Sua produção científica é lastreada em um rigor científico, pouco visto nos dias atuais. Ela produz referenciada na inquietação e na prática do confronto com a naturalização das desigualdades que historicamente se produzem e se reestruturam na sociedade brasileira. Por isso, nos coloca diante do compromisso de enaltecer e reafirmar a sua contribuição para a pesquisa educacional no Brasil e América Latina, considerando o princípio político de sua atuação enquanto professora, pesquisadora e mulher de confrontar-se com práticas que tornam os sujeitos desiguais (ARROYO, 2010), as quais se fortaleceram ao longo dos últimos anos na sociedade brasileira.
Elas ampliaram-se em função de que se concatenam com uma lógica econômica que impulsiona o aumento da desigualdade social, privando boa parte da população brasileira de uma vida com um mínimo de direitos sociais. Práticas que, além de se pautarem por preceitos de um liberalismo perversamente excludente, articulam-se a outras agendas neoconservadoras, racistas, misóginas etc., ampliando a segregação social, a violência contra as mulheres, negros, indígenas e os grupos LBGTQIA+. Elas reafirmam ações e posturas contrárias à democracia.
São contrárias a uma ordem social, política e econômica e a qualquer projeto de formação humana que não seja aquele que sirva para assegurar os interesses do grande capital e das elites brasileiras.
Referenciando-nos em Boaventura de Sousa Santos (SANTOS, 2001), entendemos que a Professora Ciavatta cumpre seu papel enquanto intelectual e cientista de rejeitar qualquer insinuação da neutralidade. Ela tem claro de que lado está. Sabe que assumir o posicionamento político não fere a objetividade tão perseguida pela ciência. Atenta e sabedora de qual lado se encontra, ela assume o compromisso de pensar o real, de articular a produção do saber científico à conquista do bem comum, de um mundo melhor, de uma sociedade estruturada em bases solidárias e voltada para o fim da desigualdade social. Considera a desigualdade reflexo de uma ordem social na qual as pessoas são secundárias em relação aos interesses da acumulação, dos grandes grupos econômicos e do grande capital em todas as suas formas de expressão.
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Maria sempre nos lembra que a cidadania não faz parte do dicionário das elites brasileiras, quando pensam nos setores mais pobres da população.
A própria questão da cidadania é, originalmente, uma questão alheia à constituição histórica da sociedade brasileira, situação que teria se prolongado sob o fenômeno da exclusão dos “cidadãos” brasileiros de diversas instâncias da vida social. A questão subjacente, até hoje, é sobre quem pertence à comunidade política, como deve ser a participação da população em um processo que se pretende democrático e, consequentemente, quem são os cidadãos e quais são os seus direitos de brasileiros (CIAVATTA, 2002, p. 40).
Como destaca Boaventura de Sousa Santos, o cientista tem um papel importante de ser tradutor desta complexa realidade, contribuindo assim para as mobilizações sociais. Ser intelectual da transformação, papel exercido por Maria Ciavatta. Ela não tem, em relação à realidade, uma ação de contemplação. Produz conhecimento a partir do concreto, para nele atuar e transformá-lo. É na sua práxis, na ação intencional enquanto sujeito social que comprova o poder do conhecimento por ela produzido.
Esta ação tem sido a marca dessa professora enquanto cientista e intelectual; daí acharmos pertinente trazer para este texto um trecho do tributo que Trein e Lobo Neto fizeram a ela, o qual representa uma boa síntese do que desejamos expressar:
E, ao revisitar seus textos, nos convencemos de que para ela, o que para muitos era um teto a ser alcançado, sempre foi o chão e a base, concreto ponto de partida, de percurso e de chegada. Não um mundo de ideias a ser reproduzido- ou, simplesmente, contemplado-, mas ideias de mundo a serem construídas com as histórias de realidade que se entrelaçam em mediações que viabilizam o conhecer. Este, nascido e fluente no movimento da história, logo se faz real no ato de mediar ações de transformação e criação de novas realidades (TREIN; LOBO NET0, 2004, p. 59).
Na apresentação de seu livro “Mediações históricas de trabalho e educação” (CIAVATTA, 2009a, p. 11) ela diz que: “no processo de pesquisa, geralmente, é mais importante saber fazer perguntas do que respondê-las. Isso porque a pergunta revela a identificação do problema cuja compreensão ou solução buscamos”. Segundo ela, as respostas alcançadas, determinadas também pela pergunta mobilizadora, relacionam-se diretamente com a capacidade de compreensão do real, bem como têm implicações reais na capacidade de transformá-lo.
O motivo pelo qual ela faz pesquisa tem relação direta com a posição política e epistemológica que norteia o seu trabalho científico. Qualquer que tenha sido a
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temática de sua ação enquanto pesquisadora: educação básica, ensino médio, educação profissional, a relação trabalho-educação, estudos comparados, ensino superior, formação de professores, história da educação dos trabalhadores, a fotografia como fonte histórica etc., o central está em sua abordagem pautar-se pela perspectiva de os resultados contribuírem para avançarmos na edificação de uma sociedade mais justa, fraterna e democrática.
Sob este princípio político, ela nos faz o seguinte esclarecimento quando abordou os estudos historiográficos da relação entre trabalho e educação:
Analisar a relação entre trabalho e educação, sob o risco de sua historicidade, obriga-nos a explicitar nossos pontos de vista sobre algumas questões. Em primeiro lugar, o compromisso com a construção de uma história que sirva de meio de expressão de demandas manifestas pelos setores populares e, portanto, concorra para alargar a consciência no sentido da democratização da educação (CIAVATTA, 2009a, p. 39).
Ela deixa evidenciado o quanto seu trabalho de pesquisadora não se define em função do atendimento a um padrão estabelecido de pesquisador, no qual o quantitativo se sobressai em relação à dimensão qualitativa, padrão este que impera no âmbito acadêmico, onde a produção ou socialização do conhecimento produzido atrelam-se ao atendimento de uma lógica produtivista. Lógica pela qual o imperativo de produzir subsume o compromisso ético e político do pesquisador.
Neste contexto, o cientista preocupado, cada vez mais, em atender aos requisitos impostos pelas agências de fomento à pesquisa, descola o seu papel de pesquisador do papel de educador. A ciência, enquanto possível propulsora de transformação da realidade, sucumbe à lógica da aplicabilidade imediata, do retorno econômico.
Por essa lógica, a razão de fazer pesquisa sobre o que é a realidade concreta, sua transformação, se inverte para ser a de produzir para a inovação; conhecimento que, na prática, termina por ser mecanismo concreto de adequação à realidade, de criação de mecanismos de adaptação e de ausência de questionamento das distorções sociais e das práticas de desigualdade que insistem em se manter como modeladoras da convivência humana.
Em uma sociedade estruturada pela luta de classes – pressuposto que a Professora Ciavatta considera imprescindível para a análise da realidade concreta – a produção científica não tem neutralidade. O que se produz e se dissemina nos meios
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de comunicação, nos espaços de divulgação científica, na produção de imagens e fotografia, estão, ou a serviço da ordem instituída, ou mobilizados no sentido de desvelar as relações de dominação e de subjugação às quais a maioria da população está submetida.
Romper com a lógica da dominação, para aqueles que produzem conhecimento no campo das ciências sociais, demanda mobilizar-se no sentido de se confrontar com a ideologia burguesa, com os fenômenos que aparecem para os indivíduos como coisas naturais. Confrontar-se com o que parece natural é, ao mesmo tempo, afrontar a dominação, a perpetuação das relações de desigualdade. Pois como ela destacou (CIAVATTA, 2019), a realidade não é apreendida apenas pela observação dos aspectos aparentes.
A fotografia, por exemplo, temática e objeto de investigação, para a qual ela tem dedicado sua atenção em várias pesquisas, não pode ser vista apenas como uma imagem sem vínculos, sem propósitos e desprovida de historicidade.
O conceito da fotografia como mediação não expressa apenas sua face aparente, a representação, mas também, seus conteúdos ocultos, não percebidos ou não revelados à primeira vista, sua essência, as múltiplas relações que a contextualizam e permitem a compreensão de seu sentido e significado histórico (CIAVATTA, 2021, p. 21).
A fotografia é resultado de uma atividade social. No entanto, conseguir captar o que se expressa através da fotografia demanda pensá-la em sua totalidade.
No sentido marxiano, a totalidade é um conjunto de fatos articulados ou o contexto de um objeto com suas múltiplas relações ou, ainda, um todo estruturado que se desenvolve através das mediações, processos sociais complexos que sintetizam as múltiplas determinações de um objeto (Ciavatta, 2002). Consequentemente, as totalidades são tão heterogêneas e tão diversificadas quanto os aspectos da realidade (CIAVATTA, 2016, p. 145).
Ela pensa a fotografia como produção social e cultural de um tempo histórico específico. Daí ser necessário saber quem a produziu, qual o objetivo de sua produção e para quem se produz. Além disso, demanda ser necessário analisá-la a partir de outras fontes que permitam conhecer o objeto e apropriar do que está oculto na imagem.
Daí, como destaca a nossa professora, a fotografia precisa ser analisada em um processo de intertextualidade.
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Mas a fotografia não fala por si sobre tudo que oculta além de sua sedução, da aparência sensível, estetizada com o que se nos apresenta. Necessitamos de outras fontes documentais para identificá-la no tempo e no espaço, de modo a saber quem a produziu, a preservou, como está sendo utilizada, com que finalidades. Precisamos proceder a um processo de intertextualidade, isto é, de leitura das fotos recorrendo a outros textos para sua compreensão como fonte histórica (CIAVATTA, 2009b, p. 46).
Tomei como exemplo o trato metodológico para o trabalho com fotografia para pensar o processo de formação que se desenvolve historicamente na educação profissional brasileira. Recentemente, com a contrarreforma do ensino médio, ficou evidenciado, mais uma vez, a disposição das elites de negarem uma formação mais ampla para os jovens da classe trabalhadora. O empobrecimento e a fragmentação curricular, a existência do itinerário da formação técnica e profissional desvinculado da Base Nacional Comum Curricular, evidenciam que se quer estabelecer um processo formativo que seja impedimento de uma leitura mais complexa dos fenômenos sociais, políticos, econômicos etc.
Se fizermos referência à necessidade da intertextualidade para o trabalho com fotografia, não menor é a importância de se garantir a apropriação do conhecimento historicamente produzido para que os egressos da educação básica tenham a possibilidade de analisar e compreender os objetos de estudos, a partir de variadas dimensões. Neste sentido, o ensino médio integrado, alvo da militância intelectual e política da nossa professora, se coloca como um dispositivo fundamental para se garantir um modelo de educação básica e profissional que seja possibilitador de uma formação intelectual mais capaz de levar a juventude para além de uma mera e empobrecida adaptação para o trabalho.
A ideia de formação integrada sugere superar o ser humano separado historicamente pela divisão social do trabalho entre a ação de executar e a ação de pensar, dirigir ou planejar. Trata-se de superar a redução da preparação para o trabalho ao seu aspecto operacional, simplificado, escoimado dos conhecimentos que estão na sua gênese científico-tecnológica e na sua apropriação histórico-social. Como formação humana, o que se busca é garantir ao adolescente, ao jovem e ao adulto trabalhador o direito a uma formação completa para leitura do mundo e para atuação como pertencente a um país, integrado dignamente à sua sociedade política. Formação que, nesse sentido, supõe a compreensão das relações sociais subjacentes a todos os fenômenos (CIAVATTA, 2005, p. 85).
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Os estudiosos da relação trabalho e educação – e nisso os seus estudos sobre a história da educação dos trabalhadores muito nos ajudam – mostram que, na história educacional brasileira, a ideologia que permeia os projetos educativos objetiva tornar o trabalhador cada vez mais submisso e reprodutor do pensamento burguês. Desta forma, confrontar-se com a ideologia da dominação converte-se, para aqueles que se mobilizam pela construção de uma sociedade para além do capital, em tarefa inadiável. Neste sentido, ela ressalta a importância e o sentido da pesquisa científica como dispositivo, como produção social, que pode e deve opor-se às práticas que naturalizam a dominação e convertem os sujeitos dominados em “autores” da sua própria dominação. Daí ela afirmar que “a superação do aparente em busca de determinantes mais profundos, em busca de nexos reais, é condição sine qua non para fazer ciência, para conhecer a história que aparece permeada pela ideologia” (CIAVATTA, 2009a, p. 74).
Os trabalhos da Professora Ciavatta com relação à memória dos feitos dos trabalhadores deixam evidenciado que o tomar consciência do presente tem relação direta com o conhecer o passado.
A ação de contestação à ordem burguesa no tempo presente tem relação direta com o saber que as desigualdades de hoje têm vínculo com o projeto de dominação que ao longo da história brasileira vem se repetindo. Neste sentido, confrontar-se à naturalização das desigualdades que as elites nacionais tentam impor, demanda reconstruir a história no sentido de questionamento da própria história que nos é contada.
A história não é narrativa de fatos passados, das ações dos reis, príncipes e líderes políticos. A história é a produção social da existência humana. Logo, o passado deve ser visto como uma processualidade. Como ação dos indivíduos na construção de sua existência. A história é relação, contradição, conflito. Processos que se efetivam e determinam o tempo subsequente.
O mundo da história, em uma visão dialética, é o mundo do movimento, da transformação que pauta a vida tal qual a conhecemos como humanidade. No materialismo histórico é o mundo do ser social, dos homens e mulheres em sociedade, agindo, produzindo as próprias condições de vida, nas circunstâncias que lhes são dadas a viver (CIAVATTA, 2019, p. 20).
Seus estudos nos ajudam a perceber que para as elites os trabalhadores não fazem história. São coisas, objetos, não têm história (CIAVATTA, 2020). São dignos
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de registro como sujeitos ativos quando estão a serviço da lógica da acumulação, quando estão imbuídos de levar à frente um projeto social e econômico que interessa a quem detém este poder político e econômico.
A ausência de relatos da história nos quais se evidenciem os trabalhadores como protagonistas de um projeto político, social e econômico; além de expressar que a memória conservada e propagada é aquela que as elites buscam consolidar como narrativa de tempos passados, também se configura como mecanismo de impedimento de que as gerações futuras façam leituras que não sejam aquelas que as elites buscam impor como verdades.
A sua ação enquanto pesquisadora vai no sentido de reconstruir a história, de pensar o tempo presente, não como uma determinação do tempo passado, mas como consequência de práticas históricas que estruturaram, mantiveram e reconfiguraram relações de dominação que se potencializaram ao longo do tempo. Ter consciência deste passado é também uma das condições para desnaturalizar a desigualdade.
Aos trabalhadores há de ser pedagogicamente assegurada a possibilidade de releitura do mundo, de se pensar enquanto sujeito que faz história e perceber que muitos dos desafios postos no presente mostraram-se existentes em tempos passados e foram confrontados por gerações anteriores que não abriram mão de fazer história.
No Brasil, como em outros países, as elites sempre estiveram preocupadas em preservar seus feitos, suas vitórias e sucessos, suas dinastias e descendentes para a posteridade. Mas, é restrita a memória das lutas de resistência, das revoltas e das revoluções dos setores populares, das ações de resistência das classes trabalhadoras. Em nosso tempo, com a história oral, participamos de uma tomada de posse de todas as memórias e dos relatos históricos que com elas se constroem, por aqueles longamente excluídos de sua própria história. Os trabalhadores, as mulheres, os negros, os índios, os idosos tomam a palavra e se fazem ouvir no mundo silenciado pelos poderosos. Por que lutar, por que preservar a memória das lutas, são perguntas que adquirem um novo significado neste processo, o de passar às gerações futuras, aos mais jovens, o legado da esperança das conquistas de vida longamente ansiadas. Se a palavra não basta para transformar as estruturas sociais, ela alimenta o conhecimento e instaura verdades possíveis (CIAVATTA, 2016, p. 148).
Ela deixou muito claro em suas pesquisas, particularmente aquelas relacionadas à história da educação dos trabalhadores, que a escola tem relação direta com a conservação de valores, projetos e ações das classes hegemônicas.
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A escola sempre tende a naturalizar as práticas de dominação e se volta, no âmbito da formação profissional, para muito mais do que formar tecnicamente os trabalhadores, mas quer também a construção de subjetividades a serviço do capital. Há sempre a busca por adequar, ajustar, formatar os comportamentos dos trabalhadores de maneira que possam, “harmoniosamente”, submeter-se aos imperativos do capital. Seja nos períodos de início da industrialização, seja no momento de reestruturação do capital com a ascensão da produção flexível.
As condições históricas de exploração e alienação do trabalho educam no sentido adverso aos interesses da classe trabalhadora, para a realização dos interesses de classe do proprietário dos meios de produção (CIAVATTA, 2019, p. 27).
Em qualquer tempo histórico desde o início da industrialização, a relação entre escola e trabalho norteia-se pela subsunção da formação do trabalhador aos interesses do capital. No entanto, a escola enquanto espaço contraditório, como também é o mundo do trabalho, é um território de formação de consciência, de possibilidade de reconstrução história. Ela acredita e direciona seu trabalho no intuito (para que ela produz conhecimento) de garantir que o conhecimento científico possibilite aos jovens da classe trabalhadora (para quem se produz conhecimento) realizarem novas leituras das histórias, dos relatos e das imagens. Ela busca que se tornem mediações para estes sujeitos atuarem enquanto agentes das mudanças.
Se a realidade da escola a serviço do sistema capital cultiva o trabalho na sua negatividade, ela também oferece aos jovens a oportunidade de acesso aos conhecimentos técnicos, tecnológicos, científicos e histórico-sociais presentes no exercício teórico-prático da educação profissional. A totalidade social dos processos educativos não se esgota na alienação prevista pelo sistema, ela gera também a resistência que pode conduzir à sua superação (CIAVATTA, 2019, p. 28-29).
No entanto, não é qualquer escola que será capaz de contribuir para um projeto de emancipação. Particularmente a educação profissional, na perspectiva emancipatória, da tomada de consciência do real, não prescinde de uma formação científica, de uma formação de caráter geral que assegure os conhecimentos fundamentais a uma leitura crítica de mundo, dos fatos, das imagens, para além da aparência.
Neste sentido, ao defender, de forma intransigente, uma educação profissional diferente da que tem sido ofertada à classe trabalhadora, a Professora Ciavatta, está,
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tal qual Antonio Gramsci, afirmando o papel mediador que tem a formação escolar no processo de construção de lideranças capazes de ter uma práxis real de construção de um outro projeto de sociedade.
Todo empenho teórico e prático dos pesquisadores que utilizam a base teórica do materialismo histórico, está no sentido de superar a compreensão de formação profissional apenas como treinamento para atividades manuais, e conceber a educação como formação humana, como um processo de ampliação do conhecimento e da leitura do mundo. Como o trabalho, a formação humana deve ser entendida e praticada em relação aos conceitos de totalidade da vida social e do trabalho como atividade estruturante da vida humana em todo seu potencial, dignidade e ética (CIAVATTA, 2019, p. 28).
Apreendemos com a nossa Professora que não há neutralidade no trabalho pedagógico escolar, assim como não há neutralidade nos espaços de formação frequentados pelos indivíduos ao longo da sua vida.
Toda prática pedagógica, estruturada sempre em função e decorrente do mundo do trabalho, é necessariamente constituinte de um novo ser. Como ela destacou “o ser é e não é ao mesmo tempo, porque constitui-se no movimento, na permanente transformação” (CIAVATTA, 2019, p. 17). Desta forma, pensar o papel do pesquisador enquanto formador de novas subjetividades, de novas práticas, de ser proporcionador de novas leituras de mundo, nos leva a pensar que embora o pesquisador na área de educação desenvolva o seu trabalho no interior das instituições de pesquisa, o que ele produz deve reverberar em outros espaços formativos.
Pensar a ação do pesquisador como mediação para a construção de nova realidade é pensar o quanto ele necessita dialogar com os espaços que também formam os trabalhadores. Ou seja, a escola, ainda que seja o lócus principal de atenção dos pesquisadores da educação, não é o único e nem o melhor local de construção de práticas na perspectiva de uma nova sociedade. Ela nos alerta para o quanto precisamos dialogar com os movimentos sociais e com outros espaços informais de educação.
Cabe ressaltar que os processos educativos não ocorrem apenas na escola, mas também nos espaços informais da educação para o trabalho, nas experiências de vida para a cidadania, para a cultura, nos movimentos sociais e no desenvolvimento das capacidades organizativas e de resistência (CIAVATTA, 2019, p. 28).
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Por último, quando o pesquisador se conforma com a lógica da dominação, quando perder sua rebeldia, seu papel de questionador da ordem instituída, quando não mostrar sua indignação e não se mobilizar de forma intransigentemente contrária à desigualdade; quando ele se moldar à lógica da competição que tende a estruturar e orientar o trabalho acadêmico, sua ação tenderá ser apenas de reforço ao instituído pela ordem burguesa. Será mais um a naturalizar as arbitrariedades históricas que vivenciam e vivenciaram os grupos e classes sociais que historicamente são exploradas ou desprezadas pelas elites e classes dominantes. Se lembrarmos de Pablo Milanés diríamos: pobre do pesquisador que um dia a história o apague sem a glória de ter tocado espinhos.
Quando há esta perda de rebeldia, a realidade que efetivamente demanda transformação, passa a ser apenas alvo de contemplação. O conhecimento novo termina por não questionar as velhas relações de dominação que impedem a maioria da população de viver um projeto novo de sociedade, no qual as pessoas vêm em primeiro lugar, e não o capital.
Mais fortes que a produção social e da vida acadêmica, contudo, são as imposições da inquietação e da inconformidade humana. É neste espírito de insatisfação e “rebeldia” que nos dispomos a tentar a travessia do campo obscuro dos objetos que constituem a prática político-pedagógica (CIAVATTTA, 2009a, p. 47-48).
Neste sentido, como destaca Maria Ciavatta, a inconformidade deve pautar a nossa ação. E esta inconformidade tem pautado a ação desta pesquisadora militante que muito nos tem ensinado a não sermos apenas sujeitos contemplativos, mas sim, sujeitos históricos que se fazem no mundo do trabalho.
Com ela, aprendemos sempre a nos lembrar de Gramsci. De termos sempre o pessimismo da inteligência, do pensar criticamente, mas ter otimismo da vontade, da esperança de construir algo novo, de pôr fim ao que produz a negatividade de direitos e a vida indigna a milhões de pessoas.
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V.21, nº 44, 2023 (janeiro-abril) ISSN: 1808-799 X
Justino de Sousa Junior 2
Resumo
Este artigo foi desenvolvido a partir de uma intenção maior: homenagear o filósofo Barata-Moura. Por entender que a melhor maneira de homenagear um intelectual da grandeza de Barata-Moura é tentando fazer o que ele mais preza, que é o exercício do pensar, o artigo se propõe a ir além das menções elogiosas, totalmente merecidas, pondo em discussão aspectos fundamentais da investigação do filósofo sobre a categoria práxis e sua relação com o problema do idealismo. O artigo procura demonstrar o quanto as pesquisas de Barata-Moura sobre a práxis resultam fundamentais para as pesquisas em educação.
Palavras-chave: Barata-Moura; práxis; idealismo; formação humana.
1 Artigo recebido em 27/02/2023. Aprovado pelos editores em 05/03/2021. Publicado em 13/04/2023. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v21i44.57572.
2 Doutor em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Minas Gerais - Brasil.
Professor da Faculdade de Educação (FACED) e do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da Universidade Federal do Ceará (UFC), Ceará - Brasil. E-mail: justinojr66@yahoo.com.br. Lattes: https://lattes.cnpq.br/5835023680619914. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2614-418X.
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JOSÉ ADRIANO BARATA-MOURA - UN FILÓSOFO, UN ARTISTA, UN COMBATENTE
Resumen
Este artículo se desarrolló a partir de una intención mayor: homenajear al filósofo Barata-Moura. En efecto, la mejor manera de honrar a un intelectual de la grandeza de Barata-Moura es intentando hacer lo que más valora, o sea, el ejercicio de pensar. Así, este artículo propone ir más allá de las menciones elogiosas, poniendo en discusión aspectos fundamentales de la investigación del filósofo sobre la categoría praxis y su relación con el problema del idealismo. Aquí se busca demostrar cómo la investigación de Barata-Moura sobre la praxis es fundamental para la investigación en educación.
Palabras-llave: Barata-Moura; praxis; idealismo; formación humana.
BARATA-MOURA: A PHILOSOPHER, AN ARTIST, A FIGHTER
Abstract
This article was developed from a greater intention: to honor the philosopher Barata-Moura. Indeed, the best way to honor an intellectual of Barata-Moura's greatness is by trying to do what he values most, which is the exercise of thinking. Thus, this article proposes to go beyond the laudatory mentions, discussing fundamental aspects of the philosopher's research on the praxis category and its relationship with the problem of idealism. The article seeks to demonstrate how Barata-Moura's research on praxis is essential for research in education.
Keywords: Barata-Moura; praxis, idealism; human formation.
Por falta de diálogos acadêmicos, culturais mais estreitos e profundos entre Brasil e Portugal a obra do filósofo Barata-Moura tardou demasiado para circular mais amplamente entre nós. Essa circulação, todavia, ainda não corresponde à importância da obra, mas vão pouco a pouco as reflexões do intelectual português penetrando em certos ambientes acadêmicos e passando a fazer parte das agendas de estudos de pesquisadores brasileiros.
Curiosamente, no caso do Brasil é entre educadores e pesquisadores do campo da educação que mais cresce o interesse pela obra do filósofo. Grande parcela dos convites feitos a Barata-Moura para conferências e atividades no Brasil parte de fóruns ou entidades ligadas ao campo da educação; quanto às publicações do filósofo no Brasil, os periódicos de educação, como esta Revista Trabalho/Necessário estão, seguramente, entre os que mais divulgam textos do autor; e entre os pesquisadores que procuram Barata-Moura em busca de orientação acadêmica em nível de doutorado ou pós-doutorado ou em busca de estabelecer intercâmbios acadêmicos os pesquisadores da educação certamente estão em quantidade destacada.
A boa receptividade às ideias de Barata-Moura entre pesquisadores do campo da educação certamente se explica devido ao rigor das análises, mas também ao teor radicalmente crítico delas. O crescimento do interesse pela obra de Barata-Moura
entre educadores brasileiros seguramente se explica pelo casamento perfeito entre o
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vigor das análises e a avidez desses educadores por teorizações radicalmente críticas que sejam efetivamente capazes de ajudar a compreender e transformar as grandes questões sociais que vivenciam.
O percurso da formação do filósofo encontra no final dos anos 1960 um estudante universitário vinculado à Juventude Universitária Católica que participava ativamente dos processos de fermentação do 25 de Abril, participação essa que veio a ser potencializada com a atuação política do cantor de intervenção. Naqueles anos de ditadura, vigilância, censura, prisão e tortura a música era uma das formas através das quais os ´cantautores` de intervenção podiam contribuir para a transformação social.
O jovem ativo, artista engajado, comunista seguiu uma carreira acadêmica brilhante ao mesmo tempo em que encontrava tempo para compor canções infantis. Agora o cantor de intervenção que atingia com finalidades políticas e ideológicas os adultos também embalava, divertia e ensinava os miúdos. Com o tempo as tarefas políticas e compromissos acadêmicos foram se sobrepondo aos demais interesses, e a obra filosófica foi se gerando e consolidando ao tempo em que a figura do intelectual e militante, por sua vez, se estabelecia como importante referência teórica. Nessa caminhada foi eleito deputado ao Parlamento Europeu pelo Partido Comunista Português (PCP) em que atuou nos anos de 1993 e 1994 e, posteriormente, eleito reitor da Universidade de Lisboa para uma gestão que durou de 1998 a 2006.
Barata-Moura é autor de uma obra rica e densa que cobre amplamente todo o espectro do que há de mais relevante na filosofia ocidental. Sua obra examina com rigor toda uma tradição filosófica sempre a partir dos textos originais, ao menos no que concerne às principais línguas europeias, ou seja, dos clássicos da Antiguidade aos alemães modernos, sem perder de vista os desdobramentos filosóficos do século XX até os dias de hoje.
O pensador Barata-Moura destaca-se de imediato pelo posicionamento político e ideológico enraizado no melhor da tradição marxista da qual é um profundo conhecedor. Barata-Moura não é apenas um filósofo, como tantos que são rigorosos, ilustrados, competentes, mas auto declarados pensadores apolíticos, apartidários, ao
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contrário, Barata-Moura é homem de partido, militante engajado, disciplinado, além de artista: quem disse que não é possível?
Alguém que por acaso venha a ter a oportunidade de confraternizar com o José Adriano, sem perceber será envolvido por um camarada, homem simples, doce, sensível, inteligente, engraçado, risonho, interessado nas conversas dos outros e se encontrará numa companhia aconchegante, desprovida da vaidade e da prepotência que muitas vezes acompanham certo tipo de intelectual, de tal maneira que o interlocutor se esquecerá que está diante de um grande pensador, ilustradíssimo que acumula dentre outros os títulos de Vice-Presidente da Internationale Gesellschaft Hegel-Marx für dialektisches Denken; Deputado ao Parlamento Europeu (1993-1994); Reitor da Universidade de Lisboa (1998-2006); Membro do Conselho Nacional de Avaliação do Ensino Superior (1999-2006).; Membro do Conselho Nacional de Educação (2007-2011); Sócio correspondente da Academia Internacional da Cultura Portuguesa; Sócio efetivo da Academia das Ciências de Lisboa; Grande-oficial da Ordem Militar de Santiago da Espada.
O quadro da personalidade de Barata-Moura compõe-se de qualidades diversas em que ressalta uma figura incomum: o homem simples que é um grande pensador; o comunista, membro de partido que é cantor de músicas infantis; o reitor de universidade que é também um professor acessível aos estudantes; o marxista que é um artista sensível, interessado nos mais diversos temas culturais – esse último par de qualidades não deveria, mas surpreende as noções mais despreparadas.
A obra de Barata-Moura, essencialmente filosófica, transcende a filosofia, enfrenta um amplo espectro de questões sociais e dialoga com interesses bastante diversificados.
Uma das áreas das ciências humanas que se enriquecem enormemente com as reflexões desenvolvidas por Barata-Moura é a da educação. Dentre outros desenvolvimentos importantes para a educação, destacam-se as pesquisas de Barata-Moura dedicadas à categoria filosófica práxis.
As pesquisas de Barata-Moura sobre a práxis importam para os educadores primeiro porque, de partida, representam um enorme avanço conceitual; elas promovem um amplo e fecundo debate com as mais diferentes correntes filosóficas; preenchem lacunas existentes nas teorizações sobre a práxis e elaboram uma abordagem original sobre a categoria. Em segundo lugar porque, no que concerne à educação, elas oferecem apoio fundamental às reflexões sobre a formação humana.
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Da obra do filósofo, ao lado de outras publicações, destacam-se três livros totalmente dedicados ao tema da práxis, são eles: Da representação à práxis – itinerários do idealismo contemporâneo (1986); Ontologias da ‘práxis’ e idealismo (1986) e Prática – para uma aclaração do seu sentido como categoria filosófica (1994). Nesses três livros, principalmente, desenvolve-se uma reflexão extremamente importante para a filosofia, que tem significado ainda mais valioso para o campo das pesquisas em educação. Indicamos os aspectos dessa reflexão que consideramos as contribuições mais decisivas para a educação: em primeiro lugar a afirmação do caráter categorial da práxis e, ao lado disso, a altíssima valoração dessa categoria dentro do sistema filosófico marx-engelsiano; em segundo lugar, a reflexão desenvolvida por Barata-Moura nos auxilia na discussão sobre o ponto alto das contribuições marxistas para a educação, particularmente no caso dos debates brasileiros, que consiste na afirmação do trabalho como categoria fundante do ser social, o que conduz à elaboração do postulado do princípio educativo do trabalho e culmina na posição do trabalho como a atividade que explicaria no todo os processos da formação humana e daria, sozinha, sentido a todos os desdobramentos da constituição do humano social; por último, indicamos aquele que parece ser o ponto central das reflexões de Barata-Moura, que é a investigação que empreende, através da práxis, em torno do idealismo filosófico e de seu enraizamento, inclusive em setores
e correntes do marxismo.
Quanto ao caráter categorial da práxis é um tema que, de fato, especialmente no âmbito dos debates educacionais, embora não como exclusividade sua, assoma como um grande problema. No campo da educação, de fato, verificam-se dois problemas básicos bastante relevantes: a ausência de uma compreensão da práxis que a reconheça como categoria filosófica e, associada a isso, a enorme carência no que concerne à definição precisa da categoria.
No tocante a isso é importante atentar para o fato de que esse problema realmente não é tão novo, nem muito menos algo exclusivo do campo da educação. Na verdade, nós também padecemos do mal que Kosik já havia indicado há tempos, isto é, da “obscuridade conceitual das definições da práxis e do trabalho: o trabalho é
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definido como práxis, e a práxis nos seus elementos característicos, é reduzida a trabalho” (KOSIK, 1995, p. 222).
Podemos afirmar com segurança que no campo dos estudos e pesquisas em educação a práxis não é reconhecida como uma categoria filosófica, dessa maneira, consequentemente, não cumpre nenhum papel analítico específico e relevante. Se para Marx – ideia retomada depois por Lukács (2013, p. 217) – “as categorias são formas de ser, determinações da existência” - no caso da práxis, esta não expressa, representa, revela ou explica nenhum fenômeno, objeto ou processo social de modo rigoroso a ponto de poder desempenhar função importante no processo de construção do conhecimento da realidade social.
No âmbito dos estudos e pesquisas educacionais, mas não apenas, a práxis se apresenta como uma palavra carregada de simbolismo, que pode estar ou não ali, isto é, sua presença não se impõe como uma necessidade analítica, sua presença se define muito mais conforme as intenções que eventualmente se tenha de atribuir ao discurso alguma marca crítica ou progressista ou revolucionária, ou politicamente avançada, como se queira.
Nesse sentido, constatamos que as reflexões educacionais, mesmo aquelas que podem ser caracterizadas genericamente como reflexões críticas ou mesmo as reflexões assumidamente marxistas, costumam prescindir da categoria filosófica “práxis”, embora se utilizem fartamente do vocábulo “práxis”. É fácil constatar a presença abundante do vocábulo “práxis” nos textos acadêmicos, pedagógicos, especialmente no escopo das análises críticas ou marxistas, contudo, normalmente, esse vocábulo se apresenta investido, revestido de grande valor simbólico, de uma carga semântica associada à criticidade, ao ativismo transformador da realidade social de sentido progressista, politicamente avançado, porém, totalmente destituído de qualquer caráter analítico explicativo.
O que falta ao vocábulo práxis em termos de rigor analítico, de envergadura conceitual, enquanto categoria filosófica lhe sobra em simbolismos. A palavra práxis normalmente empresta ao texto grande peso simbólico ajudando a definir seu caráter ideológico e suas pretensões políticas, pois a práxis está associada à revolução social, às lutas dos oprimidos, à realidade social dos “de baixo”. A práxis normalmente antagoniza com o exercício da dominação social, isto é, não combina com textos que justifiquem os sistemas opressivos e, definitivamente, não se enquadra em discursos pragmatistas, técnicos relativos às operacionalizações do sistema social vigente, das
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empresas capitalistas, do mercado capitalista, das burocracias estatais, sejam jurídicas, políticas, militares.
A práxis é uma palavra, mas não é uma palavra qualquer, é um cravo vermelho3, funciona textualmente como um estandarte, como o brasão representativo de todo um imaginário, de toda uma tradição que não é exclusiva de uma perspectiva política dada, isto é, não é socialista, comunista, anarquista ou social democrata, mas está firmemente fincada como uma bandeira no horizonte ideológico político das transformações sociais progressistas e do chamado pensamento crítico.
A práxis não deixa de ter sua importância, mas essa importância reside na sua condição de recurso à eloquência discursiva de esquerda. A práxis tem funcionado como uma espécie de tatuagem do discurso, sem alcançar, contudo, o estatuto de categoria filosófica. A categoria filosófica ou científica distingue-se da palavra comum porque guarda com o real uma relação explicativa, não necessariamente ideológico simbólica, que é definida de modo científico ou filosófico rigoroso.
No uso corrente a palavra práxis, embora não chegue à categoria e, consequentemente, acabe dispensando maiores esforços teóricos de definição conceitual, não deixa de ter significados genéricos bem enraizados no “senso comum acadêmico” e em certos círculos marxistas.
Um desses significados correntes é o que estabelece a práxis como articulação entre teoria e prática. Conforme essa definição, então, teríamos além da prática e da teoria um terceiro elemento, a práxis, que seria aquele que logra a realização do casamento perfeito dos outros dois elementos, a teoria e a prática. Essa definição, amplamente divulgada e fortemente dominante não deixa de ser bastante curiosa afinal, se resolvermos iniciar uma investigação, talvez tomando de empréstimo a lanterna de Diógenes para iluminar nossas estradas não em busca de um homem honesto, mas para procurar a práxis efetiva, real, pura e os sujeitos realmente capazes de exercê-la enfrentaremos certamente muita dificuldade para encontrá-los.
No interior dessa definição a teoria permanece na sua condição, inalterada, mas no âmbito do fazer humano, da ação humana efetiva, dois termos são
3 Que o leitor não se confunda. Não se trata de uma tentativa de negar o caráter ideológico do discurso. Trata-se de uma crítica à redução da práxis a uma mera marca simbólica. De resto, concordamos com Eduardo Prado quando defende que “os textos que escrevemos não poderão deixar de incluir estereótipos: palavras que são resenhas, emblemas de reconhecimento, cravos vermelhos”. (COELHO, Eduardo Prado. Aplicar Barthes. Prefácio. In: BARTHES, R. O Prazer do texto. Lisboa: Edições 70, 1973, p. 9-30).
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contrapostos: a prática, que seria a ação pura, simples, destituída de fundamento teórico (ação cega) e a práxis, essa sim, embutida de - ou baseada em - teoria. De cara ressalta o caráter hierárquico entre os dois termos, caráter esse que, obviamente, terá implicações sobre os sujeitos e suas relações. Ora, como se vê, a práxis se revela como uma atividade elevada, que envolve teoria, logo, apenas os sujeitos portadores de aptidões e qualificações mais elevadas seriam capazes de realizá-la; já a prática representaria todas as atividades comuns da gente comum, de maneira que haveria na realidade uma clara distinção entre o bloco dos sujeitos da práxis e o bloco dos sujeitos da prática. Convenhamos: não pode haver definição mais exótica e mais inadequada ao contexto da perspectiva histórica da emancipação humana.
Essa definição tem outro problema ainda mais grave que é conduzir ao apagamento do que é específico da teoria e do que é específico da prática na linha da crítica de Barata-Moura à teoria prática de Althusser (sobre quê falaremos mais adiante). Seguindo com o filósofo português, mesmo quando trata da categoria filosófica em contextualidade teórica, ele prefere usar o termo prática4 justamente para evitar esse tipo de problema. De acordo com Barata-Moura, no âmbito do fazer humano efetivamente transformador o que há é a prática (a mesma práxis) que significa todo fazer humano transformador de realidades materiais não importando o grau de especialização, de fundamentação, de saberes que elas envolvem: toda ação humana transformadora de realidades materiais é prática (práxis) de modo que resulta totalmente inadequada aos olhos de Barata-Moura aquela mencionada definição. Conforme observa o filósofo, a distinção entre a forma nativa prática e a forma de origem grega práxis “empobrece e mistifica [o conceito], retira-lhe acutilância, embotalhe o gume, remete-[o] para a simples esfera dos ‘ideais’ e das ‘essências desrespeitadas’” (BARATA-MOURA, 1986b, p. 123-4).
Esse não é o único problema existente nas tentativas, muitas vezes aleatórias, de atribuir significado à palavra práxis. Normalmente a práxis vem acompanhada de elementos não ditos que funcionam como adereços do estandarte que ela é. São noções acopladas à palavra que, embora não sejam resultado de definições rigorosas, tem peso elevado. Uma delas é aquela que faz pender a palavra práxis para certo
4 A fim de evitar alguma confusão: para Barata-Moura a palavra da língua portuguesa prática atende à designação da categoria filosófica, dispensando qualquer necessidade de utilização do termo de origem grega práxis. Particularmente, quando somos nós a argumentar, mantemos o termo práxis, porém, por razões muito distintas das razões de Markovic, isto é, apenas para ajustar mais comodamente o entendimento geral.
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horizonte ideológico, como uma espécie de apropriação pela esquerda. O Primeiro passo consiste em identificar a práxis com o campo da política, em seguida esse campo se estreita até que nele só caiba a política exercida pelos “de baixo”, assim só alguns setores da sociedade - os oprimidos – exercitam a práxis. Além disso, há outro aspecto que se soma para tornar a práxis um tipo de atividade realizável apenas por sujeitos muito especiais. Esse elemento é a definição da práxis como atividade elevada, não alienada, não estranhada, superior às reles atividades cotidianas, corriqueiras.
Esses embaraços encontram respaldo e talvez origem em elaborações como as de Markovic que propõe uma distinção entre as práticas humanas elevadas, que se chamariam práxis, e as práticas ordinárias, que seriam designadas simplesmente como prática:
A práxis tem que ser distinguida da categoria puramente epistemológica de prática [practice]. A ‘‘prática” refere-se simplesmente à actividade de mudar um objecto de qualquer Sujeito e esta actividade pode estar alienada. A “práxis” é um conceito normativo e refere-se a uma actividade ideal especificamente humana que é um fim-em-si-própria, uma carreira de valores básicos e, ao mesmo tempo, um padrão de crítica de todas as outras formas de actividade. (MARKOVIC, apud, BARATA-MOURA, 1986b, p. 123).
Por essa razão a opção de Barata-Moura por um só termo - prática – para referir todas as ações humanas transformadoras de realidades materiais sem distinção, isto é, sem artificial e arbitrariamente separar no nível discursivo aquilo que na realidade objetiva está ontologicamente integrado na totalidade social; bem como sua definição concisa e precisa da categoria, terminam adquirindo grande relevância. Primeiro porque, evidentemente, resolve o problema da obscuridade conceitual e, segundo, porque estabelece fundamentalmente uma frontal demarcação com o idealismo.
Para Barata-Moura o que mais importa além de esclarecer o sentido fundamental da categoria práxis é confrontar as visões idealistas: em primeiro lugar se coloca a noção de que fora da práxis ou da prática nenhuma transformação material, objetiva é possível, portanto, nenhuma teoria ou o melhor dos pensamentos nada pode em termos de transformação material, apenas a prática logra realizar transformações materiais. Em segundo lugar vem a demonstração de que a prática, embora seja uma categoria fundamental para entender a formação humana e a posição do ser social, não é ela que cria a materialidade da existência, ela é, antes,
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algo que pertence a essa materialidade sendo secundária a ela e não uma força a ela externa que a institui.
O sentido filosófico da práxis enquanto categoria – e aqui já entramos no ponto seguinte – consiste na sua capacidade de definir essencialmente a condição humana: o homem e a mulher são aqueles que se fazem humanamente pela práxis e só pela práxis assim se fazem - o homem/mulher é o ser da práxis. Estamos aqui diante de uma definição essencialmente marx-engelsiana. Por aqui se pode observar o que torna a práxis uma categoria filosófica ao mesmo tempo em que se estabelece seu lugar no sistema categorial marxista. A práxis não só é uma categoria, mas é uma categoria fundamental pois é ela que, em última instância, explica e define as bases do humano social.
a meu ver, decerto polemicamente - um dos contributos maiores de Marx para o patrimônio filosófico da humanidade situa-se precisamente neste quadro duplamente articulado de um reconhecimento do papel central da prática na mediação história do ser pelas coletividades humanas, e de uma sua compreensão essencial como atividade material de transformação (BARATA- MOURA, 1994, p. 88).
A práxis não é só uma palavra que tatua um texto, a práxis se faz categoria filosófica fundamental porque é ela e nenhuma outra que define genericamente o homem/mulher. Não é a religião, não é a linguagem, não é o riso, não é a política, não é a arte, nem mesmo é o trabalho puramente, mas a práxis - e dentro dela também o trabalho - que fundamentalmente define o homem/mulher. O homem/mulher é o ser que se faz a si próprio no metabolismo com o resto da natureza. Esse metabolismo é essencialmente prático, portanto, é por meio da práxis que se realiza o metabolismo com a natureza a partir do qual se erguem outras formas metabólicas sociais também de caráter essencialmente prático.
Por esse caminhar chegamos à definição essencial da categoria práxis conforme Barata-Moura: atividade humana material, transformadora de realidades naturais e ou sociais objetivas. Sem as transformações materiais operadas pela práxis não há desenvolvimento humano; as transformações materiais cujo sujeito é o homem/mulher, que começam com o trabalho (práxis produtiva), mas se
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desenvolvem, complexificam e o ultrapassam, são exatamente as transformações que, vistas em bloco, respondem pela fundação e desenvolvimento do ser social. Se a existência em geral é essencialmente material e sua história se define como um perpétuo processo material de transformações, no plano do ser social dá-se o mesmo, sendo que aqui as transformações são operadas pela práxis.
A dimensão humana, subjetiva, é parte da existência material como totalidade que tudo comporta, nesse sentido a práxis, como elemento integrante dessa totalidade, funda o ser social – o ser social é, portanto, produto das transformações materiais realizadas pela práxis. Daqui desenvolveremos mais adiante algumas linhas sobre o combate de Barata-Moura ao idealismo: fora da materialidade não há existência e fora da práxis não há desenvolvimento humano, portanto, a consciência ou o “mundo das ideias” isolado da materialidade transformadora da práxis é impotente para sustentar a realidade do ser social; o “mundo das ideias” é, antes, produto da existência material, prática, transformadora, embora o pensamento e a consciência sejam ao mesmo tempo ingredientes ativos no processo histórico. Para Barata-Moura (1978, p. 253), “o conhecimento, o pensamento, a teoria, por si sós, não transformam a realidade objetiva. Em si mesmos, carecem de poder material, de eficácia real, para nela determinarem por si próprios alterações objetivas”.
O passo seguinte nesta exposição é a discussão do redimensionamento da posição do trabalho no processo da formação humana. Adianto, para evitar precoces exaltações de ânimos, que não existe aqui nenhuma intenção de negar a posição ontológica do trabalho nem muito menos as contribuições analíticas de Barata-Moura auxiliariam nisso. Então vamos lá ver de que redimensionamento se está a falar e que tipo de auxílio teórico oferecem as contribuições de Barata-Moura para essa discussão.
Uma das contribuições mais importantes que o pensamento crítico, particularmente o marxismo, apresentou à pedagogia foi a reflexão sobre a categoria trabalho mostrando que a educação transcende a escola e defendendo que os processos educativos, que perpassam toda a complexa cadeia das relações sociais, estão fundados nos processos materiais através dos quais os indivíduos produzem sua existência.
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O marxismo oferece à educação elementos ricos de uma pedagogia que parte de uma fecunda compreensão das linhas gerais e fundamentais da formação humana e culmina numa ambiciosa perspectiva de transformações práticas no horizonte da emancipação humana. Desse modo, as contribuições teóricas marxistas redundam não na negação, obviamente, mas na relativização das preocupações com a escolarização, e terminam revelando as limitações do escolacentrismo estreito.
Nessa perspectiva, o trabalho emerge como a atividade humana material, transformadora que funda e abre o processo histórico, material, prático no qual se dá a feitura do humano. Mas, o trabalho não é só um pilar de sustentação do palco em que se desenrola o drama da formação do humano. Ele é a própria atividade na qual o humano se vai fazendo como tal. Insistimos: o trabalho não é apenas a atividade prática, material que permite ou favorece o exercício pedagógico da feitura do humano como processo externo a ele; o trabalho é em si já um dos momentos em que se exercita essa feitura. Nesse sentido, convidamos o leitor a pensar sobre a elaboração engelsiana:
El trabajo es, dicen los economistas, la fuente de toda riqueza. Y lo es, en efecto, a la par con la naturaleza que se encarga de suministrarle la materia destinada a ser convertida en riqueza por el trabajo. Pero es infinitamente más que eso. El trabajo es la primera condición fundamental de toda la vida humana, hasta tal punto que, en cierto sentido, deberíamos afirmar que el hombre mismo ha sido creado por obra del trabajo (ENGELS, 1961, p. 142).
Quando fala Engels no “hombre mismo creado por obra del trabajo” o que ele nos está a dizer? Suspeito que jamais pensamos sobre essa afirmação de Engels com a radicalidade que ela merece, consequentemente, acredito, nunca extraímos dela todo seu vigor filosófico e pedagógico. Seguramente não era a intenção do autor aventurar-se pelos meandros das questões pedagógicas. Engels não poderia sequer imaginar que aquela sua formulação poderia vir a adquirir quase um século e meio depois a importância pedagógica que lhe estamos a atribuir.
Pois bem, assim como o autor é muitas vezes subestimado, a obra na qual se encontra a afirmação é subestimada, também sua tese, que ora apreciamos, dificilmente tem sua potencialidade crítica devidamente explorada, dela se costuma extrair apenas os elementos mais aparentes que não deixam de ser importantes. Engels ao mesmo tempo em que reconhece a grandeza teórica da descoberta dos economistas clássicos, que perspectivaram a positividade do trabalho enquanto força
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criadora de riqueza, também aponta uma sua limitação e, de imediato, a resolve: o trabalho não cria apenas as riquezas, ele cria o próprio homem. Acontece que a genial proposição de Engels é apanhada, isto é, ela é aproveitada apenas como uma frase que acrescenta outro objeto a mais entre as criações do trabalho, ou seja, agora entre as riquezas produzidas pelo trabalho encontra-se também o próprio homem. Ora, se isso já não era pouco, quer dizer, um intelectual europeu do século XIX, um homem bem situado economicamente, defender o trabalho, atividade de gente subalterna, de homens e mulheres rudes, muitas vezes analfabetos, como a atividade que teria criado a humanidade; então, se essa contribuição já não era pouca, queremos demonstrar ainda que também não era tudo, pois Engels nos favorece ir mais fundo e além desse dado.
O que Engels nos está a dizer é que ao criar o homem, o trabalho realiza, quer dizer, o homem realiza através do seu trabalho a feitura de si mesmo. Mas, o que é criar o homem/mulher? A criação do humano não é simplesmente a posição de um ser que se modelou, que se aprontou e está dado. O fazer-se a si mesmo do homem/mulher envolve necessariamente o conhecer, o descobrir, o eterno fazer, desfazer e, acima de tudo o aprender/ensinar constante, perpétuo. Dessa forma, o pedagógico, o educativo não é apenas aquilo que o trabalho suporta e que lhe é externo e secundário; o pedagógico não é aquilo que apenas se sustenta na práxis produtiva; o educativo, o pedagógico é intrínseco ao trabalho, pertence a ele, é dele um ingrediente essencial. Assim, a elaboração do conhecimento e associado a ela o ensinar e aprender foram desde sempre ao lado da produção dos valores de uso práticas essenciais para a formação e desenvolvimento do humano.
Desse modo, numa interlocução mais profunda com Engels diríamos que o trabalho não é só a fundação do ser social, quer dizer, ele não é apenas a plataforma sobre a qual se ergue a novidade do social. O trabalho é a modalidade de práxis na qual e a partir da qual se faz o humano. Mas, a radicalidade crítica dessa construção pedagógica de Engels reside na ideia de que esse fazer humano não se resolve no fato de que o homem/mulher se tornou capaz de produzir conscientemente seus meios de vida – até porque esse tornar-se consciente não é possível sem a prática do ensinar/aprender.
A radicalidade da construção engelsiana reside, por fim, em nos permitir pensar o homem/mulher como ser que praticamente se faz e só se faz praticamente e que esse exercício prático envolve não só o produzir consciente, mas também o aprender
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e ensinar como práticas tão essenciais como as práticas de transformação da natureza com objetivo de produzir os valores de uso necessários para a sobrevivência.
A partir de Engels podemos – devemos – pensar materialista e dialeticamente a posição do humano necessariamente como um processo de formação. Para a posição e desenvolvimento do ser social foi tão essencial quanto a prática produtiva o ensinar e aprender. Resumidamente, é a categoria práxis que efetivamente alcança o processo da formação humana na sua totalidade complexa, pois envolve o transformar prático da natureza e o construir prático da socialidade humana que é, essencialmente, educativo.
Essa possibilidade de desenvolver uma proposição pedagógica de tamanho relevo a partir das elaborações engelsianas do texto de 1876 certamente não estava entre as intenções do autor, contudo, acreditamos ser um caminho de reflexão extremamente fértil e pertinente.
Essa compreensão do trabalho, como atividade geradora do humano, portanto, carregada de dimensão pedagógica que o marxismo propaga e acaba penetrando na Pedagogia é de um significado teórico incalculável. É daí que advém o postulado do princípio educativo do trabalho, talvez a maior contribuição do marxismo para a Pedagogia. Para Marx, assim como para Engels, o homem/mulher transforma-se à medida que transforma a natureza com seu trabalho. Lukács da mesma forma segue expondo a capacidade de o trabalho transformar o ser do homem/mulher – o trabalho é a atividade vital, fundante do ser social.
A rica reflexão marxista penetra na pedagogia trazendo basicamente duas contribuições: a noção materialista do trabalho como atividade fundante do ser social; e o caráter educativo do trabalho. Essa rica contribuição pedagógica, todavia, foi-se, pouco a pouco reduzindo a uma espécie de insígnia e foi perdendo a capacidade de alcançar como um todo o complexo processo da formação humana. Pouco a pouco a rica contribuição marxista foi sendo reduzida de tal maneira que o entendimento do trabalho como atividade vital, fundante, se foi transformando numa ideia rígida e reducionista em que o humano aparece como produto que se obtém mesmo nos limites da práxis produtiva, no âmbito do trabalho e não do metabolismo social como totalidade complexa posta e dinamizada pela práxis, isto é, pelas diferentes maneiras práticas através das quais o homem/mulher transforma realidades naturais e sociais. Ora, em Marx, Engels ou mesmo Lukács o trabalho – ainda que seja uma prática produtiva portadora de caráter educativo - nunca foi visto como atividade única,
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suficiente para dar conta do rico e complexo processo da formação humana, logo, o trabalho sozinho não é uma categoria capaz de explicar o humano social em toda sua complexidade. O trabalho é a práxis ontologicamente primeira, isto é, o trabalho é a primeira resposta humana na direção da defesa da vida e da construção da socialidade humana, mas o trabalho, como metabolismo prático, material com a natureza sustenta o metabolismo social realizado por outras formas de práxis que estão fundadas na práxis produtiva, mas que não são trabalho.
Esse é o ponto em que pretendíamos chegar: a reflexão marxista sobre o trabalho que turbinou a Pedagogia tornou-se refém de uma noção parcial sobre o trabalho. Essa noção parcial, esse problema teórico foi resultado justamente da não consideração da práxis como categoria filosófica que comporta o trabalho, a práxis produtiva, mas que alcança todo o metabolismo natural e social no qual se dá a formação humana como totalidade complexa.
Os estudos de Barata-Moura sobre a práxis nos ajudam a compreender que trabalho é uma forma de práxis, mas práxis não se reduz a trabalho e que o fazer-se humano do homem/mulher não se realiza apenas na esfera restrita das transformações da natureza em busca da produção material da vida. Nesse sentido Konder também nos adverte afirmando que o “mal-entendido que ocasionou graves prejuízos à compreensão do conceito de práxis elaborado por Marx se encontra na redução da práxis ao trabalho” (KONDER, 1992, p. 125).
Caminhamos agora para o tratamento do último dos pontos elencados, isto é, aquele que concerne ao exame da relação entre práxis e idealismo. A bem da verdade, embora os três livros de Barata-Moura mencionados desenvolvam reflexões em torno da práxis, isto é, coloquem a categoria práxis no centro do debate, para o filósofo português a pergunta principal não é sobre a práxis, a questão está “essencialmente na órbita de um questionário em torno do estatuto do ser [em torno daquilo que é] e das diferentes maneiras de lhe responder” (BARATA-MOURA, 1986b, p. 13).
A preocupação primeira de Barata-Moura é submeter a um exame radical o idealismo filosófico, particularmente sua penetração em círculos marxistas e esse exame passa pelo tratamento da categoria práxis.
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Nesse sentido, convém observar que, se o apagamento da práxis enquanto categoria filosófica, como no caso das pesquisas em educação, conforme já apontamos, resulta num grave problema, por outro lado, a reflexão marxista não recupera vigor com a simples valoração da práxis, pois essa valoração pode acontecer no âmbito de uma perspectiva idealista.
Como é sabido, a primeira grande tarefa que Marx e Engels se puseram ainda na sua juventude, tarefa essa cuja posição e enfrentamento serviu para uni-los e estabelecer entre eles uma profunda irmandade intelectual, foi a crítica ao idealismo filosófico que conduziu, como ato contínuo, após se ter apoiado nele, à crítica ao materialismo de Feuerbach e culminou na fundação do materialismo dialético.
Algumas décadas depois, numa nova etapa dos embates teóricos e práticos de Engels e Marx aquele foi convocado a combater os avanços do idealismo no meio do movimento operário que vinha se dando através das ideias do doutor Dühring5. Algumas décadas depois, já no século XX, Lenin colocou-se tarefa semelhante ao escrever seu Materialismo e empiriocriticismo para combater o avanço da influência das ideais de Ernst Mach entre os revolucionários russos.
De certa maneira, o que está em jogo para Barata-Moura ao examinar a categoria práxis é exatamente enfrentar o idealismo como forte expressão sobrevivente nas fileiras do marxismo, nomeadamente sob a forma da praxificação do ser.
Antes, porém, de entrarmos no exame da crítica de Barata-Moura à praxificação do ser, importa estabelecer, ainda que de modo resumido, sua visão sobre o idealismo. Normalmente o idealismo é definido como a anteposição ou sobreposição da consciência frente ao ser ou, dizendo de outra maneira, o idealismo significa sublimar a dimensão material da existência considerando-a secundária em relação à consciência. Para Barata-Moura, no entanto, idealismo é toda forma de condicionar a existência material a qualquer instância subjetiva, não necessariamente a consciência. Dentro dessa configuração do idealismo o ser só é efetivamente quando representado na consciência, quando reconhecido linguisticamente
5 O Anti-Düring - la revolución de la ciencia por el señor Eugen Dühring, publicado como livro em 1878, foi divulgado na forma de artigos no Vorwärts, órgão central da social democracia alemã entre 19 de janeiro de 1877 e 7 de julho de 1878. Depois de muita insistência de Liebknecht, e verificar a crescente influência do idealismo e do revisionismo de Dühring entre militantes e dirigentes da social democracia alemã, Engels se deu conta do tamanho do problema e aceitou o desafio de confrontar as teses do senhor Dühring. Com um nova tradução de Barata-Moura as Edições Avante relançaram o Anti-Düring em 2020, ano em que se comemorou 2 séculos do nascimento de Engels.
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(linguistificação do ser) ou quando criado pela práxis daí a consideração da praxificação do ser. Conforme aponta Barata-Moura (1986b, p. 13), enquanto:
o materialismo reconhece e funda a materialidade do ser, a autonomia ontológica da sua materialidade e da sua determinação, o idealismo caracteriza-se fundamentalmente pela negação imediata ou remota — mas sempre efectiva — da independência e/ou autofundação desse estatuto, mediante, designadamente, a multiplicação de todo um conjunto de instâncias de matriz subjectiva tendentes a funcionarem como suas radicais (e, em geral, ocultas, quando não mesmo dissimuladas) condições de possibilidade.
Para não tornarmos essa exposição demasiadamente longa, vamos mencionar apenas as referências críticas de Barata-Moura a alguns importantes autores marxistas enquadrados na designação idealista acima mencionada.
O primeiro que podemos mencionar é Althusser que, para Barata-Moura, não reconhece o caráter essencialmente material, transformador da práxis, isto é, promove a desmaterialização da práxis. O grande problema de Althusser é considerar o pensar, o filosofar como um trabalho, como uma práxis. Para Althusser,
Aun las filosofías especulativas, aun las filosofías que se contentan con “interpretar el mundo” son activas y prácticas. Tienen por fin (disimulado) actuar sobre el mundo, sobre el conjunto de las prácticas sociales, sobre sus dominios y su “jerarquía”, no para otra cosa que para “encantarlos”, consagrarlos o inclinarlos, a fin de preservar o reformar “el estado de cosas existente” contra las revoluciones sociales, políticas, ideológicas o los contragolpes ideológicos de los grandes descubrimientos científicos.
(ALTHUSSER, 1974, p. 45).
Ao conceber a teoria, a filosofia ou o pensar como prática, Althusser adota uma perspectiva filosófica contrária aos supostos marx-engelsianos exatamente porque assim passa a acreditar que na dimensão intelectual estaria dada a possibilidade das transformações materiais, objetivas.
Esse problema, contudo, não é exclusivo de Althusser, outros autores, mesmo grandes expoentes do marxismo incorrem, segundo Barata-Moura (1978, p. 257), neste mesmo erro:
György Lukács6 nos fala de uma ‘teoria-prática’, Herbert Marcuse, nos anos 30, igualmente aponta para os efeitos salvíficos de uma teoria que contém em si a ‘prática’, para já não nos referirmos a toda uma plêiade numerosa e variada de revisionistas e ‘marxólogos’ de todas as cores e paladares que amiúde gostam de perorar, à mistura com
6 Cabe alertar que o Lukács a que Barata-Moura se refere é o jovem pensador dos tempos da obra
História e consciência de classe.
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as tradicionais bujardas sobre o materialismo dialético e o socialismo real, sobre a ‘prática-crítica’, a ‘teoria-emancipadora’, a ‘práxis- ilustrada’ (sic!), etc.
Se em Althusser a crítica de Barata-Moura destaca basicamente a noção equivocada de que a atividade teórica poderia cumprir finalidades que só a práxis pode realizar, pois só esta pode efetivamente transformar realidades materiais, em Gramsci o problema do materialismo adquire maior complexidade.
A análise de Barata-Moura aponta que Gramsci sempre guardou com o materialismo relação complicada. Para Barata-Moura, Gramsci nunca chegou a resolver a contento sua perspectiva filosófica no sentido de assumir plenamente uma concepção materialista dialética. E, diferentemente de algumas interpretações, para Barata-Moura o idealismo de Gramsci não era coisa de juventude, ele segue como registro mesmo na sua obra magana Os Cadernos do cárcere.
Para o jovem Gramsci a perspectiva de Marx e Engels não representava uma ruptura com o idealismo, para ele “a filosofia da práxis [seria não mais que] uma reforma e um desenvolvimento do hegelianismo” (GRAMSCI, apud, LOSURDO 2006, p. 307). A negatividade de Gramsci em relação ao materialismo é muito forte na fase juvenil como se verifica num texto de 19187 quando afirma que “o marxismo funda-se no idealismo filosófico” e que:
“Marx, por não ser filósofo de profissão, às vezes dormitava e permitia elementos de positivismo em seu pensar”; e completa afirmando ainda que “o essencial da doutrina dele [Marx] está na dependência do idealismo filosófico, e que no desenvolvimento ulterior desta filosofia está a corrente ideal” (GRAMSCI apud, BARATA-MOURA, 2018, p 96).
Todavia, como já foi indicado, o idealismo de Gramsci não irá desaparecer com a passagem da fase juvenil, ele persiste nos Cadernos onde se encontra claramente uma visão que indaga incrédula quanto a possibilidade da existência da realidade objetiva, material independente do sujeito:
Sin el hombre, ¿qué significaría la realidad del universo? Toda la ciencia está ligada a las necesidades, a la vida, a la actividad del hombre. Sin la actividad del hombre, creadora de todos los valores, incluso científicos, ¿qué sería la “objetividad”? Un caos, o sea, nada, el vacío, si es que así puede decirse, porque realmente, si se imagina que no existe el hombre, no se puede imaginar la lengua ni el
7 Trata-se do artigo intitulado Misteri della cultura e dela poesia, publicado em 19 de outubro de 1918 no Il Grido del Popolo periódico com o qual Gramsci colaborou por anos e do qual foi também redator chefe entre agosto de 1917 e outubro de 1918, ano de seu fechamento.
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pensamiento. Para la filosofía de la praxis el ser no puede ser disociado del pensar, el hombre de la naturaleza, la actividad de la materia, el sujeto del objeto; si se hace esta disociación se cae en una de tantas formas de religión o en la abstracción sin sentido. (GRAMSCI, 1986, p. 309, t 4, § 52 bis).
Para Gramsci a afirmação da objetividade da realidade material como coisa anterior e independente do sujeito soava como uma metafísica semelhante à religião e era, portanto, tão inaceitável quanto:
El sentido común afirma la objetividad de lo real en cuanto que la realidad, el mundo, ha sido creado por dios independientemente del hombre, antes del hombre; es por lo tanto expresión de la concepción mitológica del mundo; por lo demás, el sentido común, al describir esta objetividad, cae en los errores más groseros” (GRAMSCI, 1986, p. 308, t 4, § 52 bis).
Estamos nesse ponto da exposição unicamente tentando demonstrar que a visão de mundo de Gramsci era também na altura dos Cadernos idealista. Não é parte dos objetivos deste texto discutir a relação entre o idealismo filosófico e a teoria política gramsciana; o exame dos impactos do idealismo sobre as formulações políticas de Gramsci se positivos, se negativos é, certamente, um grande desafio que ainda merece atenção8. Voltando ao exercício que vinha se desenrolando apresentamos mais uma manifestação gramsciana dos Cadernos em que se nega a objetividade do real fora de condicionamentos subjetivos:
Objetivo significa siempre ‘humanamente objetivo’, lo que puede corresponder exactamente a ‘históricamente subjetivo’, o sea que objetivo significaría ‘universal subjetivo’. El hombre conoce objetivamente en cuanto que el conocimiento es real para todo el género humano históricamente unificado en un sistema cultural unitario;” (GRAMSCI, 1986, p. 276, t 4, § 32).
Conforme aponta Barata-Moura, o idealismo de Gramsci não se define apenas e simplesmente pela defesa da antecedência da consciência perante a objetividade
8 Podemos mencionar aqui dois caminhos interpretativos, dessa questão. Um deles é o que observa problemas nas elaborações políticas de Gramsci advindos da sua ontologia idealista; o outro é o que aponta consequências positivas geradas pelo idealismo sobre as formulações políticas gramscianas. O primeira pode ser representado por Barata-Moura (1991), e o segundo por C. N. Coutinho (2011). Enquanto o primeiro constata a persistência de traços idealistas que se mostram prejudiciais por exemplo no caso da elaboração do conceito de Bloco histórico, a despeito das boas intenções de se combater o mecanicismo e o determinismo; o segundo identifica uma relação positiva entre a ideia de universal subjetivo e o conceito de hegemonia - para Coutinho o idealismo Gramsciano quando aplicado à ordem social histórica converte-se em ricas e férteis análises.
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do real. Em Gramsci também a práxis aparece como dimensão subjetiva que ontologicamente condiciona a objetividade do real. Em Gramsci não se tem, de acordo com Barata-Moura, uma completa e absoluta negação da objetividade primeira do real, mas sim a ideia de que sem o sujeito ou fora do contexto sócio histórico tudo é caos, é nada, é vazio, não tem sentido. Para o marxista italiano:
El concepto de ‘objetivo’ del materialismo metafísico parece querer significar una objetividad que existe incluso fuera del hombre, pero cuando se afirma que una realidad existiría incluso aunque no existiese el hombre, o se hace una metáfora o se cae en una forma de misticismo. Nosotros conocemos la realidad sólo en relación al hombre, y puesto que el hombre es devenir histórico también el conocimiento y la realidad son un devenir, también la objetividad es un devenir, etcétera. (GRAMSCI, 1986, p.277, T4, § 32 bis).
Dando continuidade ao exame da relação práxis e idealismo veremos o quanto a praxificação do ser se revela como uma expressão idealista. A praxificação do ser se caracteriza como posição filosófica na qual a categoria práxis adquire grande importância e centralidade sendo elevada ao patamar de uma atividade demiúrgica, isto é, convertendo-se na forma através da qual o sujeito cria a realidade objetiva.
Na praxificação do ser a práxis converte-se na categoria que dá sustentação ao idealismo à medida que define a ação humana como a condição da efetividade ontológica do ser, ou seja, aqui a práxis cumpre o papel que no idealismo tradicional cumpre a consciência.
É oportuno observar que se trata de um idealismo de outro tipo, aliás, muito diferente do idealismo tradicional, posto que na praxificação do ser o que condiciona a objetividade do ser em geral de qualquer maneira é a atividade humana objetiva, prática e não a mera consciência. Essa consideração pode ser importante até mesmo para se pensar sobre desdobramentos do idealismo filosófico de Gramsci em relação às suas ideias políticas, mas isso é assunto para outras investidas.
Voltando ao ponto, conforme aponta Barata-Moura, a filosofia de Heidegger e o pensamento de Gramsci e também o do jovem Lukács brotam do mesmo contexto histórico e guardam muitas semelhanças, especialmente no que concerne aos problemas da praxificação do ser. Para Heidegger as coisas são ou adquirem sentido apenas quando o ente humano as manipula, quando delas se utilizam: “as coisas não
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são materialmente; são apenas instrumento de uma acção” (BARATA-MOURA, 1986b, p. 66).
As posições de Heidegger a respeito do materialismo e da práxis de fato se assemelham com as elaborações de Gramsci, conforme o já exposto, assim como se assemelham também às elaborações do jovem Lukács9. A separação radical entre natureza e sociedade e a subsunção da primeira à segunda, bem como a consequente ideia de que a natureza só adquire sentido e importância quando entra no circuito das relações sociais é bem uma demonstração disso - no jovem Lukács a realidade é reduzida ao metabolismo social e a categoria totalidade, tão importante para a dialética, reduz-se a totalidade social. Ideia semelhante ao que propõe o marxista italiano para quem “a história (...) em sentido forte, ou é humana ou então não é” (BARATA-MOURA, 1986b, p. 53).
De fato, na sua História e consciência de classe, o jovem Lukács destaca e valoriza a categoria práxis10, porém, aqui a práxis emerge como a instância subjetiva que funciona como única condição através da qual as coisas podem adquirir estatuto de dado objetivo, ontológico. Mas isso não é tudo, a práxis mesma não é pensada como ação humana material, transformadora, separada da consciência, ela é ação que funciona como uma espécie de extensão da consciência, é como a realização da consciência materializada.
O exame crítico dos autores acima feito por Barata-Moura de modo rigoroso e independente concentrou-se num aspecto principal: a relação entre práxis e idealismo, portanto, não pretende fazer um julgamento completo e definitivo de suas obras. Porém, representa uma enorme contribuição para a reflexão em busca do fortalecimento do caráter crítico e autocrítico das teorias marxistas.
9 “Os itinerários temáticos do jovem Lukács e de Heidegger cruzaram-se efetivamente sobre este fundo ideológico difuso (gnosiológica kantiana e ontológica hegeliana) onde, acompanhando acentuações diversas de uma formação espiritual que também encerra zonas de convergência, se perfila ora mais nitidamente a referência hegeliana ora o contexto aporético da fenomenologia de Husserl, filtrados e completados por uma comum vivência da Lebensphilosophie” (BARATA-MOURA 1986b, p. 71-2).
10 O autor fez sua autocrítica reconhecendo problemas no seu marxismo juvenil, inclusive no que
concerne à concepção de práxis. Reconhece Lukács (1970, p. 15) que, apesar da positividade do confronto ao caráter contemplativo do pensamento burguês, “la concepción de la praxis revolucionaria de este libro es algo excesiva, lo que estaba de acuerdo con el utopísmo mesiánico del comunismo de izquierda de entonces, pero no con la auténtica- teoría de Marx”. Apresentando uma posição ainda mais contundente ele reconhece: “no tuve en cuenta que sin una base en la praxis real, en el trabajo como su forma originaria y su modelo, la exaltación del concepto de praxis se convierte necesariamente en la exaltación de una contemplación idealista”.
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Esta exposição, por sua vez, modestamente pretendeu destacar apenas alguns aspectos do rico pensamento de Barata-Moura. E, como nesta específica ocasião, trata-se de uma homenagem proposta por um periódico vinculado ao setor da pesquisa em educação, nomeadamente da pesquisa em trabalho e educação, resumiu-se este texto à demonstração, ainda que de modo muito abreviado, do quanto resultam importantes para a educação as reflexões do grande filósofo.
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V.21, nº 44, 2023 (janeiro-abril) ISSN: 1808-799 X
Resumo3
Maria Ciavatta2
São as contradições entre as forças produtivas e as relações sociais de produção que geram a história humana. Temos por base teórica o materialismo histórico, com a crítica à economia política e a história como produção social da existência. Reconhecer sua historicidade implica concebê-las em espaço- tempos determinados, sob a ação dos sujeitos sociais, a totalidade social, suas mediações e contradições. No primeiro momento tratamos da historicidade das forças produtivas; a seguir, da questão da história do presente; e, por último, de questões sobre trabalho-educação na imprensa, de 2020 a 2022.
Palavras-chave: forças produtivas; trabalho-educação, história do presente, imprensa.
LA HISTORICIDAD DE LAS FUERZAS PRODUCTIVAS. UN ESTUDIO DE LA ACTUALIDAD EN LA TRABAJO-EDUCACIÓN
Resumen
Son las contradicciones entre las fuerzas productivas y las relaciones sociales de producción las que generan la historia humana. Tenemos como base teórica el materialismo histórico, con una crítica a la economía política y la historia como producción social de la existencia. Reconocer su historicidad implica conocerlas en determinados espacios-tiempos, bajo la acción de los sujetos sociales, la totalidad social, sus mediaciones y contradicciones. En un primer momento nos ocupamos de la historicidad de las fuerzas productivas; luego, la cuestión de la historia del presente; y, finalmente, preguntas sobre educación-trabajo en la prensa, de 2020 a 2022.
Palabras clave: fuerzas productivas; trabajo-educación, historia del presente, prensa.
HE HISTORICITY OF THE PRODUCTIVE FORCES - A study of the present time in work- education
Abstract
The contradictions between the productive forces and the social relations of production generate human history. We have historical materialism as a theoretical basis, with a critique of political economy and history as a social production of existence. Recognise their historicity implies conceiving them in determined space-times, under the action of social subjects, the social totality, its mediations and contradictions. In the first moment we deal with the historicity of the productive forces; next, the question of the history of the present; and, finally, questions about work-education in the press, from 2020 to 2022.
Keywords: productive forces; work-education, history of the present, press.
1 Artigo recebido em 15/02/2023. Primeira avaliação em 23/02/2023. Segunda avaliação em 23/03/2023. Aprovado em 28/03/2023. Publicado em 13/04/2023.
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v21i44.57468.
2 Doutora em Ciências Humanas (Educação), pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) - Brasil. Professora Titular de Trabalho e Educação na Universidade Federal Fluminense (UFF), Rio de Janeiro - Brasil. Email: maria.ciavatta@gmail.com Orcid: 0000.0001.5854.6063.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/5368554854684382
3 Uma versão preliminar deste texto foi apresentada na Mesa de Abertura do V INTERCRÍTICA, realizado nos dias 10 e 11 de outubro de 2022, na Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV) da Fiocruz, no Rio de Janeiro- Brasil
1
Na produção social da existência, os homens estabelecem relações determinadas, necessárias, independentes de sua vontade, relações de produção que correspondem a um determinado grau de desenvolvimento das forças produtivas materiais (Marx, 1977).4
Este texto tem por base os estudos de historiografia que desenvolvemos sobre a história da educação e de trabalho-educação. Marx (1977, p. 28) detalha este pensamento fundante de sua teoria de análise do sistema capital: “O conjunto das relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base concreta sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política à qual correspondem determinadas formas de consciência social”. Para dirimir qualquer dúvida sobre o pretenso economicismo de seus antagonistas e de intérpretes parciais de seu pensamento, ele acrescenta (MARX, 1977, p. 28):
O modo de produção da vida material condiciona o desenvolvimento da vida social, política e intelectual em geral. Não é a consciência dos homens [e das mulheres] que determina o seu ser, mas é seu ser social que, inversamente, determina a sua consciência.
Neste pequeno texto, destacado por vários autores, entre os quais Bottomore (1988, p. 157), lemos: “Em todas as obras econômicas da maturidade de Marx está presente a ideia de que uma contradição entre as forças produtivas e as relações de produção subjaz à dinâmica do modo de produção capitalista”. São as contradições entre as forças produtivas e as relações sociais de produção que atuam como motor da história. Estão presentes aí as duas questões básicas do método com base no materialismo histórico: a crítica à economia política e a história como produção social da existência.
“La storia siamo noi.” [A história somos nós.] foi como a principal central dos trabalhadores da Itália5 comemorou seus 100 anos de existência em 1993. Deslocou a história oficial dos grandes homens, dos potentados ilustres para incluir todos os trabalhadores, todos os homens e mulheres que geraram a potente indústria italiana. Estas ideias iniciais destinam-se a pensar sobre a historicidade das forças produtivas. Reconhecer sua historicidade implica concebê-las em espaço-tempos determinados sob a ação dos sujeitos sociais, na totalidade social das mediações e
4 MARX, Karl. Prefácio. In: . Contribuição para a Crítica da Economia Política.Lisboa: Editorial Estampa, 5a edição, 1977, p. 28.
5 Confederazione Generale Italiana del Lavoro (CGIL).
2
contradições com as relações de produção que dão forma e condições de vida e de trabalho aos seres humanos.
Implica também refletir sobre as concepções de história que iluminam ou obscurecem os significados dos acontecimentos da vida social. Muitas são as concepções de história desde seus primórdios na antiga Grécia. Basta lembrar que a modernidade herdou dos iluministas a concepção da história como expressão do progresso da humanidade. Absorvemos ilusões sobre o progresso da humanidade, que foram desmentidas pelas muitas guerras e terrores do século XX, pelo empobrecimento físico, político e social em que vivem os povos de tantos países, a exemplo do Brasil, ainda no século XXI. Convivemos com o enriquecimento perdulário das classes de alta renda e seu poder de pautar os rumos das políticas e do uso dos recursos do Estado, à revelia da pobreza da população trabalhadora, de suas moradias, água, saneamento, saúde, educação etc.
Sobre a concepção de história, permeia nosso ideário a herança dos positivistas e das religiões, cuja ideia dos relatos históricos perdura como a narração da verdade dos fatos. Hoje, vivemos tempos de ampla difusão pela palavra e pelas imagens de versões singelas, ao nível do senso comum, as chamadas fake news, sobre o Estado e suas orientações, A história torna-se apenas o nome de uma disciplina escolar ultrapassada, como a história gloriosa dos reis, príncipes e governantes. As ações e os significados fundamentais dos acontecimentos são negados, desde a infância, à população jovem e adulta.
Nesta reflexão, partimos de nossa experiência pessoal de pesquisa em duas linhas de estudos: a primeira, o aprendizado da teoria e da empiria que constituem os estudos no campo Trabalho-educação, incluindo o GT Trabalho e Educação da ANPEd, o Neddate, o Grupo THESE6 e outros grupos de pesquisa afins, no Brasil e na América Latina. A segunda linha de estudos vem da historiografia, dos “historiadores de ofício”, dos historiadores-educadores, a teoria da história e suas correntes renovadoras a partir da Ècole des Annales com seus criadores Fernand Braudel, Marc Bloch e Lucien Febvre.
6 Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd); Núcleo de Documentação e Dados sobre Trabalho e Educação da Universidade Federal Fluminense (Neddate) e Grupo THESE – Projetos Integrados de Pesquisas em Trabalho, História, Educação e Saúde (UFF- UERJ-EPSJV-Fiocruz).
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No primeiro momento tratamos da historicidade das forças produtivas; em seguida, da questão da história do presente; e, por último, de algumas questões sobre trabalho e educação, tratadas pela imprensa na atualidade de 2020 a 2022.
As forças produtivas (trabalho, recursos e instrumentos) atuam sobre a natureza para produzir os bens necessários à sobrevivência humana. Elas se expressam pela força de trabalho humano que move os meios de produção (instrumentos, equipamentos técnicos, conhecimento, a terra e todos os recursos naturais) que dão forma a determinada materialidade, articulam os bens materiais e a força das palavras, da comunicação, dos relatos históricos (escritos, orais, iconográficos).
Do ponto de vista teórico-metodológico, nossos estudos e pesquisas na área Trabalho-educação pautam-se, basicamente, pelos fundamentos da crítica à economia política (MARX, 1977; 1980) que permitem compreender a exploração do trabalho e a reprodução e acumulação do capital; a apropriação privada da riqueza social resultante do trabalho humano que aciona materiais e recursos técnicos e tecnológicos. Mas, facilmente, resvala-se para a redução das análises às questões econômicas ou apenas para a descrição dos fatos que são objeto de pesquisa, se não forem considerados, também, os acontecimentos históricos que dão forma às relações entre os sujeitos sociais, que integram as forças produtivas e suas falácias na exploração do trabalho.
Ao lado de O Capital (MARX, 1980) e da Crítica à Economia Política (MARX, 1977), pelo resgate da “força material”, das expressões e perspectivas da práxis política transformadora, recomendam-se as lições de O 18 Brumário (MARX, 1978). Trata-se de um dos mais significativos textos do materialismo histórico, pela reiterada expressão da concepção de história como produção social da existência, que Marx desenvolveu na Crítica à Economia Política (MARX, 1977) e na Ideologia Alemã (MARX; ENGELS, 1979).
No singelo, mas elucidativo Prefácio que Ianni (1978, p. 3) escreveu para O Dezoito Brumário, na edição da Paz e Terra, a história dos acontecimentos que culminaram no Golpe de Estado de Napoleão, narrada por Marx, “representa uma
audaciosa revolução nas ciências sociais”. Isto porque é a história escrita com os
4
diversos aspectos do todo, incluindo as relações sociais e políticas, a vida econômica e sua organização. Marx rompe com a tradição da história factual dos historiadores dos séculos anteriores. Escreve a história “como interpretação global dos sistemas de vida [...], diz Ianni (1978, p. 3), [...] “é a mais ambiciosa explicação do capitalismo, em sua estrutura dinâmica, em suas condições de formação, em sua historicidade”. O que significa que Marx abordou a totalidade social dos acontecimentos do 18 Brumário e seus desdobramentos com as classes sociais em disputa de poder, após a Revolução de 1789.
O relato das mediações e contradições das lutas no interior da burguesia, das classes em disputa pela dominação, contribui para “o conhecimento da realidade social e síntese do pensamento dialético” (IANNI, 1978, p. 4). Estão presentes as questões das classes sociais, da consciência de classe, do Estado como “vontade geral” que, na verdade, exprime os interesses da classe dominante. Estão conectados o econômico e o político, “as maneiras pelas quais ocorrem as transições no modo de produção às relações de produção e às ideologias”, que são, para Ianni (1978, p. 5), “a produção da história como dialética do real”.
Esta síntese das características básicas da historicidade concebida e praticada por Marx, provido de extensa documentação, dados, observação, empiria e sua experiência política, também presentes na construção de O Capital (MARX, 1980) e em outros livros, permite-nos compreender a “força material” da produção científica das pesquisas sobre Trabalho-educação, nos estudos da atualidade e de seus antecedentes sobre a Educação Profissional, o Ensino Médio Integrado, as reformas trabalhista e educacional pelo governo Michel Temer em 2017 (BRASIL, 2017 a; 2017 b), a Emenda Constitucional n. 95 (BRASIL, 2016) e suas consequências para o esvaziamento dos direitos e das políticas sociais no Brasil.
Neste livro histórico e de história, Marx (1978, p. 17), alerta que “Os homens [e as mulheres] fazem a história, mas não nas circunstâncias que escolhem”. Se as circunstâncias não estão dadas à nossa escolha, toda pesquisa deve se iniciar pela realidade em que vivemos, nos diversos níveis em que ela se realiza, na totalidade social, nas mediações e contradições que lhes dão significado.
Escrevemos e nos reunimos no V Intercrítica para buscar caminhos para a superação de um tempo grave para a vida dos seres humanos no Brasil e no planeta que, nas palavras de Celso Amorim (2022) enfrenta três grandes crises; a climática, a
pandêmica e a militar com a Guerra da Ucrânia e Rússia e a ameaça nuclear. Amorim
5
(2022) utiliza a metáfora do filme de Glauber Rocha, “Terra em transe”. Destaca que vivemos um processo de mutação na geopolítica mundial, da polarização nos Estados Unidos, para a multipolarização, com os Estados Unidos, Rússia e China. No plano mais imediato de nosso país, podemos acrescentar a crise do trabalho e da educação com as mudanças tecnológicas na produção, o desemprego, as muitas formas de trabalho precarizado, a uberização, o trabalho com aplicativos, a pobreza, a fome, as migrações de milhões de pessoas em todo o mundo,7 vítimas do autoritarismo, do armamentismo e da concentração de riquezas nas mãos de poucos.
No Brasil, devemos acrescentar, no período bolsonarista, a grave crise política que subverte os valores em nome de uma moralidade controversa e da religião mercantilizada. Nossos estudos na área Trabalho-educação8 integram os objetivos científicos e acadêmicos da pós-graduação e projetam-se com o objetivo de superar as circunstâncias fascistas, racistas, preconceituosas em que, se disputa um projeto de país em condições adversas, buscando brechas na Constituição Federal para a destruição dos coletivos, denegrindo as instituições (a exemplo da extinção de conselhos e das ações de fiscalização para coibir desmatamentos etc.)9, asfixiando- as pelo corte de recursos.
Assim vivemos, assim escrevemos sobre os idos de 2019 a 2022 durante o (anti)governo de Jair Bolsonaro. A vitória da coalizão de Luiz Inácio Lula da Silva com um amplo espectro de partidos políticos e figuras expressivas da vida nacional, em 30 de novembro de 2022, abriu um tempo de novas perspectivas para o país.
7NOTÍCIAS LOCAL 19 setembro 2019. Estudo da ONU aponta aumento da população de migrantes internacionais.” O número de migrantes internacionais alcançou 272 milhões de pessoas em 2019, um aumento de 51 milhões desde 2010. Atualmente, elas e eles somam 3,5% da população global, comparado com 2,8% em 2000, de acordo com novas estimativas divulgadas pela Organização das Nações Unidas nesta terça-feira (17). https://brazil.iom.int/pt-br/news/estudo-da-onu-aponta-aumento- da-populacao-demigrantes-internacionais#:~:text=O%20n%C3%BAmero%20de%20migrantes
%20inter. Acesso em 09-10-2022.
8 Sobre a historicidade de Trabalho-educação, v. Ciavatta (entre outros, 2019).
9 AMAZÔNIA bate recorde de desmatamento no 1º. trimestre. Folha de São Paulo, Ambiente, São Paulo, sábado, 9 de abril de 2022, p. B5.
6
Para fins de nossa prática de pesquisa, face às urgências de compreender e agir sobre a realidade social, a história do presente, é muito útil. Suas exigências são as mesmas de todas as formas de fazer história (conceitos e procedimentos de análise empírico-documental e teórica, a crítica dos documentos, o cruzamento de fontes etc.). Dentro do materialismo histórico, a história pode ser compreendida em dois sentidos principais interrelacionados, a questão do espaço-tempo, onde os fenômenos ganham forma e materialidade, e a própria compreensão do que seja a história, sua relação com o passado, o presente e o futuro. Falamos aqui da historicidade dos fatos ou acontecimentos narrados.
Labastida (1983) resume os processos de historicização da realidade mediante a história como processo e a história como método. É o materialismo histórico, como teoria sobre o sistema capital, que vai permitir a compreensão dos processos da vida social e individual em todos os seus aspectos econômicos, sociais, políticos, culturais, educacionais em tempo-espaços determinados em que ocorrem esses processos.
A historicidade das forças produtivas ou quanto elas são “forças materiais” que expressam e dão perspectiva à práxis política, requer a compreensão e análise do espaço-tempo em que ocorrem diferentes fatos, e fenômenos, qual o contexto dos acontecimentos atravessados pelo confronto das classes sociais. Nos termos mais exatos do materialismo histórico, que é dialético nos termos da crítica de Marx (1979) ao idealismo hegeliano, cabe-nos situar nosso objeto de estudo na totalidade social de que é parte, identificar suas mediações e contradições; quem são os sujeitos individuais ou coletivos que respondem pelas ideias e ações, pela práxis política e as correlações de força que movem a sociedade e as lutas entre as classes.
A história do tempo presente diz respeito à concepção de um tempo que, do ponto de vista de sua totalidade social, implica passado, presente e futuro e a possibilidade de conhecimento de cada uma dessas temporalidades da vida social no desenvolvimento das forças produtivas. Mas a história do presente se ressente de um outro significado, o da contaminação da ideia de presentismo, no sentido de que a vida é vivida como um presente permanente, a realidade de momentos, como
10 Sobre a história do tempo presente, ver reflexões preliminares em Ciavatta (2022).
7
fragmentos do tempo dos acontecimentos. Essa fragmentação está presente nos trabalhos da história cultural que se limitam ao detalhamento descritivo, factual. Mas existe, também, nas tecnologias de informação que nos submetem à linguagem digital, funcional, mecanizada, desarticulada de seu contexto, da totalidade social como uma espécie de desumanização, comparada à cultura humanista do ser humano como um todo, consolidada pelos séculos.
Ambas as concepções, história do presente e presenteísmo, são questões que podem ser encontradas em diversas vertentes de aproximação. Educadores, sociólogos, historiadores, podemos escolher como analisar o presente, reduzindo a história aos fragmentos dos acontecimentos, segundo a crítica de François Dosse (1992) na obra A história em migalhas, e a perda da consciência da historicidade. Ou podemos buscar na sucessão de acontecimentos que dão forma às relações sociais no mundo de hoje, as múltiplas relações sociais que constituem o Estado, a sociedade, a cultura e suas instituições. Entendemos que significa conhecer como as pessoas pertencentes a diversas classes sociais vivem, por terem acesso ou por serem privadas dos benefícios da riqueza socialmente produzida, apropriada privadamente pelas forças da produção, reprodução e acumulação do capital.
Pôrto Jr. (2007) reuniu historiadores em seu livro História do tempo presente, para tratar do tema. Nos limites deste texto, escolhemos o artigo da Helena Isabel Muller (2007, p. 17) que se ocupa em “Pensar o tempo presente como um tempo pertinente à disciplina da História”. Inicia opondo-se à ideia que o tratamento de fatos passados, longínquos garantiria a isenção dos sentimentos. Defende a história do presente (MULLER, 2007, p. 18) “como uma possibilidade [...] seja como disciplina da História, seja como teoria da História, ou mesmo como prática historiográfica”.
A história do tempo presente teria origem nos estudos da história francesa do Institut d'Histoire du Temps Présent (IHTP), vinculado ao Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS), nos anos 1970, sobre os acontecimentos e transformações advindos com a Segunda Guerra Mundial. Para Henry Russo (2001, apud MULLER, 2007, p. 19), “as sociedades desenvolvidas conheceram [nesse período] uma profunda mudança na sua maneira de se relacionar com o passado nacional, bem como com o passado em geral”.
Outro texto do mesmo livro (PÔRTO JR., 2007), é do próprio Henry Russo (2007) que se detém em discutir o texto inicial de Pierre Lagrou (2007). Não cabe aqui
trazer a discussão ampla entre os dois autores. Apenas, vamos apresentar alguns
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argumentos de Henry Russo sobre os estudos conduzidos na França sobre o tempo presente, tendo como referência a Segunda Guerra Mundial.
Para Russo (2007), a Segunda Guerra não é matriz, no sentido de origem, conforme adverte Marc Bloch. Não se trata de periodização, mas dos impactos e consequências em termos de violência e brutalização trazidas pela Segunda Guerra à sociedade europeia. Mas não apenas, há outros aspectos tais como, (RUSSO, 2007, p. 282), “sobre as responsabilidades do Estado, sobre a necessária transparência da ação pública, sobre a possibilidade de julgar os poderosos etc.” Outras questões seriam a valorização da memória, a ´crise de futuro´ ou `apagamento de futuro´, a ideia de progresso, a globalização, todas com consequências no imaginário contemporâneo. Para Russo (2007, p. 84): [...] “o debate contemporâneo entre história e memória poderia se resumir em uma fórmula; o importante não é mais o que passou, mas o que é preciso reter e aquilo sobre o qual podemos agir” .[...] Estaria havendo “uma mudança de relação no passado ou de `regime de historicidade`”.
Encontramos também na América Latina os estudos de história do presente sob a denominação de historia inmediata [história imediata]. Os primeiros congressos de história que trataram do tema são de 2001 na Espanha; 2003 em Cuba, 2004 na Espanha e no Equador (CEPEDA, 2006, p.28 e p. x-xi). Em seu livro, Juan J. Paz y Miño Cepeda (2006) apresenta o significado do conceito utilizado por historiadores da região. Embora sem o trauma de uma guerra de grandes proporções, como se passou na Europa, esta concepção tem por base as transformações ocorridas nos países do continente latino-americano (CEPEDA, 2006, p. 36): “Os problemas e a realidade enfrentados pela América Latina contemporânea tem alterado os ritmos habituais de sua historiografia. Ao caminhar para o século XXI, a região se projeta imersa em um complexo marco de relações que ultrapassam as perspectivas nacionais”.11 O autor refere-se às relações com os organismos internacionais e aos mercados globais, a dívida externa, as condições de pobreza da população dos países lati-americanos.
Cepeda (2006, p. 38), coloca o desafio para os historiadores latino-americanos em três dimensões: entender o processo de surgimento do presente: o estudo do presente implica conhecer os processos que lhes dão origem; e entender o presente como um processo mais amplo que sinaliza o futuro.
11 No original: “Los problemas y realidades con los que se enfrenta la América Latina contemporánea han alterado los ritmos habituales de la historiografía. Hacia el siglo XXI la región se proyecta immersa en un complejo marco de relaciones que rebasan las perspectivas nacionales”.
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Quanto ao texto de Muller (2007), um dos problemas sinalizados, que aparecem aos historiadores, é a delimitação temporal do que é o tempo presente, a questão das datas. Tivemos a oportunidade de discutir, anteriormente, a questão do tempo e da periodização detalhadamente (CIAVATTA, 2009, p. 79-101). Os avanços científicos e filosóficos indicam que é preciso superar a questão do tempo como algo objetivo, absoluto, algo que existe por si mesmo, o tempo newtoniano como duração pura, quantitativa, independente da transformação dos objetos e dos acontecimentos. Ou o tempo kantiano como forma a priori da percepção, subjetiva, independente das relações que constituem os acontecimentos. A teoria da relatividade ensina que a unidade espaço-tempo tem quatro dimensões: altura, largura, profundidade e tempo, em que tempo é movimento no espaço.
A história do presente tem uma reflexão importante no historiador Hobsbawm (1995), no livro Era dos extremos – O breve século XX. Para o autor é uma história que até se beneficia da funcionalidade digital, das informações em tempo real, da diversidade de conhecimentos que os sistemas de informática e as redes digitais nos proporcionam. Mas não se esgota nos limites dessa forma de comunicação. O autor busca outros documentos, rastreia os fatos em outras fontes de informação (imprensa, relatos orais, entrevistas, teses e dissertações etc.). Situa os dados no espaço-tempo dos acontecimentos, na totalidade social que os constitui,
Outra é a concepção do presentismo, em que uma de suas vertentes são as grandes transformações do século XX e XXI. É o que explica Zygmunt Bauman em seus livros, Amor líquido, Vida líquida, Modernidade líquida. Em Vida líquida (BAUMAN, 2007, última capa), o autor “chama a atenção para os problemas que a atual condição do sistema capitalista suscita no ser humano hoje, entre a necessidade de se adaptar ao ritmo destrutivo-criativo12 dos mercados e o medo de ficar defasado, tornar-se dispensável”. Neste mundo de mudanças em ritmo permanente, as realizações individuais se fazem e se desfazem. O que lembra Marx (1998, p. 8), no Manifesto, quando diz sobre o sistema capitalista: “Tudo que é sólido e estável se desmancha no ar”.
Uma segunda vertente do presentismo está nos estudos sobre a juventude. A ideia de uma juventude presentista é encontrada no sociólogo italiano Alberto Melucci (MELUCCI, 1996, apud SANTOS; KHUN Jr. 2013, p. 2), sobre como o jovem vive uma
12 Mészáros (1996) chama esse fenômeno do mundo capitalista atual de “produção destrutiva”.
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cultura e constrói sua história ligada apenas ao que vive hoje, um cotidiano sem referências. São relações fragmentadas e instantâneas que dão forma a todas as relações vividas.
Como em outras questões teóricas, Marx não dá tratamento conceitual específico às noções de tempo e espaço, mas elas estão implícitas na densa empiria de sua concepção de realidade (CIAVATTA, 2009, p. 81):
Marx trata de um tempo da história, construída por homens concretos e da ciência da história construída não como uma coleção de fatos heróicos ou curiosos, do passado, mas como investigação que parte do presente para sua gênese no passado.
Ciro Flamarion Cardoso (1988, p. 29) atribui ao tempo a concepção dialética da realidade: “A existência do tempo se vincularia à transição do ser ao não ser e vice- versa, ao aparecimento do que é qualitativamente novo, ao surgimento, desaparecimento e transformação das coisas e estados”. Mas devemos convir que a questão da história do tempo presente não é uma questão simples, como não é simples a questão do tempo. Os estudos históricos devem fazer avançar a compreensão e o tratamento conceitual e metodológico de sua complexidade, da totalidade social que lhe dá possibilidade de concepção e de tratamento historiográfico.
O campo de pesquisa e de atuação na educação profissional, Trabalho- educação, constitui-se por uma unidade epistemológica, histórica e educacional que conjuga os processos de trabalho, a produção de bens materiais e imateriais, o conhecimento e as habilidades que o ser humano conquista no seu exercício.13 Seu sentido mais amplo inclui tanto o trabalho como valor de uso, sua forma ontocriativa a serviço das atividades inerentes à existência humana; quanto o trabalho como valor de troca, a serviço de outrem, o trabalho mercadoria.
Optando pela história do presente (MARX, 1979; HOBSBAWN, 1995; CEPEDA, 2006, RUSSO, 2007), do ponto de vista das análises de Trabalho-
13 Sobre o termo, ver Ciavatta, 2019.
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educação, as fontes documentais que utilizaremos foram publicadas recentemente na imprensa. Trazem alguns aspectos da vida dos trabalhadores no Brasil. Os jornais de ampla divulgação, como outros periódicos, a televisão e as mídias sociais são meios de comunicação importantes para a formação da opinião pública. Atuam com narrativas escritas e imagens com poder real, simbólico e político.
Constroem um diálogo permanente com os leitores e normatizam, pela força da palavra, valores e comportamentos da vida social. Incidem, também, na manipulação dos atos, nas ideologias subjacentes à forma e aos fatos transformados em notícias, acompanhadas de comentários. Como outros documentos, os artigos da imprensa estão sujeitos à crítica das fontes (origem da notícia, contexto, instituição, espaço-tempo, sujeitos sociais envolvidos nos fatos, autor/es do relato, documentos alternativos sobre o mesmo assunto).
Para a reconstrução histórica, são documentos que, como outras fontes de pesquisa, supõem a crítica documental dos sujeitos responsáveis e das informações. Neste estudo exploratório de questões do trabalho na atualidade, utilizamos as notícias da imprensa, na forma de um levantamento preliminar de fatos e questões que sinalizam problemas sociais estruturais e situações de conjuntura. Teoricamente, nossa análise tem por base os conceitos do materialismo histórico como expusemos acima.
Em termos breves, muitas são as mediações históricas das circunstâncias em que vivemos a totalidade do tempo presente. Este se caracteriza por políticas econômicas neoliberais que atuam para a redução dos serviços públicos em favor da privatização, a destruição das riquezas naturais e o ataque às populações indígenas, quilombolas e ribeirinhas. Caracteriza-se por uma ideologia política de ultradireita de corte fascista, autoritário, homofóbico, racista.
Iniciamos este texto quase às vésperas de um segundo turno de eleições presidenciais, onde se decidiu a opção por um governo democrático hostilizado, vilipendiado por um golpe político-midiático que, em 2016, afastou a Presidenta Dilma Rousseff. Seguiu-se o governo legal, mas ilegítimo de Michel Temer que aprovou, em meses, as reformas mais regressivas no trabalho, na educação, na utilização de nos recursos públicos para garantir os direitos sociais.
A seguir, nos últimos quatro anos, vivemos um presente permeado de medidas contrárias à democracia e ao bem-estar da população. Fomos governados por um
Presidente mistificador e transgressor, apoiado por parlamentares e empresários
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mercantilizados, manipulando vultosos recursos públicos. O governo Bolsonaro esmerou-se na liberalização de armas e militarização da máquina administrativa do Estado, com cargos civis ocupados por militares, pagos regiamente. A imprensa noticiou de maneira ampla os investimentos para a transformação das escolas públicas em escolas cívico-militares com a disciplina, as normas e os valores da vida militar.
De outra parte, a história do presente evidencia um fato histórico na sociedade brasileira, uma minoria enriquecida, usufruindo da renda auferida nos paraísos fiscais, e uma maioria em processo crescente de empobrecimento. A pandemia, descurada pelo Governo Federal, quanto à divulgação e medidas de proteção contra o Covid 19, a compra e a aplicação de vacinas foram agravantes do abandono dos mais pobres. Sob o risco da omissão, a “força material” de nossa práxis política nos obriga a pesquisar, divulgar e agir por todos os meios disponíveis, sobre essa realidade gerada a serviço do sistema dominante, tributário do capitalismo.
Utilizamos aqui um pequeno acervo de matérias em dois jornais de grande circulação, O Globo no Rio de Janeiro, e a Folha de São Paulo, no período de 2020 a 2022. Os historiadores alertam que todas as fontes são lacunares, seja pela ausência, seja pela distorção no relato dos fatos ou pela qualidade na elaboração das notícias. Mas estas e outras fontes” são testemunhos que possibilitam entender o mundo e a vida dos homens [e das mulheres] (...) LOMBARDI; NASCIMENTO, 2004, p. 156).
A questão do trabalho-educação é nosso foco principal, que pode ser melhor compreendido com algumas notícias, comentários jornalísticos e análises que explicitam o contexto das matérias sobre as transformações no mundo do trabalho e os caminhos truncados da educação. Na inclusão de notícias que inclui outros aspectos das condições de vida da população, valemo-nos do conceito de totalidade social que permite compreender os fatos como mediações, processos sociais complexos, que expressam os acontecimentos no conjunto das relações múltiplas que lhes dão forma e significados
Em uma série de reportagens sobre eleições e o tema “O Brasil que queremos”, a Folha de São Paulo destacou que “a pandemia mostrou a insegurança que cerca 40% da mão de obra brasileira, quando trabalhadores na informalidade ficaram subitamente sem renda. Dar proteção a essa massa de desocupados é prioridade”. São 39,3 milhões de trabalhadores sem carteira assinada ou por conta própria, sem
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direito a seguro-desemprego, previdência social e licença médica remunerada (ALMEIDA, 2022, p.22).
Também quanto ao IDH, o Brasil cai três posições no Índice de Desenvolvimento Humano da ONU” (MOREIRA; LUCCA, 2022, p. B1). Os autores citam o sociólogo Rodrigo Prando que comenta: “Como o índice trabalha com fatores como expectativa de vida, renda e escolaridade, todos afetados pela pandemia, temos esse impacto”. Estamos atrás de outras nações da América Latina e Caribe, como Chile, Argentina e México.
Estas condições de vida e de trabalho se tornam claras com os entregadores por aplicativos. Henrique Batista (2022, p. 29) comenta que “Como mineiros do século XIX, na América Latina, o número de pessoas atuando em aplicativos de mobilidade e entrega quintuplicou com a pandemia que empurrou trabalhadores para serviços precários”. A matéria ressalta que a pandemia acelerou a evolução tecnológica e uma grande transformação no mercado de trabalho e nas exigências de qualificação. São trabalhadores “com maior risco de exposição ao coronavírus, jornadas extenuantes, falta de segurança social, baixo rendimento e ausência de parâmetros e de direitos”. O jornalista afirma que o fenômeno é global, mas é mais grave na América Latina onde o desemprego é maior.
Diante da mobilização e crítica dos entregadores em São Paulo, empresas de aplicativos, dizem que fornecem reembolso de equipamentos e proteção individual, sobre o que não encontramos confirmação. Diferente do que ocorre aqui, país de economia dependente (MARINI, 2000), o jornal acrescenta uma nota segundo a qual, no Reino Unido, a Uber está em negociação para definir seus 70 mil motoristas como funcionários do Estado (SODRÉ, 2021, p. A19). A nota, embora singela, evidencia a diferença com que são tratados os trabalhadores dos países de capitalismo dependente, comparados aos países com instituições e direitos sociais assegurados. Não obstante a onda neoliberal que moldou as políticas econômicas e sociais do Reino Unido, desde os anos 1970, com Margareth Thatcher, e dos Estados Unidos com Ronald Reagan, a ruptura de uma política de direitos não ocorreu como na Ditadura Militar de Augusto Pinochet no Chile (1973-1988) e no ultraneoliberalismo do governo Bolsonaro no Brasil (2018-2022).
De modo correlato, entre as medidas contrárias aos direitos dos trabalhadores, noticia-se que “Verba para fiscalizações trabalhistas cai pela metade no governo
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Bolsonaro”, o menor valor na série histórica no orçamento de 2013 a 2021 (RESENDE; BRANT, 2021, p. A16).
Se nos detivermos sobre a educação, veremos que “Jovens que não estudam nem trabalham são 35,9%” porque não conseguem nem emprego nem continuar os estudos. Esta proporção é o dobro da média dos países membros da OCDE, que é de 16,6% na faixa de 18 a 24 anos (PALHARES, 2022, p. B1). O Censo de Educação Superior de 2020 “registrou, pela primeira vez, queda nas matrículas nas universidades federais, com uma redução de 1.3milhão para 1.2 milhão” (...) além de “270 mil trancamentos” (ALTINO, 2022, p. 15).
Seria de esperar investimentos para deter esse fluxo negativo de educação da juventude. No entanto, o que se noticiou é que “Governo trava R$ 434 mi para obra em escolas, mas libera verba para aliados”. São valores pendentes do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) que “atingem 1.369 prefeituras” (SALDAÑA, 2022, p. A4.).
Por ocasião da comemoração de 200 anos da (In)dependência do Brasil, em 07 de setembro último, as jornalistas Paula Saldaña e Ana Prata (2022, p. C4) assinaram extensa matéria sobre a “Pedagogia da exclusão”, uma contradição em termos, se pensarmos que a educação destina-se a integrar e não a excluir. Assim resumem suas ideias: “A educação pública nos 200 anos de Brasil independente teve como barreiras o racismo, a desigualdade e o subfinanciamento, fatores ainda não superados. Após avanços, ensino segue sem rumo no governo Bolsonaro, cujo Ministério da Educação virou até caso de polícia”.
No segundo turno de eleições presidenciais, em 30 de novembro de 2022, decidiu-se a opção de voto em um governo democrático, mas hostilizado, vilipendiado por um golpe político-midiático-empresarial, seguido de um governo legal, mas ilegítimo, o governo Michel Temer (2016-2018). Com ele, o Congresso Nacional aprovou as reformas mais regressivas no trabalho, na educação e nos recursos para garantir políticas sociais. Seguiu-se a regressão política, econômica, social, cultural do governo de Jair Bolsonaro (2019-2022) que o sucedeu, e radicalizou o desamparo da população de baixa renda ou desempregada.
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Vivemos um momento permeado de medidas contrárias à democracia e ao bem-estar da população. Fomos governados, autoritariamente, por um Presidente mistificador e transgressor, apoiado por parlamentares e empresários manipulando, a seu favor, pautas políticas e recursos públicos. Um governo que se esmerou na liberalização de armas, militarizou a máquina administrativa do Estado e implementou a transformação de escolas públicas em cívico-militares.
Pensar sobre a historicidade das forças produtivas, implica refletir sobre as concepções de história que iluminam ou obscurecem os significados dos acontecimentos da vida social. É o materialismo histórico que vai permitir a compreensão dos processos da vida social em todos os seus aspectos: econômicos, sociais, políticos, culturais, educacionais.
A historicidade das forças produtivas, de quanto elas são “forças materiais” que expressam e dão perspectiva à práxis política, requer a compreensão e análise do espaço-tempo em que ocorrem diferentes fatos e fenômenos, qual o contexto dos acontecimentos atravessados pelo confronto das classes sociais.
A história pode ser compreendida em dois sentidos principais interrelacionados, a questão do espaço-tempo, onde os fenômenos ganham forma e materialidade, e a própria compreensão do que seja a história, sua relação com o passado, o presente e o futuro, o que é entender e praticar a história como processo e a história como método.
Pela concepção da história do tempo presente a questão do trabalho pode ser melhor compreendida com algumas notícias, comentários jornalísticos e análises que explicitam o contexto das matérias sobre as transformações no mundo do trabalho e os caminhos truncados da educação. Ao passo que a ideia do presentismo afeta a compressão e a compreensão do tempo que se torna presente, sem memória do passado e sem perspectiva de futuro.
Ao lado de O Capital e a Crítica à Economia Política, o resgate da “força material” das expressões e perspectivas da práxis política transformadora, estão nas lições de O 18 Brumário, um dos mais significativos textos do materialismo histórico, pela expressão clara da concepção de história como produção social da existência que Marx (1979) desenvolveu na Ideologia Alemã.
A síntese das características básicas da historicidade concebida e praticada por Marx, provido de extensa documentação, dados, observação, experiência
empírica, presentes em sua obra escrita e em sua prática política, permite-nos
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compreender a “força material” da produção científica das pesquisas sobre Trabalho- educação, no estudo da Educação Profissional, do Ensino Médio Integrado, da Educação de Jovens e Adultos, dos diferentes modos de vida da população brasileira (indígenas, quilombolas, ribeirinhos), das contrarreformas trabalhista e educacional, da Emenda Constitucional n. 95/2017 e suas consequências para o esvaziamento das políticas sociais.
A crítica teórica e temática entre pares, valorizando a ciência, é imprescindível ao país, cujo governo atacou os melhores valores do conhecimento e da vida. A distribuição de renda e a volta à civilidade política são passos necessários para a democracia. Votar pela redemocratização do país foi votar pela vida com dignidade. Rio, out. 2022-jan. 2023
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V.21, nº 44, 2023 (janeiro-abril) ISSN: 1808-799 X
Marise Ramos2
Resumo
Quando o Partido dos Trabalhadores governou o Estado Brasileiro (2003-2016), as disputas pela educação implicaram a sociedade política com o propósito de superar as contrarreformas neoliberais. Intelectuais do GT 09 da ANPEd assumiram funções no poder executivo buscando atuar com base no conhecimento acumulado nesse campo. O artigo discute conteúdo, processos e contradições dessas disputas, bem como debates e dissensos no interior no próprio campo, concluindo sobre a relevância desse conhecimento para enfrentar o neoconservadorismo presente na sociedade, desafios no contexto do novo governo.
Palavras-chave: GT 09; trabalho e educação; ensino médio integrado; Decreto n. 2.208/1997; Decreto
n. 5.154/2004.
LA FORTALEZA MATERIAL DEL CONOCIMIENTO EN EL TRABAJO Y LA EDUCACIÓN EN LOS GOBIERNOS VINCULADOS AL PT: CONTRADICCIONES EN DISPUTA EN EL ESTADO AMPLIADO
Resumen
Cuando el Partido de los Trabajadores gobernaba el Estado brasileño (2003-2016), las disputas por la educación involucraron a la sociedad política para superar las contrarreformas neoliberales. Intelectuales del GT 09 de ANPEd asumieron funciones en el Poder Ejecutivo buscando actuar con base en el conocimiento acumulado en este campo. El artículo discute contenidos, procesos y contradicciones de estas disputas, así como debates y disidencias dentro del propio campo, concluyendo sobre la pertinencia de estos saberes para enfrentar los desafíos del
Palabras clave: GT 09; Trabajo y Educación; bachillerato integrado; Decreto n. 2.208/1997; decreto nm. 5.154/2004.
THE MATERIAL STRENGTH OF KNOWLEDGE AT WORK AND EDUCATION IN GOVERNMENTS LINKED TO THE PT: DISPUTE CONTRADICTIONS IN THE EXPANDED STATE
Abstract
When the Workers' Party governed the Brazilian State (2003-2016), disputes over education involved political society in order to overcome neoliberal counter-reforms. Intellectuals from ANPEd's WG 09 assumed functions in the executive branch seeking to act based on the accumulated knowledge in this field. The article discusses content, processes and contradictions of these disputes, as well as debates and dissent within the field itself, concluding on the relevance of this knowledge to face the neoconservatism present in society, challenges in the context of the new government.
Keywords: GT 09; work and education; integrated high school; Decree n. 2,208/1997; decree n. 5.154/2004.
1Artigo recebido em 02/02/2023. Primeira avaliação em 07/03/2023. Segunda avaliação em 04/03/2023. Aprovado em 15/03/2023. Publicado em 13/04/2023. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v21i44.57606.
2 Doutora em Educação pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Rio de Janeiro - Brasil. Pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio da Fundação Oswaldo Cruz (EPSJV/Fiocruz), Rio de Janeiro - Brasil e professora associada da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Rio de Janeiro - Brasil, na linha de pesquisa Estado e Políticas Públicas. É uma das coordenadoras do Grupo These – Projetos Integrados de Pesquisa em Trabalho, História, Educação e Saúde UFF/UERJ/EPSVJ-Fiocruz. Bolsista CNPq -PQ-2 e Cientista do Nosso Estado Faperj.
E-mail: ramosmn@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/3796863111902233. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5439-3258.
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Em 1984, num livro intitulado O Marxismo na batalha das ideias, o autor do presente trabalho argumentou no sentido de que devemos reconhecer que, mesmo numa trajetória pessoal bem-sucedida, é elevado o coeficiente de fracasso. E chegou a sugerir que, ao lado do curriculum vitae, numa tentativa de corrigir sua unilateralidade, as pessoas fossem desafiadas a elaborar outro documento histórico de suas derrotas e seus fracassos: o currículo mortis. Seria, com certeza, uma peça mais interessante do que a outra; e provavelmente contribuiria para a crítica da ideologia. (KONDER, 2002, p. 258, grifos do autor).
O ingresso do Partido dos Trabalhadores na gestão do Estado brasileiro em 2003 oportunizou tentativas por parte de intelectuais e educadores que assumiram funções de gestão na estrutura do Ministério da Educação, de rompimento com a política educacional anterior, caracterizada por um conjunto de contrarreformas nos planos conceitual, organizacional e econômico de corte neoliberal.
Ainda que se considere o Decreto n. 2.208/1997 como uma das medidas de maior impacto na educação básica durante o governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC), especialmente quanto à relação entre ensino médio e educação profissional, cabe destacar que o caminho aberto para esta e outras medidas foi o êxito na aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB – Lei n. 9394/1996), na versão do substitutivo do senador Darcy Ribeiro, designada por Saviani (1997) como “minimalista”. Foram exatamente pelas lacunas deixadas por esta lei, se comparada ao Projeto de Lei da Câmara dos Deputados (PLC 101), que adentraram as regulamentações que se alinhavam aos preceitos de organismos internacionais, atuantes no sentido de adequar a relação trabalho e educação ao contexto neoliberal e pós-moderno típico da contemporaneidade especialmente a partir dos anos de 1990. Juntamente com essa nova lei e o Decreto n. 2.208/1997, passamos a viver a “era das diretrizes” (CIAVATTA e RAMOS, 2012), quando as Diretrizes Curriculares Nacionais se tornaram o principal meio da política curricular no Brasil.
3 Este texto foi inicialmente escrito para a exposição na mesa “A produção científica das pesquisas em Trabalho- Educação como ‘força material’: experiências e perspectivas da práxis política, realizada no V Intercrítica – Encontro de Grupos de Pesquisa em Trabalho e Educação, realizado no período de 10 a 11/10/2022.
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No primeiro governo do presidente Luís Inácio Lula da Silva, tentou-se, com muito esforço e na contracorrente do pensamento hegemônico na sociedade e no interior do próprio Estado, direcionar a política de educação dos trabalhadores para uma concepção inspirada na politecnia e no princípio educativo do trabalho. O programa do então candidato, em 2002, firmou o compromisso com a revogação do Decreto n. 2.208/1997, ícone do dualismo e do privatismo educacional. Este, ao separar a educação profissional do ensino médio, não só inaugurou uma rota privatizante da primeira, como incorporou em ambas o modelo pedagógico alinhado com o pensamento neoliberal e pós-moderno centrado em competências4.
A Secretaria de Educação Média e Tecnológica (SEMTEC) contava com pesquisadores ligados ao GT 09 – Trabalho e Educação da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação (ANPEd)5 em funções estratégicas para esse redirecionamento político. Porém, sem o propósito de encaminhar uma nova reforma educacional a partir do aparelho de Estado e do diálogo restrito com consultores (o que foi a prática dos governos anteriores). Ao contrário, pretendeu-se construir, em diálogo com a sociedade e educadores, uma nova concepção educacional à luz da utopia que tanto mobilizou os debates pela nova LDB.
A revogação daquele decreto por outro, o de número 5.154/2004, foi entendido por alguns pesquisadores do mesmo campo como mantenedor da dualidade, ao se admitir no ensino médio os ramos propedêutico e profissionalizante como conciliação de interesses divergentes6. Outra crítica importante concerne à interpretação de que este decreto, mais do que restaurar a possibilidade de integração da educação profissional ao ensino médio – o que já estava assegurado pelo parágrafo 2º. do artigo 36 da LDB – dada a não revogação das formas concomitante e subsequente, teria, com o médio integrado, ampliado as alternativas “que favoreceram ações privadas de formação precarizada com recursos públicos”. (KUENZER, 2007, p. 501)7
4 Dentre os diversos estudos que publicamos sobre o tema, recomendamos o mais completo (Ramos, 2001).
5 Citamos, particularmente, além da própria autora deste texto, Ivone Moreira, respectivamente nas
Diretorias do Ensino Médio e da Educação Profissional, e Lucília Machado na equipe gestora do Programa de Expansão da Educação Profissional (Proep).
6 Essa posição é explícita nos artigos de Rodrigues (2005a, 2005b) ao associar o novo decreto à Lei n. 7.044/1982, que revogou a profissionalização compulsória imposta pela Lei n. 5.692/1971.
7 A Revista Trabalho, Educação e Saúde proporcionou, na sessão debates, o diálogo profícuo sobre o
tema entre a autora citada (KUENZER, 2007) e a deste artigo (RAMOS, 2007). Diálogo este que se estende até os dias atuais orientado pelo compartilhamento da defesa intransigente do direito da classe
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O fato é que, na disputa com os setores privatistas da educação e mesmo com alguns da educação pública que apoiavam o Decreto n. 2.208/1997 – no primeiro caso, principalmente o chamado Sistema “S”, e, no segundo, o Conselho de Secretários Estaduais de Educação (CONSED) e parte do então Conselho Nacional de Dirigentes dos CEFETs (CONCEFET) – venceu a tese de que a relação entre ensino médio e educação profissional deveria ser de “articulação” e não de “integração”, dado o caráter abrangente do primeiro e restrito do segundo. Por esta razão, integração deveria ser apenas uma das formas possíveis da articulação, a qual abrangeria, também, as formas subsequente e concomitante da educação profissional na relação com ensino médio. A articulação, na verdade, foi uma estratégia que se valeu da linguagem – um eufemismo – para legitimar a manutenção da separação entre as modalidades de ensino já praticadas historicamente pelo Sistema S e implementadas por muitos sistemas estaduais de ensino e na própria rede federal, além de abrir um enorme flanco para a atuação de outras instituições privadas na oferta da educação profissional no país.
De um lado, a crítica ao conteúdo do Decreto n. 5.154/2004 identificava esse artifício, o qual impedia a efetiva superação dos propósitos da reforma que o decreto anterior operava. De outro lado, quadros da esquerda que assumiram postos diretivos no MEC e que lideravam o debate com a sociedade, com organismos representantes dos sistemas de ensino, com o Sistema S e como o próprio Conselho Nacional de Educação, cuja composição mantinha a hegemonia do pensamento neoliberal, argumentavam que, não fosse pela negociação e conciliação, não se conseguiria avançar. Tornar a “forma integrada" uma possibilidade de “articulação” entre ensino médio e educação profissional era dar um passo muito importante frente aos oito anos de consolidação de interesses neoliberais, e levar a disputa e a construção do projeto de educação que interessa à classe trabalhadora efetivamente para a sociedade civil. Pode-se dizer que o Decreto n. 5.154/2004 resultou da disputa que se travou no âmbito do Estado ampliado, isto é, envolvendo tanto a sociedade política com as forças condensadas no aparelho de Estado, quanto a sociedade civil organizada nos aparelhos privados de hegemonia. (GRAMSCI, 2001; POULANTZAS, 1985).
trabalhadora à educação de qualidade coerente com seus interesses e tendo como horizonte transformação radical da sociedade.
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Eram significativos os efeitos, para a classe trabalhadora, da política educacional do governo de FHC, alinhadas às dinâmicas da restruturação produtiva e do neoliberalismo no Brasil. Rigorosamente, as medidas visavam separar educação básica e educação profissional tornando-as independentes. Se havia o propósito de reformar os currículos, mediante a organização em módulos e itinerários flexíveis baseados em competências, a finalidade precípua era desvincular a educação profissional da educação nacional sob responsabilidade do Estado, transferindo-a para outras esferas e/ou privatizá-la. Em todos os casos, desobrigava-se o Estado de seu financiamento.
Tanto isto é verdade que algumas medidas se seguiram ao Decreto n. 2.208/1997 para viabilizar o intento. Uma delas foi a implantação do Proep8, meio pelo qual as instituições federais podiam pleitear recursos face ao decréscimo brutal do orçamento público a elas destinado. Mas, para isto, no plano de adesão ao programa, as instituições deveriam demonstrar a redução das vagas do ensino médio a zero no período de quatro anos. Visando a minimizar resistências, a Portaria MEC n. 646/1997 permitiu a oferta de vagas para o ensino médio com matrícula independente do ensino técnico de até 50% do total oferecido para os cursos regulares em 1997. Em contraposição, em cinco anos, as vagas oferecidas somente para a educação profissional deveriam dobrar. Ou seja, havia uma política de esvaziamento da educação geral nessas instituições, juntamente com a cooptação, via financiamento, da extinção dessa formação.
Igualmente conjugada a esta medida esteve a lei n. 9.649/1998 que, ao emendar o artigo 3º. da Lei n. 8.948/1994, definiu que a expansão da educação profissional pela União só poderia ocorrer em parceria com Estados, Municípios, Distrito Federal, setor produtivo ou organizações não-governamentais, a se responsabilizarem pela manutenção e gestão das novas unidades9. Vislumbrava-se, com tais restrições, a educação profissional como uma política não somente para o
8 Portaria MEC n.1005, de 10 de setembro de 1997.
9 Outra nova redação foi dada a este artigo pela Lei n. 11.195/2005, substituindo a palavra “somente”, por “preferencialmente”. A alteração foi sutil, mas abriu a possibilidade para a posterior e substantiva expansão da rede federal.
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mercado, mas também do mercado. O destino da rede federal estava traçado: seria a sua privatização.
Foram diversas as estratégias de disputas travadas no âmbito do Estado ampliado sob liderança da sociedade política. Essas implicaram momentos de debates, divulgação de documentos, realização de reuniões de trabalho, dentre outras. Duas amplas e marcantes ações ocorreram em 2003: a realização dos seminários do ensino médio10 e da educação profissional. O primeiro foi precedido por diversas reuniões com pesquisadores de temas que orientaram os debates no seminário, a fim de se produzir coletivamente conhecimentos para o redirecionamento dos rumos do ensino médio. No segundo, as forças conservadoras estavam mais organizadas. O “Documento à Sociedade”11 (BRASIL. MEC, 2004), que visava dar retorno às instituições da sociedade civil e política pelas contribuições apresentadas à construção do decreto que revogaria o 2.208/1997, expõe que
o Seminário Nacional sobre “Ensino Médio: Construção Política”, realizado em Brasília nos dias 19 a 21 de Maio de 2003 teve como eixo e balizamento da concepção de ensino médio, o conhecimento, o trabalho e a cultura. Seu horizonte é a formação de sujeitos autônomos, tecnicamente capazes de responder às demandas da base científica digital-molecular da produção, mas, politicamente, protagonista de cidadania ativa na construção de novas relações sociais. Sua estratégia foi a de reunir para o debate, Governo Federal, Secretarias Estaduais de Educação, pesquisadores e entidades científicas. Neste sentido, foi precedido de um conjunto de oficinas preparatórias, cujo material produzido está sendo publicado proximamente e será um valioso material para a construção da política de Ensino Médio e Educação Profissional. Em continuidade a esse Seminário, mas com foco mais específico, foi realizado o Seminário Nacional de "Educação Profissional - Concepções, Experiências, Problemas e Propostas" no período de 16 a 18 de junho de 2003. A estratégia foi de produzir previamente um documento-base para os debates sobre o tema e, a partir do mesmo, estabelecer um amplo diálogo com as instituições e organizações interessadas na temática.
10 Este seminário gerou duas publicações da Diretoria do Ensino Médio da SEMTEC. A primeira, de 2003, foi um caderno síntese, do qual consta o conteúdo dos relatórios dos grupos de discussão. Pelas consultas que fizemos na Internet, esta publicação não está acessível eletronicamente. A segunda, é o livro “Ensino médio: ciência, cultura e trabalho” organizado por Gaudêncio Frigotto e Maria Ciavatta, por solicitação desta autora, na condição de Diretora do Ensino Médio (FRIGOTTO e CIAVATTA, 2004), do qual constam capítulos de autoria de pesquisadores que participaram das reuniões preparatórias do seminário. Os procedimentos para a publicação foram realizados quando a exoneração desta autora do cargo que ocupava já estava definida. Considerando a relevância da publicação e para evitar constrangimentos políticos, o texto de apresentação, ainda que figure com o nome do então secretário, foi escrito pela própria, que optou por constar da obra somente como autora de um dos capítulos.
11 O documento foi elaborado pela Diretoria do Ensino Médio dirigida por esta autora, com auxílio de Gaudêncio Frigotto e Maria Ciavatta, interlocutores permanentes, e com apoio dos demais dirigentes da SEMTEC.
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Por isso, não se definiu previamente as instituições participantes. Efetivou-se um convite aberto. A resposta foi extraordinária. Estiveram presentes mais de 1.500 pessoas, representando 417 instituições da sociedade e órgãos do governo, como consta nos Anais do Seminário a que todos tiveram acesso. Com base nos debates e na sinalização resultante das "concepções, experiências, problemas e propostas" apresentadas, elaborou-se a "Proposta de Políticas Públicas para a Educação Profissional e Tecnológica". Este documento foi amplamente divulgado em forma escrita e eletrônica mediante o site da MEC/SEMTEC. (BRASIL. MEC. SEMTEC, 2004, p. 2).
Ressaltou-se o princípio que orientou o trabalho político do grupo: a democracia; que “se constrói dentro de forças e interesses divergentes e que, portanto, como já assinalamos, pressupõe o diálogo como estratégia da política de reconhecimento destes diferentes interesses existentes na sociedade, mediante a transparência nas discussões e decisões”. (BRASIL. MEC, 2004, p. 3) Ao todo, foram seis versões de minutas de decreto, sendo que a partir da terceira, retirou-se do texto elementos conceituais importantes incorporados à exposição de motivos e, assim, reduzindo o corpo do decreto. Essa medida tentou responder à crítica de que o documento era muito conceitual e pouco normativo. Rigorosamente, os conceitos incomodavam os setores conservadores pois buscavam explicitar a concepção de educação defendida pelos que dirigiam a SEMTEC naquele período.
A partir de então, a política da educação profissional integrada ao ensino médio se tornou fato legal, demandando sua efetiva construção. Ainda na gestão desta autora, firmou-se um compromisso, que redundaria em acordos de cooperação técnica12, entre o MEC e três secretarias estaduais de educação – Paraná, Santa Catarina e Espírito Santo – com a finalidade de apoiá-las na implantação do ensino médio integrado. Recursos para esta ação chegaram a ser incluídos no Plano Plurianual (PPA) para os quatro anos seguintes, além da elaboração de um projeto que delineava três componentes, a saber: a) propostas curriculares que articulem ciência, cultura e trabalho; b) formação de professores; c) memória e identidade escolar. Previa-se a colaboração de consultores e um diálogo profícuo foi construído envolvendo os seguintes sujeitos, além desta autora, na condição de Diretora do
12 Foi elaborado uma minuta com a seguinte ementa “acordo de cooperação técnico-científica que entre si celebram a Secretaria de Educação Média e Tecnológica do Ministério da Educação e a Secretaria de Educação do Estado (_), com vistas ao desenvolvimento de projetos e atividades de mútuo interesse”, sendo a cláusula primeira referente ao objeto, qual seja: “assessoramento técnico à Secretaria de Educação do Estado (_) na implantação do Ensino Médio integrado à Educação Profissional”. (Documento de arquivo pessoal da autora).
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Ensino Médio: Gaudêncio Frigotto (Uerj), Maria Ciavatta (Uff), Vera Corrêa (Uerj), todos ligados à Anped; e, pelas Secretarias Estaduais de Educação, pelo menos duas interlocutoras que ocupavam cargos de gestão, também pesquisadoras em Trabalho e Educação: Sandra Garcia (Paraná) e Elisa Bartolozzi (Espírito Santo).
O MEC passou por uma reformulação importante em 2004, com o desligamento de Cristóvam Buarque como titular da pasta e a nomeação de Tarso Genro, levando consigo Fernando Haddad como secretário executivo, já com a perspectiva de substituí-lo, o que ocorre em julho de 2005. As mudanças atingiram a organização do ministério, principalmente a transferência do ensino médio para Secretaria de Educação Básica, assumido por Lúcia Lodi. A educação profissional permaneceu naquela que passou a se chamar de SETEC – Secretaria de Educação Tecnológica13.
Nesse contexto, a integração da educação profissional ao ensino médio voltou a ser tratada mais como uma formação alternativa ao não acesso ao ensino superior. Ainda que um conjunto de seminários sobre o tema tenham sido realizados pelo MEC e Secretarias Estaduais de Educação, O projeto de assessoramento aos sistemas estaduais não se efetivou. A disputa pela concepção do ensino médio integrado e a discussão de suas contradições, nesse contexto, motivou o mesmo grupo que idealizou aquele projeto à publicação de um livro (FRIGOTTO, CIAVATTA e RAMOS, 2005a), que se tornou importante referência para pesquisadores, educadores e instituições que se dispuseram à mesma disputa nos planos prático e teórico.
Da não consolidação da compreensão do Ensino Médio Integrado como uma concepção que visa, com mediações históricas e contraditórias específicas, à disputa pela educação politécnica e omnilateral da classe trabalhadora, também decorreu a demora de elaboração de novas Diretrizes Curriculares Nacionais. A falta de iniciativa dos gestores ministeriais possibilitou que a nova resolução, relatada por Francisco Cordão, representante do Sistema S no CNE, apenas adaptasse as diretrizes vigentes – afins ao Decreto n. 2.208/1997 – à possibilidade de oferta integrada da educação profissional ao ensino médio. A política de educação profissional, por sua vez, também passou por certo imobilismo, tendo-se priorizado o “Escola de Fábrica”, programa que visava apoiar parcerias entre empresas e escolas para a formação de trabalhadores.
13 A autora deste texto foi exonerada de seu cargo e, tempo depois, a pedido, também a Diretora de Educação Profissional. O então Secretário, Antonio Ibañez Ruiz, manteve-se no cargo até 2005 e foi substituído por Eliezer Pacheco.
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Traçou-se assim, por algum tempo, um percurso controvertido da política de educação profissional. (FRIGOTTO, CIAVATTA e RAMOS, 2005b)
Quando a SETEC foi assumida por Eliezer Pacheco e uma nova equipe montada com pesquisadores como Jaqueline Moll (UFRS), Sandra Garcia (UEL), além de Luiz Augusto Caldas (Cefet Campos) e, na SEB, Carlos Artexes Simões (Cefet RJ), a política de educação profissional e tecnológica e de integração com o ensino médio se dinamizou. O conteúdo do Decreto n. 5.154/2004 foi incorporado à LDB (Lei n. 11.741/2008); os debates sobre a transformação dos Cefets em Universidades Tecnológicas (consolidado somente no Paraná) se resolveu com a implantação dos Institutos Federais (Lei n. 11.892/2008); e os planos de expansão da rede federal desenharam no mapa do Brasil uma realidade ainda não vista, com Institutos Federais em todo o território nacional, especialmente em cidades do interior.
O sonho do Presidente Lula de que todos os jovens pudessem estudar no Senai como ele se materializava de outra forma: pela democratização do acesso da classe trabalhadora a instituições com qualidade historicamente comprovada – e disputada pelas frações médias – garantindo-se o direito à educação básica e à educação profissional sem que esta substituísse a primeira, mas ao contrário, se configurassem numa unidade. Não fosse a teoria construída e debatida por pesquisadores em Trabalho e Educação encontrar, naquele momento, condições de penetrar nas massas para se tornar “força material” (MARX, 2005), talvez o sonho tivesse se realizado, na melhor das hipóteses, nos limites da experiência do líder da nação e, em grande parte, mais em benefício do capital do que do trabalho.
Entendemos que essas ações possibilitaram, em alguma medida, alterar o “pólo determinante da contradição” em benefício do trabalho. Como nos explica Barata-Moura (2012), na unidade dos contrários, há o polo dominante que, “num determinado momento, conserva a supremacia de um dado processo, que encarna e exerce a hegemonia que nele se verifica e que lhe desenha os traços”. Mas há, também, um polo determinante que dirige a marcha da contradição e “efetivamente a conduz na materialização do leque de possibilidades reais que a projecta, isto é,
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aquele que praticamente determina o estágio de desenlace em que se encontra, o sentido ou a orientação da resolução da contradição”. (MOURA, 2012, p. 344)
A formação dos trabalhadores brasileiros é uma contradição entre os interesses do capital e da classe trabalhadora, sendo o primeiro, o polo dominante. Durante a política educacional do governo de FHC, este polo foi também determinante e dirigiu a marcha no sentido do Decreto n. 2.208/1997.
Já a partir do primeiro governo Lula, a recuperação de lutas históricas pela educação da classe trabalhadora e da teoria produzida por intelectuais orgânicos dessa classe (GRAMSCI, 2001), tensionaram a relação de forças políticas condensando interesses dos trabalhadores como polo determinante da contradição, mesmo que no grau de consciência política coletiva delimitado ainda ao “momento de Estado”, que segundo Gramsci (2002, p. 41) é
aquele em que se atinge a consciência da solidariedade de interesses entre todos os membros do grupo social, mas ainda no momento meramente econômico. Já se põe neste momento a questão do Estado, mas apenas no terreno da obtenção de uma igualdade político-jurídica com os grupos dominantes, já que se reivindica o direito de participar da legislação e da administração e mesmo de modificá-las, de reformá-las, mas nos quadros fundamentais existentes.
Sendo assim, os avanços formais que caracterizam esse período no âmbito da sociedade política não corresponderam, imediatamente, à disputa e à conquista do projeto de educação unitária e politécnica. De todo modo, em um Estado democrático, que se organiza de forma ampliada pela unidade entre sociedade política e sociedade civil, (GRAMSCI, 2002a) a legislação expressa a condensação material de correlação de forças na ossatura material do Estado. (POULANTZAS, 1985)
Sabíamos que, a partir de então, as disputas efetivas precisariam envolver os sistemas e instituições de ensino e a sociedade civil mais amplamente e que, se o Decreto n. 5.154/2004 representou uma conciliação de interesses, ele foi fundamental para alterar o movimento da contradição da educação em direção ao trabalho. Precisaríamos enfrentar a reconstrução da concepção de educação politécnica e formação omnilateral com as mediações históricas da realidade presente, o que buscamos fazer com os conceitos de “formação integrada” e de “Ensino Médio Integrado”, enunciando-os como “travessia” para a educação politécnica. (FRIGOTTO, CIAVATTA e RAMOS, 2005a). Reiterávamos que o dispositivo da
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educação profissional articulada ao ensino médio, com a integração sendo uma das formas dessa articulação, era um produto contraditório das disputas travadas com as forças conservadoras no sentido da contrahegemonia.
A formação de técnicos no ensino médio, desde que atendida sua educação básica, trata-se de uma contradição virtuosa quando baseada na unidade entre particularidade e totalidade social. Isto é, conquanto todo processo de produção tenha especificidades referentes à sua base científico-tecnológica, eles sintetizam mediações da totalidade social, porque são construídos no movimento histórico das necessidades e disputas da sociedade. Portanto, a formação em uma determinada profissão no ensino médio integrado na perspectiva da politecnia não se reduz à esfera de um processo produtivo. Mas traz, por mediações, dimensões da totalidade social.
No currículo integrado, (RAMOS, 2005) o que conhecemos como disciplinas da formação geral não são acessórios nem meros pré-requisitos para a formação técnica. Ao contrário, nelas estão os fundamentos da produção e das relações sociais de um tempo histórico. Seus conteúdos de ensino conferem consistência científica, cultural, filosófica, histórica, aos conhecimentos considerados específicos, mas também aos fenômenos da vida social em geral. Daí que temos discutido os sentidos da integração como filosófico – pressuposto da historicidade do ser humano e das relações sociais –, político, referente ao direito dos filhos da classe trabalhadora à educação geral e profissional; epistemológico, que versa sobre a integração de conhecimentos; e pedagógico, que implica a organização do conhecimento na escola. (RAMOS, 2014)
Esta concepção, inicialmente, priorizava o ensino médio destinado a estudantes com idade considerada regular. Mas o Programa de Integração da Educação Profissional com a Educação Básica na modalidade Educação de Jovens e Adultos (PROEJA)14 também ajudou a aproximar pesquisas, pesquisadores, educadores e sujeitos das áreas Trabalho e Educação e EJA. Além disto, a criação dos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia pela transformação e nucleação de escolas técnicas e agrotécnicas federais e de Cefets foi uma medida de impacto na política de educação de trabalhadores brasileiros, juntamente com os planos de expansão da rede que redundaram em multiplicação, capitalização e interiorização significativa de unidades pelo país. Houve, ainda, tentativas de
14 Criado inicialmente pelo Decreto n. 5.478/2005 e ampliado pelo Decreto n. 5.840/2006.
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envolvimento das redes estaduais, com o Programa Brasil Profissionalizado15, porém sem muito êxito.
Um olhar sobre os anos de 2010 a 2013 nos sinalizariam também ações importantes, como a publicação de novas Diretrizes Curriculares Nacionais16 e o desenvolvimento do Pacto Nacional pelo Fortalecimento do Ensino Médio. Este representaria a articulação e a coordenação de ações e estratégias entre a União e os governos estaduais e distrital na formulação e implantação de políticas para elevar o padrão de qualidade do Ensino Médio brasileiro, em suas diferentes modalidades. Contou com a colaboração de vários educadores na elaboração dos Cadernos de Formação e com a parceria entre as Secretarias Estaduais de Educação e Universidades Públicas.
Com muito esforço, e contribuição crítica de pesquisadores em Trabalho e Educação, tanto intelectuais que ocuparam o Ministério da Educação quanto aqueles que estão permanentemente na práxis, tentaram intervir na elaboração da política educacional no país com base em sua produção científica. E isto não foi pouco, mesmo com muitas contradições que alimentaram interesses do capital, no período de 2003 a 2016. O princípio de que “a teoria converte-se em força material quando penetra nas massas”, (MARX, 2005, p. 151) no contexto da educação da classe trabalhadora brasileira se manifesta no fato de o ensino médio integrado ter se tornado a concepção orientadora da rede federal e, hoje, conteúdo de resistência às políticas regressivas que assolam o país a partir de 2016.
Retomamos mais uma vez os ensinamentos de José Barata-Moura. O filósofo português nos fala das contradições antagônicas e não antagônicas. Nas primeiras, a unidade dos contrários constitui-se sempre como uma ordem de subordinação ou de dominação materialmente fundada na luta de classes. Por isto, sua resolução prática
16 Referimo-nos aqui aos Pareceres n. 12, de 09/05/2012, homologado pelo Ministro da Educação em
04/09/2012 (DCNEPTNM) e n. 05, de 04/05/2012, homologado em 24/01/2012 (DCNEM), bem como às respectivas Resoluções n. 06, de 20/09/2012 e n. 02, de 30/01/2012. (CIAVATTA e RAMOS, 2012).
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e de outras superficiais não pode ocorrer “sem que importantes transformações de estrutura (isto é, verificadas na ordem da qualidade) se materializem também. [...] Já as “contradições não antagônicas” se verificam “sobre o pano e no horizonte de interesses fundamentais comuns”. O autor argumenta que essas supõem a superação das oposições de classe, dispondo, “como base econômica consolidada, da propriedade social dos meios de produção, bem como de relações socialistas de produção das quais a exploração haja sido essencial ou completamente extirpada”. (BARATA-MOURA, 2012, p. 394-395, grifos do autor)
Nesses termos, ainda que as contradições não antagônicas diriam respeito às sociedades primitivas, ao socialismo avançado e ao comunismo, como argumenta o filósofo, nos permitimos uma interpretação de sua análise no sentido de identificar a disputa do projeto de educação da classe trabalhadora como uma contradição antagônica cujos polos, atualmente, se materializam, de um lado, pela contrarreforma do ensino médio e, de outro, pelo ensino médio integrado. Não obstante, no campo em que se reúnem pesquisadores da relação trabalho e educação cujo horizonte comuns é a superação da estrutura econômica capitalista, existem contradições não antagônicas que emergem das diferentes visões “táticas” sobre como disputar e construir a educação da classe trabalhadora brasileira no capitalismo hegemonizado pelo neoliberalismo, mas como mediação da luta de classes que visa sua superação e a formação de um novo “bloco histórico”. (GRAMSCI, 2002).
