V.22, 48 / maio-agosto (2024) ISSN:1808-799 X
Universidade Federal Fluminense
Faculdade de Educação
NEDDATE - NÚCLEO DE ESTUDOS, DOCUMENTAÇÃO E DADOS SOBRE TRABALHO E EDUCAÇÃO
REVISTA TRABALHO NECESSÁRIO:
Redação: R. Professor Waldemar Freitas Reis, s/n°, bloco D, sala 525, Gragoa - São Domingos, Niterói - RJ,
CEP 24210-201 - revistatrabalhonecessario@gmail.com
EDITORAS
Lia Tiriba, Jacqueline Botelho e Adriana Barbosa
CONSELHO EDITORIAL
Caridad Perez García (UCPEJV Cuba), Celso Ferretti (UNISO - Brasil), Gaudêncio Frigotto (UFF / UERJ-
Brasil), José Claudinei Lombardi (UNICAMP Brasil), Maria Ciavatta (UFF - Brasil), Roberto Leher (UFRJ -
Brasil), Tomás Rodrigues Villasante (UCM Espanha), Sonia Maria Rummert (UFF - Brasil) e Virgínia Fontes
(UFF / EPJV / Fiocruz - Brasil).
COMITÊ CIENTÍFICO
Alexandre Maia do Bomfim (IFRJ), Ana Motta (UFF), André Feitosa (EPSJV/FIOCRUZ), André Martins (UFJF),
Andrea Araújo Vale (UFF), Anita Handfas (UFRJ), Angela Siqueira (UFF), Angela Tamberlini (UFF), Claudio
Fernandes da Costa (UFF), Célia Regina Vendramini (UFSC), Daniela Motta (UFJF), Dante Moura (IFRN), Deise
Mancebo (UERJ), Domingos Leite Lima Filho (UTFPR), Dora Henrique da Costa (UFF), Doriedson do Socorro
Rodrigues (UFPA), Edison Oyama (UFRR), Edson Caetano (UFMT), Eneida Oto Shiroma (UFSC), Eraldo Leme
Batista (UNIVAS-MG), Eveline Algebaile (UERJ), Filippina Chinelli (EPSJV/FIOCRUZ), Flávio Anício (UFRRJ),
Francisco José Lobo Neto (FIOCRUZ), Guadelupe Teresinha Bertussi (UNAM e UFSC), Hajime Nozaki (UFMS
e UFJF), Henrique Tahan Novaes (UNESP), Ivo Tonet (UFAL), Jacqueline Botelho (UFF), Jaqueline Ventura
(UFF), João dos Reis da Silva Jr. (UFSCar), José dos Santos Souza (UFRRJ), José Luiz Cordeiro Antunes(UFF),
Júlio Cesar França Lima (FIOCRUZ), Justino de Souza Junior (UFC), tia Lima (UFF), Laura Souza Fonseca
(UFRGS), Lea Calvão (UFF),Lia Tiriba (UFF), Lígia Klein (UFPR), Luciana Requião (UFF), Marcelo Lima (UFES),
Maria Clara Bueno Fischer (UFRGS), Maria Cristina Paulo Rodrigues (UFF), Maria Inês do Rego Monteiro
Bomfim (UFF), Maria de Fátima Félix Rosar (UNICAMP), Marcia Alvarenga (UERJ), Mariléia Maria da Silva
(UDESC), Marisa Brandão (CEFET-RJ), Marise Ramos (UERJ,FIOCRUZ), Myriam Feldfeber (UBA - Argentina),
Ney Luiz Teixeira Almeida (UERJ), Olinda Evangelista (UFSC), Ramon de Oliveira (UFPE), Raquel Varela
(Universidade Nova de Lisboa- Portugal), Roberto Leher (UFRJ), Ronaldo Lima (UFPA), Rosilda Benacchio
(UFF), Rui Canário (Universidade de Lisboa Portugal), Sandra Maria Siqueira (UFBA), Sandra Morais
(UNIRIO), Sérgio Lessa (UFAL), Susana Vasconcellos Jimenez (UFC), ), Sonia Maria Rummert (UFF), Tatiana
Dahmer (UFF), Valdemar Sguissardi (UFSCar), Vania Motta (UFRJ), William Kennedy do Amaral Souza (IFRO)
e Zuleide Silveira (UFF).
ORGANIZAÇÃO DA TN 48 (2024)
Prof. Dr. Domingos Leite Lima Filho (NEDDATE/UFF Núcleo de Estudos, Documentação e Dados em
Trabalho-Educação da Universidade Federal Fluminense e GETET/UTFPR Grupo de Estudos e Pesquisas
em Trabalho, Educação e Tecnologia da Universidade Tecnológica Federal do Paraná) e Prof. Dr. Henrique
Tahan Novaes (GPOD-FFC/UNESP-Marília-SP / Grupo de Pesquisa em Organizações e Democracia
Faculdade de Filosofia e Ciências / Universidade Estadual de São Paulo / Campus Marília)
ASSISTENTES/COLABORADORES DE EDIÇÃO
Daniel Tiriba, José Luiz Cordeiro Antunes (UFF), Lândhor Borges Camello (UFF)e William Kennedy do
Amaral Souza (IFRO)
FOTO DA CAPA
“Los murales” de Diego Rivera (1886-1957). Rivera foi um dos integrantes do “Movimento Muralista” do
México. A capa da Trabalho Necessário, neste número, apresenta um dos diversos murais pintados pelo
artista. Parte do afresco “Pan America Unity (unidade pan-americana) encontra-se em exposição no Museu
de Arte Moderna de San Francisco.
MONTAGEM DA CAPA
Daniel Tiriba
V.22, 48 / maio-ago (2024) ISSN: 1808-799 X
Indexado por / Indexed by
Apoio:
Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoatá/SDC/UFF Bibliotecária:
Mahira de Souza Prado CRB-7/6146
V.22, 48 - 2024 (maio-agosto) ISSN: 1808-799 X
Editorial TN 48
TECNOLOGIA (S) EM TEMPOS DE LUTA CONTRA A PRODUÇÃO DESTRUTIVA
DO CAPITAL1
A crise climática é a manifestação extrema do esgotamento das relações
seres humanos-natureza mediadas pelo trabalho mercadoria fonte primeira de
produção de riqueza e de pobreza. Riqueza para os homens-de-negócio; pobreza
para homens, mulheres, crianças, jovens, adultos e idosos da classe trabalhadora.
No cenário de políticas ultraliberais e do crescimento da extrema direita, o
acúmulo de CO2(dióxido de carbono), metano (CH4) e outros gases produzidos pela
queima de combustíveis fósseis, como derivados de petróleo, carvão mineral e gás
natural tem agravado o efeito estufa na atmosfera, produzindo o aquecimento global
e a vulnerabilidade do ecossistema no planeta Terra. Por isso, o objetivo da
Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas (COP 25), sediada na cidade de
Belém (Pará), é conter o aumento da temperatura global, evitando o aumento do
volume dos oceanos, bem como a redução da disponibilidade de água.
Na verdade, são incalculáveis os danos dos crimes ambientais,
historicamente produzidos ao longo da história do capitalismo; são crimes cometidos
contra os seres humanos, contra seres não humanos e demais elementos da
natureza, o que impossibilita a existência de nossa vida no planeta, quer dizer, em
nossa ‘casa comum’. São incalculáveis, por exemplo, os danos da tragédia ocorrida
no Rio Grande do Sul, em abril/maio deste ano de 2024, atingindo cerca de 2,5
milhões de pessoas; 182 morreram e 29 desapareceram. Sérios danos à
biodiversidade do Pantanal mato-grossense foram causados por incêndios ditos
“naturais”, no primeiro semestre deste ano, atingindo, segundo o Instituto Nacional
de Pesquisas Espaciais (INPE) uma extensão de 712.075 hectares do bioma, uma
área seis vezes maior que a cidade do Rio de Janeiro.
1Editorial recebido em 02/08/2024. Aprovado pelos editores/as em 05/08/2024. Publicado em
07/08/2024. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v22i48.63969.
1
Na era digital, as tecnologias espaciais e por satélite fornecem informações
sobre estrelas, galáxias e planetas distantes onde poderia ou não haver vida. A
comunicação via satélite, por meio de objetos em órbita ao redor da Terra, permite o
acesso a informações valiosas sobre crimes ambientais e catástrofes decorrentes.
Atestam a devastação das florestas, queimadas, desertificação, invasão de terras
dos povos do campo e tudo mais que as tecnologias do agronegócio e da mineração
têm provocado na Amazônia e demais biomas brasileiros: Caatinga, Cerrado, Mata
Atlântica, Pampa e Pantanal.
Enquanto isso, nas calçadas dos centros urbanos, existem centenas de
homens e mulheres vendendo quinquilharias como caixinhas de som, fones de
ouvido, capinhas e carregadores de celular, adaptadores, chips, além de meias,
chapéus, doces, salgados... Ao mesmo tempo, as lojas, lanchonetes e outros
estabelecimentos comerciais dos arredores estão abarrotados de máquinas e,
conforme a sorte, é possível encontrar dois ou três seres humanos que ali
trabalham. Pacientemente, ao invés de ficar correndo para e para cá, as pobres
criancinhas não tiram os olhos do celular.
Na atual “sociedade do espetáculo”’ (Debors,1997), as tecnologias de
informação e produção de consenso querem nos fazer crer, que o
empreendedorismo-de-si é a grande saída para o cidadão, para a cidadã, e inclusive
para mulheres, mães, trabalhadoras negras que “poderiam ser mais felizes” se
consumissem shampoo natural, produzido com ervas que contém grande poder
medicinal, vindas diretamente da Amazônia Legal. Dizem que se tratam de produtos
altamente sustentáveis, graças à bioeconomia e ao consumo consciente e
responsável dos cidadãos. Isso tudo sem deixar de “reconhecer” o grande valor dos
saberes tradicionais, considerados como “capital natural” - capital este lucrativo
para os empresários e, que ao mesmo tempo, vai gerar algum tipo de renda para
ribeirinhos, pantaneiros, castanheiros, quebradeiras de coco de babaçu, piaçabeiros
e outros grupos de homens e mulheres trabalhadoras/es que vivem em
comunidades tradicionais. Como modelo de produção industrial que promove a
“gestão eficiente dos recursos naturais”, a bioeconomia criaria, então, um elo mais
forte entre campo e cidade, entre produtor e consumidor. E, quem sabe, por conta
própria, povos e comunidades tradicionais poderiam melhorar suas condições de
vida, contando com políticas identitárias e de assistência social.
Do outro lado da calçada, estão a Bolsa de Valores, as grandes corporações
2
de informação e comunicação, fundações e organizações privadas que buscam
capturar o fundo público, contribuindo para a precarização do trabalho e da própria
vida. Com a introdução da internet, inteligência artificial e indústria 4.0, as
tecnologias digitais de produção e gestão da força de trabalho tornaram-se uma
peça-chave do sistema do capital, impactando os processos de formação humana
por meio do empresariamento da educação, da cultura e de todos os espaços das
relações sociais, inclusive de nossas praias e parques, rumo à consolidação de um
estado-empresa, de um sujeito-empresa (Laval, 2019). Na disputa entre blocos
econômicos e, em particular, por reservas de petróleo, prevalece o intervencionismo
imperialista, em particular o norte-americano que, historicamente, tem ameaçado a
soberania nacional e a autodeterminação dos povos. No que diz respeito à
Venezuela, desde 2014, com a lei 113.278, aprovada no Congresso dos Estados
Unidos, têm sido frequentes os embargos econômicos, gerando sofrimento à classe
trabalhadora, sobretudo às camadas mais pobres da população. Sobre as eleições,
no último dia 28 de julho, Andrés López Obrador, presidente do México, denuncia
que a Organização dos Estados Americanos (OEA) declarou vitória ao candidato de
oposição a Nicolás Maduro, antes mesmo de concluída a apuração dos votos.
Evidentemente, essas tecnologias não são capazes de deter a ganância dos
homens-de-negócio e tampouco a interferência do capital financeiro internacional
nos governos dos países do capitalismo dependente.Ao veicular um único lado da
moeda, a grande mídia e as redes sociais retrógradas também corroboram para a
desinformação e confusão quanto à interpretação da realidade social. Essa postura,
não gratuitamente, fortalece o grande capital, a extrema direita e o fascismo,
forjando uma consciência deturpada em relação ao contexto social mundial e,
especificamente, sobre as questões da América Latina.
Como força produtiva do capital, o avanço da tecnologia como ciência da
atividade humana, tem cumprido um papel fundamental, constituindo-se como
mediação nas relações entre capital e trabalho, e nas relações cotidianas que
estabelecemos com o mundo. Ao contrário da libertação do fardo do trabalho, as
chamadas tecnologias de ponta, agora na modalidade de inteligência artificial
generativa, têm contribuído para assegurar a produtividade ampliada do capital
ampliada em todos os sentidos e magnitude. Trata-se de um projeto, em curso, de
construção de uma hegemonia cultural, capitalista, calcada em “estruturas de
sentimentos” (Williams, 1979), ou seja, em bases materiais e simbólicas que
3
permitam a homens e mulheres da classe trabalhadora atuarem e se sentirem, na
prática, parceiros e colaboradores do empresário capitalista e, de preferência, que
não frequentem o mundo da política. Nos processos de compressão espaço-tempo
(Harvey, 1998), ditados por aparatos tecnológicos, os discursos terraplanistas e
negacionistas perpassam e fortalecem os fios da religiosidade, invadindo as redes
sociais. Anda a galope a produção de muitas mentiras e muitas pobrezas, entre elas
a ‘pobreza de espírito’.
Quando falamos em tecnologia, imediatamente nos remetemos a máquinas e
equipamentos, como se a diversidade de artefatos tecnológicos não resultasse da
força de trabalho humano e pudesse ser independente das relações sociais de
produção da vida social, onde, historicamente, esses artefatos se realizam, material
e simbolicamente. Foi o que Marx (1980) chamou de fetichismo da tecnologia ou
fetichismo da mercadoria. Assim, é preciso lembrar a existência de outras maneiras
de fazer, sentir e pensar o mundo.
Nos espaços/tempos da produção não capitalista, o desafio da reprodução
ampliada da vida (Tiriba, 2004) pressupõe a construção da hegemonia do trabalho
sobre o capital. Ainda que atravessadas pelas mediações de segunda ordem do
capital (Mészáros,1989); a lei do valor é a do valor-comunidade (García Linera,
2010). Nesse contexto, o trabalho associado e outras formas de trabalho coletivo
requerem tecnologias que, embora possam ser consideradas “rudimentares”, são
bastante avançadas. Não por acaso, na Amazônia e em outros biomas brasileiros, o
capitalismo incorpora os saberes tradicionais (Rodrigues, 2022). Ainda que
minoritariamente, as possibilidades de tecnologias de produção da vida, que se
contrapõe à lógica de reprodução ampliada do capital, estão presentes na TN 48.
Para nós, editoras, foi um imenso prazer contar com o Prof. Dr. Domingos
Leite Lima Filho, professor visitante da Universidade Federal Fluminense (UFF) e
membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Trabalho, Educação e Tecnologia
GETET/UTFPR, e como o Prof. Dr. Henrique Tahan Novaes, da Universidade
Estadual Paulista (UNESP/Marília), membro do Grupo de Pesquisa em
Organizações e Democracia. Ambos trabalharam arduamente como organizadores
desse número temático intitulado Tecnologia e formação humana. Os demais
membros do Núcleo de Estudos, Documentação e Dados sobre Trabalho e
Educação (Neddate/UFF), que abriga nossa Revista, também agradecem pelo
empenho e carinho dos pesquisadores, com quem aprendemos muito. Agradecemos
4
também aos autores, autoras e a todos e todas que, nos bastidores, permanecem
conosco nesse trabalho necessário: José Luiz Cordeiro Antunes (UFF); Landhor
Camello (assistente técnico), William Kennedy do Amaral Souza (IFRO) e Daniel
Tiriba (designer).
De acordo com o ChatGPT, “a inteligência artificial (IA) pode ser uma
ferramenta poderosa na editoração de periódicos, ajudando em várias etapas do
processo editorial, desde a triagem inicial de artigos até a formatação final”. De
nossa parte, sem descartar o conhecimento acumulado e transformado em trabalho
morto, achamos mais seguro o desafio de prosseguir com o trabalho vivo, com a
força viva, criadora e transformadora do mundo. Boa leitura!
Abraços de Lia Tiriba,Jacqueline Botelho eAdriana Barbosa - Editoras da
Revista Trabalho Necessário.
Referências
DEBORD, G. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
GARCÍA LINERA, Á. Forma valor y forma comunidad. Buenos Aires:CLACSO,
2010.
HARVEY, D. Condição pós-moderna. São Paulo: Edições Loyola, 1992.
LAVAL, C. A escola não é uma empresa: o neoliberalismo em ataque ao ensino
público. São Paulo: Editora. Boitempo. 2019.
MARX, K. O Capital. Crítica da economia política. Livro 1.Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1980.
MÉSZÁROS, I. Produção destrutiva e Estado capitalista. São Paulo: Ensaio,
1989.
RODRIGUES, D; CASTRO, O. Tecnologias de produção da vida: saberes do
trabalho da pesca em comunidades ribeirinhas. In Alves, A.E; Tiriba, Lia. Cios da
terra. Sobre trabalho, cultura, produção de saberes e educação do campo.
Uberlândia/MG, Navegando, 2022, p. 175-189.
TIRIBA, L. Reprodução ampliada da vida e espaços/tempos da produção não
capitalista. Marília: Lutas Anticapital, 2024. v.3.
WILLIAMS, R. Marxismo e literatura. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979.
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V.22, 48 - 2024 (maio-agosto) ISSN: 1808-799 X
APRESENTAÇÃO: TECNOLOGIA E FORMAÇÃO HUMANA1
Domingos Leite Lima Filho2
Henrique Tahan Novaes3
A tecnologia revela o modo de proceder
do homem para com a natureza,
o processo imediato de produção de sua vida
e assim elucida as condições de sua vida social
e as concepções mentais que delas decorrem
(Marx, O Capital) 4
ARevista Trabalho Necessário, neste número 48, traz o tema Tecnologia e
Formação Humana. A temática ganha centralidade na atualidade, considerando-se,
entre outros aspectos, que o trabalho, a educação e formação da classe
trabalhadora são fortemente impactados pelas transformações e inovações
científico-tecnológicas da chamada Indústria 4.0 e da inteligência artificial, que
promovem e aceleram a introdução massiva de tecnologias digitais no processo de
trabalho e nas formas de utilização da força de trabalho nos diversos ramos da
produção industrial e de serviços e nas diversas dimensões da vida.
O fenômeno é abrangente, embora desigual, atingindo regiões centrais e
periféricas das grandes, médias e pequenas cidades, o campo e a cidade e inclusive
povos originários e culturas as mais diversas, que passam a enfrentar a necessidade
do acesso e manejo de tais tecnologias.
Nesse cenário global, a plataformização do trabalho traz consigo a elevação
do desemprego estrutural, do subemprego, e a intensificação da precarização da
4MARX, Karl. O Capital, L. 1, v. 1, São Paulo, Difel, 1978, p. 425.
3Doutor em Política Científica e Tecnológica pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Professor Livre Docente da Faculdade de Filosofia e Ciências da Universidade do Estado de São
Paulo (Unesp). Email: hetanov@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/5282506732444510.ORCID:
https://orcid.org/0000-0001-5247-3684.
2Doutor em Educação na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professor titular
aposentado (e professor voluntário sem vínculo institucional) do Programa de Pós-Graduação em
Tecnologia e Sociedade da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR). Professor visitante
do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF). Email:
domingosf@id.uff.br. Lattes: http://lattes.cnpq.br/1113538527015820. ORCID:
https://orcid.org/0000-0003-3802-6794.
1Apresentação recebida em 04/08/2024. Aprovado pelos editores em 06/08/2024. Publicado em
07/08/2024. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v22i48.63970.
força de trabalho. A educação, em seus diversos níveis e modalidades, é um dos
setores que sofre maiores impactos pela presença cada vez mais intensa das
tecnologias educacionais, mediante a aplicação de softwares e hardwares aos
sistemas de gestão escolar, materiais didáticos, controle dos estudantes e dos
profissionais da educação, formação de professores e educação a distância.
Assumem protagonismo e atuam de forma articulada as grandes corporações
internacionais de informação e comunicação, as chamadas edtechs (startups da
educação) e as fundações e organizações privadas, buscando realizar, via
financeirização e empresariamento, o progressivo controle da concepção e gestão
dos sistemas educacionais e a apropriação dos fundos públicos, em um movimento
de “colonização” e “automação” da educação pública.
Nesse sentido, ganha importância a produção a partir do materialismo
histórico-dialético, em diálogo com outras perspectivas críticas, de análises
teórico-metodológicas, estudos e pesquisas que abordem aspectos relacionados à
temática, dentre os quais: a tecnologia na atualidade e na história e sua concepção,
produção, utilização apropriação e impactos sociais; inter-relações tecnologia,
trabalho, ciência e cultura como base para a formação humana; tecnologias digitais,
inteligência artificial e processo de trabalho; tecnologias educacionais, inteligência
artificial e formação humana; as abordagens críticas às concepções de
determinismo, autonomia e neutralidade da tecnologia; a resistência social e práxis
revolucionária no contexto da inteligência artificial.
A perspectiva de Marx, conforme podemos ver no texto em epígrafe, situa a
tecnologia no campo das relações sociais de produção. Nesse sentido, orientados
pelo materialismo histórico marxiano, consideramos que a produção e apropriação
da tecnologia é processo social que, como tal, somente pode ser plenamente
apreendido se levarmos em consideração a totalidade e historicidade das relações
sociais de produção em que ocorrem. Ou seja, “como processo social, a tecnologia
participa e condiciona as mediações sociais, porém não determina por si a
realidade, não é autônoma, nem neutra e nem somente experimentos, técnicas,
artefatos ou máquinas: é constituída por conjuntos de saberes, trabalhos e relações
sociais objetivadas” (Lima Filho, 2023, p. 36). Nesse sentido,
a tecnologia, como processo de intervenção do ser social, em sua
ação com os demais e sobre o meio, indissociável das práticas
sociais cotidianas, em seus vários campos/diversidades/tempos e
espaços, assume uma dimensão sociocultural, uma centralidade
geral, e não específica, na sociabilidade humana. Esta compreensão
da tecnologia e de suas inter-relações com as demais dimensões da
sociabilidade humana, em uma perspectiva de totalidade e
historicidade, é fundamental para nossa concepção educacional da
formação humana integral (LIMA FILHO, 2023, p. 36).5
Contudo, leituras apressadas e enviesadas, especialmente dos “elogios” de
Marx e Engels (no Manifesto do Partido Comunista e em O Capital), a capacidade
da burguesia de navegar para lugares longínquos, de desenvolver a ciência, de
revolucionar a forma de produzir as mercadorias e acelerar o desenvolvimento das
forças produtivas podem levar a uma leitura prometeica de Marx. Nesta leitura, as
forças produtivas não mereceriam críticas, mas apenas as relações sociais de
produção. Por esse viés, a tecnologia sempre foi vista como o “lado bom do
capitalismo”.
Estudos mais recentes têm procurado balancear e complexificar a análise de
Marx sobre a tecnologia, ou de forma mais geral, sobre a dialética entre as forças
produtivas e as relações sociais de produção.
Kohei Saito, John Belamy Foster, Michael Lowy e István Mészáros para citar
apenas alguns - procuraram demonstrar que Marx era “ambientalista” e que seus
estudos apontavam as contradições das forças produtivas desenvolvidas no modo
de produção capitalista.
Grandes Corporações surgiram rapidamente no final dos anos 1970, no
chamado Silicon Valley. Assumiram a dianteira do capitalismo e produziram uma
nova revolução tecnológica e novas formas de alienação. Além de permitir ao
capitalismo estadunidense sobreviver frente ao avanço do dragão chinês, jogaram
no mercado capitalista inúmeros novos produtos, tais como o computador, o
notebook, fibra ótica, smartphones e tantos outros produtos tecnológicos circulando
na internet e mais recentemente, no Facebook, Instagram.
Estas novas tecnologias, combinadas com uma ampla reestruturação
produtiva, deram origem ao “regime de acumulação flexível”, dando nova vida ao
modo de produção capitalista e uma nova indústria cultural.
5LIMA FILHO, D. L. As inter-relações trabalho, tecnologia e cultura: bases para a formação integral
na Educação Profissional e Tecnológica. In: Domingos Leite Lima Filho, José Deribaldo Gomes dos
Santos, Henrique Tahan Novaes (organizadores). Educação profissional no Brasil do século XXI :
políticas, críticas e perspectivas : vol. 2. Marília : Oficina Universitária ; São Paulo : Cultura
Acadêmica, 2023.
Amazon, Mercado Livre, IFood novas plataformas digitais, novo mercado
consumir, mais ágil e mais “flex”, a ponto de se pedirmos um produto no site da
Amazon hoje, amanhã está na casa!
O fetiche das novas tecnologias na educação também merece algumas
considerações. Especialmente no contexto neoliberal, as novas tecnologias têm
aprofundado radicalmente a alienação do trabalho e produzido uma “nova” alienação
da humanidade. Partidos de direita e mais recentemente de extrema direita,
mercadores da educação como Renato Feder estão usando e abusando das novas
tecnologias e plataformas nos sistemas educacionais, como uma suposta solução
para os graves problemas educacionais brasileiros. No Estado de São Paulo, a nova
proposta é a tal da “Sala do Futuro”. Os professores tornam-se “leitores de slides”
prontos e feitos sabe-se por quem.
Se é fato que o uso e desenvolvimento de novas tecnologias na educação
vinha numa crescente, pode-se afirmar que a pandemia deu uma “turbinada” na
tendência à proliferação destas novas armas. O mercado das tecnologias de
educação e comunicação deu um salto substancial, e é parte do cotidiano escolar.
Especialmente pela ampliação de Corporações Educacionais que utilizam a EAD ou
de braços em EAD das Corporações Transnacionais da Educação.
A venda de novas mercadorias tecnológicas e a invasão de celulares na sala
de aula estão modificando radicalmente a realidade das escolas públicas e privadas,
levando a uma perda da autonomia dos professores e um novo ciclo de
mercantilização da educação. Somados a clássica precarização do trabalho docente
e a Reforma/ Deforma do Ensino Médio, essas mudanças têm produzido efeitos
nefastos na ignorância (planejada) da classe trabalhadora brasileira e de seus filhos
e uma nítida decadência ideológica das classes dominantes na educação.
No campo, tecnologias desenvolvidas particularmente no século XX levaram
à “industrialização da agricultura”. Em países como Brasil, Estados Unidos e Índia,
um novo ciclo de expropriação de terras (outrora comunais ou não mercantilizadas)
está ocorrendo. Além de serem um belo espaço para lucros ou lucros extraordinários
(basta lembrar que o Brasil é o maior consumidor de agrotóxicos no mundo), tratores
e implementos agrícolas, sementes transgênicas tornaram-se a base da “produção
destrutiva”, que tem acarretado inúmeros problemas socioambientais. No meio rural,
não se pode dizer que “as tecnologias servem para o bem ou para o mal,
dependendo do uso que delas se faz”. São tecnologias perigosíssimas e que
podem ser usadas para reforçar o modo de produção capitalista.
Os movimentos sociais, por sua vez, têm resistido a esta forma de produção e
destruição da vida, dos ecossistemas e das florestas. Os crimes ambientais
produzidos pelas corporações transnacionais do agronegócio estão sendo
contestados e alternativas ainda que quantitativamente pequenas têm sido
realizadas na prática. Uma delas é a produção agroecológica, em policultivos, e
formas de comercialização condizentes com esta produção, livre de venenos e livre
da reprodução do capital.
Este número da Revista Trabalho Necessário um destaque especial ao
debate do papel da tecnologia no capitalismo, a relação entre tecnologia, formação
humana e educação. Pesquisadores da área foram convidados, e uma chamada foi
realizada para estimular o envio de propostas de artigos.
Antonio Gramsci certa vez observou o papel educativo das Revistas, Jornais e
Livros criados pela esquerda. Se os capitalistas desenvolvem seus “Aparelhos
Privados de Hegemonia”, a classe trabalhadora e os movimentos sociais em geral
também desenvolveram seus aparelhos de hegemonia, tendo em vista a disputa da
hegemonia e a construção de uma sociedade autogovernada pelos trabalhadores
associados. Acreditamos que este número da Revista Trabalho Necessário cumpre
este papel fundamental na formação da classe trabalhadora e de seus intelectuais.
Feitas estas considerações gerais, passamos a uma descrição sintética da
organização e composição deste número temático da Revista Trabalho Necessário.
Iniciamos com a seção Homenagem, que traz o texto Opção trabalho e
educação: a trajetória de Celso João Ferretti. Os autores Ronaldo Marcos de Lima
Araújo eDante Henrique Moura destacam a trajetória profissional do grande
pesquisador e ser humano Celso Ferretti, uma das figuras centrais na constituição
do campo crítico da pesquisa educacional brasileira e, mais decisivamente, do
campo Trabalho e Educação.
Na seção TEXTO CLÁSSICO, o pesquisador Daniel Romero, em À procura
de Galápagos: as hipóteses de Marx em ‘Fragmentos sobre as máquinas’ , tece
considerações e comentários sobre a importância deste texto de Karl Marx, que é
apresentado na íntegra em anexo. Dentre as inúmeras questões levantadas por
Marx, destaca-se a atualidade de uma delas: o que ocorre com o processo de
produção capitalista quando a técnica e a ciência se convertem, em escala sempre
crescente, em meios de produção?
A seção ARTIGOS DO NÚMERO TEMÁTICO traz um conjunto de 15 textos
selecionados, nos quais as relações entre tecnologia e formação humana são
abordadas a partir de uma gama diversificada de contextos, problemas, objetos,
lócus e sujeitos de pesquisa, a saber: políticas educacionais e o papel da
tecnociência solidária (Renato Dagnino); formação humana integral e estética
marxista (Benedita Alcidema Coelho dos Santos Magalhães eRonaldo Marcos
de Lima Araujo); inovações científico-tecnológicas e seus desdobramentos e
interpretações (Lucília Regina de Souza Machado); a Teoria da Atividade de
Leontiev (Quenizia Vieira Lopes eAdriana Regina de Jesus Santos); a lei e a
política educacional como artefatos tecnológicos (Melissa Bertolini eFrancis
Kanashiro Meneghetti); inteligência artificial e educação tecnobancária (Tiago
Fávero de Oliveira eBreno Apolinário da Silva); conceito de tecnologia e TDICs
na educação (Patrick Dutra eRafael Rodrigo Mueller); EAD e suas implicações
para o trabalho docente (Filipe Bellinaso eHenrique Tahan Novaes); DCNs,
tecnologia e formação por competências (Luisa Manske eMário Lopes Amorim);
tecnologia digital e a relação público privado na educação (Paula Valim de Lima,
Vera Peroni eDaniela Pires); desigualdades de acesso digital no Ensino Remoto
Emergencial (ERE) e práticas docentes (Maíra Fernandes Costa,Marília Abrahão
Amaral eMario Lopes Amorim); transformações tecno-precarizantes e sofrimento
no trabalho docente (Flavia Maia Cerqueira Rodrigues eCarla Martins); o
teletrabalho na universidade pública (Merielle Martins Alves eMário Borges
Netto); desenvolvimento e uso de aplicativos de tecnologia digital por organizações
de catadores de materiais recicláveis (Paula Dalmás Rodrigues,Sandro Benedito
Sguarezi eDouglas Alexandre de Campos Castrillon Junior); desenvolvimento
de tecnologias digitais para a comercialização de produtos da reforma agrária
(Nathalia Ferreira Gonçales eCelso Alexandre Souza Alvear).
Na seção OUTRAS TEMÁTICAS temos dois textos: o primeiro, de Priscila
Silva de Figueiredo eRita Radl-Philipp, que aborda a problemática do trabalho
das mulheres quilombolas na luta pela terra; o segundo, de Felipe Alencar, que
trata da reforma do ensino médio paulista e seus efeitos, como o apartheid social e
educacional.
A seção RESENHA traz a apresentação de dois livros de publicação recente,
ambos relacionados à questão da tecnologia na atualidade: Colonialismo digital: por
uma crítica hacker-fanoniana (Deivison Faustino e Walter Lippold), resenhado por
Valdir Damázio Júnior; e Trabalho, tecnologia e atividade (Domingos Leite Lima
Filho e Rafael Rodrigo Mueller), resenhado por Patrick Dutra eBeatriz Almeida de
Oliveira.
Tecnologias digitais e plataformização do trabalho e da educação: desafios
para a classe trabalhadora é o título da ENTREVISTA concedida pela professora
Adriana Mabel Fresquet (UFRJ) aos pesquisadores do NEDDATE/UFF (professor
Regis Arguelles e professora Adriana Barbosa).
São apresentados dois ENSAIOS:Ensino Médio: pauta para debate, de
Paolo Nosella;eSobre os déficits ecológicos na formação de economista, de
Eduardo Barreto.
A seção TESES E DISSERTAÇÕES traz os resumos expandidos da tese de
doutorado de Rosana de Fátima Silveira Jammal Padilha, intitulada A significação
da docência EBTT à luz da Teoria da Atividade e da dissertação de mestrado de
Luciano Silva com o título Educação e força de trabalho em uma economia
primário-exportadora: o panorama das ocupações para os egressos do ensino médio
da microrregião de Capanema-PR.
Na seção MEMÓRIA E DOCUMENTOS, que encerra o presente número da
Revista Trabalho Necessário, temos dois textos: o primeiro A disputa por políticas
públicas progressistas: relato da Conferência livre de tecnologia social, economia
solidária e tecnologia assistiva, de autoria de Felipe Addor,Sandra Rufino eEtiane
Araldi; o segundo, Decretos sobre educação a distância (EAD): alguns comentários,
de Francisco José da Silveira Lobo.
Como organizadores deste número, gostaríamos de agradecer o convite feito
pela incansável Profa. Dra. Lia Tiriba e toda a equipe técnica e de editores/as da
Revista Trabalho Necessário e ao apoio do coletivo do NEDDATE, que não
hesitaram em trabalhar arduamente durante estes 4 meses que levaram à
construção deste número.
Domingos Leite Lima Filho eHenrique Tahan Novaes
Marília, Curitiba e Niterói, 05/08/2024
V.22, 48 - 2024 (maio-agosto) ISSN: 1808-799 X
OPÇÃO TRABALHO E EDUCAÇÃO:
A TRAJETÓRIA DE CELSO JOÃO FERRETTI1
Ronaldo Marcos de Lima Araujo2
Dante Henrique Moura3
É muito honroso escrever sobre a trajetória profissional do grande
pesquisador e ser humano que é Celso Ferretti. É um privilégio e um desafio realizar
3Doutor em Educação pela Universidade Complutense de Madri, Espanha. Professor do Instituto
Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte (IFRN), Brasil.
E-mail: dante.moura@ifrn.edu.br. Lattes: https://lattes.cnpq.br/1720357515433453.
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8457-7461.
2Doutor em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Brasil. Professor da
Universidade Federal do Pará (UFPA), Brasil. E-mail: rlima@ufpa.br.
Lattes http://lattes.cnpq.br/7901626430586502. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5982-793X.
1Artigo recebido em 08/05/2024. Aprovado pelos editores em 07/06/2024. Publicado em 07/08/2024.
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v22i48.63971.
Os autores agradecem a colaboração de Cláudia Vianna, Gaudêncio Frigotto, Maria Ciavatta e
Domingos Leite Lima Filho, que forneceram informações e fizeram correções necessárias.
1
essa incumbência. Ele é um simpático senhor de cabelos brancos, cultivados
algumas décadas. Simpático mesmo! Uma pessoa de convívio agradável e fácil, e
isso é um consenso entre seus muitos amigos e alunos.
É também conhecido como um exímio pesquisador profissional, conhecedor e
experimentado investigador, meticuloso no uso adequado dos diferentes
procedimentos de coleta, análise e de comunicação das pesquisas que fizeram dele
uma referência na educação brasileira, em particular para o campo Trabalho e
Educação, tendo ajudado decisivamente na sua consolidação.
Celso nasceu em 11 de novembro de 1935, no município paulista de Espírito
Santo do Pinhal, na divisa com Minas Gerais. cursou o primário, o ginásio e o
colegial em escolas públicas. É de família de origem italiana, filho de pai bancário e
de mãe dona de casa. Professor primário, pedagogo de formação com habilitação
em orientação educacional, curso concluído em 1963. Celso atuou como técnico
educacional durante muitos anos, o que foi decisivo para a sua identificação com o
campo Trabalho e Educação, pois foi a partir desse contexto profissional que
desenvolveu estudos sobre a orientação profissional e focou na relação entre a
escola e o trabalho. Tem mestrado em Educação, concluído em 1974, e
doutoramento também em Educação, cuja conclusão ocorreu em 1987. Celso
produz regularmente na área de educação, focando em temas tais como política
educacional, ensino médio, as relações entre educação e trabalho e educação
profissional.
No curso colegial teve como professor o filósofo e pedagogo Joel Martins, que
mais tarde veio a ser importante pesquisador e professor da Universidade de São
Paulo, um dos fundadores dos Centros Regionais de Pesquisas Educacionais
CRPE , vinculados ao Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos INEP4. Essa
relação ajudou Celso a tomar gosto pela atividade de pesquisa.
Celso queria fazer o antigo curso científico, mas foi o pai quem o obrigou a
fazer o curso normal, a contragosto. Acabou seguindo a carreira docente, tendo
trabalhado como professor primário substituto no município de Espírito Santo do
4Criado pela Lei n. 378/1937 como Instituto Nacional de Pedagogia passou a denominar-se Instituto
Nacional de Estudos Pedagógicos por meio do Decreto-Lei 580/1938. Em 1972, passou a se
chamar Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais. Atualmente denomina-se Instituto
Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, denominação atribuída em 2001 pelo
Senado Federal, em homenagem a um de seus principais ex-diretores. Disponível em:
<https://www.gov.br/inep/pt-br/acesso-a-informacao/institucional/historia>. Acesso em 06 de maio de
2024.
2
Pinhal-SP e depois na Escola Estadual Alberto Torres, no bairro do Butantã, em São
Paulo. Mas, neste início de carreira, estava insatisfeito com a falta de perspectivas
para a carreira de professor.
Foi em um reencontro com o Professor Joel Martins, em São Paulo, no
CRPE de São Paulo, que novas possibilidades para a carreira docente foram
colocadas. Teve a oportunidade de participar de um processo seletivo para uma
bolsa de formação nos Estados Unidos da América (EUA), na linha da Escola Nova.
Depois de fazer um curso rápido de inglês, foi selecionado, junto com outras três
professoras, e passou o ano de 1958 nos EUA, em um curso de formação financiado
pelo Programa de Assistência Brasileiro-Americano ao Ensino Elementar PABAEE
, patrocinado pelo acordo MEC-USAID5, que tinha como objetivo formar
professores das escolas primárias com novas estratégias escolares orientadas pelo
progressivismo pedagógico, então dominante no pensamento educacional brasileiro.
Voltou em 1959 e, sob a perspectiva colocada acima, participou do processo
de criação da Escola de Demonstração de Professores e do curso de especialização
de professores para América Latina, coordenado por Joel Martins no CRPE de São
Paulo, com apoio de Fernando Azevedo, no Centro de Pesquisas Educacionais, e
de Anísio Teixeira, na presidência do INEP, pessoas com quem Celso conviveu e
que tiveram importância em seu processo de formação.
Aos 28 anos, em 1963, passou no vestibular de Pedagogia na Universidade
de São Paulo (USP), onde conviveu com José Mário Pires Azanha, Moisés Brejon,
Heládio Antunha, Maria Amélia Goldberg, Celso Beisiegel, Sylvia Leser de Mello,
Guiomar Namo de Melo e Maria José Garcia Werebe. Nesse período, teve maior
contato com o pensamento político de esquerda, se contrapondo, junto com seus
colegas, ao pensamento liberal defendido, entre outros, pelo Professor Roque
Maciel de Barros, então diretor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (que
aglutinava o curso de pedagogia) e articulista do Jornal Estado de São Paulo.
5“Série de acordos produzidos, nos anos 1960, entre o Ministério da Educação brasileiro (MEC) e
a United States Agency for International Development (USAID). Visavam estabelecer convênios de
assistência técnica e cooperação financeira à educação brasileira. Entre junho de 1964 e janeiro de
1968, período de maior intensidade nos acordos, foram firmados 12, abrangendo desde a educação
primária (atual ensino fundamental) ao ensino superior. O último dos acordos firmados foi no ano de
1976.” Tais acordos foram duramente criticados pelo movimento estudantil da época que via neles o
projeto de privatização da educação brasileira. Disponível em:
<https://www.histedbr.fe.unicamp.br/navegando/glossario/mec-usaid#:~:text=Visavam%20estabelecer
%20convênios%20de%20assistência,ensino%20fundamental)%20ao%20ensino%20superior>.
Acesso em 06 de maio de 2024.
3
Sob influência do chamado tecnicismo educacional, o curso de pedagogia, na
década de 1960, era regulamentado pela primeira LDB, Lei 4.024/1961, e, a partir
de 1962, passou a ser regulamentado também pela Resolução do Conselho Federal
de Educação (CFE) 62, que incorporou o Parecer CFE 251/1962, que tomava o
pedagogo como um especialista em educação.
Celso, então, motivado por Maria José Werebe, professora do Setor de
Orientação Educacional da USP, foi para a área da Orientação Educacional, que era
forte naquela instituição em função da atuação deste setor no Colégio de Aplicação.
Essa acabou sendo a sua porta de entrada para o campo Trabalho e Educação, pois
a orientação vocacional/profissional seria parte integrante daquela área.
Nesse período, aumentou a sua proximidade com o pensamento político de
esquerda e sua ação política na área de educação. Por isso, ele e seus colegas de
graduação eram chamados de “os comunistas”. Não participou ativamente de
nenhuma organização ou partido político, mas chegou a ser preso na Operação
CRUSP6, em 1968, sendo logo liberado. Em 1978 participou do início da fundação
do PT, no Núcleo de Perdizes, sem dar continuidade à militância partidária, apesar
de manter-se como ativo sujeito político de esquerda.
Ainda em 1968 foi contratado como professor do Setor de Orientação da
Feusp, junto com Maria Werebe e Sylvia Leser. Mas esse vínculo foi interrompido
por um pedido coletivo de demissão em apoio à colega Guiomar Namo de Melo, que
fora demitida por Roque Maciel de Barros.
Em 1970, passou em concurso para Orientador Educacional da Rede
Estadual de Educação de São Paulo, sendo vinculado à Escola Estadual Virgília
Rodrigues Alves de Carvalho Pinto, onde consolidou a sua atuação como técnico
educacional, exercendo também essa função na Escola Santa Maria.
Seu interesse pela orientação educacional o direcionou para o mestrado na
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), iniciado em 1970, na área
da Educação, mas na subárea da Psicologia da Educação, disciplina que, ainda sob
a influência do tecnicismo educacional, inspirava decisivamente as teorias e práticas
de orientação educacional. Foi orientando da Maria Amélia Azevedo Goldberg e
6A Operação CRUSP ocorreu no Conjunto Residencial da USP, na Cidade Universitária de São
Paulo, onde, “Na madrugada de 17 de dezembro de 1968, as tropas do exército cercaram o CRUSP,
prenderam 1400 estudantes, fecharam o Conjunto Residencial e instauraram um IPM Inquérito
Policial Militar, que resultou em processo e ordem de prisão para 32 residentes.” Disponível em:
https://crusp68.org.br/node/1#:~:text=Na%20madrugada%20de%2017%20de,de%20pris%C3%A3o%
20para%2032%20residentes. Acesso em 24 de abril de 2024.
4
defendeu a dissertação intitulada “A avaliação de um programa em formação escolar
profissional”, em 1974.
Depois do mestrado começou a sua trajetória como profissional da pesquisa.
Em 1975, foi assistente de pesquisa de Maria Amélia Azevedo, no Departamento de
Pesquisas Educacionais da Fundação Carlos Chagas.
É esse exercício da pesquisa que o direciona para o doutorado na PUC-SP,
em 1982, no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Educação (hoje
Educação: História, Política e Sociedade), fortemente influenciado pelas ideias de
Dermeval Saviani, um dos fundadores daquele Programa. Durante o doutorado, teve
maior contato com uma literatura crítica, de base marxista, e teve como professores
Dermeval Saviani, Miriam Warde, Maria Helena Patto,Carlos Jamil Cury e seu
orientador Evaldo Amaro Vieira, que foram importantes para que Celso passasse a
tomar seus objetos de estudo numa perspectiva “sócio-econômico-cultural”, como
define seu estudo sobre a trajetória ocupacional de trabalhadores, em contraponto
às abordagens mais “psicologizantes”, características dos estudos de orientação
profissional da época7. Esse curso foi importante para a formação de uma geração
de pesquisadores brasileiros que, nele, teve contato com obras de Marx, Engels,
Gramsci e autores marxistas brasileiros como Francisco de Oliveira e Florestan
Fernandes. Celso estudou sistematicamente a economia política (estudou O Capital
sob a supervisão de Antonio Joaquim Severino), o método do materialismo histórico
e suas categorias e assumiu ali uma perspectiva unitária da ciência.
Assim como Celso, alguns de seus contemporâneos de doutorado se
constituiriam em grandes pesquisadores de áreas importantes da educação
brasileira, entre eles lembramos Gaudêncio Frigotto (a relação entre educação
escolar e estrutura econômico-social capitalista), Vitor Paro (administração escolar),
Manoel de Jesus Soares (filosofia) José Luiz Sanfelice (movimento estudantil),
Celestino Alves da Silva Junior (supervisão escolar), Selma Garrido Pimenta
(orientação educacional), Lucília Machado (unificação escolar e hegemonia), Acácia
Kuenzer (a formação do trabalhador) e Naura Carapeto Ferreira (indivíduo e
sociedade). Celso, portanto, compôs e é expressão de uma geração que ajudou na
7Opção: Trabalho trajetórias ocupacionais de trabalhadores das classes subalternas. (FERRETTI,
1988a).
5
constituição do campo crítico da pesquisa educacional brasileira e, mais
decisivamente, do campo Trabalho e Educação.8
Esse aprofundamento de sua formação teórica marxista foi determinante não
apenas para a condução de seus estudos doutorais, mas para toda a sua vida
profissional seguinte, marcada pelo rigoroso uso do referencial eleito e pelos
estudos sobre a relação entre as transformações do mundo do trabalho e a
educação básica e profissional. Nesse período, portanto, se a sua opção pelo
campo Trabalho e Educação e pelo marxismo.
Em 1987, defendeu a tese intitulada “Trabalho e Orientação Profissional um
estudo sobre a inserção de trabalhadores da grande São Paulo”, a qual foi publicada
como livro, em 1988, (citado na nota 7 e incluído nas referências). Nele Celso tece
uma crítica às bases pedagógicas, psicológicas e às práticas da orientação
profissional (e concretiza o seu detour teórico), que pressupunha a escolha e a
vocação para o exercício profissional, que a suposta “escolha profissional”, na
sociedade de classes, é restrita a quem tem condições materiais e informações para
fazê-la e, quanto à vocação, é o prefaciador do livro quem explica:
Ninguém tem vocação para operar ou vigiar uma máquina, ou
carregar, limpar, arrumar o dia inteiro um local, um fluxo de materiais,
documentos etc. tarefas rotineiras, monótonas, repetitivas que
compõem em geral toda atividade subprofissional não podem ser
objeto de vocação e, portanto, estão fora do âmbito da Orientação
Profissional (SINGER, 1988, X).
Concluída a sua formação acadêmica e aposentado da rede estadual de
ensino em 1990, Celso passa a exercer exclusivamente as atividades de docência
na educação superior e de pesquisa na Fundação Carlos Chagas, onde foi aprovado
em concurso para a função de pesquisador, permanecendo até a sua
aposentadoria em 2008. Em 1988, entrou como professor da PUC-SP e permaneceu
ali até 2002. Depois assumiu a docência na Universidade de Sorocaba (Uniso), onde
permaneceu até 2010.
De 2012 até 2016, foi professor Pesquisador Visitante Nacional Senior
(PVNS) na Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR) na qualidade de
8Para Maria Ciavatta Franco, “Dermeval Saviani, formou um primeiro grupo de pesquisadores que
delinearam o percurso do campo TE [Trabalho e Educação]: Acácia Kuenzer, Gaudêncio Frigotto,
Lucília Machado, Paolo Nosella, Celso Ferretti. Também se tornaram referência na área Miguel
Arroyo e Iracy Picanço” (CIAVATTA, 2015, p. 28).
6
bolsista da CAPES. Neste período, integrou-se ao Grupo de Estudos e Pesquisas
em Trabalho, Educação e Tecnologia (GETET) e, mesmo após a conclusão de sua
estada como bolsista, segue até o presente atuando neste grupo de pesquisa.
Para Domingos Leite Lima Filho (2024, s/p), coordenador do GTET/UTFPR:
No período de sua permanência em Curitiba, a contribuição de Celso
para o GETET e para o PPGTE foi fundamental para a consolidação
teórico-metodológica do programa e do grupo de pesquisa e avanço
na formação de novos pesquisadores e pesquisadoras. Participou
ativamente em inúmeras atividades, dentre as quais destaco:
integrante da equipe da pesquisa “Políticas públicas para o Ensino
médio e o PNFEM: potencialidades e obstáculos para a construção
formação humana integral” (GETET-CNPq, 2014-2016); integrante da
equipe de organização e coordenação do III INTERCRÍTICA (GETET
GT09 ANPEd, 2016); ministrou a disciplina Qualificação
Profissional para alunos de mestrado e doutorado do PPGTE, 2013;
orientou dissertação de mestrado (2012-2014); realizou pesquisa
sobre o implantação do ensino médio integrado no IF Paraná (2012
2016); ministrou diversas palestras em eventos da UTFPR e
outros.
Como se vê, Celso manteve regular, intensa e qualificada atividade
intelectual. Nelas assumiu a docência, na graduação e na pós-graduação, a gestão
de programa e orientou 38 mestres e doutores. Dessa forma, sua produção
bibliográfica é vasta e rigorosa, constituída de livros, capítulos e artigos publicados
em periódicos que ajudaram (e continua ajudando) a formar gerações de
profissionais e pesquisadores da área de educação, em particular daqueles
vinculados ao campo de estudo da relação entre o trabalho e a educação.
Alguns de seus livros abordam aquilo que Umberto Eco chama de “temas
quentes”, ou seja, temas atuais, que ainda desafiam uma determinada área em
função de seu pouco conhecimento. Em 1988, quando ainda iniciava o debate
acerca da escola de tempo integral, publica junto com Vitor Paro, Claudia Vianna e
Denise Souza o livro “Escola de tempo integral: desafio para o ensino público” (Paro;
Ferretti; Vianna; Souza, 1988), com edição da Cortez/Autores Associados.
Em 1988, quando fez uma colaboração com o SENAC, publicou pela Editora
Cortez o livro “Uma Nova Proposta de Orientação Profissional” (Ferretti, 1988b), que
deu um giro na área de orientação profissional, com uma crítica de sua própria
experiência de orientação educacional e orientação profissional. Nele defende a
informação profissional como ferramenta chave para a orientação profissional.
7
Em 1994, junto com Dagmar Zibas, Felícia Madeira e Maria Laura Franco
publica pela Editora Vozes a coletânea “Novas Tecnologias, Trabalho e Educação”
(Ferretti; Zibas; Madeira; Franco, 1994) que se torna referência para quem estuda o
impacto das novas tecnologias em uso no trabalho moderno, da empresa flexível,
sobre a educação, a qualificação profissional e a escola.
Na mesma direção, publica em 1998, junto com João dos Reis Silva Junior e
Maria Rita Oliveira, a coletânea “Trabalho, formação e currículo: para onde vai a
escola?” (Ferretti; Silva Júnior; Oliveira, 1998), fruto de um seminário realizado na
PUC-SP. O conjunto de autores reunidos analisam a relação entre os novos padrões
produtivos da empresa integrada e flexível e seus impactos sobre a educação
escolar. Nele enfrentam o debate do currículo e das práticas pedagógicas e os
desafios colocados aos profissionais da escola diante das transformações societais
do final do século passado.
Publicou dezenas de artigos que revelam a sua trajetória. Os primeiros, ainda
da década de 1970, focados na orientação educacional e na orientação profissional.
Na década de 1990, seus artigos privilegiam o debate da qualificação profissional e
da formação de trabalhadores e, a partir dos 2000, o foco principal é nas políticas
educacionais, em particular naquelas destinadas à organização do ensino médio e
da educação profissional brasileira. Sempre numa perspectiva crítica e sob a
inspiração clara e madura das leituras de Marx e Gramsci, suas principais
referências.
Suas publicações mais recentes estão concentradas em periódicos
especializados na área de educação e versam, majoritariamente, sobre a relação
entre o ensino médio e a educação profissional técnica de nível médio. Nesse
contexto tem sido intelectual combativo à atual reforma do ensino médio
determinada pela Lei n013.415/2017 e seus dispositivos complementares (Ferretti, ,
2022; 2019, 2018a, 2018b, 2016a, 2016b)
Celso é um pesquisador respeitado e querido pelos pares e por seus alunos.
É reconhecido por sua importância em particular para o campo Trabalho e Educação
tendo recebido diferentes homenagens nos principais eventos que tratam dessa
relação.
É pesquisador militante, membro da diretoria do Centro de Estudos Educação
e Sociedade (CEDES) e da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em
8
Educação (ANPED) desde a sua fundação, onde milita de forma orgânica no Grupo
de Trabalho Trabalho e Educação (GT-09). É frequentador do INTERCRÍTICA
Intercâmbio Nacional dos Núcleos de Pesquisa em Trabalho e Educação e exerce
ainda hoje a função de Editor Associado da importante Revista Educação &
Sociedade.
Domingos Leite Lima Filho (2024, s/p), amigo de Celso, cuja amizade
intensificou-se durante sua estada na UTFPR, sintetiza assim esse convívio:
[..] durante quatro anos tive a imensa alegria e privilégio de conviver
com o Celso, anos formidáveis de grande amizade intelectual e
afetiva. Celso, amante da boa conversa, cinéfilo (não recusa convite
para qualquer sessão de cinema, sempre atualizado), de um bom
vinho e tudo o mais. Além do intelectual, o festeiro, junto com Cláudia
(sua querida esposa) não recusa um forró, ou mesmo desfile de
bloco carnavalesco, aqui em Curitiba, fomos a mais de um desfile do
Bloco Garibaldis e Sacis, do qual sou fundador. Também é um
militante, acompanhou conosco diversas lutas dos professores
federais e também da APP sindicato dos professores da rede
estadual do Paraná. E tudo isso sempre com o humor em alto astral.
Celso é casado com a também pesquisadora Cláudia Viana desde 1984, teve
três filhos com sua primeira companheira. Duas meninas e um menino: Sandra
(falecida), Mônica e Eduardo que lhe deu dois netos: Gabriela e Leonardo.
Atualmente mora em Vargem Grande Paulista, cidade da região metropolitana
da cidade de São Paulo. Quando não está trabalhando, curte Jazz, cinema e
fotografia. Respeitando a sua origem, não abre mão de um bom vinho e de uma boa
comida, principalmente na companhia dos amigos e da sua Cláudia.
Trajetória acadêmico-profissional de um educador
comprometido com a Classe Trabalhadora
9
Foto 1: Celso, nos EUA
Foto 2: Celso, na escola de demonstração do CREPE
10
Foto 3: Celso Ferretti, homenageado no III Intercrítica, realizado na UTFPR, Curitiba, setembro/2016
Foto 4: Fernando Fidalgo, João dos Reis Jr, Acácia Kuenzer, Celso Ferretti e Maria Ciavatta
11
Foto 5: Celso Ferretti, Eduardo (filho), Sandrinha (nora), Claudia (esposa) e Gabriela (neta)
Foto 6: Celso Ferretti e Mônica (filha)
12
Foto 7: Leo (genro), Leo (neto), Sandrinha (nora), Cláudia (esposa), Celso Ferreti, Mônica (filha),
Eduardo (filho), Gabriela (neta)
Foto 8: Cláudia Viana (esposa) e Celso
13
Referências
CIAVATTA, M. O percurso do GT Trabalho e Educação: um exercício de
interpretação. Trabalho Necessário, v. 13, p. 22-50, 2015.
FERRETTI, C. J. Opção: Trabalho trajetórias ocupacionais de trabalhadores das
classes subalternas. São Paulo: Cortez/Autores Associados, 1988a.
FERRETTI, C. J. Uma Nova Proposta de Orientação Profissional. São Paulo:
Cortez, 1988b.
PARO, V. H; FERRETTI, C. J.; VIANNA, Claudia P.; SOUZA, Denise T. R. Escola de
tempo integral: desafio para o ensino público. São Paulo: Cortez/Autores
Associados, 1988. v. 1. Disponível em <
https://www.vitorparo.com.br/wp-content/uploads/2019/10/2-escoladetempointegral-c
ompleto.pdf> Acesso: 24. abr. 2024.
FERRETTI, C. J.; ZIBAS, Dagmar M. L.; MADEIRA, Felícia R.; FRANCO, Maria
Laura P. B. (Orgs.). Novas tecnologias, trabalho e educação: um debate
multidisciplinar. Petrópolis: Vozes, 1994.
FERRETTI, Celso J.; SILVA JUNIOR, João R.; OLIVEIRA, Maria R. N. S (Orgs.).
Trabalho, formação e currículo: para onde vai a escola? São Paulo: Xamã, 1998.
FERRETTI, C. J. Reformulações do ensino médio. Holos (Natal. Online), v. 6, p.
71-91, 2016a.
FERRETTI, C. J. A implementação dos cursos técnico integrados no Instituto
Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Paraná. Educere et Educare
(Impresso), vol. 11, 23, jul./dez. 2016b.
FERRETTI, C. J. A reforma do ensino médio: desafios à educação profissional.
Holos (Natal. Online), v. 4, p. 261-271, 2018a.
FERRETTI, C. J. A reforma do Ensino Médio e sua questionável concepção de
qualidade da educação. Estudos Avançados, v. 32, p. 25-42, 2018b.
FERRETTI, C. J. Limites e contribuições da educação para a formação de
trabalhadores. Cadernos de pesquisa, v. 26, p. 60, 2019.
FERRETTI, C. J. Resistências à Reforma do Ensino Médio brasileiro: possibilidades
e limites. Revista Brasileira de Educação profissional e Tecnológica, v. 1, p.
1-22-22, 2022.
LIMA FILHO, D. L. [Conversa sobre Celso Ferretti]. WhatsApp: 26 abr. 2024.
19:15. 1 mensagem de WhatsApp.
SINGER, P. Prefácio. In: FERRETTI, Celso. Opção: Trabalho trajetórias
ocupacionais de trabalhadores das classes subalternas. São Paulo: Cortez/Autores
Associados, 1988a.
14
V.22, 48 - 2024 (maio-agosto) ISSN: 1808-799 X
À PROCURA DE GALÁPAGOS:
AS HIPÓTESES DE MARX EM FRAGMENTOS SOBRE AS MÁQUINAS”1
Daniel Romero2
Se pudéssemos escutar os pensamentos de Marx em tempo real, o que
ouviríamos? Assim como qualquer pessoa, Marx seguramente pensava em voz alta
quando estava imerso em suas pesquisas. Se estivéssemos ao seu lado, o que
teríamos a oportunidade de escutar deste Marx sem filtros? Quais ideias teriam
surgido, mas abandonadas? Quais teriam sido apenas delineadas e guardadas para
mais tarde e, finalmente, quais teriam criado raízes e se tornado, posteriormente,
elementos chaves de seu pensamento?
O texto ora publicado pela Revista Trabalho Necessário é o mais próximo que
podemos chegar de uma experiência como esta. Em Fragmentos sobre as
Máquinas (ver anexo), Marx está conversando consigo mesmo, em altíssima voz,
levantando uma série de hipóteses, botando-as no papel para organizar seus
próprios pensamentos e avaliar até onde elas podem ir.
Aquele que se dispuser a viver esta experiência, uma bela jornada o espera,
porque aqui temos o Marx dos Grundrisse. Como se sabe, é nos manuscritos
escritos em 1857-1858 que é possível presenciar conceitos centrais da sua crítica da
Economia Política sendo desenvolvidos pela primeira vez, como é o caso do
mais-valor.
Antes de uma obra completa, ela seria melhor caracterizada como uma fase
de experimentações, na qual o seu objetivo é testar ideias. Não devemos tomar isso
como um demérito, pois é justamente em função disso que temos uma explosão de
2Mestre em Sociologia pela Unicamp e doutorando em Ciências Sociais pela Universidade Federal da
Bahia (UFBA), Brasil. Professor de Sociologia do Instituto Federal da Bahia (IFBA), Brasil.
Pesquisador no Laboratório de Humanidades Digitais (LABHD-UFBA).
Email: romeromab@yahoo.com.br.Lattes: https://lattes.cnpq.br/6908390678539380.
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0411-7436.
1Artigo recebido em 05/04/2024. Aprovado pelos editores em 10/07/2024. Publicado em 07/08/2024.
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v22i48.63729.
1
criatividade. Podemos considerar que os Grundrisse estão para Marx assim como a
viagem a bordo do Beagle está para Darwin.
A Bordo do Beagle
Se os Grundrisse são o momento em que ideias estão sendo testadas, quais
exatamente são as que estão sob escrutínio em Fragmentos sobre as Máquinas?
Neste texto, Marx levanta a seguinte questão: o que ocorre com o processo de
produção capitalista quando a técnica e a ciência se convertem, em escala sempre
crescente, em meios de produção? Marx compreende que o processo de
acumulação capitalista implica uma tendência histórica de substituição do trabalho
vivo por trabalho morto. Assim, como exercício de reflexão, o que ocorre se
levarmos ao limite esta tendência histórica?
A partir deste questionamento, Marx elabora duas instigantes hipóteses, cada
uma delas relacionada a um “momento” do processo de produção: tanto o processo
de trabalho quanto o processo de valorização se convertem em seu contrário.
No primeiro caso, Marx desenvolve a ideia de como, por meio da técnica e da
ciência, o capital consegue obter um maior controle do processo de produção ao
concentrar as atividades de concepção no sistema de máquinas a ponto do trabalho
se converter em algo acessório:
“O processo de produção deixou de ser processo de trabalho no
sentido de processo dominado pelo trabalho como unidade que o
governa. Ao contrário, o trabalho aparece unicamente como órgão
consciente, disperso em muitos pontos do sistema mecânico em
forma de trabalhadores vivos individuais, subsumido ao processo
total da própria maquinaria, ele próprio um membro do sistema,
cuja unidade não existe nos trabalhadores vivos, mas na
maquinaria (p. XX, grifo nosso) [p. 218 da edição em espanhol].
Não se trata apenas do fato de que o sistema de máquinas impede que se
possa rastrear o trabalho imediato dos trabalhadores individuais. Para além disso,
aqui se trata da expropriação do conhecimento sobre o trabalho, de seu saber-fazer,
e de sua concentração no sistema de máquinas um autômato –, delegando aos
trabalhadores submetidos ao processo de mecanização atividades auxiliares, de
baixa qualificação. Para controlar o processo de trabalho, a estratégia do capital
consistiu na concentração do saber, uma forma de poder ditar tanto o ritmo do
trabalho quanto sua forma e sua escala.
2
Neste sentido, o trabalho concreto, criador de valores de uso, assume uma
forma cada vez mais abstrata e indistinta, de mero gasto de tempo e de energia. É
neste sentido que o processo de produção deixa de ser processo de trabalho, pois o
trabalho concreto se converte, na prática, em mera abstração.
Ressalto novamente que Marx não está procurando delinear casos empíricos
específicos, mas tendências históricas. Conforme se amplia o processo de
acumulação do capital, em que direção aponta a presença cada vez mais
preponderante da aplicação da técnica e da ciência? Concentração do saber-fazer
em sistemas automáticos com vistas a obter maior controle sobre o processo de
produção, com sua consequente desqualificação do trabalho.
A segunda hipótese levantada por Marx procura analisar o mesmo cenário,
mas agora sob a perspectiva do valor. Devido à busca constante pelo aumento da
produtividade do trabalho resultando na substituição de trabalho vivo por trabalho
morto, o trabalho e tempo de trabalho deixariam de ser fontes e medida da riqueza,
respectivamente. A transformação da ciência em meio de produção implicaria a
explosão dos próprios fundamentos da produção capitalista, ao tornar a exploração
do trabalho alheio como algo sem sentido. Assim, acrescenta Marx, “o capital
trabalha em favor de sua própria dissolução como forma dominante de produção” (p.
XX). [p. 221 da edição em espanhol]
E Marx conclui seu raciocínio com a passagem mais reproduzida dos
Fragmentos:
“O desenvolvimento do capital fixo indica até que ponto o saber
social geral, conhecimento, deve ter força produtiva imediata e, em
consequência, até que ponto as próprias condições do processo vital
da sociedade ficaram sob o controle do ‘intelecto geral’ e foram
reorganizadas em conformidade com ele. Até que ponto as forças
produtivas da sociedade são produzidas, não na forma do saber,
mas como órgãos imediatos da práxis social; do processo real da
vida” (p. XX). [p. 227-228 da edição em espanhol].
Assim, o conhecimento social como um todo teria, ele próprio, se tornado uma
força produtiva em favor do capital e submetido o conjunto das relações sociais, da
reprodução da vida em suas diversas dimensões.
Em síntese, Marx procura refletir o que significa levar ao limite a tendência
histórica de substituição do trabalho vivo por trabalho morto. Nesta jornada, o
processo de produção capitalista se converte em seu contrário: o processo de
3
trabalho deixaria de ser pautado pelos trabalhadores imediatos e a lei do valor
deixaria de ser a base sobre a qual se organizaria a produção social. De um lado,
subsunção do trabalho; de outro, superação da teoria do valor-trabalho.
É desnecessário lembrar que isto motivou intensos debates no campo do
marxismo, especialmente a partir das leituras do autonomismo italiano, tendo
inspirado diversas teses em torno do trabalho imaterial, capitalismo cognitivo e
trabalho gratuito.
Não é o espaço aqui para discutir as teses contemporâneas, mas considero
importante analisar qual o tratamento que as hipóteses de investigação levantadas
por Marx receberam em obras posteriores aos Grundrisse. Afinal, entre as ideias
testadas nos Fragmentos, quais foram consideradas mais promissoras pelo próprio
autor e quais não foram mais retomadas?
À procura de Galápagos
Em obras posteriores aos Grundrisse, o tema da subsunção do trabalho ao
capital passa a ocupar um espaço cada vez maior e um tratamento cada vez mais
denso e detalhado. Inicialmente nos Manuscritos de 1861-63 (MARX, 1980),
passando pelo manuscrito conhecido como Capítulo VI Inédito (2022) e, por fim, no
próprio Livro I de O Capital (2023).
Marx destaca a diferença entre máquina e ferramenta, aprofunda a discussão
sobre subsunção formal e subsunção real, desenvolve a categoria de trabalhador
coletivo, além das diversas formas de mais-valor, absoluta, relativa e extra (Romero,
2005).
Se podemos dizer que uma ideia criou raízes, foi esta. Marx aportou em sua
Galápagos por meio de dois esforços: de um lado, se dedicou a estudar os
enfadonhos materiais de uma série de engenheiros, industriais e cientistas sobre o
sistema de máquinas nascente; mas também se valeu dos relatórios dos fiscais de
fábricas e das ações do próprio movimento operário britânico, com apoio precioso de
Engels.
No nosso entendimento, portanto, quando Marx analisa a substituição de
trabalho vivo por trabalho morto sob o prisma do processo de trabalho, aqui um
ponto de continuidade e de aprofundamento entre os Grundrisse e as obras
seguintes. A ideia segundo a qual o processo de trabalho se converte em seu
4
oposto, inicialmente uma simples hipótese testada ao limite, se torna a tese central
que Marx apresenta ao analisar o longo processo de formação da Grande Indústria.
Ironicamente, é como se Marx estivesse contando a história de uma luta pela
emancipação, mas da tentativa de emancipação do capital frente à habilidade,
destreza e qualificação do trabalhador. No entanto, este fio de continuidade não se
observa quando o foco é o processo de valorização com a hipótese da superação da
lei do valor. Neste âmbito, as mudanças são significativas. A começar pelo fato de
que Marx não utiliza novamente o termo “intelecto geral” em obras posteriores
(Marques, 2022).
Além disso, um elemento chama atenção quando comparamos a “arquitetura”
dos Grundrisse com estes materiais: se no manuscrito de 1857-58, o “Fragmentos
sobre as Máquinas” está na seção do processo de circulação, articulado à discussão
do capital fixo, nas obras seguintes uma mudança “espacial” do objeto, ficando
circunscrito ao processo de produção e relacionado ao capital constante e ao
aumento da composição orgânica do capital.
Esta mudança não é fortuita. Como sabemos, processo de trabalho e
processo de valorização são dissociados como recurso analítico, uma vez que
processo de produção é a articulação de ambos. Ao pensar no processo de trabalho,
a questão que Marx delineia diz respeito ao papel da ciência e da técnica na disputa
sobre o controle do processo de produção, seu ritmo, escala e forma de trabalho.
Ao analisar em obras posteriores sobre as contradições do processo de
valorização decorrentes da substituição de trabalho vivo por trabalho morto, a
discussão ganha contornos muito diferentes daquele apresentado nesta parte dos
Grundrisse: a hipótese da superação da lei do valor e de dissolução do capitalismo
cede espaço para a análise sobre as crises do capital, com suas tendências e
contratendências.
Embora Marx não tenha conseguido elaborar o Livro IV de O Capital, que
seria dedicado ao mercado mundial e suas crises, ainda assim claramente uma
Teoria das Crises em Marx e o caminho adotado é muito distinto da ideia de
superação da lei do valor (Romero, 2009).
5
Quão longe podemos ir com Marx dos Grundrisse?
Ainda muito a se extrair dos Grundrisse. Um pequeno exercício pode nos
ajudar a ter a dimensão disso: peço que releiam a primeira citação em destaque
desta apresentação, mas no lugar de maquinaria substituam por plataformas e ao
invés de sistema mecânico, substituam por sistema digital. Com estas simples
alterações, um pesquisador contemporâneo poderia se valer destas observações
para lançar luz sobre as plataformas de micro-trabalho, aquelas responsáveis por
organizar os bancos de dados que alimentam as Inteligências Artificiais.
O maior hype do capitalismo atual está baseado em processo de trabalho que
não é processo de trabalho, tanto no sentido indicado por Marx nos Grundrisse,
mas também no fato de não se apresentar enquanto tal. Um livro com esta
vivacidade, passados mais de 150 anos, demonstra o quanto Marx é um autor
essencial para compreender o capitalismo contemporâneo.
Convite
São cerca de 10 horas da noite e Marx vai começar seu terceiro turno de
trabalho. De posse de seus fichamentos feitos ao longo do dia na Biblioteca do
Museu de Londres, Marx se senta em frente a sua modesta escrivaninha para dar
início ao seu mais ambicioso projeto. O convite é simples: acomode-se ao seu lado
como todos nós e vamos ouvi-lo conversando consigo mesmo.
Referências
MARQUES, R. M. Intelecto Geral: origem e superação de um equívoco de Karl Marx.
Trabalho & Educação,31(1), 47–67. 2022.
MARX, K. Capital y tecnología: Manuscritos de 1861-1863. México, Terra Nova.
1980.
MARX, K. Capítulo VI (inédito): manuscritos de 1863-1867. São Paulo, Boitempo.
2022.
MARX, K. O Capital [Livro 1]: Crítica da Economia Política: o Processo de
Produção do Capital. São Paulo, Boitempo, 3ª. Edição. 2023.
MARX, K. Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858: esboços da crítica
da economia política. SP, Boitempo. RJ, Ed. UFRJ. 2011.
6
ROMERO, D. Marx e a técnica: estudos dos manuscritos de 1861-1863. São Paulo,
Expressão Popular. 2005.
ROMERO, D (org.). Marx sobre as Crise Econômicas no Capitalismo
Introdução. São Paulo, Editora Sundermann. 2009.
7
V.22, 48 - 2024 (maio-agosto) ISSN: 1808-799 X
CONSTRUINDO UM NOVO PACTO PARA A EDUCAÇÃO: O PAPEL DA
TECNOCIÊNCIA SOLIDÁRIA1
Renato Dagnino2
Resumo
Enfoca-se aqui aspectos socioeconômicos da policy e da politics relacionados à produção do
conhecimento condicionados por um pacto, intermediado pelo Estado capitalista, entre as classes
proprietária e trabalhadora. Adotando a perspectiva dessa última, se investiga as características que
deve possuir um novo pacto “para além do capital”. Como usual na tradição crítica latino-americana, o
texto trata, primeiro e exemplarmente, a maneira como aqueles aspectos se manifestam nos países
centrais. Por estar ancorado na experiência histórica e nos anseios dos atores sociais subalternos e
orientado para a sua consecução na periferia do capitalismo, ele aponta caminho para a constituição
de um novo pacto tendo como referência os valores e interesses da economia solidária. Na sua
segunda parte, o texto apresenta o papel que pode desempenhar a Tecnociência Solidária, para
pavimentar esse caminho.
Palavras-chave: Pacto pela educação; América Latina, Política Cognitiva, Tecnociência Solidária
CONSTRUYENDO UN NUEVO PACTO PARA LA EDUCACIÓN: EL PAPEL DE LA TECNOCIENCIA
SOLIDARIA
Resumen
El texto se centra en los aspectos socioeconómicos de la politics y de la policy relacionados con la producción de
conocimiento condicionados por un pacto, mediado por el Estado capitalista, entre las clases propietaria y
trabajadora. Adoptando la perspectiva de esta última, indaga sobre las características que debe tener un nuevo
pacto "más allá del capital". Como es habitual en la tradición crítica latinoamericana, el texto trata, en primer
lugar y de manera ejemplar, la forma en que esos aspectos se manifiestan en los países centrales. Por estar
anclada en la experiencia histórica y en las aspiraciones de los actores sociales subalternos y orientada a su
realización en la periferia del capitalismo, señala el camino hacia la constitución de un nuevo pacto basado en los
valores e intereses de la economía solidaria. En su segunda parte, el texto presenta el papel que puede jugar la
Tecnociencia Solidaria para allanar este camino.
Palabras clave: Pacto por la Educación; América Latina, Política Cognitiva, Tecnociencia Solidaria
BUILDING A NEW PACT FOR EDUCATION: THE ROLE OF SOLIDARY TECHNOSCIENCE
Abstract
The text focuses on socioeconomic aspects of the politics and the policy related to the knowledge production
conditioned by a pact, mediated by the capitalist state, between the proprietary and the working classes. Adopting
the latter's perspective, it investigates the characteristics that a new pact "beyond capital" should have. As usual
in the Latin American critical tradition, it treats, first and exemplarily, the way in which those aspects appear in the
central countries. Because it is anchored in the historical experience and in the aspirations of subaltern social
actors, and it is oriented towards their achievement in the periphery of capitalism, it points the route to the
constitution of a new pact based on the values and interests of the solidarity economy. In its second part, the text
presents the role that Solidarity Technoscience, can play in paving this route.
Keywords: Pact for education; Latin America, Cognitive Policy, Solidary Technoscience
2Doutor em Ciência Econômica pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), São Paulo - Brasil.
Professor Titular da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), São Paulo - Brasil.
E-mail: rdagnino@unicamp.br. Lattes: https://lattes.cnpq.br/0864711435393000.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9625-7438.
1Artigo recebido em 01/04/2024. Primeira avaliação em 06/04/2024. Segunda avaliação em 09/04/2024.
Aprovado em 25/07/2024. Publicado em 07/08/2024.
DOI:https://doi.org/10.22409/tn.v22i48.62467.
1
Introdução
Este texto adota um enfoque limitado aos condicionantes socioeconômicos da
policy e da politics relacionados à produção do conhecimento. Aqueles que dão
origem àquilo que eu costumo enfeixar, por reconhecer a forma entrelaçada como
elas estão sendo cada vez mais no mundo inteiro elaboradas, mediante o conceito
de política cognitiva: as políticas de Educação e as de Ciência e Tecnologia.
Ele está centrado nas implicações que têm sobre a política cognitiva os
valores, interesses e comportamentos das classes proprietária e trabalhadora e no
modo como se constitui entre elas um pacto, intermediado pelo Estado capitalista,
acerca da educação. A respeito dessa categorização dicotômica, binária, simplista e
para muitos ultrapassada, esclareço que sua adoção é, mais do que suficiente,
necessária para elucidar aqueles condicionantes. Privilegiando os valores e
interesses dessa última, o texto encaminha a análise no sentido da concepção de
um novo pacto coerente com um projeto societário “para além do capital”.
Seu percurso, usual na tradição intelectual crítica que tem lugar na periferia
do capitalismo, trata, primeiro e exemplarmente, a maneira como aqueles
condicionantes se manifestam nos países centrais (ou no Norte Global). Depois,
analisa a maneira como o pacto estabelecido vai se instituindo, submetido às
especificidades do contexto periférico e, particularmente, brasileiro.
O resultado deste caminho de crítica mostrado na sua quinta seção -
Sintetizando a “problemática” - utiliza o modo como o jogador Dadá Maravilha
expressou sua justa contrariedade em relação aqueles que criticam reclamando
por uma “solucionática”. Ela abre espaço para as sessões seguintes que decorrem,
justamente, da reclamação semelhante de um companheiro que leu o texto que
condensava esse resultado, que concordava com a análise da problemática, mas
cobrava uma “solucionática”. Elas tratam de um enfoque (ou proposta) construído
em torno do conceito de Tecnociência Solidária citado nas seções anteriores a
cuja elaboração venho me dedicando nos últimos anos.
Também em consonância com aquela tradição tão cara aos intelectuais
críticos latino-americanos, o texto possui um caráter francamente normativo. Por
estar ancorado na experiência histórica e nos anseios dos atores sociais subalternos
e orientado para a sua consecução, ele aponta aos governantes progressistas que
ocupam o aparelho de Estado um caminho para a constituição de um novo pacto
2
tendo como referência os valores e interesses da economia solidária; aquilo que
tenho denominado Reindustrialização Solidária.
Um pouco da História dos países centrais
Lá, a política cognitiva esteve sempre pautada por um pacto entre a classe
proprietária e a classe trabalhadora que tendeu a mascarar o caráter antagônico dos
seus interesses e valores.
Complementando as considerações introdutórias, relembro que as primeiras
seções deste texto se organizam em torno de considerações a respeito de como se
estabeleceu e evoluiu este pacto, de como ele se encontra hoje fragilizado e de
como cabe à classe trabalhadora formular sua proposta orientada para uma
educação “para além do capital”.
Para a consolidação do capitalismo foi necessário proporcionar aos
trabalhadores o tipo de habilidade que a empresa demandava para satisfazer velhas
necessidades, de outras formas, e ir criando outras que se apresentavam lucrativas.
Aquela orientada a operar as inovações introduzidas no processo de trabalho que
ela controla e que, por isto, lhe permitem contrabalançar a pressão dos
trabalhadores pela redução da jornada e o aumento do salário.
O fato de que o aumento de produtividade do trabalho possibilitado pelas
inovações não precisava ser compartilhado com os trabalhadores com um aumento
de salário tornou a empresa dos países centrais, amparada pelos múltiplos
subsídios concedidos pelo “seu” Estado, um “motor de inovação”. À classe
trabalhadora, desprovida dos meios de produção, obrigada a vender sua força de
trabalho (esta mercadoria que, sendo a única que ela possui, é também a única que
adiciona valor ao produto) e sem amparo para organizar arranjos de produção e
consumo autônomos, restavam poucas alternativas.
Para evitar que a marcha desse “motor” a deixasse “para trás”, e defender sua
sobrevivência, ela foi obrigada a aceitar um processo de contínua e empobrecedora
“qualificação”; teve que se adaptar às mudanças cognitivas que ele impunha. Elas
implicavam a expropriação do conhecimento tácito por ela dominado, sua paulatina
codificação nas universidades capitalistas de modo a impedir sua desapropriação e,
como os meios de produção, transformado em propriedade privada crescentemente
monopolizada.
3
Caracterizava este pacto um “cercamento”, no âmbito cognitivo, do que, no
âmbito material, o capitalismo inerentemente provoca. Não obstante, o validavam,
entre outros fatores, as oportunidades do assalariamento associada à consolidação
do projeto capitalista de organização da sociedade ocidental. Havia a expectativa de
um futuro melhor para a classe trabalhadora que contrastava com a brutalidade
feudal e com a ameaça de exclusão social que o marco inicial desse processo, a
chamada revolução industrial, havia deixado.
As iniciativas que desde o final do século XIX procuraram capacitar a classe
trabalhadora, ou estender a ela o conhecimento da classe proprietária no sentido de,
ingenuamente, promover uma apropriação para liberá-la da opressão, foram sempre
escassas. Mais ainda foram aquelas que visaram a se contrapor àquele
conhecimento gerado pela classe proprietária, “seu” Estado, e suas empresas.
A interpretação potencializada pelo processo de construção do socialismo
soviético, de que seria o desenvolvimento linear inexorável das forças produtivas o
que, ao tensionar as relações sociais de produção, levaria a modos de produção
cada vez melhores, predominou no âmbito da esquerda marxista e, por inclusão, no
movimento sindical.
Permaneceu intocado o dogma “transideológico” de que existiria uma ciência
verdadeira, intrinsecamente boa, universal e neutra (no sentido de ser funcional para
qualquer projeto político) e uma tecnologia, que poderia aplicá-la para o bem ou para
o mal. E que bastaria a apropriação pela classe trabalhadora do conhecimento
científico e tecnológico - as forças produtivas que estavam momentaneamente
sendo usadas a serviço do capital - para que ela pudesse construir o socialismo.
Essa situação inibiu o surgimento de uma visão crítica que percebesse a
artificialidade a-histórica e ideologicamente construída pelo capital em seu benefício
do apartamento ciência-tecnologia e, entendendo a tecnociência como um conceito
primitivo, permitisse o questionamento da neutralidade e do determinismo. E que, ao
compreender o caráter de construção social da tecnociência que implicava que em
seu processo de desenvolvimento ela estaria sempre contaminada com os
interesses e valores dominantes no contexto, propusesse a adequação sociotécnica
da tecnociência capitalista na direção de uma tecnociência funcional ao projeto
político da classe trabalhadora.
Assim, embora o projeto capitalista estivesse sendo seriamente contestado e
apesar da ameaça que representava o socialismo, não ocorreu, por parte da classe
4
trabalhadora, um questionamento do pacto da educação. Embora a transição para o
socialismo soviético estivesse gestando um novo tipo de educação mais coerente
com os interesses da classe trabalhadora, o modo como ela estava ocorrendo,
circunscrito e limitado - por razões táticas internas e pelas pressões externas -, não
chegou a despertar a classe trabalhadora dos países capitalistas para a concepção
de uma alternativa.
Embora tenham surgido iniciativas revolucionárias de conscientização através
da educação para impulsionar a transformação de “classe em si” para “classe para
si”, elas não chegaram a formular propostas capazes de incidir no modo como se
organizava a produção e circulação de bens e serviços. Em consequência, essas
iniciativas tampouco resultaram em movimentos capazes de conduzir a propostas
que levassem à configuração de um novo pacto com a classe proprietária.
Resumindo: o comportamento da classe trabalhadora não foi apenas reativo,
no sentido de que tenha privilegiado a defesa dos interesses imediatos que possuía
sob a égide do capital. Ele também não foi proativo no sentido de conceber o
conhecimento que seria necessário para uma formação social que pudesse situar-se
“para além do capital”.
A conjuntura atual dos países centrais
O momento que vive o capitalismo nos países centrais parece estar
inviabilizando a manutenção desse pacto. Ele se encontra cada vez mais fragilizado
pela dinâmica do capitalismo ultra neoliberal que ao mesmo tempo enfraquece a
capacidade regulatória do Estado e, inextricavelmente, combina aspectos de
natureza geopolítica, econômica, social e tecnocientífica que reforçam os privilégios
da classe proprietária. Não obstante, as condições objetivas engendradas por essa
dinâmica, ao tempo que acirram as contradições de classe, parecem apontar rumos
para sua superação. Analisando o “lado” da classe proprietária, vale ressaltar três
aspectos.
No nível individual estrito, do seu negócio, a empresa, mesmo que se
dispusesse fazê-lo, é incapaz de internalizar as externalidades negativas nas
esferas ambiental, econômica e social que de modo genocida ela vem causando a
todos os que habitam este planeta. Aquela empresa que o fizer, contrariando a
lógica atomizada e intrinsecamente egoísta que a rege, será excluída do mercado
5
por não conseguir transferir seu maior custo de produção ao preço. Portanto, leitora
e leitor, deixemo-nos de ilusões!
Não obstante, no nível coletivo, em que a classe proprietária atua como
classe, são cada vez mais frequentes declarações de que seria aceitável um
aumento do imposto sobre a renda e a riqueza e a adoção de “moratórias”
relacionadas às externalidades negativas causadas por desenvolvimentos
tecnocientíficos que ameaçam a manutenção dos seus negócios. Mas é no nível das
“suas” organizações não-governamentais e supranacionais que estão ocorrendo as
manifestações mais significativas para investigar as características que poderiam
assumir o novo pacto interclassista em torno da política cognitiva e, em particular, da
educação.
O exemplo mais recente é a declaração da ONU acerca da urgente
necessidade de que sejam fomentados novos arranjos econômicos-produtivos e de
consumo (enfeixados naquilo que no Brasil chamamos de economia solidária) para
enfrentar as crises sociais e ambientais.
Retomando o assunto que interessa mais de perto, o da análise do
conhecimento em desenvolvimento, importa destacar que a pesquisa tecnocientífica
de viés empresarial, realizada majoritariamente nos conglomerados transnacionais
sempre com maciço financiamento público, não tem sido capaz de evitar o desastre
que estamos presenciando nas esferas ambiental, econômica e social. Como digo
aos meus alunos da disciplina de Ciência Tecnologia e Sociedade, a Tecnociência
Capitalista incorre em sete pecados capitais: deterioração programada,
obsolescência planejada, desempenho ilusório, consumismo exacerbado,
degradação ambiental, adoecimento sistêmico e sofrimento psíquico
No que se refere particularmente à educação, a classe proprietária não tem
como propor nenhuma mudança significativa a não ser ações pontuais para
preencher lacunas de oferta de mão-de-obra causadas pela própria dinâmica
geopolítica, econômica, social e tecnocientífica do capitalismo ultra neoliberal. Sem
falar nas propostas amorais relacionadas à privatização da educação…
Analisando o “lado” da classe trabalhadora, as ações tradicionais de caráter
reativo, até mesmo por estarem concentradas na defesa dos interesses dos
formalmente empregados, têm apresentado eficácia claramente decrescente como
resultado do fortalecimento dessa dinâmica ultra neoliberal.
6
Embora seja cada vez maior a parcela da classe trabalhadora “não
empregável”, e apesar do crescimento das iniciativas europeias visando à criação de
cooperativas, é ainda muito escassa a elaboração teórica necessária para viabilizar
medidas de política cognitiva para promover a implementação de arranjos
alternativos de produção e consumo. Como resultado do maior poder dos
trabalhadores formais e sindicalizados que conservam alguma capacidade de
organização e vocalização, não tem ocorrido uma valorização da produção e
disseminação de conhecimento para apoiar aquelas iniciativas associadas ao
cooperativismo. Têm dificultado as escassas atividades realizadas nas instituições
de ensino e pesquisa com vistas a atender os interesses da classe trabalhadora e a
crescente alocação dos recursos públicos à P&D empresarial.
Embora venha crescendo entre os trabalhadores situados nessas instituições
a percepção de que a Tecnociência Capitalista, desenvolvida pela e para a empresa,
não é adequada para a sucesso daqueles arranjos alternativos, e de que é
necessário reprojetá-la, são insignificantes as tentativas de mudança das suas
agendas de ensino, pesquisa e extensão. Ainda menos significativas são as
atividades de adequação sociotécnica da Tecnociência Capitalista na direção da
Tecnociência Solidária (conceito que é tratado nas seções finais deste texto),
realizadas nessas instituições em conjunto com os trabalhadores associados a
esses arranjos.
Termino este ponto com uma brevíssima análise da correlação de forças que
permita prospectar um futuro desejável e, investigar a possibilidade de gestação de
um novo pacto.
As contradições do capitalismo ultra neoliberal, a virtual impossibilidade de
manutenção do tipo de organização da produção e do consumo que ele adota e, em
especial, as implicações do desenvolvimento tecnocientífico a ele associado para a
classe trabalhadora, fragilizam a capacidade propositiva da classe proprietária. Não
obstante, manifestações da classe trabalhadora que surgem em muitos lugares
contra os diferentes aspectos negativos e opressores do ultra neoliberalismo estão
apontando, ainda que por negação, para a construção, na esfera cognitiva, de um
cenário “para além do capital”.
À medida que a classe trabalhadora for formulando um novo projeto
societário, a economia solidária surgirá como seu elemento central. Por representar
mais do que uma utopia a ser construída, uma proposta concreta de transformação
7
das relações sociais de produção baseada na propriedade coletiva dos meios de
produção e na autogestão, ela se irá materializando mediante políticas públicas
voltadas à sua expansão e consolidação. A reorientação da política cognitiva, dada
sua importância como política-meio que confere viabilidade para muitas outras
políticas-fim, terá que ser por antecipação concebida de acordo com os valores e
interesses da classe trabalhadora.
É nesse processo que irá surgir uma proposta de educação aderente ao
objetivo de consolidação da economia solidária. E será a partir dela que a classe
trabalhadora irá negociar um novo pacto pela educação com a classe proprietária.
Um pouco da História da periferia brasileira
Historicamente, na periferia do capitalismo, o pacto em torno da política
cognitiva e, particularmente, da educação, adquiriu especificidades.
A primeira, tem a ver com o modo como se deu a conquista e o saqueio do
território (o que ficou conhecido pelo eufemismo “colonização”). Ele esteve desde o
início marcado pela extração predatória de bens naturais - característica que hoje vai
sendo mundialmente denunciada - e pela exploração igualmente selvagem de
trabalho vivo (mais-valia) com a escravização dos indígenas, a expropriação da sua
terra, e o extermínio da maioria que não se deixava subjugar (estima-se que haveria
de 5 a 8 milhões e que no final do século 19 restavam menos de 500 mil). E, logo
em seguida, com o comércio de pessoas escravizadas provenientes do continente
africano (o que ficou conhecido pelo eufemismo “tráfico negreiro”).
As relações sociais de produção, que beneficiavam internamente os que
produziam na periferia os bens consumidos no centro, onde se expandia a
extração de mais-valia relativa, estiveram centradas na exploração da mais-valia
absoluta. Foi dessa forma que a classe proprietária adquiriu o costume de auferir
elevado lucro pela sua atividade que até hoje conserva. Sobre o associado à
extração da prata e o ouro que da América hispânica, todos sabemos. Conhecemos
pouco sobre o que foi a produção das “esquisitices” realizada com um custo
extremamente baixo pelos conquistadores ainda recém-chegados e que eram
vendidas a preço “internacional” a seus parentes que ficaram. Com elevadas
“eficiência” e lucratividade, eles iniciaram o primeiro complexo mundial de
agronegócio. De elevados requisitos cognitivos e envolvendo alta complexidade
8
logística, a produção de açúcar de cana foi responsável pela fundação de nossa
atividade econômica.
Bem mais tarde, com a produção do café, foi montada uma infraestrutura
logística ainda mais sofisticada e custosa. Tecnologias (ou complexos sociotécnicos)
como a ferroviária, portuária, de energia e comunicação, que estavam emergindo na
Inglaterra não foram aqui apropriadas seguindo uma estratégia cognitivamente mais
adequada como a que ocorriam em países da Europa que também “substituíam
importações”. O fato de terem sido simplesmente compradas é um indício de que
nossa classe proprietária considerava ser este o modo mais lucrativo de internar
esses complexos sociotécnicos ao negócio que compartilhavam com seus parentes.
Não me parece adequado considerar que teria sido uma divisão internacional
do trabalho imposta pelos “egoístas, usurpadores e malvados” capitalistas da
metrópole o que teria obrigado os “explorados e submetidos” a se especializarem na
produção de matérias-primas e se submeterem à importação de manufaturas. O
“intercâmbio desigual” que se estabelece entre os conquistadores que aqui
operaram e seus sócios que ficaram era um negócio que permitia lucros
extraordinários aos dois lados daqueles que patrocinavam a conquista.
Todos nós sabemos da enorme quantidade de ouro, prata e outras
mercadorias que os conquistadores que para vieram proporcionaram aos seus
parentes que ficaram, e de sua importância, em especial quando trocaram de
mãos, para a consolidação do capitalismo. E, também, de como a mais-valia gerada
na periferia foi sendo transferida para o centro mediante os mutantes mecanismos
que caracterizam o “intercâmbio desigual”. Não obstante, o fato de que não parece
ter havido uma significativa diferença na qualidade da vida que levavam, pode ser
um indício de que a lucratividade nas duas pontas do negócio em que se envolviam
esses parentes era semelhante. Como estou longe de pretender revisitar a nossa
história, me atrevo a provocar quem a isto se disponha com o que escrevi num artigo
recente: “não é preciso ser economista para perceber que se temos aqui a maior
taxa de juros do mundo e ainda se produz um alfinete brasileiro é porque nossa taxa
de lucro é também a maior do mundo”.
Essa característica do capitalismo nascente, que beneficiava com vantagem
os europeus e as primeiras gerações de proprietários brasileiros, levou a que as
relações de produção tipicamente capitalistas, baseadas na exploração da
mais-valia relativa que a inovação e o aumento da produtividade do trabalho
9
possibilitavam no centro do sistema, viessem a aparecer por aqui muito mais
tarde. Isso ocorreu, ainda que sem substituir aquelas baseadas na exploração da
mais-valia absoluta, quando aqui se difunde o padrão de organização da produção e
do consumo da empresa dos países centrais.
Por várias razões que não vou relembrar aqui, a formação econômico-social
periférica se caracteriza por uma significativa dependência em relação aos países
centrais. Nossa dependência cultural engendra um mercado interno imitativo. Sua
demanda tende a fazer com que a empresa aqui localizada produza bens e serviços
(especialmente os industriais) muito semelhantes àqueles fabricados nos países
centrais.
Nosso processo de industrialização via substituição de importações visava,
justamente, a satisfazer a demanda da classe proprietária pelos bens que ela
importava mediante os recursos que recebia das exportações que fazia. Embora
tenha havido brotes industriais em várias partes do território, o que mostra que não
existia um impedimento para tanto e sim um acurado cálculo de rentabilidade, esse
processo se intensificou em função das crises e guerras ocorridas nos países
centrais que dificultavam a importação de manufaturas.
Sua transformação num “modelo” que passou a condicionar o conjunto das
políticas públicas nacionais foi desencadeada por uma simples leitura da classe
proprietária da balança comercial do País que mostrava uma deterioração dos
termos de troca. Ao contrário do que seria adequado e do que fizeram suas
congêneres em outras latitudes, as características de nossa industrialização não
decorreram de uma avaliação acerca da melhor forma de aproveitar nossos
potenciais vantagens comparativas naturais e humanas. Nacionalistas
bem-intencionados que até hoje denunciam o fato de não haver uma “agregação de
valor” às commodities teriam que perceber que isso se trata de um irrepreensível
comportamento economicamente racional.
Numa articulação que contou com a poderosa participação do capital
estrangeiro, com seus interesses e oferendas historicamente cambiantes, ocupou o
centro dinâmico desse “modelo” o estado de São Paulo. Espaço capitalista dos
negócios que, por ser beneficiado com uma reserva de mercado para suas
manufaturas, transformou o resto do nosso território numa “periferia da periferia”
fornecedora, inclusive, de força de trabalho barata.
10
Depois das escravizações indígena e africana e da importação dos europeus
famintos expulsos em função do novo modo de expansão capitalista baseado na
extração de mais-valia relativa, nossa classe proprietária concebeu um outro
“exército pré-industrial de reserva”. Agora recoberta por um verniz mais capitalista,
dado que industrializante, engendrou um outro canal de suprimento de trabalhadores
pouco exigentes e de baixo preço. Ele não implicava, como veio a ocorrer nos
países centrais, na emigração de pobres vindos das ex-colônias; aqueles que hoje,
depois de alavancar seus negócios, “criam problemas” para o funcionamento de
suas economias.
No que se chamava Região Norte e, particularmente no que depois se
denominou Nordeste, a fração “atrasada” e oligárquica da classe proprietária ia
grilando a terra indígena e concentrando a terra. Tendo isso como matriz, conviveu,
principalmente aí, mas no território como um todo, um processo reiterado em que
famílias de camponeses que produziam alimentos eram empurradas para o oeste e,
depois de desbravadas, tinham suas terras expropriadas pelo latifúndio que ocupava
a ponta local daquele negócio internacional.
O desenvolvimento urbano industrial, que se acelera a parir da quinta década
do século passado, potencializou esse processo pelo lado da demanda de força de
trabalho. Seu resultado foi o deslocamento, quase que forçado e concentrado nas
zonas mais degradadas das cidades, de mais de 40 milhões de pessoas (só entre
1975 e 2017). Assim, através de expedientes como o que ficou conhecido como
“indústria da seca” foi sendo preparado o terreno para o que viria a ser a selvagem
expansão do agronegócio e da exploração mineral.
No “Sul maravilha” a fração “moderna” e industrial recebia os trabalhadores
expelidos que passavam a desempenhar as tarefas que o modelo de
industrialização exigia. Embora imitativo, multinacionalizado e pouco intensivo em
capacitação tecnológica, ele era muito vantajoso para os interesses dessa fração,
haja vista a cobertura, intensidade e velocidade de implantação que o caracterizou.
A outra, a fração “atrasada” e oligárquica, através das articulações políticas que se
estabeleciam no âmbito do estilo nacional desenvolvimentista do nosso Estado, que
perpassou períodos civis e militares, nunca deixaram de receber seu quinhão.
Isso tudo que escrevi acima não significa que eu desconheça ou não aceite a
evidência de que a classe proprietária dos países centrais e, claro que em menor
medida, a sua classe trabalhadora, não tenham se beneficiado de nossa condição
11
periférica e de sua contraparte, o imperialismo. E que isso se deu no âmbito de uma
divisão internacional do trabalho em que cabia aos, primeiramente, conquistadores a
produção de bens primários com escasso conhecimento tecnocientífico localmente
gerado. E que, aos seus parentes, cabia a produção de bens e serviços com uma
intensidade continuamente crescente de conhecimento engenheirado e que, como
eram adaptados ao caráter imitativo (dado que culturalmente dependente) do estilo
de desenvolvimento periférico, eram também aqui produzidos.
O que sim quero dizer é que não me parece correto, embora seja frequente,
interpretar essa situação como algo prejudicial ao conjunto dos habitantes de cada
país periférico. Isso porque a compreensão de que suas classes proprietárias se
beneficiaram da “oportunidade de negócio” proporcionada por essa situação, e que
este benefício nunca “transbordou” para a classe trabalhadora, é essencial para uma
correta análise da política cognitiva.
Sintetizando a “problemática”
O efeito conjunto da dependência cultural, desse modelo de desenvolvimento
desigual e combinado, da pressão do mercado para a adoção de tecnologia
proveniente dos países centrais, da relativa escassez (ou subutilização) da
capacidade tecnocientífica nacional, do poder econômico e político, e das vantagens
auferidas pelas multinacionais, e de sua penetração no tecido produtivo local,
condiciona de modo profundo as atividades concernentes à política cognitiva. O fato
de que seja economicamente irracional desenvolver internamente conhecimento
tecnocientífico para produzir algo demandado pelo mercado interno imitativo, de que
os bens e serviços que aqui geram o lucro das empresas foi engenheirado
alhures, é fundamental.
O que se verifica, devido também a uma muito menor remuneração da
mão-de-obra existente na periferia, é que a empresa que aqui opera, seja nacional
ou estrangeira, assume um comportamento inovativo claramente reflexo. Imitativo,
caudatário e relativamente modesto, ele realimenta a tendência primário-exportadora
e rentista de nossa classe proprietária que, encerrando o ciclo da industrialização via
substituição de importações promoveu a desindustrialização do País. Como não
precisa efetivamente inovar, a empresa pode lucrar sem ter que se preocupar em
12
“desviar” o recurso público que recebem para que seus empregados (ou
terceirizados) se “qualifiquem”.
O modo como os aspectos socioeconômicos e políticos que privilegiam nesta
análise condiciona a educação passa também pelo reconhecimento de que nossa
política cognitiva, muito mais do que nos países de capitalismo avançado, tem sido
orientada pela nossa elite científica. É ela que “diz” o que é uma criança que entra
no jardim de infância deve ir aprendendo para poder passar no vestibular de uma
universidade pública. É ela que define, em última instância e por default, devido à
nossa condição periférica que faz com que outros atores pouco participem na
elaboração desta política, as características do nosso pacto da educação.
As “antenas” dessa elite científica estiveram sempre, dada a nossa condição
periférica, orientadas pelo que fazem seus pares dos países centrais. É ali que se
origina o saber que “cultuam” nas instituições que, como um enclave, foram - à
imagem e semelhança - aqui criadas.
Como consequência da adoção de agendas de ensino, pesquisa e extensão
de provenientes, demandas cognitivas (ou tecnocientíficas) embutidas em muitas
das necessidades coletivas por bens e serviços, especialmente aquelas da classe
trabalhadora que permanecem desatendidas, permanecem inexploradas.
Entre os muitos exemplos vale citar a situação que ocorreu quando a
expropriação da terra dos pequenos agricultores produtores de alimentos e do
Estado incitou o latifúndio a potencializar o agronegócio. Ao mesmo tempo que
aqueles passaram a ter suas demandas cognitivas desatendidas devido ao
desmantelamento da extensão rural, foi criada no início dos anos setenta uma
complexa e capilarizada estrutura de geração e difusão de conhecimento para
atender ao objetivo de acumulação da classe proprietária.
Entre outros, esse exemplo serve para mostrar que em todo o mundo
baixa propensão da empresa a realizar pesquisa pode ser, também na periferia,
contrapesada. De fato, cada vez que um segmento da classe proprietária dotado de
poder político ou econômico, tinha, incorporado em seu projeto político, uma
demanda por conhecimento novo ou dificilmente obtenível, foi possível, claro que
através do “seu Estado”, desenvolvê-lo. Serve também para argumentar que devido
à sua alta complexidade e originalidade, as demandas tecnocientíficas embutidas
nas necessidades coletivas desatendidas, poderiam gerar um círculo virtuoso de
13
ocupação da capacidade subutilizada de nossas instituições de ensino e pesquisa e
de sua expansão e legitimação social.
Retomando o parágrafo que se iniciava com “O que sim quero dizer...”, e
salientando que o faço muito de passagem, que aprofundar o argumento me
afastaria do assunto deste texto, é que pouco se deve hoje esperar da propensão de
nossa classe proprietária para aproveitar os favores governamentais que desde
sempre recebeu para adotar o comportamento “virtuoso” que caracteriza suas
congêneres dos países centrais. Políticas orientadas a torná-la competitiva via
agregação de valor às commodities, a facilitar sua adesão a uma transição
energética ou à adoção de comportamentos socioambientalmente sustentáveis, etc.,
dificilmente encontrarão sucesso.
Concluindo essa parte, é importante salientar que, ao contrário do que
ocorreu nos países centrais, a vigência do pacto da educação não teve como
resultado uma situação minimamente favorável à classe trabalhadora. Em função
das características que assumiu nossa formação social capitalista, o pacto aqui
estabelecido não apresentou nem mesmo os limitados benefícios alcançados.
A constatação de que o fraco “desempenho” da nossa educação, sobretudo
quando avaliada segundo os indicadores dos países centrais, é consequência do
fato de ela, sendo como é, corresponder às necessidades cognitivas demandadas
pela classe proprietária, me leva a tomar emprestado uma das frases lapidares de
Darcy Ribeiro: “A crise da educação no Brasil não é uma crise: é projeto”.
Destacando um elemento da “solucionática”
Como apontado na introdução, essas seções finais introduzem uma proposta
concebida a partir do campo dos Estudos sobre Ciência, Tecnologia e Sociedade em
torno do conceito de Tecnociência Solidária, para analisar a política cognitiva e
propor sua reorientação. Sua apresentação se deve a que ela parece poder
contribuir para a superação do pacto da educação ainda vigente e a proposição de
um pacto para além do capital.
Embora me refira à Tecnociência Solidária como sendo a “plataforma
cognitiva de lançamento da Economia Solidária” (e um requisito indispensável para
viabilizar a transição social e ecológica a que se referem seus defensores), eu me
eximo aqui de discorrer sobre ela. Tampouco comento conceitos como “inovação” e
14
“tecnologia” sucedidos da expressão “social” para com esses termos denotar, como
fazem mais de duas dezenas de outros, alternativas ao que denomino Tecnociência
Capitalista. Esclareço que, embora a considere igualmente pertinente, dada a
necessidade de evitar a confluência perversa causada pela “confusão” significante x
significado, não me aterei à discussão do termo social. Também não irei me referir a
apostos tergiversadores que aparecem depois de Economia e “em vez de” Solidária
como os termos de sustentável, de impacto, circular, criativa, popular, verde.
Nas minhas falas sobre Tecnociência Solidária e também em alguns dos
textos que escrevi sobre o assunto começo apresentando o conceito de tecnociência
que formulei, uma vez que ele se diferencia daquele que é usado por outros
pesquisadores do campo dos Estudos sobre Ciência Tecnologia e Sociedade. Logo
após, particularizando esse conceito genérico para o caso do capitalismo, explico
por que a tecnociência que temos hoje, que caracterizo com o aposto de capitalista,
não é adequada para a gestão pública que esta obra propõe. Em especial, aquela
que deve promover o que denominamos transição do Estado Herdado para o Estado
Necessário.
Procedendo aqui desta mesma forma, acho que conseguirei justificar, sem a
necessidade de enfronhar-me com os mitos da neutralidade da ciência e do
determinismo tecnológico (que abordei num livro quase duas décadas), por que
questiono o uso de termos como tecnologia ou inovação para fazer referência a
alternativas à tecnociência capitalista.
Por que Tecnociência?
Para responder à pergunta de “Por que tecnociência?”, aponto quatro razões
que, implicitamente, justificam por que me parece inadequado o uso de outros
termos (DAGNINO, 2019).
Aprimeira razão, se situa no terreno descritivo-explicativo. Ela decorre da
evidência empírica que mostra uma crescente relação, que se inicia com o advento
da Big Science, entre o que ainda se costuma chamar pesquisa científica e pesquisa
tecnológica.
De fato, muitos autores renomados usam o termo tecnociência para referir-se
ao resultado do que entendem ser uma fusão contemporânea entre ciência e
tecnologia. Não existiriam mais pesquisas científicas de um lado, que buscariam
15
conhecer a realidade, produzir conhecimento puro - a ciência. E, de outro, pesquisas
tecnológicas, que o aplicariam gerando conhecimento aplicado - a tecnologia - para
produzir bens e serviços; coisas úteis. Hoje, a atividade que melhor descreveria a
produção de conhecimento é a pesquisa tecnocientífica.
Seja ela realizada, num extremo, em empresas transnacionais (onde se aplica
mais da metade de todo o recurso que se gasta em pesquisa no mundo), seja no
outro, em universidades e organizações públicas (onde se aplica 30% deste total
basicamente para capacitar pessoas para fazer pesquisa em empresas), o resultado
dessa pesquisa é denominado por esses autores de tecnociência. Mas evidência
empírica suficiente para mostrar que a dinâmica tecnocientífica global não é
controlada por essas empresas apenas quantitativamente. Seu poder junto àquelas
instituições de ensino e pesquisa se exerce de duas formas que se parecem a duas
partes de um iceberg.
uma bem visível: financiamento de projetos, joint ventures, etc. Ela seria
suficiente para evidenciar que essa dinâmica está controlada também
qualitativamente por elas. Outra, muito mais significativa, derivada do sutil poder que
exercem via o mercado de trabalho, é revelada quando se constata que a maioria
dos pós-graduados nos países avançados é por elas contratada para fazer a
pesquisa que garante o seu lucro. O perfil desses profissionais, para que possam
atender às demandas cognitivas da empresa, é fruto da “natural” e por isto pouco
considerada indução que possuem as empresas na definição das agendas de
pesquisa e de ensino daquelas instituições.
uma segunda razão: existem autores que afirmam que aquilo que os
primeiros observam não é uma simples fusão contemporânea. Para eles, o termo
traz consigo e é adotado em função de uma explicitação de que esse alegado
apartamento é tão-somente discursivo. Nunca teria existido de fato universidades
que produziam ciências alienadas do “mundo dos negócios”, nem empresas que
eram neles exitosas apenas aplicando-a para gerar tecnologia. Segundo eles, o
conhecimento para a produção de bens e serviços, que foi sendo gerado cada vez
que o ser humano “desde o início dos tempos” interveio em processos de trabalho
visando a se apropriar do resultado material desta ação, foi uma complexa e
sistêmica mistura cognitiva. E que foi a partir dos trezentos anos que durou a
desintegração do feudalismo europeu, quando foram aparecendo os significantes
que intencionalmente denotavam novos significados, que os constituintes dessa
16
mistura passaram a ser chamados de ciência, religião, artesanato, saber empírico
(popular, ancestral, não-científico, tácito, etc.), bruxaria, arte, tecnologia e, na
contemporaneidade, inovação.
Dessa mistura de conhecimentos para a produção de bens e serviços, tão
diversos aos apreensivos olhos capitalistas, mas tão por construção “coesionados”
que as sociedades pré-capitalistas nunca se preocuparam em criar termos para
designar o que na realidade sequer existia, o capital, por conveniência, absolutizou
dois deles: o que denominou ciência e tecnologia. pesquisadores, inclusive, que
consideram esse apartamento uma manipulação ideológica tranquilizadora do
capital. Ao afirmar que existe uma ciência intrinsecamente verdadeira, boa e neutra
e que apenas cabe à sociedade cuidar para que a tecnologia resultante de sua
aplicação seja realizada com ética.
De fato, era importante para o seu projeto de dominação identificar um
subconjunto desse espectro cognitivo que o capital podia controlar e monopolizar.
Inclusive pela via como era materializado em artefatos sociotécnicos cuja forma,
escala e custo de aquisição eram impeditivos para a classe trabalhadora. A esse
subconjunto, alegando sua interpretação de uma “ciência” que teria surgido na
Antiguidade do noroeste do mundo (como se os povos da África, Ásia e América não
existissem) com o objetivo de “saciar o apetite humano por conhecer a verdade”, o
capital passou a chamar ciência e tecnologia.
Foi assim que a parte tácita do conhecimento para a produção de bens e
serviços, que se mantinha propriedade do produtor direto (que passava a ser
explorado como vendedor de força de trabalho), foi relegada como saber-fazer
empírico, não-científico. Seu “apagamento” contribuía para sujeitar o trabalhador à
“qualificação” imposta pelo capital.
Se sua sistematização e apartamento do repertório cognitivo do trabalhador
direto, como tecnologia codificada, facilitou sua expropriação e monopolização, sua
categorização como uma pretensa aplicação a posteriori de uma ciência expressa
uma linguagem elitista e quase sagrada, legitimou a forma meritocrática de
exploração capitalista. Isso não significa que ao longo da história, em função do
elevado custo de operações de experimentação e escalamento de processos de
produção, da capacitação dos trabalhadores que operavam unidades cada vez
maiores, complexas e caras, e do seu desejo de transformar seus filhos em bons
empresários, a classe capitalista não tenha criado, fora das empresas, mas em
17
contato com elas, organizações de ensino e pesquisa financiadas pelo Estado. Com
suas idiossincrasias culturais, particularidades territoriais e especializações
produtivas esse processo abarcou praticamente todos os países da Europa e
engendrou o seu funcional e fértil repositório, a universidade capitalista.