Durante os governos de Dilma Rousseff, sob fortes críticas dos pesquisadores em Trabalho e Educação, a política de educação dos trabalhadores acabou sendo conduzida pelo pragmatismo das formações aligeiradas vinculadas ao mercado de trabalho e visando a um certo apassivamento social, inclusive mediante acordos com representantes do capital. O Pronatec – Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego – foi a grande expressão dessa lógica, tendo-se minimizado a relevância do ensino médio integrado, inclusive na modalidade da Educação de Jovens e Adultos (Proeja). Esse fato nos provocaria discutir o quanto essa política manifestou, nos governos ligados ao Partido dos Trabalhadores, a “hegemonia às avessas” – [...] “vitórias políticas, intelectuais e morais ‘dos de baixo’ fortalecem dialeticamente as relações de exploração em benefício ‘dos de cima’” (OLIVEIRA, BRAGA e RIZEK, 2010, p. 8) – ou uma contradição “não antagônica”, produzida pelos intelectuais orgânicos da classe trabalhadora com a finalidade de fortalecê-la
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mediante a inserção de trabalhadores que estavam à margem da relação salarial na divisão social do trabalho e, assim, potencializar sua própria organização por inscrevê- los, pelo menos, no momento econômico-corporativo, no primeiro grau da consciência política coletiva. (GRAMSCI, 2002)
Em patamar de maior complexidade encontram-se, ao nosso ver, problematizações e discordâncias quanto ao ensino médio integrado, as quais podem ser, essa é nossa tese, contradições não antagônicas produzidas e enfrentadas no campo Trabalho e Educação e pelas instituições de ensino. Uma das problematizações é que, na prática, o que se tem realizado com o nome de ensino médio integrado nas escolas e, especialmente nos Institutos Federais, não passa de um somatório de disciplinas num currículo ainda mais fragmentando do que integrado, conteudista e, consequentemente, extenuante para estudantes e professores. Explicações para isto seriam: incompreensão da concepção pelos educadores; manutenção da hegemonia positivista, mecanicista e tecnicista que marca a história da educação em geral e da educação profissional em particular no Brasil; força da ideologia da classe dominante que insiste na dualidade entre formação geral e profissional. Problematiza-se, ainda, que o ensino médio integrado seria aplicável somente à rede federal por contar com boa infraestrutura e condições de formação e trabalho docente não comparável à precariedade das demais redes públicas e até mesmo, privadas.
Finalmente, como questão mais de fundo, alguns intelectuais discordam que o ensino médio integrado seja um projeto convergente com a necessidade da classe trabalhadora. A maior expressividade desta ideia é de Paolo Nosella (2011, p. 1053), como se pode ver em suas palavras:
Defendo a tese de que o trabalho produtivo, em sua concepção ampla, "mercadologicamente desinteressado", é o princípio educativo geral de todo o sistema escolar. O princípio pedagógico específico do ensino médio, fase final da educação básica, decorre do momento vivido pelo jovem em busca de sua autonomia e identidade moral, intelectual e social. É marcado, portanto, pela transição da fase da aprendizagem prioritariamente heterônoma para a fase da aprendizagem autônoma. A atual apologia e ampliação do ensino médio profissionalizante é uma declaração implícita da falência e do abandono do ensino médio regular, ao mesmo tempo em que expressam o agravamento da dualidade social e escolar. (grifo nosso).
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O equívoco deste intelectual, a nosso ver, é identificar ensino médio integrado exclusivamente com “ensino médio profissionalizante” e, assim, o trabalho que orienta o princípio educativo seria “mercadologicamente interessado”. Seu posicionamento considera, de um lado, a integração como “irrepreensível”. Mas, na prática, ela [...] “levanta sérias preocupações de caráter conceitual, de currículo e de gestão”, pois – e nisto estamos de acordo – [...] “integração de cultura geral e profissional não é justaposição de conteúdos, nem subsequência, nem concomitância. É articulação”. E pergunta: “mas qual o elemento articulador? ”, recaindo sobre a polissemia do termo/conceito "integrado", o qual, apesar de ser “sedutor e instigante, pode chegar a ser ambíguo e enganoso”. (NOSELLA, 2011, p. 1057)
Não divergimos quanto à polissemia do termo integração, tanto que tentamos definir os sentidos que convergem com a concepção do ensino médio integrado na perspectiva da politecnia. (RAMOS, 2014) A divergência se manifesta tanto na forma, pois, para esse intelectual, o ensino médio não poderia ter a profissionalização como uma de suas possibilidades; quanto no conteúdo, com base em sua interpretação do pensamento de Antonio Gramsci. Mesmo que ele reconheça o lugar do trabalho produtivo na formação escolar da classe trabalhadora discutido por Marx e Engels, Lênin e Krupskaya, além de outros educadores soviéticos e por Gramsci – [...] “é inegável o fascínio que a expressão ‘trabalho produtivo’ e sua íntima conexão com o processo educativo escolar suscitavam nos educadores socialistas do início do século”, diz ele – este princípio só poderia se realizar, em sua compreensão, com o caráter “desinteressado” do trabalho, atributo conferido por nosso interlocutor essencialmente ao trabalho escolar, e não ao trabalho produtivo em geral.
Disto o autor extrai o princípio educativo do ensino médio: o trabalho escolar. Nossa conclusão advém das palavras do próprio, “o princípio pedagógico específico do ensino médio não deve ser buscado na preparação para o mercado, mas no método de estudo e pesquisa”. A este princípio ele agrega a passagem da heteronomia para a autonomia, na fase correspondente ao ensino médio. Suas conclusões, com base em Gramsci, nos parecem legítimas, pois é fato que o desenvolvimento da autonomia dos estudantes no ensino médio, mediada pelo método de estudo e pesquisa, é um trabalho coerente com essa etapa formativa:
[...] deve-se convencer muita gente de que o estudo é também um trabalho, e muito cansativo, com um tirocínio particular próprio, não só intelectual, mas também muscular-nervoso: é um processo de
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adaptação, é um hábito adquirido com esforço, aborrecimento e até mesmo sofrimento”. (GRAMSCI, 2001, p. 51).
Mas como não considerar que o trabalho “materialmente” produtivo também carrega o princípio educativo para a escola, por ser fundamento da produção social da existência humana no processo histórico da relação entre sociedade e natureza, parece-nos um limite importante das análises de Nosella ao ensino médio integrado. Vejamos o que nos diz Gramsci (2001, p. 43):
O conceito e o fato do trabalho (da atividade teórico-prática) é o princípio educativo imanente à escola primária, já que a ordem social e estamental (direitos e deveres) é introduzida e identificada na ordem natural pelo trabalho. O conceito do equilíbrio entre ordem social e ordem natural com base no trabalho, na atividade teórico-prática do homem, cria os primeiros elementos de uma intuição do mundo liberto de toda magia e bruxaria, e fornece o ponto de partida para o posterior desenvolvimento de uma concepção histórica, dialética, do mundo, para a compreensão do momento e do devir, para a avaliação da soma de esforços e de sacrifícios que o presente custou ao passado e que o futuro custa ao presente, para a concepção da atualidade como síntese do passado, de todas as gerações passadas, que se projeta no futuro.
A equivocada identidade entre ensino médio integrado e ensino médio profissionalizante deduzida por nosso intelectual ignora que este último se refere aos cursos técnicos de 2º. Grau regidos pela Lei n. 5.692/1971, um projeto absolutamente distinto do primeiro. Seria útil a tal esclarecimento, uma visita ao Projeto de Lei da Câmara de LDB (PLC n. 101/1993), com as normativas impostas à possível profissionalização no ensino médio a fim de não transgredir a perspectiva da escola unitária e de atender à necessidade histórica de adolescentes, jovens e adultos da classe trabalhadora brasileira terem a formação profissional. Mesmo que o substitutivo de Darcy Ribeiro no Senado tenha retirado essas normativas, o princípio de que “o ensino médio, atendida a formação geral do educando, poderá prepará-lo para o exercício de profissões técnicas” (parágrafo 2º. do artigo 36, da Lei n. 9.394/1996) foi assegurado, instituindo tanto um direito – a formação profissional – quanto uma condição, que por sua vez também é um direito fundamental e subjetivo – a formação geral do educando.
A interpretação de que o ensino médio integrado seria uma “apologia e expansão da profissionalização precoce”; “uma declaração da falência e do abandono do ensino médio público, humanista, ‘culturalmente desinteressado’, destinado a
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preparar dirigentes”, (NOSELLA, 2011, p. 1051) manifesta desconhecimento ou ceticismo relativos à utopia da formação integrada, politécnica e omnilateral buscada pela concepção de ensino médio integrado nas condições concretas de nosso país.
Aparentemente essa interpretação converge com a preocupação de Antonino Gramsci (2001, p. 49) de que
[...] “a multiplicação de tipos de escola profissional, portanto, tende a eternizar as diferenças tradicionais; mas dado que tende, nestas diferenças, a criar estratificações internas, faz nascer a impressão de ter uma tendência democrática”.
Mas é preciso dizer contundentemente não ser este o projeto defendido por pesquisadores em Trabalho e Educação. Ao contrário, ele converge com as afirmações subsequentes do filósofo italiano, a saber:
[...] a tendência democrática, intrinsecamente, não pode significar apenas que um operário manual se torne qualificado, mas que cada ‘cidadão’ possa tornar-se ‘governante’ e que a sociedade o ponha, ainda que ‘abstratamente’, nas condições gerais de poder fazê-lo: a democracia política tende a fazer coincidir governantes e governados (no sentido de governos com consentimento dos governados), assegurando a cada governado o aprendizado gratuito das capacidades e da preparação técnica geral necessárias a essa finalidade. (GRAMSCI, 2001, p. 50).
Quanto às contradições propriamente antagônicas na educação, essas se acirraram fortemente em favor do capital – polo dominante e determinante da contradição – a partir de 2016, quando ocorre o Golpe civil-midiático-jurídico- parlamentar de 2016, que tirou a presidenta Dilma Roussef da presidência da república. A partir de então, vivemos um conjunto de contrarreformas as quais, analisadas mais amplamente nesse contexto político, foram golpes seguidos de golpes caracterizando um estado de exceção. (AGAMBEN, 2004) A governabilidade do país foi interrompida na sua lógica democrática, ainda que as instituições representativas, nesse caso, tenham se mantido em funcionamento, inclusive para aprovar um conjunto de leis que beneficiariam o capital17. Houve, também, um processo de manipulação da sociedade, para a qual a mídia muito contribuiu, como forma de obtenção do consenso.
17 Cita-se, por exemplo, a Emenda Constitucional n. 95/2016, a reforma trabalhista, a reforma da previdência, e a lei da terceirização.
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A atual contrarreforma do ensino médio é exemplar dessa situação, primeiro pelo governo ter se valido de uma Medida Provisória, num processo muito parecido com o que ocorreu no período de FHC18. Uma MP só se justifica quando se tem um tema cujo tratamento exige urgência, em vista da qual não se pode aguardar os trâmites efetivamente democráticos. Ainda que ela carregue a exigência de ser apreciada no âmbito parlamentar, todo o processo, já de exceção, no interior dessa instituição, demonstrava que ela se tornaria lei; isto sem haver, concretamente, uma situação de urgência em relação ao ensino médio, ao menos do ponto de vista jurídico, frente à legislação e ao conjunto regulatório robusto e coerente construído no diálogo democrático (inclusive com forças oponentes) com a sociedade civil, consagrado tanto no Decreto n. 5.154/2004, quanto nas DCN de 2012. Além disso, vigia o Plano Nacional de Educação (PNE) aprovado em 2014, dando direcionamento à política de educação, especialmente no combate às desigualdades educacionais.
O conteúdo da MP era fortemente regressivo, reduzindo a carga horária da formação geral do ensino médio e excluindo disciplinas necessárias a essa formação. Estabelece-se um vínculo com a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) antes mesmo que existisse, com a peculiaridade de se ter uma lei cujo processo se justificaria somente numa situação de urgência, mas cujo conteúdo só entraria em vigor depois que outro instrumento, a BNCC, fosse aprovada. Isto, inclusive, acabou acelerando a publicação dessas Bases de modo a retrair ainda mais processos participativos e de debates. Demonstra-se, assim, autoritarismo e exceção típicos da hegemonia neoliberal que remonta ao governo de FHC, porém levado a extremos pouco tempo depois com a eleição de Jair Bolsonaro que (des) governou o país de 2018 a 2022.
18 A contrarreforma do ensino médio e da educação profissional no governo de FHC iniciou-se mediante a apresentação de um projeto de lei à Câmara dos Deputados (PLC 1.603/1996), que recebeu muitas críticas e mais de três mil emendas. O projeto acabou sendo retirado e a contrarreforma foi feita pelo Decreto n. 2.208/1997. A contrarreforma atual também pelo projeto de lei n. 6.840/ 2013, também objeto de muita resistência pela sociedade civil e alvo de um conjunto importante de emendas. Face à resistência, o governo Temer submeteu ao Congresso Nacional a Medida Provisória (MP) n. 746/2016. Tanto o decreto quanto a medida provisória são instrumentos do executivo, portanto, exarado a revelia do percurso democrático, com a diferença de que a última precisa ser apreciada pelo Congresso Nacional no prazo de sessenta dias, sob pena de ser rejeitada. Esta MP foi transformada em Projeto de Lei de Conversão nº 34 de 2016 e aprovada como Lei n. 13.415/2017. É possível que a opção do Executivo pela MP em detrimento a um decreto tenha ocorrido porque a primeira pode ser convertida em Lei, cuja revogação é mais complexa do que no caso do decreto, que pode ser revogado por outro, como ocorreu com a revogação do Decreto n. 2.208/1997 pelo 5.154/2004.
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A Lei 13.415/2017 recupera os aspectos mais conservadores de contrarreformas anteriores. Da Reforma Capanema, a divisão em ramos de conhecimento científico e clássico se manifesta quando se divide a carga horária total do ensino médio em 1.600 horas destinadas à formação geral (BNCC) e o restante em cinco itinerários formativos: ciências da natureza, ciências humanas, linguagens, matemática e educação técnico-profissional. Antecipa-se, assim, para o ensino médio, especializações apropriadas ao ensino superior, comprometendo o princípio da formação unitária nesta etapa da educação básica. O aspecto da Lei 5.692/1971 está na transformação da educação profissional em um desses itinerários, constituindo-se como uma formação substitutiva de parte da formação básica, visando a ser alternativa ao não prosseguimento de estudos para aqueles que o cursarem.
É interessante e lamentável notar que a própria representação simbólica da BNCC apresenta as áreas de conhecimento e os respectivos Itinerários, estabelecendo uma vinculação gráfica entre eles, a exceção do itinerário da educação profissional que não está ligado a nenhuma delas. Isto expressa uma concepção e uma prática: ao se destacá-la da formação geral, submete-se a formação profissional à lógica fragmentária e substitutiva. Ao contrário do princípio de que a educação profissional não poderia substituir a formação geral e, para isto, quando integrados, o ensino deveria ter sua carga horária ampliada, o que ocorre é a subtração de carga horária da formação geral em benefício dos itinerários. Pela primeira vez na legislação educacional brasileira há um teto estabelecido para carga horária da formação geral (parágrafo 5º. do artigo 3º. da lei). Finalmente, a transformação da educação profissional em itinerário recupera sua separação da educação básica determinada pelo Decreto n. 2.208/1997.
Outros aspectos dizem respeito à concepção de formação à qual a BNCC dá corpo: a pedagogia das competências. (RAMOS, 2001) O documento da BNCC tem um “jogo” de linguagem, para não assumir diretamente a adesão às competências, como as diretrizes de 1999 e 2000 faziam. Mas, como ela se manifesta? O currículo da educação básica e da educação profissional tiveram as ciências como referências para a seleção de conteúdo. Os campos de referência do currículo eram fundamentalmente as Ciências, a Filosofia, as Linguagens e as Artes. Para a Educação Profissional esses campos também são referências, por se constituírem
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como fundamentos científicos, históricos e culturais para a formação do estudante nas diversas profissões.
No currículo por competências, essa referência se dissolve e é substituída por situações a serem vividas pelos estudantes; as situações de vida ou de trabalho é que passam a ser campos de referência para a seleção de conhecimentos, a partir de uma elaboração, que pode ser empírica ou teórica, acerca de quais competências o estudante deve ser capaz de demonstrar frente às respectivas situações. No caso de uma sociedade “pós-moderna”, com todas as instabilidades, inseguranças e incertezas, as situações de referência são aquelas que colocam o estudante em condições de conviver com elas. Para isto vale o ceticismo epistemológico.
Em relação à cultura, o ultraconservadorismo e o negacionismo também relativizam o valor das ciências. No lugar do conhecimento sistematizado, ganha espaço um abstrato e vazio componente chamado “projeto de vida”. Que projeto ou projetos de vida se podem considerar para a juventude nessa realidade, sobretudo a de frações mais pobres? O projeto do empreendedorismo? Do auto empreendedorismo? Do trabalho por aplicativos? Da uberização do trabalho?
O componente “projeto de vida” faz a mediação entre o esvaziamento curricular e a pedagogia das competências, secundarizando os campos científicos em benefício das situações como referência do currículo. Dissolve-se, assim, o conceito de escola. Daí o “novo ensino médio” conviver bem com a aprovação do homeschooling e com a ideologia do “Escola sem partido”. Consequentemente, a profissão docente também é esvaziada, conquanto ela passa a se orientar igualmente pela pedagogia das competências, nos limites daquelas enunciadas pela BNCC.
Ao final de 2022 a esperança não só venceu o medo, mas colocou em evidência os direitos mais esquecidos na história do Brasil: igualdade, identidade, cultura, trabalho, alimentação, saúde e educação. As problematizações sobre o ensino médio integrado aqui discutidas continuam sendo temas de pesquisa, de debates e de ação. A contrarreforma do ensino médio precisará ser revogada. Se não o for no plano jurídico, já que todas as forças conservadoras se mobilizarão contrariamente, que o seja no plano prático e ético, de modo a não sobrar argumentos ou brechas para defendê-la e tornar a educação minimalista e pragmática a única que os mais pobres conseguem acessar via escola pública.
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Essa história nós já vivemos nas disputas pela revogação do Decreto n. 2.208/1997 e o caminho foi a conciliação de interesses no plano jurídico e o acirramento da luta no plano político. Mas a capacidade reativa da burguesia brasileira é impressionante; ela lança mão do autoritarismo, da coerção, de tal modo revestido pelo consenso que parecemos perder não só no âmbito da sociedade política, mas também na sociedade civil. Hoje, temos mais conhecimentos, experiências, forças sociais e capacidade política do que antes, frente à organização conservadora ainda mais elaborada e destemida. Não venceremos de imediato essas forças, inclusive porque o conservadorismo mais moderado compõe a atual base governamental. Mas também não podemos achar que nosso horizonte utópico é o mesmo.
O desafio de como nos movermos nessa trama de contradições nos exige ainda mais esforço científico e atenção política. Quanto à contrarreforma do ensino médio, o caminho é a revogação da lei e de todo o aparato produzido a seu propósito. Se há poucas chances de isto ocorrer de imediato, é imperioso que se revogue a carga horária máxima destinada à formação geral. Trata-se de um pressuposto ético que, ao mesmo tempo, permitiria que as instituições ampliem o leque de contradições e mantenham os sentidos da integração pulsantes, tal como conseguimos fazer no contexto do Decreto n. 2.208/1997, com a Portaria n. 646/1997, que permitiu a manutenção do ensino médio nas instituições federais, com a estratégia da “concomitância interna”. Esta possibilitou estudantes cursarem a formação geral e a profissional na mesma escola, apesar das matrículas separadas. Ficou a brecha para retomarmos a integração. Portanto, é hora de enfocarmos também a relação entre a contradição principal e as secundárias no contexto atual.
Para Barata-Moura (2012), a contradição principal é aquela em cujo âmbito se decide, em última análise, a efetiva determinação material do processo e de cujo desenlace depende a abertura para itinerários realmente novos. Já as contradições secundárias apresentam-se como determinantes apenas a um nível derivado. É possível que o enfrentamento da contradição principal relativa ao projeto de educação da classe trabalhadora – “novo ensino médio” x ensino médio integrado – que está na “base piramidal” do espaço no qual intervêm as contradições secundárias, não possa ocorrer diretamente, mas sim mediante enfrentamentos e superações de contradições secundárias. Arrisco sinalizar algumas delas: revogar o limite da carga horária da formação geral, ou, deliberadamente elevá-la por estratégias da oferta de todos os
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itinerários, inclusive integrando-os, como admite a lei; articular os conteúdos do itinerário da educação profissional a todas as áreas de conhecimento; não se prender e/ou se limitar às respectivas competências enunciadas na BNCC no planejamento e no processo de ensino-aprendizagem; dentre outras.
Conquanto tais contradições secundárias possam ser enfrentadas, por estarem mais na superfície do fenômeno, sua raiz, que é a concepção do “novo ensino médio”, pode ir perdendo vigor, como uma árvore que têm suas folhas e galhos aparados em demasia (poda drástica), levando à perda de nutrientes do vegetal. Essas são questões a serem consideradas na análise de conjuntura e de correlação de forças permanentemente, princípio inegociável das lutas com perspectiva estratégica.
De 2016 a 2023, os polos dominante e determinante da contradição capital- trabalho se expressaram por políticas regressivas, parecendo apagar as conquistas que logramos no contexto anterior. Ao mesmo tempo, essas, ainda que tenham sido limitadas, adquiriram, por contraste, mais evidência, frente ao nebuloso período de negacionismo e de ultraconservadorismo que, na particularidade da educação da classe trabalhadora, transitou do “Escola sem Partido” para as “Escolas cívico- militares”, chegando à legalização da homeschooling e ao neocondutivismo e neopragmatismo expresso na Lei n. 13.415/2017 e BNCC por meio da pedagogia das competências. Esta se torna a base para a ideologia do empreendedorismo embutido nos “projetos de vida” como novo componente curricular que subtrai conhecimentos formais da formação básica.
Mais do que nunca, recorrer ao conhecimento produzido e acumulado pelos pesquisadores em Trabalho e Educação como força material da política pública é um ato revolucionário. Trata-se de pensá-lo em relação aos rumos da educação no país, suas bases ético-políticas e econômica, envolvendo a pesquisa para a compreensão dos fenômenos em sua raiz e para a ação prática na discussão e proposição de princípios filosóficos e epistemológicos da formação humana, na construção coletiva de mediações pedagógicas, de formação de professores, da elaboração de materiais didáticos, do aprimoramento dos ambientes de aprendizagem, dentre outras questões correlatas. Fundamentalmente, é recuperar as “diretrizes” e consolidar as “bases” da
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educação dos trabalhadores pública, laica e de qualidade social, tendo o trabalho como princípio educativo na perspectiva da politecnia e da formação omnilateral dos sujeitos.
As preocupações com o cumprimento da principal finalidade do processo educativo que é a formação humana e o desenvolvimento das condições para o exercício da cidadania ativa leva-nos a compreender que a educação científica, cultural e ético-política dos estudantes é uma condição necessária para vislumbrarmos a transformação das relações sociais
É preciso retomar o pressuposto do direito de todas as pessoas terem acesso ao conhecimento sistematizado construído pela humanidade ao longo da história e ao próprio processo social de construção desse conhecimento. Nesse sentido, para além de aprender ciência, é preciso formar as pessoas para construir conhecimentos, compreender e transformar o mundo em que se vive. A discussão da LDB, que tanto contou com a produção científica do GT 09, conseguiu enunciar as finalidades do ensino médio coerentemente com esse propósito.
Em tensão com esta tendência, as contribuições que tentamos trazer neste texto têm o propósito de chamar a atenção para a necessidade e a possibilidade de se desenvolver uma política pública de educação com outros referenciais. Nesse sentido, as divergências que atravessam o debate, especialmente dependendo do ponto de vista pelo qual se analisa o problema, devem se constituir em oportunidades para se construir uma concepção sobre a educação que, conquanto não agregue o consenso, possibilita o permanente confronto de distintas concepções, evitando-se, assim, a adequação a um suposto “pensamento único”. Trata-se de identificarmos, metodológica, didática e coletivamente, as contradições principais e as secundárias, as antagônicas e as não antagônicas, os polos dominante e determinante das contradições. (BARARA-MOURA, 2012). Fundamentalmente, defende-se que conteúdo e método não se separam, assim como ambos não existem a despeito de um projeto de sociedade e de propósitos mais amplos em termos da formação humana e social.
A discussão efetiva entre sociedade política e sociedade civil – com prioridade dos educadores e comunidades escolares – continua a ser perseguida. Perceber e disputar esta possibilidade implica, ao mesmo tempo, evidenciar as diferenças de interesse entre as classes e frações de classe que constituem esses segmentos.
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As disputas ético-políticas e conceituais aqui analisadas perpassam essas ações e são hoje ainda mais intensas, face ao contexto gravemente regressivo da política pública e de matizes ideológicas no país vividas recentemente. Com muitas contradições, o sentido e o significado do trabalho nessas políticas e nas respectivas práxis pedagógicas adquiriram cada vez mais centralidade. Em contextos tão desafiadores, não seria possível manter as disputas ético-políticas e pedagógicas sem a apreensão dos fundamentos da relação Trabalho e Educação no modo de produção capitalista e, especialmente, no capitalismo dependente que caracteriza a formação social brasileira (FERNANDES, 1975) por todos que têm a educação como ofício e/ou como preocupação.
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V.21, nº 44, 2023 (janeiro-abril) ISSN: 1808-799 X
Carmen Sylvia Vidigal Moraes2
Resumo
Considerando a temática proposta, a partir de minha inserção acadêmica no campo de pesquisa das relações entre trabalho e educação e da atuação no movimento social, o artigo propõe contextualizar o desenvolvimento dessa práxis no âmbito das lutas do movimento popular e sindical, em São Paulo, pela efetivação do direito à educação e sua incidência na construção de políticas públicas de educação e formação profissional no país, entre os anos 1980 e 2000. O texto parte do pressuposto da indissociabilidade entre produção teórica e intervenção social, de sua unidade dialética, e tem como objetivo principal indicar a presença dos sujeitos sociais coletivos e sua atuação direta na construção histórica da educação brasileira. Palavras chaves: trabalho e educação, educação profissional, política pública, movimentos sociais.
THE STRUGGLE OF THE WORKING CLASS FOR THE RIGHT TO EDUCATION AND VOCATIONAL EDUCATION, IN DEFENSE OF PUBLIC SCHOOLS: AN ACCOUNT OF EXPERIENCE.
Abstract
Given the proposed theme, based on my academic involvement in the field of research on the relationship between work and education and my participation in social movements, this article aims to contextualize the development of this praxis within the struggles of popular and labor movements in São Paulo for the realization of the right to education and its impact on the development of public policies for education and vocational training in Brazil between the years 1980 and 2000. The text starts from the assumption of the inseparability between theoretical production and social intervention, of their dialectical unity, and seeks to indicate the presence of collective social subjects and their direct role in the historical construction of Brazilian education.
Keywords: work and education, vocational education, public policy, social movements.
LA LUCHA DE LOS TRABAJADORES POR EL DERECHO A LA EDUCACIÓN Y LA FORMACIÓN PROFESIONAL, EN DEFENSA DE LA ESCUELA PÚBLICA: UN RELATO DE EXPERIENCIA.
Resumen
Considerando la temática propuesta, a partir de mi inserción académica en el campo de investigación de las relaciones entre trabajo y educación y de mi actuación en el movimiento social, el artículo propone contextualizar el desarrollo de esa praxis en el ámbito de las luchas del movimiento popular y sindical en São Paulo por la efectivación del derecho a la educación por la efectivación del derecho a la educación y su incidencia en la construcción de políticas públicas de educación y formación profesional en el país, entre los años 1980 y 2000. del presupuesto de la indisolubilidad entre producción teórica e intervención social, de su unidad dialéctica, y tiene como objetivo principal señalar la presencia de los sujetos sociales colectivos y su actuación directa en la construcción histórica de la educación brasileña.
Palabras clave: trabajo y educación, educación profesional, política pública, movimientos Sociales
1 Artigo recebido em 27/03/2023. Primeira avaliação em 29/03/2023. Segunda avaliação em 30/03/2033. Aprovado em 03/04/2023. Publicado em 13/04/2023. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v21i44.57854 Texto apresentado no V Intercrítica, Intercâmbio Nacional dos Núcleos de Pesquisa em Trabalho e Educação, GT9 – Trabalho e Educação da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd), Rio de Janeiro, 2023.
2Doutora em Sociologia pela Universidade de São Paulo. Professora Titular da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), São Paulo – Brasil. E-mail: moraescs@usp.br.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/4971024492460323. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3059-2102.
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Levando em consideração a temática proposta, a partir de minha inserção acadêmica no campo de pesquisa das relações entre trabalho e educação e da atuação no movimento social, o artigo visa contextualizar o desenvolvimento dessa práxis no âmbito das lutas empreendidas pelo movimento popular e sindical em São Paulo, entre os anos de 1980 e 2000, para a efetivação do direito à educação e sua incidência na construção de políticas públicas de educação e formação profissional no país.
A escolha do formato desta apresentação constituiu um primeiro desafio – elaborar um texto mais objetivo e analítico, ou uma escrita com ênfase em experiências pessoais, baseadas em meu percurso acadêmico e de militante em defesa do ensino público, e pela universalização do acesso ao conhecimento?
Resolvi – depois de alguma hesitação – priorizar a forma de depoimento, no qual a memória da experiência pessoal se entrelaça com o exame dos acontecimentos históricos. O que nos faz lembrar as distinções apontadas nos estudos de Jean Miraux (2005, p. 11-12) entre o gênero memorialista, aqui adotado, e a autobiografia. Segundo esse autor, o memorialista inscreve a história de sua vida na história dos acontecimentos, e essa inscrição é dominante em sua obra, enquanto o autobiógrafo, em movimento contrário, inscreve a história nas escritura de sua vida (MORAES, 2022).
Importante lembrar, também, as considerações do filósofo Walter Benjamin (1991, p. 241) sobre o passado e a memória. Para ele, o passado contém o presente, “tempo de agora” ou “tempo atual”. E, nessa direção, “a citação do passado... pode ser fonte formidável de inspiração, uma arma cultural no combate presente”. Em lugar de apontar para uma “imagem eterna” do passado ou para uma teoria do progresso, o historiador constitui uma “experiência” com o passado.
Começo afirmando meu pertencimento ao Grupo 9 da Anped desde os anos 1980, grupo que reúne pesquisadores voltados para uma área de investigação que, a partir dos anos 1970, se desenvolve em vários países, e é dirigida à análise das relações entre duas esferas de atividades sociais – a educação e o trabalho.
Tal como consideram importantes representantes desse domínio de pesquisa na França, L. Tanguy, A. Jobert e C. Marry (1995), por exemplo, entendo que um dos principais desafios no tratamento de objetos de estudo na área consiste em integrar
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conhecimentos que se desenvolvem de forma isolada nas instituições acadêmicas de ensino e pesquisa, como são os casos da economia e da sociologia do trabalho, da história e da sociologia da educação. Ao mesmo tempo, é preciso enfrentar as limitações analíticas das orientações teóricas predominantes nessas áreas.
Outro grande desafio significativo decorre do fato de o campo de investigação não ser construído prioritariamente pelas disciplinas acadêmicas, mas a partir de demandas sociais diversas, originárias tanto da administração estatal, quanto das empresas e de outros grupos sociais, organizações profissionais e sindicais. E como a experiência nos mostra, as relações entre o debate social, a “lógica administrativa” e a “lógica científica” não são diretas, lineares, mas complexas e contraditórias. Nessas condições, o campo não é definido, organizado em torno de um objeto estável com subtemas circunscritos, como é o da sociologia da educação, por exemplo. As pesquisas que informam a área de investigação, ao contrário, apresentam-se essencialmente diversificadas quanto a seus objetos, formas de abordagem ou referenciais teóricos (TANGUY, 1986).
E apesar das dificuldades desse domínio de pesquisa, o GT9 tem conseguido manter – em todos esses anos – coerência teórica e de método no âmbito da pluralidade de abordagens que constituem o campo do marxismo. E a atuação coletiva e resistente de seus pesquisadores tem marcado a história da educação do país em seus momentos políticos cruciais – como no processo de redemocratização dos anos 1980, com sua participação nas Conferências Brasileiras de Educação e em outros fóruns, no processo constituinte e construção da Constituição brasileira, em 1988, e na elaboração da LDB e dos Planos Nacionais de Educação, no desenvolvimento de experiências educacionais contrapostas às imposições governamentais neoliberais nos anos 1990. Como afirmam as profas. Eunice Trein e Maria Ciavatta (2011), as reflexões produzidas pelos pesquisadores do GT da ANPED nos embates econômicos, políticos e educacionais consolidaram o grupo “como uma trincheira de resistência aos golpes da reestruturação produtiva e suas formulações ideológicas”.
Nesse período, a proliferação de cursos de Pós-Graduação nas Universidades Públicas consolidou a institucionalização da pesquisa acadêmica e, em particular, na área da Educação. Novos estudos e análises procedentes dos trabalhos de mestrado e doutorado contribuíram para renovar as interpretações no campo da história e da sociologia da educação, fomentando os processos de intercâmbio nacional e
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internacional entre os pesquisadores e – como consequência – fertilizando a produção no domínio da investigação das relações trabalho e educação.
Com arcabouço teórico consolidado, mais consistente, ocorrem os movimentos de enfrentamento às investidas neoliberais nos governos Collor e FHC, contra do decreto 2208/1997 e outras normativas governamentais ditadas pelos organismos multilaterais – como o BID, BIRD, OCDE e OMC – tanto na órbita da educação básica quanto na da educação superior.
Em virtude do tempo restrito de que dispomos, vou delimitar meu relato aos anos entre 1980 e 2000, embora algumas vezes a temporalidade do objeto de análise nos direcione à década anterior. Os anos 1980 foram de luta incansável contra a ditadura empresarial militar e pela reconstitucionalização do país. A década de 1990 caracteriza-se pela resistência às políticas neoliberais e o fértil desenvolvimento de experiências por movimentos sociais populares, sindicais, e outras organizações da sociedade civil, salientando-se a contribuição dessa prática social tanto para a reflexão teórica e a elaboração conceitual, quanto para a construção de políticas públicas de educação. Os anos 2000, correspondentes ao período do governo Lula, são marcados pelas disputas por hegemonia no campo educacional e por algumas conquistas políticas alcançadas. E, dada a mesma exigência de tempo, introduzo outro recorte à análise – a ênfase na EJA e na educação profissional, na sua relação inseparável com a educação básica.
A apresentação tem dois objetivos principais: indicar a presença dos sujeitos sociais coletivos e sua atuação direta na construção histórica da educação brasileira e, principalmente, afirmar as nossas conquistas, o avanço das concepções e práticas pedagógicas e das políticas públicas que informaram e informam a organização do sistema educacional.
Ao analisarmos as modalidades típicas de relação entre movimento social e educacional (Beisiegel, 2009), temos como pressuposto que os trabalhadores, por meio de sua atuação, organizações, movimentos e redes sociais, contribuíram decisivamente para a construção da educação escolar no país, seja em termos da ampliação/democratização das oportunidades escolares, seja em termos da construção de concepções/orientações que ordenam os conteúdos e métodos de ensino (MORAES, 2013a).
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Herdeiras do legado das iniciativas educacionais dos movimentos populares do início do século XX, a história das escolas de trabalhadores em São Paulo inicia-se na resistência à ditadura militar. As mais antigas datam do final da década de 1960 e meados dos anos 1970. Essas escolas surgiram como forma concreta de se desenvolver um trabalho político em tempos de repressão. São iniciativas de trabalhadores que tomam para si a responsabilidade pela formação dos próprios trabalhadores: uma política de ação direta em educação, num contexto de ditadura explícita do capital e de repressão aos movimentos sociais.
Nos anos que se seguiram ao AI 5, o clima de medo se espalhou pelas fábricas e as greves desapareceram quase por completo. A resistência operária deu-se basicamente por meio de pequenas organizações clandestinas nas fábricas e da imprensa operária. Formam-se, também clandestinamente, organizações por categoria, em encontros de oposições à estrutura sindical existente. Entre elas, destacou-se, pelo significado de suas propostas e pela prática desenvolvida, a Oposição Sindical Metalúrgica de São Paulo (OSM-SP). De acordo com Sebastião Lopes Neto, um dos antigos dirigentes, “a oposição era um caldo de cultura” que reunia a esquerda antiestalinista, marxistas - críticos ao que se fazia antes de 1964, à linha do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e do Partido Comunista do Brasil (PC do B), além dos cristãos defensores da Teoria da Libertação:
... foi um movimento importante porque foi um dos vetores de criação da CUT. As oposições, junto com o sindicalismo autêntico, Lula, Jacob, Wagner Benevides, João Paulo Vasconcelos, Olívio, são os sindicalistas – nós não éramos os sindicalistas, éramos o movimento de oposição, mas oposição a uma estrutura sindical. ... Eu venho desse movimento, que tinha uma relação muito interessante porque a oposição metalúrgica faz uma opção muito radical de trabalho de base. Tanto é que quando aparecem as greves de 1978 ninguém entende de onde vieram, mas elas já vinham sendo gestadas há cinco, seis, sete, oito anos, não era coisa de três meses, cinco meses. Nós ficamos dentro das fábricas muitos anos acumulando. Era uma concepção de trabalho, porque a gente não tinha esperança nenhuma de ganhar o sindicato por cima – estávamos na ditadura, tínhamos que ganhar por baixo. E dentro desse movimento – eu já vou entrar direto
3Os tópicos iniciais foram desenvolvidos com base nos resultados obtidos na pesquisa “Educação de adultos trabalhadores: metodologias de ensino e aprendizagem". Itinerário formativo e capacitação de professores”, auxílio FAPESP (na linha Políticas Públicas), realizada por pesquisadores da FE - USP em cooperação com Intercâmbio, Informações, Estudos e Pesquisa/IIEP e com o Centro de Educação, Estudos e Pesquisas/CEEP. O trabalho coletivo foi publicado no formato de livro: MORAES, C.S.V. (org.), 2013b.
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no assunto aqui – a gente tinha muitas relações com o que depois veio a ser o movimento popular nos bairros: cursos de Madureza, curso supletivo, curso de formação profissional. Era um período em que os trabalhadores, inclusive eu, não tinham escolaridade. Pouca gente tinha Ensino Médio, 2º grau, na época. Eu fiz supletivo de 2o grau. A maioria tem essas trajetórias (Entrevista, 14/05/1999).
A violenta estrutura repressiva criada pelo Estado brasileiro colocou para os trabalhadores a necessidade de desenvolver ações de resistência. Era preciso reagir contra a investida de componentes terríveis daquele momento histórico: a ditadura, que atingia a política, a economia, a cultura do país, e os seus desdobramentos – a perseguição política de trabalhadores e sindicalistas, o consequente desemprego, a existência das “listas negras” de sindicalizados despedidos e o despreparo técnico- profissional diante das modificações técnicas trazidas pelas novas indústrias multinacionais.
Entre as diversas iniciativas da OSM-SP, uma delas consistiu nas ações de formação política e profissional de trabalhadores. Na época da ditadura, foram organizados vários cursos dentro das fábricas ou em outros locais, como salas e porões de igrejas católicas. Os cursos, voltados ao preparo profissional, visavam o ensino de Português, Matemática, Trigonometria, Desenho Geométrico e Desenho Mecânico. Essa prática ocorria em todas as regiões em que se concentravam fábricas metalúrgicas. De acordo com Sebastião Neto, os cursos eram ministrados pelos próprios trabalhadores ou por “diversas pessoas que estavam saindo da vida clandestina, do exílio”, professores universitários, estudantes, na maioria. Faziam parte da equipe de professores Maria Nilde Mascelani, Eder Sader, Marco Aurélio Garcia, Paulo de Tarso Venceslau, entre outros:
Nos primeiros tempos, o ensino e a troca de conhecimentos desenvolviam-se ‘informalmente’, num canto da própria fábrica, ‘na hora das refeições’; depois, passaram a se realizar em outro espaço, organizado em sala de aula, no fundo de uma Igreja ou de qualquer agremiação existente nas proximidades da fábrica. Nessa época, a ‘politização’ ocorria na ‘hora do cafezinho’, mas, depois, o debate político deixou de ser ‘casual’ e passou a fazer parte do currículo dos cursos. A atuação no local de trabalho, no interior da fábrica, tornava o domínio técnico e a competência política imprescindíveis aos trabalhadores (Entrevista, 14/05/1999).
A importância desses cursos e sua influência nas “atitudes de classe” foram significativas. Como afirma Vito Giannotti, antigo militante da Oposição Sindical:
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“as greves da década de 1970 resultaram, seguramente, também dessas atividades desenvolvidas em São Paulo, no Recife e no Rio de Janeiro, contribuindo para a criação, o delineamento de um novo sindicalismo, desatrelado do Estado” (Entrevista, 12/05/2000).
Em 1978, no contexto de repressão à primeira greve geral da categoria após o golpe militar, a Oposição Sindical Metalúrgica de São Paulo (OSM-SP) realiza o seu I Congresso, onde reafirma a luta por um sindicato independente, cujo estatuto deve ser definido pelos trabalhadores em assembleias, um sindicato organizado pela base, apoiado nas comissões de fábrica.
Nas teses aprovadas nesse I Congresso da OSM-SP, realizado de 24 a 26 de março de 1979, nas “propostas de linha de ação para as oposições sindicais”, item 2, afirma-se o compromisso de se “criar associações culturais, e outras que permitam uma aproximação constante e facilitem a formação de setores de oposição baseadas em reuniões interfábricas”4. De acordo com Sebastião Neto,
Normalmente algumas lideranças tinham qualificação maior, mas a massa de militantes, principalmente os que chamávamos de ‘piqueteiros’, que eram aqueles caras irredutíveis, tinha muita gente com baixa qualificação. Aí, como já se conhecia a professora Maria Nilde, ou da prisão ou de algumas coisas... que ela fez durante a década de 1970, resolvemos procurá-la e colocamos o problema para ela. Como ela tinha relação com entidades... com o escritório RENOV, na Praça da Sé, n.146, se não me engano, ela fez contato com uma entidade chamada Ação Ecumênica Sueca e com outra que não me lembro, mas acho que foi a ICOS, da Holanda. Eu sei que um financiamento veio e outro não, e nós procuramos, então, onde fazer os cursos. Nós encontramos onde hoje é o Centro Profissional de Adolescentes (CPA), exatamente onde é hoje, que, na época, se chamava Tabor (Entrevista, 14/05/1999).
Foi assim que, em 1979, reuniu-se um grande número de militantes demitidos pela participação nas greves5 e organizou-se a primeira experiência de curso profissional em espaço centralizado (Tabor, zona leste de São Paulo), com o objetivo de requalificar os trabalhadores para que pudessem retornar às fábricas e atuar nos locais de trabalho.
4I Congresso da Oposição Sindical Metalúrgica de São Paulo – 24 a 26/03/1979. Teses aprovadas.
5A repressão foi grande e violenta com mais de mil prisões desde a véspera da greve. No dia 3 de outubro, Santo Dias da Silva, militante das Comunidades de Base e da Pastoral Operária, candidato a vice-presidente da chapa da Oposição Sindical no ano anterior, foi assassinado pela polícia num piquete, na porta da fábrica de lâmpadas Sylvania. Santo, junto com Waldemar Rossi, era uma das principais lideranças operárias da esquerda católica operária (GIANNOTTI, 2007, p. 224).
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Nesse mesmo ano, realizou-se o Encontro Nacional de Oposições Sindicais (ENOS) que juntou, pela primeira vez, após o golpe militar, trabalhadores do campo e da cidade com o objetivo explícito de promover a troca de experiências entre as oposições sindicais, discutir a unificação das lutas e a necessidade de uma central de trabalhadores.
Na década de 1980, por iniciativa de militantes da OSM, foram criadas as associações de trabalhadores em diversas regiões do município de São Paulo, em locais considerados estratégicos, centrais e de fácil acesso aos metalúrgicos: a Associação dos Trabalhadores da Região Sul, do Ipiranga, da Região Norte, da Leste, da Leopoldina e a do Tatuapé. Essas associações trocavam suas experiências de ensino com diversas outras iniciativas locais (associação de moradores, igrejas, pequenos grupos), o que propiciou o surgimento de um espaço de discussão sobre a necessidade de se organizar uma formação que refletisse as próprias matrizes ideológicas da OSM, e que a proposta fosse uma elaboração coletiva, fruto da democracia operária.
O primeiro curso realizado, após a greve de 1979, no bairro de São Mateus, no Jardim São Gonçalo, já “plantava” a dinâmica do Curso Profissional desejado pelos trabalhadores. Pela entrevista de José da Costa Prado, aluno daquele curso, é possível apreender a proposta pedagógica em construção:
Esse Curso de Tornearia, ele não era mais o Curso de Tornearia que eu fiz lá no Senai. Esse curso tinha o Paulo de Tarso Venceslau, o Eder Sader dando aula para a gente, a professora Maria Nilde fazendo dinâmica de grupo conosco, tinha o Sérgio Florentino ensinando tornearia, ensinando fresa, tinha o Neto ensinando metrologia, desenho técnico... Então, tinha todo um jeito de aprender uma profissão com um olhar crítico na sociedade. A gente discutia a questão da conjuntura nacional daquela época, discutia os rumos das lutas dos trabalhadores, o Socialismo era ainda a proposta que orientava esse pessoal... Então, tinha todo esse contexto que fez com que a gente crescesse. Depois desse curso, a gente não era mais aquele peão "chucro" da fábrica. A gente voltou para a fábrica na condição de operário, mas um operário que já lia livro, um operário que já tinha interesse em ler o jornal, um operário que discutia, um operário que, quando sabia que tinha um debate em algum lugar, ia participar desse debate... Então, isso, pessoalmente e profissionalmente, me fez crescer (Entrevista, 09/01/2010).
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Se os anos 1980 caracterizaram-se pela crise econômica e pela degradação de todos os indicadores sociais, com o recrudescimento dos níveis de pobreza urbana; por outro lado, foi retomado o processo de redemocratização do país, presenciando- se o ressurgimento da sociedade civil com novos sujeitos políticos. Multiplicaram-se os movimentos sociais, ampliando-se a participação na esfera pública com o movimento das “Diretas Já” e pela Constituinte de 1988.
Os empresários instituem o Sistema CNI, em 1980, modernizando sua estrutura político-técnico-administrativa, com vistas à reconquista da hegemonia política junto ao capital industrial e ao capital em seu conjunto. Consolidados em sua representatividade política elaboram, a partir de 1985, propostas para a política econômica, tendo em vista a Assembleia Nacional Constituinte.
Ao movimento sindical tradicional contrapôs-se um sindicalismo mais combativo e politizado. No período de 1983 a 1991 foram elaborados os projetos que configuraram as centrais sindicais: a Central Única dos Trabalhadores/CUT, criada em 1983; a Central Geral dos Trabalhadores, em 1986, e sua posterior subdivisão em 1989, com a criação da Confederação Geral dos Trabalhadores e as propostas do “sindicalismo de resultados”, com a reorganização política no campo da CGT, além da criação da Força Sindical, em 1991.
Os esforços da OSM-SP dirigem-se à criação da CUT. Em agosto de 1981, após a greve prolongada do ano anterior, desenvolvida pelos metalúrgicos do ABC, liderados por São Bernardo, os trabalhadores conseguem realizar a I Conferência Nacional das Classes Trabalhadoras (Conclat), reunindo cinco mil delegados de várias regiões do Brasil, comprometidos com a proposta do “sindicalismo combativo”. Nessa conferência, é eleita a Comissão Nacional pró-CUT, destinada a manter a unificação do movimento sindical e preparar a criação da Central Única dos Trabalhadores. No ano seguinte, o bloco combativo – por meio de suas lideranças mais conhecidas: Lula, Jacó Bittar, Valdemar Rossi, Olívio Dutra – torna pública sua decisão de realizar o congresso e de criar condições que permitiriam a organização da CUT. Finalmente, em agosto de 1983, o movimento sindical combativo se reúne no seu Congresso Nacional e cria a Central Única dos Trabalhadores.
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O Núcleo de Ensino Profissional Livre Nova Piratininga surge juridicamente em 1981, da junção das referidas experiências educativas de resistência à ditadura (cursos de alfabetização de adultos, supletivos, formação política e profissional), desenvolvidas em bairros operários de São Paulo, como a Vila Matilde, o Tatuapé e a Mooca, como iniciativa de militantes dos movimentos populares e da Oposição Sindical Metalúrgica. A Escola Nova Piratininga funcionou no Brás até 1985, transferindo-se para a Rua Riachuelo, no centro, de onde se mudou outra vez, em 1990, para as imediações da Praça Clóvis Bevilaqua, à Rua Silveira Martins, 8, ao lado da Praça da Sé, local em que permaneceu até 1996. A Escola cedeu espaço às atividades de muitos movimentos sociais e políticos, inclusive como sede da campanha de Luiza Erundina à Prefeitura de São Paulo. De acordo com Sebastião Neto: “Esse salão foi o único lugar que a Erundina teve para montar seu comitê em São Paulo” (Entrevista, 14/05/1999). A escola também amparou a regional da CUT, de modo que por seu espaço transitaram várias lideranças nacionais da época.
O corpo de monitores era constituído, em sua maioria, por operários especializados ou técnicos de origem metalúrgica: mecânicos, torneiros, desenhistas e ferramenteiros, além de estudantes e professores universitários voluntários. As aulas de formação política e sindical eram ministradas pelos militantes da OSM-SP e do movimento sindical em geral. Foi nesse momento que me integrei nas atividades de assessoria pedagógica na Nova Piratininga.
Expressando preocupação com a profissionalização dos filhos de operários, o Núcleo Nova Piratininga passou a orientar seu trabalho na educação de adolescentes. Com esse objetivo, em convênio com a Secretaria da Família e do Bem Estar Social do Município de São Paulo, no governo democrático e popular de Luiza Erundina (PT), foram abertos cursos que realizavam “reforço escolar” (Português e Matemática), associado à iniciação profissional nas áreas da Construção Civil, Mecânica e Eletricidade. O critério de acesso a esses cursos, desenvolvidos nas regiões de Perus e Ipiranga, era a indicação pelos grupos ou “comunidade” organizadora local.
Simultaneamente, foi elaborado em conjunto com a Secretaria de Educação do Município de São Paulo, na gestão Paulo Freire, um projeto-piloto de curso de EJA,
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com duração de cinco semestres, “experiência inédita, de enfrentamento simultâneo das carências no campo do Ensino Fundamental e no desenvolvimento profissional dos trabalhadores”, como observa Cícero Umbelino da Silva, ex-aluno da escola e atual coordenador do Centro de Educação, Estudos e Pesquisas/CEEP:
Foi o projeto de nossos sonhos... que era um curso para adultos, um projeto que resgatasse o saber desses operários e construísse novo saber. E, com recurso público... Bom, esse projeto foi bom enquanto durou. Quando terminou a administração da prefeita Luiza Erundina, o nosso convênio não tinha terminado, o nosso projeto não tinha terminado. Então, o governo de direita do Maluf decidiu destruir definitivamente não só o nosso projeto, mas todas as políticas de educação que beneficiassem os trabalhadores, dentro de uma perspectiva nova de construção do conhecimento, que fosse diferente da política tradicional... (Entrevista, 24/01/2001).
Nessa mesma época, a escola organizou oficinas de capacitação na área de Matemática para monitores do Movimento de Alfabetização de Adultos (Mova), programa desenvolvido pela Secretaria de Educação do Município. Sueli Bossam, professora e, na época, membro da equipe pedagógica da Nova Piratininga, apresenta importante registro a respeito desse período:
Mova é o Movimento de Alfabetização de Jovens e Adultos que teve uma prática iniciada antes do governo Erundina, mas que teve um trabalho de absorção da Prefeitura para que esses trabalhos tivessem desenvolvimento em campo maior, chegou a ter mais de mil núcleos em São Paulo, núcleos de alfabetização, só no Município de São Paulo. A Matemática do Mova nasceu com o grupo da e na Nova Piratininga. Foi para outros Estados do Brasil e chegou a ir para algumas escolas de Portugal, essa proposta de trabalhar o conhecimento matemático. A gestação da oficina foi dentro da Nova Piratininga. A Carmen, inclusive, trouxe alunos da Educação para ajudar na montagem dessa oficina. A Nádia, com um trabalho que ela tinha de Matemática nos Cursos Intensivos, eu, o Sérgio, o Leonildo, com a parte da experiência também do noturno, a minha parte mais com alfabetização, porque eu tinha experiência de alfabetização. Surgiu dentro desse núcleo da “Nova Piratininga” e se espalhou por todo o Mova. Todo o final de semana a gente tinha formação dos monitores do Mova. A Nova Piratininga dava formação para os instrutores, instrutores do Mova, de como ensinar, de como trabalhar com os conhecimentos da Matemática com adultos analfabetos e semialfabetizados. Como disse, a oficina caminhou pelo Brasil e continua até hoje. Até hoje, essa oficina, ela vai para os bairros. Em São Paulo, eu conheço diversos grupos, na região Leste, onde eu estou, várias comunidades aplicam a mesma metodologia, claro que adaptada à realidade local, adaptada aos instrutores locais. Até hoje, eu e o Sérgio estamos acompanhando grupos de alfabetização na área da Matemática. Hoje é o dia que eu vou, à noite, num grupo, o “São Paulo Apóstolo”, onde a gente trabalha a formação de instrutores
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para Matemática, tanto para Elétrica, como para a Alfabetização. Podemos dizer que é uma extensão da escola. A proposta metodológica dela está se expandindo, está viva. Apesar de toda essa dificuldade que ela teve, financeira, a proposta está espalhada, se pode dizer que isso nunca vai morrer, ela está por aí (Entrevista, 30/08/1999).
No caso do Núcleo Nova Piratininga, desde o início desenvolveram-se iniciativas de autossustentação financeira, por meio da fabricação e venda de produtos, utilizando a capacidade técnica de sua equipe. No entanto, com o término do mandato do PT e a posse de Paulo Maluf na prefeitura de São Paulo, a escola passa a enfrentar dificuldades financeiras. A nova administração municipal não cumpriu os compromissos do governo anterior, desrespeitando os convênios em andamento e levando a instituição à insolvência.
A escola manteve-se ativa de 1979 a 1996, quando foi extinta, por questões econômicas. O mesmo ideário político-pedagógico acabou por reunir novamente as pessoas que buscaram responder aos novos desafios, criando o CEEP.6
A importância do Núcleo Nova Piratininga deve ser ressaltada, não só pela consistência e originalidade de sua proposta educacional, das metodologias de ensino que construiu ao longo de sua história e irão orientar as propostas de posteriores de educação do movimento, mas também pela combatividade e pioneirismo de sua atuação na defesa de uma concepção de formação profissional na perspectiva dos trabalhadores. A crítica persistente à gestão empresarial do Sistema S, mantido com recursos públicos, a proposta de gestão pública dessa instituição, assim como o projeto de Centro Público de Formação Profissional desenvolvido em conjunto com as demais ‘escolas operárias’ do Conselho (Nacional) de Escolas de Trabalhadores7,
6Nessa difícil conjuntura, o CEEP, herdeiro das experiências desenvolvidas pelo Núcleo de Ensino Nova Piratininga, inicia seus trabalhos no dia 1º de maio de 1998. Portador do mesmo ideário político- pedagógico e reunindo o mesmo núcleo de formadores da Nova Piratininga, o CEEP caracterizou-se por sua recusa ao novo modelo de organização sócio-econômica excludente então em curso, por suas críticas às políticas governamentais de educação e seus modelos pedagógicos, e, em particular, às reformas do Ensino Médio e técnico profissional do governo Fernando Henrique Cardoso.
7O Conselho de Escolas de Trabalhadores é constituído por um grupo de escolas mantidas por alguns setores das classes trabalhadoras ligadas a movimentos populares ou a sindicatos. Com o objetivo de trocar experiências e unificar propostas, discutir metodologias e objetivos, essas escolas criaram, em seu encontro de 1989, no Rio de Janeiro, um Conselho de Educação Operária, que passou a organizar os seminários subsequentes e a buscar um maior inter-relacionamento, além de trabalhar na criação de uma política de sustentação financeira global para as escolas. O Conselho vem se reunindo, em todos esses anos, e colocando em discussão questões de conteúdos, metodologias, formação política, inovações tecnológicas na indústria e suas consequências sobre os trabalhadores. O Conselho das Escolas Operárias participou, em 1994, do processo de criação do Fórum de Formação Profissional, juntamente com sindicatos de trabalhadores de diversos setores, pesquisadores ligados à área da formação profissional, administrações públicas do campo democrático e popular, entre outros
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foram as questões centrais que levaram à constituição do Fórum de Formação Profissional, em 1993. O Fórum reuniu representantes sindicais, dos movimentos populares – urbanos e rurais, como o MST – e da administração pública, bem como professores e pesquisadores universitários, em particular do Grupo Trabalho e Educação da ANPED. Suas concepções e reivindicações, posteriormente assumidas pelo movimento sindical, constam das resoluções aprovadas nos Congressos Nacionais da CUT, dos anos 1990. O depoimento de Sebastião Neto8, a respeito, é bastante esclarecedor:
Nós nos ligamos a uma ideia nacional que existe até hoje: o Conselho de Escolas de Trabalhadores – hoje chama assim, na época era Conselho de Escolas Operárias; a gente ajuda a criar isso, somos dos primeiros que participam – não éramos organizadores, éramos participantes. Os organizadores eram o pessoal aqui do Rio, do Capina - o Chico Lara, a Bia -, era com esse pessoal que a gente se liga como movimento de formação de trabalhadores. A diferença é que eu, sendo sindicalista, e quando vem o processo de criação da CUT, a gente pega essa elaboração que, na verdade, surgiu fora do movimento sindical, e leva para dentro da CUT... A CUT é fundada em 1983. Eu entro na executiva, na direção nacional, em 1988. Aí, havia uma discussão, nós vamos falar de duas coisas paralelas: a CUT caminha para um lado e paralelo a isso, ou convergente a isso, tem o Conselho de Escolas dos Trabalhadores. Claro que a CUT é enorme, tem uma importância nacional, é uma das instituições nacionais hoje; paralelo a isso, tem um pessoal que tem uma visão muito crítica, muito aguda, muito elaborada sobre educação profissional, que é o Conselho de Escolas dos Trabalhadores, pequeno, e que reúne sete escolas que existem até hoje. Num certo momento, nos anos 1980, essas ideias que foram discutidas entre trabalhadores que estavam nas oposições sindicais, alguns sindicatos e, por coincidência, quem estava nessa reunião era o Gaudêncio Frigotto. Aqui já é 1993, mas já havia uma gestação disso no final dos anos 1980. Em 1978 começam as greves, as coisas começam a abrir, começa-se a contatar gente: ‘Tem um pessoal legal na Bahia, tem um pessoal bom em Belo Horizonte...’. Quando a gente tentou criar o fórum de ensino profissional, era 1993. Fizemos uma reunião, nós juntamos as primeiras administrações de oposição, que, no caso, eram petistas,
participantes. Nesse Fórum, com base na experiência adquirida nas diversas escolas que dele fazem parte, o Conselho apresentou a proposta de se criarem Centros Públicos para Educação de Cidadãos Trabalhadores. Depois disso, outras escolas se juntaram ao Conselho e este passou a se chamar Conselho de Escolas de Trabalhadores. As escolas que participaram dos seminários de educação operária (realizados até o início dos anos 2000, são as seguintes: CADTS (Centro de Aprendizagem e Desenvolvimento Técnico-Social), localizado em São João do Meriti, R.J.; CAT (Centro de Aperfeiçoamento do Trabalhador), localizado em Betim, M.G.; AST (Ação Social Técnica - Escola de Produção Tio Beijo, localizada em Belo Horizonte, M.G.; COPRE (Centro Operário Recreativo Profissionalizante, localizado em Contagem, M.G.; APJ (Aprender Produzir Juntos), localizado em Teófilo Otoni, M.G.; e CTC (Centro de Trabalho e Cultura), localizado em Recife, PE.
8Entrevista concedida a Júlio França Lima e Ialê Falleiros Braga, na Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio/Fiocruz – Rio de Janeiro/RJ, em 24 de fevereiro de 2006.
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como Diadema, juntamos alguns jovens intelectuais, como a Carmen, o Gaudêncio, acadêmicos e sindicalistas. Foi o I Fórum. Você vai achar frases desse documento, posteriormente em resoluções da CUT. Pedaços de ideias inteiras, entre elas a ideia do Centro Público de Formação Profissional. Quando se fala em Centro Público hoje, ninguém sabe exatamente se é ornitorrinco, se é lontra, se é esquilo, se é parente do jacaré... e o controle público dos recursos voltados para a formação profissional. Isso é uma ideia que surgiu com os sindicalistas cutistas, mas não dentro da CUT, mas a CUT, a partir de 1991, abre uma discussão sobre isso - tem um documento, não sei se está aqui, que a Carmen e eu fizemos, eu era da direção nacional, que a gente propõe que a CUT assuma uma posição clara sobre isso. Paralelo a isso, havia dentro da CUT a visão, que era majoritária na época, de que não tem que ter formação profissional para adolescente, que isso prejudica a formação escolar dos adolescentes, o problema era ter boa educação. Pegaram aquela bandeira genérica: educação pública, unitária, laica, gratuita, que foi da Constituinte. É uma ideia correta, e ao passar isso para quem não vivia no meio dos trabalhadores industriais [o entendimento limitava-se a]: ‘o negócio é ter boa educação’, a gente dizia: ‘Tem que ter boa educação, isso é uma coisa. Mas não pode impedir a formação dos jovens trabalhadores. Eles têm que ser orientados para o trabalho, porque vão ser trabalhadores’. Eles diziam: ‘Não, tem que garantir a boa escola’. Ficou um diálogo difícil, porque o pessoal da educação só falava em educação (escolar). Legal, mas a vida real não é isso! Tem milhões de jovens entrando no mercado de trabalho, não é? E no final, surpreendentemente, nossa posição, que era minoritária politicamente na central, se torna a posição majoritária – fomos construindo uma posição. E, em 1994, tem aqui a resolução do Congresso – tem todos os documentos preparatórios aqui – vai sair um documento claro da CUT em defesa da educação, da formação profissional, em defesa da gestão dos recursos públicos do Sistema S e na defesa dos Centros Públicos (Entrevista, 24/02/2006).
Nos anos 1990, definem-se novas esferas para a ação sindical e os novos conteúdos dessas ações passam a incorporar o debate sobre as estratégias de enfrentamento das transformações do e no sistema produtivo, e a discussão sobre propostas, projetos e políticas sociais voltados à Educação e à Formação Profissional9. Recrudescem, na década, os processos de reestruturação industrial diante do crescente envolvimento do país no mercado internacional e do aumento dos
9 A elaboração deste tópico foi realizada com base na pesquisa nacional “Diagnóstico da Formação Profissional. Ramo Metalúrgico”, desenvolvida pela Rede Unitrabalho - CNM/CUT, de 1999, parte II, “Sindicatos, Ongs e Formação Profissional”; e nos resultados da Pesquisa “Educação de Trabalhadores por Trabalhadores. Educação de Jovens e Adultos e Formação Profissional”, publicados em 2013.
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níveis de automação e das novas concepções organizacionais. Embora permanecessem elementos característicos da organização taylorista/fordista na produção industrial, a competitividade intercapitalista passou a exigir cada vez maiores níveis de racionalização dos processos de produção. As exigências de maior qualificação da força de trabalho, para integrar-se ao novo “paradigma” tecnológico, revelavam a urgência do debate sobre as relações entre tecnologia/trabalho e qualificação profissional por todos os atores sociais envolvidos no processo.
Se por um lado, nesses anos, prevalece na agenda neoliberal do Estado, por meio da atuação dos Ministérios da Educação e do Trabalho, a ênfase na política de “formação de recursos humanos” como estratégia de competitividade e produtividade industriais, por outro lado, segmentos da sociedade civil constituídos por atores sociais diferenciados apresentam seus projetos e os colocam na esfera pública. Esse é um momento privilegiado em que empresários e trabalhadores expressam, com nitidez, em seus documentos, concepções pedagógicas e pressupostos metodológicos, assim como as bases da gestão e do financiamento dos modelos de educação e formação profissional.
No campo sindical, o “sindicalismo propositivo” se aproxima da visão empresarial de adequação do estoque de capital humano às necessidades da reestruturação produtiva, de integração pura e simples da educação às exigências da ordem econômica; o sindicalismo mais crítico aponta para uma visão de educação ampliada, que inclui conhecimentos científicos e tecnológicos, assim como conhecimentos gerais sobre a sociedade e a cultura, que viabilizem o encontro sistemático entre cultura e trabalho, entre ciência e tecnologia, e possibilitem a compreensão crítica da vida social, da evolução técnico-científica, da história e da dinâmica do trabalho (DELUIZ, 1997). Nessa perspectiva, uma educação integral ou politécnica pressuporia, ao contrário dos rumos então assumidos pelas reformas governamentais, a integração do ensino geral e do ensino profissional-técnico.
De 1992 a 1994, a CUT divulgou inúmeros textos10 apresentando as bases para uma política de formação profissional que foram discutidas no 5o CONCUT, de junho
10Tendo em vista a preparação do 5º Concut, foram produzidos os seguintes documentos: “Contribuições para a definição de uma política de formação profissional da CUT” (dez.1992) (CUT 1992), elaborado por Sebastião Lopes Neto, membro da Executiva Nacional da CUT, e por Carmen Sylvia V. Moraes, profa. Faculdade de Educação da USP; “Diretrizes para uma Política de Formação Profissional da CUT” (maio 1993), elaborado por Flávio Aguiar, Inês Navarro e Fátima Félix da Comissão de Educação da Secretaria de Políticas Sociais (CUT, 1993); e uma versão final de Lopes
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de 1994 (CUT, 1994). Conforme relato de Sebastião Neto, naquele encontro, em sua resolução 14, expressando concepções formuladas no âmbito dos movimentos populares, a formação profissional passou a ser considerada pela central “como parte de um projeto educativo global e emancipador”, recusando a concepção de formação profissional “como simples adestramento ou treinamento ou como mera garantia de promoção da competitividade dos sistemas produtivos”. A formação profissional, entendida como “patrimônio social”, direito do trabalhador, deveria estar “integrada ao sistema regular de ensino”, à educação básica. Os trabalhadores deveriam intervir nesse processo, “participando, através de suas organizações, da definição, da gestão e do acompanhamento e da avaliação das políticas e dos programas de formação profissional” (Resolução da CUT, 1994, p. 52).
Esses textos, que foram também publicados na revista do ANDES em 1993, defendiam posições divergentes. Era um debate complicado: a Secretaria de Políticas Sociais reivindicava a retirada total do cap.11 da LDB que tratava da Educação Profissional, preocupada com algumas disposições que, para eles, traduziam retrocessos na organização da educação profissional – organização de duas redes paralelas, a regular e a de ensino técnico profissional, reeditando a velha dualidade do ensino e favorecendo a ampliação de seu controle pelos empresários. Posição da qual discordávamos, pois entendíamos, juntamente com vários outros sindicalistas e educadores, que essa posição ignorava as necessidades dos trabalhadores e não aprofundava a discussão necessária sobre a organização das diferentes modalidades de ensino profissional entendido como processo de educação permanente integrado ao sistema regular de ensino. E, ao fazerem isso, acabavam – aí sim – por delegar aos patrões a responsabilidade pela organização e gestão do ensino profissional dirigido aos filhos de trabalhadores.
No 5o Concut, a Central passou a reivindicar, igualmente, sua participação “nos termos da resolução da OIT, que prevê a gestão tripartite dos fundos públicos e nas agências e programas de formação profissional de alcance municipal, estadual, nacional e internacional” (op. cit, p. 53). Assinalava, ainda, a “luta pela constituição de Centros Públicos de Formação Profissional, devidamente integrados ao sistema
Neto e Moraes denominada “Contribuição para a definição de uma política de formação profissional” (set. 1993) (CUT 1993), (Relatório CNM/Uni-Trabalho, 1999).
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nacional de educação, com dotação orçamentária específica e sistema democrático e transparente de gestão e fiscalização” (idem, p. 53).
No entanto, esse é o momento em que a CUT terá de enfrentar os desafios do novo cenário internacional pós-queda do Muro de Berlim, a globalização financeira e a implantação acelerada do projeto neoliberal, iniciado, no Brasil, com Collor de Mello, e aprofundado no governo Fernando Henrique Cardoso. O que significava responder ao impasse da definição de seus caminhos políticos, do seu formato organizacional, à questão da democracia interna; do respeito ou abandono de suas bandeiras e princípios originais contra a estrutura sindical oficial, pela construção de um sindicalismo livre organizado pela base; da recusa ou acomodação dentro da ordem; do fortalecimento de posturas respaldadas na política de classe ou no referendo ao pacto social. A perspectiva desse grupo de trabalhadores da Oposição Sindical está bem marcada na fala de Sebastião Neto, um de seus dirigentes e representante da “CUT pela Base” na direção nacional da Central em algumas de suas gestões:
Até o começo da década de 1990, a CUT tem características de movimento. Aí se abre uma discussão que a CUT deve passar para políticas mais propositivas, na famosa plenária da CUT de 1990, em Belo Horizonte – esta é a história da CUT e a gente pode pegar em outros materiais – e começa um processo todo, uma discussão muito forte sobre o que a gente faz diante da institucionalidade Vou falar
de uma forma um pouco imperfeita: a CUT, o PT e o MST têm mais ou menos a mesma origem, um grande tronco. E é uma origem que tem um denominador comum, que é a recusa a uma estratégia de “pactuação” Você vai encontrar o Lula falando isso, posteriormente
um líder como o Stédile falando isso, depois a Pastoral da Terra, o Conselho Indigenista Missionário dizendo isso e vai encontrar também a CUT. Todos os documentos fundantes dizem: “Não tem acordo”... Algo muito forte desse movimento que deu origem à CUT, ao PT e ao MST – nós estamos falando dos anos 1970, porque depois, em 1980, começam a se criar as estruturas e cada um vai pegar o seu rumo. São bem diferentes enquanto instituição. Isso fica muito forte dentro da CUT, que deixa de ser uma menina rebelde para se tornar uma pessoa respeitável Há uma crise institucional muito forte, uma crise
de governo, pelo menos entre Collor até o Fernando Henrique ser presidente, são os anos em que a gente mais avançou nos espaços institucionais. Naquela confusão, o que abriu de espaço! E nisso houve, de certa forma, a sabedoria da CUT em dizer: “Vamos disputar o espaço institucional”; mas, por outro lado, também teve muita ilusão de achar que isso era para valer. E não era. Era aquilo que o Florestan Fernandes dizia: ‘quanto mais demorar a transição, pior para as classes populares, porque não vai haver ruptura!’. O Brasil é um país que não tem punição para torturador. Os grandes assassinatos, a tortura, passaram em branco... O MST, como ficou menos institucional, foi capaz de fazer, e até hoje faz com o governo Lula isso, é um movimento capaz de ir lá, participar, discutir verba pública, mas
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embaixo está: ‘Não saiu?’ E a CUT praticamente abandonou isso (Entrevista, 24/02/06).
Foi um período rico de acumulação de experiências, quando realizamos viagens de estudos a diferentes países europeus e latino-americanos a partir de projetos, a maioria financiados. A participação do metalúrgico Sebastião Neto na Executiva Nacional da CUT, como dirigente responsável pelo que se denominava “GT de Política de Emprego e Reestruturação Produtiva”, e minha posição como professora da USP possibilitaram o surgimento de oportunidades para o estabelecimento de contatos com instituições governamentais, sindicais e outras organizações autônomas de trabalhadores, além dos intercâmbios acadêmicos viabilizados por meus estágios de pós-doutorado, etc.11 Enfim, foi possível estabelecer, nos anos 1990, uma rede de contatos, tanto no plano nacional como no internacional, que foram de grande importância nas lutas empreendidas no campo educacional no contexto brasileiro.
A experiência mais importante, a meu ver, foi a realizada em 1998. Com projeto aprovado e recursos fornecidos pelo Ministério de Ciência e Tecnologia (Finep), no Programa Especial de Capacitação de Recursos Humanos para o Desenvolvimento Tecnológico, organizou-se uma equipe de nove pessoas, constituída por representantes da administração pública, sindicalistas, formadores e professores universitários, interessados no estudo de questões relacionadas à gestão da formação profissional em diferentes países europeus - Espanha, França e Itália. Interessava- nos particularmente analisar a organização e gestão do sistema público de formação profissional, as políticas públicas de educação orientadas para o trabalho e aquelas que visavam a geração de emprego e renda. Com esse objetivo, visitamos, na Espanha, o FORCEM - Fundación para la Formación Continua, organismo nacional para a formação continuada; o CEPROM - Centre de Formació i Promoció Ocupacional, da CCOO - Central Sindical da Catalúnia, destinado à planificação e
11Entre 1996 e 2002, minha inserção acadêmica e minha militância junto ao IIEP e ao movimento sindical viabilizaram, além do pós doc na França, a realização de encontros e estágios de curta duração, como pesquisadora convidada, no seminário organizado pelo Centro de Información, Gestión e Promoción del Empleo Juvenil (PRO-EMPLEO), em Madri-Espanha (1995), na Association Nationalle pour la Formation Professionnelle des Adultes - AFPA, Ministère du Travail, de Emploi et de Formation Professionnelle, CPTA de Lille e Saint Dennis - Paris, França (1996 -Auxílio FAPESP); no Seminário organizado pelo CINTERFOR - Centro Interamericano de Investigatón y Documentatión sobre Formación Profesional/ OIT, a convite do IIEP, para discussão do Projeto Red de Información, Investigación y Gestión en Formatión Profesional para América Latina y el Caribe (1997). Montevidéu, Uruguai.
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gestão da formação ocupacional na região da Catalúnia; o PRO-EMPLEO - entidade assessora de planos de desenvolvimento regionais, políticas de emprego e formação profissional, Madri; o CIREM - Centro Europeu de Iniciativas e Pesquisas para o Mediterrâneo. Na França, o Émergences, organismo de formação ligado à CGT francesa, que se organiza em três centros situados em diferentes regiões daquele país: Montreuil, Lyon e Marseille, com o objetivo de desenvolver cursos de formação profissional e o ensino para adultos, as chamadas "formações inter-empresas" direcionadas a públicos provenientes de empresas e coletividades diferentes em tamanho, atividade, localização geográfica; a Association Nationale pour la Formation Professionnelle des Adultes - AFPA, organismo público vinculado ao Ministério do Trabalho, Emprego e Formação Profissional, que desenvolvia cursos de formação profissional para formadores, empregados e desempregados, e produzia dispositivos de formação para formadores, além de participar como secretaria técnica, na época, das Comissões Setoriais Consultivas - CPC (construção e trabalhos públicos, metalurgia, química e terciários), instituídas pelo Ministério do Trabalho com as atribuições de analisar necessidades de formação, concepção, atualização, validação e reconhecimento das formações, e definição dos meios humanos necessários (professores e sua remuneração); o Centre de Analyse Pluridisciplinaire de Situations de Travail/APST, da Universidade de Provence (prof. Yves Schuartz). Na Itália, foram contatadas o ISFOL - Istituto Per lo Sviluppo della Formazione Profissionale dei Lavoratori, uma instituição de direito público que operava com a colaboração do Ministério do Trabalho, da Administração do Estado e da Região para análise das mudanças na organização do trabalho, na situação do emprego e para o desenvolvimento da formação profissional; o IEES - Instituto Europeu Studi Sociali, entidade de pesquisa das três maiores Centrais italianas: CGIL, CISL e UIL; ECAP - Ente di formazione Professionale - Centro de Formação da CGIL, em Bologna, na Emilia Romagna; Universidade de Bologna (prof. Vitorio Capecchi); Confindustria, organização empresarial da região da Toscana; Legacoop - a maior estrutura cooperativa da Itália.
A riqueza de informações proporcionadas pela diversidade de instituições contatadas e pela variedade de suas atribuições sociais é incomensurável. Essas informações suscitaram, imediatamente, diferentes questões, tanto de ordem teórica como relativas à organização da educação e da formação profissional nos diferentes
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países observados e em nosso próprio país. Aquele era um momento de transição no formato das políticas públicas em países como a França e a Itália, onde a classificação das qualificações e sua normatização e definição salarial, produto da negociação social, conviviam com mudanças introduzidas pelo "modelo das competências", mudanças decorrentes das novas tecnologias e, sobretudo, das novas formas de gestão do trabalho nas empresas. Na Espanha, o esforço pela democratização do acesso à educação e dos processos educativos confrontava-se com as orientações dominantes do novo modelo difundido pela Comissão Européia. Era um momento de indefinição, de disputa e, também, de perplexidade. Ao mesmo tempo, a experiência de "economia social" na Itália, como é chamada a economia solidária na Europa, impressionava por seu êxito na relação com o grande capital.
A importância da interlocução com os diferentes países da Europa e América Latina, de sua contribuição para o debate social, e as crescentes disputas nos campos do trabalho e da educação incentivaram a criação, no ano 2000, por alguns representantes do movimento social e sindical que haviam participado do referido programa, de uma nova entidade, o Intercâmbio, Informação, Estudos e Pesquisas/IIEP. O principal objetivo dessa iniciativa, a qual protagonizei, era o de impulsionar a constituição de uma rede de associações nacionais e internacionais voltadas para as questões de educação/ formação e trabalho, de modo a agilizar o contato virtual entre elas e a promover encontros presenciais para troca de experiências e debates. Segundo Sebastião Neto, um de seus fundadores:
Inicialmente era isso, um grupo de pessoas interessadas no tema, e todos nós tínhamos nossas funções: eu estava na CUT, a Carmen estava na USP, o outro era um aposentado italiano [Guiseppe La Barbera], cada um tinha sua atividade. Não era um grupo de intervenção, mas um espaço que junta pessoas diferentes. Mas, de repente, a gente começou a ser solicitado, porque temos muita acumulação de informação. Desde 1994 a gente faz um trabalho de contato internacional, viagens, eu aproveitei essas viagens pelo Dieese, a Carmen esteve na França duas vezes, no doutorado e pós- doutorado, contatos, outras pessoas viajam, eu tive contato com sindicalistas. Num período em que o Brasil começa a discutir políticas, a gente tinha acesso a muita informação sobre o que acontecia em outros países. Isso é um patrimônio que a gente tem. Depois, eu participei de todas as comissões técnicas do Cinterfor, a partir de 1997, representando a área dos trabalhadores. E tem gente com muito trajeto no exterior, outros companheiros que estão lá no IIEP – bilíngües e tal. Falando assim, parece que é uma coisa grande, mas é um ovinho, menor que essa sala. Quando começa um avanço institucional de governos melhores, a gente é chamado para trabalhar
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lá com o governo do Olívio Dutra, no Rio Grande do Sul. Junto com a Secretaria de Educação, do Desenvolvimento e do Trabalho, a gente começa a pegar o Planfor e começa a pensar como deveria ser, como um governo decente faria um bom programa de formação profissional. Nossa ideia era: o governo Olívio vai continuar e o Lula não vai ganhar; então, nós tínhamos que ter um estado, um lugar, não um município apenas, teríamos de realizar uma política boa para poder dizer: ‘Se a gente for para o governo federal, vai fazer assim!’. O que aconteceu? Perdemos no sul e ganhamos o nacional. Antes disso, em 2000, com aquela leva de eleições que o PT ganhou, e o PC do B em alguns lugares, a gente começou a ser chamado para fazer coisas: amigos nossos, que eram secretários, outros não sei o que, foi aí que a gente legalizou o IIEP - que existia há muitos anos sem legalizar, não tínhamos nem CNPJ. Nós íamos fazer um trabalho, não tinham como pagar a gente. Aí falamos: ‘Vamos criar um estatuto’. No governo do Olívio a gente acumulou muito isso. Juntamos as pessoas que tinham avaliado o Planfor no estado – do MST ao Senac – todo mundo, criamos um fórum, fizemos um trabalho com o governo deles...” (Entrevista à Fiocruz, 24 de fevereiro de 2006).
Com essa perspectiva, em conjunto com o IIEP e o CEEP, e com recursos de algumas instituições de fomento e apoio de organismos públicos, entidades acadêmicas e do movimento popular, foram realizados Seminários com a participação de convidados nacionais e internacionais, universidades, associações e centros de pesquisa de diferentes países europeus12. Desta maneira, procurou-se manter e ampliar a interlocução com pesquisadores e representantes de administrações públicas e entidades de formação desses países. É importante ressaltar que a realização desses seminários e encontros com grande participação de trabalhadores, militantes sindicais e de movimentos sociais, eram precedidos da difusão, pelo IIEP, de textos de pesquisadores brasileiros e de outros países sobre as temáticas a serem de debatidas, o que provocava, por sua vez, a realização de reuniões preparatórias por alguns dos participantes.
Essas oficinas de trabalho possibilitaram a presença de vários intelectuais e sindicalistas do campo, como Yves Schwartz, professor da Université de Provence; de Helena Hirata, da Université Paris VIII; de Thomas Coutrot, do Ministério do
12Seminário Internacional: A Educação dos trabalhadores pelos trabalhadores, 2001 (IIEP/FEUSP- apoio Cinterfor-OIT); Seminário: Trabalho, Educação. Sindicato, formação profissional e certificação de competências. FEUSP/IIEP, Capes/Cofecub, Decisae/Unicamp, NETE/UFMG, Université Paris X, Nanterre, Laboratoire Travail et Mobilités, 2000; IIEP e GT Trabalho e Educação FEUSP, Seminário de Santo André, 2002; IIEP/ SMDE – Recife: Seminário Nacional de Políticas Públicas de Trabalho e Educação, 2003; IIEP/FEUSP: Seminário Nacional: Políticas públicas de Educação de Adultos Trabalhadores e Formação Profissional no Brasil : problemas e perspectivas. São Paulo: 17, 18 e 19 de agosto de 2006 (auxílio FAPESP); IIEP/CEEP/ FEUSP: Educação de Adultos Trabalhadores: Metodologias de Ensino-Aprendizagem, Itinerário Formativo e Capacitação de Professores, 2007; IIEP/FEUSP: Políticas Públicas de Educação e Trabalho na perspectiva dos direitos sociais (2011).
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Trabalho e Emprego da França e membro do Conselho Científico da Fundação Copernic; do prof. José Manoel Perez Dias, diretor da Cidade Industrial de Vanalon, em Asturias, Espanha, entre outros. O contato com a professora Lucie Tanguy (Paris X - Nanterre), iniciado em 1994, foi permanente por mais de uma década. Sua participação enquanto pesquisadora não se deu apenas no âmbito da academia. Além dos Seminários Internacionais, organizados pelo IIEP e GT Trabalho e Educação - FEUSP, ela participou em suas vindas, de atividades junto a representantes de administrações públicas estaduais e municipais, e de instituições de formação, particularmente, aquelas originárias do movimento popular e sindical, em São Paulo e outros estados brasileiros - Rio, Recife, Porto Alegre e Belo Horizonte13. Os trabalhos de Tanguy, formada por Viviane Isambert-Jamati na tradição de Pierre Naville, interessavam não só pela convergência temática, mas particularmente pela perspectiva teórica e de método que assumem. Suas pesquisas tornaram-se referência obrigatória tanto no terreno da análise sociológica quanto histórica, no objetivo de apreender a conformação do ensino técnico e da educação de adultos na França, e para repensar as nossas experiências no Brasil. Ao lado de Marcel David, Isambert-Jamati, Claude Dubar e Antoine Prost, Tanguy pode ser considerada como uma das principais estudiosas de questões relativas à gênese e desenvolvimento do ensino de adultos (formação continuada), naquele país. Uma das coletâneas por ela organizada, em 1999, "Les Chantiers de la formation permanente (1945, 1971)", recupera, através dos diferentes artigos, a trajetória das principais etapas de constituição deste "domínio da realidade social", na França, texto discutido pelo DIEESE no processo de elaboração do projeto de Universidade do Trabalho (TANGUY, 2006).
Pesquisas de comparações entre os países europeus apontavam, naquele momento, um certo número de questões transversais, entre as quais as diferenças homens-mulheres, os fenômenos do desemprego de longa duração (ou exclusão do mercado de trabalho), o recurso à formação profissional nas políticas de emprego (cujas modalidades se diferenciavam em cada país), assim como a avaliação de
13As duas vindas foram organizadas através de projetos, promovidos e organizados com a participação do Programa de Pós-Graduação da FEUSP. O primeiro, em 1996, financiado pelo CNPq e em parceria com a PUC-RS, e os outros dois, em 2001 (Seminário Internacional) e 2003 (Jornadas com Lucie Tanguy), a convite do IIEP. Posteriormente, Lucie Tanguy participou também de projetos com professores da Unicamp e da UFMG, entre eles Lucília Machado e Fernando Fidalgo, do GT9 (financiamento CAPES Cofecub e /ou FAPESP).
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políticas de educação, de formação e de emprego14. Essa mesma realidade podia ser observada no Brasil e em diversos países da América Latina e Caribe. É importante notar que, tanto aqui como lá, foi criado um mercado de formação que incluía não somente ações que visavam a transmissão de conhecimentos gerais ou especializados (no interior de instituições de estatutos diversos, de educação escolar ou de formação/qualificação profissional), mas o conjunto de ações de orientação (operacionalizadas por meio de dispositivos apropriados) e de integração social, destinadas ao público sem emprego (JOBERT, MARRY & TANGUY, 1995).
Penso ser necessário pontuar a importância crescente das contribuições teóricas de Gramsci, nesses anos, no domínio de pesquisa em trabalho e educação, e em particular entre nós do GT9 da ANPED. O que se deve não apenas ao vigor singular e à originalidade do seu pensamento, vitalidade que pode ser atribuída particularmente, a meu ver, à “sua recusa em separar a teoria política de uma reflexão das condições históricas da possibilidade e dos limites próprios da perspectiva revolucionária em uma conjuntura específica”, como afirmam os editores da revista Actuel Marx (2015), mas também ao novo ritmo da produção dos estudos dedicados à obra de Gramsci, tanto no exterior como em nosso país. Gramsci, de acordo com Guido Liguori (2017), é o marxista que mais reflete sobre a nova relação, desenvolvida, no século XX, entre Estado e sociedade (Estado no seu significado integral), indagando também, em sua teoria da política, sobre a nova relação entre o Estado e a economia. Outro autor estudioso de Gramsci, Álvaro Bianchi (2017), lembra-nos que o amálgama entre uma cultura local (meridional) e a cultura tendencialmente internacional consiste em uma das razões para a atualidade do pensamento de Gramsci na periferia do capitalismo, quase um século depois de sua produção. No Brasil e em alguns outros países da América Latina, como Argentina, Chile e México, as suas formulações políticas e historiográficas geraram importantes estudos sobre a formação social desses países e se tornaram “imprescindíveis para pensar a democracia na América Latina”. Para nós, do campo educacional, a contribuição de Gramsci tem sido fundamental no enfrentamento de políticas educativas – empresariais e governamentais – derivadas das abordagens marginalistas da Teoria do Capital Humano, tanto do ponto de vista teórico-analítico
14Entre os autores citados por JOBERT, MARRY e TANGUY (coords), 1995, encontram-se RAINBIRD (Grã-Bretanha), CAPECCHI (Itália), SCHÖMANN (Alemanha), entre outros.
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quanto na formulação de políticas públicas de resistência aos projetos pedagógicos privatizantes, em defesa de uma escola pública democrática, de qualidade social, comum a todos os brasileiros.
Cabe relembrar aqui as lutas pela educação integrada nas décadas de 1980 e 1990, travadas pelos movimentos sociais, herdeiras daquelas desenvolvidas na clandestinidade no combate à ditadura empresarial – militar, duramente disputadas no processo de formulação da Carta Constitucional e da LDBEN, e amadurecidas na resistência às políticas neoliberais.
Os ajustes da economia brasileira ao novo contexto econômico são acompanhados da presença de organismos internacionais que passaram a orientar as reformas na educação em termos organizacionais e pedagógicos. As demandas da sociedade organizada foram, como no período ditatorial, substituídas por medidas produzidas por especialistas e tecnocratas, geralmente assessores desses organismos multilaterais. Naquele contexto, como se viu, definem-se novas esferas para a ação sindical e os novos conteúdos dessas ações passam a incorporar o debate sobre as estratégias de enfrentamento das transformações do e no sistema produtivo, e a discussão sobre propostas, projetos e políticas sociais voltados à educação dos trabalhadores15.
A Central irá promover, pela primeira vez em sua história, projetos de educação associando elevação de escolaridade e qualificação profissional: os projetos “Integrar”, da Confederação Nacional dos Metalúrgicos (CNM/CUT), e “Educação de trabalhadores por trabalhadores”, realizado por sindicatos da CUT pela Base, de seis diferentes categorias em seis cidades do Estado de São Paulo. Os projetos contaram com a orientação das professoras Maria Nilde Mascellani e Cecília Guaraná, ambas participantes da organização dos Ginásios Vocacionais em São Paulo, uma das experiências mais importantes, no país, de construção e implementação de currículo integrado no ensino médio, violentamente reprimida e extinta no período ditatorial (MORAES, 2013).
15A esse respeito, ver Diagnóstico de Formação Profissional. Ramo Metalúrgico. CNM/CUT, 1999, p. 332.
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As ações educativas dirigidas a jovens e adultos não reduziam os seus objetivos unicamente à dimensão profissional, mas visavam à conquista da autonomia dos trabalhadores em relação aos poderes econômicos e políticos. Os projetos de Ensino Médio Integrado, da educação profissional integrada à educação básica – sejam voltados para a idade adequada, sejam nas modalidades EJA – foram, como vimos, construídos em lutas, encontros e fóruns do movimento popular, sindical e de entidades representativas de educadores da escola básica e da universidade. Tais propostas contrapunham-se às reformas promovidas pelo Governo F.H.C., as quais moldadas, em geral, pelas orientações do Banco Mundial (Bird), além de focar o atendimento no ensino fundamental para a idade própria em detrimento de outras etapas da educação básica e, em particular, da EJA, propunham adequar o ensino às novas demandas econômicas. Dessa maneira, reformularam o ensino técnico, criaram o Sistema de Educação Profissional, aprofundando o dualismo estrutural no ensino médio e reforçando o caráter compensatório e assistencialista atribuído à formação profissional continuada.16
Minha participação no Projeto Integrar da CUT deu-se, principalmente, na coordenação de um projeto de pesquisa nacional, ao lado do prof. Celso Ferretti, entre 1997 e 1999,17 que analisou a educação e a formação profissional destinada aos trabalhadores do ramo. A pesquisa diagnóstica da Formação Profissional – ramo Metalúrgico, desenvolvida sob responsabilidade da Rede Unitrabalho, era parte do projeto mais amplo da CNM/CUT, intitulado Projeto Integrar Nacional de Formação e Requalificação Profissional, do qual participaram, além da Unitrabalho, o Dieese e a COPPE-UFRJ. A pesquisa teve por objetivo produzir e organizar informações e análises sobre a formação profissional destinada aos trabalhadores do ramo metalúrgico e efetuada pelos sistemas públicos de ensino, por entidades sindicais, empresas e instituições empresariais, tendo em vista subsidiar a ação sindical no campo da ação e da gestão das políticas de educação e formação profissional. Para sua realização foram utilizadas informações de fontes secundárias, assim como dados primários coletados junto às diferentes instituições envolvidas, situadas nas regiões
16Sobre isso, consultar MORAES, C.S.V., 2001, texto apresentado na 23. Reunião Anual da ANPED realizada em setembro de 2000.
17Integravam o grupo, como coordenadores regionais: Brasília Carlos FERREIRA - UFRN (norte - nordeste); Carlos Roberto HORTA – UFMG (Sudeste/MG); Acácia Zeneida KUENZER - UFPR (Sul); Celso João FERRETI - PUC-SP (Sudeste/São Paulo); Neise DELUIZ - UFRJ (Sudeste - RJ), quatro de nós participantes do GT9.
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Sul, Sudeste e Norte/Nordeste. O Relatório da pesquisa foi publicado pela CNM – CUT na forma de livro, em 199918.
Neste caso, em se tratando de pesquisa de âmbito nacional, os desafios teóricos e de método de investigação foram inúmeros, mas o seu enfrentamento possibilitou a obtenção de resultados interessantes do ponto de vista do diagnóstico construído sobre o ensino técnico e profissional em curso no país (público, privado, o realizado por empresas, sindicatos e entidades comunitárias) e, principalmente, suscitou o levantamento de algumas questões teóricas pertinentes aos vínculos entre educação escolar e mercado de trabalho, entre escola e produção etc., assim como permitiu, de certa forma, visualizar tanto o "estado da arte" da pesquisa na temática como trazer dados e informações relevantes para o desenho do projeto Integrar de Formação e Requalificação Profissional da CNM-CUT e para sua posterior avaliação. O diagnóstico subsidiou, também, o debate sobre a necessidade de organização de cursos específicos para militantes sindicais, os de nível superior e os denominados de “especialização”.
O Projeto “Construindo o Saber – Educação de trabalhadores por trabalhadores” teve início no ano 2000 e foi realizado, na época, pelo IIEP, pelo CEEP, pelo Centro Estadual de Educação Tecnológica Paula Souza (CEETEPS), por sindicatos da CUT pela Base e entidades do movimento popular19.
O Programa visava participar do esforço coletivo de construir uma política pública de formação profissional capaz de responder às múltiplas necessidades da população trabalhadora. Entre os seus aspectos inovadores, na perspectiva de associar elevação de escolaridade e preparação para o trabalho, propôs desenvolver uma prática formativa diferenciada, propiciando ao aluno trabalhador acesso à escolaridade no nível de conclusão de Ensino Fundamental (5ª a 8ª séries) de forma
18MORAES, C.S.V. e FERRETTI, C. (coords.). Diagnóstico da Formação Profissional. Ramo Metalúrgico. São Paulo: CNM/Rede Unitrabalho, 1999.
19O programa foi realizado com recursos do Plano Nacional de Formação Profissional/Planfor, do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), da Secretaria Estadual de Emprego e Relações de Trabalho (SERT) e do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT). Integraram-no, em seus diferentes momentos, sindicatos de diversas categorias, de quatro municípios paulistas: Sindicato dos Motoristas e Trabalhadores em Transporte de São Paulo (até dez. 2000), Sindicato dos Oficiais Marceneiros de São Paulo, Sindicato dos Metalúrgicos de Limeira, Rio Claro e região, Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias de Calçados e Vestuários de Franca e região, Sindicato dos Trabalhadores em Entidades de Assistência ao Menor e à Família do Estado de São Paulo (Sitraemfa) e Sindicato dos Vidreiros de São Paulo. Constavam, também, entre os participantes, a Pastoral Operária Metropolitana, o Centro Educacional Comunitário São Paulo Apóstolo e a Associação de Funcionários do Banespa (Afubesp).
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mais rápida (18 meses) e, ao mesmo tempo, situando-o frente às constantes mudanças socioeconômicas do mundo contemporâneo. Para tanto, buscou desenvolver metodologias que permitissem articular os componentes curriculares entre si (interdisciplinaridade), inclusive com a área técnica (cursos profissionalizantes). Outra característica diferenciadora do Programa consistiu na forma de organizar e gerir a experiência, baseada na cooperação entre os vários grupos oriundos das diferentes instituições - pesquisadores, professores e estudantes vinculados à Universidade, às escolas de ensino fundamental, médio e técnico, educadores populares e, sobretudo, sindicalistas - nas diversas etapas da proposta educativa: elaboração da matriz curricular, desenvolvimento dos itinerários formativos, seleção de alunos e professores, capacitação de professores, seleção e construção de material didático, acompanhamento e avaliação das atividades.
A avaliação coletiva das atividades pedagógicas desenvolvidas na primeira fase do Programa, finalizada em dezembro de 2000, com 215 concluintes do Ensino Fundamental e portadores de certificação em diferentes habilidades profissionais, e a perspectiva da ampliação da experiência em número de alunos e na extensão de sua oferta para o nível do Ensino Médio indicaram a necessidade da realização de estudos-diagnósticos que aprofundassem e qualificassem tanto as dificuldades como os êxitos obtidos no desenvolvimento da proposta, nos diferentes campos de atuação. O projeto de pesquisa “Educação de adultos trabalhadores: metodologias de ensino-aprendizagem, itinerário formativo e capacitação de professores”, financiado pela Fapesp, na linha Políticas Públicas, iniciou-se em março de 2002 e foi finalizado em dezembro de 2007, envolvendo, conforme procedimentos da linha de pesquisa em Políticas Públicas, duas fases de desenvolvimento. Na primeira, no que diz respeito às suas várias dimensões, o projeto buscou levantar as características do curso investigado, de seus alunos e professores, assim como analisar os dados obtidos em relação aos quatro eixos complementares que ordenaram a pesquisa: adultos trabalhadores como sujeitos de conhecimento e aprendizagem; construção de metodologias de ensino-aprendizagem para adultos trabalhadores e capacitação docente; desenvolvimento de metodologias para elaboração de itinerários de formação profissional; construção coletiva de alternativas econômicas de produção associadas a cooperativas, empresas de autogestão). Com esse objetivo foi constituído um núcleo de estudos e pesquisas composto por um grupo de professores
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, coordenadores (FEUSP, CEEP e IIEP) e sindicalistas que atuavam nas diferentes localidades onde se realizava o Programa de ensino. Foram realizadas oficinas mensais para levantamento e registro das práticas pedagógicas e material didático elaborado pelos professores em cada disciplina, assim como promover a realização de estudos e reflexão teórica.
Com a finalidade de fechar o ciclo de debates, organizou-se uma oficina nacional: “Políticas Públicas de Educação de Adultos Trabalhadores e de Formação Profissional no Brasil: problemas e perspectivas”, com a participação de representantes de movimentos populares, sindicatos, governo/administrações públicas, instituições de ensino básico e academia (representantes dos grupos de estudos e pesquisa em Trabalho e Educação).20
Os dois programas de educação de adultos, da CNM-CUT e do IIEP/ CEEP/ CUT pela Base, guardadas as especificidades de público e condução pedagógica, tinham em comum, em seus objetivos e propostas iniciais, a mesma concepção de educação de jovens e adultos, a de integrar formação geral e formação profissional, que irá fertilizar, mais tarde, o Programa Nacional de Integração da Educação Profissional ao Ensino Médio na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos - PROEJA, e o Programa de Integração da Educação Profissional à Educação Básica na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos - PROEJA FIC. Propunham-se, também, na direção das posições então defendidas pela CUT, estabelecer, nos processos educativos, relação prioritária com o sistema público de ensino, de maneira a poder usufruir seus recursos pedagógicos e infraestrutura física, e, ao mesmo tempo, garantir a difusão de uma concepção de educação dos trabalhadores e sua intervenção na política pública de educação e formação profissional (CNM/CUT, 1999, p.358).21
20 Foi construído um banco de dados desse material: documentação escrita (textos, desenhos), oral (depoimento de alunos e professores) e iconográfica, que se encontram hoje no acervo do IIEP. Os resultados dessa experiência de educação de trabalhadores, realizada por trabalhadores, foram sistematizados por meio de exaustivo, mas fecundo exercício coletivo de elaboração escrita, na forma de relatório entregue à FAPESP, transformado posteriormente em livro, publicado em 2013 (MORAES, 2013).
21Havia, naquele momento, muitas e intensas disputas internas na Central de concepção e de condução política frente às medidas do governo FHC e, ao que nos importa aqui, ao Planfor. À decisão da CUT de montar projetos com recursos do FAT- Fundo de Amparo ao Trabalhador, nossa crítica era a de que os cursos desenvolvidos estivessem ligados à estrutura do ensino público e à capacitação dos sindicalistas, para que, entre outros objetivos, pudessem intervir na educação pública. Como bem argumentava Sebastião Neto, “a melhor experiência sindical internacional que a gente tem mais relação
- italianos, espanhóis, ... a França é um caso à parte porque lá foi tudo muito estruturado, muito organizado, muito republicano, para o bem e para o mal – nesses países que saíram de processos
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Os desafios provenientes da realização dos projetos de educação de adultos, a problematização de seus procedimentos e resultados aprofundados pelos debates promovidos com instituições públicas e sindicais e com pesquisadores no campo da educação profissional em diferentes países possibilitaram grande aprendizado e maior percepção sobre os desafios e possibilidades para o avanço das propostas na área.
As disputas no governo Lula
A proximidade das eleições em 2003 e a perspectiva da vitória de Lula para assumir o governo federal irão impulsionar a realização de um grande Seminário nacional, em 2002, organizado pelo IIEP e realizado no município de Santo André, com a participação de representantes da administração pública, de entidades sindicais e do movimento popular, e de pesquisadores da área de educação e trabalho, para debatermos coletivamente uma proposta de educação e formação profissional, uma vez que no debate em curso sobre a educação básica não se configurava, estranhamente, nenhum fórum dirigido a essa modalidade de ensino. O encontro gerou um texto chamado “Documento de Santo André”, que foi entregue em Brasília e recebido por algumas autoridades já nomeadas que haviam participado do encontro e assinado o documento. Este documento, de reconhecida relevância para o governo Lula, serviu de orientação na elaboração de políticas de jovens e adultos integrada à educação profissional, como o PROEJA e o PROEJA FIC, além de importantes iniciativas conjuntas do MEC e do MT voltadas para a certificação educacional e profissional.22
Nessa mesma direção, “conscientes da importância histórica do (...) momento político, gestores de políticas públicas municipais de desenvolvimento local, de trabalho e renda, de economia popular e solidária, de educação e formação
políticos de negociação, a grande lição era não pegar dinheiro do Estado...; o sindicato deve brigar para participar intervindo na política pública”. Outra crítica relevante estava direcionada ao fato de os cursos serem realizados “de fora”, sem o enfrentamento com a empresa. Por isso, não é possível encontrar exemplos de negociação da formação (entrevista Sebastião Neto à Fiocruz, em 24/02/2006).
22Importante assinalar a participação de pesquisadores do GT9 no encontro, os quais assinam o documento, entre eles, Marise Ramos, que foi Diretora do Ensino Médio no primeiro governo Lula; Lucília Machado, que exercerá a coordenação técnico-pedagógica do PROEP. Grande parte das propostas referentes às políticas para a educação profissional nas diferentes etapas e modalidades aparecem citadas no documento da SETEC “Proposta em Discussão. Políticas Públicas para a Educação Profissional e Tecnológica”, de abril de 2004, onde são apresentadas as balisas orientadoras das ações a serem promovidas por essa Secretaria.
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profissional, bem como pesquisadores de Universidades e representantes de entidades da sociedade civil” realizaram, em Recife, o Seminário “Qualificação Profissional: entre o direito à educação e o mercado de trabalho” para discutir políticas públicas no campo da Educação, do Trabalho e do Desenvolvimento.23
O encontro, organizado pelo IIEP e promovido pela Prefeitura do Recife, através da Secretaria de Educação – SE e da Secretaria do Desenvolvimento Econômico, elegeu como tema central a “integração das políticas municipais”, o que permitiu a construção de um diagnóstico sobre as experiências em curso nos municípios - sobre os avanços alcançados, os desafios e dificuldades a serem enfrentados no sentido da integração das políticas entre os municípios e entre eles e os demais entes federativos -, capaz de viabilizar o regime de colaboração. Os resultados desse diagnóstico, acompanhados das propostas de ação às políticas municipais, intermunicipais, e no plano federal, constam no Documento “Carta do Recife”, aprovado no Seminário Nacional de Políticas Públicas de Trabalho e Educação e encaminhado também ao governo federal.24
Em dezembro de 2010, no final do governo Lula, organizamos – o IIEP em colaboração com o GT Trabalho e Educação FEUSP – uma Oficina de Educação e Trabalho, com a participação de representantes de Grupos de Pesquisa em Trabalho e Educação de diferentes universidades e Institutos Federais/IF do país (que integram o GT9 da ANPED), além de alguns representantes de administrações públicas federal, estaduais e municipais, para realizar um balanço das políticas de EJA integrada à Educação Profissional desenvolvidas nos oito anos de governo e realizar alguns encaminhamentos visando o avanço nesse campo.25
23IIEP: Documento síntese. Carta do Recife. Qualificação Profissional: entre o direito à educação e o mercado de trabalho. Recife-OE, maio 2003.
24O evento teve a participação de 22 governos municipais de diferentes Estados, além da presença de observadores nacionais, entidades como a CNM/CUT, CUT Pernambuco, Anteag, Dieese, Inep, Unitrabalho, outras instituições do município do Recife, escolas de trabalhadores, como o Centro de Trabalho e Cultura – CTC, a Escola de Formação Quilombo dos Palmares, Escola Sindical da CUT Nordeste, entre outras, e movimentos populares. Participaram como expositores convidados representantes do Ministério do Trabalho (Secretaria de Políticas de Emprego e Departamento de Qualificação Profissional), do Ministério da Educação (Secretaria de Educação Média e Tecnológica, do Programa de Expansão da Educação Profissional, coordenado pela nossa colega do GT9, a profa. Lucília Machado, e o INEP.
25Em 2008, o MEC iniciou três projetos pilotos de Ensino Fundamental na modalidade EJA, integrada à Formação Inicial e Continuada, com o objetivo de estabelecer parâmetros e referenciais para a implantação do PROEJA-FIC nacionalmente. Os pilotos foram realizados em Santa Catarina, Mato Grosso e São Paulo. Em São Paulo, a experiência foi desenvolvida em três municípios – Diadema, Guarulhos e Osasco – em parceria com o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia – IFSP. Posteriormente, 35 municípios aderiram ao programa, sendo que 20 firmaram parceria com o Campus
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Muitos dos participantes do seminário haviam protagonizado lutas incansáveis na implementação das propostas e projetos construídos nos momentos de mobilização social e resistência às políticas neoliberais, exercendo inclusive funções no interior do governo Lula. O Seminário se constituiu, então, como um dos momentos privilegiados para leitura coletiva e avaliação crítica dos oito anos de governo (2003- 2010) a partir de nossa própria prática política nos diferentes espaços em que atuávamos. Nessas circunstâncias, foi elaborado e aprovado o Documento coletivo “Políticas Públicas de Educação e Trabalho na perspectiva dos Direitos Sociais”, encaminhado também ao governo Lula.26
O Documento expressa a preocupação dos seus proponentes em expor ao governo e à sociedade os impasses existentes na condução das políticas educacionais e, ao mesmo tempo, apresentar sugestões e diretrizes no sentido de fortalecer as políticas públicas de jovens e adultos que “por dificuldades estruturais no sistema educacional e no mercado de trabalho, foram postos fora dos ritmos normais da escolarização” (IIEP/GP Trabalho e Educação FEUSP, 2011).
E embora não faça parte do escopo do texto analisar a atuação política do governo Lula no campo educacional, é importante pontuar, no contexto, a contradição permanente entre propostas orientadas na continuidade das políticas neoliberais herdadas, de flexibilização e mercantilização dos direitos sociais, e aquelas que propunham a implementação de projeto voltado para a construção de um modelo alternativo de desenvolvimento econômico-social democrático. O embate era perceptível nas dificuldades de implementação de políticas universais, substituídas por uma multiplicidade de políticas de caráter provisório e assistencialista, fragmentadas em vários ministérios no âmbito do governo (MORAES, C.S.V., 2017).
São Paulo e 14 apresentaram projeto pedagógico coletivo, com base nas experiências piloto. O IIEP se envolveu amplamente no desenvolvimento do Programa, assessorando grande número de municípios, intermediando a relação com o IF e acompanhando a implementação dos projetos pedagógicos. Lutou pela viabilização do Proeja e do Proeja FIC, considerando imprescindível ao sucesso da experiência de ensino a abertura de um diálogo com a Rede Federal “de maneira a viabilizar a aproximação entre a expertise da Rede na Educação Profissional e o acúmulo dos movimentos sociais e sindicais na educação popular” (IIEP, 2009).
26Um número significativo de pesquisadores do GT9 e do GT de EJA da ANPED, de diferentes universidades do país, assinam o documento, entre eles Lucília Machado, Marise Ramos, Maria Ciavatta, Maria Clara Bueno Fischer, Maria Margarida Machado, Naira Franzoi, Almerico Lima, Diretor de Qualificação do MTE durante a gestão de Luiz Marinho, Celso Ferretti, Dante Moura, todos protagonistas importantes na luta pela implementação do PROEJA e PROEJA Fic, na elaboração do documento base das Diretrizes Nacionais Curriculares para o Ensino Médio,aprovado em 2012 pelo CNE.
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Pode-se dizer que as políticas educacionais apresentavam, assim, caráter “pendular e ambíguo” (OLIVEIRA, 2015, p. 636). No campo da educação básica, as reivindicações pela escola unitária, pelo Ensino Médio Integrado, apresentadas ao Governo Lula e discutidas no início de sua gestão em seminários nacionais organizados pelos Ministérios da Educação e do Trabalho, levaram o governo a emitir novo Decreto (5.154/04), que substitui a medida anterior e permite reintegrar a educação profissional técnica ao ensino médio. A medida impulsionou o Ministério da Educação (MEC), ainda que timidamente, a promover iniciativas que propiciassem o amadurecimento de orientações dirigidas à superação organizacional e pedagógica da separação entre formação geral e técnica, entre trabalho, cultura, ciência e tecnologia. É o caso das Diretrizes Curriculares Nacionais do Ensino Médio (Parecer CNE/CEB 05/2011), de aprovação tardia pelo Conselho Nacional de Educação, que vêm complementar o decreto n. 5154; do PROEJA, posteriormente ampliado com o PROEJA FIC (Decretos n. 5.478/2005 e n. 5.840/2006, Documentos-Base – MEC/Setec, 2007), destinados ao atendimento de milhões de brasileiros que não concluíram a escolaridade na chamada idade própria. Não me deterei aqui nos avanços representados por essas medidas no sentido do resgate e revitalização da educação de jovens e adultos de modo a superar o viés assistencialista e compensatório, promovendo a inclusão social. Importa apenas afirmar a importância do PROEJA FIC, que vinha suprir a ausência histórica, em nosso país, de ensino que integrasse formação geral e formação profissional na escola básica de nível fundamental, possibilitando a construção de percursos formativos sustentados na concepção de eixos tecnológicos e a superação dos limites de uma formação restrita orientada pela Classificação Brasileira das Ocupações (CBO) baseada em competências, viabilizando assim a validação dos conhecimentos, seja para a classificação funcional da ocupação, seja para posterior aproveitamento dos estudos (MORAES, 2006).
Se no campo da Educação o debate concentrou-se na perspectiva do reconhecimento de saberes e habilidades adquiridos, pelos trabalhadores, ao longo da vida para fins de prosseguimento ou conclusão dos estudos e inserção profissional, no campo das relações de trabalho, tratava-se de criar processos certificadores que dinamizassem as novas formas de gestão e de organização dos processos produtivos (FIDALGO, 2003; MORAES, e LOPES NETO, 2005).
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No âmbito do Ministério do Trabalho, o Plano Nacional de Qualificação/PNQ veio substituir o Plano de Nacional de Formação/Planfor, introduzindo modificações na condução da política de qualificação profissional, promovendo a ressignificação de suas noções ordenadoras. Entre elas, a substituição da noção de “competência” pela de “qualificação social e profissional, o que indicava mudanças significativas na concepção de trabalho, educação, formação profissional e da relação entre elas e, em decorrência, nos processos de formação e certificação (MORAES, 2006).
Na direção dessas preocupações, para suprir a ausência de uma política pública nacional de ‘certificação profissional’ de conhecimentos, que normatizasse e regulasse experiências, propostas, programas e projetos de certificação profissional vinculados aos diversos ministérios, órgãos federais, entidades e segmentos sociais, o MTE, desde 2003, vinha desenvolvendo esforços em conjunto com diversos agentes governamentais e sociais, com vistas a organizar institucionalmente a certificação profissional, como atribuição do Sistema Público de Emprego e articulado ao Sistema Nacional de Educação. Para tanto, foi instituída em 2004 a Comissão Interministerial sobre Qualificação e Educação Profissional, composta pelos Ministérios da Educação, do Trabalho e Emprego, da Saúde, Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, do Ministério do Turismo e pelos Conselhos Nacionais da Educação e do Trabalho, sob a coordenação geral, exercida alternadamente, do MEC e do TEM 27. Em consonância com as reivindicações de representantes do movimento sindical de trabalhadores e na contramão de iniciativas de ‘certificação profissional baseada em competências’ promovidas pelo mercado, o Sistema Nacional de Certificação Profissional (SNCP) concebia a ‘certificação profissional’ como “processo negociado pelas representações sociais e regulado pelo Estado”, por meio do qual “se identifica, avalia e valida conhecimentos, habilidades e aptidões profissionais do(a) trabalhador(a), adquiridos na frequência a cursos e atividades educacionais ou na experiência do trabalho”. Ao contrário do programa privado de certificação realizado pelo Instituto Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial – Inmetro, em que os certificados emitidos são exclusivamente profissionais, não existindo correspondência com escolaridade, a certificação proposta pelo MTE era considerada como parte do processo de orientação e formação profissional e não poderia “se opor,
27 A equipe do IIEP participou da Secretaria Executiva da Comissão Interministerial sobre Qualificação e Educação Profissional para a criação do Sistema Nacional de Certificação de Conhecimentos dos Trabalhadores.
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sobrepor ou substituir a formação profissional”. O SNCP representava portanto uma conquista, uma avanço das lutas pela inclusão, a inversão da tendência de aumento das desigualdades permitindo aos menos formados e aos menos qualificados o acesso à escolaridade e às qualificações superiores (MORAES & LOPES, NETO, 2005; LOPES NETO, 2003).
Da mesma maneira, o Documento reconhecia, no final dos governos Lula, que o conjunto dessas medidas associadas àquela de expansão da Rede Federal de Educação Tecnológica (Lei 11.892/2008), apesar de não constituírem políticas de Estado, tinham o mérito de propor integrar a formação escolar e a formação para o trabalho e a cidadania, incorporando o tema do trabalho como estruturante da proposta curricular (IIEP e GT Trabalho e Educação - FEUSP, 2011, p. 8). Contudo, o Documento também interpelava o governo para que convocasse a sociedade a um amplo debate sobre um projeto estratégico de enfrentamento da problemática dos jovens e adultos que não tiveram acesso à educação básica e à formação profissional, sob uma referência de política de Estado. Ao final do segundo mandato do governo Lula, ao iniciar-se a terceira gestão do Partido dos Trabalhadores, considerava-se que do ponto de vista político, econômico e social as condições estavam maduras para o seu desenvolvimento e que o governo não poderia mais adiar sua implementação (op. cit p. 21).
No entanto, não foi o que ocorreu. Infelizmente, como se sabe, o PROEJA e o PROEJA FIC permaneceram na forma de programas e não se efetivaram como políticas de Estado. Em meio aos embates, os programas tiveram difícil operacionalização e, na gestão Dilma Rousseff, decretou-se a sua extinção a partir da criação do Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e ao Emprego – PRONATEC (LEI n. 11.513/2011), política privatizante que contou, na sua elaboração, com expressiva participação de entidades e fundações empresariais. Nesse processo, os objetivos disputados, e nunca concretizados, de elaboração de um guia para o EJA FIC, seguindo a metodologia adotada pelo MEC para os Catálogos Nacionais dos Cursos Técnicos e Superiores de Tecnologia, como reação à sua fragmentação e mercantilização, foram imediatamente deslocados e substituídos. Em seu lugar, é publicado o Catálogo de cursos Pronatec, com base no do Sistema S, baseado na Classificação Brasileira de Ocupações/CBO, construída segundo o modelo das competências. Da mesma maneira, as Diretrizes Curriculares Nacionais do Ensino
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Médio - a proposta coletiva mais completa de organização do ensino médio integrado
- embora aprovadas pelo CNE foram, à revelia dos esforços de muitos de nós, praticamente engavetadas e não referenciaram a organização dessa etapa educacional em nenhum estado do país. No que se refere à Comissão Interministerial voltada à construção do Sistema Nacional de Certificação Profissional, não tornou a se reunir no novo governo e seus propósitos e atribuições de construção de uma política pública de formação e certificação profissional articulada com o Sistema Nacional de Educação permaneceram ignoradas.
É possível afirmar, em síntese, que os governos Lula e Dilma (2011-2016) atuaram no sentido da expansão da educação básica e superior visando ampliar o seu acesso a maiores segmentos populacionais, em particular aos mais pobres, embora com grandes concessões aos proprietários das instituições privadas e ao ideário empresarial da educação funcional ao mercado (MORAES, 2017).
O recrudescimento da presença do setor privado nos governos ilegítimos de Michel Temer e Jair Bolsonaro, que promoveram o Golpe de Estado de 2016, foi acompanhado de enorme retrocesso nas políticas públicas de educação e pelo desmonte da escola pública, processo que culmina com a institucionalização da Base Nacional Comum Curricular/ BNCC e a aprovação da lei da (contra) reforma do Ensino Médio (LEI 13.415/2017), a qual, como bem sintetiza Frigotto (2016), “legaliza o apartheid social na educação”. O crescimento dos grupos de pressão e o intercâmbio de interesses financeiros possibilitaram novas estratégias de privatização do público, por meio da intervenção direta desses aparelhos privados de hegemonia na gestão pública sob a forma assessorias e assistências técnicas junto aos estados e municípios, o que tem dificultado enormemente nossas lutas resistentes em defesa da educação pública e pela revogação do chamado novo ensino médio.
No entanto, é preciso enfatizar que a correlação de forças desfavorável, as derrotas às quais fomos submetidos nessa conjuntura neoliberal de desmanche radical dos direitos sociais e do legado trabalhista, período de duras disputas, podem obscurecer mas não invalidam ou destroem as lutas, conquistas e avanços alcançados. A implantação e a persistente resistência pela manutenção da educação
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profissional técnica integrada ao ensino médio nos Institutos Federais é um dos exemplos mais significativos. A elaboração deste texto e sua apresentação no Intercrítica tem o propósito de resgatar a memória de uma experiência coletiva, da qual fui partícipe, de mostrar a força dos trabalhadores e seus movimentos na construção de projetos e de políticas públicas de educação, e, com esse objetivo, explicitar o que é negado pelos setores empresariais e seus prepostos defensores da atual reforma privatista: nós temos,sim, projeto para o ensino médio, e também de educação de jovens e adultos-EJA, de educação e formação profissional integrada à educação básica, para as diferentes etapas de ensino, construídos historicamente pelos sujeitos educacionais, individuais e coletivos. E vamos continuar a lutar por sua implementação!
De acordo com Dardot e Laval (2016), o princípio do comum que emana hoje dos movimentos, das lutas e das experiências remete a um sistema de práticas diretamente contrárias à racionalidade neoliberal e capazes de revolucionar o conjunto das relações sociais. Sabemos, nessa perspectiva, que a luta contra o neoliberalismo implica estrategicamente a ressignificação do público, a publicização do espaço público, a existência de transparência nas políticas públicas, a participação dos coletivos sociais na sua definição, a gestão pública dos fundos públicos, de modo a empreender uma forma de regulação democrática, negociada, pela qual “os interesses econômicos e os direitos sociais possam ser arbitrados em seu princípio público” (PAIOLI, 1999).
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V.21, nº 44, 2023 (janeiro-abril) ISSN: 1808-799 X
Lia Tiriba2 Maria Clara Bueno Fischer3
Resumo
Diferenciando-se das de outros campos científicos, a força material das pesquisas em trabalho-educação se expressa como práxis política. Ao interrogarmos evidências sobre objetos de pesquisa, insistimos que, quanto maior for o número de campos do real abordados pela ciência, mais transparente se torna a unidade do diverso. Indagamo-nos em que medida, a partir das pesquisas que realizamos, tem sido possível apreender o trabalho na sua diversidade e indicamos questões teórico-metodológicas para tornar mais visíveis os mundos do trabalho, a classe trabalhadora, as relações trabalho-educação e a luta de classes. Com isso, esperamos problematizar nossa práxis.
Palavras-chave: Campo científico Trabalho-Educação; Materialismo histórico e dialético; Mundos do trabalho; Classe trabalhadora.
LA INVESTIGACIÓN EN TRABAJO-EDUCACIÓN COMO FUERZA MATERIAL: DEVELANDO CAMPOS DE LO REAL
Resumen
A diferencia de otros campos científicos, la fuerza material de la investigación en educación-trabajo se expresa como praxis política. Al cuestionar indicios acerca de los objetos de investigación, hacemos hincapié en que cuanto más grande sea el número de campos de lo real abordados por la ciencia, más transparente se volverá la unidad del diverso. Nos preguntamos cuánto, a partir de la investigación que realizamos, ha sido posible aprehender el trabajo en su diversidad y planteamos cuestiones teórico-metodológicas para evidenciar los mundos del trabajo, la clase obrera, las relaciones trabajo-educación y la lucha de clases. Con esto, esperamos problematizar nuestra praxis.
Palabras clave: Campo científico Trabajo-Educación; Materialismo histórico y dialéctico; Mundos del trabajo; Clase obrera.
RESEARCH IN WORK-EDUCATION AS MATERIAL STRENGTH: UNVEILING FIELDS OF THE REAL
Abstract
Unlike other scientific fields, the material strength of work-education research is expressed as political praxis. When asking the evidence on research objects, we usually insist the greater the number of real fields addressed by science, the more transparent the unity of diversity becomes. Next, we ask ourselves to what extent, based on the research carried out so far, how has it been possible to grab a hold on the work done, in its entire diversity and we indicate theoretical-methodological questions to stand out the worlds of work, the working class, work-education relations and the class conflict. With this, we hope to problematize our praxis.
Keywords: Work-Education scientific field; Historical and dialectical materialism; Worlds of work; Working class.
1Artigo recebido em 18/02/2003. Primeira avaliação 06/03/2023. Segunda avaliação 10/03/2023. Aprovado em 18/03/2023. Publicado em 13/04/2023. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v21i44.57494.
2Doutora em Ciências Políticas e Sociologia pela Universidade Complutense de Madrid (UCM), Espanha. Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF), Rio de Janeiro – Brasil.
E-mail: liatiriba@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/2006259738336754. ORCID: https://orcid.org/0000-0003- 0117-4160.
3Doutora em Educação pela Universidade de Nottingham, Reino Unido. Professora do Programa de Pós- Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Rio Grande do Sul - Brasil. Bolsista PQ1C-CNPQ.
E-mail: mariaclara180211@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2289-5282. Lattes: http://lattes.cnpq.br/3835786000876089.
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Em nossas pesquisas do campo Trabalho-Educação, cada um/a faz o seu caminho com referenciais comuns e outros tantos que adensam o método da economia política. O poeta espanhol Antônio Machado dizia: “caminhante, não há caminhos, o caminho se faz ao caminhar”. Estamos de acordo, mas também pensamos que é preciso saber aonde queremos chegar, para não correr o risco de nos perdermos no meio do caminho. De qualquer maneira, devemos ser atrevidas: seguir novas trilhas e avenidas que permitam o campo “falar”.
Qual objeto? Qual empiria? Quais as fontes de pesquisa? O que olhamos? Para onde olhamos? Como olhamos? Que referenciais teórico-metodológicos fundamentam nossas pesquisas? O que acreditamos ser “útil” para apreender o mundo ou os mundos do trabalho e as relações trabalho-educação que os constituem?
Como Marx, o filósofo Karel Kosik (1976, p. 17) diz que “se a essência fenomênica e a essência das coisas coincidissem diretamente, a ciência e a filosofia seriam inúteis.” Referindo-se aos modos de apropriação prático-espiritual do mundo e à destruição de sua pseudoconcreticidade, o autor ressalta a relação do sujeito com o objeto de conhecimento. Na verdade, “o homem sempre vê mais do que aquilo que percebe imediatamente”, pois
de minha audição e de minha vista participam, […] de algum modo, todo o meu saber e minha cultura, todas as minhas experiências – sejam vivas, sejam ocultas na memória e se manifestando em determinadas situações –, os meus pensamentos e minhas reflexões. (KOSIK, 1976, p. 30).
Isso acontece com cada um e com cada uma de nós, com nossos objetos de pesquisa, em que fazemos o exercício de promover o diálogo permanente (e disciplinado) entre teoria e empiria, ou seja, entre conceito e evidência interrogada, considerando ainda que as hipóteses de pesquisa são sempre hipóteses sucessivas (THOMPSON, 1981). Lembrando o que nos diz Antonio Gramsci sobre a não neutralidade da produção científica e também sobre o perigo do “pedantismo acadêmico”:
O erro do intelectual [tradicional] consiste em acreditar que se possa saber sem compreender e, principalmente, sem sentir e estar apaixonado (não só pelo saber em si, mas pelo objeto do saber), isto é, em acreditar que o intelectual possa ser um intelectual (e não um
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mero pedante) mesmo quando distinto e destacado do povo-nação, ou seja, sem sentir as paixões elementares do povo. (GRAMSCI, 2006, p. 221).
Apaixonadas pelo “objeto do saber” e pela realização de um projeto societário que prima pela lógica da reprodução ampliada da vida (e não pela reprodução ampliada do capital), nosso horizonte não é a sociedade produtora de mercadorias, mas a sociedade dos produtores livres associados4. Por isso nos perguntamos: como temos articulado teoria/empiria e práxis política, de maneira a potencializar a força material de nossa produção acadêmica para construir essa utopia?
Substanciadas nos fundamentos do materialismo histórico e dialético, para poder transformá-la, buscamos apreender a realidade humano-social em sua totalidade histórica. Totalidade não significa todos os fatos, mas, como diz Karel Kosik (1976, p. 44), filósofo tcheco,
totalidade significa: realidade como um todo estruturado, dialético, no qual ou do qual um fato qualquer (classes de fatos, conjunto de fatos) pode vir a ser racionalmente compreendido. […] Os fatos são conhecimento da realidade se são compreendidos como fatos de um todo dialético – isto é, se não são átomos imutáveis, indivisíveis e indemonstráveis, de cuja reunião a realidade saia constituída – se são entendidos como partes estruturais do todo.
Referindo-se ao desenvolvimento da ciência no Século XX, Kosik (1976, p. 45) diz que “quanto maior o número de campos que ela descobre e descreve, tanto mais transparente se torna a unidade material interna dos mais diversos e mais afastados campos do real”. Para ele, a dialética da totalidade concreta requer a “compreensão mais profunda da especificidade de cada campo do real e de cada fenômeno” e é o que nos leva ao descobrimento da “unidade do real”. Nesse sentido, questionamos: que dimensões, ou campos do real estão contemplados em nossas pesquisas individuais e coletivas que nos permitam compreender as contradições entre trabalho e capital no atual momento histórico? Indagamo-nos em que medida conseguimos conhecer os trabalhadores e as trabalhadoras e apreender suas culturas do trabalho e a própria luta de classes como síntese de múltiplas determinações? Por quais trilhas e avenidas temos buscado compreender a relação trabalho-educação na sua historicidade, considerando as relações sociais de produção hegemônicas num
4 Sobre o conceito de produção associada em Marx, ver o verbete "Produção Associada e Autogestão” (TIRIBA; FISCHER, 2012, p. 612).
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determinado momento histórico e aquelas atividades que perduram em diversos espaços/tempos, distinguindo-se da lógica do modo capitalista de produzir a existência humana?
Como sujeitos individuais e coletivos do campo Trabalho-Educação e, em particular, do GT-09 (Trabalho e Educação) da Associação Nacional de Pesquisa em Educação (ANPED), nossas pesquisas estão presentes em diversos espaços da produção acadêmica e social e, com certeza, manifestam-se como práxis política e educativa, constituindo-se como “força material”. Pesquisadores e pesquisadoras nos encontramos nas atividades do GT-09 e, em especial, nos eventos do Intercrítica – Intercâmbio Nacional de Grupos de Pesquisa em Trabalho e Educação5. Socializamos também os resultados de nossas pesquisas em outros eventos nacionais e internacionais e por meio da veiculação da produção acadêmica em periódicos científicos6.
Como pesquisadores e pesquisadoras por onde temos caminhado? Considerando que nossa categoria central é a categoria Trabalho, entendida como mediação das relações entre seres humanos e natureza, estranhamos a quase inexistência de pesquisas sobre as relações seres humanos/natureza, bem como sobre as diversas atividades de trabalho que configuram o(s) “mundo(s) do trabalho”, considerando sua diversidade.
Como perguntas que não querem calar, também queremos refletir, neste texto, em que medida, ao contrário do que se verifica no campo Trabalho-Educação, a produção acadêmica do GT-09 tem ficado circunscrita à análise de questões, direta ou indiretamente, relacionadas ao Estado, deixando em segundo plano, por exemplo, os espaços não escolares de formação humana, os movimentos sociais populares, as pequenas e as grandes lutas da classe trabalhadora. Valeria indagar por que essas e outras temáticas e objetos (ou campos do real) têm se “refugiado” em outros GTs da ANPED ou em outros campos de pesquisa?
5 Até o momento, foram realizadas cinco edições do Intercrítica, organizadas pelo Grupo de Trabalho em “Trabalho e Educação” (GT-09) da ANPED e por grupos locais de pesquisa. Os números TN 32 (2019); TN 25 (2016); TN 20 (2015) e TN 1 (2003) da Revista Trabalho Necessário trazem documentos e artigos dos eventos.
6 Entre os que constituem o campo Trabalho-Educação, ou estão próximos a ele, citamos os seguintes periódicos: Trabalho & Educação (NETE/UFMG), Revista Labor (UFC), Trabalho Necessário (NEDDATE/UFF), Revista HistedBR Online (Unicamp), Revista Trabalho, Política e Sociedade (UFRRJ), Revista Germinal: Marxismo e Educação (UFBA) e Trabalho, Saúde e Educação (EPSJV/FIOCRUZ). A produção científica do campo é ainda disponibilizada em inúmeros outros periódicos, especialmente da área das Ciências Humanas.
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De cunho teórico-metodológico, este artigo foi tecido a quatro mãos. Está permeado de constatações que foram explicitadas em nossas respectivas participações na mesa A produção científica das pesquisas em Trabalho-Educação como “força material”: experiências e perspectivas da práxis política7, realizada no V Intercrítica. Evidentemente, não temos a pretensão de responder todas as perguntas que nos suscitam as pesquisas do campo Trabalho-Educação e, em particular, o GT- 09 da ANPED. Mais que responder, nosso objetivo é interrogar evidências e trazer contribuições teórico-metodológicas sobre as múltiplas dimensões do mundo do trabalho e, portanto, das relações trabalho-educação e da luta de classes. Insistimos que, quanto maior o número de campos do real nossas pesquisas contemplem, mais desembaçaremos o espelho embaçado do mundo do trabalho, o qual se revela como um “claro-escuro de verdade e engano” (KOSIK, 1976, p.15).
A seguir, o texto está estruturado em três tópicos: 1. O campo Trabalho- Educação como campo científico: o lugar do GT-09; 2. (Sub)mundos do trabalho: por um conceito ampliado de classe; 3. Para a crítica da pesquisa em Trabalho-Educação: desafios e perspectivas da práxis política. Neste último tópico, apresentamos nossas considerações finais.
O campo Trabalho-Educação se constitui como um campo científico. Para Bourdieu (2003), o campo científico, assim como o religioso, o artístico ou o econômico, por exemplo, obedece a lógicas internas que o regem e, ao mesmo tempo, o diferenciam dos demais campos. Configuram-se como espaço concorrencial e, ao mesmo tempo, de integração. Como em qualquer outro campo, o científico se caracteriza por ser um espaço de confronto e de lutas entre as diversas posições dos sujeitos sociais que nele se situam. No interior de um mesmo campo científico, persistem divergências e contraposição entre seus membros, embora, ainda assim, interesse aos participantes a existência de tal campo.
7 A mesa foi composta por Maria Ciavatta (UFF), Marise Nogueira Ramos (Fiocruz e UERJ), Carmem Sylvia Vidigal Moraes (USP), Maria Clara Bueno Fischer (UFRGS) e Lia Tiriba (UFF). O V Intercrítica ocorreu nos dias 10 e 11 de outubro de 2022, na Escola Politécnica Joaquim Venâncio/RJ tendo como tema: Crise do Capital, Luta de Classes e educação hoje: utopia ou barbárie. Foi promovido pelo GT- 09 e pelo Grupo These (Projetos Integrados de Pesquisa em Trabalho, História, Educação e Saúde).
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Para um campo científico se constituir, é preciso que exista uma “cumplicidade objetiva”. Bernard Lahire (2017), interpretando a concepção de campo em Bourdieu, afirma que “um campo é um ‘sistema’ ou um ‘espaço’ estruturado de posições ocupadas pelos diferentes agentes do campo. As práticas e as estratégias dos agentes só se tornam compreensíveis se relacionadas às suas posições no campo” (LAHIRE, 2017, p. 65). Sobre campo científico, em particular no que diz respeito à cumplicidade objetiva, Pascal Ragouet (2017, p. 700) afirma que, para Bourdieu, “as lutas que contribuem a estruturação do ‘campo científico’ desenvolvem-se, por conseguinte, no respeito de normas que escapam aos conflitos de definição: prestar- se ao jogo da argumentação e contra-argumentação, submeter-se à crítica etc.”
Podemos dizer que o campo Trabalho-Educação, como campo científico, diferencia-se de outros campos de conhecimento presentes na ANPED e em outras instâncias de socialização e veiculação da produção acadêmica. Nossa “cumplicidade objetiva” é o materialismo histórico e dialético, ou materialismo histórico-dialético, ou apenas materialismo histórico, conforme as diferentes compreensões sobre o termo8.
Os fundamentos teórico-metodológicos do materialismo histórico e dialético nos ajudam a compreender o trabalho em sua materialidade histórico-ontológica, bem como sua centralidade na formação humana. Contradição, mediação e particularidade são categorias do método que nos permitem apreender a totalidade social em sua historicidade, como síntese de múltiplas determinações e, portanto, unidade do diverso; como totalidade concreta (MARX, 1983, p. 218-226). Adverte-nos Kosik (1976, p. 52) que “a realidade social não é conhecida como totalidade concreta se o homem no âmbito da totalidade é considerado apenas e sobretudo como objeto e na práxis histórico-objetiva da humanidade não se reconhece a importância primordial do homem como sujeito”. Nessa perspectiva, as relações históricas entre trabalho e educação, entendidas como unidades dialéticas, vão se conformando nos movimentos do real, no qual estão inseridos os seres humanos.
Constituindo-se como mediação das relações entre seres humanos, não humanos e outros elementos da natureza, o trabalho é a categoria que nos dá elementos para análise das determinações econômicas, políticas e culturais que o constituem e que formam diferentes modos de produção da existência humana. Suas
8 Entendemos que o materialismo histórico não seria histórico se não fosse dialético, por isso, neste texto, utilizamos suas diferentes denominações.
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diferentes formas históricas nos revelam os modos de produção da vida social que têm hegemonia sobre outros modos de produção. Revelam-nos também modos que se desestruturaram, ou que ainda sobrevivem ao longo do tempo, coexistindo de forma subordinada com o modo dominante9. Assim, podemos afirmar que, na contemporaneidade, embora o capitalismo tenha hegemonia sobre outros modos de produção da existência, o trabalho não se resume à sua versão assalariada, nem a outras formas de trabalho-mercadoria, o que nos reafirma a necessidade de conhecer os trabalhadores e as trabalhadoras e a diversidade de práticas de trabalho, inclusive aquelas que, mesmo em suas contraditoriedades, não se configuram como trabalho- mercadoria.
Como assegura Marx (1983, p. 218) “o concreto é concreto porque é a síntese de múltiplas determinações, logo, unidade do diverso”. Assim, os nexos entre trabalho e educação são apreendidos à luz das categorias totalidade, mediação, contradição, particularidade, singularidade e universalidade10. Não menos importante é a categoria práxis. "A práxis do homem não é atividade prática contraposta à teoria; é determinação da existência humana como elaboração da realidade" (KOSIK, 1976, p. 202).
Por ser a prática o elemento material e simbólico que funda o caráter terreno do pensamento, nunca é demais dizer que “é na práxis que o homem tem de comprovar a verdade” (MARX, 1984, p. 107-108). Isso porque “a questão de saber se cabe ao pensamento humano uma verdade objetiva não é uma questão teórica, mas prática” (MARX, 1984, p. 107-108). Dessa e de outras premissas fundantes do materialismo histórico, entre elas a da centralidade do trabalho na formação humana, deriva a premissa do princípio educativo do trabalho, muito cara às pesquisadoras e aos pesquisadores do campo Trabalho-Educação. Isso nos leva a reflexões de ordem epistemológica acerca dos processos de produção de saberes que se tecem nos interstícios das diversas esferas da vida real e concreta, no próprio trabalho, portanto, junto a homens e mulheres de carne e osso, como nos ensina Marx.
9 Consultar produção científica do professor Doriedson do Socorro Rodrigues (UFPA) e de seus orientandos como, por exemplo, o texto: MIRANDA, Ellen; RODRIGUES, Doriedson. Saberes, [re]construção de identidades e contradição trabalho-capital em comunidade quilombola. Trabalho Necessário, v. 18, p. 212-234, 2020.
10 Para uma primeira aproximação com as categorias do método, sugere-se a leitura do texto KUENZER, Acácia. Desafios teórico-metodológicos da relação trabalho-educação e o papel social da escola. In: FRIGOTTO, Gaudêncio (Org.). Educação e crise do trabalho: perspectivas de final de século. Petrópolis: Vozes, 1998.
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Dado que a atividade prática se constitui como fonte de produção de saberes/conhecimentos é importante nos perguntar sobre os saberes/conhecimentos produzidos no cotidiano de vida e trabalho de jovens, idosos, adultos e crianças11. Inspiradas em Thompson, podemos dizer que o “cotidiano de vida e trabalho” é constituído pela materialidade histórica das experiências sentidas, vividas e percebidas, nas quais as pessoas
[...] não experimentam sua própria experiência apenas como ideias, no âmbito do pensamento [...]. Elas também experimentam sua experiência como sentimento e lidam com esse sentimento na cultura, como normas, obrigações familiares e de parentesco, e reciprocidades, como valores ou (através de formas mais elaboradas) na arte ou nas convicções religiosas. (THOMPSON, 1981, p. 189).
Afinal, que experiências da classe trabalhadora temos investigado? Com a intenção de contribuir para o debate no V Intercrítica, sinalizamos que o GT-09 é parte integrante do campo de estudos e pesquisas em Trabalho-Educação. Nesse sentido, torna-se importante olharmos para o campo para perceber que objetos teóricos e empíricos do complexo universo de experiências da classe trabalhadora o GT tem conseguido abarcar. Mais do que temas e objetos, trata-se de “campos do real” que, quando desvelados, adensam e ampliam nossa práxis política.
Nesse processo de nos conhecer e nos reconhecer como resultado de um longo processo histórico (GRAMSCI, 1986), a produção do GT-09 e mesmo a do campo Trabalho-Educação tem sido objeto de análise de diversos pesquisadores e pesquisadoras. Eunice Trein e Maria Ciavatta (2009) identificam que, como expressão “primeira” e situado institucionalmente no campo Trabalho-Educação, o reconhecimento do GT-09 “se fez com clara explicitação da busca da afirmação política dos setores progressistas da sociedade civil em processo de democratização nos anos de 1980 e de críticas às políticas neoliberais nos anos de 1990.” E, no interior do próprio campo, num primeiro momento, um movimento de legitimação do materialismo histórico foi feito por lideranças “incisivas e permanentes”. As autoras indicam também a existência, em momentos posteriores, de questionamentos às análises marxianas, expressas por pesquisadores e pesquisadoras frequentadores do GT-09.
11 Ver, por exemplo, VENDRAMINI, Célia Regina. A contribuição de E. P. Thompson para a apreensão dos saberes produzidos do/no trabalho. Educação Unisinos, v. 10, n. 2, 2006. Disponível em: https://revistas.unisinos.br/index.php/educacao/article/view/6051. Acesso em 14 de fevereiro de 2023.
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Desde então, o campo ultrapassou as fronteiras do GT-09 e, também podemos dizer, passou a agrupar pesquisadores e pesquisadoras com outras cumplicidades objetivas variadas no espectro do materialismo histórico dialético, às vezes em diálogo com ele, às vezes para além dele. Se um campo científico se movimenta de acordo com interesses internos e pressões externas a ele, a hipótese é que sim. Podemos nos perguntar que lugar ocupa o GT-09, atualmente, como expressão institucional relevante do campo científico Trabalho-Educação? Em que medida ele expressa o “movimentar-se” do campo e exerce um efeito propulsor para a produção científica referente aos mundos do trabalho, especialmente na América Latina, tornando-a “força material” para o exercício da práxis crítica nas relações entre trabalho e educação?12
No II Intercrítica, ocorrido no Pará em agosto de 2014, fomos convidadas, Lia Tiriba (UFF), Naira Lisboa Franzoi (UFRGS) e Maria Clara Bueno Fischer (UFRGS), a compor a mesa intitulada Culturas do trabalho, movimentos sociais e produção de saberes. Nossas exposições apontavam, já naquele momento, interrogações acerca da necessidade de o GT ampliar os objetos empíricos e teóricos de suas pesquisas, abrindo-se ao diversificado escopo do campo Trabalho-Educação. Chamamos a atenção, à época, para objetos diretamente relacionados às relações Trabalho- Educação, a nosso ver, pouco analisadas. Tratamos da pluralidade dos sujeitos- trabalhadores, de seus trabalhos, de suas culturas e de seus saberes produzidos nas experiências do “fazer-se” da classe trabalhadora (TIRIBA, 2015). Evidenciamos a relevância do objeto “saberes” como expressão de resistência e criação dos e das trabalhadoras na luta de classes, do seu protagonismo tanto nas experiências de trabalho assalariado, como nas de trabalho associado, indicada por pesquisadoras e pesquisadores do campo, embora com pouca expressividade específica no GT-09 (FRANZOI; FISCHER, 2015). Estávamos em 2014 e, de certa forma, retomávamos Gaudêncio Frigotto que, em 1988, afirmou que o grande desafio colocado para o GT- 09 era "apreender as mediações no plano econômico-social, cultural, simbólico e educativo" (FRIGOTTO, 1988, p. 50) que articulam as lutas das classes trabalhadoras, as formas de organização do trabalho e os processos educativos que emergem da organização dos excluídos, a exemplo do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra
12 Para conhecer a história do GT-09 é fundamental ler as teses de Alexandre Maia do Bomfim (2006) e de Jaqueline Ventura (2008), além das produções de Acácia Kuenzer (1991), Eunice Trein e Maria Ciavatta (2009), e Eunice Trein e Iracy Picanço (1995).
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(MST) e das experiências chamadas de “economia popular” ou “economia popular solidária”. Continuamos, desde então, contribuindo com o enfrentamento desse desafio, seja do ponto de vista teórico-metodológico, seja como práxis política.
No evento do V Intercrítica, realizado em 2022, trouxemos “à baila” alguns indicadores da produção do GT ao longo de sua história relacionados a formas de trabalho para além do trabalho-mercadoria13. Incluímos também em nossa exposição as temáticas do minicurso e dos trabalhos apresentados no GT, em outubro de 2021, durante a 40ª reunião nacional da ANPED.
Observando especificamente o ano de 2021, dos 30 trabalhos e 5 posters apresentados no GT-09 durante a 40ª reunião, somente seis trabalhos e um pôster não tratavam de questões relacionadas à educação escolar, políticas educacionais e ao Estado, no sentido gramsciano de Estado Ampliado. Constatamos que 80% dos trabalhos apresentados na ocasião tratavam de Educação profissional, Ensino Médio Integrado, Contrarreforma do Ensino Médio; Trabalho docente; Empresariamento da educação; EAD no Ensino Superior; Trajetória de egressos, Formação profissional continuada; Pronatec. Não destoando das reuniões anteriores, poucos trabalhos diziam respeito a outras temáticas/objetos de pesquisa. Observamos também que, embora o minicurso tenha tratado das relações entre seres humanos e natureza mediadas pelo trabalho, apenas um trabalho tratou diretamente da questão, e outros três permearam a temática.
Lembramos que já na 21ª Reunião Nacional da ANPED, em 1998, Lia Tiriba, em conjunto com Marcos Arruda, participou da mesa “Economia solidária, formação humana e a crise do trabalho assalariado: horizontes alternativos às relações sociais capitalistas”. Na mesa, realizou reflexões sobre trabalho associado ou produção associada, na perspectiva marxista de “sociedade dos produtores livres associados”. Em 2003, o trabalho encomendado do GT-09, intitulado “As desigualdades ampliadas e a construção de alternativas”, apresentado pelo professor Antônio Cattani (UFRGS), trazia o tema da economia solidária. As experiências de trabalho associado ganhavam corpo e começavam a fazer breves “aparições” no GT. Porém, quanto aos trabalhos apresentados no GT-09, entre os anos de 2003 a 2021, somente quatro versaram sobre trabalho associado. No entanto, no mesmo período, no GT Movimentos Sociais
13 Foram considerados os documentos disponíveis na página da ANPED, desde a 23ª Reunião Anual, já que o conteúdo das anteriores não está disponível online. Tal mapeamento serviu para visualizarmos a circulação de conhecimento no GT.
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foram apresentados nove trabalhos com a temática e no GT Educação Popular, oito. Além disso, não há registro de sessões especiais, rodas de conversa e outras modalidades que, de forma articulada entre GTs, tenham, até o momento, discutido o tema em pauta.
Como pontuamos, a produção acadêmica e científica do campo Trabalho- Educação não se reduz àquilo que se expressa nos espaços institucionais do GT-09 da ANPED. A constatação de que temos privilegiado este ou aquele objeto de pesquisa pode ser redimensionada se olhamos para os periódicos científicos com os quais o GT tem afinidade temática e/ou teórica, já indicados anteriormente. A Revista Trabalho Necessário (TN), por exemplo, é um dos lugares que abriga temáticas e objetos de pesquisa que nos ajudam a evidenciar a amplitude dos campos do real que se manifestam no interior do campo Trabalho-Educação. Embora diversos números da TN14 tenham sido organizados por pesquisadores e pesquisadoras que compõem o coletivo do GT-09 da ANPED, essa acentuada produção contrasta com a pouca intensidade de determinadas temáticas/objetos de pesquisa trabalhadas no interior do GT-09. Foram temas trabalhados nas edições temáticas da revista: Trabalho e educação em comunidades tradicionais; Trabalho, Movimentos Sociais e Educação; História e Historiografia em Trabalho-Educação; Lutas no campo e o comum na América Latina; Trabalho, cultura e políticas educacionais na Amazônia; Trabalho, gênero e feminismos; Educação de jovens e adultos trabalhadores: processos de luta e resistência; Questão Agrária e lutas no campo: experiências camponesas. Na ocasião do V Intercrítica, em agosto de 2022, indo ao encontro do minicurso ministrado pelo GT-09 na reunião nacional da ANPED em 202115, encontrava-se em processo de produção a edição número 43 da revista, um número temático relativo à Trabalho, natureza e educação ambiental crítica16.
No V Intercrítica, chamamos a atenção de que a “força material” de ideias de pesquisadores e pesquisadoras do campo se expressa também em produções científicas e assessorias que alimentam a atuação de ativistas de movimentos sociais populares, como é o caso do movimento da economia popular e solidária. Essa
14 Ver no site da Revista Trabalho Necessário os números 31,33,34,35,36,37,38,40 e 41.
15 Curso ministrado pelos professores Doriedson do Socorro Rodrigues (UFPA) e Maria Clara Bueno Fischer (UFRGS).
16 Os nomes dos/as organizadores/as dos números temáticos da Revista Trabalho Necessário podem ser acessados em https://periodicos.uff.br/trabalhonecessario
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produção do campo nutre os movimentos numa dimensão teórico-prática necessária à formação de trabalhadores e trabalhadoras para o trabalho associado, formação esta que pouco se estende à escola17. Afinal, para o exercício da autogestão do trabalho e da vida social – fundamento estratégico do movimento de economia popular e solidária – é mister a construção de sujeitos criadores da história e de uma nova ordem econômica e cultural, “o que pressupõe uma relação estreita entre teoria e prática, entre o quefazer no chão-da-produção e os fundamentos filosóficos e científico-tecnológicos relativos ao mundo do trabalho” (TIRIBA, 2001, p. 182). Certamente a escola é fundamental para a formação ético-política e técnico-produtiva da classe trabalhadora, para ela se tornar dirigente na sociedade dos produtores livremente associados e, conforme Gramsci (1982), controlar os que, transitoriamente, a dirigem.
Emerge das constatações e interrogações anteriormente explicitadas a necessidade de um esforço de produzir hipóteses provisórias e, com certeza, novas perguntas. Nesse sentido, no tópico a seguir, aventamos a hipótese – como hipótese sucessiva (THOMPSON, 1981) – de que, para o campo Trabalho-Educação e, em particular, para o GT-09, está posto o desafio de adentrar na complexidade dos mundos do trabalho. Essa questão nos remete à materialidade da categoria classe social, considerando a diversidade de atividades de trabalho e de racionalidades econômicas que nos indicam a relação histórica entre trabalho e educação como totalidade social.
17 Tem havido esforços, ainda tímidos, de inserir na formação escolar de jovens e adultos trabalhadores, especialmente na modalidade EJA, conteúdos fundamentais relacionados ao trabalho associado e autogestionário. Indicamos, por exemplo, a publicação “Cadernos EJA ECOSOL. O trabalho associado e autogestionário na Educação de Jovens e Adultos (Material Pedagógico)”. A publicação, escrita pelas professoras Lia Tiriba e Maria Clara Bueno Fischer, conta com seis cadernos com as seguintes temáticas: 1) EjaEcosol na teoria e na prática; 2) EjaEcosol: Economia Solidária e mundo(s) do trabalho; 3) O trabalho associado e autogestionário na Educação de Jovens e Adultos; 4) EjaEcosol: Economia Solidária, processos de trabalho e processo educativo; 5) As feiras de troca como espaço de aprendizagem de novas relações sociais; 6) Desenvolvimento Local, tecnologias Sociais e finanças solidárias. Os cadernos estão disponíveis em: http://www.socioeco.org/bdf_fiche-publication- 383_pt.html. Importante destacar iniciativas que, de acordo com levantamento de dados que iniciamos em 2022 e que ainda está em fase de consolidação, os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia têm incorporado o tema da economia solidária em documentos institucionais, projetos de pesquisa, extensão e cursos de formação.
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Nos (sub)mundos do trabalho estão fortemente presentes os “empreendedores-de-si”, cujas relações de trabalho podem, ou não, ser atravessadas por vínculos empregatícios. São pessoas que experienciam a dramática exploração pelo capital. Estamos falando do fenômeno do empreendedorismo que, de acordo com o Global Entrepreneurship Monitor (2018), envolve 52 milhões de pessoas que compõem a força de trabalho no Brasil. Ferraz e Ferraz (2022, p. 107) analisam a
transição do espírito empreendedor capitalista para o empreendedorismo como um fenômeno ideológico relacionado com as mudanças estruturais do capital após 1970, demonstrando o descolamento do conceito chave de sua base material, quando o espírito do capitalismo é ensejado também pela classe trabalhadora.
Eles destacam que o espírito empreendedor se desloca de uma classe a outra, ocultando, de forma sórdida – extração de mais valor sem a figura do patrão – a ampliação da exploração da classe trabalhadora! Rui Braga (2021, s/p) afirma que “não é o trabalho por conta própria, pelo menos não no sentido autêntico do termo, que é você trabalhar para si. Na verdade, o que se tem é o trabalho para uma empresa que diz que você é um empreendedor e não um trabalhador.” Tal fenômeno é, por certo, central para analisarmos a luta de classes e a própria classe, no estágio atual do capitalismo.
É possível observar o impacto do “espírito empreendedor” para a organização e a luta da classe trabalhadora quando atentamos para o caso dos entregadores de motocicletas, predominantemente trabalhadores agenciados por aplicativos18 e sem vínculos trabalhistas. Somam algo em torno de 315 mil trabalhadores no Brasil! O líder dos trabalhadores-entregadores, Paulo Roberto da Silva Lima, conhecido como Paulo Galo, em entrevista ocorrida em 26 de janeiro de 2022, explicita de forma cristalina como a ideologia do empreendedorismo atravessa essa categoria de trabalhadores e trabalhadoras, dificultando sua organização coletiva. Diz ele:
O que eu busco hoje, ao tentar nossa organização, é muito mais essa coisa de aliança de movimento. Trazer as pessoas para próximo, para criar relacionamento, para depois nós definirmos outra coisa. Porque,
18 No final de 2021, das 1,5 milhão de pessoas que estavam trabalhando na chamada Gig Economy no setor de transportes do país, 61,2% eram motoristas de aplicativo e/ou taxistas; outros 20,9% entregavam mercadorias via motocicletas e 14,4% estavam atuando como mototaxistas. Os demais realizavam entrega de mercadoria via outro meio de transporte (GÓES; FIRMINO; MARTINS, 2022).
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primeiro, a gente precisa voltar a se conectar, porque está todo mundo individualizado; está todo mundo ‘microempreendedor individual’ entendeu? Não é mais trabalhador. (Informação verbal)19.
Diz, ainda, referindo-se a ideias que circulam entre os entregadores:
Legal mesmo não é ser trabalhador. O ‘legal’ mesmo é ser empreendedor! É ser empresário. A ‘sua’ [a do trabalhador] não é para ser trabalhador e lutar pelos trabalhadores.
Quem está ‘atrapalhando’ o empreendedor a empreender é o Estado; tem que deixar o mercado livre e tal... Essas ideias estão todas no meio dos entregadores mano! Mercado livre! Oh mercado livre! (Informação verbal).
Em que medida essa e outras experiências de trabalho, como a dos entregadores-de-qualquer-coisa, têm sido interrogadas por pesquisadores e pesquisadoras do campo Trabalho-Educação, em particular do GT-09?20 Que culturas de trabalho estão sendo processadas? Historicamente, no cotidiano do trabalho, como homens e mulheres constroem suas “estruturas de sentimento” (WILLIAMS, 1979) em relação à adesão/resistência ao capital e em particular à classe?
Como economia e cultura se entrecruzam nas dificuldades e nas possibilidades de construção de uma perspectiva de classe? No trecho da entrevista citado a seguir, chama nossa atenção a ausência da memória e da cultura do trabalho assalariado como parte importante na construção subjetiva do “ser classe trabalhadora”.
Os motoboys começam a surgir mesmo, com força ali nos anos 1990. A gente já surge precarizado. Eu, meu primeiro trabalho foi de carteira registrada. Já era numa empresa terceirizada. As empresas de motoboy já são empresas terceirizadas, ou seja, esses trabalhadores já têm uma lembrança da carteira de trabalho. Essa carteira de trabalho, na lembrança dos motoboys, já não é uma figura tão forte, porque já está defasada. Ali, pela terceira geração [...], agora com a chegada dos aplicativos a gente virou o ‘gás’. Então, o que era sólido passou a ser líquido e agora o que a gente tem, no trabalho, é gás. Ou seja, o que acontece com o gás? Se água já é difícil você segurar na cuia da mão, imagina o gás! O gás evapora. O gás vai para lá vai para cá. E aí o que acontece? Acontecem pequenas explosões.
19 Entrevista concedida por Paulo Galo ao jornalista Breno Altman, em 26 de janeiro de 2022. O material pode ser visto em https://www.youtube.com/watch?v=NrvP1tYVf6M Acesso em 01/02/2022.
20 Interessante observar que o tema do empreendedorismo não tem sido objeto sistemático de reflexão
do GT Trabalho-Educação: somente três trabalhos entre 2003 e 2021 abordaram a temática nas reuniões da ANPED. Ainda que, desde pelo menos o início dos anos 2000, a educação para o empreendedorismo (na escola e no próprio processo de trabalho) venha contribuindo na conformação de um trabalhador de “novo” tipo. Trata-se de um processo, cujas implicações atravessam a realidade objetiva das relações sociais de produção e os processos de educação geral e profissional da classe trabalhadora dentro e fora das instituições escolares, além de corroborarem, sobremaneira, para a reprodução ampliada do capital.
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O movimento dos entregadores vai ter isso sempre: pequenas explosões. A ideia é tentar organizar o gás para fazer tudo explodir de uma vez e isso é uma tarefa que, às vezes, parece quase impossível… (Informação verbal).
Devido à generalização da precarização do trabalho, torna-se cada dia mais difícil distinguir o que convencionalmente chamamos de mercado formal e informal de trabalho. É importante pontuar que, no capitalismo, mesmo com a garantia de todos os direitos sociais, o trabalho assalariado, ao se configurar como trabalho-mercadoria, é trabalho alienado e, portanto, trabalho precário, vida precária, produtor de desigualdade social, estrutural. Ao reduzir o conjunto dos trabalhadores à condição de empregados ou desempregados, de colaboradores, de empreendedores e de outras denominações que denotam menor ou maior grau de precariedade, os economistas circunscrevem a produção social da vida à lógica das relações sociais capitalistas, sugerindo que o trabalho é necessariamente (e unicamente) uma mercadoria que deve ser posta à venda no mercado (TIRIBA, 2004). O fato é que, mesmo mantendo algum tipo de vínculo empregatício, uma grande parte dos trabalhadores e das trabalhadoras “obtém seus rendimentos fora e dentro da empresa, construindo uma complexa rede de atividades/rendimentos salariais que garantem a sua sobrevivência” (MALAGUTI, 2001, p. 152). Por ser
um ‘trabalhador assalariado’ e, simultaneamente, um ‘trabalhador independente’, seu status de trabalhador deriva-se de uma experiência de vida seguidamente complexa e multifacetada, cujas variantes ocasionais interpenetram-se, definindo e redefinindo o que agora se faz e, seguidamente, do que pretende fazer. (MALAGUTI, 2001, p. 166).
Tendo em conta essas experiências de trabalho multifacetadas, não menos importante é registrar que elas compõem o “mundo do trabalho não-assalariado” e/ou não mercantil. São aquelas atividades que, legalizadas ou não, denominamos economia popular. Referimo-nos ao conjunto de práticas econômicas e culturais que se configura como estratégia de trabalho e de sobrevivência, que é fruto da criatividade de homens e mulheres trabalhadoras e que tem como racionalidade econômica e cultural garantir não apenas a vida biológica, mas a reprodução ampliada da vida21. Quando associadas aos movimentos sociais populares, a organizações não
21 Para mais detalhes sobre o conceito consultar: TIRIBA, Lia. Reprodução ampliada da vida: o que ela não é, parece ser e pode vir a ser. OtraEconomía, v. 11, n. 20, jul. - dic., 2018.
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governamentais, ou mediadas por políticas públicas, essas práticas econômicas e culturais costumam ser denominadas economia popular solidária, economia solidária ou economia social e solidária.
Para dar uma ideia da sua materialidade, de acordo com o Atlas Digital da Economia Solidária de 2013, havia à época, no Brasil, 30.000 empreendimentos econômicos solidários (EES), que envolviam um milhão e quatrocentos mil sócios. Esse número nos dá uma ideia da concretude do movimento e de seu crescimento recente, já que 50% dos EES iniciaram suas atividades em 2005. É relevante destacar, que há um conjunto de Redes de Economia Solidária que articulam empreendimentos solidários na produção, na comercialização, na distribuição e no consumo. Outro dado que chama a atenção é o crescimento de bancos comunitários, cuja organização se baseia nos princípios da economia solidária. Atualmente, são mais de 100 bancos distribuídos em todas as regiões do Brasil que se organizam na Rede Brasileira de Bancos Comunitários.
Mas, o que sabemos de suas experiências de trabalho? Que valores atravessam sua cultura do trabalho? Que novos saberes são produzidos? Que contradições são produzidas? Afinal, por que não considerar que esses trabalhadores e essas trabalhadoras, que não vivem diretamente do trabalho assalariado, mas do trabalho associado, compõem a classe trabalhadora?
Entre as muitas perguntas que não querem calar, seria interessante refletir sobre o que significa afirmar que o “modo de reprodução espiritual da realidade humano-social”, como diria Kosik (1976), tem como ponto de partida a crítica da economia política? Se a economia política se constitui como ciência, ou como o estudo sobre as maneiras de produzir, distribuir e consumir em sintonia com um determinado modo de produção da existência humana, não resta dúvida de que Marx se referia à crítica da economia política “burguesa”. Na verdade, toda economia é política, portanto, a que economia estamos nos referindo? Se a economia diz respeito à ciência ou ao estudo das formas de produzir, distribuir e consumir, a economia política nos remete às determinações gerais que constituem certo modo de produção da existência humana. Entre tantas determinações – entendidas como limites e, ao mesmo tempo, como pressões (WILLIAMS, 1979) – estão os espaços/tempos do trabalho associado e de outros trabalhos de produzir a vida associativamente (TIRIBA; FISCHER, 2013), nos quais realidade e utopia se constroem, simultaneamente, na
perspectiva da propriedade e da posse coletiva dos meios de produção da vida. Assim,
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o entendimento das relações trabalho-educação compreende também o entendimento da racionalidade das atividades de trabalho do conjunto de homens e mulheres que compõe a classe trabalhadora. Na luta pela construção da hegemonia é preciso considerar, inclusive, “certas coisas que acontecem fora do lado dominante” (WILLIAMS, 2011, p. 59).
Se, de acordo com E.P. Thompson (1981), as experiências de classe se constituem como termo médio entre ser social e consciência social, valeria a pena identificar as experiências multifacetadas indicadas por Malaguti (2001). Além de ter em conta o que sugere Thompson em Algumas observações sobre classe e consciência de classe:
A classe se delineia segundo o modo como homens e mulheres vivem suas relações de produção e segundo a experiência de suas situações determinadas, no interior do ‘conjunto de suas relações sociais’, com a cultura e as expectativas a eles transmitidas e com base no modo pelo qual se valeram dessas experiências em nível cultural. (THOMPSON, 2001, p. 277).
Na perspectiva de um conceito ampliado de classe, não custa lembrar que, do ponto de vista das relações entre trabalho e capital, na atualidade, o trabalho associado está em disputa com o trabalho do empreendedor de si mesmo! No entanto, vale perguntar por que no campo Trabalho-Educação e, em particular no GT-09, aparecem tão poucas pesquisas sobre empreendedorismo, trabalho associado e sobre práticas sociais que, embora atravessadas por mediações de segunda ordem do capital, anunciam relações econômicas, culturais e educativas que estão em disputa e/ou se contrapõem à lógica do capital? Trata-se, entre outras, de práticas vinculadas aos movimentos sociais que estavam sendo criminalizadas no governo Bolsonaro (2019-2022), perseguição que exigiria de nós uma práxis política de grande envergadura. Também valeria perguntar onde estarão tais pesquisas? Teriam (ou têm), pesquisadores e pesquisadoras, encontrado em outros Grupos de Trabalho da ANPED espaço para tratar de investigações sobre tais práticas sociais? Por quê?
Como indicamos no início deste texto, somos movidas por perguntas que nos convidam a adentrar diversos campos do real que compõem o mundo do trabalho e
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seus submundos. Tendo em conta o “método da lógica histórica”, que nada mais é do que o método da economia política, em que se faz imprescindível o diálogo disciplinado entre conceito e evidência interrogada, estaríamos frente à necessidade teórico-prática de reivindicar a ampliação – elasticidade – do conceito de classe trabalhadora.
Perguntamo-nos, em última instância, de que maneiras o modo como E.P. Thompson escreve a história pode nos ajudar a conduzir um trabalho de investigação que evidencie o fazer-se da classe trabalhadora como um processo histórico estruturado, mediado pela experiência humana, em particular a experiência de classe?22 Na pesquisa em Trabalho-Educação, na perspectiva do materialismo histórico e dialético,
se detemos a história num determinado ponto, não há classes, mas simplesmente uma multidão de indivíduos com um amontoado de experiências. Mas se examinarmos esses homens durante um período adequado de mudanças sociais, observaremos padrões em suas relações, suas ideias e instituições. (THOMPSON, 1987, p. 11-12).
Para refletir sobre classe, luta de classes e consciência de classe, nunca é demais lembrar o que diz Thompson sobre as determinações da agência humana no processo histórico estruturado:
Os homens e mulheres também retornam como sujeitos, dentro deste termo [experiência] – não como sujeitos autônomos ‘indivíduos livres’, mas como pessoas que experimentam suas situações e relações produtivas determinadas como necessidades e interesses como antagonismos, em seguida ‘tratam’ essa experiência em sua consciência e sua cultura (as duas excluídas pela prática teórica) das mais complexas maneiras (sim, ‘relativamente autônomas’) e em seguida (muitas vezes, mas nem sempre, através de estruturas de classe resultantes) agem, por sua vez, sobre sua situação determinada. (THOMPSON, 1981, p. 182).
Historicamente determinada, “toda a luta de classes é ao mesmo tempo uma luta acerca de valores” (THOMPSON, 1981, p. 190), valores estes que são contraditórios entre trabalhadores e trabalhadoras em seus processos também contraditórios de fazer-se classe. Nessa dinâmica, “quando uma pessoa se junta ou atravessa um piquete grevista, está fazendo uma escolha de valores, mesmo que os
22 A temática já foi objeto de um minicurso realizado no âmbito do GT-09 intitulado “Trabalho, classes sociais e experiência histórica na obra de E. P. Thompson”, ministrado pelas professoras Célia Regina Vendramini (UFSC) e Lia Tiriba (UFF), em 2011.
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termos da escolha e parte daquilo que a pessoa escolhe sejam social e culturalmente determinados” (THOMPSON, 1981, p. 194). Da mesma maneira ocorre quando homens e mulheres participam de atividades de trabalho com distintas racionalidades econômicas.
À guisa de uma História global do trabalho (LINDEN, 2009), queremos enfatizar a necessidade de nós, pesquisadores e pesquisadoras, tornarmos ainda mais visível o conjunto de atividades de trabalho que compõem o diversificado e complexo mundo do trabalho. Buscando superar não apenas o “eurocentrismo”, bem como o “nacionalismo metodológico”, que toma o Estado como categoria básica de análise da pesquisa sobre história do trabalho, para Van der Linden (2009, p. 22-23),
a concepção de ‘classe trabalhadora’ é também digna de um estudo crítico. Parece que este termo foi inventado no século XIX para identificar um grupo dos chamados trabalhadores ‘respeitáveis’, em oposição a escravos e outros trabalhadores sem liberdade, os auto empregados (pequena-burguesia) e pobres excluídos, o lumpemproletariado. Por diversas razões, as quais não posso discutir agora, esta interpretação não é apropriada para o hemisfério sul.
Nesse horizonte, como sugere Eric Hobsbawm (1987, p. 32) em Mundos do trabalho, os historiadores deveriam olhar não apenas para o trabalho, mas para os trabalhadores reais. “Em que sentidos e direções desejamos transformar o mundo, ou: nossas pesquisas implicam transformação? Corremos o perigo de esquecer que o sujeito e objeto de nossas pesquisas são seres humanos?”, questiona o autor. Na sequência, Hobsbawm faz a contundente afirmação, com a qual concordamos: “Para muitos de nós o objeto final de nosso trabalho é criar um mundo, no qual os trabalhadores possam fazer sua própria vida e sua própria história, ao invés de recebê-las de terceiros, mesmo dos acadêmicos.”
É o que, nas palavras de Thompson (1981), significa olhar para a agência humana. Assim, torna-se necessário entender a história como processo estruturado e, não menos importante, as relações entre estrutura-sujeito, tendo em conta a experiência humana como termo médio entre ser social e consciência social (THOMPSON, 1981). Isso implica que, além das determinações do capital, deveríamos olhar, ainda mais, para o trabalho e para as formas de luta das mulheres e dos homens trabalhadores que são sujeitos, protagonistas e coadjuvantes do processo histórico.
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Na direção de uma conclusão, insistimos que nossas interrogações sobre “ausências” de objetos e temas no GT-09 não dizem respeito a apenas contemplar esta ou aquela temática de pesquisa. O que está em jogo diz respeito a atentarmos para aquilo que Kosik (1976) diz no clássico A dialética do concreto quanto às dimensões da realidade humano-social que podem nos ajudar a pensar o real como concreto-pensado. Isso porque são múltiplos os campos do real que nos permitem compreender a realidade humano-social na sua totalidade histórica, portanto, em movimento. Talvez aqui esteja o primeiro elemento de nossa contribuição à uma crítica da pesquisa em Trabalho-Educação: revisitar esse pressuposto apontado por Kosik (1976).
O segundo elemento, evidentemente articulado ao primeiro, diz respeito às relações entre economia e cultura. Nós do GT Trabalho-Educação (ao invés de trabalho E educação) que nos orientamos pelo materialismo histórico-dialético temos buscado, no desafiante processo de construir o concreto pensado, o que Thompson (1981) chamou de “método da lógica histórica”, que nada mais é do que um modo de fazer pesquisa que, literalmente, rompe com a perspectiva estruturalista que ainda ronda em nossos corações e nossas mentes. Talvez Thompson nos perguntasse: em que medida conseguimos captar a unidade indissolúvel entre superestrutura e infraestrutura e a unidade entre economia e cultura? E talvez nos dissesse que é pela experiência (de classe) que homens e mulheres trabalhadoras vão se constituindo como classe trabalhadora. Afinal, trata-se da formação da classe trabalhadora como processo histórico estruturado! Do fazer-se classe no seio das contradições capital- trabalho, como agência que se produz e, ao mesmo tempo, produz as contradições! No movimento de luta se expandem e se contraem as relações entre “base e superestrutura”! Em que se percebe a luta titânica entre o velho que não quer morrer e o novo que insiste em nascer. Não existe classe sem luta de classes, alimentada pelas experiências do presente e do passado de homens e mulheres trabalhadoras.
Nessa trilha de reflexão consideramos necessário enfrentar, decorrente do método e das evidências históricas, o desafio de expandir seu/nosso olhar para as múltiplas formas como o trabalho e os trabalhadores e as trabalhadoras, no seio das contradições capital-trabalho, apresentam-se na contemporaneidade e, assim, interrogar, sempre e mais uma vez, sobre como se dão as relações trabalho- educação. Isto é, nos interrogarmos sobre como a classe trabalhadora vem se
constituindo – e se educando – nessas relações, em que homens e mulheres
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trabalhadoras vão se fazendo nos interstícios das determinações do capital, mediados pelas experiências humanas e, em particular, pelas experiências de classe. Parece- nos que “bate à nossa porta” dar continuidade ao desafio teórico-metodológico de ampliar o conceito de classe, de forma a incorporar uma gama ampla de tipos de atividades, de trabalhadores, de trabalho mercadoria e de trabalho não mercadoria.
No processo de conhecer a nós mesmo como resultado de um longo processo histórico (GRAMSCI,1999), torna-se necessário exercitar a crítica ao GT-09 e ao campo Trabalho-educação, entendidos como expressões de um campo científico marxista. Para Kosik (1976, p. 28), “o conhecimento não é contemplação. A contemplação do mundo se baseia nos resultados da práxis humana”, pois só é possível conhecer o mundo à medida que criamos a realidade humana e nos comportamos como seres práticos. Por isso, insistimos que um dos desafios da práxis política é, na prática, considerar que “quanto maior o número de campos que ela [a ciência] descobre e descreve, tanto mais transparente se torna a unidade material interna dos mais diversos e mais afastados campos do real” (KOSIK, 1976, p. 45).
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V.21, nº 44, 2023 (janeiro-abril) ISSN: 1808-799 X
Pedro Rossi 2
É um prazer e uma honra estar aqui com vocês, trazendo um pouquinho de Economia para um diálogo interdisciplinar. Proponho uma reflexão sobre o tema da economia e dos direitos humanos, incluído o direito à educação. Não me atrevo a me aprofundar nos temas relacionados à educação na presença de vocês, mas trago algumas leituras sobre educação provocadas pela economia. E uso meu lugar de fala de economista para criticar os economistas, evidentemente, não qualquer economista nem de qualquer teoria econômica, mas aquilo que considero responsável por uma boa parte dos nossos problemas hoje, que é o método da economia neoclássica ou economia ortodoxa3. A economia se tornou a ciência mais prestigiada dentro da ciência social por conta, justamente, de um método que naturaliza o sistema em que nós vivemos: naturaliza as desigualdades, naturaliza a pobreza, naturaliza o capitalismo enquanto sistema de organização social. A naturalização das relações sociais é a essência metodológica da chamada economia neoclássica.
Em sua origem a economia é uma ciência moral, era conhecida, inclusive, como Economia Política. Ou seja, é uma ciência que traz juízo de valor sobre as coisas, visões de mundo, critérios filosóficos para entender a realidade. Mas o movimento histórico da ciência econômica busca se livrar da moral, do juízo de valor, para se
1 Artigo recebido em 27/02/2023. Aprovado pelos editores em 15/03/2023. Publicado em 13/04/2023. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v21i44.57571.
Transcrição da conferência do Prof. Dr. Pedro Rossi na mesa de abertura do V INTERCRÍTICA (10 e 11 de outubro de 2022) que foi realizado nas dependências da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio da Fundação Oswaldo Cruz (EPSJV/Fiocruz), Rio de Janeiro – Brasil, e da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Rio de Janeiro - Brasil.
2 Doutor em Economia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Livre-docente do Instituto de Economia da Unicamp, São Paulo - Brasil. E-mail: pedrorossi@gmail.com.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/5097813133493059. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2504-9922. Homepage: www.pedrorossi.org.
3A ortodoxia geralmente se define pela escola de pensamento dominante nas principais universidades e outras instituições que hoje é a escola neoclássica (COLANDER et. al., 2004).
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apresentar como ciência neutra, supostamente livre de ideologias, tal como ciências naturais. E isso é fundamental para entendermos a realidade hoje.
Do ponto de vista político luta-se hoje, no Brasil e em vários lugares do mundo, contra uma visão de extrema direita que desumaniza o outro, é preconceituosa e autoritária. Já do ponto de vista econômico, luta-se contra uma visão que promove o individualismo, esvazia as responsabilidades coletivas e minimiza o papel do Estado. São duas visões que conversam e se reforçam; a visão econômica é o outro lado da moeda do fascismo que se instituiu não somente no Brasil, mas em várias partes do mundo. Ou seja, de um lado, há uma visão econômica que se diz apolítica, mas que promove o individualismo e que esvazia direitos, deveres e pactos de solidariedade. De outro lado, uma desumanização do outro pela linguagem da extrema direita.
Quando se desumaniza o outro, a ideia de direito se esvai. Afinal, o direito à educação ou qualquer direito humano não existe porque está escrito em uma folha de papel, mas porque passa por um reconhecimento social de que o outro é um igual, de que o outro tem direito. Se não há empatia e solidariedade para com o outro, não há sustentação social dos direitos humanos. E essa visão econômica tecnicista que a economia neoclássica traz contribui para esse processo.
Vejam que o termo “neoclássico” já pressupõe uma corrente anterior: Economia Política Clássica. Os neoclássicos rejeitam a teoria do valor-trabalho e trazem uma outra teoria do valor, a teoria do valor-utilidade e ao fazer isso acabam com esse “constrangimento”, digamos assim, da discussão sobre origem do valor e fogem do debate dos marxista. e os neoricardianos apontam que o valor produzido pelo trabalho é expropriado pelo capital. Assim a luta de classes é apagada da discussão econômica.
A teoria neoclássica traz também uma teoria nova de preços relativos e também uma teoria sobre a distribuição dos recursos na sociedade. Essa última teoria é fundamental para entendermos onde nos metemos e como nos organizamos hoje no capitalismo. Porque a teoria diz o seguinte: cada um recebe como rendimento o equivalente à sua produtividade marginal, ou seja, àquilo que contribui para o sistema produtivo. Em outras palavras, cada um ganha o que merece. E a instituição que julga o que cada um merece é o mercado. O mercado é, segundo essa teoria, a instituição que promove a “justiça” do ponto de vista de quem se apropria dos recursos produzidos pela sociedade.
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É como se existisse um jogo da concorrência entre as pessoas e o mercado fosse o juiz desse jogo, neutro e justo, que dá a cada um o que cada um merece. Se isso é verdade, a pobreza não é uma injustiça. Essa pode não ser desejável, mas não é uma injustiça. Isso parece uma caricatura, mas não é: os livros-texto de Economia trazem essa visão e ensinam que salários e outros rendimentos são iguais produtividades marginal do trabalho4. Ou seja, ganha mais quem merece ganhar mais, quem contribui mais para a sociedade. Assim se naturaliza uma situação de desigualdade na sociedade, a riqueza e a pobreza extremas.
Há um autor de manuais de economia, Gregory Mankiw (2013), que escreve um artigo acadêmico intitulado “Defendendo o 1%”. Esse artigo é muito interessante para quem quiser entender a lógica que justifica a desigualdade, é escrito no momento em que os Estados Unidos viviam uma crise social, pós-crise financeira de 2008, e havia um movimento intitulado “Somos 99%” (we are the 99%). Mankiw escreve defendendo o 1%, o céu da empresa, o banqueiro, que tem o salário de 10 milhões de dólares anuais. Segundo ele, esse banqueiro, merece o que está ganhando porque contribui para a sociedade, gere recursos de uma parcela enorme da sociedade e promove o bem estar para o conjunto da sociedade. E é essa visão que predomina, e irá justificar a desigualdade, hoje, na sociedade.
Eu já vi defesa, por exemplo, do salário do Neymar. O Neymar gera entretenimento para milhões de pessoas. Se ele receber mais, ele terá um incentivo para criar um drible novo, para jogar melhor e, assim, fará todo mundo feliz e beneficiará a todos, logo, merece seu rendimento. Como se o Pelé, se ganhasse mais, teria sido muito melhor do que foi. Veja como estamos naturalizando a desigualdade social e rendimentos altíssimos. E essa visão de Economia predominou pelo menos dos anos 1980 para cá, em vários planos, por exemplo, quando se fazem reformas para reduzir os impostos dos mais ricos, justifica-se, dizendo que os mais ricos contribuem mais para a sociedade e que taxá-los significa reduzir a eficiência do sistema. Ronald Reagan falava exatamente isso e reduziu os impostos de renda nos Estados Unidos.
4 A produtividade marginal do trabalho avalia o quanto a produção de uma empresa aumenta quando se adiciona uma unidade de trabalho. Para a teoria neoclássica, as empresas contratam trabalhadores de forma que o salário real, ou seja, o custo do trabalho seja igual ao ganho de produção que ele adiciona para a empresa.
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O imposto de renda nos Estados Unidos chegou a ter uma alíquota de mais de 90%. Uma alíquota nesse nível significa uma rejeição da sociedade à extrema riqueza. Ou seja, para quem ganha acima de um determinado valor, 90% do que ultrapassa esse valor vai para a sociedade organizar o gasto público, transferir renda, etc. Essa era uma visão consensual nos países centrais no pós-guerra, que foi completamente destruída por essa linguagem econômica que se torna avassaladora a partir de 1980. Quando se passa a assumir que taxar o mais rico para transferir para o mais pobre significa reduzir a eficiência do sistema. Dizem que é tirar de quem é eficiente e transferir para quem não é eficiente, para quem não vai trabalhar. Nós ouvimos muito isso com relação ao Bolsa-Família. Uma justificativa furada em termos de eficiência do sistema, mas se pensarmos bem, uma justificativa necessária pra dar legitimidade a um sistema econômico, assim como outros sistemas econômicos extremamente desiguais, como o escravocrata e o feudal, também tinham lá suas justificativas.
Aí perguntamos para um economista neoclássico: essa é a sua visão de justiça social? Vão dizer: “não”. O economista avalia que é mais eficiente para a sociedade fazer suas escolhas, logo não emite juízo de valor sobre justiça social. Mas isso é uma farsa, a economia neoclássica tem por detrás a filosofia utilitarista e a economia e não há uma única visão econômica do que é “mais eficiente”. Como toda ciência social, a economia suporta diversas teorias que representam visões de mundo, que convivem e disputam espaços. Não há como nas ciências naturais, uma evolução na qual paradigmas teóricos substituem o anterior.
Enquanto isso, muitos economistas se comportam como se a economia fosse uma ciência exata. Diante de qualquer reforma econômica, aparece um economista para dizer: “vai aumentar a eficiência do sistema”. Seja a reforma trabalhista que vai gerar mais emprego no futuro, pois gera incentivo, seja a reforma da previdência que vai alocar melhor os recursos e gerar crescimento e renda. Ou um corte de gastos públicos que supostamente melhora a confiança dos agentes, o investimento privado, etc. Reformas que atendem a interesses e são legitimadas por economistas com suas análises supostamente neutras.
A verdade é que a economia virou uma ciência que reduz a humanidade a um problema de cálculo atuarial, que ignora as classes sociais e congrega escolhas individuais para buscar uma situação de eficiência social. É o individualismo metodológico que explica os fenômenos sociais a partir de um indivíduo dotado de
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preferências, racionalidade cujo somatório de escolhas vai explicar o todo. Isso contrasta, por exemplo, com a análise marxista, que é um a análise holística, que vê o conjunto, as estruturas. Diferente também de uma análise keynesiana que também parte de cima, do macro, para explicar os fenômenos sociais, e não assume que o todo (sociedade) é a soma das partes (indivíduos).
Ao partir do indivíduo, a teoria econômica falsifica uma série de fenômenos sociais e transborda para todas as áreas sociais. O campo de estudo dos economistas vai desde o impacto da educação na vida das pessoas, passando pela preferência sexual do individuo, até a avaliação da discriminação racial.
Sobre esse último exemplo, o individualismo metodológico impede os economistas de entender o racismo enquanto um fenômeno estrutural. Se o ponto de partida é o indivíduo, o problema necessariamente está no indivíduo, e não nas estruturas, nas relações de classe e de poder. Assim, a discriminação racial é vista como uma falha no discernimento do individuo que, por exemplo, dá um emprego a uma pessoa menos eficiente por conta da cor da pele em detrimento de alguém mais eficiente. Ou seja, a discriminação é supostamente um problema de eficiência, e não um problema moral.
Sobre esse tema escrevi um texto em coautoria com Silvio Almeida e Waleska Batista5. A solução da teoria neoclássica para o problema da discriminação é promover o livre mercado, cujo aumento da concorrência vai reduzir a discriminação, não por questões morais, mas por questões de concorrência. Novamente, isso não é uma caricatura, essa é a defesa de Gary Becker, ganhador do prêmio Nobel de Economia, que dá origem à teoria da discriminação neoclássica e também a teoria do capital humano, outro tema extremamente controverso, muito caro à área de educação que será tratado à frente.
Nesse contexto, a economia se tornou uma ciência que desumaniza as relações sociais, como se essas fossem movidas naturalmente pelo auto interesse e como se o mercado fosse a instituição responsável por promover o bem-estar. Vou além, a teoria econômica predominante nos maiores centros de economia é incompatível com os direitos humanos. A Economia Neoclássica é uma ciência positiva, que vê o mundo como ele é e não como ele deve ser (normativo), já a
5 Almeida, Batista e Rossi (2020).
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abordagem dos direitos humanos é normativa: todos têm o direito à educação, é assim que o mundo deve ser.
Para o economista, a garantia de direitos é resultado de um bom funcionamento da economia de mercado e não um princípio apriorístico ou um valor intrínseco. O bem estar é resultado de uma alocação eficiente de recursos decorrente de iniciativas individuais e não de uma reivindicação normativa. Já na abordagem dos direitos humanos o bem estar é uma realidade construída pela ação política e deve ser garantida pelo cumprimento de direitos e deveres de cidadãos e de responsabilidades coletivas. A relação entre economia e direitos humanos é tema da primeira seção do artigo “Política fiscal e Direitos Humanos: redefinindo responsabilidade fiscal”6.
Voltemos ao exemplo da educação: em na sua grande maioria, os economistas defendem o acesso público para o caso da educação básica7. No entanto, o fazem por uma questão de eficiência e não por uma questão normativa. Na abordagem neoclássica, as falhas de mercado podem indicar atuação pública, e no caso da educação básica as chamadas externalidades positivas compensam o custo da ineficiência estatal8. Ou seja, defende-se educação básica a partir de uma conta de custo e benefício e não por um princípio moral. Assim, a abordagem neoclássica permite proposições de política progressistas, como a defesa de cotas, dentre outras. No entanto, a sua essência está contaminada por uma visão pró-mercado, de defesa do status-quo, na qual os direitos não cabem enquanto valores intrínsecos.
Vamos a outro exemplo: se nós pedirmos para um economista neoclássico avaliar a organização de uma comunidade Yanomami e sugerir modificações para aumentar a sua eficiência. O que essa avaliação vai propor, considerando o instrumental metodológico neoclássico? A instituição da propriedade privada, a divisão do trabalho e a mercantilização do excedente. Isso é um resultado inevitável da análise, porque a metodologia leva a isso.
É uma metodologia que busca avaliar como os recursos devem ser alocados a partir de uma dotação de fatores dada. Ou seja, dada uma determinada distribuição da propriedade, a abordagem avalia como organizar a economia. Notem duas coisas,
6 Rossi, David e Chaparro (2021).
7 Muitos desses, porém, defendem a prestação privada dos serviços com financiamento público por meio de vouchers.
8 Muito usado na teoria neoclássica, o conceito de externalidade é uma consequência indireta de uma determinada atividade, que pode ser positiva ou negativa. No caso da educação, a externalidade positiva advém do ganho de bem-estar da sociedade em decorrência da educação dos outros.
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primeiro não se questiona a distribuição de propriedade inicial, segundo, o mercado será sempre a referência para alocação dos recursos.
Nesse contexto, a economia neoclássica justifica a desigualdade de renda pela diferença de produtividade entre as pessoas. E, dentre os argumentos usados está a teoria do capital humano. Aliás, os economistas adoram falar de educação e usam o capital humano como justificativa para a desigualdade.
Uma forma de enfrentar a desigualdade é simplesmente usar os instrumentos do Estado para transferir renda e riqueza dos mais ricos para os mais pobres. Mas, de acordo com a economia neoclássica, isso afetaria o sistema de incentivos e reduziria a eficiência da economia. O caminho para redução da desigualdade teria que afetar o mínimo possível os instrumentos de mercado. Nesse contexto, o capital humano se coloca como panaceia para a redução das desigualdades. Como se, em um país desigual como o Brasil, dar treinamento às pessoas resolvesse o problema. Como se o problema não estivesse no sistema, mas nos indivíduos. Nessa visão, se há desigualdade é porque há diferenças nos atributos dos indivíduos, em última instância, há indivíduos merecedores e outros não, indivíduos “melhores” e “piores”. Vejam como a visão neoclássica se aproxima da visão política identificada com a ultradireita.
Nessa visão, a solução nunca será transformar o sistema, mas buscar remediar suas falhas, que são de responsabilidade dos indivíduos. Se não há emprego para 15 milhões de pessoas, não adianta o Estado fazer obras públicas, empregar as pessoas, pois isso interfere na eficiência do mercado, o máximo que deve fazer são programas de atualização e reciclagem que preparem indivíduos a se colocar melhor no mercado de trabalho.
A crença na eficiência dos mercados e, mais do que isso, a crença de que devemos buscar uma economia eficiente no sentido neoclássico é prejudicial à realização de direitos. Dizem que os mercados são eficientes, mas o que a gente observa são mercados caóticos, sem ética, que desperdiçam recursos e são prejudiciais às pessoas. Quando a humanidade entrega aos mercados a tarefa de organizar a sociedade, ela renuncia aos padrões éticos do humanismo e fica refém da ética do mercado, que é a ética da desigualdade e da concorrência entre as pessoas que distingue vencedores de perdedores.
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Ademais, ao reduzir a educação a um problema de capital humano, os economistas avaliam o custo e benefício da educação, sua taxa de retorno, como se esta fosse um investimento em um capital qualquer. Valoriza-se a educação enquanto capacidades, competências produtivas que permitem aumentar a produtividade, mas ignora-se a educação enquanto pilar da cidadania social, enquanto conhecimento crítico capaz de emancipar o ser humano. Por fim, concluo me apropriando e adaptando os ensinamentos de Paulo Freire: a economia também é autoconhecimento. Nós somos testemunhas da história e somos condicionados por uma determinada forma de organização social. Nosso lugar nessa organização, o papel que exercemos e a parte que nos cabe é explicada pela economia.
Por um lado, economistas também são educadores. Ensinar economia também é parte de um processo de conscientização de como funciona a sociedade. Entre os economistas há métodos e visões mais humanistas, críticas e outras mais conservadoras. Por outro lado, educadores devem se apropriar do debate econômico, contribuir para o entendimento do funcionamento do sistema econômico e para um olhar crítico sobre a visão econômica dominante que está na raiz dos problemas da nossa sociedade. Um processo de conscientização que não difunda apenas conhecimento, mas compromisso de transformação social.
Obrigado.
ALMEIDA, S; BATISTA, W; ROSSI, P. Racismo na economia e na austeridade fiscal. In: DWECK, Esther; ROSSI, Pedro; OLIVEIRA, Ana Luíza Matos de. Economia pós- pandemia: desmontando os mitos da austeridade fiscal e construindo um novo paradigma econômico. São Paulo: Autonomia Literária, 2020.
COLANDER, D; et.al. Changing face of mainstream economics. Review of Political Economy, 16:4, 2004.
MANKIW, G. Defending the one percent. Journal of Economic Perspectives, Volume 27, Number 3, 2013.
ROSSI, P; DAVID, G; CHAPARRO, S. Fiscal Policy and Human Rights: Redefining Fiscal Responsability. Principles for Human Rights in Fiscal Policy, (Series of Complementary Documents to the Principles for Human Rights in Fiscal Policy Nº 3), 2021.
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V.21, nº 44, 2023 (janeiro-abril) ISSN: 1808-799 X
CONJUNTURA BRASILEIRA, CONTRARREFORMAS EDUCACIONAIS E PERSPECTIVAS PARA A LUTA POPULAR
(MESA DE ENCERRAMENTO DO V INTERCRÍTICA)1
Marcio Pochmann2 Olá a todas e a todos! Nosso abraço fraterno, solidário. Cumprimentando o
esforço que cada um e cada uma tem feito para poder estar reunido nesses dois dias de reflexão, algo importante de retomarmos depois do interregno que nos impôs a pandemia, que nos permitiu avançar a reflexão na nossa área de estudos pela internet, mas certamente não é a mesma coisa da riqueza de um evento em que a gente esteja de forma presencial. Então quero dizer para vocês que eu fiquei muito agradecido pelo convite que foi feito, pela oportunidade de estar novamente, antes na Fiocruz, agora aqui na UERJ. Gostaria de parabenizar a iniciativa e dizer também da alegria de poder compartilhar essa mesa com o professor Gaudêncio, a quem tenho grande admiração pela trajetória, pelo compromisso, que ele demonstra e pratica. Algo importantíssimo de a gente reconhece isso na intelectualidade brasileira, que é o seu engajamento e o seu compromisso.
Eu tinha sido informado que era uma aula, então eu preparei três horas de aula, mas a sorte é que eu tinha feito o pedido para ter um teleprompter para poder ler, mas infelizmente não trouxeram teleprompter, então vai ser de improviso mesmo. E pretendo ficar nos minutos regulamentares, como diz o nosso presidente: nas quatro linhas, para que a gente possa fazer então, a parte talvez mais importante que vem
1 Artigo recebido em 27/03/2023. Aprovada pelos editores em 30/03/2023. Publicada em 13/04/2023. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v21i44. 57869.
Transcrição da conferência do Prof. Dr. Marcio Pochmann (Unicamp - São Paulo), na Mesa de Encerramento ocorrida no dia 11 de outubro de 2022, tendo o Prof. Dr. Frigotto como debatedor. A mesa foi realizada durante o V INTERCRÍTICA (10 e 11 de outubro de 2022) nas dependências da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio da Fundação Oswaldo Cruz (EPSJV/Fiocruz), Rio de Janeiro, Brasil, e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Rio de Janeiro, Brasil. Transcrição realizada por Nicolly Borges (bolsista PIBIC/CNPq – Projeto de pesquisa “Estado, políticas públicas e educação profissional, sob a orientação do Prof. Dr. Lucas Barbosa Pelissari.
2 Doutor em Ciência Econômica pela Universidade Estadual de Campinas - São Paulo, Brasil. Professor do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas - São Paulo, Brasil.
E-mail: pochmann@unicamp.br. Lattes: http://lattes.cnpq.br/0354661040243765. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3940-1536.
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com a exposição do professor Gaudêncio e o debate. Não se trata aqui de uma discussão com iniciantes, estamos entre iguais e meu papel talvez seja estimular um pouquinho com elementos que me parecem necessários quando se trata da temática da conjuntura.
A discussão sobre conjuntura é algo que tem validade, ao meu modo de ver, na medida em que a estrutura de classes da sociedade, assentada na infraestrutura econômica, se mantém relativamente estabilizada e, portanto, a análise de conjuntura serve para atualizar a evolução que ocorre do ponto de vista da estrutura da sociedade. Mas lembro aqui um amigo comum, o professor Marco Aurélio Garcia, que dizia isso, um pouco antes de morrer a uns dois/três anos atrás, que as análises de conjuntura dele duravam no máximo duas horas, porque corria o risco de duas horas depois alterar os elementos sobre os quais ele havia feito a reflexão.
Digo isso porque me parece que nós estamos diante de uma mudança estrutural da sociedade e, por conta disso, a análise de conjuntura é circunstancial, ela não mais atualiza a estrutura, pelo contrário, a conjuntura termina, na verdade, refletindo as mudanças de natureza estrutural. E esse é um ponto para mim muito importante, porque ela coloca em xeque às abordagens, o entendimento, o debate que nós estamos tendo no Brasil que está circunscrito ao curtíssimo prazo.
Nós estamos, inclusive, diante de uma eleição de natureza plebiscitária. Eu, há
40 anos atrás, quando ainda estava cursando a graduação, lembro-me que era comum naquela época, início dos anos 80, haver discussões, debates sobre o que seria o Brasil no ano 2000. Vinte anos depois, era comum haver estudos, livros, bancos faziam publicações, instituições de pesquisas, autores, à direita ou à esquerda, Celso Furtado de um lado, Roberto Campos de outro. Havia um debate sobre o que seríamos nós amanhã, não que soubéssemos de fato, mas havia, na verdade, essa preocupação com o amanhã. E, infelizmente, ao meu modo de ver, nós estamos num momento, nessa terceira década do Século 21, diante de uma espécie de cancelamento do futuro.
O que temos a dizer sobre o que será daqui a quatro anos quando esperamos ter novamente eleições presidenciais? O que será o Brasil em 2030, 2040? No momento em que o país passa para a maior transformação demográfica da sua história, salvo em 1850, que, com o fim do tráfico negreiro, nós tivemos uma regressão absoluta da população, mas depois retomou com as imigrações, etc.
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Nós estamos diante de uma situação que daqui a 18 anos, se o IBGE tiver correto nas suas projeções, a população brasileira vai reduzir em termos absolutos, porque será maior a quantidade de mortos diante dos nascidos. Nós, em 2008, tínhamos cerca de 52 milhões de jovens de 16 a 29 anos de idade. Hoje vamos ver o censo, ver o IBGE, o censo vai nos dizer qual é a população de jovens de 16 a 29 anos, mas possivelmente nós teremos cerca de 48 milhões. Tínhamos 54 milhões, hoje estamos com 48 milhões. Isso no IBGE, com as projeções que foram feitas antes da pandemia, portanto elas estão superestimadas em termos de população.
A população de jovens de 16 a 29 anos, daqui a 2100, será de 26 milhões. O Brasil, que teve a sua população multiplicada por cinco vezes no século XIX, 10 vezes a população foi multiplicada no século XX, e talvez venha a crescer 4% apenas a população ao longo do século XXI. Isso para falar da questão demográfica e não vamos adentrar a todas as implicações que representa isso do ponto de vista etário. Cidades completamente despreparadas para conviver com a população envelhecida e as consequências que significam o envelhecimento, num país que não tem sistema de transporte decente, habitações inadequadas, numa sociedade em que viver não é só trabalhar, há outras oportunidades etc.
Então, para chamar atenção que nós estamos vivendo um momento rico da história nacional, uma mudança de época, tal como os brasileiros que nos anteciparam e na década de 1880 viveram. Para entender o Brasil de hoje, porque ainda temos racismo estrutural, é preciso entender o que aconteceu lá na década de 1880. Na luta que se travou depois de 20 anos de enfrentamento da escravidão, maior movimento popular que esse país já viu no século XIX, 20 anos de luta pela abolição da escravatura. E fazer a luta da abolição da escravatura, em 1880, era muito mais difícil que o que hoje nós temos como enfrentamento. Imaginemos um Parlamento como era em 1871. O primeiro discurso contra a escravidão foi feito por Joaquim Nabuco, que quase apanhou dos seus pares, que eram praticamente todos proprietários de terra e de escravos.
A luta que se travou foi chave para acabar com mais de três séculos e meio de escravidão, mas não ocorreu aquilo que era o sonho dos abolicionistas. Não apenas a soltura dos escravos, mas se defendia muito mais do que isso. Não era a Lei Áurea com dois artigos: “encerra-se a escravidão e cumpra-se a lei!”, uma pobreza do ponto de vista legal, mas se trabalhava com outra hipótese: da integração do ex-escravo na
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sociedade, a distribuição de terras, a repartição da riqueza, inclusive, a universalização do acesso ao ensino, num país cuja língua mais conhecida era o tupi- guarani.
Imagina a luta contra a escravidão quando o sujeito social, os negros, estavam praticamente aprisionados em fazendas e nem a língua do português falavam direito. Mas foi feita essa mudança, não como gostariam, mas isso foi resultado da luta de classes, da correlação de forças num momento trágico do Brasil. O que era o Brasil ao final do século XIX? Uma tristeza, e os brasileiros não baixaram a cabeça. Ou se nós fizermos a segunda grande transformação do Brasil, na década de 1930, que foi a mudança de um país agrário, primitivo, para um país urbano industrial. A modernização que se trava em torno da luta dos tenentistas, que tinha uma clareza que era impossível aquela sociedade primitiva, onde 90% da população estava morando no campo e mais de 80% analfabetos, lutar por um projeto de país urbano industrial.
No Clube 3 de Outubro liderado por Osvaldo Aranha em 1932, estava muito clara a necessidade de que esta mudança estrutural do país precisava ser feita com reformas importantes, como, por exemplo, a reforma fundiária, a defesa que tá no programa do Clube 3 de Outubro de Oswaldo Aranha dizendo que a propriedade privada é o elemento central do capitalismo. E o país é capitalista, portanto, a validação da propriedade privada só seria feita na medida em que houvesse função social da terra. Uma terra sem função social não justificaria a propriedade privada. Isso em 1932. Somos um país que não mexeu na estrutura fundiária, pelo contrário, agravou-se. Perdemos só para o Paraguai, somos o segundo país com maior concentração de terras do mundo.
Mais do que a questão da destruição da terra, estava lá no programa do Clube 3 de outubro de 1932, a defesa, por exemplo, do lucro. O país é capitalista, então, o lucro tem que ser preservado. Mas a preservação do lucro se dará, apenas, se pagar impostos. O lucro que não paga imposto não é justificável. Olha, nós estamos em 2022 e os lucros e dividendos no país não pagam impostos. Isso são questões, na verdade, de uma correlação de forças, de lutas, de projeto, de visão de futuro, de sonhos, utopias.
Isso nós vivemos por gerações fantásticas. Teve a Revolução de 30, depois alguém diz assim: “mas não foi revolução”. Tudo bem. Então, em 1930, o que
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acontece diante da grande depressão: Getúlio Vargas abandonou o padrão ouro-libra, que era o que vigia naquela época. Nós saímos do padrão do ouro-libra, alguma coisa como: no próximo ano nós vamos sair do padrão dólar, vamos para o Iene japonês ou vamos para o Yuan. Vamos continuar dependendo do padrão americano ou vamos ser uma outra moeda?
Mais do que isso, lá em 1930, o que fez Getúlio? Concentrou e monopolizou a taxa de câmbio. O que significa o seguinte: apropriar-se do excedente em moedas feita pelo setor exportador, os cafeicultores. Imaginemos, a partir do ano que vem, uma parte do excedente do agronegócio servirá para financiar a infraestrutura do país, num congresso que nós sabemos como é atualmente. E, mais do que isso, fez auditoria da dívida brasileira e descobriu, lá em 30, que uma parte importante da dívida não era justificável.
Imagina uma auditoria da dívida pública no Brasil. Então apenas para chamar atenção: teve 30, mas teve 32 com a contrarrevolução dos paulistas, teve 35 com a chamada intentona comunista, teve 37. Ou seja, são períodos em que há uma disputa enorme, em que é possível na verdade reescrever a história com nossas próprias mãos. É essa, digamos assim, a questão central para mim: de entender o Brasil nesse início do Século XXI. Estamos diante de uma mudança de época, todavia, o que predomina hoje é que o Brasil vive o mesmo período histórico, porém permeado de mudanças.
A sociedade brasileira segue praticamente a mesma e, portanto, partidos, sindicatos, associações civis, entidades da sociedade civil se mantêm praticamente os mesmos como se a sociedade fosse a mesma. Porém ela sofre mudanças que vêm de fora, sobre as quais nós não temos autonomia, não temos governabilidade, portanto nós nos adaptamos a elas como é o caso da globalização. O entendimento de que a globalização é um movimento feito por grandes corporações e o país tem que se adaptar a elas ao interesse dessas corporações, o que foi justificável para fazer a chamada reforma trabalhista: se o Brasil não se ajustar, “vocês querem direitos ou querem empregos?”. Para ter emprego, obviamente não pode ter tantos direitos. Os direitos têm que ser reduzidos para que o investimento externo, o capital estrangeiro se instale no Brasil, porque se nós continuarmos com essa quantidade de direitos é mais fácil investir no Paraguai, porque lá, por exemplo, as férias são só 15 dias e não 30 dias. Esse argumento que tem sido utilizado.
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É a mesma coisa em relação à questão climática. Sem falar evidentemente na questão da tecnologia, do determinismo tecnológico, que é nos apresentado como praticamente o fim do emprego. A tecnologia vai reduzir, comprometer o emprego, ou seja, a literatura, a leitura que se tem sobre a questão tecnológica, ela é, na verdade, pessimista, negativa. Então não vai ter emprego amanhã, como é que eu vou imaginar um jovem, que está no seu ensino médio, na universidade, que a tecnologia vai destruir o emprego. Que motivação ele terá? Qual é a utopia que o anima a mudar a realidade e construir um futuro diferente, sendo que não é a visão que se tem do ponto de vista alternativo? A leitura que se faz da tecnologia como supridora de emprego, que é, na verdade, uma invenção feita por consultorias patronais e divulgada pelo fórum econômico mundial e por algumas universidades e colegas, da destruição do emprego.
No entanto, se nós formos analisar a realidade, o que que nós estamos vendo é que esta revolução informacional, ela não está, na verdade, suprimindo emprego, ela tá mudando a natureza do trabalho, que é algo completamente diferente. Se nós tomarmos como referência, por exemplo, a Federação Internacional de robótica, isso tá na internet, você pode ter acesso caso tenha interesse, que acompanha o processo de robotização nos países, a quantidade de robôs por países, a inteligência artificial, enfim, engenheiros que acompanham e monitoram isso. Em 2019, antes dessa confusão que estamos vivendo depois da pandemia, os países mais avançados na inovação tecnológica (estamos falando, portanto, de Taiwan, Hong Kong, Coreia do Sul, Alemanha, China, Estados Unidos), esses países mais avançados do ponto de vista de inovação tecnológica não eram países que tinham um problema de desemprego aberto, não tinham o desemprego estrutural, tecnológico. A taxa de desemprego era entre 3 a 4% da força de trabalho. Não quer dizer que eles não tinham problema de mercado de trabalho, salário baixo, precarização, etc. Mas a escassez de emprego não. Aliás, países que têm problema de desemprego são países que não investem em tecnologia, que é o nosso caso.
O Brasil não se caracteriza por investimentos tecnológicos de grande monta continuados no tempo. Aliás, o setor que mais investimento tecnológico tem feito é o setor de telecomunicações ou setor ou ramo financeiro. Os bancos fazem muito investimento em inovação tecnológica. E, justamente, um dos setores que mais emprego gerou tem sido o ramo financeiro, só que mudou a natureza do emprego.
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Em 1988, nós tínhamos cerca de 1 milhão de trabalhadores no ramo financeiro, 850 mil trabalhadores bancários contratados diretamente pelos bancos, escriturário, gerente, caixa. Em 2014, antes de começar a nossa confusão toda, o ramo financeiro, ao invés de um milhão de trabalhadores, ele tinha um milhão e 800 mil trabalhadores contratados diretamente pelos bancos. As funções tradicionais eram 400 mil. Então, entre 1988 e 2014, houve uma redução de contratados diretamente pelos bancos de 850 mil para 400 mil.
No entanto, as ocupações no ramo financeiro, terceirizados como era em 1988, permitido pela lei, o trabalhador que era segurança da agência, o guardinha da agência bancária ou o trabalhador de transporte de valores, o carro forte, havia 150 mil trabalhadores terceirizados no ramo financeiro em 1988. Em 2014, nós tínhamos um milhão e 400 mil trabalhadores terceirizados no ramo financeiro, 800 mil trabalhadores nas agências lotéricas ou correspondentes bancários, 200 mil agências lotéricas fazendo atividades próximas, equivalentes, similares às de um banco. Havia 120 mil, segundo o IBGE, trabalhadores para os bancos como consultores.
Uma mudança brutal e a estrutura sindical permaneceu a mesma. Até houve aumento no número de sindicatos de bancários, aumentou o número de diretores, mas a base estabelecida lá nos anos 30, a estrutura corporativa, enxugou de 850 mil para 400. Só que havia na verdade um milhão e 400 mil trabalhadores que ficaram à margem da legislação trabalhista, à margem do sindicalismo, à mercê de quem? Das igrejas e até mesmo do crime organizado. Uma mudança na sociedade espetacular e nós, digamos assim, estamos como cegos sem perceber essa alteração profunda na sociedade brasileira e ao acreditarmos que a sociedade segue sendo a mesma, porém permeada de mudança de fora, que não tem muito que fazer se não nos acomodarmos. Nós estamos perdendo o laço social.
Aqui me encaminhando para a parte final, quais são os elementos que estruturam esta mudança estrutural do Brasil? A começar pelo fato que nós estamos diante de uma outra divisão internacional do trabalho e nós estamos nos colocando, enquanto país, numa posição em que aprofunda o nosso subdesenvolvimento. Nós não estamos tratando, na verdade, de uma visão de país dentro desta reconfiguração que está ocorrendo em termos de uma divisão nova do trabalho no mundo. Isso está ocorrendo fundamentalmente porque estamos diante do principal acontecimento dos últimos 500 anos, que é o esgotamento do projeto de modernidade ocidental que
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ocorre fundamentalmente pelo deslocamento do centro dinâmico do mundo do Ocidente para o Oriente.
Ou alguém tem dúvida que a Ásia, que a China recupera o seu protagonismo como existia até então, até o século XVI ou XVII? Até 1453, quando houve a queda de Constantinopla, que interrompeu as antigas rotas da China, as rodas da seda, que era o que mantinha o comércio entre uma Europa primitiva e atrasada, e uma Ásia avançada para a época, produtora de especiarias, de literatura, de cerâmica, de pólvora, entre tantas coisas.
A interrupção desse comércio com a ascensão dos turcos, hoje em Istambul, fez com que a Europa se reorganizasse, especialmente, através dos impérios, inicialmente portugueses, espanhóis. Minha associação com cidades-estados italianas, Gênova, entre outras cidades ricas num esforço enorme de buscar reconstituir as rotas antigas da seda, mas não andando em direção ao Oriente, mas sim avançando em relação ao Ocidente através do Oceano Atlântico.
As grandes navegações foram fundamentais do ponto de vista de conhecer os novos percursos pelo mar, como navegar com as estrelas etc. E Vasco da Gama chega às Índias, demonstrando que é possível, pelo Oceano Atlântico, chegar novamente e reconstituir o comércio que havia sido interrompido. E nessas rotas, como sabemos, o conquistador europeu chegou, para eles, num continente desconhecido: as Américas, o continente americano. Américo Vespúcio fez propaganda do que ele conheceu e permitiu que se usasse o nome dele e não do Colombo. Talvez no continente, a única coisa que sobrou era a Colômbia.
O que interessa, evidentemente, é que, a partir deste novo movimento que acontece a partir da Europa, nós vamos ter o estabelecimento de um projeto de modernidade assentado no eurocentrismo e toda a base nossa do conhecimento, toda a base da nossa história, tudo parece ter começado a partir da Grécia. E depois da Europa com o Iluminismo, com a Reforma Protestante, com o catolicismo.
Isso nos fez, na verdade, povos novos, organizados, em torno da mercadoria, estabelecida pelo sistema colonial europeu. Trezentos anos do sistema colonial europeu, que constituiu a primeira cadeia global de valor, lá no século XVI, XVII. Integrando-os através do tráfico negreiro, os africanos trazidos, arrancados de sua terra, e estabelecidos na América, para produzir mercadoria na terra da América e levar a mercadoria para a Europa. Fundamental na acumulação primitiva, para que
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erguesse o capitalismo, especialmente na Inglaterra, com as apropriações do ouro e dos metais e riqueza que nós tivemos e tudo isso foi feito enterrando a cultura milenar que aqui existia.
Pouco sabemos, inclusive, dos nossos antepassados, porque parece que a nossa história começou em 1500. Mas nada disso! Há estimativas que sinalizam haver presença humana há 50 mil anos. Inclusive tem uma pesquisa fantástica feita no Piauí, que mostra registro da presença humana há muito tempo. Nós tínhamos o Império Inca, por exemplo, cujo espaço ocupado pelo Império, do ponto de vista territorial, equivalia ao espaço que o Império Romano teve na Europa Ocidental e, para nós, a história da Roma, dos Romanos. México, a cidade que foi soterrada pelos espanhóis no século XVI, chegava até 250 mil habitantes, o que superaria a população de Paris na época. Temos uma história riquíssima sobre a qual nós quase nada sabemos. Os povos originários, porque aqui nós somos colonizados com a ideia do projeto de modernidade ocidental, e esse projeto ruiu ao colapso da modernidade, a modernidade líquida, a pós modernidade, enfim, uma discussão ampla em relação a isso.
O fato concreto é que há um deslocamento inegável do ponto de vista econômico, mas também cada vez mais tecnológico, militar e político para a Ásia. Ou seja, nós estamos, de certa maneira, fazendo com que os últimos 500 anos, talvez sejam um lapso de tempo, numa história em que a principal parte dinâmica esteve na Ásia, e nós quase nada sabemos do que fazer em relação a esse novo dinamismo.
Estamos cada vez mais nos associando à China como se fôssemos a associação ao Antigo Império inglês britânico, como produtor de mercadorias primárias. Um país que tem a somatória das exportações e importações, o comércio externo já equivale a 40% do PIB brasileiro, quando ele chegava no máximo a 6%, 7% do PIB dos anos 80, quando nós tínhamos a 6ª maior indústria do mundo. Hoje temos a 16ª indústria do mundo, quando o país respondia por 3,2% do PIB. Hoje responde por 1,6%. Essa questão é crucial para nós: Para onde vamos? E como vamos?
Há 20 anos atrás, quando o presidente Lula venceu as eleições, o mundo era outro. Era o poder imperial dos Estados Unidos. Hoje não é mais isso, nós temos opções. Mas qual a opção? Para onde vamos? Com quem? Reclamar que os chineses só compram produtos primários nossos? Isso é quase nada. Nós é que temos que
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dizer o seguinte: nós queremos exportar isso ou aquilo, porque não vai ser o chinês que vai dizer o seguinte: “olha, por que vocês não produzem manufatura pra gente comprar?”, “por que vocês só produzem soja?”, “por que vocês não industrializam a soja?”, “por que o Brasil segue sendo um maior exportador de café em grãos e a Alemanha e a Itália os maiores exportadores de café solúvel?”, “não produz um pé de café, não sei como árvore é ornamental”. Isso é uma questão nacional. Nós precisamos saber e dizer para onde queremos ir.
Mais importante de reconhecer que há uma mudança estrutural no mundo, um novo centro dinâmico, uma nova ordem econômica, é saber que também estamos avançando muito rapidamente para a Era Digital. Não é mais a Era Industrial. A digitalização da sociedade, a digitalização da economia, muda completamente a forma de interagirmos, de aprendermos, de vivermos. Eu sou de uma época que, para conhecer alguma pessoa, uma moça, tinha que ir numa festa, tomar alguma coisa para ficar corajoso para tirar a moça para dançar. Era nervosismo. Depois ainda os colegas falavam: “vai que ela não aceita?”, naquela gozação. Ou seja, hoje é um pouco diferente, é pela internet, por exemplo.
Sou de uma época em que a minha opinião era formada vendo diferentes telejornais, lendo diferentes jornais, revistas. Via tudo, tentava diante da diversidade, formar opinião. Hoje, como é que se forma a opinião? Não é sobre a diversidade, a gente forma opinião a partir da homogeneidade. No meu grupo de WhatsApp, que só tem gente que torce pro Grêmio, se tiver alguém falando mal do Grêmio é excluído. Então é uma sociedade diferente, em que a estrutura de representação, partidos, sindicatos, associação de bairro, moradores, são instituições próprias da Era Industrial e não mais da Era Digital.
Na Era Digital há uma necessidade enorme de uma visão mais totalizadora e, nesse sentido, as igrejas têm avançado muito, porque as igrejas, até 2019, antes da pandemia, cerca de 80 milhões de pessoas iam às igrejas duas vezes por semana. E iam lá porque era espaço de sociabilidade, com quem eu posso falar sobre as minhas dúvidas, sobre as minhas dificuldades, sobre o meu filho que tem 13 anos, não sai da frente do celular e não conversa com ninguém. Isso é um problema dele? Será que é alguma doença? Aí você vai conversar com outra pessoa e ela diz: “isso é comum, a minha filha também é assim.”
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Aí eu perco o emprego, eu vou lá no sindicato e o que o dirigente vai dizer? “– O que aconteceu, Márcio? – Eu perdi o emprego. – Ah, você perdeu o emprego por conta desse governo ou por causa desses patrões.” Ou seja, eu sei, como um Iluminista, explicar porque houve o desemprego, mas eu não sei dizer a ele uma palavra de esperança, como: “você veio no sindicato, aqui é uma instituição que vai lhe ajudar, nós temos aqui um fundo de financiamento, tem uma cesta básica, temos uma equipe que te procura coletiva de trabalho, nós vamos encontrar a solução para você, isso é importante para nós. Companheiro, estamos juntos!”
Aí eu vou numa Assembleia, o pastor chama as pessoas pelo nome. Pastor conhece o nome das pessoas. O que diz o pastor: “- O que aconteceu, Márcio? – Pois é, pastor, perdi o emprego. - Você veio no lugar certo. Aqui nossa igreja vai lhe ajudar. A dona Maria chegou aqui semana passada e também estava desempregada. Mas aqui tem o seu Antônio, trabalha no supermercado, ficou sabendo que tem uma vaga para mim, e agora Dona Maria tá trabalhando. Aleluia!”
A igreja não vai resolver o problema do desemprego, mas ela tem esperança. Se é um discurso nosso racional, não faz, do ponto de vista da política, a ação necessária. Se eu vier aqui para dizer o seguinte: a situação do Brasil tá ruim e vai piorar. Quem vai ficar na próxima? Nem vou mais. Ficam falando que a coisa tá ruim, preciso de alguma coisa que me anime. É como se eu fosse no consultório, o médico falasse: “ - Eu vi os exames aqui, o senhor tá com câncer e esse câncer, eu vou lhe explicar, esse câncer foi descoberto por um especialista em inglês lá em 1947 e essa pesquisa que ele fez... - Doutor, tudo bem, até bom saber que câncer é esse, mas eu quero saber como eu me curo.” E se o cara disser: “- Olha, Marcio, esse câncer aí eu acho que...”, eu levanto dali e vou procurar um curandeiro, qualquer um que me dê esperança, que me fale do futuro. Não que o futuro esteja cancelado.
Então, a Era Digital, e olha que nós estamos indo para uma segunda fase da Era Digital, a primeira estamos encerrando, que é aquela fase que a gente colocou de grátis tudo, todas as nossas informações para dentro do celular, para dentro da internet, colocamos a nossa lista telefônica, colocamos a nossa agenda, colocamos os roteiros que a gente faz utilizando os aplicativos para chegar em tal lugar, nós colocamos as nossas contas bancárias, colocamos as mensagens, colocamos os vídeos, as músicas, colocamos tudo lá dentro e, ao fazermos isso, aconteceu as Big
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techs, as estrangeiras, porque o Brasil se nega a construir empresas de internet, o que é um absurdo.
Como é que pode o Brasil, por exemplo, não ter um aplicativo de GPS? Por que precisamos dos GPS dos Estados Unidos? Inclusive, o Brasil não pode nem entrar em algum conflito externo se os Estados Unidos tiverem do outro lado, porque simplesmente eles desconectam do satélite, a gente fica vendo navio. Imagina o que é a universidade sem internet. Não levanta um voo do aeroporto. Imagina a confusão que vai ser para saber currículo, histórico escolar, sem internet. Nós estamos na mão dos Estados Unidos, pode ser da China, ou qualquer país.
A questão é porque nós não temos soberania tecnológica, por que não temos engenheiros? Não tem gente capaz? Claro que temos. É uma questão de decisão nacional, soberania tecnológica. Nós estamos tão distantes dessas preocupações que, por exemplo, o movimento sindical lá nos anos 30 e 40 defendia o que: uma cesta básica de alimentos, o salário tem que ter pelo menos uma cesta básica, porque senão, não dá. Hoje não há uma palavra sobre os trabalhadores. A classe trabalhadora brasileira, para fazer política, precisa ter uma cesta digital, porque há uma exclusão digital no Brasil. O preço do aparelho telefônico, o preço do programa de acesso à internet.
Eu dei aula durante 2020, 2021 e o que acontecia com os meus alunos: eles não ligavam a câmera. Às vezes é até bom, mas o porquê que não ligaram a câmera, porque a câmera mostra sua intimidade, em que lugar você está assistindo a aula e grande parte dos nossos estudantes não tem lugar decente para assistir uma aula pela internet. Isso é a realidade do Brasil. Isso é uma questão pública, o acesso à internet, e não há reivindicação nesse sentido. É uma visão Liberal, cada um para si, compre o seu programa. Tudo do ponto de vista privado. Poderia ser completamente diferente.
Então, nesta fase que a gente colocou todas as informações para dentro, as grandes empresas estrangeiras juntaram as informações, sistematizaram e trabalham agora com o algoritmo. Agora, na verdade, a gente funciona em função disso. Esses dias meu celular acabou, eu nem lembrava o telefone da minha casa, para dizer o mínimo. O desespero. Mas essa fase está ficando para trás, porque agora a nova fase chama-se Metaverso. É quando nós vamos entrar na internet. E como é que nós
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vamos fazer isso? Nós precisamos trabalhar com planejamento, com visão de futuro, isso é fundamental do ponto de vista de uma mudança de era.
O problema chave é que nós estamos entrando na Era Digital como entramos na Era Industrial. Como entramos na era Industrial? Nós entramos a partir da vinda do Dom João VI, que acertou com os ingleses que precisavam de mercado para os seus produtos, porque havia um fechamento dos mercados na Europa em função da guerra com Napoleão. Estava fechando tudo, iriam invadir Portugal. Então Dom João XVI sai de Portugal, vem para cá e a primeira medida que ele toma quando chega na Bahia é a abertura dos portos para as nações amigas e, a partir dali, ao invés de nós vendemos e compramos só dos portugueses, passamos a comprar e vender para os ingleses.
E começamos a ter acesso aos bens manufaturados porque os portugueses não produziam manufatura. E o nosso acesso a esta Era Digital, dos bens manufaturados, se deu basicamente através da importação. Então exportamos café, algodão e comprávamos produtos, vestuário e equipamentos. Como foi o caso de Dom Pedro II, por exemplo, que, se não me falha a memória, o Brasil foi o segundo país a ter telefone, porque Dom Pedro II parece que era amigo, ou conhecido do Graham Bell.
Aí foi instalado aqui na cidade do Rio de Janeiro, primeiro país da América, depois dos Estados Unidos, o telefone a 4000 metros da casa do Imperador, da casa dos seus ministros. 4000 metros, o Brasil já tinha telefone. Quando é que o povão vai ter telefone? Mais de 100 anos depois. Ou seja, a raiz da nossa desigualdade tem a ver com a forma como nós entramos na Era Digital.
O povão só começou a ter produtos, quando decidiu produzir internamente, com a Revolução de 30. Se nós quisermos produzir internamente, internalizar os bens e serviços digitais, é uma decisão fundamental, porque o Brasil hoje diante da divisão internacional do trabalho que separa países que produzem e exportam bens e serviços digitais e de outro lado os países que importam, consomem bens e serviços digitais, porque não produzem. O Brasil é a décima terceira economia do mundo, é a sexta maior população do mundo, é o quinto maior espaço geográfico territorial do mundo, mas nós somos o quarto maior mercado consumidor de bens e serviços digitais.
E, para ter acesso ao celular, nós precisamos produzir e exportar soja, minério de ferro, porque, se nós não exportamos esses produtos, não teremos receita para
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comprar o celular ou os programas de computador. Nós entramos muito mal nessa história, com essa inserção na divisão do trabalho. Não precisa universidade no país, porque um emprego possível a ser gerado são os empregos que nós sabemos hoje, essa precarização generalizada, que é o que é possível gerar numa entrada na divisão internacional do trabalho como nós entramos. É fundamental alterar a posição do Brasil nessa divisão, e nós podemos fazer, nós temos universidades, temos instituições de pesquisa, temos no ensino superior uma capacidade de Ciência, Tecnologia ainda muito importante, podemos fazer isso a questão de decisão política. E por fim, a questão da emergência climática, a entrada numa nova um novo regime climático: o Antropoceno, nós estamos a 40 anos, na verdade, de desilusões com esse conceito de desenvolvimento sustentável, que baixaram dizendo que era possível no capitalismo ter desenvolvimento sustentável. Desde os anos 80, que a gente vem insistindo nisso: desenvolvimento sustentável. O que aconteceu depois de
40 anos? a temperatura subiu. O IPCC, está comprovando em todos os seus relatórios. Já tá dado que a temperatura já tá mais alta, é outro regime climático. Como é que nós vamos conviver com esta nova realidade? E nós, digamos assim, temos um passaporte, porque temos ainda os biomas no Brasil. Estão sendo destruídos, mas nós temos ainda uma base inegável.
O Brasil precisa de uma empresa tipo a Petrobras dentro da Amazônia para contribuir e gerar riqueza a partir da biodiversidade que lá temos. O Brasil precisa de uma empresa estatal que estude e trabalhe com o fundo do mar. A Petrobras arranhou um pouquinho e encontrou petróleo, mas o fundo do mar tá cheio de riqueza. Nós precisamos pensar do ponto de vista do espaço sideral, não sei se vocês tiveram oportunidade de ver o mapa dos satélites que nos cobrem o espaço nacional, são todos satélites que não são produzidos no Brasil, satélites privados, não pagam impostos, manipulam as nossas informações. Tem uma frente de geração de riqueza, de emprego, enorme no país. É um potencial gigantesco, tudo isso tá acontecendo, é uma mudança de época, é uma outra época.
Nós temos a oportunidade de escrever a história do país diferente, com as nossas próprias mãos, no momento chave da história nacional, é óbvio que os ricos, a classe dominante sabem disso, porque vivemos numa sociedade de classes. Se gente sair daqui e encontrar o pobre coitado, que tá morando de rua e perguntar assim: “- o que que você pensa do Brasil em 2025? - eu não sei se amanhã eu vou
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estar vivo, eu nem comi hoje, eu nem sei se o que vai acontecer hoje à noite, durmo na rua, posso ser queimado.”
Os pobres dos pais não pensam o dia, a classe trabalhadora organizada pode perguntar pra um Metalúrgico: “- o que você pensa do Brasil daqui a dois três quatro anos? – não, não, esse mês esse mês eu tô fazendo hora extra, vou levar a família para almoçar lá fora de casa.” A classe operária, pensa 30 dias. A classe média assalariada, pensa um ano: “esse ano vou juntar um terço de férias mais as férias, aí vou viajar, vou trocar de carro, fazer uma reforma na casa”.
Quem pensa o futuro é a classe dominante, ou as instituições, a universidade, o sindicato, o partido, essas instituições públicas que tem por dever olhar o futuro. A classe dominante por olhar o futuro e saber que estamos vivendo uma mudança de época, o que eles nos oferecem? Eles nos oferecem, na verdade, o sofrimento, o dia a dia. O povo que tá triste tentando viver o dia, não pensa no amanhã, não sonha com o amanhã.
Esse me parece um papel absolutamente fundamental que nos cabe enquanto professores, estudiosos, universitários. O Brasil evidentemente pode muito mais, e nós estamos tendo uma oportunidade de ouro. Poucas gerações tiveram uma oportunidade como essa, eu acredito que o fato de nós estarmos aqui, nessa terça- feira à noite, é porque a gente sabe que é possível fazer um país diferente. Está nas nossas mãos, o Brasil pode muito mais! Muito obrigado.
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V.21, nº 44, 2023 (janeiro-abril) ISSN: 1808-799 X
Giovanni Alves2
Resumo
Neste ensaio iremos apresentar elementos teórico-crítico para caracterizar o sociometabolismo da barbárie. Abordaremos a crise do Estado capitalista e a diferença entre liberalismo social e neoliberalismo. Trataremos a barbárie social em primeiro lugar, como sendo uma forma histórico- concreta do processo de subjetivação na era da crise estrutural do sistema do capital. É a partir daí que discutiremos o conceito de “hipnocapitalismo” ou novo capitalismo manipulatório; ou ainda, a teoria do estranhamento (a partir de Lukács) e as formas ideológicas do particularismo ou os identitarismos sociais.
Palavra-chave: subjetividade; neoliberalismo; barbárie social; estranhamento.
EL TRIUNFO DE TANATOS: HOPOCAPITALISMO Y SOCIOMETABOLISMO DE LA BARBARIE
Resumen
En este ensayo presentaremos elementos teórico-críticos para caracterizar el sociometabolismo de la barbarie. Abordaremos la crisis del estado capitalista y la diferencia entre social liberalismo y neoliberalismo. Nos ocuparemos de la barbarie social en primer lugar, como forma histórico-concreta del proceso de subjetivación en la era de la crisis estructural del capital. Es a partir de ahí que discutiremos el concepto de “hipnocapitalismo” o nuevo capitalismo manipulador; o incluso, la teoría del extrañamiento (de Lukács) y las formas ideológicas del particularismo o identidad social.
Palabras clave: subjetividad; neoliberalismo; barbarie social; extrañamiento.
THE TRIUMPH OF THANATOS: HYPOCAPITALISM AND SOCIOMETABOLISM OF BARBARISM
Abstract
We will present theoretical-critical elements to characterize the sociometabolism of barbarism. We will address the crisis of the capitalist state and the difference between social liberalism and neoliberalism. First, I will approach the social barbarism as a historical-concrete form of the process of subjectivation in the era of the structural crisis of capital. I will discuss the concept of “hypnocapitalism” or new manipulative capitalism; and the theory of estrangement (from Lukács) as a ideological forms of particularism or social identitarism.
Keyword: subjectivity; neoliberalism; social barbarism; estrangement.
1Artigo recebido em 13/03/2023. Primeira avaliação em 15/03/2023. Segunda avaliação em 23/03/2023. Aprovado em 02/04/2023. Publicado em 13/04/2023.
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v21i44.57714.
2 Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas, São Paulo - Brasil. Professor livre-docente da Universidade Estadual Paulista, Campus de Marília, São Paulo - Brasil. E-mail: giovanni.alves@unesp.br.
Lattes: https://lattes.cnpq.br/8745252518066333. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7745-855X.
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Introdução
Tanatos é uma figura da mitologia grega que representa a personificação da morte. Na mitologia grega, ele é frequentemente descrito como um ser alado, vestindo uma capa preta e carregando uma espada ou uma tocha para guiar as almas dos mortos ao seu destino. De acordo com a mitologia, Tanatos era filho da deusa Nix, a personificação da noite, e irmão gêmeo de Hipnos, o deus do sono. Acredita-se que Tanatos seja implacável e inevitável, e que não pode ser enganado ou subornado.
A barbárie social representa o triunfo de Tanatos. Ela é a forma do sociometabolismo em meio às condições históricas do capitalismo senilizado. Conforme a mitologia grega, mencionada anteriormente, a mãe de Tanatos é a deusa Nix, a personificação da noite. O 'capitalismo crepuscular' (FINESCHI, 2022)3; também denominado como twilight capitalism (SMITH, BUTOVSKI e WATTERSON, 2021) ou ainda “capitalismo terminal” (PIQUERAS, 2022); é também o que podemos considerar como o “capitalismo noturno”, em que as relações sociais de produção da vida social se convertem em produção da morte do processo civilizatório. Na mitologia grega, Tanatos é irmão gêmeo de Hipnos, o deus do sono4. Nesse sentido figurado, o capitalismo em sua fase de crise estrutural, é o hipnocapitalismo. Dessa forma, a sociedade neoliberal configura-se como a sociedade de Hipno, ou seja, um mundo social em que o poder da Ideologia adormece a consciência crítica e invalida a oposição de classe (ALVES, 2022).
Neste ensaio, apresentaremos elementos teórico-críticos para caracterizar o sociometabolismo da barbárie no século XXI. Iremos promover um diálogo possível entre marxismo e psicanálise para desvendar os fundamentos ontológicos da barbárie
3 “Capitalismo crepuscular” significa que o modo de produção capitalista está entrando em um estágio específico e avançado de seu desenvolvimento em que as dinâmicas de valorização entraram numa dimensão em que é cada vez mais difícil realizar-se. Isto é acompanhado por crescentes fenômenos especulativos de valorização fictícia, desemprego em massa irremediável e – salienta ele - uma crise dos pressupostos fundamentais da ideologia burguesa tradicional, em particular de sua pedra angular: a categoria de "pessoa" e seus direitos universais”.
4 Hipnos é o deus grego do sono e dos sonhos. Na mitologia grega, ele é frequentemente representado como um jovem com asas nos ombros e portando um ramo de papoulas. Segundo a lenda, Hipnos vivia em uma caverna escura no submundo e era filho de Nix, a deusa da noite, e irmão gêmeo de Tânatos, a personificação da morte. Hipnos é considerado um deus benevolente que ajuda os mortais a dormir e descansar, mas também pode ser usado como uma ferramenta pelos deuses para manipular os humanos. Ele é frequentemente mencionado na literatura grega, incluindo a Ilíada e a Odisseia de Homero. Além disso, a palavra "hipnótico" deriva do nome Hipnos devido à crença de que ele poderia induzir o sono nas pessoas (GRIMAL, 1951).
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social5. Neste ensaio, nossa hipótese é de que a barbárie social é uma forma de subjetivação humana organizada a partir do "ensimesmamento" ou do particularismo enquanto expressão superior da coisificação e do fetichismo social. A sociedade da barbárie social caracteriza-se pela concorrência exacerbada, pelo predomínio do "narcisismo da pequena diferença" e pelas formas de ultraviolência social, tais como, por exemplo, o assédio moral. Além de ser uma forma de subjetivação humana alienada, o sociometabolismo da barbárie é também um modo de organização pulsional dos sujeitos humanos, em que as tecnologias digitais e informacionais desempenham papel fundamental na organização da produção e reprodução social. No entanto, neste ensaio, nosso foco de discussão será a barbárie social como forma de subjetivação fetichizada do capital6.
Abordaremos, em primeiro momento, a crise da velha ordem do liberalismo social, como expressão da crise do Estado capitalista. Em seguida, exporemos as diferenças entre o liberalismo social e o neoliberalismo. O Estado político do capital que opera a barbárie social é o Estado neoliberal, a partir do qual se constitui a nova hegemonia do capital, resultante da subjetivação neoliberal. Esta implica um novo posicionamento do sujeito diante da contradição entre a "aparência" e a "essência" do modo de produção capitalista (FAUSTO, 1987). Depois, a partir da teoria do estranhamento em Lukács (2013) e da teoria da coisificação e do fetichismo de Marx (2015), abordaremos o modo de produção da subjetivação da barbárie social.
Isso significa, por exemplo, tratar o sociometabolismo da barbárie como sendo o processo social de deformação do indivíduo, fechado em sua autossuficiência, que
5 A palavra “bárbaro” surgiu na Grécia como palavra quase onomatopaica, para se referir a todos que não falavam nenhum dialeto grego, e que aos ouvidos helênicos, passavam a vida a pronunciar “bar- bar-bar”. Os romanos adotaram o termo, redefinindo naturalmente o conceito. Para eles os “bárbaros” eram todos os povos que não falavam nem grego nem latim, portanto, “sempre foram os outros. Aqueles que eram diferentes do povo que estava contando a história” (GALINDO, 2022). Ao utilizarmos o termo “barbárie social” revertemos o significado da palavra: os bárbaros somos nós!. Isto é, a barbárie social é a barbárie interior à forma da civilização do capital em sua etapa de crise estrutural.
6 Este ensaio é um extrato do livro "Trabalho e Barbárie Social: Ensaios sobre o Capitalismo do Século XXI" (2023, no prelo), no qual abordamos a barbárie social não apenas como um modo de subjetivação estranhada, mas também como uma forma de estruturação das pulsões humanas. Nesse contexto, torna-se importante aprofundar o diálogo com a psicanálise (e a crítica da psicanálise) (TOMSIC, 2015; McGOWAN, 2023). Neste ensaio, a elaboração crítica baseia-se fundamentalmente em Freud a partir de Marcuse (1979; 1975). Ao esvaziar o horizonte político dos conflitos de classe e promover o "tribalismo" como o novo transformismo social (MAFFESOLI, 1992) ou a "dessubjetivação de classe" (ALVES, 2011), o capitalismo neoliberal, em última instância, elaborou um modo de organização da base libidinal dos indivíduos: a "dessublimação neoliberal". Neste livro, destacamos o outro elemento compositivo do sociometabolismo da barbárie: a base tecnológica informacional a partir da qual se organiza a estrutura subjetiva e pulsional do capital (as novas "máquinas semióticas") (BERARDI, 2018).
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aceita a imediaticidade de sua condição imposta pelo status quo social, sem veleidades de "transcendência" e sem verdadeira aspiração à autodeterminação. Segundo Lukács, trata-se do "indivíduo no estado de particularidade". Na era da barbárie social, a individualidade humana está fetichizada em um patamar histórico superior devido à profunda debilitação da consciência de classe. Portanto, o sociometabolismo da barbárie representa o regime sócio-histórico do novo conformismo moral do sujeito humano, a partir do qual se organizam suas percepções, valores, atitudes e comportamentos. Identificaremos como elementos estruturantes da subjetividade da barbárie social o "narcisismo da pequena diferença" e as formas de "ensimesmamento", isto é, o identitarismo social e o "politicamente correto" (FRIEDMAN, 2018; ZHOK, 2020).
A crise do Estado capitalista
No começo da década de 1970, período da primeira recessão global após a Segunda Guerra Mundial, delinearam-se os traços do metabolismo social da nova temporalidade histórica do capital. A grande crise capitalista de 1973-1975 expôs a profunda crise do Estado capitalista. Na década de 1980, várias instâncias da vida social foram reestruturadas. Por exemplo, na política, tivemos o neoliberalismo; na produção, as novas tecnologias digitais/informacionais e a forma de gestão toyotista; na economia, a financeirização da riqueza capitalista e o poder do capital financeiro; no mundo do trabalho, a nova divisão internacional do trabalho e a forma flexível da precariedade salarial; na cultura, o pós-modernismo, o ethos neoliberal, as políticas de identidade e mudanças na forma de subjetivação. Aprofundou-se o debilitamento do sindicalismo e a crise dos partidos socialistas e comunistas por conta do desmonte da objetividade da classe operária, tendo em vista o novo (e precário) mundo do trabalho. O imperialismo dos EUA se reordenou e contra-atacou no plano geopolítico visando destruir a URSS. Intensificou-se a manipulação social e a disseminação da visão de mundo do pós-modernismo, dos novos valores da ordem neoconservadora e, como resultado, o sociometabolismo da barbárie.
Portanto, a crise do Estado capitalista ou da velha ordem liberal na década de 1970 foi "resolvida" com a constituição da nova materialidade política do capital: o Estado neoliberal, o Estado ampliado (sociedade política e sociedade civil). A
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produção da sociedade civil neoliberal foi feita por meio das novas formas de subjetivação capitalista: o sociometabolismo da barbárie.
Nosso ponto de partida metodológico é o conceito de "crise estrutural do sistema do capital". É a partir dele que a crise capitalista é explicada em sua radicalidade. Não se trata de mais uma crise capitalista – é por isso que é a crise estrutural. Ao adotarmos o conceito de "crise estrutural do sistema do capital", operamos um curto-circuito temporal. O futuro não é mera continuidade do passado. O porvir está prenhe de manifestações qualitativamente novas que expõem a nova era do capitalismo global ou do capitalismo manipulatório em sua forma extrema: o hipnocapitalismo.
Com a crise do Estado capitalista, ou o Estado do liberalismo social, surgiu historicamente, como produto da luta de classes, uma nova forma política no interior da qual a dominação do capital iria se desenvolver: o neoliberalismo. O Estado neoliberal é o Estado da nova precariedade salarial e o Estado da dessubjetivação de classe (ou do desmonte da consciência de classe); é o Estado da "mais- manipulação"7, do ethos do particularismo e da violência simbólica (ou da ultraviolência). O Estado neoliberal é o "Estado do mal-estar" e da insegurança social. Enfim, é a materialidade política a partir da qual se constitui o novo poder do capital e da nova forma de subjetivação alienada.
Os conceitos de crise estrutural do sistema do capital e de sociometabolismo da barbárie nos remetem à crise permanente do "Estado de Bem-estar" e das democracias representativas, em decorrência da crise fiscal e da crise de legitimação. Um aspecto da crise estrutural, enquanto crise social crônica, é a crise da juventude proletária: o "precariado". Na sua forma originária, a crise da juventude se manifestou, por exemplo, nas décadas de 1950 e 1960 nos EUA e Reino Unido, com as gangues de delinquentes, a contestação juvenil e a contracultura8. Mais tarde, com o capitalismo neoliberal da década de 1980, a crise da juventude se manifesta – por
7 Parafraseamos os conceitos de “mais-repressão” e de “mais-desempenho” criados por Herbert Marcuse em “Eros e Civilização” (1955) para caracterizar o excesso de “repressão” e “desempenho” que caracteriza a ordem do capital (ou como ele diz, a sociedade industrial).
8 O cinema de Hollywood retratou com vigor a rebeldia juvenil que ocorria nas sociedades capitalistas afluentes no período histórico da “alta modernidade”. É o caso, por exemplo, dos filmes clássicos “Juventude Transviada”, de Nicholas Ray (1955) e “O Selvagem”, de Lászlo Benedek (1953) (ou ainda “Os Incompreendidos”, de François Truffaut, de 1959). Enfim, o tema da crise da juventude tem sido até hoje, objeto da filmografia mundial, demonstrando a crise da juventude é um aspecto ineliminável da crise estrutural do sociometabolismo do capital.
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exemplo - no drama do "precariado", considerado por nós como sendo a camada social do proletariado jovem altamente escolarizado e inserido em situações de desemprego e trabalho precário. A crise da juventude é a crise da futuridade, sendo isto um aspecto importante do sociometabolismo do capital (STANDING, 2013; ALVES, 2013).
A crise da ordem liberal e o neoliberalismo
A crise do liberalismo social é a manifestação fenomênica da crise do Estado capitalista fordista-keynesiano (HARVEY, 1991) diante das contradições abertas pelo novo tempo histórico. A crise estrutural do sistema capitalista minou a base material de legitimidade (e eficácia) das instâncias ideopolíticas do liberalismo social. Como resultado histórico da derrota da classe operária na década de 1970, o neoliberalismo se tornou governo no Reino Unido (em 1979) com a primeira vitória eleitoral de Margaret Thatcher, do Partido Conservador; e nos EUA (em 1980) com a primeira vitória eleitoral de Ronald Reagan, do Partido Republicano. A partir daí, constituiu-se efetivamente o Estado capitalista neoliberal.
A crise estrutural do sistema capitalista nas décadas de 1960 e 1970 evidenciou a necessidade de uma nova subjetivação capitalista. O discurso da velha ordem liberal baseava-se na "ordem natural das coisas" e nas imposições de uma exterioridade para legitimar o poder burguês (como, por exemplo, a Igreja tradicional e o Estado social burocrático). No entanto, enquanto atua como força de conservação do Estado capitalista, a ideologia liberal teve de acompanhar o desenvolvimento contraditório do modo de produção capitalista, adaptando-se às mudanças profundas na materialidade do capital, decorrentes do avanço das forças produtivas e das relações sociais de produção, e até mesmo na correlação de forças entre as classes sociais. A crise da antiga subjetivação do liberalismo social indicou a necessidade de constituir uma nova forma de subjetivação liberal, adequada à era da crise estrutural do sistema capitalista.
Podemos distinguir diferenças entre o liberalismo clássico, o liberalismo social e o neoliberalismo no que se refere às formas de subjetivação, ou seja, à posição do sujeito diante da contradição essencial entre capital e trabalho. A ideologia liberal derivou da contradição entre a aparência e a essência do modo de produção
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capitalista, isto é, a contradição entre a esfera da circulação mercantil, onde as pessoas aparecem superficialmente (aparência) como indivíduos iguais, detentores de propriedade, livres e racionais; e a sua essência, ou seja, as pessoas são membros de classes sociais inerentemente desiguais, atuando como sustentáculos de relações sociais que se reproduzem de maneira cega e infinita (FAUSTO, 1987). A contradição crucial do pensamento liberal está enraizada no próprio modo de produção capitalista. Na aparência da circulação, trabalhadores e capitalistas trocam equivalentes,
mas sob essa superfície, em sua essência, reside o oposto. A reprodução contínua da relação social de produção revela a base do sistema, ou seja, que o trabalho morto se alimenta do trabalho vivo e que tal relação era de fato uma relação entre desiguais, uma relação através da qual a classe capitalista se apropria da riqueza produzida pela classe trabalhadora.
O liberalismo clássico
O liberalismo clássico se caracteriza pela defesa da liberdade de comércio, do mercado livre – particularmente no que diz respeito à compra e venda da força de trabalho – e da estabilidade do padrão monetário. Ele destaca o caráter espontâneo e benéfico do sistema econômico capitalista. A "mão invisível" garante que existe uma coincidência entre o interesse individual e o interesse geral, constituindo-se, assim, em uma justificativa para restringir ao máximo a atuação do Estado (que deve prover apenas infraestrutura, defesa, segurança e justiça), permitindo total liberdade de ação aos interesses privados.
O liberalismo clássico enfoca o aspecto formal da relação entre trabalho assalariado e capital, ressaltando e acentuando o lado positivo e superficial do modo de produção capitalista (seu primeiro momento) a fim de impedir uma compreensão aprofundada de sua natureza (ou de seu segundo momento).
O liberalismo social
O liberalismo social emergiu historicamente quando a aparência do modo de produção foi desmentida pela prática histórico-social (a luta de classes), tornando-se perigoso para os capitalistas se apegarem apenas à forma da relação social de
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produção. Isso ocorreu quando a conservação do sistema foi ameaçada pela radicalidade das lutas sociais de classe e pelas crises econômicas que as aprofundaram ainda mais (décadas de 1930 e 1940). Nesse contexto, a ideologia não pode mais se sustentar somente na aparência da relação social; é necessário agora levar em conta a essência dessa relação.
A fórmula que emerge da ideologia do liberalismo social consiste em apresentar a essência, não como essência em si, mas como diferença: há duas forças sociais em confronto, distintas entre si - uma é mais fraca que a outra; uma consome insuficientemente e a outra poupa demais; uma não encontra ocupação e a outra não cria ocupações em quantidade suficiente para manter a paz social. Assim, a essência do capitalismo não aparece nessa visão política como exploração, mas sim como má distribuição de renda e riqueza, como diferença e desigualdade que o reformismo pode alterar.
O liberalismo social caracterizou o Estado fordista-keynesiano ou social- democrata após a Segunda Guerra Mundial. Nesse contexto, cabe ao Estado atuar como força equilibradora. A política econômica keynesiana e a política social- democrática começaram a ocupar o centro do cenário a partir dos anos 1930 do século
XX. A realidade da grande indústria capitalista desenvolvida, a luta de classes e o movimento operário na primeira metade do século XX minaram a aparência isonômica do sistema (a desigualdade aparecia não como contradição, mas como diferença) (FAUSTO, 1997). O otimismo do liberalismo clássico transformou-se no cauteloso liberalismo social: reconheceu-se que a mão invisível do mercado precisa, até certo ponto, do poderoso braço do Estado, que deve regular ativamente a atividade econômica. A comunidade ilusória do Estado capitalista aparece como uma comunidade econômica capaz de garantir o bem-estar de cada indivíduo. David Harvey (1992) chamou essa comunidade econômica de "compromisso fordista".
O neoliberalismo
No neoliberalismo, o Estado deve ser um agente econômico ativamente passivo. Ele deve criar ativamente as condições para a acumulação de capital, proteger os monopólios das crises econômicas, enfraquecer o poder dos sindicatos dos trabalhadores assalariados, despojar os trabalhadores da seguridade social,
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privatizar empresas públicas e transformar a oferta de bens públicos (como estradas, portos etc.) em serviços mercantis. Além disso, o Estado deve não apenas remover os obstáculos ao funcionamento dos mercados e das empresas, mas também criar condições para que operem de maneira lucrativa, já que vivemos na era da queda da taxa de lucratividade do capital (a grande crise capitalista de meados da década de 1970 foi uma crise de lucratividade). Essa é a particularidade histórico-concreta do neoliberalismo em relação ao liberalismo social.
No liberalismo clássico, o Estado nunca pode atuar como agente econômico. No neoliberalismo, o Estado deve preencher ativamente as lacunas da malha financeira e produtiva, mas deve fazê-lo, sempre que possível, não por meio de suas próprias empresas, mas preferencialmente delegando atividades econômicas complementares às empresas privadas por meio de contratos de gestão (as Parcerias Público-Privadas).
Tal como o liberalismo social, o neoliberalismo reconhece a contradição entre capital e trabalho assalariado, embora de maneira velada. No entanto, diferentemente do liberalismo social, a contradição e a disposição para o conflito social devem ser necessariamente bloqueadas por meio da "dessubjetivação de classe". Dessa forma, a contradição entre capital e trabalho deve ser objetivamente neutralizada através da política (subjetivação) de "fragmentação de classe" e do enfraquecimento social e político das instituições de defesa do trabalho (partidos e sindicatos de classe).
Assim, a nova forma de legitimação política (e de subjetivação social) ocorre por meio da "hiper-manipulação" e da construção de uma ordem moral - não apenas uma ordem natural - capaz de instituir um novo consentimento a ser buscado "de dentro" do indivíduo, e não mais através de dispositivos "exteriores" e seus braços poderosos (Deus e Estado-Providência). Desse modo, a ordem neoliberal busca consentimento por meio da "moral do mercado" e da concorrência (e competição) exacerbada, consolidando novas formas de subjetivação alienada. Isso resulta em um novo ambiente social capaz de moldar o sujeito neoliberal como "neosujeito" ou sujeito competitivo, que se diferencia do sujeito produtivo da era do liberalismo social (DARDOT e LAVAL, 2016). A carga psíquica do novo ethos social e da "hiper- manipulação" é elevada, uma vez que o sujeito competitivo enfrenta ansiedade e depressão. Para se adaptar subjetiva e pulsionalmente, o sujeito neoliberal se
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posiciona no limiar da "perversão comum". Na verdade, o perverso tornou-se a regra subjetiva para a adaptação à ordem neoliberal (LEBRUN, 2022).
Mais-manipulação e a nova hegemonia do capital
A antiga ordem liberal da sociedade burguesa caracterizava-se por uma imensa e dispendiosa estrutura arquitetônica, como fábricas e prisões, sustentada por um corpo burocrático medíocre, repleto de interesses corporativistas e ineficiente para lidar com as novas condições de produção de mais-valor e de administração da ordem pública fragmentada pela crise social. O que se destacava no Estado capitalista liberal era o aspecto disciplinar e burocrático, com procedimentos minuciosos de controle panóptico. O Estado político é parte intrínseca do controle da ordem sociometabólica do capital. Assim, ele deve adequar-se ao novo sociometabolismo do capital e não o contrário, como supõe o voluntarismo político.
Nas décadas de 1960 e 1970, o enfraquecimento do sociometabolismo da antiga ordem disciplinar do liberalismo social, devido à crise da produção e reprodução capitalista e à ascensão da luta de classes, gerou a necessidade de um novo princípio de subjetivação capaz de resgatar a hegemonia social do capital. É importante considerar que a manipulação adicional que caracteriza o hipnocapitalismo decorre da necessidade de constituir a nova hegemonia do capital nas condições históricas de sua crise estrutural. A noção de "mais-manipulação" visa introduzir uma dimensão histórica na equação geral do capitalismo e manipulação de Lukács (ALVES, 2022). Assim como a noção de "mais-repressão" de Marcuse (1985), ela se identifica com o conceito de mais-valia de Marx, que é a medida da exploração da força de trabalho humana no capitalismo, distinta de outras sociedades de classe. Portanto, podemos afirmar que há um nível mínimo de manipulação, necessário e intrínseco ao funcionamento do capitalismo. Uma boa parte da manipulação no capitalismo neoliberal se tornou necessária por força de uma determinada forma histórica da civilização capitalista – a forma histórica da crise estrutural do sistema do capital. A maior parcela da manipulação no hipnocapitalismo consiste, de fato, em mais- manipulação, ou seja, manipulação a serviço do processo de subjetivação neoliberal e, consequentemente, a serviço do sociometabolismo da barbárie.
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Embora a hegemonia não se restrinja à manipulação, a "mais-manipulação" foi necessária para a constituição da hegemonia do capital. Sobre o conceito de hegemonia, Raymond Williams (2011) afirma:
[...] a hegemonia não pode ser entendida em termos de mera opinião ou manipulação. É tudo um conjunto de práticas e expectativas; o investimento de nossas energias, nossa compreensão comum da natureza do homem e de seu mundo. Falo de um conjunto de significados e valores que, vivenciados como práticas, parecem se confirmar. A hegemonia, portanto, constitui um senso de realidade para a maioria das pessoas em uma sociedade, um sentido absoluto porque é uma realidade vivida além da qual se torna muito difícil para a maioria dos membros da sociedade se mover e que abrange muitas áreas da sociedade (WILLIAMS, 2011, p. 53).
O que o capital fez a partir da década de 1980 foi construir a hegemonia neoliberal, cuja base subjetivo-pulsional é a barbárie social. A "mais-manipulação" do hipnocapitalismo teve a função sociometabólica de construir essa hegemonia neoliberal. Em resumo, a crise estrutural do sistema do capital alterou o metabolismo social e o processo de subjetivação humana, evidenciando a necessidade de desenvolver "um conjunto de práticas e expectativas" ou, em termos pulsionais, "o investimento de nossas energias e nossa compreensão comum da natureza humana e de seu mundo". Buscou-se constituir nas novas gerações "um conjunto de significados e valores que, vivenciados como práticas", confirmam a hegemonia como senso de realidade para a maioria das pessoas em uma sociedade9. Dessa forma, o neoliberalismo estabeleceu a moral do neoconformismo capaz de instituir a legitimação social e ocupar, por exemplo, o vazio da ineficácia das instituições disciplinares do Estado social liberal.
O capitalismo neoliberal é o capitalismo da "fábrica da barbárie social", ou seja, o capitalismo da "captura da subjetividade" e do "novo panopticismo" (discutido no livro "Trabalho e Subjetividade", ALVES, 2011). As técnicas de subjetivação neoliberal visam manipular afetos e associá-los a situações específicas da vida e do trabalho. O núcleo do ser individual foi manipulado, moldando seu psiquismo para adaptar o
9 A construção social da hegemonia neoliberal significou esvaziar o sentido conflitivo do tempo passado. O neoliberalismo enquanto revolução cultural renega o passado de luta de classes, operando um curto- circuito temporal capaz de ressignificar a tradição histórica e a memória pública da luta coletiva. Eric Hobsbawn reconheceu isso quando observou o fenômeno da “presentificação crônica”. A aceleração social e a “mais-manipulação” contribuem efetivamente para a elaboração de um “passado puro”, esvaziado da negatividade da luta de classe, um passado “particularista” ressignificado pela singularidade e diferença do tempo presente (ZIZEK, 2012).
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sujeito à nova precariedade salarial (a insegurança das novas formas de contratação trabalhista, as novas abordagens de gestão de metas e o trabalho precário) (ALVES, 2022) e às condições da "vida reduzida" (ALVES, 2016).
A manipulação adicional do hipnocapitalismo (a "mais-manipulação") visa fabricar a hegemonia neoliberal e produzir o conformismo moral adequado às condições da concorrência capitalista. Os indivíduos foram reduzidos ao "estado de particularidade" (o hipnocapitalismo é o "capitalismo do sono" - o sono do pensamento negativo ou da consciência de classe). Conformar-se moralmente significa consentir. O neoliberalismo gerou "consentimentos espúrios", manipulando afetos como medo e culpa.
As condições de sociabilidade no trabalho no capitalismo global (o capitalismo da superexploração do trabalho) são extremamente propícias para a produção de medo (e culpa). A insegurança salarial, os empregos precários e o desemprego em massa permitem que o sistema do "mais-desempenho" (MARCUSE, 1985) cultive os afetos mais regressivos da alma humana: o medo e a culpa. Ao mesmo tempo, deixado à própria sorte, o neossujeito competitivo sofre com o fracasso social. O sujeito competitivo tornou-se ansioso e depressivo, tendo em vista que a nova ordem neoliberal o condenou a competir e nem sempre ser bem-sucedido. Caso não consiga ter sucesso e alcançar as metas, o sujeito competitivo está condenado a se autoculpabilizar.
No passado, o liberalismo social promoveu a revelação progressiva da não- verdade da identidade entre capital e trabalho. A desigualdade aparecia não como contradição, mas sim como diferença. O liberalismo social substituiu a igualdade abstrata do liberalismo clássico, onde o Estado atuava como árbitro entre iguais, pela diferença pela diferença entre as partes. A luta de classes e o conflito social obrigaram a intervenção da identidade no seu contrário e a "atenuação" da contradição em diferença. Na verdade, a diferença é a categoria central do reformismo (FAUSTO, 1987).
O neoliberalismo – assim como o liberalismo clássico e o liberalismo social – mistifica a contradição entre as classes. Da mesma forma que no liberalismo social, a desigualdade entre as partes não aparece como contradição, mas sim como diferença. Entretanto, a regulação da diferença no neoliberalismo não é a mesma do liberalismo social – que era uma regulação estatal. O neoliberalismo "regula" a
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diferença desregulamentando e subvertendo a materialidade do conflito de classe, bloqueando, enfim, a luta de classes por meio da "dessubjetivação de classe". Louis Baudin, um dos expoentes da corrente de pensamento neoliberal, teria afirmado: "O Estado deve ser um soberano que prepara sua própria abdicação." Portanto, o Estado neoliberal é aquele em que a nova ordem deve transcender o Estado político "exterior" do antigo liberalismo, instaurando o princípio da dominação capitalista no interior de cada indivíduo por meio da "captura" da subjetividade.
A dessubjetivação de classe e a subjetivação neoliberal operaram-se historicamente por meio de dois movimentos: (1) a destruição da consciência de classe e da perspectiva da luta entre capital e trabalho, enfraquecendo, assim, o ideal (e a prática social) do "coletivo" (o que ocorreu nas últimas décadas da globalização capitalista, a reestruturação produtiva e o declínio social-político e ideológico de sindicatos e partidos comunistas e socialistas); e (2) a disseminação do sociometabolismo da barbárie, caracterizado pela redução do indivíduo ao "estado de particularidade" (o particularismo). Nesse processo de subjetivação neoliberal, o papel da mídia foi fundamental como meio de comunicação de massa. Logo após a Segunda Guerra Mundial, Jacques Lacan observou que os perigos do futuro humano no século XX dizem respeito "[aos] meios de agir sobre a psique, e o manejo combinado de imagens e paixões que já foram usadas com sucesso contra o nosso julgamento, nossa resolução e nossa unidade moral, dará origem a novos abusos de poder" (LACAN, 2003, p. 125). Com as novas tecnologias informacionais, a técnica de manipulação neoliberal exacerbou seu poder de utilizar "paixões e imagens" visando fabricar a nova subjetivação capitalista. Marcuse (1985) e Lukács (1968) alertaram – cada um à sua maneira - sobre a nova forma de ser do neocapitalismo ou do "capitalismo manipulatório" (ALVES, 2022). No entanto, eles apenas estavam nos primórdios do capitalismo manipulatório que alcançaria seu patamar superior com o capitalismo global: o "hipnocapitalismo", produtor de um novo princípio de subjetivação social.
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Estranhamento de particularismo
O filósofo Georg Lukács apresentou em sua "Ontologia do Ser Social" elementos teóricos para uma teoria do estranhamento capaz de fundamentar a crítica do capitalismo manipulatório, principalmente do capitalismo da "mais-manipulação" (o hipnocapitalismo). Ao enfatizar o particularismo ou a redução do indivíduo ao "estado de particularidade" como um elemento fundante (e fundamental) do estranhamento, Lukács revelou a verdadeira natureza da nova etapa do capitalismo manipulatório.
Em "Para uma Ontologia do Ser Social", Lukács estabeleceu uma autêntica fenomenologia da subjetividade com o intuito de elucidar as bases socioculturais do fenômeno do estranhamento (TERTULIAN, 2016). O filósofo húngaro diferenciou dois níveis de existência social: a humanidade em-si e a humanidade para-si.
A principal característica da humanidade em-si consiste na tendência de reduzir o indivíduo à sua mera "particularidade". Essa condição é vista como a barbárie social, uma forma histórica de distorção da natureza humana ou de estranhamento nas circunstâncias históricas do capitalismo desenvolvido. O particularismo, nesse contexto, representa o estranhamento fetichizado que impede o desenvolvimento humano como uma genericidade para-si - ou seja, a genericidade expressa na busca por uma "personalidade não mais particular" [nicht mehr partikulere Persönlichkeit].
Para Lukács, o ato teleológico [teleologische Setzung], considerado como fenômeno primordial e o princípio dinâmico da vida social, se divide em dois movimentos distintos: a objetificação [die Vergegenständlichung] e a exteriorização [die Entäusserung]. No âmbito do mesmo ato - a ação teleológica do trabalho - encontramos a conjunção, ou a possível divergência, entre esses dois momentos (objetivação e exteriorização), abrindo espaço para a possibilidade do estranhamento. Os dois movimentos podem convergir ou divergir, conforme a organização social. Contudo, Lukács valoriza o espaço de autonomia relativa da subjetividade em relação às demandas da produção e reprodução social. Mesmo diante de uma situação idêntica, como, por exemplo, a sociedade de classes, o espectro das reações subjetivas (a "exteriorização da interioridade" por meio da escolha moral) pode ser bastante amplo, variando desde a aceitação da ordem estranhada até sua rejeição (TERTULIAN, 2016).
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O domínio do estranhamento está situado no "espaço interior" do indivíduo. O estranhamento é uma escolha moral do indivíduo, manifestando-se, por exemplo, pela contradição vivenciada entre, de um lado, a aspiração pela autodeterminação da personalidade e a multiplicidade de suas qualidades (a omnilateralidade da personalidade humana); e, de outro, a conformação moral dos indivíduos diante das atividades que visam à reprodução do todo estranhado (o "homem unidimensional", conforme Marcuse, 1979). Dessa forma, a distorção entre objetivação e exteriorização (a produção social e a apropriação privada que caracterizam o todo social nas sociedades de classe) possibilita o estranhamento, à medida que o indivíduo se comporta como agente da reprodução social, aceitando o status quo; ou, em contrapartida, age como sujeito da autoexpressão de sua personalidade, realizando atos de resistência e oposição ativa. O indivíduo enclausurado em sua autossuficiência, aceitando a imediatidade de sua condição imposta pelo status quo social, sem anseio de "transcendência" e sem verdadeira aspiração à autodeterminação, é, para Lukács, o indivíduo em estado de "particularidade", o agente por excelência da humanidade em-si10. A transição para a verdadeira existência humana implica em "posicionar-se", assumindo uma forma de "dever ser” [Sollen] ou a vontade de reencontrar uma força ativa no âmago da consciência humana, contrapondo-se aos imperativos de uma existência social heterônoma.
A barbárie social representa o enfraquecimento da luta contra a inautenticidade11. Segundo Lukács, os grandes conflitos histórico-sociais se transferem para o âmago da consciência dos sujeitos individuais: "A tensão entre 'autenticidade' e 'inautenticidade' é observada, por exemplo, na luta do sujeito para transcender sua mera particularidade e alcançar - sem excluir o declínio trágico a que está sujeito durante o embate - o patamar da verdadeira humanidade". Entretanto, a barbárie social neutraliza a tensão entre "autenticidade" e "inautenticidade", eliminando-a do horizonte subjetivo dos indivíduos. A barbárie social não é apenas o declínio trágico do sujeito no decorrer do conflito, mas a ausência do próprio embate
10 Através de exemplos literários, tomados principalmente da literatura do século XIX, mas recorrendo também a alguns grandes nomes da literatura do século XX (O'Neill, Elsa Morante, Styron, Thomas Wolfe ou Heinrich Boll), Lukács tenta traçar no seu texto "Elogio do século XIX”, a linha divisória entre a "particularidade" dos sujeitos alienados e “o nicht mehr partikulare Persönlichkeit que encarna a aspiração à autêntica humanidade".
11 A luta contra o que Lukács chama de die Unechtheit des Mensche, foi o leitmotiv dos últimos escritos teóricos de Lukács (a parte final da “Ontologia do ser social” e páginas essenciais dos “Prolegômenos”).
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pela autodeterminação da personalidade e pela ruptura dos sedimentos da reificação e da alienação. O particularismo representa o confinamento das individualidades humanas na autossuficiência e na rejeição do Sollen (a transcendência do dado).
O particularismo é a forma ideológica específica do estranhamento nas condições históricas da sociedade do fetichismo social (não apenas o fetichismo da mercadoria, mas também outras formas de fetichismo social, como o fetichismo da tecnologia ou o fetichismo do dinheiro, por exemplo). Revelar o particularismo exige não apenas a teoria do estranhamento, mas também a teoria do fetichismo social. Ao qualificar historicamente o estranhamento, o fetichismo social surge como o elemento que confere opacidade e falta de transparência à dominação social.
Por exemplo, o conformismo social da ordem burguesa tardia, no qual o indivíduo se isola em sua autossuficiência, aceitando a imediatidade de sua condição imposta pelo status quo social, sem anseio por "transcendência" e sem verdadeira aspiração à autodeterminação, configura um conformismo fetichizado. O gozo (prazer alienado) leva o indivíduo a ser determinado pela exterioridade (LACAN, 1992).
Portanto, isolar-se no estado de "particularidade" é permitir-se ser guiado pelas determinações alienadas do aparato. Trata-se de tornar-se a "personificação da coisa" [Personifizierung der Sachen], que ocorre quando o sujeito é absorvido pelo funcionamento da coisa, transformando-o em um mero objeto ou, mais precisamente, em um sujeito-objeto atuante na reprodução "automática" da força alienante (como o mercado ou o poder imperialista, por exemplo).
Reificação, coisificação e fetichismo
Para a crítica da barbárie social a partir da crítica da economia política de Karl Marx, torna-se necessário criticar a economia psíquica do capital. Foi o que procuramos fazer ao incorporar de modo ensaístico, o marxismo ontológico (de Lukács), a crítica do metabolismo social da forma-valor e a psicanálise (Freud a partir de Marcuse e Lacan). Realizar a crítica do capital no século XXI requer a análise do sociometabolismo da barbárie. A crítica da economia política em si é insuficiente para a análise do capital no século XXI, na medida em que a barbárie social, ou o sociometabolismo da barbárie, se fundamenta em um processo específico de
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subjetivação e de organização das energias pulsionais dos indivíduos – além da ordem da economia política propriamente dita12.
Como fundamentar ontologicamente a necessidade da crítica da economia psíquica a partir da crítica da economia política feita por Marx? Para isso, é necessário elaborar, primeiramente, uma teoria do estranhamento (Lukács) e, em seguida, uma teoria da coisificação e do fetichismo (Marx), capaz de fundamentar a base materialista histórico-ontológica da processualidade da subjetivação e da organização pulsional dos indivíduos (Freud).
Ao tratar, nos "Manuscritos Econômico-Filosóficos" (1844), da "alienação- autoalienação", Marx expõe a necessidade do tratamento dialético (e materialista) dos processos de subjetivação das individualidades alienadas. Marx e Engels (2007) afirmam, na "Ideologia Alemã", que é o ser social que determina a "consciência" [bewusstsein] (ou, literalmente, consciência "do ser"). Contudo, podemos dizer também, da mesma forma, que a "consciência do ser" é consciência. Isso significa que a determinação histórica, materialista e dialética é uma determinação complexa ou "determinação determinada" (MÉSZÁROS, 2008, p. 57)13. Assim, "ser social- consciência", "alienação-autoalienação", "objetividade-subjetividade" são pares dialéticos. Outro ponto a destacar é que (2) por ser histórica, a determinação (complexa) evolui no tempo-espaço de maneira desigual e cumulativa, ou seja, ela está sujeita à passagem da quantidade à qualidade (saltos qualitativos) e a desenvolvimentos desiguais e combinados.
12 Gyorgy Lukács (2020) observou, em uma entrevista de 1967, que "os seguidores de Freud têm buscado sustentar as ideias de Freud com a ajuda do marxismo", o que indicava – naquela época - um crescente interesse pelo marxismo no Ocidente. Provavelmente, Lukács tinha em mente figuras como Sartre, Adorno, Marcuse e Lacan. No entanto, a aproximação entre a crítica da economia política e a metapsicologia de Freud tem sido praticamente inexistente, tendo algumas experiencias críticas esparsas (SCNHEIDER, 1973). Consideramos o diálogo entre marxismo e psicanálise fundamental para a elaboração de uma crítica à economia psíquica do capital, capaz de revelar os mecanismos do sociometabolismo da barbárie. Por exemplo, identificamos interessantes elementos para uma economia psíquica do capital na reflexão de Marcuse em "Eros e Civilização" (1955), com o conceito de mais-repressão; e nas reflexões de Jacques Lacan no "Seminário 20", também conhecido como "Ainda" ou "Encore", originalmente proferido entre os anos de 1972 e 1973, com o conceito de "mais- de-gozar". Atualmente, as reflexões inspiradas na psicanálise lacaniana de Slavoj Zizek (2019), Samo Tomsic (2015) e Todd McGowan (2023) são particularmente interessantes. Por outro lado, falta a Soren Mau (2023) e aos marxistas que discutem o metabolismo social da forma-valor (Tairako, 2017; Otani, 2018; Saito, 2021) um fundamento psicanalítico necessário, capaz de explicar, por exemplo, os mecanismos inconscientes da "captura" da subjetividade e da organização pulsional dos indivíduos sob as condições históricas do sociometabolismo da barbárie.
13 Sobre o significado de “determinar”, ver WILLIAMS, 2007.
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Isso implica que: (1) o capitalismo historicamente mais desenvolvido envolve ontologicamente um maior desenvolvimento da subjetividade humana (o processo de desenvolvimento do ser determina, de maneira intensa e extensa, o desenvolvimento complexo da consciência do ser); (2) o capitalismo historicamente mais desenvolvido significa, ontologicamente, capitalismo exposto à crise de seus fundamentos (a lei da tendência da queda da taxa de lucros) e às suas contradições fundamentais (e metabólicas); e (3) para que o sistema sobreviva a elas (crise e contradições cumulativas), a manipulação (e a mais-manipulação) da luta de classes (oculta) e da subjetividade (contingente) das massas torna-se efetivamente uma necessidade sistêmica. Autores como Paulo Netto (2015) reconhecem que a manutenção funcional do capitalismo tardio tem como seu elemento axial a "reificação" – o que explica a resistência histórica do sistema capitalista, cuja falência histórica a crítica teórica vem anunciando há muito (o termo correto – verdinglichung, traduz-se por "coisificação"). Contudo, com a crise estrutural do capital, a coisificação e o fetichismo se exacerbam em termos diretamente proporcionais à manifestação da crise e suas contradições (o que explica a mais-manipulação). É nesse sentido que se coloca a importância da crítica da economia psíquica do capital adequada à época histórica de sua crise estrutural, quando a manipulação extra explícita o modo específico de operação qualitativamente novo dos elementos axiais de reprodução sistêmica (reificação, coisificação e fetichismo).
Encontramos em Karl Marx uma teoria da reificação [Versachlichung] e da coisificação [Verdinglichung]. A língua alemã possui duas palavras que representam a "coisa" [la chose em francês]: Sache e Ding, que têm significados diferentes, mesmo no alemão comum. Sache significa negócio, caso, causa (política ou social), resumidamente algo que deve sua existência a complexas relações sociais como pano de fundo; enquanto Ding representa uma coisa natural ou material. Marx considera que a essência comum da mercadoria, do dinheiro e do capital é serem relações entre pessoas convertidas em relações entre coisas.
Existem dois níveis diferentes de conversão de Sache em Ding. Na primeira fase (1), as relações entre os produtores de mercadorias se convertem em relações entre coisas [Sachen]. A mistificação das relações econômicas dá o primeiro passo com a coisa [Sache] representando uma relação social. A passagem das relações entre pessoas para relações entre coisas é a "reificação" (as coisas se interpõem entre
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as pessoas). A reificação é um processo da objetividade (e subjetividade) do ser social capitalista. Na segunda fase (2), a conversão dá mais um passo (de Sache para Ding). A dimensão das relações entre as coisas [Sachen] é "removida"; e uma coisa [Ding] "se mostra" como portadora de propriedades diferentes. Por exemplo, lucro, juros e a renda da terra são, em essência, nada mais do que fenômenos que expressam diferentes formas de sobretrabalho objetificado que o capital industrial extrai gratuitamente dos trabalhadores assalariados. No entanto, no nível fenomênico, suas relações com o trabalho excedente dos trabalhadores são completamente removidas: os meios de produção, o dinheiro e a terra "parecem ser" dotados pela natureza com a capacidade de gerar espontaneamente lucro, juros e renda da terra como seus frutos. Esse tipo de mistificação das relações econômicas na fase final é denominado "coisificação" [Verdinglichung], que significa a conversão de Sache em Ding, e é conceitualmente diferente da "reificação" [Versachlichung], que significa a conversão da pessoa em coisa [Sache] (LUKÁCS, 2018; TAIRAKO, 2017).
Na primeira fase de conversão, as relações sociais dos sujeitos "aparecem" como relações entre coisas [Versachlichung der Person]. Quando as coisas [Sache] adquirem o poder social para decidir o destino dos sujeitos produtivos, surge outra categoria: o conceito de Personifizierung der Sachen ou a "personificação das coisas". As coisas se interpõem entre as pessoas, e as pessoas as representam, tendo em vista que as coisas como mercadoria e dinheiro – por exemplo, não podem se movimentar no mercado por sua própria vontade. Para que possam funcionar socialmente como coisas, elas requerem agentes que movimentem as coisas ou sujeitos que representem subjetivamente as funções das coisas.
Observemos que a fenomenologia de Sache e Ding são operadas – a todo momento – pelas pessoas, tendo em vista que elas (as coisas) não podem se movimentar no mercado por sua própria vontade. A vontade (e o desejo) é das pessoas que as conduzem (ou são conduzidas). Inapelavelmente, se põe a dimensão da subjetividade dos indivíduos (produtores). É nesse sentido que a "personificação das coisas" [Personifizierung der Sachen] faz com que elas se tornem coisas [Ding]. Assim, este tipo de mistificação das relações econômicas em que Sache se converte em Ding é denominado "coisificação" [Verdinglichung]. Isto é o processo de subjetivação fetichizada do capital (veremos adiante o que é o fetichismo).
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Dessa forma, o capitalismo só funciona como sistema econômico porque os produtores aceitam e satisfazem (a dimensão do consentimento e coerção) as funções das coisas e seus requisitos de funcionalidade. O funcionamento da produção e reprodução do sistema é mediado pela subjetividade dos agentes sociais. Existe um gozo nesta operação de funcionalidade. Os sujeitos - por sua própria vontade subjetiva – agem ativamente como agentes fiéis das coisas. Assim, um produtor de mercadorias opera como sendo uma mercadoria personificada; e um detentor de dinheiro, opera como sendo dinheiro personificado. Esta é a dimensão estrutural do sistema, a posição do capital enquanto modo de metabolismo social (que entretanto, não exclui a luta de classe como contingência – os agentes sociais podem ser infiéis às coisas, o que é o campo da subjetivação da negatividade. Mas, deixados por si só, a estrutura funciona: eis a função da manipulação e da "mais-manipulação").
A "personificação das coisas" [Personifizierung der Sachen] nos mostra que a ação realizada pelas pessoas, embora atuem de acordo com sua livre vontade, não passa de função das coisas, com vontade e consciência das pessoas como portadoras das coisas. Nesse momento, as coisas [Sachen] se convertem em coisas [Ding]. Deixados de acordo com a consciência contingente – de acordo com sua "livre vontade" (o desejo de liberdade), os sujeitos não passam de agentes do funcionamento das coisas [Ding], que lhes aparecem como irremediáveis (coisas sócio-naturais).
A subjetivação independente das coisas [Subjektivierung] é baseada na atividade subjetiva por parte dos sujeitos. A troca de mercadorias só é possível porque os sujeitos portadores de mercadorias têm um desejo concreto de mercadorias e se reconhecem como detentores livres e iguais de mercadorias (a consciência contingente). O capitalista e o trabalhador assalariado se comportam ativamente como capital personificado e trabalho assalariado personificado. Embora os sujeitos atuem com vontade própria, eles agem de tal forma que o capital – como valor independente e auto-valorizante – é transformado em sujeito dominante no processo de produção.
A Personifizierung der Sachen, que converte Sachen em Ding, é a "coisificação". Ela diz respeito a um determinado processo de subjetivação que implica a vontade e o desejo. O sistema econômico reificado é mantido pela ação de sujeitos humanos com a consciência fetichizada. A reprodução coisificada do sistema é obra
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do fetichismo social (ação consciente ou da consciência fetichizada dos agentes humanos).
A reificação leva à coisificação (ou personificação das coisas). Não só as coisas se interpõem entre os seres humanos (reificação), mas também os seres humanos se identificam com elas (exteriorização estranhada). A coisificação - a vontade livre ou o desejo concreto dos agentes que lidam com as coisas [Sachen] e que se deixam conduzir por elas (coisas como Ding) - é o que faz com que o sistema capitalista funcione e se reproduza. "Vontade livre" e "desejo concreto", no plano da contingência, estão a serviço da produção e reprodução da ordem metabólica do capital (por exemplo, os indivíduos que operam - com vontade, desejo e sentimento - as engrenagens da burocracia, cumprindo sua função inexoravelmente e sendo eles próprios, peças da engrenagem, exemplificam a “coisificação”).
O entendimento conceitual acima apresenta como elemento fundamental (e fundante) para a crítica do capital, a crítica do processo de subjetivação fetichizado do capital (o poder das coisas enquanto Ding). A economia política é, fundamentalmente – embora não exclusivamente - a economia psíquica do capital. Ela é o núcleo racional da coisificação. Deste modo, nas sociedades produtoras de mercadorias, as relações sociais de produção aparecem como relações de coisas [Sachen] dotadas de propriedades sócio-naturais ("coisas sociais" que parecem naturais). A coisa [Ding] equipada com o poder social de governar sobre pessoas é o "fetiche" (lembrando que a coisificação ou o poder social das coisas decorre do processo de subjetivação fetichizado, isto é, a subjetivação que opera a coisificação produz o fetiche).
O fetichismo [Fetichismus] deve ser entendido como a consciência de produtores e outros agentes econômicos que "aceitam" a coisa [Ding] - o fetiche como fato social - externo, geral e coercitivo, tal como Durkheim conceituou "fato social" (2007). O fetichismo é a consciência invertida da reificação (e da coisificação). O conceito de fetichismo implica uma teoria da consciência do ser [Bewusstsein]: consciência contingente. A consciência fetichizada é a consciência contingente. O processo de subjetivação fetichizado significa a formação do indivíduo adequado para conduzir as coisas [Ding] ou o fetiche. O fetichismo é a consciência positiva das coisas que se inscreve na sociedade das mercadorias.
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Contudo, o fetichismo é inevitavelmente a consciência "natural" das sociedades produtoras de mercadorias, sendo expressão do domínio da pseudo-concreticidade (KOSIK, 1976). Deixado por si só, o fetichismo se impõe, constituindo a objetividade como subjetividade social, envolvendo não apenas a consciência, mas a pré- consciência e o inconsciente dos sujeitos psíquicos (o território da "captura da subjetividade") (ALVES, 2011).
Considerações finais
A discussão da barbárie social remete à análise do particularismo enquanto construção ideológico-moral (hegemônica) do capital no processo de subjetivação fetichizado. Como modo de operação da coisificação, o particularismo gera o regime do neoconformismo moral, fazendo com que indivíduos "com o ego enfraquecido" (MARCUSE, 1998) se rendam às políticas identitárias (ZHOK, 2022), à ideologia do "politicamente correto" e à sacralização das vítimas (FRIEDMAN, 2018). Contudo, há uma situação histórica que explica a dominância do particularismo e da subjetivação fetichizada no capitalismo neoliberal: a crise e a reestruturação capitalista a partir da década de 1970, a verdadeira ofensiva do capital na produção e reprodução social (a organização do trabalho e novas tecnologias), o enfraquecimento das instituições de defesa da classe (partidos e sindicatos) ou instâncias de produção da "consciência necessária" de classe, e a derrota do movimento operário e a crise da ideologia socialista e das representações coletivas.
A ofensiva do capital não foi apenas social e política, mas também cultural e psicológica: a "revolução do pós-modernismo" e a neocolonização da linguagem na década de 1980, operando a fragmentação ético-política da perspectiva de classe e da luta de classes, reduzindo os indivíduos aos seus interesses particularistas e introspectivos (o fechamento na esfera dos sentimentos e a derrocada da razão histórica). Portanto, é a história da luta de classes que explica por que as determinações reificadas, coisificadas e fetichizadas da ordem do capital se tornaram exacerbadas na cena social. Não se tratou do processo sócio-natural da ordem das coisas, mas do produto da luta de classes sob as condições materiais adversas do capitalismo do século XX. Fomos historicamente derrotados pelas coisas, e o neoliberalismo e a barbárie social são resultados históricos disso.
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O poder do fetichismo, que provocou a "ruptura do fluxo social do fazer" (HOLLOWAY, 2003) - o "fazer coletivo" na perspectiva de classe -, foi um resultado histórico objetivo e subjetivo da rendição das forças sociais e políticas de esquerda comunista e socialista ao corporativismo social e à politicidade estranhada, perdendo a capacidade ideológica de enfrentar a concorrência (o que explica a generalização da lei do valor). Na medida em que a totalidade social é constituída em si e para si, pela concorrência dos múltiplos capitais e pela concorrência entre os próprios proletários, sua forma de sociabilidade incorporou o espírito do particularismo.
Ao Estado neoliberal, não interessa a coesão social. Pelo contrário, a fábrica da barbárie social é um produto legítimo do Estado neoliberal - sociedade política e sociedade civil. O que interessa à sua reprodução é a fragmentação social, o "tribalismo" do mundo e a cultura do narcisismo (LASCH, 1983), que se tornaram o modus operandi da ordem neoliberal. A subjetivação neoliberal organiza a "desagregação da humanidade", cujo resultado efetivo são a ultraviolência e as formas de predação do outro. O que nos resta é ir além da economia política e desvelar a nova economia psíquica do capital, tratando-a não apenas como o modo de subjetivação exposto acima, mas também como forma de organização das energias pulsionais - os investimentos libidinais que sustentam a fábrica da barbárie social.
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V.21, nº 44, 2023 (janeiro-abril) ISSN: 1808-799 X
NEGACIONISMO E IDEOLOGIA: A ATIVIDADE TEÓRICA NOS PROCESSOS DE CONSCIÊNCIA1
Giovanni Frizzo2
Resumo
O objetivo deste texto é analisar a relação entre o negacionismo, entendido como uma expressão ideológica do atual período de crise sistêmica, e a atividade teórica que incide sobre os processos de consciência. O negacionismo articula as manifestações do senso-comum, da mitologia (religião) e da ciência/filosofia em torno de um projeto de dominação no qual o conhecimento crítico da realidade é combatido por uma perspectiva de ultrageneralizações e exacerbação do individualismo.
Palavra-chave: Negacionismo; Ideologia; Consciência.
NEGACIONISMO Y IDEOLOGÍA: LA ACTIVIDADE TEÓRICA EN LOS PROCESOS DE CONCIENCIA
Resumen
El objetivo de este texto es analizar la relación entre negacionismo como una expresión ideológica del actual período de crisis sistémica y la actividad teórica que incide sobre los procesos de conciencia. El negacionismo, articula las manifestaciones del sentido comum, de la mitología (religión) y de la ciencia/filosofía cerca de un proyecto de dominación en lo cual el conocimiento crítico de la realidad es combatido por una perspetiva de sobregeneralizacion y exacerbación del individualismo
Palabra clave: Negacionismo; Ideología; Conciencia.
DENIALISM AND IDEOLOGY: THE THEORETICAL ACTIVITY IN THE CONSCIENSE PROCESS
Abstract
The objective of this text is to analyze the relation between denialism as an ideological expression of the current period of sytemic crisis and the theoretical activity that focuses on the processes of consciousness. Denialism articulates the manifestations of common sense, mythology (religion) and science/philosophy around a project of domination in which critical knowledge of reality is fought from a perspective of overgeneralization and exacerbation of individualism.
Keyword: Denialism; Ideology; Conscience.
1 Artigo recebido em 10/02/2023. Primeira avaliação: 20/03/2023. Segunda avaliação: 22/03/2023. Aprovado em 30/03/2023. Publicado em 13/04/2023. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v21i44.57641.
2 Doutor em Ciências do Movimento Humano pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS), Rio Grande do Sul - Brasil. Professor da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), Rio Grande do Sul - Brasil.
E-mail: gfrizzo2@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/2344138672288053. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0025-9947.