Apoiado em considerações desse tipo e descartando as ideias de
apartamento e de neutralidade que formulei o conceito genérico de Tecnociência
como sendo a decorrência cognitiva da ação de um ator social sobre um processo
de trabalho que ele controla e que, em função das características do contexto
socioeconômico, do acordo social, e do ambiente produtivo em que ele atua,
provoca uma modificação no processo ou no produto gerado cujo ganho material
pode ser por ele apropriado segundo seu interesse.
Uma terceira razão para o uso do termo tecnociência remete ao fato de que
aqueles pretensamente separados dois tipos de conhecimento, ao serem
causalmente conectados conferem suporte e tornam aceitável outro encadeamento
falacioso, bem conhecido e frequentemente criticado, que legitima o capitalismo.
O aumento da produtividade do trabalhador facultado pelo conhecimento que
se originava da ação do capitalista que controlava o processo de trabalho, e cuja
apropriação como mais-valia relativa era legitimada pelo Estado, passou a ser
“vendido” como o “desenvolvimento econômico” dos países. Esse aumento de
produtividade, no âmbito de países cujas classes proprietárias competiam
ferozmente em busca da mais-valia gerada pelo trabalhador, passou também a ser
maquiado como um aumento de competitividade que beneficiava o país inovador. Ao
ser assimilado, de forma consequencial - via “transbordamento” - ao bem-estar dos
trabalhadores (pela via de emprego e salário e do acesso a bens e serviços
“melhores e mais baratos”) e ao “desenvolvimento social”, completou a falácia em
que se apoia boa parte da superestrutura ideológica capitalista.
A artificial desconsideração de outros conhecimentos necessários para a
produção de bens e serviços que eram de difícil codificação ou expropriação e a
separação sequencial do conhecimento mais facilmente elitizável e controlável em
ciência e tecnologia se consolidou como um elemento, ao mesmo tempo central e
preventivo, da manipulação ideológica do capital.
Para melhor explicar esse argumento legitimador do capitalismo, vale
ressaltar que para que ele funcione os trabalhadores e a sociedade têm que
acreditar na separação entre ciência e tecnologia. Isto é “meio caminho andado”.
18
A outra metade, advém de uma outra antiga crença engendrada pelo Iluminismo no
seu combate à “religiosidade obscurantista”. A de que existe uma ciência
não-dogmática, intrinsecamente verdadeira e universal porque desvelava através do
método científico não contaminado por valores ou interesses os segredos do planeta
para todos os seus habitantes. E, que, por isso, ela tinha duas características
politicamente importantes para desideologizar e justificar seu apoio pelo Estado. Ela
era neutra - capaz de viabilizar quaisquer projetos políticos -, e que quando sua
aplicação levava a tecnologias “más”, este resultado devia ser considerado atípico;
um aético “acidente de percurso”.
Apoiada nessa cadeia argumentativa legitimadora, a estrutura capitalista
passava incólume às críticas que os partidários do socialismo, que diga-se de
passagem, em função de uma leitura equivocada de Marx, não chegavam a criticar a
neutralidade e o determinismo da tecnologia. A percepção de que a
responsabilidade pelo “mau uso” da ciência cabe a uma falta de ética - enferma e
limitada àquele que a aplica para desenvolver tecnologia - e nunca ao modo de
funcionamento característico daquela estrutura, incluindo a maneira como gera a
sua tecnociência, a Tecnociência Capitalista, permanece atravessando fronteiras
ideológicas entre a direita e a esquerda.
que destacar, nesse sentido, que a evidência empírica de que a realidade
é muito distinta do modelo idealizado. Sua tentativa de implementação e de
emulação daquela dinâmica tecnocientífica global que materializa os valores e
interesses do capital através de políticas-meio (política cognitiva) e políticas-fim
(econômico-produtivas, geoestratégicas, etc.) não está levando ao resultado
prometido.
Costumo caricaturar a tecnociência produzida pelas e para as empresas como
portadora de sete pecados capitais: deterioração programada, obsolescência
planejada, desempenho ilusório, consumismo exacerbado, degradação ambiental,
adoecimento sistêmico e sofrimento psíquico. E conduzindo a tendências de jobless
growth economy (quando a economia cresce não se gera emprego) e de jobloss
growth economy (quando a economia cresce e desaparecem postos de trabalho)
cada vez mais social e economicamente insustentáveis.
A partir de argumentos dessa natureza é possível particularizar aquele
conceito genérico de tecnociência para o caso do capitalismo. A Tecnociência
Capitalista é a decorrência cognitiva da ação do capitalista sobre um processo de
19
trabalho que ele controla e que, em função de um contexto socioeconômico (que
engendra a propriedade privada dos meios de produção) e de um acordo social (que
legitima uma coerção intermediada pelo mercado de trabalho e pela superestrutura
político-ideológica mantida pelo Estado) que ensejam, no ambiente produtivo, um
controle (imposto e assimétrico) e uma cooperação (de tipo taylorista ou toyotista),
permite uma alteração do valor de troca da mercadoria produzida) passível de ser
por ele apropriada (sob a forma de mais-valia relativa).
Uma quarta razão para o uso do termo tecnociência, que cruza a fronteira
entre os terrenos descritivo-explicativo e normativo, remete ao seu qualificativo de
solidária que, como escrevi no início, me eximo de aprofundar. Ela deriva da
verificação de que a tecnociência do capital não serve para a construção da
sociedade que segmentos conscientes e responsáveis da comunidade internacional
vêm reclamando.
Para evitar o que interpretam como uma crise sistêmica do capitalismo
associada ao esgotamento do capitaloceno, eles apontam o fato de que no nível
individual estrito, do seu negócio, a empresa, mesmo que se dispusesse fazê-lo, não
é capaz de internalizar as externalidades negativas que a vem causando. No que
tange à crise climática, por exemplo, a empresa que o fizer, contrariando a lógica
atomizada e intrinsecamente egoísta que a rege, será excluída do mercado por não
conseguir transferir seu maior custo de produção ao preço.
Resgatando experiências contra hegemônicas históricas de organização da
produção e consumo de bens e serviços baseadas na propriedade coletiva dos
meios de produção e na autogestão, esses segmentos vêm ressaltando no ambiente
internacional da politics e da policy o que por aqui denominamos Economia
Solidária.
Por que Tecnociência Solidária?
É nesse contexto que adquire pertinência crescente a particularização
daquele conceito genérico. Tecnociência Solidária: decorrência cognitiva da ação de
um coletivo de produtores sobre um processo de trabalho que, em função de um
contexto socioeconômico (que engendra a propriedade coletiva dos meios de
produção) e de um acordo social (que legitima o associativismo), os quais ensejam,
no ambiente produtivo, um controle (autogestionário) e uma cooperação (de tipo
20
voluntário e participativo), provoca uma modificação no produto ou processo gerado
cujo ganho material pode ser apropriado segundo a decisão do coletivo.
Como fica claro, ele contrasta radicalmente de conceitos como o de
Tecnologia Social (“qualquer técnica, método ou produto surgido da interação entre
os conhecimentos popular e científico que atenda aos quesitos de simplicidade,
baixo custo, fácil aplicabilidade (e replicabilidade) e impacto social comprovado”)
que, apoiando-se nos mitos do apartamento e da neutralidade, sugerem que para
alavancar a Economia Solidária bastaria usar de outra forma o conhecimento
científico. O qual, combinado com o popular resolverá problemas “sociais” que, por
alguma discriminatória razão, devem ter um baixo custo de resolução. E também
com o de inovação social, oximoro que contrapõe, por substituição, o social ao
tecnológico, adscrito ao sentido original de inovação (de uma invenção que gera
lucro para a empresa) como se satisfazer as necessidades materiais dos pobres não
demandasse complexos e originais conhecimentos tecnocientíficos.
Ademais, ao empregar um qualificativo difuso (social), resultante da
consideração de aspectos que transcenderiam o econômico - forma eufêmica que
frequentemente se emprega para evitar o termo lucro - dão a entender que os
empreendimentos solidários não precisam ser competitivos em relação às
empresas.
Ao tentar construir hegemonia incluindo arranjos econômico-produtivos
baseados na propriedade privada e na heterogestão que se passam a se “adequar”
a esses termos, cria-se uma situação que inviabiliza, inclusive em termos
estritamente cognitivos, as ações que teríamos que, com intelectuais, devemos
impulsionar.
Essa ambiciosa empreitada, que vai desde uma inédita convergência entre as
ciências “desumanas” e “inexatas” em torno da explicitação e processamento das
demandas cognitivas embutidas nas necessidades materiais coletivas, até uma nova
política de alianças com os atores sociais, não teria sentido não fosse o objetivo de
conceber uma nova forma de produzir conhecimento mais adequada à vida dos
seres humanos e ao próprio planeta que eles habitam. Ela envolve, por um lado, a
sedução de nossos pares das instituições de ensino e pesquisa, ainda abduzidos
por uma política cognitiva que, acobertada pelo manto da ciência neutra, emula a
dinâmica tecnocientífica capitalista. E, por outro, a exposição de nossos colegas e
alunos a uma crítica às agendas de Ensino, Pesquisa e Extensão periféricas que
21
transcenda a mera denúncia do seu caráter imitativo em relação aos países de
capitalismo avançado. Uma crítica que, baseada na reconfiguração do ensino da
tecnociência, seja capaz de orientá-las de modo mais certeiro e eficaz “para além do
capital”.
Finalizo apresentando a maneira como a Tecnociência Solidária é entendida
em certos âmbitos do movimento de Economia Solidária: modo como
conhecimentos devem ser agenciados visando à produção e ao consumo de
bens e serviços orientados à satisfação de necessidades coletivas em redes
de economia solidária. Esclarecendo: modo (original, aberto, mutante e
adaptativo)... como conhecimentos (de qualquer natureza - científico “desumano”
ou “inexato”, religioso, empírico, tecnológico ancestral e origem - academia,
empresas, povos originários, movimentos populares, excluídos)... devem ser
agenciados (usados, prospectados, ressuscitados, combinados, reprojetados via
adequação sociotécnica a partir da tecnociência capitalista, concebidos)... visando à
produção e ao consumo de bens e serviços orientados (prioritariamente) à
satisfação de necessidades coletivas (ao atendimento das compras públicas e à
reconversão industrial)... em redes de economia solidária (respeitando seus
valores e interesses - propriedade coletiva dos meios de produção e autogestão e
promovendo seu adensamento, prolongamento, sustentabilidades, autonomia e
competitividade) (Dagnino; Cavalcanti; Costa, 2016).
Preparando um novo pacto para a educação brasileira
No final da seção “A conjuntura atual nos países centrais” tratei das
características do cenário desejável, do novo projeto societário, do papel que dentro
dele irá assumir a economia solidária e como, a partir de sua implantação, se irá
gestando uma proposta a ser negociada com a classe proprietária para o
estabelecimento de um novo pacto.
Depois de ter apresentado a proposta a Tecnociência Solidária, faço agora
menção a mais alguns desafios de nossa realidade que ela é um elemento central
para enfrentar. Apesar da importância de fazê-lo, visto que é assim que se pode
conceber ações, o faço de forma muito sintética uma vez que tenho escrito bastante
sobre isso na mídia de esquerda.
22
No que se refere aos aspectos socioeconômicos e políticos que
simplificadamente entendo como condicionantes da evolução que terá o pacto, estão
presentes na cena brasileira duas estratégias que, embora não excludentes,
delimitam cursos de ação bem distintos em termos, entre outras, da política
cognitiva.
De um lado, encontra-se a estratégia do “emprego e salário” baseada no
estímulo à atividade empresarial para geração de crescimento econômico. Muito
alinhada com o nacional-desenvolvimentismo que por décadas orientou nossa
política pública, e apesar de ter sido relativamente bem-sucedida 20 anos atrás, ela
é crescentemente considerada insuficiente para combater o legado de iniquidade,
injustiça e degradação ambiental que recebeu o atual governo de esquerda.
Inspirada nas experiências de “revolução industriosa” e no potencial de
geração de desenvolvimento da economia solidária, ganha força a estratégia do
“trabalho e renda”. Sem pretender exclusividade e compreendendo que a relação de
forças manterá o privilegiamento da “reindustrialização empresarial” e a captura
privada do poder de compra do Estado, seus partidários ressaltam a conveniência
de complementar, através da proposta da “reindustrialização solidária”, a estratégia
do “emprego e salário”.
Entre seus argumentos, apontam que dos 170 milhões de brasileiras e
brasileiros em idade de trabalhar e que que constituem a nossa classe trabalhadora,
apenas 37 têm carteira assinada”; e que existem 80 que nunca tiveram e
provavelmente nunca terão emprego. E chamam a atenção para a experiência
histórica internacional dos governos de esquerda que fracassaram na
implementação de suas políticas socializantes. A dedicação desses governos em
fazer funcionar o Estado e a economia capitalistas para obter recursos para custear
a reorientação da política teria sido uma das causas históricas do seu insucesso.
Para evitar que as políticas sociais se tornem reféns do bom funcionamento
do capitalismo e possam reconstruir a democracia, dizem, semelhantemente ao que
vem ocorrendo no Norte, ser necessário outra governança que fomente arranjos
produtivos e de consumo baseados na propriedade coletiva dos meios de produção,
na solidariedade e na autogestão.
Partindo da constatação de que a desindustrialização foi uma opção de nossa
classe proprietária, de que o fomento da inserção de suas empresas no mercado
global implica privilégios desmedidos, e de que estas não se interessam pelo nosso
23
potencial de conhecimento tecnocientífico, os partidários da estratégia “do trabalho e
renda” e da proposta da “reindustrialização solidária” defendem uma radical
reorientação da política cognitiva.
Para isso, para que seja possível atender aquelas demandas cognitivas
embutidos nas necessidades materiais coletivas insatisfeitas, propõem que a
elaboração da política cognitiva incorpore, além da elite científica (cujas “antenas”
tenderão a seguir orientadas para o Norte), um ator até agora pouco escutado. Esse
ator, as trabalhadoras e trabalhadores do conhecimento, que atuam na docência,
pesquisa, planejamento e gestão da política cognitiva é o que detém nosso
significativo e crescente potencial tecnocientífico (Dagnino, 2022).
Por ser o efetivamente responsável pela sua operacionalização, esse ator é o
que poderá promover a reorientação necessária. Isso por ser, por um lado, o que
melhor poderá identificar aquelas necessidades por bens e serviços e decodificá-las
como demandas tecnocientíficas (muitas delas de evidente originalidade e elevada
complexidade), e “trazê-las” para o ambiente onde se definem as agendas de
ensino, pesquisa e extensão de nossas instituições. E, por outro, o que melhor
poderá representar o interesse público junto ao governo e aos demais atores
envolvidos com a política cognitiva.
Concluindo, resta dizer que o caminho que me parece mais adequado está
assinalado. As condições para que ele seja de imediato trilhado estão dadas. Entre
elas, chamo a atenção para uma auspiciosa convergência. Muitas daquelas
trabalhadoras e trabalhadores do conhecimento defendem a estratégia do “trabalho
renda” e a proposta da “reindustrialização solidária”. E defendem também que a
política cognitiva esteja solidamente ligada aos interesses e valores da classe
trabalhadora.
Tudo isso implica que, de imediato, nossa educação deva estar focada no
atendimento às demandas cognitivas da economia solidária. É elevada sua
capacidade de acumulação de forças políticas e, muito importante no prazo
imediato, de fiança de governabilidade para o atual governo. É a partir do potencial
do conhecimento que possuem seus integrantes que se irá gestar o novo pacto que
a classe trabalhadora irá conceber.
24
Referências
DAGNINO, R. Para explicar a tempestade e sulear a bonança. edição,
Campina Grande - Paraíba: Eduepb, 2022.
DAGNINO, R. Tecnociencia Solidária: um manual estratégico. edição.
Marília-SP: Editora Lutas Anticapital, 2019.
DAGNINO, R; CAVALCANTI, P. A; COSTA, G. Gestão Estratégica Pública.
edição. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2016.
25
V.22, 48 - 2024 (maio-agosto) ISSN: 1808-799 X
FORMAÇÃO HUMANA INTEGRAL E ESTÉTICA MARXISTA1
Benedita Alcidema Coelho dos Santos Magalhães2
Ronaldo Marcos de Lima Araujo3
Resumo
Trata da formação humana integral na perspectiva do ser social e de uma totalidade histórica e sua
relação com a estética marxista. Objetiva discutir a função ontológica da arte, o trabalho e a arte
como criação e a abordagem marxista da arte para compreender a contribuição desta para formação
humana numa perspectiva omnilateral, tendo o trabalho como elemento basilar. O estudo tem caráter
bibliográfico, a teoria adotada, com base no materialismo histórico dialético sustenta que não é
possível pensar processos de formação humana numa perspectiva omnilateral sem a arte.
Palavras-chave: Formação humana integral; Arte; Trabalho
FORMACIÓN HUMANA INTEGRAL Y ESTÉTICA MARXISTA
Resumen
Aborda la formación humana integral desde la perspectiva del ser social y una totalidad histórica y su
relación con la estética marxista. Pretende discutir la función ontológica del arte, el trabajo y el arte
como creación y el enfoque marxista del arte para comprender su contribución a la formación humana
desde una perspectiva omnilateral, con el trabajo como elemento básico. El estudio es de carácter
bibliográfico, y la teoría adoptada, basada en el materialismo histórico dialéctico, sostiene que no es
posible pensar los procesos de formación humana desde una perspectiva omnilateral sin el arte.
Palabras clave: Formación humana integral; Arte; Trabajo
INTEGRAL HUMAN FORMATION AND MARXIST AESTHETIC
Abstract
It deals with integral human formation from the perspective of the social being and a historical totality
and its relationship with Marxist aesthetics. It aims to discuss the ontological function of art, work and
art as creation and the Marxist approach to art in order to understand its contribution to human
formation from an omnilateral perspective, with work as a basic element. The study is bibliographical
in nature, and the theory adopted, based on dialectical historical materialism, argues that it is not
possible to think about processes of human formation from an omnilateral perspective without art.
Keywords:Integral Human Formation; Art; Labor.
3Doutor em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais,Brasil. Professor do Programa de
Pós-Graduação em Gestão e Currículo da Educação Básica na Universidade Federal do Pará, Brasil.
Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Trabalho e Educação (GEPTE). Email: rlima@ufpa.br.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/7901626430586502. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5982-793X.
2Doutora em Educação/Universidade Federal do Pará- Brasil. Professora do Programa de
Pós-Graduação em Gestão e Currículo da Educação Básica Universidade Federal do Pará, Brasil.
Pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Trabalho e Educação (GEPTE).
Email: alcidema@ufpa.br. Lattes: http://lattes.cnpq.br/7484794171047694.
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7536-5184.
1Artigo recebido em 04/02/2024. Primeira Avaliação em 03/04/2024. Segunda Avaliação em
15/04/2024. Aprovado em 29/05/2024. Publicado em 07/08/2024.
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v22i48.61783.
1
Introdução
Este texto trata da formação humana integral na perspectiva do ser social e
de uma totalidade histórica e sua relação com a estética marxista, produto da tese
de doutorado defendida em 20184, onde foi realizado um Estudo de Caso sobre a
formação de artistas no âmbito da educação profissional5. A pesquisa buscou
contribuir com as discussões acerca da formação humana numa perspectiva integral
da classe trabalhadora.
O presente texto consiste na contribuição teórica que fundamentou o referido
estudo. Para isso, discute a função da arte na sua condição ontológica, o trabalho e
a arte como criação, a abordagem marxista da arte e a concepção de formação
humana integral. O trabalho como mediação de primeira ordem é a categoria central
que nos ajuda a compreender a arte como potência integradora no processo de
formação humana.
Aqui, utilizamos a palavra “potência” de acordo com o dicionário Aurélio
(2004) como “força” e “capacidade”. Na perspectiva marxista, podemos falar de
capacidades ou poderes humanos em satisfazer as suas necessidades. Pois, “o ser
humano real existe, para Marx, tanto como “efetividade” (o homem mercadoria,
alienado) quanto como “potencialidade” (o que Marx chama de ‘o rico ser humano’)”
(Mészáros, 2006, p.150).
Entendemos a essência humana em Sánchez Vázquez (2011) para quem o
ser humano é um ser prático, social e histórico, três dimensões inseparáveis. Prático
porque produz/cria e nesse processo produz a si mesmo, produz socialmente e num
determinado tempo.
O trabalho, como mediação de primeira ordem, é a categoria central que nos
ajuda a compreender a arte como potência integradora. Mészáros (2006) distingue o
trabalho como mediação de primeira ordem e mediação de segunda ordem. O
trabalho como mediação de primeira ordem refere-se à sua acepção ontológica
como atividade produtiva fundamental da existência humana. Como mediação de
segunda ordem refere-se à acepção particular, na forma da divisão capitalista do
5O estudo de caso foi publicado em artigo intitulado “Práxis artístico-pedagógica na formação de
artistas na educação profissional”. Revista Cocar. V.14 N.30 Set./Dez./2020 p. 1-18.
4A tese defendida no Programa de Pós-Graduação em Educação da UFPA, intitulou-se “TRABALHO,
ARTE E FORMAÇÃO HUMANA: processos de integração/fragmentação no curso técnico de nível
médio em Teatro da UFPA” (2018).
2
trabalho, que por sua vez, nega a dimensão criadora do primeiro. Frigotto (2009)
esclarece essa distinção feita por Mészáros:
[...] Mészáros (1981) traz uma distinção importante entre trabalho
como mediação de primeira ordem, em Marx processo antediluviano
entre homem e natureza, para designar sua compreensão ontológica
de trabalho e mediação de segunda ordem, para designar as formas
históricas que ele assume (FRIGOTTO,2009, p.174).
A arte é entendida em Marx como trabalho, e, portanto, compõem esse
complexo de mediações, a arte possui sua dimensão criadora - negada no trabalho
alienado - independente da forma histórico-concreta que ela assume na sua relação
com a realidade ou ideologia em que se apoia conforme sustenta Sánchez Vázquez
(2011).
Analisar arte como criação, trabalho criador, e suas repercussões para a
formação humana omnilateral é a tarefa que nos colocamos neste texto. Desta feita
nos questionamos: qual a contribuição da arte para formação humana numa
perspectiva omnilateral, tendo o trabalho como elemento basilar?
Trabalho e Arte: práxis criadora
O trabalho é o fundamento da existência humana. Pelo trabalho o ser humano
transforma a natureza e cria a si mesmo. Diferentemente dos animais, o homem e a
mulher têm consciência de sua atividade e define finalidades, bem como, é capaz de
projetá-la, ideá-la.
O trabalho enquanto produtor de valores-de-uso, enquanto trabalho útil, é,
independentemente das formas de sociedade, condição da existência do
homem, uma necessidade eterna, o mediador da circulação material entre a
natureza e o homem [isto é, da vida humana ]” (MARX, 2014 - Seção I,
Capítulo I.).
O trabalho é, portanto, uma atividade vital, porque produz coisas úteis, que
satisfaz as necessidades humanas, produz valor de uso e possui um caráter
ontológico, ou seja, o trabalho forma o próprio homem. Ao transformar a natureza o
homem muda a si próprio e as suas relações.
O trabalho, ressalta Engels, é muito mais do que fonte de riqueza como
querem os capitalistas, “o trabalho, porém, é muitíssimo mais do que isso. É a
condição básica e fundamental de toda a vida humana. E em tal grau que, até certo
3
ponto, podemos afirmar que o trabalho criou o próprio homem” (Engels, 2016, p.1).
Estamos de acordo com Engels quando ressalta essa importância fundante
do trabalho como constituidora do ser humano, mas compreendemos em Netto e
Braz (2011) que a constituição do ser social não fica limitada ao trabalho.
No âmbito do materialismo histórico-dialético uma centralidade da
categoria trabalho, porém explica Netto e Braz (2011, p. 53) que “o trabalho é parte
constitutiva do ser social, mas o ser social não se reduz ou esgota no trabalho”.
Nesse aspecto, amplia a compreensão do desenvolvimento do ser social, pois, à
medida que este alcança um nível mais elevado no seu desenvolvimento, “mais as
suas objetivações transcendem o espaço ligado diretamente ao trabalho”.
Netto e Braz (2011, p.53) explicitam que novas exigências são postas ao ser
humano à medida que o ser social se desenvolve, que implicam: “uma racionalidade,
sensibilidade e atividade, sobre a base necessária do trabalho, criam objetivações
próprias”. É então, que os autores apresentam a categoria práxis como mais
abrangente para compreender essas novas objetivações que transcendem o
universo imediato do trabalho.
Nesse caso, distingue as formas de práxis voltadas para uma relação direta
com a natureza, o trabalho, a produção, das formas de práxis voltadas para influir no
comportamento e na ação do homem, relação de sujeito a sujeito (Netto; Braz,
2011).
Entendemos que a arte, faz parte desta segunda forma de práxis em que o
sujeito atua sobre si mesmo e sobre os outros, assim, afirmam os autores
“verificamos a existência de esferas de objetivação que se autonomizaram das
exigências imediatas do trabalho- a ciência, a filosofia, a arte, etc.” (Netto; Braz,
2011, p.53, grifo nosso).
Compreendemos também que essa autonomização não significa a negação
da centralidade do trabalho, mas o reconhecimento de que o trabalho ao criar o ser
humano, cria também necessidades e que estas não se constroem sem a
necessária base do trabalho. Assim, a arte entendida como criação, está
diretamente articulada à essência humana (prático, social e histórico) e, portanto,
sua função essencial “é ampliar e enriquecer, com suas criações, a realidade
humanizada pelo trabalho humano” (Sánchez Vásquez, 2011, p. 42).
É importante destacar, que não tomamos a arte como a solução para os
4
problemas do capitalismo. Isso foi feito por Schiller, quando propôs uma educação
estética da humanidade colocando no indivíduo a solução para os problemas que
dizem respeito a uma estrutura maior do funcionamento sociometabólico do capital,
tornando-se uma utopia educacional, como enfatiza Mészáros,
Para Schiller a educação estética pretendia oferecer um modelo
estético que permitisse à Alemanha obter as conquistas sociais da
revolução Francesa, sem uma revolução. Segundo Lukács, Schiller
ressalta acima de tudo a transformação interior da vida espiritual do
homem” (MÉSZÁROS, 2006, p. 264).
Não queremos, contudo, diminuir a contribuição significativa de Schiller e sua
influência na constituição de uma educação estética e do ensino da arte. Queremos,
com este exemplo, ressaltar que o ser social é uma totalidade, composta de
subjetividade e objetividade e que, portanto, as transformações necessárias para se
garantir a inteireza humana não podem tomar essas duas dimensões de forma
dissociada.
A educação estética é muito importante como destaca Mészáros (2006) para
se criar o órgão do consumo artístico, pois para Marx (2015, p.352) “somente pela
riqueza objetivamente desdobrada da essência humana é em parte produzida, em
parte desenvolvida a riqueza da sensibilidade humana subjetiva”, com isso
depreendemos a importância e a necessidade da educação dos sentidos e a
construção de novas relações sociais e culturais.
Ora, na sociedade capitalista essa educação estética é direcionada para
educar sentidos subordinados aos interesses do mercado e dizem respeito a uma
estetização do consumo, da atomização das individualidades e subjetividades, da
criação de necessidades “fantasmagóricas”. Ou seja, não é possível pensar a
educação estética descolada dos problemas estruturais que envolvem a educação
no Brasil.
Na relação de tensão entre arte e capitalismo, percebemos o quanto o
capitalismo hostiliza e busca subordinar a arte, esvaziando-a de sua finalidade
precípua, tornando-a mercadoria. Entendemos, neste caso, que as mediações de
segunda ordem são colocadas em movimento e afetam a criação artística, o gozo
estético e a formação em artes.
Para Kosik o rompimento da relação trabalho e arte, impulsionada pelo
avanço das relações de produção capitalista, nega a dimensão criadora do trabalho
5
e o opõe à criação, transformando o primeiro em “uma fadiga incriativa e
extenuante” (Kosik, 1976, p. 110).
A arte é potência integradora, mas não é única e nem pode ser tomada de
forma isolada das condições materiais em que ela é produzida e floresce, daí reside,
nossa escolha em compreendê-la a partir do materialismo histórico-dialético, pois,
ele nos afasta de perspectivas mistificadoras e fetichizadas da arte, que o
desenvolvimento desta no ser humano como produto de talento, dom, genialidade -
e acaba por reforçar uma estética da fragmentação produto da realidade social
dividida em classes.
Para Marx (2015, p.352) “a formação dos cinco sentidos é um trabalho de
toda história do mundo até hoje”. Neste sentido, nosso estudo, ao perpassar pela
estética na perspectiva marxista, cuja concepção de arte como trabalho criador, nos
permitiu compreender a relação tensão entre arte e capitalismo no campo
educacional e as razões de sua negação e hostilização por parte do capitalismo que
cada vez mais constrói uma estética da fragmentação.
A estética marxista também é muito ampla, e por isso, realizamos recortes.
No interior mesmo do marxismo as abordagens sobre a arte também têm diferentes
perspectivas. Dentro do marxismo, autores que defendem a função utilitária da
arte, a função de propaganda política, de instrumento político que acabaram por
constituir o realismo socialista de tendências stalinistas. O realismo socialista, era
“uma ideologia que buscava justificar uma prática artística e literária de acordo com
os interesses do Partido e do Estado soviético” (Sánchez Vázquez, 2011, p.438).
Em nome das dificuldades objetivas que o bolchevismo tinha de
enfrentar, todas as energias humanas da União Soviética foram
convocadas e logo coercitivamente mobilizadas para o trabalho
político imediatamente útil. Os artistas e os escritores foram
chamados a cumprir suas tarefas (KONDER, 2013, p.89).
Lukács tem sido apontado como aquele que conseguiu sistematizar e
desenvolver uma estética marxista de forma lúcida e coerente cujas matizes
encontram-se nas obras do próprio Marx e Engels sobretudo, na compreensão de
que em toda teoria econômica de Marx-Engels está imbricada uma estética6.
6Baumgarten (1714-1762), filósofo alemão, criou a estética como um sistema de teoria do belo.
Apresenta a estética como teoria da sensibilidade, ou seja, tudo aquilo que é apreendido pelos
sentidos humanos. Contribuiu para constituição da estética como disciplina autônoma (LOUREIRO,
2002, p. 22).
6
Portanto, articular uma estética marxista para a compreensão de processos de
formação humana, nos permite na complexidade desse processo formativo - criativo,
captar a essência da função da arte e as contradições na sua materialização.
Notas Introdutórias sobre a Estética Marxista
Discutir a Arte na perspectiva marxista não é tarefa das mais fáceis, uma vez
que ela tem sido secundarizada e muitas vezes negligenciada no interior do próprio
marxismo.
O esforço em recolocar arte no centro das preocupações e necessidades
humanas, devidamente articulada a outros aspectos que envolvem a constituição
deste ser, foi assumida por dois importantes marxistas do século XX, o Russo
Mikhail Alexandrovicht Lifschitz e o Húngaro György Lukács, que trabalhando juntos,
no Instituto Marx-Engels-Lenin em Moscou, dedicaram-se a investigar no conjunto
da obra de Marx e Engels “os fundamentos para uma teoria da arte original” como
explicou José Paulo Netto e Miguel Yoshida, em “nota à edição” de uma obra
importante publicada no Brasil com o título “Cultura, arte e literatura: textos
escolhidos” (Marx & Engels, 2012, p.7-8).
A obra, acima indicada, reúne escritos de Marx e Engels, produzidos em
diferentes momentos de suas vidas que tratam da questão da arte, cultura e
literatura e de alguma forma apontam caminhos e dão pistas significativas para
fundamentar o que mais tarde se constituiu como “Estética marxista”, embora
ressaltem Lukács e Lifschitz, Marx e Engels “jamais tenham se colocado a tarefa de
pensar sistematicamente a arte (isto é, de elaborar uma estética) (Marx & Engels,
2012, p.7-8).
Lukács (2010) trata Engels como teórico e crítico da literatura e afirma que
este o fazia determinado pelas grandes tarefas da luta da classe proletária. Lukács
ressalta o papel de Engels destacando a sua preocupação centrada na influência
burguesa sobre a consciência proletária e defendia, por sua vez, a grande herança
que consiste na missão histórica e universal do proletariado de destruir o triste
mundo capitalista para criar uma nova sociedade, que garanta um grandioso
desenvolvimento cultural” (Lukács, 2010, p. 40).
Coube, portanto, a Lukács a sistematização de uma estética marxista, que
resultou a importante obra “Estética” organizada em quatro volumes (em versão
7
espanhola) ainda inacessível em português para os brasileiros. De acordo com
Frederico (2013, p.113) “as ideias centrais foram antecipadas no livro, concluído em
1956, Introdução à uma estética marxista, dedicado à categoria central da estética: a
particularidade.”
De acordo com o filósofo brasileiro amazônico Benedito Nunes (2010) - que
dedicou sua vida ao estudo de questões estéticas - Lukács é um dos mais lúcidos
marxistas a tratar da questão da estética. O que faz Lukács ser a principal referência
no debate de uma estética marxista, sem desconsiderar outros também importantes,
é a sua capacidade de uma elaboração teórica profunda, fiel às fontes e que
sobretudo não condiciona a compreensão da arte às tendências, mas parte do
entendimento que a arte é uma forma particular de compreensão da realidade.
O que faz Lukács tão especial nesse debate é a sua dedicação por
compreender o ser humano na sua ontologia, o ser social. Três anos após ter escrito
a obra “Estética I (1963) passou a preocupar-se com a ontologia e a partir de então,
seus estudos passaram a ser uma antologia dos estudos de Marx. Lukács sofreu
influência de Kant e Hegel e seus principais interlocutores foram Weber, Marx e
Hegel. Lukács em Introdução aos escritos estéticos de Marx e Engels, escrito em
1945, esclarece categoricamente que:
Os princípios mais gerais da estética e da história marxista da
literatura encontram-se, pois, na teoria do materialismo histórico.
a partir do materialismo histórico podem ser compreendidas a
gênese da arte e da literatura, as leis do desenvolvimento, as suas
transformações, as linhas de ascensão e queda no interior do
processo de conjunto (MARX & ENGELS, 2012, p.13).
Daí depreende-se que a arte não deve ser pensada de forma isolada do
conjunto do desenvolvimento histórico, mas respeitando as suas particularidades e
conexões imanentes, entendê-la no âmbito da (re) produção material e espiritual da
existência humana, que em última instância é determinada pela base material da
existência humana.
Analisar a arte sob o prisma do materialismo histórico-dialético exige, como
alerta Lukács (2010) afastar algumas interpretações que ele considera vulgar e
deformadora, quais sejam por exemplo, interpretar de forma mecânica a relação
entre base econômica e superestrutura numa relação de causa-efeito, ou seja, a arte
(situada na superestrutura) entendida como mero efeito da base econômica (causa).
Como dito anteriormente, a arte possui suas particularidades e conexões
8
imanentes, que lhe conferem uma autonomia relativa, que por sua vez afetada pelas
forças sociais produtivas também produz efeitos sobre esta. “A dialética - afirma
Lukács- [..] reconhece até mesmo nos dados mais elementares da realidade,
complexas interações de causa e efeito” (Marx & Engels, 2012, p.13).
Sánchez Vázquez, conhecido no Brasil, principalmente por causa de sua obra
Filosofia da Práxis (2011), também se dedicou aos estudos no campo da estética
marxista. O adensamento do pensamento estético marxista culminou na obra "As
Ideias estéticas de Marx (2010) e inúmeras obras dedicadas à estética, a arte e seu
destino sob o capitalismo. De acordo com este autor as questões estéticas e
artísticas em Marx estão ligadas à sua concepção de homem, “[...] o homem total,
desalienado e em plena posse de suas forças essenciais. Certamente a criação
artística e o gozo estético prefiguram, aos seus olhos, a apropriação
especificamente humana das coisas e da natureza humana” (Sánchez Vázquez,
2010, p.11-12).
Sánchez Vázquez (2010, p.89) destaca também o papel da prática na estética
marxista, afirmando que esta, é o fundamento da relação estética e da criação
artística. “[...] segundo essa concepção, a arte como trabalho superior é uma
manifestação da atividade prática do homem, graças à qual este se expressa e se
afirma no mundo objetivo como ser social, livre e criador”. Nestes termos, corrobora
Lukács na introdução do livro de textos reunidos Cultura, arte e literatura”, de Marx
e Engels,
A ideia central do marxismo, no que se refere à evolução histórica é
a de que o homem se fez homem diferenciando-se do animal através
do seu próprio trabalho. A função criadora do sujeito se manifesta,
por conseguinte, no fato de que o homem se cria a si mesmo, se
transforma ele mesmo em homem, por intermédio do seu trabalho,
cujas características, possibilidades, graus de desenvolvimento, etc,
são determinados pelas circunstâncias objetivas, naturais ou sociais.
Este modo de conceber a evolução histórica está presente em toda
visão marxista da sociedade e também, na estética marxista (MARX
& ENGELS, 2012, p. 14).
A tese cara ao marxismo de que o ser humano se humaniza mediado pelo
trabalho é a base que sustenta toda a estrutura de uma estética marxista. Para
Mészáros “a estrutura de referência comum é o homem como um ser natural que é
ativo a fim de satisfazer as suas necessidades, não apenas econômicas, mas
também artisticamente”, é, portanto, a capacidade criadora do ser humano que
9
orienta toda a compreensão de uma estética marxista que se opõe à estética do
realismo socialista (Mészáros, 2006, p.174).
Mészáros em A teoria da Alienação em Marx ao discutir os aspectos da
alienação (econômicos, políticos, ontológicos, morais e estéticos) toma como ponto
de partida para a análise dos aspectos estéticos a constatação de que a “criação e o
gozo artísticos foram profundamente afetados pela alienação” e contrapondo-se ao
que ele chama de “ouvidos afinados com o utilitarismo” destaca que
As considerações estéticas ocupam um lugar muito importante na
teoria de Marx. Estão elas tão intimamente ligadas a outros aspectos
de seu pensamento que é impossível compreender adequadamente
até mesmo a concepção econômica sem entender suas ligações
estéticas (MÉSZÁROS, 2006, p.173).
A questão estética tem a sua importância filosófica e teórica sobretudo porque
trata de “uma dimensão essencial da existência humana” e da cultura (Sánchez
Vázquez, 2010, p. 12). Os Manuscritos Econômicos Filosóficos de 1844 de Marx é
considerada a obra que contém os elementos fundamentais de sua estética. E,
conforme esclarece Frederico (2013) Lukács foi o único autor marxista do século 20
“que se reclamou herdeiro direto da ontologia esboçada em 1844 e se dispôs a
desenvolver as ideias estéticas nela presente” (Frederico, 2013, p. 56).
Lukács (1968), ao prefaciar a sua obra Introdução a uma estética marxista,
esclarece a importância de se discutir aprofundadamente a categoria, que ele
considera, central da estética: a particularidade. Além disso, trata da “especificidade
do fato estético [...], a sua diferença em relação ao reflexo científico da realidade
objetiva e em relação ao reflexo que se realiza na vida cotidiana, e, os problemas do
Reflexo Estético” (Lukács, 1968, p.1).
Konder referindo-se a Lukács esclarece “[...] a ciência funda a nossa
consciência histórica, ao passo que a arte funda a nossa autoconsciência histórica.
A arte antropomorfiza o real em sua representação: a ciência desantropomorfiza
(KONDER, 2013, p. 137). A diferença entre reflexo científico e reflexo estético é
esclarecido por Infranca, nestes termos,
[...] Lukács, entende o espelhamento artístico e científico como
postura ativa para com a realidade, e não como mera reprodução
fotográfica. Todo espelhamento da realidade concentra-se no objeto,
a diferença entre espalhamento científico e espelhamento estético
consiste no fato de que no primeiro demanda-se uma concentração
sobre a realidade em si da forma mais pura possível, tendo assim um
10
processo de desantropomorfização da realidade; no segundo, o
complexo dos objetos está em relação com a subjetividade,
dando lugar a um processo de antropomorfização (INFRANCA,
2014, p.129).
Importante ressaltar que Sánchez Vázquez (2010) amplía o entendimento
sobre o reflexo artístico e alerta que é possível falar dele quando a arte cumpre
função cognoscitiva, ou seja, como uma forma de conhecimento ainda assim,
precisa ter explícita a distinção entre reflexo científico e reflexo artístico - e ao
mesmo tempo, revele, o caráter específico da realidade refletida, papel peculiar do
sujeito na relação estética, funções próprias da imaginação, dos sentidos, da
emoção e do pensamento nessa relação” e que, portanto, a arte não pode ser
reduzida a seu valor cognoscitivo (Sánchez Vázquez, 2010, p.17).
No livro Marxismo e teoria da literatura são reunidos escritos de Lukács em
momentos diferentes, a sua análise criteriosa e rigorosa pautada no materialismo
histórico- dialético sobre a arte e literatura o situa como um dos mais importantes
estudiosos da estética marxista, seja pela sua análise lúcida, pela clara tomada de
posição a favor de uma arte realista, essencialmente autêntica, nem “livre”, nem
“dirigida”, seja pelo profundo conhecimento da literatura e de seus clássicos, sendo
estes marxistas ou não.
Realiza no conjunto de textos apresentados, uma análise minuciosa por
dentro do marxismo, apontando aqueles que conseguem objetivamente trabalhar a
Arte como reflexo da realidade e produzir uma composição literária que acompanha
o movimento dinâmico da própria realidade, assim como, identifica aqueles
influenciados pela decadência do capitalismo que capitulam na perspectiva de uma
arte dirigida, fatalista, descritiva, subjetivista, individualista e apologética e acabam
por perder a autenticidade da arte.
Konder (2013) brasileiro, discípulo de Lukács com quem se comunicava por
meio de cartas, dentre as suas várias obras, escreveu o livro Os marxistas e a arte
onde destaca a concepção e as diferenças de vários marxistas acerca da arte.
Konder “defende a arte como herança cultural da humanidade, do humanismo” e
entende a “arte como um modo particular de totalização dos conhecimentos obtidos
na vida” (Konder, 2013, p.12).
Diz Konder (2003, p.17) que “como toda concepção do mundo, o marxismo
possui a sua própria teoria estética, que integra, de modo geral, a sua teoria do
11
conhecimento”. E, por isso mesmo, tem seu lugar próprio, sua necessidade de
compreensão e interpretação articulada a essa teoria marxista mais ampla. Neste
sentido, enfatiza que diferentes posições foram se formando no interior do marxismo
e reivindicando representar uma estética marxista, ainda que contraditória com a
doutrina estética do marxismo (Konder, 2013, p.17).
No sistema Hegeliano, a arte constituía-se parte de um estágio inferior que
seria superado pela religião e depois pela filosofia, Marx e Engels, por sua vez,
reabilitaram os sentidos humanos, historicizando-os e possibilitando com isso, a
“valorização do conhecimento artístico” e da “humanização dos sentidos na
formação humana” (Konder, 2013, p. 38-39).
Em síntese, a estética marxista tem como base fundante a tese de que o ser
humano se humaniza mediado pelo trabalho, um ser humano ativo que busca
satisfazer suas necessidades econômicas e artísticas. A arte, neste caso, representa
a positividade do trabalho. O trabalho como atividade vital do ser humano está em
contradição com as condições de produção capitalista que negam sua dimensão
criadora.
A arte é trabalho criador “[...] essa concepção da arte como criação, por seu
caráter universal, se contrapunha a toda concepção que reduzisse a arte a
determinada forma histórico-concreta (fosse o realismo ou outra)”, destaca Sánchez
Vázquez (2011, p. 438).
A estética marxista, na perspectiva que adotamos, tem como referência a
concepção do ser humano como ser social, prático, criador, trabalhador e histórico.
Para isso, a práxis é a categoria mais abrangente, para entendê-la nos processos de
objetivações, que transcendem as exigências imediatas do trabalho. Os princípios
mais gerais da estética marxista encontram-se na teoria do materialismo
histórico-dialético (Mészáros, 2006).
Formação humana integral e a necessidade da arte e da cultura
Os processos de formação humana integral, na perspectiva do ser humano
como ser social e uma totalidade histórica, neste texto, estão relacionados à ideia de
formação humana omnilateral, que no plano da luta hegemônica, está associada aos
interesses da classe trabalhadora.
12
A necessidade em compreender processos de formação cuja referência seja o
ser humano na perspectiva do ser social e uma totalidade histórica concreta, nos
permite a aproximação com a relação trabalho-arte como eixo fundamental de
processos formativos integradores. A arte como trabalho criador constitui esfera
fundamental da vida humana.
A educação dos sentidos possibilita o desenvolvimento amplo do sujeito e
que, portanto, a arte pode contribuir de forma significativa na formação das crianças,
das juventudes e dos/as trabalhadores/as e por isso mesmo ela é negada. Em uma
perspectiva de formação integrada, as artes cumprem papel fundamental, porque
além de sua potência emancipatória, ela é também, reveladora da diversidade
sociocultural, da identidade, da constituição subjetiva e objetiva da sociedade, do
mundo, da natureza, da espiritualidade e das relações sociais.
Como pensar processos de formação humana que levem em conta a arte com
sua função humanizadora e o trabalho como princípio educativo, em sistemas
educacionais cujas finalidades estão cada vez mais empenhadas ao atendimento
das demandas e necessidades do mercado, onde o conceito de trabalho é reduzido
a emprego e a arte ao lazer, e quando se separa escola para a classe trabalhadora e
seus filhos e escola para as classes dirigentes, instaurando-se dois modelos de
escolas?
No enfrentamento às perspectivas de formação humana adestradora, estreita
e fragmentada, propõe-se uma escola unitária e formação humana omnilateral,
politécnica ou tecnológica, com vistas à emancipação humana. Gramsci (1991,
p.118) a seu tempo, falou da necessidade de uma “escola desinteressada” e
“formativa”. Para ele é preciso pôr fim à separação entre o homo faber e homo
sapiens e organizar a escola e seu programa de tal forma que favoreça “o estudo, a
capacidade de pensar, de dirigir e controlar quem dirige”. Para isso, defendeu uma
“escola única inicial de cultura geral, humanista, formativa, que equilibre
equanimemente o desenvolvimento da capacidade de trabalhar manualmente e o
desenvolvimento das capacidades de trabalho intelectual”, pois não aprendemos
somente com a cabeça, aprendemos com o corpo todo, aprendemos como seres
humanos totais (Gramsci, 1991. p.136).
Saviani (2007, p.164) ao tratar sobre o vínculo ontológico-histórico da relação
trabalho e educação, reafirma a importância da construção de um ensino politécnico,
13
entendido como “os fundamentos científicos das múltiplas técnicas que caracterizam
a produção moderna”, trata-se da “união entre formação intelectual e trabalho
produtivo”. Para Mészáros (2008, p.10) “pensar a educação tendo como parâmetro o
ser humano exige a superação da lógica desumanizadora do capital que tem no
individualismo, no lucro, na competição seus fundamentos”. No campo contra
hegemônico está a concepção que toma o trabalho como princípio educativo para a
definição de políticas e estratégias de educação para os trabalhadores e a arte como
potência integradora nos processos formativos.
Tomar o trabalho como princípio educativo, significa, em primeiro lugar,
compreender que este, dada a sua importância e centralidade para a vida humana,
constitui-se “[...] num dever e num direito”. Um dever a ser aprendido, socializado
desde a infância. [...] um direito, pois é por ele que pode recriar, reproduzir
permanentemente sua existência humana (Frigotto, 2001, p.74).
É essa dimensão criadora e livre do trabalho que precisa ser ensinada nas
escolas, que deve orientar os processos pedagógicos, contrapondo-se às formas
como ele apresenta-se nas sociedades capitalistas. Pensar a formação humana
omnilateral significa contrapor-se a essa lógica de empobrecimento dos sentidos e
potências humanas. A concepção de formação humana omnilateral se insere num
projeto societário que visa superar o capitalismo e busca dar conta de todas as
dimensões humanas e suas condições objetivas e subjetivas reais (Frigotto, 2012).
No campo educacional brasileiro, Frigotto (2010), Ciavatta (2005, 2014),
Ramos (2005), Machado (2013), Araujo, Rodrigues e Silva (2014) opõem-se a
processos de formação humana fragmentadores e caminham na direção e na defesa
de um ensino integrado, não somente na forma, mas sobretudo no conteúdo, ou
seja, um ensino onde busca a formação dos seres humanos por inteiro, uma
formação completa, ampla, que potencializa todas as dimensões humanas e
corrobora para emancipação do trabalhador e da trabalhadora.
Nesses termos, depreendemos que a arte ao tomar o ser humano em sua
totalidade e o trabalho como princípio educativo, ambas práxis criadoras,
corroboram fundamentalmente para se pensar processos de formação humana
omnilateral, onde os seres humanos possam desenvolver todas as dimensões do
seu ser, tomar consciência de sua desumanização e sentir necessidade de sua
inteireza.
14
Portanto, compreendemos que o trabalho, a arte e a cultura constituem
elementos fundantes no processo de formação humana. E, que, portanto, não é
possível pensar e/ou defender uma educação numa perspectiva emancipatória
desconsiderando-os. Para além disso, é preciso que se pense também situado na
cultura de onde emergem determinadas expressões da arte.
Considerações Finais
Iniciamos este texto questionando sobre a contribuição da arte para formação
humana numa perspectiva omnilateral, tendo o trabalho como elemento basilar.
Discutimos a arte como trabalho criador, discorremos sobre a concepção de arte na
perspectiva marxista, a sua dimensão ontológica e finalizamos afirmando que não é
possível pensar processos de formação humana numa perspectiva omnilateral sem
a arte. Daí depreendemos a importância e a complexidade em compreender a arte
na formação de trabalhadores e trabalhadoras e de seus filhos e filhas, que em sua
maioria estão nas escolas públicas.
Para as crianças e jovens advindas das classes populares, o seu primeiro
contato com a arte, acontece na escola. A arte e seu ensino, com sua função
humanizadora e integradora, corrobora para o desembrutecimento humano
educando os sentidos para a criação e fruição da obra de arte, opondo-se a
processos de formação humana fragmentados que subordinam as suas finalidades
educativas aos interesses do mercado, pois a vida reduzida a mera utilidade no
âmbito do capital, também produz sentidos empobrecidos.
Para Marx (2015, p, 350-351) “não pelo pensar, mas com todos os sentidos
afirma-se, portanto, homem no mundo objetivo”. Neste caso, o desenvolvimento dos
sentidos e da sensibilidade que se manifesta na criação e fruição da obra de arte,
tem sido negado aos trabalhadores e seus filhos, seja na escola, seja no campo ou
cidade, pouco democráticas do ponto de vista cultural.
Assim, afirmamos que, não é possível pensar processos de formação humana
numa perspectiva omnilateral, sem arte, pois a arte ao tomar o ser humano em sua
totalidade opõe-se às perspectivas miserabilizadoras do ser humano, constituindo-se
como potência integradora e, portanto, fundamental à formação humana.
15
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17
V.22, 48 - 2024 (maio-agosto) ISSN: 1808-799 X
AS INOVAÇÕES E SEUS DESDOBRAMENTOS PRÁTICOS: DO VIÉS
MECANICISTA ÀS ANÁLISES NÃO REDUCIONISTAS1
Lucília Regina de Souza Machado2
Resumo
O artigo oferece uma sistematização de reflexões acerca da inovação tendo como referência diversos
autores clássicos e contemporâneos de perspectivas teóricas diferentes. As interpretações sobre
inovação e suas associações a mudanças são evocadas e assim agrupadas: a inovação na tradição
econômica; nas análises após a década de 1980 (abordagens a partir do conceito de translação, de
redes sociais, com foco nos conhecimentos tácitos e em ambientes de inovação); e referidas a
rupturas paradigmáticas. O eixo analítico toma a necessidade de superação da perspectiva linear,
mecânica, determinista e quantitativa do fenômeno da inovação considerando a importância de se ter
em vista o problema central da historicidade da realidade social e suas contradições.
Palavras-chave: Inovação; Determinismo tecnológico; Mudança social.
LAS INNOVACIONES Y SUS DESARROLLOS PRÁCTICOS: DEL SESGO MECANIZADOR A LOS
ANÁLISIS NO REDUCCIONISTAS
Resumen
El artículo ofrece una sistematización de reflexiones sobre innovación con referencia a varios autores
clásicos y contemporáneos desde diferentes perspectivas teóricas. Las interpretaciones sobre la
innovación y sus asociaciones con los cambios se evocan y agrupan de la siguiente manera:
innovación en la tradición económica; en análisis posteriores a los años 1980 (enfoques basados en
el concepto de traducción, redes sociales, centrados en el conocimiento tácito y los entornos de
innovación); y las que se refieren a rupturas paradigmáticas. El eje analítico tiene en cuenta la
necesidad de superar la perspectiva lineal, mecánica, determinista y cuantitativa del fenómeno de la
innovación, considerando la importancia de tener en cuenta el problema central de la historicidad de
la realidad social y sus contradicciones.
Palabras clave: Innovación; Determinismo tecnológico; Cambio social.
INNOVATIONS AND THEIR PRACTICAL DEVELOPMENTS: FROM THE MECHANICIST BIAS TO
NON-REDUCTIONIST ANALYZES
Abstract
The article offers a systematization of reflections on innovation with reference to several classic and
contemporary authors from different theoretical perspectives. Interpretations about innovation and its
associations with changes are evoked and grouped as follows: innovation in the economic tradition; in
analyzes after the 1980s (approaches based on the concept of translation, social networks, focusing
on tacit knowledge and innovation environments); and referred to paradigmatic ruptures. The
analytical axis takes into account the need to overcome the linear, mechanical, deterministic and
quantitative perspective of the phenomenon of innovation, considering the importance of taking into
account the central problem of the historicity of social reality and its contradictions.
Keywords: Innovation; Technological determinism; Social change.
2Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Brasil. Professora titular
aposentada da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Brasil.
Email: luciliamachado2014@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/0275888830144512.
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4215-1459.
1Artigo recebido em 11/03/2024. Primeira avaliação em 01/04/2024. Segunda avaliação em 02/04/2024. Terceira
avaliação em 08/04/2024 Aprovado em 25/07/2024. Publicado em 07/08/2024.
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v22i48.62257.
1
Introdução
Segundo Castilhos, “[...] o debate sobre o conceito de inovação foi reacendido
nos anos 70, em decorrência das profundas transformações dos processos
produtivos verificados em escala mundial.” (1997, p. 132). Koeller et al (2020, p.8),
lembram que:
Na academia, o debate sobre tecnologia, inovação e meio ambiente
também se intensificou e se tornou mais complexo. Distintas
correntes teóricas, em particular na economia, passaram a discutir
uma gama de conceitos associados a inovações que incorporam a
dimensão ambiental e a identificar seus determinantes, assim como
suas políticas de fomento.
Roubelat (2016) menciona, igualmente, a existência de bases diferentes
quando se busca conceituar inovação: pode ser o fascínio suscitado em alguns, as
expectativas de mudanças geradas em outros ou o rumo tomado pela glorificação da
tecnologia. Entretanto, a busca pelo significado da inovação coloca, segundo esse
autor, o problema da ação humana.
Ainda que o conceito de inovação carregue ambiguidades e dissensos,
argumentações sobre a temática se desenvolvem em diversos espaços da vida
social. Comenta-se o aumento significativo da rapidez e ritmo do processo de
inovação, a mudança no uso do tempo sob a influência da velocidade dessa
dinâmica, a diminuição do intervalo para produzir os produtos e serviços graças aos
novos inventos, a redução planejada da duração dos novos produtos produzidos, a
necessidade imperiosa de acompanhamento das inovações por pessoas,
organizações e países e como se defender ou se fortalecer face à velocidade e
implicações das mudanças profetizadas ou em andamento.
Essa temática ganhou grande espaço no campo da economia e tem migrado
para outras áreas, permitindo o surgimento de debates específicos sobre inovações
sociais, educacionais, culturais, políticas etc. Um programa do Centro Nacional de
Pesquisas Científicas - CNRS, da França, patrocinou entre 1997 e 2002 estudos
sobre os desafios econômicos da inovação. Esses foram agrupados em quatro
linhas de pesquisa por Encaoua, Foray, Hatchuel e Mairesse (2004): a)
representações econômicas da inovação; b) gestão da inovação e teoria da empresa
inovadora; c) economia e sociologia da ciência; e d) políticas públicas a favor da
inovação.
2
Todavia, Andrade (2005, p. 145) pondera que “Inovação é uma daquelas
palavras carentes de definição precisa e que são defendidas por grupos sociais os
mais diversos”. Além da polissemia do termo, o autor chama a atenção para seu
caráter consensual quando vinculado a alternativas de solução de problemas
tecnológicos e de crescimento econômico. De fato, seja como fator ou como
resultado, quer na sua positividade ou negatividade, a inovação vem sendo
associada a desenvolvimento, mudanças e transformações, algumas mais
periféricas e outras mais centrais e profundas.
Neste artigo3, pretende-se apresentar, de forma ensaística e
problematizadora, alguns conceitos e abordagens sobre inovação, processo
inovativo e suas relações com a marcha do desenvolvimento e das transformações
sociais. Parte-se do pressuposto de que a inovação corresponde ao nível mais
elevado das capacidades humanas, pois ela requer uma visão de conjunto e de
síntese das necessidades sociais, dos meios e recursos disponíveis e das condições
e oportunidades para o emprego de conhecimentos e adaptação das respostas aos
problemas encontrados.
Entende-se, por outro lado, que embora as inovações possam ser associadas,
de alguma forma, a processos de desenvolvimento, mudanças e transformações,
essas relações precisam ser vistas como não lineares e deterministas. Entretanto e
diferentemente, para a OCDE Organização para a Cooperação e Desenvolvimento
Econômico, a inovação é um imperativo mundial como forma de promover a
produtividade, o crescimento e o bem-estar social (OCDE, 2016). Essa organização
entende que:
Existem muitas políticas que podem influenciar os diferentes motores
da inovação. Aquelas que visam garantir uma mão-de-obra
qualificada, capaz de conceber novas ideias e tecnologias, de as
comercializar e de se adaptar às mudanças tecnológicas em curso
na sociedade, estão entre os mais importantes instrumentos de
inovação. Pessoas qualificadas geram conhecimento que pode ser
utilizado para criar e implementar inovações, mas as competências
também são cruciais para ajudar a economia e a sociedade a
absorver inovações. As políticas de inovação centradas no capital
humano devem abordar uma vasta gama de competências e
3O presente artigo é uma versão revista e atualizada de capítulo anteriormente publicado sob o título
“Inovações e mudanças: conceitos e abordagens” no livro organizado por Eloisa Helena de Souza
Cabral e João Clemente de Souza Neto, “Temas do desenvolvimento: reflexões críticas sobre
inovações sociais”, editado pela Expressão e Arte Editora, de São Paulo, em 2009.
3
contribuir para a criação de um ambiente que permita às pessoas
escolher e adquirir competências adequadas, bem como utilizá-las
de forma otimizada no contexto profissional. Isto exige um maior
incentivo às escolas para melhorarem a qualidade e a relevância do
seu ensino e o apoio à formação no âmbito das empresas. (OCDE,
2016, p.55).4
A inovação na tradição econômica
Segundo Kon (1994), que se distinguir invenção de inovação. Invenção
seria a criação de uma nova ideia, processo que pode ter diferentes localizações ao
se originar tanto de conceitos científicos como de atividades práticas. Inovação, por
seu turno, remete à conversão da ideia em aplicação concreta, o que geralmente
acarreta o descarte daquilo que vinha sendo produzido ou utilizado: um produto ou
um bem, processos ou formas de proceder. A inovação de produtos pode ocorrer
sem alterar processos, mas a recíproca é menos provável.
Kon (1994) se refere também à imitação para qualificar a inovação copiada
por outros quando essa se torna segura e rotineira. Ela registra que mudanças nos
processos e nos produtos podem ocorrer como mera decorrência do fluxo de
conhecimentos e de tecnologia, mas que mudanças que são induzidas e que
ocorrem quando investimentos na intenção de realizar novas invenções.
É neste sentido, de indução dos inventos e inovações, que Marx (1972, p.
226-227), ao tratar do desenvolvimento da maquinaria pela via da apropriação do
trabalho vivo e da captura da ciência pelo capital, diz que “[...] as invenções se
convertem, então, em ramo da atividade econômica e a aplicação da ciência à
produção imediata se torna um critério que a determina e incita”. Schumpeter (1961,
p. 105) segue a pista marxiana, mas para enfatizar e alertar aos capitalistas que
querem ser bem-sucedidos que o “[...] processo de destruição criadora é básico para
4Les politiques susceptibles d’influer sur les différents moteurs de l’innovation sont nombreuses.
Celles qui visent à s’assurer d’une main-d’œuvre qualifiée, capable de concevoir des idées et des
technologies nouvelles, de les commercialiser, et de s’adapter aux changements technologiques à
l’œuvre dans la société, sont parmi les plus importants instruments en faveur de l’innovation. Les
personnes qualifiées génèrent des connaissances qui peuvent servir à créer et mettre en œuvre des
innovations, mais les compétences sont également cruciales pour aider l’économie et la société à
absorber les innovations. Les politiques de l’innovation axées sur le capital humain doivent
s’intéresser à une large palette de compétences et contribuer à créer un environnement qui permette
aux individus de choisir et d’acquérir les qualifications appropriées, ainsi que de les utiliser de façon
optimale dans le cadre professionnel. Il faut pour cela inciter davantage les établissements à améliorer
la qualité et la pertinence de leur enseignement, et soutenir la formation au niveau de l’entreprise.
(Tradução livre).
4
se entender o capitalismo” e que “[...] é dele que se constitui o capitalismo e a ele
deve se adaptar toda a empresa capitalista para sobreviver”.
Schumpeter, segundo Castilhos (1997), foi o introdutor da distinção entre
invenção e inovação e quem definiu a primeira como conhecimento ou criação, que
podem seguir sem nenhum desdobramento prático do ponto de vista econômico.
a segunda, a inovação, corresponderia ao surgimento de nova função produtiva
graças à aplicação de conhecimentos e tecnologias antes não empregados. Assim,
segundo Lemos (1999), uma inovação pode não significar algo necessariamente
inédito, nem resultar de pesquisa científica e, para Mytelka (1993), vai depender do
ponto de vista de quem a está implementando.
Segundo Andrade (2005), a abordagem do economista Joseph Schumpeter
(1961, 1982) sobre as relações entre inovações e comportamento econômico,
datada dos primórdios do século XX, foi predominante até os anos 1980. Ao insistir
na correlação positiva entre investimentos em novos produtos e processos
produtivos e retornos financeiros, Schumpeter quis ressaltar o caráter da liderança
que empresários capitalistas modernos podem exercer para além da esfera
econômica, com sua atuação no campo tecnológico.
Em face dos novos desafios decorrentes da abertura dos mercados, aumento
da competitividade internacional e das oscilações econômicas provocadas pela
globalização, Freeman (1982, 1988, 1992, 1995) considerou a necessidade de
tornar mais efetivos os nexos entre inovação e crescimento econômico mediante
maior entrosamento entre governos, empresas e áreas de pesquisa e conhecimento,
levando à atualização do pensamento de Schumpeter.
É de Freeman (1988) a clássica distinção entre inovação radical e inovação
incremental. A inovação radical ou primária corresponderia a fatos extraordinários,
que provocam mudanças profundas em e de produtos, processos ou formas de
organização e sinalizam um rompimento com paradigmas tecnológicos usuais,
levando a alterações nas formas de produção, distribuição e consumo, nos
fundamentos da produtividade, dando origem a novas oportunidades. A inovação
incremental ou marginal ou secundária se processaria ordinariamente e
representaria os aperfeiçoamentos e reajustes que são feitos em produtos,
processos ou formas de organização, que possibilitam elevar a eficiência, a
produtividade e a melhoria da qualidade, mas sem significar ruptura paradigmática.
5
A abordagem de Schumpeter e neoschumpeterianos prioriza e se concentra
em dois focos básicos: a) as inovações de caráter pontual e específico com
potencial de proporcionar lucratividade para firmas, e b) os resultados econômicos
alcançados pelos investimentos em pesquisa e desenvolvimento (P&D) de
inovações. Esquiva-se, portanto, tratar questões sobre impactos sociais, arranjos
institucionais de suporte às inovações, relações entre ciência e tecnologia, ritmo
técnico próprio das inovações, interferências de mudanças nas práticas tecnológicas
sobre o processo inovador e condicionamentos que estas sofrem pelas modificações
no mercado.
Esta abordagem, segundo Andrade (2005), não consegue, assim, explicar
como surgem e se desenvolvem os processos inovativos e porque determinadas
inovações são bem-sucedidas e outras não. Sua insuficiência analítica estaria
relacionada, conforme esse autor, à sua perspectiva linear, mecânica, determinista e
fundamentalmente quantitativa.
A atividade de inovação na abordagem de tradição schumpeteriana passaria
por uma série de etapas. Conforme Castilhos (1997, p. 134), pela “[...] pesquisa
fundamental pesquisa aplicada desenvolvimento experimental inovação
comercialização”. Ou pela trajetória inversa. Segundo a autora, “[...] na realidade,
cada uma destas etapas possui uma autonomia relativa, sendo que suas relações
são recursivas e interativas” (Castilhos, 1997, p. 135).
Lemos (1999, p. 125-126) alerta que “[...] a ciência não pode ser considerada
como fonte absoluta de inovações, também as demandas que vêm do mercado não
devem ser tomadas como o único elemento determinante do processo de inovação
(...)”. Esta autora considera, ainda, que descontinuidades e incertezas no
processo inovativo não se podendo prever seus efeitos; que seus influxos e
interferências podem ser sentidos de diferentes formas, intensidades e momentos;
que nem todos os setores da sociedade são atingidos e que sua adoção depende de
fatores variados como, por exemplo, a experiência tecnológica acumulada.
Apoiado em Stiegler (1998), Andrade (2005, p. 153) explica que:
Para a tradição econômica, contudo, o processo inovativo não pode
ser aberto à indeterminação. Ele deve ser planejado e controlado
mediante regras rígidas de financiamento e investimentos criteriosos
em P&D. O excesso de administração e a intervenção de policy
makers e gestores industriais levam a um fechamento de suas
possibilidades, de modo que os resultados e os indicadores são mais
6
importantes do que os processos e os experimentos. Os
policy-makers e gestores industriais que organizam a prática
inovativa e estabelecem metas, projeções e mecanismos de
avaliação buscam coordenar o avanço tecnológico e retirar seu
aspecto de indeterminação e imprevisibilidade. O estreitamento entre
desenvolvimento e inovação, alavancado continuamente por
governos e empresas, tende a provocar uma descaracterização
desta, na medida em que a racionalização e a modernização da
esfera produtiva impõem padrões e projeções de resultados que não
permitem uma abertura às múltiplas demandas coletivas, à
contingência dos acordos sociais e nem à margem de
indeterminação dos objetos técnicos.
A inovação nas análises após a década de 1980
A partir dos anos 1980, a abordagem tributária da tradição econômica perde
ou tem sua energia moderada pela concorrência com outros enfoques preocupados
em resgatar a inteligibilidade do processo inovativo com o concurso da história, de
outros modos de ver o mundo. Ganham crédito: a) a ideia de movimento e os
princípios da contradição e da incerteza; b) em contraposição ao determinismo
mecanicista, a compreensão de que nem tudo se define e é especificado por meio
de medições; c) o princípio da complementaridade, que reconhece a existência da
realidade formada por paradoxos, pela síntese dos opostos.
A abordagem da inovação a partir do conceito de translação
A leitura de Latour (1992, 2000) da mútua recorrência entre o social e o
técnico veio agregar novos elementos para a elucidação do fenômeno da inovação.
Para o autor, esse feito resulta de uma dinâmica rica, variada e indeterminada de
trocas incessantes de informações entre agentes diversos, das controvérsias e
conflitos daí advindos e das escolhas sociais que resultam desse embate, no qual
cada ponto de vista passaria por translações, entendidas como traduções e
deslocamentos.
A partir desse pressuposto, Latour considera que a perspectiva de sucesso
das práticas inovadoras depende, fundamentalmente, de dois fatores. O primeiro se
refere à existência de contextos e relações circunstanciais propícias às mudanças
que a adoção das novas regras técnicas e sociais requer. O segundo, corolário do
anterior, diz respeito à capacidade dos agentes inovadores de agir de modo
estratégico, buscando, por um lado, exercer sua influência e, por outro, se adaptar,
7
que o contexto de inovação é partilhado com outros agentes sociais e nele se
cruzam motivações e interesses diferentes numa cadeia contínua de traduções e
deslocamentos. A inovação significa, assim, para Latour, complementaridade de
ideias, síntese de contrários (Andrade, 2005).
Portanto, para Latour, como não condições de prever os rumos do
processo inovativo, o estabelecimento de agendas coletivas definitivas sobre o
assunto seria impraticável. Tudo dependeria das estratégias e das articulações
utilizadas no palco dos confrontos (de valores, pontos de vista e identidades) e do
resultado circunstancial das disputas, dos diálogos e das negociações envolvendo
porta-vozes representantes de diferentes setores, lógicas e racionalidades sociais.
As regras do mercado e o poder das tecnologias avançadas seriam condições do
processo de inovação, dentre outras circunstâncias e fatores igualmente
importantes.
A abordagem da inovação a partir das redes sociais
Andrade (2005) no enfoque de Castells (1999, 2003) sobre redes sociais e
tecnologias de informação oportunidades de análise das novas relações que vêm
sendo estabelecidas entre economia, tecnologia e cultura.
A rede social, concebida como “[...] interconexão de nós diferenciados,
composta por agrupamentos humanos diversos” (Andrade, 2005, p. 151) abre
espaço para a criação e recriação de formas de inserção social, de participação, de
pertencimento, identificação, construção e exercício de lideranças,
compartilhamentos e práticas em formatos e circunstâncias antes inexistentes.
As possibilidades de mobilidade oferecidas pelos fluxos informacionais, as
mudanças comportamentais estimuladas pela exploração das tecnologias de
informação e comunicação e as articulações patrocinadas entre os diversos agentes
que habitam e conformam as redes sociais tornariam impraticáveis a programação e
o controle gerencial dos processos inovativos, que seguiriam caminhos
indetermináveis, anárquicos.
Assim, surgem novas questões sobre os processos de inovação e seus
rumos, que incluem políticas de inclusão informacional, parâmetros para
comportamentos individuais e coletivos nas redes, situações conflituosas entre
empresas e consumidores etc. (Andrade, 2005).
8
As potencialidades e implicações das mediações das atuais tecnologias de
informação e comunicação representam para o processo inovativo um fato novo, por
ocasionar de forma oportuna a combinação de fontes e o acesso a uma gama
variada e numericamente extraordinária de informações (Lemos, 1999), o que
significa um bom combustível para alimentar o poder humano de inovar. Porém,
esse fato novo também traz uma maior exigência de capacidades de selecionar,
processar e atribuir significações às informações acessadas, que, em última
instância implica uma sólida base de conhecimentos codificados, níveis mais
elevados de escolarização.
Lemos (1999) considera, assim, que o conhecimento das características
inerentes ao processo de inovação na atualidade requer entender como estas
tecnologias são empregadas, pois elas dão suporte às ações de inúmeras pessoas e
organizações de diferentes origens, à estimulação da interação social, à circulação
de diversos tipos de conhecimentos.
Segundo essa autora, Foray e Lundvall (1996), ao analisarem as mudanças
sociais decorrentes da ampliação do uso das tecnologias de informação e
comunicação, “[...] destacam especialmente a mudança na dinâmica de formação do
conhecimento, a aceleração do processo de aprendizado interativo e a crescente
importância das redes de cooperação”. (Lemos, 1999, p. 130).
A emergência do fenômeno das redes sociais possibilitado pelo alastramento
do uso de tecnologias de informação e comunicação abre, assim, um novo capítulo
na teorização sobre inovações e seus desdobramentos práticos. Como é preciso se
manter em interação social com outros para garantir a entrada e participação na
dinâmica que envolve os processos inovativos, crescem os interesses pela
formação, participação e gestão de redes de cooperação. O problema é que essas,
necessariamente, não estão tão disponíveis e não são tão inclusivas. O
compartilhamento de códigos e de linguagens e o aprendizado interativo e contínuo
pressupõem a convergência de identidades, confiança, a capacidade de enviar
mensagens e interpretar as recebidas. O desenvolvimento dessa habilidade
pressupõe, cada vez mais, o acesso a processos formais de educação, mas também
experiência prática de utilizar informações e conhecimentos e oportunidades de
interação com uma multiplicidade de agentes. Dentre esses, “[...] fornecedores de
insumos, componentes e equipamentos, licenciadores, licenciados, clientes,
9
usuários, consultores, sócios, universidades, institutos de pesquisa, agências e
laboratórios governamentais, entre outros.” (Lemos, 1999, p. 133-134).
Segundo essa autora, a partir de meados da década de 1980, os estudos
sobre inovações vêm, portanto, dando menor atenção àquelas que são frutos de
ações individuais e específicas convergindo para os novos formatos organizacionais
e em rede dos processos inovativos: “[...] alianças estratégicas, arranjos locais de
empresas, clusters e distritos industriais” e para “[...] o ambiente onde estes se
estabelecem” (Lemos, 1999, p. 135). Segundo suas explicações, as redes se
caracterizam como a principal inovação organizacional da atualidade, pois
favorecem aos que delas participem (pessoas, organizações, territórios)
oportunidades de conhecer, monitorar e avaliar tecnologias e de participar do
processo cooperativo do desenvolvimento de novos conhecimentos. Por sua vez, os
novos recursos técnicos disponibilizados pelas tecnologias de informação e
comunicação seriam o apoio fundamental para a cooperação em rede. Desse
conjunto de meios surgiria a necessidade de criação de formas de interação e
aprendizado mais variadas e intensivas, alimentando o processo inovativo.
A abordagem da inovação com foco nos conhecimentos tácitos
Lemos (1999) também destaca outra tendência, galvanizada por Cowan e
Foray (1997), concernente à busca de codificação dos conhecimentos tácitos para
fins de sua apropriação privada ou comercialização transformando-os, portanto, em
mercadoria distintiva.
Os conhecimentos tácitos estão implícitos no agir humano, são silenciosos e
dependentes das características, vivências e experiências subjetivas. Resultam de
intuições e experimentações, de processos pessoais de apreensão da realidade
natural e social. Tais conhecimentos, fundamentais e complementares aos
codificados, imprescindíveis ao acerto e sucesso dos empreendimentos humanos,
nem sempre podem ser racionalmente formalizados e codificados.
Mas é a codificação que permite que o conhecimento seja “[...] armazenado,
memorizado, transacionado e transferido, além de poder ser reutilizado, reproduzido
e comercializado indefinidamente, a custos extremamente baixos” (Lemos, 1999, p.
131). Verificam-se, assim, o interesse crescente pela codificação dos conhecimentos
10
tácitos e a expectativa de poder capturá-los nas redes sociais de interação e
cooperação.
Esses são fatos novos que têm feito abrir outras questões relacionadas à
temática da produção, distribuição e consumo de inovações e que corroboram a
hipótese da insuficiência dos conhecimentos codificados e da necessidade de sua
complementação mediante o confronto permanente com aquele advindo da
experiência.
A abordagem da inovação a partir do conceito de ambientes de inovação
Baseando-se em Maciel (1996, 1997, 2001), Andrade (2005) destaca que
essa abordagem, desenvolvida nos anos 1990, busca articular tecnologia, economia
e vida social de forma aberta, inclusiva e para além da relação entre inovação e
setor produtivo.
O conjunto das características de um lugar, seus elementos de herança
cultural e a criatividade de sua população são vistos, nesse enfoque, como
componentes da inovação. Eles seriam responsáveis pela formação de “[...] um
quadro de relações aberto no tempo e no espaço” (Andrade, 2005, p. 150); de
ambientes favoráveis a arranjos institucionais, diálogos sociais (entre empresas,
órgãos de governo, pesquisadores, trabalhadores, associações, partidos políticos
etc.) e de redes de interesses e esforços inovativos.
Portanto, a inovação social e econômica é que precederia e conduziria a
mudança tecnológica. Do ponto de vista teórico-metodológico, a construção de
modelos capazes de antever e monitorar as instabilidades do processo e da
conjuntura e as variáveis intervenientes seriam mais desafiadoras, pois precisariam
considerar fatores geográficos, fenômenos demográficos, comportamentos
empresariais inusitados, padrões alternativos de relações e de organização do
trabalho, implantação de parques tecnológicos, relacionamento com universidades,
atividades de educação continuada e de qualificação profissional, práticas de
pesquisa não convencionais, utilização original de tecnologias existentes,
otimização de investimentos tecnológicos, experimentação constante etc. (Andrade,
2005).
Lemos (1999) também considera, como uma das novas questões no debate
sobre o conceito de inovação, o caráter localizado e a distribuição espacial desigual
11
da capacidade de geração e de difusão de conhecimentos. Junto com outros autores
(Lastres; Cassiolato; Lemos; Maldonado; Vargas, 1999), a autora analisa que as
atividades inovativas têm se mostrado associadas a redes locais de interação,
cooperação, troca de conhecimentos e aprendizados promovidas por quadros
institucionais de lugares específicos, tais como arranjos produtivos, clusters e
distritos industriais. Além dos fatores espaciais relacionados às proximidades
geográficas e culturais, à existência de qualificações técnicas e organizacionais e
conhecimentos tácitos acumulados localmente, os autores reputam ser a confiança o
elemento aglutinador fundamental.
Apesar de ser permanentemente vital na inovação, o conhecimento tácito, por
suas características bastante peculiares, é compartilhado por meio da interação
humana, nas relações realizadas entre indivíduos ou organizações em ambientes
com dinâmica específica, o que, em última instância, torna a inovação localizada e
restrita ao âmbito dos agentes envolvidos. A capacitação necessária para
compreender e usar os códigos locais pode se dar somente com sua inserção nas
redes de relações para participação do processo de aprendizado interativo. Assim,
O sucesso de alguns arranjos produtivos com concentração
geográfica, como os distritos industriais que apresentam forte
dinâmica, ilustra sobremaneira tal consideração. Os agentes de tais
arranjos detêm um considerável estoque de conhecimento tácito, que
circula eficazmente para a difusão de conhecimento local, com
custos extremamente baixos (LEMOS, 1999, p. 131).
Para compreender esse universo, Lemos (1999) informa que o conceito de
sistemas nacionais de inovação (Lundvall, 1992; Freeman, 1995) vem sendo
utilizado também em níveis locais e regionais. Segundo ela,
Os sistemas nacionais, regionais ou locais de inovação podem ser
tratados, dessa forma, como uma rede de instituições dos setores
público (instituições de pesquisa e universidades, agências
governamentais de fomento e financiamento, empresas públicas e
estatais, entre outros) e privado (como empresas, associações
empresariais, sindicatos, organizações não governamentais etc.)
cujas atividades e interações geram, adotam, importam, modificam e
difundem novas tecnologias, sendo a inovação e o aprendizado seus
aspectos cruciais (LEMOS, 1999, p.138).
Andrade (2005) relaciona o conceito de sistemas de inovação à emergência
do fenômeno da globalização da economia e à atenção a outras variáveis e
demandas sociais, culturais e políticas envolvendo a inovação para além daquelas
12
limitadas ao desenvolvimento de produtos específicos para o setor industrial.
Associa-o, também, à dinamização dos fluxos de informação e à lógica flexível de
organização das instituições, que trouxeram a perspectiva do trabalho em rede,
outros mecanismos de financiamento, outras perspectivas de atuação mediante
parcerias, prestação de serviços, intercâmbios e convênios para a atividade de
inovação. Segundo esse autor, “[...] políticas locais e setorizadas passaram a ser
imprescindíveis para a compreensão do potencial inovativo de uma nação e região,
independentemente da atividade específica de cada setor e das oscilações da
demanda” (Andrade, 2005, p. 148).
Andrade registra que o enfoque da inovação a partir do local permitiu a
ampliação da compreensão da tecnologia como uma construção social sujeita às
injunções de variáveis culturais, sociais e políticas mais amplas. Contudo, acredita
que essa abordagem não trouxe a perspectiva de ampliação do elenco dos agentes
envolvidos nas práticas da inovação, pois ainda os como o conjunto formado por
universidades, empresas e órgãos governamentais (Andrade, 2005).
A inovação nas análises sobre rupturas paradigmáticas
No período que se seguiu aos anos 1980, contudo, o viés mecanicista da
interpretação das inovações tecnológicas não conseguiu ser totalmente afastado.
Ele pode ser identificado nas tentativas de explicar a dinâmica social pela ação
autônoma da tecnologia, desligada do contexto histórico, da sua origem e
significação social.
Assim, segundo esse enfoque, as inovações tecnológicas teriam trazido um
novo modelo de produção em substituição ao fordismo-taylorismo e uma nova
sociedade, ora caracterizada como da informação, do conhecimento ou da
aprendizagem. Três revoluções estariam em curso, equiparadas em idêntica
situação, afirmadas em escala mundial e vistas quase como sinônimos: a
tecnológica, a produtiva e a observada na sociedade.
Desse panorama fariam parte rupturas paradigmáticas, transformações de
ordem qualitativa, incluindo os processos sociais. Alves (2007) afirma que, de fato, o
toyotismo se diferencia do fordismo por incorporar mudanças organizacionais,
institucionais e tecnológicas capazes de consumar um salto qualitativo no modo
como o trabalho vive a subsunção real ao capital. Ele se apóia em Fausto (1989)
13
para justificar tal conclusão e explica que essa alteração consiste na passagem da
subsunção formal-material, própria do fordismo, para a subsunção formal-intelectual
(ou espiritual), típica do toyotismo e que ambas as formas de produção concernem à
grande indústria.
É o que Ianni (1990) assevera ao esclarecer que a sociedade burguesa,
industrial, capitalista, moderna ou informática, modifica-se ao longo do tempo, mas
guarda algumas características essenciais, mostrando-se ser diferente e mesma. Ou
seja, as condições de produção, distribuição, troca e consumo teriam sofrido
mudanças em termos materiais e psíquicos em razão da revolução dos meios de
comunicação e da informática. Também, as burocracias públicas e privadas, que
teriam ampliado muito o seu raio de ação, influência e indução.
Ianni (1990) afirma, entretanto, que subsistiria e continuaria essencial, ainda
que com recriações, a natureza basilar das relações, dos processos e estruturas de
apropriação ou distribuição, de dominação ou poder. Essa seria impossível de ser
alterada pela ciência, técnica ou informática. Permaneceria, sem mudanças
qualitativas, o dilema indivíduo e sociedade, a trama das relações sociais, dos
espaços da liberdade, das condições da opressão.
O autor (1990) considera que o problema da historicidade da realidade social
tem suscitado uma boa parte da controvérsia sobre paradigmas clássicos e
contemporâneos e chama a atenção para o surgimento na Sociologia
contemporânea de propostas teóricas que simplesmente abandonam ou
empobrecem a perspectiva histórica. Para ele, não é possível na pesquisa
sociológica eliminar os movimentos e as tensões que são inerentes às relações,
processos e estruturas de dominação e apropriação. Nem tão pouco crer que as
diversidades, desigualdades e antagonismos da realidade social sejam resolvidos no
âmbito das configurações sincrônicas ou ignorar que o real está essencialmente
atravessado pela relação de negatividade. Esclarece que:
São vários os momentos lógicos da reflexão sociológica, se
pensarmos em termos de aparência e essência, parte e todo,
singular e universal, qualidade e quantidade, sincrônico e diacrônico,
histórico e lógico, passado e presente, sujeito e objeto, teoria e
prática. Mas as teorias não os mobilizam sempre nos mesmos
termos de modo similar, homogêneo. Aliás, as teorias distinguem-se,
entre outros aspectos, precisamente porque conferem ênfase diversa
aos momentos lógicos da reflexão (IANNI, 1990, s/p).
14
O conceito de Hegel de linha nodal nas relações de medida pode ser aqui
tomado como referência para essa discussão. Segundo ele, em certos pontos desta
linha as transformações quantitativas se convertem, de repente, em saltos
qualitativos:
Existe uma relação de medida, uma realidade independente, que
difere qualitativamente de outras. Um tal Ser-para-si, sendo ao
mesmo tempo essencialmente uma relação de quanta, é aberto à
exterioridade e à variação do quantum; tem uma amplitude dentro da
qual permanece indiferente a estas variações e sua qualidade não
muda. Mas um ponto, nesta variação do quantitativo, em que a
qualidade muda, e o quantum demonstra-se como especificante, de
sorte que a relação quantitativa mudada se transformou em uma
medida, e, portanto, em uma nova qualidade, em coisa nova
(HEGEL, 1969, p. 242).
O debate sobre quantidade versus qualidade e sobre a linha nodal nas
relações de medida de Hegel é importante para a discussão sobre mudanças
paradigmáticas decorrentes de inovações, sejam elas tecnológicas, organizacionais
ou sociais. A categoria qualidade indica que os objetos e fenômenos, os produtos e
os processos, possuem uma determinação categorial seja por tipo, atributo ou
gênero, o que possibilita a rica e ilimitada diversidade do mundo. Isto significa que
as coisas possuem uma forma determinada de existência que as tornam
distinguíveis, exprimem-se por meio de características de semelhança e de
diferença. São características substanciais que expressam a natureza e os traços
específicos de um elemento, ainda que não absolutamente estáveis. Isto porque o
mundo não está constituído por entes acabados; é um complexo de processos em
que esses são estáveis apenas aparentemente. A realidade está sempre assumindo
novas formas e o fim de um processo é sempre o começo de outro.
Além da determinação qualitativa, todos os objetos têm, segundo Hegel, a
determinação quantitativa: magnitude, número, volume, ritmo dos processos, grau
de desenvolvimento etc. A quantidade caracteriza o objeto sob o aspecto do grau,
da intensidade ou do nível de desenvolvimento de uma qualidade. Para Hegel (1969,
p. 157), a qualidade é a determinação primeira e imediata. A quantidade é a
determinação que se tornou indiferente ao Ser, é a própria continuidade. Com tais
compreensões, pode-se ler a distinção que Freeman (1982) faz entre inovações
radicais (de ordem qualitativa na formulação hegeliana) com seu caráter primário e
15
central e inovações incrementais (de ordem quantitativa para Hegel), também
chamadas secundárias e marginais.
Mas qualidade e quantidade revelam-se inseparáveis e mutuamente
determinadas, representando aspectos do mesmo objeto, não se confundindo numa
unidade abstrata. Para Hegel, as transformações do ser não se resumem à
passagem de uma quantidade a outra. Isso porque é preciso considerar o trânsito da
quantidade à qualidade, transformação que acarreta a substituição de um fenômeno
por outro, uma ruptura da progressividade. Sobre tal movimento, Hegel distingue
três processos: a) a variação gradual (Allmähliche Veränderung); b) a transição
(Übergang), que é o salto; e c) a superação (Aufhebung).
A variação gradual consiste na continuidade constante da qualidade. Neste
sentido, as relações diferem apenas pelo mais ou pelo menos. Trata-se de um
processo que se refere apenas ao exterior da variação, ou seja, não ao qualitativo
dela.
A transição ou salto indica que a progressão simplesmente quantitativa da
gradualidade (que de nenhuma maneira é um limite em si mesma) é interrompida,
que ocorre uma ruptura da progressividade e que surge uma nova realidade. Neste
caso, a realidade anterior e a nova realidade são postas uma defronte da outra como
completamente exteriores. É o salto no curso do desenvolvimento, salto que ocorre
na natureza e na história.
A superação pressupõe que todo o finito tem a propriedade de suprimir-se a si
mesmo. Segundo Hegel (1969), superar tem um duplo sentido: significa tanto
manter, conservar, como também fazer cessar, por termo. O suprimido é ao mesmo
tempo o conservado, que perdeu somente sua imediação, mas que nem por isso é
anulado. É a qualidade suprimida, não mais unida ao Ser, deste bem diferenciada,
um resultado que saiu de um ser, que tem a determinação da qual procede. É
simultaneamente a negação de uma determinada realidade, a conservação de algo
essencial que existe nessa realidade negada e a elevação dela a um nível superior.
Portanto, reportando-se a Ianni (1990), pode-se dizer que os vários momentos
lógicos da reflexão sociológica sobre inovação implicam mobilizar, de modo não
homogêneo e com ênfases diferenciadas conforme a mudança seja de ordem
tecnológica, produtiva ou social, os três processos referidos por Hegel: a variação
gradual; a transição ou salto; e a superação.
16
O processo inovativo, seja ele tecnológico ou social, pressupõe escalas.
Hegel denuncia o gradualismo ou a tendência de pressupor que tudo aquilo que
surge existe efetivamente e que não era notado antes por causa de sua
pequenez. Diz ele:
Invocar a gradualidade da mudança para fazer compreender um
nascer ou um perecer tem o aborrecimento próprio de toda
tautologia; supõe previamente pronto tudo o que nasce ou perece,
fazendo da transformação simples variação de uma diferença
exterior; e a explicação é de fato somente uma tautologia (HEGEL,
1969, p. 245).
O processo inovativo pressupõe, também, salto qualitativo. Para Hegel, este
diz respeito, fundamentalmente, ao ponto de ruptura de um processo em que se
abrem novas fases ou qualidades em razão de variações quantitativas sucessivas.
Segundo ele, esse processo se mediante uma luta entre esses dois lados do ser,
a qualidade e a quantidade. São lados solidários um ao outro, que se afirmam, mas
que se negam. A qualidade anterior resiste e dura até certo ponto. Enquanto resiste,
a quantidade não é mais do que uma determinação indiferente da coisa, não lhe é
essencial.
Surge, porém, um momento em que a quantidade aumenta muito ou diminui
bastante, arrastando a qualidade à mudança profunda. É que ocorre um processo
de superação. Com isto, simultaneamente desaparecimento de um ser e o
surgimento de um novo ser, momento que mostra que a quantidade também é
essencial à coisa, que também participa de sua essência.
Transpondo essa reflexão para as análises das inovações produtivas ou dos
modos flexíveis e integrados de produção, pode-se dizer que esses representam
saltos qualitativos em relação ao modelo anterior, mas que esta mudança não se
generalizou ainda a ponto de dizer que o taylorismo-fordismo está superado.
Igualmente pode-se dizer dos aspectos fenomênicos utilizados para
caracterizar a nova sociedade da informação / do conhecimento / da aprendizagem,
pois ainda não foi superada a desigualdade no acesso a esses bens e valores por
grande parte da população mundial. Como bem se expressou Ianni (1990), o
capitalismo permanece o mesmo, mas ao mesmo tempo se apresenta diferente. Ou
seja, a essência da sociedade capitalista, seu modo de produção e as relações
sociais por ele engendradas, mantêm-se inalterados ainda que seu processo de
reprodução possa encontrar dificuldades para se realizar. Frente a elas, surgem,
17
então, inovações de diferentes ordens, mas não suficientes para levar a cabo a
superação do sistema capitatista. Elas ocorrem, seja de forma gradual ou por meio
de vários saltos qualitativos, e, com isso, vêm tornando a face do capitalismo
diferente e diversa. Além disso, conforme Izerrougene (2013, p.89)
Mesmo que as inovações radicais possam potencialmente aparecer
em grande número, somente uma parte delas pode dar lugar a novas
atividades comerciais, pois a economia precisa de situações de
estabilidade social e institucional para poder estimular o surgimento
de trajetórias de crescimento sustentável, na base da exploração do
conjunto das inovações menores contidas em algumas oportunas
inovações maiores.
Assim, inovações e mudanças quantitativas não conduzem de imediato à
destruição ou à mudança essencial de um ser ou fenômeno. Somente quando chega
a um limite determinado (tecnológico, produtivo ou social) é que as mudanças
quantitativas provocam as qualitativas. É por isso que a lógica dialética também é
conhecida como a ciência dos limites.
A mudança seria, então, decorrente da luta de contrários, do desenvolvimento
por meio de contradições, da negação da negação. Esse processo, como todas as
grandes transformações, implica um novo mapa da realidade. Não se trata, segundo
Engels (1971), de uma quantidade aumentada qualquer. Uma mentira contada aos
quatro cantos do universo não faz do fato mentiroso uma verdade. Por outro lado,
não se trata de qualquer mudança. Conforme Lênin (1977, s/p),
Atualmente, a idéia do desenvolvimento, da evolução, penetrou
quase completamente na consciência social, mas por outra via que
não a da filosofia de Hegel. No entanto, esta idéia, tal como a
formularam Marx e Engels, apoiando-se em Hegel, é muito mais
vasta e rica de conteúdo do que a idéia corrente da evolução. É um
desenvolvimento que parece repetir etapas percorridas, mas sob
outra forma, numa base mais elevada (“negação da negação”); um
desenvolvimento por assim dizer em espiral, e não em linha reta; um
desenvolvimento por saltos, por catástrofes, por revoluções;
“soluções de continuidade”; transformações da quantidade em
qualidade; impulsos internos do desenvolvimento, provocados pela
contradição (...).
Portanto, o rompimento com as análises deterministas, mecânicas e lineares
sobre o processo inovativo, as inovações e suas relações com as mudanças
tecnológicas, produtivas, sociais, educacionais, culturais, políticas etc. requer a
mobilização de vários momentos lógicos da reflexão sociológica.
18
Os impulsos internos do desenvolvimento, provocados pela contradição
explicam porque uma mesma inovação pode representar um enorme aumento da
força produtiva e da produtividade do trabalho, mas também levar à destruição e
esgotamento das fontes de toda a riqueza o planeta terra e a força de trabalho -,
ao aumento das desigualdades sociais e das assimetrias regionais e locais.
As chamadas inovações radicais têm ilustrado o descompasso entre o
formidável avanço das forças produtivas, no curso do seu desenvolvimento e
incremento em quantidade, e os limites impostos pelas relações de produção
existentes. Elas, entretanto, se mantêm em estado de latência quando se trata da
superação das travas que impedem a emergência de relações sociais distintas e
capazes de abrir as perspectivas do desenvolvimento social e ético da humanidade.
O desabrochar desses potenciais de efetiva superação do sistema capitalista
depende, entretanto e fundamentalmente, da ação consciente e determinada de
inovadores sociais, homens e mulheres em luta pela transformação social.
Considerações finais
A temática da inovação, originada das preocupações de ordem econômica
sobre aumento da competitividade, respostas às pressões da demanda e pela
valorização dos investimentos, estendeu seus domínios para ocupar as agendas de
governos e setores diversos, indo ocupar também um lugar central no debate
acadêmico e social, especialmente sobre questões relacionadas a impactos da
tecnologia.
A análise crítica do enfoque tradicional oriundo da economia, a observação da
realidade e a busca da construção de novos referenciais de análise trouxeram
elementos que enriqueceram a discussão, mas mostraram a necessidade de ampliar
os estudos sobre o tema. São questões, por exemplo, sobre o aprendizado
inovativo; a interação social e a formação de redes; a diversidade dos agentes
inovativos e as especificidades locais; os conhecimentos tácitos e sua relação como
os codificados; os investimentos em capacitações; as articulações entre políticas
científicas, tecnológicas, industriais, educacionais e sociais; as inovações e
desenvolvimento; mudanças graduais, saltos qualitativos e superação.
As políticas de inovação têm se concentrado em aspectos tradicionais como
financiamento, legislação, comportamentos corporativos, propriedade intelectual,
19
formação e gestão de redes de pesquisa e de desenvolvimento, articulação e
sinergia entre governos, empresas e centros de pesquisa.
Contudo, é preciso considerar que a distribuição de conhecimento permanece
profundamente desigual e que é preciso repensar o processo inovativo em sua
amplitude, questionando organizações e instituições tendo em vista a valorização do
papel que jogam, nesta dinâmica, a multiplicidade dos agentes sociais e a
experiência coletiva de aprendizagem. É preciso, sobretudo, não se esquecer que a
inovação é um processo interativo com o qual contribuem, com seus diferentes tipos
de informações e conhecimentos, diferentes setores da sociedade.
Andrade (2005) recorre a Simondon (1969) e Stiegler (1998) para salientar a
importância da incorporação da dimensão qualitativa e não determinista pelas
análises sobre inovações. Ressalta que a imprevisibilidade, a instabilidade e a
indeterminação estão na origem das respostas dadas pela atividade inovativa às
lacunas e insuficiências dos objetos e processos técnicos usuais, conformando a
originalidade e a acolhida social das soluções desenvolvidas.
Nouroudine (2009; s/p) sugere uma nova questão ao argumentar que:
As contradições sociais em torno das normas permitem constatar e
compreender que uma norma social estabelecida e dominante não é
realmente unânime. Ela é, no máximo, a norma que corresponde ao
uso mais disseminado. Mas ela pode também referir-se ao uso de
uma minoria que dispõe de um poder (político, económico…) capaz
de lhe permitir impor uma norma particular como norma geral. Neste
caso, não é a média dos diversos usos que faz a norma, mas o poder
de imposição de um grupo social. Daí resulta que a norma como
média nos factos sociais é menos a expressão de uma média
aritmética que a do estado das relações sociais num colectivo de
vida, num dado momento da história.
As inovações são isto: exercem fascínio, tem sentido polissêmico e apelo
consensual, mas do ponto de vista sócio-histórico também podem ser lidas como o
poder de imposição de um grupo social. Essa questão, contudo, não tendo sido
abordada neste texto, constitui-se como um convite à continuidade do debate sobre
o tema.
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23
V.22, 48 - 2024 (maio-agosto) ISSN: 1808-799 X
A TEORIA DA ATIVIDADE DE LEONTIEV: PONTOS-CHAVE1
Quenizia Vieira Lopes2
Adriana Regina de Jesus Santos3
Resumo
Busca-se discorrer sobre a Teoria da Atividade de Leontiev, a qual tem como base teórica a Teoria
Histórico-Cultural de Vigotski e, por conseguinte, o Materialismo Histórico-Dialético, de Karl Marx.
Expõe-se uma síntese da teoria, abordando seus pontos principais, como a estrutura da atividade.
Este trabalho visa auxiliar a assimilação de conhecimentos teóricos de interessados na temática.
Como procedimento metodológico, utilizou-se uma abordagem qualitativa a partir da adoção de
pesquisa documental. Ao final desse estudo, detectou-se que a Teoria da Atividade pode ser utilizada
no contexto educacional.
Palavra-chave: Atividade; Motivo; Sentido; Significação; Trabalho.
TEORÍA DE LA ACTIVIDAD DE LEONTIEV: PUNTOS CLAVE.
Resumen
Busca discutir la Teoría de la Actividad de Leontiev, que tiene como base teórica la Teoría
Histórico-Cultural de Vygotsky y, en consecuencia, el Materialismo Histórico-Dialéctico de Karl Marx.
Se presenta una síntesis de la teoría, abordando sus puntos principales, como la estructura de la
actividad. Este trabajo tiene como objetivo ayudar a la asimilación de los conocimientos teóricos de
los interesados en el tema. Como procedimiento metodológico se utilizó un enfoque cualitativo
basado en la adopción de la investigación documental. Al final de este estudio, se detectó que la
Teoría de la Actividad puede ser utilizada en el contexto educativo.
Palabra clave: Actividad; Motivo; Sentido; Significado; Trabajo.
LEONTIEV'S ACTIVITY THEORY: KEY POINTS.
Abstract
It seeks to discuss Leontiev's Theory of Activity, which has as its theoretical basis Vygotsky's
Historical-Cultural Theory and, consequently, Karl Marx's Historical-Dialectical Materialism. A
synthesis of the theory is presented, addressing its main points, such as the structure of the activity.
This work aims to help the assimilation of theoretical knowledge of those interested in the subject. As
a methodological procedure, a qualitative approach was used based on the adoption of documentary
research. At the end of this study, it was detected that the Activity Theory can be used in the
educational context.
Keyword: Activity; Motive; Sense; Meaning; Work.
3Pós-doutora em Educação pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Rio de Janeiro - Brasil.
Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Brasil.
Professora do Departamento de Educação e do Programa de Pós-graduação em Educação da
Universidade Estadual de Londrina (UEL), Paraná - Brasil..
Email: adrianar@uel.br. Lattes: http://lattes.cnpq.br/3324193224582884.
ORCID: http://orcid.org/0000-0002-9346-5311.
2Doutoranda em Educação pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), Paraná - Brasil. Mestra em
Linguística pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Brasil. Pedagoga/área Orientação
Educacional do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Tocantins (IFTO), Brasil.
E-mail: quenizia@gmail.com.Lattes: http://lattes.cnpq.br/3770206977035882.
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6199-0616.
1Artigo recebido em 05/03/2024. Primeira Avaliação em 15/03/2024. Segunda Avaliação em
20/03/2024. Aprovado em 09/07/2024. Publicado em 07/08/2024.
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v22i48.62174.
1
Introdução
O presente artigo tem como objetivo compreender os aspectos centrais da
Teoria da Atividade, desenvolvida pelo psicólogo soviético Alexei Nikolaevich
Leontiev (1903-1979), um dos principais teóricos e proponentes da Psicologia
Histórico-Cultural. Assim, apresenta seus pontos essenciais, quais sejam sua
definição, sua estrutura geral e suas unidades basilares4.
A Teoria da Atividade de Leontiev tem suas raízes na psicologia
histórico-cultural e é uma abordagem fundamental para compreender o
comportamento humano e suas interações com o ambiente. Sob essa ótica, a
primeira seção deste artigo aborda suas principais características, com vistas a
possibilitar um melhor entendimento sobre a teoria. A estrutura geral da atividade,
tópico apresentado na segunda seção, especifica que, para o seu desenvolvimento,
a atividade dispõe de elementos essenciais para a sua realização. Na terceira seção
do artigo, discorre-se sobre as unidades basilares da Teoria da Atividade: motivos,
significação e sentido, como forma de compreender sua aplicabilidade.
Como procedimento metodológico, utilizou-se uma abordagem qualitativa a
partir da adoção de pesquisa documental. Em relação à revisão bibliográfica, tem-se
como parâmetro principal os estudos dos autores Bernardes (2012), Duarte (2004),
Leontiev (2004; 2010; 2017; 2021) e Martins (2015).
Justifica-se este trabalho tendo em vista a escassez de artigos específicos
que abordem a Teoria da Atividade de forma completa, objetiva e sucinta na
perspectiva única de Leontiev. Assim, com base em busca por meio de
palavras-chave e operador booleano com a descrição ("Teoria da Atividade") AND
("Leontiev"), o portal de Periódicos Capes (Capes, 2024) aponta 149 trabalhos
publicados (dos quais 148 são artigos, sendo 101 cadastrados em periódicos
revisados por pares). A maioria dos artigos versam sobre a teoria de forma geral.
4Este texto compõe parte de pesquisa de doutorado, em andamento, da primeira autora sob
orientação da segunda autora. Não será aprofundada a Teoria Histórico-Cultural, dado que as autoras
publicaram, em outro periódico qualificado pela Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal
de Nível Superior), artigo científico sobre a referida temática.
2
Teoria da Atividade de Leontiev: visão geral
A Teoria da Atividade surgiu a partir dos trabalhos desenvolvidos por Vigotski,
no início do século XX. Após sua morte, outros estudiosos deram continuidade a
esses trabalhos e coube a Leontiev o aprofundamento quanto à Teoria da Atividade.
Em sua obra "Atividade, Consciência e Personalidade" (Leontiev, 2021), o
autor explora a noção de atividade humana. Leontiev enfatiza a ideia de que os
mecanismos cerebrais (ou psicológicos) devem ser compreendidos como produtos
do desenvolvimento da própria atividade objetal. O autor destaca que a consciência,
que é relacionada ao psiquismo humano, surge a partir do processo de trabalho
social e que a personalidade humana nasce pelo contexto social.
Entende-se, segundo explicitado pelo autor (Leontiev, 2021), que diferentes
espécies podem ter estruturas cerebrais e processos mentais específicos adaptados
às suas necessidades e contextos ambientais, pois os mecanismos cerebrais podem
se formar de maneiras variadas tanto na história evolutiva (filogênese) quanto no
desenvolvimento individual (ontogênese).
Conforme disposto por Duarte,
O importante aspecto a ser destacado é o de que, entre a
necessidade de alimento dada no ponto de partida e a satisfação
dessa necessidade no ponto de chegada, um elemento
intermediário, uma atividade mediadora: a produção de
instrumentos. Não importa quão primitivo seja esse primeiro
instrumento, a pedra lascada. Importa que começa a diferenciação
entre o ser humano e os animais (DUARTE, 2004, p. 49).
Por influência do trabalho, o homem obteve transformações no seu
organismo, o que fez com que sua fisionomia e anatomia fossem aperfeiçoadas com
vistas ao próprio desenvolvimento do trabalho e ao convívio em sociedade, uma vez
que o trabalho possui como característica o desenvolvimento no ambiente coletivo.
Verifica-se, portanto, que o trabalho é o responsável pelo processo de humanização
do homem, ou seja, enquanto o animal busca na natureza a forma de suprir suas
necessidades, o homem, ao transformar a natureza por meio do trabalho para suprir
suas necessidades, acaba por transformar a si mesmo. Ademais, o trabalho
constitui-se como atividade indispensável ao homem, diferenciando-se da atividade
dos animais, uma vez que é mediado pela reflexão consciente, isto é, é realizado de
forma intencional e organizada.
3
Mas, afinal, como se define a atividade? De acordo com o disposto por
Leontiev,
A atividade é uma unidade molar, não aditiva, da vida do sujeito
corporal e material. Num sentido mais restrito, ou seja, no nível
psicológico, é uma unidade da vida mediada pelo reflexo psíquico,
cuja função real consiste em orientar o sujeito no mundo objetivo. Em
outras palavras, a atividade não é a reação ou um conjunto de
reações, mas um sistema que tem estrutura, transições e
transformações internas e desenvolvimento próprio (LEONTIEV,
2021, p. 103-104).
Desse modo, considera-se a atividade, assim como o trabalho, algo vital ao
ser humano, promovente do encadeamento da consciência, da realidade subjetiva,
que é criada a partir das experiências do próprio sujeito no mundo, com a realidade
objetiva, que é produzida no plano exterior a partir da interação na coletividade.
Outrossim,
Por atividade, designamos os processos psicologicamente
caracterizados por aquilo a que o processo, como um todo, se dirige
(seu objeto), coincidindo sempre com o objetivo que estimula o
sujeito a executar esta atividade, isto é, o motivo (LEONTIEV, 2010,
p. 68).
Fazendo uma análise da Teoria da Atividade, sob a perspectiva de Leontiev, é
consentido afirmar que esta se debruça em uma análise da formação da consciência
humana, a partir da sua atividade social. Compreende-se, assim, que o ser humano
não pode ser visto separadamente do meio sociocultural ao qual pertence e suas
ações são atinentes à sua evolução social e desenvolvimental, o que confirma a
inserção dessa teoria no contexto histórico-cultural. Dessa forma, a Teoria da
Atividade propõe que o desenvolvimento do psiquismo humano ocorre em um
movimento dialético entre as atividades práticas e os processos psíquicos; ou seja,
de acordo com a maneira que a pessoa age no mundo, os seus pensamentos e
suas ações são conduzidos.
Conforme disposto por Martins (2015), a consciência e a atividade caminham
juntas e são complementares uma da outra, sendo que a atividade humana
necessita de intermédio para o seu desenvolvimento, o qual é alcançado por meio
da consciência. Nessa linha, fica evidente a importância da consciência no processo
de desenvolvimento humano e, consequentemente, das atividades realizadas. Ao
falar de atividade é preciso pontuar o conceito de personalidade. Segundo Leontiev
4
(2021, p. 182), "(...) sob o conceito de personalidade, entende-se a pessoa em sua
totalidade empírica”. Assim, essa unidade transforma o sujeito em um ser completo
e individual5.
A atividade possui características especificamente humanas, transformando a
natureza de forma consciente e organizada para o atingimento de um objetivo, ou
seja, provoca transformações sobre a natureza e sobre o próprio homem, inclusive
trazendo para este o desenvolvimento de potencialidades até então não reveladas.
A atividade é a categoria que auxilia a relação do homem com o mundo, uma vez
que ela medeia a conexão do mundo subjetivo com o mundo objetivo, ou seja, da
realidade criada no interior do homem a partir da sua visão de realidade exterior.
No contexto do Materialismo Histórico-Dialético, considera-se a atividade
como “uma unidade de análise do desenvolvimento e do comportamento humano”
(Bernandes, 2012, p. 46). Assim, entende-se que a atividade se realiza no contexto
da sociedade e deve ser estudada e desenvolvida levando-se em conta os aspectos
da historicidade.
Leontiev (2021) expõe que o conceito de atividade tinha sido trabalhado por
Marx, teórico do qual era adepto, ao abordá-la sob a teoria do conhecimento,
relatando que a atividade se vinculava à atividade sensorial prática do homem no
mundo, por meio de objetos, agindo, pois, por meio dela, em um contexto
materialista. Para Marx, conforme citado por Leontiev (2021), no processo da
atividade, a pessoa age sobre o objeto, manuseia-o e pode inclusive modificá-lo com
intuito de atingir seus objetivos.
Destarte, por meio da atividade o homem mantém seu contato dialético com o
mundo, agindo, pois, nele, modificando-o e sendo modificado, ao tempo que age
sobre si e sobre a natureza; ou seja, aquilo de que se apropria no desenvolvimento
da atividade auxilia no desenvolvimento do próprio homem, bem como este pode
promover mudanças no seu contexto.
Importante abrir parênteses neste texto para destacar que Leontiev buscou a
construção de um referencial materialista histórico e dialético para a Psicologia.
Desse modo, as funções psicológicas superiores (tipicamente humanas, tais como a
atenção voluntária, memória, abstração, comportamento intencional etc.) são
5Como o foco principal deste estudo é discutir sobre a atividade, não serão aprofundadas discussões
sobre consciência e personalidade, elas apenas serão conceituadas para um melhor entendimento da
temática “atividade”.
5
produtos da atividade social, têm uma base biológica, mas, fundamentalmente, são
resultado da interação do indivíduo com o mundo, interação mediada pelos objetos
construídos pelos seres humanos. Por isso,
Podemos dizer que cada indivíduo aprende a ser um homem. O que
a natureza lhe quando nasce não lhe basta para viver em
sociedade. É-lhe ainda preciso adquirir o que foi alcançado no
decurso do desenvolvimento histórico da sociedade humana
(LEONTIEV, 2004, p. 285).
Atesta-se, portanto, que a atividade surge a partir da categoria trabalho,
possibilita a condução do homem no seu processo de humanização e requer
mediação para sua realização. Por conseguinte, a atividade contribui no
desenvolvimento da consciência do sujeito, na construção de sua personalidade e
na assimilação de conhecimentos.
Para um melhor entendimento sobre a atividade, tratar-se-á, na sequência, da
estrutura que ela possui.
Estrutura da Atividade
Com base em Leontiev (2017, 2021), pode-se afirmar que a atividade possui
uma estrutura geral, que se realiza mediante sua execução. Contudo, a
macroestrutura exposta por Leontiev para a atividade não está relacionada somente
à atividade externa, que é considerada atividade prática, mas também à atividade
interna denominada teórica. O que as diferenciam é a forma como são executadas.
Evidencia-se, ao longo do percurso histórico do ser humano, que foi criada
uma série de objetos com o intuito de satisfazer as necessidades humanas,
produzindo assim não os próprios objetos, mas também novas necessidades.