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O objetivo deste texto é analisar a relação entre o negacionismo como expressão ideológica do atual período de crise sistêmica e a atividade teórica que incide sobre os processos de consciência. Compreendemos que o pensamento sobre o real é atravessado, neste momento, por um contexto de reconfiguração do padrão de acumulação capitalista que modifica a base produtiva e em decorrência disso altera também as representações que os sujeitos fazem da realidade. Este novo padrão de acumulação capitalista ultraliberal acompanhado da crise sanitária pandêmica ampliou o negacionismo como expressão ideológica para sustentar o conjunto de medidas da burguesia que precarizam ainda mais as condições de vida do povo trabalhador e sustentar políticas que se preocuparam com “o lucro acima da vida”, levando milhares de trabalhadores e trabalhadoras ao contágio e morte por Covid-19. O negacionismo como expressão ideológica é ampliado para as mais diversas esferas da vida cotidiana e para a definição de políticas de Estado. Não é apenas pelos aplicativos de bate-papo que se disseminam as chamadas “pós-verdades”, arraigadas em fakenews distribuídas nestas redes, mas também na produção do conhecimento científico/filosófico se proliferam pós-verdades e negacionismo que buscam relegar o conhecimento da realidade a um segundo plano em que a verdade não existe, que a realidade está em cada pessoa, que tudo é discurso e que a disputa se dá entre narrativas e não entre classes sociais, dentre outras expressões. Ou seja, se constitui uma ciência anti-científica que vai servir de argumento da classe dominante para justificar políticas de carestia e desmonte dos direitos sociais que
estamos vivenciando.
A argumentação que apresentamos neste texto discorre sobre estas relações que se apresentam no plano do senso-comum, da mitologia (religião) e da ciência/filosofia para compreendermos o negacionismo como uma expressão da ideologia da classe dominante. Para este fim, esboçaremos elementos sobre os processos de consciência que, dentre outros aspectos, também são colocados em movimento pela atividade teórica de sujeitos e de sua classe, pela representação que fazem de si internalizando a ideologia dominante ou confrontando estas transformando sua consciência.
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O ponto de partida é que a consciência é expressão das relações sociais de produção da existência. Portanto, na imediaticidade do que os indivíduos tomam para si como compreensão do mundo aparece a reprodução de ideias e valores próprios da classe dominante que se expressam como seus e que, atravessados por contradições da vida cotidiana, incorporam uma sociabilidade alienada também de si mesmo. Essa alienação é também uma expressão da consciência da classe e aqui importa destacar que não há um momento de “não-consciência” dos indivíduos, como se a consciência da classe fosse uma revelação profética ou um insight na vida de cada pessoa em sua caminhada.
Como expressa Iasi (2013, p. 72),
O proletariado não vive em outras relações, ele vive nas relações constitutivas do capital. Portanto, a primeira expressão de uma consciência social, que os trabalhadores tomam como sua, é a expressão das relações que eles compartilham com a burguesia na existência mesma da sociedade capitalista, na sua imediaticidade.
O conjunto das ideias dominantes da classe dominante é incorporado pelo indivíduo de forma invertida: não é uma consciência de si ou para si, mas uma forma ideológica em que o sujeito internaliza esse conjunto de ideias provenientes das relações de dominação capitalista e, mesmo com contradições entre os valores ideais que se chocam em contradições com o real, assume para si os objetivos que não são seus, mas da classe dominante, do capital na sociedade capitalista.
Com base na dialética materialista, nos cabe dizer uma obviedade - que contém ironia - e que, por vezes, é deixada de lado pela filosofia idealista: a consciência de classe “é o que ela é”, ela “não é o que ela não é”. Ou seja, por mais elaborada que a teoria política desenvolva seus preceitos e avaliações de conjuntura, o fenômeno material não é resultado destas teorias, o concreto é síntese de movimentos precedentes. É esta síntese que analisamos para compreender o fenômeno e isso não nos permite projetar uma ideia sobre a realidade como se as narrativas e discursos modificassem a situação real da consciência.
É a partir desta conexão entre a produção da vida material e as decorrentes
formas determinadas de consciência social que partimos para a investigação de nosso objeto. Assim como, a compreensão geral sobre os processos de consciência que nos
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fundamenta, parte do entendimento de Iasi (2014, p. 36): sendo o estudo da consciência “uma maneira de aferir o grau de maturidade da luta de classes expressa na luta entre concepções de mundo antagônicas, como grau de amadurecimento de novas formas de consciência que lutam ainda sob o invólucro da velha sociedade”.
A partir da luta entre classes antagônicas, se colocam em oposição as ideias da classe dominante e a forma objetiva do ser da classe dominada. Isto é, relações de poder e dominação de uma classe sobre outra vão constituir processos que visam a internalização dos preceitos burgueses para o conjunto da classe trabalhadora. Esta internalização não é imediata e absorvida como a verdade absoluta, mas atravessada por diferentes aspectos do ser da classe. As lutas de resistência, as individualidades isoladas, as manifestações de coletivos e outras determinações são fundamentais para compreender que as ideias da classe dominante são lastreadas pela forma como sujeitos, coletivos e classe assumem ou confrontam tal ideologia.
“As ideias da classe dominante são, em todas as épocas, as ideias dominantes, ou seja, a classe que é o poder material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, o seu poder espiritual dominante” (MARX; ENGELS, 2007, p. 67). Esta clássica frase explicita a compreensão geral da ideologia enquanto manifestação de dominação de classe a partir da objetividade do modo de produção.
E tendo em vista que o modo de produção capitalista vai se modificando de acordo com as suas próprias demandas produtivas e de poder político em cada período histórico e contexto particular, as suas ideias também se modificam ao longo do tempo correspondendo às novas situações e exigências para forjar e reproduzir a subjetividade da classe explorada e oprimida. Assim, se compreende que não há uma “ideologia absoluta” que atravessa o tempo como única expressão de dominação burguesa. O imperativo de ontem, hoje está superado.
Isso não significa dizer que a classe dominante foi superada, pelo contrário, suas ideias são revigoradas para adequar-se ao movimento próprio da história produzida pela massa de trabalhadores e trabalhadoras em contradição com as relações sociais de produção de cada contexto. A superação das antigas ideias não é originada em novas ideias, mas surgem a partir da realidade objetiva e concreta (com suas lutas e contradições), cujas transformações dão lugar à novas elaborações que correspondem a determinadas formas de consciência social necessárias para a burguesia manter-se dominante. A Internalização das ideias dominantes é diferente
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de absorção pura, simples e total; a internalização é um tipo de tradução das ideias dominantes pelo indivíduo através dos recursos (ou ferramentas) cognitivos e psíquicos que alcança naquele momento, ou seja, são mediações entre a ideia universal dominante e o estágio cognitivo do indivíduo que tem como resultado a tomada do particular como universal. Ou, ainda, como afirma Vigotski (2007, p. 56) a internalização é “a reconstrução interna de uma operação externa”.
Portanto, é imperativo compreender o movimento como elemento fundamental dos processos de consciência e sua relação com a ideologia que é uma forma de consciência social, porém não é a única expressão desta. Como afirmou Mészáros (2004, p. 65), “ideologia não é ilusão nem superstição religiosa de indivíduos mal- orientados, mas uma forma específica de consciência social, materialmente ancorada e sustentada”.
A ideologia faz parte da dominação de uma classe sobre outra, dominação esta que prescinde da existência de classes para sua estrutura de produção. Mesmo que dominante esta classe necessita de outra para dominar. Diferente da perspectiva de superação da sociedade de classes em que o proletariado não necessita da burguesia para a transformação revolucionária, não nos parece fazer sentido as noções de “ideologia proletária”. Ainda que no início do século XX, alguns dirigentes comunistas tenham apontado linhas políticas que se aproximavam dessa noção (por exemplo, Lenin, Gramsci e Lukács), cabe destacar que uma das obras fundamentais de Marx e Engels para essa compreensão da ideologia enquanto dominação de classe - “A Ideologia Alemã” - não havia sido publicada de nenhuma forma até 1932. Portanto, essa noção de ideologia proletária se confunde em seu conteúdo com a perspectiva de consciência de classe do proletariado como elemento necessário para o avanço da classe trabalhadora em direção à ruptura com o capitalismo. A ideologia sempre vai se apresentar a partir de um “reflexo invertido” do real exatamente para dominar a classe explorada e sustentar um modo de produção cindido em classes antagônicas. Do ponto de vista da consciência, a ideologia é uma força que age de fora para dentro do sujeito que absorve para si as ideias da classe dominante como forma natural e universal do ser social. Davis (2016, p. 127) indica tais aspectos quando
afirma que
a ideologia burguesa - e particularmente seus componentes racistas - realmente deve possuir o poder de diluir as imagens reais do terror em obscuridade e insignificância e de dissipar os terríveis gritos de
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sofrimento dos seres humanos em murmúrios quase inaudíveis e, então, em silêncio.
Ao mesmo tempo, há uma força de dentro para fora que se torna independente e que controla o indivíduo: a alienação. Ideologia e alienação são duas forças que elaboram na consciência a reprodução da estrutura social baseada na propriedade privada e das classes sociais decorrentes desta estrutura. Essas determinações - ideologia e alienação - são fundamentais na constituição da primeira forma de consciência.
A primeira forma de consciência já apresenta o particular como universal, o histórico como natural, a ideologia é apenas a funcionalidade deste processo como exercício de dominação política de uma classe. Se a consciência imediata tende a viver o particular como universal, a ideologia é a expressão organizada e sistemática deste particular para permanecer como universalidade com fins de dominação política de uma classe sobre outra (IASI, 2007, p. 223).
Na sociabilidade do capital, a classe dominante articula duas esferas correspondentes para seu projeto de dominação: na base da produção material da existência, intensifica a extração de mais-valia através da exploração do trabalho; desta forma de produção da existência, se origina a estrutura política-jurídica e a ideologia enquanto uma forma de consciência social. Na atual crise sistêmica do capitalismo, a burguesia atua nestas duas frentes, resumidamente, assim: a) para retomar os patamares e elevar as taxas de lucro ampliam-se a precarização do trabalho através da retirada de direitos e do desemprego, acompanhado do chamado “assalto ao fundo público” em que predominam as formas de privatização (clássica e não-clássica), a transformação de direitos em capital, a diminuição progressiva da remuneração de trabalhadores e trabalhadoras, a flexibilização de legislações ambientais, culturais e sociais para facilitar o avanço capitalista destrutivo na produção agrária, industrial e no sistema financeiro; b) a ideologia se aprofunda no irracionalismo, negacionismo e no conjunto de ciências e filosofias que são desenvolvidas com o intuito de manutenção da ordem vigente de exploração do povo trabalhador e da opressão às minorias sociais, através de ultrageneralizações que de tão abstratas não encontram correspondência na realidade concreta, apenas na ideia transmitida e assumida pelo sujeito subsumido pela ideologia que é uma “inversão, um velamento, uma justificação” (IASI, 2014, p. 31).
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No caso do Brasil, em particular no período recente de crise econômica e política, é bastante ilustrativa a expressão ideológica que uma fração da classe dominante que hoje está à frente do governo federal elabora em suas manifestações para conduzir a política ultraliberal. Do ponto de vista da atividade teórica, a síntese dessa manifestação da ideologia pode ser assim projetada: o indivíduo, dentro de sua mesquinhez egocêntrica, imagina-se acima de tudo e de todos ao generalizar suas ideias retrógradas como próprias da humanidade e “naturais”, ainda que exclusivamente ligada à esfera de sua empiria irracional em que suas experiências individuais supostamente o certificam para imaginar que sua opinião singular é a verdade universal. Quando o se disseminam frases do tipo: “pergunta para seu avô se a ditadura era ruim” ou “não houve golpe militar em 1964”, se observa esses movimentos articulados: a ultrageneralização teórica em que “a percepção da parte pelo todo, onde o que é vivido particularmente como uma realidade pontual torna-se ‘a realidade’” (IASI, 2007, p. 18), incluindo o aspecto de que a própria ultrageneralização é baseada em experiências sensoriais de terceiros. Ou seja, a empiria da vida cotidiana é elaborada pela via daquilo que conforta melhor o sujeito que - sabedor ou não - reproduz a ideologia dominante, mesmo que lance mão de opiniões de “seu avô” sobre um momento histórico que, sob qualquer análise, não pode ser tomado como a explicação real dos acontecimentos.
Essa noção do conhecimento baseada em ultrageneralizações busca sustentar a posição teórica e política dominante de uma classe exploradora em cada momento histórico e vai se reproduzindo nas disputas de compreensão da história, assim os juízos e opiniões aleatoriamente selecionados para sustentar o projeto de dominação vão se tornando narrativas e discursos que se replicam na batalha das ideias e tornam “normais” a negação da história repetida incessantemente por um chefe de Estado Presidente da República. A conhecida frase de Joseph Goebbels, ministro da propaganda da Alemanha Nazista, é a referência dessa fluidez discursiva que disputa a ideia sobre o real: “uma mentira dita mil vezes torna-se verdade”. Toda ultrageneralização, como afirma Heller (2016, p. 71), “é um juízo provisório ou uma regra provisória de comportamento: provisória porque se antecipa à atividade possível e nem sempre, muito pelo contrário, encontra confirmação no infinito processo da prática”. Portanto, serve à ideologia enquanto manifestação de uma determinada
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forma de consciência social para a perpetuação de determinado modo de produção dividido em classes e baseado na exploração e na opressão.
Na produção dos meios para produzir a sua própria existência, condição especificamente humana para sua sobrevivência como espécie, a práxis enquanto atividade humana sensível concebida como atividade prático-crítica constitui o ser social. Estes elementos envolvem a vivência das relações existentes na base material de produção da vida, bem como a expressão no pensamento das representações que o sujeito faz de si e do mundo. Portanto, compreende-se que a atividade teórica é uma expressão da constituição do ser social, no sentido de que as representações ideais que o sujeito faz de si e do mundo são elaborações do pensamento e circunscrevem- se nos processos de consciência do sujeito e de sua classe.
A clássica formulação de Gramsci de que todo ser humano é intelectual ou filósofo, explicita o aspecto da atividade teórica do sujeito.
Não existe atividade humana da qual se possa excluir toda intervenção intelectual, não se pode separar o homo faber do homo sapiens. Em suma, todo homem, fora de sua profissão, desenvolve uma atividade intelectual qualquer, ou seja, é um "filósofo", um artista, um homem de gosto, participa de uma concepção do mundo, possui uma linha consciente de conduta moral, contribui assim para manter ou para modificar uma concepção do mundo, isto é, para promover novas maneiras de pensar (GRAMSCI, 1982, p. 7-8).
Esta mesma atividade teórica - intelectual - não é, em si mesma, sempre crítica ou positiva, pois as representações ideais são atravessadas por diferentes formas de serem concebidas no pensamento. Há momentos e formas da atividade teórica que, atravessadas pelo antagonismo da luta de classes, são determinações que se expressam na consciência.
A revolucionária passagem do modo de produção feudal para o modo de produção capitalista, por exemplo, envolveu transformações nos mais diferentes aspectos da vida social; o Iluminismo francês, ou Século das Luzes (século XVIII), implementou seu projeto de dominação fundadas nos marcos da “razão”. Essa racionalidade elevou os patamares culturais e sociais que, embora formais e limitados, estabeleceram algum grau de avanço do modo de vida em relação ao antes experimentado no feudalismo, como o “desencarceramento” de trabalhadores e trabalhadoras da força do Rei, da Igreja e de senhores feudais. Porém, embora clamando por liberdade, “todos os esforços da Filosofia das Luzes para racionalizar,
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isto é, para reconstruir segundo as leis da razão as relações sociais e individuais, apoiavam-se na propriedade privada dos meios de produção, que devia constituir a pedra angular da nova sociedade, fundada na razão” (TROTSKY, 2009, p. 32). Portanto, a partir da base das relações econômicas mercantis vai se desenvolver um modo de vida também mercantil, expandindo o mercado como regulador de todos os aspectos da vida, incluindo a família, a comunidade, consciência etc. E,
É exatamente por isso que as normas concretas do catecismo burguês estão escondidas sob abstrações morais padronizadas pela religião, filosofia, ou aquele híbrido chamado “senso-comum”. O apelo a normas abstratas não é um erro filosófico desinteressado, mas um elemento necessário no mecanismo de ilusão de classe (TROTSKY, 2009, p. 63).
Assim que, aqui, abordaremos três formas da atividade teórica que somente se separam do sujeito real - da sua atividade prática sensível - na exposição. Quais sejam: o senso-comum; a mitologia (religião); a ciência /filosofia.
A partir destas ilustrações do modo de vida burguês no contexto atual de crises generalizadas, aprofundemos a compreensão da atividade teórica como parte importante do movimento da consciência. A atividade teórica é um processo de elaboração no pensamento de alguma forma de explicação da realidade. Embora imbricada com alguma interpretação da prática enquanto realidade objetiva, a teoria nunca é, em si, a realidade ou o real concreto. Por mais que alguns intelectuais especializados se amparem em perspectivas idealistas da ciência e da filosofia que concebem o mundo a partir da ideia e não da vida real, e insistam em compreensões de que o mundo real não existe apenas discursos, narrativas e universos singulares que são tomados como o todo; existe uma realidade concreta que independe daquilo que homens e mulheres pensam sobre ela. Até porque, mesmo que em meu pensamento imagine surgir asas em minhas costas capazes de me fazer voar, dificilmente vá escapar de uma trágica morte ao me atirar de um penhasco.
E esta mesma realidade nunca é estanque, o movimento é uma propriedade de todo fenômeno material concreto, portanto também da prática, da realidade objetiva. Este movimento é sempre permanente e se manifesta não apenas no espaço, mas também no tempo; sobre essa perspectiva dialética, a clássica frase
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atribuída à Heráclito de Éfeso é ilustrativa: “você não pode banhar-se duas vezes no mesmo rio porque nem as águas, nem você, permanecem o mesmo”.
A realidade concreta está em constante processo de mudança, de transformação; isso não significa que estas mudanças se circunscrevam em um processo linear evolutivo, pois há uma primazia das determinações sociais humanas na produção da existência cindida em classes que incide sobre essa prática condicionada pela estrutura de dominação de uma classe sobre outra. Assim, as mudanças da prática - ou as transformações da realidade concreta - podem ser tanto involutivas, representando retrocessos que a conjuntura atual tem demonstrado cotidianamente suas possibilidades, como também podem ser transformadoras. Pois, a partir da estrutura de dominação de classes, quem vive a situação de exploração ou de opressão também movimenta a realidade concreta através de suas lutas, suas ações enquanto classe, e isso pode levar a processos históricos de ruptura com o modo de produção vigente em sua época. Os exemplos da história são diversos: epopeias de libertação de oprimidos e oprimidas em determinadas regiões e tempos históricos; as transformações dos modos de produção anteriores (por exemplo, a transformação do modo feudal em modo de produção capitalista); a superação do escravagismo enquanto política de dominação racial e econômica (ainda que o capitalismo mantenha a lógica do racismo estrutural); as lutas sociais de independência contra o colonialismo europeu; as derrotas das ditaduras nas lutas da classe trabalhadora da América Latina; dentre tantos outros momentos da história.
Nesses movimentos da história, é imprescindível compreender que ao mesmo tempo em que existe uma realidade concreta que é anterior ao pensamento sobre ela mesma, a atividade humana sensível de interpretação desta realidade, é também objetiva na medida em que incide sobre a realidade posta previamente; constituindo aí parte dos processos de transformações do real concreto. Portanto, sujeito e objeto se constituem como uma unidade dialética da qual as contradições entre o real e o pensamento, entre o concreto e o abstrato, entre a matéria e a ideia, colocam em movimento a própria realidade.
A atividade teórica do sujeito concebida como atividade humana sensível tem papel fundamental na investigação sobre os processos de consciência. É a partir desta atividade teórica que o indivíduo atribui algum grau de coerência (ao menos julga ter) à sua vida cotidiana, mesmo que esta coerência se manifeste através de
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contradições entre o que pensa e o que vivencia. Isto é, em diferentes momentos, as ideias anteriormente concebidas já não correspondem mais às novas ideias elaboradas a partir da atividade humana sensível articulada à objetividade de sua vida. Pois, em toda a atividade teórica há uma concepção de mundo - consciente ou mecânica - vinculada. Em um primeiro momento, a interpretação da realidade se manifesta a partir das relações previamente estabelecidas na qual o sujeito se defronta e a reproduz como se fossem naturais e suas (mesmo que não o sejam), pelo mecanismo da percepção ultrageneralizada, “as relações vividas perdem seu caráter histórico e cultural para se tornarem naturais, levando à percepção de que ‘sempre foi assim e sempre será’” (IASI, 2007, p. 18, 19). Essa primeira forma da atividade sensível, vai ser categorizada por Gramsci (2010, p. 69) como “filosofia espontânea”.
Essa espontaneidade é atividade teórica não sistematizada em que predomina a relação imediata e direta das experiências pessoais, tradições, crenças e opiniões aleatórias. Nesta forma primeira, a teoria - enquanto interpretação da realidade (da prática) - vai se apresentar em dois sentidos principais: senso-comum e mitológico.
O senso-comum é permeado de espontaneidades conceituais baseadas no irracionalismo; isto é, se fundam na secundarização da razão, da ciência e filosofia arraigadas na realidade concreta priorizando a vivência imediata, a tradição, a intuição, a ultrageneralização etc, que constituem o fundamento do negacionismo. Embora de forma localizada em indivíduos ou pequenos grupos que compartilham dessas mesmas noções, o senso-comum tem determinações que extrapolam apenas a forma individual do sujeito conceber o mundo. Mesmo sem ter a noção do que significa o “seu mundo”, o indivíduo se imagina no centro do universo e suas noções, por serem “suas”, parecem atribuir algum grau de autonomia do sujeito para disseminar as mais variadas formas alienadas de interpretação da realidade.
Na atualidade em que os meios virtuais e as redes sociais constituem uma importante parcela daquilo que o sujeito se instrumentaliza para posicionar-se sobre as coisas, o compartilhamento das ideias retrógradas e/ou reacionárias criam uma força na massa de trabalhadores e trabalhadoras capaz de insurgir contra quaisquer ideias contrárias ao modo de vida burguês. Mesmo que sem domínio intelectual acerca da máquina ideológica de disseminação do irracionalismo que prolifera o senso-comum, o sujeito afirma: “cada pessoa tem a sua opinião de acordo com sua realidade”, portanto as diferentes concepções de mundo convivem em uma suposta
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liberdade de expressão em que se imagina serem válidas simplesmente pelo fato de que o sujeito se imagina dono de sua vida e de suas ideias. Pois cada um tem “sua” opinião e vive a “sua” realidade. Nada mais idealista e individualista nessas afirmações em que a realidade reside em cada indivíduo, assim não existe “a” realidade, mas cada sujeito é a “sua “realidade.
A difusão das notícias falsas (fake news) em aplicativos de bate-papo são muito expressivas para ilustrar a máquina de disseminação do senso-comum e do irracionalismo. O sujeito que defende a “sua” opinião de acordo com a “sua” realidade, mesmo que supostamente respeitando a opinião alheia, expressa todo tipo de contradições e incoerências. A confortável condição de homem branco heterossexual no sistema do capital, “atormentada” agora pelas lutas de combate às opressões, encontra sustentação naquela mensagem que contém um link que recebeu em um grupo de aplicativo de bate-papo e que enaltece a sua condição de opressor agora supostamente com um recurso de autoridade (afinal de contas, se alguém publicou algum texto na internet dizendo algo, parece que este algo é verdadeiro simplesmente porque alguém disse, escreveu, publicou e recebeu likes).
O senso-comum é desagregado, genérico em que não há coerência entre as ideias e formas de ser. Mesmo que compartilhado por grupos de pessoas, o senso- comum é extremamente individualista e as experiências singulares são tidas como ferramenta principal para o sujeito acreditar ser o centro do universo a partir de suas vivências que não podem ser acessadas por outra pessoa que não ela. Ou seja, é ultrageneralizado a tal ponto que se torna, nessas bases, inquestionável. Pois, se o fundamento é a experiência individual do sujeito e esta é inacessível para outra pessoa, portanto se legitima a ideia da experiência como noção geral de conceber o mundo. De tal maneira que, quando o sujeito é defrontado por elementos que superam e problematizam as noções tidas como suas, a resposta imediata é mais ou menos expressa assim: “respeito a sua opinião, porém eu tenho a minha. Cada um vive a sua realidade. Só posso falar sobre a minha experiência que diz que as coisas devem ser como eu as quero e não como os outros dizem”. A pessoa parece realmente acreditar que a sua experiência de vida é que supostamente constitui a realidade no pensamento.
Lukács (2010, p. 37), contribui nessa direção: “os modos de manifestação imediata encobrem o realmente essencial no plano ontológico, em parte, nós mesmos
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projetamos no ser, como silogismos analógicos precipitados, determinações que são totalmente estranhas a ele, apenas imaginadas por nós”.
Se o senso-comum opera, em linhas gerais, da vivência singular para a ultrageneralização, há uma forma inversa e também irracional que vai da ultrageneralização para a singularidade das vivências. Aqui identificamos a mitologia (religião) como uma expressão ideológica que, embora criada pelo ser humano, ela oculta o ser em torno de uma representação abstrata fantasiosa da divindade sobrenatural de algum tipo de deus que regra a vida na terra a partir do céu. E a “consciência autonomizada na forma religiosa se volta contra seu criador como uma força estranha que o domina, ela que surgiu para dominar forças estranhas naturais se tornou, ela própria, uma força estranha divina” (IASI, 2014, p. 52).
Essas representações - do senso-comum e da mitologia - advém, necessariamente, da limitada relação do sujeito com a vida material encharcada de ilusões produzidas por formas rudimentares de consciência.
Essa expressão ilusória, de fantasia, se desenvolve em um terreno ideológico que se impõe como força estranhada e naturaliza as relações sociais desiguais de todas as sociedades divididas em classes que a humanidade experimentou até aqui. Ou seja, é da vontade divina que a vida de muitas pessoas seja de miséria e exploração, como um tipo de provação na vida terrena para uma promessa fantasmagórica de plenitude no paraíso após a morte; enquanto para outros poucos a vida é de fartura e riqueza por alguma razão (nunca explicada substancialmente pelos textos bíblicos) supostamente natural e por decisão de algum tipo de divindade. E a história se torna, assim, “uma mera história de ideias ilusórias, uma história de espíritos e fantasmas, enquanto a história real, empírica, que constitui o fundamento dessa história de fantasmas, só é explorada a fim de produzir os corpos para esses fantasmas” (MARX; ENGELS, 2007, p. 134), ou seja, os deuses e demônios só existem porque foram inventados por sujeitos que necessitam acreditar que eles existem.
No desenvolvimento da história da humanidade a religião foi, e ainda o é, também pressuposto para processos de dominação de classe e o extermínio - material e imaterial - de povos originários. A força oculta que age sobre seu criador expande- se para a esfera do Estado que, em nome de algum tipo de deus, empenha suas campanhas militares e evangelizadoras para dominar e doutrinar comunidades e
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povos porque “deus quis assim”. Porém, o que não é “dito por deus” é o sentido real destas campanhas sanguinárias da classe dominante por sua expansão de poder pelo mundo e acúmulo de riquezas saqueadas destes povos.
As campanhas da igreja católica (com todas as suas derivações), sempre vinculadas à classe dominante e a forma do Estado correspondente de cada período, foram e ainda são importantes iniciativas de dominação dos povos oprimidos. Em “nome de deus”, papas e padres abençoavam os navios que saíam da África levando centenas de negros e negras escravizadas para serem explorados na América; em “nome de deus”, papas e padres condenavam à morte as mulheres que renunciaram à subordinação aos homens; em “nome de deus”, papas e padres participaram das cruzadas que foram responsáveis pelo extermínio de vários povos árabes; em “nome de deus”, papas e padres apoiaram as ditaduras mais sanguinárias da América Latina. A ideologia da classe dominante encontra uma poderosa aliada na ideologia religiosa e, juntas, constituem processos de dominação e exploração cujo fim último é a perpetuação no poder desta mesma classe dominante. Quando chefes governamentais e padres falam em “nome de deus” nunca é em nome de algum tipo de divindade, sempre é em nome das demandas de acumulação de riqueza e poder. Se há um tipo de deus a ser reivindicado pela burguesia, este é o deus-mercado. E, como tal, o que este “mito” expressa nunca é a palavra divina, mas sim as ideias a serem internalizadas pelos povos oprimidos que sem nenhuma outra possibilidade de encontrar caminhos e esperança na vida reproduz na forma da alienação os preceitos de deus imaginando ser algum nominado na bíblia, mas desconhecem que o deus
que veneram é o espírito que se manifesta nas tensões do mercado.
A força ideológica da religião, como inversão do mundo real, se constitui também como uma forma estruturante da disseminação alienada da consciência, constitui um modo de vida que determina formas de ser do indivíduo com seus grupos que vão definir aspectos da cultura e da moral que fortalecem as perspectivas conservadoras e reacionárias no plano da política e da economia. Pois, em meio à miserabilidade da população, os indivíduos nas suas comunidades pobres e periféricas não encontram possibilidades de futuro ou de quaisquer formas de sair da situação de fome, desemprego e pobreza em todas as suas decorrências. No contexto rural, o papel que a religião e as igrejas cumprem por vezes são organizadoras da vida social das comunidades. Os rituais, símbolos e eventos (nascimento, missa,
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casamento, funerais) são tidos como parte integrante dos costumes e hábitos dessas comunidades que se engajam nos trabalhos da igreja tanto quanto na produção de suas lavouras.
Como afirmou Marx (2010, p. 145), “a miséria religiosa constitui ao mesmo tempo a expressão da miséria real e o protesto contra a miséria real. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o ânimo de um mundo sem coração e a alma de situações sem alma. A religião é o ópio do povo”. Essa passagem é bastante significativa quando pensamos que a busca ou captura da fé é resultado, por um lado, da realidade concreta da vida extremamente desigual no capitalismo em que o indivíduo aspira alguma mobilidade social e, ao mesmo tempo, é também a negação (protesto) dessa mesma vida em que é acometido e que quer encontrar alguma saída deste mundo, mesmo que acreditando na fantasia, na ilusão de um universo controlado por deuses e demônios.
Assim como na religião, a auto-atividade da fantasia humana, do cérebro e do coração humanos, atua independentemente do indivíduo e sobre ele, isto é, como uma atividade estranha, divina ou diabólica, assim também a atividade do trabalhador não é a sua auto-atividade. Ela pertence a outro, é a perda de si mesmo (MARX, 2004, p. 83).
Nesta passagem, Marx vai estabelecer relações entre a alienação da vida material, em contraposição a auto-atividade, e a fantasia religiosa que atua sobre os indivíduos. A religião é, portanto, uma forma da ideologia e uma forma de atividade teórica, no sentido de atribuir algum grau de representação mental interpretativa da vida material. Enquanto atividade teórica atravessa um caminho da vida cotidiana à organização do Estado e do modo de vida da sociedade cindida em classes. Por mais que tenhamos constitucionalmente um Estado laico, na realidade concreta esse aspecto é facilmente rechaçado quando elencamos alguns dados singelos da realidade: nos palácios do poder executivo, legislativo e judiciário, é bastante comum encontrarmos bíblias ou símbolos cristãos pendurados nas paredes, escolas e hospitais públicos que também fixam crucifixos nas paredes, prédios e obras públicas são batizados com nomes de personagens bíblicos, feriados nacionais alusivos à datas comemorativas da religião cristã, dentre outras formas, o ser social já nasce integrado às referências de um determinado tipo de fé na qual se subordina, participa dos rituais, reza, espalha símbolos e embora não saiba exatamente porquê cumpre com a tarefa cristã.
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É nesta elaboração fantasiosa do pensamento que homens e mulheres vão ser capturados em torno das narrativas ilusórias sobre poderes sobrenaturais que agem sobre a vida na Terra e, assim, justificam as segregações como ordem natural divina. Justificam, a partir de algum deus, a opressão às mulheres cujo papel reprodutivo e de subjugação ao homem estão inscritos em alguma fábula mitológica e não podem ser questionados pois seria alguma forma de heresia; justificam a divisão de classes como ordem natural e divina, em que ser rico ou pobre, escravizado ou senhor, é decisão de algum deus e somente os cabem aceitar essa determinação.
É também a partir da crítica à religião que Marx vai indicar o sentido desta crítica vinculada ao movimento da consciência. Isto é, para elevar a consciência, a superação da religião enquanto doutrina ideológica precisa abandonar as ilusões de uma condição que necessita de ilusões: “a supressão [...] da religião como felicidade ilusória do povo é a exigência da sua felicidade real. A exigência de que abandonem as ilusões acerca de uma condição é a exigência de que abandonem uma condição que necessita de ilusões” (MARX, 2004, p. 145-146) [grifos do autor].
Até aqui trabalhamos com as formas de atividade teórica não-sistematizadas (senso-comum e mitologia). Essas formas de interpretação da realidade são baseadas na ultrageneralização idealista, espontâneas e estruturadas pela ideologia dominante com intuito de não apenas naturalizar a condição do sujeito, mas também de incutir em seu modo de vida um caráter de reação a toda forma de pensamento que problematize a realidade e o próprio pensamento. Tais determinações das elaborações teóricas são formas de consciência social que movimentam sujeitos a aceitação do mundo aparente, mesmo que internamente estes não queiram aceitar o mundo em que somente vivenciam a miséria, a exploração e a opressão. A crítica à estas formas de atividade teórica são passos fundamentais para o salto de consciência que não se expressa na própria atividade teórica, mas sim no que o sujeito faz com esta nova forma elaborada de pensar o mundo.
A superação da alienação da consciência está diretamente ligada à superação da forma material que constitui a alienação, isto é, as relações sociais de produção capitalistas. Ao mesmo tempo, há uma determinação importante no processo de superação da alienação e avanço da consciência que diz respeito ao conhecimento, à teoria científica e filosófica. O indivíduo isolado e com restrito acesso às interpretações do mundo, por si só, não irá desenvolver conceitos necessários para a
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compreensão das contradições do real e suas possibilidades de superação. Nos movimentos iniciais dos processos de elaboração teórica, “a percepção e também a sensação e a intuição são premissas necessárias, mas não suficientes para a captura das relações e conexões mais complexas que constituem os fenômenos” (TORRIGLIA, 2018, p. 33).
Portanto, a teoria filosófica e científica tem função determinante no movimento da consciência e são atividades teóricas que se diferenciam das anteriormente expostas exatamente por serem sistematizadas, com método e formas de correspondência com dados da realidade (mesmo quando algumas teorias ou filosofias idealistas neguem a realidade, ainda assim se correspondem com alguma noção de realidade).
De maneira geral, o método da atividade teórica científica e filosófica compreende a forma de organizar a realidade no pensamento, a articulação entre o singular e o universal, o caminho percorrido entre o abstrato e o concreto, a forma de apreender os nexos, leis e relações da realidade objetiva. Todo método implica em uma teoria da ciência, que, por sua vez, se baseia em uma teoria do conhecimento. Mas, ao mesmo tempo, toda teoria do conhecimento envolve necessariamente um fundamento ontológico, concepções de mundo que, na sociedade de classes, se chocam em conflito.
Cada período histórico configura necessariamente um sistema ideológico de códigos e signos que reproduz a forma hegemônica de produção da existência, isto é, as mudanças da economia capitalista também fazem mudar a ideologia capitalista. Esta forma ideológica específica do atual período histórico de crise estrutural e fragilidade da base produtiva necessita disseminar uma forma de consciência social adaptável à insegurança, a incerteza, a fluidez, a salvação individual e à aceitação de um mundo “desigual eternamente”. Essa necessidade de auto-reprodução do sistema do capital é habilmente transformada em esquemas epistemológicos expressos nas perspectivas pós-modernas da produção do conhecimento, em que se encontra a primazia do individual sobre o coletivo, da construção de subjetividades descoladas do mundo objetivo, da negatividade da crítica que não produz alternativas positivas, da desestabilização de discursos que conduzem à aceitação do mundo em crise e da busca de consensos que negam as contradições e antagonismos sociais.
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Assim, as categorias e conceitos são modificadas, o capitalismo ou o sistema do capital passa a ser concebido como “mundo moderno” (MÉSZÁROS, 2004); a classe social passa a ser constituída por “grupos”; sujeitos históricos se tornam “atores”; as condições objetivas de existência são substituídas por “cenários”; o próprio termo classe social se dissolve em meio a representatividade liberal de raça, gênero, sexualidade ou religião sem aprofundar as análises na origem e continuidade das opressões em uma sociedade de classes.
Nesse movimento que advoga a crise da racionalidade moderna, se desloca a realidade concreta para o relativismo, o ecletismo e o pluralismo epistemológico. O pensamento pós-moderno que desestabiliza, desconstrói e perambula por incertezas não dimensiona possibilidades para além de sua imbricação com aquilo que critica, não consegue desvencilhar-se de sua negatividade crítica por não apresentar nada além de mudanças discursivas. Sendo que, “o que se oculta na construção discursiva que pretende desconstruir discursos é que ele supõe universais absolutos, mais absolutos e abstratos do que aqueles que a razão dialética supõe” (IASI, 2017, p. 32). A base concreta material permanece eternamente intacta.
Para que seja possível “desconstruir discursos” é preciso que os discursos existam, mas, se não houver construção de alternativas aos discursos desconstruídos, tanto os discursos quanto as suas “desconstruções” mantém a estrutura atual intocada, pois precisa manter a mesma forma de organização para que a apropriação crítica, ainda que somente no campo discursivo, seja possível. Esta perspectiva que se encerra na negatividade se difere da dimensão positiva da negação dialética materialista, cuja crítica formulada na antítese é pressuposto “negativo negado” pela positividade de sua superação elaborada na síntese dinâmica, cujo movimento é interminável. Esse é o pressuposto positivo da lei dialética da negação da negação. Daí a necessidade de que as críticas à realidade social não sejam no sentido de negá- la ou simplesmente desconstruí-la, mas de superá-la e transformá-la.
É esta fundamentação da negação da negação que é apresentada pela clássica tese sobre Feuerbach: “os filósofos apenas interpretaram o mundo de diferentes maneiras; o que importa é transformá-lo” (MARX; ENGELS; 2007, p. 535). Para o avanço da consciência é fundamental que a atividade teórica tenha como pressuposto não apenas a interpretação da realidade, mas também suas
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possibilidades de transformação, pois o movimento da consciência necessita um horizonte transformador da realidade imersa em contradições e alienação.
Essa concepção de mundo pode tanto ser vinculada à aspectos da alienação e da ideologia como também podem circunscrever a atividade teórica nos marcos da crítica à sociabilidade do capital. Nos diz Gramsci (2010, p. 70),
Quando a concepção do mundo não é crítica e coerente, mas ocasional e desagregada, pertencemos simultaneamente a uma multiplicidade de homens-massa, nossa própria personalidade é composta de uma maneira bizarra: nela se encontram elementos dos homens das cavernas e princípios das ciências mais modernas e progressistas.
A concepção hegemônica da ciência também produz conhecimentos que incidem diretamente na vida social. As teorias econômicas sustentadas por ilustres personificações do capital - intelectuais e grupos de pesquisa vinculados às demandas de mercado - são referências estruturantes da dominação burguesa sobre o povo trabalhador. Na medida em que estas teorias são disseminadas em periódicos acadêmicos e atendem às necessidades do capital, vão se transformando em políticas públicas que os governos e parlamentos subordinados ao imperialismo definem como políticas de Estado. Na América Latina, os Chicago Boys servem para exemplificar. Durante a década de 1950 e 1960, a Universidade Católica do Chile firmou um convênio acadêmico para que 25 jovens economistas estudassem junto à “Escola de Chicago” nos EUA que tinha Milton Friedman e Friederich Von Hayek como principais ideólogos do neoliberalismo. Ao retornarem ao Chile, os Chicago Boys vão se aliar com as iniciativas conspiradoras da sanguinária ditadura empresarial-militar de Augusto Pinochet formulando suas bases econômicas e políticas de desmonte do Estado, sendo participantes ativos das políticas de privatização, destruição de direitos sociais e controle total do mercado sobre a vida. Tal projeto só foi possível de ser levado adiante em razão do autoritarismo violento que o governo ditatorial implementou sobre o povo trabalhador chileno. Interessante demarcar com este exemplo que o neoliberalismo surge exaltando discursos de liberdade especialmente econômicas sem intervenção do Estado e em defesa do livre comércio. Porém, essa teoria social mascara que todo projeto neoliberal experimentado no mundo sempre necessitou da força do Estado (inclusive militarmente), dos governos e do charlatanismo de parlamentares e do judiciário para impor, à força e sem liberdade alguma, seu projeto de dominação autoritária em nome de uma suposta liberdade.
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O negacionismo da ciência não é apenas de quem a nega, mas também da negação da ciência e da filosofia comprometida com os reais problemas sociais existentes que devem ser enfrentados por ela, com intuito de elevar as condições de vida do povo trabalhador. A ideologia é tão inversão da realidade que vai ser recorrente afirmar por intelectuais burgueses e seus governos aliados que ideológica é a perspectiva de superação da realidade posta. Explicitando assim o caráter da ideologia enquanto velamento, inversão e justificação.
As ilustrações do cotidiano e a análise apresentada explicitam o caráter do fenômeno do negacionismo da atualidade enquanto ideologia da classe dominante para levar à frente seu projeto de dominação. Esta é articulada com a reconfiguração do padrão de acumulação capitalista como resposta da burguesia à crise sistêmica do capital, na qual a ampliação da miséria, do desemprego e da retirada de direitos sociais promovem uma reconfiguração também na sociabilidade do capital. Com a alteração da base produtiva, eleva-se também uma superestrutura jurídico-política que constitui uma consciência social, uma ideologia, na qual a atividade teórica enquanto representação que os sujeitos fazem do real, mascaram e invertem a realidade no pensamento. O negacionismo, portanto, articula as manifestações do senso-comum, da mitologia (religião) e da ciência/filosofia em torno de um projeto de dominação na qual o conhecimento crítico da realidade é combatido por uma perspectiva de ultrageneralizações e exacerbação do individualismo.
As relações existentes na forma do capital incidem no modo de vida de maneira determinante na representação que os sujeitos fazem do real. Essa representação é um elemento estruturante do ser social e o caminho por este traçado em distintos momentos de sua jornada. A partir das formas contraditórias que vivencia, o indivíduo vai responder à estas contradições enaltecendo a forma alienada do ser e individualizando em si as razões pelas quais permanece em condições que o desagradam objetiva e subjetivamente (uma mistura de culpa cristã com auto-punição sobre sua “incompetência”).
Porém, também há uma possibilidade positiva da compreensão das contradições cotidianas que, embora não modifique as circunstâncias imediatas,
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aponta para um engajamento ativo em determinadas pautas ou iniciativas que dizem respeito a si mesmo e também a outras pessoas. Esse movimento vai ser identificado como “drama” em Vigotsky, “personalidade trágica” em Leontiev ou como “crise” em Mauro Iasi. Essa crise, drama ou tragédia é um estopim para a elevação da consciência alienada para uma consciência em si nos quais as ações do indivíduo e da sua classe contribuem decisivamente para este salto a partir de determinada concepção de mundo.
É exatamente a concepção de mundo que coloca em movimento a disputa por projetos de sociedade, que vai expressar no movimento da consciência da classe seus avanços e recuos. Os movimentos da consciência alienada, em si ou para si, sempre são consciências da classe que definem os rumos das lutas sociais e das ações da classe. Aqui não se trata de analisar o resultado das lutas sociais - se foram vitoriosas ou não, mas sim de compreender os parâmetros definidores das ações da própria classe.
A consciência de classe, portanto, não está apenas na representação que o indivíduo faz de si mesmo, mas também daquilo que a sua classe faz por si. E isso só pode ser aferido pelas ações de sua própria classe, manifestadas pelo conjunto das lutas sociais e da forma de organização política de cada período histórico. A consciência de classe se movimenta através de avanços e recuos dos indivíduos e de suas organizações, na qual a elaboração teórica diretamente vinculada aos movimentos da classe é um dos fundamentos da necessidade de avanço da consciência.
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V.21, nº 44, 2023 (janeiro-abril) ISSN: 1808-799 X
Maria Carolina de Andrade2 Vânia Cardoso da Motta3
Resumo
“Não pense em crise, trabalhe” foi a frase espalhada pela cidade de Florianópolis em 2016 pelo então presidente golpista Michel Temer, que traduzia muito bem o projeto de sociedade em curso. Argumentamos que a crise orgânica instalada no Brasil em 2013 fez imperioso ajustes estruturais e superestruturais, expressos em um conjunto de contrarreformas que operaram, concretamente, uma nova etapa da reforma neoliberal. Demonstramos que o conjunto de ataques à educação, com foco no Novo Ensino Médio, inauguraram uma nova fase do empresariamento da educação de novo tipo cujos desdobramentos são inaceitáveis.
Palavras-chave: Novo Ensino Médio; Empresariamento da educação de novo tipo; crise orgânica.
“NO PIENSES EM CRISIS, TRABAJE”: O EMPRESARIAMENTO DA EDUCAÇÃO DE NOVO TIPO Y LA CRISIS ORGANICA DEL CAPITALISMO BRASILEÑO
Resumen
“No pienses en crisis, trabaje”, fue la frase difundida en la ciudad de Florianópolis en 2016 por el entonces presidente golpista Michel Temer, que traducía muy bien el proyecto de sociedad en marcha. Argumentamos que la crisis orgánica instalada en Brasil en 2013 hizo imperativos ajustes estructurales y superestructurales, expresados en un conjunto de contrarreformas que operaron, concretamente, una nueva etapa de reforma neoliberal. Demostramos que el conjunto de ataques a la educación, con foco en la Nueva Escuela Secundaria, inauguró una nueva etapa de emprendimiento en educación de nuevo tipo cuyas consecuencias son inaceptables. Palabras clave: nueva escuela secundaria; Empresariamento da educación de nuevo tipo; crisis orgánica.
“DON’T THINK ABOUT CRISIS, JUST WORK”: THE NEW TYPE ENTREPRENEURIALIZATION OF EDUCATION AND THE ORGANIC CRISIS OF BRAZILIAN CAPITALISM
Abstract
"Don't think about a crisis, just work" was the phrase spread around the city of Florianopolis in 2016 by the then coup president Michel Temer, which translated very well the ongoing society project. We argue that the organic crisis installed in Brazil in 2013 made imperative structural and superstructural adjustments, expressed in a set of counter-reforms that operated, concretely, a new stage of neoliberal reform. We demonstrate that the set of attacks on education, with a focus on the New Secondary School, inaugurated a new phase of entrepreneurship in education of a new type whose consequences are unacceptable.
Keywords: New high school; Entrepreneurship in education of a new kind; Organic crisis.
1 Artigo recebido em 27/02/2023. Primeira avaliação em 15/03/2023. Segunda avaliação em 24/03/2023. Aprovado em 03/04/2023. Publicado em 13/04/2023.
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v21i44/57573.
2 Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro - Brasil. Docente na rede privada de educação do Rio de Janeiro. E-mail: carolina.andradep@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/7385344808311775.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2946-5130.
3 Professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro - Brasil. Doutora em Serviço Social pela mesma universidade. E-mail: vaniacmotta@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/9019395807508288. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7946-928X.
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São tempos árduos para todos aqueles que defendem uma educação escolar pública, universal, laica, gratuita e de qualidade. As bandeiras de luta no campo educacional, quase óbvias no período de redemocratização, foram apropriadas e ressignificadas de modo quase inacreditável nos últimos trinta anos, de modo que não basta mais fincar palavras de ordem. É imperativo “defender o óbvio”, parafraseando Brecht, para deixar claro que nos posicionamos do lado diametralmente oposto da trincheira em que se encontram aqueles que, aparentemente, defendem o mesmo que nós.
“Aqueles” a quem nos referimos se organizam naquilo que chamamos “empresariado educacional”, organizado, majoritariamente, no assim chamado “Movimento Todos Pela Educação” (TPE). O TPE personifica a apropriação e a ressignificação de nossas bandeiras de luta das décadas de 1980 e 1990, quando assumia a máxima importância reconstruir o caráter público e a referência social de qualidade educacional, que haviam sido execradas pela ditadura empresarial militar.
A correlação de forças negativa do período ditatorial, que em nada favorecia qualquer projeto educacional do tipo “republicano liberal clássico” (voltaremos ao tema adiante) foi rapidamente substituída por uma nova correlação negativa, pendente aos privatistas da educação. Como demonstram vários autores, reunidos no trabalho de Andrade (2020), a disputa de projetos em torno da Constituição de 1988 conseguiu garantir alguns aspectos importantes que, todavia, tiveram seu caráter público diluído na ambígua e minimalista Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996. Nesse sentido, a despeito do esforço organizado dos profissionais da educação, refletido, por exemplo, nas Conferências Nacionais de Educação, a disputa entre as forças foi enormemente favorecida pelo tsunami neoliberal que alagou o Brasil mormente a partir da eleição de Fernando Henrique Cardoso.
Conforme demonstram autores como Castelo (2011), o bloco histórico neoliberal se consolida como resposta da classe dominante à crise orgânica do bloco fordista-keynesiano. No plano mundial, as classes dominantes foram incapazes de responder ao esgotamento da onda longa expansiva, mantendo as concessões arrancadas pelos dominados no contexto da real possibilidade de uma revolução socialista. De modo perigosamente sucinto, podemos dizer que a crise que afetava o Brasil atingiu o auge em 1982, arrastou-se pelo período da chamada transição “lenta,
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segura e gradual” e teve a “solução” neoliberal consolidada pela contrarreforma do Estado de 1995.
Defendemos em trabalhos anteriores (ANDRADE, 2020) que o processo de consolidação do bloco histórico neoliberal no Brasil abre uma nova fase da educação brasileira que chamamos de empresariamento da educação de novo tipo. Isso porque o conjunto das novas legislações vigentes (amplamente respaldadas pelos organismos internacionais), pari passu a inauguração de um novo nível de consciência política do empresariado brasileiro (BIANCHI, 2001), conferem as condições materiais necessárias a dois processos importantes na educação brasileira.
O primeiro deles é a elevação da mercantilização e da mercadorização da educação - tendências históricas-estruturais do capitalismo - a novos patamares e escalas de concentração. O segundo é o que denominamos de subsunção da educação ao empresariado, um processo característico do bloco histórico neoliberal através do qual uma parcela específica do empresariado, o empresariado educacional, assume e mantém a hegemonia, na acepção gramsciana do termo, no campo da educação escolar. De modo geral, o empresariamento da educação de novo tipo combina esses três processos operando na mesma direção, qual seja, a de cimentar as mudanças estruturais e superestruturais impostas pelos novos padrões de acumulação e sociabilidade.
A crise que se abre no Brasil em 2013 impõe novas necessidades. Buscamos demonstrar ao longo desse trabalho que os ataques que a educação brasileira sofreu ao longo da última década conduzem o empresariamento da educação de novo tipo, mais uma vez, a um novo patamar, cumprindo a funcionalidade de (re)soldagem dos nexos entre estrutura e superestrutura, então distendidos pela crise. Noutros termos, demonstramos que as medidas de contrarreformas na educação, especialmente o Novo Ensino Médio (NEM), integram logicamente um conjunto maior de medidas de contrarreforma operadas com vistas a restabelecer as condições requeridas pela acumulação capitalista em escala ampliada.
Para tal, a seguir, apresentamos uma primeira parte de cunho mormente teórico, no qual discorremos sobre os conceitos de crise e empresariamento da educação de novo tipo, clareando suas dimensões. Na segunda parte, fazemos uma retrospectiva do processo de produção, aprovação e implementação das medidas de contrarreforma na educação, demonstrando algumas de suas fragilidades e incoerências internas. Na terceira parte demonstramos sua integração lógica ao
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conjunto maior de contrarreformas operadas sobretudo a partir do golpe de 2016. Por fim, defendemos que somente a radicalização da utopia pode nos conduzir a um caminho diferente daquele que desemboca no precipício.
Existem inúmeras explicações para as crises capitalistas: para suas causas, desdobramentos e saídas. Ainda no século XIX, Marx e Engels demonstraram o absurdo de algumas explicações para as crises capitalistas, a exemplo daquelas propagadas por Thomas Malthus ou mesmo por David Ricardo, que explicava quedas de lucro por problemas distributivos. Se é fato que hoje as crises apresentam complexidade crescente, também o é, a nosso ver, que em Marx e Engels é possível encontrar as bases do entendimento dos fenômenos atuais, guardando-se o respeito aos distintos níveis de abstração presentes em suas análises.
Além do mais, tal afirmação não elide, de modo algum, a importância de trabalhos posteriores para entendermos a realidade hodierna, a exemplo de autores como Mandel e Mészaros. Enfim, diante da imensidão de obras a respeito das crises, no que tange à base deixada por Marx e Engels, optamos por, no escopo deste texto, sinalizar o que a crise capitalista não é, haja vista a existência de uma gama de compreensões equivocadas sobre os trabalhos supracitados.
A crise estrutural capitalista não é uma crise permanente. Dizer que o capitalismo produz suas próprias crises, ou que seu funcionamento caminha para crises não significa dizer, nem poderia, que o capitalismo está fadado ao fim, ou que está sempre em crise. Esse pensamento é bastante presente em análises de crises baseadas, por exemplo, na “Lei tendencial da queda na taxa de lucro”, como se houvesse uma relação mecânica e causal entre desenvolvimento capitalista, aumento de produtividade e queda da massa de lucro; como se a crise fosse precisamente a manifestação dessa lei ou, ainda, como se a base do lucro estivesse em algum outro lugar que não a exploração da força de trabalho. No escopo do texto vale lembrar que o conteúdo de um fenômeno não pode ser a causa de si mesmo; que a lei tendencial da queda na taxa de lucro é a própria lei geral da acumulação capitalista com determinações mais concretas, de modo que não pode ser ela mesma o “problema” do capitalismo. A crise é, precisamente, a melhor contratendência que o capitalismo
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pode operar às suas próprias leis. Contratendências são operadas “contra as leis de tendência” de forma cíclica, e não contra suas crises.
Um segundo ponto a se destacar é o de que nem toda crise é uma crise econômica. Nesse sentido, optamos por conferir maior espaço às análises de Antonio Gramsci sobre as crises, haja vista que o autor ainda possui menos espaço na literatura a respeito do tema “crises e educação”.
Gramsci salienta o caráter complexo das crises e o perigo da sua análise fenomenológica, que anuvia as diferenças entre manifestações e elementos determinantes. Para o autor, a crise é um processo de “muitas manifestações e no qual causas e efeitos se interligam e se sobrepõem. Simplificar significa desnaturar e falsear” (GRAMSCI, 2007, p. 316). Outrossim, fazia-se necessário distinguir movimentos orgânicos, que são relativamente permanentes, dos movimentos conjunturais, isto é, ocasionais ou mesmo acidentais, onde não reside amplo significado histórico.
Para o autor, a configuração inédita que o capitalismo assumiu no limiar do século XX o elevara a um novo patamar, impactando radicalmente a natureza e os desdobramentos das crises. “Controlar esta crise é impossível, precisamente pela sua amplitude e profundidade, que atingiram tal ponto que a quantidade se torna qualidade, isto é, trata-se de crise orgânica e não mais de conjuntura” (GRAMSCI, 1999, p. 447).
Deve-se ter claro que a crise orgânica é mais do que uma grave crise econômica; ela apresenta uma face política-ideológica que se manifesta como “crise de hegemonia”. Em miúdos, o conteúdo da crise orgânica é a crise de hegemonia da classe dirigente, que não se reduz a um problema político entre classe dominante e a classe dominada, embora o envolva. De nossa ótica, Gramsci está chamando atenção para o perigo que constitui a descolagem das massas do partido tradicional, sem afirmar que, por isso, as massas se organizarão em um efetivo movimento contra hegemônico. Interessa-o as consequências: “O problema é este: uma ruptura tão grave entre massas populares e ideologias dominantes, como a que se verificou no pós-guerra, pode ser ‘sanada’ com o puro exercício da força que impede as novas ideologias de se imporem? (GRAMSCI, 2007, p. 184). Prossegue:
Se a classe dominante perde o consenso, ou seja, não é mais "dirigente", mas unicamente "dominante", detentora da pura força coercitiva, isto significa exatamente que as grandes massas se destacaram das ideologias tradicionais, não acreditam mais no que
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antes acreditavam, etc. A crise consiste justamente no fato de que o velho morre e o novo não pode nascer: neste interregno, verificam-se os fenômenos patológicos mais variados (GRAMSCI, 2007, p. 184).
Entendemos que, na crise orgânica, há um problema entre classes, mas também intraclasses; de um lado, trabalhadores enfrentam problemas de organização que os tornam “incapazes de organizar em seu proveito esta desordem de fato” (GRAMSCI, 2007, p. 265); de outro, a classe dominante, em seu interior, tem dificuldades de reestabelecer a mínima homogeneidade necessária para redefinir a direção a seguir, abrindo o caminho para pensamentos que contém “perigosos fermentos ideológicos, impedem a formação de uma unidade ético-política na classe dirigente, [e] ameaçam adiar para o infinito a solução do problema de 'autoridade"' (GRAMSCI, 1999, p. 323), conduzindo à imposição de soluções à força. Parece ser neste sentido que Gramsci afirmou que, entre a morte do velho e o nascimento do novo, nascem os monstros.
Precisamente nessa linha entendemos que a educação escolar ocupa um lugar de suma importância, especialmente nos momentos de crise. Isso porque a educação escolar é um dos elementos de soldagem, de articulação entre estrutura e superestrutura. Nesse sentido, a educação escolar não é apenas elemento da estrutura ou da superestrutura, mas de ambas as esferas, contribuindo para o compasso e organicidade entre elas. Em termos mais concretos, a educação integra historicamente a acumulação capitalista, seja adequando a classe trabalhadora à estrutura produtiva de forma a potencializar a extração de mais-valor; seja contribuindo para manutenção da coesão social, apassivando a parcela da classe trabalhadora que integra o exército de reserva e conformando a classe de que esse é o único modo de reprodução social possível, ou, ainda, sendo ela mesma tornada como mercadoria comercializada no mercado.
Em trabalhos anteriores (ANDRADE, 2020) argumentamos que a mercantilização da educação é um processo tendencial-histórico do capital, haja vista sua capacidade e necessidade de subsumir todas as formas de existência e manifestação da vida à forma e à lógica da mercadoria. Ao tornar-se a forma dominante do metabolismo social, a forma-mercadoria penetra o conjunto das manifestações vitais remodelando, à sua imagem, todas as formas de relação humana. Por isso, é a mercadoria o problema central e estrutural que influencia decisivamente todas as formas de produção e reprodução da vida.
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A subsunção do trabalho ao capital é um aspecto central do processo de generalização da forma-mercadoria, dado que a força de trabalho aparece para o trabalhador, ela mesma, como uma mercadoria a ser vendida. Nesse âmago, não apenas o dispêndio da força de trabalho continua a ser o determinante do valor oculto pela forma–mercadoria, como também a negação da troca de equivalentes, impressa pela troca entre capital e trabalho, é fortemente velada pela forma-salário. Oculta-se, assim, que a exploração da força de trabalho é precisamente o lócus de origem de todo valor novo que alimenta a reprodução ampliada do capital.
A subsunção do trabalho ao capital abarca a racionalização da produção e a especialização da força de trabalho, para os quais a adaptação física, cognitiva e psíquica dos trabalhadores é imperiosa. Nesse processo, algumas das qualidades psicológicas do trabalhador são separadas do conjunto de sua personalidade e objetivamente colocadas em oposição à ela como coisa – uma mercadoria que pode ser adquirida via treinamento, disciplina, entre outros.
Na sociedade capitalista, portanto, a educação escolar está intimamente vinculada a essa adaptação. Deve-se lembrar que a escola – criação da sociedade burguesa – nasce atravessada por um corte de classe, com explícito objetivo de conformar o cidadão produtivo, promovendo a lapidação da capacidade de trabalho e transformando-a em força de trabalho. A educação escolar subjugada ao capital, além de fornecer pessoal devidamente treinado à maquinaria, torna-se mais um dos meios de disseminação da ideologia burguesa, induzindo tanto a perpetuação da exploração do trabalho como mercadoria quanto sua aceitação passiva. Em suma, serve à acumulação capitalista como meio de potencialização da produção de mais-valor e de apassivamento, logrando êxito em fazer com que a classe trabalhadora comungue de sua ideologia.
Nessa lógica, entendemos que a educação escolar passou a ser elemento constitutivo do valor da força de trabalho, que varia com o valor dos elementos necessários às suas produção e reprodução, as quais, nesse caso, podem ser também de ordem histórica e moral. Em um nível de abstração bastante elevado, podemos considerar que, sendo a educação elemento indispensável à produção da mercadoria força de trabalho, seus custos “são incluídos no valor total gasto em sua produção” e “variam de acordo com o caráter mais ou menos complexo da força de trabalho” (MARX, 2013, p. 319), já que esse caráter incide também sobre o tempo necessário a tal formação.
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Assim, anuvia-se a finalidade social do processo educativo, da mesma maneira que a forma-mercadoria oculta que a troca é essencialmente uma relação entre atividades humanas. Noutros termos, a subsunção da força de trabalho à forma- mercadoria induz sua reificação, oculta o caráter humano e social de sua produção, e abrange também seus processos subjacentes. Nesse meandro a educação, que é uma forma de reprodução social da existência, construída e operada diária e coletivamente, aparece aos seres humanos de modo turvo, sendo entendida antes como coisa produzida por outrem, de consumo obrigatório por parte daqueles que desejem ocupar um lugar no mundo do trabalho, receber um salário e galgar melhores condições de vida. Nesses moldes, a educação torna-se uma coisa que deve ser consumida pelo trabalhador, mas que somente tem utilidade vinculada à venda de sua força de trabalho. É precisamente nesse sentido que consideramos que a mercantilização da educação está intimamente associada à mercantilização da força de trabalho, de modo que são intrínsecas à sociedade capitalista.
Esse processo se diferencia, embora não se dissocie, da comercialização no mercado da educação escolar e de seus constitutivos, no qual tanto o processo educativo quanto suas ferramentas são mais diretamente subjugados à lógica da lucratividade. Essa transformação da esfera educacional em nicho de mercado, abarcando tanto a educação escolar em si, como processo pedagógico, quanto suas ferramentas subjacentes (materiais didáticos, prédios, avaliações, sistemas de ensino e outros) trocados pela forma fenomênica (equivalente universal) do valor, chamamos mercadorização da educação - processo cuja expressão mais característica ao longo do século XX é o crescimento da educação privada.
Decerto a mercantilização e a mercadorização não são especificidades do bloco histórico neoliberal, dado que tanto as escolas privadas quanto a comercialização de livros e materiais didáticos em escolas públicas são de longa data, assim como a destinação de recursos públicos para os setores privados. Especificamente no Brasil, os setores privatistas, em forte aliança com os educadores católicos, estiveram sempre organizados em torno do tema.
Defendemos minuciosamente em Andrade (2020) que os ajustes estruturais e superestruturais em prol da consolidação do bloco histórico neoliberal no Brasil alavancaram a mercantilização e a mercadorização da educação na medida em que, resumidamente: i) as transformações na base produtiva impuseram um tipo de “pedagogia da acumulação flexível” (KUENZER, 2017) e ii) as instabilidades do
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cotidiano e da manutenção da vida deveriam ser de responsabilidade individual de cada um. Nesse sentido, a tônica da política educacional passa a ser capacitar o indivíduo não só para disputar uma vaga no mercado de trabalho, mas para transitar entre elas ou por fora delas sem maiores dificuldades cognitivas, comportamentais, emocionais etc.
É precisamente nesse sentido que, de um lado, as competências diferenciadas associadas aos postos de trabalho se articulam e se integram nas cadeias produtivas e, de outro, que um conjunto de competências básicas e gerais torna o indivíduo capaz de aprender novos padrões, seja de prática laboral, seja de comportamento social; seja aprender uma função nova, seja não ter função alguma. É justamente nessa lógica, também, que o processo de capacitação é essencialmente apassivador: não só pela ênfase nas então chamadas competências sociais ou comportamentais (hoje socioemocionais), mas pela exacerbação da expropriação do acesso ao conhecimento.
Tal capacitação representa, a nosso ver, um novo grau de expropriação que, por sua vez, torna a mercantilização da educação qualitativamente diferente no seio do bloco histórico neoliberal. A elevação considerável do caráter expropriador dos conhecimentos histórico-elementares, e a exacerbação da dimensão instrumental e apassivadora reduzem substancialmente o valor da força de trabalho à medida que: i) comprime sua formação; ii) tem expropriado qualquer tipo de valor de uso da educação escolar para o trabalhador que não seja diretamente vinculado à troca, já que os mesmos são estimulados a assumir a realidade como inapreensível pela razão, imutável e ininteligível, bem como naturalizá-la em seus aspectos mais perversos e iii) a massiva expansão do acesso à educação precarizada e pulverizada contribui para “capacitar” o exército de reserva e pressionar os salários para baixo.
Na mesma linha, os ajustes propiciaram uma expansão qualitativa dos nichos de mercado, que serviu, inclusive, como movimento de resposta às crises. Sob a égide do discurso da incapacidade financeira e da ineficiência da administração pública, ocorre não apenas a privatização de tipo clássico, em que há venda de patrimônio público para alguma empresa ou conjunto de investidores, mas também a mercadorização do processo educativo nas redes públicas. Além do mais, as mudanças legislativas permitiram ainda a abertura de capital em empresas de educação na bolsa de valores, concorrendo para a elevação a um novo patamar da concentração de capital na área.
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O aprofundamento da mercantilização e da mercadorização estabeleceu uma relação retroalimentativa com a subsunção da educação ao empresariado, isto é, o processo pelo qual o empresariado educacional brasileiro assumiu, em íntima relação com o Estado estrito e com o empresariado internacional, o protagonismo da formulação, aprovação e implementação das políticas públicas de educação. Tal subsunção parece ser a forma mais eficiente que o capital encontrou para maximizar o seu controle sobre o processo educativo, determinando seu conteúdo e forma em fina sintonia com os seus interesses.
O curioso é que, nessa tomada da dianteira, as ações do empresariado aumentam a precarização e o esvaziamento do processo educativo, a partir da sua subsunção à lógica empresarial e ao ethos gerencialista de controle. Tais ações reverberaram no tempo e no conteúdo da (con)formação da classe trabalhadora, bem como na discriminação dos valores relativos às mercadorias e na dinâmica do mercado educacional. Essa hegemonização se gesta no período de revalorização da educação escolar sob a égide da rejuvenescida ideologia do capital humano (MOTTA, 2008), em escala nacional e internacional, bem como no bojo da onguização descrita por Fontes (2010).
É importante atentar para o fato de que, realmente, esse empresariado a que nos referimos é majoritariamente constituído por organizações da sociedade civil, com ou sem fins lucrativos. Todavia, isso não deve anuviar o fato de tais organizações, muitas vezes, lançarem fumaça sobre seus verdadeiros comandantes. Quase sempre, por trás de uma organização da sociedade civil atuante na educação, existe uma complexa rede de empresas, nacionais ou não. Em suma, que essas organizações funcionam como braços ou aparelhos privados de hegemonia – a exemplo do Cenpec, que desde a década de 1990 participa ativamente da educação escolar da classe trabalhadora, sobretudo na vertente do tempo integral. O que se fala muito pouco, entretanto, é que o Cenpec é estreitamente vinculado ao Banco Itaú e suas organizações.
A despeito das várias organizações e movimentos importantes dessa época, podemos dizer que o corolário desse processo é o Todos pela Educação (TPE), criado em 2006 e pelo grande empresário Jorge Gerdau Johannpeter. Entre seus sócios- fundadores figuras vinculadas ao Estado estrito (como o então ministro da educação, Fernando Haddad, e o recentemente presidente do CNE, Cesar Callegari), quanto a grandes empresas e bancos, inclusive empresários-proprietários, à exemplo de
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nomes como os de Jorge Paulo Lemann, Gustavo Ioschpe, Emílio Odebrecht e Maria Alice Setúbal.
Além do mais, desde 2006, o TPE conta com o apoio de representantes de empresas como Itaú Social, DPaschoal, Bradesco, Fundação Telefônica (Telefônica/Vivo), Gerdau, Itaú BBA, Instituto Península, Gol, Fundação Victor Civitta, Editora Moderna, Canal Futura e vários outras, bem como o apoio de organismos internacionais, tal como o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) (ANDRADE, 2020). Vale ainda ressaltar o apoio ao TPE por parte do LIDE (Grupo de Líderes Empresariais) cuja direção é exercida “por um Comitê de Gestão, composto por representantes de grandes corporações, ex-ministros de Estado, especialistas em diversas áreas de atuação, que tem como objetivo orientar, avaliar e decidir sobre as diretrizes do Grupo de Líderes Empresariais” (LIDE GLOBAL, 2018, s.p.).
A partir de então, o controle sobre as escolas cresce de forma exponencial e assustadora, de modo inacreditavelmente legítimo. Ao nosso ver, o que difere esse empresariado daquele organizado nos anos 1990 é, para além de seu porte e organicidade, a feição democrático-republicana liberal que este assume nos anos 2000, que não só viveu, mas apoiou e reivindicou, por exemplo, a ampliação da educação básica obrigatória, conquistada pela promulgação da Lei nº 12.796/2013.
A história nos mostra, portanto, que entre educação, acumulação capitalista e crise existe uma relação importante. Isso porque a educação é peça chave da acumulação capitalista, sobretudo porque é um dos elementos constitutivos mais importantes da força de trabalho. No exercício da hegemonia, e nos momentos de crise, não sem disputas, funciona como ferramenta da classe dominante tanto no âmbito estrutural quanto superestrutural, bem como nos movimentos de soldagem de seus vínculos.
A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e o Novo Ensino Médio (NEM) são medidas de contrarreforma na educação que atravessam os debates da última década. Hoje em fase de implementação, o debate sobre os efeitos deletérios deu lugar ao pânico de ver o pior lado das reformas instalando o caos em escolas de todo o país, enquanto alunos têm as aulas de história, geografia, filosofia e sociologia
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substituídas por matérias como “o que rola por aí”, “brigadeiro caseiro” e “RPG” (O GLOBO, 2023).
Muito se discutiu sobre os problemas internos das reformas, sobre os impactos da BNCC no trabalho docente, o currículo e o cotidiano escolar (FREITAS, 2014) e sobre como o NEM expressa o que dá de mais asqueroso e cruel no que tange a projeto de formação para a juventude (ANDRADE, 2020). Aqui, não se objetiva repetir tais críticas, mas realizá-las por outro ângulo. Noutros termos, aqui, confrontamos as propostas de reforma tal como foram apresentadas, demonstrando que elas mesmas não se sustentam em suas próprias proposições e objetivos. Vale lembrar que, como demonstramos em Andrade (2020), a BNCC é uma reforma de responsabilidade sobretudo empresarial, haja vista que o Movimento pela Base (MPB) é um braço do TPE que foi criado justamente para cuidar dessa medida. Após a cisão da BNCC em duas partes, seguindo o modelo de Ensino Médio aprovado via Medida Provisória pelo governo golpista, o MPB também se articulou para implementá-lo.
O primeiro ponto a se destacar é precisamente o discurso que erigiu a necessidade de uma BNCC, qual seja, o da existência de grandes disparidades educacionais. Nesse sentido, na época inicial de produção de consenso em torno da BNCC, falava-se da necessidade de promover os mesmos direitos de aprendizagem para todos, haja vista a imperatividade de reduzir as gigantescas desigualdades regionais. O modelo de Ensino Médio aprovado pouco depois, e vinculado a BNCC, promoveria, todavia, exatamente o oposto: a educação igualitária, de qualidade e democrática a ser promovida pela BNCC seria complementada pelo NEM, que restringe significativamente o acesso dos estudantes do ensino médio ao conhecimento historicamente acumulado e pulveriza as trajetórias formativas de modo quase infinito, igualando educações absolutamente distintas e desiguais.
Um dos pontos mais sedutores do discurso de legitimação do NEM, sobretudo para os jovens, é o de que a reforma proporciona “liberdade de escolha” dos estudantes. Mas, no contexto da própria Lei no. 13.415 de 2017, não há nada que obrigue as escolas a oferecer todos os itinerários formativos, muito pelo contrário. Está posto no texto de regulamentação da lei que “Os sistemas de ensino devem garantir a oferta de mais de um itinerário formativo em cada município, em áreas distintas (...) atendendo assim a heterogeneidade e pluralidade de condições, interesses e aspirações” (BRASIL, 2018, Art. 12, § 6º, grifos nossos). Isso sem mencionar, ainda, que a reforma do Ensino Médio não o divide apenas em itinerários: cada itinerário
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pode apresentar configurações radicalmente distintas, de modo que a escolha do itinerário significa muito pouco perto da quantidade de trajetórias que ele pode oferecer.
Outro ponto importante é a jornada integral, possibilitada pelo Programa Ensino Médio em Tempo Integral (EMTI). Nas propagandas de rádio e televisão, até hoje, afirmam-se que foram disponibilizadas 500 mil novas vagas para o ensino médio em tempo integral ao custo de 1,5 milhão de reais até 2020. Apesar dos números vultosos, deve-se destacar que o Brasil tem quase 8 milhões de alunos matriculados no Ensino Médio e que, destes, cerca de 13% estão na rede privada (algo em torno de 1 milhão de alunos). Restam quase 7 milhões. Destes restantes, 670 mil já são contemplados com a jornada integral, ou seja, permanecem uma média de sete horas na escola em aulas ou em atividades extracurriculares. Restam, ainda, cerca de 6 milhões de alunos a serem contemplados. 500 mil alunos contemplados pelo EMTI é algo em torno de 10% da quantidade de alunos que deve ser atendida. Isso sem contar que até hoje não se inclui no debate a questão do Ensino Médio noturno, que conta com quase 1 milhão de estudantes. Não parece crível que eles disponham de jornada integral, haja vista que, para cumpri-la, os alunos precisariam estudar das 18 às 23 horas, ou mesmo das 19 às 00 horas.
Várias outras contradições foram exploradas em Andrade (2020). Dentre elas, podemos mencionar a primazia do direito à aprendizagem como contraface do esvaziamento do direito à educação, além da alienação a outros direitos básicos da criança e do adolescente. Dizer que uma BNCC, por exemplo, “assegura” direitos de aprendizagem é quase cômico, haja vista que relatórios como o da Fundação Abrinq (2019), mostram que 9,4 milhões de crianças brasileiras entre zero e 14 anos, ou 22,6% destas, viviam em situação de extrema pobreza, isto é, com uma renda domiciliar per capita mensal inferior ou igual a um quarto de salário mínimo, ou R$ 234,25 em valores de 2017, incapazes de garantir os direitos à saúde, lazer, transporte e outros - além do próprio direito à educação, esvaziado e anuviado pelo direito à aprendizagem.
Na LDB/1996, por exemplo, consta a “garantia do direito à educação e à aprendizagem ao longo da vida” (BRASIL, 1996, Art. 3º), de modo que este não substitui, mas integra, complementa, constitui aquele. Nesse sentido, o direito à aprendizagem significa uma redução do direito humano à educação à medida que a aprendizagem é um dos fins, dos resultados individuais a ser alcançado por meio do
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processo educativo, isto é, da educação multifacetada, coletiva, processual e contínua. A nosso ver, o direito de aprender mistifica e reifica o processo de aprendizagem ao apresentá-lo com origem e fim em si mesmo, independente de um processo anterior, desenvolvido em determinado tempo e condições materiais; como um objeto fornecido (vendido) por professores e adquirido (comprado) por estudantes, como se a relação aluno-escola ou aluno-professor fosse ausente de qualquer mediação e eminentemente comercial. Nesta lógica, adquire algum sentido o fato de que as reformas endossam o direito de aprender sem propor, nem mesmo no discurso, alguma solução mínima para as péssimas e graves condições estruturais em que se dá a educação pública no Brasil.
Todos esses problemas não incluem, ainda, o fato que os propositores na BNCC, por exemplo, negam a sua própria história, omitindo que a ideia de uma Base para os currículos remonta aos anos 1980 e a própria luta em prol da reconstrução da educação pública, que havia sido destruída pela ditadura empresarial militar. Não incluem também que, a despeito da proposta mirabolante de Ensino Médio, em 2020, na Região Norte do país, por exemplo, passa de 70% o percentual de escolas públicas que não dispõem de esgoto sanitário, sendo os estados com menor cobertura de esgoto sanitário o Pará, Maranhão, Amapá, Acre e Amazonas (ANDRADE, 2020). Grande parte das escolas brasileiras que deveriam contemplar, além das competências digitais associadas à BNCC, itinerários formativos calcados em processos criativos e investigações científicas, por exemplo, não contam com rede pública de abastecimento de água; que de modo geral, considerando-se a rede estadual, que concentra aproximadamente 70% das matrículas nessa etapa, cerca de 20% não contam com laboratório de informática, 63% não contam com laboratório de ciências e 15% não têm uma biblioteca ou uma sala de leitura (ANDRADE, 2020).
Qual o sentido da implementação de reformas educacionais nessas condições?
Como, diante de tantos problemas, elas poderiam se tornar prioridade?
A despeito dos bons indicadores econômicos de 2013, o ano foi marcado por eventos importantes. Apesar da então presidente ter sido reeleita em 2014, pode-se afirmar que seu governo foi bastante tensionado. Em 2012 houve uma das maiores
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greves da educação pública; o ano de 2013 superou todo o histórico de greves no Brasil (DIEESE, 2015) e, nesse mesmo ano, as Jornadas de Junho, apesar dos objetivos confusos, expressavam tanto o recrudescimento da luta dos trabalhadores e a sua inquietação social, como o lado mais conservador da política – a exemplo da organização de movimentos tais como o Movimento Brasil Livre (MBL) e o grupo de Estudantes Pela Liberdade (EPL) que, financiados por empresas de capital internacional (as mesmas que provém grupos ultraconservadores nos Estados Unidos, como o caso do movimento Tea Party), tinham como tônica o combate à corrupção pelo apoio à face messiânica-weberiana da Lava-Jato. Discorrem Motta e Leher (2017, p. 250):
É preciso agregar, também, as denúncias de corrupção do “Mensalão” e, principalmente, da Lava-Jato; acrescido das ásperas condições de trabalho do jovem proletariado precarizado; a agenda homofóbica na Câmara dos Deputados; a crescente degradação do serviço público em virtude da crise nos governos estaduais (provinciais); o custo do transporte e da repressão policial selvagem nos atos de protesto contra o custo do transporte urbano, fatores que, em conjunto, contribuíram para a irrupção, na forma de movimentos multitudinários, das Jornadas de Junho de 2013, somados às 2.050 greves dos trabalhadores, denotando um forte ascenso das lutas, tendência que permaneceu nos anos seguintes. As massivas manifestações a partir de 2013 evidenciaram o fim da hegemonia do PT e da Central Única dos Trabalhadores (CUT), corroída pelo transformismo, sobre os movimentos sociais, particularmente sobre a juventude precarizada e a mal conceituada “Nova Classe C”.
Afetada a arrecadação de tributos, o forte e ortodoxo ajuste fiscal de 2015 exigido pelas frações representantes do grande capital, com vistas à proteção do pagamento do serviço da dívida, teve desdobramentos notáveis. De um lado, descontentou frações burguesas que já vinham apresentando problemas de acumulação, queda no lucro líquido e pautando a diminuição do custo da força de trabalho; de outro, agravou a insatisfação da classe trabalhadora ao retirar seus exíguos direitos e ao colocá-la diante da contração do consumo, da trajetória ascendente do desemprego e do crescente endividamento das famílias, além do decréscimo da força de trabalho ocupada na indústria.
Em 2015, a composição do Congresso Nacional sofreu alterações importantes: o número de sindicalistas caiu pela metade, a bancada empresarial manteve composição significativa e aumentou o número de parlamentares ligados a segmentos religiosos, militares e ruralistas – somente este último passou dos 14 senadores e 191
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deputados para 16 e 257, respectivamente. Estes dados foram divulgados em uma reportagem do jornal Valor Econômico, intitulada “Nova composição do Congresso é a mais conservadora desde 1964” (AGÊNCIA BRASIL, 2015 apud ANDRADE, 2020). Nesse cenário, o discurso da direita e suas ideias mais inócuas ganharam grande amplitude e, com grande apoio financeiro de fundações nacionais e internacionais, de direita e extrema direita – tais como o Instituto Millenium, o Fórum pela Liberdade e o Students for Liberty –, seus representantes alastraram-se pela sociedade política: pelo poder Executivo, Legislativo e Judiciário.
Nesse contexto, a burguesia brasileira não hesitou em demonstrar que se fazia necessário um conjunto de ajustes e uma celeridade no ajuste fiscal e na implementação das reformas impossíveis sob a égide petista, as quais foram prometidas pela cúpula do MDB no documento “Uma ponte para o futuro”. Nesta direção, a amálgama de interesses foi constituída pelo apoio das frações burguesas ao MDB, e pelo movimento popular que reuniu os grupos mais odiosos e descontentes.
A partir da ascensão da direita ativa e beligerante em 2016, as reformas ganharam novo impulso. Aprovou-se a Emenda Constitucional 95 (EC) que limita os gastos públicos com as despesas primárias por vinte anos (medida que foi adotada por diversos países, mas em nenhum país do mundo por tantos anos). Em 2017, aprovou-se o desmonte e a fragilização das leis trabalhistas, institucionalizando “o trabalho intermitente, a terceirização das atividades fins e a prevalência do negociado sobre o legislado. Doravante, o trabalho precário, vulnerável, indigno, característicos do trabalho informal, agora é trabalho regulado” (MOTTA; LEHER, 2017, p. 253); retirou-se da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) o artigo que incluía entre as prioridades para 2018 o cumprimento das metas previstas pelo PNE; desmembrou-se o processo de construção da BNCC e insistiu-se na Reforma da Previdência, justificada pelo mito do déficit previdenciário. No âmbito político-jurídico, assistimos à manutenção do mandato de Temer à despeito das denúncias e escândalos de corrupção envolvendo seu nome, a fragilidade da coordenação política, o tensionamento da funcionalidade e da legitimidade das instituições e do sistema político e partidário – à exemplo do caso da “prisão/soltura” de Lula, ocorrido em 2018. Na conjuntura que se estabeleceu para os trabalhadores, notadamente marcada pelo aumento da violência, pela perda de direitos, pela instabilidade econômica, pela perda do poder de compra e outros, fazia-se absolutamente
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necessário um novo modelo de educação. A política educacional então sustentada pelo modelo liberal republicano, calcado na vertente social-liberal do neoliberalismo, não poderia mais dialogar com a radicalização neoliberal imposta pelo capital.
Motta e Leher (2017) sinalizaram que a celeridade da Reforma do Ensino Médio tinha como pano de fundo a administração da “questão social”; que a questão das competências socioemocionais, tais como a resiliência, denotam “que os setores dominantes estão atuando no sentido de educar a juventude para a situação de precariedade e vulnerabilidade do mercado de trabalho no Brasil”. Andrade e Motta (2020) mostraram que o NEM arrancava dos trabalhadores conquistas extremamente recentes, tais como a obrigatoriedade do EM, no modelo então em voga, que foi conquistada em somente em 2013, quando da inclusão dessa etapa na educação básica, e a obrigatoriedade das disciplinas sociologia e filosofia, que ocorreu somente em 2008, quando as ganharam o status de disciplina escolar obrigatória.
Por esses e tantos outros aspectos, concebemos tanto o NEM quanto a BNCC como medidas de contrarreforma, posto que as mesmas apontam no sentido da retirada, da expropriação de direitos, e não de sua ampliação – medidas plenamente coerentes, por conseguinte, com a contrarreforma neoliberal, onde as “reformas” postas em marcha “têm por objetivo a pura e simples restauração das condições próprias de um capitalismo ‘selvagem’, no qual devem vigorar sem freios as leis do mercado” (COUTINHO, 2012, p. 123). Estendendo um pouco as margens documentais e abarcando outros aspectos do discurso de seus protagonistas, também encontramos problemas. Não se pode dizer que seus discursos são falsos ou mentirosos na sua totalidade, pois ninguém pode responder negativamente ao ser interpelado sobre as condições mínimas e decadentes da educação brasileira.
De modo geral, a tríade formada pela EC 95/2016, que congela os gastos públicos, pela contrarreforma da previdência e pela destruição da legislação trabalhista representa um profundo desmonte da limitada dimensão social da Constituição de 1988. De forma semelhante, o NEM e a BNCC (que, vale lembrar, contam com grande incentivo e financiamento do Banco Mundial) representam um profundo retrocesso no que se refere às duras, limitadas e recentes conquistas da classe trabalhadora em torno da educação básica e superior. O objetivo desse trabalho não fora, contudo, demonstrar a coesão interna do conjunto de medidas de contrarreforma em curso, mas iluminar a coerência desse conjunto diante da crise.
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No que tange ao presente, consideramos que o golpe de 2016, sucedido pelo governo protofascista de Bolsonaro, reafirma a natureza coercitiva e violenta da classe dominante brasileira, sua incapacidade de realizar concessões, mesmo que nos limites da ordem vigente, e a sua tendência de ataque à democracia, sobretudo quando esta se apresenta como trava à acumulação capitalista. Nesse sentido, é “[...] sob um novo clima de temor-pânico, de compulsão repressiva e de abuso do poder político institucionalizado [que] as classes sociais privilegiadas (...) aplicando à participação social ampliada das massas no poder o modelo desmoralizado da democracia restrita”. (FERNANDES, 1973, p. 41).
É diante de uma nova fase de estorvo na acumulação e de crise de hegemonia que a fração da classe dominante mais reacionária, com o apoio do empresariado, reforça os mecanismos de sobre apropriação, e retoma com afinco as medidas que aprofundam a barbárie social e excluem das decisões políticas as grandes massas. E é precisamente nessa perspectiva analítica que compreendemos que a educação escolar não se desvincula dos aspectos estruturantes da formação dependente que, sob novas roupagens e a depender dos elementos dinâmicos da política, continuam a atravessar o desenho e a concretude da educação brasileira. A negação da imaginação inventiva, a persistente tentativa de suprimir conteúdos propedêuticos e de negar conhecimentos técnico-científicos mais complexos no ensino médio, a resistência ao investimento público em educação, o atentado à socialização ideológica da juventude trabalhadora e a conservação da dualidade educacional estrutural, se de fato são elementos presentes no NEM e na BNCC, são também elementos que atravessam a história da educação brasileira com distintas intensidades.
Como abordamos, a mercantilização da educação escolar é dimensão insuperável no bojo da sociedade capitalista, posto que, na ótica do capital, vale a máxima do conhecimento estritamente necessário à geração de mais-valor – aspecto diretamente vinculado às especificidades das distintas cadeias produtivas integrantes da cadeia global de valor. Noutros termos, o conteúdo da educação escolar, crescentemente subsumida à forma-mercadoria e aos seus aspectos fetichizantes e reificadores, deve-se resumir, na perspectiva do capital, a valor de uso para si, espremendo todos os constituintes que poderiam acrescer o valor da força de trabalho.
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Nesse sentido, deve-se atentar ao fato de que tanto a BNCC quanto o NEM, como já vimos, arrancam explicitamente todas as dimensões científicas do conhecimento, cujo acesso foi duramente conquistado, resumindo-o a competências.
Tal processo é entendido por nós como o aprofundamento da mercantilização da educação na medida em que, resumidamente, espreme-se o valor de uso da educação escolar na perspectiva dos trabalhadores, pressiona para baixo o valor da força de trabalho e mantém-se o valor de uso na perspectiva do capital, inclusive diante das significativas modificações nas cadeias de produção de valor, germinadas a partir do big crash de 2008.
De modo transversal, vimos que a mercadorização da educação, indissociável de sua mercantilização, é outra dimensão estrutural-histórica da educação escolar na sociedade capitalista, à medida que a tendência do capital é subjugar todas as esferas da vida ao assim chamado “mercado”, tornando tudo, material ou não, passível de troca, isto é, de comercialização. Vimos concretamente como a BNCC amplia, por exemplo, o nicho de mercado relacionado aos pacotes avaliativos, aos sistemas de ensino, aos livros didáticos e outros, sob o comando das grandes empresas de capital aberto. Isso vale para o NEM no que tange à reorganização do Ensino Médio e, principalmente, aos itinerários formativos, sem considerar ainda as formas legítimas de acesso ao fundo público, direto ou indireto, por parte das empresas privadas doravante integrantes da formação desse alunado. É um nicho de mercado direto na educação básica que se constitui, no caso das empresas de capital aberto, de modo verossímil e que merece significativa atenção.
No que tange à subsunção da educação ao empresariado, apresentamos o TPE como busílis desse processo, e discorremos sobre as formas com que esses empresários assumiram o controle sobre a educação básica pública a nível nacional, mormente via integração de cadeiras do Estado estrito e parcerias público-privadas. O Movimento pela Base, que se constitui como um braço do TPE, opera de modo semelhante, definindo o conteúdo da educação escolar, doravante atuando diretamente sobre o currículo nacional – não só em sua parte homogeneizante, posto que todas as brechas foram abertas para que o empresariado pudesse atuar, também, sobre os itinerários formativos, ainda que, a princípio, regionalmente. Precisamente assim o empresariado educacional exacerba o controle sobre a lógica escolar, imprime uma dimensão fortemente apassivadora à mesma e, paralelamente, cria as
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condições necessárias à expansão hegemônica da própria classe, que abarca as dimensões políticas, jurídicas, sociais e econômicas.
Nesse bojo está ainda o caráter ideológico do discurso de legitimação propalado por esse bloco social, que mistifica a realidade à medida que apartam os reincidentes problemas educacionais da totalidade social, omitem a sua historicidade e os tratam como problemas efêmeros, cujas soluções imediatistas estão intimamente ligadas à sua particular concepção de mundo e de educação. Outrossim, reforça para nós que as bandeiras “formação geral/intelectual para todos”, “educação emancipatória de qualidade”, “cultura geral e educação profissional para o povo brasileiro” e outras tão sonhadas e requeridas pelos trabalhadores, não têm lugar duradouro no capitalismo dependente, no qual as contradições do capitalismo se manifestam com faces exacerbadamente antidemocráticas.
Indubitavelmente, a primeira luta contra as medidas de contrarreforma hodiernas, que mais uma vez nos atacam enquanto classe trabalhadora que somos, deve clamar pela democracia, afinal, ela “[...] não teria nenhuma utilidade para o proletariado se não servisse de maneira imediata para realizar algumas medidas que atacam diretamente a propriedade privada e asseguram a existência do proletariado.” (ENGELS, 2016, p. 35). Nesse sentido, a suspensão da medida provisória e da reforma do Ensino Médio é uma exigência. No entanto, é com base no exposto brevemente aqui que (re)afirmamos a necessidade de unir a luta contra os ataques à educação à luta pela revogação de outras medidas de contrarreforma já aprovadas. Mais além, é com base nessa compreensão que afirmamos: caso queiram-se resultados duradouros, a luta dentro da ordem precisa estar vinculada à superação do capitalismo dependente que exige, necessária e obrigatoriamente, a destruição completa das relações sociais vigentes.
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V.21, nº 44, 2023 (janeiro-abril) ISSN: 1808-799 X
Maria Raquel Caetano2
Resumo
Neste artigo, problematizaremos as transformações do neoliberalismo em sua versão no século XXI, o papel do Estado e o gerencialismo a partir da incorporação de novas matrizes teóricas. As ações empresariais, no campo da educação, desenvolvem práticas que promovem a síntese entre interesse individual e interesse geral. Metodologicamente, usamos a análise de documentos produzidos pela Reduca e suas instituições membros. Nas considerações, o que se destaca, é o interesse dos empresários que financiam e atuam na educação, por intermédio de redes, alinhando-se à doutrina do mercado na América Latina.
Palavras-chave: Neoliberalismo; Gerencialismo; Educação.
NEOLIBERALISMO, GERENCIALISMO Y EDUCACIÓN: EL PROYECTO EMPRESARIAL PARA AMÉRICA LATINA
Resumen
En este artículo problematizaremos las transformaciones del neoliberalismo en su versión en el siglo XXI, el papel del Estado y el gerencialismo a partir de la incorporación de nuevas matrices teóricas. Las acciones empresariales, en el campo de la educación, desarrollan prácticas que promuevan la síntesis entre el interés individual y el interés general. Metodológicamente, se utilizó el análisis de documentos producidos por Reduca y sus instituciones miembros. En las consideraciones, se destaca el interés de los empresarios que financian y actúan en la educación, a través de redes, alineándose con la doctrina del mercado en América Latina.
Palabras clave: Neoliberalismo; Gerencialismo; Educación.
NEOLIBERALISM, MANAGERIALISM AND EDUCATION: THE BUSINESS PROJECT FOR LATIN AMERICA
Abstract
In this article, we will problematize the transformations of neoliberalism in its version in the 21st century, the role of the State and managerialism from the incorporation of new theoretical matrices. Business actions, in the field of education, develop practices that promote the synthesis between individual interest and general interest. Methodologically, we used the analysis of documents produced by Reduca and its member institutions. In the considerations, what stands out is the interest of entrepreneurs who finance and act in education, through networks, aligning themselves with the doctrine of the market in Latin America.
Keywords: Neoliberalism; Managerialism; Education.
1 Artigo recebido em 10/02/2023. Primeira avaliação em 16/03/2023. Segunda avaliação em 19/03/2023. Aprovado em 30/03/2023. Publicado em 13/04/2023
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v21i44.57593.
2 Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) , Rio Grande do Sul
- Brasil. Professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Sul-Riograndense -IFSul - Campus Sapucaia do Sul e do Mestrado ProfEPT - Campus Charqueadas, Rio Grande do Sul - Brasil. E-mail: caetanoraquel2013@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/8670505772168037.
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6973-908X.
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Este artigo parte do pressuposto de que a política educacional não é determinada pelas mudanças que ocorrem na redefinição do papel do Estado, mas é parte constitutiva dessas mudanças (PERONI, 2007) e de que a crise que vivenciamos não é uma crise cíclica, mas uma crise estrutural do capital. Trata-se, portanto, de um sistema sociometabólico, conforme Mészáros (2007), que organiza estruturas produtivas para encontrar recursos e saídas para sua expansão e acumulação, a partir de estruturas totalizantes de organização e controle social.
Partimos do princípio de que a suposta neutralidade das estratégias assumidas para superar a crise do capital e as discussões educacionais vinculadas a elas não são desinteressadas, portanto, a neutralidade nesse contexto exposto é impossível. As ações empresariais, no campo da educação, desenvolvem práticas que promovem a síntese entre interesse individual e interesse geral. Elas não interferem nos interesses econômicos, nem se opõe ao Estado, ao contrário, ela atua através e com o Estado, o que modifica a cultura organizacional e faz com que o Estado aprenda, com as “qualidades” do setor privado, a flexibilidade, a inovação, a eficiência e a eficácia, ou seja, aprenda sua visão hegemônica de mundo. Essa hegemonia é abordada a partir de Gramsci (1991) com o significado de organização do consenso, ou seja, uma classe ou fração de classe no poder torna-se efetivamente hegemônica a partir do momento em que consegue obter,
[…] tanto por parte das classes aliadas quanto por parte das classes subalternas, uma identificação destas com o seu projeto ideológico de dominação; quando sua visão de mundo particular universaliza-se, sendo compartilhada como própria pelas demais classes. (GRAMSCI, 1991, p. 185).
Neste artigo, problematizaremos as transformações do neoliberalismo em sua versão no século XXI, o papel do Estado e a constituição do homem empreendedor, a partir da incorporação de novas matrizes teóricas. Tal redirecionamento faz parte das transformações do novo papel do Estado como empreendedor e facilitador de negócios na redefinição da administração pública (ABDALA; SOCARRÁZ, 2019) , que enfatiza o gerencialismo e a criação de espaços públicos não estatais, o que causa a regressão de políticas sociais e o avanço de medidas ligadas ao mercado, em especial na educação. Apresentaremos, como exemplo da ação gerencial que integra as
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reformas globais na educação, a Rede Latino Americana de Educação, a Reduca, cujo enfoque é a atuação de fundações, associações, e da atuação direta ou indireta de empresários, visando compreender a atuação hegemônica e, por consenso, no campo educacional.
Do ponto de vista metodológico, este trabalho se caracteriza como qualitativo, de natureza bibliográfica e documental. Na primeira parte, utilizamos como fontes de análise, pesquisas já desenvolvidas por Puello-Socorrás (2008;2010); Abdala e Puello-Socarrás (2019); Peroni (2017; 2021); Lamosa (2017) entre outros. Na segunda parte, analisamos os documentos elaborados pela Rede Latino-Americana de Organizações da Sociedade Civil pela Educação – Reduca, entre os anos de 2011 e 2013, os membros ativos da rede em cada país e as informações disponibilizadas em sites. Buscamos, com este texto, apresentar alguns estudos de autores que tem centrado suas pesquisas sobre as reformas educativas como estratégia para manter a ordem atual do capital na América Latina. Buscamos, a partir das relações entre as temáticas apresentadas, elaborar e produzir subsídios teóricos para a fundamentação e análises de políticas educacionais.
As mudanças que vêm ocorrendo na educação estão imbricadas em um movimento maior, cuja totalidade e historicidade precisam ser entendidas a partir das sucessivas crises do capital neste período histórico, político e social cujas especificidades são diferentes de dez ou vinte anos atrás. Na fase atual do neoliberalismo, as novas formas de atuação do Estado vêm se modificando sem perder sua essência: ser um projeto político de classe que objetiva manter e ampliar a expansão e criação de mercados (ABDALA, 2022). As novas formas de atuação do Estado pretendem construir uma sociedade de mercado do século XXI. Para isso, o capital necessita se adaptar para a sua reconstituição e a sua consolidação como projeto hegemônico, pois, ao gerar uma série de crises econômicas, precisa se reformular, então, o ponto de referência são as leis do mercado.
Nesse panorama, o neoliberalismo se apresenta como uma estratégia de superação das sucessivas crises do sistema do capital, como uma dinâmica atualizada do desenvolvimento capitalista com diferentes facetas, incorporando novas
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referências sem modificar seu conteúdo central, reinventando-se sempre. Puello- Socarrás (2008a, p. 23) alerta que o neoliberalismo não é apenas um programa de políticas e não se “[...] esgota nem se pode equiparar exclusivamente com o Consenso de Washington”, nem com sua versão original, nem com o que sucedeu. Seu conteúdo representa apenas uma das diversas tradições históricas do projeto neoliberal, considerado como uma etapa do capitalismo na qual se pode observar “[...] a mais pronunciada exacerbação das lógicas e contradições inerentes à reprodução e acumulação incessante do capital” (PUELLO-SOCARRÁS, 2008a, p. 14). O autor continua, ao dizer que limitar o neoliberalismo, portanto, a um programa de políticas “[...] oculta e minimiza seu significado sociopolítico”.
No contexto atual, o neoliberalismo se caracteriza como reformas de segunda geração e busca sintetizar modos de organização social considerados opostos e irreconciliáveis (Estado e Mercado), em uma narrativa compatível e convergente, da qual podem derivar políticas de ajuste estrutural favoráveis ao mercado (PUELLO- SOCARRÁS, 2008b). Esses traços característicos do Estado neoliberal contemporâneo pretendem dar continuidade à construção estratégica de uma sociedade de mercado que busca desvincular o público do Estado. No Brasil, as reformas na administração pública mais profundas tiveram início nos anos noventa, no governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2003), com o Plano Diretor da Reforma do Estado, que tinha como objetivo desburocratizar o Estado. Nesse período, já se indicava o público não estatal. A estratégia para descentralizar serviços públicos foi a criação de novos tipos de organizações, que receberam nomes variados, dependendo da finalidade a que se destinam: agência autônoma, organização social, agência executiva, fundação de serviços públicos, agência pública. Para Bresser Pereira (1997, p. 67), o público não estatal está além da propriedade privada e da propriedade estatal existentes no capitalismo.
[...] se definirmos como público aquilo que está voltado para o interesse geral, e como privado aquilo que é voltado para o interesse de indivíduos e suas famílias, está claro que o público não pode ser limitado ao estatal, e que fundações e associações sem fins lucrativos e não voltadas para a defesa de interesses corporativos, mas para o interesse geral, não podem ser consideradas privadas. [...] Na verdade são entidades públicas não estatais, ou seja, são entidades sem fins lucrativos, são organizações não governamentais, organizações voluntárias (BRESSER PEREIRA, 1997, p. 67).
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O molde comum a todas essas designações é a de organização não estatal, nem privada, sem fins lucrativos, cuja finalidade é a de executar serviços de interesse público, de natureza concorrencial, com financiamento público e métodos de funcionamento do setor privado (MORALES, 1998). Dessa forma, ao longo dos anos, foi se recriando um espaço público não estatal, que é um espaço e ambiente para a proliferação do empreendedorismo e de seus desdobramentos. Essa forma de conceber o público não estatal traz implicações nas mais diversas esferas da vida em sociedade, passando da esfera dos direitos do cidadão para a prestação de serviços sociais (PUELLO-SOCARRÁS, 2008a, p. 17). No caso da educação, ela é oferecida à população, mas não necessariamente quem a executa é o Estado, o que permite que outras instituições, como as do terceiro setor: OSs, institutos, fundações e associações, ofereçam esse serviço através da terceirização, de parcerias, de contratos, de vouchers ou de outras variações. Além disso, o Estado terceiriza a política, a execução da política e o conteúdo da proposta educacional ao adquirir todo tipo de produto vinculado a essas instituições.
O enfoque de Estado Empresarial se constitui como uma reordenação às transformações do neoliberalismo a partir
do novo papel do Estado como facilitador de negócios na criação de espaços públicos não estatais, com a regressão de políticas sociais e o avanço de medidas que se direcionam a uma suposta liberdade econômica (ABDALA; SOCORRAZ, 2019, p. 24).
A Administração Pública, fruto das reformas gerenciais e do gerencialismo (NEWMAN; CLARK, 2012), é compreendida como “[...] simples gestora da rede de contratos promovidos pelos governos em função da iniciativa privada e dos mercados nos quais busca garantir eficiência e eficácia, quer dizer, situações de lucro em particular e de acumulação de capital em geral” (ABDALA; SOCORRAZ, 2019, p. 24). Osborne e Gaebler (1994, p. 25), no livro clássico, Reinventando o Governo3: como o
3 Foi um clássico nos anos 1990 e inspirou o governo Bill Clinton nos EUA. Os autores utilizam o termo governo empreendedor para descrever o modelo emergente de gestão pública. O conceito básico utilizado é o cunhado pelo economista francês J. B. Say, por volta do ano 1800. O empreendedor, segundo esse conceito, é aquele que transfere recursos de áreas em declínio e os investe em áreas de alta produtividade e de grande retorno. Ainda acrescentam os autores - é aquele que, conforme demonstrou, mais tarde, Peter Drucker, mais do que ser capaz de vislumbrar oportunidades. Quando se fala em empreendedores públicos, dizem os autores, está se falando precisamente de pessoas e instituições que habitualmente agem desta maneira: utilizam constantemente seus recursos de maneira inovadora a fim de elevar sua eficiência e efetividade.
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espírito empreendedor está transformando o setor público, já traziam o ideário de transformar burocracias públicas em governos empreendedores, produtivos e eficientes, visto que isso tem uma relação estreita com a dúvida do cidadão sobre a capacidade do Estado em administrar a sociedade e satisfazer suas crescentes necessidades sociais. Conforme Machado (2001), Osborne destacou alguns princípios básicos a serem seguidos por um governo empreendedor:
ser um governo catalisador; ser um governo competitivo; ser um governo inspirado em missões; ser um governo orientado para resultados; ser um governo voltado para os clientes; ser um governo empreendedor, isto é, que ganha dinheiro com a venda de serviços públicos eficientes, em vez de só gastá-los; ser um governo orientado para o mercado, que usa mecanismos do mercado para oferecer serviços públicos (MACHADO, 2001, p. 9).
O autor destaca que a essência do novo modelo de governo empreendedor é, justamente, conseguir implementar mudanças com eficiência, eficácia e efetividade. Em outras palavras, podemos dizer que elementos são trazidos da gestão privada para a gestão pública. Para Osborne e Gaebler (1994), o perfil requerido das organizações, inclusive dos governos, na era da informação, são organizações enxutas, flexíveis, que trabalhem basicamente em parcerias voltadas às necessidades do cliente, inovadoras e em permanente evolução, o que cria o argumento de desburocratização e de qualidade para o setor público, na medida que se aproximam com o setor privado.
A continuidade e o aprofundamento das reformas trazem transformações para o indivíduo, que deixa de ser visto como cidadão e passa a ser compreendido como cliente e, mais recentemente, como um usuário, que deve ser satisfeito em suas necessidades não pelo Estado, mas por meio de mecanismos de mercado, embora, muitas vezes, a empresa prestadora de serviços atue em função pública, como as escolas e as instituições de ensino superior. Tal função do Estado facilita os negócios, atuando para corrigir as falhas do mercado. Em outras palavras, o Estado atua por meio de seu aparato de gestão para ajudar as empresas a operar e prosperar, criando um ambiente propício ao lucro.
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O gerencialismo é “[...] a matriz teórico-ideológica que oferece o suporte operacional para o avanço do projeto neoliberal” (ABDALA; SOCARRAZ, 2019, p. 33), ao adaptar a gestão pública para a nova era neoliberal. Essa adaptação ocorre através da utilização de ferramentas gerenciais provenientes da administração privada e tem como objetivo construir uma gestão empreendedora, para tornar o mercado como a referência para todas as instâncias da vida social, política e econômica. Para os autores,
La Administración pública bajo esta versión debería ser comprendida progresivamente como una estructura gestora de redes de contratos no gubernamentales respaldados funcionalmente por gobiernos estatales, con el propósito de garantizar la eficiencia y eficacia, de los mismos. Una de las expresiones elocuentes de los nuevos principios operativos del Estado contractual empresarial (en síntesis: “emprendedor”) se resume en el tránsito desde la privatización del siglo XX hacia la desprivatización del siglo XXI, la cual se concreta en diferentes instrumentos, entre los más conocidos: las alianzas público- privadas. (ABDALA; SOCARRAZ, 2019, p. 33).
A parceria público-privada é um dos instrumentos operativos do gerencialismo e do Estado empreendedor e passa a ser uma demanda lucrativa para o setor empresarial ligado ao capital. O motivo é fundamentalmente político-ideológico, pois, “[…] ao retirar e esvaziar a dimensão de direito universal do cidadão quanto a políticas sociais de qualidade, cria uma cultura de autoculpa pelas mazelas que afetam a população e de autoajuda e ajuda mútua para seu enfrentamento” (MONTAÑO, 2010, p. 23).
Clarke e Newman (1997) abordam que o gerencialismo deve ser entendido como um conjunto de elementos culturais e ideológicos que vão se tornando hegemônicos a partir da crise dos anos 1970 e tem como resultado um profundo reordenamento na esfera político-jurídica de regulação social. Um novo vocabulário é adotado no setor público, como: transparência, responsabilização, eficiência, eficácia, flexibilidade, qualidade e qualificação, e eles se tornam predominantes nos discursos oficiais, nos meios de comunicação, nas instituições públicas e na sociedade como um todo. Sob o gerencialismo, mesmo quando os serviços públicos não são totalmente privatizados, exige-se que tenham um desempenho como se estivessem
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em um mercado competitivo e se tornassem semelhantes a um negócio. O resultado é a introdução e a difusão de uma nova lógica que privilegia a economia e a eficiência acima dos direitos democraticamente constituídos.
O neoliberalismo contemporâneo é construído em torno do princípio de despolitização. Para os neoliberais, problemas da sociedade, dinâmicas públicas e as tensões e conflitos sociais devem ser considerados sob uma perspectiva individualista no mercado, descartando as questões sociais e o interesse coletivo.
Entre o deslocamento da concepção de homem econômico em direção ao conceito de homem empresário/empreendedor, está o empreendedorismo, que passa a ser a chave de interpretação das questões econômicas atuais, situação explicada em grande parte pelas novas condições das economias e sociedades mundiais. Para Puello Socarraz (2010 p. 16) “[…] o empresário/empreendedor passa a ser uma demanda epistemológica, ideológica e política que gera uma compreensão muito mais funcional e ajustada da fase de capitalismo avançado” e, sobretudo, sintetiza as categorias necessárias ao neoliberalismo, pois permite absorver e enfrentar a complexidade entre as realidades econômicas, políticas e sociais contemporâneas, que não existiam no passado.
O homem passa a ser entendido como um empresário, um empresário de si mesmo (DARDOT; LAVAL, 2016). Seu próprio capital, seu próprio produtor, a sua própria renda, responsável pelo seu sucesso ou fracasso. Então, ele continua reforçando o individualismo, que é central no neoliberalismo (PUELLO-SOCARRÁZ, 2010). No papel de empresários de si, eles inovam e propiciam novas combinações entre Estado, Trabalho e Capital e se posicionam como um terceiro fator para a dinâmica do sistema.
Temos abordado essas características como um novo ethos (COSTA; CAETANO, 2021) que vem sendo introduzido na sociedade como um todo e contribui com suas estratégias para a mudança do conteúdo social e educacional, isto é, uma nova lógica neoliberal, em que a sociedade passa a ser concebida como um mercado, no qual cada sujeito é uma empresa que está em contínua concorrência. Portanto, ela passa a ser a mediadora de todas as relações sociais: “[...] o homem neoliberal é o homem competitivo” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 322). A competição se introjeta até na esfera da subjetividade dos indivíduos. A vida passa a ser vista como um capital a
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ser continuamente valorizado, na qual o indivíduo é empreendedor de si mesmo (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 322).
No campo das políticas públicas de educação, o projeto neoliberal vem atacando o sentido histórico da educação e da escola pública, visando a revisão de sua função social a partir de uma gestão empreendedora voltada às parcerias público- privadas e/ou com a gestão empresarial, caracterizada, entre outros, pela gestão para resultados em que os fins são priorizados em relação aos meios.
A constituição da escola neoliberal é um dos fatores decisivos no processo de construção da sociedade empresarial, porque a educação se coloca a serviço da competitividade econômica como investimento no capital humano. Essa escola “[…] é apresentada idealmente, como o lugar de todas as inovações, da mudança permanente, da adaptação contínua às variações da demanda do mercado, da busca de excelência, da falha zero” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 330) – o que discordamos, porque essa não é a função social da escola. Concordamos com Saviani (1980) que a função social da escola passa pela garantia do acesso ao conhecimento historicamente produzido e acumulado pelos homens, munindo a classe trabalhadora de conhecimentos aprofundados, “que lhes permitam tomar a educação como fundamento e compreender a realidade humana, a fim de poder intervir na realidade, transformando-a” (SAVIANI, 1980, p. 52).
Frigotto (1984), ao fazer a crítica da Teoria do Capital Humano, diz que a escola passa a ter certa produtividade para o capital ao ser improdutiva. Para a classe trabalhadora, ela gera formas de reprodução do capital e mão de obra barata justificada pela escolarização deficitária para os parâmetros exigidos pelo capital. Em termos educacionais, é o resultado de uma “[...] multiplicidade de processos heterogêneos” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 33-34), em que ela passa a servir na formação desse novo sujeito, não mais cidadãos, mas consumidores, de modo a naturalizar as regras do jogo e a se adaptar à nova realidade do Estado/empresarial/empreendedor, na qual previdência, saúde, educação e lazer são produtos que os consumidores têm a liberdade de escolher e adquirir, além de
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conviver com o desemprego permanente e com a precarização das relações de produção e das relações sociais de produção.
A naturalização do risco, a responsabilização individual pelas consequências de suas escolhas e a transformação dos indivíduos em sujeitos empreendedores de si, que estão em contínua competição e concorrência com os demais sujeitos, são facetas dessa nova sociedade. Em contrapartida, essa mesma sociedade exige que o sujeito se supere continuamente, seja flexível para acompanhar as mudanças impostas pelo mercado, adapte-se às contínuas variações da demanda e assuma sempre os riscos. A naturalização da lógica da eliminação dos mais fracos e inaptos e a uberização das relações de trabalho, com a flexibilização, são exemplos dessa nova sociedade.
Em relação à educação, as diferentes formas de privatização a partir do público não estatal modifica o sentido do saber, das instituições transmissoras dos valores e dos conhecimentos e as próprias relações sociais. O objetivo, agora, é formar um novo sujeito, tendo por objetivo sua formação de empreendedor pautada na concorrência. A outra face do gerencialismo educacional é a minimização dos seus custos consentidos pelos orçamentos públicos, bem como a transferência de vários de seus encargos para instituições não governamentais, como fundações, associações e institutos de todo tipo. Todas essas modificações devem ser rentáveis, pois a escola, agora, destina-se à satisfação das empresas que se utilizam do capital humano. Para tal intento, as reformas educacionais globais — e em particular no Brasil — contam com a reorganização de currículos padronizados, com os sistemas internacionais de avaliação, além dos programas altamente estruturados que resultam dessas modificações, como planos de aulas, formação de professores e programas para o ensino, incluindo livros didáticos, softwares e material pedagógico. São fundações e institutos que disputam a gestão e o conteúdo educacional como Fundação Lemann, Instituto Ayrton Senna, Fundação Itaú Social, Instituto Unibanco, Instituto Positivo, entre outros.
As reformas baseadas nas alterações curriculares negam o que está no princípio da educação pública, ou seja, negam a apropriação universal dos conhecimentos necessários aos estudantes, pois retiram disciplinas fundamentais para a compreensão do complexo mundo em que vivemos e criam outras, como o empreendedorismo, educação financeira, cultura maker, projeto de vida e
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competências socioemocionais, em busca da melhoria da produtividade econômica e não da qualidade do ensino, inclusive sem consulta aos docentes e estudantes. Em consequência, tem-se a padronização dos objetivos e dos controles, a descentralização, o gerenciamento educativo, a formação dos docentes, que conta com a direção e execução de instituições privadas em parcerias com o setor público nessa nova dinâmica, ou seja, um gerencialismo pedagógico.
Ao mesmo tempo em que diversos setores sociais propõem a busca pela ampliação do direito à educação na América Latina, fundamentalmente defendido por grupos progressistas que argumentam em prol de uma educação pública de qualidade e inclusiva, os organismos internacionais também defendem objetivos diversos. Portanto, a educação pública é um espaço altamente disputado por diferentes grupos com diferentes pontos de vista e com diferentes interesses. Essas agências internacionais concentram seu interesse em promover a emergência de uma agenda política, social e econômica neoliberal enquadrada nos interesses do capital global. Fruto dessa influência, diferentes países estão reformando seus sistemas educacionais, alinhando-os aos interesses do mercado por meio de associações, terceirizações e outros mecanismos de cooptação do público.
As “parcerias” público-privadas com corporações nacionais e transnacionais partem do pressuposto de que o Estado não pode solucionar os problemas e desafios atuais da educação. Isso assenta-se na suposição de que os países não conseguem resolver os problemas atuais. Com a adoção da Agenda 2030 e seus Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, os governos atribuíram um papel de liderança ao setor privado, para alcançar os novos objetivos e, principalmente, para preencher a lacuna de financiamento para alcançá-los.
Fruto das ofensivas do capital e da nova ofensiva neoliberal, em que o Estado não desaparece, mas torna-se empreendedor para o mercado em detrimento das políticas sociais, concordamos com a análise de Chesnais (2005, p. 18) em que é dito que
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Somente na vulgata neoliberal o Estado é exterior ao mercado. Sem a ajuda ativa dos Estados, as empresas transnacionais e os investidores financeiros institucionais não teriam alcançado as posições dominantes que hoje possuem [...] a grande liberdade de ação da qual elas gozam no plano doméstico e a mobilidade internacional [...] necessitaram numerosas medidas legislativas e regulamentares.
Nesse caso, entram na disputa pela educação pública instituições privadas, com ou sem fins lucrativos — Organizações Não Governamentais (ONG) e Organizações da Sociedade Civil (OSC) — através de associações, fundações e institutos, atuando por dentro do próprio setor público de educação.
As parcerias com o setor privado e/ou ONGs são consideradas pragmáticas, voltadas para soluções flexíveis, eficientes e não burocráticas, atributos ausentes em projetos e processos puramente intergovernamentais (SEITZ; MARTENS, 2017). Nesse sentido, o Estado e as organizações internacionais redefinem as suas formas de atuação em relação ao público, entendendo como necessária a aproximação com as instituições privadas para atingir os seus objetivos e metas, com isso, afasta-se cada vez mais da prestação de serviços ao público.
No contexto das propostas globais para a educação, Ball e Youdell (2008) abordam outras formas de participação do setor privado nos processos decisórios da política educacional, que chamam de privatização da política, que vem ocorrendo ao longo das últimas décadas com a formação de redes globais e a participação especial do setor privado (BALL, 2014). É nesse contexto que as políticas educativas se tornam cada vez mais globais, em vez de locais ou nacionais, e constituem parte daquilo que Dale (2004) chama de Globally Structured Agenda for Education (GERM), caracterizadas também como reformais gerenciais na educação, em que o sistema educativo está a serviço da competividade econômica, estruturado como mercado e deve ser gerido ao modo de empresas (LAVAL, 2014).
Devido à importância da análise das relações público-privadas e da análise das redes educacionais na América Latina, destacamos a influência das redes na educação pública (PERONI, 2015; CAETANO, 2016). Peroni (2015, p. 26) adverte que “[…] as redes não são abstrações”. Elas “[…] são formadas e operadas por sujeitos individuais e coletivos em um projeto de classe e são parte de uma ofensiva histórica do capital neste período particular do capitalismo” (PERONI, 2015, p. 26).
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Nesse novo cenário em que surgem novas ideias de liderança da chamada sociedade civil, a participação de empresários e de novos filantropos tem se ampliado, pois as redes ligadas ao setor privado e às ONGs têm crescido além-fronteiras. A Rede Latino-Americana de Organizações da Sociedade Civil pela Educação é uma rede formada por diversos países latino-americanos cujos protagonistas são empresários e filantropos. Ela surgiu em 2011 com apoio do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e da Comissão de Educação da União Europeia (em 2013), em Brasília, no dia 16 de setembro de 2011, quando os países participantes assinaram a Declaração de Brasília, que estabeleceu a rede e seus objetivos. O site da rede informa que seu objetivo é a troca de experiências para o desenvolvimento de projetos em conjunto e para a construção de uma voz de mobilização regional e de incidência em políticas públicas, buscando propor soluções para os principais desafios educacionais de cada país. Fazem parte da Reduca organizações da Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, El Salvador, Guatemala, Honduras, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru e República Dominicana.
Quadro 1 – Apresentação dos países membros e caracterização da REDUCA
Pais | Nome institucional | Como se apresentam |
BRASIL | Todos pela Educação | Organização da sociedade civil sem lucrativos financiado por recursos privados |
ARGENTINA | Projeto Educar 2050 | Organização da sociedade civil sem lucrativos |
CHILE | Educação 2020 | Organização da sociedade civil |
PERU | Associação Empresários pela Educação | Associação civil sem fins lucrativos, formada por empresários, empresas e formadores de opinião. |
URUGUAI | Reaching-U | Organização sem fins lucrativos. Fundada em 2001 nos Estados Unidos, |
REPUBLICA DOMINICANA | Educa-Ação Empresarial pela Educação | Organização privada sem fins lucrativos criada por empresários. |
EL SALVADOR | Fundação Empresarial para o desenvolvimento Educacional | Organização privada sem fins lucrativos. |
GUATEMALA | Empresários pela Educação | Organização não governamental criada e dirigida por empresários. |
HONDURAS | Fundação para Educação Ernesto Maduro Andreu | Fundação sem fins lucrativos |
MÉXICO | Mexicanos Primeiro | Organização cidadã e plural que recebe doações de empresários. |
NICARAGUA | Fórum de Educação da Nicarágua – Eduquemos | Organização privada sem fins lucrativos, criada por um grupo de empresários e educadores. |
PANAMÁ | Unidos pela Educação | Organização privada sem fins lucrativos, criada e dirigida por empreendedores. |
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PARAGUAI | Juntos pela Educação | organização sem fins lucrativos organizada por empresários |
COLOMBIA | Fundação Empresários pela Educação | Organização não governamental criada e dirigida por empresários. |
EQUADOR | Grupo Faro | Centro independente de pesquisa e ação que gera evidências e implementa iniciativas para influenciar políticas públicas |
COSTA RICA | Fundação Omar Dengo | Entidade privada sem fins lucrativos |
Fonte: Organizado pela autora, 2023.
Rodrigo Lamosa, em publicação (2017, p. 7), apresenta que a “Reduca difunde entre seus associados o formato forjado pelo movimento Todos pela Educação no Brasil, compreendido enquanto exemplo exitoso de atuação empresarial na educação”. Na mesma publicação, Lamosa constata que os membros da Reduca possuem algumas características em comum:
1) uma organização administrativa muito similar (assembleia geral que reúne os sócios, uma junta diretiva, um conselho superior, um conselho assessor, além de comitês para assuntos específicos); 2) Produção de agendas de longo prazo (No Brasil, por exemplo, a data de 2022 foi eleita como marco histórico, no Chile este marco foi definido para 2020 e na Argentina para 2050); 3) Apoio às Parcerias Público-Privadas; 4) Valorização de programas de inserção do trabalho voluntário em políticas de garantia do direito à educação; 5) Demarcam sua separação com o governo e com o mercado, definindo- se como parte de um “Terceiro setor” ou de uma “Sociedade Civil” que é a expressão da cidadania, enunciam uma origem “apartidária”; 6) Trabalho estreito com a imprensa, incluindo entre seus associados grandes empresas de comunicação (como por exemplo no Brasil em relação as empresas do grupo Roberto Marinho e no México, onde a Televisa é um dos associados do movimento “Mexicanos Primeiro”);
7) Assumem estatuto de especialistas (“Think Thanks”), apresentando-se como especialistas nas reformas educacionais em seus países. (LAMOSA, 2017, p. 7).
O modus operandi da atuação dos membros da Reduca é muito semelhante e passa pela atuação em influenciar as políticas públicas, os programas e as ações que oferecem aos governos e instituições nos países em que atuam. Pronunciam-se através de posicionamentos públicos como no Encontro Mundial de Educação para Todos (GEM) promovido pela UNESCO, realizado em Omán, em 2014, ou na Cúpula das Américas em 2015 (REDUCA, 2017; 2015).
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No Brasil, o Todos pela Educação lançou, em 2022, o ‘Educação Já’4: uma agenda para o Brasil por ocasião das eleições de 2022. Sua intenção é pautar a “[…] agenda educacional brasileira nos próximos 10 anos”, tendo em vista que o PNE vigente expira em 2024 (BRASIL, 2014–2024), conforme Akkari e Evangelista (2022, s.p). Para os autores, o documento aborda quase todos os aspectos referentes à Educação Básica, sintetizados em dez medidas “estruturais e articuladas”.
Outro indicador comum é o financiamento privado da maioria dos membros, normalmente feito por grandes conglomerados e corporações e suas respectivas empresas que se configuram entre associados, doadores, apoiadores, financiadores. No entanto, o que se destaca, no interesse dos empresários e filantropos que financiam essas redes, é o comprometimento com metas e resultados materiais que, além de inserir propostas gerenciais que modificam a cultura da educação pública, alinham-se à doutrina do mercado (CAETANO, RUIZ, SANTOS, 2020).
As reformas gerenciais ocorridas ao longo da história criaram espaços públicos não estatais. Assim, o que foi elencado no Quadro 1 mostra que a maioria dos membros da rede é constituída de associações, fundações, OSC com protagonismo ou apoio de empresários latino-americanos, o que construiu consensos em relação à direção da política e ao seu conteúdo. Além disso, fundações como a Lemann, institutos como Ayrton Senna e Unibanco entre outros, trabalham com projetos padronizados e incorporam o discurso hegemônico com elementos como produtividade, eficiência, descentralização, competitividade e desempenho, performatividade e accountability — como forma de responsabilização, avaliação e prestação de contas à população.
A questão central é que, ao delegar e/ou dividir responsabilidades com empresários e filantropos, os países latino-americanos abrem mão da sua autonomia para construir políticas públicas verdadeiramente democráticas, com gestão democrática e voltadas para o processo educacional de formação de cidadãos autônomos, conforme as suas demandas e realidades.
4 Intitula-se uma produção técnico-política construída a várias mãos. O documento apresenta contribuições para a elaboração de um plano sistêmico para a Educação Básica brasileira nas próximas gestões federal e estaduais.
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No contexto da crise do capital, evidenciam-se novas formas de lidar com as contradições entre Estado e capital com as demandas do novo processo produtivo para controlar o conhecimento por quem domina politicamente e economicamente a sociedade. Em relação ao papel do Estado e da gestão pública, o neoliberalismo redefine e indica um novo papel para o Estado, recriando um espaço público não estatal para a proliferação do empreendedorismo e de seus desdobramentos em todas as esferas. O Estado passa a ser empreendedor para o mercado, em detrimento das políticas sociais que atendem a maioria da população, pois o mercado é compreendido como mais eficiente que o Estado no que diz respeito ao que é público, incluindo a educação. Como apresentamos nesse artigo, o empresariado tem assumido um protagonismo em relação às políticas educacionais na América Latina. Utilizam-se da atuação em rede, de processos padronizados, responsabilização, avaliação como forma de prestação de contas à população. Utilizam-se ainda da construção de consensos em torno do projeto hegemônico do capital.
Para o capital, é estratégico o esvaziamento do Estado como esfera promotora de acesso aos direitos políticos e sociais, porque isso promove o mercado como solução para os problemas sociais. Mas o capital não quer um Estado fraco, ele quer, na verdade, um Estado empreendedor, para que possa maximizar seus lucros através dele.
A educação passa a ser um dos projetos mais ambiciosos a ser disputado pelos representantes do capital. As políticas educacionais decorrentes das atuais reformas são exemplos da dinâmica da agenda do capital, que visa criar situações de concorrência e desenvolver medidas de desempenho, cujo efeito é modificar a conduta dos indivíduos, mudar sua relação com as instituições e, mais precisamente, transformá-los em consumidores e empreendedores. Portanto, concordamos com Mészáros (2005, p. 47) que diz “[...] romper com a lógica do capital na área da educação equivale, portanto, a substituir as formas onipresentes e profundamente enraizadas de internalização mistificadora por uma alternativa concreta abrangente”.
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V.21, nº 44, 2023 (janeiro-abril) ISSN: 1808-799 X
Fernanda Denise Siems2 Marcos Edgar Bassi3
Resumo
O artigo discute o papel assumido pelo Conselho Estadual de Educação de Santa Catarina (CEE/SC) em relação às recomendações da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) para o sistema estadual de ensino no período de 2010 a 2015. A pesquisa, de caráter documental, investiga à luz do materialismo histórico a atuação do Conselho que produziu uma chancela legitimadora ao elaborar propostas de natureza privatista para a formulação da política educacional estatal, derivadas de recomendações de organismo multilateral, em última instância, voltadas à acumulação capitalista.
Palavras-chave: política educacional; conselho estadual de educação; sistema estadual de ensino; privatização do ensino.
CONSEJO ESTATAL DE LA EDUCACIÓN DEL SANTA CATARINA: LEGITIMACIÓN DE LOS INTERESES PRIVADOS EM LA ESCUELA PÚBLICA
Resumen
El artículo analiza el papel asumido por el Consejo Estatal de Educación de Santa Catarina (CEE/SC) contra las recomendaciones de la Organización para la Cooperación y el Desarrollo Económico (OCDE) para el sistema educativo estatal entre 2010 a 2015. La investigación de naturaleza documental investiga a la luz del materialismo histórico la actuación del Consejo que produjo un sello legitimador al elaborar propuestas de carácter privatista para la formulación de la política educativa estatal de acuerdo con recomendaciones de un organismo multilateral, dirigidas a la acumulación capitalista.
Palabras clave: política educativa; consejo de educación del estado; sistema educativo estatal; privatización de la educación.
SANTA CATARINA'S STATE CONCIL OF EDUCATION: LEGITIMIZING PRIVATE INTERESSANTE IN PUBLIC SCHOOLS
Abstract
The article analyzes the role assumed by the State Education Council of Santa Catarina (CEE/SC) against the recommendations of the Organization for Economic Cooperation and Development (OECD) for the state educational system between 2010 and 2015. The research of documental nature, in the light of historical materialism, investigates the actions of the Council that produced a legitimizing seal by developing proposals from private nature for the formulation of state educational policy, according to the recommendations of a multilateral organization, aimed at capitalist accumulation.
Keywords: educational politics; state council of education; state education system; privatization of education.
1 Artigo recebido em 07/10/2023. Primeira avaliação em 10/01/2023. Segunda avaliação em 28/01/2023. Aprovado em 06/02/2023. Publicado em 13/04/2023.
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v21i44/56118.
2 Mestre em Educação do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Catarina - Brasil. Professora da Rede Estadual de Ensino de Santa Catarina - Brasil.
E-mail: Fernanda.siems2020@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/0545736637094782. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6838-9049.
3 Doutor em Educação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - Brasil. Professor do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) - Brasil. Pesquisador do Grupo de Estudos sobre Política Educacional e Trabalho (Gepeto).
E-mail: marcos.e.bassi@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/9989684322674470. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4556-2969.
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Introdução4
A educação pública brasileira tem sido, de forma paulatina e cada vez mais abrangente, invadida por ações e interesses privatizantes desde os anos 1990, os quais vêm sendo defendidos e implementados pelos próprios gestores públicos de plantão. A esse respeito, Theresa Adrião (2018), em balanço da literatura publicada entre 1990 e 2014, identifica 3 (três) dimensões que caracterizam as formas de privatização com incidência sobre a oferta educacional, a gestão da educação e o currículo. No tocante à privatização da gestão da educação pública, forma que, a nosso ver, tangencia o objeto deste artigo, a autora especifica tratar-se da transferência da gestão escolar para organizações sem e com fins de lucro, a cooperativas de pais e trabalhadores e da gestão do sistema educacional para empresas e também organizações supostamente “não-lucrativas”. No entender de Freitas (2018), a privatização na educação pública é a categoria central da reforma empresarial da educação.
O presente artigo pretende contribuir com essa discussão ao trazer para o debate uma forma de privatização da educação pública no âmbito de atuação dos conselhos de educação, não identificada entre as dimensões categorizadas por Adrião (2018). Nesses espaços da gestão educacional, instâncias de assessoramento e normatização da educação básica brasileira, o alcance da privatização e os interesses que subordinam a educação pública – socialmente referenciada e financiada pelo Poder Público – ao setor privado, com fins de lucro, nem sempre é evidente.
Nessa perspectiva, o objetivo deste artigo é mostrar e discutir o papel assumido e exercido pelo Conselho Estadual de Educação de Santa Catarina (CEE/SC) que, ao emitir documento denominado “Proposição de novos rumos para a qualidade da educação em Santa Catarina: visão do CEE sobre a avaliação da OCDE” (SANTA CATARINA, 2012), acabou por legitimar e normalizar para a formulação da política educacional catarinense um conjunto de recomendações advindas da OCDE. Tais recomendações encontram-se contidas em relatório avaliativo sobre o sistema educacional contratado pelo Governo do Estado de Santa Catarina (GESC) junto a esse organismo multilateral ainda em 2009 (OCDE, 2010). Dessa forma, em seu
4 Este artigo resulta da pesquisa de mestrado de Fernanda Denise Siems (2019) defendida no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Catarina, (UFSC) - Brasil.
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documento, o CEE/SC concedeu legitimidade a recomendações de natureza da gestão privada para serem eventualmente adotadas na formulação da política educacional pelo GESC.
Para a análise proposta nesta pesquisa edificamos o percurso metodológico a partir de duas estratégias metodológicas, a saber, a revisão da bibliografia e a análise documental, tendo como perspectiva o enunciado de Poulantzas (1981, p.57) de que “nada existe para esse Estado, que não esteja escrito, e tudo que nele se faça deixa uma marca escrita em alguma parte”. É nesse sentido que tomamos os documentos como fontes históricas que sintetizam as disputas e embates em um determinado espaço- tempo. Se, por um lado, o documento transmite uma visão de mundo de seus idealizadores, por outro deixam escapar interesses particulares subjacentes que permitem compreender a quais processos históricos se vinculam.
O pressuposto teórico metodológico assumido neste trabalho considera que as diversas formas de atuação política dos Conselhos de Educação, nas suas transformações ao longo da história contemporânea, ao pertencerem à ossatura material do Estado (POULANTZAS, 1981), encontram-se limitados por um Estado cujas determinações políticas centrais se encontram subordinadas aos interesses privados.
A noção de hegemonia em Gramsci é o eixo central para a compreensão aqui proposta, devendo ser compreendida não apenas como sinônimo de construção do consenso em torno de um dado projeto de dominação de classe, mas como a combinação da força e do consenso na concepção de Estado integral, no seio do qual se articulam a sociedade política e sociedade civil, sendo o próprio Estado (conforme Poulantzas) atravessado pela luta de classes. Nesse sentido, a legalidade, o conjunto de normas e leis que revestem a democracia liberal e constituem a aparência de uma instituição democrática, como um conselho, possuem duplo sentido: a forma e a substância. No plano formal, possui a aparência de uma instituição emancipatória da classe subalterna, mas em sua substância, é a própria representação dos interesses da classe dominante (GRAMSCI, 2004, p. 84).
Nessa perspectiva, de acordo com a pesquisa que deu ensejo a este estudo (SIEMS, 2019), os Conselhos de Educação, sob o manto do interesse geral e da neutralidade, tanto podem atuar na defesa da educação pública como um direito de todos, quanto podem contribuir para a aceitação de projetos os quais, sob a aparência
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de concessão de benefícios, resultarão em retrocessos sociais para a classe trabalhadora. Em outras palavras, mesmo os projetos apresentados como de interesse geral e supostamente neutros, são obscurecidos por uma linguagem legitimadora tornando-se mais palatáveis e aceitáveis, inclusive pela população destinatária dessas políticas.
O sentido aqui atribuído à legitimação, por sua vez, é tributário àquele formulado por O’Connor (1977) a respeito das duas funções básicas exercidas pelo Estado na destinação do orçamento público de garantia da reprodução do sistema capitalista: acumulação e legitimação. De acordo com esse autor, “[...] o Estado deve tentar manter, ou criar, as condições em que se faça possível uma lucrativa acumulação do capital”, ao mesmo tempo em que, por meio da legitimação, cria e mantém as condições da harmonia social (O’CONNOR, 1977, p. 19). O conceito fica mais nítido e adequado ao objeto deste estudo na formulação de Fabrício de Oliveira:
A função legitimação deriva da necessidade de se obter o consenso e o apoio das classes sociais e suas frações às ações do Estado. Isso significa que este, embora comprometido com o processo de acumulação, deve também destinar recursos de seu orçamento para assegurar a reprodução material da classe dominada – base em que assenta a reprodução do próprio sistema – e, com isso, garantir, a coesão social em torno dos projetos implementados, evitando-se questionamentos do sistema e garantindo a legitimidade da ação estatal. (OLIVEIRA, 2012, p. 64-65, grifos nossos).
Entretanto, deve-se acrescentar algo mais à formulação original de O´Connor (1977), que entendeu a legitimação proporcionada pelo Estado em direção ao mercado em prol da acumulação. Ou seja, a privatização da gestão da educação pública, como examinada neste estudo, é entendida como a introjeção dos interesses, procedimentos e mecanismos de natureza privada e mercantil nos processos próprios do Estado; portanto, ao reverso ou antes de alcançar o mercado, mas que, ao fim e ao cabo, serve da mesma forma ao processo de acumulação capitalista.
As reformas educacionais decorrentes do processo de privatização seguem essa mesma lógica, a qual não se manifesta imediatamente e se relaciona, em certa medida, ao peso da burocracia estatal e de sua importância para a formação do consenso, qual seja, a legitimação de medidas liberais no âmbito das políticas públicas por meio da instrumentalização de uma instituição capaz de chancelar tais medidas.
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Como observou Gramsci (2017, p. 62), a burocracia é “[...] a força consuetudinária e conservadora mais perigosa; se ela chega a se constituir como um corpo solidário, voltado para si mesmo e independente da massa [...]”, este corpo termina por se tornar anacrônico, “[...] e nesse sentido esvaziado de seu conteúdo social, resta como solto no ar”.
Essa estratégia privatista pode ser explicada, inicialmente, a partir de um breve detour histórico sobre o papel dos conselhos de educação na estrutura do Estado brasileiro, seguido da descrição das relações de Santa Catarina com a OCDE, da análise dos interesses privados no seio da gestão educacional estadual e, antes das conclusões, da análise da legitimação das recomendações deste organismo multilateral realizada pelo CEE/SC.
Os conselhos estaduais de educação fazem parte do aparelho de Estado desde a década de 1960 e foram constantemente modificados em sua atuação principal, traduzindo ideais e concepções mais amplas de educação, de acordo com cada período histórico. Originalmente, na ideologia liberal, se pretendia a articulação dos conselhos como canal de diálogo entre Estado e sociedade, para regulamentação e normatização dos sistemas de ensino e controle social do direito à educação. Os conselhos são órgãos colegiados com função deliberativa e de aconselhamento sobre a matéria educação, criados para que os governos possam decidir sobre políticas públicas e adaptá-las às suas realidades locais.
No Brasil, ainda durante o Império, a primeira tentativa de criação de um Conselho de Educação, incluído na estrutura da administração pública, ocorreu na Bahia, em 1842. Em nível nacional, a Comissão de Instrução Pública propôs o Conselho Geral de Instrução Pública em 1846, e, em 1870, o ministro do Império Paulino Cícero renomeou este conselho como Conselho Superior de Instrução Pública (BORDIGNON, 2004, p. 22). No período republicano, durante a Primeira República, foi criado, em 1925, o Conselho Nacional de Ensino, substituído logo após a Revolução de 1930 pelo Conselho Nacional de Educação, criado em 1931. Com o fim do Estado Novo e no contexto democrático inaugurado pela nova Constituição em 1946 é instituído o Conselho Federal de Educação (CFE), promulgado pela LDBEN
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de 1961, que também criou os Conselhos Estaduais. Neste contexto, o CEE/SC foi criado em 1962 (SANTA CATARINA, 1962). Por fim, em nível nacional, o CFE é extinto e substituído pelo atual Conselho Nacional de Educação em 1995 (CURY, 2006).
A constituição dos conselhos no Brasil foi defendida por um longo período como possibilidade de abertura de espaços públicos com maior participação da sociedade civil, caracterizando a ampliação do processo de democratização da sociedade. No entanto, de acordo com Valle (1996), esses espaços tiveram sua atuação alterada logo no período do Golpe Empresarial-Militar de 1964, passando a atuar de forma cartorial e burocrática, adaptando-se às necessidades do novo regime, atendendo a orientações expressas nos Planos Nacionais de Desenvolvimento e em acordo com os compromissos e estratégias de determinados setores sociais contemplados no novo aparelho de Estado ditatorial. Portanto, a concepção do conselho como um “estado maior” da educação, a partir de um conjunto de instâncias autônomas que previam a atuação de especialistas na área, não se consagrou.
O período de redemocratização dos anos 1980 trouxe um clima de euforia com o movimento da constituinte de 1987, sob a perspectiva de uma nova organização social e política que permitiria maior participação da sociedade nos processos decisórios. Mas, ainda que superada a Ditadura, este período deixou marcas persistentes na organização política do novo ciclo que se iniciava. A superação do regime ditatorial não indicava uma ruptura, mas sim o realinhamento de classes e elites dominantes em um processo de redemocratização limitado e controlado, voltado às necessidades de preservação e reprodução dos mesmos setores dominantes, na medida em que “esse era um jogo de cartas marcadas, restritivo em termos sociais e racialmente seletivo” (DREIFUSS, 1989, p.10), um circuito fechado aos agrupamentos subalternos e subordinados.
Nesta lógica, após a Constituição de 1988, os conselhos foram reorganizados formalmente como garantidores de políticas de Estado, responsáveis pela implementação de políticas para além dos mandatos executivos, a fim de superar a transitoriedade dos governos, supostamente atuando como fórum de livre expressão de vontade plural e democrática. Os conselhos não legislam, suas funções são normativas, deliberativas e orientadoras. Assim, de acordo com Cury (2002, p. 2),
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Os conselhos, embora integrantes da estrutura de gestão dos sistemas de ensino, não falam pelo governo, mas falam ao governo, em nome da sociedade, uma vez que sua natureza é de órgãos de Estado. O Estado é a institucionalidade permanente da sociedade, enquanto os governos são transitórios.
Do ponto de vista formal, os Conselhos de Educação possuem ordenamento jurídico próprio referenciado pelo Conselho Nacional de Educação e constituem seus regimentos de acordo com as orientações definidas pelo Ministério da Educação, que prevê que seus membros devam possuir amplo conhecimento em educação e notável reconhecimento de competência na matéria perante a sociedade, possuidores de notório saber, capazes de deliberar e discutir em questões de interesse público e em defesa dos interesses da cidadania e do direito à educação. A despeito destas expectativas, Arelaro (2007) destaca que, após o longo período do regime ditatorial, mesmo os conceitos de participação e de liberdade de pensamento haviam se transformado e, por coerência, com o período democrático que se iniciava, substituiu- se uma relativa independência em relação ao poder Executivo por uma visão tecnocrática da educação.
Nessa perspectiva, e para o sentido assumido neste artigo, concordamos com Leher (2004, p. 30), para quem esse novo arranjo institucional, no bojo da redemocratização, teve como consequência o afastamento cada vez maior entre os Conselhos e o pensamento pedagógico, não mais aglutinando aspirações da população quanto à elaboração de um projeto nacional de educação. Segundo o autor:
A apropriação feita pelo capitalismo e pelo pensamento liberal- e também pelo neoliberalismo- atribui ao conselho um sentido completamente diferente daquele da esquerda: enquanto para a esquerda os conselhos objetivam assegurar a auto-organização e a auto-determinação dos trabalhadores (democracia como governo da maioria que vive do trabalho) para os liberais, e, sobretudo, para os neoliberais, os conselhos são instrumentos para ampliar a privatização do Estado (democracia como poder das classes possuidoras), conforme a lógica do capital.