Tais necessidades vão ao encontro das necessidades fisiológicas (exemplos: comer,
dormir e se exercitar) e, sobretudo, às construções históricas da humanidade
(exemplos: moradia, transporte, bem como a criação de instrumentos que facilitem a
realização das necessidades fisiológicas).
Analisando-se a prática de uma atividade, compreende-se que esta se
apresenta para realização de pelo menos uma necessidade. Logo, toda necessidade
direciona-se para o alcance de um objeto, um objetivo a ser cumprido, cuja
execução está condicionada às condições de sua realização, o que culminará no
direcionamento ou não de seu êxito.
6
De acordo com a psicologia histórico-cultural, é a necessidade a responsável
por dirigir o sujeito em seu meio objetal. Todavia, a necessidade não tem capacidade
de provocar atividade definitiva. São as necessidades junto com os objetos que
direcionam a atividade do sujeito, e não as necessidades isoladas de um objeto.
Aponta-se que a atividade está relacionada diretamente ao cumprimento das
necessidades. Desse modo, para suprir os seus interesses, faz-se necessário o
desenvolvimento da atividade para o alcance do seu objetivo, que é motivado com
relação a determinado objeto. Para Leontiev, “a primeira condição de toda a
atividade é uma necessidade”6(Leontiev, 2004, p. 115).
Entende-se que uma necessidade será realizada e completa quando for ao
encontro de um objeto, sendo isso chamado de motivo. Assim, o que impulsiona a
atividade é na verdade o motivo, ou seja, objeto e necessidade sozinhos não geram
atividade, e esta existe se houver um motivo. Importante destacar que,
Assim, o conceito de atividade está necessariamente ligado ao
conceito de motivo. Não existe atividade sem motivo; atividade “não
motivada” não é uma atividade desprovida de motivo, mas uma
atividade com motivo subjetiva e objetivamente oculto (LEONTIEV,
2021, p. 123).
Os motivos, portanto, despertam para a realização de uma atividade. Dessa
maneira, um interesse ou recompensa, ou seja, um fator interno ou externo ao
sujeito, é elementar para que uma atividade aconteça. A personalidade do sujeito,
de acordo com Leontiev (2021), pode sugestionar a motivação, que por
consequência recai sobre suas necessidades, influenciando, assim, a realização da
atividade.
A atividade, consoante o entendimento de Leontiev, é composta também pela
ação, podendo existir operação. Para Leontiev (2021), no contexto da Teoria da
Atividade, de se distinguir os termos ação e operação, diferente do que acontece
em outros cenários em que não essa divisão. Assim, frisa-se que a ação está
presente ao passo que se relaciona diretamente com as atividades, sendo útil na
medida em que realiza a ação que possibilitará o alcance da motivação da atividade;
contudo, a ação não possui motivação direta com a atividade. a operação é
composta por ações, todavia, não conscientes, e que ocorrem em conformidade com
6Nota-se que a necessidade não é uma característica única do ser humano, mas um instinto do ser
vivo. Portanto, assim como o ser humano possui necessidades, os animais também as possuem.
Este trabalho, no entanto, enfatiza a atividade no que tange à relação do ser humano.
7
as possibilidades do contexto, isto é, com as condições dispostas, e se relacionam
diretamente com a ação; por isso, no processo da atividade, a operação pode ser
realizada de forma automatizada.
Nesse sentido, segundo o autor (Leontiev, 2021), é importante deixar clara a
relação das operações com a formação de sistemas funcionais, visto que, a partir do
domínio dos instrumentos, que são os meios utilizados no desenvolvimento de
atividades e operações que o ser humano realiza, é que esses sistemas se
desenvolvem.
Quando as ações se tornam mais complexas, elas ultrapassam a finalidade
da atividade e entram em conflito com os motivos que as originaram, fazendo com
que gerem outro motivo e/ou atividade. Leontiev (2021) explicita essa situação
citando as crises de desenvolvimento dos períodos humanos (crise dos três anos,
dos sete anos, adolescência, maturidade), em que, pelo modelo cíclico dos
elementos da atividade humana, pela sua natureza dinâmica, uma atividade principal
pode ter seus elementos estruturais originários modificados, o que pode gerar,
inclusive, uma nova atividade.
Seguindo a abordagem sobre a estrutura da atividade, pode-se afirmar que os
componentes estruturais desta são o sujeito, a necessidade, o objeto (objetivo), o
motivo, meios/condições e o seu produto. Outrossim, ressalta-se que a ação
também é responsável e imprescindível à existência da atividade, e que, além dela,
se pode contar com o suporte da operação. Dessa maneira, conforme a atividade
relaciona-se com o motivo, a ação relaciona-se com o objetivo, que pode gerar uma
ou mais operações (Leontiev, 2021).
No quadro a seguir, resume-se a estrutura geral da atividade:
Quadro 1 - Síntese da Estrutura Geral da Atividade
Item
Definição
Atividade
“A atividade do sujeito - externa e interna - é mediada e regulada pelo
reflexo psíquico da realidade. Aquilo que no mundo objetivo aparece para o
sujeito como motivos, objetivos e condições de sua atividade deve ser, de
alguma forma, por ele percebido, apresentado, compreendido, retido e
reproduzido em sua memória; isso vale também para o processo de
8
atividade em relação a si mesmo, a seus estados, características,
peculiaridades” (Leontiev, 2021, p. 145).
É um processo ativo na vida do sujeito que o direciona no mundo do objeto,
tendo a necessidade e o objeto como principais pontos condutores, que por
sua vez são direcionados por um motivo. Para a sua concretização faz-se
necessário o uso de ação(ões), e pode ocorrer com uma ou mais
operações. Embora toda atividade demande ações, nem toda ação compõe
uma atividade.
Exemplo: Pode-se classificar o ensino como uma atividade, bem como o
estudo realizado pelo aluno, considerando, nesses casos, que o ato de
ensinar e a atividade de estudo estejam relacionados diretamente com os
motivos e o objeto do ensino.
Sujeito
“Apenas a análise posterior do movimento da atividade e das formas de
reflexo psíquico por ela engendrada levou à necessidade de introduzir o
conceito de sujeito concreto, de personalidade como o aspecto interior da
atividade (Leontiev, 2021, p. 179).
É parte ativa essencial do processo da atividade, que detém a consciência e
a personalidade.
Exemplo: No contexto escolar pode-se considerar como sujeitos o professor
e o aluno.
Necessidade
“O traço principal e primeiro de toda necessidade é que esta tem um
objetivo: tem-se a necessidade de algo, de um objeto material determinado
ou de um resultado ou outro de uma atividade” (Leontiev, 2017, p. 40).
Surge no ser vivo com vistas à satisfação de algo, de um objetivo, para sua
subsistência e/ou existência. As necessidades dividem-se em naturais
(manutenção e desenvolvimento da vida) e superiores (de caráter social).
As necessidades que surgem no homem se manifestam como desejos e
tendências, sendo indispensáveis à existência de um objetivo para
realização de uma atividade, e são determinadas pelas suas condições
sociais.
Exemplo: No processo de ensino e aprendizagem, a necessidade do
professor poderá ser a de compartilhar conhecimentos, e para o aluno a de
obter conhecimentos.
9
Objeto
“Assim, o homem recebe o alimento, por exemplo, como objeto de uma
atividade particular - procura, caça, preparação - e ao mesmo tempo, como
objeto que satisfaz determinadas necessidades humanas,
independentemente do fato do homem considerado sentir ou não a
necessidade imediata ou de ela ser ou não atualmente o objeto da sua
atividade própria” (Leontiev, 2004, p. 87).
Orienta a atividade, podendo ser material ou ideal, e responde aos anseios
da necessidade. É considerado como motivo efetivo.
Exemplo: Pode-se afirmar que o objeto do processo de ensino é a formação
integral do aluno.
Motivos
“Os motivos, contudo, não são separados da consciência. Mesmo quando
não se toma consciência deles, ou seja, quando a pessoa não se conta
daquilo que a leva a realizar tais ou quais ações, elas ainda assim
encontram seu reflexo psíquico, mas de uma forma especial, isto é, na
forma de colorido emocional da ação. Tal colorido (intensidade, sinal e
caracterização qualitativa) desempenha uma função específica, o que
também exige que se distinga o conceito de emoção e de sentido pessoal”
(Leontiev, 2021, p. 219).
É a esfera motivacional da consciência. Excita o agir e dirige a ação de
satisfazer uma necessidade determinada. É o componente que se relaciona
diretamente com o conceito de atividade. Sem este a atividade torna-se
inexistente. Os motivos podem ser apenas compreensíveis
(motivos-estímulo) ou realmente eficazes (geradores de sentido).
Destaca-se que a atividade humana é polimotivada, podendo existir
simultaneamente dois ou mais motivos para a sua realização.
Exemplo: No desenvolvimento de uma atividade diferentes motivos. Para
o professor, um motivo de ensinar pode ser o de compartilhar os
conhecimentos adquiridos, bem como de subsistência financeira; para o
aluno pode ser o de ter domínio dos conhecimentos compartilhados para
alcance, por exemplo, de uma profissão futura, e de estudar para cumprir
uma obrigação familiar.
Ação
“(...) Chamamos ação o processo que se subordinado a um objetivo
consciente” (Leontiev, 2021, p. 123).
10
“Chamaremos ações os processos em que o objeto e o motivo não
coincidem, podemos dizer, por exemplo, que a caçada é a atividade do
batedor, e o fato de levantar a caça é a sua ação” (Leontiev, 2004, p. 82).
Imprescindível para que a atividade se realize, a ação está relacionada aos
fins almejados (objetivos conscientes) e surge nas relações de intercâmbio
da atividade. Quando uma atividade perde seu motivo originário, esta se
transforma em ação. Nesse caso, o motivo não coincide com aquilo para o
qual ele se dirige (objetivo), mas se relaciona à atividade à qual se vincula.
Exemplo: Se o aluno estuda determinado conteúdo somente com a intenção
de passar na avaliação, esse processo é considerado como ação, visto que
o seu motivo (ser aprovado) não se vincula ao objetivo do processo de
ensino (formação do aluno para a sociedade). Se o professor ministra aulas
apenas com o intuito de cumprir sua obrigação e se manter vinculado ao
emprego, também realiza ação, visto que o seu motivo (cumprir prática
burocrática) não se vincula com o objetivo do processo de ensino (formação
do aluno para a sociedade). Contudo, nesses processos, estudar para a
prova e ministrar aulas, mesmo tendo motivações divergentes, vinculam-se
a atividades do processo de ensino. Portanto, são ações, e não atividades.
Operação
“(...) Eu denomino operações os modos de realização” (Leontiev, 2021, p.
127).
“(...) É claro que a origem de certa operação é determinada pela existência
de condições, meios e modos de ação que se formam ou são assimilados
de fora; contudo, a unificação de elos elementares entre si, que forma a
composição da operação, sua ‘compreensão’ e sua transmissão para níveis
neurológicos inferiores, ocorre submetendo-se a leis fisiológicas, as quais
não podem ser ignoradas pela psicologia” (Leontiev, 2021, p. 137).
Está relacionada às condições, modos, meios e procedimentos da ação e é
o resultado da metamorfose desta, que ocorre porque ela está incluída em
outra ação e segue sua tecnização. É determinada pela tarefa, isto é, o alvo,
dado em condições que requerem certo modo de ação. Sua existência não
é obrigatória na atividade, mas sempre que surge está vinculada à ação.
Assim, quando o sujeito a realiza, possui habilidades suficientes para
realizar o ato em automático.
Exemplo: Quando um professor ministra aulas de matemática, por exemplo,
e, ao resolver determinado problema, faz de modo automático os atos de
11
somar e dividir, que são conhecimentos plenamente dominados
anteriormente. Esses atos são considerados operações. no caso do
aluno, o que geralmente ocorre nesse processo de somar e dividir quando
vai solucionar questões, é algo mais manual e que demanda um
aprofundamento de estudos para tal resolução. Assim, esses atos para o
aluno podem ser ainda uma ação, que tem como objetivo resolver a
questão, que é a atividade.
Meios/
condições
“(...) Um tiro justado requer numerosas operações, cada uma respondendo
às condições determinantes da ação dada: é necessário assumir uma certa
pose, apontar, determinar corretamente a mira, encostar ao ombro, reter a
respiração e premir corretamente o gatilho” (Leontiev, 2004, p. 110).
“A preparação dos instrumentos pelo homem tem também sua história
natural. Como sabemos, certos animais têm uma atividade instrumental
rudimentar que se manifesta pela utilização de meios exteriores que lhe
permitem realizar operações (cf. o uso do pau nos símios antropóides).
Estes meios exteriores, os ‘instrumentos’ dos animais são todavia muito
diferentes, qualitativamente, dos do homem que são os instrumentos do
trabalho” (Leontiev, 2004, p. 80).
Um instrumento é um objeto que pode se tornar um meio que auxiliará no
processo de desenvolvimento da atividade, isto é, os instrumentos podem
auxiliar as operações das atividades bem como, para o desenvolvimento de
qualquer atividade, modos e condições de sua realização, ou seja, a
forma como poderá ser realizada.
Exemplo: O professor utiliza diversas ferramentas, como livros, quadros,
datashow, etc., para aprimorar o processo de aprendizagem. Esses
instrumentos são essenciais para auxiliar o professor no processo de ensino
e estão vinculados às condições em que sua atividade pode se desenvolver,
como o contexto sócio-histórico e político, bem como a fatores naturais
como o clima.
Produto
“A atividade de trabalho se imprime em seu produto” (Leontiev, p. 2021, p.
148). É o resultado objetivo alcançado pela atividade realizada.
Exemplo: Um produto alcançado no processo de ensino pode ser a
formação integral do aluno.
Fonte: Elaboração própria por Lopes.
12
Em conformidade com o disposto sobre a atividade, pode-se representar a
estrutura geral desta conforme figura abaixo:
Figura 1 - Estrutura geral da atividade, conforme Leontiev
Fonte: Elaboração por Lopes.
Pelo exposto, constata-se que a atividade é gerada a partir de uma
necessidade, estimulada e dirigida pelo motivo, que é imprescindível para a sua
existência. Assim, as ações da atividade são vinculadas ao atingimento de um
objeto, que acaba por ser o seu motivo real. No caso de uma atividade contar com
operações, ela estará vinculada diretamente à ação. Ademais, para que o resultado
seja alcançado, um sujeito que realiza a atividade.
No que concerne à atividade dominante ou principal, de acordo com os
pressupostos de Leontiev (2004, 2021), entende-se como a responsável pela
formação e organização dos processos psíquicos, que envolve outras atividades,
sendo essas realizadas conscientemente. Para o autor, pode-se considerar, por
exemplo, que a atividade principal da criança, anterior ao seu período de idade
escolar, é a atividade voltada para a ludicidade.
13
Concebe-se que em cada etapa da vida do indivíduo uma atividade
dominante correlata, de acordo com a motivação e a realidade apresentada, que o
direciona a agir ao mesmo tempo que age sobre o seu processo de evolução
humana, inclusive influenciando o progresso psíquico.
Ao referenciar o processo de desenvolvimento da criança, Leontiev assegura:
Do ponto de vista da consciência, essa transição para a idade da
escola secundária é marcada pelo crescimento de uma atividade
crítica em face das exigências, do comportamento e das qualidades
pessoais dos adultos, e pelo nascimento de novos interesses que
são, pela primeira vez, verdadeiramente teóricos. Surge a
necessidade no aluno da escola secundária de conhecer não apenas
a realidade que o cerca mas de saber também o que é conhecido
acerca dessa realidade (LEONTIEV, 2010, p. 62-63).
Verifica-se, dessa maneira, que no trajeto da existência humana sempre
uma atividade principal correlata. No caso da criança, por exemplo, a sua atividade
principal, antes da idade escolar, é a brincadeira. Logo, quando do ingresso na fase
de escolarização secundária, sua atividade principal se torna o estudo, por
conseguinte, quando do ingresso na adolescência e/ou fase adulta, a atividade
principal pode se tornar o trabalho.
Desse modo, visualiza-se que, a partir da evolução do homem e,
consequentemente, das atividades que ele realiza em seu percurso de vida, um
processo de mudança qualitativo pode surgir sobre seu perfil. Assim ocorre porque
tais atividades possibilitam o desenvolvimento crítico, participativo e humanizado,
mediante a consciência assumida sobre o seu papel diante da sociedade, em
conformidade com o contexto histórico-social por ele vivido, do qual emergem
contradições que, de certa forma, precisam ser superadas.
A partir da explanação da temática central deste tópico, identificam-se
elementos essenciais na sua composição: motivos, significação e sentidos, os quais
serão apresentados na sequência.
Motivos, Significação e Sentidos: unidades basilares da Teoria da Atividade
Para compreender o desenvolvimento do homem no mundo, é necessário
compreender as suas interações nas relações sociais estabelecidas. Logo, não se
pode analisar o desenvolvimento humano distinto da práxis social constituída, por
conseguinte, da atividade que ele realiza cotidianamente.
14
Frisa-se que a atividade é realizada tencionando suprir uma necessidade,
biológica ou social, que se conecta a um determinado motivo. A necessidade pode
surgir para supressão de algo que venha do instinto animal de sobrevivência e não
necessariamente de algo que demande pensamento mais elaborado para alcance
de determinado fim, de um projeto a ser realizado, de um alvo projetado.
Contudo, qual a relação do motivo na atividade? O motivo é o que impulsiona
a realização da atividade, em consonância com a sua finalidade, uma vez que
“denomina-se motivo da atividade aquilo que, refletindo-se no cérebro do homem,
excita-o a agir e dirige a ação a satisfazer uma necessidade determinada” (Leontiev,
2017, p. 45). Desse modo, o motivo estimula a execução da atividade e orienta para
um determinado objeto.
Outrossim, mesmo o motivo sendo o fio condutor da concretização da
atividade, em algumas situações poderá não surtir efeitos para que a atividade se
realize. Contudo, em uma mesma atividade poderão existir diferentes motivos,
destacando-se entre eles algum que seja mais eficiente, dependendo das condições
de realização da atividade. Leontiev (2010, 2017, 2021) nomeia alguns tipos de
motivo, entre eles citamos os motivos realmente eficazes (motivos
geradores/formadores de sentido) e os motivos apenas compreensíveis
(motivos-estímulos).
Motivos realmente eficazes (motivos geradores/formadores de sentido)
incitam a efetivação da atividade trazendo um sentido pessoal a esta. O motivo
eficaz impulsiona o sujeito a realizar algo para se alcançar um determinado objetivo,
de forma consciente e racional, sendo hierarquicamente superior em relação aos
motivos-estímulos.
os motivos apenas compreensíveis (motivos-estímulos) induzem a
realização da atividade, contudo, não são suficientes para que esta se concretize
integralmente. Exercem função de estímulo com princípios negativos ou positivos,
podendo possuir características emocionais e afetivas. Esses motivos podem vir a
se transformar em motivos eficazes, dependendo das circunstâncias do sujeito que
executa a atividade, o qual pode visualizá-los como motivos mais significativos em
determinadas condições.
15
Deve-se registrar que a personalidade influencia os motivos. Para Leontiev,
A distribuição das funções de formação de sentido e apenas do
estímulo entre motivos de uma mesma atividade é o que permite
compreender as relações principais que caracterizam a esfera
motivacional da personalidade, isto é, relações de hierarquia dos
motivos (LEONTIEV, 2021, p. 220).
Contudo, o que significa sentido pessoal em Leontiev? O sentido pessoal se
constitui a partir da relação estabelecida pelo sujeito e aquilo que foi assimilado em
sua consciência, o que pode ser divergente do sentido de outros devido as suas
experiências. Desse modo, o sentido é considerado pessoal dada a relação que o
sujeito possui com determinado objeto ou fenômeno.
O sentido, conforme disposto por Leontiev (2004, p. 103), “é antes de mais
nada uma relação que se cria na vida, na atividade do sujeito”. Significa dizer que a
partir do processo da atividade, o sujeito toma consciência do que o impulsiona a
agir (motivo) e o que o dirige a agir (objetivo). Assim, o motivo que o dirige ao objeto
é algo individual e esse reflexo exclusivo torna-se, pois, o sentido pessoal do sujeito.
O sentido pessoal é individual, ou seja, nasce nas particularidades do
indivíduo, diferenciando-se da significação, que é construída na coletividade.
Leontiev pronuncia que
A significação é o reflexo da realidade independentemente da
relação individual ou pessoal do homem a esta. O homem encontra
um sistema de significações pronto, elaborado historicamente, e
apropria-se dele tal como se apropria de um instrumento, esse
precursor material da significação (LEONTIEV, 2004, p. 102).
Destarte, a significação é a representação histórica, que ocorre por meio da
linguagem, das experiências e práticas instituídas na e para a sociedade. Esta
reflete a apropriação da compreensão do mundo objetivo que se institui na
consciência, a partir das convenções sociais. Por conseguinte, infere-se que a
significação possui uma relação dialética com o sentido pessoal, à medida que
aquela é construída a partir das relações sociais e este surge a partir da
significação.
Dessa forma, por meio da significação, é possível compreender a
representação de determinado objeto ou fenômeno em consonância com o que este
representa para a humanidade, e não apenas com o que ele pode representar para
um sujeito em particular, dado que “os significados refratam para o indivíduo objetos
16
independentemente da relação destes com a sua vida, suas necessidades ou
motivos” (Leontiev, 2021, p. 172). Assim, o sujeito, a partir da sua individualidade,
isto é, de suas experiências e práticas no mundo, compreende a essência do objeto
ou fenômeno a partir do entendimento da coletividade, ou seja, sua significação.
Para Leontiev (2004), as relações do sentido e da significação são alguns dos
componentes basilares da consciência humana, assim como o conteúdo sensível7,
componentes esses que se entrelaçam. Para o autor,
(...) Na verdade, se bem que o sentido ("sentido pessoal") e a
significação pareçam, na introspecção, fundidos com a consciência,
devemos distinguir esses dois conceitos. Eles estão intrinsecamente
ligados um ao outro, mas apenas por uma relação inversa da
assinalada precedentemente, ou seja, é o sentido que se exprime
nas significações (como o motivo nos fins) e não a significação no
sentido (LEONTIEV, 2004, p. 104).
Frisa-se que a significação de determinado objeto ou fenômeno não
impossibilita que sobre ele seja despertado no sujeito o sentido pessoal, dado que a
partir da significação se reproduz o sentido pessoal. Por conseguinte, o sentido
pessoal não implica a mudança da significação. Apreende-se, portanto, que o motivo
é de suma importância para o bom desenvolvimento da atividade, corroborando a
afirmativa de Leontiev de que
(...) A atividade que não tem um motivo geral e amplo carece de
sentido para o indivíduo que a realiza. Essa atividade não somente
não se pode enriquecer e melhorar em seu conteúdo, como se torna
uma carga para o sujeito. Isso acontece, por exemplo, com tudo o
que se faz por imposição. Por isso, apesar da importância que têm
os motivos-estímulos, a tarefa pedagógica consiste em criar motivos
gerais significativos, que não somente incitem à ação, mas que
também deem um sentido determinado ao que se faz (LEONTIEV,
2017, p. 50).
Atesta-se, dessa forma, conforme disposto por Leontiev (2017), que a
Teoria da Atividade pode ser considerada no contexto educacional, dado que toda e
qualquer atividade realizada deve ter um motivo gerador de sentido para que seja
7É o conteúdo sensível (sensações, imagens de percepção, representações) que cria a base e as
condições de toda a consciência. De certo modo, é o tecido material da consciência que cria a
riqueza e as cores do reflexo consciente do mundo. Por outro lado, este conteúdo é imediato na
consciência; ele é aquilo que cria diretamente “a transformação da energia do estímulo exterior em
fato de consciência”. Mas na medida que este “componente” é a base e a condição de toda a
consciência, ele não exprime em si toda especificidade da consciência (LEONTIEV, 2004, p. 105).
17
prazerosa e melhor desenvolvida pelo sujeito, e isso se aplica para as atividades
realizadas no contexto da educação.
Osujeito necessita de auxílio no processo de aprendizado, mas isso não
significa obrigatoriamente que ele realizar o desejado; o que existe é a
possibilidade de alcance do que se projeta, e um dos fatores de sua concretização
está correlacionado ao nível de desenvolvimento em que o sujeito se situa. Nesse
sentido, o uso da Teoria da Atividade no contexto educacional pode ajudar no
processo de ensino e aprendizagem, até mesmo introduzindo os conceitos dispostos
na Teoria Histórico-Cultural, pois esta fundamenta aquela.
Nessa perspectiva, o professor, por exemplo, ao refletir que suas atividades
devem ser realizadas com foco no seu motivo gerador, desenvolvendo as melhores
estratégias para um ensino mais instigante, a fim de despertar o potencial máximo
do aluno e propiciar que ele gere seus próprios conhecimentos, estará atuando de
forma condizente com a significação do exercício do seu trabalho. Desse modo, não
exercerá, pois, uma função alienada, dado que
A “alienação” da vida do homem tem por consequência a
discordância entre o resultado objetivo da atividade humana e o seu
motivo. Dito por outras palavras, o conteúdo objetivo da atividade
não concorda agora com o seu conteúdo objetivo, isto é, com aquilo
que ela é para o próprio homem. Isto confere traços psicológicos
particulares à consciência (LEONTIEV, 2004, p. 130).
Assim, o professor ao buscar melhor conhecer o seu público, com vistas a
continuamente melhor desenvolver estratégias de ensino, colaborando, pois, para
um processo de ensino e aprendizagem mais prazeroso e eficaz, estará dando
ênfase ao seu objetivo de trabalho, ou seja, ao seu motivo gerador de sentido, que é
a aprendizagem significativa do aluno. Por conseguinte, por meio das estratégias do
professor, ao orientar o processo de despertar no aluno um sentido pessoal, um
motivo gerador de sentido, para desenvolvimento de sua atividade educacional, a
partir da reflexão dos motivos que o movem, pode fazer diferença, visto que, a partir
da consciência do que o impulsiona, é possível alterar o percurso, caso ele não
esteja indo bem. Isso lhe permite tanto entrar em uma nova linha de pensamento
quanto prosseguir no processo que se encontra, com vistas ao seu objetivo.
Portanto, compreende-se, a partir do disposto, que a Teoria da Atividade de
Leontiev pode ser utilizada no contexto educacional como forma de auxiliar no
melhor desenvolvimento de suas atividades.
18
Considerações finais
Por meio deste estudo, atestou-se que a Teoria da Atividade de Leontiev está
correlacionada ao desenvolvimento do ser humano, à atividade que ele desenvolve
no mundo, que é impulsionada por um motivo, que por sua vez possui relação com
um objetivo e que para sua concretização a necessidade de um conjunto de
ações, podendo existir operações.
A atividade é realizada de forma consciente a partir do motivo que se deseja
alcançar, valendo-se de estratégias para a sua concretização, podendo existir
diferentes tipos de atividades realizadas no contexto interno ou externo, por
exemplo, que podem levar ao fim desejado, mas isso tudo levando em consideração
os aspectos histórico-culturais em que a atividade é realizada.
Infere-se que para conhecer o verdadeiro significado de uma atividade é
preciso olhar por trás de sua motivação. Nessa perspectiva, entende-se que, no
contexto educacional, para que o ensino se torne cada vez mais profícuo, é
relevante conhecer o contexto do aluno, as perspectivas do desenvolvimento das
atividades realizadas no ambiente escolar e, de forma mais organizada, impulsionar
a aprendizagem.
Assim, quando o aluno assimila o motivo que o faz realizar uma atividade,
como a atividade de estudo, e esta possui, além do seu significado de assimilação
de conhecimentos científicos, um nível de interesse pessoal que satisfaz um
determinado objetivo, pode-se afirmar que tal atividade instiga esse aluno a agir de
maneira particular. Compreende-se, portanto, que são fundamentais as discussões e
reflexões permanentes em torno do melhoramento do processo
ensino-aprendizagem, com vistas a contribuir para o desenvolvimento do aluno a
partir desse processo, partindo, pois, de uma perspectiva, e a Teoria da Atividade de
Leontiev, diante do exposto neste trabalho, pode ser uma alternativa para melhor
desenvolver o processo educacional.
Como desdobramento deste estudo, sugeriu-se que fosse realizado, em uma
proposta de intervenção, o ensino da Teoria da Atividade de Leontiev no contexto da
prática de ensino. Portanto, propôs-se uma capacitação para professores, como
forma de compartilhar conhecimentos sobre a teoria, realizando análises e reflexões
sobre a sua utilização para verificar as implicações na formação dos professores. O
19
trabalho desenvolvido, bem como os resultados dessa nova pesquisa, deverá ser
divulgado posteriormente.
Referências
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20
V.22, 48 - 2024 (maio-agosto) ISSN: 1808-799 X
A LEI ENQUANTO UM ARTEFATO TECNOLÓGICO NA
DISCUSSÃO SOBRE A EDUCAÇÃO1
Melissa Bertolini Rodrigues2
Francis Kanashiro Meneghetti3
Resumo
O trabalho discute sobre a apropriação dos fundos públicos na educação pública no Brasil e o
protagonismo das grandes corporações privadas nesse âmbito. É um recorte da dissertação
defendida junto à Universidade Tecnológica Federal do Paraná, em 2023 e a ideia central é a Lei
como um artefato tecnológico e seus propósitos moldados por teleologias pré-estabelecidas,
refletindo disputas de poder de uma sociedade e período. Agrega à Teoria dos Artefatos na Ciência
Jurídica e sua hermenêutica. A lei é analisada à luz das dimensões de CTS, através da análise crítica
da Lei 14.533/2023, sobre a política para a educação digital no país.
Palavra-chave: Lei; Artefato Tecnológico; Não Neutralidade; CTS.
EL DERECHO COMO ARTEFACTO TECNOLÓGICO EN EL DEBATE EDUCATIVO
Resumen
El trabajo analiza la apropiación de fondos públicos en la educación pública en Brasil y el papel protagónico de
las grandes corporaciones privadas en esta área. Es un extracto de la disertación defendida en la Universidad
Tecnológica Federal de Paraná, en 2023 y la idea central es el Derecho como artefacto tecnológico y sus fines
moldeados por teleologías preestablecidas, reflejando luchas de poder en una sociedad y un período. Se suma a
la Teoría de los Artefactos en las Ciencias Jurídicas y su hermenéutica. La ley se analiza a la luz de las
dimensiones de la CTS, a través de un análisis crítico de la Ley 14.533/2023, sobre la política de educación
digital en el país.
Palabra clave: Derecho; Artefacto Tecnológico; No Neutralidad; CTS.
THE LAW AS A TECNOLOGICAL ARTIFACT IN THE EDUCATION DEBATE
Abstract
The paper discusses the appropriation of public funds in public education in Brazil and the leading role of large
private corporations in this area. It is an excerpt from the dissertation defended at the Federal Technological
University of Paraná in 2023, and the central idea is the Law as a technological artifact and its purposes shaped
by pre-established teleologies, reflecting power struggles in a society and period. It adds to the Theory of Artifacts
in Legal Science and its hermeneutics. The law is analyzed in light of the dimensions of STS, through the critical
analysis of Law 14.533/2023, on the policy for digital education in the country.
Keywords: Law; Technological Artifact; Non-Neutrality; STS.
3Administrador e Mestre pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), Brasil. Doutor em Educação pela
Universidade Federal do Paraná (UFPR). Estágio Pós-Doutoral em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica
do Paraná (PUC-PR), Brasil. Professor EBTT da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), Brasil,
vinculado ao Departamento Acadêmico de Gestão e Economia e aos Programas de Pós-Graduação em
Tecnologia e Sociedade (PPGTE) e de Pós-Graduação em Administração (PPGA). Membro fundador e
pesquisador do Instituto Brasileiro de Estudos e Pesquisas Sociais (IBEPES). Presidente da Sociedade Brasileira
de Estudos Organizacionais (2012-2013). E-mail: francis@utfpr.edu.br.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/8238451312475074. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0327-2872.
2Advogada, graduanda em Letras Italiano, pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) - Brasil, em Mobilidade
Acadêmica junto à Università degli Studi di Perugia (UNIPG), Itália e Mestra em Ciência, Tecnologia e Sociedade
pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná (PPGTE/UTFPR), Brasil.
Email: melissarodrigues.2022@alunos.utfpr.edu.br. Lattes: http://lattes.cnpq.br/0226560218256751.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6547-5184.
1Artigo recebido em 08/03/2024. Primeira Avaliação em 19/03/2024. Segunda Avaliação em 05/06/2024.
Aprovado em 09/07/2024. Publicado em 07/08/2024. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v22i48.62228.
1
Introdução
O presente trabalho visa colaborar com as discussões críticas relativas à
apropriação dos escassos fundos públicos destinados à educação pública no
Brasil e o protagonismo crescente das grandes corporações de informação e
comunicação, fundações e outras organizações privadas nesse âmbito.
A educação, como ensinou Florestan Fernandes (1989) é o principal dilema
histórico do Brasil. E enquanto um dilema, a educação, pública ou privada, sua
gestão e planejamento possuem configurações e dimensões complexas, que
envolvem uma multitude de fatores, que concorrem para sua concepção,
instrumentalização e realização efetivas.
Existem dissensos acerca da própria ontologia da educação, bem como
acerca dos objetivos e funções da escola, o que, em alguma medida, se relaciona
com a possibilidade ou existência de muitos significados para o que seja
considerado como “qualidade de ensino” (Libâneo, 2011).
Fato é que, no âmbito das políticas ditas oficiais para a educação, algumas
pesquisas conflagram a forte influência dos organismos internacionais, que
produzem impactos na própria concepção de escola, métodos e sistema de
avaliação, bem como na formulação dos currículos (Libâneo, 2016).
A partir dos anos 1980, organismos internacionais ligados a ONU
Organização das Nações Unidas e ao FMI Fundo Monetário Internacional, bem
como ao Banco Mundial ou BIRD Banco Internacional de Reconstrução e
Desenvolvimento intensificaram sua atuação em processos de cooperação técnica e
financeira com relação ao designado Terceiro Mundo, voltados sistêmica e
globalmente ao crescimento econômico, garantindo, entre outros, uma função
reguladora e estabelecendo estratégias para distribuição de recursos financeiros,
notadamente em ações de longo prazo, inclusive para a educação básica.
A política e economia brasileiras foram marcadas pela ascensão do
neoliberalismo e da globalização econômica da década de 1990 e muitos dos
programas de governo da época sinalizavam a intenção de aderir ao cenário
internacional, aproximando os custos dos serviços públicos aos do mercado
internacional (Brasil/ MPOG, 1995).
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No que concerne ao processo educacional daquela década, as diretrizes
prevalentes foram as estabelecidas na Reforma de 1995, adequadas às
determinações e diretrizes internacionais, de modo que o planejamento escolar se
afasta da sua própria localidade e, por que não, da sua brasilidade, passando a ser
orientada por projetos, cuja função do planejamento passa a ser o de fornecer
soluções para o bom desempenho da escola, em um enfoque sistêmico funcionalista
(Torre, 1997).
Os problemas, portanto, devem ser conhecidos de antemão, bem como
estabelecidos os objetos do planejamento, os quais passam a ser produtos da
escola, orientados pelas mesmas diretrizes internacionais. A base tecnicista para a
solução desses problemas planifica a realidade por si complexa, elimina alteridades
e não obstantes os muitos programas fracassados, parece insistir na política para
que o trabalho escolar seja modificado e instrumentalizado por simples negociações
técnicas (Fullan e Hargreaves, 2000).
À mente, retoma-se a célebre frase de Darcy Ribeiro sobre a educação, em
que sugere que: “A crise da educação no Brasil não é uma crise; é um projeto”
(1986), principalmente quando, saltando no tempo, chega-se à Medida Provisória -
MP 746/16, que tratou da “reforma do ensino médio”, promulgada como primeiro ato
do governo de Michel Temer (Da Silva, 2018).
O intuito primordial daquele ato foi trazer à luz o chamado novo ensino médio,
encampado em uma reforma que de novo parece portar muito pouco, senão retomar
discursos presentes em outros atos anteriores.
Na MP referida se estabeleceu que o setor privado ofereça o itinerário de
formação técnica e profissional, ofertados em conformidade com as “possibilidades
dos sistemas de ensino” e o financiamento público para a oferta privada da
educação por meio da Educação à Distância EaD (Da Silva, 2018). Em verdade,
todavia, muito aqui da retomada do ProEMI Programa Ensino Médio Inovador,
de 2009, para citar somente um dos embolorados programas de governo para a
educação. Ou seja, a MP recupera proposições e discursos criticados dos
Parâmetros e Diretrizes Curriculares Nacionais, da mesma década uber
influenciadora dos anos 1990 brasileiros (Silva, 2008; Lopes e Macedo, 2002;
Pacheco, 2001).
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A MP se torna posteriormente a Lei 13.415 de 2017, alterando artigos da
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), Lei 9.394/1996 e
instituindo a Política de Fomento à Implementação de Escolas de Ensino Médio em
Tempo Integral, entre outros.
A LDB sofreu inúmeras alterações, formando um complexo quase ininteligível
de malhas de textos legais, com sentidos textuais nem sempre coesos, entre elas,
para citar algumas das alterações sofridas, pelas Leis nºs 12.061/2009; 12.796/2913;
13. 632/2018; 14.333/2022 e finalmente pela Lei 14.533 de 2023, a qual instituiu a
Política para a Educação Digital no Brasil PNED.
Justamente nesse ponto presente, qual seja, o da Lei 14.533 de 2023 que
instituiu a política pública para a educação digital no Brasil, pretende-se colaborar
com a discussão que encabeça o presente trabalho, reafirmando que o país está
atualmente em uma momento de reconfiguração do espaço público, no qual grandes
corporações, fundações e outras organizações privadas buscam o fortalecimento da
capacidade executória do aparelho administrativo em geral e, em especial as
escolas, enquanto ao mesmo tempo, ocupa posição de interlocução direta e
privilegiada na condução e fazimento das políticas educacionais (Martins et al,
2018).
Como dito, são muitos os textos legais e as normas que alteraram a LDB e
outros artefatos legislativos relativos à educação no país, como por exemplo, a
própria BNCC Base Nacional Curricular Comum (2018). São muitas normas
instrumentalizadas nesses artefatos, os quais muitas vezes são de difícil inteligência
e interpretação, constituindo-se em um problema, um verdadeiro “emaranhado”
normativo, cujas exegeses técnico-jurídicas, podem permanecer pouco ou nada
questionados durante seu iter, o qual por si só, usualmente, é distante da
comunidade para o qual será inevitavelmente dirigido, relativamente à sua
neutralidade, linearidade, determinismo tecnológico, universalidade tecnológica ou
ainda transdução ou isomorfismo em relação às Políticas de CTI Ciência,
Tecnologia e Inovação, dimensões caras à área de estudos de CTS Ciência,
Tecnologia e Sociedade.
Dimensões críticas que transcendem à lógica tecnicista que, por sua vez, é
tida como neutra, ascética e desenvolvimentista, corolários e também produtos da
modernidade (pós-modernidade) neoliberal.
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Justamente por conta do efeito contundente da busca e escolha do
“progresso tecnológico” pelo “progresso tecnológico”, descontextualizado
socialmente e distante da sociedade, se argumenta, pela necessidade de se atribuir
mais uma camada de legibilidade para as leis, notadamente aqui, aquelas relativas à
Educação, especificamente para a Lei 14.533 de 2023, a qual instituiu a Política
para a Educação Digital no Brasil PNED, de modo a contrapor-se à
responsabilidade flutuante no interior do corpo burocrático legislativo.
Para tanto e considerando que todo desenvolvimento tecnológico é um
produto das relações e realidades “tecnossociais” ou “sociotécnicas” e em face
dessa condição, emerge o imperativo de que essas tecnologias sejam
democraticamente disputadas (Feenberg, 2002; 2019a; 2019b), entende-se
necessário que as leis possam ser avaliadas e interpretadas segundo diapasões
também sociotécnicos, considerada em si mesma, um artefato tecnológico capaz de
ser analisada sob viés e lentes de CTS.
Escopo da Pesquisa
Essas considerações embasaram o cotejo da pesquisa realizada pela autora
durante a realização do curso de Mestrado, junto à Universidade Tecnológica
Federal do Paraná UTFPR, cuja defesa ocorreu em 30 de novembro de 2023.
A dissertação defendeu a ideia central de que a Lei é, em si mesma, um
artefato tecnológico. Considerou-se que tanto a própria lei quanto o seu propósito
são moldados por teleologias pré-estabelecidas, refletindo as disputas de poder
dentro de uma sociedade e em um período específico. Dessa forma, a pesquisa
surgiu, além de uma inquietação pessoal da pesquisadora, do desejo de enriquecer
o corpo teórico relacionado à Teoria dos Artefatos no contexto da Ciência Jurídica,
oferecendo uma nova perspectiva à hermenêutica jurídica, que vai além das
interpretações declarativas, restritivas ou extensivas.
Assim, a lei pode ser submetida a uma análise crítica à luz das diversas
dimensões da área de Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS), incentivando outros a
explorar os estudos da Teoria dos Artefatos na esfera jurídica, especialmente
considerando seu status incipiente em nosso país. Nesse contexto, o objetivo
principal da pesquisa foi realizar uma análise crítica do texto do Projeto de Lei (PL)
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4.513/2020 e da Lei Ordinária 14.533/2023, que delineia a política para a
educação digital no Brasil, considerando-os como artefatos tecnológicos à luz das
teorias do campo CTS.
Os objetivos específicos incluíram a identificação e análise das
representações dos aspectos de Neutralidade, Linearidade, Determinismo
Tecnológico, Universalidade Tecnológica e a aplicação da Transdução ou
Isomorfismo das Políticas de CTI nos textos em questão.
Ao término da pesquisa, foi observada a viabilidade da concepção da lei como
uma artefactualidade tecnológica, fornecendo uma perspectiva interpretativa valiosa.
A lei como um termo polissêmico
A pesquisa percorreu o conceito de lei, o qual pode abarcar diversas
definições, seja como instituição ou instrumento da natureza social humana.
Podendo ser entendida como um artefato cultural, social, instrumental, textual e
histórico, além de ser considerada um artefato tecnológico, desenvolvido dentro da
capacidade humana de criação, não espontânea, natural ou desprovida de
finalidade.
Independentemente da capacidade ou contexto em que é mencionada, a lei é,
por sua essência, um texto, uma transcrição de um contrato social estabelecido por
legitimidade, competência e redes de poder. É também uma norma com partes
descritivas e outras que necessitam de regulamentação posterior à sua publicação e
entrada em vigor. Também uma das fontes do direito, inserida em um sistema
cultural, no qual podem surgir conflitos normativos devido às suas representações,
lacunas, contradições e prescrições.
A lei, sua formação, aplicabilidade e relação sistêmica no ordenamento
jurídico existente são elementos passíveis de interpretação, muitas vezes
necessitando da intermediação de um especialista para torná-la acessível à maioria
das pessoas.
Na pesquisa, argumentou-se que a lei é também um artefato tecnológico,
visto que é moldada por teleologias preestabelecidas e conflitos de poder em uma
sociedade e momento específicos. Para tanto, foram analisados os artefatos
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tecnológicos do Projeto de Lei (PL) 4.513/2020, que institui a Política Nacional de
Educação Digital e altera leis relacionadas à educação nacional.
A abordagem da Lei como um Artefato tem respaldo em diversos estudos
acadêmicos, notadamente os realizados por Luka Burazin, da Universidade de
Zagreb, o qual argumenta que "A artefactualidade do direito tem uma influência não
apenas na teoria jurídica, mas na ciência jurídica em geral" (Burazin et al, 2018). Da
mesma forma, baseia-se nas perspectivas de Andrei Marmor (2018) sobre a lei
como um artefato composto, bem como nos estudos de Dicelis (2015), Malin (2013)
e Niño (2019) que a consideram um artefato cultural.
Partindo da premissa da inteligência artefactual da Lei, esta pesquisa buscou
ampliar essa concepção considerando a perspectiva tecnológica e suas diversas
dimensões de realização e manifestação, aspectos objetos de estudos e análises
dentro do campo interdisciplinar da Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS).
Dessa forma, realizou-se uma análise teórica através do estudo do texto de
um Projeto de Lei (PL 4.513/2020) e de sua Justificação (mens legis), assim como
a Lei Ordinária 14.533/2023. A análise examinou minuciosamente seus
conteúdos, utilizando os parâmetros estabelecidos pelos estudos de CTS como
"marcadores" dos artefatos tecnológicos, com o intuito de caracterizar a lei como tal.
Entre seus objetivos específicos, a pesquisa procurou investigar, de maneira
histórica, a formação, trajetória e a configuração legislativa do Projeto de Lei (PL)
4.513/2020, sua Justificação, culminando na promulgação da Lei Ordinária
14.533/2023, enquanto Artefatos Tecnológicos. Procurou demonstrar a existência de
processos de articulação de poder(es) anteriores e constantes na constituição e
elaboração dos Artefatos Tecnológicos, os quais tendem a favorecer determinados
grupos específicos. Procurou compreender como essas redes de poder e interesses,
envolvidas na criação e articulação dos Artefatos Tecnológicos, que se relacionam
com outros artefatos tecnológicos instrumentalizam suas ações.
Por fim, procurou identificar, ainda que de forma tangencial, um "alinhamento"
desses Artefatos Tecnológicos com outras "malhas-de-textos-legais", que originam
"redes-de-sentido-textuais", especialmente em relação às diretrizes da Base
Nacional Comum Curricular (BNCC) e à Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (LDB).
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A pesquisa se organizou de modo a contemplar os referenciais teóricos para
os seguintes argumentos: Leis; Artefatos; Da Artefactualidade da Lei; Amplitude da
Perspectiva Tecnológica; Da Artefactualidade Tecnológica da Lei; Da Não
Neutralidade da Lei, enquanto Artefato Tecnológico; Do Determinismo Tecnológico;
Da Linearidade Tecnológica; Da Universalidade ou Universalização Tecnológica e Da
Transdução ou Isomorfismo das Políticas de CTI.
Referencial Teórico Das Leis
As leis são, em uma das múltiplas definições, instituições ou instrumentos da
natureza social do homem (Lloyd, 2017). A sociedade ocidental moderna está
acostumada à sua concepção secular, quando uma lei precisa articular suas razões
de existência e criação, bem como oferecer à sociedade ou à comunidade a que se
destina um vislumbre da mentalidade do legislador mas é difícil conceber que em
tempos anteriores elas possuíam qualidades religiosas e até mesmo santidade
(Coulanges, 2004, p. 207; Lloyd, 2017).
Mesmo hoje, embora "dissociada" do aspecto religioso, na sociedade
ocidental, uma lei realmente é uma compreensão ou noção relacional, situada em
uma sociedade e tempo específicos, muitas vezes com significação polissêmica.
Tanto assim que ela pode ser entendida em seu sentido jurídico, histórico e religioso,
para citar alguns, mas também pode ser associada ao sujeito que a estuda, molda,
teoriza e assim a relativiza. Temos um conceito de lei em Hannah Arendt (Schio;
Peixoto, 2012), outro em Kant (Nour, 2004), outro ainda em Kelsen (Nader, 2023, p.
84) e assim por diante.
Antes de situar a noção de lei dentro do território brasileiro, é importante,
mesmo que muito brevemente, compreender melhor seus termos, identificar a
diferença entre texto legal e a norma (significado da lei) contida nele, que será
relacional, fenomenológica e interpretada pelo sujeito que a aplica, estuda e utiliza
(Müller, 1997). Lei e norma, portanto, não são a mesma coisa, embora o Positivismo
possa tê-las pretendido como tal. Como regra, todavia, esses termos são usados
como sinônimos.
Muitos estudiosos do Direito no Brasil, trataram de compor suas significações.
Para Nader (2023), as normas seriam formas de agir e “A norma jurídica exerce
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justamente esse papel de ser o instrumento de definição da conduta exigida pelo
Estado” (Nader, 2023, p. 83) enquanto a lei “apenas uma das formas de expressão
das normas”, as quais também se manifestaram através do direito, pela
jurisprudência” (Nader, 2023, p. 83-84). Ferraz Junior (2023), esclarece as normas,
“como esquemas doadores de significado, podem manifestar uma objetividade
relativa”, de modo que sua consubstanciação enquanto tal pode divergir de grupo
para grupo (Ferraz Júnior, 2023, p. 71). Para Maria Helena Diniz (2023), a norma
jurídica, para se pretender universal, deveria abster-se de qualquer conteúdo
contingente ou variável, sendo que sua conceituação é um problema filosófico
(Diniz, 2023, p. 359).
É possível, portanto, visualizar fatores múltiplos que compõem e perpassam a
própria definição do que venha a ser Norma, Lei ou Legislação, termos também
polissêmicos, como adverte Robert Alexy ( 2016).
É possível falar em legislação em sentido amplo, em sentido filosófico,
histórico, sociológico, antropológico, educativo e ainda técnico-jurídico (Bittar, 2022,
pp. 271-272) e conforme se avolumam, as legislações formam processos de
“massificação da legislação”, “malhas-de-textos-legais”, que originam
“redes-de-sentido-textuais”, em uma quase “poluição sistêmico-normativa”, um dos
fatores de “complexificação da aplicação” do próprio direito (Bittar, 2022, pp. 273).
Parte do complexo normativo, encontram-se diversos veículos/instrumentos
ou mesmo artefatos da legislação, entre eles códigos, consolidações, compilações e
informática jurídica (Bittar, 2022, pp. 274).
Feitas essas considerações e demonstrada a polissemia dos termos em
apreço, é a proposta deste trabalho, considerar uma outra acepção para os
mesmos, qual seja, da Lei enquanto um Artefato Tecnológico. Ademais, é
importante, desde esclarecer que os processos legislativos aqui indicados, eles
mesmos artefatos tecnológicos, aderem ou são regidos por uma realidade
sociotécnica (Feenberg, 2019) e justamente por sua natureza, emerge o imperativo
de que essas tecnologias sejam democraticamente disputadas, se essa sociedade
se pretende, de fato, democrática.
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Referencial Teórico - Dos Artefatos
Artefatos são criações humanas que mediam atividades e podem incluir
instrumentos, sinais, linguagem e máquinas (Nardi, 1996). Os artefatos culturais,
incluindo ideias, valores e emoções, são produtos da cultura humana (Geertz, 1989),
modificam os homens e são modificados por eles (Geertz, 1978).
Existem dois tipos de objetos: naturais e humanos/sociais. Os naturais
surgem naturalmente, enquanto os humanos/sociais são produzidos
intencionalmente para algum propósito (Burazin, 2016). Os artefatos podem ser
ferramentas, meios de dividir o trabalho, normas e linguagem, todos mediando
atividades humanas (Engeströn, 1999). Os artefatos legislativos, como leis e
decretos, são criados para estabelecer normas e regras na sociedade, passando por
processos legislativos específicos (Bruce, 2002). Eles são usados como base para a
interpretação e aplicação do direito e podem ser alterados de acordo com as
necessidades sociais (Nader, 2023). A interpretação desses artefatos não é neutra,
sendo influenciada pelo contexto cultural, histórico e social do intérprete (Nader,
2023).
Em resumo, os artefatos legislativos são criados para estabelecer normas na
sociedade, passando por processos legislativos específicos e sendo utilizados como
base para a interpretação e aplicação do direito. Sua interpretação não é neutra,
sendo influenciada pelo contexto do intérprete.
Referencial Teórico - Da Artefactualidade da Lei
A ideia de que instituições jurídicas são artefatos não é nova (Burazin, 2016).
No entanto, a noção de que a Lei ou os Sistemas Legais são, por sua natureza,
artefatos foi pouco explorada devido a algumas ambiguidades em investigações
filosóficas do direito (Burazin, 2016). A reflexão sobre os artefatos surgiu em
contextos em que estes não eram centrais, no entanto, o mundo contemporâneo é
predominantemente artefactual, onde até atividades mundanas dependem de
artefatos em graus variados (Dipert, 1993).
Embora a filosofia da tecnologia pudesse ter explorado esse campo,
historicamente não o fez, apesar de avanços recentes na área da filosofia da
tecnologia analítica (Franzen; Lokhorst; Van de Poel, 2018; Mitcham, 1994).
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Artefatos institucionais, como leis, dependem de uma intencionalidade coletiva
para sua existência, criação e perpetuação (Burazin, 2015). Os sistemas jurídicos
são artefatos institucionais abstratos criados por autores coletivos com uma intenção
particular (Burazin, 2015; 2016).
Os artefatos, incluindo a legislação, são produtos do esforço humano, com
funções determinadas (Finnis, 2003). A interpretação flexível da lei é uma
característica dos artefatos, assim como sua capacidade de comunicar seu uso
(Ehrenberg, 2018). O direito, como artefato cultural, reflete e molda a cultura,
produzindo modelos de conduta (Niño, 2019).
A legislação pode ser concebida como um artefato cultural expressivo e
prescritivo, recolhendo ideias dominantes e modelando comportamentos (NIÑO,
2019) e sua natureza os torna materiais e simbólicos, parte da cultura e irredutíveis
a padrões de comportamento (Niño, 2019).
Os sistemas jurídicos, como artefatos abstratos institucionalizados,
compartilham normas e criam novas normas, conferindo estatutos especiais a
elementos em seu âmbito (Ehrenberg, 2015). A lei, como artefato composto, cria
contextos prefixados e é dependente da jurisdição, sendo um artefato
espaço-temporal (Marmor, 2018).
Entender o direito como um artefato facilita a análise funcional do direito e
permite uma compreensão dinâmica do conceito de direito. A teoria dos artefatos
destaca o papel dos conceitos humanos na determinação das características dos
artefatos e na constituição de sistemas jurídicos (Burazin, 2016).
Referencial Teórico - Da Amplitude da Perspectiva Tecnológica
A associação da Lei com tecnologia pode não ser evidente, pois
tradicionalmente referem-se à tecnologia apenas os aparatos eletrônicos, como
computadores e celulares.
A visão comum sobre tecnologia a vincula ao desenvolvimento industrial,
sendo "na aplicação do conhecimento científico para melhorar processos e criar
novos produtos" (Silva, 1986, p. 224). De forma mais ampla, a tecnologia é vista
como uma combinação útil de ciência e técnica aplicada na produção de bens e
serviços, não sendo neutra socialmente (Rocha Neto, 1995, p. 24). Inclui assim, seu
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aspecto social e sua construção, indo além da mera aplicação prática da ciência. A
ideia de que as transformações sociais são determinadas pelo desenvolvimento
tecnológico é contestada, e seria restringir a humanidade a uma certa subserviência
e a tecnologia a uma autonomia, uma lógica interna independente daquele que a
cria ou dos fatores sociais, culturais e históricos que constituem sua criação (Bazzo
et al, 2016, p. 173).
É crucial compreender a complexidade da tecnologia em suas diversas
dimensões de realização e manifestação, como por exemplo: como objeto, como um
modo de conhecimento, uma forma específica da atividade e como volição, ou seja,
como atitude humana perante uma realidade ou clivagem transformadora e múltipla
(Cupani, 2017, p. 16).
O senso comum pressupõe uma independência entre tecnologia e relações
sociais, tratando-as como meras ferramentas com significados fixos. No entanto, a
tecnologia não existe isoladamente, mas está intrinsecamente ligada ao contexto
relacional, cultural e social. A tecnologia não é um “isso” (Bruce, 2002), que pode ser
compreendido fora de qualquer contexto relacional, cultural e social.
As relações sociais devem ser codificadas nas tecnologias e vice-versa para
compreender como ambas se influenciam mutuamente e quais as implicações desse
complexo imbricamento (Bruce, 2002).
Referencial Teórico - Da Artefactualidade Tecnológica da Lei
A Teoria Artefactual do Direito (Burazin, 2016) revela-se fundamental para
análise das características do direito, rejeitando abordagens essencialistas (Leiter,
2011; 2013; Schauer, 2012). Gardner (2004) categoriza o direito e os sistemas
jurídicos como artefatos, fornecendo novas explicações estruturais. A teoria
Intencional - Conceitual dos Artefatos (Burazin, 2015) permite mudanças conceituais
facilitando explicações jurídico-filosóficas.
A lei é um artefato cultural e tecnológico, influenciando a sociedade e as
interações humanas (Cupani, 2017; Mitcham, 1994). Os debates conceituais sobre
artefatos, incluindo a lei, são cruciais (Schauer, 2018). A maleabilidade cultural da lei
ressalta sua natureza como artefato cultural (Dicelis, 2015). Reconhecer a
contingência dos artefatos, incluindo a lei, é essencial (Schauer, 2018).
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Enquanto instrumento com um fim ou uma função, uma comunicação, um
texto, um artefato tecnológico com cultura embarcada inerente que o acomoda e
também fomenta, reflexo da história e sujeita a ela, portador de uma norma,
inerentemente cultural, a lei é um artefato tecnológico humano, um “estranho tipo de
artefato”, dotado de propriedades peculiares, uma estrutura definida projetada ou
desenvolvida para desempenhar funções sociais específicas (Tuzet, 2018).
Uma imagem instrumentalista entende a tecnologia como uma ferramenta
para realização de tarefas, bens e serviços, reafirmando o estatuto de neutralidade a
ela imputada (Bazzo et al, 2016). É comum o uso do argumento de que determinada
Lei pode ser muito boa, mas sua utilização, muitas vezes, inadequada ou
inviabilizada. Esse tipo de argumento sugere que aquele artefato tecnológico, no
caso a Lei, seria neutro, desprovido de ideologias e quase mesmo, destacado de
fatores socioculturais que o sustentam.
Referencial Teórico - Da Não Neutralidade da Lei
A lei, enquanto instrumento de normatização social, é tradicionalmente
considerada neutra e universal. A neutralidade da ciência e da tecnologia, esta
tradicionalmente compreendida como resultado da aplicação sistemática daquela, é
uma “concepção herdada”, (Bazzo et al., 2016). Sabe-se, todavia, que o manto da
neutralidade é uma artificialidade, sendo impossível a noção de que a tecnologia
seja neutra ou regulada por lógicas autônomas em relação a seus próprios
condicionantes externos, como fatores sociais, culturais, locais, temporais,
psicológicos e ainda históricos. A neutralidade é questionável, pois as tecnologias,
incluindo a lei, refletem influências sociais, culturais e políticas (Bazzo et al, 2016).
A não neutralidade da lei pode resultar em tratamento desigual e reforçar
estruturas de poder existentes. Ademais, os artefatos têm política (Winner, 1987) e
as suas ‘soluções’ tecnológicas, mesmo aquelas construídas localmente, atendem
às demandas de grupos sociais dominantes (Cupani, 2017, p. 153), podendo ser
utilizadas para resolver questões sociais, mas também podem favorecer certos
grupos em detrimento de outros (Jacinski et al., 2019).
A legislação pode ser influenciada por diferentes forças sociais, resultando em
leis que refletem ideologias dominantes (Monreal, 1983). Uma política elaborada por
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um Estado capitalista atenderá, via de regra, aos interesses de um grupo de atores
sociais específicos, de modo que uma Política Científica e Tecnológica PCT
elaborada nesse âmbito, poderá conter em suas orientações e suas configurações,
possíveis conflitos (Jacinsky et al, 2019).
Ora, a tecnologia não é um mero produto social, tampouco neutra. Seus usos
e instrumentalizações não escapam às relações de poder ou os modos de consagrar
algumas dessas mesmas relações sociais. As escolhas para seu uso, aplicabilidade,
bem como para a produção e pesquisa de uma determinada tecnologia são
apriorísticas, determinadas pelas relações de poder.
A produção de uma lei é um processo permeado por disputas políticas,
econômicas, culturais e sociais, visando a implementação de modelos gerais e
abstratos de consenso (Heidegger, 1981). O direito nasce, a princípio, como forma
de legitimação do poder (Weber, 2003). Para outros, considerando a pré-existência
de relações de poder na história da humanidade, o direito depende da existência de
um poder estabelecido (Reale, 1960, p. 115).
Referencial Teórico Do Determinismo Tecnológico
É relevante compreender que esse conceito aborda a ideia de que a
tecnologia exerce influência sobre a sociedade, guiando seu curso de forma
inevitável (Cupani, 2017, p. 201). Travestido de otimismo, o que não é algo novo,
remontando ao século XIX, com o desenvolvimento técnico impulsionado pela
ciência (Ellul, 1964), a técnica reflete princípios cartesianos do pensamento, tanto no
avanço tecnológico quanto na organização do Direito, refletindo um certo espírito
humano (Cupani, 2017, p. 203).
Atualmente, a técnica é caracterizada pela busca valor da eficiência,
orientando o "progresso tecnológico, ao qual os seres humanos devem se submeter,
criando uma civilização homogênea e uniforme (Cupani, 2017, p. 205). Também
marcada pela artificialidade e pelo automatismo, eliminando a escolha pessoal e
subordinando o mundo natural (Cupani, 2017). Sob a ilusão de seu próprio
aprimoramento, a humanidade se cada vez mais compelida a aceitar o caminho
técnico como o único válido, tornando-se, assim, técnicos em sua própria sociedade
(Ellul, 1964).
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Ainda que este texto se concentre em aspectos da Educação Digital, objeto
da PL 4513/2020, é importante desde ressaltar que a adjetivação "digital" confere
à educação uma dimensão utilitária, vinculada a uma finalidade específica e
governada por uma força inexorável e homogênea (Laval, 2019, p. 17). Isso
evidencia o caráter determinista dos textos em análise, deslocando os valores
sociais, culturais e políticos do saber para uma ênfase na gestão escolar e na
profissionalização do conhecimento (Laval, 2019, p. 18).
Referencial Teórico Da Linearidade Tecnológica
O desenvolvimento tecnológico não segue uma trajetória linear de
acumulação de melhorias, mas sim um processo multifacetado de variação e
seleção, exigindo uma interpretação e análise críticas por parte da sociedade.
É importante ressaltar a inaplicabilidade do modelo linear de desenvolvimento,
que ainda parece subjazer às leis mencionadas, perpetuando a concepção clássica
de que o progresso social depende do crescimento econômico, que, por sua vez,
depende do desenvolvimento tecnológico desvinculado de interferências políticas ou
sociais. Tal visão favorece o monopólio tecnológico e a supressão da diversidade,
impedindo-nos de reconhecer o potencial emancipatório da tecnologia e a
importância da preservação da tecnodiversidade (Hui, 2020, p. 18).
Além disso, devemos refletir sobre a questão da não linearidade tecnológica
como uma contribuição para uma perspectiva decolonial, desconstruindo a ideia de
superioridade do modelo europeu e enfatizando a necessidade de uma educação
intercultural ampla e inclusiva (Candau, 2013, p. 159). A transformação operada pela
tecnologia é permeada por leituras ideológicas e modificações na experiência
humana em diferentes aspectos, incluindo o papel da lei, que regula e determina
variações na vida daqueles que estão sujeitos a ela (Cupani, 2017).
Ademais, é crucial compreender que o Estado e a legislação também sofrem
transformações em uma sociedade tecnológica, tornando-se parte de um "enorme
organismo técnico", onde os políticos são meras engrenagens da máquina e a lei é
utilizada como instrumento de eficiência em vez de justiça (Ellul, 1964).
15
Referencial Teórico Da Universalidade/Universalização Tecnológica
Em uma sociedade tecnológica, todos os problemas e desafios são
interpretados como questões técnicas que devem ser solucionadas exclusivamente
por meio da tecnologia (Winner, 1977, p. 128-129). Nesse contexto, busca-se
identificar e resolver dificuldades e metas por meio de soluções técnicas que são
consideradas homogêneas e eficientes, levando à universalização de sua aplicação
quando parecem eficazes em determinadas situações específicas (Cupani, 2017, p.
188).
No entanto, quando prevalece a "racionalidade instrumental", os objetivos são
muitas vezes negligenciados ou presumidos antecipadamente, resultando na
eliminação das complexidades em prol da homogeneização seletiva. Dessa forma,
ao estabelecer certos objetivos previamente, a tecnologia inevitavelmente descarta
ou ignora outros, promovendo uma cultura tecnicista que prioriza o "como" em
detrimento do "porquê", caracterizando um reducionismo da vida (Hui, 2020, p. 174).
Embora o reducionismo não seja intrinsecamente negativo, torna-se
extremamente prejudicial quando considerado como única realidade. A tecnologia é
fundamentalmente um suporte para o pensamento e meio no qual ele é moldado e
transformado, sendo essencial para a biodiversidade e diversidade de modos de
vida, que devem resistir à homogeneização imposta pela tecnologia moderna (Hui,
2020, p. 132).
Apesar de ser internacional, a tecnologia não é universal (Hui, 2020, p. 41).
Portanto, repensar o papel da tecnologia é fundamental para uma abordagem mais
diversificada e pluralista, reconhecendo a multiplicidade de cosmoéticas e
tecnicidades (Hui, 2020, p. 89).
Ao rejeitar a homogeneidade associada à tecnologia, especialmente quando
relacionada à educação, podemos explorar criticamente o poder transformador da
heterogeneidade (Hui, 2020, p. 91). Os textos normativos, assim como outros
artefatos tecnológicos, tendem a ter uma única teleologia marcada pela
sincronização e homogeneidade, características típicas das tecnologias modernas.
Além disso, é interessante notar que a universalização da tecnologia, aplicada
aos artefatos tecnológicos normativos, se confunde com a própria noção de
Transdução ou Isomorfismo das Políticas de CTI, em que a justificação de projetos
16
de lei se baseia em referências europeias para validar sua universalidade, sem
considerar ajustes ou diferenças contextuais (Hui, 2020, p. 46).
Referencial Teórico da Transdução ou Isomorfismo das políticas de CTI
A supressão de diversas epistemes e, consequentemente, da
tecnodiversidade, fortalece a hegemonia sincronizada inerente à singularidade
tecnológica. Ao imitar acriticamente outras nações e suas políticas de CTI,
fortalecem-se os processos de colonização, reforçando as disparidades de poder
(Hui, 2020, p. 83), onde os mais tecnologicamente poderosos exportam
conhecimento e valores para os mais fracos, eliminando possíveis alteridades (Hui,
2020, p. 62).
A incapacidade de integração entre localidade e tecnologia, juntamente com
um pensamento ecológico padronizado de origem europeia, são alguns dos grandes
fracassos do século XX. É crucial pensar na decolonização a partir de uma
perspectiva tecnológica (Hui, 2020).
A experiência universal não deve ser aceita acriticamente, sendo necessário
abordar o estudo de problemas sociais dentro de seus contextos locais, sem
desconsiderar a experiência universal, mas sem aceitá-la como verdade absoluta
(Varsavsky, 1969, p. 26). Além disso, a ciência é construída e situada culturalmente,
exigindo a incorporação de conhecimentos locais em uma ecologia de práticas e
saberes coletivos (Velho, 2011; Santos, 2003).
O mecanismo de "transdução", presente na elaboração de políticas de CTI e
em outros aspectos, baseia-se na capacidade de vocalização e poder político,
imitando e adaptando modelos de ciência e tecnologia de países centrais, o que
reforça uma posição periférica e influencia diretamente o processo de formulação de
políticas, mesmo quando desconectado da realidade local (Cabral Neto et al, 2013).
Nas políticas de educação digital analisadas, não consideração para a
localidade ou a incorporação de conhecimentos locais. Pelo contrário, uma clara
referência à superioridade da proposta europeia de competência digital, conhecida
como DigComp (Brasil, 2020, p. 3), sem levar em conta as diversas realidades que
uma política nacional de educação digital precisa considerar.
17
Essa interconexão teórica parece estar ligada a outros aspectos, revelando a
não neutralidade de ideologias que ainda consideram o Brasil uma colônia europeia,
e sugerindo que devemos buscar soluções em modelos estrangeiros para nosso
progresso. Isso também está conectado à questão do Determinismo, que apresenta
um único modelo ideal como solução para nossos problemas de desenvolvimento.
Essa interseccionalidade entre os aspectos parece constituir uma teleologia
multifacetada dos artefatos tecnológicos, revelando a complexidade e os
entrelaçamentos presentes nessas questões.
Procedimentos Metodológicos
A pesquisa realizada é de natureza qualitativa, bibliográfica, documental e
descritiva. Apesar da escassez de referências nacionais sobre o tema, foram
identificados alguns trabalhos relevantes, como o artigo de Luka Burazin e sua obra
"Law as an Artifact". As palavras-chave mais utilizadas incluíram "Artefatos",
"Artefactualidade da Lei", "Neutralidade da Lei" e outras.
A pesquisa documental focou nas legislações relevantes, especialmente o PL
4.513/2020 e a Lei 14.533/2023, analisando seus textos originais, diferenças e
contextualização.
A pesquisa é descritiva e segue as orientações de Bardin (1977) para
compreender as relações entre fenômenos categorizados e seus contextos sociais,
políticos e ideológicos (Stake, 1995).
A revisão da literatura abordou a Lei como um Artefato Tecnológico, com
referências a estudos de diversos autores, incluindo Luka Burazin (2018), Andrei
Marmor (2018) e outros. A autora enfrentou dificuldades para encontrar um corpus
significativo, mas revisou todos os referenciais encontrados.
Os dados foram coletados por meio da leitura dos textos, comparação entre
os mesmos e visitas a páginas oficiais e plataformas digitais, entre eles, os sites da
Câmara dos Deputados, do Senado Federal Brasileiro e do MCTI.
Na fase de análise, a partir do estudo do caso formado pelos artefatos
tecnológicos mencionados, foram selecionados trechos para identificação e
categorização, os quais foram confrontados com representações consagradas na
literatura de Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS), especialmente relacionadas à
18
Não Neutralidade da Lei, Determinismo Tecnológico, Linearidade Tecnológica,
Universalidade/Universalização Tecnológica e Transdução ou Isomorfismo das
Políticas de CTI.
Apresentação e Análise dos Resultados
O PL 4.513/2020, passou por várias etapas na Câmara dos Deputados. A
proposta original visava instituir a Política Nacional de Educação Digital e modificar a
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Brasil, 2020).
É importante ressaltar que, apesar do escopo inicialmente proposto para a
educação digital, o PL parece restringir seu conceito e alcance, enfatizando
habilidades e competências em detrimento de outros aspectos essenciais da
educação, como destacado por autores como Laval (2019) e Freire (2022).
Abordagem que parece refletir uma lógica neoliberal na educação, desconsiderando
sua complexidade e diversidade, e enfatizando uma visão utilitarista e
mercadológica da mesma (Laval, 2019).
Sequencialmente, produziu-se um cotejo comparativo, artigo a artigo, entre os
artefatos tecnológicos do PL, sua Justificação, Vetos Presidenciais e a Lei que
consubstanciou a PNED.
A análise da Justificação do PL é de igual relevância porque permite
identificar seus valores constitutivos (Bruce, 2002) e, em si, um artefato tecnológico,
pode incorporar valores desde o momento de sua criação, sofrendo mudanças ao
longo do tempo, diferentes contextos de uso (Kroes, 2012; Houkes; Vermaas, 2010;
Kroes; Verbeek, 2014; Winner, 1980).
Foram definidas grandes categorias analíticas, como indicadas e os 32
códigos destacados, foram agrupados em subcategorias e 5 categorias analíticas,
demonstrando a relação entre as políticas de CTI e os valores inerentes aos
artefatos tecnológicos.
Na categoria da Não Neutralidade da Lei como Artefato Tecnológico,
observou-se a presença de ideologias liberais e neoliberais, especialmente ligadas à
Revolução 4.0 e suas ramificações, como a criação de redes de professores i4.0 e
Indústria 4.0 (Laval, 2019). A linguagem utilizada destaca princípios empresariais de
performance e investimento, sugerindo um único caminho disruptivo para o
19
progresso (Laval, 2019). A Educação é tratada como um bem essencialmente
privado, com valor econômico e regida por relações de mercado (LAVAL, 2019). Os
artefatos tecnológicos refletem essa visão ao promoverem treinamentos de
habilidades, formação de professores i4.0 e outras medidas que priorizam a
competitividade (Laval, 2019).
Esses artefatos contribuem para a visão da escola como uma antessala da
vida econômica e profissional, negligenciando a formação cidadã e a igualdade de
oportunidades (Laval, 2019). A educação permanente é promovida para adaptar os
trabalhadores à tecnologia, alinhando-se aos interesses das organizações
capitalistas (Faria; Meneghetti, 2009).
Na Segunda Categoria, do Determinismo Tecnológico, percebeu-se a ideia de
que a tecnologia exerce uma influência determinante na sociedade, orientando seu
curso de maneira inexorável (Cupani, 2017), aspecto que remonta ao século XIX,
impulsionado pela intenção técnica do Estado e pela busca de lucro da burguesia
(Ellul, 1964).
O progresso técnico é autodirigido e o ser humano é reduzido a aceitar a
opção tecnicamente melhor, tornando-se cada vez mais técnico em sua sociedade
(Ellul, 1964). Os trechos destacados para essa categoria refletem a forte presença
do Determinismo Tecnológico.
Em relação à Terceira Categoria, da Linearidade Tecnológica, importa
evidenciar a não linearidade tecnológica, conquanto a natureza social da mudança
tecnológica em questão, quais sejam, o letramento digital, capacitação digital para o
mundo do trabalho, inclusão digital, emancipação do trabalhador, desenvolvimento
social e tecnológico, entre outros objetivos dos ordenamentos aqui repetidamente
citados, e portanto, em última análise, a eficácia e êxito daquelas legislações, para
além de mera positividade, não estão definidos de antemão, tampouco podem ser
frutos de importação ou empréstimo de outros países (Transdução ou Isomorfismo
das Políticas de CTI) ou de fórmulas prontas a priori. Estabelecendo-se que o
desenvolvimento tecnológico não é um processo linear de acumulação de melhoras,
mas processo multidirecional e quase evolutivo de variação e seleção. Motivo que
nos faz conclamar sua própria interpretação e análise críticas.
A concepção linear de desenvolvimento, baseada na ideia de que o progresso
social depende do crescimento econômico, que por sua vez depende do
20
desenvolvimento tecnológico sem interferências políticas ou sociais, não é aplicável
na sociedade atual (Ellul, 1964). Essa linearidade favorece o tecno-monopólio e a
eliminação da diversidade, prejudicando a manutenção da tecnodiversidade (Hui,
2020).
Além disso, é relevante considerar a contribuição da não linearidade
tecnológica para um horizonte de decolonialidade, desconstruindo a ideia de
superioridade do modelo europeu e destacando a importância da educação e
formação intercultural (Candau, 2013). A transformação operada pela tecnologia
afeta diversas áreas da experiência humana e também modifica o Estado e a
legislação em uma sociedade tecnológica (Ellul, 1964).
A centralidade em relação aos temas da inovação nos textos concorre com a
tendência mundial para tanto para a composição de políticas públicas de CTI, em
detrimento do próprio uso da tecnologia e, considerando que a atividade inovadora é
muito mais concentrada geograficamente do que a produção da tecnologia e sua
própria difusão (Edgerton, 1999, p. 7), é possível inferir que a construção do artefato
tecnológico em si orienta-se linearmente pelas produções de países centrais na
produção do que hegemonicamente se entende por ciência. A leitura da
transformação, em diversos níveis, operada pela tecnologia, é um uma leitura
ideológica (Cupani, 2017, p. 199). Além do mais, a experiência humana, nos mais
diversos aspectos, modifica-se ao passar pela intermediação de um artefato
(Cupani, 2017). Como é o caso da Lei, que regula, determina e representa
variações, com graus diferentes de intensidade, na vida daqueles sob sua égide.
O PL proposto, não obstante suas alterações (11 emendas ao total) ocorridas
durante seu iter constitutivo-formativo, até a sua culminação na Lei 14.522/2023
(que instituiu a PNED), altera disposições da Lei 9.394/1996 (LDB), bem como
das Leis nºs 9.448/1997 (transforma o INEP em autarquia federal e outras
providências. A alteração insere, como dito anteriormente, o inciso X a essa Lei do
INEP, com a proposição de instrumentos e avaliação, diagnóstico e recenseamento
estatístico do letramento e da educação digital nas instituições de educação básica e
superior) 10.260/2001 (Dispõe sobre o Fundo de Financiamento ao estudante do
Ensino superior e da outras providências FIES. A Lei atual do PNED, inseriu na Lei
do FIES, a questão da priorização dos programas de imersão de curta duração em
técnicas e linguagens computacionais no âmbito da Política Nacional de Educação
21
Digital) e 10.753/2003 (Que institui a Política Nacional do Livro). A alteração inicial
propunha a ampliação daquilo que seria considerado livro, para os fins da lei. Como
descrito anteriormente, acabou vetado).
A centralidade em relação aos temas da inovação nos textos concorre com a
tendência mundial para tanto para a composição de políticas públicas de CTI, em
detrimento do próprio uso da tecnologia e, considerando que a atividade inovadora é
muito mais concentrada geograficamente do que a produção da tecnologia e sua
própria difusão (Edgerton, 1999, p. 7), é possível inferir que a construção do artefato
tecnológico em si orienta-se linearmente pelas produções de países centrais na
produção do que hegemonicamente se entende por ciência.
A Não Linearidade do Desenvolvimento Tecnológico em relação ao
desenvolvimento linear científico, enquanto degraus necessários e últimos para o
desenvolvimento social e econômico é bastante ligada à Categoria do Determinismo
Tecnológico, por quanto resguarda certos valores que indicam haver somente um
caminho a ser seguido, uma lógica única específica e determinante.
Na Quarta Categoria, da Universalidade Tecnológica e da utilização do
Isomorfismo ou Transdução das Políticas de CTI na Lei enquanto um Artefato
Tecnológico, destacam-se várias referências importantes.
Inicialmente, são identificados os Paradigmas da Política de CTI (Velho,
2011), como Ciência como Motor do Progresso, Ciência como Solução e Causa de
Problemas, Ciência como Fonte de Oportunidade Estratégica e Ciência para o Bem
da Sociedade. Observa-se também a emulação do modelo europeu, particularmente
o modelo português, como fonte de inspiração para as diretrizes das políticas de CTI
(Brasil, 2020).
A crítica ao isomorfismo das políticas de CTI era percebida como um
problema desde o início dos anos 2000, notabilizando-se o PLACTS - Pensamento
Latino-Americano em Ciência, Tecnologia e Sociedade, originado nos anos 1960
(Elzinga; Jamison, 1995; Dagnino, Thomas, 1999; Guston, 2000; Kuhlman, 2001;
Laredo; Mustar, 2001; Velho, 2004), o qual não deveria ser a regra (Vellho, 2011).
Ademais, essa ideia de que ao se adotar uma tecnologia estrangeira, sujeitamo-nos
apenas a uma pequena dependência é um engano (Hui, 2020).
Os artefatos aqui analisados parecem confluir para a tendência da
internacionalização da Política de CTI, cuja difusão ocorrer através das relações
22
internacionais em Política de Ciência, Tecnologia e Inovação, normalmente
mediadas por organizações internacionais e organismo multilaterais, cujo
direcionamento ou modelo a ser seguido é linear e associa-se estreitamente ao
conceito dominante e hegemônico do que seja ciência (Velho, 2011). Entretanto, é
necessário descartar a ideia universal da tecnologia, reconhecendo-a como
internacional, não universal (Hui, 2020).
“O processo de universalização funciona de acordo com diferenças de poder:
o poder tecnologicamente mais forte exposta conhecimento e valores para o mais
fraco, e como consequência destrói interioridades” (Hui, 2020, p. 62). Isso é
evidenciado pela predominância dos paradigmas europeus nas políticas de CTI
brasileiras, enquanto se negligencia a identidade nacional e regional (Brasil, 2020).
Assim, apesar das diferenças no desenvolvimento tecnológico, que definem
as fronteiras entre culturas e poderes, os olhos continuam voltados para a Europa,
mesmo que as realidades sociais, econômicas, culturais, educacionais e
tecnológicas sejam distintas.
Confluíram ainda na composição da análise, para além das categorias
resumidamente indicadas acima, a ausência de participação popular direta na
realização daqueles Artefatos Tecnológicos mencionados. Levou-se em conta
também a Consulta Pública para a revisão da estratégia Brasileira para a
Transformação Digital, o E-Digital, realizada pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e
Inovação em setembro de 2021, cujos temas e colaboradores ativos, alguns dos
quais consultores para gestão e performance para desenvolvimento de talentos no
Brasil, foram reforçados e trazidos em diversas postagens em redes sociais pela
propositora do PL inicial.
O imbricamento evidenciado pela pesquisa parece reforçar, através da
composição dos seus atores aquele elemento humano na categorização da teoria
Intencional - Conceitual dos Artefatos, de Burazin (2016) e como ela ajuda a explicar
o papel da comunidade ‘relevante’ na própria constituição e participação de outras
regras jurídicas secundárias em um sistema jurídico. De modo que é possível dizer
que sua “essência” não é “real”, natural ou ontologicamente objetiva, sendo sua
“natureza” constituída por conceitos e intenções, declaradas ou não, de seus
criadores e a partir delas serão determinadas suas características relevantes para
que um artefato seja de um ou outro tipo (Burazin, 2016, p. 386).
23
Diga-se ainda, que, tendo por consideração as postagens realizadas pela
então propositora, é possível perceber a todo momento, os aspectos triunfalistas
ligados à tecnologia, como se oferecessem sempre e somente “soluções
prometeicas” (Hui, 2020).
Além de certo caráter autopromocional e autoral do PL conflagrado, não
qualquer tipo de questionamento crítico com relação à compactação da educação ao
digital ou, como a terminologia reducionista do capital requer, à educação 4.0.
Parte-se da premissa inquestionável e irrefutável, de que a tecnologia aqui,
constituinte e voltada à educação digital, seja de fato benéfica e única via possível
para o seu “desenvolvimento”, conforme padrões internacionais a serem alcançados.
Aliás, a ausência de questionamentos em relação ao tema é também
verificável ou, em verdade, inverificável, porquanto ausente, durante os “debates”
realizados nas Comissões Permanentes específicas junto à Câmara dos Deputados,
permanecendo a constância mítica e irretocável associada à tecnologia. Não
esse questionamento em todo seu percurso, por qualquer partido político ou algum
dos seus pareceristas, nem mesmo por aqueles que também se designavam como
Professores.
Como questiona Sarewitz; Pielke (2007), como sabemos se um determinado
portifólio de investigação é potencialmente mais eficaz que outro para justificar as
escolhas que concerne às políticas científicas e tecnológicas? Muitas vezes, uma
escolha política científica não é necessariamente mais eficiente ou melhor em
relação a outras, mas sua acolhida e fomento político pode residir na confluência de
tecnologia avançada, ciência de “alto prestígio”, incentivos do mercado e mesmo
ideologias (Sarewit; Pielke, 2007, p. 6).
Conclusões
A pesquisa apontou para uma necessidade de uma nova perspectiva para a
interpretação da lei, de modo a torná-la mais acessível para aqueles que da
tecnicidade jurídica prescindem. Ao aproximar os estudos de Ciência, Tecnologia e
Sociedade da Ciência Jurídica, novas possibilidades para uma interpretação mais
acessível e crítica se somam ao cabedal da exegese jurídica e talvez possamos falar
em exegese jurídica e sociedade (Rodrigues, 2023). Embora não exaustiva,
24
evidenciou-se a inevitabilidade do valor da eficiência, inquestionado nos textos
analisados durante todo o seu processo de realização, assim como, a partir das
categorias analisadas, um reforço tecnocrático jurídico, um distanciamento de
participação popular e códigos técnicos que permeiam a composição dos artefatos
em apreço.
Por fim, havia ainda o desejo de evidenciar mais profundamente a relação dos
artefatos tecnológicos com a questão da educação, uma vez que alteram
disposições da Lei 9.394/1996 (LDB) e outras relativas às Políticas de Educação
Nacional, formando “malhas-de-textos-legais” e “redes-de-sentido-textuais”, com as
mesmas. Porém gostaria de registar, não obstante, que o PNED parece confluir com
as estratégias e incidência empresarial na apolítica educacional brasileira,
contribuindo para a reconfiguração do espaço público na condução de políticas
educacionais. Aspecto que considero importante para a própria caracterização
artefactual da lei, ou seja, conhecer suas intenções, declaradas ou não.
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V.22, 48 - 2024 (maio-agosto) ISSN: 1808-799 X
INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL E EDUCAÇÃO TECNOBANCÁRIA: IMPACTOS NO
PROCESSO ENSINO-APRENDIZAGEM1
Tiago Fávero de Oliveira2
Breno Apolinário da Silva3
Resumo
O objetivo deste estudo é analisar como a mudança tecnológica altera processos produtivos e
educativos. O texto aponta que, apesar do apelo de modernização e inovação, a difusão de
tecnologias de inteligência artificial altera a relação entre linguagem e pensamento, produzindo uma
educação tecnobancária cujos efeitos geram submissão, dominação, exploração e universalização de
um pensamento único. O artigo parte das análises de Marx sobre a maquinaria e se desenvolve
apontando alterações, contradições e desafios sobre o tema. Ao final, são apresentados caminhos
para o enfrentamento da questão no sentido de gerar uma educação comprometida com os
interesses de emancipação da classe dominada.
Palavras-chave: Educação tecnobancária; Inteligência Artificial; Educação.
INTELIGENCIA ARTIFICIAL Y EDUCACIÓN TECNOBANCARIA: IMPACTOS EN EL PROCESO DE
ENSEÑANZA-APRENDIZAJE
Resumen
El objetivo de este estudio es analizar cómo el cambio tecnológico cambia los procesos productivos y educativos.
El texto señala que, a pesar del atractivo de la modernización y la innovación, la difusión de tecnologías de
inteligencia artificial cambia la relación entre lenguaje y pensamiento, produciendo una educación tecnobancaria
cuyos efectos generan sumisión, dominación, exploración y universalización de un solo pensamiento. El artículo
parte del análisis de Marx sobre la maquinaria y se desarrolla señalando cambios, contradicciones y desafíos en
el tema. Al final, se presentan formas de afrontar el tema para generar una educación comprometida con los
intereses de emancipación de la clase dominada.
Palabras clave: Educación tecnobancaria; Inteligencia artificial; Educación.
ARTIFICIAL INTELLIGENCE AND TECHNOBANKING EDUCATION: IMPACTS ON THE
TEACHING-LEARNING PROCESS
Abstract
The objective of this study is to analyze how the technological change changes production and educational
processes. The text points out that, despite the appeal of modernization and innovation, the diffusion of artificial
intelligence technologies changes the relationship between language and thought, producing a techno-banking
education whose effects generate submission, domination, exploration and universalization of a single thought.
The article starts from Marx's analysis of machinery and develops by pointing out changes, contradictions and
challenges on the topic. In the end, ways are presented to face the issue in order to generate an education
committed to the interests of emancipation of the dominated class.
Keyword: Techno-banking education; Artificial intelligence; Education.
3Bacharel em Engenharia Civil pela Faculdade Metodista Granbery, Minas Gerais e Licenciado em Física pela
Universidade Federal de Juiz de Fora. Professor da Secretaria de Estado de Educação de Minas Gerais.
Email: brenoapolinariosilva@gmail.com. Lattes: https://lattes.cnpq.br/8925671529021287.
ORCID: https://orcid.org/0009-0009-0172-9836.
2Doutor em Políticas Públicas e Formação Humana pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(PPFH/UERJ). Professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Sudeste de Minas Gerais
Campus Santos Dumont. Email: tiago.oliveira@ifsudestemg.edu.br.
Lattes: http://lattes.cnpq/3796451743136890. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5117-6274.
1Artigo recebido em 09/03/2024. Primeira avaliação em 14/03/2024. Segunda avaliação em 25/04/2024.
Aprovado em 28/07/2024. Publicado em 07/08/2024.
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v22i48.62242.
1
Introdução
O avanço do capital, sobretudo no período neoliberal de uma crise estrutural,
faz com que novos meios e estratégias de adaptação sejam impostos. Nesse
contexto, diversos movimentos são identificados como estratégias para ampliar a
exploração do trabalho e do conhecimento humano. No caso da educação,
percebe-se que novos modelos são apresentados e implementados como
exigências de uma modernização de processos, métodos e recursos que são
necessários e urgentes. Contudo, o que se observa é que tais estratégias, na
realidade, se revelam como uma postura reacionária e conservadora, que retrocede
e ataca direitos, confisca conhecimentos e atua na desumanização de homens e
mulheres.
O trabalho se divide em três grandes partes: na primeira serão apresentadas
discussões sobre o avanço da maquinaria, apontando para as consequências na
esfera produtiva no sentido de alterar o trabalho, aumentando sua intensidade,
precarização e controle. Na segunda parte, intenta-se relacionar a transformação
tecnológica e a inovação para o contexto educacional, identificando movimentos e
efeitos deste movimento de forma mais ampla. Na terceira e última seção, é
desenvolvida uma reflexão acerca dos recursos digitais, da inteligência artificial e
das novas tecnologias no processo de ensino aprendizagem. A conclusão do estudo
permitirá reconhecer alterações na relação entre linguagem e pensamento no
sentido de difundir um modelo tecnobancário de educação, tendo em vista a
implementação de uma formação humana centrada num pensamento único.
O materialismo histórico e dialético serve como aporte teórico e metodológico
deste trabalho. A pesquisa se constitui numa análise dialética da realidade, cujos
resultados tendem a se materializar em teorias e categorias que voltarão à realidade
no intuito de gerar conhecimento e resistência face aos ataques. Toda análise é feita
na perspectiva de apontar contradições e limites do uso das tecnologias tal como é
feito atualmente, cujos efeitos são mascarados a fim de que o avanço do movimento
em questão seja ainda mais radical. Refletir sobre isso é necessário para que se
tome consciência da situação real, identificando estratégias de atuação do capital
objetivando a construção de caminhos de resistência.
2
O objetivo do texto é entender como o desenvolvimento da tecnologia altera
não processos produtivos como também processos educativos dentro dos quais
as estratégias de apropriação do conhecimento, da ciência e da tecnologia visam
maior dominação e exploração dos indivíduos, tendo como alvo a ampliação da
acumulação capitalista. Nesse sentido, identifica-se como este movimento, à serviço
do capital, se aproxima da educação e como a tecnologia, entendida como um
fetiche, assume o lugar humano, que se aliena e se reifica cada vez mais. Superar a
educação tecnobancária através de um projeto de formação humana que seja
emancipador e libertador é o caminho desafiador, complexo, necessário e urgente
para a transposição e a reversão desse quadro.
Análise da tecnologia a partir das reflexões de Marx acerca da maquinaria
Em sua densa e cuidadosa análise sobre o processo de produção capitalista,
Karl Marx (2017), no primeiro livro de O Capital, parte da análise da mercadoria,
sinaliza para a produção de valor a partir do trabalho e realça uma série de
conceitos e categorias que marcam o processo de desenvolvimento do modo de
produção capitalista. Como consequência deste estudo, o autor aprofunda sua tese
acerca da produção do mais-valor relativo, a partir da qual avança para a
compreensão de outros conceitos, quais sejam: a cooperação, a divisão do trabalho,
a manufatura e a produção industrial. Neste ponto é possível analisar uma
importante reflexão acerca do fenômeno chamado por ele de maquinaria.
No modo de produção capitalista, a maquinaria é responsável por “baratear
mercadorias" e encurtar a parte da jornada de trabalho que o trabalhador necessita
para si mesmo, a fim de prolongar a outra parte de sua jornada, que ele
gratuitamente para o capitalista. A maquinaria é meio para a produção de
mais-valor” (Marx, 2017, p. 445). No entanto, ao comparar o desenvolvimento do
trabalho humano com e sem o suporte de tecnologia e ferramentas, o autor afirma
que: “na ferramenta, o homem seria a força motriz, ao passo que a máquina seria
movida por uma força natural diferente da humana, como aquela derivada do animal,
da água, do vento etc.” (Marx, 2017, p. 446). Observa-se, assim, que o uso de uma
outra força que não a humana indica uma potência para a produção dentro do
3
modo capitalista, a saber: sua compatibilidade com a proposta de crescimento
exponencial e sem limites buscada pelo capital.
É por conta disso que se investe muito nos processos de contínua mudança
tecnológica, uma vez que a força motriz da máquina pode ser vista como menos
imperfeita, mais forte e menos limitada do que aquela fornecida pelo ser humano.
Isso indica que, com o passar do tempo, busca-se, cada vez mais o
desenvolvimento de tecnologias emancipadas do trabalho humano, que possam
funcionar de modo independente, incessante e intermitente, não regulada por limites
naturais e éticos, tendo como fundamento a busca pela ampliação das taxas de
acumulação.
A tecnologia vai se transformando e se adaptando às novas exigências do
processo de exploração de mais valia e expropriação do trabalho humano de modo
que o trabalhador seja cada vez menos necessário e mais oculto dentro do
processo. O próprio Marx destaca o argumento que sustenta essa visão quando
afirma que “uma única máquina, assistida por um homem adulto ou mesmo um
rapaz, estampa tanta chita de quatro cores quanto antigamente o faziam duzentos
homens” (Marx, 2017, p. 465). Isso traz uma alteração importante em todo o
processo: a mudança do foco e do fundamento do sistema. Se antes era a máquina
e a tecnologia que tinham de se adaptar ao trabalho humano, o que se vê, hoje, é a
necessidade cada vez maior de o trabalhador precisar se adaptar às novas
demandas do processo.
Neste ponto, é crucial fazer menção a um fato: apesar de toda a aparente
independência e autonomia da produção e da mudança tecnológica em relação ao
trabalho humano, não se pode esquecer que a máquina e a tecnologia não se
produzem ou se operam sozinhas. Disso é possível inferir que o capital ainda
depende do trabalho e do conhecimento humano no processo de produção de valor:
“como qualquer outro componente do capital constante, a maquinaria não cria valor
nenhum, mas transfere seu próprio valor ao produto, para cuja produção ela serve”
(Marx, 2017, p. 460).
Esta é a razão que justifica o fato de o capital continuar se apropriando do
conhecimento produzido pelo trabalhador (via ciência, tecnologia e inovação) como
mecanismo para a acumulação capitalista. É neste sentido que Vera Cotrim (2009)
afirma que o capital se apropria do conhecimento tanto para aumentar a
4
produtividade quanto para transformar o conhecimento em veículo para a produção
de mais-valor. Em ambas as situações, o que se observa é que o conhecimento do
processo de trabalho desenvolvido e pertencente ao trabalhador acabam sendo
apropriados e assumidos pelo capital via mudança tecnológica. A consequência
disso é a inclusão do conhecimento apropriado na reconstrução do processo de
trabalho e repassado, em última análise, para os trabalhadores com o aumento dos
mecanismos de controle, intensificação e exploração.
Concorda-se, também, com Sedi Hirano (2011), para quem, da mesma forma
que a acumulação capitalista expropria não meios de trabalho ou mercadorias,
mas também conhecimento da classe trabalhadora. Isso se realiza quando o modo
de produção capitalista se apropria da ciência a partir de diferentes modos e
estratégias. Importante registrar que boa parte da pesquisa científica é realizada
para a satisfação dos interesses capitalistas, ou seja, muitos dos temas de pesquisa
são definidos e financiados para finalidades bem definidas pelo capital. A produção
de conhecimentos científicos, tecnológicos e de inovação ao invés de produzirem
melhores condições de vida acabam contribuindo com a acumulação capitalista ao
possibilitarem a substituição do trabalho vivo por trabalho morto, aumentando a
produção e, consequentemente, a mais-valia relativa.
A descartabilidade do trabalhador e o aumento da intensidade e da
exploração do trabalho são duas estratégias que andam juntas dentro do processo
de avanço da maquinaria. Ao refletir sobre o país pioneiro da Revolução Industrial,
Marx é direto ao afirmar que “em nenhum lugar se encontra um desperdício mais
desavergonhado de força humana para ocupações miseráveis do que justamente na
Inglaterra, o país das máquinas” (Marx, 2017, p. 467). Isso não deve ser visto como
um efeito perverso ou algo que deu errado e saiu do controle. Ao contrário: é um fato
que faz parte do processo projetado, sendo, inclusive, um de seus objetivos. Ao
substituir trabalho vivo por maquinaria (trabalho morto), o capital libera uma
quantidade de trabalhadores que ficarão desempregados e, a partir disso, faz com
que os que continuam empregados tenham que se sujeitar e aceitar todo tipo de
aumento da jornada, de intensificação e exploração. Isso significa que o capital dita
as regras do trabalho a partir dos seus interesses de acumulação, ficando indiferente
às condições de vida que essas regras impõem à classe trabalhadora.
5
A necessidade de que sejam aceitos limites cada vez mais intensos de
trabalho por conta do número excessivo de trabalhadores disponíveis para assumir a
colocação do trabalhador insatisfeito é uma estratégia do capital para apaziguar a
luta de classes e esvaziar as demandas operárias. Num mercado de trabalho
regulado pela lei da oferta e da procura, quanto maior o número de trabalhadores
desempregados disponíveis, menor pode ser o salário pago e maior e mais intensa a
jornada de trabalho. É neste sentido que se entende que a maquinaria reduz os
limites e barreiras humanas para ampliar, para além dos limites naturais, a jornada, a
intensidade e a produtividade do trabalho. Ainda que a sociedade se organize para
reagir a este movimento, o que se observa é que o capital sempre irá contornar essa
resistência impondo novos meios para a intensificação do trabalho dentro dos limites
fixados pela jornada de trabalho máximo4.
O aumento da intensidade e da exploração são possíveis, dentro do modo de
produção capitalista, pois, com o avanço da maquinaria, são criadas condições para
o aumento do controle e da vigilância do capital sobre o trabalho. A partir deste
ponto, o indivíduo deixa de ser o centro e a referência a partir do qual o processo de
produção irá acontecer para ser apenas mais uma peça da engrenagem que, agora,
precisa trabalhar a partir do tempo e do controle da máquina. É como se a máquina
se transformasse em sujeito e o homem em objeto, uma vez é ela que dita toda a
ordem a intensidade do movimento em uma fábrica. Tal situação não é tranquila,
nem confortável para a classe trabalhadora, uma vez que a intensificação do
trabalho traz danos à saúde do trabalhador5. O aumento da exploração, a diminuição
dos salários, o aumento do desemprego, a miséria e a pobreza são produtos reais
5O primeiro livro de O Capital traz uma série de exemplos que apresentam relatos de sucessivos
acidentes de trabalho em diferentes ramos da produção. Além disso, também são apresentados
indicadores obtidos a partir de relatórios e dados oficiais sobre a diminuição da expectativa de vida e
recorrentes problemas de saúde nos operários. Tais problemas e acidentes são causados pelas
condições desumanas e degradantes do trabalho no contexto da expansão da Revolução Industrial.
4Marx mostra, em O Capital, que muitas formas foram historicamente utilizadas pelos empresários
para criar caminhos de não cumprimento da legislação trabalhista acerca da regulação e dos limites
impostos à jornada de trabalho. Na mesma obra também são destacadas várias situações em que o
Poder Judiciário se posicionava a favor do capital, em detrimento da classe trabalhadora. As próprias
sanções e multas (quando raramente aplicadas) eram muito pequenas frente ao lucro elevado que as
empresas auferiam com o descumprimento da lei, mostrando que até isso era um bom negócio.
Atualmente, o cenário real não se afasta daquele descrito por Marx: com a aprovação da
contrarreforma trabalhista, o capital avança radicalmente sobre o trabalho no sentido de formalizar o
trabalho informal, legalizar e aprofundar a exploração, instabilizar trabalhadores, permitir o trabalho
intermitente dentre uma série de outras medidas
6
do avanço do modo de produção capitalista6. O crescimento assustador do número
de acidentes de trabalho também é verificado e explicado pelo fato de que operários
extenuados, cansados e sem formação passam, com o avanço da maquinaria, a
usar equipamentos sem segurança.
O que se aqui é que, ao assumir o lugar de muitos trabalhadores, a
maquinaria aumenta a concorrência entre eles, diminuindo a coesão da classe e
enfraquecendo qualquer iniciativa de resistência operária. A competitividade se
fundamenta sobre a exploração exagerada do trabalho, uma vez que “a capacidade
de resistência dos trabalhadores diminui em consequência de sua dispersão” (Marx,
2017, p. 533). Além disso, faz-se mister destacar que a maquinaria é uma forma de
chantagear os trabalhadores, sobretudo em períodos de greve. Nesse contexto de
aumento da exploração do trabalho através da competitividade gerada pela
maquinaria, o capital aproveita para empregar a família toda. Se antes eram apenas
os homens que trabalhavam (e precisavam ganhar um salário capaz de sustentar
toda a família), agora todos os membros da família são jogados ao mercado de
trabalho (mulheres e crianças), diminuindo o valor do salário necessário para a
reprodução e se apropriando tanto do trabalho doméstico quando da educação das
crianças. É neste sentido que os pais se apresentarão como portadores do direito de
colocarem crianças para trabalhar alegando que isso será uma forma de
aprendizado de um ofício e caminho para o exercício e o crescimento pessoal. Na
verdade, o que se vê, aqui, é uma pauta que mercantiliza tudo e que, por conta
disso, é compatível com as demandas do capital. O modo de produção capitalista
leva os pais à exploração dos filhos, pois transforma tudo em mercadoria, em força
de trabalho para a acumulação capitalista.
6Ao refletir sobre a lei geral da acumulação capitalista, Marx (2017), em O Capital, mostra que apesar
de muitos operários na Inglaterra trabalharem de forma árdua e ininterrupta, eles acabavam passando
fome. Isso indica que, num contexto de tamanha miséria, a situação da classe trabalhadora era de
profunda calamidade, uma vez que, quando a pessoa está passando fome, ela perdeu todas as
outras condições para viver, como moradia, vestuário, saúde, saneamento, aquecimento, entre
outros. A mesma situação degradante da classe trabalhadora é descrita por Engels (2010), quando
apresenta, com detalhes, as condições de vida, de moradia e de saúde às quais os trabalhadores
fabris ingleses eram submetidos.
7
A indústria e a escola 4.0: impactos do avanço do capital e da mudança
tecnológica na educação
O capital não altera as relações de produção e familiares como foi
pontuado na seção anterior: ele também altera e cria demandas para a educação.
Recapitulando um pouco da história, é possível perceber que no contexto de Marx, a
grande indústria precisou operar com um ser humano fragmentado, unilateral, que
se comportava como um acessório da máquina. Isso tem relação com a
necessidade de o modo de produção capitalista transformar trabalho complexo em
trabalho simples (Netto; Braz, 2012; Rubin, 1987). Esta redução mantém relação
direta com a demanda por formação do trabalhador, pois, quanto mais se simplifica o
processo de trabalho, menores serão os gastos com a sua formação e,
consequentemente, mais baixo poderá ser o seu salário (Cotrim, 2009)7.
Observa-se, aqui, que prevalece a necessidade de simplificar o processo de trabalho
complexo, tendo em vista a desqualificação daqueles que trabalham, tal como
desenvolvido por Marx em O Capital:
Em todo ofício de que se apodera, a manufatura cria, portanto, uma
classe dos chamados trabalhadores não qualificados, antes
rigorosamente excluídos pelo artesanato. Ao mesmo tempo que
desenvolve, à custa da capacidade total de trabalho, a especialidade
totalmente unilateralizada, que chega ao ponto da virtuosidade, ela
começa a transformar numa especialidade a falta absoluta de
desenvolvimento. Juntamente com a gradação hierárquica, surge a
simples separação dos trabalhadores qualificados e não qualificados.
Para estes últimos, os custos de aprendizagem desaparecem por
completo, e para os primeiros esses custos são menores, em
comparação com o artesão, devido à função simplificada. Em ambos
os casos diminui o valor da força de trabalho (MARX, 2017, p. 424).
O processo de transformação da tecnologia e o consequente aprofundamento
das suas formas de apropriação pelo capital produz uma série de novas realidades e
conceitos. Schwab (2016), pontua que o termo Indústria 4.0 foi criado em 2011 no
intuito de relacionar as mudanças tecnológicas com a quarta fase da revolução
industrial. A ideia visa o “despertar digital automizado do trabalho morto, que como
uma força autônoma assume cada vez mais o controle sobre o trabalho vivo”
7Importante relacionar este ponto com a divisão que o modo de produção capitalista opera entre
trabalho manual e trabalho intelectual, sinalizando para a divisão de trabalhadores técnicos,
científicos e administrativos e trabalhadores manuais ou braçais, impondo uma divisão no seio da
própria classe trabalhadora como mecanismo de enfraquecimento e diminuição da solidariedade de
classe.
8
(Araújo, 2022, p. 23). Surge, assim, uma série de novos conceitos que começam a
se tornar cada vez mais recorrentes no mundo do trabalho, como automação,
internet das coisas (IoT), aprendizado da máquina (machine learning), era digital,
algoritmo, inteligência artificial, robótica, entre outros.
Todas as mudanças no mundo 4.0 vão gerar, como destacado
anteriormente, a necessidade de mudanças no perfil de trabalhador que é
requisitado pelo modo de produção vigente, trazendo demandas e impactos para os
processos educativos. Tais situações desencadeiam e inauguram mudanças que
chegam à escola sob a forma do que se conhece como educação 4.0. É possível
entender a relação entre escola e indústria 4.0 quando se observa que:
A educação 4.0 surge no contexto da chamada quarta revolução
industrial e refere-se aos desdobramentos desta no campo
educacional, visando implementar no sistema de ensino a linguagem
computacional, as tecnologias da informação, a robotização, a
inteligência artificial e a automação, com o objetivo de preparar a
mão de obra para atender às necessidades da indústria (SILVA;
PEREIRA, 2021, p. 133).
A princípio, percebe-se que a educação 4.0 assume duas formas específicas
e complementares dentro do campo escolar. A primeira forma diz respeito a
inovações trazidas para o currículo. Sob o pretexto de preparar indivíduos ativos,
conectados, versáteis e inseridos nas mudanças tecnológicas do mundo atual,
novos saberes e fazeres devem participar do currículo escolar. Caetano e Porto
Júnior (2021), ao pesquisarem sobre o tema, identificaram conceitos e métodos que
começam a fazer parte do discurso escolar, a fim de orientar mudanças no currículo,
tais como: aprender fazendo (learning by doing), cultura maker, ensino híbrido,
metodologias ativas, sala de aula invertida, novas mídias, habilidades digitais,
empreendedorismo, competências socioemocionais, inovação e STEAM8.
A inclusão destes conteúdos, métodos e propostas no currículo é feita sob o
argumento de que o avanço tecnológico é um caminho único, necessário, urgente e
sem volta: a humanidade não tem uma alternativa à educação 4.0. Prevalece o
argumento de que a não adesão a este universo implica permanecer no atraso e que
todo discurso contrário deve ser visto como obsoleto9. Além disso, o apelo de
9Importante destacar que essa ideia de modernização, tal como pontuado por Laval (2004) não é
neutra. Neste contexto, vale resgatar a ideia de modernização do atraso. Para sua melhor
8Sigla em inglês (Science, Technology, Engineering, Arts, Mathematics) que sinaliza para a
integração dessas áreas de conhecimento na resolução de problemas concretos.
9
construir competências e habilidades necessárias para a inserção em um mercado
de trabalho radicalmente interativo, digital e desafiador também sustenta a proposta.
No entanto, tal argumento se mostra imerso numa contradição, uma vez que, frente
a tudo que foi exposto, é possível perceber que este movimento de reestruturação
tecnológica tem sido implementado no sentido de transformar trabalho vivo em
trabalho morto, gerando cada vez mais indivíduos desempregados10.
Além disso, é preciso destacar também que este discurso da educação 4.0
produz uma desconfiguração e uma limitação da função docente. Neste contexto, o
professor perde um pouco da profundidade de sua atuação e passa a ser apenas
um mediador e motivador do processo. O aluno, aqui, aprende sozinho, de forma
autônoma, através de práticas e metodologias ativas. É uma simplificação e redução
da educação, que perde sua abrangência teórica, emancipatória e humana e passa
a ser concebida apenas com a função de produzir adaptação da força de trabalho ao
sistema de produção. Sobre essas metodologias ativas e construtivistas focadas no
“aprender a aprender” e no “aprender fazendo”, Newton Duarte (2011) afirma que o
conceito de aprendizagem significativa acaba se tornando uma ideia ligada apenas
aos interesses e realidades dos estudantes, fundada em um ideário iminentemente
pragmático, representada por um projeto educacional raso, superficial, aligeirado e
que não traz nenhum tipo de expansão ou alargamento da visão do aprendizado,
das necessidades e das expectativas do processo de ensino e aprendizagem, nem a
10 Vale notar que este argumento, em última análise, se relaciona diretamente com a questão da
empregabilidade: um discurso perverso que transfere toda responsabilidade do desemprego ao
indivíduo, negando as causas sociais e sistêmicas que geram a falta de oportunidades de trabalho. A
estratégia aqui é mascarar a crise estrutural do mundo do trabalho e atribuir o desemprego ao
indivíduo que não reúne as competências e habilidades demandadas pelo mercado.
compreensão, é necessário recordar que no contexto político, econômico e social brasileiro das
décadas de 1960 e 1970, vários sociólogos se dedicaram à análise das transformações contraditórias
em que o desenvolvimento do país se deu. Florestan Fernandes (1975) analisou, neste ínterim, o
processo de revolução burguesa nacional dentro de um contexto de capitalismo dependente. A
conclusão do autor indicou que a natureza do processo de modernização conservadora do Brasil
impunha o fato de que, aqui, este movimento não se deu com a superação do atraso representado
pelas elites nacionais (sobretudo as elites agrárias), cuja atuação reforçava a situação de
dependência e subalternidade do país, visto apenas como fornecedor de matéria-prima bruta para os
países centrais. Muito pelo contrário, o caso brasileiro usou o atraso como motor de impulsionamento
da modernização (FERNANDES, 2009). Nessa mesma direção, sinaliza Francisco de Oliveira (2003)
para quem, no Brasil, foi o arcaico que alavancou o processo de expansão e acumulação capitalista,
produzindo, como consequência disso, uma pequena classe superprivilegiada e uma numerosa
massa de pobres e miseráveis. Não se nega, portanto, que o processo de modernização
conservadora do país tenha se dado a partir das marcas do atraso, dentre as quais se destacam o
autoritarismo, o coronelismo, a manutenção da exploração, da dependência e da desigualdade.
10
busca por uma educação crítica e libertadora. Neste sentido, o mesmo autor faz uma
crítica à aproximação entre educação e mercado:
Quanto mais a difusão do conhecimento for regida pelas leis de
mercado, mais superficial e imediatista vai-se tornando o
conhecimento oferecido aos indivíduos e mais superficiais e
imediatistas vão-se tornando as necessidades intelectuais desses
indivíduos. Temos assim um círculo vicioso no qual o objetivo do
lucro imediato vai gerando produtos mais ampla e facilmente
consumíveis e, por sua vez, as necessidades e as preferências dos
indivíduos vão-se empobrecendo cada vez mais. Nesse contexto,
defender o “aprender a aprender” é decretar a derrota do saber e
contribuir para o processo de esvaziamento dos indivíduos, processo
esse gerado pelo fato de o valor de troca ser a mediação universal
na sociedade capitalista (DUARTE, 2011, p. 175 176).
Este esvaziamento da formação escolar não é um erro de trajetória ou um
efeito indesejável, mas, como dito anteriormente, faz parte do projeto. As práticas
conservadoras do neoliberalismo precisam contar com reformas na educação na
perspectiva da difusão de valores e formação de subjetividades alinhadas aos
interesses do capital. A formação de uma subjetividade compatível com o mercado é
desenvolvida por Dardot e Laval (2016) quando apresentam o conceito de sujeito
neoliberal, entendido como o sujeito que explora a si mesmo, usando a forma
empresa como modelo para a realização da sua vida. Além de reificar e alienar
ainda mais o indivíduo, este modelo visa “fabricar homens úteis, dóceis ao trabalho,
dispostos ao consumo, fabricar o homem eficaz” (Dardot; Laval, 2016, p. 325).