Nesse sentido, a parcela correspondente à participação da sociedade no âmbito das instâncias deliberativas dentro do aparelho de Estado passou a ser crescentemente representada pelos aparelhos privados de hegemonia, elemento essencial para o exercício da hegemonia. Gramsci (2017, p. 119), a partir do
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entendimento de Estado integral, constituído por sociedade civil e sociedade política, sob a hegemonia das classes dominantes, percebe que “o Estado tem e pede o consenso, mas também “educa” este consenso através das associações políticas e sindicais, que, porém, são organismos privados, deixados à iniciativa privada da classe dirigente”. Desse modo, reúnem-se no seio do Estado e suas instituições todo tipo de livre associação da sociedade civil organizada, que, agindo como se constituíssem a legítima representação popular, executam um trabalho normativo no cotidiano do exercício de suas funções. Esse é o caso dos conselhos, que agem como se constituíssem a legítima representação popular, cujo objetivo é a manutenção da hegemonia e proteção de interesses de setores específicos da burguesia (NEVES, 2005), o que confere destaque ao sentido da legitimação dos interesses privados argumentado neste estudo.
As relações do estado de Santa Catarina com a OCDE remontam aos anos de 1980, ao menos por meio de um importante personagem político local. Luiz Henrique da Silveira (PMDB), que se tornaria governador do estado por dois mandatos consecutivos (2003-2006/2007-2010), já havia estabelecido contatos formais com este Organismo Multilateral (OM) em encontros oficiais e esporádicos. Um primeiro contato ocorreu quando Silveira ocupou o cargo de Ministro da Ciência e Tecnologia, na gestão do presidente José Sarney, período em que a OCDE enviou a primeira “missão” técnica ao Brasil. Depois Silveira participou da primeira missão brasileira à OCDE enviada à sede da organização em Paris em 1991, durante o governo de Fernando Collor de Mello (1990-1992), quando as orientações neoliberais e privatistas passaram a ser efetivamente assumidas e implementadas na gestão pública federal. Desde então, essas relações se aprofundaram em acordos de cooperação.
Para compreendermos como se deu a parceria entre a OCDE e o governo estadual sob a gestão de Silveira, torna-se essencial identificar quais concepções de educação e sociedade já se encontravam presentes na visão do governo e que nortearam a busca pela OCDE para realizar a avaliação do sistema educacional catarinense. Desde o primeiro mandato do governador, a educação pública em Santa Catarina esteve subordinada aos esforços do Estado para “elevar os índices de
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desenvolvimento econômico”, mesma trajetória seguida pelos governos anteriores (AGUIAR, 2006). Esse tipo de parceria foi consolidada já no primeiro plano de desenvolvimento econômico de seu governo, em 2003, uma vez que este foi elaborado por meio de um acordo de cooperação técnica internacional entre o GESC e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD).
Em Santa Catarina, as primeiras aproximações do governo Silveira com a OCDE datam de 2006. Naquele ano, o último do primeiro mandato de Silveira, alunos das redes de ensino do estado de Santa Catarina participaram em um grupo de estudantes de todos os estados dna avaliação do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA) – cuja participação brasileira, especificamente em educação, teve início em 2000 (DAROS, 2013). Os resultados dos alunos catarinenses se destacaram nas primeiras posições, embora, de modo geral, o Brasil figurasse nos últimos lugares entre os países participantes (INEP, 2008). O desempenho das/dos catarinenses no PISA parece ter contribuído para o estreitamento da relação do GESC com a OCDE.
A relação entre a OCDE e o GESC foi estreitada e formalizada durante o segundo mandato do governo (SANTA CATARINA, 2012). Em 2009, o governo estadual formaliza a relação com a OCDE em contrato no qual encomenda uma avaliação do sistema educacional de Santa Catarina, cujo relatório foi entregue em 2010 (OCDE, 2010). Em 2009 e 2010, respectivamente, o GESC patrocinou, por meio da SED/SC, a I e a II Conferência Internacional de Especialistas em Educação, eventos promovidos pelo Centro de Pesquisa em Educação e Inovação (Centre for Educational Research and Innovation – CERI), órgão vinculado à OCDE. Diversas outras atividades conjuntas se estenderam até meados de 2010, como a publicação de um estudo nomeado “Inspirados pela tecnologia, norteados pela pedagogia: Uma Abordagem sistêmica das Inovações Educacionais de Base Tecnológica”, publicado em parceria com a SED/SC no mesmo ano.
Esse processo de crescente aproximação, consolidado na contratação da OCDE pelo governo estadual, pode ser caracterizado como um progressivo vetor para a privatização em direção à privatização intensiva, conforme argumentado por Freitas (2018,p. 59) ao tratar da reforma empresarial na educação, reforma cujo objetivo é “[...] transformar o ‘direito à educação’ em um ‘serviço’ a ser adquirido, em última instância, por vouchers e suas variantes de ‘provedores privados’ de
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educação”. No caso em tela, bem como no de outros organismos multilaterais como o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) – aqui compreendidos também como thinks tanks difusores do neoliberalismo, cujo parâmetro de funcionamento da sociedade é a “organização empresarial” – os relatórios resultantes são apresentados, divulgados e exaltados como “evidência empírica”.
Tornou-se recorrente a produção de relatórios de “evidência empírica” (uma espécie de “cartilha” do que funciona em educação (Christophe, Elacqua, Martinez, & Araujo e Oliveira, 2015) como arma de convencimento, como se fosse possível reunir um conjunto de estudos definitivos a favor ou contra determinada prática educativa. Eles têm uma utilidade do ponto de vista da organização da pesquisa científica, mas isso não significa que possam ser usados para orientar a implantação de políticas públicas, a chamada ”política com evidência”. Thinks tanks com farto financiamento empresarial se dedicam a esta tarefa de “revelar a verdade”. (FREITAS, 2018, p. 60, grifos do autor).
Esse é um primeiro argumento para se admitir que o documento produzido pelo CEE/SC funciona como legitimação das recomendações da OCDE como “evidências empíricas”, dando-lhes o caráter de “política com evidência”, e consequentemente consolidando o vetor para a privatização progressiva na orientação das políticas públicas educacionais na rede estadual de ensino de Santa Catarina.
Torna-se claro que a perspectiva hegemônica dos interesses privatistas encontra-se engendrada no seio da educação estadual catarinense e, particularmente, na atuação do CEE/SC ao legitimar e normalizar recomendações de cunho privatista que servirão de referência para formulação e orientação da política educacional estadual.
Nessa direção, houve um esforço intenso por parte da OCDE e do governo do Estado a fim de alinharem seus discursos e organizarem o planejamento do trabalho. Esse movimento incluiu a participação, nas comitivas e equipes técnicas de avaliação da OCDE que percorreram a rede estadual de ensino, de certos personagens que eram ou haviam sido em algum momento conselheiros no CEE/SC e/ou ocupado cargos de livre provimento no governo e, por isso, tiveram atuação decisiva ao longo
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de todo o processo de legitimação das recomendações: Antonio Elízio Pazetto, Isaac Ferreira e Maurício Fernandes Pereira. Posteriormente, dois deles compuseram a Comissão especial instituída em portaria no âmbito do CEE/SC em 2011, por iniciativa deste próprio órgão, para analisar, estudar e propor ações a partir do documento da OCDE (SANTA CATARINA, 2012), a qual seria responsável pela elaboração do relatório que converteria as recomendações em proposições. Pereira presidia, então, o CEE/SC, e Pazetto atuou como Assessor Relator.
Antes de assessorar à Comissão especial no CEE/SC, Pazetto havia ocupado o cargo de Diretor de Educação Básica e Profissional da SEED/SC entre de 2007 a 2010, quando coordenou, com Pereira, as duas Conferências promovidas pela OCDE- CERI, período em que também foi Coordenador de Avaliação do Sistema Estadual de Educação, no âmbito da parceria GESC-OCDE.
Digno de nota é o esforço de publicização e defesa das recomendações delineadas no relatório da OCDE realizado pelos gestores públicos mencionados acima, antes mesmo da elaboração e publicação do documento final do CEE/SC. Particularmente interessante, no rastro desses reformadores empresariais, é a apresentação das recomendações à Federação das Indústrias do Estado de Santa Catarina (FIESC), realizada por Isaac Ferreira, em setembro de 2010. A FIESC reúne empresários do setor industrial e de associados ao Centro das Indústrias do Estado de Santa Catarina (CIESC), ao Serviço Social da Indústria (SESI) e ao Instituto Euvaldo Lodi de Santa Catarina (IEL/SC) e oferece, em seu site, espaço próprio para o Movimento Santa Catarina pela Educação, cujas ações de formação alcançam escolas, professores e gestores da rede estadual de ensino5.
O mesmo material de divulgação seria utilizado por Maurício Fernandes Pereira no “II Seminário Estadual dos Sistemas de Ensino: Novos Rumos para a Qualidade da Educação em Santa Catarina”, realizado na Universidade do Extremo Sul Catarinense (UNESC), em junho de 2012. Ou seja, as apresentações das recomendações já eram as mesmas que seriam, pouco tempo depois, chanceladas e legitimadas pelo CEE/SC.
5 “Movimento SC pela Educação: Visa mobilizar, articular e influenciar os setores econômicos e o poder público para melhorar a educação quanto à escolaridade, qualificação profissional e qualidade do ensino” (FIESC EDUCAÇÃO, 2021).
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Figura 1. Capa da apresentação de Antônio Elízio Pazeto e da apresentação de Isaac Ferreira.
Fonte: Pazeto (2010) e Ferreira (2010).
Figura 2. Slide 1. Foco da Avaliação da OCDE. Fonte: Pazeto (2010).
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Figura 3. Slides 3 e 4 Procedimentos.Fonte: Pazeto (2010)
Figura 4. Slide 6 Recomendações. Fonte: Pazeto (2010)
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Figura 5. Slide 7 Gestão. Fonte: Pazeto (2010).
Figura 6. Slide 8 Formação. Fonte: Pazeto (2010).
Figura 7. Slide 9 Currículo. Fonte: Pazeto (2010).
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Figura 8. Slide 10 Redes e Parcerias. Fonte: Pazeto (2010).
Figura 9. Slide 11 Internacionalização. Fonte: Pazeto (2010).
Figura 10. Slide 12 Pesquisa, inovação e desenvolvimento. Fonte: Pazeto (2010)
Na identificação dos interesses privados na educação pública catarinense convém considerar que a composição do CEE/SC e a forma de indicação e nomeação de seus conselheiros parece ter sido essencial no processo de legitimação das
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recomendações. Em 2012, na composição do CEE/SC não havia representações do magistério e dos estudantes, o que viria a acontecer somente em 2014, muito embora estivessem previstas no regimento interno do CEE/SC de 2005 (SANTA CATARINA, 2005, Art. 4º, § 3º).
Entre os 20 conselheiros titulares do CEE/SC durante o período 2010 a 2012, quando se processa o estudo em tela, apenas 7 (sete) mostravam algum vínculo com instituições públicas. Os outros 13 (treze) conselheiros, portanto, tinham algum vínculo com instituições privadas, sendo que 9 (nove) deles provinham de universidades comunitárias, e ocupavam ou haviam ocupado cargos na reitoria, vice-reitora e de direção. As redes de relacionamentos destes conselheiros, em particular, envolviam outras instituições do campo privado que, por sua vez, também se ocupavam de assuntos educacionais.
Cabe destacar em especial a Associação Catarinense das Fundações Educacionais (ACAFE), instituição que, de acordo com Valle (1996), forma verdadeiros “anéis burocráticos”, objetivando a conciliação de interesses de alguns conselheiros, particularmente aqueles que representam as instituições desta associação. A ACAFE é formada por 15 (quinze) instituições de educação superior, sendo 14 (quatorze) comunitárias e de natureza privada distribuídas por praticamente todo o território do estado catarinense, as mesmas que, alternadamente, têm seus reitores em assentos do conselho de educação.
Curiosamente, a Comissão instituída para analisar as recomendações da OCDE contava com maioria de conselheiros com algum vínculo originado no setor público: 5 (cinco) representantes tinham vínculo com o setor público e 4 (quatro) com o setor privado, contanto com mais dois servidores técnicos do CEE/SC. Convém salientar que Pazeto também compôs a comissão como assessor da relatoria, embora não fosse sequer conselheiro suplente, tendo coordenado, anos antes – note-se – o processo de avaliação do sistema estadual de ensino no contrato do GESC com a OCDE, ao mesmo tempo em que exerceu o cargo de direção da SED/SC. Isso revela um interesse particular no conteúdo do texto final, cuja matéria sob análise já vinha sendo por ele mesmo apresentada em eventos.
Algumas características estruturais do CEE/SC se mantém desde sua criação, em 1961, tais como: a atuação dos conselheiros nos mesmos espaços institucionais, com longa permanência nos cargos, estipulado em seis anos por mandato, com a
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possibilidade de recondução por igual período (muitas vezes alternando, ora como titular, ora como suplente); a cooptação de figuras proeminentes ligadas à burocracia pública e pedagógica (nomeados como conselheiros) e uma solidariedade institucional estabelecida numa rede de objetivos e compromissos (VALLE, 1996).
Os conselheiros também fazem jus a jetons, diárias e a recursos para deslocamentos pela participação nas reuniões. O regimento interno do CEE/SC (SANTA CATARINA, 2005, Art. 60) prevê que o jeton por sessão corresponda a 30% do menor vencimento da carreira do magistério público estadual, cabendo ao Presidente e ao Secretário uma representação mensal equivalente, respectivamente, a duas vezes e uma vez, o maior vencimento da carreira6. Mesmo constando do regulamento do CEE/SC, esses limites remuneratórios para a qualidade da educação em Santa Catarina, eram bem superiores, e variavam de R$ 9.315,00 até R$ 12.420,00 (com base nos valores de Setembro/2022), discriminados nas folhas de pagamento como remuneração de jetons. Os jetons nesses valores não deixaram de ser pagos no ano de 2020 durante o isolamento social imposto pela crise pandêmica COVID-19, apesar da suspensão das atividades do CEE/SC, beneficiando tanto os conselheiros titulares como os suplentes7 . Esses benefícios permaneceram inalterados em contexto em que os servidores estaduais tiveram suas remunerações e vantagens congelados até 2022 pela lei nacional de enfrentamento da pandemia (BRASIL, 2020).
São características que, além de assegurar as condições de funcionamento para que o Conselho possa executar suas atribuições, também podem influenciar, comprometer e até cooptar a disposição dos conselheiros no atendimento de determinados assuntos.
6 De acordo com a tabela de vencimentos do magistério público estadual em vigência desde novembro de 2021 até o momento em foi finalizado este artigo, o menor vencimento da carreira do magistério era igual a R$ 3.450,00 e o maior igual a R$ 8.151,68.
7 Dados extraídos do Portal da Transparência do Poder Executivo de Santa Catarina, por meio da consulta à remuneração dos servidores individualmente, através dos nomes dos conselheiros. Disponível em: http://www.transparencia.sc.gov.br/remuneracao-servidores. Acesso em 3 de outubro de 2022.
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Para compreendermos o que vem a ser o documento publicado pelo CEE/SC, a “Proposição de novos rumos para a qualidade da educação em Santa Catarina”, temos que pontuar mais uma vez sobre as atribuições dos conselhos de educação.
Já foi dito que os conselhos de educação são órgãos de Estado, integrantes da estrutura de gestão dos sistemas de ensino e possuem funções deliberativas, consultivas, fiscais e mobilizadoras, mas cuja principal função é a normativa. Como bem sintetiza Cury (2006), o conselheiro interpreta a legislação, não é um legislador. Nesse sentido, um conselheiro não se confunde com um vereador, um deputado ou senador, não dispõe de autoridade para decretos ou medidas provisórias. Em síntese, a função normativa diz respeito à conformação da educação dentro da lei, interpretando-a a fim de garantir sua aplicação no sentido de garantir o direito à educação diante das inúmeras especificidades de cada território.
Essa função se materializa na forma de pareceres e resoluções, que devem ser compatíveis com a legislação que lhe dá fundamento: a Constituição Federal. É uma função acessória à lei correlata, o CEE/SC – assim, não legisla, apenas interpreta, organiza e adequa a lei às especificidades locais.
Um parecer é um ato enunciativo pelo qual o conselho emite um encaminhamento fundamentado sobre uma matéria de sua competência. Quando homologado por autoridade competente da administração pública, ganha força vinculante (como por exemplo, o credenciamento e descredenciamento de instituições de ensino, autorização de cursos, etc). A resolução é um ato normativo emanado de autoridade específica do poder executivo com competência em determinada matéria, regulando-a com fundamento em lei. O Conselho Nacional de Educação, por lei, é um órgão com poderes específicos para expedir uma resolução. O Conselho Estadual de Educação, por sua vez, emite as resoluções e pareceres correlatos, ao adaptar, reinterpretar e adequar as resoluções às especificidades de cada ente federativo e a cada sistema de ensino (CURY, 2006).
Assim, os conselhos, como órgãos de Estado, têm um duplo desafio: primeiro, garantir a permanência da institucionalidade e da continuidade das políticas educacionais e, segundo, agir como instituintes das vontades da sociedade que representam. (CURY, 2000, p. 2, grifos nossos).
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Resta muito claro que a função normativa é uma função derivada do/e pelo poder legislativo em harmonia e cooperação com os outros poderes, não sendo de competência dos conselhos emitir qualquer outro tipo de documento que não estes, que derivam de demanda de algum setor da sociedade (no caso dos pareceres que se referem ao credenciamento de instituições de ensino e autorizações de curso, etc.) ou de resoluções que derivam de demandas do Conselho Nacional de Educação já homologadas pelo Poder Executivo.
O documento elaborado pelo CEE/SC é, portanto, uma exceção a essa disposição. A iniciativa de análise das recomendações da OCDE partiu do próprio CEE/SC e não de demanda exterior, bem como não se encontraram justificativas para o tipo de documento denominado de proposição.
A legitimação, na forma de propostas, alçou as recomendações neoliberais de um Organismo Multilateral ao status permanente de política de Estado, na medida em que o CEE/SC possui a estatura de órgão de Estado, como assinalado por Cury (2000), estando assim plenamente aptas a serem adotadas e incorporadas na organização, no planejamento, na gestão e nas eventuais reformas implementadas no sistema estadual de ensino de Santa Catarina.
O movimento do CEE/SC para a legitimação se pauta na credibilidade que possui esse órgão sustentado em conselheiros nomeados pelo seu “notório saber”. Todavia, os instrumentos formais de parecer ou uma resolução ao alcance do Conselho de Educação não são compatíveis para a conversão requerida. Sem dispor desses instrumentos ou de alternativas do mesmo status formal, o CEE/SC, ao que parece, inovou com a publicação de um documento intitulado “proposição”, tendo que se considerar, no entanto, que tal publicação adequar-se-ia à função consultiva e de assessoramento superior prevista no seu regimento interno (SANTA CATARINA, 2005). Desde a sua publicação, em 2012, o documento “Proposição” tem sido referenciado em outros documentos e legislações estaduais como, por exemplo, no fundamento legal do Plano Estadual de Educação do Santa Catarina – 2015-2024 (SANTA CATARINA, 2015b). O Plano Estadual de Educação de Santa Catarina somente começou a ser elaborado em 2013, quando a SED/SC foi auditada pelo Tribunal de Contas do Estado de Santa Catarina (TCE/SC). O que faz supor que, até então, as recomendações da OCDE, por meio da “Proposição” do CEE/SC, supririam
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e subsidiariam a ausência de ações e iniciativas planejadas da gestão da educação estadual.
A “Proposição de novos rumos para a qualidade da educação em Santa Catarina”, afora as seções de apresentação, da introdução e das considerações finais, aborda as recomendações da OCDE em mais 6 seções: Formação do professor e do gestor educacional; Valorização do magistério; Currículo e prática pedagógica; Autonomia e gestão da escola; Organização e gestão do sistema educacional e estrutura física e técnica e Educação superior, pesquisa e desenvolvimento. Cada uma das seções está organizada em 3 subseções: constatações, princípios e diretrizes e as propostas.
O Quadro 1 reúne uma amostra das propostas inscritas nas seções Formação do professor e do gestor educacional e Valorização do magistério.
Quadro 1. Propostas elaboradas CEE/SC com base nas recomendações da OCDE
FORMAÇÃO DO PROFESSOR E DO GESTOR EDUCACIONAL
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VALORIZAÇÃO DO MAGISTÉRIO
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Fonte: Elaboração própria, com base em Santa Catarina (2012)
Escolhemos somente algumas das propostas indicadas no documento do CEE/SC tendo em vista que, pelas limitações do presente trabalho, não poderíamos alcançar a amplitude dessas propostas Os slogans do meio empresarial e mercantil se repetem tanto nos textos da OCDE quanto nos textos do CEE/SC: motivação profissional e salarial atrativos, competências e habilidades, avaliação de
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desempenho e de conhecimentos, avaliação dos resultados da aprendizagem, salários competitivos, relevância social. São expressões que tem sua origem no campo privado e não são adequadas ao setor público e ao Estado. Entretanto se repetem ao longo de todo o documento.
Os organismos multilaterais enfatizam frequentemente a necessidade do Estado aumentar a eficácia e a eficiência dos gastos com educação. Para a consecução dessas orientações, “sugere que o setor público se apoie em modos de gestão utilizados pelo setor privado, tornando-se mais eficaz e ampliando a margem de uso de recursos” (SHIROMA; EVANGELISTA, 2011, p. 132). Nessa perspectiva, a gestão por resultados visa relacionar a profissionalização docente, a avaliação dos resultados de aprendizagem (accountability) e a consequente responsabilização destes resultados. Essa articulação leva a crer que se o aluno não aprende, a responsabilidade é do professor e da escola, desconsiderando a complexidade do processo ensino-aprendizagem.
Articulando a formação continuada para profissionalização docente à avaliação por resultados, a proposta de política de variação de remuneração por bonificação dos professores acaba por ocultar a crescente e real desvalorização da carreira docente, um modo de compensar os professores com abonos pontuais que não alteram, no entanto, seu plano de carreira e sua aposentadoria, ungida por uma ideologia gerencialista. Além disso, promove a fragmentação da categoria docente e desintegra os tradicionais laços de solidariedade promovendo a competição entre os professores. As alterações no Estatuto do Magistério e no Plano de Cargos e Salários, posteriores à publicação da “Proposição” e levadas a cabo pelo governo do Estado em 2015 (SANTA CATARINA, 2015a), tiveram, como uma de suas consequências, a perda de direitos historicamente conquistados pela categoria docente (VALVERDE, 2018). Se, por um lado, a responsabilização dos docentes pelos resultados não chegou a ser implementada como ação política pelo governo, por outro lado, o Plano de Cargos e Salários aprovado no âmbito da vigência do documento do CEE/SC aprofundou a precarização da carreira docente, ainda assim sem tirar do horizonte a possibilidade de implementação daquela política, em contexto em que as condições de luta se encontrem mais fragilizadas, após inúmeras derrotas, e não apresentem a
resistência necessária.
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Outros pesquisadores também observaram em suas pesquisas os rumos trilhados pelo CEE/SC na esteira privatista. A pesquisa de Ione Valle foi a primeira a se debruçar sobre a análise do CEE/SC. Nela, a autora concluiu que a política de contenção da expansão da rede estadual de educação básica implementada pela burocracia estatal do CEE/SC promoveu e favoreceu o crescimento da rede privada. De acordo com a autora,
A conformidade dos conselheiros é resultado da burocratização do exercício no poder. Esta acabou por engolfar a variabilidade dos interesses mais coletivos representados no órgão colegiado numa pseudo-visão consensual, capaz de assegurar o fechamento desse órgão em si mesmo e torná-lo mais permeável à influência dos setores sociais privilegiados. (VALLE, 1991, p. 279).
Ao analisar a expansão do ensino superior em Santa Catarina, Ricardo Velho (2003) constatou a participação do CEE/SC como sujeito organizador da interiorização do Ensino Superior preferencialmente pela via do ensino pago, e na conformação da universidade comunitária, forma híbrida de modelos jurídicos público e direito privado predominante em Santa Catarina.
A tese de Adalberto Tabalipa (2015, p. 109), partindo da análise do mesmo corpo documental objeto deste trabalho, concluiu que o relatório
[...] Avaliações de Políticas Nacionais de Educação, Santa Catarina Brasil, da OCDE (2010), e a resposta do Conselho Estadual de Educação a ele, representaram uma verdadeira fábrica de slogans que buscam direcionar a política educacional e promover o consenso sobre uma série de conceitos, como a Teoria do Capital Humano, Economia e Sociedade do Conhecimento, Qualidade, Eficiência, Eficácia e Autonomia, como forma de subsumir a educação superior catarinense à lógica privada.
Em linha com os achados do presente estudo, a constatação desses autores assume a dimensão de uma denúncia à cumplicidade do CEE/SC com a privatização e desmonte do sistema público estadual de educação de Santa Catarina.
Buscamos com esse artigo chamar a atenção para o fato de que, para além das formas cada vez mais sofisticadas de privatização, mercantilização e mercadorização da educação que incidem sobre a educação pública brasileira,
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existem processos silenciosos que correm à margem do amplo conhecimento da sociedade, em espaços que raramente são conhecidos ou percebidos, no coração dos conselhos de educação.
Nossa análise indica que os conselhos de educação parecem estar se consolidando como um novo espaço de disputa do empresariado educacional, no centro dos sistemas federal, estadual e municipal de ensino. Esse fenômeno se dá em razão de que, por um lado, os processos de mercantilização, por meio da oferta de mercadorias educacionais, mídias, apostilas, tornam-se um espaço atrativo de valorização do capital, por outro lado essa ocupação significa, para o empresariado educacional, a possibilidade de exercer o controle sobre a própria instância de controle social, poder influenciar na condução de políticas públicas e, de certo modo, determinar os rumos da educação pública.
A análise apresentada neste artigo fundamenta estas afirmações ao mostrar que o CEE/SC, ao elaborar e publicar o documento “Proposição de novos rumos para a qualidade da educação em Santa Catarina: visão do CEE sobre a avaliação da OCDE” (2012), atuou na legitimação de recomendações da OCDE para orientação à formulação da política educacional do estado de Santa Catarina, dando concretude ao vetor da privatização. Como norma, portanto, passa a ser utilizado para orientação de políticas de longo prazo, como é o caso do Plano Estadual de Educação e outras orientações emanadas da Secretaria de Educação. As alterações inspiradas nesse documento trouxeram perdas de direitos na carreira do magistério e colocaram no horizonte o risco de maior aprofundamento da precarização da docência na rede estadual, como as avaliações de desempenho e a possibilidade de responsabilização pelos resultados de aprendizagem, sem alterações que elevem a condição de vida dos trabalhadores ou garanta sua aposentadoria.
A conversão da recomendação em propostas promovidas pelo CEE/SC foi viabilizada por vários fatores, seja pela presença majoritária na composição do conselho de representantes advindos do setor privado da educação catarinense, seja pela presença de conselheiros ocupando cargos na cúpula educacional do governo estadual (e desse modo, com interesses diretos na legitimação das recomendações), seja pela remuneração recebida em forma de jetons – como forma material através da qual o Estado garante a referida conversão.
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Apesar de não ser suficiente, a ocupação dos espaços de discussão nos órgãos de controle social, os conselhos, é tarefa urgente de todos e todas que lutam por uma educação pública, laica, gratuita e socialmente referenciada de modo que se possa frear o ímpeto dos setores privados influenciarem a organização escolar, bem como a normatização e regulação dos sistemas de ensino que, ao fim e ao cabo, alteram o próprio fazer pedagógico em prol dos seus próprios interesses.
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V.21, nº 44, 2023 (janeiro-abril) ISSN: 1808-799 X
Tiago Fávero de Oliveira2
Resumo
O presente artigo desenvolve uma análise crítica acerca do tema da formação empreendedora que tem ganhado espaço nas discussões educacionais. O objetivo do estudo é refletir sobre a expansão do discurso empreendedor que chega à educação básica no intuito de formar trabalhadores precários e desqualificados, aptos para o descarte e o desemprego. Ancorado em autores que visam compreender o fenômeno a partir de suas contradições materiais, a pesquisa irá analisar categorias que se relacionam com o ideário neoliberal, a informalidade e a precarização que ajudam a compreender o discurso do empreendedorismo em sua totalidade. O trabalho conclui que o empreendedorismo é um novo ponto a ser considerado dentro da dinâmica da luta de classes, uma vez que aprofunda a alienação, intensifica o trabalho e oculta os mecanismos de exploração e desigualdade.
Palavra-chave: Empreendedorismo; Educação Empreendedora; Sujeito Neoliberal; Precarização. Informalidade.
LA BARBARIE NEOLIBERAL Y LA ESCUELA: LA FORMACIÓN DE EMPREENDEDORES PARA UN MUNDO SIN DERECHOS Y SIN EMPLEO
Resumen
Este artículo desarrolla un análisis crítico del tema de la formación emprendedora que ha ganado espacio en las discusiones educativas. El objetivo del estudio es reflexionar sobre la expansión del discurso empresarial que llega a la educación básica para formar trabajadores precarios y descalificados, susceptibles de ser descartados y desempleados. Anclada en autores que pretenden comprender el fenómeno desde sus contradicciones materiales, la investigación analizará categorías que se relacionan con las ideas neoliberales, la informalidad y la precariedad que ayuden a comprender el discurso del emprendimiento en su totalidad. El trabajo concluye que el emprendimiento es un nuevo punto a considerar dentro de la dinámica de la lucha de clases, ya que profundiza la alienación, intensifica el trabajo y oculta los mecanismos de explotación y desigualdad.
Palabras clave: Emprendimiento; Educación Empreendedora; Sujeto Neoliberal; Precariedad; Informalidad.
THE NEOLIBERAL BARBARIAN AND THE SCHOOL: THE TRAINING OF ENTREPRENEURS FOR A WORLD WITHOUT RIGHTS AND WITHOUT JOBS
Abstract
This article develops a critical analysis of the topic of entrepreneurial training that has gained ground in educational discussions. The objective of the study is to reflect on the expansion of the entrepreneurial discourse that reaches basic education in order to train precarious and disqualified workers, able to be discarded and unemployed. Anchored by authors who aim to understand the phenomenon from its material contradictions, the research will analyze categories that relate to neoliberal ideas, informality and precariousness that help to understand the discourse of entrepreneurship in its entirety. The work concludes that entrepreneurship is a new point to be considered within the dynamics of the class struggle, since it deepens alienation, intensifies work and hides the mechanisms of exploitation and inequality.
Keywords: Entrepreneurship; Entrepreneurial Education; Neoliberal subject; Precariousness; Informality.
1Artigo recebido em 03/02/2023. Primeira avaliação em 23/02/2023. Segunda avaliação em 02/03/2023. Terceira avaliação:24/03/2023. Aprovado em 01/04/2023. Publicado em 13/04/2023.
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v21i44.57268.
2 Doutor em Políticas Públicas e Formação Humana pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPFH/UERJ), Rio de Janeiro - Brasil. Professor do Instituto Federal do Sudeste em Minas Gerais – Campus Santos Dumont, Minas Gerais - Brasil. E-mail: tiago.oliveira@ifsudestemg.edu.br. Lattes: http://lattes.cnpq.br/3796451743136890. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5117-6274.
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O modo de produção capitalista, no curso de seu desenvolvimento, produz crises a partir das quais novos processos e formas de produção vão surgindo. A crise atual ligada ao novo estágio de desenvolvimento do modo de produção, não é apenas uma simples crise financeira. De acordo com Mészáros (2013), em nosso tempo, a crise é estrutural. Neste sentido, cada vez mais o capital vai buscando caminhos para aprofundar a exploração no intuito de se adaptar às transformações do mundo e manter, sempre em níveis exponenciais, suas taxas de acumulação. Com a hegemonia do ideário neoliberal e ao lado do avanço tecnológico, as relações capitalistas são ampliadas. Em nome da flexibilidade, os contratos de trabalho são desregulamentados e a tecnologia é um importante fator para precarizar e aumentar ainda mais a exploração (HARVEY, 2014).
Todavia, não basta apenas criar meios para expandir a produção. Faz-se necessário, também, buscar novas formas para conformar a subjetividade do trabalho a essa nova organização, gerando consensos favoráveis às demandas do capital. É nessa direção que o discurso do empreendedorismo ganha cada vez mais espaço em nossos dias. Neste contexto, algumas questões iniciais são colocadas: como o neoliberalismo opera na formação de um novo tipo de indivíduo mais dócil e conformado à situação de instabilidade e precariedade dos tempos atuais? A partir de quais perspectivas é possível analisar o crescimento do fenômeno do discurso empreendedor? Quais são suas características? Como este discurso empreendedor – que antes era circunscrito e oriundo dos meios empresariais – chega à educação básica? Quais os impactos e consequências deste avanço?
Responder e refletir sobre essas questões é um passo significativo e necessário que justifica a realização deste estudo. Com a naturalização de processos de exploração e com o uso de uma linguagem que mascara e oculta cada vez mais a precarização e a informalidade, analisar a conjuntura atual de modo a entender e nomear os fenômenos a partir de suas características materiais é um caminho importante na identificação dos problemas visando sua superação. Neste sentido, a expansão e a aceitação do discurso empreendedor que naturaliza e consente com um tipo mais elevado de expropriação e exploração é um fator que precisa ser analisado.
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Recorrendo a autores da tradição do materialismo histórico e dialético (assumido neste trabalho não só como fundamento teórico, mas também como aporte metodológico) o discurso sobre o empreendedorismo será pesquisado como um fator que exerce influência central no desenvolvimento e na reorganização das forças e do modo de produção nos dias atuais. Dessa forma, categorias como informalidade e precarização são analisadas, relacionadas e identificadas, permitindo uma compreensão concreta do fenômeno.
Assim, este artigo contará com três seções. Na primeira, será identificado o movimento de formação de subjetividades neoliberais e empresariais. Aqui será importante destacar as características deste novo sujeito e as críticas que são feitas ao Estado, visto como empecilho para o crescimento e a prosperidade. Na segunda seção, serão apresentados os fundamentos gerais da contrarreforma educacional, que ocorre no Brasil e se intensifica desde 2016, a partir da qual intenta-se formar indivíduos precários, fragmentados e alinhados às necessidades do capital. Este é um caminho que reforça a dualidade educacional e que atua na conformação de sujeitos desempregáveis e descartáveis, aptos para a informalidade. Na terceira e última seção, pretende-se focar o estudo no fenômeno do atual discurso acerca do empreendedorismo. Aqui, alguns argumentos que sustentam sua expansão e geram convencimento acerca de suas práticas serão desenvolvidos. Busca-se, também, apontar para algumas características do fenômeno na atualidade.
O objetivo central deste texto é sinalizar para a expansão do discurso empreendedor que chega até a educação básica com o intuito de formar trabalhadores aptos para a desqualificação e o desemprego. Ao fazer isso, tenta-se, por outro lado, revelar os riscos e ameaças que este crescimento traz na direção de identificar formas de resistência e superação do problema. No fim do artigo, será possível concluir que o empreendedorismo, cuja implementação atual está subordinada e interligada ao desemprego, à informalidade e a precarização, cria condições para o aprofundamento da alienação e da fetichização, uma vez que em um contexto em que cada trabalhador é autônomo e trabalha para si, as causas da intensificação, da desigualdade e da exploração tornam-se cada vez mais ocultas.
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O neoliberalismo, a crise e a formação de um “novo” sujeito neoliberal
Entendido como uma resposta às duas grandes crises do século XX – a crise do Estado de Bem-Estar Social e a crise do socialismo real (NETTO, 2012) – o ideário neoliberal se torna cada vez mais hegemônico no Brasil, sobretudo a partir das políticas dos anos 1990. Anderson (1994) afirma que, no caso brasileiro, o trauma da hiperinflação serviu como estratégia para a aceitação da implementação de medidas neoliberais, justificando, assim, a adoção de contrarreformas, políticas de austeridade, ataques e perda de direitos. O argumento aqui é simples: ao apresentar o Estado como o grande responsável pela crise (por conta de seu tamanho, ineficiência, burocracia e ineficácia)3, o ideário neoliberal sinaliza para o mercado e para a iniciativa privada como os únicos caminhos possíveis para a superação dos problemas, dentro dos quais se destacam a ineficiência, a morosidade, a burocracia exagerada, entre outros. Dessa forma, aos poucos vai se forjando um consenso a partir do qual as medidas neoliberais passam a ser vistas como inevitáveis e necessárias.
É importante registrar que a crítica ao Estado não pretende conduzir a discussão ao retorno da ideia de estado mínimo nos moldes postulados pelo liberalismo clássico4. Muito pelo contrário: mira-se na formação de um Estado reduzido apenas para as políticas sociais, que se tornará forte e atuante junto às demandas relacionadas à acumulação do capital: “o que desejam e pretendem não é ‘reduzir a intervenção do Estado’, mas encontrar as condições ótimas (hoje só possíveis com o estreitamento das instituições democráticas), para direcioná-las segundo seus particulares interesses de classe” (NETTO, 2012, p. 88, itálicos do autor). Para isso, será necessária, além das várias medidas realizadas no plano econômico, uma forte atuação na pacificação e conformação dos indivíduos, fazendo- os dóceis e cordatos às políticas neoliberais.
Vale registrar que a ideia de crise – que é estrutural e funcional ao capital (MÉSZÁROS, 2009; MASCARO, 2013) – contribui para a criação de um consenso a partir do qual o Estado passa a ser visto de modo negativo. Dessa forma, o capital se aproveita da instabilidade gerada pelo contexto de crise para atuar no confisco de
3 Dentro do pensamento neoliberal, eficiência está relacionada ao processo, ao modo em que determinada tarefa será realizada. Já a eficiência, diz respeito ao produto, ao resultado que foi obtido. Assim, eficiente é aquilo que foi bem feito e eficaz é aquilo que atingiu o objetivo proposto.
4 Anderson (1995) e Harvey (2014) explicam, de modo aprofundado, a diferença entre o liberalismo clássico e o neoliberalismo.
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direitos, aprofundar a contradição com o trabalho, gerando alterações no Estado, diminuindo a proteção social realizada por políticas públicas. A partir daí, amplia-se a crença de que o Estado é um empecilho para o desenvolvimento (tanto coletivo quanto individual) e que soluções focadas no individualismo, no empresariamento, na flexibilização e na desregulamentação sejam defendidas e requeridas por uma parcela da população, inclusive por aqueles indivíduos mais vulneráveis e frágeis que, em tese, mais precisariam da intervenção estatal em políticas sociais.
É por meio deste consenso formado que o capital irá avançar sobre as relações de trabalho. Dessa forma, será possível identificar uma proliferação de iniciativas que passam pela informalidade e pela precarização que, em última análise, contribuem para a acumulação de capital, visto que: “o poder do capital cresce e se renova em momentos de crise capitalista, justamente pela fraqueza geral e sistemática dos demais agentes sociais e, também, pelo caráter quase sempre reativo ou meramente reformista das instituições políticas” (MASCARO, 2013, p. 127). Tais iniciativas, por mais perversas e prejudiciais que possam ser para a classe trabalhadora, encontram nela alguns defensores, que insistem que o Estado é o responsável pela crise e que medidas de desregulamentação serão benéficas, uma vez que qualquer ação de proteção social passa a ser vista como mecanismo para defender pessoas que não querem trabalhar ou se esforçar para melhorar de vida. Esse discurso está relacionado com a difusão do conceito de meritocracia, que alimenta e amplia a desigualdade (CAVALCANTI, 2021).
Ao observar o modo de produção capitalista, Marx percebeu que sua análise não poderia considerar apenas os aspectos da infraestrutura e dos recursos materiais que participavam de sua construção. Isso porque, um modo de produção não é visto apenas a partir da base tecnológica. Para o materialismo histórico e dialético, um modo de produção é composto por forças materiais (naturais e instrumentais) da produção, um sistema de relações sociais e um sistema de padrões de comportamento. Neste caso, em seus estudos sobre o capitalismo, o pensador alemão considerou as mediações que existiam entre a produção propriamente dita e as relações dela com a formação de uma cultura, uma subjetividade ligada às relações sociais e a uma padronização do comportamento humano compatível com o modo de produção vigente. Neste caso, o ser social determina a consciência, mostrando a complementariedade e a unidade sintética entre estrutura e superestrutura:
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na produção da própria existência, os homens entram em relações determinadas, necessárias, independentes de sua vontade; essas relações de produção correspondem a um grau determinado de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. A totalidade dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência. O modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social, política e intelectual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; ao contrário: é o seu ser social que determina sua consciência (MARX, 2008, p. 47).
Ampliando esta análise, verifica-se que o capital começa a operar para a formação de subjetividades compatíveis com suas demandas, particularmente, formando indivíduos que não só aceitam de forma pacífica e acrítica a expansão de suas pautas, como também assumem uma postura de naturalização dos dilemas sociais (NETTO; BRAZ, 2012), gerando a expansão de um consenso acerca das trágicas e graves consequências da política neoliberal: “como é que, apesar das consequências catastróficas a que nos conduziram as políticas neoliberais, essas políticas são cada vez mais ativas, a ponto de afundar os Estados e as sociedades em crises políticas e retrocessos cada vez mais graves?”(DARDOT; LAVAL, 2016, p. 15)5. Neste movimento, tais dilemas e contradições serão não só aceitos, como também será difundida a ideia de que o neoliberalismo é o único caminho capaz de conduzir a uma saída da crise, expandindo a possibilidade de implementação de suas pautas, dentro de um cenário de hegemonia.
Economicamente, o neoliberalismo fracassou, não conseguindo nenhuma revitalização básica do capitalismo avançado. Socialmente, ao contrário, o neoliberalismo conseguiu muitos dos seus objetivos, criando sociedades marcadamente mais desiguais, embora não tão desestatizadas como queria. Política e ideologicamente, todavia, o neoliberalismo alcançou êxito num grau com o qual seus fundadores provavelmente jamais sonham, disseminando a simples ideia de que não há alternativas para os seus princípios, que todos, seja confessando ou negando, têm de adaptar-se a suas normas (ANDERSON, 1995, p. 12).
5 Ainda que a obra de Dardot e Laval (2016) parta de uma tradição teórica diferente do materialismo histórico e dialético, o uso dela, nesta pesquisa, não representa um ecletismo. Acredita-se, neste caso, que ambos referenciais, apesar de serem diferentes, não são excludentes. Ao contrário: entende-se que eles constroem críticas ao neoliberalismo que podem ser complementares, uma vez que analisam o fenômeno de forma crítica a partir da relação entre estrutura e superestrutura desenvolvida por Marx (2008).
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A partir disso, é possível entender a afirmação de Dardot e Laval, para quem “o neoliberalismo não é apenas uma ideologia, um tipo de política econômica. É um sistema normativo que ampliou sua influência ao mundo inteiro, estendendo a lógica do capital a todas as relações sociais e a todas as esferas da vida” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 7). Esta é uma compreensão dentro da qual os indivíduos são formados e criados, socialmente, para a venda da sua força de trabalho na perspectiva da exploração, uma vez que isso é necessário para o bom funcionamento do Estado e para a prosperidade do indivíduo. Prevalece a visão do neoliberalismo como cultura: “o neoliberalismo não destrói apenas regras, instituições, direitos. Ele também produz certos tipos de relações sociais, certas maneiras de viver, certas subjetividades” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 16, itálico dos autores). Além de poder ser associado a uma cultura, o neoliberalismo também pode ser entendido como uma racionalidade que opera para a criação de um novo imaginário social, no qual são definidas regras de condutas e valores compatível com as demandas do mercado.
Uma nova racionalidade produz tanto um novo imaginário, um novo conjunto de imagens produzidas a partir do universo simbólico, quanto uma nova normatividade (...). Uma nova racionalidade produz também novo habitus, um sistema de disposições duráveis que produzem ações e modificam a sociedade e o indivíduo. Com a emergência de uma nova racionalidade, há uma progressiva alteração na forma como indivíduos e atores políticos percebem o mundo-da-vida e a ele reagem (CASARA, 2021, p. 59).
Dardot e Laval (2016) reconhecem este indivíduo formado a partir dos preceitos neoliberais como um sujeito neoliberal, um neosujeito ou um indivíduo-empresa. Para eles, este é um indivíduo cuja subjetividade foi direcionada para relações de mercado, com foco no individualismo e na produção, com qualidade, competitividade e eficiência. Segundo os autores, o objetivo é “fabricar homens úteis, dóceis ao trabalho, dispostos ao consumo, fabricar o homem eficaz” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 237, itálico dos autores). Já para Wendy Brown (2019) este sujeito neoliberal pode ser visto a partir da reconfiguração do homo economicus defendido pelo liberalismo clássico que passa a assumir uma humanidade competitiva, característica das relações de mercado. Intenta-se formar um sujeito “livre, estúpido, manipulável, consumido por estímulos e gratificações triviais” (BROWN, 2019, p. 204). Neste sentido, o que se verifica é o crescimento da
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tendência a transformar o trabalhador em uma simples mercadoria. A corrosão progressiva dos direitos ligados ao status do trabalhador, a insegurança instilada pouco a pouco em todos os assalariados pelas “novas formas de emprego” precárias, provisórias e temporárias, as facilidades cada vez maiores para demitir e a diminuição do poder de compra até o empobrecimento de frações inteiras das classes populares são elementos que produziram um aumento considerável do grau de dependência dos trabalhadores com relação aos empregadores (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 329).
Merece destaque a observação de uma contradição que envolve a noção de liberdade dentro do ideário neoliberal. David Harvey pontua que o neoliberalismo difunde uma teoria que, em síntese, entende que “o bem-estar humano pode ser mais bem promovido liberando-se as liberdades e capacidades empreendedoras individuais no âmbito de uma estrutura institucional caracterizada por sólidos direitos a propriedade privada, livres mercados e livre comércio” (HARVEY, 2014, p. 12). Todavia, essa liberdade defendida pelo neoliberalismo, não é uma liberdade que conduz à emancipação. Muito pelo contrário: de acordo com as ideias de Hayek (1983) a liberdade neoliberal deve ser considerada como liberdade econômica que garante a possibilidade de competir no mercado. No plano individual, o que prevalece é a liberdade de vender sua força de trabalho. Não é, portanto, uma liberdade relacionada a ter os bens necessários para uma vida digna, mas sim, em poder ser explorado de acordo com a lógica vigente6.
Sobre a liberdade, Marx e Engels em A Ideologia Alemã afirmam que ela só se realiza de forma comunitária, visto que “é somente na comunidade [com outros que cada] indivíduo tem os meios de desenvolver suas faculdades em todos os sentidos; somente na comunidade, portanto, a liberdade pessoal torna-se possível” (2007, p. 64). Dessa forma, a verificada redução da liberdade coletiva à liberdade econômica individual na sociedade capitalista pode ser interpretada como uma estratégia do capital que estimula a livre concorrência mediante um processo alienante, haja vista que, no contexto da livre concorrência, quem está livre é o capital e não o indivíduo (MARX, 2011). Assim, reafirma-se a ideia de que no modo de produção capitalista, prevalece a liberdade do indivíduo vender sua força de trabalho dentro das regras estipuladas pelo mercado, num processo que oculta a exploração ao considerar que capitalistas e trabalhadores negociam, ambos, de forma livre e igual (MARX, 2017).
6 Destaca-se, aqui, a referência ao trabalho enquanto síntese da contradição entre liberdade e necessidade (MARX, 2017b).
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O capitalismo é constituído pela exploração de classe, mas é mais que um mero sistema de opressão de classe. É um processo totalizador e cruel que dá forma à nossa vida em todos os aspectos imagináveis, e em toda a parte, não apenas na relativa opulência do Norte capitalista. Entre outras coisas, mesmo sem considerar o poder direto banido pela riqueza capitalista tanto na economia quanto na esfera política, ele submete toda a vida social às exigências abstratas do mercado, por meio da mercantilização da vida em todos os seus aspectos, determinando a alocação de trabalho, lazer, recursos, padrões de produção, de consumo, e a organização do tempo. E assim se tornam ridículas todas as nossas aspirações à autonomia, à liberdade de escolha e ao autogoverno democrático (WOOD, 2011, p. 224).
É por conta disso que Cavalcanti (2021) destaca que no neoliberalismo a ideia de liberdade é uma farsa, uma promessa não cumprida, já que, ao se defender a liberdade no plano teórico, o que se observa, na prática, é o oposto dela: uma liberdade que gera dependência. O homem livre, dentro da sociedade neoliberal, é aquele que não tem nada além de si mesmo, que se encontra lançado à sua solidão dentro de uma dinâmica perversa de individualismo e de intensa competição. É um indivíduo que não tem a que se agarrar e que precisará, a todo momento, lutar contra a realidade da exclusão e a possibilidade de descarte, já que “também é necessário ao bom funcionamento do liberalismo restringir a liberdade dos indesejáveis no mercado” (CASARA, 2021, p. 83, itálicos do autor).
A contrarreforma educacional e a formação de sujeitos precários e desempregáveis
Como já destacado, o neoliberalismo deve ser entendido de modo amplo, como uma racionalidade que extrapola o campo econômico. Gaudêncio Frigotto entende este fenômeno como uma alternativa teórica, econômica, ideológica, ético-política e educativa à crise do capitalismo deste final de século” (FRIGOTTO, 1999, p. 79). Dessa forma, o ideário neoliberal atingirá a educação, prescrevendo meios para a formação dos indivíduos de modo a atender às necessidades ligadas à acumulação capitalista: “o ponto nodal é o de formar ‘bons trabalhadores’, isto é, trabalhadores fabricados para submeter-se mais facilmente às relações de trabalho estabelecidas. Homens fabricados para aceitarem a desqualificação dada pela crescente divisão do
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trabalho” (FRIGOTTO, 1983, p. 42). Em outras palavras, a consequência disso será a formação de indivíduos desempregáveis7.
Há de se notar que a importância conferida à educação pelos contrarreformadores neoliberais não se dará na linha da emancipação, da autonomia e da garantia de uma formação humana que rompa com o contexto de subalternidade e exploração. Ao contrário: o que se intenta é impor um movimento regressivo dentro do qual o indivíduo será reduzido à recurso humano, sendo considerado apenas como um fator de produção que pode ser moldado e descartado de acordo com as necessidades do sistema. É neste sentido que Frigotto (2011) identifica o rejuvenescimento da Teoria do Capital Humano no atual contexto. De acordo com ele, nas políticas educacionais recentes, é possível observar o predomínio de conceitos ligados à sociedade do conhecimento, ao cognitariado8, a busca de qualidade total, entre outros. Tais conceitos sinalizam para a procura obstinada pela produtividade (produzir cada vez mais, em cada vez menos tempo gastando o mínimo possível), a precarização do trabalho e o ataque aos direitos. Note-se, aqui, a difusão do conceito de empregabilidade, cujo entendimento deposita sobre o indivíduo toda responsabilidade por se adequar ou não ao mercado de trabalho, reforçando, assim, o discurso do individualismo, da meritocracia e da competitividade na tarefa para se tornar um sujeito empregável num contexto em que empregos são cada vez mais escassos9.
Ao lado do rejuvenescimento da Teoria do Capital Humano, o movimento em análise também permite perceber a ocorrência da atualização da Pedagogia das Competências (RAMOS, 2003; MAGALHÃES, 2021). Fortemente presente nas políticas educacionais da década de 1990, esta corrente – que nunca esteve ausente
7 O sujeito desempregável não é o sujeito livre do fardo do trabalho, emancipado, mas sim, o sujeito cuja existência é precarizada. É o indivíduo que, por força da sobrevivência, precisa vender sua força de trabalho a partir de condições cada vez mais desfavoráveis, sem nenhum tipo de segurança ou relação formal.
8 A partir de Frigotto (2017) é possível inferir que o cognitariado é a parcela do proletariado cuja venda da força de trabalho se dá na perspectiva não só do trabalho manual e repetitivo, mas também do trabalho intelectual e criativo. Este conceito ressalta o crescimento da demanda por educação, reforçando a ideia do indivíduo como Capital Humano que deve ser formado. Tal mudança não ocorre, como já dito, na perspectiva da emancipação, mas sim do aumento da produtividade.
9 A noção de empregabilidade, central neste artigo, deve ser compreendida como uma tentativa do capital depositar, sobre o indivíduo, a responsabilidade por desenvolver competências e habilidades que o torne empregável. É um discurso que exclui as causas sociais do desemprego, mascara a desigualdade e amplia, ainda mais, as responsabilidades e atribuições do sujeito. Tal discurso, hoje, está diretamente relacionado ao discurso do empreendedorismo.
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das discussões educacionais no país – reassume a centralidade nos discursos, conduzindo novamente o debate para a redução da educação a processos pragmáticos e fragmentados, com vistas a gerar adaptação dos trabalhadores ao trabalho intenso, precário e marcado pela superexploração. É neste sentido que Frigotto (1983) identifica este fenômeno a uma pedagogia da submissão, construída a partir de uma organização educacional cujo processo de ensino e aprendizagem se dá mediante conhecimentos rápidos, superficiais e práticos, com o objetivo de produzir um trabalhador conformado, dócil, disciplinado, obediente e resignado. Refletindo sobre a Pedagogia das Competências, Ramos (2003) pontua que, a partir dela, a educação passa a ser entendida através da sua função de adequação psicológica dos trabalhadores às relações sociais de produção, resultando num processo de psicologização das questões sociais dentro de princípios educacionais centrados em dimensões pragmáticas do modo de produção capitalista.
A atualização da Pedagogia das Competências traz, recentemente, o foco no desenvolvimento de competências socioemocionais, dentro do qual é apresentada uma lista de competências relacionadas à formação de um trabalhador dócil, adaptado à contingência, tolerante à informalidade e à precarização e fortemente motivado e disposto ao trabalho intenso e à exploração (MAGALHÃES, 2021). Não se busca desenvolver, junto ao trabalhador, sentimentos ligados à indignação à desigualdade, intolerância com a injustiça e resistência à exploração. As competências desejáveis aqui são aquelas que, mediante a difusão da culpa, fazem com que o trabalhador entenda que suas dificuldades são resultado de sua pouca habilidade para o trabalho e que serão resolvidas apenas pelo seu esforço e dedicação para se tornar empregável. Note-se que tal raciocínio traz a marca da perversidade, pois, ao excluir as causas sociais do desemprego e da pobreza, criam argumentos para justificar estes fenômenos relacionando-os com o indivíduo, que será sempre visto como insuficiente, pouco esforçado, sem competência e com pouca disciplina e envolvimento. Há, aqui, um processo de formação de subjetividades competitivas que acabarão se tornando frustradas. Este movimento é funcional ao neoliberalismo, uma vez que amplia a necessidade da competitividade, da produtividade e do aumento da intensificação e superexploração do trabalhador.
Na prática, é possível inferir que o discurso das competências está diretamente ligado a um recorte classista, comprometido com o dualismo educacional. Tal
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afirmação se sustenta pois o reaparecimento das competências (com ênfase nas competências socioemocionais) será direcionado, prioritariamente, para a educação da classe trabalhadora. É um processo em que conteúdos e processos cognitivos são esvaziados, no intuito de ocultar e dificultar, dos membros desta classe, o acesso ao conhecimento que historicamente foi produzido por eles mesmos. Comportamentos, sentimentos e reações assumirão o lugar de conteúdos, confirmando a afirmação de Frigotto (1999), para quem “o ideário neoliberal (...) está impondo uma atomização e fragmentação dos sistema educacional e do processo de conhecimento escolar” (FRIGOTTO, 1999, p. 79).
Apesar de defender, teoricamente, a necessidade de um perfil profissional polivalente e flexível, na prática, a Pedagogia das Competências se manifesta através da prescrição e a indicação de um perfil rígido e estável no desempenho de uma atividade profissional (MAGALHÃES, 2021). Este mecanismo de formação profissional e conformação e pacificação social opera em harmonia com outros conceitos, como o de meritocracia, a competitividade, o individualismo, o empreendedorismo que, em última análise, sinalizam para a responsabilização do indivíduo. De forma geral, o que se vê é o desenvolvimento de um projeto educacional cujo objetivo central é:
prover o mínimo de educação necessário para que a massa dos trabalhadores se adeque às condições instáveis e flexíveis do mercado, especialmente pela difusão da cultura do empreendedorismo (que envolve o reforço de atitudes consideradas pelo senso comum como positivas). Na mesma medida, aumenta-se o controle sobre os conteúdos e métodos da educação escolar, que são rigidamente monitorados pelas avaliações em larga escala. Estas, por sua vez, consolidam a cultura da competição, fazendo com que mecanismos de bonificação e punição permeiem o ambiente escolar (ACCIOLY; LAMOSA, 2021, p. 716).
É neste sentido que a preocupação em desenvolver uma formação focada na capacidade de empreender ganha espaço no cenário atual. Para destacar o modo como conceitos e práticas ligadas ao empreendedorismo estão presentes no contexto educacional, serão destacados dois textos atuais de referência para as escolas. O primeiro deles é a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), documento que reformula os currículos das escolas de educação básica no Brasil, cujo início se deu em 2015 e sua homologação aconteceu em 2018. Muito se poderia falar sobre o documento e o percurso de sua produção, todavia, para manter o foco do objeto deste
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trabalho, destaca-se, apenas que, para o documento da BNCC, o empreendedorismo é um dos pontos estruturantes de uma escola capaz de acolher as juventudes a partir de suas demandas atuais.
Para tanto, a escola que acolhe as juventudes precisa se estruturar de modo a: [...]
proporcionar uma cultura favorável ao desenvolvimento de atitudes, capacidades e valores que promovam o empreendedorismo (criatividade, inovação, organização, planejamento, responsabilidade, liderança, colaboração, visão de futuro, assunção de riscos, resiliência e curiosidade científica, entre outros), entendido como competência essencial ao desenvolvimento pessoal, à cidadania ativa, à inclusão social e à empregabilidade.
prever o suporte aos jovens para que reconheçam suas potencialidades e vocações, identifiquem perspectivas e possibilidades, construam aspirações e metas de formação e inserção profissional presentes e/ou futuras, e desenvolvam uma postura empreendedora, ética e responsável para transitar no mundo do trabalho e na sociedade em geral (BRASIL, 2017, p. 466).
A partir do fragmento citado, é possível perceber que o conceito de empreendedorismo se apresenta associado à ideia de inovação e da resolução de problemas através do desenvolvimento de tecnologias. É uma compreensão instrumental do empreendedorismo, que está intimamente relacionado à noção de modernização e inovação. Tal ligação é importante para a geração de consensos acerca da implementação da contrarreforma em curso, minando caminhos de resistência e oposição a este movimento. O empreendedorismo é, assim, apresentado como uma solução viável e exequível para uma série de problemas que compõem o momento de crise.
A utilização do argumento da modernização precisa ser entendida a partir da perspectiva da modernização conservadora. Isso quer dizer que ela deve ser vista como “uma evolução histórica em que o ‘setor velho’ da economia não se transformou e nem se destruiu para gerar o ‘setor novo’” (FERNANDES, 1975, p. 80). Neste mesmo sentido, vale recorrer ao raciocínio de Laval, para quem a modernização atua como um mecanismo para a produção de consensos fortes, contra os quais fica mais difícil traçar uma resistência.
A noção de “modernização” – vaga, mas de boa receptividade – é o fio condutor de uma retórica de combate diante da qual o espírito crítico parece capitular. Sejam quais forem a natureza e o teor da “reforma” ou da “inovação”, basta dizer que haverá “modernização” da escola para que, na cabeça de muitos, ela seja sinônimo de progresso,
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democracia, adaptação à vida contemporânea etc. Desse modo, aqueles que se opõem a ela por alguma razão são violentamente estigmatizados pelos modernizadores. E não é muito difícil mobilizar a opinião pública, os pais, os “jovens”, enfim, todos os que acreditam que é preciso ser “absolutamente moderno” para estar do lado do progresso e da democracia e, assim, apoiar as mudanças. (LAVAL, 2004, p. 189 – 190).
O segundo documento que faz menção à necessidade de formar uma atitude empreendedora na educação básica é o texto das Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (BRASIL, 2018), publicado em 2018. Importante ressaltar que este texto já foi produzido na esteira das mudanças trazidas pela Contrarreforma do Ensino Médio implementada durante o governo de Michel Temer, gerando estreitamento e fragmentação curricular, dificultando, ainda mais, o acesso dos estudantes ao conhecimento historicamente produzido. Pelo texto das DCN, o empreendedorismo é apresentado no artigo 12, como um dos eixos estruturantes para os itinerários formativos que compõem o currículo do Ensino Médio. Pelo texto, há uma crença na capacidade articuladora do empreendedorismo em mobilizar conhecimentos de áreas diferentes na produção de mercadorias e soluções marcadas pela inovação e pelo desenvolvimento da tecnologia: “ IV – empreendedorismo: supõe a mobilização de conhecimentos de diferentes áreas para a formação de organizações com variadas missões voltadas ao desenvolvimento de produtos ou prestação de serviços inovadores com o uso das tecnologias” (CNE/CEB, 2018, p. 7).
O destaque dado ao empreendedorismo neste dois textos de referência para a contrarreforma educacional em curso (a BNCC e as DCN do Ensino Médio) mostra a centralidade e a relevância deste tema para as discussões acerca da educação em nossos dias. Fica evidenciado, assim, o avanço desta categoria para a educação básica e, consequentemente, para as políticas de formação de professores, para a proposição de projetos e programas, para a elaboração de material didático, entre outras. Este movimento pode indicar uma conformação curricular à lógica empreendedora, no sentido de que a educação assuma, cada vez mais, a missão de naturalizar esta prática e formar indivíduos que, na ausência de empregos formais, estarão preparados e conformados com a necessidade de empreender como meio de sobrevivência.
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Após apontar o modo de operação mais amplo do ideário neoliberal e identificar caminhos de sua atuação junto ao contexto educacional, será importante refletir sobre o empreendedorismo propriamente dito, a partir de suas contradições e mediações. Num primeiro momento, é possível perceber o deslocamento da formação empreendedora (que antes se dava apenas em nível superior) para a educação básica, passando a fazer parte do currículo do ensino fundamental e médio. Ferraz e Ferraz (2021) destacam que, no caso brasileiro, a porta de entrada para o ensino de empreendedorismo se deu no nível superior, mais especificamente nos cursos de administração de empresas. Foi diagnosticado o crescimento de projetos de pesquisa e extensão em diversas universidades e faculdades de caráter empreendedor. Além disso, muitas agências, escritórios e polos de inovação e empreendedorismo começaram a naturalizar alguns conceitos da área de modo que a temática começou a ficar cada vez mais próxima da realidade das pessoas. A partir daí, com a popularização do debate, o assunto começou a ser visto como um conteúdo cuja importância é tão reconhecida que sua permanência na educação básica passa a ser defendida como uma necessidade.
No segundo momento, no qual é possível constatar alguns movimentos e modificações que marcam o discurso acerca do empreendedorismo, já é possível analisar como este fenômeno pedagógico e escolar é proposto nos documentos da contrarreforma educacional brasileira. Ancorado nas leituras de Frigotto (1983; 1999; 2011) sobre a Teoria do Capital Humano, percebe-se, como já foi dito, que esta teoria, gestada nos anos 1960, é reconfigurada e recontextualizada atualmente. Tal movimento de recontextualização e atualização acontece a partir da ótica empreendedora. É como se todo discurso acerca da empregabilidade passasse a se desenvolver a partir da lógica do empreendedorismo.
Neste ponto, vale questionar que empreendedorismo é esse que assume o lugar do discurso da empregabilidade? Dardot e Laval (2016) indicam que o empreendedor, na atualidade, é o sujeito que explora a si mesmo. Este fenômeno se assenta sobre uma mal compreendida ideia de liberdade, a partir da qual o sujeito se torna seu próprio patrão. Ainda sobre este ponto, Catini (2020) relaciona o empreendedorismo a uma política de conformação e pacificação social que é acompanhada pela precarização e informalização do trabalho. Dessa forma, os
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indivíduos que são candidatos a empreendedores naturalizam a ideia de que o sacrifício no trabalho em excesso são caminhos e realidades inevitáveis para se auferir o mérito e a prosperidade.
A formação de empreendedores neste contexto neoliberal passa pelo desenvolvimento, junto a estes indivíduos, da ideia de que a ocupação de empregos precários e sem direitos trabalhistas é algo natural. Somado a isso, é divulgada uma ideia que nega a relação trabalhista formal mediante uma mudança na linguagem. Sobre isso, Cavalcanti (2021) pontua que não há mais trabalhadores ou funcionários: todos são colaboradores ou parceiros que fazem parte de uma empresa que deve ser vista como uma família, dentro da qual, os membros devem vestir a camisa e dar o sangue para que a prosperidade se torne real. É importante reforçar que este movimento faz com que a relação trabalhista deixe de ser vista como uma relação de obrigações recíprocas entre patrão e empregado através de um contrato formal de trabalho. Esta situação contribui com o movimento de empresariamento do indivíduo, no qual direitos são perdidos e a instabilidade é a regra. Além disso, desenvolve-se a falsa ideia de que os interesses da empresa e dos empresários são os mesmos interesses dos trabalhadores, pacificando ainda mais essa relação.
Essa compreensão do “empreendedor como mescla de ‘burguês-de-si-próprio e proletário-de-si-mesmo’” (ANTUNES, 2018, p. 34) reforça a funcionalidade que este discurso ocupa para o processo de acumulação do capital. Neste sentido, faz-se mister observar que, dentro do jogo empreendedor, todos os riscos e investimentos ficam a cargo do indivíduo que, em caso de sucesso, dividirá os lucros e recursos advindos do empreendimento com o capital. Caso o sucesso não se concretize, todos os prejuízos recairão apenas sobre o indivíduo10. Além disso, não há como negar que o discurso empreendedor, alinhado com a noção de meritocracia, individualismo e necessidade de esforço e disciplina para se alcançar o sucesso também contribui para o aprofundamento da exploração e a intensificação do trabalho que se tornam mais viáveis, sobretudo, a partir do avanço dos recursos de tecnologia que operam e contribuem com a ampliação do tempo e do ritmo de trabalho. Tal como já observado por Marx, uma das estratégias do capital para ampliar a acumulação capitalista passa
10 É importante registrar que a maioria das empresas criadas no Brasil não sobrevive após cinco anos de fundação. Informação disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2021/10/menos-de- 40-das-empresas-nascidas-no-brasil-sobrevivem-apos-cinco-anos.shtml>. Acesso em 30 de janeiro de 2023.
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pela expansão da jornada de trabalho de modo que ela esteja presente em todos os momentos da vida do trabalhador.
Se, portanto, o emprego capitalista da maquinaria cria, por um lado, novos e poderosos motivos para o prolongamento desmedido da jornada de trabalho, revolucionando tanto o modo de trabalho como o caráter do corpo social do trabalho e, assim, quebrando a resistência a essa tendência, ela produz, por outro lado, em parte mediante o recrutamento para o capital de camadas da classe trabalhadora que antes lhe eram inacessíveis, em parte, liberando os trabalhadores substituídos pela máquina, uma população operária redundante, obrigada a aceitar a lei ditada pelo capital. Daí este notável fenômeno na história da indústria moderna, a saber, de que a máquina joga por terra todas as barreiras mortais e naturais da jornada econômica. Daí o paradoxo econômico de que o meio mais poderoso para encurtar a jornada de trabalho se converte no meio infalível de transformar todo o tempo de vida do trabalhador e de sua família em tempo de trabalho disponível para a valorização do capital (MARX, 2017a, p. 480, negritos meus).
Ressalta-se que o discurso sobre o empreendedorismo, dentro deste movimento atual, fica mais ligado às necessidades de reprodução do capital – justificando, inclusive suas crises e tensões – do que algo comprometido com as demandas da classe trabalhadora: “o empreendedorismo atua contra a classe trabalhadora e a favor da classe capitalista” (FERRAZ, 2021, p. 79). Neste ponto, o empreendedorismo que é implementado como caminho para superar o Estado de Bem-Estar Social, rentabiliza o desemprego estrutural a favor dos interesses do capital a partir da precarização e da informalidade (FERRAZ, 2021). É uma estratégia que vende a crise do capital como uma oportunidade de negócio em que o desemprego, a precarização e a informalidade funcionam como realidades que justificam e fundamentam a prática empreendedora como uma realidade necessária.
Chega-se a defender que o empreendedorismo seria o caminho para que as pessoas que não puderam seguir carreiras tradicionais e/ou que não possuem relações com as elites locais possam ser inseridas e mesmo ascender socialmente. (...) O empreendedorismo social seria uma “oportunidade” para o exército de reserva e para o imenso contingente de trabalhadores cada vez mais pauperizados. (FERRAZ, 2021, p. 109).
Em outras palavras: a oportunidade para o capital é vendida como se fosse uma oportunidade para o trabalhador; o que interessa ao capital é apresentado como se fosse interessante ao trabalhador. Neste caso, não há oportunidade, mas sim necessidade, tanto do trabalhador desempregado e informal de buscar caminhos para
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sua sobrevivência (ainda que precária), quanto para o capital: “Não se trata, portanto, de oportunidades que precisam ser descobertas: tratam-se, antes, de necessidades do ciclo reprodutivo do capital que demanda determinados tipos de produto cuja forma de consumo está pressuposta desde sua concepção" (FERRAZ, 2021, p. 137). Neste sentido, a saída empreendedora é vista como meio para a criação de consumidores, para a venda de mercadorias, para a concessão de financiamentos e para uma série de outras ações que, em última instância, contribuem para a expansão da extração de mais-valor.
O empreendedorismo – visto como uma “armadilha indecorosa do capital para a classe trabalhadora” (FERRAZ, 2021, p. 138) no contexto de oferecer uma saída para a crise econômica – se desloca da classe dominante para a classe dominada, tornando-se um discurso funcional à dinâmica da luta de classes. É importante notar que este deslocamento de classe do espírito empreendedor é acompanhado por um rebaixamento do fenômeno que se universaliza, uma vez que, se antes, os poucos empreendedores eram membros da classe dominante que observavam uma oportunidade lucrativa de negócio e agora, na maioria dos casos, quem empreende são trabalhadores precários, forçados a fazê-lo como imperativo de sobrevivência.
a ideia de um espírito empreendedor, que, durante os primeiros séculos do capitalismo, esteve vinculada aos indivíduos da classe capitalista, mudou de lado sendo exortada como se fosse possível para os trabalhadores. Obviamente que a explicação dos ideólogos do capital é outra; segundo eles, não há mais patrões e empregados, todos podem ser capitalistas, não há mais contradições. Sobretudo, não haveria luta de classes, pois todos desejariam a mesma coisa: mobilidade social, prestígio no mercado, menos Estado e mais liberdade (FERRAZ, 2021, p. 270).
Aproveitando essa oportunidade, o discurso neoliberal busca ocultar os limites e tensões ligadas à realidade do empreendedorismo no terreno da luta de classes. Para isso, o ideário neoliberal estimula a prática empreendedora através de argumentos sutis que vão desde a busca de uma linguagem mais amena, que disfarce a realidade de exploração (tal como o já citado exemplo do uso de colaborador/parceiro ao invés de funcionário/trabalhador) até a veiculação de testemunhos fundados em relatos heroicos que destacam a coragem de quem investiu tudo e se lançou sem medo numa aventura empreendedora, usando todas as forças na concretização de um sonho. Laval (2004) enfatiza que essa estratégia representa
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um “novo estilo de dominação fundamentado no ‘arrebatamento’ e no ‘coaching’” (LAVAL, 2004, p. 265).
Essa coragem empreendedora, que mescla um discurso irracional e passional, opera de forma direta no sonho de quem deseja ter uma melhor condição de vida. Histórias de sucesso de indivíduos comuns que tinham um sonho e se sacrificaram, trabalharam de forma exaustiva e conseguiram atravessar dificuldades e riscos são apresentados como se fossem a regra e não a exceção. Prevalece, neste caso, um mecanismo de captura de subjetividades e aprisionamento de desejos que são mobilizados para atender aos interesses do capital. Na prática o que se vê é que esse tipo de discurso não consegue entregar o que promete. Dessa forma, estes relatos acabam se tornando apenas um mecanismo de romantizar a exploração e a intensificação do trabalho, uma vez que a grande maioria dos empreendedores não conseguem, sequer, fazer dos seus respectivos empreendimentos, uma alternativa ao desemprego.
a ideia de autonomia disseminada pelo pensamento dominante trata da pequena produção ou dos pequenos negócios numa perspectiva que conduz à crença de que todos podem ser capitalistas, quando, na realidade, as atividades denominadas autônomas não conseguem ser nem ao menos uma alternativa ao desemprego (ALVES; TAVARES, 2006, p. 441).
Além do movimento terminológico e conceitual, também contribui para a transformação do trabalhador em empreendedor a busca da liberdade e autonomia. É muito comum observar que vários empreendedores justificam seu ingresso neste universo a partir da justificativa deste ser um modelo em que não se tem patrão. Tal argumento é atrativo, uma vez que a princípio, o empreendedor acredita que todo o esforço do seu trabalho será direcionado exclusivamente para ele, uma vez que não terá que dividi-lo ou entregá-lo a um patrão. Para Cavalcanti (2021), “a ideia de autonomia é uma ideologia na medida em que reforça as relações de poder dominantes nas sociedades contemporâneas” (CAVALCANTI, 2021, p. 170).
Outra manobra também é frequentemente assumida pelo capital na difusão de práticas que lhe interessem: o empreendedorismo social. Aqui, o que ocorre é uma tentativa de, através de projetos de empreendedores, integrar e inserir os excluídos do sistema sem questionar as causas que geram a exclusão. É como se os indivíduos excluídos e marginalizados fossem duplamente explorados pelo capital: tanto na
transformação da exclusão em negócio como na adoção de um verniz humanitário e
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responsável para justificar ações que reproduzem e ampliam a exploração e a desigualdade (FERRAZ; FERRAZ, 2022). Em práticas dessa natureza, vale ressaltar, que o empreendedor social individual não precisa acumular ou ganhar muito dinheiro, pois seu trabalho já está justificado pelo impacto social que produz.
Por fim, em todos os casos aqui descritos, o que prevalece é a constatação de que todos os argumentos e práticas relacionados ao aprofundamento da prática empreendedora são utilizados tendo como fim o aumento da produção capitalista. Como já mostrado, o discurso acerca da disciplina, do esforço, da necessidade de trabalhar de forma árdua e produtiva interessa apenas ao capital, que terá cada vez mais condições de ampliar suas taxas de acumulação. A alienação do empreendedor que renuncia direitos, contratos formais e qualquer tipo de assistência estatal também abre espaço para que o fundo público esteja livre para as relações de mercado, os interesses empresariais e a acumulação do capital.
Do que foi exposto até aqui, é possível recapitular alguns pontos que convergem e contribuem para a consolidação e o aprofundamento da difusão do discurso do empreendedorismo. Em primeiro lugar, é preciso resgatar o fato de que a expansão do discurso empreendedor tem se sustentado em dois movimentos: num discurso que defende a diminuição da intervenção estatal em questões de proteções social (por conta de uma crença na ineficiência e atraso que ele representa) e a defesa da liberdade e da autonomia do trabalhador em relação a um patrão ou a um contrato formal de trabalho.
Como se pode ver, estes dois movimentos se completam: frente às críticas dirigidas à intervenção do Estado, o indivíduo acredita que estando sozinho, livre e autônomo conseguirá resolver sua vida de modo mais eficiente e rápido. No entanto, a realidade indica uma situação diferente: o empreendedorismo, implementado a partir da lógica da precarização e da informalidade, converge para um trabalhador desprotegido. Essa falta de proteção social gera grande instabilidade, compromete a vida e se agrava ainda mais em momentos de crise (vide a insegurança que muitos trabalhadores precários passaram durante o período da pandemia da COVID-19).
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Outro ponto que merece destaque é a importância que a escola tem para a formação de consensos e de sujeitos compatíveis com as demandas de acumulação do capital. É neste sentido que, a partir dos novos projetos e documentos oficiais da educação, o empreendedorismo vira conteúdo a ser desenvolvido em sala de aula. A contrarreforma neoliberal da educação traz a prática empreendedora para a educação básica no intuito de, desde cedo, formar indivíduos aptos para a instabilidade e a insegurança do atual contexto do mundo do trabalho. Num cenário em que empregos formais são cada vez mais escassos, apontar uma saída para a sobrevivência, ainda que ela passe pela informalidade e pela precarização, é um caminho justificável e compatível com a realidade vigente.
Neste contexto de crise, vale registrar o fato de que o empreendedorismo é um discurso neoliberal apresentado como solução para uma crise que o próprio neoliberalismo criou. O argumento que sustenta o discurso do empreendedorismo ser uma solução para uma série de problemas está ancorado na ideia de inovação, liberdade e modernização. No entanto, o que se observa é que essa inovação não representa tanta novidade, uma vez que retrocede a uma realidade em que não havia direitos nem proteção social para o trabalhador. A liberdade, como já destacado, é mais uma liberdade de mercado para os negócios do que para o próprio indivíduo.
Por fim, vale registrar que esta pesquisa sinalizou para um deslocamento do espírito empreendedor, tanto da classe dominante para a classe dominada quanto do mundo empresarial e dos cursos de administração para a educação básica. Tal deslocamento se dá a partir da precarização e da informalidade, buscando meios de conformar novas subjetividades a este novo cenário social. Neste sentido, não é exagero dizer que o empreendedorismo potencializa a alienação, aprofundando a fetichização da exploração ao ocultar do trabalhador a figura do patrão. Em outras palavras: é um mecanismo que mascara a exploração, estimula o trabalho intenso, oculta as causas sociais da desigualdade e ainda compromete a formação de uma organização social capaz de resistir aos ataques e ameaças do capital sobre o trabalho e os trabalhadores. Por conta disso, enquanto fenômeno crescente que tem se movimentado, o empreendedorismo deve ser identificado como um ponto e uma questão importantes dentro da atual dinâmica de luta de classes e precisa ser estudado e assumido como tal, tanto no plano individual quanto no plano da organização coletiva de associações e sindicatos cuja atuação precisa, com urgência,
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considerar a existência de uma nova morfologia do trabalho e da classe trabalhadora em suas estratégias de resistência e defesa de direitos.
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V.21, nº 44, 2023 (janeiro-abril) ISSN: 1808-799 X
Carlos Soares Barbosa2 Michelle Paranhos3
Resumo
Este artigo aborda a reformulação curricular do ensino médio na rede estadual de educação do Rio de Janeiro, que funcionou como laboratório das matrizes curriculares defendidas pela classe empresarial, no momento que precedeu a recente contrarreforma da educação básica, iniciada no âmbito nacional em 2016. Através da pesquisa documental, analisa os elementos de atualização e refuncionalização ideológica, materializados na ênfase conferida às competências socioemocionais e ao empreendedorismo juvenil na legislação e nos documentos normativos de políticas públicas educacionais.
Palavras-chave: Contrarreforma do ensino médio; Juventude; Empreendedorismo.
EL EMPRENDIMIENTO COMO PROYECTO DE VIDA JUVENIL EN LA EDUCACIÓN SECUNDARIA DE LA RED ESTATAL DE RIO DE JANEIRO
Resumen
El artículo aborda la reformulación curricular de la enseñanza media en la red estatal de educación de Río de Janeiro, que funcionó como laboratorio de las matrices curriculares defendidas por la clase empresarial, en el momento que precedió a la contrarreforma de la educación básica, iniciada en 2016. A partir de la investigación documental, analiza los elementos de actualización y refuncionalización ideológica, materializados en el énfasis dado a las habilidades socioemocionales y al emprendimiento juvenil en la legislación y en los documentos normativos de las políticas públicas educativas.
Palabras clave: Contrarreforma de la escuela secundaria; Juventud; Emprendimiento.
ENTREPRENEURSHIP AS A YOUTH LIFE PROJECT IN THE HIGH SCHOOL IN THE HIGH SCHOOL OF THE STATE NETWORK OF RIO DE JANEIRO
Abstract
This article addresses the curriculum reformulation of high school in the state education system of Rio de Janeiro, which functioned as a laboratory of the curricular matrices advocated by the business class, at the moment that preceded the recent counter-reform of basic education, initiated at the national level in 2016. Through documentary research, it analyzes the elements of ideological updating and refunctionalization, materialized in the emphasis given to socioemotional skills and youth entrepreneurship in legislation and normative documents of educational public policies.
Keyword: High School Counter-Reform; Youth; Entrepreneurship.
1 Artigo recebido em 10/02/2023. Primeira avaliação em 03/03/2023. Segunda avaliação em 14/03/2023. Aprovado em 28/03/2023. Publicado em 13/04/2023.
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v21i44.
2 Doutor em Políticas Públicas e Formação Humana (PPFH/UERJ). Professor da Faculdade de Educação e do PPGEdu/UERJ e do PPFH na Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ, Rio de Janeiro - Brasil.
E-mail: profcarlossoares@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/2894699059794517.
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4519-5174.
3 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas e Formação Humana na Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ, Rio de Janeiro – Brasil, e professora da Rede Municipal de Nova Iguaçu.
E-mail: michelle.paranhos@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/1353359456393515. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2360-5972.
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Este artigo busca apresentar algumas reflexões críticas acerca da reformulação curricular do ensino médio na rede estadual de educação do Rio de Janeiro, que, de acordo com a nossa análise, funcionou como uma “espécie” de laboratório da recente contrarreforma empresarial da educação básica em curso no Brasil desde 2016. Analisamos o processo pelo qual a ideologia empresarial se incorporou à educação pública do Rio de Janeiro, cuja ênfase recai sobre as competências socioemocionais e sobre o empreendedorismo, ganhando materialidade nos documentos normativos e nos convênios ou “parcerias” firmadas entre o poder público e empresas e/ou organizações empresariais. As reflexões aqui apresentadas constituem-se um recorte da pesquisa documental e empírica, em andamento, realizada pelo Grupo de Pesquisa Juventude, Trabalho, Educação e Políticas Públicas (JUVENTE).
A análise dos processos de reformulação curricular de qualquer etapa da educação escolar exige a compreensão da sua gênese como parte de processos sociais mais amplos, tendo em vista que o debate sobre o currículo é atravessado pelo conteúdo e pelos sentidos da educação, pelo tipo humano e de sociedade que se pretende constituir. Como observa Dermeval Saviani, o currículo de uma escola “não é outra coisa senão essa própria escola em pleno funcionamento, isto é, mobilizando todos os seus recursos, materiais e humanos, na direção do objetivo que é a razão de ser de sua existência: a educação das crianças e jovens” (SAVIANI, 2020).
Por essa perspectiva, o currículo diz respeito também aos conteúdos escolares, isto é, ao conhecimento sistematizado proveniente das ciências da natureza e humanas, das diversas linguagens, das artes ou das técnicas, permeado por relações de poder e se constituindo em um território de disputas entre diferentes projetos políticos e societários com vistas à hegemonia.
Em específico ao currículo do ensino médio, além da dimensão cognitiva, o debate abarca as questões referentes à identidade, finalidades e à contribuição social da última etapa da educação básica. Sobretudo após a perda do seu caráter tradicionalmente elitista, provocada pela progressiva democratização da educação pública no país, e que trouxe consigo a centralidade dos questionamentos em relação à dualidade e à fragmentação do ensino, bem como a exacerbação da tensão entre a
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perspectiva democratizante, que defende o direito à formação geral para todas as pessoas, e a posição seletiva, que defende a segmentação dos percursos escolares. Há um relativo consenso entre os distintos segmentos sociais sobre o imperativo de mudanças no Ensino Médio. De forma objetiva, o alto índice de evasão e reprovação já no 1º ano e os baixos resultados obtidos pelos concluintes nas avaliações de larga escala (nacionais4 e internacionais) reforçam a necessidade urgente de se repensar essa etapa escolar. Na perspectiva da classe trabalhadora, trata-se de garantir o acesso ao conhecimento e à educação de qualidade; na perspectiva do empresariado, a demanda é pela necessidade de maiores qualificações e controle da força de trabalho em função de “mercado de trabalho” em
transformação.
A urgência e a forma autoritária com que foi aprovada a atual contrarreforma do Ensino Médio (Lei n.º 13.415/2017) revelam não só o privilegiamento dos interesses do setor empresarial, mas também a importância estratégica da educação para a consolidação do projeto econômico, político e cultural neoconservador em execução a partir do golpe jurídico-midiático-parlamentar de 2016. É igualmente reveladora a incisiva mobilização do empresariado para a construção do consenso (ativo/passivo) em apoio à contrarreforma, conforme demonstraram Tarlau e Moeller (2020) em relação às estratégias mobilizadas pela Fundação Lemann.
Documentos normativos, legislações de âmbito nacional e estadual e relatórios produzidos pelas organizações empresariais e agências multilaterais nos dão alguns indícios dos reais interesses do empresariado para com a educação pública, tendo em vista a subsunção real do trabalho ao capital e os conflitos inerentes à relação capital e trabalho na sociedade capitalista. Neles é possível identificar a retomada do ideário que orientou a política educacional dos anos 1990, como a pedagogia das competências (RAMOS, 2006) e as pedagogias do “aprender a aprender” (DUARTE, 2001). Tais pedagogias ressurgem junto a elementos de atualização e refuncionalização ideológica5, representados na ênfase conferida à dimensão ‘socioemocional’ dos indivíduos e ao empreendedorismo.
4 Dados do IDEB-2017 revelaram que apenas 29% apresentaram nível de proficiência considerados satisfatórios em Língua Portuguesa e 9% em Matemática, e pouco mais de 3% conseguiram atingir a meta projetada de 4,4 (BRASIL, 2018a).
5 Através da ideia de refuncionalização ideológica buscamos evidenciar os movimentos pelos quais o capital constrói, incorpora e redefine a ideologia dominante na sua relação dialética com as
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Em um contexto de incertezas provocadas pelo crescimento do desemprego e a precarização do trabalho, pelo aprofundamento das medidas de austeridade neoliberais e o agravamento da questão social, o capital, por meio de um movimento de refuncionalização ideológica, busca adequar o modelo educacional e os currículos escolares à formação de trabalhadoras e trabalhadores “flexíveis”, adaptáveis à volatilidade do mercado, resilientes e empreendedores de si mesmos. Em outras palavras, trabalhadoras e trabalhadores preparados para arcar com as responsabilidades pelo seu futuro, sem a prerrogativa de quaisquer direitos ou proteções sociais oferecidas pelo Estado.
Essa é a lógica que vem orientando o fomento ao espírito empreendedor para a classe trabalhadora, se fazendo presente na matriz curricular de muitas escolas das redes públicas do país e buscando se consolidar como projeto de vida juvenil.
Com o objetivo de demonstrar as estratégias utilizadas na rede estadual de educação do Rio de Janeiro para disseminar, internalizar e naturalizar a ideologia empreendedora, o texto encontra-se estruturado em quatro tópicos. O primeiro, evidencia a reformulação curricular promovida pelo poder público e pela iniciativa privada no ensino médio da rede estadual do Rio de Janeiro, mediante os programas Dupla Escola e Solução Educacional, incorporados posteriormente ao Programa de Educação Integral, instituído em 2015. O segundo tópico se debruça sobre o conceito de empreendedorismo, enquanto os tópicos seguintes discorrem sobre a incorporação do empreendedorismo à educação pública, tanto nas políticas de âmbito nacional quanto no estado do Rio de Janeiro.
Florestan Fernandes (1975) já demonstrara a ação de cooperação entre a burguesia brasileira e a burguesia internacional na especificidade histórica do
transformações das relações sociais de produção. Em cada situação histórica, a dominação e a hegemonia constituem-se como processos dinâmicos, sempre provisórios, que requerem novas estratégias de coerção e de obtenção do consentimento das classes dominadas. No que remete ao campo educativo, esse processo se dá por meio da reiteração e da redefinição de noções – como competências, empreendedorismo, equidade, qualidade, capital humano – que buscam ajustar o discurso educacional e a formação das subjetividades ao contexto do bloco histórico neoliberal, marcado pelo desmonte das relações salariais, pela precarização do trabalho e da classe trabalhadora.
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capitalismo dependente. De acordo com o autor, a fim de manter sua posição de dominação internamente, frações da burguesia “se empenham em garantir as condições desejadas pelos parceiros externos, pois veem em seus fins um meio para atingir seus próprios fins” (FERNANDES, 1975, p. 54). Afirmar isso não significa que essas frações da burguesia brasileira sejam pouco poderosas, já que ao imperialismo interessa governos capazes de manter a estabilidade e burguesias locais aptas a estruturar a acumulação de capital em bases adequadas.
No que tange à contrarreforma do Ensino Médio, as articulações e ações de cooperação entre as frações do empresariado nacional e as prerrogativas e interesses das agências multilaterais (porta vozes da burguesia internacional, a exemplo do Banco Mundial, da OCDE e da Unesco) têm sido problematizadas por ampla literatura. Neste debate, interessa-nos analisar a atuação e a influência do segmento empresarial na política curricular da educação pública brasileira.
Sob o princípio de universalidade/particularidade e a partir dos marcos sociológicos estabelecidos por Florestan Fernandes – de colocar as relações sociais no centro da dinâmica capitalista –, constituímos a rede estadual de educação do Rio de Janeiro como particularidade histórica de análise, cujo início do “novo” Ensino Médio ocorreu em 2022, a despeito do Projeto de Lei n.º 4.642/2021 que intentou adiá- lo para 2024. Apesar de ter sido uma das últimas Unidades da Federação a implementar a Lei n.º 13.415/2017, antes de sua edição, algumas escolas da rede já vinham se constituindo em uma espécie de “laboratório” das matrizes curriculares defendidas pela classe empresarial, a partir das parcerias estabelecidas entre seus institutos e fundações e a Secretaria de Estado de Educação (SEEDUC-RJ).
Isto pode ser constatado por intermédio das parcerias público-privadas para a oferta do Ensino Médio Integrado à Educação Profissional possibilitadas pelo Programa Estadual de Parcerias Público-Privadas (PROPAR), criado no Governo Sérgio Cabral Filho, em 2007. Naquele mesmo ano ocorreu a primeira parceria firmada entre a SEEDUC-RJ e os grupos empresariais, por intermédio do Instituto Telemar (Oi Futuro), e que deu origem ao Núcleo Avançado em Educação (NAVE) no Colégio Estadual José Leite Lopes, para a oferta de cursos profissionalizantes de inovação na área das tecnologias digitais (MOEHLECKE, 2018).
No ano seguinte foi gestada a segunda parceria, desta vez com a Cooperativa Central de Produtores de Leite (CCPL) e o Grupo Pão de Açúcar, através do seu braço
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social, o Instituto Pão de Açúcar de Desenvolvimento Humano, dando origem ao Colégio Estadual Comendador Santos Diniz – Núcleo Avançado em Tecnologia de Alimentos e Gestão de Cooperativismo (NATA). O Programa Dupla Escola, lançado em 2012, nasceu dessas experiências e com a assinatura de convênios de parceria com outras empresas, entre elas a Thyssenkrupp CSA, a Procter & Gamble Industrial e Comércio Ltda (P&G) e a Companhia de Desenvolvimento Industrial do Estado do Rio de Janeiro (CODIN) (MOEHLECKE, 2018).
Ainda em 2012, a parceria instituída entre SEEDUC-RJ e o Instituto Ayrton Senna (IAS) deu origem ao Programa Solução Educacional para o Ensino Médio, implementado no ano seguinte no Colégio Estadual Chico Anysio (CECA) como unidade piloto. O Programa pauta-se nos princípios do Relatório Jacques Delors e na “matriz de competências para o século XXI” com a finalidade de levar os jovens a aprender a ser, viver, conviver e trabalhar num mundo cada vez mais complexo e superar os desafios do novo século” (INSTITUTO AYRTON SENNA, 2013).
Nesse contexto, além das competências cognitivas e comportamentais, reforça-se a necessidade de se desenvolver as chamadas competências socioemocionais (MAGALHÃES, 2021), sob o entendimento de que elas beneficiam os resultados socioeconômicos e o bem-estar de crianças e jovens.
Figura 1: Organograma da Matriz Curricular do Projeto Solução Educacional – Instituto Ayrton Sena – desenvolvido no Colégio Estadual Chico Anysio (CECA).
Fonte: INSTITUTO AYRTON SENNA, 2012, p. 43.
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Como se pode observar na Figura 1, o currículo do Programa Solução Educacional é constituído por dois macrocomponentes integrados: as áreas do conhecimento, formadas pelas disciplinas de base nacional comum; e o núcleo articulador, formado pelos componentes curriculares inovadores – Projeto de Vida, Estudos Orientados, Autogestão e Projeto de Intervenção e Pesquisa. As semelhanças com a organização curricular instituída pela Lei nº 13.415/2017, nesse caso, não são meras coincidências.
A expansão da matriz curricular do Solução Educacional para outras unidades escolares não tardou a acontecer, apesar dessas unidades não contarem com orientações pedagógicas próprias, estrutura física adequada e nem receberem o mesmo incremento financeiro que o CECA e as escolas participantes do Programa Dupla Escola. O primeiro passo para a expansão foi a instituição das Diretrizes Operacionais para a Organização Curricular do Ensino Médio na Rede Pública de Ensino, pelo Conselho Estadual de Educação do Rio de Janeiro (CEE-RJ), por meio da Deliberação CEE nº 344/ 2014 (RIO DE JANEIRO, 2014).
Na sequência, em 2015, os diferentes modelos curriculares implementados com a parceria privada passariam a compor o Programa de Educação Integral do Estado do Rio de Janeiro, conforme prevê o Decreto Estadual n.º 45.368, com o objetivo de promover “inovação e enriquecimento curricular com possível extensão de carga horária e oferta de componentes curriculares inovadores, com vistas ao desenvolvimento integral do aluno” (Art.2º) nas escolas de ensino fundamental e ensino médio (RIO DE JANEIRO, 2015, grifos nossos). O mesmo Decreto, nos Artigos 4º e 5º, garante a intervenção privada na educação pública ao estabelecer que a implantação do Programa Educação Integral se daria a partir de “convênios entre a SEEDUC e instituições públicas ou privadas”, “em contrapartida de incentivo tributário e financeiro” (RIO DE JANEIRO, 2015).
Vale destacar a concepção de educação integral e de formação plena prevista na Resolução SEEDUC n.º 5.424/2016.
Art. 2º - O Programa de Educação Integral compreende uma concepção contemporânea de educação que promove a formação plena do estudante, a partir do desenvolvimento de competências e habilidades que contemplam tanto aspectos cognitivos quanto socioemocionais (RIO DE JANEIRO, 2016, p. 1-2).
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Os programas Dupla Escola e Solução Educacional são as referências de “Educação Integral” na rede estadual, compreendido como “desenvolvimento cognitivo associado ao socioemocional, de maneira intencional e estruturada” (RIO DE JANEIRO, 2016, p. 6). Esta é a concepção defendida por Viviane Senna, presidenta do Instituto Ayrton Senna (IAS), para quem
A educação integral oferece possibilidades para o desenvolvimento de competências socioemocionais, como autoconfiança, determinação e tolerância ao estresse, dentre outras, que dão suporte a todos os indivíduos para o enfrentamento dos desafios do dia a dia” (SENNA, 2017, p. 1).
A concepção instrumental e pragmatista defendida por Senna e pelos apoiadores da contrarreforma encontra-se em total desacordo com a proposta do Ensino Médio Integrado à Educação Profissional ensejada pelo pensamento histórico- crítico, fundamentada na formação humana e integral, articulada sob os eixos do trabalho, da ciência, da tecnologia e da cultura6 (RAMOS, 2008).
A influência do IAS nas políticas educacionais do Rio de Janeiro é facilmente identificada na Resolução SEEDUC n.º 5.424/2016, não só por adotar a concepção de “educação integral” advogada pelo Instituto, mas também por elencar as mesmas competências previstas na sua “matriz de competências para o século XXI”, tais como: autonomia, colaboração, comunicação, liderança, gestão da informação, gestão de processos, criatividade, resolução de problemas, pensamento crítico e curiosidade investigativa.
No entendimento do IAS, competências socioemocionais são
capacidades individuais que se manifestam nos modos de pensar, sentir e nos comportamentos ou atitudes para se relacionar consigo mesmo e com os outros, estabelecer objetivos, tomar decisões e enfrentar situações adversas ou novas. Elas podem ser observadas em nosso padrão costumeiro de ação e reação frente a estímulos de ordem pessoal e social. Na prática, isso significa preparar crianças e jovens para que, munidos dessas e de outras competências, consigam se posicionar de maneira crítica, responsável, criativa, colaborativa, autônoma, resiliente e solidária (INSTITUTO AYRTON SENNA, 2023).
Na visão do Instituto, como vimos acima, “na prática, isso significa preparar crianças e jovens para que, munidos dessas e de outras competências, consigam se
6 Apesar de o Art. 10 da Resolução SEEDUC nº 5424/2016 indicar que o Ensino Médio Integrado à Educação Profissional contempla “as dimensões indissociáveis do eixo Trabalho, Ciência, Tecnologia e Cultura” trata-se apenas de uma menção formal às DCNEMs de 2012, em vigor naquele momento, já que o teor dos demais artigos da Resolução contradiz o citado Artigo.
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posicionar de maneira crítica, responsável, criativa, colaborativa, autônoma, resiliente e solidária” (SENNA, 2017).
Ao definir o conceito e as bases para a implementação do Programa de Educação Integral, a Resolução SEEDUC n.º 5.424/2016 estabelece o modelo pedagógico necessário para a formação plena do/da estudante, viabilizado por meio das chamadas “estratégias de inovação”, entre elas, “Organização Curricular Integrada e Flexível” (adaptável a diferentes arranjos curriculares); “Metodologias Integradoras” e “Protagonismo Juvenil”. Ou seja, as mesmas “estratégias de inovação” previstas no Programa Solução Educacional do IAS e ancoradas na particularização, individualização do ensino e nas pedagogias do “aprender a aprender”.
De acordo com Newton Duarte (2001), o lema “aprender a aprender” sustenta- se a partir de quatro posicionamentos valorativos que não podem ser separados, a saber: a ideia de que aprender de forma individualizada contribuiria para a “autonomia” dos alunos e alunas, diferentemente da aprendizagem por um processo de transmissão, que seria entendida como obstáculo à “autonomia”; o método pelo qual os estudantes adquirem, elaboram e constroem os conhecimentos é mais importante do que a aprendizagem produzida socialmente; a atividade educativa “deve ser impulsionada e dirigida pelos interesses e necessidades” dos próprios alunos e alunas (DUARTE, 2001, p. 37), e que a educação deve preparar os indivíduos para uma sociedade em constante transformação, na qual os conhecimentos são cada vez mais provisórios.
Esse é o significado do protagonismo juvenil e da identificação dos estudantes como “gestores de sua aprendizagem e de seus projetos de futuro”, sob a justificativa de reconhecimento das suas singularidades e identidades. Ao mesmo tempo, Projeto de Vida passa a ser um componente curricular estruturante nos diferentes arranjos implantados pela SEEDUC-RJ em parceria com segmento empresarial, com o objetivo de:
promover o autoconhecimento dos estudantes sobre suas identidades e sobre o que desejam para seus futuros, preparando-os para fazer escolhas, a partir do processo de conscientização sobre as relações que estabelecem consigo mesmos, com o outro, com o mundo e com os saberes (ESTADO DO RIO DE JANEIRO, 2016, p. 6).
De acordo com a cartilha “reformista”, vale lembrar, o objetivo a ser perseguido pelos novos arranjos curriculares é levar os jovens a aprender a viver, a trabalhar num
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mundo cada vez mais complexo e superar os desafios do século XXI. Certamente, o desemprego, subemprego e o trabalho precário são alguns dos desafios no atual estágio de capitalismo improdutivo financeiro-rentista, agravado pela intensificação da agenda ultraneoliberal. E mais uma vez o capital recorre a estratégia de transferir para os trabalhadores e trabalhadoras a responsabilidade da “resolução do problema”.
É nesse contexto de refortalecimento dos princípios neoliberais do individualismo, da meritocracia e da responsabilização que o empreendedorismo vem ganhando terreno e substituindo a noção de empregabilidade, transferindo para os indivíduos as responsabilidades pela sua própria preparação para o mercado e ocasionando a perda do emprego como referência. Assim, sob a dinâmica do Estado educador (GRAMSCI, 2006), a educação empreendedora se configura como estratégia para a conformação dos trabalhadores e trabalhadoras como “empreendedores de si” (DARDOT; LAVAL, 2016), contribuindo para o apassivamento dos conflitos sociais e o enfraquecimento dos laços de solidariedade social. Como bem expõem Lamarão e Lamosa (2022, p. 3, 4),
Para a grave crise orgânica que enfrentamos, recomenda-se a “educação financeira”; para a profunda falta de perspectiva, receita-se “projeto de vida”; para o desemprego estrutural, manipula-se “itinerários formativos”; a resistência dá lugar a resiliência, ao passo que a solidariedade é subsumida ao colaboracionismo; não se trata mais de transformar, mas de empreender; o desemprego estrutural é explicado pela empregabilidade individual e não pelos determinantes do próprio processo de reprodução ampliada do capital, etc.
Esse projeto educacional reformista e empresarial adquire maior celeridade após golpe jurídico-midiático-parlamentar de 31 de agosto de 2016 – consolidado com impeachment da presidenta Dilma Rousseff (PT) e a chegada de Michel Temer (PMDB) à presidência da República. A mudança da conjuntura política afetou diretamente a política educacional. Com o retorno da coligação DEM-PSDB ao Ministério da Educação (MEC), o governo federal retomou a linha reta e célere em direção à “reforma” empresarial. Com isso, o Projeto de Lei nº 6.840/2013, elaborado pela Comissão Especial liderada pelo deputado Reginaldo Lopes (PT-MG), que visava a reformulação do ensino médio e tramitava no Congresso Nacional, foi reeditado às pressas e instituído na forma da Medida Provisória nº 746, de 22 de setembro de 2016 (FREITAS, 2018).
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O processo de elaboração da BNCC que se encontrava em curso desde 2015 também foi reorientado, assumindo abertamente as teses dos “reformadores” da educação (FREITAS, 2018). Essa reorientação pode ser observada nas mudanças realizadas da segunda versão do documento, publicada em maio de 2016, e a sua versão final, na qual os direitos de aprendizagem foram substituídos pelas competências, que juntamente à educação integral passaram a se constituir nos fundamentos pedagógicos da Base.
É nesse contexto e sob essa perspectiva que se deu a criação do Ensino Médio de Tempo Integral com Ênfase em Empreendedorismo Aplicado ao Mundo do Trabalho na rede estadual do Rio de Janeiro, em 2017. Antes de analisar a direção ético-política do curso e a incorporação do empreendedorismo pelas políticas públicas educacionais, faz-se necessário identificar como ele é compreendido pelo pensamento (neo)liberal e pelos seus críticos.
O empreendedorismo tem origem no termo francês entrepreneur, que significa aquele que assume riscos e começa algo novo (CHIAVENATO, 2012). Essa é a concepção predominante vinculada ao pensamento liberal, tendo por base as ideias do economista austríaco Joseph Schumpeter (1961). Para ele, o empresário é a pessoa que reúne a capacidade de produzir, de gerir e assumir riscos, daí considerar que a ação empreendedora dos empresários era o que possibilita o desenvolvimento econômico. Ao serem movidos pelo que denomina de “destruição criativa”, destroem o velho e criam novos produtos, novos métodos de produção e novos mercados.
Por influência do referido teórico austríaco, é recorrente na literatura do campo da economia neoclássica e da administração a compreensão do empreendedorismo como o motor do desenvolvimento econômico e agente da inovação, recorrentemente associado à descoberta de novas oportunidades. Para Baggio e Baggio (2014, p. 26),
O empreendedorismo pode ser compreendido como a arte de fazer acontecer com criatividade e motivação. Consiste no prazer de realizar com sinergismo e inovação qualquer projeto pessoal ou organizacional, em desafio permanente às oportunidades e riscos. É assumir um comportamento proativo diante de questões que precisam ser resolvidas. O empreendedorismo é o despertar do indivíduo para o aproveitamento integral de suas potencialidades racionais e
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intuitivas. É a busca do autoconhecimento em processo de aprendizado permanente, em atitude de abertura para novas experiências e novos paradigmas.
Em síntese, no pensamento (neo)liberal “o empreendedorismo pode ser compreendido como a arte de fazer acontecer com criatividade e motivação”. Ou ainda, trata-se de “assumir um comportamento proativo diante de questões que precisam ser resolvidas” (BAGGIO, BAGGIO, 2014, p. 26).
Enquanto na teoria schumpteriana o ato de empreender se delimitava a um grupo específico, representado pelos empresários, por possuírem as condições para praticar a inovação – capital e/ou acesso à créditos –, com a mudança na base produtiva promovida pela microeletrônica e a automação em meados da década de 1970, o fomento ao espírito empreendedor foi gradativamente sendo deslocado para a classe trabalhadora, adquirindo um papel ideológico que vem ganhando cada vez espaço nesse início de século – produto do atual estágio do desenvolvimento das forças produtivas das relações capitalistas.
A importância da construção da cultura empreendedora pode ser mensurada na recomendação feita pela Unesco para a inclusão no Relatório Jaques Delors do quinto pilar para a educação do século XXI: o "aprender a empreender". A expectativa com isso é de que as escolas contribuam para
o desenvolvimento de uma atitude mais proativa e inovadora, fazendo propostas e tomando iniciativas. As aprendizagens têm de capacitar cada pessoa a construir seu projeto de vida e orientar a ação das instituições educativas para que isto seja possível (UNESCO, 2000, p. 14).
Em oposição a essa concepção (neo)liberal encontram-se os teóricos vinculados ao pensamento histórico-crítico. Embora sejam poucos os estudos críticos sobre o empreendedorismo, eles tratam da relação entre empreendedorismo, neoliberalismo e crescimento da pobreza e da desigualdade, além de questionar o significado que lhe é atribuído e a quem de fato interessa.
De um modo geral, a crítica dirigida pelo pensamento histórico-crítico à concepção (neo)liberal de empreendedorismo é a de não problematizar a desigual apropriação da propriedade e das condições para se empreender, como se tratasse somente da capacidade de inovar e de criar. Essa concepção, ao desconsiderar as lutas de classes e os antagonismos entre capital e trabalho na sociedade capitalista
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acaba por afirmar um conceito a-histórico de empreendedorismo, não sendo “necessárias transformações sociais muito profundas, já que os problemas ocasionados pelas mudanças que o capitalismo vem passando seriam solúveis via o empreendedorismo” (DIAS, 2019, p. 23).
Com efeito, a visão sobre o empreendedorismo se reconfigura à medida que mudam as exigências para a reprodução do capital e para a manutenção da hegemonia burguesa. Para Ferraz e Ferraz (2022), o exército de sobrantes gerado pela reestruturação produtiva produziu o deslocamento do espírito capitalista à ideologia do empreendedorismo e, consequentemente, o deslocamento do espírito empreendedor/inovador para a classe trabalhadora, antes atrelado ao empresário/capitalista. No contexto do desemprego estrutural, o empreendedorismo passou a ser “um meio eficiente de garantir a sobrevida ao modo de produção capitalista” e de manter a hegemonia burguesa (FERRAZ, FERRAZ, 2022, p. 112). Essa é a sua funcionalidade.
Assim, para o pensamento histórico-crítico, o empreendedorismo consiste em uma das formas de trabalho precarizado, cuja extração da mais-valia ocorre sem que haja necessariamente a figura do patrão. A ideologia empreendedora atua, assim, para difundir a crença de que todos têm as mesmas condições de competição no mercado; de que “o trabalhador (potencial empresário) munido apenas de sua força de trabalho, de parcos meios de trabalho e de, no máximo, alguns atributos pessoais, deva, nesta arena, competir com os detentores do grande capital” (TAVARES, 2002, p. 78). Por essa perspectiva, o não sucesso/fracasso é resultado tão somente do não esforço, empenho, dedicação e/ou falta de um planejamento consistente.
A ideologia do empreendedorismo atua ainda no intuito de conformar e ocultar a expropriação que há na relação social capital-trabalho, servindo para esmaecer a luta de classe ao conceber o “empreendedor como um indivíduo que se coloca acima da questão de classe – de ser um trabalhador, ou de ser um capitalista” (VALENTIM; PERUZZO, 2017, p. 117). No entanto, como salienta Ferraz e Ferraz (2022, p. 111), “a ausência de uma relação de personificação clássica entre trabalho-capital não reduz as intensas jornadas de trabalho, a condição precária da vida e trabalho e seu pertencimento à classe cuja única propriedade é a capacidade de trabalho.”
Entretanto, não se pode secundarizar os efeitos do desemprego e da degradação das condições de existência sobre a subjetividade humana. No Rio de
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Janeiro, a taxa de desemprego aumentou significativamente em decorrência da crise econômica e fiscal experimentada pelo Estado a partir de 2016, levando-o a apresentar uma taxa superior à média nacional.
De acordo com a pesquisa da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (Fecomercio) de 2019, no terceiro trimestre de 2018, o índice de desemprego fluminense chegou a 14,6%, após sucessivos aumentos (INSTITUTO FECOMERCIO DE PESQUISAS E ANÁLISES, 2019). Tal realidade se agravou com a pandemia da Covid-19, pois em 2021 o Estado do Rio de Janeiro apresentava a pior taxa de desemprego da região Sudeste, conforme dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) publicados no portal de notícias do G1 (RJ TEM..., 2021). No primeiro trimestre de 2022, o Rio apresentava a terceira maior taxa de desemprego do país, sendo sentida de forma mais intensa pela juventude fluminense, de 18 a 24 anos. Em contextos de refluxo de postos de trabalho, os jovens são os que mais experienciam a dificuldade em conseguir emprego, encontrando na informalidade a forma de garantir a produção/reprodução da vida.
São nessas condições objetivas de redução dos postos de trabalho e da crescente expropriação de direitos que a ideologia do empreendedorismo e o discurso da meritocracia têm conformado a subjetividade de frações dos trabalhadores. E a escola enquanto aparelho privado de hegemonia tem sido utilizada para isso.
Com efeito, o empreendedorismo juvenil vem sendo estimulado desde a década de 1990 por distintas organizações da sociedade civil – momento em que a atuação dessas organizações avançou significativamente na área educacional, em decorrência dos processos de desregulamentação e descentralização viabilizados pela reforma do aparelho do Estado e pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei n.º 9.394/1996), aprovada em pleno contexto de implementação da agenda neoliberal no Brasil.
Um dos campos de atuação de distintas organizações sociais em parceria com o governo federal para a formação de jovens trabalhadores foram os cursos de qualificação profissional executados no âmbito do Plano Nacional de Qualificação do Trabalhador (PLANFOR), durante o Governo Fernando Henrique Cardoso (1995-
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2002), e do Plano Nacional de Qualificação (PNQ), durante os Governos Lula da Silva (2003-2010) e Dilma Rousseff (2011-2016). Pesquisas da época, como a de Barbosa e Deluiz (2008), mostraram que nesses cursos destinados aos trabalhadores com pouca escolaridade e baixa renda o empreendedorismo era apresentado como “a” solução para o problema do desemprego, tratado como um fenômeno de ordem individual e não como resultado do projeto político neoliberal em execução, caracterizado pela privatização e pelo processo de desresponsabilização do Estado com a área social.
Mas se inicialmente o empreendedorismo juvenil foi estimulado majoritariamente nas ações educativas realizadas nos chamados espaços não- escolares, no decorrer do novo milênio passou a ganhar institucionalidade, conquistando espaço dentro da educação pública. Assim, à medida que avança o processo de privatização da educação pública altera-se o discurso sobre o papel da escola frente ao crescimento do desemprego e da desigualdade social. Enquanto desenvolvimento de competências para a empregabilidade foi uma das ideias centrais da reforma educacional da década de 1990, o empreendedorismo passou a ser a proposta privilegiada para a (con)formação dos jovens trabalhadores nas primeiras décadas do século XXI, tornando-se a estratégia do capital diante do agravamento do desemprego estrutural.
Face às mudanças no mundo do trabalho provocadas pela reestruturação produtiva, o perfil do trabalhador(a) demandado pelo regime de acumulação flexível primava pelo trabalhador polivalente, empenhado a colaborar com o sucesso da empresa, facilmente contratado e demitido, conformado a não ter direitos e adaptável às oscilações do mercado e às mudanças da vida. Para isso, além das competências técnicas (privilegiadas na era fordista) fazia-se necessário também o desenvolvimento de:
[...] competências organizacionais (capacidade de autoplanejar-se, auto-organizar-se, de gerenciar seu tempo e espaço de trabalho), competências comunicativas (capacidade de expressão e comunicação, de cooperação, trabalho em equipe, diálogo, exercício da negociação), competências sociais (capacidade de transferir conhecimentos da vida cotidiana para o ambiente de trabalho e vice- versa) e competências comportamentais (iniciativa, criatividade, vontade de aprender, abertura às mudanças, consciência da qualidade e das implicações éticas do seu trabalho) (DELUIZ, 2004, p. 75).
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Porém, num contexto de tamanha incerteza, volatilidade e indeterminação o desenvolvimento de tais competências já não é suficiente. Para as classes empresariais torna-se igualmente importante que as pessoas saibam lidar com suas próprias emoções durante momentos difíceis e busquem estratégias e caminhos com vistas à resolução dos problemas cotidianos. Assim, o empresariado, por meio de seus institutos e fundações e organizado em movimentos como Todos Pela Educação, defende que as escolas se voltem para o desenvolvimento de “competências socioemocionais”, agora não mais sob a promessa discursiva da empregabilidade e sim de vir a ser um empreendedor de si. Essa á e lógica que orienta a contrarreforma do Ensino Médio, na qual o empreendedorismo se ergue como um dos quatro eixos estruturantes dos itinerários formativos, junto com investigação científica, processos criativos e mediação e intervenção cultural, conforme prevê a Resolução CNE/CEB nº 3/2018.
Na rede estadual de educação, o fomento a cultura empreendedora ocorre por meio de diferentes ações, seja de forma direta ou indireta, através de cursos e programas voltados à essa finalidade e componentes curriculares como o Projeto de vida, sendo viabilizado pela parceria entre a SEEDUC-RJ e as organizações privadas. O Projeto Trilha Empreendedora é um exemplo dessas iniciativas, desenvolvido desde 2014 em parceria com a ONG Junior Achievement (J.A). Fundada nos Estados Unidos em 1919, se autodescreve como “a maior e mais antiga organização de educação prática em negócios, econômica e empreendedorismo do mundo” (J.A, [2022], s/p) com atuação em 120 países. No Brasil está presente em todas as Unidades da Federação e no Distrito Federal, tendo sido a filial do Rio de Janeiro fundada em 1999, sob a liderança de Marcelo Carvalho, da Ancar Ivanhoe – uma das
maiores empresas de shopping centers do Brasil.
O Projeto Trilha Empreendedora é viabilizado pelo investimento e participação de voluntários de empresas de diversos setores, como a Fundação Casas Bahia, a Michelin e empresas do setor de óleo e gás associadas ao Instituto Brasileiro de
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Petróleo, Gás e Biocombustíveis (IBP). Todas “unidas em prol da educação” (J.A, 2020, s/p).
O projeto se desenvolve por meio da aplicação de uma sequência de programas sobre empreendedorismo no currículo do Ensino Médio, além de oferecer a metodologia, o material didático dos alunos, a capacitação dos professores da rede e dos voluntários das empresas parceiras que irão aplicar a sequência de programas em sala de aula. Entre os programas trabalhados estão: “As vantagens de permanecer na escola”; “Conectado com o amanhã”; “Vamos falar de ética”; “As habilidades para o sucesso”; “Meu dinheiro, meu negócio”; “Liderança comunitária” e “Miniempresa”.
Conforme divulgado no sítio eletrônico da ONG, em 2021 o Trilha Empreendedora foi implementado em 80 escolas de 19 municípios do estado; ao passo que em 2022 o Programa já constava em 120 escolas de 39 municípios. De 2014 a 2022 foram atendidos 300 mil estudantes ao total (SILVA, BARBOSA, 2022).
Todavia, uma das principais estratégias acionadas pelo governo do estado do Rio de Janeiro para estimular a cultura empreendedora é o Ensino Médio de Tempo Integral (EMTI) com Ênfase em Empreendedorismo, instituído pela Resolução SEEDUC n.º 5.508/2017. Foi implantado em parceria com o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE), com o intuito de “oferecer ao jovem a oportunidade de construção de competências, atitudes e valores, demandas contemporâneas indispensáveis ao trabalho, ao convívio e ao aprendizado permanente”, segundo o Art. 1º da Resolução (RIO DE JANEIRO, 2017). Em 2018, foi transformado em Curso de Administração com Ênfase em Empreendedorismo e estendido para 151 escolas (RIO DE JANEIRO, 2018).
Fundamentando-se na pedagogia das competências e habilidades, o curso objetiva “articular, mobilizar e colocar em ação conhecimentos, habilidades, atitudes, valores e emoções, necessários para responder de maneira original e criativa a desafios, requeridos pela prática social do cidadão e pelo mundo do trabalho”. Entretanto, considerando o atual contexto brasileiro de elevado índice de desemprego juvenil, de ataque aos direitos sociais e de hegemonia do capitalismo financeiro- rentista e improdutivo, qual o real significado de “responder de maneira original e criativa a desafios requeridos pelo mundo do trabalho”? Significaria conformar os jovens para a naturalização do desemprego e a (quase) ausência de uma política de
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geração de trabalho e renda, levando-os a buscar alternativas no mercado por sua conta e risco?
De acordo com a Resolução n.º 5.508/2017, criatividade é buscar “soluções e alcançar objetivos através da percepção e aproveitamento de oportunidades” (RIO DE JANEIRO, 2017). Nesse sentido, é bastante sintomático o vídeo produzido pela SEEDUC-RJ e veiculado no seu canal do Youtube, na internet. A propaganda mostra um jovem que a partir do curso e com a ajuda financeira inicial dos pais começou a vender gelo de sabor. Em um certo momento o pai do jovem relata: “desde que ele começou a empreender ele não me pede mais nada, paga as contas sozinho e está indo bem” (APÓS AS AULAS, 2022).
Por meio do vídeo é possível compreender o tipo de criatividade e inovação que a formação empreendedora busca estimular, qual seja, atitudes necessárias para que os jovens sejam capazes de identificar e aproveitar os nichos promissores no conjunto do chamado trabalho simples. Isto requer a mobilização de saberes cognitivos e socioemocionais que as escolas devem considerar, tais como, iniciativa, liderança, curiosidade investigativa e pensamento crítico. Para o SEBRAE, para se empreender é preciso que os indivíduos tenham criatividade e capacidade de idealizar e colocar projetos em prática, somado a iniciativa, liderança, perseverança, disposição para correr riscos calculados, eficiência e capacidade de planejamento e organização. O desenvolvimento desses saberes coloca em ação o sentido do protagonismo juvenil presente nos discursos e documentos governamentais, das organizações empresariais e dos organismos internacionais: ser protagonista é ser empreendedor.
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Tabela 1: Matriz Curricular do EMTI com Ênfase no Empreendedorismo
Fonte: Rio de Janeiro, 2017.
Seguindo a organização curricular defendida pelo Instituto Ayrton Senna, a matriz curricular do EMTI com Ênfase em Empreendedorismo também se estrutura em dois macrocampos, conforme se observa na figura acima, extraída do Anexo V da Resolução n.º 5.586/2017 (RIO DE JANEIRO, 2017b).
Como verificamos na Tabela 1, Projeto de Vida aparece como componente curricular em todos os anos do curso, o que também ocorre nos arranjos curriculares implementados em parceria com organizações privadas. Nessas matrizes, o Projeto de Vida se constitui em uma das formas de incorporação do empreendedorismo ao currículo do Ensino Médio da rede estadual.
Conforme se observa na Tabela 2, na nova matriz instituída para atender as determinações da Lei nº 13.415/2017, o Projeto de Vida aparece como componente curricular obrigatório nos três anos do Ensino Médio e apresenta carga horária maior que as disciplinas que compõem a BNCC – Filosofia, Sociologia, História, Geografia, Biologia, Química, Física, Educação Física e Arte.
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Tabela 2: Grade de carga horária de disciplinas em escolas com o Novo Ensino Médio.
MATRIZ CURRICULAR - NOVO ENSINO MÉDIO | ||||||||
ÁREA DE CONHECIMENTO | COMPONENTE CURRICULAR | CARGA HORÁRIA SEMANAL | CARGA HORÁRIA ANUAL | TOTAL | ||||
SÉRIE | SÉRIE | |||||||
1ª | 2ª | 3ª | 1ª | 2ª | 3ª | |||
CIÊNCIAS DA NATUREZA E SUAS TECNOLOGIAS | BIOLOGIA | 2 | 2 | 0 | 80 | 80 | 0 | 160 |
FÍSICA | 2 | 2 | 0 | 80 | 80 | 0 | 160 | |
QUÍMICA | 2 | 2 | 0 | 80 | 80 | 0 | 160 | |
MATEMÁTICA E SUAS TECNOLOGIAS | MATEMÁTICA | 4 | 3 | 3 | 160 | 120 | 120 | 400 |
CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS APLICADAS | FILOSOFIA | 2 | 0 | 0 | 80 | 0 | 0 | 80 |
GEOGRAFIA | 2 | 2 | 0 | 80 | 80 | 0 | 160 | |
HISTÓRIA | 2 | 2 | 0 | 80 | 80 | 0 | 160 | |
LINGUAGENS E SUAS TECNOLOGIAS | ARTE | 0 | 2 | 0 | 0 | 80 | 0 | 80 |
EDUCAÇÃO FÍSICA | 2 | 0 | 2 | 80 | 0 | 80 | 160 | |
LÍNGUA PORTUGUESA/LITERATURA | 4 | 3 | 3 | 160 | 120 | 120 | 400 | |
LÍNGUA INGLESA | 2 | 0 | 2 | 80 | 0 | 80 | 160 | |
CARGA HORÁRIA BNCC | 24 | 18 | 12 | 960 | 720 | 480 | 2160 | |
ITINERÁRIO FORMATIVO | ELETIVA 1 - ENSINO RELIGIOSO/ REFORÇO ESCOLAR | 1 | 1 | 1 | 40 | 40 | 40 | 120 |
ELETIVA 2 - ESTUDOS ORIENTADOS/ LÍNGUA ESPANHOLA | 1 | 1 | 1 | 40 | 40 | 40 | 120 | |
ELETIVA 3 - X/Y (CATÁLOGO) | 2 | 2 | 2 | 80 | 80 | 80 | 240 | |
PROJETO DE VIDA | 2 | 2 | 2 | 80 | 80 | 80 | 240 | |
COMPONENTE DA ÁREA 1 | 0 | 2 | 4 | 0 | 80 | 160 | 240 | |
COMPONENTE DA ÁREA 2 | 0 | 2 | 4 | 0 | 80 | 160 | 240 | |
COMPONENTE DA ÁREA 3 | 0 | 2 | 4 | 0 | 80 | 160 | 240 | |
CARGA HORÁRIA ITINERÁRIO FORMATIVO | 6 | 12 | 18 | 240 | 480 | 720 | 1440 | |
CARGA HORÁRIA TOTAL | 30 | 30 | 30 | 1200 | 1200 | 120 0 | 3600 |
Fonte: Rio de Janeiro, 2022a.
Reduz-se a carga horária destinada aos fundamentos dos diferentes campos científicos para privilegiar componentes que, sob o argumento de “orientar e ajudar os jovens a entender suas aspirações” (BRASIL, 2017), na prática visa a conformar os jovens às novas relações flexíveis de trabalho e às novas formas de controle e gestão do trabalho, a exemplo da uberização (ABÍLIO, 2019). Além de naturalizar a inserção precária no mercado de trabalho, o empreendedorismo vem se configurando na “forma de absorver os diplomados e os que por algum motivo não conseguem se colocar no mercado de trabalho”, como afirma um consultor empresarial do Sebrae (MONTENEGRO, s/a; s/p.).
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A prioridade conferida à formação de jovens empreendedores por parte da SEEDUC-RJ pode ser mensurada pela oferta do Curso Formação de Professores em Empreendedorismo e Gestão para o Ensino Médio, em nível de Pós-Graduação Lato Sensu. Desenvolvido em parceria com a Universidade Federal Fluminense (UFF), o curso foi oferecido aos professores das 93 escolas integrantes do Programa de Fomento às Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral (EMTI). O que nos leva a deduzir que o empreendedorismo é uma das formações priorizadas para a expansão do EMTI no estado, a fim de atender a Meta 6 do PNE (2014-2024).
Seguindo a mesma a lógica defendida pelo Sebrae (2019, s/p.), de que “a ideia é despertar os sonhos e abrir perspectivas para jovens estudantes de escolas públicas em situação de vulnerabilidade social”, na prática, o empreendedorismo converte-se para a grande maioria das pessoas em um convite ao trabalho informal e precário, totalmente desprotegido dos direitos sociais (FRIGOTTO, 2011). Por essa perspectiva, a criatividade estimulada na formação não é orientada para a possibilidade de inventar outros mundos, onde prevaleça a justiça social e não haja a exploração do trabalho pelo capital. Enfim, um mundo onde não haja, na expressão de Gramsci, os “mamíferos de luxo”.
Ao que aqui foi exposto, parece-nos claro que nos projetos de futuro elaborados pela classe empresarial para os jovens das classes trabalhadoras não há espaço para a ciência e o pensamento crítico. Ao contrário, anseiam por jovens que além de naturalizarem os valores e princípios neoliberais, como individualismo, competitividade e meritocracia, estejam preparados socioemocionalmente para lidarem com as frustrações e adversidades da vida e prontos para as novas exigências requeridas pelo mercado de trabalho.
Isto impõe o esvaziamento da dimensão política, da pedagogia crítica e do conteúdo escolar, considerado excessivamente teórico e sem muita correspondência com a vida prática. Em vez de um trabalhador que questione as precárias condições objetivas e subjetivas de reprodução de vida, anseia-se pela formação de um indivíduo
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adaptável às imprevisibilidades e às constantes mudanças, que saiba resolver seus problemas e controlar suas emoções.
Sendo assim, estimular o empreendedorismo e conter o acesso dos setores populares ao ensino superior público são faces de uma mesma moeda, visto que a prioridade volta a ser conferida para a formação técnica e profissional, justificada pela demanda de mão de obra técnica existente no país. Essa é a histórica reivindicação do segmento empresarial e com forte ressonância dentro no MEC. Cabe recordar a declaração de Milton Ribeiro, quarto Ministro da Educação no Governo Bolsonaro, de que “a universidade, na verdade, deveria ser para poucos, nesse sentido de ser útil para todos”, concluindo que os Institutos Federais de ensino técnico são os verdadeiros protagonistas no futuro, capazes de formar técnicos, pois “hoje o que falta e demanda é mão de obra técnica” (TENENTE, 2021).
Por trás do discurso de um “novo” Ensino Médio, portanto, prevalecem interesses antigos, que é o de favorecer o capital privado através das parcerias público-privadas e conduzir os jovens das classes trabalhadoras à uma (con)formação adequada aos interesses do mercado e do capital, além de convencê-los de que o desemprego, o subemprego e precarização da vida são fenômenos de ordem individual. Sendo assim, na concepção dos apoiadores da contrarreforma, a prioridade da última etapa da educação básica deve ser a de conduzir os jovens a mobilizar conhecimentos para resolução dos problemas de ordem prática, da vida cotidiana, produzidos pela própria dinâmica do capital, no seu apetite voraz de acumulação da riqueza por meio de intensa e de novas formas de extração da mais valia.
A partir do que foi apresentado, a formação em empreendedorismo é a formação necessária para o exército de sobrantes do trabalho formal produzido pelo capitalismo financeiro globalizado. Além de ser uma formação que demanda baixo investimento cumpre uma função ideológica, qual seja: (a) impedir o desvelamento das causas estruturais do desemprego, fortalecendo a compreensão do desemprego e dos problemas sociais como questões de ordem individual; (b) fortalecer a ideia de que o sucesso ou fracasso é uma questão de esforço e mérito; (c) naturalizar a desresponsabilização do Estado com as políticas sociais e a garantia dos direitos; (e) camuflar os antagonismos entre capital e trabalho na medida em que induz o trabalhador a se identificar como um investidor/empresário ou como um trabalhador
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possuidor de maior autonomia e liberdade/flexibilidade para gerenciar seu tempo de lazer e trabalho.
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V.21, nº 44, 2023 (janeiro-abril) ISSN: 1808-799 X
Maria Amélia Dalvi2 Victor Gagno Grillo3
Resumo
O artigo apresenta o tema da uberização do trabalho, a partir do filme Você não estava aqui, de Ken Loach. A análise, inspirada no materialismo histórico, permite compreender a uberização como uma nova estratégia para exploração humana e acumulação de capital, na sociedade marcada pela divisão social em classes antagônicas. O estudo permite concluir que a precarização do trabalho, para além do âmbito econômico, prejudica a estrutura afetiva e relacional dos sujeitos; o cinema, a despeito de suas contradições, pode atuar no desvelamento crítico do processo.
Palavra-chave: Uberização; Cinema; Formação Humana.
LA UBERIZACIÓN DEL TRABAJO EN LO SIENTO, TE EXTRAÑAMOS, DE KEN LOACH: PROBLEMATIZACIÓN DE LA RELACIÓN CINE Y FORMACIÓN HUMANA
Resumen
El artículo presenta el tema de la uberización del trabajo, con base en la película Lo siento, te extrañamos, de Ken Loach. El análisis, inspirado en el materialismo histórico, permite comprender la uberización como una nueva estrategia para la explotación y acumulación de capital, en una sociedad marcada por la división social en clases antagónicas. El estudio nos permite concluir que la precariedad laboral, más allá del ámbito económico, daña la estructura afectiva y relacional de los sujetos; el cine, a pesar de sus contradicciones, puede actuar en el desvelamiento crítico del proceso.
Palabras clave: Trabajo; Uberización; Cine; Formación Humana.
THE UBERIZATION OF WORK IN SORRY, WE MISSED YOU, BY KEN LOACH: PROBLEMAZING THE RELATIONSHIP CINEMA AND HUMAN EDUCATION
Abstract
The article presents the theme of the uberization of work, based on the movie Você não estava aqui, by Ken Loach. The analysis, inspired by historical materialism, allows us to understand uberization as a new strategy for the human exploitation and accumulation of capital, in a society characterized by social division into antagonistic classes. The study concludes that the precariousness of work, beyond the economic scope, harms the affective and relational structure of the subjects; the cinema, despite its contradictions, can act in the critical unveiling of the process.
Keyword: Uberization; Cinema; Human Education.
1 Artigo recebido em 06/11/2022. Primeira avaliação em 13/12/2022. Segunda avaliação em 10/01/2023. Aprovado em 23/02/2023. Publicado em 13/04/2023.
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v21i44.56436
2 Doutora em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) - Brasil. Professora Associada da Universidade Federal do Espírito Santo - UFES / Brasil. Realiza estágio pós-doutoral em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS / Brasil. E-mail: maria.dalvi@ufes.br. Lattes: http://lattes.cnpq.br/9399371418356916. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8729-2338.
3 Doutorando em Letras pela Universidade do Espírito Santo – UFES / Brasil. Professor de Língua Portuguesa da Secretaria de Educação do Estado do Espírito Santo e Professor de Língua Portuguesa da Secretaria Municipal de Educação de Vila Velha - Espírito Santo / Brasil.
E-mail: victorggrillo@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/9490052612500715. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2330-7414.
1
Em estado da arte sobre as relações sociais de produção artística e o ensino de arte no Brasil, Reis (2010) conclui, a partir de um abrangente trabalho de pesquisa de revisão bibliográfica que levou em conta centenas de documentos, que haveria um caráter absenteísta na maioria dos estudos sobre a arte e seu ensino no Brasil no que concerne a sua materialidade histórica, conferindo à arte e ao ensino uma aparência de algo destituído quer do trabalho humano, quer das relações sociais daí decorrentes.
Se o constatação publicada há mais de uma década, quanto à tendência para se escamotear a totalidade social nos estudos sobre arte e seu ensino, não fosse suficiente para problematizar a instrumentação da arte para o encobrimento das relações humanas estabelecidas no presente, visando à reprodução da alienação e do estranhamento entre o ser humano e o trabalho, poderíamos adicionar a informação de que, por exemplo, nas dezessete ocorrências da palavra “Cinema” na Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2018), o cinema (ora entendido como linguagem, ora entendido como uma modalidade de arte) é tratado apenas como recurso didático instrumental (ou “insumo”) para o ensino de outros componentes curriculares ou como um “gênero artístico substitutivo” (como se dá nas habilidades EF69LP45, EF69LP46, EF67LP27, EF89LP32, EF89LP34, EF69AR03, EF07LI04,
EF08LI18, EF04HI08; nos textos de abertura dos itens 4.1.24, 4.1.45, 5.1.26; nas “Competências7 específicas de Arte para o ensino fundamental”; e na nota 61, que esclarece o conceito de “Remidiação”).
4 “[...] é importante que o componente curricular Arte leve em conta o diálogo entre essas linguagens, o diálogo com a literatura, além de possibilitar o contato e a reflexão acerca das formas estéticas híbridas, tais como as artes circenses, o cinema e a performance” (BRASIL, 2018, p. 198).
5 “Para o trabalho pedagógico, cabe ressaltar que diferentes recursos midiáticos verbo-visuais (cinema, internet, televisão, entre outros) constituem insumos autênticos e significativos [...]” (BRASIL, 2018, p. 245 – grifo nosso).
6 “Por força de certa simplificação didática, as biografias de autores, as características de épocas, os resumos e outros gêneros artísticos substitutivos, como o cinema e as HQs, têm relegado o texto literário a um plano secundário do ensino” (BRASIL, 2018, p. 501).
7 Competência 2: “Compreender as relações entre as linguagens da Arte e suas práticas integradas, inclusive aquelas possibilitadas pelo uso das novas tecnologias de informação e comunicação, pelo cinema e pelo audiovisual, nas condições particulares de produção, na prática de cada linguagem e nas suas articulações” (BRASIL, 2018, p. 200).
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Na contramão desta posição hegemônica no campo dos estudos sobre a arte e seu ensino, constatada por Reis (2010), este artigo parte do pressuposto de que:
A instituição cinema e todo o aparato da cultura industrializada que gira em seu entorno representam um poderoso instrumento de hegemonia cultural. Ao comporem uma determinada dinâmica de vida de homens e mulheres, os filmes também participam na formação de valores éticos e juízos de gosto e, nesse sentido, portam uma faceta educacional. Na sociedade contemporânea, eles concretizam práticas educativas à medida que se ocupam da transmissão e assimilação de sensibilidades e conhecimentos. [...]
[...] Nesse sentido, do ponto de vista da relação entre cinema, educação e trabalho], a produção fílmica não se reduz a uma nova tecnologia, supostamente neutra, a ser manuseada pelas educadoras e educadores no trabalho pedagógico. Mais do que um mero suporte técnico-instrumental para se atingir objetivos pedagógicos, os filmes são uma fonte de formação humana, pois estão repletos de crenças, valores, comportamentos éticos e estéticos constitutivos da vida social (LOUREIRO, 2008, p. 136).
Tal entendimento está em consonância com uma observação de Adorno (1986), quando o filósofo e cientista social frankfurtiano admite a possibilidade de o cinema vir a ser arte autônoma (ou seja, comprometida consigo mesma, e não com o objetivo identificado à lógica de mercado da indústria de cultura orientada à alienação e à semiformação humana), por meio de alguns movimentos de resistência em filmes inseridos no âmbito da indústria cinematográfica hegemônica. Neste caso, tratar-se- ia de filmes que, contraditoriamente, podem ao mesmo tempo apresentar-se como “produtos de mercado”, que necessitam de vultuosos investimentos para sua realização e circulação (e, portanto, plenamente inseridos em circuitos comerciais), e como produções humanas que permitem que se vislumbre um algo-a-mais que a vida determinada pelo mercado, pela produção orientada ao lucro e pelo capital. Se os filmes ofereceriam esquemas de comportamento coletivo (impulsos miméticos), a chance de o cinema se tornar um produto emancipado residiria no esforço de deslocar o caráter coletivo inconsciente e irracional para uma intencional autorreflexão crítica sobre si como integrante de uma totalidade (ADORNO, 1986).
Parece-nos que, na direção apontada pela reflexão adorniana, um filme como Você não estava aqui (no original, Sorry, We Missed You), de Ken Loach, poderia contribuir para esse deslocamento, ao enfrentar a “uberização do trabalho” como uma nova estratégia para acumulação de capital a partir da exploração dos trabalhadores
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na sociedade capitalista, marcada pela divisão social em classes com interesses antagônicos, refletida artisticamente na relação do protagonista com sua família.
Kenneth “Ken” Loach é um cineasta britânico nascido em 17 de junho de 1936, na cidade de Nuneaton, situada no condado de Warwickshire, no centro da Inglaterra. Loach estudou Direito na Universidade de Oxford, quando entrou em contato com um grupo teatral da universidade, começando a atuar. Em 1961, iniciou um trabalho como assistente de direção na ABC Television e, posteriormente, também trabalhou na British Broadcasting Corporation (BBC) em colaboração com o produtor Tony Garnett. Em 2006, recebeu a Palma de Ouro no Festival de Cannes pelo filme Ventos da Liberdade e em 2016 recebeu a segunda Palma de Ouro pelo filme Eu, Daniel Blake. O filme Você não estava aqui, de 2019, (“Sorry, We Missed You”, título original), que é objeto desse artigo, também concorreu à Palma de Ouro em Cannes, e aborda a exploração da classe trabalhadora por meio da uberização, modalidade de trabalho em que não há vínculo empregatício e os direitos trabalhistas são esgarçados ou inexistentes.
De acordo com Boscov (2020, [s. p.]), o filme retrata a uberização do trabalho como uma miragem que pode ser inevitável em um momento difícil. Em sua análise, ela afirma que o diretor Ken Loach é “um dos últimos socialistas sinceros do planeta, que acreditam em um regime igualitário não como um projeto de poder, mas como uma questão de decência humana”, destacando que o cineasta não inventa histórias, mas as “colhe no dia a dia”. Para Paul Lavert, roteirista do filme, a obra “é uma tentativa de olhar para o caos da vida moderna, dominada pela tecnologia, que, muitas vezes, promete nos libertar, mas nos escraviza. É sobre essa falsa ilusão de liberdade” (LAVERT, 2020 apud OLIVEIRA, 2020, [s. p.]), uma vez que é vendida uma ideia de que o trabalhador deve ser um “guerreiro empreendedor, um soldado da sua própria vida”, mas está se “escravizando” (LAVERT, 2020 apud OLIVEIRA, 2020, [s. p.]). Nessa perspectiva, Paul Lavert afirma que o objetivo do roteiro de seus filmes é desafiar o poder, mas a maioria das obras a que tem acesso apenas reforçam o poder, ao reproduzirem estereótipos e glorificarem a riqueza (OLIVEIRA, 2020, [s. p.]). No mesmo sentido, em entrevista realizada no ano de lançamento do filme Você não estava aqui, Ken Loach, conhecido por retratar a classe trabalhadora britânica há cinquenta anos – histórias cujas temáticas representam os trabalhadores inseridos na sociedade capitalista como um todo – afirma que houve mudanças, porém, a essência
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é a mesma: “a vida das pessoas segue determinada pelas circunstâncias econômicas” (LOACH, 2019 apud BLANES, 2019, [s. p.]). Paralelo a isso, Ken Loach expõe que:
[...] a maioria dos filmes custa muito e precisam de investimentos dos ricos, e eles acabam contando as histórias da burguesia. Ainda que os personagens não sejam burgueses, o olhar é burguês. Retratam os trabalhadores como merecedores da pobreza, fracos. As pessoas não gostam de ver filmes sobre si mesmos, preferem ver as pessoas ricas. Personagens ricos que não sabem de onde tiram o dinheiro. Eles preferem isso porque não há culpados, não há problemas. Esse é o primeiro problema e então os diretores precisam perceber que a indústria precisa se adaptar ao mundo. Tenho ‘sorte’ porque faço filmes a partir do meu olhar e não fazemos filmes sobre o individual, porque acredito que para fazer um filme é preciso interesse comum. Isso é bem radical, com o individual acontece o contrário, pessoas lutando apenas por seus interesses (LOACH, 2019 apud BLANES, 2019, [s. p.]).
Para Medina e Parra (2020, p. 695), o realismo estético de Loach e sua equipe encontra inspiração para a composição de seus roteiros e narrativas em processos sociais amplos, presentes “na própria cotidianidade do modo de produção capitalista, a qual apresenta suas próprias mediações”.
Conforme exposto, o filme Você não estava aqui retrata a exploração da classe trabalhadora na sociedade capitalista, em que surgem novas estratégias do capital para a sua dominação. Para Weber (2021, p. 173), a narrativa analisa as contradições e disputas no mundo do trabalho na relação entre sujeito, que enxerga uma aparente promessa de autonomia e liberdade no trabalho, e sua alienação, com destruição das esferas familiar, física e emocional, “tornando-se seu próprio concorrente de produtividade”. Isso se deve, para Medina e Parra (2020, p. 690), às “recentes tendências de flexibilização de condições de trabalho mediadas pelo inovador aparato Tecnoinformacional digital”. Assim, essa transformação tecnoprodutiva e sociocultural tensiona as relações entre capital e trabalho, ou seja, entre a lógica da acumulação no modo de produção capitalista e o trabalho vivo, sendo que a “forma estética realista e o conteúdo sociopolítico de ‘Você não estava aqui’ nos confrontam com nossa própria época e com os rumos de uma sociabilidade cada vez mais intermediada por instrumentos digitais de relacionamento à distância” (MEDINA; PARRA, 2020, p. 691).