A segunda forma de manifestação da educação 4.0 diz respeito à
plataformização do ensino, que se efetiva através do uso de recursos digitais e
tecnológicos no processo pedagógico no sentido de considerar a educação como
uma oportunidade de negócio para o capital. São vários os produtos educacionais
que são oferecidos por empresas para a educação: plataformas, aplicativos,
sistemas, aulas, cursos, programas, entre outros. Além de gerar possibilidade de
acumulação capitalista através da venda dessas mercadorias, estes recursos
contribuem para a lógica de formar subjetividades neoliberais e de limitar cada vez
mais a atuação de professores. Laval (2004) sinaliza para o fato de que a venda de
pacotes educacionais para o ensino dos estudantes e, também, na formação
docente constitui um mercado lucrativo e em expansão. Para funcionar e expandir,
este mercado precisa precarizar e esvaziar a formação docente por dois motivos:
11
gerar professores mais dependentes da tecnologia e, ao mesmo tempo, conquistar
clientes (professores) com menores condições técnicas de avaliarem a qualidade do
produto/mercadoria que estão consumindo.
Além disso, permanece aqui a máxima citada de transformar trabalho vivo
em trabalho morto, mediante a apropriação de aulas gravadas que são vendidas
para uma quantidade incalculável e ilimitada de estudantes que terão acesso a uma
educação que, apesar de promover interatividade e atualidade, farão um curso a
partir de vídeo aulas formatadas, assíncronas, sem possibilidade de debate ou
interatividade. É neste contexto que Silva (2020) reflete sobre o fenômeno da
uberização e da youtuberização docente. Segundo a autora, a uberização pode ser
caracterizada como “total instabilidade e ausência de direitos trabalhistas e
previdenciários” (Silva, 2020, p. 599), mediante a desoneração do empregador dos
cursos para a oferta do trabalho, maior possibilidade de monitoramento e controle do
que está sendo realizado e atrelando avaliação e responsabilização a partir da
imposição de metas. Ao lado disso, a youtuberização é entendida a partir do
momento em que o professor se transforma num produtor de conteúdo que ficará
disponível numa plataforma para um número muito grande de estudantes (a maioria
desconhecida pelo professor). Realça-se, assim, uma relação mercadológica e
comercial, dentro da qual cada vídeo aula produzida deverá ser avaliada
publicamente pelos clientes/usuários com um número específico de estrelas. A
relação entre os dois processos pode ser percebida quando se observa que:
Se a uberização rompe com a noção de serviço público e o destrói
junto com o magistério público, durante a pandemia a youtuberização
atinge o profissional da educação e remodela a sua relação com a
escola num processo que vem para aumentar a alienação e a
expropriação do trabalho docente (SILVA, 2020, p. 603).
É importante destacar que, apesar de prometer avanços, modernização e
facilidade de acesso, este discurso da educação 4.0 pode se converter num caminho
para ampliar ainda mais a desigualdade educacional que é uma marca antiga em
nosso país. Isso porque não se deve esquecer que a outra face da tecnologia é a
exclusão digital. Tal situação foi escancarada durante a pandemia, uma vez que
estudantes carentes ou que viviam em regiões sem conectividade estável tiveram
ainda mais dificuldades no acompanhamento de suas aulas. Dessa forma, ainda é
um desafio ou até mesmo uma contradição falar de uma educação digital e
12
tecnológica para estudantes que vivem de forma precária. Isso também se aplica
aos professores, uma vez que nem todos possuem a formação e letramento digital
necessário para a utilização destes recursos, gerando exclusão também no interior
do magistério. Este fenômeno é chamado por Silva (2020) de darwinismo
professoral.
O movimento da educação 4.0 está sendo abraçado, patrocinado e
impulsionado por setores influentes no Governo Federal. Nunes (2021), ao analisar
o tema, identifica pelo menos oito editais do Ministério da Educação e do Ministério
da Ciência e Tecnologia para estimular práticas relacionadas à educação 4.0 no
país. Além da oferta de editais, projetos e cursos, é interessante perceber que este
fenômeno também ganha força no discurso da gestão e da avaliação educacional.
Freitas (2018) ao refletir sobre a reforma empresarial da educação observa que
instrumentos importados da gestão das empresas privadas são trazidos para a
educação no sentido de gerar competitividade, aumentar o individualismo e
padronizar processos. Impostos de cima para baixo ou estimulados por processos
de avaliação e responsabilização, estas políticas produzem ainda mais
desigualdade, isolamento, precarização docente e estimulam a formação de uma
subjetividade neoliberal cada vez mais alienada, mercantilizada e sem condições de
organizar a resistência. Oliveira (2023) afirma que há, no Brasil, um movimento de
privatização por dentro do setor educacional, produzindo instituições estatais
não-públicas. Este processo é consequência do avanço neoliberal mediante três
caminhos: os instrumentos de gestão, avaliação e financiamento; as parcerias
público-privadas e o movimento de estreitamento curricular.
Inteligência Artificial e educação tecnobancária
A relação entre linguagem, pensamento e desenvolvimento humano foi
pontuada por uma série de trabalhos (Piaget, 1987; 1976; Vygotsky, 1991). Com as
mudanças da tecnologia, da internet e, sobretudo da inteligência artificial, o que se
observa é que esta relação tem sido desconfigurada. Ubal et al (2023) desenvolvem
o tema sinalizando para uma alteração na tríade entre estudante, conhecimento e
professor (Houssaye, 1988), destacando que recursos e aplicativos de inteligência
13
artificial de modo especial o uso do Chat GPT podem assumir tanto o lugar do
estudante, quanto do professor ou até mesmo do saber.
O argumento aqui utilizado reside no fato de que a estrutura da aula
(considerada como processo ensino e aprendizagem) é a linguagem. Dessa forma,
com o uso de uma linguagem provocada e produzida pela inteligência artificial, tanto
professor, quanto estudantes terceirizam para a tecnologia o seu pensamento
renunciando ao desenvolvimento de ambos. Recorre-se, aqui, ao pensamento de
Ludwig Wittgenstein, pensador austríaco que afirma que “os limites de minha
linguagem significam os limites do meu mundo” (Wittgenstein, 2011, p. 245). Nesse
sentido, essa alteração que a inteligência artificial provoca na tríade didática
desconfigura e prejudica o desenvolvimento da linguagem e, consequentemente, do
próprio desenvolvimento humano.
O resultado disso é o que se pode entender como uma educação
tecnobancária (Ubal et al, 2023). Este conceito é inspirado no conceito de educação
bancária de Paulo Freire (1994; 1996)11. Mediada pela tecnologia e pelos aplicativos
de inteligência artificial, a educação na era digital da inteligência artificial passa a ser
uma educação tecnobancária pois trata o estudante apenas como um receptor, um
depósito estanque de conhecimentos que lhe são transmitidos. É como se o
estudante terceirizasse para a tecnologia o seu próprio pensamento e sua forma de
se afirmar perante o mundo. O efeito disso, será a limitação do desenvolvimento do
pensamento e o aprofundamento de um pensamento único, sem crítica, sem
diversidade, fundado no modelo de competências simples, rasas, fragmentadas e
que empobrece a formação e confisca a capacidade criativa dos indivíduos.
Reafirma-se a questão de que com os dispositivos de inteligência artificial, a
tecnologia assume um lugar especificamente humano, interferindo na forma como os
indivíduos lidam com seus problemas. É uma situação de inversão dentro da qual os
aplicativos orientam, conduzem e ordenam a vida humana, retirando dela sua
consciência e sua autonomia: “con las inteligências artificiales generativas por
11 Muito mais que um método, a educação bancária criticada por Paulo Freire (1994; 1996) é uma
visão acerca do estudante e do processo de ensino e aprendizagem. Contempla uma situação em
que o estudante é uma parte inoperante do processo, um ser passivo sobre o qual o professor
deposita os conhecimentos que acha necessário, sem se importar se estes conhecimentos fazem ou
não sentido para a realidade na qual cada estudante está inserido. Neste caso, observa-se uma
educação do mero depósito de informações, que não produz diálogo, debate, emancipação e
autonomia. É a educação da repetição daquilo que está pronto e que nem sempre atende às
demandas que são apresentadas em cada situação específica.
14
primera vez contamos con dispositivos prácticamente de aceso universal capaces de
sintetizar y procesar la información, capacidad que era exclusiva de los seres
humanos” (UBAL et al, 2023, p. 50). Neste caso, faz-se mister reforçar que
tecnologias não são naturais, mas que fazem parte de um processo que pode ser
positivo ou negativo.
Prevalece, neste contexto, aquilo que Porto Júnior e San Segundo (2023)
chamam de visão naturalizada de tecnologia12, apartada do fenômeno da luta de
classes. Esta visão nega que a tecnologia, que é parte da cultura humana, seja
desenvolvida a partir da base material do trabalho, omitindo que as escolhas que
culturalmente são feitas pelos indivíduos partem de uma dimensão política. O efeito
disso é que ao naturalizar e fetichizar a tecnologia, acontece um processo de
desumanização. O conceito de fetiche da tecnologia é usado aqui para
mostrar que a tecnologia que nos é apresentada como politicamente
neutra, eterna, anistórica, sujeita a valores estritamente técnicos e,
portanto, não permeada pela luta de classes, é uma construção
histórica e social. E, assim como mercadoria, tende a obscurecer
relações de classe diluindo-as no conteúdo aparentemente não
específico da técnica (NOVAES, 2007, p. 75 76).
Ainda que o apelo para a difusão do uso dos aplicativos e recursos de
inteligência artificial na educação seja o de gerar uma maior autonomia e
versatilidade do estudante, que assume a centralidade do processo, o que se é o
oposto disso. Neste modelo, o centro é a competência e a burocracia, aliadas tanto
à criação de uma oportunidade de negócio como também de uma estratégia para o
desenvolvimento de um pensamento único. O estudante aqui é uma peça
meramente secundária que é operada pelo aparato tecnológico que se ocupa cada
vez mais em formar um indivíduo compatível com as demandas de acumulação do
capital. Ao invés de atuar no desenvolvimento integral de indivíduos críticos, aptos
ao exercício de uma cidadania política, social e econômica, trabalha-se apenas para
a criação de consumidores de conteúdos diante de uma educação sob demanda,
plataformizada e imediatista.
O discurso de que o estudante é protagonista e vai aprender o que quer,
quando quer e como quer é uma armadilha para aprofundar ainda mais a
desigualdade educacional, uma vez que fragmenta e empobrece a relação ensino e
12 Por visão naturalizada de tecnologia entende-se aquela perspectiva em que ela é considerada
neutra, autônoma e determinista, incapaz de se conter ou impossível de resistir.
15
aprendizagem. Acredita-se que o estudante não consegue realizar tais escolhas e
que, por conta disso, o professor profissional formado e habilitado para o exercício
profissional da docência deverá fazer isso. O risco que se corre aqui é que
disciplinas mais complexas e com maior nível de dificuldade sejam preteridas diante
de uma série de assuntos mais simples e superficiais13.
O que se aqui é a ocultação do conteúdo como centro do processo de
ensino e aprendizagem, uma desescolarização da instituição escolar, mediante a
síntese malfeita entre um escolanovismo interpretado de forma equivocada e um
tecnicismo empobrecido, implementados sob a falácia de uma neutralidade
científica, da racionalidade, da modernização, da eficiência e da produtividade.
Importante destacar que a atribuição de problemas que não são escolares às
escolas implica em dois problemas. O primeiro é o citado esvaziamento da escola
das funções para as quais ela está habilitada a desempenhar. O segundo é
consequência deste, qual seja: a não solução destes problemas, uma vez que a
instituições escolar terá pouquíssimas chances de resolver algo que está fora de
suas atribuições. Este movimento amplia a noção de crise da educação dentro da
qual qualquer solução mediana poderá ser apresentada como saída para aquilo que
não funciona.
O resultado disso trouxe o esvaziamento do conteúdo disciplinar e da
construção de conhecimento com as classes populares e, também, o foco na
organização e no método criado por um especialista que está externo à educação.
Concorda-se, assim, com Saviani quando afirma que
Os conteúdos são fundamentais e sem conteúdos relevantes,
conteúdos significativos, a aprendizagem deixar de existir, ela
transforma-se num arremedo, ela transforma-se numa farsa. (...) Por
que esses conteúdos são prioritários? Justamente porque o domínio
da cultura constitui instrumento indispensável para a participação
política das massas. Se os membros das camadas populares não
dominam os conteúdos culturais, eles não podem fazer valer os seus
interesses, porque ficam desarmados contra os dominadores, que se
servem exatamente desses conteúdos culturais para legitimar e
consolidar sua dominação. Eu costumo, às vezes, enunciar isso da
seguinte forma: o dominado não se liberta se ele não vier a dominar
aquilo que os dominantes dominam. Então, dominar o que os
13 É importante destacar que este movimento vem acontecendo com intensidade a partir da
contrarreforma do ensino médio. uma série de denúncias sobre a diminuição de disciplinas
clássicas do currículo escolar em função da chegada de uma série de itinerários formativos e projetos
de vida, que tratam de generalidades, sem nenhum tipo de rigor acadêmico e didático.
16
dominantes dominam é condição de libertação (SAVIANI, 2021, p.
45).
Por fim, vale ressaltar que todo este processo em curso almeja, em última
análise, excluir o professor do processo de ensino e aprendizagem. Essa
netflixização de uma educação que para ser moderna precisa ser sob demanda
opera para acabar com o professor, visto pelas grandes empresas do ensino como o
grande problema da educação. Substituindo o professor pela inteligência artificial,
ficará mais fácil padronizar o processo e garantir a transmissão de um pensamento
único para um conjunto de indivíduos que não conseguirão resistir a tudo este
movimento. Sem contar que isso diminuirá os custos, reduzirá a resistência da
organização da classe docente na luta por seus direitos e, também, irá impossibilitar
toda e qualquer tentativa de ampliar os horizontes e demandas dos estudantes.
Considerações finais
A partir de uma leitura fundamentada na reflexão de Marx acerca do avanço
da maquinaria e, consequentemente, da tecnologia, esta reflexão buscou mostrar
que todo processo de avanço do capital sobre o trabalho, sobre o conhecimento e
na educação traz repercussões diretas e importantes em todas as dimensões da
vida. Sem atribuir um tom profético e fatalista ao texto marxiano, foi possível
perceber que o discurso da reestruturação produtiva e tecnológica trazido pela ideia
de indústria 4.0 estava presente nas reflexões sobre a maquinaria em O Capital.
Longe de ser uma novidade e um traço de modernização, o que se é um
fenômeno que recupera uma forma antiga do capital de buscar meios diversos para
se valorizar de forma ilimitada e exponencial. Ainda que o tempo atual seja
profundamente diferente do contexto no qual as obras de Marx foram escritas,
que se reconhecer que as formas e estratégias de atuação do capital pautada na
exploração do trabalho, no controle do trabalhador, no ataque aos direitos e na
necessidade de manutenção da desigualdade e da miséria continuam as mesmas.
Ainda que o ponto de partida da análise aqui realizada tenha se desenvolvido
a partir da reestruturação produtiva concretizada pela indústria 4.0, esta pesquisa
avança para tentar entender as consequências deste fenômeno no cenário
educacional, focando sua reflexão nos efeitos que os dispositivos tecnológicos
17
especificamente dos aplicativos de inteligência artificial e do Chat GPT geram para
a relação de ensino e aprendizagem. Seja na produção industrial ou no contexto
educacional, muito mais que a consolidação do tecnicismo educacional, o que se
observa é um movimento que tenta inviabilizar o ser humano do processo, que a
cada dia se mais substituído por aparatos tecnológicos por conta de sua
impossibilidade de competir com a eficiência do aparato tecnológico e, também, por
questões econômicas. Isso confirma a afirmação de Araújo (2022) para quem, na
era digital, o indivíduo produz o seu próprio descarte. Contudo, este fenômeno
quase não fica evidente para o trabalhador, por conta do elevado grau de alienação
que a própria tecnologia tem provocado.
A reflexão que aqui foi desenvolvida teve como foco os impactos que a
tecnologia traz para a relação entre linguagem e pensamento. Pensando que a
linguagem é o cerne da estrutura da aula (processo ensino e aprendizagem), as
novas formas que ela assume diante das novas tecnologias operam tanto no sentido
de um apagamento do professor, dos estudantes e uma desconfiguração do próprio
conhecimento, reconfigurando a tríade pedagógica (Houssaye, 1988). Professores e
estudantes que utilizam essas novas plataformas digitais terceirizam para a
inteligência artificial o desenvolvimento do seu pensamento, ficando reféns de uma
visão de mundo única, fragmentada, rasa e comprometida com a manutenção do
status quo.
Mas, como diria Lênin (2020), o que fazer? Sabe-se que no horizonte
neoliberal e digital as possibilidades de resistências são drasticamente diminuídas,
tanto por conta do isolamento e da intensa competitividade entre os sujeitos quanto
pelo aprofundamento da alienação e da falta de consciência acerca do fenômeno
como tal. A questão que se coloca precisa, antes de qualquer coisa, ser reconhecida
como parte da luta de classes. No entanto, a saída não deve ser feita pelo lado mais
fácil. É preciso resistir à tentação de ir pelo atalho de acreditar que a tecnologia é
em si. Isso se aproximaria de uma postura ludista, cuja tese indica a necessidade de
enfrentar e destruir máquinas e qualquer outro instrumento tecnológico. Tal saída
não é razoável nem exequível. O próprio Marx se posicionou de forma contrária
em sua época quando afirmou que, mais que lutar contra a maquinaria, é preciso
canalizar as forças para lutar e questionar o uso que o capital faz da tecnologia. O
autor afirma que essa é uma estratégia do capital que “imputa a seu adversário a
18
tolice de combater não a utilização capitalista da maquinaria, mas a própria
maquinaria” (Marx, 2017, p. 514).
Não se deve demonizar as novas tecnologias, mas sim, debater e refletir
como elas podem ser parceiras para o aprofundamento do desenvolvimento do
pensamento humano na perspectiva da emancipação e da autonomia. Para isso,
faz-se necessário desfazer o feitiço/fetiche que inverte a ordem natural de que é o
homem quem cria a tecnologia e não o inverso. Em outras palavras: é o indivíduo
que precisa dominar o uso destes instrumentos e não ser dominado por eles.
Resumindo, é preciso desconstruir as concepções deterministas, considerando que
as tecnologias são socialmente construídas ao mesmo tempo que as sociedades
são tecnológicas. O uso destes novos recursos precisa ser implementado na
direção de gerar maior autonomia, maior tempo livre, maior emancipação e não
como instrumentos de controle, vigilância e intensificação do tempo de trabalho.
A educação pode e deve se beneficiar da tecnologia, porém não deve fazê-lo
na perspectiva da mercantilização. Daí, retoma-se a necessidade de se insistir numa
educação cujo centro seja a construção dos conhecimentos que são necessários
para o crescimento e o desenvolvimento humano. Para isso, outro passo será
essencial, qual seja: o da democratização da produção e uso das tecnologias, a fim
de que elas estejam acessíveis para todos. A exclusão digital não pode ser mais um
caminho para a segmentação e a dominação. Neste caso, concorda-se com Caldart
(2023), quando afirma que “uma das características próprias da intencionalidade
formativa da escola é o trabalho pedagógico com o conhecimento, visando à
compreensão cada vez mais alargada e profunda da realidade” (Caldart, 2023, p.
245).
Neste sentido, é preciso enfatizar que a superação dos problemas da
educação burguesa não vai acontecer sem a superação do sistema capitalista e do
modo burguês de produção. Não se pode perder de vista o fato de que a escola
burguesa, ainda que permita e se organize para a entrada de todos, nunca será a
mesma para todos. Por conta disso, é urgente perceber a quem serve e interessa o
discurso de reestruturação tecnológica divulgado pela indústria e pela escola 4.0. A
tecnologia favorece ou dificulta a emancipação humana? As mudanças e avanços
no sistema tecnológico e produtivo estão a serviço de garantir bem-estar e melhores
condições de vida ao trabalhador? Ao lado disso, é central que num país como o
19
Brasil, em que não produção significativa de tecnologia do tipo aqui abordado, a
proposta 4.0 tende a aumentar ainda mais a dependência aos países centrais do
capitalismo. Essas e outras questões indicam que a temática aqui abordada é
ampla, necessária e urgente e que este artigo tentou, apenas, introduzir a questão
para o debate, no intuito de sinalizar para a necessidade de identificar ameaças e
ataques na perspectiva de traçar caminhos de resistência.
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O CONCEITO DE TECNOLOGIA E SEUS LIMITES: ANÁLISE DAS
TECNOLOGIAS DIGITAIS DA INFORMAÇÃO E DA
COMUNICAÇÃO NA EDUCAÇÃO1
Patrick Dutra2
Rafael Rodrigo Mueller3
Resumo
Este artigo tem como objetivo analisar a inserção das Tecnologias Digitais da Informação e da Comunicação
(TDICs) na educação, tendo como perspectiva analítica o Conceito de Tecnologia, em Álvaro Vieira Pinto (2005),
em diálogo com as análises de Jonathan Crary (2014; 2023). A partir de uma pesquisa bibliográfica, buscou-se
compreender o conceito de tecnologia e suas possibilidades de aplicação no ambiente escolar, analisando a
politicidade em torno de sua utilização. Foi possível concluir a importância de compreender todos os aspectos
sociais e políticos das TDICs.
Palavras-chave: Tecnologias Digitais da Informação e Comunicação; Educação escolar; Sociedade; Tecnologia
e poder; Conceito de tecnologia.
EL CONCEPTO DE TECNOLOGÍA Y SUS LÍMITES: ANÁLISIS DE LAS TECNOLOGÍAS DE LA
INFORMACIÓN Y LA COMUNICACIÓN DIGITAL EN LA EDUCACIÓN.
Resumen
Este artículo tiene como objetivo analizar la inserción de las Tecnologías Digitales de la Información y la
Comunicación (TDIC) en la educación, tomando como perspectiva analítica el Concepto de Tecnología, en Álvaro
Vieira Pinto (2005), en diálogo con los análisis de Jonathan Crary (2014; 2023). A partir de una investigación
bibliográfica, buscamos comprender el concepto de tecnología y sus posibilidades de aplicación en el ambiente
escolar, analizando la políticidad que rodean su uso. Se pudo concluir la importancia de comprender todos los
aspectos sociales y políticos de las TDIC.
Palabras clave: Tecnologías de la Información y las Comunicaciones Digitales; educación escolar; Sociedad; La
tecnología y el poder; Concepto de tecnología.
THE CONCEPT OF TECHNOLOGY AND ITS LIMITS: ANALYSIS OF DIGITAL INFORMATION AND
COMMUNICATION TECHNOLOGIES IN EDUCATION.
Abstract
This article aims to analyze the insertion of Digital Information and Communication Technologies (TDICs) in
education, taking as an analytical perspective the Concept of Technology, in Álvaro Vieira Pinto (2005), in
dialogue with the analyzes of Jonathan Crary (2014; 2023). Based on bibliographical research, we sought to
understand the concept of technology and its possibilities for application in the school environment, analyzing the
politicality surrounding its use. It was possible to conclude the importance of understanding all social and political
aspects of TDICs.
Keyword: Digital Information and Communication Technologies; school education; Society; Technology and
power; concept of Technology.
3Doutor em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Brasil. Professor do
Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Extremo Sul Catarinense (UNESC),
Santa Catarina - Brasil. E-mail: rrmueller@unesc.net.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/6298676679523246.ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6637-2948.
2Mestrando em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da Universidade
do Extremo Sul Catarinense (UNESC), Santa Catarina - Brasil. Possui bolsa de estudos integral pelo
Programa de Suporte à Pós-Graduação de Instituições Comunitárias de Ensino Superior (PROSUC)
da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).
E-mail: patrickdutra.his@unesc.net.Lattes: http://lattes.cnpq.br/3209513052921624.
ORCID: https://orcid.org/0009-0007-9039-0282.
1Artigo recebido em 11/03/2024. Primeira avaliação em 05/04/2024. Segunda avaliação em
30/04/2024. Aprovado em 10/07/2024. Publicado em 07/08/2024.
DOI:https://doi.org/10.22409/tn.v22i48.62263.
1
Introdução
Constantemente lidamos com discursos e posicionamentos em torno da
importância das Tecnologias Digitais da Informação e da Comunicação (TDICs)
dentro dos ambientes escolares onde são frequentes as falas de que precisamos de
uma educação para o futuro, associados a termos como: “Aluno Multimídia”, “Aluno
Ativo”, “Metodologias Ativas”, “Ferramentas digitais” etc. São muitas as noções
utilizadas e os conceitos e tendências desenvolvidas. Em todos eles, o princípio da
tecnologia digital é o aspecto central.
Neste mesmo sentido, tem sido comum pesquisas questionando até que
ponto a tecnologia colabora com o desenvolvimento da aprendizagem e a partir de
que medida ela se torna prejudicial. Estas colocações gerais - tendencialmente
totalizantes e abstratas -, são mobilizadas para reforçar o fato de que a tecnologia e
a educação estão colocadas como aspectos da realidade e tendem a se tornar cada
vez mais hegemônicas. No entanto, os questionamentos que buscamos são o que
entendemos por educação e até que ponto essa deve mudar e se adaptar às
demandas da dinâmica digital.
Todo esse processo faz parte do quadro de aceleração resultantes do
processo globalização e avanço do neoliberalismo, refletindo as condições que o
trabalho assume na modernidade, frente ao processo de valorização do valor, cujos
reflexos têm sido a aceleração da vida humana a partir de uma duração sem
descanso, caracterizada pela necessidade de um funcionamento contínuo. De
acordo com Larrosa (2015, p.75), às experiências não são mais vivenciadas naquilo
que é realizado durante o dia a dia, uma vez que qualquer experiência aceita deve
provir de alguma forma de consumo mercadológico, sendo que todo o processo
realizado deixa de ser experienciado.
Esta realidade foi analisada por Crary (2014, p.11), que descreveu este
processo como a dinâmica 24/7 (24 horas e 7 dias por semana), uma ressignificação
da identidade pessoal e social que leva as pessoas a se adaptarem à um
desempenho ininterrupto de suas funções de produção e de consumo,
proporcionando um funcionamento constante e crescente de mercados, redes de
informação e outros sistemas. Nesta existência social, não mais espaços para
fantasias de outras possibilidades sociais, reforçando o aquilo que Benjamin (2013,
2
p.16) afirmava em meados do século XX, “[...] o capitalismo é a celebração de um
culto sans rêve et sans merci [sem sonho e sem piedade]”.
Segundo Dardot e Laval (2016, p.21), o desenvolvimento das bases
produtivas do moderno sistema produtor de mercadorias, que corresponde e
desencadeia o acelerado avanço da tecnologia computacional digital para atender
as demandas produtivas, ocasionou não apenas uma mudança estrutural, mas foi
acompanhada por uma transformação no íntimo dos indivíduos, em suas formas de
sociabilidade e de condutas. Neste processo, estruturas hierárquicas de dominação
e poder foram alocadas ao lado de modelos de controle mais flexíveis e diversos, a
partir do qual Crary (2014, p.27) busca destacar
Nesse novo contexto, o consumo de tecnologia coincide com
estratégias e efeitos de poder e se torna indistinguível deles.
Certamente, por boa parte do século XX, a organização das
sociedades de consumo esteve ligada a formas de regulação e
obediência sociais, mas agora a administração do comportamento
econômico é idêntica à formação e perpetuação de indivíduos
maleáveis e submissos. [...] mesmo que a dinâmica por trás da
inovação de produtos ainda esteja ligada à margem de lucro ou à
competição entre empresas pelo domínio de um segmento do
mercado, o ritmo acelerado do ‘aprimoramento’ ou da reconfiguração
de sistemas, modelos e plataformas é parte crucial da reinvenção do
sujeito e da intensificação do controle.
Neste “admirável mundo novo” que se aproxima de distopias produzidas no
século XX, a organização da sociedade de consumo não está mais baseada na
coerção, mas sim na administração do comportamento e da formação dos
indivíduos, tendo como parâmetro estruturas de administração empresarial com o
objetivo de tornar a competitividade uma norma social. Este processo encontra na
aceleração proporcionada pelo processo de desenvolvimento tecnológico uma
estrutura ideal, que age na reinvenção dos sujeitos, forçando que estes se moldem
aos ritmos sociais estabelecidos e, consequentemente, a intensificação de
mecanismos digitais de controle aos quais os indivíduos se submetem ativamente,
sob o risco, segundo Bauman (2007, p.10), de acabar caindo no esquecimento de
uma sociedade moldada pela visibilidade, exposição e consumo constantes.
Ao retratar estes discursos em um processo de análise, principalmente
voltando-se ao tema das relações dos mais jovens com a mídia digital e a
aprendizagem, assim como a ideia de que a tecnologia tende a oferecer uma forma
3
mais eficiente para as escolas atingirem sua missão tradicional, Buckingham (2010,
p. 40) destacou que diversas
[...] alegações educacionais foram recorrentes com cada novo meio
de comunicação; e como, em cada caso, essas alegações foram em
geral refutadas por subsequentes desenvolvimentos. Os reformistas
e os marqueteiros da tecnologia [...] repetidas vezes alegaram que a
nova mídia traria novas formas de aprendizado à sala de aula,
tornando redundantes velhas mídias como os livros e, em muitos
casos, também os professores. [...] a grande maioria dos professores
ignorou esses dispositivos em aparência revolucionários: após
grandes investimentos, um período de fascínio inicial, os projetores e
os monitores de televisão foram, em geral, consignados ao armário
da sala de aula ou deixados para juntar pó. qualquer razão
para acreditar-se que a situação relacionada às Tecnologias da
Informação e da Comunicação (ICT) contemporâneas venha a ser
diferente?
Conforme os estudos de Buckingham (2010, p. 40), podemos perceber que
existe uma forma de determinismo tecnológico em torno da retórica da sociedade da
informação e das suas consequentes ferramentas tecnológicas, ou seja, a ideia de
que a tecnologia digital automaticamente produzirá certos efeitos, neste caso, em
torno da educação e da aprendizagem, ignorando os contextos sociais na qual estão
inseridas, além dos sujeitos envolvidos no processo.
Neste sentido, este artigo tem como objetivo principal desenvolver uma
análise em torno da relação entre as Tecnologias Digitais da Informação e da
Comunicação (TDICs) e o ambiente escolar da Educação Básica, tendo como
perspectiva analítica a concepção de tecnologia de Álvaro Vieira Pinto (2005), em
diálogo com as análises de Jonathan Crary (2018; 2023). O presente estudo será
possível a partir de uma pesquisa bibliográfica onde as ideias de alguns pensadores
serão mobilizados e colocados em diálogo, visando compreender o conceito de
tecnologia e sua aplicação no ambiente escolar, além de analisar o poder por trás
dos artefatos técnicos e o uso político das tecnologias, principalmente a partir dos
escritos de Winner (2013), Buckingham (2010) e Crary (2013; 2023).
É importante destacar que quando nos referimos a ambientes escolares,
estamos realizando uma abstração, pois os autores mobilizados no texto, como
Serres (2013), Buckingham (2010), Winner (2013), Vieira Pinto (2005), são autores
localizados em distintos espaços, o que caracteriza distintas realidades sociais. No
entanto, utilizamos tais obras por estarmos descrevendo o aspecto da educação que
4
dentro da realidade capitalista global vem sendo constantemente padronizada, se
não em seus meios, mas pelos seus fins, a saber, os crescentes números de
avaliações de larga escala que pretendem estabelecer e mensurar níveis
internacionais de sucesso escolar.
Os limites e as possibilidades de emancipação a partir das tecnologias digitais
As TDICs são componentes de infraestrutura tecnológica que permitem a
interconexão de diferentes ambientes e pessoas por meio de dispositivos, softwares
e mídia digital. Isso simplifica a comunicação entre os participantes, expandindo as
capacidades e oportunidades oferecidas pelas tecnologias existentes. Para que as
TDICs sejam articuladas ao desenvolvimento do processo educacional, parte das
práticas e recursos precisam ser repensadas de acordo com o avanço destas
tecnologias (Soares, 2015).
Entretanto, pensar a inserção de tais aparatos tecnológicos dentro do
ambiente escolar da educação básica requer uma reflexão sobre como o próprio
desenvolvimento tecnológico tem se configurado como um reflexo das demandas
produtivas a que estamos inseridos socialmente. Segundo Crary (2014, p.30), a
existência na sociedade 24/7 ressalta as diversas formas de controle a que estamos
diretamente submetidos, a ponto de vir a tornar supérfluo e impotente o sujeito de
suas demandas que não estejam vinculadas à geração de valor e à esfera do
consumo.
Na sociedade contemporânea, caracterizada pelo sistema econômico
produtor de mercadorias e regida pela regulação dos mercados financeiros, tem sido
comum a crença de que os indivíduos estariam dotados de autonomia e de liberdade
de escolhas, de modo que a ordem tecnológica estabelecida socialmente carregaria
um conjunto de ferramentas neutras que poderia ser utilizado tanto para a alienação
dos sujeitos quanto para a sua emancipação, a depender dos usos delas realizados.
Essa concepção vinha sendo analisada pelo filósofo Álvaro Vieira Pinto
(2005, p. 37) em uma série de escritos desde a década de 1970, a partir dos quais
buscou apontar que a tecnologia deve ser entendida a partir de certos aspectos
centrais. Primeiramente, deve ser compreendida como um processo social,
historicamente determinado e culturalmente influenciado. Ou seja, a tecnologia não
5
é apenas um conjunto de técnicas e ferramentas, mas um aspecto social que reflete
as condições econômicas, políticas e culturais em que é desenvolvida e utilizada.
Vieira Pinto (2005, p. 40) continua suas definições analisando a tecnologia
como uma forma de ação social, uma atividade humana que visa transformar a
natureza para atender às necessidades humanas e neste sentido, se desenvolve na
mesma medida em que desenvolve ferramentas para atuar neste meio. Portanto, a
tecnologia não é vista como algo passivo, mas como uma atividade que envolve
escolhas e decisões. A tecnologia é ainda um fenômeno cultural, na medida em que
está enraizada nas tradições e crenças de uma determinada sociedade, e acaba
influenciada por valores provenientes de um contexto cultural mais amplo. Por fim, o
filósofo enfatiza que a tecnologia é um processo de trabalho, uma atividade que
envolve trabalhadores, suas habilidades e conhecimentos, e que, portanto, é um
processo que pode ser moldado pelos trabalhadores, permitindo uma maior
democratização das relações de produção e um maior controle sobre o processo
produtivo.
Ao relacionarmos as análises de Vieira Pinto (2005), com os escritos do crítico
e ensaísta Jonathan Crary (2014; 2023), podemos enxergar uma série de
aproximações entre suas linhas de pensamentos, principalmente em torno da
compreensão da tecnologia enquanto um fenômeno social, histórico e cultural,
distante da ideia de neutralidade. No entanto, também encontramos profundas
divergências, principalmente em torno das possibilidades de ser utilizada como
artefato de emancipação. Se, para Vieira Pinto (2005, p. 37), a tecnologia pode vir a
se converter em um processo passível de ser apropriado pela classe trabalhadora,
Crary (2023, p. 28), ao refletir sobre as tecnologias digitais, o complexo internético
global e os discursos que eram dirigidos a estes mecanismos, destaca que em “[...]
vez de ser um meio para um conjunto maior de fins, o aparelho é um fim em si
mesmo. Sua função é conduzir o usuário a uma realização ainda mais eficiente de
suas próprias tarefas e funções de rotina”. Crary (2023, p.17–18) afirma ainda que
uma falha de concepção anacrônica segundo a qual a internet
poderia simplesmente ‘mudar de mãos’ [...] passível de receber
novos usos com a transformação do contexto político e econômico.
Mas a noção de que a internet funcionaria de forma independente
das operações catastróficas do capitalismo global é mais uma das
6
ilusões estupefacientes do atual momento. Um e outro estão
estruturalmente entrelaçados [...].
Se, nas análises de Vieira Pinto (2005, p. 54), o conjunto formado pela gama
de tecnologias digitais como processo desenvolvido pelos trabalhadores poderia vir
a desempenhar um processo de emancipação da classe trabalhadora, para Crary
(2023, p. 24), é a partir deste próprio conjunto tecnológico que o sistema capitalista
encontra sua maior expressão e capacidade de controle, a partir da manifestação de
diversas formas de poder e subjetivação, exercidas conjuntamente com antigas
estruturas hierárquicas de controle social. Neste sentido, como podemos pensar
criticamente a inserção das tecnologias da educação dentro do ambiente escolar e,
particularmente, na etapa da educação básica?
Enquanto um aspecto cultural - que rotineiramente é denominado de cultura
digital -, a tecnologia vem sendo vivenciada amplamente. No entanto, dentro dos
ambientes escolares, tem se tornado crescentes as tensões, seja no embate entre
estudantes e professores, ou estudantes e cultura escolar, visíveis a partir de
resistências que estes impõem4. Para Serres (2013), o embate e a falta de aceitação
das normas e condutas escolares devem ser compreendidos a partir do impacto das
próprias tecnologias no comportamento dos estudantes, uma vez que em outros
espaços estes mesmos estudantes aparecem enquanto protagonistas,
principalmente enquanto consumidores em um grande mercado global, e acabam
não se adaptando a ideia de passividade que a estrutura escolar ‘tradicional’ acaba
reproduzindo5.
Esta mesma questão também deve ser analisada a partir da compreensão da
tecnologia como um processo social. Vieira Pinto (2005), ao apresentar a ideia de
tecnologia não apenas como um conjunto de técnicas e ferramentas, mas um
5Saviani (2018) caracteriza a pedagogia tradicional como um modelo de ensino que se baseia na
transmissão de conhecimento de forma autoritária e unidirecional do professor para o aluno. Nesse
modelo, o professor desempenha um papel central como detentor do conhecimento, enquanto os
alunos são considerados receptores passivos desse conhecimento. As aulas tendem a ser centradas
no professor, com ênfase na memorização e na repetição de informações. Essa caracterização não é
estática, sendo que não podemos falar em um “professor tradicional” por este seguir perspectiva
pedagógica à risca. O que buscamos destacar como “tradicional”, são algumas práticas advindas
desta caracterização, que ainda se fazem presentes em alguns espaços, gerando embates e
suscitando discussões, conforme destacou Serres (2013).
4Segundo Mühl (2020), podemos identificar uma crise da autoridade docente, que pode ser
identificada no crescente número de conflitos, na confrontação ou na indiferença cada vez maior de
alunos diante dos professores e, em casos extremos, nas atitudes de agressão verbal ou no
surgimento de diferentes formas de violência praticadas contra docentes, gestores e funcionários da
escola.
7
aspecto social que reflete as condições econômicas, políticas e culturais em que é
desenvolvida e utilizada, possibilita uma reflexão em torno da própria ausência de
tecnologias digitais dentro dos ambientes escolares, principalmente de escolas
públicas, destacando profundas desigualdades inerentes ao próprio sistema.
Portanto, como consequência da própria dinâmica capitalista, as tecnologias
digitais não apenas visam o aumento da eficiência produtiva dos sujeitos com um fim
em si mesmo, mas enquanto artefatos que reforçam e reproduzem estruturas de
poder, acabam aprofundando desigualdades sociais dentro dos ambientes escolares
que acabam refletindo as desigualdades econômicas, políticas e culturais a que está
sujeita toda uma comunidade escolar.
Tecnologias digitais e estruturas de poder: a instituição escolar enquanto
forma de poder
Na perspectiva analítica de Foucault (1987, p.11) a instituição escolar se
configura enquanto tal justamente por sua capacidade de moldar, ou, pelo menos,
influenciar nos comportamentos dos sujeitos e atuar como um espaço de construção
de subjetividades e de identidades. Neste sentido, o espaço escolar reflete uma
concepção política e de sociedade, sendo que a forma como a tecnologia é inserida
e utilizada, ou mesmo a sua ausência, reflete uma dimensão sociopolítica.
Desde a década de 1970, período em que Buckingham (2010), inicia suas
pesquisas, diversos entusiastas da tecnologia digital se esforçavam para
demonstrar o impacto que o desenvolvimento de tais tecnologias teria no ambiente
escolar. Muitos destes entusiastas, argumenta o autor, estavam extremamente
interessados no ambiente escolar como grande nicho de mercado, além do interesse
em utilizar este ambiente como uma grande vitrine para a tecnologia residencial.
Winner (2013, p. 20), identifica que a tecnologia constitui objetos que refletem
lógicas de poder, sendo que estas lógicas refletem o sistema socioeconômico no
qual as tecnologias estão inseridas. Neste sentido, o que importa para uma reflexão
que esteja para além de análises superficiais, não é a tecnologia em si, mas o
sistema social ou econômico no qual ela está inserida. Sobre esta dimensão, ainda
fica visível a leitura sobre a técnica em Vieira Pinto (2005, p. 39), ao discutir sobre a
ideologia da técnica e a capacidade de inferência que esta ideologia, a ideia de
8
produção da tecnologia, pode vir a provocar (uma ilusão). Toda técnica, influenciada
pela necessidade de produção de uma determinada época, reflete seu contexto e é
justamente neste contexto que as técnicas, no conjunto formador de tecnologias,
passam a refletir estruturas de poder.
Crary (2023, p.19), ao escrever sobre a análise do crítico social Ivan Illich e
seus estudos em torno das definições de ferramentas e conjuntos de técnicas na
relação com o social, destacou:
Illich enfatizava que as pessoas extraem felicidade e satisfação do
uso de ferramentas ‘menos controladas por terceiros’ e alertava que
‘o crescimento das ferramentas para além de um certo ponto
aumenta a arregimentação, a dependência, a exploração e a
impotência’. No final dos anos 1990, poucos anos antes de sua
morte, Illich notou o desaparecimento da técnica como ferramenta
que se apresentava como um meio destinado a um fim, como um
instrumento com o qual um indivíduo poderia investir sentido no
mundo. No lugar disso, percebeu a disseminação de tecnologias
cujas regras e operações absorviam as pessoas. Ações que antes
eram ao menos parcialmente autônomas agora se manifestavam
como comportamentos ‘sistema-adaptativos’.
A análise colabora para a conclusão de que o complexo tecnológico de hiper
conexão atualmente em voga, constituído pelas TDICs e pelo complexo internético
global não proporciona aos sujeitos um aumento de suas capacidades críticas de
compreensão da realidade ou de ação individual e social, mas, pelo contrário, amplia
a impotência e a adaptação destes frente a absorção intencionada pela formulação
de gostos e de subjetividades sociais.
É a partir da leitura destes contextos que Buckingham (2010, p. 03) passa a
argumentar o papel proativo que a escola pode vir a desempenhar nesta “sociedade
da informação”, destacando “tanto perspectivas críticas quanto oportunidades de
participação em relação à nova mídia”, além de alertar para as desigualdades de
acesso aos instrumentos tecnológicos e das desigualdades culturais vivenciadas
pelos estudantes dentro e fora da escola. Para tanto, um primeiro momento do texto
de Buckingham, é dedicado a uma análise das utopias que as tecnologias vieram a
desempenhar ao longo das últimas décadas, desde a invenção do cinema, do rádio,
da televisão, a cada avanço de um determinado conjunto de técnicas,
argumentava-se que a escola viria definhar ou mesmo, desaparecer, sendo
necessário portanto repensar a escola. Estes discursos, no geral, ganhavam maior
9
fôlego entre “os reformistas e os marqueteiros”, ávidos pelos grandes investimentos
provenientes da educação.
É neste contexto que podemos retornar aos escritos de Vieira Pinto (2005, p.
37), ao afirmar que “toda época é por definição única e possui a tecnologia a que
pode ter acesso”, ou seja, não existe ‘a sociedade tecnológica’ autoconsagrada por
seus avanços indescritíveis frente à história da humanidade, mas o desenvolvimento
tecnológico histórico em si. Crary (2014, p. 24), também direciona seus argumentos
neste sentido, ao indicar que a ideia ilusória de que a geração que tem crescido sob
os auspícios da dita era da informação e comunicação se tornará detentora de níveis
similares de competência tecnológica e pressupostos intelectuais básicos, uma vez
que
a realidade bastante diversa de nosso tempo se caracteriza pela
manutenção calculada de um estado de transição contínuo. Diante
de exigências tecnológicas em transformação constante, jamais
haverá um momento em que finalmente as ‘alcançaremos’, seja
enquanto sociedade ou enquanto indivíduos. Para a imensa maioria
das pessoas, a relação perceptiva e cognitiva com tecnologias de
informação e comunicação continuará distante e impotente dada a
velocidade com que surgem novos produtos e com que os sistemas
são completamente reconfigurados. Esse ritmo intensificado impede
que nos familiarizemos com qualquer ordem específica.
Para Crary (2014, p. 25), o fato da realidade estar caracterizada pela
produção constante de inovações como característica da geração de valor
impossibilita uma apropriação das competências tecnológicas básicas em níveis
universais, uma vez que o estado de “transição contínua” não permite a apropriação
das realidades específicas, caracterizando, segundo o autor, o que Marx afirmava ao
escrever que a história dos últimos 150 anos é inseparável da “revolução contínua”
das formas de produção, circulação, comunicação e construção de imagens.
O que esta reflexão nos proporciona para pensar nas TDICs? Conforme
Buckingham (2010, p. 40), os investimentos tecnológicos para a área de educação
têm como foco principal os hardware, ou seja, máquinas e equipamentos, sendo que
os investimentos em softwares, programas, sites, aplicativos, dentre outros, ficam
relegados a segundo plano, ou sequer aparecem. Muitos destes investimentos, em
geral de grandes valores, não contam com a participação dos professores e equipes
escolares, nem com projetos e planejamentos pensados a partir da realidade
10
educacional, levando ao uso precário destas tecnologias e o seu consequente
abandono. O que se verifica, em muitos casos, é a expressão de um determinismo
tecnológico, uma ilusão de que a tecnologia digital automaticamente produzirá certos
efeitos sem que se leve em consideração os contextos sociais em que estarão
colocadas, nem mesmo dos atores sociais que a usem. Este determinismo é
incentivado por discursos de grupos industriais ávidos por recursos e mercados.
Percebemos, portanto, que as tecnologias, mesmo que no âmbito educacional
escolar, mascaram escolhas sociais de profunda significação, levantando um alerta,
um chamado à reflexão, em torno da denominada ideologia da técnica, ou seja, a
ideia de que a tecnologia é uma solução para todos os problemas humanos, como
algo que deve ser buscado pelo seu próprio valor independentemente das suas
consequências sociais, ambientais e políticas. Ao mesmo tempo que se tem
marginalizado questões fundamentais sobre como professores e alunos poderiam se
apropriar da tecnologia e sobre o que precisam saber acerca dela.
A inserção das tecnologias digitais da informação e da comunicação nos
ambientes escolares, dentro da lógica que está posta, ou seja, dentro de um sistema
que se origina a partir das necessidades de produção como norma de reprodução
da vida social, tende a se fazer necessária, mas sem se limitar a uma formação para
o uso ou para um chamado letramento digital que meramente se resuma a enviar
e-mails e acessar sites (Buckingham, 2010, p. 48). Trata-se, antes de tudo, da
necessidade de uma formação crítica capaz de levar os estudantes a perceberem
que os artefatos tecnológicos carregam em si formas e manifestações de poder,
principalmente a partir de seus usos. Este letramento digital crítico precisa ainda ser
capaz de provocar reflexões sobre as desigualdades presentes no interior destes
espaços e mesmo destes equipamentos e, apontar para horizontes de emancipação
dos sujeitos e de suas sociabilidades.
Acreditar cegamente que o uso ou a aquisição de equipamentos tecnológicos
nos conduzirá a um avanço na área da educação significa ignorar uma lógica
mercantil que permeia a educação pública e se deixar enganar por um determinismo
tecnológico que aos poucos conduz a chamada ideologia da técnica. Neste sentido,
se a necessidade de realização de investimentos em equipamentos tecnológicos
digitais para as escolas está posta, que esta seja feita sem ignorar o
11
desenvolvimento de projetos adequados à realidade escolar e o diálogo permanente
com todos os envolvidos, buscando entender suas reais necessidades e aspirações.
Cabe ressaltar que mesmo em um movimento de inserção crítica das TDICs
no ambiente escolar, utilizando estes artefatos para a contestação destas lógicas de
poder, seja a partir de um letramento digital crítico que leve os estudantes a
compreender justamente as estruturas de poder existentes no contexto de produção
dos artefatos tecnológicos, seja utilizando estas tecnologias para inserção dos
estudantes naquilo que de mais avançado em termos de tecnologias digitais
visando reverter a lógica de exclusão e de desigualdade social no interior da
instituição escolar, os artefatos tecnológicos ainda são produzidos e submetidos às
demandas do sistema produtor de mercadorias, refletindo intencionalidades.
Considerações finais
Buscou-se destacar ao longo deste artigo a necessidade de entender,
conforme destacou Crary (2018, p. 24), que no contexto do capitalismo, a inovação
consiste principalmente na contínua simulação da novidade, enquanto as relações
de poder e controle existentes permanecem praticamente inalteradas. Colabora o
fato de que a aceleração dos ritmos dessas aparentes mudanças tem agido
eficazmente na eliminação das sensações de uma linha do tempo compartilhada que
poderia servir como base para a expectativa de um futuro diferente do presente
atual, mesmo que essa visão de futuro não esteja definida.
Este estilo de vida caracterizado pela aceleração e preenchimento de todo o
tempo da existência social gira em torno de metas individuais de competitividade,
promoção, acumulação de riqueza, segurança pessoal e conforto, muitas vezes às
custas dos outros. Todo este quadro colabora para que visões de futuro sejam
desenvolvidas à imagem e semelhança do presente, em um movimento denominado
por Fisher (2010, p. 26), como “cancelamento do futuro” que pode ser imaginado
como uma extensão da luta pela obtenção de ganhos pessoais ou pela
sobrevivência individual em um presente superficial.
Portanto, ao abordarmos o tema da inserção das tecnologias digitais no
ambiente escolar, é de extrema importância deixar claro que um olhar crítico a este
problema de estudos precisa superar um olhar para os objetos tecnológicos e seus
12
impactos na estrutura imediata em que se encontram, que possa orientar a
compreensão para além dos dispositivos e dos programas, dos órgãos financiadores
e das instituições que os recebem, buscando analisar todos os aspectos sociais
envolvidos em tal contexto.
Imaginar que a tecnologia por si terá a capacidade de impulsionar o grau de
escolarização, de apropriação e de desenvolvimento humano, significa ignorar os
problemas historicamente enraizados no moderno sistema produtor de mercadorias,
que tende a se aprofundar quando olhamos para os distintos países e as profundas
desigualdades existentes. Significa abraçar o que Vieira Pinto (2005, p. 37)
denominou de ideologia da técnica, de acreditar que os problemas se resolveriam
magicamente, não com varas de condão, mas sim com aquisições milionárias de
aparatos sem uma reflexão real de como vinculá-los a uma formação crítica.
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14
V.22, 48 - 2024 (maio-agosto) ISSN: 1808-799 X
EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA NO BRASIL: DA FERRAMENTA NEOLIBERAL À
NOVA MORFOLOGIA DO TRABALHO DOCENTE1
Filipe Bellinaso2
Henrique Tahan Novaes3
Resumo
A pandemia de COVID-19 intensificou o diálogo sobre a interseção entre tecnologia e educação, mas
é crucial compreender que esse debate não é exclusivo do momento atual. Ao direcionarmos nosso
olhar para a realidade brasileira, torna-se incontestável o notável crescimento da Educação a
Distância (EaD) ao longo dos últimos 15 anos. Este ensaio propõe-se a fornecer elementos para
reflexão, destacando como a modalidade de ensino a distância não apenas reflete o avanço
neoliberal na educação, mas também se configura como um componente essencial na reestruturação
produtiva do trabalho docente.
Palavras-chave: Educação a Distância; Neoliberalismo; Trabalho Docente.
EDUCACIÓN A DISTANCIA EN BRASIL: DE LA HERRAMIENTA NEOLIBERAL A LA NUEVA
MORFOLOGÍA DEL TRABAJO DOCENTE
Resumen
La pandemia de COVID-19 ha intensificado el diálogo sobre la intersección entre tecnología y
educación, pero es crucial comprender que este debate no es exclusivo del momento actual. Ao
direcionarmos nosso olhar para a realidade brasileira, torna-se incontestável o notável crescimento da
Educação a Distância (EaD) ao longo dos últimos 15 años. Este ensayo se propone formar elementos
para la reflexión, destacando como una modalidad de enseñanza a distancia que no refleja el avance
neoliberal de la educación, pero también se configura como un componente esencial de la reestrutura
productiva del trabajo docente.
Palabras clave: Educación a distancia; Neoliberalismo; Trabajo Docente.
DISTANCE EDUCATION IN BRAZIL: FROM THE NEOLIBERAL TOOL TO THE NEW
MORPHOLOGY OF TEACHING WORK
Abstract
The COVID-19 pandemic has intensified the dialogue on the intersection between technology and
education, but it is crucial to understand that this debate is not exclusive to the current moment. Now
we are looking forward to the Brazilian reality, becoming incontestable or notable growth of Distance
Education (EaD) over the last two 15 years. This assay aims to provide elements for reflection,
highlighting how the distance learning modality does not barely reflect the neoliberal advance in
education, but is also configured as an essential component in the productive restructure of teaching
work.
Keyword: Distance Education; Neoliberalism; Teaching Work.
3Doutor em Política Científica e Tecnológica pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), São Paulo -
Brasil. Professor Livre Docente da Faculdade de Filosofia e Ciências da Unesp.
Email: hetanov@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/5282506732444510.
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5247-3684.
2Mestre e doutorando no Programa de Pós-graduação em Educação na Universidade Estadual Paulista
(UNESP), São Paulo - Brasil. Bacharel e Licenciado em Ciências Sociais na Universidade Estadual Paulista
(UNESP), São Paulo - Brasil. Email: filipebellinaso@yahoo.com.br.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/8753129617940989. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0129-893X.
1Artigo recebido em 09/03/2024. Primeira Avaliação em 31/03/2024. Segunda Avaliação em 05/05/2024.
Aprovado em 19/06/2024. Publicado em 07/08/2024.
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v22i48.62235.
1
Introdução
Dentre os diversos impactos decorrentes da pandemia de Covid-19, poucas
delas despertaram a consciência para transformações que estavam em curso,
mas que, por força das circunstâncias, foram aceleradas e se tornaram mais visíveis
naquele contexto. É inegável que a Educação a Distância (EaD), desde o início da
década de 1990 até os dias que antecederam a pandemia, vinha gradualmente se
tornando uma presença constante no cotidiano das pessoas (Bellinaso, 2020; Brasil,
2022). Isso se manifestava por meio de propagandas de cursos técnicos
formalizados via telecomunicação/impresso, até os incessantes anúncios que
bombardeavam as plataformas de publicidade online.
No entanto, a crise desencadeada pela pandemia de Covid-19 levou a EaD a
adentrar virtualmente os lares de praticamente todos os brasileiros, tornando-se uma
necessidade premente para superar os desafios do momento. Ao longo de cerca de
dois anos em que a educação como um todo foi compelida a adotar esta
modalidade, uma série de novas pesquisas emergiram, buscando analisar os
diversos elementos que caracterizavam esse "novo normal".
Contudo, o senso comum, até mesmo dentro do meio acadêmico, negligencia
ou simplesmente ignora o fato de que a educação a distância era uma modalidade
consolidada e em expansão no Brasil. Além disso, abordam a questão como uma
eventualidade, sustentando o discurso da "democratização do acesso", quando, na
realidade, trata-se de uma modalidade de ensino cujo crescimento e avanço
dialogam diretamente com o neoliberalismo.