Na obra, Ricky Turner e sua esposa Abbie se veem na situação de aceitarem trabalhados “autônomos”, sem quaisquer vínculos ou garantias trabalhistas, para sustentar os dois filhos, em Newcastle, no noroeste da Inglaterra. Ricky, em busca de uma nova oportunidade e da estabilidade perdida com a crise econômica de 2008,
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aceita um trabalho como “colaborador” na empresa PDF Company, uma companhia de entrega de mercadorias. Já na entrevista de Ricky com o supervisor logístico Maloney, fica clara a estratégia da sociedade capitalista de estabelecer novos parâmetros no relacionamento entre dirigentes e subordinados, com o descompromisso do empregador com o empregado. Sob o rótulo de mobilidade e independência, típicos de discursos liberais e neoliberais, “os personagens aparecem em permanente desvínculo social” (MEDINA; PARRA, 2020, p. 693). Não há contratos de trabalhos e direitos trabalhistas, pois o trabalhador é um “colaborador” supostamente autônomo que é responsável pelo sucesso do serviço, arcando com as responsabilidades por ele unilateralmente.
O próprio Ken Loach, em outra entrevista de 2019, explica essa nova estratégia de exploração da classe trabalhadora pelo capital:
[...] no meu tempo, diziam para você que, com a formação adequada, conseguiria um emprego para a vida toda. Contudo, ocorreu essa mudança inexorável que passamos, da segurança à insegurança. Agora, você pode perder o trabalho da noite para o dia. E logo aparecem casos como o de Ricky, o protagonista de meu filme, que assume todos os riscos, enquanto a empresa não assume nenhum. É o trabalhador que explora a si mesmo, o ideal das grandes empresas (LOACH, 2019 apud ENGEL, 2019, [s. p.]).
Para trabalhar na PDF Company, Ricky precisa ter a sua própria van de cargas ou alugá-la da companhia. Rick, então, para adquirir a van, decide vender o carro que sua mulher usava para atender clientes distantes. Com isso, Abbie, que é cuidadora de idosos e exerce uma jornada de trabalho extensa, passa a ter que visitar seus clientes de ônibus. Assim como a esposa, o dia a dia de trabalho de Ricky como entregador de encomendas é cansativo. Além do desgaste físico, há o controle do tempo estimado para as entregas, pois é necessário que o “colaborador” porte um dispositivo eletrônico (scanner) que controla as rotas de viagens e o tempo de percurso dos motoristas, sendo possível aos clientes da PDF Company acompanhar em tempo real a localização da entrega. Além disso, o scanner serve para que Ricky, assim como todos os “colaboradores” da PDF Company, registre as encomendas realizadas a cada dia. Com isso, “fica patente a centralidade do aparato tecnodigital diante daquele que, supostamente, o manuseia: o trabalhador” (MEDINA; PARRA, 2020, p. 697).
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Devido às jornadas de trabalho de Rick e Abbie (ambas podendo chegar a 14 horas diárias), há poucos momentos de convivência deles com os dois filhos Seb e Liza, que se resumem à noite e a partes do fim de semana. Seb, o filho adolescente, passa a faltar à escola e discute constantemente com os pais, questionando as condições de trabalho deles e o fato de uma formação escolar adequada não lhe dar garantias de inserção do mundo do trabalho. Para Medina e Parra (2020, p. 703), as condições crescentes de rotatividade de trabalho e baixa remuneração trazem até mesmo implicações psicológicas ao ambiente familiar, uma vez que induzem nos personagens “sentimento de frustração, impotência e desgaste emocional”, sendo que aquilo que Seb questiona é a própria organização social baseada na economia de mercado e seus reflexos nas relações afetivas e familiares e não uma escolha ou decisão individual de seus pais. Por sua vez, Liza, ainda criança, sente-se culpada pelos problemas enfrentados pela família, o que se acentua com o trabalho de Ricky como entregador de encomendas na PDF Company. Nesse contexto, ao analisar o filme, Weber (2021) ressalta que as condições de trabalho impostas pelo neoliberalismo também são um fator crescente do adoecimento psíquico, especialmente no subgrupo de trabalhadores autônomos e informais.
No desfecho da trama, Ricky é assaltado e ferido ao realizar uma entrega. Após horas de espera para ser atendido em um hospital, recebe uma ligação de Maloney, seu supervisor, que exige o pagamento das mercadorias roubadas e do scanner que foi quebrado no assalto, o que, para Medina e Parra (2020, p. 704), “ilustra o quanto a reprodução das relações sociais, que prioriza o valor das coisas necessárias para o processo de acumulação capitalista em detrimento do ser humano, são naturalizadas”. Ricky, que deveria retornar ao hospital para tratamento das lesões e se recuperar fisicamente, decide voltar ao trabalho sob protestos da família, uma vez que suas dívidas estavam aumentando. A esposa e os filhos estavam à frente da van e o impediam de sair. Ricky, então, deu a ré no veículo e partiu, mesmo sem condições, para um novo dia de trabalho.
Em mais uma entrevista sobre o filme Você não estava aqui, Ken Loach volta a comentar sobre as novas formas de exploração da classe trabalhadora e volta a relacioná-las como uma consequência da economia de livre mercado:
[...] apenas uma geração atrás, você tinha um emprego e os empresários obtinham lucros, é claro, mas era um emprego seguro,
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você podia recorrer aos sindicatos, podia ficar doente porque estava protegido, podia sair de férias e trabalhava oito horas por dia. Seu salário permitia que você vivesse de maneira digna. O que ocorreu, de forma inevitável em uma economia de livre mercado, é que as grandes corporações competem entre si para vender suas mercadorias, e competem com os preços. Como conseguir que o preço seja mais baixo que o da concorrência? Muito simples, pagando menos para os trabalhadores (LOACH, 2019 apud GARCÍA, 2019 [s. p.]).
Parece-nos que, ao articular tais elementos em uma obra cinematográfica, Você não estava aqui, de Ken Loach, põe-se na contramão da hegemonia da indústria cultural, cujos objetivos não apenas visam à obtenção de lucro, mas igualmente a dificultar que os sujeitos superem a condição de heteronomia e semiformação que os limita a uma visão de mundo estreita (LOUREIRO; RAMALHETE; STEN, 2020, p. 3), ou seja, há um potencial enriquecimento da experiência estética como elemento de uma formação humana com vistas à omnilateralidade.
Em uma perspectiva marxista lukácsiana, o trabalho, no sentido ontológico, expressa a ideia central do ser social, uma vez que a produção e reprodução societária se dá por meio dele. Assim, o trabalho se torna protoforma da práxis social, tendo o seu sentido original atrelado à produção de valores de uso. Nesse cenário, o trabalho é “o elemento mediador introduzido entre a esfera da necessidade e da realização desta”, em um processo de autorrealização da humanidade (ANTUNES, 2009, p. 139). É por meio do trabalho, portanto, que simultaneamente se altera a natureza e autotransforma aquele que trabalha, e, como reflexo das interações sociais, desenvolvem-se também as práxis políticas, a religião, a ética, a arte e outras dimensões da esfera social (ANTUNES, 2009).
Por sua vez, Manzano (2013) explica que o ser humano exerce um trabalho sobre a natureza para satisfazer suas necessidades básicas, gerando novas necessidades e ampliando seus horizontes por meio da apropriação do conhecimento que a ação do trabalho lhe proporciona, desencadeando em um contínuo movimento social e, portanto, cultural. Assim, os elementos fundamentais para se produzir, em quaisquer épocas, são a natureza (ou recursos naturais), que depende do emprego da tecnologia apropriada para transformá-la, e o trabalho, fruto da ação consciente e
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do conhecimento desenvolvido pelo ser humano. Nessa perspectiva, o processo de trabalho começa de forma simples e vai se aperfeiçoando, especialmente com a utilização dos meios de produção, que são os instrumentos desenvolvidos para auxiliar na transformação da natureza, e da matéria-prima, que é aquilo que já foi produzido pelo ser humano e voltará ao processo de produção para ser reelaborado. Todavia, dizer que uma vida com sentido encontra no trabalho seu primeiro momento de realização é diferente de afirmar que uma vida plena de sentido se limite
apenas ao âmbito do trabalho:
[...] na busca de uma vida cheia de sentido, a arte, a poesia, a pintura, a literatura, a música, o momento de criação, o tempo de liberdade, têm um significado muito especial. Se o trabalho se torna autodeterminado, autônomo e livre, e por isso dotado de sentido, será também (e decididamente) por meio da arte, da poesia, da pintura, da literatura, da música, do uso autônomo do tempo livre e da liberdade que o ser social poderá se humanizar e se emancipar em seu sentido mais profundo (ANTUNES, 2009, p. 143).
Questiona Konder (1998, p. 29): como o trabalho, sendo uma condição para a realização do próprio homem, pôde se tornar “seu algoz”? A primeira resposta se encontra na divisão social do trabalho, com a apropriação privada dos meios de produção e o aparecimento das classes sociais. Nesse cenário, os homens que eram proprietários dos meios de produção passaram a explorar o trabalho dos outros, impondo-lhes condições laborais antes não existentes, introduzindo, assim, um novo tipo de contradição na comunidade humana (KONDER, 1998, p. 29-30).
Manzano (2013) explica que a divisão social do trabalho não é novidade do capitalismo, mas ressalta a diferença observada nas sociedades primitivas, em que as atividades eram feitas por pessoas diferentes e resultado do trabalho era coletivo, e o que historicamente resultou na divisão de sociedade em classes distintas. Em outros termos, a especialização, permitida pela divisão social do trabalho, aprimorou
o modo de produzir, aumentando a produtividade e gerando um excedente, sendo que
o avanço das técnicas de produção proporcionou que a natureza fosse transformada com mais facilidade pelo ser humano. Por sua vez, quanto mais especialização e produção de excedente há, mais possibilidade de acentuar a divisão social do trabalho. Com o aprimoramento das técnicas de produção e a interação do ser humano com a natureza, houve a apropriação de novos conhecimentos para transformá-la, ocorrendo uma divisão (não natural, mas decorrente do próprio
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processo social) entre trabalho intelectual e trabalho manual. Nesse contexto, quando um grupo utiliza seu saber para dominar politicamente outro, fazendo que trabalhe para ele, concretiza-se na sociedade a divisão de classes com interesses antagônicos. Logo, em uma sociedade de classes, um grupo dominado trabalha exaustivamente para a produção dos bens necessários à satisfação e sobrevivência de toda a sociedade, enquanto o grupo dominante, que exerce a dominação intelectual, política, econômica e cultural, satisfaz suas necessidades com o que é produzido pela classe dominada.
Como explica Konder (1998, p. 30), as condições criadas pela divisão social do trabalho e pela propriedade privada introduzem um “estranhamento” entre o trabalhador e o trabalho, pois o homem não se reconhece mais no produto do trabalho por ele realizado, uma vez que agora o produto pertence a outro ser humano, qual seja, o proprietário dos meios de produção. Assim, em vez de se realizar pelo trabalho, o ser humano se aliena nele e se vê envolto em uma nova condição de opressão.
Como modo de produção dominante em escala mundial, o capitalismo se consolida no século XIX, com a generalização do valor de troca para todos os bens produzidos pelo ser humano, em um processo de mercantilização que se entende no próprio valor do trabalho. Quanto às mercadorias que circulam na sociedade capitalista, Manzano (2013) destaca que os bens produzidos para o comércio possuem, além do valor de uso, conforme características físicas e utilidade para a qual foram produzidos, também um valor de troca, que está relacionado com a quantidade de trabalho socialmente necessária para a produção do bem. Nesse período histórico, as relações sociais giram em torno de um processo de produção mercantil cuja finalidade é a comercialização do excedente. Para Netto (1991), a partir da preparação ideológica da Revolução Francesa, com o Iluminismo, e a repressão das manifestações proletárias em 1848, a sociedade burguesa, com o controle dos sistemas de poder, passa a apresentar um perfil mais bem delineado, em especial com a Revolução Industrial e as alterações na forma de explorar os recursos naturais e produzir os bens. Nesse contexto, o conhecimento científico passa e ter uma relação estreita com a produção, uma vez que o mundo burguês se assenta no capitalismo concorrencial, sendo a economia e a sociedade submetidas à lógica do capital. Assim, evidencia-se uma realidade contraditória como custo de um suposto progresso: as possibilidades de exploração da natureza e elevação das condições de vida
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contrastam com a intensificação da opressão da classe trabalhadora e a generalização da miséria.
Manzano (2013) ensina que a divisão social do trabalho na sociedade capitalista expressa a desigualdade social entre as classes, uma vez que a burguesia se apropriou privativamente dos meios de produção, enquanto a classe trabalhadora vive da venda de sua força de trabalho. A burguesia, detentora da riqueza previamente acumulada e dos instrumentos de produção, explora os trabalhadores não apenas para a satisfação de suas necessidades, mas para gerar mais riqueza a partir da produção de excedente a ser comercializado. Assim, a riqueza é utilizada para produzir mais riqueza, sob a forma de capital. Como exemplo, um empresário capitalista, detentor do capital, pode adquirir equipamentos, instrumentos de trabalho, matérias-primas e contratar trabalhadores para o processo de produção. Por sua vez, a classe trabalhadora vende a sua força de trabalho por um valor que deveria corresponder ao das mercadorias que deve adquirir para executar o trabalho e para as suas satisfações familiares (no sentido unicamente da reposição e reprodução da força de trabalho).
A classe trabalhadora utiliza os meios de produção em posse da burguesia, trabalhando com a matéria-prima para gerar uma nova mercadoria, ou seja, o trabalhador transfere valor para a mercadoria, agregando um valor ao produto final. Dessa forma, ao valor das máquinas, equipamentos e outros instrumentos de produção de propriedade do empregador, é adicionado o valor do trabalho realizado pelo empregado. Marx chamou essa parte de valor gerado pelo trabalhador, além do valor necessário para remunerar sua força de trabalho, de mais-valia ou mais-valor. Logo, o capitalista, ao vender o produto final, recupera o valor investido nos meios de produção (máquinas, equipamentos e matérias-primas) e, com o valor novo criado pelo trabalhador e incorporado ao produto, paga o seu salário e se apropria da mais- valia ou mais-valor na forma de lucro, o que permite à burguesia enriquecer enquanto a classe trabalhadora empobrece (já que, para manter a taxa de lucro, que tende à queda em decorrência da concorrência, entre outros processos, rebaixa-se a remuneração do trabalhador). Nesse contexto, o trabalho tecnicocientífico, identificado como trabalho intelectual e responsável pela gestão e organização da produção pelos trabalhadores manuais, também se torna produtivo e interfere na produção, participando da valorização do capital (MANZANO, 2013).
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A segunda causa da deformação da situação do trabalho, observada por Marx, encontra-se no agravamento da exploração do trabalho e, assim, da classe trabalhadora na sociedade capitalista. Além de reforçar a exploração do trabalho devido à busca desenfreada pelo lucro, a competitividade entre os próprios burgueses torna o mercado e o mundo do trabalho em si muito instável e incerto (KONDER, 1998).
Para Netto (1991), a análise da sociedade burguesa realizada por Marx a revela como uma forma de organização social dinâmica baseada na propriedade privada dos meios de produção e na divisão social do trabalho, em que as contradições do movimento social encontram seu ápice e, ao mesmo tempo, criam condições de superá-la. Nessa perspectiva, ao antagonizar os proprietários dos meios de produção (capitalistas) e os que somente têm a força do trabalho (trabalhadores), a sociedade burguesa se desenvolve por meio de crises econômicas sucessivas e reproduz, em todos os níveis e dimensões, conflitos e tensões que são incompatíveis com a maioria dos seres humanos, em especial com os que vivem do trabalho.
Sob uma perspectiva científica, Manzano (2013) explica que as crises no mundo capitalista surgem de contradições internas. A produção desordenada e a extensão do consumo, pressuposições da acumulação capitalista, conflitam com outra condição do sistema, qual seja, a obtenção de lucro, uma vez que a ampliação do consumo exige o aumento de salários, o que resultaria na redução da mais-valia ou do mais-valor. Tal contradição insanável obriga o capital a buscar compensá-la com a expansão constante do mercado. Portanto, quanto mais cresce o capitalismo, menor é a taxa média de lucro do capital. Tal situação decorre da própria concorrência presente no sistema capitalista, obrigando os empresários a superar os concorrentes com investimentos em meios de produção mais tecnológicos e avançados, para aumentar a produtividade e reduzir uma parcela do capital variável (ou seja, valor investido na força de trabalho). A queda da taxa de lucro é resultado, então, da tendência à substituição do trabalho humano pelo investimento em meios de produção, uma vez que se reduz a fonte de mais-valia ou mais-valor. Assim, origina- se a superacumulação de capital e de mercadorias, bem como se restringe a capacidade de consumo na sociedade pelo desemprego que se desencadeia. Com o desenvolvimento do capitalismo e a crescente dependência internacional dos
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processos econômicos nacionais, as crises econômicas se observam em escala mundial e com mais frequência.
De acordo com Antunes (2009, p. 17), o neoliberalismo e a reestruturação produtiva do capital acarretam mutações no mundo do trabalho, podendo-se mencionar como consequências o desemprego estrutural e o “crescente contingente de trabalhadores em condições precarizadas”. Essas questões deram origem a debates sobre o “fim do trabalho”. A esse respeito, André Gorz, em Adeus ao proletariado, defendeu a tese do fim do proletariado e das ações sociais decorrentes das suas forças sociais; por sua vez, Claus Offe, em Trabalho: categoria sociológica- chave?, tematizou a perda da centralidade da categoria trabalho na base estruturante da sociedade contemporânea; a seu turno, Jürgen Habermas, em Teoria da Ação Comunicativa substituiu a razão instrumental do trabalho assalariado que cria capital (e as possibilidades emancipatórias da classe trabalhadora) pela razão comunicativa, dando destaque à esfera intersubjetiva e comunicacional; já Dominique Méda, na obra O trabalho: um valor em vias de desaparição, amplia o desencanto com o mundo do trabalho e critica a concepção marxista de trabalho; Jeremy Rifkin, em O fim dos empregos, visualizou de forma romântica possíveis benefícios à sociedade a partir da ampliação do Terceiro Setor; em outra análise, Robert Kurz, em O colapso da modernização e em Os últimos combates, concebe os trabalhadores como parte que constitui o mundo da mercadoria e, por isso, impossibilitados de transformar a lógica do capital (ANTUNES, 2005).
Diante do exposto, Antunes (2015, p. 208) não concorda com as teses que desconsideram o processo interativo entre trabalho vivo e trabalho morto, uma vez que “o sistema social do capital necessita cada vez menos do capital estável e cada vez mais das diversificadas formas de trabalho parcial ou part-time, terceirizado [...]”. O autor, ainda, acrescenta que:
[...] como o capital não pode eliminar o trabalho vivo do processo de produção de mercadorias, sejam elas materiais ou imateriais, ele deve, além de incrementar sem limites o trabalho morto corporificado no maquinário tecnocientífico, aumentar a produtividade do trabalho de modo a intensificar as formas de extração do sobretrabalho em tempo cada vez mais reduzido. Tempo e espaço que convulsionam nessa nova fase dos capitais (ANTUNES, 2015, p. 208).
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Como essa discussão se reconecta com a abertura deste artigo, na qual aludimos ao caráter absenteísta da materialidade histórica nas discussões sobre arte e ensino (que confeririam à arte e ao ensino uma aparência de algo destituído quer do trabalho humano, quer das relações sociais daí decorrentes), a partir de Reis (2010)? Como se reconecta à exemplificação da instrumentalização da arte para a obnubilação da realidade concreta, que demonstramos como a redução do cinema a mero recurso didático instrumental (como “insumo” ou “gênero artístico substitutivo”) para o ensino de outros componentes curriculares, na BNCC (BRASIL, 2018)?
Entendemos que a resposta poderia ser dada por analogia ao raciocínio de Chaves (2021), quando analisa como a vulgarização da crítica, na área de Linguagens da BNCC, poderia ser uma estratégia dupla: de um lado, para a semiformação da classe trabalhadora e, de outro, para a produção de consenso. Segundo a autora, a BNCC:
[...] constitui uma peça a mais que se inscreve na compreensão do movimento real do todo, das leis gerais do objeto, para rastrear e compor, pela sua expressão, o conjunto das conexões íntimas, uma vez que a aura de inevitabilidade vai se tornando mais verossímil pelo jogo político, pela fala dos especialistas, pela produção de matérias, pela articulação com a mídia e pela força da lei (CHAVES, 2021, p. 5).
Na continuidade de seu trabalho, a autora argumenta que, valendo-se de convicções teórico-práticas dos professores na área das Linguagens, a BNCC facilita a constituição de consenso generalizado que devolve aos docentes e aos filhos da classe trabalhadora uma normatização da semiformação socializada. E emenda:
Muito já se tem discutido acerca da redução do processo formativo do sujeito a uma perspectiva que atente às competências concentradas nas demandas do mercado de trabalho. Sob o discurso pautado pelo ideário da empregabilidade aliado à “[...] expansão do trabalho parcial, temporário, precário, subcontratado, terceirizado” (ANTUNES, 2006, p. 41), vem restando à educação - principalmente à educação pública
- a oferta para a classe trabalhadora do privilégio de ser servil (ANTUNES, 2018), de ter pragmaticamente suas competências cognitivas e socioemocionais desenvolvidas (CHAVES; EVANGELISTA, 2020), para que possam ser flexivelmente úteis ao processo produtivo de trabalho (CHAVES, 2021, p. 7).
Avançando [...] compreende-se, com Gramsci, que não é somente por meio de uma organização específica da força que as classes economicamente dominantes mantêm seu domínio; lhes é necessário que uma direção moral, cultural e intelectual seja praticada. De forma meramente didática, é possível pensar que essa direção provê a
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configuração das forças materiais, entendidas mais como conteúdo, uma vez que essas não seriam historicamente concebíveis sem forma, e as ideologias seriam fantasias individuais sem as forças materiais. A conformação a uma maneira de compreender o mundo lança mão do princípio da universalidade, movimento de ocultação no qual opera a ideologia, na medida que faz parecer natural, da ordem originária das coisas, aquilo que é socialmente produzido (CHAVES, 2021, p. 8).
Nesse sentido, o desvelamento da uberização no filme Você não estava aqui, de Ken Loach, na medida em que rechace o tipo de instrumentalização do cinema preconizado, como vimos, pela BNCC (BRASIL, 2018), poderia cumprir aquela potencialidade crítica do cinema que ventilamos, páginas acima, a partir de Adorno (1986); e poderia, igualmente, realizar o projeto educativo (fonte de formação humana) aludido a partir de Loureiro (2008). Ou seja, como o filme de Loach se recuse a funcionar como mero “insumo” ou “gênero” substitutivo no processo pedagógico, pode, como obra de arte autêntica, ocupar-se verdadeiramente da transmissão e assimilação de sensibilidades e conhecimentos, já que o que está em pauta ali é uma obra saturada de valores e comportamentos éticos e estéticos constitutivos da vida social, que reúne o inteligível e o sensível, portanto, com alto potencial formativo.
A partir da década de 1970, a gradativa utilização da microeletrônica e da conectividade em rede foi incorporada ao desenvolvimento das forças produtivas nas grandes indústrias, acarretando em significativa alteração da composição do capital de diversas empresas, com a redução da quantidade de força de trabalho empregada (menor investimento em capital variável) e maior investimento em equipamentos tecnológicos e maquinaria (maior investimento em capital constante), principalmente os que se relacionam aos componentes computacionais. Além dos ganhos obtidos com as inovações tecnológicas, há um movimento de rebaixamento do custo do valor da força de trabalho, acentuando os processos de desregulamentação de proteções trabalhistas e o aumento das terceirizações (FRANCO; FERRAZ, 2019).
Para Silva, Santos, Chaves e Assunção (2022), a tecnologia, que deveria ser uma aliada do trabalhador, promovendo-lhe qualidade de vida, de forma democratizada e com tarefas menos alienantes, pesadas e repetitivas, não responde a esses anseios; pelo contrário, tornou-se mais um meio de exploração, intensificação
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e precarização do trabalho. As transformações no mundo do trabalho, associadas aos altos índices do desemprego, obrigam a classe trabalhadora a cumprir jornadas de trabalho extenuantes, cuja prestação se dá mediada por aplicativos digitais, sem qualquer segurança ou garantia de que os sujeitos conseguirão arcar com suas necessidades básicas, além de pouca (ou nenhuma) proteção quanto aos riscos da atividade desenvolvida. Nesse sentido os autores afirmam que:
[...] frequentemente, o trabalhador encontra, nos serviços mediados por aplicativos, a garantia de sobrevivência, uma forma de pertencimento e importância social. Entretanto, [...] não se deve exaltar essa nova forma de organização do trabalho como a solução para o desemprego endêmico, uma vez que não se promove nenhuma proteção ao trabalhador, pelo contrário, esse modelo traz uma insegurança que ataca a saúde física, mental e o bem-estar de maneira geral (SILVA; SANTOS; CHAVES; ASSUNÇÃO, 2022, p. 39).
De acordo com Franco e Ferraz (2019, p. 845), “as estratégias de controle do trabalho, para além das inovações tecnológicas, invariavelmente abarcam diferentes formas de exploração da força de trabalho”. Nesse contexto, o termo “uberização” tem como origem o pioneirismo da empresa Uber em relação a um modo particular de trabalho, com o uso de uma plataforma digital que permite a conexão (via smartphones) de clientes e prestadores de serviço. Sem qualquer vínculo empregatício, os motoristas da empresa trabalham como profissionais autônomos e assumem diferentes riscos para a simples prestação do serviço. Em razão de não precisar contratar um funcionário e lhe assegurar os direitos trabalhistas e sequer necessitar investir nos meios físicos que constituem o capital constante (exceto o desenvolvimento de hardwares, softwares e assessoria jurídica cada vez mais robustos), o mais-valor apropriado pela empresa capitalista se maximiza. Nesse sentido, os autores esclarecem que a uberização do trabalho não consiste no compartilhamento de um objeto, um espaço ou troca de serviços, porém na venda da própria força de trabalho, ainda que a aparência imediata não deixe clara essa relação econômica: “a uberização se torna uma alternativa socialmente posta de acumulação capitalista e subsunção do trabalhador” (FRANCO; FERRAZ, 2019, p. 849).
Para Abílio (2020), a uberização é uma nova forma de controle, gerenciamento e organização do trabalho que está relacionada ao trabalho mediado por plataformas digitais. Em complemento, a autora afirma que esta estratégia do capital se relaciona
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às regulações e ao papel ativo do Estado na eliminação de direitos e controles à exploração do trabalho, resultando na transferência de custos e riscos ao trabalhador:
[...] o trabalhador uberizado inicia sua jornada sem ter qualquer garantia sobre qual será sua carga de trabalho, sua remuneração e o tempo de trabalho necessário para obtê-la. As estratégias pessoais para a gestão da própria sobrevivência passam a estar no cerne da reprodução social dos trabalhadores, ao mesmo tempo que são incorporadas e gerenciadas no processo de trabalho (ABÍLIO, 2020, p. 116).
No contexto da uberização do trabalho, o trabalhador deve investir em equipamentos necessários à execução do serviço, de forma a tornar sua força de trabalho vendável. Esses instrumentos, então, em vez de capital constante do capitalista para executar uma atividade, tornam-se os equipamentos necessários para que o trabalhador se mantenha. O fato de a jornada de trabalho ser flexível, isto é, não ser previamente fixada, não retira do capitalista a função de comprador de força de trabalho, nem dos trabalhadores o papel de vender a força de trabalho. Além do mais, quando os equipamentos de trabalho pertencentes ao trabalhador perderem seu valor de uso, o capitalista não precisará reinvestir em capital fixo, podendo desvincular o trabalhador de sua plataforma (FRANCO; FERRAZ, 2019).
Franco e Ferraz (2019) explicam que a plataforma digital, de propriedade do capitalista e que é necessária para o trabalhador utilizar a sua força de trabalho, é a forma de subsumir o trabalhador em relações uberizadas. Nessa nova mediação da subsunção real, os trabalhadores são controlados e conduzidos ao aumento de produtividade. A atividade dos trabalhadores é, em si, altamente individualizante. Entretanto, são parte de um trabalhador coletivo fundamental para as práticas de promoção, gerenciamento e distribuição da mercadoria promovido pela empresa (deslocamento), sendo um tipo de cooperação gerido pela empresa a fim de distribuir os trabalhadores entre as áreas de maior demanda. Para atrair novos colaboradores, as propagandas das empresas usam estratégias discursivas que “reforçam valores sociais voltados às características usualmente atribuídas a empreendedores, como ausência de chefe, liberdade de horário, ganhos progressivos e aventuras no desbravamento das cidades” (FRANCO; FERRAZ, 2019, p. 852). No entanto, a empresa, que define as metas, pune os trabalhadores caso não as alcance, situação que não sustenta o discurso usado para atrair o trabalhador.
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Abílio, Amorim e Grohmann (2021) explicam que, no trabalho subordinado por meio de plataformas digitais, trabalhadores não são contratados e, em regra, nem mesmo recrutados. Assim, não há funções predeterminadas ou processos seletivos (o cadastro é suficiente). O contrato de trabalho, agora, apresenta-se como um contrato de adesão. Além disso, algumas empresas conseguem monopolizar setores de atuação e controlar contingentes enormes de trabalhadores. Por meio de uma relação de subordinação que se informaliza, há a perda de determinações explícitas ou estáveis sobre a jornada de trabalho, distribuição do trabalho e até mesmo precificação. Paralelo a isso, as empresas podem definir as regras sem fixá-las, ao determinar a distribuição do trabalho, precificação, quem será incorporado e quem é desligado ou bloqueado nas plataformas8. Os critérios são gerenciados por algorítmicos, em que por meio de mecanismos automatizados (mas humanamente programados), “realiza-se o acesso, a distribuição e a precificação do trabalho. Essa programação envolve ranqueamentos, oferta de bonificações, punições – elementos que materializam os meios de controle do trabalho” (ABÍLIO; AMORIM; GROHMANN, 2021, p. 39). Dessa forma, é possível impor – por meio das estruturas das plataformas digitais e dos aplicativos – as forças produtivas decisivas para a subordinação do trabalhador em sentido coletivo, em que se controlam e supervisionam em tempo real os trabalhadores, prescrevendo tarefas e metas produtivas, e impondo extensas jornadas de trabalho. Essa imposição se dá diretamente, por meio do supervisor no local de trabalho, assim como remotamente, através do gerenciamento algorítmico (ABÍLIO; AMORIM; GROHMANN, 2021). Ou seja:
[...] a uberização do trabalho representa um modo particular de acumulação capitalista, ao produzir uma nova forma de mediação da subsunção do trabalhador [...]. A subsunção virtual do trabalho ao capital indica que o trabalhador está subordinado na relação de trabalho sob os moldes da uberização, ainda que a aparência imediata seja de autonomia e liberdade sobre a forma produtiva. A determinação sobre como executar o trabalho, sobre os padrões e as
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metas produtivas se centra na empresa detentora da plataforma de intermediação, enquanto o trabalhador, em vez de submetido diretamente a um contrato de trabalho formal, submete-se às imposições estabelecidas sob o risco de desligamento da ocupação. O cenário de subordinação estrutural reforça sua necessidade de venda da força de trabalho para a autossubsistência (FRANCO; FERRAZ, 2019, p. 854).
Em outros termos, Abílio, Amorim e Grohmann (2021) entendem a uberização como um processo de informalização que consolida o trabalhador sob demanda, ao reconhecer que as empresas relacionadas às plataformas digitais se incluem em uma tendência mais ampla que permeia o mundo do trabalho em dimensões globais, redefinindo as relações de emprego com a ampliação e reconfiguração da informalidade, transferência de riscos e custos, bem como a eliminação de garantias e direitos do trabalho.
O filme Você não estava aqui, de Ken Loach, evidencia a exploração da classe trabalhadora na sociedade capitalista por meio de uma nova estratégia do capital: a uberização do trabalho. Nessa nova modalidade de subsunção do trabalhador ao capital, a empresa capitalista controla, gerencia e organiza o trabalho por meio de plataformas digitais e aplicativos. São transferidos aos “colaboradores” os riscos e os custos da atividade, inclusive para aquisição dos instrumentos de trabalho.
Nesse contexto, os ganhos obtidos pelas empresas com o trabalho mediado por plataformas digitais e aplicativos vêm acompanhados de uma redução do valor da força de trabalho, acentuada pela desregulamentação de direitos trabalhistas. A precarização do trabalho aparece de forma concreta, uma vez que a classe trabalhadora vivencia jornadas de trabalho extenuantes sem previsão clara de precificação dos serviços prestados.
Paralelamente a isso, há empresas que monopolizam setores de atuação e controlam enormes contingentes de trabalhadores, determinando a distribuição das atividades, a incorporação ou o desligamento nas plataformas e a precificação, sob critérios gerenciados por algorítmicos que prescrevem tarefas e metas produtivas, oferecem bonificações e aplicam punições, o que impõe a subordinação do trabalhador em sentido coletivo e acentua a “abstratização” inclusive do agente da
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exploração; o próprio ódio ou revolta de classe, se houver, passa a ser dirigido ao meio, enfim, à tecnologia – plataforma, aplicativo e algoritmo; algo que lembra a primeira revolução industrial, quando massas de trabalhadores se revoltavam contra o maquinário e o destruíam, como se ele fosse responsável por sua condição.
Por fim, a uberização do trabalho promove um processo de informalização, consolidando o trabalhador sob demanda. As empresas relacionadas às plataformas digitais expressam uma tendência que redefine as relações de trabalho e amplia a informalidade por meio de uma estratégia de desresponsabilização do capital, que transfere os riscos da atividade econômica para o trabalhador, a qual se associa à eliminação de direitos trabalhistas.
No entanto, a aparência deste fenômeno é apresentada, frequentemente, especialmente aos mais jovens, como uma possibilidade de trabalho flexível, autogerenciado, etc. Nesse sentido, para desmontar a retórica que serve à manutenção do status quo, é fundamental o processo de formação humana que permita o desvelamento das relações postas nesta forma precária de trabalho.
Neste artigo, defendemos que o filme Você não estava aqui, de Ken Loach, na medida em que nega um uso instrumental do cinema (tal como preconizado, por exemplo, pela BNCC, conforme discutido na argumentação), permite que: a) se problematize o caráter absenteísta da maioria dos estudos sobre a arte e o seu ensino no Brasil no que concerne a sua materialidade histórica, conferindo à arte e ao ensino uma aparência de algo destituído quer do trabalho humano, quer das relações sociais daí decorrentes (REIS, 2010); b) se desbloqueie o caráter coletivo inconsciente e irracional do cinema para uma intencional autorreflexão crítica sobre si como integrante de uma totalidade (ADORNO, 1986); c) se enriqueça a experiência estética como elemento de uma formação humana que visa à superação da condição de heteronomia e semiformação que limita a classe que vive do trabalho a uma visão de mundo estreita (LOUREIRO; RAMALHETE; STEN, 2020, p. 3).
A análise das personagens em correlação com suas condições de reprodução e manutenção da vida, em contexto de intensa uberização, conforme se afigura na obra ficcional de Loach, aqui em pauta, demonstrou que a precarização do trabalho, para além do âmbito econômico, afeta de maneira inequívoca e perniciosa a estrutura afetiva e relacional dos sujeitos, desde o autocuidado às relações familiares, corroendo todo o tecido social. Desse modo, a obra de arte cinematográfica, em que
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pesem todas as suas contradições na relação com a indústria da cultura, pode permitir que se alcance uma compreensão de mundo mais ampla sobre a realidade social, fazendo avançar o processo de formação humana.
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V.21, nº 44, 2023 (janeiro-abril) ISSN: 1808-799 X
Alexandre Marinho Pimenta2
Resumo
Diante do contexto atual de militarização de escolas públicas no Brasil, o artigo revisa a teoria dos Aparelhos Ideológicos de Estado de Louis Althusser e a teoria do poder disciplinar de Michel Foucault. Indica que a utilização heurística e articulada de tais autores possibilita construir os fundamentos de uma dimensão repressivo-disciplinar da educação no capitalismo. Diante de tais diretrizes analíticas, espera-se contribuir ao estudo das práticas repressivas na/da educação e das dinâmicas de dominação política, reforçadas e rearticuladas em escolas que adotam o modelo militarizado.
Palavra-chave: Educação Básica; Militarização das Escolas Públicas; Aparelhos Ideológicos de Estado; Poder Disciplinar.
Contribuciones de Althusser y Foucault a los estudios sobre la militarización de las escuelas públicas en Brasil
Resumen
Frente al actual contexto de militarización de las escuelas públicas en Brasil, el artículo revisa la teoría del Aparatos Ideológicos del Estado de Louis Althusser y la teoría del poder disciplinario de Michel Foucault. Indica que el uso heurístico y articulado de tales autores permite construir las bases de una dimensión represivo-disciplinaria de la educación en el capitalismo. Frente a tales orientaciones analíticas, se espera contribuir al estudio de las prácticas represivas en/de la educación y de las dinámicas de dominación política, reforzadas y rearticuladas en las escuelas que adoptan el modelo militarizado..
Palabra clave: Educación Básica; Militarización de las Escuelas Públicas; Aparatos Ideológicos del Estado; Poder Disciplinario.
Contributions of Althusser and Foucault to studies on militarization of public schools in Brazil. Abstract
Faced with the current context of militarization of public schools in Brazil, the article reviews Louis
Althusser's theory of the Ideological State Aparatus and Michel Foucault's theory of disciplinary power. It indicates that the heuristic and articulated use of these authors makes it possible to construct the foundations of a repressive-disciplinary dimension of education in capitalism. In light of such analytical guidelines, it is hoped to contribute to the study of repressive practices in/of education and the dynamics of political domination, reinforced and re-articulated in schools that adopt the militarized model.
Keyword: Basic Education; Militarization of Public Schools; Ideological State Aparatuses; Disciplinary Power.
1 Artigo recebido em 10/01/2023. Primeira avaliação em 12/02/2023. Segunda avaliação 13/03/2023. Terceira avaliação 24/03/2023. Aprovado em 30/03/2023.
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v21i44.57036.
2 Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Brasília (UnB), Brasília - Brasil. Mestre em Sociologia pela UnB. Professor de Educação Básica da Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal (SEE-DF). E-mail: alexmpimenta1@gmail.com.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/9704150881132177. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8285-1930.
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Desde os anos 2000, o sistema educacional brasileiro tem sido espaço de diversas políticas de militarização de escolas públicas civis. Tal militarização da educação básica ocorreu primeiro em esfera estadual e municipal, como é caso do estado de Goiás e municípios baianos, e sob diferentes formas: transferência e compartilhamento da gestão escolar para corporações militares; acordos de cooperação entre secretarias de educação e corporações militares; transferência ou criação de unidades de ensino para corporações militares; ou mesmo aplicação de doutrina militar e práticas de quartel em unidades escolares civis (SANTOS; ALVES, 2022). Diferentemente das escolas militares, não se objetiva diretamente a formação de futuros militares com tais políticas, mas utilizar práticas e doutrinas militares para e sob uma escola civil pública.
A militarização da educação básica no Brasil ganhou maior relevância com a eleição do presidente de extrema-direita Jair Bolsonaro, em 2018. Em sua campanha, o então candidato já defendia a ampliação de colégios militares no país, o reforço da “disciplina” nos ambientes escolares e o combate à “doutrinação” (de esquerda) nas escolas (BRASIL, 2018), bandeira central do movimento conservador contemporâneo Escola Sem Partido (MIGUEL, 2016). Logo no início de seu governo, Jair Bolsonaro criou a Subsecretaria de Fomento às Escolas Cívico-Militares (SECIM), que pouco tempo depois se tornou o órgão dirigente, com o apoio do Ministério da Defesa, do Programa Nacional de Escolas Cívico-Militares (PECIM) (BRASIL, 2019a; BRASIL, 2019b). Assim como as demais medidas de militarização, o PECIM diz objetivar uma melhoria no processo educacional, tomando como inspiração os colégios militares e apoio de membros de corporações militares (polícias, corpos de bombeiros e Forças Armadas).
Desde o surgimento do PECIM, os processos de militarização se intensificaram e se consolidaram sob um programa e apoio de nível federal. Até 2023, a perspectiva é que o programa estimule a militarização de 216 escolas no país. Simultaneamente, outros governos estaduais continuam em paralelo a fomentar políticas semelhantes, como é o caso do Paraná e seu programa de Colégios Cívico-Militares (BRASIL, 2021).
Embora as centenas de instituições educacionais já militarizadas ou em vias de
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militarização, nas suas diversas modalidades, sejam um número pequeno para o tamanho do sistema de educação básica brasileiro, que no ano de 2021 contava com quase 180.000 mil instituições de educação básica (INEP, 2022), tais políticas possuem relevância inegável para o debate educacional. O processo de militarização, também apoiado por diversos movimentos autoritários e conservadores da sociedade civil (SAGRES, 2022; SANTOS, 2020), opõe-se a modelos de gestão e práticas educacionais democráticas e traz graves perspectivas para a educação no país. Segundo Santos (2020, p. 15), a militarização faz “submeter a escola, os sujeitos, suas rotinas, seus corpos e suas culturas ao controle, à padronização, a uma disciplinarização coercitiva”.
Não por acaso, o tema da militarização tem fomentado uma significativa produção acadêmica por meio de diversos artigos, dissertações e teses, e penetrado no debate público nacional. Nos últimos anos, estudiosos, sobretudo na área da educação, buscam as razões de tal política em diversas pesquisas. Dentre as abordagens utilizadas, identifica-se a teoria marxista (BEZERRA, 2019; PAULO, 2019; MIRANDA, 2021; FERRARI, 2022) e a teoria foucaultiana (CRUZ, 2017; ARAUJO, 2021; VIARO, 2022; STRIEDER; SILVA, 2022).
A pretensão do presente artigo é contribuir com o campo de pesquisa emergente da militarização da educação a partir do nível teórico. De acordo com Gamboa (1998, p. 57), esse nível é um dos elementos constitutivos do chamado “esquema paradigmático” do fazer científico. No nível teórico, consideram-se “os núcleos conceituais básicos, autores e clássicos cultivados, pretensões críticas com relação a outras teorias” dentre outros elementos. Ou seja, trata-se do nível no qual se formula as ferramentas analíticas para a análise de um objeto.
Elegeram-se obras de dois filósofos: o marxista franco-argelino Louis Althusser e o francês de trajetória intelectual singular Michel Foucault. Ambos os filósofos, apesar de não terem privilegiado a educação em suas obras, são há muito estudados e utilizados nas pesquisas educacionais do país por suas relevantes contribuições, sobretudo por considerarem a escola como espaço de relações de dominação e poder. E, mesmo possuindo proximidades e convergências em várias conceitos e abordagens (RYDER, 2013; PALLOTTA, 2019; SILVA; PARANÁ; PIMENTA, 2021), o
diálogo e a articulação entre os dois autores não têm sido frequentes nos estudos sobre a militarização nas escolas públicas.
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As questões que motivam o artigo são: quais as principais contribuições teóricas de Althusser e Foucault para os estudos sobre militarização de escolas públicas no Brasil? Sendo autores de tradições teóricas distintas, qual articulação conceitual é possível realizar para auxiliar a análise da militarização da educação básica? Assim, o objetivo deste artigo é analisar os conceitos sobre a educação presentes em ambos os teóricos, explicitando neles as práticas de dominação e de repressão no processo educacional. Especificamente, comparar e articular, à luz das políticas conservadoras e autoritárias de militarização, a teoria dos Aparelhos Ideológicos de Estado (ALTHUSSER, 2022) e a teoria do poder disciplinar (FOUCAULT, 2014), presentes em duas obras centrais dos filósofos.
Revisitar tais teóricos, há muito consolidados nas ciências humanas no geral e que retornam em diversos debates contemporâneos, como na recente literatura sobre militarização da educação, justifica-se para explorar novas possibilidades heurísticas que contribuam ao avanço das pesquisas desse campo específico. De forma mais concreta, considera-se que as contribuições de Althusser e Foucault possibilitam construir os fundamentos de mais uma dimensão do fenômeno educacional (OLIVEIRA, 1991, p. 41) explicitada e rearticulada pela militarização: a dimensão repressivo-disciplinar da escola capitalista.
A análise das obras centrais selecionadas para alcançar esse intuito contou com o auxílio de comentadores como Baudelot e Establet (1987), Saviani (1999), Cassin (2022), Gallo (2014), Silva (2016), Pallotta (2019), Silva, Paraná e Pimenta (2021) e Backer (2022). Também se estruturou nos seguintes eixos, construídos para fundamentar a interpretação e a comparação diante problemática em tela: contexto e intercâmbio teórico; lugar sociopolítico da educação; dinâmica específica do fenômeno educacional; práticas repressivas na/da escola.
Uma relevante observação a se fazer é sobre o caráter dessa revisita. Não se pretende um retorno acrítico ou dogmático às obras. Inegavelmente, as limitações das contribuições de Althusser e Foucault para o debate educacional no Brasil atual são de diversas ordens. Ora, ambos os autores tiveram a realidade europeia, sobretudo a França, como local de produção de conhecimento. Já as obras escolhidas datam da década de 1970. Considerar as múltiplas diferenças em relação à realidade brasileira atual, aguçando assim o rigor analítico, é fundamental para uma análise das particularidades históricas da chamada dimensão repressivo-disciplinar da educação
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no capitalismo. Por isso, tais contribuições são apenas um ponto de partida teórico, uma etapa no processo de produção científica, não uma resposta final às questões relativas à militarização. A revisita, portanto, é também uma revisão tendo em vista os objetivos elencados.
O artigo está dividido em quatro partes. Na primeira parte, realiza-se um panorama do estado do conhecimento sobre militarização da educação no Brasil, destacando-se produções que se utilizam de Althusser e Foucault. Na segunda, foca- se na análise da obra selecionada de Louis Althusser (2022). Na terceira, analisa-se a obra de Michel Foucault (2014). Na quarta parte, busca-se sintetizar as análises e os conceitos e relacionar tais autores, em suas distâncias, complementariedades e potencialidades, à luz do processo de militarização da educação básica no Brasil.
Nesta seção, pretende-se gerar um panorama do estado do conhecimento sobre militarização da educação, a partir da literatura nacional. Além disso, localizar a presença de Althusser e Foucault no arcabouço teórico de tais produções acadêmicas. Segundo Morosini e Fernandes (2014, p. 155):
estado de conhecimento é identificação, registro, categorização que levem à reflexão e síntese sobre a produção cientifica de uma determinada área, em um determinado espaço de tempo, congregando periódicos, teses, dissertações e livros sobre uma temática específica.
Nos últimos anos, a militarização da educação básica no Brasil foi tema de diversas produções acadêmicas. A partir de busca realizada em fevereiro de 2023 nas bases de dados da CAPES e da BDTD, considerando o intervalo de 2019 e 2022, foram identificadas 29 dissertações e teses e 38 artigos em periódicos científicos de alto impacto (classificação Qualis Capes entre A1 e B2). Foram, em média, cerca de 15 produções anuais nesse período, demonstrando uma presença significativa do tema.
Essa produção é centrada na área da educação. No entanto, também se identificou produções advindas de programas de pós-graduação de outras áreas, tais como Ciência Política, Sociologia, História dentre outras.
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A recente literatura sobre militarização da educação possui uma variedade expressiva de abordagens e objetos de pesquisa. Há um ramo da literatura que lida especificamente com os impactos da militarização na gestão democrática e em outros pilares da legislação educacional vigente no Brasil. Outro ramo que realiza estudos de caso de políticas e processos de militarização em unidades escolares, cidades, estados ou mesmo em nível nacional. Um terceiro que inclui a militarização nos debates em torno do neoliberalismo e do neoconservadorismo. Por fim, além de alguns estudos enfocando os temas da avaliação e qualidade de ensino, há um ramo que se volta para os problemas da violência, da repressão e da disciplina.
Althusser e Foucault são autores encontrados em mais de um desses ramos. A utilização desses autores também varia de intensidade: em alguns casos, são citados de forma pontual; em outros, tais autores compõem o arcabouço teórico da produção científica.
As dissertações Paulo (2019), Miranda (2021) e Ferrari (2022) fazem referências à Althusser. Na pesquisa de Miranda (2021), por exemplo, defende-se, por meio das formulações de Althusser, que a presença de militares nas escolas, representantes do Aparelho Repressivo de Estado, reforça a função reprodutora da escola no capitalismo.
A abordagem foucaultiana é mais presente no campo. Encontra-se, por exemplo, nos artigos de Viaro (2022) e Strieder e Silva (2022). Em Viaro (2022), o PECIM é analisado enquanto processo de militarização que visa produzir sujeitos dóceis, de condutas padronizadas.
No entanto, constata-se a presença separada de tais autores. Na dissertação de Paulo (2019), por exemplo, há tanto referência ao conceito de Aparelho Ideológico de Estado, de Althusser, quanto referência ao poder disciplinar em Foucault para analisar os objetivos das escolas militarizadas. Todavia, ao longo da dissertação, esses autores não se articulam de forma explícita em nenhum momento.
Dada a presença separada de Althusser e Foucault na literatura em tela se justifica o esforço de revisita de tais autores e a tentativa de uma articulação teórica entre ambos.
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Louis Althusser é conhecido no debate educacional brasileiro, sobretudo, a partir da caracterização e da crítica de Dermeval Saviani. Segundo ele, Althusser é um teórico “crítico-reprodutivista”, para quem a escola tem a função de “reproduzir a sociedade de classes e reforçar o modo de produção capitalista” (SAVIANI, 1999, p. 27). Apesar de considerar as possibilidades de disputas no âmbito escolar, a partir da luta de classes que também se faz pela escola, o esquema teórico de Althusser não abarca possibilidades de transformações na função da escola no capitalismo (SAVIANI, 1999, p. 35). Interpretação similar também está presente em outros teóricos da educação contemporâneos de língua inglesa (BACKER, 2022).
A posição e a influência de Saviani, assim como o advento de outras correntes pós-estruturalistas e pós-marxistas, acabaram relegando a teoria althusseriana a um lugar menor na reflexão educacional, por seu suposto fatalismo pedagógico. No entanto, há sinais de retorno às contribuições de Althusser no âmbito nacional, como mostra recente compilado de produções acadêmicas sobre o autor (PINHEIRO, 2016). Internacionalmente, também se nota um ressurgimento, em que se busca as potências analíticas do autor, desconsideradas por seus críticos (BACKER, 2022).
Sem dúvida, a obra de maior circulação e influência de Althusser no debate educacional é seu ensaio publicado na revista francesa Le Pensée, em 1970, Ideologia e Aparelhos Ideológicos de Estado: notas para uma investigação. Este ensaio compõe um conjunto de manuscritos, publicados postumamente com o título Sobre a Reprodução (ALTHUSSER, 1999). O foco de análise deste artigo será o referido ensaio, considerando que ali se encontra o centro da reflexão althusseriana sobre educação.
Na publicação de 1970, o filósofo estruturou, mesmo que sob a forma de notas de pesquisas provisórias, aportes para uma teoria marxista do Estado e da ideologia, incluindo nesse âmbito a escola moderna. Seguindo Marx, Althusser parte da seguinte tese: qualquer formação social só existe sob uma constante reprodução das condições de produção. Tais condições significam não apenas os meios de produção (matéria-prima, instalações, instrumentos etc.), mas também a força de trabalho. No capitalismo, essa reprodução da força de trabalho se dá mediante o salário
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(reprodução material) e a “qualificação” – na qual, o sistema escolar possui um papel central.
Ao abordar a reprodução da força de trabalho, Althusser se defronta com as relações sócio-políticas, de classe, em que a escola se mostra profundamente implicada. Isso porque, a reprodução técnica da força de trabalho, sua qualificação de acordo com a divisão social do trabalho, ocorre ao mesmo tempo de “uma reprodução de sua submissão às normas da ordem vigente. Isto significa, por parte dos operários, uma reprodução da submissão à ideologia dominante” (ALTHUSSER, 2022, p. 63). A qualificação, levada a cabo pela escola e outras instâncias e instituições, para além da empresa capitalista, contribui para a reprodução das próprias relações sociais de produção, portanto, para a reprodução da própria dominação presente na sociedade de classes.
Para avançar na compreensão da reprodução das condições de produção, em suas dimensões sócio-políticas e de classe, Althusser se desloca para o debate marxista da superestrutura, ou seja, o debate em torno do Estado e das formas político-jurídicas e ideológicas. Para ele, a partir do ponto de vista da reprodução que é possível construir uma teoria científica do Estado e da ideologia.
A teoria marxista clássica do Estado, assim como a teoria marxista da ideologia, apresenta variadas limitações, segundo o diagnóstico de Althusser, e sobre elas que o autor busca incidir. Em relação à teoria marxista do Estado, os clássicos do marxismo identificaram e desenvolveram basicamente o aspecto essencial do Estado: ele é “uma ‘máquina’ de repressão que permite às classes dominantes [...] assegurar a sua dominação” (ALTHUSSER, 2022, p. 68). É por meio desse aparelho essencial que a burguesia, possuidora do poder de Estado no capitalismo, exerce sua dominação sobre as classes trabalhadoras, mantendo-se classe dominante. Em relação à teoria da ideologia, considerando as formulações de A Ideologia Alemã, a limitação é ainda maior. No limite, a teoria da ideologia formulada ali não é marxista, exigindo uma reconstrução quase completa do objeto, que consiga afastar a ideologia do terreno de pura inversão da realidade, do erro e da ilusão (ALTHUSSER, 2022, p. 91).
O conceito fundamental de Althusser para avançar sobre esses limites da teoria marxista é o de Aparelhos Ideológicos de Estado (AIE). Aparelhos, no plural: religioso, escolar, familiar, jurídico, político, sindical, dentre outras “instituições” que, em sua
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pluralidade e sua dispersão, mostram-se presentes inclusive no assim chamado domínio privado, de acordo com o Direito. Para o autor, os AIE também compõem aquilo que se pode chamar de Estado. A reprodução das relações de produção, de classe, portanto, ocorre pela “divisão do trabalho” entre aparelho de Estado, repressivo, e aparelhos ideológicos. A hegemonia nestes últimos é crucial para uma classe dominante permanecer com seu poder de Estado, sob o controle do aparelho de Estado.
O conceito de AIE é influenciado por Antonio Gramsci (2001), segundo o autor, “o único que avançou no caminho que retomamos” (ALTHUSSER, 2022, p. 73), o caminho de pensar o Estado para além do aparelho (repressivo) de Estado, considerando também instituições da chamada sociedade civil. No entanto, Althusser ressalta o caráter não sistematizado dos escritos do sardo impossibilita a construção de uma teoria propriamente dita.
Os aparelhos ideológicos apenas são compreendidos em comparação e em relação ao aparelho de Estado, repressivo. Portanto, a teoria do Estado de Althusser combina Aparelho Repressivo de Estado (ARE) e Aparelhos Ideológicos de Estado (AIE). O ARE “compreende o governo, a administração, o exército, a polícia, os tribunais, as prisões etc.” (ALTHUSSER, 2022, p. 74), sendo instituições a funcionar predominante pela repressão, violência, coerção e força, física ou não física. Já os AIE funcionam principalmente pela ideologia, sobretudo a ideologia dominante.
Para Althusser, ambos não agem de forma exclusiva pela repressão ou pela ideologia. Todos os aparelhos de estado, repressivo ou ideológicos, funcionam tanto pela violência, quanto pela ideologia, em um duplo funcionamento. A diferença nesse aspecto se dá pela primazia de uma ou de outra. Segundo Althusser (2022, p. 76), “o Exército e a Polícia funcionam também através de ideologia, tanto para garantir sua própria coesão e reprodução, como para divulgar os ‘valores’ por eles propostos”. Já os AIE funcionam “secundariamente através da repressão seja esta bastante atenuada, dissimulada, ou mesmo simbólica” (ALTHUSSER, 2022, p. 76). Os AIE, como o escolar e o religioso “‘moldam’ por métodos próprios de sanções, exclusões, seleção, não apenas seus funcionários mas também suas ovelhas” (sic) (ALTHUSSER, 2022, p. 77).
O terreno em comum entre o ARE e os diversos AIE, em seus funcionamentos duplos, “permite compreender que constantemente tecem-se sutis combinações
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tácitas ou explícitas entre o jogo do aparelho (repressivo) de Estado e o jogo dos aparelhos ideológicos de Estado” (ALTHUSSER, 2022, p. 77). Os exemplos de combinações, são vários, sendo necessários estudos detalhados para uma melhor compreensão dessa realidade. Para Baudelot e Establet (1987, p. 155, tradução livre), que realizaram uma investigação do sistema educacional francês sob as diretrizes althusserianas, a ideologia do ARE de “desprezo aos delinquentes, moralismo dos policiais, lições morais dos juízes etc.”, desempenha no aparelho escolar um “papel de acompanhamento”, por exemplo.
A partir do conceito de Aparelhos Ideológicos de Estado, Althusser (2022) busca construir as bases de uma nova teoria da ideologia. Em síntese, as teses fundamentais de Althusser, úteis para o propósito em tela, são: a ideologia tem uma existência material e a ideologia interpela os indivíduos enquanto sujeitos. A primeira vincula diretamente a existência da ideologia às práticas e rituais internos aos AIE. A ideologia não se caracteriza por um conjunto de ideias e discursos soltos: ela sempre se vincula a uma prática, existe ou se produz em ato. A segunda indica o caráter produtivo, positivo da ideologia, de construção de subjetividades que se reconheçam em determinado ordenamento social e atuem de forma consonante sobre o mesmo. Portanto, indica a ideologia como elemento fundamental à reprodução das formações sociais e econômicas.
Cabe explanar agora sobre como o filósofo compreende especificamente a escola, a qual ele chama de Aparelho Ideológico de Estado Escolar – AIE Escolar. Este possui posição dominante nas “formações capitalistas maduras” (ALTHUSSER, 2022, p. 84). Isso porque a escola:
se encarrega das crianças de todas as classes sociais desde o maternal, e desde o maternal ela lhes inculca, durante anos, precisamente durante aqueles em que a criança é mais “vulnerável”, espremida entre o aparelho de Estado familiar e o aparelho de Estado escolar, os saberes contidos na ideologia dominante (...) ou simplesmente a ideologia dominante em estado puro (ALTHUSSER, 2022, p. 87).
Segundo o autor, pela sua abrangência e eficácia social, a instituição escolar chega a substituir o que foi o aparelho religioso nas sociedades servis: um espaço central e legitimado de preparação dos indivíduos de diferentes classes para suas respectivas posições sociais. De forma geral, é por meio dos processos de
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aprendizagens, da prática educativa e dos saberes que os educandos são interpelados a serem sujeitos, e constituídos enquanto tais, dentro e para a ideologia dominante.
É pela aprendizagem de alguns saberes contidos na inculcação maciça da ideologia da classe dominante que, em grande parte, são reproduzidas as relações de produção de uma formação social capitalista, ou seja, as relações entre exploradores e explorados (ALTHUSSER, 2022, p. 88).
Os Aparelhos Ideológicos Estado, incluindo o Escolar, segundo Althusser, pela sua unidade contraditória e relativa autonomia, são meios e lugares da luta das classes exploradas, sofrendo também efeitos da luta fora dos mesmos, o que é reforçado e desenvolvido em pós-escrito de 1976 (ALTHUSSER, 2022). Segundo Cassin (2002, p. 121), Althusser coloca “a necessidade de se pensar a escola como reprodutora das relações de produção e, ao mesmo tempo, como importante local da luta de classes, que se apresenta, predominantemente, como luta ideológica”. Mas essa abertura não significa completa flexibilidade dos AIE, cujos limites estão ancorados na classe que detém o poder de Estado via repressão (PIMENTA, 2013).
Michel Foucault foi um filósofo francês contemporâneo de Althusser que não se vinculou ao marxismo, circulando em torno das contribuições estruturalistas e pós- estruturalistas. A teoria foucaultiana tornou-se significativa no debate educacional brasileiro, sendo seu trabalho divulgado e estudado no âmbito acadêmico, como demonstra Aquino (2013).
Autor de vasta obra crítica sobre as formas de poder e de subjetivação, “Foucault não tratou mais diretamente de questões relativas à Educação, a não ser em Vigiar e punir, mais especificamente na parte sobre a disciplina, e nos cursos finais, sobre os modos de subjetivação na Antiguidade, nos quais aparecem comentários pontuais, muitas vezes críticas, à Pedagogia” (GALLO, 2014). Tal obra, Vigiar e punir: Nascimento da prisão, de 1975, oferece contribuições explícitas para questão da dimensão repressivo-disciplinar da escola moderna.
Sabe-se que após um período de obras “arqueológicas”, nas quais realizou
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investigações epistemológicas sobre as formações discursivas, Foucault partiu para estudos e cursos sobre as transformações modernas nas práticas punitivas e de controle social, período conhecido como uma genealogia do poder. Vigiar e punir aborda a mudança nas formas de punição ocorrida na Europa entre os séculos XVIII-
XIX. Um caso exemplar dessa mudança é o paulatino desaparecimento dos suplícios, das torturas e dos castigos físicos executados publicamente, como espécie de espetáculo de justiça do poder soberano. Concomitante a esse desaparecimento, um conjunto de reformas, concepções e novas práticas de julgamento e de castigo vão ganhando terreno e se consolidando nas instâncias jurídicas, tornando dominante uma nova relação entre o corpo e o castigo, uma nova forma de execução punitiva menos voltada à tortura do corpo. As prisões modernas e a penalidade de detenção são arquétipos finais desse novo estilo penal.
No entanto, o enfoque de Foucault não se restringe a uma historiografia penal e a uma história do nascimento da prisão, como diz o subtítulo da obra. Interessa a Foucault, a partir das dinâmicas punitivas e suas mutações, construir uma genealogia do que chama de sociedade disciplinar e de poder disciplinar. Ele estuda os mecanismos punitivos em seus “efeitos positivos”, produtivos, relaciona-os a “outros processos de poder” e aos discursos científicos (FOUCAULT, 2014, p. 27), estabelecendo relações entre saber e poder advindos do novo estilo penal e das práticas que o conformaram. A pretensão foi identificar um modo específico de sujeição, em que o homem é ao mesmo tempo alvo de poder e objeto de conhecimento científico (FOUCAULT, 2014, p. 28); analisar como o corpo se tornou alvo de um novo investimento de poder para se tornar economicamente útil, propriamente disciplinado à nascente sociedade burguesa.
As incursões historiográficas de Foucault ao longo dos capítulos, que percorrem uma vasta gama de instituições e práticas, servem para captar a construção de uma “tecnologia política do corpo”, de uma “anatomia política”, estabelecidas a partir de procedimentos disciplinares dispersos (FOUCAULT, 2014, p. 31). Estes, segundo o autor, não são reduzidos à simples violência e à ideologia, nem a um aparelho de Estado específico. Conforme Silva (2016, p. 161), em Vigiar e Punir:
a prisão, no entanto, era apenas uma entre as instituições que incorporavam a nova forma de poder descrita por Foucault. Escola, hospital, fábrica e quartel são outros exemplos. De fato, para ele, o
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poder disciplinar ou as relações de poder levadas a efeito pela disciplina são a verdadeira característica das sociedades modernas, isto é, das sociedades disciplinares. Disciplina aparece, então, como a palavra-chave no diagnóstico que Foucault faz da sociedade moderna. Por outro lado, ele concebe disciplina como uma técnica que substitui as velhas formas de relações de poder.
Na parte III do livro, há o conjunto de reflexões mais profícuas para o entendimento sobre essa dinâmica disciplinar fundamental das sociedades modernas, incluindo o ambiente escolar. O poder disciplinar, para Foucault, é um poder produtivo e que difere de outras implicações políticas sobre o corpo existente ao longo da história. Tal poder forja corpos e subjetividades a partir de uma multiplicidade de procedimentos e de mecanismos que organizam de maneira própria espaços e temporalidades e são geridos de forma contínua, extensiva e científica. Segundo o autor, tratam-se de “métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade” (FOUCAULT, 2014, p. 135). Uma operação tecnológica ou anatômica que vincula obediência à utilidade, e utilidade à obediência, assim recompondo o corpo humano, inaugurando um corpo dócil e o fazendo entrar em uma “maquinaria de poder” (2014, p. 135).
De certa forma, trata-se de em movimento análogo ao da expropriação do proletário frente ao produto do seu trabalho: “se a exploração econômica separa a força e o produto do trabalho, digamos que a coerção disciplinar estabelece no corpo o elo coercitivo entre a aptidão aumentada e uma dominação acentuada” (FOUCAULT, 2014, p. 136). E, portanto, Foucault não esconde a afinidade que há entre a acumulação de capital e a “acumulação de homens”, cada uma servindo de modelo para a outra (FOUCAULT, 2014, p. 213).
Foucault se esforça em fazer uma análise das disciplinas e de sua proliferação ao decorrer dos séculos XVII e XVIII, até o surgimento da sociedade tipicamente disciplinar. Em primeiro lugar, a disciplina opera como uma arte das distribuições: ela distribui uma massa de corpos, uma multiplicidade, em um determinado espaço, sob uma determinada ordem. “Cada indivíduo no seu lugar; e em cada lugar, um indivíduo” (FOUCAULT, 2014, p. 140), organizando assim um espaço analítico cujos contatos e comunicações são previamente organizados. Por isso, a importância da arquitetura, incluindo a organização dos objetos no espaço, e seus efeitos funcionais, no hospital,
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na fábrica, na escola etc. Em relação às filas nas salas de aula, Foucault comenta:
determinando lugares individuais tornou possível o controle de cada um e o trabalho simultâneo de todos. Organizou uma nova economia do tempo de aprendizagem. Fez funcionar o espaço escolar como uma máquina de ensinar, mas também de vigiar, de hierarquizar, de recompensar (FOUCAULT, 2014, p. 144).
Ao mesmo tempo, a disciplina é um controle da atividade. A utilização intensiva do horário, o rigor com o tempo, uma cronometria, também são fundamentais ao exercício do poder disciplinar. Chegando ao ponto de atingir “outro grau de precisão na decomposição dos gestos e dos movimentos, outra maneira de ajustar o corpo a imperativos temporais”. Se a disciplina organiza o espaço de forma analítica, faz isso também com o tempo e o movimento. “O tempo penetra no corpo” (FOUCAULT, 2014, p. 149). Simultaneamente, faz emergir uma compreensão orgânica do corpo enquanto uma “máquina natural” (FOUCAULT, 2014, p. 153).
Esse poder também se fundamenta na organização seletiva e seriada; na composição das forças e dos elementos para constituição de unidades mais eficientes possíveis; em uma cadeia hierárquica e de comando. Em síntese, Foucault diz:
a tática, arte de construir, com os corpos localizados, atividades codificadas e as aptidões formadas, aparelhos em que o produto das diferentes forças se encontra majorado por sua combinação calculada é sem dúvida a forma mais elevada da prática disciplinar (FOUCAULT, 2014, p. 165).
Ou, ainda: “o poder disciplinar é com efeito um poder que, em vez de se apropriar e de retirar, tem como função maior ‘adestrar’; ou sem dúvida adestrar para retirar e se apropriar ainda mais e melhor” (FOUCAULT, 2014, p. 167).
O autor ainda ressalta os papéis fundamentais da vigilância hierárquica e da visibilidade permanente, cujo modelo arquitetônico por excelência é o panóptico de Bentham, e do conjunto de sanções normalizadoras. Pode-se compreender esse último como um “pequeno mecanismo penal” (FOUCAULT, 2014, p. 175), baseada em uma miríade de normas, que age em toda prática disciplinar.
Na oficina, na escola, no exército funciona como repressora toda uma micropenalidade do tempo (atrasos, ausências, interrupções das tarefas), da atividade (desatenção e negligência), da maneira de ser (grosseria, desobediência), dos discursos (tagarelice), do corpo (atitudes 'incorretas'), da sexualidade (indecência). Ao mesmo tempo é utilizada, a título de punição, toda uma série de processos sutis, que
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vão do castigo físico leve a privações ligeiras e a pequenas humilhações (FOUCAULT, 2013, p. 175).
Mais uma vez, agora sob os conceitos de Foucault, fica borrada separação clara entre educação e violência, existindo na escola moderna uma dimensão de interpenetração entre ambas. Sem dúvida, distante da violência espetacular e brutal dos suplícios medievais, mas preservando uma prática de sujeição, mais extensiva, sutil e contínua, que também toma o corpo como objeto, mesmo que seja para ampliar sua utilidade e sua expropriação.
No livro, no entanto, Foucault não discorre de forma explícita sobre as relações de resistência a esse novo poder. No entanto, na parte “metodológica” da História da Sexualidade I, afirma:
onde há poder, há resistência e, no entanto (ou melhor, por isso mesmo) esta nunca se encontra em posição de exterioridade em relação ao poder. [...] Elas não podem existir senão em função de uma multiplicidade de pontos de resistência que representam, nas relações de poder, o papel de adversário, de alvo, de apoio, de saliência que permite a preensão. Esses pontos de resistência estão presentes em toda a rede de poder (FOUCAULT, 1988, p. 91).
Portanto, é importante também considerar as possibilidades de resistência à tecnologia política que as disciplinas modernas inauguram nas diversas instituições, inclusive a escolar.
De acordo com a leitura feita das duas obras selecionadas de Althusser e Foucault, a partir dos eixos de análise elencados para fundamentar a interpretação e comparação em tela, destaca-se algumas especificidades de cada autor, como se vê na tabela abaixo.
Tabela 1 - Mapa comparativo entre Althusser e Foucault sobre educação
Eixos | Althusser | Foucault |
Contexto e intercâmbio teórico | Marxismo. Retificação conceitual. | Estruturalismo e pós- estruturalismo. |
Lugar sociopolítico da educação | Auxílio na reprodução das relações de exploração e dominação de classe. Luta de | Proliferação do poder disciplinar na sociedade moderna. Redes de poder e de afrontamentos. |
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classes. | ||
Dinâmica específica do fenômeno educacional | Qualificação da força de trabalho, submissão ideológica e, secundariamente, repressão. | Distribuição, controle e vigilância dos corpos e de suas atividades. |
Práticas repressivas na/da escola | Relação com aparelho repressivo de Estado, sanções, repressão simbólica. | Adestramento anatômico, sanções normalizadores. |
Elaboração própria a partir da análise de Althusser (2022) e Foucault (2014).
Em Althusser (2022), viu-se que a educação moderna funciona como um dos vários aparelhos ideológicos de Estado, e que, apesar de se tratar de um espaço de disputas e lutas, cumpre uma função primordial: a de auxiliar na reprodução das relações de produção capitalistas, na reprodução da própria dominação de classe burguesa sobre os trabalhadores. Esses aparelhos, incluindo a escola, em primeiro lugar, articulam-se, complementam-se e interpenetram-se com o aparelho (repressivo) de estado. Em segundo lugar, possuem um duplo funcionamento, ideológico-repressivo.
A partir das contribuições de Althusser, pode-se pensar a militarização como uma articulação específica entre Aparelho Repressivo de Estado e o AIE Escolar. No âmbito dessa articulação é possível investigar quais modificações ideológicas e repressivas ocorrem em uma escola militarizada, como as práticas ideológicas e repressivas desse modelo militarizado se combinam, assim como relacionar tais modificações com o cenário mais amplo da luta de classes no Brasil atual.
Em Foucault (2014), a escola moderna se tornou um dos palcos da disseminação de um novo tipo de poder: o disciplinar. Esse poder, que se constituiu de forma dispersa em diversos mecanismos, acaba por produzir corpos dóceis e úteis à nova ordem social moderna, capitalista. Esse poder descentralizado opera além da dualidade violência-ideologia, ou da repressão-ilusão. É uma tecnologia, um conjunto de táticas adestradoras, que amplia a utilidade dos corpos, ao mesmo tempo em que gera mais docilidade, fundamentando-se, por fim, em um conjunto de saberes e verdades.
As contribuições de Foucault para o estudo da militarização da educação estão sobretudo no conceito de disciplina, sob o qual é possível construir uma analítica da “escola-quartel” (SANTOS, 2021). Foucault abre espaço para uma análise dos mecanismos de uma pedagogia militarizada, desde a disposição arquitetônica à
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utilização do tempo no ambiente escolar, passando pelas formas de controle dos corpos docentes e discentes. Além disso, possibilita uma reflexão sobre o reforço do poder disciplinar na sociedade contemporânea (DELEUZE, 1992).
Tais contribuições, como visto, encontram-se de forma variada na literatura recente sobre militarização que lançam mão de ambos os autores. No entanto, o intuito deste artigo é explorar articulações entre Althusser e Foucault visando a análise da militarização da educação.
Evidenciadas as especificidades, busca-se encontrar alguns pontos de conexão e relação que contribuam para a compreensão da dimensão repressivo- disciplinar da escola capitalista. No contexto teórico, Althusser critica a concepção instrumental, repressiva e centralizadora do Estado ao ampliar a teoria do Estado marxista com o conceito de Aparelhos Ideológicos de Estado. Em sua pluralidade e relativa autonomia, os AIE renovam a concepção de poder do marxismo. Além disso, Althusser conceitua ideologia a partir de práticas internas aos Aparelhos Ideológicos de Estado e da interpelação, produção e modulação de sujeitos.
A crítica a uma concepção reduzida de poder aproxima Althusser e a teoria do poder disciplinar de Foucault, mesmo que essa aproximação não tenha sido explícita e trabalhada à época pelos autores. Pallotta (2019, p. 25) contribui com essa interpretação:
o poder disciplinar se exerce sobre o corpo, e os conduz segundo uma certa norma através de um jogo de recompensas e de punições: ele é incontestavelmente material. Pois, precisamente, e é isso que Foucault não quis ver no artigo de Althusser, em 1970, Althusser propõe um novo conceito de ideologia material segundo a qual as ideias de um sujeito são seus atos materiais inseridos em práticas materiais. É assim que podemos nos perguntar se Foucault, em sua rejeição do conceito de ideologia, levou realmente em conta a novidade do conceito althusseriano: de fato o poder disciplinar pensado por Foucault é material assim como é material a ideologia ritualizadas nas práticas reguladas pelos aparelhos ideológicos pensados por Althusser.
É possível identificar também outra proximidade fundamental em ambos os filósofos, quer seja, o exame da problemática da reprodução/disseminação de relações de poder na moderna sociedade capitalista. O lugar sociopolítico da educação, em ambos, é semelhante, apesar da construção conceitual diversa. Novamente, Pallotta (2019, p. 24) comenta que em Foucault há uma “retomada
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manifesta das temáticas althusserianas: a ideia de instituições que assujeitam os indivíduos às exigências da produção capitalista”. O próprio Foucault trata da “acumulação de homens” no processo disciplinar como algo em afinidade com a acumulação de capital.
Na leitura realizada das duas obras, no que se refere à dinâmica específica da educação e às práticas repressivas na/da escola, verificam-se também sobreposições, apesar de dissonantes, entre o funcionamento duplo das práticas nos Aparelhos Ideológicos de Estado (Althusser) e o mecanismo disciplinar (Foucault). A analítica do poder de Foucault, em seu nível micro, tem diversos detalhes sobre a dinâmica de funcionamento das instituições modernas, conseguindo assim definir regularidades nas várias formas disciplinares. No entanto, Foucault apresenta um limite ao não colaborar para pensar disciplinas diversas para diferentes posições sociais (por exemplo, de classe), ou quando o faz é sem dar centralidade a isso. Sua própria concepção de dominação parece por vezes anônima, difusa, assim como se refere a resistências de modo muito geral (POULANTZAS, 2000, p. 42). Em Althusser, há a afirmação de um duplo funcionamento dos AIE e ARE que consegue vincular os aparelhos à estrutura social mais geral, incluindo as classes sociais. Por outro lado, pouco avançou quanto ao funcionamento concreto dessa duplicidade, também incorrendo a generalidades (SILVA; PARANÁ; PIMENTA, 2021).
Ao articular tais pontos de conexão, de forma heurística, pode-se produzir algumas formulações:
Há um conjunto de práticas e discursos disciplinares, coercitivas e de sujeição presente de formas variadas nas instituições educacionais capitalistas.
Tais práticas e discursos se materializam no espaço, nas temporalidades, nas hierarquias, nas normas, nas seleções, nas sanções e nas resistências das escolas enquanto locais políticos.
Visam e colaboram com a produção de sujeitos que reproduzam determinadas relações de poder/dominação e hierarquias socioeconômicas mais gerais.
O referido conjunto de práticas e discursos escolares possui uma autonomia relativa e uma flexibilidade em relação à estrutura social.
Articula saberes/ideologias e corpos, dinâmicas físicas e não físicas. Práticas e discursos que são produtivos, ao mesmo tempo em que podem ser coercitivas, envolvendo dinâmicas de sujeição-punição.
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Esse conjunto de práticas e discursos, nomeado aqui de dimensão repressivo- disciplinar da educação no capitalismo, estão no cerne das políticas de militarização da educação. As escolas militarizadas, nessa perspectiva, são escolas nas quais o conjunto interno de práticas e discursos disciplinares e repressivos ganha uma nova predominância, característica e forma, a partir da relação estabelecida entre corporações e/ou técnicas militares, profissionais civis e comunidade escolar. A ampliação de normas disciplinares e dispositivos punitivos, a presença de militares no ambiente escolar e a adoção de rituais de quartel são exemplos concretos pelos quais se pode evidenciar a dimensão repressivo-disciplinar em sua nova forma no Brasil atual.
Um documento no qual essa dimensão fica explícita é o Manual das Escolas Cívico-Militares, do PECIM (BRASIL, 2020). O Manual é constituído por um conjunto extenso de regulamentos e normas que visam enquadrar e direcionar, de forma ampla, a gestão escolar e as práticas educativas nas instituições educacionais militarizadas. A extensa normatização de todas as práticas, papéis e pessoas da escola alcança até mesmo as condutas e atitudes dos responsáveis fora da instituição, passando também pelos corpos dos estudantes, que devem ser uniformizados aos detalhes. Nesse movimento, há uma ampliação concomitante das sanções no âmbito escolar. Perante descumprimento de normas por parte de estudantes, o Manual propõe até mesmo uma espécie de processo penal, encabeçada por militares, cuja codificação envolve ficha de ocorrência, apuração, defesa, aplicação de “medida educativa”, recurso e arquivamento (BRASIL, 2020, p. 289).
Outra implicação bastante significativa da militarização é a constituição de um Corpo de Monitores nas escolas. Tais monitores não são educadores, mas sim militares, inclusive das Forças Armadas. Segundo o Manual, esse novo segmento escolar visa o controle comportamental e das relações entre os membros da comunidade escolar. Cabe a tal Corpo de Monitores assegurar o conjunto de normas, através de rondas pela escola, estimular o “culto aos símbolos nacional” (BRASIL, 2020, p. 38) e realizar rituais diários de formaturas, ordem unida e execução de hinos com os estudantes.
Tais discursos, normas e práticas coercitivas e a constituição de uma educação enquanto subjetivação para a obediência e reprodução das relações e estruturas sociais dominantes, no entanto, não podem ser compreendidas como uma novidade
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completa, inaugurada pelas políticas de militarização da educação. A partir da articulação entre Althusser e Foucault, viu-se que tal dimensão repressivo-disciplinar é constitutiva da educação no capitalismo. Com a militarização, essa dimensão é sim reformulada: os rituais, normas e sanções escolares já em curso em prol da disciplinarização dos estudantes, por exemplo, são reforçados e modificados com a presença direta de militares e sua atual ideologia.
Desenvolver de forma mais aprofundada a compreensão dessa nova forma da dimensão repressivo-disciplinar, importante ressaltar, só será possível considerando as especificidades e a história da formação social brasileira e da conjuntura atual. Tal formação social se estruturou a partir de processos de colonização e dominação imperialista ao longo de séculos e apresenta particularidades muito relevantes quanto à constituição do Estado e de outras instituições sociais, incluindo a escolar (SAES, 2020; BERGER, 1984). Os séculos de escravização de milhões de pessoas trazidas compulsoriamente da África e de extermínio dos povos originários fomentaram no país forte uma tendência autoritária e violenta das formas de controle social, incluindo aí as corporações militares, além de profunda desigualdade socioeconômica e racial (HASENBALG, 2005). Conjunturalmente, o país presencia há vários anos o ressurgimento de uma extrema-direita, que possui, como uma de suas pautas, a política educacional (SANTOS, 2020).
Assim, situar o fenômeno da militarização na recente ascensão conservadora, autoritária e de direita, e na desigual e racista formação social brasileira é um desafio para uma análise ampla e concreta da recente modificação na dimensão repressivo- disciplinar da educação, ainda por se fazer sob a provisória proposta de articulação teórica acima. Assim como um esforço fundamental para qualificar uma intervenção política crítica frente a tal quadro.
O artigo buscou revisar contribuições teóricas dos filósofos Louis Althusser e Michel Foucault para o recente campo de pesquisas em torno das políticas de militarização de escolas públicas no Brasil. A partir da análise bibliográfica de duas obras centrais dos autores, Ideologia e Aparelhos Ideológicos de Estado e Vigiar e Punir, ambas dos anos 1970, constatou-se as potencialidades dos conceitos de
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Aparelhos Ideológicos de Estado e poder disciplinar para o estudo da militarização. Apesar das diferenças nas abordagens dos autores, há também zonas de contato que possibilitam ambas as teorias, heuristicamente, serem pontos de partida para se construir os fundamentos da dimensão repressivo-disciplinar da escola capitalista, reforçada no modelo militarizado. Ao mesmo tempo, propôs-se a continuidade de uma análise mais concreta e contextualizada à realidade nacional de tal dimensão, caminho necessário para fortalecer a crítica à militarização e buscar modelos político- educacionais antagônicos ao retorno de formas mais autoritárias de dominação capitalista.
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V.21, nº 44, 2023 (janeiro-abril) ISSN: 1808-799 X
Mauro Rogério de Almeida Vieira2
Resumo
O artigo indica como a experiência da classe trabalhadora na economia solidária contribui para a práxis político-educativa da educação profissional. Seguindo Thompson, parte-se da compreensão de que o ‘fazer-se’ da educação profissional é marcado pela disputa da formação da classe trabalhadora. Desse modo, a partir da investigação teórica e de observação-participante do projeto ‘GerAção Solidária/IFRN’, constata-se que a articulação da experiência de classe na economia solidária com a educação profissional promove um restabelecimento dos laços entre educação e os anseios da classes populares.
Palavras-chave: Educação profissional; Práxis; Experiência; Economia Solidária; E. P. Thompson.
EDUCACIÓN PROFESIONAL Y LA PRAXIS DE LA ECONOMÍA SOLIDARIA: UN ANÁLISIS A PARTIR DE LOS APORTES DE E. P. THOMPSON
Resumen
El artículo indica cómo la experiencia de la clase trabajadora en la economía solidaria contribuye a la praxis político-educativa de la educación profesional. Siguiendo a Thompson, el punto de partida es la comprensión de que el 'hacer' de la educación profesional está marcado por la disputa por la formación de la clase obrera. De esta manera, a partir de la investigación teórica y la observación-participante del proyecto 'GerAção Solidária/IFRN’, parece que la articulación de la experiencia de clase en la economía solidaria con la educación profesional promueve un restablecimiento de vínculos entre la educación y las aspiraciones de las clases populares.
Palabras Clave: Formación profesional; Práxis; Experiencia; Economía Solidaria; E. P. Thompson.
PROFESSIONAL EDUCATION AND THE PRAXIS OF SOLIDARITY ECONOMY: AN ANALYSIS BASED ON THE CONTRIBUTIONS OF E. P. THOMPSON
Abstract
The article indicates how the experience of the working class in the solidary economy contributes to the political-educational praxis of professional education. Following Thompson, the starting point is the understanding that the 'doing' of professional education is marked by the dispute over the formation of the working class. Thus, based on the theoretical investigation and participant-observation of the project 'GerAção Solidária/IFRN’, it appears that the articulation of the class experience in the solidarity economy with professional education promotes a reestablishment of the ties between education and the aspirations of the popular classes.
Keywords: Professional education; Praxis; Experience; Solidary Economy; E.P. Thompson.
1 Artigo recebido em 07/02/2023. Segunda avaliação em 10/03/2023. Segunda avaliação em 16/03/2023. Aprovado em 29/03/2023. Publicado em 13/04/2023.
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v21i44.57309.
2Doutorando em Educação Brasileira pela Universidade Federal do Ceará (UFC), Ceará - Brasil. Mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Rio Grande do Norte -Brasil. Professor de Filosofia do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte – IFRN/Mossoró.
E-mail: mauro.vieira@ifrn.edu.br. Lattes: http://lattes.cnpq.br/9912305579298001. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2861-6176.
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Este artigo situa-se nos debates acerca das relações entre trabalho e educação. O advento da sociedade dividida em classes desdobrou uma cisão entre trabalho e educação. O surgimento da escola, como espaço de formação humana por excelência, marca a emergência de um espaço de formação separado da produção. Esta separação tem atravessado a história de diversas sociedades marcadas pelo estigma da separação e oposição entre trabalho manual e trabalho intelectual. Na atualidade, as investigações sobre trabalho e educação tem ganhado uma importância necessária tendo em vista a busca por alternativas sociais e educacionais capazes de responder aos desafios impostos pela exigência de superação de um modo de vida que vem despontando como insuficiente e destrutivo diante da totalidade da problemática social.
Esta investigação, assim, apresenta uma proposta para rearticulação dos vínculos entre trabalho e educação a partir do contato mediado pelos processos formativos resultantes da relação entre a práxis da instituição escolar, no caso, o instituto de educação, ciência e tecnologia do Rio Grande do Norte – IFRN/Mossoró, e a práxis dos grupos de economia solidária.
A investigação teve como referenciais gerais as considerações teóricas do marxismo, notadamente as contribuições de E. P. Thompson. Segundo o autor, a realidade social é dotada de evidências acerca do modo como a classe social se configura e se forma na totalidade social. O autor nos provoca a debater as ideias que emergem do tecido social, da materialidade da vida, e não somente dos enunciados apresentados nos sistemas teóricos. Essas proposições são herdeiras do materialismo histórico-dialético de Marx e Engels e apresentam uma compreensão aprofundada dos acontecimentos históricos do século XX e as implicações que repercutem sobre o século XXI.
Em conformidade com a assertiva de Thompson (1987) de que a realidade é marcada por evidências que podem vir a fornecer as pistas para a formação da classe trabalhadora, partimos da compreensão de que a Economia solidária representa uma experiência de classe constituída a partir da ação popular e que tem por fundamento uma visão do modo como são organizadas as funções econômicas e da organização social como um todo.
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E como Thompson (1981) concebe a experiência humana? A experiência humana é a maneira pela qual homens e mulheres agem sobre uma situação e relação determinada levando em consideração suas necessidades e interesses diante do conjunto de antagonismos sociais aos quais pertencem para produzir a vida em sociedade. Ao que parece, a experiência é costurada pela ação humana necessária, movida pelo que é importante para cada pessoa, isto é, movida pelos seus interesses. As experiências são capturadas no tempo e filtradas pela consciência e pela cultura dos sujeitos de inúmeras maneiras, muitas vezes, através das estruturas de classe (THOMPSON, 1981, p. 182).
Além disso, Thompson (1998) afirma que a práxis loci, a prática de vida local, desvela e desnuda a prática de vida concreta dos sujeitos, sendo assim, a práxis loci permite atentar para as reais condições de vida e organização da sociedade tendo em vista que a práxis humana cria a realidade social e transforma a realidade material através do trabalho e de outras experiências humanas. A práxis loci indica que a configuração de guias e apontamentos sobre a vida social apenas produzem roteiros parciais já previamente expressos nos modelos teóricos formais e gerais. Certamente, a teoria geral e formal é um dado importante para a pesquisa, porém, só adquire significado a partir de um estudo disciplinado do contexto local. O que Thompson (1998) pretende definir a partir desse entendimento é que a práxis, a prática real da vida, oferece mais espaço para a compreensão da experiência factual e de classe.
Deste modo, a pesquisa buscou evidências nas atividades desenvolvidas com os grupos participantes de um projeto de extensão no âmbito do IFRN. De acordo com Tiriba (2018), se faz necessário atentar para a compreensão segundo a qual os espaços/tempos de produção do ser social não estão situados apenas nas fábricas capitalistas, embora seja o local de hegemonia; as experiências de classes são vividas pelos trabalhadores/as para além da relação com o trabalho assalariado; estão nos movimentos sociais, nos sindicatos, partidos, movimento estudantil, agremiações diversas. Enfim, as experiências das classes trabalhadoras estão manifestadamente ocorrendo na cidade, no campo e em qualquer instância das relações sociais, mesmo que de modo invisibilizado e molecular.
O contexto estudado foi um processo formativo, dentre vários, que ocorreu como atividade do projeto de extensão intitulado ‘GerAção solidária: mulheres e jovens na economia’, executado durante dois anos no âmbito do Instituto Federal de
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Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte – IFRN em articulação com 30 grupos de economia solidária. A execução do projeto como um todo elevou e qualificou a práxis político-educativa3 da instituição conforme indicamos na atividade aqui examinada.
Atuei no desenvolvimento do projeto como coordenador geral e de formação de estudante/bolsista em que desenvolvia atividades de ensino, pesquisa e extensão junto com estudantes selecionados para atuarem na organização e registro das atividades realizadas pelo projeto. Uma das minhas atribuições no projeto, além de coordenar algumas atividades, foi a de pesquisador. Nesse sentido, minha atuação foi orientada em função de um olhar científico para as atividades realizadas. Assim, nossa postura de observador-participante (ANGROSINO, 2009) nos possibilitou o contato com uma realidade rica de significados.
Para efeito de localização do leitor, informo que o artigo parte de algumas considerações de Thompson (2002) sobre as relações entre educação e experiência da classe trabalhadora para analisar uma breve contextualização histórica referente ao percurso do campus Mossoró do IFRN. Em seguida, foi desenvolvida as análises depreendidas do processo formativo realizado entre a experiência com a práxis militante e emancipatória da economia solidária e a práxis político-educativa da educação profissional no IFRN/Campus Mossoró. Ao final, compreende-se que a práxis da economia solidária é capaz de provocar brechas e rupturas na configuração da educação profissional brasileira.
Thompson (2002) em uma conferência de 1968 intitulada ‘Educação e experiência’ parte da constatação de que a história do trabalho educacional é a história
3 O que denominamos de práxis político-educativa está relacionado com o que Sousa Jr. (2008) denomina de programa marxiano de educação. Para o autor, o programa marxiano de educação aparece relacionado a três elementos importantes do cotidiano educativo: o caráter educativo das relações contraditórias do trabalho, do momento da educação escolar, de preferência em união com o trabalho e, por último, da práxis político-educativa desenvolvida nos diversos momentos associativos dos trabalhadores nos sindicatos, partidos, locais de moradia etc. A práxis político-educativa sintetiza, neste artigo, a reunião desses três elementos do cotidiano educativo: a educação profissional realizada na escola através do princípio educativo do trabalho e a práxis militante emancipatória da economia solidária.
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do controle social. O controle social, de acordo com o autor, ocorre por meio do entendimento de que existe uma subordinação cultural, ou seja, nos diversos contextos históricos é incorporado um sentimento de que existiriam atitudes culturais superiores. Somente no contexto da Revolução Francesa, diz Thompson (2002), é que a ideia de superioridade e subordinação cultural é posta sob um exame radical.
Nossa compreensão desta análise de Thompson (2002), é a de que a palestra ‘Educação e experiência’ pode ser lida em um movimento dialético de denúncia das condições educacionais historicamente determinadas no processo de transformação social. Nesse caso, o autor denuncia esse caráter de controle social que a educação exerce uma vez que o que está em jogo mesmo é o medo das classes dominadoras em relação às espontaneidades populares. Thompson define esse medo como um “conjunto de reações provocadas pelo medo do potencial revolucionário da gente comum” (2002, p. 25).
Após fazer, digamos, essa denúncia, Thompson realiza um procedimento de análise e demonstra que há uma relação íntima entre educação e experiência humana. A análise constata que essa relação íntima está historicamente se perdendo, sobretudo, com a ascensão da burguesia. Desta análise surge uma espécie de propositura. Ao que parece, a primeira proposição é nutrir o sentimento de contra a cultura, contra a cultura que exclui a experiência humana, contra a cultura cujo sentimento é a superioridade cultural; outra proposição que surge em decorrência da primeira é a efetivação do restabelecimento da dialética entre educação e experiência cujo resultado é a criação de uma cultura igualitária comum. Na prática social a retomada da dialética educação-experiência se daria a partir de um novo sentimento na educação. Este novo sentimento pode ser expresso na imagem de uma educação como porta de saída para o conhecimento epistemológico e uma porta de entrada para a experiência e a crítica.
As ideias de Thompson (2002) na conferência acima mencionada nos ajudam a pensar e problematizar os aspectos fundamentais da história da educação profissional no Brasil. Embora a análise do autor esteja voltada para a realidade social da Europa em geral, e da educação europeia em particular, não é possível deixar de considerar que as reflexões propostas pelo autor também possam ser levadas em consideração para a realidade latino-americana em geral, e para a educação brasileira em particular.
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Evidentemente que os conceitos desenvolvidos pelo autor não devem ser somente transferidos para análise de outra realidade para que se abra o caminho para a criação de modismos epistemológicos ou para anunciar verdades indubitáveis. Compreendemos que o conceito de experiência humana pode vir a atuar como um intercessor capaz de provocar brechas e rupturas na configuração de uma educação profissional capturada pela hegemonia do capital, no sentido gramsciano4; e pode nos fornecer novos acessos para que a experiência humana das classes produtoras da riqueza oriente os princípios da educação profissional de modo a contribuir com a autoformação e auto-organização dos sujeitos, bem como para a construção de um processo que vislumbre a transformação social.
Retomando os traços gerais da história da educação profissional, especificamente os traços da educação profissional no Rio Grande do Norte, principalmente os acontecimentos mais recentes da transformação dos Centros Federais de Educação Tecnológica (CEFETs) em Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IFs), constatamos que essa instituição emerge no cenário educacional como um anseio popular5, uma vez que a formação para o trabalho sempre está no horizonte dos anseios da população, sobretudo, da classe que produz a riqueza social. Todavia, as orientações para o funcionamento da educação profissional são fruto de uma estruturação de mão-de-obra cuja formação deve
4 A filosofia da práxis, de Antonio Gramsci, apresenta o conceito de hegemonia para se referir, dentre outras coisas, às diferentes lutas sociais que se travam para que uma concepção de mundo seja dirigente e dominante através do exercício da força e do consenso para assegurar a direção e domínio ao chegar ao poder. A hegemonia, nesse sentido, é um elemento fundamental da práxis, uma vez que, na luta política, os fatos históricos devem ser revelados e combatidos conforme a exigência da relação entre governados e governantes. Por isso, a filosofia da práxis é comprometida com a análise das hegemonias e com a luta para que os governados se tornem intelectualmente independentes dos governantes e desenvolvam suas ações no sentido dialético de destruição e criação de hegemonias. Daí a hegemonia, para Gramsci, se tratar também de uma relação pedagógica que possibilita a análise e transformação das diversas forças que compõem o tecido social (GRAMSCI, 1999, p. 387-399).
5 A constatação de que a transformação dos Centro Federais de Educação (CEFETs) em Institutos federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IFs) representa um anseio popular se nos apresenta a partir de uma dupla evidência. A primeira evidência diz respeito ao senso comum popular com relação à percepção da educação como movimento de ascensão social segundo a qual a escola possui a finalidade de formar para o trabalho independentemente que esse trabalho seja controlado e explorado pelos senhores do capital. A segunda evidência remete aos estudos de vários autores (por exemplo, FRIGOTTO; CIAVATTA, 2004. FRIGOTTO; CIAVATTA; RAMOS, 2005. VANNUCHI, 2004.) que
defendem que a juventude da classe trabalhadora dá sinais de compreensão de que a formação que lhes é oferecida é uma formação limitada. Os CEFETs representavam os anseios das classes exploradoras do trabalho; os IFs, mesmo levando em consideração suas contradições e as disputas entre os setores progressistas e conservadores da sociedade brasileira, representam, nos seus fundamentos, os anseios da população em geral.
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atender as premissas do setor produtivo alinhado ao capital nacional e internacional. O que resulta de um modo ou de outro na transfiguração do anseio popular em um anseio por trabalho, mesmo que alienado, na sociedade da exploração do trabalho e da precarização do trabalho explorado.
No que diz respeito especificamente ao IFRN/Mossoró, consta que a implantação da instituição ocorreu em 1994 como uma Unidade de Ensino Descentralizada de Mossoró (UNED/Mossoró). Trata-se do contexto de chegada do ideário neoliberal no Brasil, o que implica dizer que a partir de seu funcionamento foi oferecida uma dupla formação: A formação científica, propedêutica com a finalidade de dar suporte ao estudo para ingresso na universidade, a qual era oferecida aos filhos das famílias mais abastadas. Para os demais, filhos dos trabalhadores/as mais pobres e mais explorados, era oferecida uma formação técnica e aligeirada com o objetivo de ingresso no mercado de trabalho. A implantação da UNED/Mossoró, nesse sentido, atende à expectativa do campo econômico no sentido de formar mão-de-obra qualificada e barata.
Conforme Queiroz e Souza (2017), a criação da UNED/Mossoró foi obra de um contexto político de desenvolvimento nacional baseado no processo de industrialização. Essa compreensão é importante, porém, é limitada, porque ela precisa atentar para o fato de que havia uma pressão dos organismos internacionais6 para que o Brasil se tornasse um país competitivo e que para isso seria necessário realizar investimentos na formação e preparação de recursos humanos.
Há uma subordinação da economia local ao contexto de mundialização do capital. Dessa forma, as cidades para as quais eram destinadas as UNEDs eram selecionadas conforme a demonstração de potencial econômico e adaptação/alinhamento político. A instituição surgiu no contexto neoliberal clássico no qual o Estado contribui com o avanço da subordinação do público ao privado à medida que investe recursos para qualificar indivíduos para assumirem postos de trabalho atrelados à concentração de capital nas mãos dos exploradores do trabalho. Estas instituições são reconhecidamente promotoras de um ensino de qualidade para o
6 Para o devido aprofundamento do tema ver: ATCHOARELLA, David. Financement et Régulation de la Formation Professionnelle: une analyse comparée. Paris: UNESCO, 1994; BANCO MUNDIAL. Educación Técnica y Formación Profesional. Washington (EUA): Banco Mundial, 1992.
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capital, uma vez que cumprem seu papel na garantia da formação científica e técnica necessária para assegurar a empregabilidade.
Depois de ter passado por CEFET no final dos anos 1990 e início dos anos 2000, a UNED/Mossoró é transformada em IFRN/Mossoró pela lei nº 11.892, de dezembro de 2008, gozando de autonomia e equivalência com as Universidades Federais. O campus IFRN/Mossoró oferece educação profissional nos cursos técnicos em Edificações, Eletrotécnica, Informática, Mecânica, Petróleo e gás, Saneamento e Segurança do Trabalho. Oferece, ainda, ensino superior em Tecnologia em Gestão Ambiental e Licenciatura em Matemática. Além disso, oferece pós-graduação lato sensu em Especialização em Educação e contemporaneidade; e pós-graduação stricto sensu em Mestrado em Ensino em associação com a Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN e a Universidade Federal Rural do Semi-árido – UFERSA e a pós-graduação stricto sensu em Mestrado em Educação Profissional e Tecnológica – ProfEPT.
Durante os governos Lula e Dilma, o IFRN/Mossoró participou do processo de expansão, ampliando a quantidade de cursos, os níveis de formação e as modalidades de ensino. Durante os governos petistas, o IFRN/Mossoró recebeu investimentos que permitiram a realização da tríade ensino, pesquisa e extensão com êxito notório7 para a sociedade potiguar. Todavia, a aliança do governo federal com setores empresariais8 e a transferência direta de recursos para esse setor comprometeu a expansão do ensino médio integrado, modalidade de ensino que permite a articulação da formação científica, tecnológica, cultural e para o mundo do
7 O relatório de gestão referente ao ano de 2016 indica que as atividades de ensino, pesquisa e extensão estão sendo realizadas conforme os planejamentos realizados e que o retorno para a sociedade é avaliado como satisfatório levando em consideração alguns indicadores pré-determinados. Nas considerações finais do relatório é relato o seguinte: “O conjunto das informações incluídas neste relatório leva em consideração a execução de atividades realizadas pelo Campus, de maneira integrada, no que diz respeito ao ensino, enquanto formação profissional e tecnológica, à pesquisa e a extensão e, os impactos dessas atividades na viabilidade do desenvolvimento local e regional e sustentado. Destaque-se ainda, o fortalecimento do ensino promovido pela instituição, o que se demonstra através dos excelentes resultados obtidos nas olimpíadas de conhecimento, no Exame Nacional do Ensino Médio e nas inserções de jovens profissionais no mundo do trabalho, bem como na credibilidade da comunidade que vincula a formação de profissionais-cidadãos à imagem do fazer pedagógico do IFRN na região de Mossoró” (RELATÓRIOS DE GESTÃO. Mossoró, 2016).
8 Para a reflexão crítica sobre opções de políticas governamentais que implicaram na ampliação da simbiose entre governos e segmentos do setor privado corporativo ver: ADRIÃO, Theresa. DOMICIANO, Cassia Alessandra. A Educação Pública e as Corporações: avanços e contradições em uma década de ampliação de investimento no Brasil. FINEDUCA – Revista de Financiamento da Educação, Porto Alegre, v. 8, n. 3, 2018.
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trabalho; comprometeu a expansão dos cursos pós-graduação. O comprometimento se deu devido, sobretudo, à ausência de recursos financeiros. A questão que fica em aberto é a que diz respeito aos recursos públicos investidos em setores privados. Certamente, se os recursos do fundo público tivessem sido investidos prioritariamente em educação pública na cidade de Mossoró/RN, não há dúvida de que a formação da classe trabalhadora teria ocorrido com outra qualidade social, mesmo diante da realidade embrutecedora e alienante do capitalismo atual.
A partir do golpe parlamentar-jurídico-midiático de 20169, o IFRN/Mossoró amargou o início dos retrocessos na política educacional no Brasil. Com o alinhamento do governo Temer às elites financeiras, foi posto em prática o ultraneoliberalismo predatório cuja maior vocação era destruir o Estado aniquilando as políticas sociais essenciais, sobretudo, da educação e da saúde através de cortes e contingenciamentos orçamentários.
Sob o argumento pouco racional de que nas Universidades e Institutos federais só há “balbúrdia” e “comunistas”, o governo Bolsonaro intensifica os cortes e contingenciamentos. Os cortes nos investimentos públicos atingiram diretamente a dinâmica do IFRN/Mossoró. No relatório de gestão de 2018, o diretor geral do campus assim se manifesta sobre o corte e contingenciamento dos recursos federais para a educação: “deve-se notar que se sentiu a falta de recursos de capital e investimento para aquisição de equipamentos e material permanente (RELATÓRIO DE GESTÃO IFRN/MOSSORÓ, 2018, p. 85).
Em abril de 202010, o Ministério da Educação encaminha um reitor-interventor para o IFRN. É publicado no diário oficial a nomeação de um reitor pro tempore em
9 A respeito do golpe de 2016 ver: JINKINGS, Ivana. DORIA, Kim. CLETO, Murilo. Por que gritamos golpe? Para entender o impeachment e a crise política no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2016.
10 O processo de intervenção se deu conforme o presente histórico: “José Arnóbio foi eleito reitor do IFRN em consulta pública realizada com a comunidade no dia 4 de dezembro de 2019. Em 17 de abril de 2020, o MEC nomeou o professor Josué Moreira reitor pro-tempore, através da Portaria 405/2020. A juíza Gisele Leite, da 4ª Vara Federal da Seção Judiciária do Rio Grande do Norte, emitiu decisão judicial no dia 11 de dezembro de 2020, determinando a regularidade da posse do professor José Arnóbio. Como resultado da decisão judicial, o MEC realizou a nomeação no dia 21 de dezembro de 2020, na edição 243 do Diário Oficial da União. No dia 24 de agosto de 2021, foi publicado um novo decreto, com a assinatura do presidente Jair Messias Bolsonaro, nomeando definitivamente o professor José Arnóbio de Araújo Filho reitor do IFRN até o dia 21 de dezembro de 2024. O Decreto foi publicado no Diário Oficial da União (DOU), na edição do dia 25 de agosto, e gerou a posse oficial”. Disponível em: https://portal.ifrn.edu.br/campus/reitoria/noticias/reitor-jose-arnobio-e-empossado- oficialmente-pelo-ministro-da-educacao. Acesso em dezembro de 2021.
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detrimento do reitor eleito. A nomeação foi justificada pelo MEC através de um ofício para o reitor anterior da instituição no qual apenas informava que a nomeação pro tempore havia sido motivada por uma restrição “resguardada por sigilo”. A nomeação do reitor pro tempore é caracterizada pela comunidade acadêmica, em várias notas de repúdio, como uma medida antidemocrática e intervencionista que fere a autonomia das instituições acadêmicas ao nomear gestores alinhados diretamente com o presidente da República. No caso do pro tempore do IFRN, foi identificado a filiação ao partido o qual o Presidente possuía filiação durante a eleição presidencial, no caso, o Partido Social Liberal – PSL.
Este breve percurso histórico nos indica que a educação profissional no IFRN/Mossoró não foge a regra da qual fala Thompson (2002) na sua conferência citada acima. Dessa forma, a história da educação profissional para além e independente de seus dualismos e contradições, é, de qualquer modo, a história do controle social, uma vez que a educação profissional é subordinada culturalmente à cultura do capital. Além disso, a história da educação profissional é a história do controle social porque existe um medo do potencial revolucionário da gente comum, conforme Thompson (2002). Além disso, pode também ser considerada a possibilidade de a educação profissional atentar contra a cultura do controle social. Como isso é possível? Thompson (2002) nos ajuda a ponderar sobre a perspectiva de ruptura do controle social através do restabelecimento da dialética entre educação e experiência da classe trabalhadora.
Ao retomar o arcabouço conceitual de Thompson acerca da classe como formação econômica e cultural é que nos propomos a partir daqui apontar como a experiência da classe trabalhadora na economia solidária pode contribuir para que a educação profissional restabeleça os laços perdidos imemorialmente entre educação e experiência humana. Além disso, vale ressaltar, como afirma Tiriba (2018), que a América Latina é um campo fértil para análise das lutas anticapital, bem como para reafirmar outros modos de produzir a existência humana.
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Historicamente não há uma vinculação direta do IFRN/Mossoró com as práticas de grupos produtivos orientados pelas concepções da economia solidária. No ano de 2016, foi realizada uma parceria entre a instituição e a Secretaria Nacional de Economia Solidária – SENAES, vinculada ao Ministério do Trabalho e Emprego – MTE11 sob o Termo de Execução Descentralizada (TED) nº 05/2016 MT – IFRN. O projeto, intitulado ‘Mulheres e Jovens: Economia Solidária como alternativa para ampliação do trabalho e renda em Natal e Mossoró no Rio Grande do Norte’, foi aprovado para realizar, conforme a minuta do projeto, “uma série de ações no fomento, capacitação e fortalecimento de empreendimentos econômicos solidários constituídos por mulheres e jovens de baixa renda de Natal e Mossoró do Rio Grande do Norte”.
Em princípio, as atividades de fomento, capacitação e fortalecimento dos grupos de economia solidária foram realizadas por dois núcleos compostos por servidores, estudantes do IFRN, e colaboradores externos vinculados a algum grupo produtivo da economia solidária. Digo ‘em princípio’ porque as atividades se davam em regime de auto-organização e autoformação. Os componentes dos núcleos coordenavam a organização para execução dos objetivos, porém, as atividades propriamente ditas foram concebidas e realizadas a partir da iniciativa das próprias pessoas dos grupos.
Havia uma dificuldade dos servidores e estudantes do IFRN para a efetivação da auto-organização e autoformação. Diferentemente dos sujeitos da economia solidária, os servidores e estudantes do IFRN pareciam estar prisioneiros das estruturas de organização da academia. Para os servidores, as dificuldades não se davam tanto com relação a auto-organização e/ou autoformação uma vez que, de algum modo, cada participante já havia tido contato com a economia solidária. Para os estudantes havia uma mistificação maior.
11 Em 1 de janeiro de 2019, o Ministério do Trabalho foi extinto oficialmente pelo governo Jair Bolsonaro, tornando-se uma secretaria especial do Ministério da Economia. Vale ressaltar que durante o governo de Michel Temer (12 de maio de 2016 a 31 de dezembro de 2018) já havia fortes indícios de que o ministério seria extinto. A esse respeito ver: http://www.dmtemdebate.com.br/dois-anos-de- desgoverno-a-extincao-do-ministerio-do-trabalho/. Com a extinção do ministério do trabalho, a antiga Secretaria Nacional de Economia Solidária (SENAES) teve suas atribuições enviadas ao Ministério da Cidadania a partir de 1 de janeiro de 2019. Sobre a Economia Solidária e a reorganização ministerial ver: https://diplomatique.org.br/economia-solidaria-e-a-reorganizacao-do-governo-bolsonaro-o- caminho-e-a-mobilizacao/.
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Para os estudantes, a auto-organização e autoformação faziam parte de uma compreensão conceitual abstrata e utópica. Em um primeiro momento, os estudantes, que também foram bolsistas12 do projeto, estavam tomados de um espasmo conforme as atividades foram sendo realizadas. Contudo, à medida que as atividades foram sendo concebidas e executadas, cada membro do núcleo foi encontrando a maneira mais adequada para participar. Isso não quer dizer que as atividades eram efetivadas a partir de um espontaneísmo e um ‘tudo vale’. As atividades eram apresentadas e discutidas exaustivamente por membros mais experientes do núcleo e dos grupos produtivos e os pormenores para a realização foram identificados e executados conforme cada disposição. Segue alguns trechos do relato de estudantes/bolsistas do projeto:
A minha formação humana foi extremamente complementada a partir do convívio com a Feira de Economia Solidária, com as visitas técnicas e como as pessoas que constroem esse movimento encaram o mundo a partir da coletividade para, então, transformá-lo minimamente. Os grupos se organizam para produzir, consumir, comercializar e produzir novamente. Eles dizem que tem dificuldade para se autogerir, mas o que vi são pessoas que acreditam no que fazem, estudam sobre a natureza, sobre a realidade do país e possuem várias maneiras de divulgar seus conhecimentos. As cirandas das mulheres, o artesanato, tudo que eles fazem tem um significado dentro da economia solidária (RELATO DE UMA BOLSISTA ESTUDANTE DO CURSO TÉCNICO INTEGRADO DE INFORMÁTICA).
“Aprendi mais sobre as causas que o projeto apresenta, sobre toda a questão política que isso desenrola, bem como a questão da política na qual estamos inseridos e que molda uma sociedade deficiente de direitos e melhorias básicas para os que necessitam. Esses grupos organizam outra política, tudo é debatido com todos. As mulheres são ouvidas, os jovens podem falar. A juventude pesquisa, parecem mais avançados nos temas do que nós. Eles se reúnem para estudar, para produzir, para rezar, para fazer planos. O mais interessante é eles produzirem e ainda participarem de debates e trocam conhecimento. Também tivemos contato com a parte histórica da economia solidária, esta possibilitou toda uma reflexão para que pudéssemos ver os princípios do que seria uma luta para conquista de direitos” (RELATO
12 Foi realizada uma seleção de estudantes conforme um processo de seleção que envolvia a participação em oficinas sobre economia solidária, feminismo e juventude; a participação em entrevistas realizadas por servidores e membros dos grupos produtivos e a análise do histórico escolar. Foram avaliados critérios sobre a compreensão da economia solidária, a condição socioeconômica e o curso a qual estavam vinculados uma vez que as aptidões desenvolvidas no curso poderiam ser mobilizadas para atuação junto aos grupos produtivos (foram selecionados estudantes do curso técnico de informática, mecânica, eletrotécnica e edificações; do curso de licenciatura em matemática e do curso de gestão ambiental).
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DE UMA BOLSISTA ESTUDANTE DO CURSO DE LICENCIATURA EM MATEMÁTICA).
Os núcleos foram criados em dois campi do IFRN, um no IFRN/Campus Natal Central, o outro núcleo no IFRN/Campus Mossoró. Os dois núcleos possuíam uma dinâmica de organização coletiva e se reuniam em formato de assembleias (prática da isonomia e isegoria) na qual cada participante realizava a exposição e defesa de uma proposta sem nenhum tipo de distinção (poderia ser docente, técnico administrativo, estudante, membro de algum grupo produtivo). Os Núcleos se reuniam sistematicamente para propor, avaliar, redefinir e executar os objetivos e atividades definidas no projeto como um todo, bem como para propor, avaliar, redefinir e executar as atividades e o processo de execução nos grupos produtivos.
O projeto foi inscrito junto à Secretaria Nacional de Economia Solidária – SENAES com essa denominação: “Mulheres e Jovens: Economia Solidária como alternativa para ampliação do trabalho e renda em Natal e Mossoró no Rio Grande do Norte”. Durante as primeiras reuniões13 entre os núcleos formados para coordenar as atividades foi alterado para “GerAção Solidária: mulheres e jovens na economia”. A proposta de mudança na denominação partiu de um membro da Cooperativa de Comercialização Solidária Xique Xique – COOPERXIQUE. De acordo com ele, esta denominação sintetiza as linhas gerais do projeto e possibilita uma melhor compreensão entre os representantes dos grupos produtivos de economia solidária. A defesa argumentativa realizada pelo propositor na denominação do projeto explica detalhadamente por que a mudança: “o nome ‘GerAção’, escrito assim mesmo, é para chamar atenção para duas palavras, ‘gerar’ e ‘ação’, nós precisamos formar gerações, jovens solidários, para trabalhar por um mundo melhor e, hoje, as mulheres e a juventude é que possuem o protagonismo para mudar o mundo”14.
O projeto “GerAção Solidária: mulheres e jovens na economia” foi executado inicialmente com 60 grupos produtivos vinculados aos princípios da economia solidária no Estado do Rio Grande do Norte pelo Campus Mossoró juntamente com o Campus Central Natal do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte - IFRN em parceria com a Fundação de apoio à educação e ao desenvolvimento tecnológico do Rio Grande do Norte - FUNCERN, através do Edital
13 Informação retirada das atas de reunião da coordenação do projeto.
14 Relato anotado em ata de reunião entre os dois núcleos do projeto.
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05/2017 – PROEX/IFRN. O IFRN/Mossoró, nesse caso, foi responsável por desenvolver atividades com 30 grupos produtivos de economia solidária. Delimitamos a presente análise somente aos grupos acompanhados pelo IFRN/campus Mossoró. E quais são esses grupos produtivos participantes do projeto? Trata-se dos seguintes grupos: 01- Grupo de Mulheres Decididas a vencer, do Assentamento Mulunguzinho em Mossoró/RN que produzem hortaliças e realizam beneficiamento de frutas para comercialização e autoconsumo; 02 - Grupo Gold da Paz, do assentamento Mulunguzinho em Mossoró/RN, organizam uma poupança solidária; 03
- Grupo de Produtores e Produtoras da Serra Mossoró, da localidade Serra Mossoró em Mossoró/RN, realizam atividades com hortifrutigranjeiros para comercialização e autoconsumo; 04 - Grupo de Jovens Ousadia Juvenil, do conjunto Nova Vida, em Mossoró/RN, realizam atividades culturais e comercializam artesanato; 05 - Feira de Economia Solidária do Nova Vida, no conjunto Nova Vida, em Mossoró/RN, realizam atividades culturais, comercialização de produtos alimentícios; 06 - Cooperativa de Mulheres Prestadoras de Serviços – COOPERMUPS, no conjunto Nova Vida, em Mossoró/RN, realizam prestação de diversos serviços domésticos; 07 - Grupo Gold Estrela da manhã, localizado no povoado Barreira Vermelha em Mossoró/RN, organizam uma poupança solidária; 08 - Grupo Gold Santa Clara, Localizado no Projeto de Assentamento São Cristovam em Mossoró/RN, organizam uma poupança solidária; 09 - Grupo de Mulheres Unidas e Vitoriosas Jamais Serão Vencidas, do Assentamento Lagoa do Xavier em Mossoró/RN, organizam quintais produtivos voltados para o autoconsumo; 10 - Grupo de Mulheres de Cordão de sombra, do Assentamento Cordão de Sombra em Mossoró/RN, organizam quintais produtivos voltados para o autoconsumo; 11 - Unidade Produtiva de Paulo Freire, localizado no Assentamento Paulo Freira em Mossoró/RN, produção de hortaliças para comercialização e autoconsumo; 12 - Cooperativa de Comercialização Solidária Xique Xique – COOPERXIQUE, localizada no Centro de Mossoró/RN, organizam comercialização; 13 - Grupo de Mulheres de Tiradentes, do Assentamento Tiradentes em Baraúna/RN, criação de abelhas; 14 - Feira da Agricultura Familiar de Governador Dix-Sept Rosado, localizada na cidade de Governador Dix-Sept Rosado/RN, comercialização de produtos da agricultura familiar; 15 - Grupo de Mulheres de Lagoa de Salsa, localizado em Lagoa de Salsa na cidade de Tibau/RN, realizam agricultura familiar e criação de pequenos animais de suínos, aves para comercialização e
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autoconsumo; 16 - Grupo de Mulheres de Vila Nova, localizado em Vila Nova na cidade de Tibau/RN, realizam agricultura familiar e criação de pequenos animais de suínos, aves para comercialização e autoconsumo; 17 - Associação de Desenvolvimento do Artesanato Rural – ASDAR, localizado no Assentamento Caenga na Cidade de Grossos/RN, produz artesanato rural e realiza criação de suínos; 18 - Associação de Mulheres Pescadoras e Artesãs, da comunidade Pernambuquinho na Cidade de Grossos/RN, realizam pesca artesanal; 19 - Grupo de Mulheres Unimama, Sítio Mariana na cidade de Caraúbas/RN, organizam quintais produtivos voltados para o autoconsumo; 20 - Grupo de Mulheres extrativistas da terra das carnaubeiras, localizado no Sítio São Geraldo na cidade de Caraúbas/RN; 21 - Associação de Produtoras e Beneficiadoras de Marisco, Crustáceos e Pescado de Ponta do Mel, localizada na Praia de Ponta do Mel na cidade de Areia Branca/RN, realizam pesca para comercialização e autoconsumo; 22 – Grupo de Mulheres Lutando para Vencer, localizado no Assentamento Monte Alegre na cidade de Upanema/RN, organizam quintais produtivos voltados para comercialização e autoconsumo; 23 - Grupo de Mulheres Construtoras do Futuro, localizado no Assentamento Nova Vida na cidade de Upanema, realizam beneficiamento coletivo de frutas; algumas mulheres fazem remédios fitoterápicos, produzem hortaliças no quintal; 24 - Grupo de Mulheres Juntas Venceremos, localizado na Agrovila Palmares na cidade de Apodi, organizam quintais produtivos, criação de galinhas e suínos, produzem hortaliças; 25 - Feira da Agricultura Familiar de Apodi, localizada no Centro da Cidade de Apodi/RN, comercialização de produtos da agricultura e artesanato; 26 - Grupo de Mulheres Arte em Palha, localizado na comunidade Trapiá na cidade de Apodi/RN, produzem e comercializam artesanato; 27 - Grupo de Mulheres ArtVida, localizado na comunidade Queimadas na cidade de Apodi/RN, produzem e comercializam artesanato; 28 - Grupo de Mulheres em Busca da Igualdade, localizado na comunidade de Mansidão/Melancias na cidade de Apodi/RN, realizam beneficiamento de frutas e produzem medicamentos fitoterápicos; 29 - Grupo de Mulheres Sementes da Terra, localizado no Assentamento Maurício de Oliveira na cidade de Açu/RN, organizam quintais produtivos, produção de mudas frutíferas e são consideras guardiãs de sementes crioulas; 30 - Grupo de Mulheres da Praia do Rosado, localizado no Assentamento Praia do Rosado na cidade de Porto do Mangue, organizam quintais produtivos para autoconsumo e comercialização. Cabe registrar que o projeto realizou
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suas atividades em parceria com a rede Xique Xique de Comercialização Solidária15, o Centro Feminista 8 de março (CF8)16, o Curso de Licenciatura Interdisciplinar em Educação do Campo da Universidade Federal Rural do Semi-Árido – LEDOC/UFERSA, e o curso de Gestão Ambiental da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN.
Foram realizadas muitas atividades com esses grupos produtivos da economia solidária. As atividades mais comuns foram as reuniões do núcleo coordenador do projeto para planejar e executar os objetivos do projeto; a realização de visitas técnicas com intuito de acompanhar e orientar os grupos na organização do processo econômico; organização da feira de Economia solidária no IFRN/Mossoró, espaço de comercialização e integração entre produtores/as e consumidores/as da comunidade acadêmica do IFRN/Mossoró; realização de seminários com a participação dos representantes dos 30 grupos produtivos para debater sobre o contexto geral da economia solidária e realizar diagnósticos sobre a produção, consumo, comercialização, gestão e comunicação dos grupos produtivos; realização de oficinas, capacitações técnicas sobre produção agroecológica e sistemas de produção integrados; intercâmbios entre os grupos; desenvolvimento de material didático (cartilhas informativas, cadernetas agroecológicas); participação em eventos científicos; elaboração de livro; organização dos encontros territoriais e estaduais de juventude da economia solidária, e dos encontros territoriais e estaduais de mulheres
15 A rede Xique Xique foi criada a partir da integração de 50 grupos produtivos de 07 (sete) municípios: Apodi/RN, Mossoró/RN, Baraúna/RN, Grossos/RN, São Miguel do Gostoso/RN, Serra do mel/RN, Touros/RN e Beberibe/CE. Para manter a relação entre produção, comercialização e organização, a rede realiza atividades de formação e articulação entre os grupos através da realização de seminários, oficinas e intercâmbios. A produção, comercialização e organização promovida pela rede Xique Xique levam em consideração a perspectiva da agroecologia, feminismo e da economia solidária, através do comércio justo e da certificação participativa. Na carta de princípios da rede consta a orientação política segundo a qual a produção, a comercialização e o consumo devem se distanciar de todas as formas de exploração do trabalho.
16 O Centro Feminista 8 de Março (CF8) é uma Organização Não-Governamental que surgiu em março de 1993 a partir de ações voltadas à reivindicação da instalação da Delegacia Especializada em Defesa da Mulher (DEAM), em Mossoró/RN. A instituição desenvolve ações alicerçadas em três elementos: feminismo, organização e formação. As atividades realizadas pelo CF8 têm como finalidade fomentar, fortalecer e proporcionar às organizações de mulheres nos espaços sociais, em especial as trabalhadoras rurais, oferecendo apoio, assessoria e formação em gênero aos grupos de mulheres, comissões de mulheres dos sindicatos rurais, entidades de assessoria técnica, gerencial e organizativa que atuam no meio rural e urbano de Mossoró e região. O CF8 possui uma visão de sociedade pautada pela análise crítica das relações de dominação e no entendimento das questões de classe, gênero e raça/etnia.
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da economia solidária e realização de um congresso de economia solidária – CONGRESSOL.
É importante ressaltar e destacar que todas as atividades realizadas com os grupos produtivos foram consideradas atividades político-educativas e resultaram em processos formativos amplos sobre os conhecimentos formais e a realidade social, econômica, cultural e política do país. Para a realização das atividades, foram estabelecidas diretrizes de formação nas quais foram destacados os princípios epistemológicos e socioeducativos da formação, os procedimentos metodológicos adotados para a ação formadora e os parâmetros de práticas de sistematização e avaliação da formação.
Após caracterizar brevemente os grupos produtivos e as atividades realizadas, a proposta dessa investigação segue a partir daqui de maneira mais específica a partir da análise de uma das primeiras atividades formativas realizadas pelo projeto, o ‘I seminário promovido pelo projeto Geração Solidária’, denominado “Seminário de Economia Solidária em movimento: problemas e soluções” ocorrido no campus IFRN/Mossoró no dia 30 de março de 2017. O seminário teve por objetivo a integração dos grupos produtivos e a realização de um diagnóstico qualitativo sobre os problemas e soluções enfrentadas no cotidiano dos grupos de economia solidária.
A primeira atividade realizada durante o seminário foi convidar cada grupo produtivo de economia solidária para relatar sua história, o que produziam e como definiam a economia solidária; um dos participantes definiu a economia solidária como “um movimento que busca justiça social através da organização solidária de cada trabalhador para produzir o que precisa sem veneno e sem destruir a natureza”17. Nessa definição estão presentes os elementos com os quais os teóricos da economia solidária a definem. Os autores a definem como uma atividade de natureza associativa cujas práticas são a cooperação e autogestão. A terminologia vem sendo utilizada pelo menos desde 1990 quando grupos de pessoas se associaram com intuito de superar as condições econômicas, políticas, culturais e educacionais, enfim, de vida, vividas no contexto de experimentação neoliberal nas ‘veias abertas da América
17 Informação retirada de um relatório produzido pelos bolsistas do projeto “GerAção Solidária: mulheres e jovens na economia”. O conceito foi apresentado por um jovem agricultor do projeto de assentamento Paulo Freire, localizado em Mossoró/RN. No momento em que cada grupo produtivo relatava sua origem, seus produtos e seus princípios, foram convidados a fazer uma breve exposição sobre o que entendiam por economia solidária.
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latina’. De lá para cá, a economia solidária se expande abrangendo diversas categorias sociais e modalidades de organização sejam informais, associações de produtores e consumidores, sistemas de trocas, comunidades produtivas, cooperativas de bens, serviços, comércio e de crédito, criadas e movidas pela necessidade de resistir aos procedimentos de pilhagem e dispositivos de espoliação do capitalismo central, considerado desenvolvido, sobre o capitalismo periférico, subdesenvolvido, da América Latina (SINGER, 2002; GALEANO, 2010; GAIGER, 2013).
Assim, a economia solidária traz no seu escopo uma visão de sociedade na qual predomina o princípio da igualdade e a preservação da natureza. De acordo Singer (2002), para o surgimento de uma sociedade em que predomine a igualdade social, é preciso inicialmente construir relações de produção capazes de superar a competitividade no trabalho e estabelecer relações solidárias para que as forças produtivas possam ser transformadas apontando para a construção da sociedade da igualdade social.
Há um debate no âmbito da economia solidária que trata sobre como a mudança social é concebida por esses grupos organizados. Para que possamos nos posicionar acerca desse tema, se faz importante retomar algumas afirmações de Thompson (1998). O autor de ‘Costumes em Comum' afirma que a prática de vida local, a práxis humana, é capaz de desvelar a configuração do contexto real, da existência concreta, mais do que os roteiros parciais emoldurados pelas teorias formais e gerais acerca dos acontecimentos. Assim, a práxis da vida real oferece mais elementos para a compreensão da experiência de fato e de classe. O contato do IFRN/Campus Mossoró com a práxis real dos grupos de economia solidária é uma demonstração explícita de que os grupos de economia solidária mencionados acima majoritariamente são grupos organizados pela classe trabalhadora.
Em cada um dos 30 grupos constituídos de agricultoras/es, artesãs/ãos, desempregadas/os, jovens e idosos há o entendimento de que fazem parte de uma classe excluída, uma classe que trabalha e o resultado do trabalho é apartado da existência de cada um; há o entendimento de que são menos favorecidos porque não tem acesso aos serviços sociais básicos (educação, saúde, trabalho etc. etc.). Historicamente a práxis real de vida da classe trabalhadora tem sido escamoteada. As experiências de classe são apagadas dos relatos oficiais; o modo como
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historicamente a classe trabalhadora organiza seus anseios coletivos possuem uma potência que se encontra à margem do domínio do modo de produção hegemônico, bem como, nos grupos de economia solidária estudados, há uma disposição política para se contrapor politicamente à hegemonia da economia política do capitalismo.
Nesse sentido, podemos afirmar que a economia solidária prioriza a luta política e econômica não sobrepondo nenhuma à outra, ou menosprezando uma em detrimento da outra. O seminário, objeto dessa análise, realizado como a primeira atividade formativa do projeto, abordou como tema de uma de suas mesas “Os desafios da economia solidária na conjuntura atual”. O destaque da mesa foram as afirmações no sentido de que o protagonismo das mulheres e da juventude para a organização política e a produção econômica são elementos que não podem ser desprezados quando o que está em jogo é a transformação social. Nas falas dos palestrantes coletadas durante a realização do seminário e destacadas no relatório da atividade, ficou clara a importância da economia solidária ser um local de militância teórica e prática na qual seus princípios carregam os germes de um novo modelo de sociedade.
Enfatiza o caráter de mudança que a economia solidária carrega nos seus princípios e, por isso, ela é um local de resistência por apontar um novo modelo de sociedade. Para ela, é fundamental que a economia solidária discuta a divisão sexual do trabalho e que faça a desnaturalização da economia capitalista. Faz menção à invisibilidade do trabalho das mulheres e destaca a preocupação com a questão democrática no país. Ao final, conclama todas/os a “resistir e resistir, pois só a luta constrói a democracia” (RELATÓRIO DO I SEMINÁRIO
– ECONOMIA SOLIDÁRIA EM MOVIMENTO: PROBLEMAS E SOLUÇÕES, 2017).
Assim como também tiveram discursos que afirmavam que a economia solidária já é suficientemente organizada politicamente e que já possui suas visões de mundo, sociedade e ser humano necessariamente delineadas, todavia, o que resvala como algo preocupante é o potencial econômico uma vez que as tecnologias são capturadas pelo modo de produção capitalista e utilizadas para o lucro individual ao invés de produção de um lucro social. Ambos os expositores desses entendimentos durante a realização do seminário destacaram a importância da economia solidária se organizar em rede de modo local, regional e nacional, para que os problemas e
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soluções enfrentados no âmbito político, econômico e cultural fossem socializados e enfrentados coletivamente.
Destaca que a Economia Solidária já é forte politicamente, mas tem que crescer mais economicamente. Para isso, destaca pontos fundamentais, tais como: o planejamento do grupo. Afirma que é muito importante a autogestão de cada trabalhador e membro do grupo. Na gestão, destaca que a militância da classe é importante, mas não só ela. Por fim, destaca como necessária a articulação de uma rede para fortalecer os grupos. Fazer as coisas coletivamente, trocando experiências. Fortalecer em rede para crescer e se fortalecer politicamente. Buscar o apoio das instituições como IFRN e demais Universidades, para abranger e fortalecer o tema e a prática da economia solidária (RELATÓRIO DO I SEMINÁRIO – ECONOMIA SOLIDÁRIA EM MOVIMENTO: PROBLEMAS E SOLUÇÕES, 2017).
As evidências acima destacadas nos fornecem pistas capazes de nos fazer refletir sobre o potencial classista da economia solidária e a proposta de transformação social que atravessa os princípios praticados por esses grupos. Durante o seminário, houve um momento em que os representantes dos grupos se apresentavam e relataram de maneira detalhada a sua dinâmica, destacando as dificuldades e necessidades de cada grupo. A maioria dos grupos destacaram a importância da solidariedade no trabalho e defenderam que quando não possuíam conhecimento sobre a economia solidária competiam entre si para produzir e que quase sempre fracassavam. As dificuldades relatadas quase sempre recaiam na ausência e silêncio do Estado para garantir espaços de comercialização, sistema de transporte da produção, programas de compra da produção etc. Ressaltam que a solidariedade e a autogestão no trabalho seriam um dos elementos importantes para a transformação social.
“O primeiro grupo que relatou sua dinâmica foi a COOPERMUPS. Elas explicaram um pouco sobre o grupo: “A COOPERMUPS reúne mulheres que trabalham de modo solidário entre si, prestam serviços em um bairro com bastante dificuldade e violência, mas que estão em ação para construir outro mundo. Nossa maior dificuldade é autogestão porque não temos leitura, a maioria de nós é analfabeta, mas, como diz Margarida Alves: é melhor morrer na luta do que morrer de fome”. Relatam que a cooperativa foi fundada a partir do grupo ‘Mulheres em Ação’ e que hoje funciona com 18 mulheres, trabalhando com alimentação e serviços domésticos (como diaristas)”
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“A maior dificuldade hoje é o descaso dos governos e o incentivo para as pessoas participarem, mas as perspectivas são boas: há esperança de ter um bom inverno e já estão conversando com as pessoas que estão se comprometendo a comercializar na feria; além disso, são pessoas atuantes, participativas, que fazem parte da luta sindical. Também estão conseguindo estabelecer uma parceria com a gestão municipal, mantendo contato com a secretaria de agricultura e há perspectivas de que haverá apoio”
“Outro problema para comercialização que foi discutido foi a logística para o transporte dos produtos até o espaço de comercialização. Por exemplo, para comercializar os produtos de Apodi na feira da COOPERXIQUE em Mossoró precisa disponibilizar um carro para ir pegar os produtos na cidade” (RELATÓRIO DO I SEMINÁRIO – ECONOMIA SOLIDÁRIA EM MOVIMENTO: PROBLEMAS E SOLUÇÕES, 2017).
O que se depreende dessas informações fornecidas pelas pessoas que fazem a economia solidária diariamente é que a experiência humana tece a experiência de classe e revela o conjunto de tensões que formam a práxis social. Os processos formativos realizados com os representantes dos grupos produtivos pouco a pouco revelam a experiência da classe trabalhadora para garantir a manutenção da vida através de ações, muitas vezes, espontâneas e intuitivas de solidariedade e companheirismo. Os relatos de apresentação de cada pessoa pertencente aos grupos e o relato sobre os problemas e dificuldades para garantir a produção são experiências acumuladas do fazer-se da classe trabalhadora da economia solidária, porque nesse momento é que ocorre a articulação e o sentimento de interesses comuns. Lembrando Thompson (1987), é a produção da vida, individual e coletivamente, um fator preponderante para o surgimento da experiência de classe.
Outro ponto de destaque importante durante a realização do seminário é a crítica realizada por vários participantes no transcorrer das suas falas ao discurso ideológico neoliberal, sobretudo, do “caráter empreendedor que se vai enfiando goela abaixo da classe trabalhadora”18. Algumas mulheres relataram sentir asco de várias expressões como, por exemplo, “faça você mesmo”, “autoestima no trabalho”, “você é seu próprio patrão”. Nestes discursos estão embutidas a compreensão das mais diversas formas de precarização do trabalho e não representam efetivamente o sentido da economia solidária como uma economia construída pela ação popular desses grupos.
18 Relato extraído do relatório final produzido pelo núcleo de execução do projeto.
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Do exposto até aqui, conclui-se que a práxis militante emancipatória desenvolvida a partir da experiência com a classe trabalhadora, organizada nos grupos produtivos de economia solidária, pode vir a atuar como elemento capaz de provocar brechas e rupturas na configuração de uma educação profissional capturada pela hegemonia do capital, no sentido gramsciano.
Além disso, não podemos deixar de esclarecer que a economia solidária possui um caráter limitado diante da força injusta do capital, todavia, sua experiência acumulada é um referencial importante para apontar uma posição anticapitalista. Nesse sentido, a economia solidária reúne modos de ação prática e elementos de produção e reprodução da vida pouco amadurecidos. Em todo caso, não há de se negar que a economia solidária é um tipo de movimento social no qual é possível identificar elementos da crítica e análise dos problemas sociais na sociedade capitalista.
Assim, compreende-se que no interior desse processo educativo se revela a atuação do IFRN como uma práxis político-educativa na qual estão presentes os elementos que compõem a intencionalidade da ação pedagógica bem como a visão de que é possível formar para a construção de um novo modelo societal. Esta práxis político-educativa se complementa com a práxis militante emancipatória da economia solidária. Ao fim, a práxis resultante dessa relação entre o conhecimento acumulado historicamente e mobilizado para contribuir com a efetivação de uma sociedade na qual se combata a barbárie, contribui com a emancipação dos sujeitos em um processo constante de transformação social.
Nesse caso, a instituição não pode se limitar a ouvir os anseios das cadeias produtivas do capitalismo e silenciar diante dos anseios das classes populares. A educação profissional pode levar em consideração o trabalho solidário dos pequenos grupos produtivos e contribuir para que esses grupos possam superar as limitações da produção e atuarem contundentemente como grupos anticapitalistas.
A análise desses processos formativos nos fornece, ainda, alguns elementos para compreender os limites aos quais esses processos estão sujeitos. Tendo em vista que a instituição escolar não está flutuando distante da realidade capitalista, o que ela pode proporcionar em termos de emancipação se delimita a emancipação
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política. A emancipação humana, para Marx (2010), na qual a civilização e humanização atingem seu ponto máximo, somente pode vir a ser e se efetivar a partir da supressão da sociedade dividida em classes. Isso não quer dizer que a emancipação política não possua uma importância muito significativa; ao contrário, a emancipação política assegura direitos sobre os quais estão assentadas as questões de vida ou morte de muitos sujeitos na sociedade capitalista. De outro modo, a práxis militante emancipatória rompe com o desejo de dominação e de emolduramento do desenvolvimento intelectual e cultural do povo; contudo, as limitações que essa práxis militante emancipatória possui estão relacionadas aos desígnios com aparência de inexoráveis da práxis hegemônica do capital, sendo fundamental a organização dos sujeitos, a ação popular, para a emancipação política.
Portanto, nossa constatação não é reafirmar o lugar comum da dualidade educacional no âmbito da educação brasileira, sobretudo, na educação profissional. O que apresentamos com essa análise são alguns elementos que podem nos ajudar a compreender como o fazer-se da educação profissional é marcado pela disputa da formação da classe trabalhadora e esse fazer-se pode nos possibilitar a aproximação com outros modos de formar as pessoas a partir da experiência de classe promovida pela articulação, por exemplo, da educação profissional com a economia solidária. São elementos moleculares como esses da relação entre os anseios populares e a educação que podem nos fazer entender a perspectiva de alcance de novos modos de formação, diferentes das experiências históricas mais recentes no campo da formação humana.
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V.21, nº 44, 2023 (janeiro-abril) ISSN: 1808-799 X
Lucas Pelissari2 Marise Ramos3
Registro fotográfico de Gregório Albuquerque no plenária final do V Intercrítica (EPSJV/Fiocruz, 11/10/2022).
1 Entrevista recebida em 15/03/2023. Aprovado pelos editores em 31/03/2023. Publicada em 13/04/2023. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v21i44.57745.
2 Doutor em Políticas Públicas e Formação Humana pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro
- Brasil. Professor da Universidade Estadual de Campinas, São Paulo - Brasil. Pesquisa políticas de educação profissional a partir dos conflitos de classe da sociedade capitalista.
E-mail: lucasbp@unicamp.br. Lattes: http://lattes.cnpq.br/8723394397607851. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3659-5424.
3 Doutora em Educação pela Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro - Brasil. Pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio da Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro – Brasil, e professora associada da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, na linha de pesquisa Estado e Políticas Públicas. É uma das coordenadoras do Grupo These. Bolsista CNPq -PQ-2 e Cientista do Nosso Estado Faperj.
E-mail: ramosmn@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/3796863111902233. ORCID: 0000-0001-5439-3258.
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O entrevistado deste número é Gaudêncio Frigotto, que respondeu às questões por escrito no início do mês de março de 2023. Ele nos fala sobre a atual conjuntura brasileira, considerando a ascensão do neoconservadorismo no mundo e no Brasil nas últimas décadas. Destaca desafios a serem enfrentados pelas forças progressistas no contexto do atual governo e discorre sobre interesses que estão em jogo na disputa pelo ensino médio. Por ser uma “traição à juventude brasileira”, “a revogação se constitui no pilar das mudanças imperativas”, não sinalizada pelo grupo dirigente do MEC, estranhamente da “cota de escolha do núcleo decisório da Presidência da República”. Ao tempo que aponta algumas estratégias que poderiam ser tomadas nesse sentido, critica a opção, até então demonstrada por esse grupo, de ignorar o conhecimento científico produzido em Educação.
Como diz o próprio entrevistado, no conjunto das respostas às questões que lhe foram formuladas, o dominante é o “pessimismo da razão”. “Mas de forma nenhuma está ausente o otimismo da vontade” calcado sobre conquistas da classe trabalhadora. “É sobre esta herança de luta que nos movemos no presente”.
Esse movimento caracteriza a práxis de Gaudêncio Frigotto, como atesta sua história acadêmica e política4. Fundamentalmente, sua atuação se orienta pelo projeto anticapitalista e pela utopia da sociedade sem classes. As ideias e a prática desse intelectual são referências para várias gerações, não importa de onde o conheçam: como professor, como conferencista, como autor, como militante, como companheiro
4Tendo se graduado em Filosofia (1971) e em Pedagogia (1973) pela hoje UNIJUI (RS), Gaudêncio Frigotto é mestre em Administração de Sistemas Educacionais pela Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro (1977) - Brasil e doutor em Educação: História, Política, Sociedade, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1983) – Brasil. Aposentou-se recentemente como Professor Associado da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e, antes, como Professor Titular da Universidade Federal Fluminense (UFF). Na UERJ continua compondo o quadro de docentes permanentes do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas e Formação Humana (PPFH), sendo Pesquisador AI – Sênior do CNPq. Foi membro dos Comitês Científicos da Área de Educação no CNPq, CAPES e FAPERJ, onde continua como consultor ad hoc até o presente. É sócio fundador da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação (ANPEd), com atuação relevante no GT 09 – Trabalho e Educação. A relevância de seu trabalho se estende, no âmbito internacional, principalmente, à América Latina, sendo representante do Brasil no Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (CLACSO), com sede em Buenos Aires. Também é membro do Comitê Acadêmico do Instituto de Pensamiento y Cultura de America Latina (IPECAL) com sede na cidade do México. Atualmente é um dos coordenadores do Grupo These – Projetos Integrados de Pesquisa em Trabalho, História, Educação e Saúde UFF/UERJ/EPSJV-Fiocruz (THESE). Dentre os prêmios recebidos, todos atestam o compromisso ético-político com a luta da classe trabalhadora: Personalidade Educacional no Estado do Rio de Janeiro (2011) – ABI, Jornal Folha Dirigida e ABE; Prêmio Cora Coralina (2013) –
ANPEd; Prêmio Luta pela Terra (2015) – MST.
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em muitas disputas travadas contra a injustiça, a exploração, a desigualdade, a discriminação; contra todo tipo de barbárie. Há bons motivos para conhecer sua entrevista. Boa leitura!
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Gaudêncio Frigotto: Certamente os movimentos que conduziram ao golpe de 2016 e à vitória de Jair Messias Bolsonaro refletem o avanço da extrema direita no mundo e formas de governar que retomam e ampliam as concepções e práticas fascistas e/ou nazifascistas. Formas estas que ganham novas determinações econômicas e sociais e novas tecnologias, mormente as digitais, para influenciar e manipular grandes massas. O fato de que no Brasil o bolsonarismo tenha conquistado ampla adesão popular e se caracterizado por concepções nazifascistas radicais demanda um olhar sobre nossa particularidade histórica que tratarei brevemente num segundo aspecto desta questão.
O primeiro aspecto diz respeito à compreensão de que o avanço da extrema direita no mundo e suas concepções e práticas nazifascistas se inserem no processo histórico que o capital enfrenta por ser uma relação que engendra estruturalmente a possibilidade de crises e contradições cada vez mais profundas e menos sanáveis. Este foi o foco central de Karl Marx ao analisar, inicialmente, os modos de produção pré-capitalistas e, mais especificamente, a natureza do sociometabolismo do sistema de produção capitalista. Por isso, como indica o historiador Eric Hobsbawm: “Não podemos prever as soluções dos problemas com que se defronta o mundo no século XXI, mas quem quiser solucioná-los, deverá fazer as perguntas de Marx, mesmo que não queira aceitar as respostas dadas por seus discípulos.” (2011, p. 24).
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E é este historiador que sintetiza, à luz de Marx, a questão fundamental a ser enfrentada no Século XXI: “Se pensarmos em termos de como “os homens fazem a própria história”, a grande questão é a seguinte: historicamente comunidades e sistemas sociais buscam a estabilização e a reprodução criando mecanismos contra saltos perturbadores no desconhecido. Como, então, humanos e sociedades estruturados para resistir a transformações dinâmicas se adaptam a um modo de produção cuja essência é o desenvolvimento dinâmico interminável e imprevisível?” (HOBSBAWM, 2010. p. 4-6).
O “desenvolvimento interminável e imprevisível” tem a crise como parte intrínseca da sua dinâmica, de suas contradições e de seu caráter destrutivo. A natureza intrínseca da crise se explicita pela desconexão entre a produção de mercadorias e serviços e a sua venda, sem o que não se realiza a mais-valia e pelo não controle sobre a produção, por ser um sistema que se move pela competição intercapitalista. A partir da segunda década do século XX, quando se acelerou a globalização do capital, a crise, como indicam as análises de István Mészáros, assume caráter universal no sentido que afeta todas as esferas da sociedade e da vida; não se localiza mais numa nação ou região como no passado, mas é global no sentido literal do termo; e a escala no tempo é gradual, mas extensa e contínua podendo assumir dimensão de convulsões abruptas.
A apropriação privada dos saltos tecnológicos da produção social da ciência constitui-se na arma da competição intercapitalista e tormento para a classe trabalhadora. No primeiro caso, acelerando a acumulação e concentração do capital em cada vez menos mega conglomerados supranacionais; ademais, uma manifestação dramática é o agravamento da crise ambiental e climática. Esta se materializa pela ruptura metabólica que o capital produziu entre os seres humanos e a natureza.
Uma outra consequência se materializa pela superexploração dos trabalhadores, aumento exponencial das mais diversas formas de informalidade e o agravamento do desemprego estrutural. Uma realidade que é muitíssimo mais grave atualmente do que quando Karl Marx, há quase 150 anos, analisou o efeito da privatização da ciência e da tecnologia aplicados na “grande indústria e agricultura”. Por isso, a produção capitalista só desenvolve a técnica e a combinação do processo
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da produção social ao minar simultaneamente a fonte de toda a riqueza: a terra e o trabalhador”. (MARX, 1984, p. 102).
A partir da década de 1970, a mudança qualitativa da crise do capital demarca uma alteração em seu caráter destrutivo de direitos da classe trabalhadora em todo mundo, mas mais ferozmente nos países como o Brasil e outros da América Latina, pautados por projetos de capitalismo dependente e de modernização conservadora. A essa mudança qualitativa mais destrutiva, a inteligência do capital denominou de neoliberalismo, entendido como um conjunto de regras para que as economias da periferia do sistema capitalista se ajustassem às demandas do capital. Mas o termo neoliberalismo carrega, nas relações sociais, o sentido oposto do que quer fazer internalizar no imaginário coletivo como algo que vem para melhor. Francisco de Oliveira, antes de demarcar a década de 1990 como o tempo histórico em que o Brasil assume e aplica o ideário neoliberal, traduz a mudança que altera o ideário sobre o qual se afirmou a revolução burguesa de liberdade, igualdade e fraternidade.
Nos termos de Oliveira: “(...) o que talvez seja mais preocupante, a mudança do que poderíamos chamar o paradigma do Iluminismo pelo paradigma do Conservadorismo ou da Reação, em sentido forte do termo”. (...) “Quais são os sentidos fortes político-sociológicos do Conservadorismo e da Reação como orientadores gerais da sociabilidade? Que significa dizer que habitam no imaginário e, portanto, caucionam todas as políticas, não políticas e anti-políticas públicas que justamente poderiam tentar, no sentido do Iluminismo, cumprir a velha promessa da igualdade. O primeiro sentido é o da substituição do ‘princípio da esperança’ pelo “princípio da realidade. No discurso político, essa mudança é claríssima. O ‘princípio da esperança’, não era a transferência para o futuro das resoluções dos problemas; ao contrário, o ‘princípio da esperança’ queria dizer que todos os problemas eram históricos, podiam ser resolvidos, que eles constituíam desafios, ao contrário de constrangimentos. O ‘princípio de realidade’, ao contrário, diz que há limites, como os 40 milhões de brasileiros que o Presidente Fernando Henrique Cardoso admitiu, em conferência internacional, estarem condenados a permanecer excluídos no novo Brasil globalizado”. (OLIVEIRA, 1998, p. 224-227).
A análise de Oliveira nos permite demarcar a regressão do projeto societário da burguesia mundial e sua especificidade em nossa realidade. Regressão esta, que não somente aumenta a desigualdade em todas as esferas da vida, mas a naturaliza.
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O vocabulário social e educacional que sustenta esta naturalização é o da ideologia da meritocracia, do esforço individual na concretização das competências que o mercado agora exige. Uma inversão profunda onde o mercado subordina a sociedade e o Estado e, portanto, com esta inversão o estrangulamento das políticas públicas as quais unicamente podem garantir direitos universais.
O segundo aspecto nos remete a assinalar a especificidade desta mudança em nossa sociedade e porque a mesma tem efeitos mais profundos no plano econômico, cultural, político e jurídico. Do mesmo modo, nos interpela a entender que o Golpe de Estado de 2016 completa, e de forma radical mediante o conjunto de contrarreformas, o projeto neoliberal começado no governo Fernando Collor de Mello, estruturado e aplicado no Governo Fernando Henrique Cardoso. No entanto, é importante perceber que este golpe não se completou por conta dos inúmeros movimentos de resistência ativa da luta de classe.
A transição do “princípio da esperança” para a “reação e o conservadorismo” ensejou a condição histórica para um governo de extrema direita que se pautou por concepções e práticas nazifascistas. E como analisa o sociólogo Michael Löwy, o governo Bolsonaro, entre os governos de direita e extrema direita do mundo “é o que mais tem traços neofascistas”. (LÖWY, 2019). Traços estes que se caracterizam pela estratégia da ameaça, do ódio, de criar medo e culto às armas e à violência, no limite a eliminação de oponentes.
Os atos de ódio e violência de oito de janeiro de 2023, destruindo os símbolos da tríade que expressa a legalidade e a legitimidade da democracia liberal burguesa, sem precedentes em nossa história, é reconhecidamente mais grave do que foi a tentativa de invasão do Capitólio nos Estados Unidos em seis de janeiro de 2022. A ascensão ao poder do Estado de um bloco de forças sociais e políticas de extrema direita nos remete a duas ordens de questões correlatas. Um olhar na longa e média duração nos planos econômico, político, cultural e jurídico onde se alimentou e alimenta o projeto de extrema direita em curso no Brasil e porque se trata de algo que não é apenas conjuntural e por isto não pode ser subestimado.
Nossa formação histórica colonizada e os quase quatrocentos anos de escravidão forjaram uma classe dominante sob o duplo estigma: do colonizador e do escravocrata, ambos geridos sob o arbítrio e pela violência. O colonizador caçando os povos originários e fazendo os que sobreviviam cultuar o seu deus e seus valores. Os
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escravocratas, naturalizando a compra, a venda e o trato dos escravos como animais que falavam. Heranças que nunca foram superadas pela raiz e que se manifestam na brutalidade da relação capital e trabalho, no racismo e no que estamos vendo estarrecidamente com a política de extermínio dos Yanomamis pautada pelo governo Bolsonaro.
A entrada do Brasil nas relações propriamente capitalistas não superou esta herança. A burguesia brasileira se constitui tardiamente e, diferente das burguesias que produziram as revoluções clássicas e buscaram constituir nações autônomas e soberanas, optou por um projeto de capitalismo dependente. Este, como mostram vários autores, destaco aqui Florestan Fernandes e Francisco de Oliveira, se desenvolve dentro uma modernização conservadora. Trata-se de um capitalismo que se moderniza, mas sem abandonar a simbiose com o atraso. Vale dizer, um capitalismo que convive com grande concentração da capital e renda, uso de tecnologias de última geração, altíssimo consumo, escolaridade e qualificação profissional na mão de poucos com uma brutal desigualdade que se manifesta na pobreza de um quarto da população e extrema pobreza em mais de trinta milhões de brasileiros vivendo em favelas, poucos escolarizados, trabalhando na informalidade ou desempregados. Uma sociedade, como a define Francisco de Oliveira na metáfora do Ornitorrinco, cuja classe dominante produz a miséria e se alimenta dela.
No plano político um projeto que se mantém, ao longo de nossa história, pelo autoritarismo que se expressa por ditaduras, mais de um quarto do Século XX, e golpes de Estado que interrompem movimentos e pequenas conquistas que alteram os privilégios da minoria. Ditaduras e golpes que se estruturam, se efetivam e se materializam dentro de uma agenda cultural conservadora em defesa da família, da religião e da propriedade privada sob o imaginário do risco do comunismo. No plano jurídico este projeto societário se sustenta aplicando, dominantemente, o código civil para a classe dominante e o código penal para a classe trabalhadora. Neste particular o racismo estrutural mantém vivo o estigma escravocrata sobrepondo, para os negros, à desigualdade de classe, o fato de serem negros. O mais perverso é a condenação em massa à prisão de jovens pelo preconceito de serem negros ou a criminosa matança pela mão armada do Estado.
A vitória de Luiz Inácio Lula da Silva em outubro de 2022 indica que a história não é uma linha reta e abriu-se uma oportunidade de estancar, pelo menos no curto
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prazo, o pior. A composição de forças políticas que viabilizaram a vitória indica, do mesmo modo, as dificuldades de confrontar a natureza das relações sociais acima sinalizadas, pois a grande maioria destas forças são protagonistas do projeto de capitalismo dependente na sua conformação modernizadora, autoritária, moralista e, juridicamente, salvo exceções, mantenedora do status quo. A montagem da operação “lava jato” é expressão do papel do campo jurídico, agora não mais nas ditaduras, mas no tecido da legalidade da democracia liberal burguesa.
Se o que acaba de ser situado faz sentido, há que se atentar para a nova materialidade do tecido econômico, político, cultural e jurídico em que se alastrou a direita e extrema direita no Brasil ao longo do Século XX e não a subestimar. As estratégias de manipular e conduzir, com tecnologias digitais sofisticadas, um contingente crescente da população a aceitar o fundamentalismo econômico, seguir as práticas da ameaça, do ódio e da violência do fundamentalismo político e o uso do fundamentalismo religioso para subordinar a ciência à crença e a legitimar agenda nazifascistas dos costumes se constitui uma ameaça permanente.
Espero que o leitor perceba esta longa resposta, quase em forma de artigo, em sua dupla dimensão. De como este tecido social nos ajuda entender os embates, as lutas, os avanços e retrocessos no campo educacional e que, a particularidade do fato da extrema direita se apresentar como força política organizada nacionalmente cobra do campo das esquerdas, em sua diversidade, uma unidade substancial e profunda numa agenda que sustente o atual governo, mas que seja capaz de trazer o pêndulo da história para os interesses populares e dos direitos básicos e sociais da classe trabalhadora.
Gaudêncio Frigotto: Localizo a gênese do debate educacional atual, nos traços hoje mais perceptíveis da influência do projeto neofascista, na década de 1990, ao longo do governo Fernando Henrique Cardoso. É neste governo que se materializa a adesão e implantação efetiva do neoliberalismo no Brasil. Vale dizer, para a adoção do realismo mercantil e do conservadorismo e abandono do princípio iluminista da
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esperança. E isto se materializa tanto pela estratégia de protelar direitos básicos, sociais e subjetivos assegurados pela Constituição de 1988, quanto, especialmente de anulá-los mediante emendas constitucionais adequando-os ao projeto neoliberal.
A rejeição do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação produzido com ampla participação das instituições científicas, culturais, sindicais e populares, exaustivamente debatido e negociado, materializa o primeiro golpe da reação neoliberal. Ele se materializa com o protelamento do Plano Nacional de Educação mediante seguidas medidas ad hoc, a exemplo do Decreto n. 2.208/1997, que afirmava em lei a dualidade estrutural da educação no ensino médio, que pela resistência ativa das organizações que defendem os interesses das filhas e filhos da classe trabalhadora, não teve os efeitos esperados e foi revogado em 2004 no primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva pelo Decreto 5154/2004. Não por acaso a disputa mais crucial se dá no ensino médio, pois ali é que se define o horizonte de futuro da juventude, no sentido geracional, e juventudes no recorte de classe social, etnia, cidade e campo, etc.
É na área social, econômica, cultural e educacional que se manifesta mais nitidamente a relação entre neoliberalismo ou reação e conservadorismo que acaba por desembocar em concepções e práticas neofacistas. O ataque dos reformistas da educação no governo Fernando Henrique Cardoso contra as disciplinas que tratam, direta ou mediatamente, da compreensão da sociedade (história, sociologia, filosofia, literatura, geografia, economia etc.) se alinham às demandas do realismo mercantil que quer um trabalhador que não faça política, ou seja, que não discuta seus direitos e menos ainda que questione o sistema capitalista. O discurso que buscou afetar diretamente o ensino médio e as licenciaturas era de que os professores são formados com muita teoria desnecessária e que impunham isto a seus alunos. Daí a defesa reiterada e disseminada na grande mídia de que à escola cabe ensinar e que o educar pertence à família e à religião. Por isso, os professores necessitam apenas aprender as regras “do bem ensinar” executando o prescrito.
Este discurso, na disputa ao longo dos governos liderados pelo PT, deu-se de forma organizada por dois movimentos: Movimento Todos pela Educação, que reúne quatorze grupos econômicos que financiam duas dezenas de institutos privados que implementam parcerias público-privado produzindo materiais para serem vendidos às
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Secretarias Municipais e Estaduais de Educação para utilizá-los como o prescrito a ser pautado pelos professores.
O Movimento “Escola sem partido”, por sua vez, pauta-se claramente pela pedagogia nazifascista ou neofascista do ódio, da denúncia e do medo. O que é espantoso é que sobre este movimento, que constitui, à luz de Antônio Gramsci um partido ideológico, o pensamento crítico das ciências sociais e humanas só se deu conta a partir dos movimentos pré-golpistas, particularmente a partir de 2014. Sublinhe-se que não é por acaso o combate, menos velado no primeiro movimento, mas de guerra aberta no segundo, aos escritos de Karl Marx, Antônio Gramsci e de Paulo Freire.
O golpe de Estado de 2016, mormente no campo educativo, se alimentou destes dois movimentos. O conjunto de contrarreformas protagonizadas após golpe completam o que foi interrompido, em grande parte, pelos quatorze anos de governo popular e materializam de forma radical a adesão ao conservadorismo com sua matriz neofacista. Desgraçadamente a inteligência golpista de direita e centro-direita por buscar impedir, a qualquer preço, a candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva, abriu o vácuo para que um capitão truculento, defensor da tortura, cientificamente raso e despido de sentimento humano, fosse eleito presidente do Brasil. Aquilo que Francisco de Oliveira, anteriormente citado, antevia em 1998, caso não houvesse forças sociais capazes de reverter a regressão mercantil, realizou-se no governo Bolsonaro. “No limite a regressão ao contrato mercantil tende, por analogia, à mesma regressão nazifascista. Sendo impossível, dada a complexidade de a sociedade voltar-se ao contrato mercantil, a violência termina sendo a parteira desta regressão. Assiste-se, então, à violência explícita como moeda de troca nas relações sociais, até o cotidiano: a violência é o novo código da sociabilidade”. (OLIVEIRA, 1998, p. 230).
Os quatro anos de governo Bolsonaro perfilaram a mais regressiva política econômica, desmanche da esfera pública e uma agenda política centrada nos costumes ultraconservadores. Na educação, a orientação desta agenda foram as teses do Movimento Escola Sem Partido com várias tentativas de transformá-las em lei. Independentemente disto, o governo seguiu as suas ideias mediante a política do livro didático, militarização das escolas, ataque à autonomia das universidades, dos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IFs) e perseguição exemplar de professores do pensamento crítico. A resistência dos sindicatos, movimentos
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sociais e instituições cientificas, no interior de uma avassaladora Pandemia (Covid 19) ficaram restritos a uma importante guerra de posição, impedindo a aprovação em lei das teses do “Escola sem partido”, combate à militarização, à adoção do ensino híbrido nas escolas básicas e superiores e à política do livro didático.
Gaudêncio Frigotto: Ao longo da história do sistema capitalista a faixa etária que caracteriza a juventude é alvo de disputa dos partidos políticos, das religiões, dos sindicatos e, de forma sistemática e impositiva, da escola. A escola dual é a espinha dorsal do projeto burguês de educação e a sua superação é parte do mesmo movimento da luta de classes para a superação do sistema capitalista que a demanda intrinsecamente.
As revoluções burguesas clássicas se pautaram pela dualidade estrutural na educação. A crítica mais sistemática à dualidade estrutural do sistema educativo surgiu na sociedade francesa. Esta plasmou o ideário do projeto da burguesia, inicialmente revolucionária e, em seguida, reacionária. Mas as revoluções burguesas clássicas garantiram, dentro da dualidade, a universalização da educação básica à classe trabalhadora. Esta garantia, como nos ensinam Florestan Fernandes e Francisco de Oliveira, teve um duplo ganho para estas sociedades. Um operariado em larga escala preparado ou em condições de ser preparado rapidamente para o trabalho complexo e para acompanhar as mudanças dos saltos tecnológicos incorporados ao sistema produtivo e, também, como bases para sua organização política e capacidade de pôr freios à volúpia do capital.
No Brasil, historicamente à dualidade, explícita ou velada, se acrescenta a negação pura e simples da educação básica de nível médio à maior parte da classe trabalhadora adulta e continua se negando à quase metade da geração de jovens atuais. O espantoso é que as forças sociais que produzem esta negação, de tempos em tempos reclamam, quando há pequenos surtos de crescimento econômico, do apagão educacional. E de fato falta, nestes momentos, mão de obra qualificada. A
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solução é o atalho pela qualificação precária reiterando, em novos patamares, a modernização conservadora.
A ditadura Vargas não só freou as propostas dos Pioneiros da educação, como deu ao patronato o atual Sistema S, para gerir a formação profissional e com forte aporte do fundo público. As lutas pelas reformas de base, pela erradicação do analfabetismo e ampliação da educação básica pós-ditadura Vargas tiveram como reação a ditadura empresarial militar de 1964 que durou 21 anos. O Programa Intensivo de Preparação de Mão de Obra (PIPMO), criado no Governo João Goulart para durar 10 meses, a ditadura o prolongou por 19 anos. Na década de 1990, ao mesmo tempo em que se resistia transformar em ação política concreta o ensino médio como parte final da educação básica e, portanto, um direito universal optou-se, novamente, pelo atalho com criação do Plano Nacional de Qualificação do Trabalhador (PLANFOR).
A dimensão mais profunda que ocorre como epílogo e de consequências mais graves foi a privatização do pensamento pedagógico. Isto se materializa pelo processo de internalização de transformar a ideologia privada do capital, do mercado e dos homens de negócio em política oficial do Estado. Não é inocente o ideário pedagógico dos parâmetros e diretrizes curriculares e dos processos de avaliação centrados na concepção produtivista e empresarial das competências, da competitividade e da empregabilidade.
Nos dois períodos de governo de Luís Inácio Lula da Silva, especialmente pela criação em 2008 e interiorização acelerada dos IFs, criação de novas dezoito Universidades públicas demandadas por movimentos sociais, também interiorizadas, políticas de cotas etc., em parte reverteu a tendência acima. Mas ao incorporar, no Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE) em 2007, o Movimento Todos pela Educação e, em 2011, adotar o Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (PRONATEC) como a política prioritária, indica uma inflexão que se alinha ao que tem sido o caminho do atalho. O ensino médio integrado, facultado pelo Decreto Lei 5154/2004, um esforço para superar a dualidade estrutural, ficou secundarizado. Então, por que a contrarreforma do ensino médio é a regressão da regressão, uma traição às gerações atuais e futuras de jovens que lhes hipoteca o
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futuro na inserção no trabalho e na cidadania ativa? A resposta, pelo que analisei na primeira e segunda questões, é que ela corresponde à adesão ao realismo mercantil e sonega as bases científicas e culturais a jovens e os condena ao trabalho simples, ao desemprego e às mais brutais formas de informalidade com a internalização de que a chance foi dada, mas não se esforçaram suficientemente para ter o mérito de serem incluídos. A pasteurização das ciências da natureza e das ciências sociais e humanas na contrarreforma e o foco em disciplinas instrumentais ou, o que é pior, para o projeto de vida centralizado em competências emocionais, empreendedorismo e educação financeira, na prática significa a negação de bases de conhecimento para ter futuro digno.
Registre-se que esta contrarreforma, com estas características, é para mais de 85% dos jovens que frequentam a escola pública nas esferas federal, estadual e municipal. Desde o Golpe de Estado de 2016 o pouco do ensino médio de qualidade desenvolvido na Rede de Educação Profissional, Científica e Tecnológica foi sendo desmantelado pela estratégia do corte abismal dos recursos financeiros e a pressão para que a mesma se transformasse numa espécie de Sistema S estatal, mas cada vez menos público e centrado em atividades de atalho e não da formação básica.
Gaudêncio Frigotto: O primeiro pressuposto é a garantia do acesso universal ao ensino médio como direito social e subjetivo a todas as famílias que optarem pela escola pública. Neste particular, a universalização deste nível de ensino e de qualidade consubstancia em sua quantidade um elemento central de qualidade. A contraposição da quantidade à qualidade é a defesa do status quo. Garantida a universalidade do acesso, os dois eixos centrais são: a base material de funcionamento das escolas para o ensino de qualidade e a disputa de um currículo que viabilize uma formação que leve em conta todas as dimensões da vida humana da juventude em formação.
As bases materiais começam pela estrutura dos prédios escolares com espaços adequados para aulas, laboratórios, biblioteca, informática, auditório para
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atividades artísticas e culturais, gabinetes para os docentes e demais trabalhos técnicos e de apoio, espaço para prática de esportes. Parte fundamental da base material do ensino de qualidade envolve a carreira docente, remuneração docente, formação docente e professores atuando numa só escola com o máximo de 20 horas em sala de aula e 20 horas para pesquisa, preparação de materiais, atendimento a alunos com dificuldades em determinadas matérias ou assuntos.
Não é difícil concluir que estas condições somente as encontramos, na educação pública, na Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica, mesmo quando ofertada no interior, o que corresponde a 85% dos campi. Do mesmo modo, não é difícil reconhecer que este padrão de ensino implica um alto investimento. Mas se de fato for tomado como prioridade social e econômica, o problema não é de recursos financeiros, mas de decisão política. As desigualdades regionais e as diferenças de políticas nesta etapa da educação básica nos diferentes estados da Federação inviabilizam uma política para que todos os jovens possam ter acesso a esta base material. A federalização deste nível de ensino, deixando aos estados e municípios a educação Infantil e fundamental poderia ser uma medida a ser pensada. Ela poderia desenvolver as condições objetivas para um mesmo padrão de qualidade de ensino. Mas esta proposta esbarra nos interesses políticos imediatos dos governadores e, por isso, esta mudança depende de uma ampla mobilização nacional a ser construída.
No plano curricular, para que o ensino médio seja de fato básico ou o que dá a base tanto para seguir para os estudos universitários ou para o trabalho complexo, a diretriz traçada por Antônio Gramsci há quase um século mantém-se novíssima. Na defesa da escola unitária postulava um justo equilíbrio entre as ciências que permitem entender as leis da natureza (biologia, física, química etc.) e as que permitem aos jovens entenderem como funciona a sociedade (história, sociologia, filosofia, geografia, literatura e a arte). Como bases não só instrumentais, mas também culturais, as diferentes linguagens, ciência da informação etc. A educação física tem interfaces com os modos de vida e a cultura corporal, com a saúde e a formação do espírito coletivo.
O atendimento aos interesses populares ou ao conjunto da classe trabalhadora que frequenta a escola pública, dois aspectos sublinhados por Florestan Fernandes na sua incansável defesa da educação e da escola pública, são requisitos
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fundamentais. O primeiro, relativo à função dos docentes de ensinar e educar. Ensinar, desenvolvendo o espírito científico nos jovens com o incentivo à curiosidade da descoberta, da busca de desvelar o que está oculto tanto no âmbito das ciências da natureza, quanto das ciências sociais e humanas. E educar buscando em cada campo disciplinar debater com os jovens as grandes questões que afetam seu presente e seu futuro.
O segundo aspecto está implicado no primeiro. Não é qualquer processo educativo que interessa à luta pela emancipação da classe trabalhadora destacado por Florestan. “A pedagogia volta a ser a chave para a decifração do nosso enigma histórico. O que a Constituição negou, o povo realizará. Mas ele não poderá fazê-lo sem uma consciência crítica e negadora do passado, combinada a uma consciência crítica e afirmadora do futuro. E essa consciência, nascida do trabalho produtivo e da luta política dos trabalhadores e dos excluídos, não depende da educação que obedeça apenas à fórmula abstrata da ‘educação para um mundo em mudança’, mas sim da educação como meio de autoemancipação coletiva dos oprimidos e de conquista do poder pelos trabalhadores. (FERNANDES, 2020, p.19).
De imediato, pode-se concluir que o que acabo de expor nesta questão se coloca diametralmente em direção oposta ao que, historicamente, tem sido o dominante na educação básica brasileira. E no contexto da análise da primeira questão, o caráter da crise estrutural do capital e o acirramento de suas contradições conduziram no plano mundial e, em particular, na nossa sociedade desde a década de 1990 e mais radicalmente desde 2016, a uma regressão sem procedentes no campo da educação pública. O governo Bolsonaro expressa a síntese mais regressiva das duas faces que o caracteriza como um governo de políticas nazifascistas: na economia e na educação. Nesta última, à sua crescente mercantilização somou-se a agenda cultural dos costumes e da militarização.
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Gaudêncio Frigotto: Aprendemos que a história se define pela natureza de determinados eventos ou fatos que a conduzem para melhor ou pior. Pelo que vivemos nos quatro anos de bolsonarismo e agora tomando conhecimento dia a dia da fratura profunda produzida na sociedade como projeto de poder e pelo que significaria a continuidade, cabe sublinhar a grandeza e o sentido da vitória da chapa Luís Inácio Lula da Silva e Geraldo Alkmin. Abre-se uma janela complexa, mas real, da possibilidade de um futuro viável dentro do Estado Democrático de Direito nos limites, sabemos, das forças em jogo na sociedade brasileira.
Um olhar pelo retrovisor da história indica que nos moveremos dentro de uma conjuntura complexa onde, apesar da vitória nas urnas, o poder de fato se move no âmbito de forças conservadoras de direita e da extrema direita. A composição do governo e, sobretudo, do Congresso expressam este conservadorismo. Um cenário que indica, em certa medida, erros do passado do campo das esquerdas, em particular, ao longo dos 13 anos de governos populares. A politização das massas não se faz sob a negação da educação básica e, em especial o ensino médio nas bases e concepções acima expostas. Trata-se de uma condição necessária.
Os avanços se impõem como necessários e certamente possíveis, mas num cenário que as organizações científicas, movimentos sociais populares, sindicatos e partidos políticos que desde a ditadura empresarial militar lutaram e lutam pela escola pública, universal, gratuita, laica e unitária, não poderiam supor tão adverso. Não se faz “omelete sem quebrar ovos", diz o ditado. A composição, no passado, com as forças de mercado representadas por duas dezenas de institutos privados que compõem o movimento empresarial “Todos pela Educação” tornaram-se agora visivelmente hegemônica na composição do Ministério da Educação com uma agenda do pensamento pedagógico-empresarial. Os ovos foram quebrados e a omelete foi feita para esta agenda. Numa analogia ao documentário de Silvio Tendler, “O veneno está na mesa” pode-se dizer: os intelectuais ideólogos dos institutos privados do empresariado estão, de forma direta ou indireta, no MEC.
O fato mais que intrigante é que, do conjunto de Ministros de Estado, cota de escolha do núcleo decisório da Presidência da República, a mais conservadora e destoante das propostas de mudanças que tenham alcance de longo prazo, é da Educação. Em quarenta dias, deve-se destacar uma postura republicana e de mudanças consistentes no contraponto ao realismo mercantil. O próprio Presidente
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tem confrontado a política absurda de juros e da apropriação lesiva da Petrobrás subordinando o interesse social ao lucro de acionistas. Não se trata aqui de ver pura negatividade ou incompetência da equipe do MEC, mas de destacar que a direção política e a concepção de educação que interessa aos jovens que frequentam a escola pública se vinculam às mudanças estruturais necessárias em nossa sociedade. Espanta que no núcleo dirigente do MEC o pensamento científico, político e cultural produzido nas Universidades Públicas e Institutos Federais de Educação Profissional, Científica e Tecnológica estejam simplesmente ausentes.
O desafio e a natureza dos avanços na agenda histórica da luta pela escola pública dependem da nossa capacidade coletiva de organização não só da área da educação, mas do conjunto de forças da sociedade que entendem que é necessária uma mudança, pela raiz, da direção assumida pelo Ministério da Educação. O recado está dado pela reação de centenas de instituições científicas, movimentos sociais e culturais da área sobre esta necessidade. Os efeitos sociais e políticos negativos da não mudança de direção da política se potenciarão e o governo, em vez de ter a energia positiva dos educadores e suas organizações científicas, culturais e dos movimentos sociais, os colocará na defensiva. A estratégia de fazer uma consulta à sociedade ou abrir algumas audiências públicas não me parece adequada. Não se faz uma consulta à sociedade em geral para definir as causas de um desabamento de um prédio e nem se um paciente deve ser ou não operado. Então porque, num tema tão fundamental, depender de opinião e não do conhecimento solidamente produzido nas universidades públicas? Não estaríamos diante da velha estratégia de protelar para não alterar o fundamental ou simplesmente validar pela opinião geral algo insustentável cientificamente?
Gaudêncio Frigotto: Pelo exposto nas questões anteriores, por razões político-sociais, econômicas e humanas, a revogação da contrarreforma do ensino médio se constitui no pilar das mudanças imperativas. A juventude em sentido geracional e as juventudes pela clivagem de classe social, campo, cidade, gênero etc.,
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é a fase da vida em que não somente as forças políticas, mas as diferentes denominações religiosas, e hoje especialmente pelas merco-igrejas de correntes evangélicas empresariais, o tráfico etc., disputam seus corações e mentes.
Daí decorre a centralidade do ensino médio nos termos dos eixos expostos na questão quatro relativos às bases materiais, concepção de educação e currículo. Como foi exposto, a contrarreforma se posiciona em sentido oposto. No âmbito da concepção, a tese de que acabe aos professores ensinar e à família e religião educar, explicitada na década de 1990 pela equipe do Ministro da Educação Paulo Renato de Souza, e ampliada nas atuais contrarreformas da educação pública e na agenda moral do bolsonarismo, constitui-se na estratégia de formar gerações de jovens dóceis, obedientes e vacinados contra a cidadania ativa para mudanças estruturais em nossa sociedade.
O encurralamento dos jovens para a escolha de um entre cinco itinerários formativos, com a desestruturação do currículo do núcleo das disciplinas básicas das ciências ligadas à natureza e das ciências sociais e humanas e a perspectiva pedagógica de formar fragmentariamente por competências têm efeitos nefastos de diferentes ordens.
Primeiro, delegar o protagonismo da escolha do ou dos itinerários a jovens numa idade em que ainda não têm bases de conhecimento e de informação para tanto, é colocá-los numa “roleta russa”. Trata-se de uma delegação daquilo que deveria ser de responsabilidade dos adultos e dos governantes mediante o debate com pesquisadores e educadores que defendem uma educação de qualidade para todos. E não mediante contrarreformas impostas por ditaduras e golpes de Estado. Perversamente, a conta cairá nas costas das atuais e futuras gerações debitando a elas o despreparo científico para construírem a sua autonomia política e econômica.
O segundo aspecto diz respeito aos efeitos econômicos e sociais. A força produtiva por excelência atualmente é a ciência e a tecnologia incorporadas ao processo de produção. O valor agregado não está na matéria prima, mas na ciência e tecnologia de transformação em produtos, bens e serviços. Para ter escala quantitativa de cientistas que produzem conhecimento e tecnologia competitivas mundialmente para sairmos da condição de sociedade de capitalismo dependente e modernização conservadora, o passo necessário é a universalização do acesso ao ensino médio na perspectiva posta na questão quatro. A quantidade, com aquela base
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científica e política, transforma-se em potencial qualitativo. Uma formação que não separa o ensinar e educar para que ciência e tecnologia produzidas pelo esforço coletivo não sejam apropriadas, como atualmente, privadamente e se voltem contra filhas e filhos da classe trabalhadora.
Finalmente, a revogação da contrarreforma do ensino médio tem um imperativo humano ético. Sem bases de conhecimento científico, cultural e sem formação política que a mesmo enseja pelo conteúdo, método e forma de desenvolver o processo pedagógico, os jovens não construirão sua autonomia como sujeitos, individuais e coletivos, e ficarão presas fáceis das mais hediondas manipulações. O que vivemos sob o bolsonarismo e sua agenda fundamentalista política, econômica e religiosa exemplifica emblematicamente a natureza desumanizadora destas manipulações. No lugar da pedagogia do coletivo e da esperança, o incentivo ao ódio contra os oponentes; no lugar de uma economia solidária, o imperativo do lucro mercantil para poucos e, mais perversamente, a subordinação da ciência à crença ou crendices.
O fato da atual gestão do MEC ter sido fruto de negociação com a base política representante do pensamento educacional empresarial, tendo o modelo de gestão de parcerias com os institutos privados pautado no estado do Ceará e seu propalado sucesso, a revogação implica alcançar um amplo campo que tenha força política para tanto. O que foi feito até agora em termos de organização e de pressão já tem vitórias parciais, pois concordam com adaptações, mas que não alteram o fundamental de sua natureza de uma contrarreforma que oferece à juventude do país uma base de conhecimento similar a um “pastel de vento”.
Dois passos para avançar na direção da revogação poderiam ser colocados de imediato na mesa da negociação política: suspender e/ou prorrogar a sua implementação nos estados e municípios até que se faça um debate amplo com a área de educação e suas organizações num contexto diverso da lei que gerou a Contrarreforma dentro de um golpe de Estado. Outra medida é, em qualquer circunstância, ela não ser aplicada na esfera de educação federal. A criação dos IFs e da Rede de Educação Profissional, Científica e Tecnológica, com a crescente adesão ao ensino médio integrado, foi e é a política criada nos governos populares sob a liderança do Partido dos Trabalhadores. Aplicar a contrarreforma a esta rede significaria negar o que de mais significativo e estruturante foi feito nos governos
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populares entre 2003 e 2014, juntamente com a criação de mais dezoito universidades públicas com mais de 170 campi interiorizados.
Os desafios são muitos e de vários níveis de complexidade de enfrentamento, com desdobramentos de médio e longo prazo. Um dos primeiros desafios é que temos que nos mover analisando as condições objetivamente dadas. E estas condições se balizam, na conjuntura atual, no fato de que o foco dominante da frente ampla que constitui o governo é a defesa do mercado e não da esfera pública e, por consequência, a defesa do pensamento e política educacional a serviço do mercado. Certamente a postura política que necessitamos adotar no enfrentamento destas forças ao longo dos próximos quatro anos é caminhar no fio da navalha dando sustentação ao governo Lula, mas sem abrir mão das lutas e pressões para que o pêndulo avance, no conjunto da sociedade e na educação em particular, para o interesse público. Isto supõe, no plano político, contrapor à frente ampla, uma frente popular que no curto prazo seja capaz de fazer mudanças dentro da ordem vigente das relações sociais capitalistas no Brasil, contra esta ordem. Isto não significa renunciar à tese de que o capitalismo não é reformável e, portanto, precisa ser
superado.
Todavia, importa ter presente, e este é outro desafio, aquilo que Karl Marx ponderava ao camarada Ferdinand Domela Nieuwenhuis que lhes perguntou sobre o que deveria ser feito quando os socialistas tomassem o poder. A resposta foi: “a antecipação doutrinária e necessariamente fantástica do programa de ação de uma revolução do futuro apenas nos desvia da luta atual”. Esta compreensão tem como corolário o que Eric Hobsbawm destaca nesta direção sobre a postura de Marx na luta revolucionária. “É inútil procurar em Marx alguma coisa que antecipe controvérsias posteriores, como aquela entre ‘reformistas’ e ‘revolucionários’, ou ler os seus textos à luz dos debates subsequentes entre direita e esquerda nos movimentos marxistas. O fato de seus textos terem sido lidos dessa forma faz parte da história do marxismo, mas pertence a um estágio tardio desta história. Para Marx, o importante não era saber se os partidos da classe operária eram reformistas ou revolucionários, ou
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mesmo o que estes termos implicavam. Ele não via nenhum conflito, em princípio, entre a luta cotidiana dos trabalhadores pela melhoria de suas condições sob o capitalismo e a formação de uma consciência política que previsse a substituição do capitalista pela sociedade socialista, ou as ações políticas que levam a esse fim” (HOBSBAWM, 2011, p.65).
Essas diretrizes sinalizam para o desafio de fundo das forças sociais que lutam em defesa da escola pública, da superação da dualidade educacional e pela construção da escola unitária. Vale dizer, um mesmo direito ao acesso ao conhecimento e à formação humana que leve em conta todas as dimensões da vida dos educandos. Trata-se do desafio de, no debate marcado pelo dissenso, ter a capacidade e generosidade política de construir consensos possíveis que transitem das formulações teóricas e políticas para o campo da práxis. É neste âmbito que as mudanças ganham materialidade histórica.
Tenho consciência de que, no conjunto das respostas às questões que me foram formuladas o dominante é o “pessimismo da razão”. Isto, talvez, advenha da compreensão do peso histórico das forças conservadoras em impedir mudanças, mesmo que alterem marginalmente os seus privilégios. Do mesmo modo, talvez seja uma espécie de antídoto ao otimismo ingênuo. Mas de forma nenhuma está ausente o otimismo da vontade calcado sobre conquistas, ainda que parciais, das lutas pelos direitos básicos, sociais e subjetivos da classe trabalhadora. É sobre esta herança de luta que nos movemos no presente. O potencial de conquistas depende de envolver os jovens nestas lutas e o seu entendimento de que se trata de construir as possibilidades do seu futuro. Nesta tarefa é fundamental o papel do conjunto de trabalhadores da educação pública – gestores, professores, corpo técnico e serviços de apoio – e das organizações científicas, políticas, sindicais e dos movimentos sociais.
A derrota do projeto bolsonarista de mais quatro anos de desmonte da nação com suas concepções e práticas políticas de natureza nazifascista torna realidade o que nos lega Florestan Fernandes para ampliar o otimismo da vontade como força dos pequenos e grandes embates que nos esperam. “A história nunca se fecha por si mesma e nunca se fecha para sempre. São os homens, em grupos e confrontando- se como classes em conflito, que ‘fecham’ ou ‘abrem’ os circuitos da história. (FERNANDES, 1977, p.5).
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FERNANDES, F. Os circuitos da história. São Paulo: HUCITEC, 1977.
FERNANDES, F. O desafio educacional. São Paulo: Editora Expressão Popular, 2020.
HOBSBAWM, E. Política extrema. Caderno Mais, Jornal Folha de São Paulo, São Paulo, 18 de abril de 2010.
HOBSBAWM, E. Como mudar o mundo: Marx e o Marxismo, São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
LÖWY, M. Dos governos de direita, Bolsonaro é o que mais tem traços neofascistas.
MARX, K. O Capital, v. 1, tomo 2. São Paulo: Abril Cultural, 1984.
OLIVEIRA, F. Os direitos do antivalor: a economia política da hegemonia imperfeita. Petrópolis: Editora Vozes, 1998.
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V.21, nº 44, 2023 (janeiro-abril) ISSN: 1808-799 X
Katharine Ninive Pinto Silva2
O presente texto consiste em uma resenha do livro Trabalho docente sob fogo cruzado - Volume II, publicado em 2021 pelo Laboratório de Políticas Públicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (LPP/UERJ) e que foi organizado por Jonas
1 Resenha recebida em 18/01/2023. Aprovado pelos editores em 31/03/2023. Publicado em 13/04/2023. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v21i44.57107.
2 Doutora em Educação pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) – Brasil. Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Pernambuco (PPGEdu/UFPE) – Brasil. E-mail: katharineninive@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/6464562533995452. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7293-4289.
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Magalhães et al (MAGALHÃES, 2021). A obra é uma coletânea constituída por 20 capítulos; 2 entrevistas (Gaudêncio Frigotto - UERJ e Luís Carlos de Freitas - UNICAMP), além de apresentação realizada por Cláudia Affonso, prefácio assinado por Eveline Algebaile, Lia Tiriba, Maria Ciavatta e Marise Ramos, além das orelhas do livro com contribuição de Ricardo Antunes e quarta capa com texto de Vânia Motta.
O livro apresenta duas partes complementares, sendo a primeira delas tematizando “O Trabalho Docente na Pandemia do Coronavírus” e a segunda parte aborda “O Trabalho Docente no Labirinto do Capital”.
O Trabalho Docente sob fogo cruzado envolve questões apresentadas por Silva et al (2021, p. 56) como “[...] recurso da adaptação dos currículos, da polivalência e da adição de tecnologias digitais e de informação” que, na Pandemia, passa a lidar com “[...] formas modernas de escravidão (digital) e dificuldades em separar o tempo de vida no trabalho e fora do trabalho” (SILVA et al, 2021, p. 56), próprias das dificuldades em relação aos trabalhos on line, citados por Antunes (2018).
A situação epidemiológica do COVID-19 no Brasil soma um acumulado de
697.439 óbitos desde o início da Pandemia3 e, nos anos de 2020 e 2021, o mundo enfrentou a necessidade de políticas de isolamento social e, com isso, enfrentamos também a investida de setores do Capital, sobretudo no âmbito da educação. As investidas neoliberais lançam mão da chamada “Doutrina do Choque”, descrita por Naomi Klein como táticas brutais utilizadas por corporações e empregada por governos de direita para se aproveitar da desorientação causada por episódios traumáticos, de forma a implantar medidas que favoreçam ainda mais os mais ricos (KLEIN, 2008). De acordo com Barbosa et al (2021), nesse mesmo sentido, “[...] o pânico social causado pela pandemia é aproveitado para a aceleração de medidas que aprofundam as reformas ultraliberais e conservadoras, privilegiando os lucros dos bancos e das corporações empresariais” (p. 14).
O capítulo assinado por Jonas Magalhães, “Consciência socioprofissional e docência: a dimensão ético-política do trabalho docente no contexto da pandemia”, aborda como as organizações sociais ligadas ao empresariado brasileiro atuaram para alterar a concepção e organização da educação escolar no Brasil a partir do
3 Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/coronavirus/informes-diarios-covid-19/covid-19- situacao-epidemiologica-do-brasil-nesta-segunda-feira-06, acesso em 07 de fevereiro de 2023.
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contexto da Pandemia do Coronavírus, interferindo inclusive no âmbito da consciência socioprofissional dos docentes.
Os seguintes capítulos contribuem com a problematização dessa questão: “A precarização do trabalho docente: o ajuste normativo encerrando o ciclo”, que descreve o contexto da precarização do trabalho docente no regime de acumulação flexível, escrito por Acácia Kuenzer; “O ataque ao trabalho docente na chamada sociedade do conhecimento”, abordando as influências da Nova Gestão Pública (NGP) e das reformas da educação e os desafios aos docentes no contexto da sociedade do conhecimento, escrito por Dalila Oliveira; “Socialização, profissionalização e trabalho de professores iniciantes”, uma pesquisa sobre a inserção profissional dos egressos da USP, escrito por Maria Isabel de Almeida, Selma Garrido Pimenta e José Cerchi Fusari.
Complementando essa reflexão, o capítulo assinado por Amanda Moreira da Silva sobre “O precariado professoral em tempos de pandemia da Covid-19: a perda dos postos de trabalho e a eliminação de direitos”, considera o aumento dos vínculos temporários e eventuais desde as últimas décadas, bem como o aprofundamento da precarização do trabalho docente durante a pandemia. E Artur Gomes de Souza escreve o capítulo “Voluntariado como estratégia do capital para a fragmentação da categoria docente”, abordando a dificuldade de acesso às estatísticas sobre o trabalho voluntário na educação e ao impacto desse tipo de trabalho na fragmentação da categoria docente. Barbosa et al (2021) cita, nesse mesmo sentido, o estrago da Medida Provisória 927/20204 sobre os professores da educação básica e superior, com a suspensão de milhares de contratos em função da adoção de plataformas digitais.
Rodrigo Lamosa trata sobre “O trabalho docente no período de pandemia: ataques, lutas e resistências”, abordando a ação da Coalizão Global de Educação (CGE), criada pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) em parceira com Banco Mundial e empresas como Microsoft, Google e Facebook. O capítulo aborda também a adoção, pelo empresariado brasileiro, da estratégia do CGE em articulação com o setor público. A partir dessa caracterização, o autor discorre sobre a educação escolar e o trabalho docente em tempos de
4 https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/mpv/mpv927.htm, acesso em 07 de
fevereiro de 2023.
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“capitalismo de vigilância”. Barbosa et al (2021) chamam atenção para o fato de que dados de docentes e de discentes estão sendo utilizados para definir perfis de consumo e para exercer controle e vigilância sobre o trabalho e determinar comportamentos despolitizados.
A plataformização da educação que aconteceu durante a Pandemia, abriu espaço para a ampliação da Educação à Distância. Sobre essa questão, a Frente Contra o Ensino Remoto/ EaD na Educação Básica trata da “Implementação do “ensino remoto” nas redes públicas de educação básica na pandemia”. Nesse mesmo sentido, o capítulo de Euler Costa “Os ataques à educação pública no Brasil: do senso comum do capital humano ao oportunismo neoliberal na pandemia”, trata sobre a aceleração da implementação do EaD, inclusive para o Ensino Fundamental. E Thiago Boim escreve “A nova morfologia do trabalho (im)produtivo na era digital e a invenção do professor não-professor: infoprecarização e atividade magisterial no Ensino Superior a distância”, abordando o trabalho docente digital na era do EaD e o mito do fim do trabalho dentro do capitalismo. De acordo com Barbosa et al (2021, p. 19), “o centro da questão reside no fato de que a atual forma de EAD, pensada pelas empresas e os governantes, não esconde o seu desejo de transformar o professor em mero assistente barateado pelas plataformas digitais, de fácil preparação em cursinhos rápidos de formação docente”.
Outras temáticas importantes reunidas no livro para tratar o Trabalho Docente sob fogo cruzado, são: Trabalho remoto e saúde docente; Reforma do Ensino Médio e trabalho docente; Movimentos conservadores e trabalho docente; Qualificação profissional e Educação do Campo. O livro também reúne relatos de experiência, tanto de formação, quanto de atuação docente. Relatos estes que, na organização do livro, mesclam descrição detalhada, imagens e análise crítica dos autores, de forma a enriquecer as várias temáticas abordadas no livro, que ajudam a elucidar o Trabalho Docente sob fogo cruzado. Uma leitura essencial para professores e pesquisadores, pela atualidade, profundidade e riqueza das contribuições que reúne.
ANTUNES, R. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital; São Paulo: Boitempo, 2018.
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BARBOSA, E. S. et al. Notas sobre as contrarreformas empresariais da educação no contexto da Pandemia de COVID-19: o “choque” da Educação a Distância. In: SILVA,
K. N. P.; SILVA, J. A. A. Cadernos da Pandemia: problematizando a Educação em tempos de isolamento social. Curitiba: CRV, 2021.
KLEIN, N. A doutrina do choque: a ascensão do capitalismo de desastre. Trad. Vania Cury. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.
MAGALHÃES, J. et al (Orgs.). Trabalho docente sob fogo cruzado. 1ª ed., Rio de Janeiro: UERJ, LPP, 2021.
SILVA, K. N. P. et al. Ensino Remoto durante a Pandemia de COVID-19: Home Office, Plataformas Virtuais e flexibilização da formação e do trabalho docente. In: SILVA, K.
N. P.; SILVA, J. A. A. Cadernos da Pandemia: problematizando a Educação em tempos de isolamento social. Curitiba: CRV, 2021.
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V.21, nº 44, 2023 (janeiro-abril) ISSN: 1808-799 X
Hemerson Moura2 Ana Carolina Bordini Brabo Caridá3
Passados sete anos do golpe empresarial-parlamentar-jurídico-midiático que destituiu o governo Dilma Rousseff e mergulhou o Brasil em uma tragédia personificada na figura de um governante ilegítimo e outro facínora, o livro Educação profissional no Brasil do século XXI: políticas, críticas e perspectivas ganha o seu segundo volume em um contexto auspicioso porque vemos no nosso horizonte a possibilidade real de reconstrução do país, a começar pela necessária revogação da contrarreforma do Ensino Médio (Lei 13.415/2017).
Composta por dois volumes organizados pelos professores e pesquisadores doutores José Deribaldo Gomes dos Santos (GPTREES/UECE), Domingos Leite Lima Filho (GETET/UTFPR) e Henrique Tahan Novaes (GPOD/Unesp-Marília), esta coletânea reúne textos de pesquisadoras/es das cinco regiões do país vinculadas/os a instituições educacionais sediadas em 14 estados da federação – algo que, de certo modo, atesta a riqueza da diversidade de olhares que o livro congrega – e traz grande contribuição para a luta política da classe trabalhadora, para o campo de estudos
1 Resenha recebida em 27/03/2023. Aprovada pelos editores em 28/03/2023. Publicada em 13/04/2023. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v21i44.57848.
2 Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Tecnologia e Sociedade na Universidade Tecnológica Federal do Paraná (PPGTE-UTFPR), Paraná - Brasil. Mestre em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Pernambuco - Brasil. Professor de Sociologia do Instituto Federal do Maranhão (IFMA) - Campus São João dos Patos, Maranhão - Brasil.
E-mail: hemerson@alunos.utfpr.edu.br.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/1093967469321053. ORCID: https://orcid.org/0009-0006-9633-716X.
3 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Tecnologia e Sociedade na Universidade Tecnológica Federal do Paraná (PPGTE/UTFPR), Paraná - Brasil. Mestra em Sociologia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Santa Catarina - Brasil. Docente em Sociologia no Instituto Federal de Santa Catarina - Campus São José (IFSC/SJ), Santa Caratira - Brasil. Integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas em Trabalho, Educação e Tecnologia (GETET-UTFPR).
E-mail: carolcarida@gmail.com.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/7147483920181186. ORCID: https://orcid.org/0009-0000-5845-314X.
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Trabalho e Educação, de maneira mais ampla, e para as pesquisas sobre Educação Profissional, de modo particular.
O volume 1, lançado no ano de 2021, conta com prefácio escrito por Marcos Vinicius Francisco, apresentação assinada pelos organizadores e 9 capítulos divididos em duas partes. A Parte I – Educação profissional e políticas educacionais é composta por 4 capítulos e a Parte II - A expansão das redes estaduais e federal de educação profissional: críticas e perspectivas, por outros 5.
O volume 2, por sua vez, publicado em 2023, prefaciado por Eneida Shiroma e também apresentado pelos organizadores, possui 12 capítulos no total, mantém a
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mesma estrutura do primeiro volume, com duas partes de mesmo título, alterando-se apenas o número de capítulos da Parte II, composta por 8 textos.
O livro vem a público em um contexto de transformação da educação brasileira operada legalmente por meio da Lei 13.415/2017, da Base Nacional Comum Curricular do Ensino Médio (BNCC, 2018) e da Base Nacional Comum para Formação Inicial de Professores da Educação Básica (BNC-Formação, 2019). Todos estes dispositivos têm impactado drasticamente a organização das redes de ensino, o currículo e a formação docente, com seus efeitos concretos sendo sentidos mais recentemente com o início do processo de implementação nas redes estaduais.
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As autoras e autores da coletânea estão atentos às mudanças recentes na educação brasileira. Jamais perdem de vista o fato de que as constantes reformas são parte da estratégia do capital-educador para levar à frente o processo de empresariamento da educação através de institutos e fundações que têm atuado entranhados e de forma descentralizada na estrutura do Estado. Também não perdem de vista o fato de que a atuação empresarial compõe o quadro de tentativas burguesas de sanar a crise estrutural do capital que a cada dia se torna mais aguda e irremediável.
Dessa forma, a obra acaba também por nos oferecer um contraponto científico- ético-político à atual contrarreforma do Ensino Médio. Fazem isso a partir de diversos estudos que, de um lado, apresentam densidade teórico-conceitual, e de outro, problematizam empiricamente o que vem acontecendo no chão das escolas. Operam com propriedade categorias da pesquisa educacional vinculada à tradição marxista tais como formação humana omnilateral, politecnia, trabalho como princípio educativo, dualidade estrutural da educação, dentre outras.
Como sabemos, a Educação Profissional (EP) brasileira ganhou novos contornos na primeira década do século XXI no marco do Decreto 5.154/2004, que revogou o Decreto 2.208/1997, e da Lei 11.892/2008, que criou os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia. Assim, o livro atualiza o estado da arte da EP no país, demonstrando que nas últimas duas décadas essa modalidade educacional ganhou espaço na agenda de agências multilaterais e tem sido propagandeada por setores do empresariado como a solução para o desemprego crônico. Setores estes, aliás, que têm induzido o Estado na condução da formação de uma mão de obra barata e dócil para um mercado de trabalho precarizado com ampla difusão da ideologia do empreendedorismo.
Nessa esteira, além de importantes debates terem sido suscitados, em especial em torno do Ensino Médio Integrado (EMI) e suas diferentes concepções, a expansão da EP, conforme documenta a obra, se torna a tônica da União, dos estados da federação e, principalmente, da iniciativa privada. Embora seu foco na análise da EP esteja evidenciado no título, cabe salientar que a coletânea reflete de maneira ampla sobre como os projetos formativos vêm se transformando na educação brasileira após as iniciativas de desmonte e privatização dos direitos, característica do capitalismo dependente de corte ultraneoliberal.
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Estudando os desdobramentos desses processos desencadeados no início do século, os inúmeros objetos de pesquisa analisados neste livro testemunham que a EP no Brasil se materializa de maneira heterogênea, a depender da região do país, da unidade da federação, da inter-relação entre as políticas educacionais nacionais, da instituição que executa a política educacional, do alinhamento dos governos à proposta de precarização curricular e formativa demandada pelo capital, e das correlações de força entre setores da burguesia e representantes do projeto educacional da classe trabalhadora.
Em sua profundidade conceitual e empírica, os dois volumes contemplam todas as regiões do país, realizando análises da realidade da EP em escolas federais, estaduais e privadas. Com a leitura do conjunto é possível ter uma visão ampliada das aproximações e distanciamentos em relação aos distintos projetos formativos presentes em cada instituição abordada. A obra contribui ainda, para os leitores iniciantes, com a compreensão da gênese da EP, seu desenvolvimento ao longo da história, suas contradições, suas diferenças nas distintas redes de ensino e suas mais recentes configurações nesse país de dimensões continentais.
Em que pese o imperativo da síntese, faz-se necessário ao menos registrar a variedade dos temas abordados em cada um dos volumes, pois é neles que se desenrola o exposto até aqui. Na Parte I do volume 1 as investigações se debruçam sobre: a profissionalização precarizada como uma exigência capitalista; as apropriações conceituais sobre a tecnologia no campo Trabalho e Educação; o processo de implementação do Pacto Nacional pelo Fortalecimento do Ensino Médio no Paraná; as políticas de qualificação profissional dos cortadores de cana em Alagoas. Na Parte II, três textos apresentam pesquisas acerca da expansão das redes de EP dos estados de São Paulo, Ceará e Piauí; um texto aborda as contradições no perfil socioeconômico dos estudantes atendidos pelo EMI do Instituto Federal de São Paulo (IFSP); e um realiza um balanço da EP em Goiás, apresentando criticamente algumas conquistas no interior do Instituto Federal de Goiás (IFG).
No volume 2, a Parte I é composta por textos que versam sobre: a relação entre trabalho, tecnologia, ciência e cultura como base para a formação integral na Educação Profissional e Tecnológica; conquistas e contradições em um curso técnico integrado ao Ensino Médio do Centro Paula Souza em São Paulo; os elementos históricos e conceituais da educação profissionalizante no Brasil que expressam o seu
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caráter classista; a produção acadêmica brasileira acerca da Pedagogia da Alternância.
A Parte II, ainda do volume 2, aborda: as redes estaduais de EP no Ceará, Espírito Santo e Bahia; a pós-graduação em Ensino Tecnológico do Instituto Federal do Amazonas (IFAM); as políticas de formação do Instituto Federal do Rio Grande do Norte (IFRN) direcionadas ao seu próprio corpo docente; as alterações no ambiente político e social brasileiro dos últimos vinte anos e seus impactos na Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica (RFEPCT); a oferta de EP no Maranhão no contexto de expansão da RFEPCT; as reiteradas tentativas de intervenção do governo federal, entre 2019 e 2022, nessa mesma Rede.
Como esperamos ter evidenciado, acima de tudo a coletânea deixa candente a luta de classes contemporânea por distintos projetos de educação e sociedade. Na obra, o debate acerca da contraposição entre uma educação libertadora que forme para além do capital versus o projeto da burguesia de empresariamento da educação se complexifica frente a empiria e a diversa realidade nacional, abrindo caminhos para aprofundar as análises, sugerindo a sequência de estudos e pesquisas.
Pelo exposto, recomendamos enfaticamente este livro para todos, iniciantes e iniciados, que desejam compreender a educação no Brasil nesse conturbado e já longo século XXI. Se os próprios organizadores fizeram questão de registrar a insuficiência de dois volumes para abarcar “a gama de questões que cercam a educação profissional no contexto de crise estrutural do capital” (LIMA FILHO; SANTOS; NOVAES, 2023, p. 19), aguardamos ansiosos pelo volume 3 que certamente nos brindará com estudos de outras realidades das unidades da federação ainda não contempladas, azeitando ainda mais o debate educacional brasileiro.
SANTOS, J. D. G. dos; LIMA FILHO, D. L; NOVAES, H. T. (Org.). Educação
LIMA FILHO, D. L; SANTOS, J. D. G. dos; NOVAES, H. T (Org.). Educação
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V.21, nº 44, 2023 (janeiro-abril) ISSN: 1808-799 X
Jaime Ortega Reyna2
Resumen
Este ensayo busca captar las principales tendencias y contra-tendencias alrededor de la lucha política y social que se desarrolla de manera destacada en latino-américa. Se trata de un ejercicio interpretativo que da cuenta de las grandes líneas de desarrollo, ubicando momentos específicos y cruciales de la forma de comprensión. Todo ello desde un mirador marxista que busca hacer dialogar concepciones tanto de la crítica de la economía política como de la crítica de la coyuntura.
Palabras clave: Transición, Estado, Progresismo.
O PRESENTE É UM NOVO TEMPO. AMÉRICA LATINA NA TERCEIRA DÉCADA DO SÉCULO XXI.
Resumo
Este ensaio procura captar as principais tendências e contratendências em torno da luta política e social que se está a desenvolver de forma proeminente na América Latina.. É um exercício interpretativo que dá conta das principais linhas de desenvolvimento, localizando momentos específicos e cruciais na forma de entendimento. Tudo isso de um ponto de vista marxista que procura estabelecer um diálogo entre as concepções tanto da crítica da economia política quanto da crítica da conjuntura.
Palavras-chave: Transição; Estado; Progressivismo.
THE PRESENT IS A NEW TIME. LATIN AMERICA IN THE THIRD DECADE OF THE XXI CENTURY.
Abstract
This essay seeks to capture the main trends and counter-trends around the political and social struggle that is developing prominently in Latin America.. It is an interpretative exercise that gives an account of the main lines of development, locating specific and crucial moments of the form of understanding. All this, from a Marxist viewpoint that seeks to dialogue conceptions of both the critique of political economy and the critique of the conjuncture.
Key words: Transition; State; Progressivism
1 Ensaio recebido em 06/02/2023. Primeira avaliação em 18/03/2023. Segunda avaliação em 19/03/2023. Aprovado em 28/03/2023. Publicado em 13/04/2023. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v21i44.57305.
2 Doctor en Estudios Latinoamericanos por la Universidad Nacional Autónoma de México (UNAN). Profesor-
investigador del Departamento de Política y Cultura de la Universidad Autónoma Metropolitana (UAM- Xochimilco, Ciudad de México - México). E-mail: jaime_ortega83@hotmail.com
Currículum: https://investigación.uam.mx/index.php/listado-catalogo/63925. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8582-1216.
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A partir de 2008 la crisis económica que sacudió a buena parte de las economías centrales provocó que el proceso de descomposición del formato neoliberal de gestionar la vida social se acelerara de manera drástica. Señas de este momento de transformación se dejaron sentir con la elección de Donald Trump en los Estados Unidos, el continuo ascenso de gobiernos no neoliberales (por izquierda y quizá también por derecha) y el cuestionamiento generalizado del orden absoluto del mercado. Se ha hablado ya del fin de la globalización tal como lo conocimos durante cuatro décadas (GARCÍA LINERA, 2016), es decir, en su formato neoliberal.
La emergencia de la pandemia en 2020 con el consiguiente cierre de las actividades de las economías, la parálisis generalizada del comercio y la dificultad de la reproducción del orden de la (re)producción y circulación de mercancías terminó de sellar la idea de que estamos frente a los inicios de otro modelo político y social, que aun no ha se ha definido en sus contornos: nos encontramos en un momento de transición. La guerra en Ucrania desestabiliza la idea de que esta transición será pacífica en su totalidad y nos recuerda el peso de la geopolítica global (LOPEZ VILLAFAÑE, 2022), lo que ha llevado a ser interpretada como una guerra que en realidad es cinco guerras según el argumento de Susan Watkins “conflicto civil ucraniano, conflicto defensivo-revanchista ruso, conflicto de resistencia nacional ucraniana, conflicto por la primacía imperial estadounidense, conflicto hegemónico chino-estadounidense” (WATKINS, 2022: 23)
Sin embargo, América Latina ha trazado desde hace 20 años un curso en el que la pretensión de salir del neoliberalismo ha sido la seña de identidad de múltiples fuerzas políticas, adelantándose a cualquier reacción puramente económica; es decir, que no ha tenido que ver esperar la bancarrota económica generalizada para plantear una alternativa desde el campo político. Como ningún otro continente en el mundo en la región se ha logrado plantear, una y otra vez, ejercicios prácticos de cuestionamiento del orden del mercado, a partir de procesos de desmercantilización, una vuelta de lo público, y de disputa por el excedente tal como se ha definido a partir de proyectos nacional-populares (ZAVALETA, 2008).
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Aunque sea preciso recordar que las alternativas al orden del mercado y los cuestionamientos al capitalismo se hacen siempre desde la existencia de fuerzas políticas asociadas a las historias locales, atravesadas por sus propias contradicciones, liderazgos, formas de ver el mundo, variaciones ideológicas, aprendizajes de derrotas y victorias, presencia de conservadurismos más o menos asentados en la sociedad civil, así como de tradiciones radicales o revolucionarias entre los sectores populares, los cuales pueden estar integrados al Estado o excluidos sistemáticamente de la ciudadanía. Sin ese elemento, no podemos entender los pasos adelante y los pasos atrás que dan quienes buscan reordenar el mundo.
La crisis capitalista, que es la de un modelo muy específico de gestionar la producción y la reproducción de la vida, que colocó al mercado en el corazón de la vida de la sociedad ha enfrentado el desafío de estos sujetos sociales, encarados en proyectos nacional-populares que pueden cuestionar el capitalismo en el largo plazo o bien solo pretender reformarlo –a veces radicalmente– en el corto plazo. Sin embargo, es importante recalcar que la crisis económica ha sido posterior a la crisis política. Han sido los sujetos subalternos, portadores del elemento popular en alianza con otras clases y grupos, los que han cuestionado aun en momento de triunfalismo el orden neoliberal. Solo hacia la etapa 2020-2023 han coincidido crisis económica y crisis política.
La forma capitalista de reproducir la vida es dominante a lo largo y ancho del globo. Ello no significa que su lógica gobierne todos los aspectos de la vida social. Desde su implantación, desarrollo y consolidación, ha tenido que negociar con otros modelos societales que perviven pese a su supuesta universalidad. Esto ha sido destacado por los marxistas latinoamericanos que han buscado desentrañar las contradicciones y límites de esta forma económica-política en la región latinoamericana. De hecho, la historia del marxismo latinoamericano no es otra que la del desarrollo de estas formas de comprensión entre la generalización de la forma valor y los múltiples obstáculos que ha encontrado para imponerse a plenitud. Ejemplo de ello son las intervenciones teóricas de personajes como José Carlos Mariátegui, René Zavaleta, José Aricó, Bolívar Echeverría,
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Enrique Dussel, Álvaro García Linera, Aníbal Quijano, entre otros. Todos ellos han buscado referir a la forma específica en la que el orden global del capital negocia con las historias locales. De este entramado se han producido categorías como sociedad abigarrada, ethos barroco, exterioridad, forma comunidad, heterogeneidad histórico- estructural, entre otras.
La actual coyuntura política latinoamericana no es sino una nueva vuelta de tuerca sobre este problema. Se emplaza en dos tendencias contrapuestas y en constante colisión. Por un lado, un conjunto de fuerzas que desean la radicalización de la forma valor como salida a la propia crisis capitalista, por el otro, tendencias que llaman a despojarse de algunos elementos de la forma neoliberal del capitalismo, pero conservando el eje central de la reproducción de la vida, ante la cual no parece existir un horizonte factible alternativo en lo inmediato: es esto lo que Modonesi ha llamado una normalización de la actividad de los “progresismos” (MODONESI, 2022), pues estos se habrían amoldado a las grandes configuraciones del capital. Ambas tendencias han entrado al plano político desde 1999, desarrollando a través de tres lustros (hasta 2015- 2016) un combate político de alta intensidad. Posteriormente, un breve impasse parece haber sido superado y reiniciado la conflictividad entre 2018-2023.
El conjunto de debates que convocan a la situación política y a la coyuntura presente refieren a un reordenamiento de la forma capitalista, su impacto en la vida de las grandes mayorías y, por supuesto, al conjunto de elementos que se juegan en esta. Comenzaremos analizando los vínculos principales que atienden el actual tiempo político que corre y que afecta a la lucha política local. Identificamos cuatro grandes elementos.
En primer lugar, la decadencia de la forma americanizada del capital (MENDEZ, 2022). El mercado mundial se encuentra en proceso de desplazamiento, no teniendo ya su único centro organizador en el conjunto norte atlántico, sino en la disposición geopolítica atraída por China. Este proceso se encuentra en camino y es palpable el cambio de registro en la manera en que la potencia asiática, por ejemplo, brindó una diplomacia de la salud a través de las vacunas contra el COVID-19. La forma americana del capital, por su parte, se encuentra sumida en una crisis de proporciones mayúsculas, incapaz de ordenar su elite política y con múltiples conflictos en todas las escalas de la vida social.
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En segundo lugar, el conjunto del globo se debate entre una vuelta a las formas estatales más plenas, recuperando espacios de soberanía para los grandes temas que impactan a mayorías sociales, sea este la producción alimenticia, la regulación de la vivienda o la necesaria reconstrucción de sistemas de salud que tengan un mayor alcance; el énfasis en algunos elementos sobre otros se encuentra en configuraciones locales, no universalizables. En dado caso lo que existe es la vuelta de lo público entra en contradicción evidente con el formato neoliberal, que destruyó o intentó hacerlo, este tipo de instancias. El regreso del Estado y del carácter público del cuidado del bienestar tiene un efecto político inmediato, que es la búsqueda de conquista de espacios de autonomía relativa, tanto para las élites y burocracias que reinan (OSORIO, 2015) en el Estado como para estos últimos en el conjunto del mercado mundial.
En tercer lugar, prima en la vida social de todos los espacios, una marcada fragmentación de lo social. Esto implica la incapacidad de construir acciones colectivas unificadas, en torno al mundo del trabajo o la situación económica en su generalidad asociada a la situación de clase. Paradójicamente, la quiebra de las identidades arraigadas como la del mundo del trabajo en vínculo con el histórico movimiento obrero, ha permitido el acceso a un conjunto de movilizaciones sociales que han insistido en la necesidad de apuntalar espacios de seguridad y derechos colectivos de gran alcance, con ello, cuestionando en el fondo al propio modelo neoliberal.
Finalmente, el mundo en su conjunto y América Latina en particular se encuentra en un interregno, es decir, en ese momento de transición entre lo que no acaba de morir (el neoliberalismo) y lo que no acaba de nacer (una nueva forma de gestión del capital intervenida por aspectos no mercantilizantes). Veremos en el presente inmediato un conjunto de estrategias e invenciones sociales en donde el pasado sigue presente, como, por ejemplo, en la gestión de las relaciones entre capital y trabajo, marcadas por la desregulación; pero también veremos, como tendencia, la necesidad de que los Estados garanticen derechos mínimos y una cierta protección de la sociedad.
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La vida política latinoamericana se encuentra asociada a la pervivencia de formas oligárquicas de gestión de la riqueza y del Estado, las cuales se vieron fortalecidas por el neoliberalismo. Sin embargo, algunos países han dado pasos adelante en el cuestionamiento de ellas, procediendo a desmontarlas o al menos señalarlas como determinantes de las grandes tragedias sociales, como lo son la violencia extrema, la pobreza y la desigualdad .
En México, Colombia, Honduras y Brasil encontramos los momentos más claros de este proceso. Si bien los programas de gobierno en estos podrían ser cuestionados por su falta de radicalidad frente a la relación social de capital, lo cierto es que la sola modificación de elementos significativos en la relación entre el Estado, la sociedad y el capital deviene una modificación de las relaciones de fuerza y en la repartición del excedente. En este sentido el “tropo” asociado al anti capitalismo debe ser pensando más como un efecto que responde a acciones y prácticas y no tanto como un programa. Los gobiernos de estos países no son anti-capitalistas en un sentido lineal, sino que procuran selectivamente políticas cuyo efecto puede ser de una crítica radical del orden del capital.
Son estas modificaciones en la relación entre el Estado, la sociedad y el capital las que han contribuido, en distintos niveles, a pensar las posibilidades de experimentos pos-neoliberales con fuertes tintes de cuestionamiento de las relaciones estructurantes. En 2018 el ascenso de Andrés Manuel López Obrador a la presidencia de México abrió un nuevo escenario regional en la medida en que este país no había entrado en la lógica de los primeros gobiernos progresista. Hasta ese momento México era un fiel seguidor de las políticas neoliberales, de ajuste y de privatización, así como un aliado incondicional de Estados Unidos. Su economía –una de las tres más grandes de la región– se encuentra ligada estrechamente con la norteamericana, lo cual deja un margen pequeño de autonomía relativa en el mercado mundial, lo cual hace entendible que, en un momento de reajuste de este, el Estado mexicano gane posibilidad de acción. AMLO ha procedido a una tímida, pero importante reforma del Estado, despejando algunos de los principales componentes que atacaban las estructuras del estado a intereses del capital corporativo.
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La elección de Xiomara Castro en Honduras siguió en este camino, pues planteó el fin temporal del régimen corrupto que se instaló en ese país desde el golpe de estado a Manuel Zelaya en 2009, que, al igual que en México en 2006, habilitó un proceso de violencia desenfrenada a manos de grupos armados al servicio de la economía criminal. Si bien la presencia de izquierda en este país centroamericano es más simbólica que determinante en el escenario regional, es una puerta de entrada para un respiro progresista en esa parte, hasta ahora la región donde más ha costado desmontar segmentos del neoliberalismo. Lo que corrobora la imbricación entre esta forma de regulación del orden social y las herencias oligárquicas como las que prevalecen en las pequeñas economías.
Por su parte el triunfo electoral de Gustavo Petro en Colombia representa un giro radical en la política de la región, un punto de ruptura (PULIDO, 2022). Colombia era el enclave más fuerte de alianza con los Estados Unidos en la región, aún más que México. Si bien económicamente no es un país con un peso tan elevado, su posicionamiento en la arena internacional resulta clave por su historia, ligada especialmente a las agencias de contra-insurgencia regional. Igualmente, su postura interna es bastante limitada en términos de la autonomía relativa, la derecha, derrotada no fue arrinconada ni desorganizada. La reforma fiscal de Petro es similar a la de AMLO, una tibia, pero firme insistencia en que se pague lo que se debe pagar por parte de los capitales. Su reforma agraria es apenas un reordenamiento de la cuestión territorial, aunque importante dado el peso de los poderes de los señores de la tierra. Geopolíticamente Petro tiene un discurso muy sugerente frente al cambio climático, en tanto posición radical y abiertamente contraria a los combustibles fósiles, empujando a imaginar posibilidades que no habían aparecido en los progresismos. Además, la opción de destrabar el conflicto armado y asegurar la vida de los ex combatientes no es un dato menor ni simbólico, sino material y políticamente significativo.
Finalmente, Brasil representa un verdadero giro económico y político con el vuelco en la política. No sólo porque se trata de la economía más importante del continente, sino por el doble movimiento de ascenso de Luiz Inacio Lula y derrota de Jair Bolsonaro. La posición finalmente triunfante de esa candidatura, tras el periodo de presidio, presiona sobre las clases dominantes. Aunque no es segura aún la posición de Lula frente a los
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grandes retos del país tras la medianoche reaccionaria expresada por Bolsonaro, su ascenso representa una posibilidad de cierto posicionamiento crítico frente a las oligarquías y un respiro en un contexto de crisis económica.
Sin embargo, otros llamados de atención alertan sobre contra-tendencias en la arena política latinoamericana. Es decir, de aquellos indicadores que muestran oposición a la transformación pos-neoliberal. Si bien dispersos, heterogéneos y desarticulados regionalmente, sus implantes nacionales son considerables, pues responden a movimientos globales como a particularidades. Responden a tradiciones de conservadurismo local y, por supuesto, también a elementos de agotamiento momentáneo de los discursos populares y persistencia de intereses oligárquicos; pero conviven en horizontes de derechización muy específica, marcada por el odio a lo políticamente correcto y un ansia de rebeldía (STEFANONI, 2021).
En primer lugar, resalta la alta votación de candidatos provenientes de partidos oligárquicos o abiertamente neoliberales. Esto es particularmente dramático en Centroamérica, pero se extiende a Ecuador, Perú, Chile, Argentina, Colombia. Sólo México desentona en este aspecto, pues el 2018 tundió electoralmente a la oposición neoliberal, que está en busca de reorganizarse, quizá por fuera de sus partidos tradicionales. Esto último puede suceder en otras latitudes y, de alguna manera, la presencia de Bolsonaro es un llamado de atención.
En Argentina y Brasil las fuerzas asociadas al neoliberalismo asumen una condición de masas, ancladas en las clases medias citadinas, sectores medios que se conectan con el mercado mundial y otros tantos cuya alarma se ha prendido frente al impulso de cambios culturales. En este mismo tenor es el caso de Perú, donde Lima se convierte en un contra-espejo de la realidad india del país. Algo similar sucede en ciudades como Buenos Aires y más recientemente en la Ciudad de México. La persistencia de partidos y fuerzas pro-neoliberales con altas votaciones habla del arraigo de estas ideas en sectores que han sido beneficiados o bien aspiran a ser recompensados por su lealtad al libre mercado.
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La persistencia de gobiernos conservadores en Ecuador, toda Centroamérica – con excepción de Honduras– y Paraguay nos remite a la dificultad en algunas sociedades en la conquista de más espacios de libertad y democracia, la crítica del mercado y la persistencia de sectores sociales militantes de la profundización de la forma valor del capitalismo, lo que Bolívar Echeverría definió como el ethos realista (ECHEVERRÍA, 1998). Todos estos países tienen como eje central la persistencia de viejas tradiciones oligárquicas que confluyeron con el aperturismo neoliberal: se trata de una alianza perversa y con un fuerte asiento hegemónico en la medida en que expulsan a los sectores populares de la vida política y social.
Sin embargo, lo más preocupante, como se sabe, es la actitud insurreccional y abiertamente anti democrática que han surgido en Bolivia, Perú y Brasil. Si bien hay un hilo de continuidad con otros casos como el de Venezuela, Paraguay y Honduras, la escalada reaccionaria y abiertamente proto-conservadora es más que alarmante. Pues si algo han demostrado las derechas es que no tienen tacto en utilizar las instituciones de manera arbitraria y en favor de sus intereses.
No existe, en ese sentido, una actitud plenamente hegemónica por parte de las derechas, pues estás tambalean en su dominio cuando los elementos plebeyos entran a la disputa por el Estado, generando un espacio de tensión con los mecanismos mercantiles. El que tengan de su lado a una porción significativa de la sociedad no es inmediatamente equivalente a que tengan aspiraciones de conquista del sentido común. Antes bien, han comenzado un continuum de “golpes civiles”, apoyados por algunas instancias del Estado (jueces, policía, etc.) para echar atrás los mínimos avances democráticos. En términos de la lucha política, en clave gramsciana, resulta altamente preocupante la falta de proclividad hegemónica por parte de estos sectores, pues reaccionan con violencia e instrumentalismo. Todo ello habla del contexto de crisis.
Calibrar a estas nuevas derechas es una tarea que solo el tiempo permitirá a plenitud, que tono “rebelde” frente a la transición global persista, que tanto osifican como fuerzas conservadores del orden ahí donde aún prevalecen y que tanto desechan los ideales democráticos e igualitarios. Pero de entrada, está instalada la noción de que estas no juegan más bajo las normas clásicas de lo democrático-burgués, sino que apuntalan directamente a la conservación del poder por cualquier vía. La mayoría de ellos en
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consonancia con el neoliberalismo, traen como consecuencia una curiosa relación en donde se dan golpes civiles de Estado que apuntalan a desmantelar lo que queda del Estado en favor de los intereses oligárquicos y monopólicos.
El presente, figura temporal por excelencia, ha radicalizado las posibilidades de transición hacia un modelo que puede experimentar proyectos emancipatorios de mayor alcance. Al encontrarse el capital en una crisis de su formato neoliberal, ha desencadenado múltiples y contradictorias posibilidades, todas ellas con un alto grado de indefinición y por tanto de moldeamiento por parte de los grupos populares, pero también de antiguas clases dominantes desplazadas. A pesar del énfasis globalista y universalizante de la forma valor, las fuerzas sociales –populares o reaccionarias– juegan en el ámbito nacional, es decir, pasan necesariamente por esa mediación. Para gran sorpresa de quienes imaginaron un futuro político “pos-nacional”, tan aclamado en el pensamiento político contemporáneo, estas construcciones artificiales modernas siguen operando como el espacio de lucha y conflicto y, por tanto, de decisión.
La capacidad de autodeterminación, es decir, de escapar de la mediación del mercado y los mecanismos de mercantilización, puede desarrollarse de mejor manera. Ejemplos pueden ser observados en todo el continente, en donde se ensayan mecanismos de autonomía, de mercados no capitalistas, de monedas por fuera de la lógica del valor, de bancos de tiempos, de intercambios transparentes. En Brasil, Argentina o México; o en los experimentos sociales heredados por las “revueltas” en Colombia y Chile; existen numerosos ejemplos de emancipación desde la sociedad.
El presente ya es un nuevo tiempo, en el sentido de que se está jugando con viejas reglas un nuevo juego político-económico. De a poco, las propias normas, lenguajes, concepciones, sentidos comunes, horizontes de visibilidad cambiarán; pero lo harán por atrás de los hechos que vemos transcurrir el día de hoy, de manera caótica y fragmentada. Ya es un nuevo tiempo el presente porque la contingencia de la coyuntura se ha impuesto sobre el continuum de la historia del capital.
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ECHEVERRÍA, B. Las ilusiones de la modernidad. México: El Equilibrista, 1998.
GARCÍA LINERA, A. La globalización ha muerto. La Jornada. 28 de diciembre de 2016 [https://www.jornada.com.mx/2016/12/28/opinion/013a1pol].
LÓPEZ VIALLAFAÑE, V. La guerra en Ucrania. Memoria: revista de crítica militante.
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V.21, nº 44, 2023 (janeiro-abril) ISSN: 1808-799 X
Elza Margarida de Mendonça Peixoto2
Resumo
O artigo aponta como eixo central da análise a íntima conexão entre formação de professores e formação da classe trabalhadora, o que exige reconhecer como os que controlam as forças produtivas trabalharam, na formação social brasileira, para estruturar objetivamente a formação da classe trabalhadora por ramos de produção. Neste âmbito, abre-se a polêmica sobre a impossibilidade de um “Sistema Nacional de Educação” em relações de produção marcadas pela acirrada concentração de forças produtivas e da luta de classes.
Palavras-chave: Capitalismo; formação social brasileira; formação; classe trabalhadora; professores.
CONCENTRACIÓN DE LAS FUERZAS PRODUCTIVAS, LUCHA DE CLASES E IMPOSIBILIDAD DE UN SISTEMA EDUCATIVO NACIONAL
Resumen
El artículo apunta como eje central del análisis la íntima conexión entre la formación docente y la formación de la clase obrera, lo que exige reconocer cómo actuaron, en la formación social brasileña, quienes controlan las fuerzas productivas, para estructurar objetivamente la formación de la clase trabajadora por ramas de producción. En este contexto, surge la controversia sobre la imposibilidad de un sistema educativo nacional en relaciones de producción marcadas por la feroz concentración de las fuerzas productivas y lucha de clases.
Palavras clave: Capitalismo; Formación social brasileña; formación; clase obrera; maestros
CONCENTRACIÓN DE LAS FUERZAS PRODUCTIVAS, LUCHA DE CLASES AND THE IMPOSIBILITY OF A NATIONAL EDUCATIONAL SYSTEM
Abstract
The article points out as the central axis of the analysis the intimate connection between teacher training and the training of the working class, which requires recognizing how those who control the productive forces worked, in the Brazilian social formation, to objectively structure the training of the working class by branches of production. In this context, the controversy arises about the impossibility of a national education system in production relations marked by the fierce concentration of productive forces and class strugle.
Keywords: Capitalism; Brazilian social formation; formation; working class; teachers.
1 Ensaio recebido em 09/10/2022; Primeira avaliação em 03/01/2023. Segunda avaliação em 07/01/2023. Aprovado em 27/01/2023. Publicado em 13/04/2023.
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v21i44. 56127.
2 Doutora em Filosofia e História da Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), São Paulo - Brasil. Pós-Doutoramento em Filosofia da Educação no Departamento de Filosofia da Universidade de Lisboa - Portugal. Professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Bahia - Brasil.
E-mail: elza.peixoto@ufba.br. Lattes: http://lattes.cnpq.br/8251505193270837. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4430-241X.
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Questões radicais
[...] as causas últimas de todas as transformações sociais e revolucionamentos políticos são de procurar, não na cabeça dos homens, na sua progressiva inteligência da verdade e da justiça eternas, mas nas transformações do modo de produção e de troca; são de procurar, não na filosofia, mas na economia da época em questão (ENGELS, 2018, p. 78).
Conferir desafios da formação dos professores exige compreender o papel a eles reservado no interior da divisão social do trabalho própria de uma dada formação social que se move no interior de relações de produção capitalistas em sua fase de financeirização. Se a literatura avança para reconhecer que cabe aos professores (i) a “[...] identificação dos elementos culturais que precisam ser assimilados pelos indivíduos da espécie humana” para que possam participar dos processos de produção da existência numa dada formação social e histórica, e (ii) “[...] a descoberta das formas mais adequadas para atingir esse objetivo” (SAVIANI, 2008, p. 11-13; MARX e ENGELS, 2007, p. 32-33), carecemos [nós os que reivindicamos o materialismo dialético] do cuidadoso trabalho de localizar objetivamente, nas disputas entre classes e frações de classes próprias de relações de produção capitalistas, os tais “elementos culturais” que vêm sendo selecionados como centrais e necessários à formação das classes que se movimentam nestas relações de produção. Estes elementos culturais não podem ser identificados/definidos de forma universal, enquanto interesse que paira acima da luta de classes, como existisse um ser humano essencial a ser atingido. Pelo contrário, estes elementos culturais são objeto de acirrada disputa que ocorre determinada pelo mesmo movimento de acirramento da luta de classes que emerge especialmente, na formação social brasileira, durante todo o século XX e XXI, como reflexo da partilha do mundo, do alinhamento das elites brasileiras ao capitalismo desde a sua fase imperialista até a sua atual forma financeirizada. Entendemos que o grau de desenvolvimento da luta de classes na formação social brasileira – que exigiu a contenção violenta via ditaduras e o impedimento de desenvolvimento de qualquer movimento de independência intelectual e política – impossibilita mesmo qualquer projeto de “Sistema Nacional de Educação” no sentido do debate brasileiro sobre a possibilidade de uma escola unitária (NOSELLA, 2015) ou um sistema consensual intencionalmente orientado por uma teoria educacional (SAVIANI, 2017). Sob estas condições, é determinante para a compreensão dos desafios para a formação de professores, a compreensão da
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posição e do papel dos professores na educação realmente existente na formação social brasileira, a ser buscada no “Sistema Nacional de Educação” que efetivamente impera na formação social brasileira, e cujo aparato legal/regulatório opera como reflexo. Nos parece ser relevante considerar a hipótese de que a mesma determinação segundo a qual “[...] Na sociedade em que rege o modo capitalista de produção condicionam-se reciprocamente a anarquia na divisão social do trabalho e o despotismo da divisão manufatureira do trabalho” (MARX, 1989, p. 408), segundo a qual “[...] ao mesmo tempo em que impõe economia em cada negócio particular, produz, com seu sistema anárquico de concorrência, o desperdício mais desmedido dos meios de produção e das forças de trabalho da sociedade [...] (MARX, p. 607. Ver também p. 547; p. 558; p. 575), reflete-se em um processo de formação para a ciência e a técnica cujo controle é intenso no âmbito da formação direta para o trabalho especializado e profundamente anárquico no âmbito da formação universal dos trabalhadores sem destino certo. A nosso ver, este processo se intensifica com a financeirização, quando se avoluma a classe trabalhadora com destino incerto, justamente no instante de retração do poder de ação organizada dos trabalhadores.
A tese que estamos defendendo neste ensaio é que, no caso da formação social brasileira, de predomínio do ultraliberalismo na direção da política econômica,
o destino dos professores se encontra determinado pelo destino da classe trabalhadora, por sua vez, pela fase de financeirização capitalista e retração de investimentos na produção (CHESNAIS, 2005; HARVEY, 2011). Procurando fundamentar esta tese, caminhamos para argumentar que não podemos mapear os desafios da formação de professores sem compreender rigorosamente as tendências da formação da classe trabalhadora como um todo, no interior daquela contradição entre economia extremada nos processos internos às fábricas e “[...] desperdício mais desmedido dos meios de produção e das forças de trabalho da sociedade [...]”, particularmente, nesta fase da financeirização (MARX, 1989, p. 607). E estas tendências estão intimamente correlacionadas com as tendências na projeção ultraliberal para o emprego desta força de trabalho. O emprego da força de trabalho- professor depende diretamente do reservado aos professores na projeção ultraliberal das políticas para o trabalho e formação da classe trabalhadora como um todo. A nosso ver, é apenas à luz desta matriz que podemos compreender a BNCC e a BN Formação para além das proposições que ali dentro se movem.
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Estabelecida esta conexão teórica mais geral, um adequado mapeamento da relação trabalho e formação na formação social brasileira demanda o mapeamento dos dados sobre as políticas de emprego que vão determinar as demandas pela formação. As políticas de emprego são reconhecíveis nos dados sobre os setores econômicos que estão em franco processo de desenvolvimento e crescimento e os setores que estão atrofiando e desempregando trabalhadores, reconhecendo-se que há uma articulação indissociável entre injunções/incentivos promovidas pelo Estado e os interesses privados dos proprietários das forças produtivas, incluindo aí o capital financeiro (SEKI, 2021).
A questão fundamental é compreender, na disputa pela direção da política econômica, a direção das políticas de emprego que determinarão as transformações nas políticas educacionais mais gerais, e de forma particular, nas políticas de formação e de trabalho dos professores. Mais importante que o estudo dos documentos oficiais, que são apenas reflexo de síntese acerca das forças momentaneamente vitoriosas nesta disputa (MARX, 2011, p. 4 e 5), entendemos ser fundamental estudar cuidadosamente a política econômica, a geração e retração do emprego da força de trabalho, e as pressões pela direção da formação dos trabalhadores, quando a própria formação da classe trabalhadora se converte em negócio por si só lucrativo.
A diversidade das estruturas realmente existentes para a formação dos trabalhadores por ramos de produção e segmentos populacionais é um importante aspecto que não pode ser desprezado pelos que estudam as políticas de trabalho e formação. Entendemos que as políticas de formação de professores só podem ser efetivamente compreendidas na cuidadosa análise da diversidade de oferta de formação da classe trabalhadora para diferentes campos de trabalho, que se reflete numa intensa categorização da forma de ser do trabalho dos professores presente na Classificação Brasileira de Ocupações disponível na página do Ministério do Trabalho e Emprego (M.T.E, 2010).
Demanda pela educação na formação social brasileira
Trabalhar com os dados oficiais para entender o processo de produção de políticas educacionais no Brasil exige uma disposição de Teseu no labirinto, sem contar, entretanto, com o fio de Ariadne. Muitas vezes não sabemos se eles estão ordenados para impedir que uma verdade intestina vem à tona ou se para evitar que adentremos
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efetivamente no âmago de seu sentido (SOUZA, EVANGELISTA E SEKI, 2019a, p. 189).
Ao afirmar que o destino dos professores que atuam na formação social brasileira, encontra-se profundamente atrelado aos destinos da classe trabalhadora o dizemos no duplo sentido de que que a função social da força de trabalho-professor refere-se à educação e à instrução da classe trabalhadora para que esteja apta a ocupar postos de trabalho; e à medida em que os próprios professores compõem a classe trabalhadora.
Podemos reconhecer funções mais gerais do sistema educacional (OFFE, 1990) que determinam as tarefas dos professores, tais como:
na educação infantil, substituição de tarefas da família para liberação da força de trabalho feminina para o mercado (sem a existência dos professores, tornar- se-ia praticamente impossível o trabalho feminino, que, aliás, é o gênero predominante na composição do professorado brasileiro);
regulação do fluxo de trabalhadores que entram no mercado de trabalho pela absorção/organização institucional da força de trabalho supérflua durante determinado período de tempo, “[...] como um sistema de custódia designado para administrar uma classe de pessoas deslocadas pela tecnologia” (OFFE, 1990, p. 32, p. 46) na qual os professores são os executores mais diretos desta tarefa, mas não os únicos;
o aspecto do controle ideológico cuja síntese de Aníbal Ponce (2007, p. 36) se faz mais apropriada, quando afirma que, “[...] toda educação imposta pelas classes proprietárias deve cumprir três finalidades essenciais”, quais sejam, “[...] destruir os vestígios de qualquer tradição inimiga; consolidar e ampliar a sua própria situação de classe dominante; e prevenir uma possível rebelião das classes dominadas”.
No terceiro caso, cabe sempre o alerta de Saviani (1983, p. 19-39) sobre a necessidade de considerar que também na escola há contradições, e nesta perspectiva, nenhum controle ideológico é absoluto nem tampouco pode ser admissível uma expectativa ingênua de promover do chão da escola uma revolução. Há na formação social brasileira exemplos diversos de como, por dentro da escola, o movimento estudantil e o movimento docente foram mobilizadores fundamentais dos processos de organização da classe trabalhadora em lutas que foram determinantes na atenuação das pressões do sistema de controle das relações de produção
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presentes na formação social brasileira sobre a formação e o trabalho classe trabalhadora.
O sistema nacional da educação realmente existente
Dados do IBGE-Educação (2019) evidenciam que – de uma população total projetada de 214.763.443 pessoas no ano de 2019 (sendo 65% dessa população maior de 25 anos – 139.596.238) – 6,4% (8.934.159,23) de pessoas com mais de 25 anos não possuem instrução; 27,4% (38.249.369,2) desta população possui apenas ensino médio completo e apenas 17,4% (24.289.745,4) possui ensino superior completo. Quando considerada a população analfabeta com mais de 15 anos, o IBGE registra 11 milhões de analfabetos! Estamos falando, em uma população, estimada em 20.07.2022, de 214.873.428 habitantes, com o aumento estimado de um indivíduo a cada 21s! O capital não ignora esta massa potencial de necessidades educativas diversas. Na verdade, ele opera com estas necessidades educativas, estabelecendo contraditória e dialeticamente, o controle dos limites desta formação (BNCC e Diretrizes Nacionais para a formação de professores) e reconfigurando os processos de extração de mais valia e de circulação do valor incluindo aí a intensificação da conversão da educação em mercadoria, conforme evidenciam os dados sobre a diminuição das vagas na esfera pública e expansão das vagas na esfera privada, particularmente, na educação superior (SEKI, 2021).
Do ponto de vista do materialismo dialético, o “Sistema Nacional de Educação” não pode ser tomado de forma abstrata, enquanto conceito que indica uma direção a seguir, um “dever ser” (BARATA-MOURA, 2015, p. 141-146). Pelo contrário, a tarefa que nos desafia é compreender de conjunto as múltiplas determinações que vão configurando um sistema educacional realmente existente na formação social brasileira, sob o efetivo controle dos proprietários de forças produtivas, mas intensamente disputado pela classe trabalhadora organizada em sindicatos e partidos. O Censo Escolar da Educação Básica de 2019 registrou 47,9 milhões de matrículas nas 180,6 mil escolas de educação básica espalhadas pelo Brasil, sendo 26,9 milhões no ensino fundamental. No ensino médio, foram registradas 7,5 milhões de matrículas; na educação especial 1,3 milhões; na Educação de Jovens e Adultos, 3,2 milhões (CENSO DA EDUCAÇÃO BÁSICA 2019, p. 5-8). São 58,6 milhões de crianças, jovens e adultos (aproximadamente 1/4 da população brasileira) que, para
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estudar, dependem da existência 2,2 milhões de professores atuando na educação básica, sendo 1.383.833 professores atuando no ensino fundamental (CENSO DA EDUCAÇÃO BÁSICA 2019, p. 5-8). Já no ensino superior, são 8.604.526 matrículas para 386.073 professores (CENSO DA EDUCAÇÃO SUPERIOR 2019, p. 9).
Este contingente de carência por escolaridade, entretanto, depara-se com um conjunto de políticas que evidenciam o grau de desenvolvimento das disputas pelo controle desta demanda. Ao longo do século XX, a história da educação na formação social brasileira registra um intenso embate entre uma diversidade de agentes públicos e privados que é resolvido com a estruturação de um complexo “Sistema Nacional de Educação”: rede pública municipal, estadual e federal, de educação básica, profissional e superior com tarefas atribuídas pela constituição de 1988 e uma rede privada de educação autorizada a funcionar sob regulação e controle estatal, mas livremente organizada por ramos de produção.
No setor público, responsáveis pela formação civil, podemos encontrar Universidades e Institutos Federais, Estaduais e Municipais, ofertando a educação superior e educação básica. Além disso, estados e municípios garantem a educação infantil, a educação básica e a educação de jovens e adultos. Na esfera privada, vai desenvolver-se uma imensa cadeia de instituições escolares articuladas aos ramos produtivos, evidenciando que, na formação social brasileira, a iniciativa privada trabalha para ela mesma garantir que as funções da educação sejam cumpridas conforme os interesses privados de cada ramo de produção. É neste quadro que o trabalho dos professores efetivamente acontece.
A título de exemplo, o Sistema S apresenta para cada ramo de produção, um processo próprio de escolarização e de prestação de serviço voltados ao controle do tempo livre da classe trabalhadora que demanda a contratação de um importante contingente de professores.
Quadro 1 – Subdivisão do Sistema S
Confederação Nacional | Serviço Nacional de Aprendizagem | Serviço Social |
de Agricultura | Rural (SENAR) | |
do Comércio | Comercial (SENAC) | do Comércio (SESC) |
da Indústria | Industrial (SENAI) | da Indústria (SESI) |
do Transporte | do Transporte (SENAT) | do Transporte (SEST) |
Sistema Cooperativista Nacional | do Cooperativismo (SESCOOP) |
Fonte: elaboração própria.
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O “Sistema Nacional de Educação” fragmenta-se ainda na complexa Rede Federal de Educação Profissional, Científica Técnica e Tecnológica (que inclui os 38 Institutos Federais de Educação Ciência e Tecnologia (Cefet), a Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), os Centros Federais de Educação, as 22 Escolas Técnicas Vinculadas às Universidades Federais e o Colégio Pedro II) que compõe a oferta de cursos superiores (MEC, 2022). Abaixo, trazemos o mapa com a distribuição destes cursos pelo país.
Figura 2: Rede Federal de Educação Profissional Científica e Tecnológica
Fonte: MEC. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/rede-federal-inicial/instituicoes
No quadro abaixo seguem os dados sobre o número de matrículas neste setor da educação brasileira:
Quadro 3: Matrículas em cursos de educação profissional e tecnológica por nível.
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A cadeia de escolas voltadas à educação profissional e tecnológica (INEP, 2021), que segue integrada aos diferentes níveis e modalidades de ensino, inclui
− os cursos de qualificação profissional (capacitação profissional, o aperfeiçoamento, a especialização, a atualização, a aprendizagem e os programas especiais de duração variável) e objetivam o desenvolvimento de aptidões para a vida produtiva e social, a qualificação para o trabalho e a elevação do nível de escolaridade do trabalhador, que, após a conclusão com aproveitamento dos referidos cursos, fará jus a certificados de formação para o trabalho com carga horária entre 160 e 800 horas;
− educação profissional técnica de nível médio – desenvolvida na forma articulada com o ensino médio ou na forma subsequente, em cursos destinados a quem já tenha concluído o ensino médio (envolve os cursos técnico integrado, técnico concomitante, técnico subsequente e magistério/normal);
− profissional tecnológica de graduação e pós-graduação – abrange também o aperfeiçoamento tecnológico e o curso superior de graduação tecnológica, também denominado de curso superior de tecnologia (CST) (INEP, 2021).
O Catálogo nacional dos cursos superiores de tecnologia (MEC – SEPT, 2022) evidencia o traço desta formação que se volta para a especialização da classe trabalhadora conforme ramos de produção. Em que pese ser longo, retrata os cursos identificados por área, sendo importante indicador da diversidade de professores que demanda, visível nas 133 subcategorias em que está dividida a ocupação professor conforme o Classificação Brasileira de Ocupações – códigos títulos e descrições (M.T.E, 2010):
Quadro 2 – Cursos superiores de tecnologia
Eixo | Área Tecnológica Curso Superior de Tecnologia | em |
Ambiente e Saúde | Proteção e Reabilitação de Gestão Ambiental Ecossistemas Saneamento Ambiental Gestão e Promoção da Estética e Cosmética Saúde e Bem-Estar Gestão Hospitalar Podologia Radiologia Sistemas Biomédicos Oftálmica | |
Eletrônica e Automação | Automação Industrial Eletrônica Industrial | |
Mecatrônica Industrial | ||
Eletricidade e Energia Eletrotécnica Industrial |
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Energias Renováveis | ||
Gestão de Energia e Eficiência Energética | ||
Controle e Processos Industriais | Refrigeração e Climatização | |
Sistemas Elétricos | ||
Metalmecânica | Fabricação Mecânica | |
Mecânica de Precisão | ||
Soldagem | ||
Manutenção e Operação | Manutenção de Aeronaves | |
Manutenção Industrial | ||
Sistemas Automotivos | ||
Gestão Educacional | Processos Escolares | |
Desenvolvimento Educacional e Social | Inovação e Práticas Laboratoriais | Design Educacional |
Intervenção Social | Educação Social | |
Comercial | Comércio Exterior | |
Gestão Comercial | ||
Gestão e Negócios | Marketing | |
Negócios Imobiliários | ||
Gerencial | Comunicação Institucional | |
Gestão da Qualidade | ||
Gestão de Cooperativas | ||
Gestão de Recursos Humanos | ||
Gestão de Serviços Judiciais e Notariais | ||
Gestão Pública | ||
Logística | ||
Processos Gerenciais | ||
Secretariado | ||
Operações Financeiras | Gestão Financeira | |
Desenvolvimento e Operação de Infraestrutura | Agrocomputação | |
Análise e Desenvolvimento de Sistemas | ||
Informação e Comunicação | Banco de Dados | |
Internet das Coisas | ||
Jogos Digitais | ||
Redes de Computadores | ||
Sistemas Embarcados | ||
Sistemas para Internet | ||
Gestão e Segurança | Gestão da Tecnologia da Informação | |
Segurança Cibernética | ||
Segurança da Informação | ||
Telecomunicações | Redes de Telecomunicações | |
Sistemas de Telecomunicações | ||
Telemática | ||
Construção de Obras | Construção de Edifícios | |
Controle de Obras | ||
Infraestrutura | Estradas | |
Mensuração Espacial e Volumétrica | Geoprocessamento | |
Operações de Transporte | Gestão Portuária | |
Pilotagem Profissional de Aeronaves | ||
Transporte Aéreo | ||
Transporte Terrestre | ||
Agroindústria |
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Alimentos | ||
Laticínios | ||
Produção Alimentícia | Produção de Cerveja | |
Produção de Cacau e Chocolate | ||
Cachaça | ||
Enologia | ||
Comunicação Midiática | Comunicação Assistiva | |
Escrita Criativa | ||
Produção Cultural e Design | Fotografia | |
Mídias Sociais Digitais | ||
Produção Audiovisual | ||
Produção Multimídia | ||
Produção Publicitária | ||
Manifestações Artísticas | Conservação e Restauro | |
Luteria | ||
Produção Cênica | ||
Produção Cultural | ||
Produção Fonográfica | ||
Design | Design de Animação | |
Design de Interiores | ||
Design de Moda | ||
Design de Produto | ||
Design Gráfico | ||
Têxtil e Vestuário | Produção de Vestuário | |
Produção Joalheira | ||
Produção Industrial | Produção Têxtil | |
Materiais | Cerâmica | |
Polímeros | ||
Projetos de Estruturas Aeronáuticas | ||
Química | Biocombustíveis | |
Biotecnologia | ||
Celulose e Papel | ||
Cosméticos | ||
Petróleo e Gás | ||
Processos Químicos | ||
Produção Sucroalcooleira | ||
Manufatura | Construção Naval | |
Produção Industrial | ||
Produção metalúrgica | ||
Produção Gráfica | ||
Produção Moveleira | ||
Pesca e Agricultura | Agricultura | |
Produção Pesqueira | ||
Recursos Naturais | Produção Agrícola e Pecuária | Agroecologia |
Apicultura e Meliponicultura | ||
Cafeicultura | ||
Fruticultura | ||
Gestão do Agronegócio | ||
Horticultura | ||
Irrigação e Drenagem | ||
Mecanização em Agricultura de Precisão | ||
Produção de Grãos | ||
Silvicultura | Silvicultura | |
Mineração e Extração | Mineração | |
Rochas Ornamentais |
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Gestão de Segurança Privada | ||
Investigação e Perícia Judicial | ||
Segurança | Segurança do Trabalho | |
Segurança no Trânsito | ||
Segurança Pública | ||
Serviços Penais | ||
Apoio Técnico a Eventos | Gestão de Eventos | |
Serviços de Gastronomia | Gastronomia | |
Turismo, Hospitalidade e Lazer | Acolhimento e Hospedagem | Hotelaria |
Recreação e Sociabilidade | Gestão Desportiva e de Lazer | |
Atividades Turísticas | Gestão de Turismo | |
Combate Terrestre | Artilharia | |
Cavalaria | ||
Militar | Comunicações Militares | |
Construções Militares | ||
Infantaria | ||
Intendência | ||
Manutenção de Aeronave de Asa Rotativa | ||
Manutenção de Armamento Militar | ||
Manutenção de Comunicações Militares | ||
Manutenção de Viaturas Blindadas | ||
Combate Aéreo | Comunicações Aeronáuticas | |
Fotointeligência | ||
Gerenciamento de Tráfego Aéreo | ||
Gestão de Manutenção Aeronáutica Militar | ||
Meteorologia Aeronáutica | ||
Armas Aeronáuticas |
Fonte: MEC SEPT 2022.
Este balanço da educação nacional tal como ela realmente se apresenta só pode ser explicado pelo “perfil” econômico em que está posicionado o Brasil, assim como os setores prioritários para a formação, indicadores significativos das tendências do projeto da classe dos capitalistas para a formação da classe trabalhadora brasileira no ciclo bolsonarista, mas não só! Entendemos que é na direção desta formação que caminha a formação dos professores. Aqui, é fundamental acompanhar também o perfil dos Editais do CNPq e da CAPES que têm direcionado a pesquisa e a formação em nível de pós-graduação para os setores econômicos acima destacados, sendo este um importante indicador da direção que a formação dos que formam os professores está tomando.
Mas não se encerra aí. Se considerarmos as escolas ofertadas pelo setor bancário, teremos a Fundação Bradesco (2022), auto identificada como “Instituição de direito privado e sem fins lucrativos”, que possui uma rede de 40 “escolas próprias, presentes em todo território nacional e Distrito Federal”, nas regiões Norte (Rio Branco – AC; Boa Vista – RR; Manaus – AM; Canuanã – TO; Macapá – AP; Cacoal – RO; Conceição do Araguaia e Paragominas – PA); Centro-Oeste (Bodoquena – MS;
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Ceilândia – DF; Cuiabá – MT; Aparecida de Goiânia e Goiânia – GO); Nordeste (Caucaia – CE; Jaboatão e Garanhuns – PE; Teresina – PI; Irecê, Feira de Santana e Salvador – BA; Maceió – AL; Pinheiro e São Luís – MA; Natal – RN; Propriá – SE; João Pessoa – PB); Sudeste (Campinas, Marília, Registro, Jd da Conceição e Osasco – SP; Vila Velha – ES; Rio de Janeiro – RJ; São João Del Rei – MG); Sul (Bajé, Rosário do Sul e Gravataí – RS; Laguna – SC; Paranavaí – PR).
Ou ainda, a cadeia de escolas voltadas à formação dos quadros do exército, da marinha e da aeronáutica. Na página do Ministério da Defesa e na página do Departamento de Educação e Cultura do Exército encontramos a referência às instituições: Escola Preparatória de Cadetes do Exército (EsPCEx); Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN); Instituto Militar de Engenharia (IME); Escola de Sargentos das Armas (EsSA); Escola de Saúde e Formação Complementar do Exército (EsFCEx); Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais (EsAO); Escola de Aperfeiçoamento de Sargentos (EASA); Escola de Artilharia de Costa e Antiaérea (EsACosAAe); Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME); Escola de Sargentos de Logística do Exército (EsSLog); Escola de Equitação do Exército (EsEqEx); Escola de Educação Física do Exército (EsEFEx); Escola de Instrução Especializada (EsIE). Para a Marinha Escola de Formação de Oficiais da Marinha Mercante (EFOMM)3; Escola Naval4. Para a Aeronáutica, os Curso de Formação de Oficiais Aviadores da Aeronáutica (CFOAV); Curso de Formação de Oficiais de Infantaria da Aeronáutica (CFOINF) e Curso de Formação de Oficiais de Intendente da Aeronáutica (CFOINT)5. Vamos encontrar também uma rede de Colégios Militares vinculados ao Exército Brasileiro: Colégio Militar de Belém (CMBel); Colégio Militar de Belo Horizonte (CMBH); Colégio Militar de Brasília (CMB); Colégio Militar de Campo Grande (CMCG); Colégio Militar de Curitiba (CMC); Colégio Militar de Fortaleza (CMF); Colégio Militar de Juiz de Fora (CMJF); Colégio Militar de Manaus (CMM); Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA); Colégio Militar de Recife (CMR); Colégio
3 Marinha do Brasil. Centro de Instrução Almirante Graça Aranha. Disponível em: https://www.marinha.mil.br/ciaga/aefomm Acesso em 24 de junho de 2022.
4 “A Escola Naval é a instituição de ensino superior da Marinha do Brasil, sendo a mais antiga do país,
com o objetivo de formar oficiais para os postos iniciais das carreiras dos Corpos da Armada (CA), Fuzileiros Navais (CFN) e Intendentes da Marinha (CIM).” Disponível em: https://www.marinha.mil.br/sspm/?q=escola-naval/en_princ. Acesso em 24 de junho de 2022.
5 Força Aérea Brasileira. Academia da Força Aérea. Diretoria de Ensino. Disponível em: https://www2.fab.mil.br/afa/index.php/cursos-de-formacao. Acesso em 24 de junho de 2022.
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Militar do Rio de Janeiro (CMRJ); Colégio Militar de Salvador (CMS); Colégio Militar de Santa Maria (CMSM); Colégio Militar de São Paulo (CMSP).
Particularmente, é fundamental não subestimar a necessidade de analisar quem são os professores que estão participando da formação dos militares e das polícias no Brasil. A matéria da Folha de São Paulo com o título “A força das polícias militares no Brasil” afirma que “[...] na prática, as PMs são hoje as grandes fiadoras da ordem no país”. A matéria fala de um efetivo de 406,4 mil policiais militares, que ultrapassa os 360,3 mil quadros das Forças Armadas no Brasil.
Figura 2: Efetivo da Ativa das Polícias Militares
Fonte: Folha de São Paulo (LIMA, 2022).
Quando buscamos pela formação das polícias militares, dos policiais civis e do Corpo de Bombeiros constatamos que é de responsabilidade das Secretarias de Segurança Pública de cada governo Estadual. Esta formação não se liga às secretarias de educação e caminha por pernas próprias. Nas precárias fontes de informação sobre estes cursos, podemos reconhecer no quadro abaixo a situação da formação destes profissionais: (a) que a formação é posterior ao ingresso nas carreiras por concurso público e é condição para as contratações; (b) que a formação é condição para a mobilidade na carreira da polícia militar; (c) que há estados nos quais a formação prevê a participação de professores civis selecionados pelas Academias Militares ou órgãos similares; (d) que em alguns casos a entrada na carreira prevê a formação superior anterior ou durante a qualificação continuada dos policiais; (e) que em muitos casos esta formação ocorre em associação com
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Universidade Públicas e privadas; (f) que já estão previstas em algumas desta Academias de Polícia Militar a formação por EaD de civis e militares.
Abaixo temos um quadro com os cursos de formação da Polícia Militar que localizamos nos sites disponibilizados em cada Estado.
Quadro 4 – Cursos de formação de Policiais Militares e Civis e de Corpo de Bombeiros
Norte | Amazonas | Academia da Polícia Militar do Amazonas – APMAM (AMAZONAS, 2022) |
Acre | Academia de Polícia Militar do Barro Branco, em São Paulo (ACRE, 2022) | |
Pará | Instituto de Ensino de Segurança do Pará (IESPI/PARÁ, 2022) | |
Roraima | Academia de Polícia Integrada Coronel Santiago - APICS | |
Rondônia | Curso de formação de soldado das corporações militares do Estado de Rondônia (RONDOMIA, 2022) | |
Rio Branco | Sem informação | |
Nordeste | Alagoas | Polícia Militar do Estado de Alagoas (ALAGOAS, 2022) |
Bahia | Academia da Polícia Militar do Estado da Bahia | |
Ceará | Academia Estadual de Segurança Pública do Estado do Ceará (CEARÁ, 2022) | |
Maranhão | Polícia Militar do Maranhão (MARANHÃO, 2022). | |
Paraíba | Academia de Polícia Militar da Paraíba – APMPB (João Pessoa – PB) | |
Pernambuco | Academia Integrada de Defesa Social do Estado de Pernambuco | |
Piauí | Diretoria de Ensino, Instrução e Pesquisa da Polícia Militar do Piaui | |
Rio Grande do Norte | Polícia Militar do Rio Grande do Norte | |
Sergipe | Centro de Formação e Aperfeiçoamento de Praças da Polícia Militar de Sergipe | |
Centro-Oeste | Goiás | Academia da Polícia Militar do Estado de Goiás – APMGO (GOIÄS, 2022) |
Mato Grosso do Sul | Academia de Polícia Militar, em Campo Grande – (MATO GROSSO DO SUL, 2022ª e 2022b) | |
Mato Grosso | Escola Superior de Formação e Aperfeiçoamento de Praças (ESFAP) – (MATO GROSSO, 2022); | |
Sudeste | São Paulo | Escola Superior de Formação de Soldados – PIRITUBA NET (Pirituba – SP) Academia de Polícia Militar do Barro Branco – APMBB (Barro Branco – SP), |
Rio de Janeiro | Academia da Polícia Militar do Rio de Janeiro – APMRJ (CARUSO, 2022) | |
Espírito Santo | Academia de Polícia Militar do Espírito Santo – APM (ESPÍRITO SANTO, 2022) | |
Minas Gerais | Academia de Polícia Militar de Minas Gerais – APMMG (Belo Horizonte – MG) – (MINAS GERAIS, 2022) | |
Sul | Paraná | Academia Policial Militar do Guatupê (São José dos Pinhais – PR) Academia de Polícia Militar do Paraná – APMPR (Curitiba – PR) – (PARANÁ, 2022) |
Santa Catarina | Diretoria de Instrução e Ensino da Polícia Militar do Estado de Santa Catarina (DIE) – Florianópolis (SANTA CATARINA, 2022) | |
Rio Grande do Sul | Departamento de Ensino da Brigada Militar da Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio Grande do Sul (RIO GRANDE DO SUL, 2022) |
Fonte: Elaboração própria a partir dos links referidos no quadro.
Consideremos que os militares estão sendo inseridos nas escolas por Governo Federal (Programa Nacional de Escolas Cívico-Militares) e Governos Estaduais de
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diferentes matizes políticas – como fica estabelecido pelo Termo de Cooperação Técnica n. 02/2018 entre a Secretaria de Segurança Pública (SSP), Polícia Militar da Bahia (PMBA) e União dos Municípios da Bahia (UPB) – e compreenderemos a gravidade da questão.
Os interesses pela educação da classe trabalhadora brasileira, entretanto, não param aí. Há uma gigantesca cadeia de escolas confessionais organizada em pelo menos duas grandes associações (SANTO, 2022): Associação Nacional de Educação Católica do Brasil (ANEC) – Possui 1100 escolas e 89 faculdades associadas, somando 1,5 milhões de alunos e 110 mil profissionais. A Associação Brasileira de Instituições Educacionais Evangélicas (ABIEE, 2022) – que representa atualmente um universo de 909 instituições, entre colégios, faculdades e universidades, 30 mil professores e funcionários e 523 mil estudantes, presentes no Distrito Federal e em todos os estados brasileiros. Esta última associação reúne a Associação Educacional Luterana Brasileira (AELBRA), a Associação Nacional de Escolas Batistas (ANEB), o Instituto Paulista Adventista de Educação e Assistência Social (IPAEAS), a Educação Adventista (A), a Rede SINODAL de Educação (IECLB), o Conselho Geral de Educação Metodista (COGEIME), a Associação Educativa Evangélica (UNIEVANGÉLICA) e a Comissão Presbiteriana de Educação (CONAPE). Souza, Evangelista e Seki, (2019a, p. 198) destacam a dificuldade para elaborar uma síntese sobre este setor que compõe o “Sistema Nacional de Educação”.
Por fim, há aqui uma imensa cadeia de educação superior pública e privada presencial e a distância. São 302 Universidades Públicas e 2.306 Universidades Privadas, constituindo esta última rede 88,4% do total de IES com 75,8% de matrículas concentradas (SEMESP, 2021, p. 11). São 31.497 pólos de Educação à Distância, sendo 2.772 nas IES públicas e 28.725 nas IES privadas (SEMESP, 2021, p. 12 e p. 14). Os dados sobre a previsão do crescimento da Ead no Brasil encontram-se cuidadosamente detalhados no Censo EAD.BR 2019-2020 – Relatório analítico da aprendizagem a distância no Brasil (ABED, 2021).
O volume de matrículas nos setores públicos (“Universidades; Centros de Educação Tecnológica (CEFET); Centros Universitários; Cursos Superiores de Tecnologia; Estabelecimentos Isolados//Faculdades/Institutos; Faculdades de Tecnologia; Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia, conforme SOUZA, EVANGELISTA, SEKI (2019a, p. 194-195) e privados (“instituições sem fins lucrativos
– confessionais, comunitárias e filantrópicas e instituições com fins lucrativos,
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denominadas particulares”, conforme SOUZA, EVANGELISTA, SEKI, 2019a, p. 193- 199; 2019b) podem ser apanhados no gráfico abaixo tornado público pelo Instituto SEMESP (SEMESP, 2021, p. 11, p. 12 e p. 14).
Gráfico 1 – Matrículas no ensino superior por unidade federada
Fonte: (SEMESP, 2021, p. 14).
Também a classe trabalhadora vai viabilizando, em menor proporção, suas próprias Instituições Educativas pelas quais vai disputando a hegemonia do controle da educação pública pelos setores privados da educação. A título de exemplo citamos a Escola Florestan Fernandes (SUDRÉ, 2022), o Núcleo de Educação Popular 13 de Maio e todo o Movimento de Educação do Campo associado ao Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária – PRONERA (CAMPOS, J. C. de; HENRIQUE, P.; KOLING, E.; 2022).
Ora, esta complexa rede de formação dos setores de classe média e da classe trabalhadora brasileira (trabalhadores do setor agrícola, industrial, comercial, militar, da área de saúde e da educação), cada vez mais dividida e cada vez menos enxergada nesta divisão e no seu significado do ponto de vista da luta de classes, vai tornando cada vez mais difícil estabelecer uma generalização sobre os desafios aí existentes que devem ser trabalhados na formação de professores. Inclusive, porque o próprio professor começa a ter a formação dividida de acordo com esta complexa divisão da formação, uma vez que cada um dos segmentos de formação da classe
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trabalhadora acima relacionados vai estabelecendo um padrão de profissional/professor que almeja que esteja à frente da formação que empreendem. Nestas condições é um erro permanecer generalizando o trabalho pedagógico, desprezando as transformações que se efetivam no trabalho concreto (produtor direto de valores de uso, MARX, 1989) que são indicadoras de importantes tendências já sinalizadas pela literatura e em franco aprofundamento na política educacional brasileira: impedimento da liberdade de cátedra, quebra da laicidade do ensino, e avanço dos processos de conversão do trabalho dos professores em trabalho simples, com vistas à expansão da extração de mais valia. Podemos encontrar nas pistas acima elencadas, raízes para explicar o profundo ataque que os professores têm vivido em termos concretos na forma de reforma trabalhista e de previdência, rebaixamento da formação e salarial, quebra de carreiras de estado e reforma nos métodos de contratação.
Um dos desafios estruturais da formação dos professores no Brasil é justamente reconhecer que o conjunto das políticas de desmonte da educação pública (fornecida por Municípios, Estados e Federação) em todos os níveis de educação e ensino, é incompreensível sem o reconhecimento do processo histórico que estrutura este “Sistema Nacional de Educação” marcado pela descentralização de agentes e instituições autorizadas a educar/formar/instruir. As políticas de desmonte da educação pública que temos vivenciado atacam justamente a parte pública deste sistema, expressando-se (a) na redução das verbas públicas para as Instituições de Educação básica e superior e o seu desvio, pelos mais variados processos que vão sendo legalizados, para a iniciativa privada; (b) o avolumamento da privatização da educação, e a entrega da formação da classe trabalhadora brasileira (profissionais da educação, profissionais da saúde, profissionais da segurança, profissionais dos transportes, profissionais da indústria extrativista e energética, etc.) à iniciativa privada; (c) controle ideológico dos trabalhadores da educação pública nos mais variados níveis, incluindo-se aí a “Escola sem Partido” (Escola da Mordaça, Escola de Partido único), particularmente por uma parte do sistema educativo que ainda não conseguimos reconhecer em profundidade que é a rede mundial de internet; (d) incentivo à “desescolarização” e entrega da formação da juventude ao homeschooling
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(Projetos de Lei 3262/2019; Projeto de Lei 2401/2019), ao Programa Nacional de Escolas Cívico-Militares (MEC, ESCOLA CÍVICO MILITAR, 2022) com uma adesão de mais de 215 escolas em todo o território nacional, além de programas próprios desenvolvidos nos Estados, como é o caso do Estado da Bahia (PEREIRA, 2020); (e) a Educação à Distância; (f) ou ainda o PROUNI, o FIES e o Future-se, entre outras tantas formas de fortalecimento do setor privado da educação e desmonte do Sistema Público de Educação.
Defendemos neste ensaio ser necessário partir do sistema nacional da educação realmente existente na formação social brasileira para encontrar, nas estruturas desenvolvidas para a formação da classe trabalhadora brasileira, o professor concreto. Só então, seremos capazes de localizar os desafios reais que estamos enfrentando, em um processo de intensa precarização do trabalho em todas as cadeias produtivas, com consequente precarização da formação dos trabalhadores, no duplo sentido de precarização daquilo que deve ser ensinado e no sentido da precarização da formação de quem vai cumprir esta tarefa.
Na contramão de qualquer expectativa de uma educação nacional orientada por princípios universais abstratos, como o debate sobre a possibilidade de uma educação nacional unitária (NOSELLA, 2015), entendemos ser urgente um mapeamento rigoroso de conjunto deste difuso “Sistema Nacional de Educação” realmente existente, compreendendo a dispersão de agentes e instituições que ofertam serviços educacionais e os pontos de conexão nele existentes. Entendemos que apenas este mapeamento vai possibilitar reconhecer as formas concretas que o trabalho educativo vai assumindo enquanto uma relação direta dos professores com diferentes frações de segmentos de classes sociais em que se encontram educandos, colegas de trabalho, empregadores e comunidades para as quais se direciona a formação e a atuação deste pessoal. É para este complexo e diverso sistema educativo, próprio da formação social brasileira, que os professores são formados, e o desafio é exatamente reconhecer a natureza e a especificidade do trabalho educativo concreto nas relações de produção em que ele efetivamente se realiza, recheado de contradições cujas determinações em movimento urge ir buscando.
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V.21, nº 44, 2023 (janeiro-abril) ISSN: 1808-799X
MAGALHÃES, Jonas Emanuel Pinto2. Competências socioemocionais: uma “nova” pedagogia? Estudo dos fundamentos de uma perspectiva educacional emergente. 2022. 558f. Tese (Doutorado em Políticas Públicas e Formação Humana) – Faculdade de Educação, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.
Essa tese tem como tema a noção de competências socioemocionais e como objeto de estudo a sua incorporação nas políticas curriculares da educação nacional. De modo mais específico, busca identificar e analisar os fundamentos econômicos, políticos, ideológicos e epistemológicos que orientam as propostas de formação de competências socioemocionais na atualidade. Além disso, e tendo como referencial teórico-metodológico o materialismo histórico e dialético, analisamos, no contexto da crise do capital e do neoliberalismo, a construção e implementação dessa nova agenda educacional por organizações como a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e o Instituto Ayrton Senna (IAS). A progressiva projeção alcançada pela noção de competências socioemocionais no Brasil, combinadas com a apropriação apressada e, via de regra, pouco crítica desse novo slogan pedagógico justifica a investigação de suas bases epistemológicas, políticas e sócio-históricas, bem como suas implicações ideológicas e pedagógicas.
1 Resumo expandido recebido em 18/01/2023. Aprovado pelos editores em 22/02/2023. Publicado em 13/04/2023. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v21i44.57107.
2 Doutor em Políticas Públicas e Formação Humana pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPFH/UERJ) - Brasil. Professor de Disciplinas Pedagógicas da Rede Estadual de Ensino do Rio de Janeiro (SEEDUC/RJ) – Rio de Janeiro/Brasil e Pedagogo da Escola de Serviço Social da Universidade Federal Fluminense (ESS/UFF) – Rio de Janeiro/Brasil.
E-mail: jonasemanuel@id.uff.br. Lattes: http://lattes.cnpq.br/7065247310849103.
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6144-9854. Tese defendida em 24 de fevereiro de 2022. Orientadora: Profª Drª Marise Nogueira Ramos. Disponível através do link do PPFH: https://www.bdtd.uerj.br:8443/handle/1/17904.
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Com esse intento, nosso problema de pesquisa foi assim delimitado: quais os fundamentos econômicos, políticos, ideológicos e epistemológicos que orientam as propostas de formação de competências socioemocionais? Partindo desse problema inicial buscamos, de forma mais específica, compreender, do ponto de vista sócio- histórico, teórico-epistemológico e político-pedagógico, os fundamentos e a materialidade na qual se sustenta a noção de competências socioemocionais, incluindo a sua abordagem em outros campos disciplinares como a economia, a psicologia e a administração; analisar a influência da OCDE na propagação e indução das competências socioemocionais como parte de sua agenda global para a educação e o papel desempenhado pelo Instituto Ayrton Senna (IAS) na construção e operacionalização dessa pauta em âmbito nacional; apresentar e discutir os programas de formação de competências socioemocionais desenvolvidos em países do capitalismo central e as iniciativas implementadas no âmbito dos sistemas de ensino público do Brasil; e localizar os marcos e sistematizar a trajetória histórica de incorporação da noção de competências socioemocionais na política educacional brasileira.
No primeiro capítulo da tese, analisamos a crise do capitalismo no contexto do final do século XX e a sua agudização no início do século XXI, procurando observar a influência da globalização, do neoliberalismo e da pós-modernidade na reconfiguração da função social da educação. Apresentamos as discussões realizadas por teóricos liberais e economistas neokeynesianos acerca dos descaminhos do capitalismo neoliberal após a crise de 2008 e colocamos em diálogo as alternativas por eles apresentadas para a crise social e econômica que vivemos, incluindo as propostas para o campo educacional. Concluímos o capítulo localizando nestas e em outras propostas desenvolvidas por organizações não-governamentais e internacionais a retomada do mote da “Educação para o Século XXI”, desta vez com uma ênfase maior nos aspectos do saber-ser e saber-conviver (competências socioemocionais).
No capítulo seguinte, recuperamos a gênese, conceitos e preceitos do neoliberalismo, analisamos seus efeitos na restauração do poder econômico e político das classes dominantes e discutimos suas novas configurações após a crise de 2008, considerando as diferentes abordagens teóricas do neoliberalismo constituídas pela tradição marxista, foucaltiana e neorregulacionistas. Com base em autores como Pierre Dardot e Christian Laval, Byung-Chul Han, Marilena Chauí e Vladimir Safatle
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apresentamos as teses sobre a hegemonia da razão neoliberal, sua influência na conformação da sociedade do desempenho, do capitalismo emocional, do Estado- empresa e do sujeito empreendedor/empresário de si mesmo.
No terceiro capítulo, recuperamos o percurso de constituição da ciência da administração e de seu discurso sobre a gestão e desenvolvimento de recursos humanos. Localizamos, a partir de autores como Luc Boltanski e Eve Chiapello, Osvaldo Lopez Ruiz e Daniel Andrade uma importante inflexão desse discurso na década de 1990 produzida pela assimilação e ressignificação das críticas antidisciplinares dos movimentos contraculturais, pela influência das teorias do capital humano e da inteligência emocional e pela vulgarização de conceitos dessa ciência promovidas pela literatura popmanegent. Concluímos que tal inflexão, alinhada ao “novo espírito do capitalismo” e a nova concepção de “homo economicus emocional”, busca cooptar ideologicamente a subjetividade dos trabalhadores, através da hipervalorização dos aspectos comportamentais pelas políticas de gestão de pessoas e pela nova cultura do management.
Em seguida, no capítulo 4, apresentamos o debate sobre as mutações e metamorfoses do mundo do trabalho observadas nos últimos 50 anos pelo olhar da sociologia do trabalho, com base em autores como Ricardo Antunes, Sadi Dal Rosso e Ursula Huws. Discutimos ainda os impactos da reestruturação produtiva e da precarização do trabalho e do “homem que trabalha”, considerando as contribuições de autores como Danièle Linhart, Giovani Alves e José Henrique de Faria acerca dos processos de captura e sequestro da subjetividade dos trabalhadores. Analisamos as teses e contra-teses a respeito do significado do trabalho imaterial para a teoria do valor de Karl Marx e seu impacto na reconfiguração do mercado de trabalho e das novas qualificações exigidas dos trabalhadores. Por fim, debatemos as consequências da Uberização do Trabalho e as possíveis implicações da Indústria 4.0 na determinação do tipo de competências e subjetividades requeridas pelo capital em face da crise do emprego e do avanço da aplicação da inteligência artificial sobre o trabalho complexo e sobre as competências cognitivas dos trabalhadores.
Nos últimos três capítulos nos debruçamos mais diretamente sobre o objeto desta tese, analisando a produção acadêmica nacional sobre as competências socioemocionais, seus referenciais teórico-epistemológicos e sua incorporação nas políticas públicas de educação nacional.
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Neste percurso, realizamos um levantamento comparativo sobre a presença e recorrência do termo competências socioemocionais e outros conceitos afins em textos e vídeos disponíveis na internet. Também inventariamos a produção de livros sobre essa temática. Finalmente, analisamos o conjunto de teses e dissertações nacionais que tomam como objeto as competências e/ou habilidades socioemocionais. Encerramos o capítulo V com as conclusões desses levantamentos e análises que apontam, no plano da produção acadêmica, para a prevalência de estudos empíricos sobre os efeitos das competências socioemocionais tendo como lócus privilegiado a educação e sendo realizados majoritariamente no âmbito de programas de pós-graduação em educação, seguidos dos programas de psicologia e de economia.
No capítulo VI, nos detemos sobre os constructos afins ou diretamente relacionados à noção de competências socioemocionais. Assim, apresentamos o debate sobre inteligência emocional iniciado na década de 1990, a construção teórica do constructo do Big Five, teoria da personalidade que informa metodologicamente a noção de competências socioemocionais, a noção de competências tal como foi desenvolvida nas corrente norte-americana e francesa e aplicadas nos campos da gestão de pessoas e da educação e, finalmente, os estudos teóricos e econométricos do economista James Heckam que forneceram as bases argumentativas para a construção da agenda das competências socioemocionais pela OCDE. Também apresentamos e discutimos os programas de educação socioemocional desenvolvidos desde a década de noventa em países como Estados Unidos, Portugal e Inglaterra. Concluímos o capítulo argumentando que a noção de competências socioemocionais se conforma por uma síncrese epistemológica incoerente e inconsistente. Contudo, aproximando-se indiretamente da pedagogia socioemocional e diretamente da pedagogia das competências, essa noção conforma, a partir da definição e construção de intencionalidades político-pedagógicas explícitas, métodos e modelos de currículo e avaliação uma pedagogia em construção, a qual denominamos de Pedagogia das Competências Socioemocionais.
No último capítulo da tese, percorremos a trajetória de gênese e incorporação da noção de competências socioemocionais nas políticas educacionais brasileiras. Tendo como agente impulsionador dessa agenda o IAS, com colaboração direta da OCDE, identificamos dois grandes momentos dessa trajetória: 1) a mobilização da
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agenda e a construção de consensos teóricos políticos em torno das competências socioemocionais e 2) as ações efetivas do governo federal para incorporação das competências socioemocionais nas políticas educacionais nacionais. Nesse segundo momento, apresentamos um panorama da implementação da reforma do ensino médio nos estados brasileiros e a redefinição das estratégias de atuação do IAS incluindo o redesenho de seu modelo curricular de referência e a consolidação de parcerias estabelecidas com o CONSED, a UNDIME e alguns estados para otimização da implementação das competências socioemocionais a nível local, regional e nacional. Também discutimos, a partir de relatórios e documentos dos organismos internacionais (UNESCO, Banco Mundial e OCDE) sua adesão à agenda socioemocional e a influência desses organismos, especialmente, a OCDE, na efetivação dessa pauta político-educacional em território nacional.
Como conclusões mais importantes deste estudo, identificamos nas políticas de competências socioemocionais sua vinculação indireta ao nível epistemológico com a pedagogia socioemocional, desenvolvida com aporte de constructos do campo da psicologia psicométrica, e sua vinculação direta ao nível político-programático com a pedagogia das competências, tendo como intencionalidade explícita comum a formação de subjetividades flexíveis e adaptáveis às condições econômicas e sociais flutuantes e precárias. Pela ação dos organizações intergovernamentais e não- governamentais, particularmente a OCDE e o IAS, tal noção, fundamentada numa síncrese epistemológica de diferentes constructos, orienta a construção de um Pedagogia das Competências Socioemocionais, ainda não plenamente desenvolvida. Tais organizações foram e continuam sendo responsáveis pela construção, disseminação e consolidação da agenda socioemocional, produzindo e divulgando estudos que sirvam como evidências científicas para respaldar tal agenda, construindo modelos de currículo e instrumentos de avaliação de competências socioemocionais para subsidiar propostas pedagógicas e articulando-se junto a outros agentes públicos e privados para promover e efetivar políticas educacionais voltadas ao desenvolvimento dessas competências.
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V.21, nº 44, 2023 (janeiro-abril) ISSN: 1808-799 X
BUENO, Alana Lemos2. A Reforma do Ensino Médio: do Projeto de Lei nº 6.840/2013 à Lei nº 13.415/2017. 2021. 144f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Paraná, Curitiba.
Esta pesquisa exprime a tarefa de investigar a trajetória da política de reforma do ensino médio no Brasil, considerando a publicação do Projeto de Lei (PL) nº 6.840/2013 até a homologação da Lei nº 13.415/2017. A investigação da política de reforma educacional se organiza a partir de três pilares: a) no mapeamento da Comissão Especial para a Reformulação do Ensino Médio (CEENSI) e da Comissão Mista, referente aos anos de 2013 e 2017 respectivamente, e seus interlocutores presentes nas reuniões e audiências públicas; b) na sistematização das notas taquigráficas, atas, relatórios das reuniões e audiências públicas, e c) nas movimentações dos textos legislativos, buscando comparar o PL nº 6.840/2013, o Substitutivo ao PL, o Substitutivo redigido e apresentado pelo Conselho Nacional de Secretários de Educação (CONSED) em 2016, a Medida Provisória (MP) nº 746/2016, o Projeto de Lei de Conversão (PVL) nº 36/2016 e a Lei nº 13.415/2017.
Nas últimas três décadas, observamos o desenho dos embates em torno da definição das políticas para o ensino médio, mostrando-se expressivo o aspecto da relação entre escola, trabalho e juventude (BERNARDIN e SILVA, 2014). Essa relação
1 Resumo expandido recebido em 08/02/2023. Aprovado pelos editores em 27/03/2023. Publicado em 13/04/2023. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v21i44.57339.
2 Mestra em Educação pelo Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Paraná - Brasil, na Linha de Pesquisa em Políticas Educacionais. É membro do Observatório do Ensino Médio, e tem desenvolvido seus estudos para as temáticas do ensino médio, juventude e trabalho. É professora de Sociologia na rede privada de ensino. E-mail: alanalbb@gmail.com.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/1742708681816168. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0703-0312.
A dissertação está disponível em: https://sucupira.capes.gov.br/sucupira/public/consultas/coleta/trabalhoConclusao/viewTrabalhoConclu sao.jsf?popup=true&id_trabalho=11094024.
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se faz presente com a aprovação do Decreto nº 5.154/2004 ao restabelecer a organização da educação profissional integrada ao ensino médio, revogando o Decreto nº 2.208/1997. Nesse contexto, a disputa curricular se dava em torno do resgate do princípio da politecnia, o que demarcou as reivindicações das lutas sociais dos anos de 1980 para a educação (FRIGOTTO, CIAVATTA e RAMOS, 2005). Mas, a articulação prevista na lei só foi incluída na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional em 2008 (FERRETTI e SILVA, 2016).
Até mesmo as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (DCNEM) só foram retomadas em 2011 e publicadas em 2012, quando passaram a fundamentar o trabalho como princípio educativo e a organização curricular da etapa baseada nos eixos da ciência, cultura, trabalho e tecnologia. Ainda assim, as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Profissional de Nível Técnico (DCNEP), aprovadas em 2012, em seu conteúdo retomavam parte dos princípios da década de 1990, orientando os seus postulados para os componentes da competência e da adaptação ao mercado de trabalho (CIAVATTA e RAMOS, 2012).
Com a aprovação das DCNEM de 2012, observamos logo em seguida a reação das forças conservadoras no debate acerca do currículo do ensino médio. A reação é evidente com a publicação do PL nº 6.840/2013 que instaurava a reforma do ensino médio e explicitamente apontavam em seu relatório final a revisão das DCNEM. Mas, por que revisar um documento recém-publicado?
Tal indagação nos levou a construir, então, o seguinte problema de pesquisa: o que aconteceu desde a publicação do PL nº 6.840/2013 até a aprovação da Lei nº 13.415/2017, que institui a reforma do ensino médio, considerando as rupturas e continuidades entre os dois momentos? Para respondê-la, foi preciso olhar para a estrutura do ensino médio nos últimos anos e identificar o que conferiu legitimidade à política de reforma. Isso foi verificado no modo como os reformadores pautavam um diagnóstico em comum acerca da etapa: currículo inadequado, professores mal preparados e jovens desinteressados.
Igualmente, se mostrou evidente no percurso de estabelecimento da política de reforma a movimentação dos agentes públicos nos âmbito do Ministério da Educação (MEC) e consolidação das políticas de currículo e de jornada em tempo integral que já se delimitavam nas secretarias estaduais de educação, além de olhar mais especificamente para os grupos e interlocutores das Comissões de Educação, e os
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efeitos disso nos textos dos projetos e leis (nas alterações, substituições ou exclusões do conteúdo da política).
Depois da aprovação das DCNEM em 2012, a política de reforma do ensino médio organizada pela CEENSI, e, por conseguinte, a publicação do PL nº 6.840/2013, pudemos traçar elementos significativos para a apreensão desse cenário. Um deles se mostra no evidente embate de forças entre o MEC, as Secretarias Estaduais de Educação, o parlamento, o empresariado e os movimentos sociais. Esses embates resultaram, cerca de dois anos depois de criada a Comissão, na publicação de um Substitutivo ao PL. O Substitutivo buscava resgatar os postulados das DCNEM de 2012, apresentando ganhos do Movimento Nacional em Defesa do Ensino Médio em áreas de maior pressão do setor privado (SILVA e KRAWCZYK, 2016). A tramitação do Substitutivo foi travada na Câmara dos Deputados. Por um lado, havia uma forte pressão para impetrar o impeachment de Dilma Rousseff que tomou conta da pauta da Câmara (SILVA e KRAWCZYK, 2016), e, por outro lado, o impeachment serviu de base para a retomada da reforma do ensino médio como MP no governo de Michel Temer.
Porém, a essa altura, os reformadores já organizavam nos bastidores o projeto de reforma do ensino médio. O Grupo de Trabalho de Reforma do Ensino Médio do CONSED retomou suas atividades em junho de 2015 (SILVA, 2017), no qual passou a assessorar as discussões referentes à etapa em interlocução com o MEC. As atividades do GT resultaram nos documentos "Carta de Princípios sobre o Ensino Médio Brasileiro" e o Substitutivo com proposições ao PL nº 6.840/2013, entregues em 3 de março de 2016 ao MEC (SILVA, 2017). Já em setembro de 2016, o Poder Executivo apresentou a MP nº 746/2016, criando-se uma Comissão Mista no mês seguinte. Até o mês de novembro foram realizadas doze reuniões para a discussão da MP, e a homologação final da Lei nº 13.415 aconteceu em fevereiro de 2017.
É preciso registrar que nos dois momentos da reforma do ensino médio as proposições encontraram expressamente as intenções do setor privado (SILVA e KRAWCZYK, 2014; FERRETTI e SILVA, 2017; QUADROS, 2020). Isso é evidenciado
em nossas análises pela diferença de forças na definição da política para a etapa, uma vez que com o PL de 2013 pudemos identificar as pressões dos movimentos sociais e, até mesmo, dos agentes públicos que ocupavam o MEC na época. Porém, suas forças são reduzidas com o entrave do Substitutivo ao PL construído pelo
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Movimento Nacional em Defesa do Ensino Médio; a incorporação de agentes públicos ligados ao setor privado especialmente na transição do governo Dilma-Temer; o rápido acolhimento do Substitutivo de autoria do CONSED pelo MEC, sendo imposto em seguida por uma MP; e as explícitas repressões dos grupos contrários à política de reforma nas audiências públicas.
Com o aporte da análise documental, a pesquisa traçou “núcleos de sentidos” (BARDIN, 2011, p. 135), isto é, os temas de maior ou menor presença das notas taquigráficas, atas, relatórios e dos textos legislativos na política de reforma. O que possibilitou identificar as forças que aceleraram ou retardaram os distintos projetos para a formação da juventude. Na análise das Comissões de ambos os momentos da reforma do ensino médio verificamos um baixo número de referências ao documento das DCNEM de 2012. Entre os reformadores, quando se referiam ao documento, havia uma evidente oposição aos seus postulados. Essa oposição foi organizada em nossa pesquisa na categoria modelos para o ensino médio, que se apresentava em duas frentes opostas na argumentação dos reformadores: como oposição à “utopia” do princípio da politecnia e como objeção aos Institutos Federais por conta de suas dificuldades de financiamento; e como legitimação do modelo pernambucano enquanto modelo de parceria público-privado, da política de tempo integral e da política de accountability. Isto é, um modelo de fácil replicação em termos de financiamento.
Os elementos alterados, substituídos ou rejeitados nos textos legislativos foram verificados na persistência das proposições ligadas ao setor privado. Dentre elas, destacamos a ampliação da carga horária e a flexibilização do currículo em áreas de conhecimento e uma formação técnica e profissional. Flexibilização, hierarquização e controle técnico foram as categorias utilizadas por nós para compreender a forma e o conteúdo do currículo afirmado pelos reformadores. Além disso, a política da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) apareceu pela primeira vez com o Substitutivo do CONSED. Com a alta similaridade entre os textos do Substitutivo do CONSED e a MP nº 746/2016 instaurou-se a sobreposição de um projeto de reforma para o ensino médio, com expressivos momentos de deslegitimação e repressão das proposições dos movimentos educacionais.
Os resultados da investigação demonstraram a força dos reformadores ligados ao CONSED e às entidades privadas, e os cargos ocupados na burocracia do MEC
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na definição da política de reformulação do ensino médio, explicitando uma correlação entre MEC-CONSED e Câmara dos Deputados. Contudo, a força dos reformadores não deixou de sofrer pressão contrária na disputa pela definição da política, quando identificamos um projeto de defesa da escola pública, das juventudes, dos trabalhadores da educação e dos postulados do ensino médio integrado.
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V.21, nº 44, 2023 (janeiro-abril) ISSN: 1808-799 X
MORAIS, João Kaio Cavalcante de2. Os saberes docentes necessários ao trabalho do professor de Biologia no Ensino Médio Integrado. 2017. 140 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Educação Profissional, Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte, Natal, 2017
O resumo expandido apresentado tem como objetivo geral refletir em torno dos saberes docentes necessários ao trabalho dos professores de Biologia que atuam na Educação Profissional Técnica de Nível Médio (EPTNM), desenvolvida na forma integrada ao ensino médio. Nesse sentido, a temática está centrada na questão dos saberes docentes em uma perspectiva da práxis, na qual teoria e prática são vistas de forma indissociada. O presente texto decorre de um estudo de mestrado, produzido no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Educação Profissional (PPGEP), do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte (IFRN). No contexto temporal da produção e escrita da dissertação, a Educação Profissional e Tecnológica (EPT), enquanto modalidade de ensino garantida pela Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (LDBEN), estava em amplo processo de expansão na Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica (RFEPCT), nas redes estaduais de ensino públicas, bem como na esfera privada. Os estudos de pesquisadores como Machado (2008), Kuenzer (2011), Silva (2012) e
1 Resumo expandido recebido em 05/02/2023. Aprovado pelos editores em 24/03/2023. Publicado em 13/04/2023. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v21i44.57288.
2 Doutor em Educação com ênfase em Educação Profissional pelo Programa de Pós-Graduação em Educação Profissional – PPGEP, do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte - Brasil. Assessor pedagógico da Subcoordenadoria de Educação Profissional (SUEP/SEEC) no Rio Grande do Norte - Brasil. E-mail: kaio-ca-valcante@hotmail.com.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/7422440536702479. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6984-3629. Dissertação de Mestrado defendida em julho de 2017, sob orientação da Profª Drª Ana Lúcia Sarmento Henrique. Disponível em: https://memoria.ifrn.edu.br/bitstream/handle/1044/1533/Jo%C3%A3o%20Kaio%20Cavalcante%20de
%20Morais.pdf?sequence=5&isAllowed=y
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Moura (2014), evidenciavam as lacunas formativas dos professores que atuavam na EPT, bem como as especificidades da atuação docente em espaço de formação profissional e tecnológica.
No caso dos professores que lecionavam no componente curricular Biologia na educação básica, as pesquisas de Gatti (2010) e Delizoicov, Angotti e Pernambuco (2011) denunciavam o caráter bacharelesco da formação inicial desses docentes, o que incidia no trabalho dos profissionais formados em cursos de licenciatura em biologia na EPT e na EPTNM. Cumpre destacar que os professores de biologia atuam em um componente curricular da formação propedêutica dos estudantes, porém, também contribuem com a formação técnica e profissional, inerente à EPT e a EPTNM.
De acordo com Saviani (1996) e Tardif (2014), os saberes docentes são produzidos na formação inicial, na formação continuada e nas práticas pedagógicas cotidianas dos professores e das professoras. Esses saberes estão vinculados ao domínio dos objetos de conhecimento do componente curricular a ser ensinado em sala de aula, bem como aos conhecimentos pedagógicos e curriculares. Além disso, Saviani (1996) esclarece que os professores necessitam ter um olhar crítico-reflexivo e transformador frente ao seu trabalho, pois atuam contribuindo na formação dos estudantes e das novas gerações. No caso da EPT, Moura (2014) esclarece que os professores precisam compreender a dinâmica do modo de produção capitalista e da dinâmica do trabalho nessa sociedade, pois assim poderá entender o papel do seu fazer junto à formação técnica e profissional dos estudantes.
A questão de pesquisa e do presente resumo expandido é quais são os saberes docentes necessários ao trabalho dos professores de Biologia na EPTNM desenvolvida na forma integrada? Para responder essa pergunta e o objetivo geral, foi realizada pesquisa bibliográfica em portais de periódicos e repositórios de dissertações e teses, no período entre 2015 e 2016. Os principais autores consultados foram Saviani (1996), Machado (2008), Kuenzer (2011), Silva (2012), Shulman (2014)
e Tardif (2014).
A técnica utilizada para analisar os dados levantados na pesquisa bibliográfica foi a Análise Textual Discursiva (ATD), de Moraes e Galliazi (2006). As categorias analíticas estão vinculadas a própria classificação dos saberes que serão elencadas no decorrer do resumo expandido, a saber: saberes do componente curricular,
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saberes da ciência da educação, saber experiencial, saber do pesquisador, saberes da área em que pode atuar e saberes crítico-contextual e atitudinal. O referencial teórico-metodológico que norteia o estudo tem como base o método materialista e histórico, tendo como fundamento os estudos teórico-práticos de Marx e Engels (2019).
A dissertação de mestrado foi defendida em julho de 2017, nas dependências do IFRN, antes da abertura do IV Colóquio Nacional e I Colóquio Internacional – A Produção do Conhecimento em Educação Profissional: a reforma do ensino médio e suas implicações para a educação profissional. Além da introdução, o presente resumo expandido apresentou quatro seções. A primeira tratou da EPTNM desenvolvida na forma integrada ao ensino médio e o projeto de formação humana integral a ela vinculada. A segunda discorreu acerca da formação inicial e continuada de professores de Biologia. A terceira especificamente acerca dos saberes docentes e a quarta apresentou algumas conclusões do estudo.
No que tange à formação inicial e continuada de professores de Biologia, a legislação vigente no contexto da produção da dissertação garantia a formação em nível superior para lecionar, de forma que os conhecimentos pedagógicos fossem trabalhados de forma paralela à formação dos conteúdos biológicos. Os professores e as professoras, conforme normatização da Resolução do CNE/CP nº 2, de 1º de julho de 2015, necessitavam receber formação que visasse produzir saberes docentes que articulassem teoria e prática com foco na interdisciplinaridade. Apesar disso, o caráter bacharelesco de rebaixamento da importância das questões pedagógicas frente às biológicas estavam, conforme Gatti (2010), ainda muito presentes nos cursos de licenciatura em Biologia.
De encontro a essa questão, Delizoicov, Angotti e Pernambuco (2011) defendem uma formação docente necessita inserir em seu currículo tempo inicial de preparação propedêutica; no caso dos professores de Biologia, os conteúdos específicos da área, de carga mais teórica, ou seja, forte dose de estudo da metodologia científica e da teoria referencial, como fundamentos da formação geral comum a todo educador e como ferramenta para elaboração própria. Além disso, Moura (2014), defende uma formação que também apresente questões voltadas para a sociedade atual, a sua organização e contradições, sem esquecer das especificidades do trabalho docente frente ao modo de produção capitalista.
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Na presente pesquisa, os saberes docentes são compreendidos como um conjunto de conhecimentos teórico-práticos produzidos na formação inicial e continuada e que visam os processos de ensino-aprendizagem dos estudantes. Nesse sentido, esses conhecimentos são transformados em saberes na medida em que o professor atua em sala de aula e vivencia os desafios da docência com os estudantes, os técnicos pedagógicos das diferentes instâncias do seu trabalho (Ministério da Educação, Conselho Nacional da Educação, dentre outros).
Os saberes do componente curricular Biologia estão vinculados aos conteúdos e temas inerentes às ciências biológicas. Biologia Celular, Histologia, Embriologia, Anatomia Humana e Comparada, Fisiologia Humana e Comparada, Seres Vivos, Genética e Evolução, por exemplo. Esses conhecimentos fazem parte da especificidade da Biologia e necessitam ser produzidos inicialmente na formação inicial e, posteriormente, ressignificados na formação continuada e no trabalho docente em sala de aula. Na medida que o professor ou a professora estuda esses conteúdos, esses saberes vão ficando mais elaborados.
Os saberes da ciência da educação estão vinculados aos conhecimentos teórico-práticos acerca da educação, da pedagogia, da didática e da psicologia da educação. Eles são apreendidos no decorrer da formação inicial e continuada, sendo que as instituições formadoras são fundamentais nesse processo de aquisição de conhecimentos teórico-práticos sobre as teorias da educação, da pedagogia e da psicologia. Incluem-se, ainda, questões voltadas para o currículo. Os saberes da ciência da educação não podem ser vistos a partir do imediatismo prático-utilitário, tendo em vista que o professor aqui é tratado como um intelectual que reflete criticamente sobre o seu fazer cotidiano e recorre aos teóricos para ressignificar suas práticas.
É nesse processo teórico-prático que se ancoram os saberes do pesquisador. O professor de Biologia, nessa compreensão, é um sujeito que faz do seu fazer um campo empírico de produção de novos conhecimentos pedagógicos. Cumpre salientar que a principal diferença entre um professor de Biologia e um bacharel em biologia é a condição pedagógica e didática do trabalho docente.
Na medida que o professor atua, ressignifica seu fazer cotidiano a partir da relação indissociada entre os saberes da ciência da educação e do pesquisador, ele adquire experiência. Essa vai se consolidando e se transformando em um saber
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específico da docência. Notadamente, esse é um conjunto de conhecimentos adquiridos na formação continuada, o que não desconsidera as experiências e vivências adquiridas na formação inicial dos professores de Biologia, quando inseridos em estágios ou bolsas de iniciação à docência, tutorias ou iniciação à pesquisa.
No caso dos professores de Biologia que atuam na EPTNM desenvolvida de forma integrada, não basta apenas lecionar os conteúdos de ensino, se faz necessário relacioná-los com os conhecimentos, práticas e vivências da futura profissão/ocupação do estudante. Essa questão não se faz apenas no discurso, mas integrando o planejamento com a área técnica da formação. Esses saberes são fundamentais na constituição de um currículo que integra formação geral e formação específica, no caso dos estudantes da EPT e EPTNM.
Por fim, é esperado uma postura ética por parte dos professores de Biologia. Se faz necessário compreender que a docência é uma profissão especifica, que requer também saberes específicos. A profissão professor apresenta toda uma base legal e normatizadora que necessita ser compreendida por parte dos professores. Questões como o conhecimento acerca do modo de produção capitalista, de suas contradições, bem como da necessidade permanente da defesa em torno da democracia e do respeito às instituições são valiosas na constituição dos saberes crítico-contextual e atitudinal. Espera-se que os professores recebam formação que busque atitudes comprometidas com outro projeto de sociedade, diferente deste que está posto.
Sendo assim, espera-se que com esses saberes os professores possam contribuir para um projeto de educação que seja uma travessia para outro projeto de sociedade, menos injusta e desigual, mais igualitária, laica e que respeita às diferenças do pensar, desde que esses pensamentos não estejam vinculados ao extermínio de outros grupos sociais. Os professores de Biologia são partes fundamentais nesse processo, tendo em vista que lecionam um componente curricular que elucida para o homem as bases da relação com outros seres vivos e com o planeta Terra.
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Referências
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V.21, nº 44, 2023 (janeiro-abril) ISSN: 1808-799 X
NEPOMUCENO, Vera Lúcia da Costa2. A reforma do ensino médio no Brasil: uma contrarreforma trabalhista para o trabalho docente, 2022. 214f. Tese (Doutorado em Políticas Públicas e Formação Humana) – Faculdade de Educação, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.
A presente tese tem como tema central o processo de modificações do trabalho docente nas escolas públicas estaduais, a partir da implementação da reforma do ensino médio (REM) em curso no Brasil. Em face disso, procuramos compreender as relações entre um conjunto de documentos, que, alinhados e complementares à Lei nº. 13.415/2017, repercutiram nas condições de realização desse trabalho, instituindo novas formas de expropriação de direitos dos (as) professores (as) das escolas públicas estaduais. As mudanças vinculadas a esse processo se relacionam e vêm se desenvolvendo, intensificando e se revelando como parte de uma tendência que parece se constituir a partir de uma multiplicidade de causas, processos e aspectos vinculados a modificações no mundo do trabalho no século XXI (ANTUNES, 2018).
A investigação procurou expandir a compreensão para além da análise dos documentos institucionais através do acompanhamento dos sites das secretarias estaduais de educação, dos sindicatos docentes e dos aparelhos privados de hegemonia que possibilitaram identificar e analisar as tensões entre o que a lei propôs e a sua realização, correlacionando as modificações propostas pela REM com o quadro de mudanças que vem sendo pactuado, normatizado e realizado no campo do trabalho docente.
1 Resumo expandido recebido em 04/03/2023. Aprovado pelos editores em 22/03/2023. Publicado em 13/04/2023. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v21i4457626.
2 Doutora em Políticas Públicas e Formação Humana pelo Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas e Formação Humana, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPFH/UERJ) - Brasil. Docente do Ensino Básico da secretaria municipal de educação da Prefeitura de Duque de Caxias (SME/DC) e do Estado do Rio de Janeiro - Brasil. E-mail: info_ver@hotmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/8386627853060123. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-72045206. Tese defendida em 12 de dezembro de 2022, orientada pela Profª Drª Eveline Bertino Algebaile.
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A partir dessa referência, desenvolvemos uma análise dos desdobramentos e das contradições do objeto pesquisado, enquadrando-o no contexto político, econômico e social do capitalismo dependente brasileiro, em sua forma particular de defesa dos interesses das frações da classe burguesa que, especialmente após 2016, em uma crescente organicidade no interior do Estado e nos organismos da sociedade civil, passaram a exercer seu domínio através de uma agenda de reformas, que se iniciou com a da educação.
Como resultado, indicamos que, mediante a implementação das mudanças preconizadas pela REM, está em curso, desde 2017, um processo de transformações nas condições de realização do trabalho docente que vem instituindo novas formas de expropriação de direitos dos (as) professores (as) das escolas públicas estaduais, e assim constituindo um contingente de professores (as) flexíveis, sobrantes e polivalentes, condição que vem intensificando a precarização e a desprofissionalização desse trabalho.
O método de análise que orienta e organiza a pesquisa tem por base as concepções do materialismo histórico dialético e a consideração de suas principais categorias na organização do percurso geral de investigação, levada a cabo por meio de revisão bibliográfica e de pesquisa documental. Tem uma abordagem qualitativa com um recorte temporal relacionado à promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação, em 1996 até 2022, ano de implementação dos referenciais curriculares da REM, nas turmas de 1º ano.
Com esse propósito, o objetivo central da pesquisa é compreender o processo de modificações do trabalho docente nas escolas públicas estaduais a partir da implementação das mudanças preconizadas pela REM.
A tese está organizada em cinco capítulos. No primeiro, desenvolvemos uma análise acerca da categoria Trabalho, expressando a sua centralidade nas relações de produção e seu papel como categoria fundante do ser social. Ancorados no processo histórico, trouxemos à luz as formas como o trabalho se organizou e se realizou à sombra das relações sociais que o transformaram de elemento humanizador à elemento coisificante, metamorfoseando-o em mais-valor.
No segundo capítulo, desenvolvemos uma análise sobre as contradições e limites do Estado capitalista contemporâneo. Apresentamos as mudanças no ordenamento e na dinâmica do bloco histórico no intuito de apontar para as incidências
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que operaram ajustes na estrutura e na superestrutura das sociedades, as quais expressaram um alargamento das principais funções desse Estado, constituindo determinações que se relacionam ao processo de reconfiguração do trabalho no campo das políticas públicas, cujo caráter é especialmente peculiar no Estado brasileiro capitalista, dependente e periférico. Assim, conjugamos uma análise referente à ampliação das funções do estado capitalista subordinado à lógica mercantil, que se expressou em uma nova função definida como a do Estado servidor (GURGEL & JUSTEN, 2011). Apresentamos uma análise de quanto o capital, a partir do Estado servidor, veio se apropriando, de forma direta ou indireta, de parte do fundo público do Estado brasileiro, o que resultou num processo de intensificação da expropriação dos direitos dos (as) trabalhadores (as), à medida que, através dessa experiência, foram se estabelecendo novas formas de relações do trabalho vinculadas a processos de valorização do capital.
No terceiro capítulo, apresentamos uma contextualização da educação escolar na etapa do ensino médio. Apontamos os caminhos que nos ajudaram a entender o complexo percurso “ziguezagueante” da legislação brasileira referente a essa etapa de ensino. Vias que nos trouxeram de forma tortuosa até o conjunto de medidas alinhadas à Lei nº. 13.415/2017. Procuramos evidenciar também as disputas pelas quais essa legislação esteve submetida ao longo dos últimos 30 anos, apontando os embates relacionados à concepção e à função do ensino médio, e que vieram através do atual contexto da REM, adquirindo forte hegemonia de setores estranhos à educação pública.
No quarto capítulo, desenvolvemos uma análise que evidenciou o fortalecimento de forças sociais e políticas ultraconservadoras consolidadas a partir do golpe de 2016, que impuseram uma agenda de regressão aos direitos sociais e trabalhistas. Abordamos neste capítulo também a discussão teórica referente à compreensão da apropriação realizada dos conceitos de “reforma” e “contrarreforma”, percorrendo os caminhos teóricos na obra de Gramsci que o levaram a conceituar esses termos. Evidenciamos os elementos que nos impulsionaram a adotar o termo “reforma” para as modificações curriculares reunidas num conjunto de normas a partir da emissão da Lei n°. 13.415/2017, bem como o da utilização do conceito de uma “contrarreforma trabalhista” para os trabalhadores docentes, aninhada nessa reforma educacional. Da mesma forma, evidenciamos, através da identificação dos elementos
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conjunturais, a trama política que se consubstanciou mediante a organização de um novo bloco no poder (POULANTZAS, 2000), que, sob a hegemonia dos setores neoliberais e ultraconservadores, passou a determinar uma virada de chave que garantiu a implementação de medidas regressivas, inclusive na educação. Assim, apresentamos as disposições legais como expressão material da ofensiva sobre os direitos dos (as) trabalhadores (as). Analisamos a combinação dessas ações que favoreceram o desmonte progressivo e acelerado da educação pública, dos direitos sociais e trabalhistas, correlacionando-a às possíveis modificações e implicações no trabalho docente.
No último capítulo, apresentamos o quadro de mudanças no trabalho docente referentes às alterações normatizadas pela REM, que estão em curso. Com base na análise das matrizes curriculares e dos documentos de referência curricular de alguns estados, indicamos os principais aspectos que identificamos como promotores da intensificação da precarização e desprofissionalização desse trabalho. Evidenciamos o contexto em que a reforma foi elaborada e executada, correlacionando o processo de hegemonia das frações burguesas, que no intuito de confirmarem os sentidos e finalidades do ensino médio, dirigiram o processo de implementação da reforma de acordo com seus interesses de classe. Apontamos, também, as várias modificações que desenvolverão a instabilidade como marca para a realização do trabalho docente, a partir da modificação da carga horária referente à formação e lotação, da subtração dos conteúdos programáticos da maior parte das disciplinas, da modificação da grade curricular em substituição aos componentes das áreas de conhecimento, da imposição da polivalência em substituição do conhecimento e domínio da cátedra, e da utilização do critério do notório saber para admissão de professores. Por último, relacionamos os processos de modificação referentes à deterioração da estabilidade dos docentes do ensino médio das escolas públicas, tanto no que tange à intensificação da precarização do seu trabalho como no que tange à sua desprofissionalização.
Assim, confirmamos a principal hipótese e indicamos nossas conclusões relacionadas às condições de adesão e de resistência identificadas no percurso da pesquisa, afirmando que a investigação teve como base o compromisso com as demandas da classe trabalhadora em geral e dos (as) trabalhadores (as) docentes especificamente. Assim, procuramos problematizar os diversos aspectos da REM no
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intuito de apontar suas contradições referentes não apenas à educação de qualidade socialmente referenciada que defendemos, mas principalmente em relação aos ataques e retrocessos que a reforma representa para o trabalho docente nas escolas públicas.
ANTUNES, R. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. 1ª ed. São Paulo: Boitempo, 2018.
GURGEL, C.; JUSTEN, A. Marxismo e Políticas Públicas. In: Anais do 35º Encontro anual da ANPOCS, de 24 a 28 de outubro de 2011, em Caxambu/MG.
POULANTZAS, N. O Estado, o poder e o socialismo. 4ª ed. Rio de Janeiro: Graal, 2000.
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O presente texto busca efetivar uma síntese analítica, a partir dos diálogos e debates dos 31 grupos de pesquisa presentes no Encontro Nacional do V Intercritica (Intercâmbio Nacional dos Núcleos de Pesquisa em Trabalho e Educação) na cidade do Rio de Janeiro, nos dias 10 e 11 de outubro de 2022. Este V Encontro efetivou-se em sua concepção e acompanhamento por uma equipe de pesquisadores sob a coordenação do GT09-Trabalho e Educação da ANPED – Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação, cabendo a organização e execução local ao Grupo de Pesquisa Trabalho, História, Educação e Saúde de (THESE). Grupo formado por pesquisadores e estudantes de pós- graduação da Universidade Federal Fluminense (UFF), da Universidade do Estado
1 Este texto documenta a realização do V Intercâmbio Nacional dos Núcleos de Pesquisa em Trabalho e Educação – INTERCRÍTICA, promovido pelo GT 09 – Trabalho e Educação, da ANPEd (Rio de Janeiro, 10 e 11/10/2022), como uma síntese de um amplo processo que mobiliza esse GT. A elaboração do texto foi assumida pela coordenação do Grupo These – Grupo de Projetos Integrados de Pesquisa em Trabalho, História, Educação e Saúde UFF, Uerj, EPSJV/Fiocruz, atualmente exercida por Maria Ciavatta e Jacqueline Botelho (UFF); Gaudêncio Frigotto e Eveline Algebaile (Uerj); e Marise Ramos e Gregório Albuquerque (EPSJV/Fiocruz).
do Rio de Janeiro (UERJ) e da Escola Politécnica Joaquim Venâncio da Fundação Oswaldo Cruz (EPSJV/FIOCRUZ).
Entendemos que o V Intercrítica, por ter ocorrido num duplo evento, que demarcara nossa história, assume um sentido muito peculiar. Com efeito, o adiamento de dois anos de sua realização deveu-se à tragédia da Pandemia Covi- 19, que ceifou aproximadamente, até o presente, 800 mil vidas, um terço delas evitáveis não fosse a opção pela necropolítica do insano presidente Jair Messias Bolsonaro. O outro fato histórico dramático é que este Encontro Nacional do GF09 da ANPED deu-se entre o primeiro e segundo turnos de uma eleição que definiria a interrupção ou continuidade de um projeto de extrema direita, pautado por concepções e práticas fascistas e, com isto a retomada ou não de nossa frágil democracia.
A Carta do Rio do V Intercrítica capta o significado desta disputa. Os acampamentos antidemocráticos formados frente aos quartéis militares e estimulados pelo presidente derrotado e o seu núcleo ideológico, que colimaram com os atos terroristas de oito de janeiro, mostram a gravidade do que seria um segundo mandato do insano Presidente e a grandeza, ao mesmo tempo, da vitória que o povo brasileiro construiu sob a ameaça, a violência, a mentira e uso de meios ilícitos de um governo que queria ser reeleito de qualquer maneira e não reconhecer a derrota.
Destacamos, também, que o V Intercrítica, por sua abrangência e representatividade nacional, sua dinâmica de preparação e organização e pela natureza das análises e debates, engendra a síntese de um processo de aprofundamento no campo do materialismo histórico dialético e, consequentemente, nas exigências, com base neste método, da práxis no âmbito da formação de um novo ser humano e da luta política para a construção de uma nova sociedade sem expropriação e exploração de classe. Esta peculiaridade levou o grupo de coordenação a propor um texto que engendrasse uma visão de conjunto e uma análise, especialmente dos relatórios sínteses dos debates efetivados nos seis grupos de discussão e dos materiais enviados previamente à coordenação do encontro. Mas, antecedendo este ponto central, também, optou por uma dupla recuperação histórica: a razão do nome de Intercrítcia dado ao
Encontro Nacional do GT Trabalho e Educação e uma breve síntese do contexto e ênfases temáticas dos quatro Encontros Nacionais anteriores.
Esta tarefa foi delegada à coordenação do grupo THESE, mas a versão final do texto tem a colaboração do conjunto da coordenação do V Intercrítica formada por: Doriedson Rodrigues (UFPA) e Lucas Pelissari (IFPR), respectivamente coordenador e vice coordenador do GT Trabalho e Educação da ANPED e, em ordem alfabética, por Alexandre Maia do Bom Fim (IRJ), Carmen Sylvia Vidigal Moares (USP), Filomena Lucia Glesser (IFC), Gaudêncio Frigotto (UERJ), Gregório Albuquerque (EPSJV/ FIOCRUZ), ·Maria Ciavatta (UFF), Maria Clara Bueno Ficher (UFRGS) e Marise Nogueira Ramos (EPSJV/FIOCRUZ e UERJ).
Este texto, deste modo, assim se estrutura: um item introdutório no qual se discute a gênese mediata e imediata do sentido da denominação aos Encontros Nacionais do GT 09 de Intercritica, gênese esta que se inscreve no processo de afirmação da ANPED como Associação autônoma da sociedade civil frente à tutela do Estado. Um segundo item, que aborda o contexto e a ênfases das temáticas dos Encontros Nacionais dos quatro Intercríticas anteriores. A interrupção, por 12 anos, entre o primeiro e o segundo, que coincide com os mandatos dos governos populares, impõe levantar alguns pontos de interpelação. O terceiro ponto é o central e busca expor o contexto, a ênfase temática do V Intercrítica, sua organização, programação e uma visão de conjunto das sínteses de cada um dos pontos do roteiro de discussão dos seis agrupamentos feitos para diálogo e interfaces dos participantes. Por fim, ainda neste item, se busca pontuar alguns questionamentos sobre temas sinalizados nos grupos e na discussão plenária deste encontro. Trata-se de um texto, portanto, de dupla memória: de como o passado se mantem no presente e, ao mesmo tempo, se supera dialeticamente.
Cabe destacar, inicialmente, que sobre este primeiro item há vários textos publicados sobre a ANPED e, especialmente, sobre o GT 09 – Trabalho e Educação. O que se pretende aqui é, olhando do presente este passado, captar alguns aspectos que nos permitam perceber o processo dentro do qual o V Intercrítica emergiu, se organizou e se desenvolveu.
ANPED, GT Trabalho e Educação e a gênese do Intercrítica no debate teórico e político da educação.
Compreender a gênese da organização do Intercrítica e do porquê deste nome implica situá-lo no contexto social e no debate teórico e político da área da educação, especialmente a partir do final da década de 1970, quando ANPED é criada e, dentro dela, o GT 09 - Trabalho e Educação. Uma compreensão que exige situá-lo no terreno da contradição, onde positividade e negatividade do real coexistem e não da antinomia, terreno da lógica formal e do embate discursivo.
Com efeito, como indica uma das lideranças, senão a principal liderança na organização da ANPED, Maria Julieta Costa Calazans, os debates começaram em 1975 e 1976, inicialmente com professores e estudantes do Instituto de Estudos Avançados em Educação (IESA) na Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro, professores da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Dos debates que antecedem a criação efetiva em 1978 dois aspectos merecem ser destacados. Primeiro que a ANPED nasce ainda na vigência da ditadura empresarial militar numa fase que começa perder legitimidade, resistência e contestação política organizada. Mas, paradoxalmente, a ditadura expandiu a pós-graduação criando em 1975 o primeiro Plano Nacional de Pós-Graduação (1975-1979) e,no mesmo ano, o Programa de Pós- graduação em Educação (CALAZANS. 1995, p.8).
O interesse e presença do Estado, representado então pelo Diretor da CAPES, Darci Closs, fica clara na análise de Calazans. “A ANPED era uma expectativa na CAPES no ano de 1975 quando estava em elaboração o Plano Nacional de Educação” (IBID, p.9). Isto fica patente, pois a Reunião de criação da ANPED foi realizada no IESAE/FGV no período de 14 a 16 de Março de 1978 com apoio da CAPES e presença do CNPQ, INP, FINEP e do CNRH/IPEA. Uma reunião que teve a presença de 43 pessoas, entre professores, coordenadores de pós- graduação e estudantes.
O segundo aspecto a destacar, e nisto reside a dimensão contraditória, é que a ditadura tinha fissuras internas e com a morte do Presidente Castelo Branco a mesma assumiu uma opção de linha dura, como a história nos mostra. E foi na
FGV do Rio de Janeiro que se criou, inicialmente, um Centro de Pesquisa, onde seriam acomodadas personalidades, por um curto período, como a do Ex-Ministro da Educação no governo de Castelo Branco, Raymundo Muniz de Aragão. Igualmente, para acomodar intelectuais indigestos à ditadura, mas que não teriam condição de prendê-los, como Anísio Teixeira e Durmeval Trigueiros Mendes.
Para organizar a área da pesquisa e a pós-graduação foi convidada Maria Julieta Costa Calazans que retornava do exílio, mesmos antes da Leia da Anistia de 1979.O seu exílio na França deveu-se à sua atuação nos movimentos rurais do campo no Rio Grande do Norte. Na França, fez a sua formação de pós-graduação nos temas de cooperativismo e de planejamento. Com a morte, supostamente “acidental”, de Anísio Teixeira em março de 1971, restou nos quadros do IESAE Durmeval Trigueiro, que representava o pensamento filosófico, social e educacional crítico. A maior parte dos professores era da área de Administração da FGV ou da Psicologia. Aí entra o papel da professora Maria Julieta Calazans com sua experiência política e formação no âmbito das Ciências Sociais. Com três linhas de concentração e de pesquisa (Filosofia, Psicologia e Administração) havia necessidade de novos pesquisadores. Neste contexto foram contratados, em períodos distintos, Cândido Gryzybowski, Elter Dias Maciel, Luiz Antonio Cunha, Osmar Fávero, Silvério Bahia Horta, pesquisadores e professores do campo crítico.
Esta breve indicação é fundamental para entender o embate no processo que precedeu, entre 1976 e 1978, a criação da ANPED. Este embate se deu entre uma corrente defendida por pesquisadores conservadores da psicologia e pesquisadores com formação social e política crítica. E o pêndulo, mesmo sob a “tutela” do Estado, acabou se definindo na perspectiva do campo crítico2.
O processo de autonomia da ANPED em relação ao Estado, ocorreu um ano depois (novembro de 1979 na reunião Anual da ANPED em Salvador) e o mesmo se insere, por um lado, no contexto do salto na formação teórica, por um conjunto cada vez mais amplo de professores já em exercício, mas sem o título de doutorado e, por outro, posteriormente, mediante a organização, por grande parte destes,
2A análise deste segundo aspecto, que demarca a origem da ANPED, se baseia na participação, de Gaudêncio Frigotto que, ainda como mestrando do IESAE (1974/1987), participou das reuniões prévias como estudante e, em 1978, como docente pesquisador do IESAE, participou da reunião de fundação da ANPED.
então já doutores, na organização de seminários e as Conferências Brasileiras de Educação (CBE).
Do ponto de vista do salto na formação teórica do campo educacional podemos afirmar que a criação, em 1977, da área de concentração Educação: História, política e sociedade, sob coordenação de Dermeval Saviani, dentro do Programa de Pós-Graduação em Educação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, se constitui no ponto mais avançado. Com efeito, a base teórica desta área era Marx, Engels, Gramsci e outros autores marxistas. São egressos, sobretudo, das primeiras turmas desta área do doutorado, que vão dirigir associações cientificas como ANPED, Associação Nacional de Educação (ANDE) e O Centro de Estudos e Sociedade (CEDES)
O I Seminário de Educação Brasileira, realizado em 1978 na Universidade de Campinas (UNICAMP) foi o deflagrador da criação do Centro de Estudos Educação e Sociedade (CEDES) e da Revista Educação e Sociedade em 1979 e da I Conferência Brasileira de Educação (CBE), realizada em março de 1980que seria seguida por mais cinco. Foi dentro deste processo de adensamento do pensamento crítico na educação que em 1979, na Reunião Anual da ANPED, realizada em Salvador, houve uma decisão que demarca a sua autonomia em relação ao Estado stricto Sensu.
Dermeval Saviani explicita com clareza o processo, quase imediato, de a ANPED desatrelar-se do Estado.
A criação da ANPED, com caráter predominantemente institucional, foi proposta e patrocinada pela CAPES. Desde sua origem, entretanto, começaram a ser discutido tanto o seu caráter institucional quanto a associação ser autônoma em relação ao Estado, portanto em relação à própria CAPES. Os primeiros passos da entidade se deram, já na direção da autonomia, são preservar a suas posições e o espaço de um eventual conflito com o Estado. É nesse sentido que a Assembleia Geral da ANPED, reunida em Salvador, em sua Reunião Anual, rejeitou o projeto de avaliação dos programas de pós- graduação em educação, proposto pela CAPES para ser desenvolvido mediante convênio, pela ANPED.(SAVIANI, 1986, p.45)
1.2 Os Grupos de Trabalho da ANPED e o GT 09 Trabalho e Educação e o nome de Intercrítica aos Encontros Nacionais.
Os grupos de trabalho fazem parte da estrutura institucional da ANPED e tanto a sua instituição quanto o recorte dentro da área de educação fazem parte dos debates e das decisões da associação. Somente em sua 4ª. Reunião Anual foram instituídos e assim caracterizados: “Os grupos de trabalho (GT) foram instituídos pela Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação/Anped em 1981 (4ª Reunião Anual - Belo Horizonte) como lócus de discussão e troca de opiniões sobre resultados de pesquisas realizadas; seleção de problemas relevantes; experiências metodológicas; intercâmbio de informações bibliográficas, de estudos e trabalhos realizados. (Boletim da Anped, v. 8 n.1. 1986, p.2)”. Instaurou um debate interno sobre qual seria a forma de organização dos GTs, se por áreas disciplinares, como História da Educação, Filosofia da Educação etc., ou por temas. Prevaleceu a forma mista, mas com a criação crescente de novos grupos o dominante é por temas como se pode constatar dos atuais 23 GTs.
A síntese que Dermeval Saviani efetiva, no livro Escola e democracia (1983), sobe as teorias não críticas, crítico-reprodutivistas e crítico-críticas expressa o debate teórico e epistemológico na área da educação na década de 1980. No interior dos Gts da Anped, ainda poucos neste ano de 1983, a dominância era das teorias crítico-reprodutivistas: teoria da violência simbólica, tendo como autor principal Pierre Bourdieu; teoria dos aparatos ideológicos de Estado, sustentada por Luis Althusser; e a teoria da escola dualista com obras de Baudelot e Stablet. As teorias crítico-críticas, com aportes sistemáticos em Karl Marx, Friedrich Engels, Antônio Gramsci, Paulo Manacorda começavam a se afirmar a partir de formação de novos doutores, especialmente no Programa coordenado por Dermeval Saviani na PUC/SP.
O GT 09 foi criado dentro deste contexto de debates e embates no âmbito da teoria educacional e dos movimentos das diferentes conjunturas de nossa sociedade. Chegar ao que define a ementa atualmente desse GT foi um longo processo dentro da materialidade das relações sociais capitalistas de nossa sociedade. Este processo é parte da incorporação, inicialmente de intelectuais brasileiros, em suas análises, do método materialista histórico dialético. Método que implica uma dupla superação: do idealismo, que prescinde da base material
ontológica; e do empiricismo, que toma os fenômenos na sua aparência com sendo o real.
É, também, neste processo que o GT 09 inverteu a relação de denominar- se Educação e Trabalho, por Trabalho e Educação, não como mera inversão dos termos, mas como uma exigência ontológica, epistemológica e da práxis. Cabe registrar que no contexto que o GT09 fazia sentido denominar-se de Educação e Trabalho, pois o foco do debate era qual educação interessa ao trabalho e, por isso, também, tinha forte relação com a educação popular. A inversão dos termos é parte do andar do debate no campo da educação na interface comas mudanças nos planos social e político.
O texto mais completo deste percurso até o GT 09 denominar-se Trabalho e Educação, que parte das análises não críticas, até as crítico-críticas, é de KUENZER (1991). Neste texto a autora indica que esta mudança partiu de um seminário por ela organizado no Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ) em 1986. “Desta forma, a proposta, feita pelo grupo de participantes do Encontro, de que se passe a denominar a área de Trabalho e Educação, reflete, mais do que uma diferença semântica, uma concepção teórica fundamentada em uma opção política”. (KENZER, 1991, p.93)
Várias análises foram efetivadas sobre a história do GT Trabalho e Educação. Destaco quatro, pois através delas tem-se referencias importantes de outras análises e, sobretudo, porque o nome Intercritica dos Encontros do GT fora da Reunião Anual. Os primeiros três – TREIN e CIAVATTA (2003 e 2009) e CIAVATTA (2015) – tratam do percurso histórico do GT em suas dimensões teóricas e empíricas. Trata-se de análises, como a autoras sublinham, que busca estimular o debate. O quarto texto, de CÉA e RUMMET (2015), traz um detalhado material de síntese e de análise do conjunto de minicursos e de trabalhos encomendados no GT Trabalho e Educação de 1997 a 2013.
A ementa atual do GT 09 reflete, em grande parte, os debates e embates do seu percurso histórico.
O GT Trabalho e Educação caracteriza-se como um fórum de discussão sobre as relações entre o mundo trabalho e a educação, enfocando temáticas como: trabalho na sua dimensão ontológica e nas suas formas históricas de trabalho escravo e trabalho alienado sob o capitalismo, formação profissional, formação sindical, reestruturação
produtiva, organização e gestão do trabalho, trabalho e escolaridade, trabalho e educação básica, trabalho e educação nos movimentos sociais, trabalho docente, trabalho associado, dentre outras que tomam a relação entre o trabalho e a educação como eixo de análise. Os debates se realizam a partir da produção acadêmica de pesquisadores; esta, por sua vez, tem se baseado no referencial teórico-metodológico do materialismo histórico-dialético ou em outros que dialogam ou se confrontam com este referencial. Um eixo hegemônico do GT é compromisso ético-político com a superação das formas de exploração humana geradas pela produção e pela sociabilidade do capital. Valorizam-se, ainda, contribuições analíticas orientadas para temas emergentes no contexto das transformações do último século, tais como a sociedade de consumo, a comunicação, a subjetividade, a presença da imagem, o ideário pós-moderno3
Esta breve retrospectiva nos remete a razão do nome Intercrítica. Certamente a ebulição ideológica, teórica e política que afetou radicalmente o mundo do trabalho e a educação na década de 1990é a razão implícita para esta escolha. Tratava-se de um esforço coletivo de debate ontológico, teórico, epistemológico e político que atravessava a área da educação e que demandava do GT um posicionamento. Este posicionamento passava por uma afirmação do método materialista histórico dialético frente, sobretudo, às posturas idealistas, empiricistas e pós-modernas. Todavia, também, às tensões com as teorias crítico- reprodutivistas e no interior do próprio marxismo. Certamente, aqui se aplicaria a metáfora da curvatura da vara de Lenin – quando a vara está torta, ela fica curva de um lado e se você quiser endireitá-la, não basta colocá-la na posição correta. É preciso curvá-la para o lado oposto” –trazida no debate educacional por Dermeval Saviani (2003). O processo do I ao V Intercrítica nos permitirá perceber se a “vara” está no ponto adequado e, do mesmo modo, um melhor entendimento e utilização do materialismo histórico dialético nos objetos específicos de pesquisa no diálogo com outros referenciais e diferentes metodologias.
O contexto do debate teórico, epistemológico e político dentro do qual emergiu o primeiro Intercrítica explicita de forma mais ampla o porquê deste nome aos Encontros Nacionais do GT 09.
3 https://www.anped.org.br/grupos-de-trabalho/gt09-trabalho-e-educa%C3%A7%C3%A3o
Acessado em 18.01.2023
Parece-nos importante explicitar, ainda que de forma muito sucinta, o contexto e a ênfase temática do I, II, III e IV Intercrítica que precederam o V o qual se realizou de 10 a 12 de outubro de 2022, na cidade do Rio de Janeiro. Esta decisão, como se indicou acima, foi tomada pela equipe coordenadora do V Intercrítica, por diferentes razões. Entre elas destacamos: o intervalo de 12 anos entre o I e o II Intercrítica; a interrupção da decisão de realizar este Encontro Nacional de dois em dois anos, causada pela pandemia COVID19; e, para recuperar, na medida do possível, uma visão de conjunto. Um esforço de nos olharmos pelo retrovisor da nossa história.
I Intercrítica
A ideia de organizar o I Intercrítica surgiu a partir das análises coletivas realizadas no Núcleo de Estudos, Documentação e Dados sobre Trabalho e Educação (NEDDATE) vinculados ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF) do qual participavam Maria Ciavatta, Eunice Trein, Sonia Rummert, Gaudêncio Frigotto, José Rodrigues, estudantes de doutorado, mestrado e de graduação e ex mestrandos.
Pelo que demonstra a análise acima referida, de Céa e Rummert, sobre os Trabalhos Encomendados e Minicursos do GT 09 nas Reuniões Anuais da ANPED, destaca-se a participação de vários membros do NEDDATE no período que precedeu a realização do I Intercrítica. O teor dos temas destas duas atividades do GT Trabalho e Educação refletem o foco dos debates no plano teórico, epistemológico, metodológico e político social que precedeu e influenciou este primeiro Encontro Nacional fora da Reunião Anual da ANPED.
Em 1997, o tema encomendado, a ser desenvolvido por Gaudêncio Frigotto, foi: Trabalho, crise do trabalho assalariado e do desenvolvimento: historicidade do discurso. Novamente, em 2000, o Trabalho Encomendado para o mesmo professor foi: Trabalho e Educação: desafios teóricos e problemas conceituais e metodológicos. Como se depreende do título o GT estava focado no debate e embate teórico. Em 2002, o Trabalho Encomendado foi para Eunice Trein e Maria Ciavatta com o tema: Trabalho e educação – uma análise para debate. Os
Minicursos tiveram início em 2000, sendo que o de 2001 foi ministrado por José dos Santos Rodrigues com o tema: O pensamento pedagógico empresarial no Brasil: do industrialismo à competitividade. No ano de 2002 o tema do Minicuso foi: A metodologia da pesquisa em educação e o uso de imagens. Foi desenvolvido por Maria Ciavatta, Nilda Alves e Gustavo Fichman.
Vale registrar que a segunda metade da década de 1980 e a década de 1990 foram marcadas por profundas mudanças na relação capital e trabalho sob a ideologia do neoliberalismo e do pós-modernismo, este último que expressa, como analisa Fredric Jameson (1997), a lógica cultural da fragmentação do capitalismo tardio. Diante da investida mercantil sobre a educação, a ANPED, em sua 24ª Reunião anual, elegeu como tema da conferência de abertura, proferida por Francisco de Oliveira (2001): Intelectuais, conhecimento e o espaço público. Neste texto o autor advertia sobre o risco de a produção do conhecimento ser balizada pelo metro da mercadoria.
Foi dentro deste contexto de debate teórico e no ano de eleições em que foi vitorioso Luiz Inácio Lula da Silva para seu primeiro mandato como Presidente da República que em 2002, sob a coordenação do NEDDATE, realizou-se na Universidade Federal Fluminense (UFF). Além do NEDDATE, que foi o primeiro grupo organizado de Trabalho e Educação em 1985, estavam presentes grupos de pesquisa em trabalho e educação organizados posteriormente, outros emergentes, além da coordenação do GT 09. Como pontos de diálogo cada grupo apresentou o percurso histórico, as linhas de pesquisa e atuação, seus vínculos institucionais e associações interinstitucionais e seus referenciais teórico-metodológicos4.
Pautando-nos no relatório do Intercrítica I, ocorrido na UFF, verifica-se que, em 2002, a preocupação dos grupos voltava-se às teses sobre a crise da centralidade do trabalho ou fim do trabalho e o surgimento de uma suposta “sociedade do conhecimento”. Portanto, a necessidade de reafirmar a importância de um referencial marxista no desmonte de tais teses revelou-se fundamental. É sintomático que na síntese do referido relatório, dos três desafios a serem enfrentados pelos pesquisadores, um referia-se à necessidade de renovação e a ampliação dos quadros de pesquisadores no campo; e dois diziam respeito à posição teórico-metodológica marxista no GT09, ou seja, caberia a este enfrentar:
4 .https://www.anped.org.br/content/iv-intercritica-intercambio-nacional-dos-nucleos-de-pesquisa- em-trabalho-e-educacao. Acesso em 18.01.2023
A pressão externa exercida por professores e pesquisadores de outros campos, por vezes de forma não muito legítima, sobre coordenações e alunos de graduação, mestrado e/ou doutorado nos programas de pós-graduação, no sentido de isolar os professores e pesquisadores de T&E que adotam o referencial marxista;
A pressão interna exercida sobre professores e pesquisadores do próprio campo no sentido de uma flexibilização das matrizes e referenciais teóricos marxistas e da incorporação de novos referenciais (REIS; LOBO, 2003, p.7, apud LIMA FILHO, SHIROMA e SILVA, 2019)5.
Os dois desafios, externos e internos de pressão sobre o GT Trabalho e Educação da ANPED, indicam que a ênfase dos debates foi de natureza teórica e epistemológica e, certamente, refletiam as análises feitas no Programa de Pós Graduação em Educação da UFF onde se vinculava o NEDDATE. Com efeito, Teoria I – Seminários Avançados (obrigatórios para os doutorandos) eram ministrados por Gaudêncio Frigotto e Maria Ciavatta6. O foco dos Seminários Avançados era justamente, “um acerto de contas,” desde o materialismo histórico dialético, com as visões idealistas, positivistas empiricistas e com o pós- modernismo. Um contexto claramente de “curvatura da vara”. Os Seminários Avançados reservavam períodos para a participação de pesquisadores convidados da área das ciências humanas e sociais. O livro “Teoria e educação no labirinto do capital” (FRIGOTTO e CIAVATTA, 1989) traz de forma explicita o teor do foco dos debates neste período histórico. Na primeira parte – A crise do capital e a crise ético-política: globalização e exclusão social – com textos de Francisco de Oliveira e de Gaudêncio Frigotto; a segunda parte – A crise da Razão e a pós-modernidade: cultura, história e ideologia - com textos de Ciro Flamarion Cardoso, Leandro Konder, Virginia Fontes, Maria Ciavatta, Munis Sodré, Sonia Kramer e Luis Antônio Baptista.
A eleição de Luiz Inácio Lula da Silva em 2002 carregava um imenso entusiasmo para um novo tempo e que Francisco de Oliveira destacou como a possibilidade de, pela quarta vez, se tentar fundar a nação, agora com um marco de não retorno. Mas Oliveira ponderava que para isto não bastava fazer um governo
5 .https://periodicos.uff.br/trabalhonecessario/article/view/28307/25297 Acessado em 19.01.2023
6 . Ambos, fundadores do Núcleo de Estudos, Documentação e Dados sobre Trabalho e Educação (NEDDATE), por vários anos os coordenadores.
desenvolvimentista, mas era necessário civilizar a dominação. “É tarefa das classes dominadas civilizarem a dominação, o que as elites brasileiras foram incapazes de fazer. O que se exige do novo governo é de uma radicalidade que está muito além de simplesmente fazer um governo desenvolvimentista (OLIVEIRA, 2003, p.3)”
Uma questão que parece importante ser levantada e discutida é o que poderia explicar o fato de que somente doze anos depois, em 2014, se retomou e foi realizado o II Intercrítica. No texto acima referido, Lima Filho, Shiroma e Da Silva, com base no relatório de REIS e LOBO (2003), destacam como possível explicação:“uma análise dos Relatórios do GT evidencia que houve várias tentativas de organizar o II Intercrítica. As dificuldades apontadas foram: falta de financiamento e dificuldades de tempo para planejar o evento durante a Reunião da Anped (ANPED, 2004; 2005; 2007; 2012; 2013).
Não descartando as razões acima, mas olhando a história dos 13 anos de governos do Partido dos Trabalhadores (PT), talvez se pudesse agregar uma questão de natureza política. Em que medida as disputas que se efetivaram no âmbito interno do PT e que motivou a criação do PSOL e, da mesma forma, os embates no interior do sindicalismo,que levou à criação do CONLUTAS, teriam influenciado o campo científico para este intervalo de tempo?
II Intercrítica
A questão acima parece fazer algum sentido se considerarmos que o II Intercrítica, ocorreu justamente quando os movimentos de rua explicitavam uma agenda de desestabilização do Governo Dilma Rousseff. Movimentos que objetivavam, ao fim, o impeachment da Presidenta que ocorreu em agosto de 2016. No campo da Educação, especialmente por alguns grupos de esquerda, postulava- se “fora todos”. Como lembrava, à época, novamente Francisco de Oliveira, iríamos demorar muito tempo para decifrar a natureza destes movimentos. O “fora todos” certamente expressava o não entendimento do que de fato estava ocorrendo. O impeachment da presidenta Dilma Rousseff – a história o demonstra – não resultou num avanço, mas sim numa regressão sem precedentes em todas as esferas da vida brasileira.
Nesta segunda edição, o Intercrítica aconteceu nas dependências da Universidade Federal do Pará (UFPA), no período de 26 a 28 de agosto de 2014, organizado pelo GEPTE, contando com a colaboração dos grupos de pesquisa na área de Trabalho e Educação de diferentes instituições brasileiras de ensino superior e/ou de pesquisa, tendo como tema geral: “Por uma (nova?) pauta para a Pesquisa em Trabalho e Educação no Brasil”.
O tema geral no seu desdobramento traz dimensões de memória e sinalizações para novas pautas. O ponto de partida foi o artigo de Trein e Ciavatta (2003) – sobre “O percurso teórico e empírico do GT Trabalho e Educação: Uma Análise para debate, no qual destacam como temas aglutinadores:
Trabalho e educação – teoria e história: o trabalho como princípio educativo; a evolução histórica do conceito de trabalho; a relação trabalho e educação e sua reconstrução histórica. b) Trabalho e educação básica: o trabalho e a continuidade/descontinuidade da escolarização do trabalhador; o mundo do trabalho, a escola e a formação científico- tecnológica do trabalhador. c) Profissionalização e trabalho: a análise histórica das políticas de profissionalização definidas pelo Estado; trabalho, conhecimento e cidadania para a emancipação do trabalhador. d) Educação do trabalhador nas relações sociais de produção: reestruturação produtiva, apropriação do conhecimento nos processos produtivos; a organização da produção e suas propostas pedagógicas; a escola, o trabalho, a sociedade e a construção da hegemonia.
e) Trabalho e educação nos movimentos sociais: a construção de identidades de diferentes categorias de trabalhadores; demandas de conhecimentos científico-tecnológicos dos movimentos sociais com base na produção; a ação pedagógica nas formas cooperativistas de organização dos trabalhadores. (TREIN e CIVATTA, 2003)
Sob esta memória e com ênfase em novas pautas, além da conferência de Abertura do prof. José Barta-Moura (Universidade de Lisboa) foram organizadas cinco mesas, sendo a última um debate sobre obras referencias de autores do GT Trabalho e Educação cuja primeira edição completava três décadas.
Mesa 01: As tendências das pesquisas em trabalho e educação no Brasil frente à crise do capital; Mesa 02: Atividade de apresentação das pesquisas em andamento nos grupos de pesquisa e discussão; Mesa 03: Trabalho e educação como pauta do GT trabalho e educação; Mesa 04: Culturas do trabalho, movimentos sociais e produção de saberes; Mesa 05: Atividade de apresentação das pesquisas em andamento nos
grupos de pesquisa e discussão; Mesa 6: Três décadas de produção na área de trabalho e educação no Brasil: que lições ficaram?7
Vale destacar que a mesa 04 – Cultura do trabalho, movimentos sociais e produção de saberes, se constituiu em nova pauta de pesquisa dentro do GT 09 e que no presente ganha amplo espaço e relevância no debate educacional e social. Não por acaso ela emerge no âmbito do GEPTE, mas sim pela materialidade da realidade social, econômica e cultural dos povos amazônicos, espaço onde se desenvolvem os trabalhos de pesquisa dos integrantes do grupo, em diálogo com outros grupos nacionais.
III Intercrítica
A realização do III Intercrítica efetivou-se na Universidade Tecnológica do Paraná no período de 28 a 30 de Setembro 2016 sob a coordenação do Grupo de Estudos e Pesquisas em Trabalho e Tecnologia do PPG em Tecnologia (GETET/PPGTE da UTFPR). O tema geral– Formação dos trabalhadores e luta de classes – claramente reflete a natureza dos movimentos de rua que colimaram com o Golpe de Estado efetivado um mês antes com o impeachment da Presidente Dilma Rousseff. O texto de Lima Filho, Shiroma e Da Silva, acima citado, sintetiza a ênfase dos debates.
Além das diversas conferências, mesas-redondas e plenárias, é importante destacar que no III Intercrítica foram lançadas 23 obras e apresentados 102 pôsteres. Porém, o desafio maior estava na necessária e inadiável análise de uma complexa conjuntura política, econômica e social, cujo desfecho imediato foi o golpe parlamentar, empresarial, midiático que levou à cassação do mandato da presidente Dilma Rousseff em 31 de agosto de 2016. Destarte, o tema deste Intercrítica “Formação e Luta de classes” parece traduzir o sentimento inquietante do conjunto de pesquisadores preocupados com a luta a ser travada, tanto no âmbito teórico-acadêmico, quanto na práxis coletiva de atuação desses professores/pesquisadores. Nesse sentido, as discussões priorizaram reflexões teóricas e metodológicas estruturadas em três eixos, a saber: a relação entre educação, trabalho e luta de classes, destacando a categoria “classe social” como fundamental na análise da conjuntura econômica, política e educacional; a interlocução do campo trabalho e educação com a teoria social marxiana, com vistas ao enfrentamento dosdesafios colocados ao campo
7 . https://getetutfpr. wordpress.com/sobre-o-evento/ Acessado 22 de janeiro de 2023
Trabalho e Educação; a discussão sobre a formação dos trabalhadores no espaço de trabalho, da moradia, na escola e nos movimentos sociais, trazendo à tona a questão da educação da classe trabalhadora.
Ao final deste III Encontro Nacional foram tiradas três importantes moções: “Moção sobre a Medida Provisória do Novo Ensino Médio: apoio ao Manifesto do Movimento Nacional em Defesa do Ensino Médio. Não ao esfacelamento do Ensino Médio”. “Moção de Repúdio às medidas de ataque perpetradas pelo atual governo federal contra os direitos sociais dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros e à soberania nacional”. “Moção de Repúdio à extinção dos cursos técnicos de nível médio do campus Curitiba da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR)”.
IV Intercrítica
Dando sequência a uma decisão tomada pelo GT 09 de realizar a cada dois anos este Encontro Nacional, de 26 a 28 de novembro de 2018 foi realizado no Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte (IFRN) o IV Intercrítica. A organização e coordenação couberam ao Núcleo de Pesquisa em Educação (NUPED), em colaboração com o Programa de Pós-Graduação em Educação Profissional (PPGEP) do IFRN.
Os temas foco de debate do III Intercrítica tinham como conjuntura o início do Golpe de Estado de 2016. O IV Intercrítica realizou-se no final da vigência do governo golpista de Michel Temer e, portanto, das contrarreformas neoliberais em sua expressão mais profunda e demolidora da esfera pública e do conjunto de direitos sociais da classe trabalhadora. No campo da educação, a aprovação da contarreforma do Ensino Médio (Lei nº 13.415/2017), liquidaria o sentido de educação básica e com ele se implantava uma formação restrita e pragmática que interdita o futuro das atuais e novas gerações filhas e filhos da classe trabalhadora para se integrarem de forma autônoma na vida social e política e no trabalho complexo.
As indicações das primeiras medidas tomados pelo governo golpista já apontavam os desafios a serem enfrentados: “assim, o GT09 sai do Intercrítica III com uma tarefa: investir na compreensão da realidade mediante o aprofundamento
do método da crítica à economia política. Seria preciso construir e/ou reforçar junto às novas gerações de pesquisadores/professores as referências necessárias para ler a complexidade dos fenômenos sociais à luz das categorias marxistas de análise”. (LIMA FILHO, SHIRROMA E DA SILVA, 2019)
Seguindo esta diretriz, que mostra o esforço de acúmulo coletivo, o tema central do IV Encontro Nacional foi: As categorias fundantes do materialismo histórico-dialético no Século XXI. No título está explicito o desafio de saturar de historicidade ou da dialeticidade do real as categorias totalidade, contradição, particularidade e mediação. E, como se pode depreender do foco das discussões, isto implica trabalhar as categorias fundantes do materialismo histórico dialético na relação com a temporalidade e espaço social dos objetos de pesquisa.
“As discussões ocorrerão tendo como referência a análise aprofundada do tema central, com o objetivo de proporcionar a reflexão sobre o estágio atual da produção sobre a temática Trabalho e Educação e estimular a continuidade do diálogo e intercâmbio entre pesquisadores e grupos de pesquisa da área e campo temático. Assim, a partir desta temática central, nas mesas serão aprofundadas as discussões relativas às relações entre luta de classes no século XXI e as questões de gênero, de raça, étnicas, geracionais e de diversidade sexual; Articulações neoliberais-neoconservadores e autoritarismo no Brasil; Lutas de classes e perspectivas sociais; Reforma do Ensino Médio. O evento é voltado para pesquisadores professores universitários, professores da educação básica e estudantes de pós-graduação e de graduação vinculados a grupos e núcleos de pesquisa que tenham por objeto de estudo temáticas vinculadas à área Trabalho e Educação. A programação terá conferência de abertura, mesas temáticas, grupos
de trabalho, exposição de pôster8
Note-se que há uma crescente ênfase sobre a utilização do método materialista histórico dialético do GT como critério de orientação geral aos Grupos de Trabalho e Educação vinculados ou que queiram se vincular ao GT 09 da ANPED, sem engessar as categorias constituintes e fundantes deste método, o que seria a sua negação prática. Esta perspectiva vai desdobrar no V Intercrítica.
8 .https://www.anped.org.br/content/iv-intercritica-intercambio-nacional-dos-nucleos-de-pesquisa-
em-trabalho-e-educacaoAcessado em 20.01.2023
V Intercrítica: organização, contexto, foco temático e análise das sínteses das discussões dos grupos.
O V Intercrítica começou sua programação dentro da periodicidade prevista de dois anos a ser realizado em 2020 na cidade de Vitória, na Universidade Federal do Espírito Santo.
O GT 09 - Trabalho e Educação - da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação (ANPEd) e o Programa de Pós-graduação em Educação (PPGE-UFES) em colaboração com o grupo de pesquisa Gestão, Trabalho e Avaliação Educacional (GETAE-LAGEBES-UFES) e com o Mestrado Profissional do IFES (PROFEPT-IFES) realiza na UFES e no IFES em 2020 o V Intercrítica com o fito de aprofundar o debate teórico sobre as categorias do materialismo histórico dialético bem como fortalecer os coletivos de pesquisa (grupos, núcleos e linhas de pesquisa de programas de pós graduação em educação) do campo Trabalho e Educação em todo país.Para transformação da realidade social, propõe o debate conceitual oferecendo contribuições de importantes intelectuais do campo das ciências humanas sobre a totalidade histórica que envolve o campo Trabalho e Educação. 9
Mesmo já com a decretação da pandemia Covi19 foram realizadas reuniões para tentar viabilizar online algumas atividades centradas sobre “A totalidade histórica que envolve o campo trabalho e educação”. Com o agravamento da pandemia, que alterou profundamente a vida profissional e familiar das pessoas, até mesmo estas atividades se inviabilizaram naquele momento. Entretanto, as políticas de concepção e de práticas nazifascistas do governo Jair Messias Bolsonaro, com a pedagogia do medo e da ameaça, sobretudo para os trabalhadores da esfera pública, tentativa de adoção do ideário do movimento “Escola sem partido” como lei, militarização das escolas, interferências na autonomia das Universidades públicas e dos Institutos Federais de Educação Ciência e Tecnologia (IFs), etc., mobilizou para inúmeros debates, com membros do GT 09 ao longo de 2020 e 2021. Um acúmulo que se fez presente na realização do V Intercrítica na cidade do Rio de Janeiro, em outubro de 2022.
Paradoxalmente, o governo Jair Messias Bolsonaro, na profunda negatividade social, científica, cultural e humanitária, como contraveneno, avivou a luta de classes. Neste contexto, o tema geral desta quinta edição do Intercritica não poderia ser outro que não explicitasse a encruzilhada dramática que apresentava
9 .https://www.anped.org.br/content/v-intercritica-encontro-nacional-do-gt-09-da-anped. Acessado
em 23.01.2023
a opção de aprofundamento do projeto nazifascista bolsonarista, ainda que com resistências; e a possibilidade de se retornar ao plano civilizatório do Estado democrático de direito, mesmo sob os limites de uma sociedade historicamente autoritária e profundamente desigual. Disto decorre o tema geral do V Intercrítica: Crise do capital, luta de classes e educação hoje: utopia ou barbárie.
Organização e desenvolvimento da programação.
A organização do V Intercrítica deu-se mediante duas instâncias articuladas: a Coordenação do GT 09 da ANPED, ampliada com representantes do GT no Comitê Científico da Associação e pareceristas ad hoc, todos pesquisadores de diferentes instituições públicas, já aqui nominados; e a Coordenação do Grupo THESE – Projetos Integrados de Pesquisa em Trabalho. História, Educação e Saúde UFF, UERJ e EPSJV/FIOCRUZ. Coube a esta última a coordenação, execução da dinâmica do encontro e a elaboração do presente texto.
Para afirmar que o Intercrítica se define pelo intercâmbio de grupos de pesquisa sobre Trabalho e Educação e, seguindo as indicações dos encontros anteriores que apontam novos recortes temáticos de pesquisa, buscou-se enviar previamente aos grupos que participariam presencialmente ou online as seguintes questões: “Qual a particularidade de pesquisa do grupo (o recorte de pesquisa na área Trabalho-educação estruturante do grupo)? Quais autores e bases teóricas de interlocução do grupo? Quais as questões empíricas e documentais do grupo? Que metodologias e procedimentos de análise o grupo utiliza dominantemente? Quais os pontos de debate no grupo que geram consensos e dissensos? Nem todos os grupos responderam antecipadamente, alguns o fizerem no encontro e outros enviaram posteriormente.
O Encontro foi organizado com uma conferência de abertura com o tema: Economia, Educação e Desenvolvimento, ministrada pelo Prof. Dr. Pedro Rossi da UNICAMP, com mediação da Profª Dra. Carmen Sylvia Vidigal Moraes (USP); e uma mesa de encerramento com o tema: Conjuntura brasileira, contrarreformas educacionais e perspectivas para a luta popular, tendo como expositor o Prof. Dr. Marcio Pochmann (UNICAMP)e como debatedor o Prof. Dr. Gaudêncio Frigotto (UERJ). A mediação foi do prof. Dr. Lucas Pelissari (IFPR). Ambas as atividades ocorreram à noite na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. As demais
atividades foram realizadas na Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio/FIOCRUZ. Na sequência da mesa de abertura desenvolveu-se o painel: O GT 09 – A produção científica das pesquisas em Trabalho-Educação como “força material”: experiências e perspectivas da práxis política, sendo expositoras: Profª. Dra. Marise Ramos. (EPSJV/FIOCRUZ e UERJ), Profª Dra. Maria Ciavatta (UFF), Profª Dra. Maria Clara Bueno Fischer (UFRGS), Profª Dra. Carmen Sylvia Vidigal Moraes (USP), Profª Dr. Lia Tiriba (UFF). O coordenador do GT, Prof. Dr. Doriedson Rodrigues (UFPA), fez a mediação.
O tempo maior, como não poderia ser diferente dada a natureza do Encontro, coube à discussão entre os grupos de pesquisa. Foram organizadas seis salas de discussão, buscando-se uma configuração de presença interestadual/interregional. A sala era composta, necessariamente, por um expositor de cada grupo de pesquisa nela alocado, um mediador, e um ou mais relatores para produzir uma síntese da discussão e expô-la, posteriormente, em sessão plenária. O relatório síntese da respectiva sala deveria contemplar os seguintes pontos: Interfaces temáticas – temas estudados com interface ou na perspectiva da relação trabalho- educação; Convergências de autores teóricos - clássicos contemporâneos e brasileiros; Interlocução com autores/escolas de pensamento para além do Materialismo Histórico; Ênfases de abordagens metodológicas dos objetos de pesquisa; e Questões em aberto teóricas e metodológicas que demandam aprofundamento.
Na plenária pode-se ter uma visão de conjunto de cada relato das seis salas e incorporar elementos do rico debate que se processou. O encerramento deste V Encontro Nacional efetivou-se no calor da disputa do segundo turno das eleições em que se confrontava a barbárie e a utopia. Uma vez que o método materialista histórico dialético compreende uma concepção ontológica, epistemológica e política, os pesquisadores presentes não poderiam deixar de expressar seu posicionamento nesse contexto, o que se fez se fez com a aprovação e divulgação da Carta do Rio (em Apêndice)
Também em apêndice está uma foto que explicita a confiança de que a vitória não seria da barbárie. Não sem embates dramáticos de todas as ordens, a utopia venceu a barbárie. Cabe-nos, agora, trabalhar sob as circunstâncias dadas
historicamente, pois a utopia não é um dado, é uma dura construção no coração da luta de classes.
Uma breve análise de conjunto das seis sínteses: acúmulo teórico, político e questões em aberto
O que se expôs nos itens anteriores representa um esforço de recuperar, com uma visão de conjunto, o que nos trouxe até aqui como ANPED, GT 09 Trabalho e Educação e o porquê de denominarmos Intercrítica os Encontros Nacionais. A maior parte do texto, como se pode depreender na sua leitura, tem como base análises já publicadas e referidas de colegas do GT. Neste item buscamos uma breve análise dos seis quadros10 construídos das sínteses dos debates dos grupos realizados no V Intercrítica, enfatizando o acúmulo teórico e político, bem como questões em aberto discutidas nos grupos e na plenária que merecem serem aprofundadas.
Optamos em manter no corpo do texto os seis quadros porque permitirão, tanto aos grupos que participaram do encontro, quanto aos demais grupos de Trabalho e Educação, terem uma visão de conjunto de cada um dos seis eixos que buscam apreender as sínteses. Uma observação geral que pode ser feita, considerando a síntese dos quatro Encontros Nacionais anteriores: três aspectos principais expressam um acúmulo. O primeiro é a emergência de novas temáticas relacionadas de forma imediata ou mediata à relação trabalho e educação. O segundo é a confluência que vem sendo construída entre os diferentes grupos, tanto na busca do aprofundamento das categorias fundantes do método materialista histórico dialético, quanto, e especialmente, no enfrentamento do desafio e da necessidade de saturá-las de historicidade na construção dos objetos de pesquisa. Finalmente, o terceiro aspecto diz respeito ao debate sobre o método materialista histórico e as metodologias e procedimentos de pesquisa relativos a fontes primárias ou secundárias.
10 Agradecemos a colaboração de Michelle Paranhos (doutoranda PPFH/Uerj) na elaboração dos quadros síntese que constam deste documento.
Interfaces temáticas – temas estudados com interface ou na perspectiva da relação trabalho-educação
Sala 1 NEAd-Educação (PUC-RJ); GTEPE/NETEC (UFJF); GPQPRTE (UFPE). | Educação; educação profissional, política educacional, qualificação profissional; movimento sindical; história da educação; Juventude e Ensino Médio; formação humana integral na perspectiva da classe; “reformas” educacionais burguesas da Educação Básica; projetos empresariais para a educação básica; formulações da classe burguesa para a formação da classe trabalhadora; intelectuais orgânicos do capital (Lemann, Itaú/Unibanco, TPE, Movimento pela Base, entre outros); direito à educação e cultura, envolvendo Comunidade, Sindicato e Mulheres |
Sala 2 JUVENTE (UERJ) GEPTE (UFPA) TMT (UFSC) | Mudanças no mundo trabalho e os processos formativos das novas gerações na escola pública; políticas públicas educacionais para jovens da classe trabalhadora; ensino médio; educação profissional; contrarreforma do ensino médio; concepções e discursos educacionais (projeto de vida e empreendedorismo); implementação dos itinerários formativos e “Ensino Médio de Tempo Integrado com ênfase no empreendedorismo aplicado ao mundo do trabalho”; novo ensino médio; ensino médio integrado; integração dos saberes; movimentos sociais; ensino superior; educação infantil; educação do campo; educação especial; educação numa comunidade quilombola; feminismo. |
Sala 3 GEPETO (UFSC);GPTEA (IFRJ); GPPE (UFAM); Grupo de Pesquisa Estado, Políticas Públicas e Educação Profissional (IFPR ); EJA Trabalhadores (UFF) | Políticas educacionais: Ensino Médio, educação profissional, EJA, formação de professores, reformas educacionais, avaliação, plataformização, financiamento da educação; Políticas de Organizações Multilaterais para a educação (do Banco Mundial, UNESCO, OCDE e BID); formas de precarização do trabalho docente; plataformização do trabalho, novos modelos de negócio, privatização da educação, punção do fundo público; implicações da pandemia covid-19 no trabalho docente; parcerias público- privadas e a ingerência do capital na escola pública; Economia criativa e empreendedorismo; limites do desenvolvimento sustentável e potencialidades da educação ambiental crítica; a privatização e oligopolização do Ensino Superior; apropriação do fundo público; sociabilidade capitalista; pedagogias críticas e revolucionárias ;Educação Ambiental e conflitos socioambientais; capital e precarização do trabalho; qualificação dos trabalhadores; conservadorismo e educação |
Sala 4 GRUPO THESE/RJ(UFF/U ERJ/FIOCRUZ); GETET/PR(UTFP R); GPTE/SP (FEUSP); GETAE (LAGEBES- UFES); KAIRÓSN/RS (UFSM); GESTOR/PE (UFPE) | Saúde; Tecnologia; EPT; Políticas Públicas; Reformas Educacionais; Currículo; Avaliação; Gestão Democrática; Trabalho Docente; Trabalho Pedagógico; Formação Docente; Ensino Médio e Integrado; EJA; Educação Popular; Movimentos Sociais e Educação dos Trabalhadores(as); e Relações de Gênero. |
Sala 5 GIPEP (UFPel e a FURG); NUPED (IFRN); NEPET (UnB). | As mudanças no mundo do trabalho e no modo de produção capitalista e as consequências para a educação; as transformações do trabalho docente; trabalho docente precarizado; educação profissional; EJA, educação básica, educação politécnica, movimentos sociais. |
Sala 6 Nedatte (UFF); GP Trabalho, Educação e Conhecimento (TEC UFRGS); GEPTE(UFMT). | História e historiografia em trabalho; a fotografia como fonte histórica; Estado, trabalho e formação humana; Educação básica; Políticas de ensino médio e educação profissional e tecnológica; EJA; políticas e movimentos de educação de jovens e adultos trabalhadores; Trabalho-educação e meio ambiente; Trabalho-educação, cultura e modos não capitalistas de produção da existência; Movimentos sociais, experiência e educação; Empresariamento da educação; Educação integral e políticas de ampliação de jornada escolar; medicina tradicional/ancestral enquanto expressão da relação trabalho- educação; interlocução entre saberes da experiência e saberes científicos em abordagens tanto de processos de educação formais como de processos de educação não-formais, são orientadas, pela valorização econômica, social e cultural dos saberes produzidos no trabalho, por seus protagonistas. |
Fonte: Organização do quadro pelo Grupo Trabalho, História, Educação e Saúde (THESE), 2023.
O quadro I traz o conjunto de interfaces temáticas apresentadas na discussão de cada uma das seis salas. Deter-nos-emos a um comentário analítico pontuando o que nos parece se manter ao longo dos anos e a emergência de novas interfaces.
Um primeiro aspecto a ser observado é uma dupla tendência, a saber: a) ampliação de Grupos de Pesquisa em Trabalho e Educação presentes com novas temáticas de pesquisa; b) as diferentes novas interfaces têm que a ver tanto com o foco de cada grupo, quanto com particularidades regionais. Assim, além das temáticas que se mantêm ao longo do tempo relativas à crise do capital e seus reflexos na exploração dos trabalhares no seu conjunto e dos trabalhadores docentes em particular, aparecem as parcerias público e privado nas concepções da educação e formação profissional sob o ideário empresarial, as contrarrerformas na educação básica, as ideologias do empreendedorismo e da pedagogia das competência; mas também os contrapontos da educação politécnica, ensino médio integrado sindicalismo, movimentos sociais, educação popular etc. A emergência de novos temas reflete, em alguma medida, o debate mais amplo nas ciências sociais e humanas atualmente.
Sem abandonar a determinação de classe, pois esta afeta de forma direta ou mediata todas as dimensões da vida, destacaríamos as interfaces com: movimentos culturais ligados a gênero; feminismo e educação; conflitos socioambientais; limites da sustentabilidade; relação entre saberes do trabalho e saber científico; saúde; tecnologia; vida e cultura quilombola; modo(s) de vida e modos de produção da existência humana; produção associada e produção de saberes com foco nos povos originários e populações ribeirinhas. Este tema, embora afetado pela ruptura metabólica entre o ser humano e a natureza, ainda preserva os elementos mais educativos e políticos para enfrentar a questão da
desigualdade, do aniquilamento das “fontes da vida, a natureza e o trabalhador” e para entender o princípio educativo do trabalho socialmente útil e necessário à vida desde a infância. A criação dos Ministérios dos Povos Indígenas e da Igualdade racial no atual governo Lula, assinala um duplo reconhecimento de uma ruptura tardia, mas necessária: a de que devemos o que somos aos colonizadores e escravocratas.
Alguns temas, embora tratados de forma mediada, talvez pudessem ser mais explorados. Citamos especificamente as interfaces com os movimentos sociais do campo, mormente o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST). Este devido à luta pela reforma agrária popular, produção de alimentos livres de venenos, questão da agroecologia e processos educativos que articulam conhecimento, formação política, trabalho socialmente útil e luta socialista. O segundo terma é a questão do trabalho escravo nas suas formas atuais e o racismo estrutural.
Convergências de autores teóricos - clássicos, contemporâneos e brasileiros
Sala 1 NEAd-Educação (PUC-RJ); GTEPE/NETEC (UFJF); | Karl Marx, Friedrich Engels, Vladimir Lênin; Antonio Gramsci, Nicos Poutantzas, Raymond Williams, Ruy Mauro Marini, Florestan Fernandes, Ricardo Antunes, Dermeval Saviani, Gaudêncio Frigotto, Giovani Alves, Lúcia Neves, Eneida Shiroma Olinda Evangelista. |
GPQPRTE (UFPE). | |
Sala 2 JUVENTE (UERJ) GEPTE (UFPA) | Karl Marx, Friedrich Engels, Antonio Gramsci, Vladmir Lenin, Mosey M Pistrak, Lev Semionovitch Vigotski, Edward Thompson, Georg Luckács etc.; Gaudêncio Frigotto, Maria Ciavatta, Marise Ramos, Dante Henrique Moura, Ramon Oliveira, Dermeval Saviani, Lucília Machado, Acácia Kuenzer, Paolo Nosella; Maria Clara Bueno Fischer e Lia Tiriba. |
TMT (UFSC) | |
Sala 3 GEPETO (UFSC); GPTEA (IFRJ) GPPE (UFAM) Grupo de Pesquisa Estado, Políticas Públicas e Educação Profissional (IFPR) EJA Trabalhadores (UFF) | Karl Marx, Vladimir Lênin, Antonio Gramsci, István Mészáros, Edward Thompson, Nicos Poulantzas, Louis Althusser, François Chesnais, Mosey M. Pistrak, Viktor N. Shulgin, Nadezhda K. Krupskaya, Virgínia Fontes, Ricardo Antunes, Rodrigo Castelo, Elaine Bhering, Rodrigo Lamosa, André Martins, Lucia Neves, Gaudêncio Frigotto, Acácia Kuenzer, Sonia Rummert, Vânia Motta, Dermeval Saviani, Armando Boito e Saes, Loureiro, Layrargues, Foster, Eunice Trein, Dercy Telles, Chico Mendes, Michel Lowy, Foladori, Guimarães. |
Sala 4 | |
GRUPO THESE/RJ (UFF/UERJ/FIOCRUZ); GETET/PR (UTFPR); GPTE/SP (FEUSP); GETAE (LAGEBES- | Karl Marx, Friedrich Engels,Antonio Gramsci; Georg Luckács; István Mészáros; Karel Kosik; Francisco de Oliveira; e Florestan Fernandes. |
UFES); KAIRÓSN/RS (UFSM); GESTOR/PE(UFPE) | |
Sala 5 GIPEP (UFPel e a FURG); NUPED (IFRN); NEPET (UnB). | Karl Marx; Friedrich Engels; Antonio Gramsci; Georg Luckács; Karel Kosik; István Mészáros;Ricardo Antunes; Luiz Carlos de Freitas; David Harvey; Gaudêncio Frigotto; Dermeval Saviani; David Harvey; Acácia Kuenzer; Celso Ferreti; Maria Ciavatta; Marise Ramos; Paolo Nosella; Giovane Alves; Osmar Fávero; Lucília Machado |
Sala 6 Nedatte (UFF); GP Trabalho, Educação e Conhecimento (TEC UFRGS); GEPTE (UFMT). | Karl Marx; Friedrich Engels; George Lukács; Karel Kosik; Antônio Gramsci; Edward Thompson; István Mészáros; Florestan Fernandes; Ricardo Antunes, Gaudêncio Frigotto, Maria Ciavatta, Dermeval Saviani; Eneida Shiroma; Olinda Evangelista; Lia Tiriba. |
Fonte: Organização do quadro pelo Grupo Trabalho, História, Educação e Saúde (THESE), 2023.
O quadro II mostra a amplitude de autores clássicos, contemporâneos internacionais e brasileiros como referências teóricas que transitam nos diferentes grupos de pesquisa, cujas ênfases estão ligadas, também, aos recortes temáticos dos grupos.
O aspecto importante a se destacar é de dupla natureza. Primeiro, o fato de todos os grupos tomarem como base os autores clássicos que fundaram o método materialista histórico dialético (Marx e Engels) e os principais autores marxistas clássicos que, em seu tempo, seguiram este método em suas análises com nuances diversas (Lenin, Gramsci, Lukács, Mèszàros, Thompson, Kosik, Althusser, Poulantzas, Harvey) e, do mesmo modo, autores marxistas brasileiros. No campo específico dos autores brasileiros, pode-se notar a crescente incorporação de novas gerações que se constituem em referência aos pesquisadores do GT 09. O livro de Eric Hobsbawm Como mudar o mundo, Marx e o marxismo (2012) sinaliza aspectos importantes nos planos tanto teórico quanto metodológico, do que escreveram Marx e Engels e os que os seguiram no campo do marxismo.
Destacamos autores importantes do campo marxista, certamente utilizados por algum grupo, mas que não foram mencionadas, a exemplo de Eric Hobsbawm, Henry Lefebrve, Fredric Jameson, Domenico Losurdo, Ellen Wood, Adam Schaff (este, com inflexões teóricas e política). Dentre autores brasileiros não mencionados, mas que certamente são referência na área Trabalho e Educação estariam: Leandro Konder, Arthur Giannotti, Carlos Nelson Coutinho, José Paulo Neto, Marcelo Badaró Mattos e Leda Paulani.
Interlocução com autores/escolas de pensamento para além do materialismo histórico
Sala 1 NEAd-Educação (PUC-RJ); GTEPE/NETEC (UFJF); GPQPRTE (UFPE). | Aníbal Quijano, Miguel Arroyo, Boaventura de Souza Santos, Pierre Bourdieu, Jessé de Souza, José Martí, Arturo Escobar. |
Sala 2 JUVENTE (UERJ); GEPTE (UFPA); TMT (UFSC). | Diante da diversidade de temas tratados e que vem ganhando espaço, foi destacada a necessidade de dialogar com autoras e autoras de outros campos teóricos, para além do materialismo histórico-dialético, necessários para a compreensão das questões relacionadas à juventude, à cultura, às infâncias, subjetividade, à educação quilombola, ampliando a perspectiva de formação humana, para além da educação escolar. Mas também para enfrentar o debate e as críticas que ganham força a partir do identitarismo, da pós-modernidade, da decolonialidade, ao conceito de classe social e à luta de classes. |
Sala 3 GEPETO (UFSC);GPTEA (IFRJ); GPPE (UFAM); Grupo de Pesquisa Estado, Políticas Públicas e Educação Profissional (IFPR); EJA Trabalhadores (UFF) | Não foi apontado pelos grupos. |
Sala 4 GRUPO THESE/RJ (UFF/UERJ/FIOCRUZ); GETET/PR (UTFPR); GPTE/SP (FEUSP); GETAE (LAGEBES- UFES); KAIRÓSN/RS (UFSM); GESTOR/PE(UFPE). | Os estudos à luz do materialismo histórico dialético se efetuam, sobretudo, pelo consenso e dissenso. Por este último, incorporam-se autores(as) que realizam estudos e pesquisas que margeiam o MHD, mas não são inerentes a ele, tais como: Pierre Bourdieu, Michel Foucaut e Chistian Laval. |
Sala 5 GIPEP (UFPel e a FURG); NUPED (IFRN); NEPET (UnB). | Miguel Arroyo; Paulo Freire; Manuel Castells; Stephen Ball, António Nóvoa; Boaventura de Souza Santos; Dalila Oliveira; Guy Standing. |
Sala 6 Nedatte (UFF); GP Trabalho, Educação e Conhecimento (TEC UFRGS); GEPTE (UFMT). | Jorge Larrosa Bondía; Chantal Medaets; Maria Betânia Barbosa Albuquerque: Catherine Walsh; Aníbal Quijano; Alberto Acosta, Alejandro Guillén García; Nancy Rosario Déleg Guazha; Yves Schwartz, Silvia Federici, Heleieth Saffioti, Paulo Freire. |
Fonte: Organização do quadro pelo Grupo Trabalho, História, Educação e Saúde (THESE), 2023
O quadro III nos traz um aspecto importante, também mais recente, sobre a interlocução com autores não marxistas, mas que têm aportes fundamentais na crítica ao sistema capitalista, ao processo de colonização, alguns mais próximos que outros ao marxismo.
Três aspectos merecem destaque nesta interface. Primeiro, que toda essa literatura, de alguma forma, faz crítica ao sistema capitalista em diferentes âmbitos
da vida humana; e neste sentido coincidem com as abordagens do método materialista histórico dialético. O que os diferenciam do marxismo é que suas críticas, como sinaliza Fredric Jameson, não alcançam a perspectiva da superação do sistema capitalista. A interface dos grupos evidencia um amplo número de autores que transitam mais num ou noutro grupo e que estimula aos demais a utilizarem em suas análises, quando for o caso.
O segundo aspecto refere-se à ausência de autores importantes, mormente no âmbito da cultura que na maioria transita no campo do marxismo, a exemplo dos filósofos da Escola de Frankfurt, dentre eles Theodor W. Adorno, Max Horkheimer, Herbert Marcuse, Jürge Habermas, Walter Benjamim, Erich Fromn. Vários destes intelectuais desta escola de pensamento, destacamos particularmente Adorno e Fromm, dialogam com a obra de Marx e Lukács.
Por fim, o terceiro elemento se constitui num desafio à luz dos fundadores do método materialista histórico dialético. Trata-se do diálogo com autores opostos ou antagônicos, buscando deles os aspectos que podem ser “incorporados por superação” ou de forma “subordinada”. Um exercício que nos mostra que, trabalhando no terreno da contradição, a pesquisa e a ciência burguesas não são pura negatividade. Isto, por um lado, pelas necessidades da competição intercapitalista e, por outro, pela vigência permanente da luta de classe.
3.2.4 Ênfases de abordagens metodológicas dos objetos de pesquisa
Sala 1 | Pesquisa documental; técnicas de observação participativa e diagnóstica, entrevistas, |
grupo focal, | |
NEAd-Educação (PUC-RJ); | |
GTEPE/NETEC (UFJF); | |
GPQPRTE (UFPE). | |
Sala 2 JUVENTE (UERJ) GEPTE (UFPA) | Pesquisa documental (análise de documentos de organismos internacionais e da política educacional brasileira, sites oficiais de instituições, empresas, movimentos da sociedade civil etc.); pesquisa de campo (observação, entrevistas, grupos focais); pesquisa teórica; participação nas lutas de classe em diversos espaços: ruas, organização de atividades na Universidade e em articulação com os movimentos sociais, formação de jovens universitários ou não. |
TMT (UFSC) | |
Sala 3 | Análise crítica do discurso; Análise de redes políticas; Análise de Conteúdo; Pesquisa participante; Pesquisa empírica; Análise documental. |
GEPETO (UFSC); GPTEA (IFRJ) GPPE (UFAM); Grupo de Pesquisa Estado, Políticas Públicas e Educação Profissional (IFPR); EJA Trabalhadores (UFF) | |
Sala 4 GRUPO THESE/RJ (UFF/UERJ/FIOCRUZ); GETET/PR (UTFPR); GPTE/SP (FEUSP); GETAE (LAGEBES- UFES); KAIRÓSN/RS (UFSM); GESTOR/PE(UFPE) | Métodos qualitativos e quantitativos de análise: pesquisa Documental; Análise de discurso; Historiografia; Etnografia; Estudo de Caso; Pesquisa-Ação; e Grupo Focal. |
Sala 5 GIPEP –UFPel e a FURG; NUPED (IFRN); NEPET(UnB) | Abordagem qualitativa e quantitativa; pesquisa de campo, a pesquisa bibliográfica, pesquisa documental, análise de conteúdo e a análise textual e discursiva; aplicação de questionários; entrevistas semiestruturadas; entrevistas em profundidade; análise documental; pesquisa bibliográfica |
Sala 6 Nedatte (UFF); GP Trabalho, Educação e Conhecimento (TEC UFRGS); GEPTE (UFMT). | Análise documental; reconstrução histórica; considerações metodológicas inspiradas na enquete operária; Pesquisas qualitativas, estudos de caso, pesquisa-ação, pesquisa participante, entrevistas semiestruturadas e estruturadas, entrevistas narrativas, encontros sobre o trabalho; análise de conteúdos |
Fonte: Organização do quadro pelo Grupo Trabalho, História, Educação e Saúde (THESE). 2023
O quadro IV, por certo, é o que nos traz mais desafios junto às questões em aberto do último quadro e que se relacionam.
Se observarmos como Marx e Engels realizavam as suas pesquisas, podemos concluir que eles se valeram de todas as fontes secundárias e algumas primárias como cartas, obras em discussão de suas fontes básicas, a economia política, a filosofia alemã e o socialismo utópico. Eles empreenderam um processo de desvelar o que estas análises mostravam e o que elas desconsideravam ou mascaravam, não por uma questão de maldade, mas devido aos limites impostos pelo ponto de vista de classe. Possivelmente, dentro deste critério, eles se valeriam de dados oriundos de todos os procedimentos de pesquisa, mas colocando-os sob o crivo da análise crítica.
Por isso, o que os constituíram fundadores da ciência da história é o seu método de análise na busca das múltiplas determinações e dos nexos que dão compreensão de como se constitui e apreende o movimento do real. Ou seja, o movimento de ascender do empírico aparente ao concreto pensado. O historiador
Eric Hobsbawm, neste sentido, nos dá uma pista primorosa ao destacar qual é a “chave” do método de Marx e Engels.
Assim, como devemos ver Karl Marx hoje? Como um pensador para toda a humanidade e não somente para parte dela? Claro que sim. Como filósofo? Como analista econômico? Como um dos pais da moderna ciência social e guia para o entendimento da história humana. Sim, porém o ponto que Attali sublinhou corretamente é a abrangência universal de seu pensamento. Não se trata de um pensamento “interdisciplinar” no sentido convencional do termo, mas integra todas as disciplinas. Como escreveu Attali “antes dele, os filósofos consideraram o homem em sua totalidade, mas ele foi o primeiro a apreender o mundo como um todo que é, ao mesmo tempo político, econômico, científico, filosófico” (HOBSBAWM, 2011, p.21)
Este, certamente, é um tema fundamental para aprofundamento no interior dos grupos de pesquisa e que pode ser pauta do VI Intercrítica.
A princípio, parece-nos caber refletir sobre especificidades, pertinências e limites do uso de técnicas e procedimentos de construção de dados quantitativos e/ou quantitativos sobre o fenômeno estudado, como levantamento estatístico a partir de banco de dados, pesquisa documental, aplicação de questionários, realização de entrevistas e grupos focais, observação participante ou não participante, inclusive de corte etnográfico, dentre outros; o tratamento desses dados, a exemplo da análise temática, de conteúdo e de discurso (considerando também a complexidade de esta estar sendo considerada, por grupos de pesquisadores, um campo de estudos); o recorte e dimensionamento do objeto, desafio, por exemplo aos estudos de caso; os estudos historiográficos; e a coerência entre tais componentes e perspectivas de pesquisa em ciências sociais com o método histórico dialético. O rigor com suas categorias – totalidade, particularidade e singularidade; historicidade; contradição; práxis – e o movimento orgânico de análise e síntese, parecem ser desafios na possibilidade dessa coerência e na superação do risco da superficialidade, do ecletismo ou do empiricismo.
Questões em aberto teóricas e metodológicas que demandam aprofundamento
Quando V – Questões para aprofundamento (teóricas e metodológicas)
Sala 1 NEAd-Educação (PUC-RJ); GTEPE/NETEC (UFJF); GPQPRTE (UFPE). | Pensar o tema da educação e desigualdade sem limitá-lo à questão de classe, mas correlacioná-lo a questões étnicas, sexuais, regionais, culturais, como importantes contribuições a serem dialeticamente consideradas. Investigar que práticas pedagógicas alternativas de formação dos jovens trabalhadores se constroem como projetos pedagogicamente eficientes e politicamente engajados, de forma a tornar a escola mais atrativa e significativa para o jovem-estudante. |
Sala 2 JUVENTE (UERJ); GEPTE (UFPA); TMT (UFSC). | Diversidade e emergência dos temas articulados à área Trabalho e Educação; categorias de análise; o desafio de discutir trabalho, educação e cultura; as transformações no mundo do trabalho (os processos de uberização, plataformização, regulação algorítmica, revolução 4.0) e suas relações com os processos formativos escolares e não escolares; “a nova morfologia da classe trabalhadora”. Destacou-se a importância de que a presença do GT9 na Anped seja uma extensão do Intercrítica, com a proposta de um trabalho encomendado ou uma seção de trabalho que tenha como objetivo revisitar as categorias centrais para pensar as temáticas emergentes do campo na atualidade. |
Sala 3 GEPETO (UFSC);GPTEA (IFRJ); GPPE (UFAM); Grupo de Pesquisa Estado, Políticas Públicas e Educação Profissional (IFPR); EJA Trabalhadores (UFF) | Questão sobre o Estado; movimentos sociais e lutas de classes no Brasil de hoje; convergências e divergências entre a luta dos trabalhadores e a luta ambiental considerando os paradigmas de desenvolvimento; aproximações entre Universidade, educação básica e movimentos sociais; as diferenças e convergências entre as correntes marxistas; relação entre temas fundamentais que possuem estatutos próprios, como os étnico-raciais, gênero e a orientações sexuais, compreendendo-os como presididos, pelos determinantes estruturais do modo de produção capitalista. |
Sala 4 GRUPO THESE/RJ (UFF/UERJ/FIOCRUZ); GETET/PR (UTFPR); GPTE/SP (FEUSP); GETAE (LAGEBES- UFES); KAIRÓSN/RS (UFSM); GESTOR/PE(UFPE). | Metodologia de Pesquisa com aporte no MHD; Interdisciplinaridade; Conceito de Tecnologia; Educação Tecnológica como sinônimo de Politecnia (Saviani); Síntese de educação geral e específica (formação omnilateral); Historicidade da denominação “EPT”; O acréscimo da Educação Tecnológica para garantir a formação integral da EP; O ensino médio integrado como expressão histórica da disputa pela politecnia no Brasil; e a Arte e cultura na formação integral – Unidade Trabalho. |
Sala 5 GIPEP (UFPel e a FURG); NUPED (IFRN); NEPET (UnB). | O crescimento do neoconservadorismo e do fascismo no ocidente; a relação do neoliberalismo com a ascensão dos regimes neoconservadores e fascistas; a crise do Estado neoliberal; o fim da globalização 1.0; o fim do mundo unipolar e a construção do mundo multipolar; as novas tecnologias educacionais. Limites e possibilidades para se avançar em direção a uma formação politécnica da classe trabalhadora na sociedade capitalista, neoliberal e periférica como a brasileira; Diferenças e aproximações conceituais entre politecnia, omnilateralidade, escola unitária, Formação humana integral. Abordagem das questões de classe, gênero e raça. |
Sala 6 Nedatte (UFF); GP Trabalho, Educação e Conhecimento (TEC UFRGS); GEPTE (UFMT). | A (in) compreensão do materialismo histórico-dialético; o diálogo com referenciais teórico- metodológicos distintos para dar conta da construção dos objetos; conhecimento do pensamento marxista latino-americano; a relevância aprofundar na reflexão do Princípio Educativo do Trabalho e seu princípio humanizante. |
Fonte: Organização do quadro pelo Grupo Trabalho, História, Educação e Saúde (THESE). 2023
O enfrentamento de questões teóricas e metodológicas em aberto é um movimento necessário já indicado pela análise do quadro anterior e implica o
entendimento da “interdisciplinaridade” no campo científico, mas não no sentido tradicional, como explicita Hobsbawm na citação anterior.
Os grupos destacam a necessidade de aprofundar a compressão do método materialista histórico dialético, de suas categorias básicas e de sua utilização no processo e pesquisa. Neste âmbito, situa-se a questão da interdisciplinaridade e dos procedimentos metodológicos de pesquisa que tratamos acima.
Uma segunda ordem de questões diz respeito a não limitar as análises da relação de educação e desigualdade à classe socia, mas “correlacioná-lo” aos temas da etnia, cultura, raça e gênero. Aqui também entra o tema da juventude da classe trabalhadora, juventude e juventudes etc. Neste particular, cabe sinalizar que a questão das classes, entendidas como a relação social historicamente construída, se constitui na categoria mais geral no plano da análise social, enquanto as questões étnicas, raciais, regionais, culturais, geracionais se constituem em particularidades. Por isto, que no caso da desigualdade racial, por exemplo, à desigualdade de classe se sobrepõe, no Brasil, o fato de ser negro, mulher negra, jovem negro. Do mesmo modo, juventude no singular só tem sentido geracional. No plano da análise social temos juventudes no plural, uma vez mais pelo recorte de classe, gênero, etnia, raça etc. Nisto incide outro aspecto apontado sobre as diferentes leituras de correntes marxistas sobre os temas acima ou outros. Ainda no plano conceitual, indica-se a necessidade de aprofundar a relação dos conceitos de educação politécnica, omnilateral, integral, escola unitária; unidade trabalho, ciência e cultura; dos conceitos de tecnologia; e educação tecnológica e politécnica, arte e cultura.
Pelo debate que envolve o conceito de trabalho como princípio educativo ou o princípio educativo do trabalho socialmente produtivo, este tema merece destaque por ser central na relação trabalho e educação. O trabalho socialmente produtivo está diretamente ligado ao campo das necessidades imperativas da reprodução da vida do ser humano como ser da natureza, de modo que, se ele não atua com suas mãos, membros e cérebro para satisfazê-las, vai fenecer ou explorar outrem. Por isso é que, desde determinada idade da infância, combatendo o trabalho explorado, é fundamental que se vá internalizando esta compreensão. Nela reside, para Marx, o gérmen da sociedade do futuro. O divisor de águas é que
o trabalho, condição de produção da vida humana material, é condição para os diferentes trabalhos ou atividades ligadas ao mundo da liberdade.
Karel Kosik elucida com clareza que é o processo histórico real que vai definir como o agir humano pode ser considerado trabalho ou não trabalho.
O trabalho é um agir humano que se move na esfera da necessidade. O homem trabalha enquanto seu agir é suscitado e determinado pela pressão da necessidade exterior, cuja consecução se chama necessidade natural ou social. Uma atividade é ou não trabalho, dependendo de que seja ou não exercida como uma necessidade natural, isto é, como um pressuposto necessário à existência. Aristóteles não trabalhava. Um professor de filosofia, porém trabalha porque as suas traduções e interpretações da “Metafísica” de Aristóteles são um emprego, isto é, uma necessidade, socialmente condicionada, de procurar os meios materiais de sustento e de existência (KOSIK, 1969, p. 187)
Finalmente, manifesta-se um conjunto de questões no âmbito político e das políticas públicas de educação que merecem aprofundamento de análise e de referências teóricas robustas enfrentá-las na perspectiva do materialismo histórico, em duas formas históricas e face aos desafios contemporâneos. São elas: Estado e classe social, movimentos sociais e políticas públicas nos diferentes níveis e modalidades de educação.
O que buscamos aqui é destacar alguns aspectos muito gerais deste percurso até o V Intercrítica. Um primeiro aspecto é que se evidencia um acúmulo teórico e político do GT trabalho Educação. Este se expressa pela compreensão das categorias fundantes do método materialista histórico como opção ontológica, epistemológica e política do GT 09 da ANPED; se expressa, ainda, na compreensão de que é possível e necessário dialogar e incorporar análises de outros referenciais críticos ou, mesmo, aspectos de análises de referenciais opostos ou antagônicos seguindo a postura de Marx e Engels.
Outro aspecto importante situa-se na crescente incorporação de grupos advindos das mais diversas regiões do país que permitiram não somente novos temas incorporados no debate como aspetos específicos da relação Trabalho e Educação. Neste particular, a região menos representada de grupos é o Centro-
Oeste. No mesmo sentido, a presença de Grupos de Pesquisa formados a partir da Rede de Educação Profissional, Científica e Tecnológica trouxe novas interfaces e novos temas. A criação de novos grupos vindos dessa rede, é muito importante, considerando o papel contraditório da tecnologia, mas sendo esta cada vez mais apropriada pelo capital contra o trabalhador.
Um ponto que foi destacado nos debates diz respeito à importância de definir o que caracteriza o GT Trabalho e Educação e a formação e inclusão de novos grupos sob estas duas categorias. A primeira condição é que todas as interfaces com novos temas e novas problemáticas partam desta relação. O que pode ser discutível é se necessariamente tem que se pautar pelo materialismo histórico dialético. Por coerência com o diálogo com outros referenciais, talvez não. Trata-se, portanto, de um tema a ser discutido e aprofundado.
Outro aspecto trazido por este percurso analítico que fizemos desde a gênese do GT 09 até o V Intercrítica, é que, de forma cada vez mais clara se tem o entendimento de não bastar produzir conhecimento crítico, mas é necessário que a práxis ou a prática sustente a motivação e a finalidade dessa produção. É neste terreno que se pode alterar a realidade social, política e cultural e lutar pela construção da sociedade socialista.
Por fim, o V Intercrítica se efetivou dentro de um clima de debate rigoroso, mas fraterno, dimensões que caracterizam a postura necessária dos que buscam construir a sociedade socialista. Um posicionamento da mesma natureza crucial, também, frente ao atual governo, cuja vitória – e a cada dia isto fica mais evidente – nos livrou de uma degradação social e humana que se escancara com o genocídio dos Yanomamis. Dar sustentação a este governo, no formato diverso das forças que o compõem, sem abrir mão da tarefa da crítica, é fundamental para que as forças nazifascistas não tenham a mínima chance de voltar ao poder do Estado.
Referências
CALAZANS, Maria Julieta Costa. ANPED – Trajetória da Pós-graduação e Pesquisa em Educação no Brasil. Documentos ANPED, Minas Gerais, 1995.
CEA, Geórgia Sobreira dos Santos e RUMMET, Sonia Maria. Trabalhos encomendados e minicursos do GT 09no período de 1997: Elementos para o debate. Revista Trabalho Necessário, ano 13, nº. 20, Rio de Janeiro, 2015, p. 22-67.
CIAVATTA, Maria. O percurso histórico do GT Trabalho e Educação – Um exercício de interpretação. Revista Trabalho Necessário. Ano 13, n 20, 2015, p. 22-50.
HOBSBAWM, Eric. Como mudar o mundo. Marx e o marxismo. São Paulo, Ed. Companhia das Letras, 2011.
JAMESON, Fredric. Pós-Modernismo - A Lógica Cultural Do Capitalismo Tardio. Rio de Janeiro, Editora Ática, 1997.
KOSIK, Karel. Dialética do concreto. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.
OLIVEIRA, Francisco de. Intelectuais, conhecimento e espaço público. Revista Brasileira de Educação, nº 18, Set/Out/Nov/Dez 2001, p.125-132.
OLIVEIRA, Francisco de. Revista reportagem, n. 41, fev.2003. Entrevista concedida a Fernando Haddad e Leda Paulani.
SAVIANI, Dermeval. As associações o Estado. Boletim da ANPED–Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação. Vol. 8, n. 3-4, S/L, 1986, p.43-46.
SAVIANI, Dermeval. Escola e Democracia. Campinas, Autores Associados, 1983, 1ª Ed TREIN, Eunice; CIAVATTA, Maria. A historicidade do percurso do GT Trabalho e Educação: uma análise para debate. Trabalho, Educação e Saúde, v. 7, suplemento, 2009,
p. 15-49.
TREIN, Eunice; CIAVATTA, Maria. O percurso teórico e empírico do GT Trabalho e Educação: uma análise para debate. Revista Brasileira de Educação, n. 24, set./dez. 2003,
p. 140-164.
V.21, nº 44, 2023 (janeiro-abril) ISSN: 1808-799 X
Lucas Barbosa Pelissari2 Doriedson Socorro Rodrigues3
Em geral, comunidades de pesquisadores são vistas pela sociedade como grupos dissociados dos grandes problemas do povo. Mesmo quando os cientistas têm como preocupações questões sociais, como no caso de sociólogos, educadores ou cientistas políticos, o senso comum interpreta as ações desses grupos com alguma desconfiança. Afinal, o que as grandes discussões acadêmicas, infalíveis, têm a ver com o sofrimento causado pela exploração do trabalho, pela desigualdade ou pelas opressões? Como essas reflexões podem se relacionar com as pessoas comuns, já que são acessíveis apenas àqueles que “sabem” fazer ciência? Para essa visão corrente, produto de uma espécie cientificista de ideologia, ciência é uma coisa e sociedade é outra.
Por outro lado, a ascensão recente de perspectivas políticas de extrema direita em todo o mundo traz consigo um sustentáculo filosófico: a negação da ciência. O negacionismo atual é, antes de tudo, uma estratégia política. Defendendo a purificação de relações cotidianas, desde as familiares até as que são base para a constituição de uma nação, essa visão propõe a substituição de consensos científicos
1 Artigo recebido em 06/03/2023. Aprovado pelos editores em 20/03/2023. Publicado em 13/04/2023. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v21i44.57652.
2 Doutor em Políticas Públicas e Formação Humana pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) - Brasil. Professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), São Paulo - Brasil.
E-mail: lucasbp@unicamp.br. Lattes: http://lattes.cnpq.br/8723394397607851. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3659-5424.
3 Doutor em Educação pela Universidade Federal do Pará (UFPA), Pará - Brasil. Professor Associado da Universidade Federal do Pará (UFPA). E-mail: doriedson@ufpa.br.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/1127076028303549. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5120-2484.
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por teses sem lastro na realidade (CAVALCANTE, 2021). Nesse expediente, o negacionismo se afirma, assim como o cientificismo, como instrumento ideológico, ainda que aparentemente localizado no polo oposto.
A conjuntura brasileira mais recente é uma expressão bastante ilustrativa dessa realidade. As estratégias acionadas pelo movimento neofascista que se fortalece no Brasil a partir de 2016 (BUGIATO, 2019) não se restringiram à defesa das teses terraplanistas ou antiaquecimento global. Foram além, traduzindo-se em políticas públicas de saúde durante a pandemia de covid-19 e defendendo a ideia de que a vacinação é um método ineficaz para o combate à proliferação da doença. O campo progressista, de outro lado, se une na defesa da legitimidade da ciência, buscando diminuir os distanciamentos entre sociedade e universidade em uma corrida por amenizar os efeitos nefastos da necropolítica bolsonarista. Eis uma manifestação dinâmica da luta de classes no Brasil, tal como se desenvolveu entre 2020 e 2022.
Qual o significado de um encontro de pesquisadores em educação em um contexto como esse? Haveria, às vésperas de um processo eleitoral nacional que oporia o neofascismo a uma frente democrática, algum sentido em reunir educadores para socializar resultados de investigações e discutir possibilidades metodológicas de pesquisa?
Pensamos que o texto “O V Intercrítica: uma síntese possível do acúmulo teórico e político”, elaborado por pesquisadores do Grupo THESE – Projetos Integrados de Pesquisas sobre Trabalho, História, Educação e Saúde, ajuda a responder a essas questões, situando o processo de construção do V Intercrítica em uma materialidade histórica muito bem definida. Mais do que isso, compreendemos que o próprio sentido de um texto de memória deve ser o de demarcar com as duas ideologias expostas anteriormente. Se, de um lado, os participantes do V Intercrítica combateram o negacionismo, de outro, desenvolveram suas reflexões a partir do compromisso social com a produção científica, buscando caminhos e alternativas aos próprios desafios apresentados pelo momento histórico.
Nessa perspectiva, entendemos, a partir de Gramsci e interpretando o texto em questão, que o V Intercrítica configurou-se como expressão de uma guerra de posição. Como nos ensina o dirigente italiano, “A luta política é muitíssimo mais complexa” (GRAMSCI, 1988, p. 68) e exige a construção de táticas de enfrentamento que permitam analisar a realidade a partir de nossos objetos de pesquisa. Ajudando-
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nos a compreender esse cenário, o texto tem, pelo menos, três significados fundamentais para a trajetória do Grupo de Trabalho nº 09 – Trabalho e Educação, da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPED): teórico- investigativo, político e histórico.
A socialização dos trabalhos dos 31 grupos de pesquisa presentes no evento de 2022, cotejando perspectivas teórico-metodológicas e resultados de análises concretas, operou como síntese importante da contribuição do GT para o campo educacional brasileiro. A reivindicação da pluralidade de ideias correspondeu à defesa da democracia pela qual o evento se posicionou. Ao mesmo tempo, a afirmação da unidade em torno do materialismo histórico-dialético e do compromisso com um projeto de sociedade na ótica dos trabalhadores permitiu retomar elementos da gênese do campo Trabalho e Educação no Brasil. Eis o significado teórico- investigativo do texto de memória.
O documento “O V Intercrítica: uma síntese possível do acúmulo teórico e político”, publicado na seção “Memória e Documentos” da Revista Trabalho Necessário – TN 44, também revela com nitidez a perspectiva antidogmática que permeou o evento. É fundamental o destaque que dá à interlocução do V Intercrítica com instituições, movimentos sociais, entidades de classe e coletivos de trabalhadores, quer do campo como da cidade, considerando diferentes temáticas e as analisando a partir do marxismo. O texto evidencia, assim, que se assumiu um posicionamento no bojo da disputa em questão, construindo e movendo ações contra o projeto de barbárie em intensa ação no país.
Foram expostos elementos de pesquisa e projetos de militância para a formação humana integral e a necessidade da guerra de posição contra os movimentos belicosos presentes nas narrativas desenvolvidas pelo governo que se apresentava, pela segunda vez na história, como candidato à eleição presidencial que ocorreria dali duas semanas. O texto apresenta trechos instigantes, que inclusive nos permitem olhar em perspectiva para aqueles dias de 2022, à luz de acontecimentos atuais:
[...] o V Intercrítica se efetivou dentro de um clima de debate rigoroso, mas fraterno, dimensões que caracterizam a postura necessária dos que buscam construir a sociedade socialista. Um posicionamento da mesma natureza crucial, também, frente ao atual governo, cuja vitória – e a cada dia isto fica mais evidente – nos livrou de uma degradação
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social e humana que se escancara com o genocídio dos Yanomamis. (O V Intercrítica: uma síntese possível do acúmulo teórico e político, p. 28).
Na conjuntura vivida até aquele outubro de 2022, com cortes de recursos públicos para as universidades e a educação de um modo geral, com contrarreformas que negavam direitos aos resultados do trabalho humano, quer na educação como na saúde, o encontro presencial do V Intercrítica se constituía – e se constitui – como necessidade para nossas lutas e utopias. A memória do evento evidencia como o processo moveu companheiros e companheiras do Grupo These em prol de recursos, com o apoio intenso da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), com sua Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, além da mobilização de projetos de pesquisa e pesquisadores de diferentes territórios do país. Destaca-se, nesse contexto, o simbolismo da ocorrência de um evento dessa natureza em duas instituições – UERJ e Fiocruz – que tanto contribuíram e contribuem com a diminuição da desigualdade, a garantia de vida digna e o aumento do nível de consciência de trabalhadores do Brasil inteiro. São instituições sínteses da luta popular por uma sociedade mais justa.
Naquela conjuntura, o V Intercrítica reuniu mais de duzentos profissionais, envolvidos(as) com temáticas diversas de pesquisa, como tão bem expressa o significado político do texto “O V Intercrítica: uma síntese possível do acúmulo teórico e político”. Ao identificar uma dupla tendência no movimento histórico da produção do GT09, os autores reafirmam a diversidade de temáticas situando-a politicamente nos enfrentamentos que os próprios recortes de pesquisa indicam.
Um primeiro aspecto a ser observado é uma dupla tendência, a saber:
a) ampliação de Grupos de Pesquisa em Trabalho e Educação presentes com novas temáticas de pesquisa; b) as diferentes novas interfaces têm que a ver tanto com o foco de cada grupo, quanto com particularidades regionais. Assim, além das temáticas que se mantêm ao longo do tempo relativas à crise do capital e seus reflexos na exploração dos trabalhadores no seu conjunto e dos trabalhadores docentes em particular, aparecem as parcerias público e privado nas concepções da educação e formação profissional sob o ideário empresarial, as contrarreformas na educação básica, as ideologias do empreendedorismo e da pedagogia das competência; mas também os contrapontos da educação politécnica, ensino médio integrado sindicalismo, movimentos sociais, educação popular etc. A emergência de novos temas reflete, em alguma medida, o debate mais amplo nas ciências sociais e humanas atualmente. (O V Intercrítica: uma síntese possível do acúmulo teórico e político, p. 20).
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Como se observa, o texto acaba por revelar sua desconfiança com a ideologia cientificista, advogada de uma ciência neutra e apartada da sociedade.
A memória que aqui comentamos tem, em terceiro lugar, seu significado histórico. O V Intercrítica resultou também da reorganização do banco de e-mails de pesquisadores e pesquisadoras do GT09, permitindo-nos o escutar-ler, socializando informações, integrando-nos. Resultou, mais ainda, da perspectiva teórica assumida em nossos processos investigativos, que pressupõe analisar as contradições, estabelecer mediações e mobilizar-se em prol da transformação da realidade social em oposição à ordem estabelecida, como bem destacado no trecho seguinte:
Outro aspecto trazido por este percurso analítico que fizemos desde a gênese do GT 09 até o V Intercrítica, é que, de forma cada vez mais clara se tem o entendimento de não bastar produzir conhecimento crítico, mas é necessário que a práxis ou a prática sustente a motivação e a finalidade dessa produção. É neste terreno que se pode alterar a realidade social, política e cultural e lutar pela construção da sociedade socialista. (O V Intercrítica: Uma síntese possível do acúmulo teórico e político, p. 28, grifo nosso).
Durante dois dias, no Rio de Janeiro, estivemos em tensão, não paralisados, mas em movimento contra o neofascismo. Exigimo-nos, atualmente, a vigilância e a luta para, mantendo-se a perspectiva crítica e propositiva, construir in processos condições “[...] para que as forças nazifascistas não tenham a mínima chance de voltar ao poder do Estado”, (O V Intercrítica: uma síntese possível do acúmulo teórico e político, p. 28).
Depois do intenso contexto pandêmico, o Intercrítica, constituído por homens e mulheres das ciências, voltou a ocorrer nas interações dos espaços-tempos de realidades quase híbridas, a partir de inúmeras reuniões virtuais. Ali, foram definidos formatos, mesas, encontros, fazendo valer o reencontro, ainda que remoto, com novos e velhos companheiros que definiram a opção histórica do GT09: científico, metodológico e objetivo; mas, ao mesmo tempo, combativo, militante, investigativo e atuante.
O registro desse momento, em meio a um dos processos políticos mais complexos da história do Brasil, contribui de maneira fundamental para documentar a natureza viva da pesquisa em Trabalho e Educação no país. Trata-se de contribuição, além de histórica e historiográfica, de leitura obrigatória por aqueles interessados em
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construir uma epistemologia, uma filosofia ou uma genealogia desse campo de estudos.
Com “O V Intercrítica: uma síntese possível do acúmulo teórico e político”, temos a compreensão histórica de temáticas e procedimentos teórico-metodológicos de pesquisa, num apanhado histórico desde a criação da ANPED, passando pela constituição do GT09 e, por conseguinte, pela institucionalização do Intercrítica. É possível notar como o evento se consolidou como ferramenta de mobilização de lutas políticas e científicas, tomando o materialismo histórico-dialético como potência de análise e de transformação social. Esse caldo histórico converge para a formação de novos(as) pesquisadores(as), como intelectuais, em moldes gramscianos, que se integram nas lutas pelos interesses da classe trabalhadora, opondo-se às estratégias do modo de produção capitalista que a tudo busca homogeneizar, para fazer valer seus interesses de classe.
Também destacamos que se trata de texto que permite observar o muito já produzido, mas também a necessidade de aprofundamentos, tanto do ponto de vista teórico como metodológico, bem como de temáticas, que vêm emergindo do envolvimento com a realidade concreta, pressupondo, por extensão, um sempre debate sobre o método. Estamos, assim, com um GT que se impõe cotidianamente à crítica, como elemento importante para o seu crescimento, atuação e mobilização política.
Trata-se de texto que nos permite entender, pois, a histórica luta de um conjunto de pesquisadores e pesquisadoras que, ao longo dos anos e assumindo o trabalho como categoria de análise dos processos formativos – a educação como totalidade concreta dele decorrente – têm se colocado na defesa a favor da vida, a partir da luta por uma educação que permita a homens e mulheres o acesso aos resultados do trabalho humano, opondo-se aos processos de alienação a que são submetidos. Um convite à leitura, pois.
BUGIATO, C. Para entender o neofascismo no Brasil: um ensaio a partir das contribuições de Nicos Poulantzas. Actuel Marx Intervenciones, Santiago, 27, 2 sem. 2019. Disponível em: <https://www.marilia.unesp.br/Home/Eventos/2020/caio- bugiato.pdf>. Acesso em 01 de março de 2023.
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CAVALCANTE, S. M. A condução neofascista da pandemia de Covid-19 no Brasil: da purificação da vida à normalização da morte. Calidoscópio, 19(1), 4–17, jan./abr., 2021. Disponível em:
<https://revistas.unisinos.br/index.php/calidoscopio/article/view/22745>. Acesso em 01 de março de 2023.
GRAMSCI, A. Maquiavel, a Política e o Estado Moderno. Tradução de Luiz Mário Gazzane. 6ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1988.
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V.21, nº 44, 2023 (janeiro-abril) ISSN: 1808-799 X
Acacia Zeneida Kuenzer2
O estudo das políticas públicas para o ensino médio e educação profissional tem sido um dos objetos privilegiados pelo GT 9 da Anped, ao longo da sua história. Nesse momento histórico que estamos vivendo, em que políticas de ensino médio e educação profissional e tecnológica têm sido formuladas sem o necessário debate com as entidades representativas dos trabalhadores, professores, pesquisadores e estudantes, o resgate de outros momentos em que essa mesma estratégia foi utilizada para impor diretrizes curriculares que aprofundam a desigualdade da oferta em prejuízo da classe trabalhadora, é um movimento necessário. Isso porque o passado nos ajuda a compreender o presente, que por sua vez traz anúncios do futuro, reforçando a necessidade do enfrentamento das políticas estabelecidas de forma autoritária que desqualificam a educação disponibilizada para os que vivem do trabalho, com o que se aprofundam as diferenças de classe.
É com essa finalidade que recebi a tarefa de resgatar a história da imposição do Projeto de Lei (PL) 1603/1996, que propôs a criação de um sistema de Educação Profissional em separado da educação básica, com distintas modalidades, sempre
1 Artigo recebido em 02/03/2023. Aprovado pelos editores em 14/03/2023. Publicado em 13/04/2023. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v21i44.57608.
2 Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade de São Paulo (PUC/SP), São Paulo - Brasil. Professora Titular aposentada da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Paraná - Brasil. Professora permanente do Programa de Pós-graduação em Educação Profissional do Instituto Federal do Rio Grande do Norte (PPGED/IFRN), Rio Grande do Norte - Brasil, área Trabalho e Educação. E-mail: acaciak4@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/9099032959087648.
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6429-9345.
na perspectiva da oferta de formação precarizada para o trabalho para jovens oriundos da classe trabalhadora, naturalizando sua inclusão em trabalhos precarizados.
O movimento de criação de um sistema de Educação Profissional em separado da educação básica já não era novo em 1996, uma vez que em 1991, no governo Collor, já houve uma tentativa nesse sentido, que fracassou. Contudo, a proposta gestada em 1996 reveste-se de singularidade, por várias razões: ser gestado em dois espaços distintos, a partir de 1995, com distintas concepções, dentro do mesmo governo, mas mantendo o mesmo viés neoliberal: no Ministério do Trabalho (MTB), especificamente na Secretaria de Formação e Desenvolvimento Profissional (SEFOR), e no Ministério da Educação e Cultura, especificamente na Secretaria de Educação Média e Tecnológica (SEMTEC). Embora nos dois documentos, PLANFOR e PL 1603/1996, a justificativa fosse a mesma – as demandas que a globalização da economia e o avanço tecnológico traziam para a educação – as propostas, mais do que diferentes, eram contraditórias quanto ao processo de sua elaboração, e em parte, quanto ao seu conteúdo.
A segunda razão para a singularidade desse movimento foi o fato de o PL 1603/1996 servir como moeda de troca na negociação com o Banco Mundial, em busca de financiamento para a Educação Profissional.
E, finalmente, pelo PL 1603/1996 – apresentado à Câmara dos Deputados pelo Executivo – ter sido retirado por este mesmo poder, uma vez sua finalidade se perdeu em virtude da promulgação do Decreto 2.208/1997, de abril de 1997, que regulamentou o § 2o. do art. 36 e artigos 39 a 42 da Lei 9.394/96. A alternativa do Decreto foi uma oportuna estratégia do Executivo, face à resistência a ele demonstrada pela sociedade civil em diversas audiências públicas realizadas por seu relator, o Deputado Severiano Alves (PDT) – que se mostrou, juntamente com outros Deputados, sensível às críticas – e, consequentemente, pelas mais de três mil emendas propostas.
Ainda, é importante destacar que o referido PL é contemporâneo da substituição do Projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), de autoria do Deputado Jorge Hage, amplamente discutido com as entidades da
sociedade civil e fruto do debate coletivo, pelo projeto apresentado pelo Senador Darcy Ribeiro, atropelando o processo democrático que vinha se desenvolvendo; nesse substitutivo, a educação profissional já se anunciava separada do ensino médio; o artigo 36, que trata do ensino médio, não contemplava, na versão original, a possibilidade de integração entre ensino médio e educação profissional; foi por um esforço do Senador Roberto Requião, que presidia a Comissão de Educação à época, que foi introduzido o §2º, que admitia que o ensino médio, desde que atendida a formação geral do educando, poderia prepará-lo para o exercício de profissões técnicas. Ou seja, embora de forma ambígua, manteve-se a possibilidade do ensino médio integrado, à revelia das intenções do governo, tanto que o Decreto 2.208/1997 elimina essa possibilidade no seu Art. 2o., ao dispor que a educação profissional será desenvolvida em articulação com o ensino regular, e não em integração.
Todos os esforços do governo neoliberal convergiam, portanto, para a separação entre educação básica e profissional, em oposição à proposta de educação básica integrada à ciência, trabalho e cultura, que vinha sendo construída pelas entidades da sociedade civil comprometidas com a formação humana integral. Essa separação tinha como característica a fragmentação do percurso formativo da educação profissional em diferentes níveis, básico, técnico e tecnológico, com vistas ao atendimento às necessidades do mercado de trabalho e aprofundando a polarização da formação.
Assim é que o art. 4o. do Decreto 2.208/1997 concebia o nível básico como espaço de reprofissionalização, qualificação e atualização para o exercício de funções demandadas pelo mercado e não sujeitas à regulamentação curricular, cuja qualificação poderia ser obtida por educação não formal; formação precária, portanto, para o exercício de funções precarizadas.
Como já se mencionou na introdução, o PL1603/1996, proposto pela SEMTEC/MEC, e o PLANFOR, proposto pelo MTB, expressaram o campo de disputas entre os dois ministérios visando o controle e o poder de financiar o Sistema de Educação Profissional, cuja principal característica era a separação do Sistema de Educação Básica, tendo seu foco no atendimento às demandas do
mercado de trabalho, principalmente no que tange aos processos de requalificação e reinserção de trabalhadores com qualquer nível de escolaridade, pela certificação de qualificação profissional, a ser obtida inclusive por instituições de educação profissional não formal e/ou por certificações parciais de competência.
É importante, contudo, compreender a origem dessas duas propostas, e de seus pontos de divergência, bem como o contexto em que se desenvolveram.
A primeira proposta a ser elaborada, já em 1995, foi a do PLANFOR, no âmbito da SEFOR/MTB, cujo secretário era Nassim G. Mehedff, apoiado por Elenice Leite, ambos oriundos do SENAC e, portanto, com larga experiência na formação profissional. Cumpre destacar, contudo, que Mehdeff foi uma das lideranças de grupos de jovens nas ações promovidas pela Igreja Católica, tendo participado ativamente da Juventude Estudantil Católica e da Juventude Universitária Católica; teve, também, militância política na Faculdade Católica de Filosofia de Minas Gerais e na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da UFMG nos anos 1960. Tinha, portanto, sólida formação na esquerda, o que, de algum modo, se fez sentir no documento por ele elaborado para lançar o PLANFOR (MTB/SEFOR 1995). Dada sua tradição democrática, iniciou o processo com uma ampla discussão com representantes do governo, da academia, dos empregadores e dos trabalhadores, o que gerou vários documentos que orientaram a formulação de políticas pela SEFOR. As discussões contemplaram a educação brasileira como um todo, identificando seus pontos críticos com relação à educação do trabalhador, tendo em vista a elevação da competitividade internacional do Brasil e, desta forma, a melhoria da qualidade de vida do povo brasileiro, para depois definir as políticas de educação profissional. Das discussões resultaram os pressupostos que orientariam a proposta de educação profissional adotada pela SEFOR: a rejeição das interpretações equivocadas da teoria do capital humano3, que levaram à profissionalização do 2º grau em 1971; a negação do falso entendimento que os objetivos e prioridades da formação profissional da educação técnica são voltados a uma “certa parte da população pobre, desprovida da sorte, direcionados à formação de trabalhadores para o desempenho de tarefas específicas em postos de trabalho
3 Em busca do resgate da memória em conversa com a Dra. Marise Ramos sobre a afirmação acerca de interpretações equivocadas da Lei n. 5.692/1971 sobre a profissionalização compulsória, ela lembra que a referida Lei incorpora a Teoria do Capital Humano como uma interpretação possível e específica da realidade brasileira com seu "capitalismo tardio" de caráter dependente. Assim, a política da profissionalização compulsória não teria sido equivocada para a elite, mas fazia sentido para a classe trabalhadora. (vídeo chamada em 24/02/2023).
para um setor produtivo organizado e baseado no modelo fordista de produção”. (MTB/SEFOR, 1995).
A partir desses pressupostos, o texto apontava a necessidade de refletir sobre as exigências que a nova etapa de desenvolvimento das forças produtivas trazia, criando alternativas que alcançassem “a relação harmoniosa dos resultados da ação educativa”, como um todo, “com as atuais necessidades da realidade brasileira”, voltadas não só para as demandas do mercado internacional e interno, mas, “em especial, para a consolidação do processo democrático no que concerne à formação do cidadão produtivo”. A partir desse entendimento, a SEFOR elaborou o seu projeto para a educação profissional, tendo em vista o desenvolvimento sustentado. (MTB/SEFOR, 1995).
Contudo, no mesmo documento, são estabelecidas as relações entre a proposta de criação de um sistema de educação profissional com as prioridades do governo neoliberal, segundo a concepção do Governo Fernando Henrique Cardoso, gestada pelo PSDB, que podem ser resumidas em dois pontos: a consolidação da estabilidade econômica do país e a construção do desenvolvimento sustentado, tendo por base a eqüidade social. A SEFOR, então, chamou a si a tarefa de consolidar uma política pública de trabalho e de educação profissional integrando as três funções do MTB: intermediação, pagamento de benefícios e qualificação/requalificação profissional, buscando, dessa forma, integrar a política de educação profissional à política pública de emprego, trabalho e renda, voltadas para o desenvolvimento sustentável país.
Ficava, dessa forma, definida claramente a competência do MTB, através da SEFOR, relativa à implementação do Sistema de Educação Profissional, financiado pelo Fundo de Amparo ao Trabalhador; ao MEC, considerado um dos parceiros, competiria a responsabilidade por implementar o Sistema Nacional de Educação, sendo a SEMTEC uma instância de articulação, mas não a única, uma vez que a educação profissional não se restringe ao nível médio, mas articula-se com todos os níveis, da educação fundamental à pós-graduação, e às estratégias contínuas de educação permanente.
Como o próprio texto diz, a educação profissional exige “foco no mercado” e não se confunde com a educação básica, cujo foco são os direitos universais do cidadão. A educação profissional, portanto, não a substitui. Por ter foco no mercado, a educação profissional, embora priorizasse os desempregados e excluídos, não
teria sentido nem eficácia como estratégia contencionista ou assistencialista, voltada para reter o acesso ao 3º grau ou a “ajudar os pobres ou retirar os menores da rua.4 A priorização, portanto, visava abrir alternativas a quase dois terços da força de trabalho, a maioria na plenitude da vida ativa, que não possuía mais de quatro anos de escolaridade e não voltaria à escola, mediante a qualificação profissional que articularia o conhecimento tácito e o conhecimento científico, cada vez mais exigido pela reestruturação produtiva.
Não obstante esse discurso, a proposta de duas redes separadas, embora articuladas, porém não integradas, aprofundaria a dualidade estrutural capitalista pela desigualdade na formação dos trabalhadores, orientada pela origem de classe.
Ao mesmo tempo, o MEC vinha desenvolvendo na SEMTEC a discussão sobre a função que as escolas técnicas e agrotécnicas desempenhava na educação de jovens, no âmbito da discussão sobre o significado do ensino médio. É, portanto, uma discussão de outra natureza, que se inicia a partir de avaliações feitas por consultores do Banco Mundial e de instituições públicas nacionais, cujo foco era a elevação da demanda a par de custos elevados das escolas técnicas e agrotécnicas, que, segundo sua visão, constituíam-se em oferta seletiva, sem que os filhos dos trabalhadores fossem incluídos e com desvio de sua finalidade, que passou a ser propedêutica. Havia, pois, que formular uma proposta que melhorasse a relação custo-benefício.
Sobre essa questão, manifestou-se Cláudio de Moura Castro, à época consultor do Banco Mundial, acerca do fato de as escolas técnicas e agrotécnicas terem se transformado em excelentes escolas acadêmicas que preparavam para o vestibular, em muitos estados cooptadas pelas elites locais: "ora, faz pouco sentido ensinar Máquinas e Motores a custos elevadíssimos a quem nada mais quer do que passar no vestibular de Direito. Mesmo para os que vão para Engenharia, não parece ser um bom uso dos dinheiros públicos, que ocupem um vaga que poderia ser melhor aproveitada por alguém que vai diretamente para uma ocupação técnica (CASTRO, 1995, p. 8).
Em outro documento oriundo das discussões da SEMTEC, da autoria de Ruy
4 Na mesma vídeo-chamada citada na nota 3, concluímos que a interpretação equivocada da Lei 5692/1971 apontada pela SEFOR significava que, mesmo sob a lógica da Teoria do Capital Humano, agregar valor à força de trabalho não implicaria em tornar a profissionalização obrigatória no 2o. Grau para formar trabalhadores para o desenvolvimento industrial acelerado ou para conter o acesso ao nível superior.
Berger Filho, destacam-se, na mesma linha, os pontos críticos do ensino médio: a sua falta de identidade, com implicações sobre a perda de qualidade, em função de seu caráter indefinido com relação à tensão universidade/terminalidade e a escassez de recursos financeiros para cobrir os elevados custos.
Como consequência, o MEC propõe-se, através da SEMTEC, a dirigir o processo de redefinição do ensino médio, buscando definir as modalidades de educação acadêmica e profissional através de um modelo flexível; rever os currículos, as articulações com o MTB e com o setor produtivo; redefinindo as funções da União, dos estados, dos municípios e do setor produtivo; e assim por diante.
Contrariamente à proposta da SEFOR, a questão central que justificou o PL 1603/1996 foi a pressão do Banco Mundial para a redução dos custos das escolas técnicas e agrotécnicas. A solução encontrada pela SEMTEC foi a criação de uma rede de Educação Profissional desvinculada do ensino médio, e de mais baixo custo, que melhor respondesse às necessidades do mercado de trabalho e que racionalizasse o uso dos recursos conforme a opção do aluno: o ingresso no mundo do trabalho ou o acesso à universidade.
Para implementar tal política, busca a articulação com os setores responsáveis pelas áreas de trabalho, indústria e comércio, agricultura, ciência e tecnologia e política social, com o Sistema S e demais agências formadoras, com a representação dos empresários e dos trabalhadores, como princípio central da formulação política e de gestão do Sistema. E, embora estivesse participando das articulações com a SEFOR para a criação do PLANFOR, o MEC correu em paralelo, batendo de frente com o MTB.
É interessante observar uma diferença significativa no processo que o MEC/SEMTEC vinha desenvolvendo: enquanto a SEFOR buscava interlocutores entre os pesquisadores e profissionais que acumulavam conhecimento teórico/prático sobre a relação trabalho e educação em tempos de reestruturação produtiva, demonstrando nos seus documentos conhecimento da literatura e da prática, a SEMTEC manteve a discussão interna a seus técnicos, abrindo-a para interlocutores selecionados. Entre eles, destacou-se como parceiro privilegiado o Conselho Nacional de Secretários de Educação (CONSED); a rede de escolas técnicas federais (ETF) e Centros Federais de Educação Tecnológica (CEFET) foram chamados a participar de algumas reuniões que não tiveram caráter
deliberativo, mas apenas consultivo. A formatação da proposta final foi feita pela SEMTEC, “ouvidos” os interlocutores especialmente selecionados.
Sua rede de acadêmicos, consultores e pesquisadores das universidades públicas e privadas qualificados pelo próprio MEC através da CAPES com recursos públicos, não foram sequer contatados, recebendo, com surpresa, e de forma acidental, a primeira versão do PL. O GT 9 da ANPEd, composto por pesquisadores nacionalmente reconhecidos na área de trabalho e educação, em sua maioria professores das Instituições Federais de Educação Superior (IFES) e, portanto, servidores públicos lotados em instituições vinculadas ao MEC, também não foi consultado.
Certamente, isso se explica, como dizia Moura Castro (1995, p. 2), por sua caracterização como representantes das “ideologias igualitárias” que resistem a qualquer solução “que ofereça programas mais aguados para certos grupos” ou que não tenham equivalência ao secundário e, portanto, não assegurem o direito à continuidade de estudos no ensino superior; pesquisadores e professores que se negam a aceitar a existência de alunos que “nascem” por efeito de alguma determinação exclusivamente biológica, porém jamais social, “academicamente menos dotados”, que caminhariam mais cedo para a preparação ocupacional através de currículos “mais aplicados”, mais práticos e, portanto, não acadêmicos e terminais.
Desta rápida análise, emerge uma questão: qual a razão da pressa em regulamentar a educação profissional, que sequer podia aguardar a tramitação da LDB, já avançada, após a adesão ao substitutivo do Senador Darcy Ribeiro? Por que, já em março de 1996, sem nenhuma discussão sequer com os mais diretamente atingidos — as ETF e CEFET —, como atestam os documentos e discursos, o ministro Paulo Renato encaminha ao Congresso o anteprojeto de Lei que recebe o nº 1603/1996?
Qual teria sido a razão desse atropelo, se o próprio MTB já tinha recursos do FAT e o PLANFOR estruturado, que não dependia de nova legislação, e que já começava a ser implementado, particularmente através de parcerias com as secretarias de Estado e agências formadoras, com a participação dos representantes dos trabalhadores e empresários nas discussões técnicas e políticas? Mesmo não defendendo a criação desse Sistema em separado, tanto no âmbito do MTB como no do MEC, causa estranheza esse açodamento.
Certamente, uma das razões terá sido o acordo do MEC com o Banco Mundial, veiculado na imprensa pelo próprio ministro Paulo Renato em 4 de Março de 1996, por ocasião do lançamento do Programa Educação Profissional em Belo Horizonte, pelo presidente da República. Como o Banco Mundial não financia projetos a não ser a partir de certas condições, que já vinham sendo negociadas pelos seus consultores, resolvidos os termos e os montantes do acordo, necessário se fazia o cumprimento do compromisso com o ajuste normativo que permitiria reduzir os custos da Educação Profissional ministrada na esfera pública com qualidade e de forma integrada ao ensino médio5.
Assim é que, ao mesmo tempo em que se anunciou o Programa, encaminhou-se ao Congresso o PL, elaborado às pressas por uma equipe interna isolada, sem fundamentação teórica e clareza conceitual, cujo texto é frágil, confuso e anacrônico.
Outra razão articulada à primeira, porquanto derivada das políticas do Banco Mundial como estratégia para melhor enfrentar a relação entre custo e benefício, uma vez que os consultores do Banco recomendavam aos países pobres apenas a garantia do ensino fundamental aos que não ingressariam em ocupações qualificadas no mercado de trabalho, foi a redução do custeio da educação profissional pela União, repassando-o para os estados, municípios, setor produtivo e organizações não-governamentais, que passariam a manter e gerir os estabelecimentos que viessem a ser criados, com o apoio do governo federal apenas para investimentos em obras e equipamentos. Para os secretários estaduais, essa parceria com apoio na lei era interessante, uma vez que lhes permitiria realizar acordos internacionais com o BID ou com o Banco Mundial para financiar uma linha de ensino médio e tecnológico (separados), já que atendia às concepções de políticas educacionais daquelas instituições. Já historicamente responsáveis pela maior fatia da oferta e da manutenção do ensino médio, sem fonte específica de financiamento, as secretarias estaduais puderam resolver dois
5 Em 10 de Setembro de 1997, o MEC exara a Portaria n. 1005, que implementa o Programa de Reforma da Educação Profissional (PROEP), considerando, explicitamente, a “Recomendação nº 444, de 30 de junho de 1997, publicada no Diário Oficial da União de 04.09.97, da Comissão de Financiamentos Externos - COFIEX pela aprovação da continuidade da preparação do PROEP, identificado como passível de financiamento externo, por meio de Operação de Crédito Externo com o Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID”. Certamente essa implementação se efetiva porque as exigências para o financiamento externo já estavam contempladas, não por uma lei decorrente da aprovação do PL 1.603/1996, mas sim, de forma ainda mais eficaz e rápida, pelo Decreto n. 2208/1997. O organismo financiador seria, então, o Banco Interamericano de Desenvolvimento.
problemas de uma só vez: ampliar a oferta atendendo às pressões políticas e obter financiamento específico com prazo de carência superior à duração das suas gestões, cumprindo parte de seus compromissos de campanha expressos nos planos estaduais sem ter que pagar a conta, que ficaria para o próximo período de governo6.
Entende-se, assim, o apoio dado pelo CONSED ao PL 1603/1996, voz dissonante do conjunto, uma vez que sua rejeição conseguiu uma quase unanimidade nacional, como se presenciou no seminário realizado pela Comissão de Educação no Congresso Nacional e nas audiências públicas promovidas pelo deputado relator Severiano Alves. Por essa razão, o MEC usou como estratégia retirar o PL da Comissão de Educação e encaminhá-lo para a Comissão do Trabalho, em julho de 1996, iniciada a sua discussão em agosto do mesmo ano.
Em fevereiro de 1997, a Casa Civil solicitou a retirada do processo, imediatamente deferida.
Em abril de 1997, o Decreto n. 2.208 foi promulgado, cumprindo a função a que se propunha o PL 1603/1996, que perde, então, a sua finalidade na esfera normativa; contudo, cumpriu sua principal função, que foi o atendimento às condições impostas pelo Banco Mundial para a concessão do financiamento, já no período das negociações. O seu cumprimento, por sua vez, estava assegurado pelo novo Decreto.
Destaque-se, finalmente, a partir da memória oral, uma vez que ignoro se o fato foi documentado: os gestores dos CEFET e Escolas Técnicas foram convocados pela SEMTEC para que fossem informados que os recursos oriundos do acordo com o BID só seriam disponibilizados àqueles que cumprissem o disposto no Decreto 2208/97.
O PL 1603/1996 refletiu, sem sombra de dúvida, a política neoliberal que caracterizou o Estado brasileiro naquele momento histórico, sendo uma das expressões superestruturais da reorganização produtiva, através da qual o país se
6 Além do PROEP, a MEC lançou o Programa de Melhoria e Expansão do Ensino Médio (PROMED), também com financiamento do BID, destinado aos Sistemas Estaduais de Educação, visando o “reordenamento” de suas redes para a oferta exclusiva do ensino médio separado da educação profissional.
articulava ao movimento mais amplo, no bojo da internacionalização da economia, buscando a racionalização do uso dos recursos finitos, a redução da presença do Estado no financiamento das políticas sociais, maior flexibilidade, qualidade e produtividade do sistema produtivo.
Embora tenha sido retirado de pauta, cumpriu uma importante função: viabilizar o acordo com organismos multilaterais, cujos recursos possibilitaram a expansão, a aquisição de materiais e equipamentos e a manutenção das escolas responsáveis pela Educação Profissional, em particular as da Rede Federal de Educação, mas também as das redes estaduais. Parodiando uma novela de época, o PL 1603 foi sem ter sido, o que revela sua importância e a necessidade do seu resgate nos registros da história das políticas de formação profissional e tecnológica. Assim foi que o PL 1603/96, substituído pelo Decreto 2208/97 representou um espaço de negociação que viabilizou a formulação de políticas nacionais neoliberais orquestradas pelo Banco Mundial e com ação financiadora do BID, através do exercício de sua grande “missão”: reduzir a pobreza de forma sustentada nos países em desenvolvimento, mantendo os jovens no lugar definido pela sua origem de classe, o que vale dizer, viabilizando o processo de acumulação capitalista pela inserção do país no mercado internacional e preservando o mundo para os ricos, protegendo-o da destruição que fazem os pobres, o que demandava, minimamente, educação fundamental seguida de qualificação profissional. Em resumo, formar subjetividades que se submetessem ao trabalho precarizado e se comprometessem
com a sustentabilidade...para a acumulação do capital.
Qualquer semelhança com as políticas públicas que vêm sendo formuladas, não é mera coincidência!
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