Assim sendo, o objetivo deste trabalho é estimular o debate em torno da
necessidade de compreender a modalidade de ensino a distância como um dos
meios pelos quais, no contexto da reestruturação produtiva do capital, o capitalismo
encontrou para aprofundar o processo de “neoliberalização” da educação e para
introduzir uma nova morfologia do trabalho no âmbito do profissional docente.
De acordo com Reis (2012), a pesquisa bibliográfica oferece ao pesquisador a
possibilidade de se aprofundar em um conjunto de conhecimentos, uma vez que a
ciência é uma construção histórica. Nesse sentido este trabalho parte de uma
análise bibliográfica dividida em quatro pilares principais: a) a análise do capitalismo
financeiro; b) a análise do neoliberalismo; c) a análise da nova morfologia do
2
trabalho e; d) entender como EaD se desenvolve entrelaçado aos três pilares
anteriores.
Capitalismo Financeiro
Quando se olha para o cenário educacional privado brasileiro contemporâneo,
é inevitável observar empresas como Kroton / Cogna que tem cada vez mais
concentrado em suas mãos o acesso ao ensino superior no Brasil. De acordo com o
Inep (BRASIL, 2022), hoje no Brasil, o número de ingressantes no ensino superior é
maior via modalidade à distância do que no modelo tradicional. Esta empresa pode
ser vista como exemplo claro do avanço do capitalismo financeiro na educação,
refletindo a lógica neoliberal de mercantilização do ensino. Sua trajetória evidencia
uma busca incessante pela maximização dos lucros, exemplificada pela
padronização dos currículos e pela dependência significativa de programas
governamentais como o FIES e o Prouni. A empresa também se destacou por
adotar práticas típicas do capitalismo financeiro, como a recompra de ações e a
manipulação de resultados financeiros para favorecer executivos e investidores
(Costa, 2018). Nesse sentido, entender as características do capitalismo financeiro,
auxilia numa compreensão maior sobre a expansão da oferta da EaD.
Para a grande maioria do senso comum, o capital é frequentemente percebido
como um bem material dotado de "poderes naturais", uma vez que o lucro é
interpretado como um simples excedente produtivo, como os fisiocratas o atribuíam,
considerando o excedente econômico como uma dádiva da terra, um presente da
natureza. Essa visão prevalece em grande parte devido à negação do fato de que o
capital é uma consequência de relações sociais historicamente constituídas. É
exatamente por essa razão que ele se mostra mutável ao longo do tempo. O capital
deve ser compreendido como o conjunto de recursos, sejam materiais ou imateriais,
que proporcionam aos indivíduos um determinado grau de produtividade, incluindo
máquinas, ferramentas, matérias-primas e o que no mundo contemporâneo é
denominado de capital humano (Schultz, 1973).
Outra questão relevante a ser destacada é a frequentemente confusa relação
entre o capital e o capitalismo, sendo crucial compreender que o capital antecede
essa forma de organização econômica. Desde a antiguidade, o capital comercial
exercia sua influência e importância, como argumentado por Singer (1984). O
3
mercador, segundo o autor, surgiu como resultado da divisão do trabalho em seu
período histórico, atuando como intermediário entre produtor e consumidor. Embora
o comerciante não contribua diretamente para a produção material, ele possibilita
aos produtores dedicarem mais tempo à produção direta.
No entanto, uma diferença crucial emerge ao transitarmos da simples troca de
mercadorias para a utilização ampliada do equivalente geral, o dinheiro. É a partir da
mercadoria dinheiro que se originam o capital monetário (ou capital usurário), o
capital industrial e o capital financeiro. Importante salientar que as diferentes formas
predominantes de capital estão intrinsecamente relacionadas com as formas
predominantes de trabalho. O capitalismo contemporâneo, frequentemente
denominado de capitalismo financeiro, tem sido objeto de debates por diversos
pensadores. Nesse contexto, para uma compreensão mais aprofundada desse
processo, é essencial recorrer à categoria marxista de capital fictício.
Ao longo do desenvolvimento do capitalismo comercial e industrial, Marx
(2017) descreve o processo de geração de capital como uma sequência na qual
uma quantidade específica de dinheiro se transforma em uma mercadoria
determinada e, posteriormente, converte-se em uma quantia maior do que a inicial,
sintetizado pela expressão D - M - D’. No contexto capitalista em que Marx viveu,
surge o capital monetário, representando dinheiro emprestado a um capitalista para
reinvestir em sua produção, sendo posteriormente devolvido com juros após a
obtenção de lucro.
Essa evolução resulta em uma nova expressão, D - D - M - D’- D’, dividida em
três etapas. A primeira delas representa o investimento inicial, D - D, somando o
dinheiro investido pelo capitalista ao montante emprestado, resultando em um
capital inicial ampliado. A segunda etapa reflete o movimento do capitalismo
industrial para gerar valor, D - M - D’, transformando o capital inicial em mercadoria
que, por sua vez, gera um capital maior. A última etapa, D’- D’, representa o capital
final, no qual uma parcela é devolvida ao credor com juros (D’), e outra permanece
com o capitalista.
Dentro dessa lógica, Marx observa que o dinheiro age como capital, pois,
além de seu valor como moeda, ele se apropria de uma parte do valor gerado pelo
trabalho não remunerado. Nesse cenário, ocorrem dois tipos de lucro: o do
empresário capitalista, extraído da produção, e o lucro daquele que emprestou o
dinheiro, proveniente dos juros. Assim, o detentor do dinheiro passa a receber uma
4
parcela do lucro simplesmente por possuir e utilizar o dinheiro como capital (Marx,
s/d).
Na aparência, a relação entre prestamista e capitalista advinha de
mero acordo jurídico, de contrato estabelecido. Assim, Marx (s/d, p.
403) afirmara que “[...] o retorno do capital nessa transação não
parece mais resultar do processo de produção e tudo se passa como
se o capital emprestado nunca tivesse perdido a forma dinheiro”. Se,
no movimento de troca de mercadorias, as relações sociais são
encobertas e assumem “a forma fantasmagórica de uma relação
entre coisas” (MARX, 2013, p.147), na relação do dinheiro como
capital, essa reificação se renova intensificada. Tem-se a ilusão de
que dinheiro produz dinheiro (D D’). É o ápice do fetichismo
(MARX, S/D APUD. GALZERANO, 2022, P. 25).
Dessa maneira, conforme a perspectiva de Marx, o capital portador de juros
(também designado, em algumas traduções, como capital produtor de juros) adquire
uma característica peculiar enquanto mercadoria. Seu valor de uso reside na
capacidade intrínseca de criar condições favoráveis para a geração de valor, tanto
para o detentor original quanto para aquele que o toma por empréstimo. A partir da
expansão desse capital portador de juros, emerge o desenvolvimento do sistema
financeiro, no qual as transações do capital monetário se ampliam a ponto de
perderem sua conexão com uma base material tangível, resultando em uma
existência essencialmente fictícia.
Com o desenvolvimento do capital produtor de juros e do sistema de
crédito, todo capital parece duplicar-se e às vezes triplicar-se em
virtude das diferentes formas em que o mesmo capital ou o mesmo
título de crédito se apresenta em diferentes mãos. A maior parte
deste “capital-dinheiro” é puramente fictícia. Excetuando o fundo de
reserva, todos os depósitos, embora sejam créditos contra o
banqueiro, não têm existência efetiva. (MARX, s/d, p. 541).
Os títulos de propriedade transformam-se em mercadorias que circulam entre
diferentes proprietários, muitas vezes em movimentos desconectados do mundo
real. Nesse cenário, o valor desses títulos torna-se sujeito a flutuações que não
necessariamente refletem o valor real dos ativos subjacentes. Em vez disso, esses
títulos passam a ser orientados predominantemente pelo domínio da especulação
em detrimento do domínio material.
É relevante destacar que o capital portador de juros difere do capital fictício,
embora, em algumas ocasiões, ambos possam ser confundidos. O segundo surge
como uma consequência da ilusão social criada pelo primeiro. Essa ilusão baseia-se
5
na crença de que a mera posse de dinheiro resulta, quase que automaticamente, em
rendimentos, alimentando a ideia de que " a ilusão que toda remuneração regular se
origina da existência de um capital" (Galzerano, 2022, p. 26). Inicialmente
denominado ilusório, esse capital carece de significado no contexto econômico.
Contudo, ao se transformar em um título passível de negociação, ele assume a
forma de um capital fictício.
[...] o capital fictício nasce como consequência da existência
generalizada do capital a juros, porém é o resultado de uma ilusão
social. E por que devemos chamá-lo de capital fictício? A razão está
no fato de que por detrás dele não existe nenhuma substância real e
porque não contribui em nada para a produção ou para a circulação
da riqueza, pelo menos no sentido de que não financia nem o capital
produtivo, nem o comercial. (CARCANHOLO; SABADINI, 2009,
p.43).
Desta forma, complementa os autores:
[...] o capital fictício tem como origem três fontes: a) a transformação
em títulos negociáveis do capital ilusório, b) a duplicação aparente do
valor do capital a juros (no caso das ações e dos títulos públicos) e c)
a valorização especulativa dos diferentes ativos. Esse capital fictício
de três diferentes origens tem em comum o fato de que, ao mesmo
tempo em que é fictício, é real. É real do ponto de vista do ato
individual e isolado, no dia-a-dia do mercado, quer dizer, do ponto de
vista da aparência; é a dialética fictício/real. (CARCANHOLO;
SABADINI, 2009, p.45).
O desenvolvimento do capital fictício marca a disseminação e consolidação do
capitalismo especulativo, em que a especulação gradualmente adquire uma
importância equivalente, senão superior, à realidade concreta material. Conforme
argumentado por Carcanholo e Sabadini (2009), nesse contexto emergem os
chamados lucros fictícios, cujo caráter é paradoxal. Por um lado, esses lucros são
considerados reais, pois permitem a aquisição de outras mercadorias; por outro
lado, não têm sua origem no excedente do trabalho. Esse capital revela-se
extremamente volátil, sujeito a valorizações e depreciações frequentes, uma vez que
se baseia fortemente em especulações.
Neoliberalismo
Quando se observa, de um lado, o processo de expansão do neoliberalismo
no Brasil, e do outro, o processo de expansão da educação a distância no país, em
6
ambos os casos o pesquisador é levado à década de 1990. Como demonstrado por
Bellinaso (2020), o fato de ambos os movimentos estarem situados dentro de um
mesmo período histórico não é uma mera obra do destino, mas se pelo fato desta
modalidade de ensino servir como ferramenta extremamente funcional para o
processo de neoliberalização no Brasil. Com isso, se faz importante realizar algumas
anotações sobre o neoliberalismo, para assim, entender melhor sua articulação com
a Ead.
Definir o neoliberalismo é uma tarefa complexa. Explorar as características
fundamentais do liberalismo, compreender como o neoliberalismo se reflete em
políticas públicas e analisar seu impacto nas formas de trabalho auxiliam na
compreensão desse fenômeno. Porém, é necessário esclarecer alguns aspectos.
Um ponto de debate relevante surge quanto à legitimidade do conceito de
neoliberalismo, especialmente no campo teórico das ciências sociais. Alguns
pesquisadores, como Draibe (1993), questionam se o neoliberalismo representa
verdadeiramente uma inovação ou se é apenas um resgate do pensamento liberal,
reduzindo-se à afirmação genérica da liberdade e da primazia do mercado sobre o
Estado. Nessa perspectiva, o neoliberalismo é visto mais como um conjunto de
regras e práticas do que como uma teoria estruturada, assemelhando-se a um "livro
de regras" em vez de uma tese argumentativa.
Contudo, mesmo com essas dúvidas sobre sua validade conceitual, o
neoliberalismo persiste como um termo associado a um zeitgeist político-econômico,
conforme destacado por John Clarke (2008). Venugopal (2015) argumenta que a
construção do conceito é mais obra de seus críticos do que de seus proponentes,
ressaltando sua associação com uma moral-crítica. Apesar das controvérsias,
Andrade (2019) enfatiza que esse caráter moral-crítico confere ao conceito uma
potencialidade significativa, mobilizando tanto pesquisadores quanto atores políticos.
Se o conceito por vezes designa alvos contraditórios e margem a
acusações recíprocas entre teorias, este fato se deve à própria
potência do termo. Assim como ocorre com outros conceitos
(democracia, populismo, poder etc.), que são dotados de caráter
fortemente normativo, de natureza multidimensional e de abertura
para modificações ao longo do tempo, o neoliberalismo torna-se alvo
de disputas e, portanto, de dispersão conceitual, de inconsistência
terminológica e de definições fracas. Seus próprios críticos
reconhecem ocorrências similares endêmicas nas ciências sociais
(Boas & Gans-Morse, 2009; Venugopal, 2015). Essa deriva, no
entanto, não é por si capaz de criar confusão entre os atores
7
políticos. Na medida em que os movimentos sociais têm suas
próprias perspectivas de luta, eles não necessariamente ficam
perdidos pelas variações conceituais, pois são capazes de perceber
quais definições são mais interessantes estrategicamente, ao mesmo
tempo em que podem refinar os seus alvos e refletir sobre os
pressupostos teóricos de sua crítica. (ANDRADE, 2019, p. 216).
Quando realizamos o “teste do olho”, por mais reflexivos que possam ser os
argumentos contra a validade do conceito de neoliberalismo, a observação revela
uma série de metamorfoses polícia-econômico-sociais. Por mais que Hilgers (2011)
faça tal afirmação relacionada a sua área de conhecimento, pode-se expandi-la,
sendo assim:
quando o neoliberalismo é implementado e suas práticas e
linguagem associadas afetam nossa compreensão dos seres
humanos, modificando relações sociais, instituições e seus
funcionamentos, que ele se torna um objeto apropriado para a
antropologia. Uma vez que ele se torne envolvido na estruturação
concreta do mundo da interação social e da experiência e exerça
uma influência real sobre a maneira pela qual os agentes pensam e
problematizam suas vidas, pesquisas podem ser levadas a cabo no
campo e teorias emergem buscando analisá-lo e estabelecer seus
efeitos, ao mesmo tempo evitando sua retificação (HILGERS, 2011).
No âmbito desse debate, conceitos como o neoliberalismo se destacam como
objetos e instrumentos cruciais em disputas teóricas e políticas. Considerando todos
os elementos discutidos, este trabalho argumenta que não apenas é pertinente, mas
também é imperativo abordar o conceito de neoliberalismo. A complexidade em
torno dessa discussão é evidenciada por três fatores: a) a falta de convergência e
unanimidade sobre o conceito, mesmo entre aqueles que se autodenominam
neoliberais; b) a natureza dinâmica do neoliberalismo, sujeito a constantes
mudanças em suas pautas; e c) a discrepância entre a prática neoliberal e a teoria
neoliberal, contribuindo para uma abordagem nebulosa desse fenômeno.
Apesar dessas dificuldades, Moraes (2001) nos fornece uma forma
interessante de observar o neoliberalismo, do qual é compreendido como uma
trindade estabelecida pelos seguintes aspectos:
1. uma corrente de pensamento e uma ideologia, isto é, uma
forma de ver e julgar o mundo social;
2. um movimento intelectual organizado, que realiza reuniões,
conferências e congressos, edita publicações, cria think tanks, isto é,
centro de gerações de idéias e programas, de difusão e promoção de
eventos;
3. um conjunto de políticas adotadas pelos governos
8
neoconservadores, sobretudo a partir da segunda metade dos anos
70, propagadas pelo mundo a partir das organizações multilaterais
criadas pelo acordo de Bretton Woods (1945), isto é, o Banco
Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI). (MORAES, 2001,
p. 3)
Os três significados abordados pelo autor formam a compreensão mais
abrangente do neoliberalismo, e, nesse contexto, um ponto de convergência
entre eles, pois todos apontam para a sugestão de um retorno a um modelo ideal
(Moraes, 2001, p. 3). Assim, é essencial compreender o liberalismo como base para
a compreensão do neoliberalismo, visto que este último representa um resgate e
aprimoramento de uma nova realidade do primeiro.
Ao analisar o neoliberalismo sob a perspectiva ideológica, é crucial
compreender os princípios defendidos por seus teóricos, conforme delineado por
Martins (2009). Esses fundamentos incluem: a) a concepção do mercado como o
principal organizador social; b) o individualismo destacado como o valor moral
primordial; c) a supervalorização da ideia de "liberdade"; e d) a intensificação da
proposta de um estado mínimo.
No que diz respeito ao "mercadocentrismo", ou a crença de que o mercado
desempenha um papel central na organização social (Bianchetti, 2005), a
perspectiva de Hayek enfatiza o mercado como um mecanismo autorregulador não
apenas da economia, mas também das relações sociais. Esse fenômeno garante a
realização das individualidades, sendo a autorregulação do mercado, conhecida
como "mão invisível", resultante da soma das múltiplas individualidades. Sob essa
ótica, o mercado é considerado sinônimo de eficiência e agilidade na abrangência de
diversas atividades relacionadas à produção de bens e à prestação de serviços
públicos (Santos; Paixão, 2014, p. 73).
Prosseguindo, o individualismo é destacado como um valor moral
fundamental, com Hayek sendo um fervoroso defensor do princípio da liberdade
individual. O pensador sustentava a importância do "poder de decisão" como um
direito universal que todos os indivíduos deveriam possuir.
O indivíduo para o neoliberalismo é, portanto, o resultado da "sorte",
que determina as suas aptidões e capacidades naturais. É o fruto de
uma medida arbitrária que estabelece o tipo de família, o meio
cultural e as oportunidades que aparecem ao longo da vida sem a
intervenção do outro (BIANCHETTI, 2005). É um sujeito “a-histórico”
que se move por meio de seu interesse e dispensa a noção de
totalidade, diferentemente do pensamento marxista, que procura não
9
separar a constituição do ser social das condições em que está
inserido na sociedade, considerando que o homem não se
desenvolve sozinho, mas na coletividade, construindo a sua história
sob determinadas circunstâncias. (SANTOS; PAIXÃO, 2014, p. 74).
O terceiro ponto a ser enfatizado é a sobrevalorização da ideia de "liberdade".
Essa concepção é apresentada como o "poder supremo" de origem natural, neutro e
responsável por orientar os indivíduos em suas vontades, estabelecendo, assim,
uma conexão direta com o mercado. Segundo Martins (2009, p. 40), "A liberdade é
uma atividade histórica condicionada pela forma de produção coletiva da existência
(...) a liberdade significa o direito a ser explorado, para os que vendem a força de
trabalho, e para ser explorador, para os que detêm os meios de produção".
Por fim, o discurso da minimização da intervenção estatal.
Sua gênese estaria ligada à ideia de um “acordo” entre indivíduos no
sentido de preservação desses direitos. Sua estrutura corresponderia
mais especificamente à ideia de governo. Sua função seria a de
preservar um ambiente de liberdade de escolhas e, quando
necessário, empregar o uso legítimo da força para defesa do
indivíduo autônomo e do mercado (MARTINS, 2009, p. 40).
Segundo a perspectiva neoliberal, a estrutura estatal se transforma em um
mero instrumento para assegurar as exigências do mercado. Nesse contexto, sua
intervenção na sociedade não deve ser direta; ao contrário, deve focar na promoção
da máxima liberdade entre os indivíduos.
Dessa forma, a política neoliberal propõe integralmente o corte dos
gastos com políticas sociais e com o funcionamento do Estado para
tal fim, ao passo que o investimento no campo econômico se torna
essencial para o fortalecimento do capital financeiro. Ou seja, os
direitos sociais, como saúde, educação, segurança, alimentação,
dentre outros, são transferidos para o âmbito do mercado. É uma
nova configuração societária, mas que continua privilegiando os
interesses das frações burguesas em detrimento das necessidades
da classe trabalhadora (SANTOS; PAIXÃO, 2014, p. 76).
Ao observar esses elementos que compõem o neoliberalismo, é notável que
muitos deles se relacionam diretamente com as possibilidades permitidas pela EaD.
Esta modalidade de ensino se manifesta como um importante mecanismo de
mercantilização da educação, sobretudo da ampliação da mais-valia, uma vez que
permite a elaboração de cursos com investimentos mais baratos e lucros mais altos,
ao ampliar a oferta de forma praticamente industrial/fabril. Um argumento
frequentemente utilizado pelos defensores desta modalidade é o da valorização dela
10
por oferecer um ensino mais “livre” e “individual”, uma vez que ele desenvolve
melhor a autonomia do aluno, que dialoga diretamente com o discurso ideológico
neoliberal de valorização das individualidades e liberdades.
A Nova Morfologia do Trabalho
A obra "Os Tempos Modernos" de Charles Chaplin é frequentemente utilizada
como recurso didático para ilustrar a morfologia do trabalho no século XX,
especialmente nas universidades e no ensino médio. A fábrica automotiva,
destacada na obra, simboliza o ponto de partida das transformações no mundo do
trabalho ao longo do século passado, enfatizando o predomínio do proletariado
industrial e rural. No século XXI, emerge um novo proletariado ligado aos serviços,
como call-centers, telemarketing, indústria hoteleira, fast-foods e entregadores de
aplicativos, resultado de uma nova morfologia do trabalho associada ao
neoliberalismo. Autores como Gorz (1985) e Habermas (1987) debateram a possível
extinção da classe trabalhadora, prevendo uma transição para uma sociedade de
classe média. No entanto, a realidade nas periferias do capitalismo revela bilhões de
pessoas ocupando trabalhos cada vez mais precários, desafiando as previsões de
extinção da classe trabalhadora.
Ao contrário do que ditava a equivocada “previsão” do fim do
trabalho, da classe trabalhadora e da vigência da teoria do valor, o
que temos, de fato, é uma ampliação do trabalho precário, que atinge
(ainda que de modo diferenciado) desde os trabalhadores e
trabalhadoras da indústria de software até os de call-center e
telemarketing o infoproletariado ou cibertariado -, alcançando de
modo progressivo os setores industriais, da agroindústria, dos
bancos, do comércio, do fast-food, do turismo e hotelaria etc./ e
incorporando até mesmo os trabalhadores imigrantes, cujos números
se expandem em todas as partes do mundo. É quase impossível,
hoje, encontrar qualquer trabalho que não tenha alguma forma de
dependência do aparelho celular. (ANTUNES, 2020a, p. 13).
Ricardo Antunes (2020b) destaca que, a partir da segunda metade do século
XX, o capitalismo passa por uma constante reestruturação produtiva, com
maquinários e tecnologias tornando-se obsoletos em intervalos cada vez mais
curtos. Essas inovações, centradas na revolução informacional, continuamente
transformam a natureza do trabalho, impactando diversos setores, desde jornaleiros
até funcionários públicos e professores. Paralelamente, as empresas passam por
11
uma significativa transformação, tornando-se mais flexíveis, abandonando a
remuneração fixa, jornadas pré-determinadas, e desconsiderando a organização
sindical e os espaços laborais fixos. Um reflexo marcante dessa flexibilidade é
observado nos trabalhos intermitentes, caracterizados pela disponibilidade constante
do trabalhador para atender à demanda, sem definição prévia de dias ou horários de
trabalho, gerando uma grande contingência de trabalhadores em espera para
possíveis chamadas de trabalho.
É por isso que, nesse mundo do trabalho digital e flexível, o
dicionário empresarial não para de “inovar”, em especial no setor de
serviços. “Pejotização” em todas as profissões, com médicos,
advogados, professores, bancários, eletricistas, trabalhadoras e
trabalhadores do care (cuidado) e “frilas fixos”, freelancers que se
tornam permanentes, mas que têm seus direitos burlados e se
escondem em redações dos jornais quando as empresas sofrem as
auditorias do trabalho. Ou ainda o chamado teletrabalho e/ou home
office, que se utiliza de espaços fora da empresa, como o ambiente
doméstico, para realizar atividades laborativas. Isso pode trazer
vantagens, como economia de tempo em deslocamentos, permitindo
uma melhor divisão entre trabalho produtivo e reprodutivo, dentre
outros pontos positivos. Mas com frequência é, também, uma porta
de entrada para a eliminação dos direitos do trabalho e da
seguridade social paga pelas empresas, além de permitir a
intensificação da dupla jornada de trabalho, tanto o produtivo quanto
o reprodutivo (sobretudo no caso das mulheres). Outra consequência
negativa é a de incentivar o trabalho isolado, sem sociabilidade,
desprovido do convívio social e coletivo sem repressão sindical
(ANTUNES, 2020b, p. 39).
No contexto do capitalismo contemporâneo, as empresas se afastam dos
modelos produtivos taylorista e fordista do século passado, adotando abordagens
flexíveis e informacionais. Essas organizações buscam estabelecer um novo modelo
empresarial global, utilizando ferramentas como flexibilidade, informalidade e
intermitência. Esse movimento resulta no desmantelamento das antigas legislações
protetoras e na implementação de novas leis que facilitam práticas antigas de
exploração. Em um cenário de avanço tecnológico, uma parte dos trabalhadores
enfrenta a flexibilização e a intensificação de suas atividades, tornando-se apêndices
dos aparelhos tecnológicos que impõem um ritmo acelerado, demandando
profissionais polivalentes e sujeitos a uma gestão que pressiona psicologicamente
por maior produção. Ao mesmo tempo, a maioria da classe trabalhadora lida com
novas modalidades de vínculos e condições de trabalho marcadas pela insegurança
e vulnerabilidade.
12
O trabalho intermitente destaca-se como um resumo desse processo de
transformação da morfologia do trabalho no capitalismo contemporâneo.
Exemplificado por contratos como o zero hour contract, originário do Reino Unido,
onde os trabalhadores ficam disponíveis em uma plataforma aguardando chamados,
sendo remunerados apenas pelo tempo efetivamente trabalhado,
independentemente do tempo de espera. Outro exemplo é encontrado em empresas
como a Uber, onde os trabalhadores são proprietários das ferramentas de produção,
arcam com despesas, mas a empresa se apropria da mais-valia produzida. Apesar
do discurso ideológico que promove a flexibilidade e a liberdade, a observação mais
próxima revela que esses discursos servem como mecanismos de transferência de
riscos e aumento do controle das empresas sobre os trabalhadores, especialmente
através do uso de plataformas e aplicativos.
A negação do assalariamento é elemento central da estratégia
empresarial, pois sob a aparência de maior autonomia (eufemismo
para burlar o assalariamento e efetivar a transferência dos riscos), o
capital busca, de fato, ampliar o controle sobre o trabalho para
recrudescer a exploração e a sujeição. (FILGUEIRAS; ANTUNES,
2020, p. 60).
Assim, a flexibilização se configura como uma síntese representativa da nova
morfologia do trabalho, segundo Antunes (2020b), atuando como uma organizadora
que fundamenta as alterações na sociabilidade do capitalismo contemporâneo. Esse
fenômeno, de acordo com o pesquisador, resulta na redução da separação entre
atividade laboral e espaço da vida privada, no desmonte da legislação trabalhista e
no surgimento do desemprego estrutural. Além disso, a consolidação do trabalho
virtual nos setores de serviços traz uma nova dinâmica em relação à geografia,
tornando-se menos vinculada a um local específico, o que é enfatizado por Graham
e Anwar (2020) ao destacar a modularização, mercadorização e padronização das
tarefas de trabalho. Esse novo cenário não se limita aos arredores da empresa,
abrangendo uma amplitude geográfica significativa. Contudo, associado ao discurso
ideológico de meritocracia e competição, incentiva uma disputa entre os
trabalhadores. A nova morfologia do trabalho, caracterizada por formas flexíveis e
virtuais, reflete a estratégia capitalista de minar as condições laborais e, mais crucial
ainda, inibir as organizações e resistências dos trabalhadores, tornando desafiadora
a mobilização entre diferentes localidades e, muitas vezes, impedindo a interação
entre os próprios trabalhadores, como observado no caso do trabalho intermitente.
13
Vivemos um momento de contradição quase irônica do capitalismo
contemporâneo. Do ponto de vista técnico, a utilização das TIC na
gestão do trabalho torna a identificação e a efetivação de direitos
aos/às trabalhadores/as mais fácil do que em qualquer outro período
da história. Contudo, o discurso de que estamos diante de novas
formas de trabalho, não sujeitas à regulamentação protetiva (ou o de
que não seria possível existir tal regulação), tem desempenhado
papel fundamental para legitimar, incentivar, cristalizar e acentuar a
falta de limites à exploração do trabalho e à precarização de suas
condições. A mesma tecnologia que torna a regulamentação
tecnicamente mais fácil é apresentada como fator que inviabilizaria a
proteção dos trabalhadores. E esse contraditório e complexo
movimento, típico da razão instrumental e de suas engrenagens de
cominação, tem impactado fortemente as legislações e as
instituições públicas, além de constituir um elemento a mais para
dificultar e obliterar a criação de laços de solidariedade e de
organização da classe trabalhadora. (FILGUEIRAS, ANTUNES,
2020, p. 60-61).
Antunes (2020b) destaca a relevância de compreender a atual transformação
do mundo do trabalho no contexto da hegemonia da indústria 4.0. Esse fenômeno,
caracterizado pela presença da "internet das coisas" e impulsionado pela proposta
empresarial e pela dominação informacional-digital, não se limita à indústria,
estendendo seus impactos a diversos setores de emprego. A ampliação do trabalho
morto, marcada pela substituição crescente do trabalho humano por ferramentas
como inteligência artificial, big data e outras tecnologias, é uma das principais
consequências dessa revolução industrial. No entanto, Antunes ressalta a
interdependência entre o trabalho humano e a tecnologia, enfatizando que, para que
ocorra esse avanço tecnodigital, é necessário um expressivo conjunto de trabalhos
manuais que se expandem globalmente.
Os pensadores marxistas muito alertam para o fato de que o
desenvolvimento tecnológico ocorre em consonância com os interesses do capital,
priorizando a competitividade e a geração de lucro em detrimento das necessidades
sociais e dos trabalhadores. As transformações tecnológicas, segundo Antunes
(2020a), são orientadas para criar mecanismos que favoreçam as indústrias e
empresas em suas disputas comerciais. Assim, a privatização dos serviços e a
introdução das novas tecnologias digitais ampliam a teoria do valor, evidenciando
que, apesar de algumas propostas de superação, persiste uma relação desfavorável
aos trabalhadores no contexto contemporâneo.
14
Com salários menores, jornadas de trabalho prolongadas,
vicissitudes cotidianas que decorrem da burla de legislação social
protetora de trabalho, a terceirização assume cada vez mais relevo,
tanto no processo de corrosão do trabalho e de seus direitos como
no incremento e na expansão de novas formas de trabalho produtivo
geradoras de valor. Essas novas modalidades de trabalho veem
assumindo um destaque crescente não no mundo da produção
material mas na circulação de capital e agilização das informações,
esferas que são com frequência realizadas por atividades também
imateriais, que ganham cada vez mais importância na reprodução
ampliada do capital financeirizado, informacional e digital.
(ANTUNES, 2020b, p. 34).
EaD como ferramenta neoliberal e a nova morfologia do trabalho docente:
precarização real do trabalho virtual
O neoliberalismo consolidou sua presença no Brasil a partir do governo de
Fernando Collor, intensificando-se durante os mandatos de Fernando Henrique
Cardoso, marcados por privatizações e um discurso favorável ao “Estado Mínimo”.
Essa influência neoliberal se estendeu ao setor educacional, sendo caracterizada
por três pilares essenciais: a mercantilização da educação, as parcerias
público-privadas e o aligeiramento das formações. Estes elementos formam um
triângulo interconectado, cada um possuindo características próprias que se
complementam (NOVAES; OKUMURA, 2021).
A mercantilização da educação, conforme apontado por Galzerano (2022),
não se deu formalmente através da adesão às concepções do Acordo Geral do
Comércio de Serviços (GATS), mas, na prática, o Brasil não desenvolveu
mecanismos eficazes para impedir a expansão desse processo. O ensino privado
experimentou um notável crescimento em várias dimensões, abrangendo desde os
níveis infantil até o superior, incluindo diversas modalidades como técnicas,
tecnólogas, reforço, entre outras. Paralelamente, a mercantilização foi mascarada
pelo Plano Diretor de Reforma do Aparelho do Estado de Bresser Pereira (2000),
que permitiu a gestão privada de setores educacionais públicos, ampliando ainda
mais a presença do setor privado na oferta de serviços educacionais.
O segundo pilar refere-se às parcerias público-privadas. Na década de 1990,
a orientação da educação brasileira seguia as diretrizes de organismos multilaterais,
como o Banco Mundial e a ONU. Nesse contexto, foram criadas e estruturadas
condições que permitiram às instituições privadas não apenas comercializar a
educação, mas também influenciar suas decisões. Entidades como o Instituto Ayrton
15
Senna, Fundação Itaú, Fundação Bradesco, Instituto Lemann, entre outros,
passaram a ser cada vez mais consultadas sobre questões relacionadas à educação
nacional.
Diversas manifestações práticas dessa parceria entre o setor público e
privado podem ser destacadas, sendo a produção de livros didáticos uma das mais
significativas, conforme evidenciado por Galzerano (2022). Com a legitimação do
Programa Nacional do Livro Didático durante o governo de Fernando Henrique, o
Estado passou a investir vultuosas quantias na iniciativa privada por meio da
aquisição desses materiais. Em 2012, por exemplo, cerca de 1,5 milhões de reais
foram destinados ao Programa Nacional do Livro Didático. Somente nesse mesmo
ano, a empresa Somos Educação recebeu 380 milhões de reais em recursos
provenientes desse programa.
O último pilar, denominado "aligeiramento das formações", refere-se a
práticas educacionais que surgem durante o avanço neoliberal, resultando em uma
formação profissional mais rápida, menos aprofundada, mais técnica e voltada
principalmente para atender às demandas do mercado de trabalho. Nesse contexto,
a educação a distância (EaD) ganha destaque, permitindo flexibilidade no espaço e
tempo de aprendizado. Em 2017, uma propaganda com Luciano Huck causou
indignação ao promover um curso de pedagogia via EAD, com duração de 6 meses
a 1 ano, com o objetivo de "complementar a renda". O ensino a distância, ao
transcender limitações de espaço e tempo, oferece benefícios educacionais, embora
sua eficácia varie entre aqueles que buscam uma expansão democrática da
educação e os que veem oportunidades lucrativas.
Quando olhamos para a realidade concreta da Educação a Distância no
Brasil, de acordo com o último Censo EaD da ABED (Associação Brasileira de
Educação a Distância) referente ao ano de 2021, foram ofertados 76.376.850 cursos
de graduação via EaD, gerando 2.477.374 ingressantes (sendo apenas 42.422 em
cursos públicos), enquanto 6% das matrículas das instituições públicas foram para
cursos via EaD, na rede privada, 51% das matrículas são para cursos desta
modalidade (ABED, 2022). Apesar de a oferta de cursos de graduação a distância
terem duplicado durante a pandemia, em todos os censos realizados pela ABED,
sempre apresentou um contínuo crescimento desta oferta, onde dos anos 2010 até
hoje, ano após ano está quebrando recordes.
16
Os números expressivos na Educação a Distância não são coincidência; são
reflexo da sua extrema atratividade para o capitalismo contemporâneo e o
neoliberalismo. A ênfase comercial no surgimento do ensino a distância, destacada
por Peters (2006), revela que o objetivo não era proporcionar educação para as
pessoas, mas sim garantir lucro para as instituições educacionais. No atual estágio
tecnológico, a EAD se torna um parceiro vital para a busca de lucro no setor
educacional, possibilitando alcance massivo de alunos com uma única aula,
contratação flexível de professores sem vínculos empregatícios, reutilização ilimitada
de conteúdos gravados e uma intensa divisão do trabalho, resultando em uma maior
racionalização e, consequentemente, em uma maior taxa de lucro.
Ao observar as principais empresas de educação no Brasil, destaca-se a
Kroton e a Estácio, líderes em cursos de graduação, número de alunos e valor de
mercado (COSTA, 2018) . Em 2017, o CADE interveio em sua fusão para evitar um
monopólio de 70% da oferta de cursos de graduação no país. Essas gigantes do
mercado educacional cresceram globalmente através de fusões, aquisições de
universidades locais e abertura de capital para investidores internacionais. A
modalidade de ensino a distância (EAD) foi crucial para sua expansão e, entre 2014
e 2016, o financiamento estudantil (FIES) impulsionou suas maiores taxas de lucro.
(Machado, 2017)
Além da mercantilização via EaD, essas empresas lucraram
significativamente com parcerias público-privado, notadamente através do FIES. Em
2016, a Kroton registrou uma receita líquida de 5,24 bilhões de reais, principalmente
proveniente do FIES. Entre 2010 e 2015, a Estácio cresceu economicamente em
565%, mas a Kroton superou com um incrível crescimento de 22.130% no mesmo
período. Importante ressaltar que, em 2015, o governo de Dilma Rousseff cortou o
FIES, resultando em uma perda de 6 bilhões em valor de mercado para a Kroton em
apenas sete dias. (MAZOLI JR., 2015)
Esses dados, anteriores à pandemia, evidenciam a EaD como uma "galinha
de ovos de ouro", não apenas na mercantilização, mas também na exploração de
parcerias público-privado. No contexto neoliberal, a EaD desempenha um papel
crucial na precarização do trabalho docente, contribuindo para a proletarização,
desqualificação e divisão do trabalho na educação: “nós que trabalhamos com a
educação, conhecemos bem a consequência disto: proletarização, desqualificação,
17
e divisão do trabalho são aspectos que implicam igualmente professores,
orientadores e alunos” (PRETI, 2009, p. 60).
Um aspecto importante a ser mencionado a respeito da EaD, é que esta se
trata de uma forma de realização da oferta de um serviço, no caso, a educação. De
acordo com Marx (2017), as diferentes formas de trabalho podem ser divididas em
trabalho produtivo e trabalho improdutivo, onde no primeiro caso, o resultado do
trabalho é um bem material, e no segundo por sua vez, um bem imaterial. Quando
se observar os serviços, em sua grande maioria consistem em trabalho imateriais,
afinal de contas, o ato de aprender, ou a orientação média, ou a distância percorrida,
não geram um produto material. A escola tradicional presencial, é um claro exemplo
de trabalho imaterial, onde, dentro da lógica do mercado, ela troca uma determinada
quantidade de dinheiro pela possibilidade da transmissão de um conjunto de
conhecimentos.
Porém quando se coloca a EaD nesse prisma, se tem uma realidade da qual
se faz presente em alguns modelos de ensino presencial, mas que ganha
proporções maiores agora. Tal realidade consiste no fato que ao mesmo tempo em
que o produto imaterial continua sendo sua principal mercadoria (o conjunto de
conhecimentos), se tem a geração de produtos materiais (a videoaula, por exemplo).
Nesse sentido, a modalidade de ensino a distância oferece um produto imaterial,
mas possibilita ao mesmo tempo uma produção material.
Outra diferenciação realiza por Marx (2017) acerca do trabalho, é o trabalho
produtivo do improdutivo. O primeiro se sustenta sobre as respectivas
características: a) cria mais-valor; b) é pago por capital dinheiro e não por renda; c) é
resultado de um trabalho coletivo, social e complexo; d) valoriza o capital e; e) tende
a ser assalariado. Por sua vez,
Na contrapartida, o trabalho é improdutivo quando cria bens úteis,
valores de uso, e não está voltado diretamente para a produção de
valores de troca, ainda que seja necessário para que esta se realize.
São aqueles trabalhos consumidos como valor de uso, e não como
valor de troca. (ANTUNES, 2020b, p. 48).
Muitas vezes ocorre o equívoco de se reduzir o trabalho improdutivo como
trabalho imaterial, e o trabalho produtivo como trabalho material. Muito antes da
expansão da oferta privada dos serviços, Marx utilizava do exemplo dos docentes
para explicar tal complexidade:
18
A produção capitalista não é apenas produção de mercadorias, mas
essencialmente produção de mais-valor [...]. é produtivo o
trabalhador que produz mais-valia para o capitalista ou serve a
autovalorização do capital. Se nos for permitido escolher um exemplo
fora da esfera da produção material, diremos que um mestre-escola
é um trabalhador produtivo se não se limita a trabalhar com a cabeça
das crianças, mas exige de si mesmo até o esgotamento, a fim de
enriquecer o patrão. Que este último tenha investido seu capital
numa fábrica de ensino, em vez de uma fábrica de salsichas, é algo
que não altera em nada a relação. Assim, o conceito de trabalhador
produtivo não implica de modo nenhum apenas uma relação entre
atividade e efeito útil, entre trabalhador e produto do trabalho, mas
também uma relação de produção especificamente social. Surgida
historicamente e que cola no trabalhador o rótulo de meio direto de
valorização do capital. Ser trabalhador produtivo não é, portanto,
uma sorte, mas um azar. (MARX, 2017, P. 706-707).
Infelizmente Marx não poderia prever o que iria acontecer no futuro, mas a
EaD, sobretudo da forma que vem sendo utilizada em larga escala pelo setor
privado, escancara a existência de professores quanto trabalhadores produtivos,
uma vez que o resultado de seu trabalho se torna um complexo mecanismo de
extração e ampliação de mais-valia. Como dito anteriormente, esta modalidade faz
com que exista concomitantemente a existência de um produto material e imaterial,
onde ambos criam as condições necessárias para uma maior ampliação da extração
de mais-valia.
Como visto anteriormente, essa nova morfologia do trabalho, neoliberal,
financeira, flexível, enxerga as leis trabalhistas como um oposto a ser derrotado,
uma vez que estas, dificultam o processo de ampliação da acumulação do capital.
Porém, não é uma tarefa teoricamente simples, afinal de contas, estes direitos são
resultados históricos de anos de lutas dos trabalhadores. Nesse sentido, não
demorou muito para que o capital notasse que não basta combater os direitos
trabalhistas, mas se faz necessário também, combater a organização e articulação
dos trabalhadores.
As novas tecnologias, atreladas aos interesses do capital, geraram uma nova
morfologia do trabalho no mundo contemporâneo que gera uma nova realidade onde
precariza a própria organização das classes e dos sindicatos. Essa é uma realidade
triste e marcante da EaD, os docentes individualizados cada um em suas
residências, se locomovendo para instituição apenas para gravar suas aulas,
acabam não estabelecendo contato com os demais colegas de trabalho, em muitos
19
casos, os professores não realizam o menor contato com os demais docentes do
curso, muitas vezes nem sabe quem são.
Nesse sentido, quais são as condições que os docentes virtuais têm para se
organizar enquanto classe se em muitos casos eles nem se quer se conhecem, nem
se quer existe uma possibilidade de comunicação entre eles. Vale mencionar
também que dentro da EaD, em alguns casos, absorvendo elementos do mundo
empresarial, cria mecanismo para incentivar a própria competição entre os docentes.
Outra característica marcante da nova morfologia do trabalho presente no
trabalho docente virtual pela EaD, é a ampliação do chamado trabalho morto. Cada
vez mais se tornam comum o desenvolvimento de plataformas de auto
aprendizagem, jogos didáticos, que substituem em certa medida o docente, ou até
mesmo, é importante lembrar, que por mais que o docente grave uma videoaula ou
um podcast, esse em suas inúmeras reproduções, tende-se a tornar um trabalho
morto, pois não existe mais a necessidade do docente naquele processo.
Como dito, é um equívoco acreditar no fim da classe operária, porém, esta
se torna cada vez mais precarizada, e para que o “privilégio da servidão” se realize é
necessário que haja desemprego. O trabalho virtual e cada vez mais morto contribui
intensamente para esse propósito.
Uma análise do capitalismo atual nos obriga a compreender que as
formas vigentes de valorização do valor trazem embutidos novos
mecanismos geradores de trabalho excedente, e ao mesmo tempo
que expulsam da produção uma infinidade de trabalhadores, que se
tornam sobrantes, descartáveis e desempregados. Esse processo
tem clara funcionalidade para o capital, ao permitir a intensificação,
em larga escala, do bolsão de desempregados, o que reduz ainda
mais a remuneração da força de trabalho em amplitude global, por
meio da retração salarial daqueles assalariados que se encontram
empregados (ANTUNES, 2020b, p. 70).
Conclusão
Em síntese, a Educação a Distância (EaD) revela-se como uma ferramenta
intrinsecamente neoliberal, contribuindo significativamente para a transformação da
morfologia do trabalho docente. Desde o avanço neoliberal da educação na década
de 1990 no Brasil, a mercantilização da educação, as parcerias público-privado e o
aligeiramento das formações se fizeram presentes na realidade educacional
brasileira, onde a EaD se apresentou como importante ferramenta para auxiliar
nesse processo.
20
Conforme evidencia Peters (2006), desde a sua origem a EaD teve como
objetivo central não é necessariamente proporcionar educação às pessoas, mas,
primordialmente, garantir lucro para as instituições educacionais. Esse modelo, ao
transcender as limitações de espaço e tempo, possibilita uma expansão massiva do
alcance de alunos com uma única aula, proporcionando uma maior divisão do
trabalho, racionalização e, consequentemente, uma taxa de lucro mais elevada,
contribuindo assim, para o processo de mercantilização do ensino. Além disso, a
necessidade do desenvolvimento softwares e plataformas para realização desta
modalidade de ensino abriu portas para uma nova expansão, das parcerias
público-privadas.
Além disso, a EaD contribui para a precarização do trabalho docente,
promovendo a individualização dos professores, a ausência de interação entre eles
e incentivando a competição, corroborando com os preceitos ideológicos neoliberais.
A ampliação do trabalho morto, por meio de plataformas de autoaprendizagem e
jogos didáticos, também emerge como uma característica marcante dessa nova
morfologia do trabalho, intensificando a precarização e contribuindo para aumentar o
desemprego e reduzir a remuneração global da força de trabalho. Portanto, a EaD
se configura como uma peça-chave na engrenagem neoliberal que molda a
educação e o trabalho docente no Brasil contemporâneo.
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V.22, 48 - 2024 (maio-agosto) ISSN: 1808-799 X
AS DIRETRIZES CURRICULARES NACIONAIS DOS CURSOS DE ENGENHARIA:
DISCUSSÕES SOBRE TECNOLOGIA E FORMAÇÃO POR COMPETÊNCIAS1
Luisa Pereira Manske2
Mário Lopes Amorim3
Resumo
Este artigo investiga as atuais Diretrizes Curriculares Nacionais de Engenharia, com o objetivo de
analisar sua abordagem das relações entre tecnologia e o ensino de engenharia em um contexto
neoliberal de precarização da educação superior. Tendo como base teórica o materialismo
histórico-dialético, conduzimos uma análise documental das DCNs vigentes e de sua versão anterior.
Nossos resultados apontam para um predomínio da utilização do ensino por competências e uma
abordagem individualizada que atende aos interesses do modo de produção atual.
Palavra-chave: Diretrizes Curriculares Nacionais; Ensino de Engenharia; Competências; Educação
Tecnológica.
LAS DIRECTRIZES CURRICULARES NACIONALES PARA CURSOS DE INGENIERÍA:
DISCUSIONES SOBRE TECNOLOGÍA Y FORMACIÓN BASADA EN COMPETENCIAS
Resumen
Este artículo investiga las actuales Directrices Curriculares Nacionales de Ingeniería, con el objetivo
de analizar su abordaje de la relación entre tecnología y educación en ingeniería en un contexto
neoliberal de educación superior precaria. Utilizando como base teórica el materialismo
histórico-dialéctico, realizamos un análisis documental de las DCNs actuales y de su versión anterior.
Nuestros resultados apuntan a un predominio del uso de una enseñanza basada en competencias y
un enfoque individualizado que responde a los intereses del modo de producción actual.
Palabra clave: Directrices Curriculares Nacionales; Educación en Ingeniería; Competencias;
Educación Tecnológica.
THE NATIONAL CURRICULAR GUIDELINES FOR ENGINEERING: DISCUSSIONS ON
TECHNOLOGY AND COMPETENCE-BASED EDUCATION
Abstract
This article investigates the current National Curricular Guidelines for Engineering, with the aim of
analyzing their approach to the relationship between technology and engineering education in a
neoliberal context of precarious higher education. Using historical-dialectical materialism as a
theoretical basis, we conducted a document analysis of the current DCNs and its previous version.
Our results point to a predominance of using competence-based teaching and an individualized
approach that meets the interests of the current mode of production.
Keyword: National Curriculum Guidelines; Engineering Education; Competences; Technological
Education.
3Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo (USP), Brasil. Professor do Programa de
Pós-Graduação em Tecnologia e Sociedade (PPGTE) da Universidade Tecnológica Federal do
Paraná (UTFPR), Brasil. Email: marioamorim@utfpr.edu.br.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/5344824750599654. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6610-7909.
2Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Tecnologia e Sociedade, (PPGTE) da Universidade
Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), Brasil. Email: lpmanske@gmail.com.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/2224738583202567. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8261-8909.
1Artigo recebido em 09/03/2024. Primeira Avaliação em 09/04/2024. Segunda Avaliação em
09/04/2024. Aprovado em 09/07/2024. Publicado em 07/08/2024.
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v22i48.62216.
1
Introdução
A principal orientação nacional para os cursos de engenharia é estabelecida
pela Resolução da Câmara de Educação Superior do Conselho Nacional de
Educação (CNE/CES) que institui as Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de
Graduação em Engenharia (DCNs de Engenharia). Essas diretrizes servem como
referência para a formulação dos planos institucionais de cada instituição de ensino,
bem como os Projetos Pedagógicos dos Cursos (PPCs) de engenharia oferecidos.
O objetivo das DCNs é instituir as diretrizes a serem seguidas pelas
Instituições de Educação Superior (IES) e definir “os princípios, os fundamentos, as
condições e as finalidades [...] para aplicação, em âmbito nacional, na organização,
no desenvolvimento e na avaliação do curso de graduação em Engenharia” (Brasil,
2019, p. 1).
A primeira versão das diretrizes neste formato foi estabelecida pela Resolução
CNE/CES 11, de 11 de março de 2002, que instituiu as Diretrizes Curriculares
Nacionais do Curso de Graduação em Engenharia. Estas diretrizes foram
substituídas pela atual Resolução CNE/CES 2, de 24 de abril de 2019, que
também institui as Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em
Engenharia. A versão atual contempla as diretrizes para a maioria dos diferentes
cursos que compõem a grande área das Engenharias, com exceções de alguns que
possuem diretrizes próprias4.
Neste artigo, nosso foco de estudo são as DCNs vigentes (BRASIL, 2019)
visando analisar como essas diretrizes abordam as relações entre tecnologia e o
ensino de engenharia, bem como de que maneira o texto explicita a conexão entre a
formação e a atuação profissional esperada dos graduados. Com isso, buscamos
discutir sobre a concepção de tecnologia nos cursos de engenharia e a precarização
da educação superior.
Além disso, realizamos uma análise comparativa entre as DCNs atuais e a
versão anterior, aprovada em 2002, a fim de identificar o que foi modificado e o que
permaneceu de um documento para o outro, bem como as justificativas
apresentadas para as alterações. A análise comparativa nos forneceu informações
4Os únicos cursos de engenharia que possuem resoluções específicas são os de Engenharia
Agrícola, de Computação, de Pesca, de Software e Florestal. Para todos os outros cursos dentro da
grande área das engenharias, a resolução citada é a vigente.
2
relevantes sobre as mudanças observadas nos fundamentos da educação em
engenharia ao longo dos últimos dezessete anos.
Nossa metodologia é embasada nas considerações de Evangelista e Shiroma
(2019) acerca da análise de documentos educacionais em pesquisas
fundamentadas no materialismo histórico-dialético. Partimos do pressuposto de que
“as fontes possuem objetividade, mas elas não se apresentam claramente.
Documentos derivam de determinações históricas que devem ser apreendidas no
movimento da pesquisa, posto que não estão imediatamente dadas na
documentação” (Evangelista; Shiroma, 2019, p. 89). Reconhecemos que os
documentos educacionais que delineiam a formação em engenharia são moldados
por um contexto histórico e social específico, o qual pode nos esclarecer seu
conteúdo e enriquecer sua interpretação. Como afirmam as autoras,
documentos são produtos de informações selecionadas, de
avaliações, de análises, de tendências, de recomendações, de
proposições. Expressam e resultam de uma combinação de
intencionalidades, valores e discursos; são constituídos pelo e
constituintes do momento histórico (EVANGELISTA E SHIROMA,
2019, p. 101).
Nosso objetivo é examinar, conforme apontam Evangelista e Shiroma (2019),
as razões pelas quais certos termos, como “competências”, foram centralizados no
texto e de que maneira são abordados. Além disso, buscamos analisá-los em
conjunto com o contexto da formação em engenharia no Brasil e a sua relação com
a tecnologia, de forma a “identificar alguns conceitos-chave nos textos, termos
reiterados, eixos de argumentação, concepções, formas com as quais os autores
apresentam aos leitores os problemas e suas propostas para solucioná-los”
(Evangelista: Shiroma, 2019, p. 88).
Nesse sentido, pode-se afirmar que ambas as diretrizes estão situadas em um
período de intensas modificações na estrutura da organização do trabalho. Segundo
Antunes (2018, p. 151), a crise estrutural que emergiu nas economias capitalistas
centrais a partir da década de 1970 desencadeou “uma monumental reestruturação
capitalista de amplitude global, com profundas mudanças no processo de produção
e de trabalho”. A partir desse momento, surgiram os princípios da “empresa enxuta e
flexível”, que modificaram significativamente os mecanismos de acumulação de
capital com consequências para a subjetividade dos trabalhadores e trabalhadoras.
3
Entre as características principais dessa era de flexibilidade, podemos destacar que
as empresas se estruturam
com base em uma organização do trabalho que resulta da introdução
de técnicas de gestão da força de trabalho próprias da fase
informacional; desenvolve uma estrutura produtiva mais flexível,
recorrendo frequentemente à deslocalização produtiva, à
terceirização (dentro e fora das empresas); utiliza-se do trabalho em
equipe, das “células de produção”, dos “times de trabalho”; além de
incentivar, de todos os modos, o “envolvimento participativo”, que
preserva, em seus traços essenciais, os condicionantes
anteriormente apresentados (ANTUNES, 2018, p. 153).
Dessa maneira, estrutura-se uma nova organização e controle do trabalho,
cujo objetivo central é a intensificação da produção, com ênfase em um
envolvimento qualitativo e cognitivo dos trabalhadores, visando reduzir ao máximo o
trabalho improdutivo e que não agrega valor. Assim, “reengenharia, lean production,
team work, eliminação de postos de trabalho, aumento da produtividade, qualidade
total, “metas”, ‘competências’, ‘parceiros’ e ‘colaboradores’ são partes constitutivas
do ideário e da pragmática cotidiana da ‘empresa moderna’” (Antunes, 2018, p. 154).
Essa organização possibilita a desregulamentação, informalização e intensificação
do trabalho, além de fomentar um processo de individualização ( Antunes, 2018).
No contexto específico da engenharia, ainda outros elementos a serem
considerados na relação desta profissão com a tecnologia e como isso se reflete na
formação universitária. Concordamos com Kawamura (1986), quando ela afirma que
a posição dos engenheiros enquanto categoria social do processo produtivo
capitalista é vinculada à sociedade pela tecnologia. Neste artigo, compreendemos a
ciência e a tecnologia como “[...] construções sociais complexas, forças intelectuais
e materiais do processo de produção e reprodução social” (Lima Filho; Queluz,
2005, p. 4) e como um fenômeno humano, portanto um processo social (Noble,
1979). Sob essa perspectiva, ciência, tecnologia e sociedade são indissociáveis, e
todas as áreas do conhecimento possuem uma dimensão tecnológica (Lima Filho;
Queluz, 2005), não apenas as engenharias, a despeito da classificação dessa área
como “tecnológica”. Entretanto, essa classificação confere às engenharias
características específicas, dependendo da concepção de tecnologia na sociedade.
Em concordância com Lima Filho e Queluz (2005) e Noble (1979), Linsingen
(2002, p. 30), apresenta uma perspectiva sobre a mudança tecnológica como
“conseqüência de escolhas possíveis com as quais convivemos, ou seja, as
4
mudanças tecnológicas e sociais seriam resultado de imprevistos, com opções
possíveis e fruto de escolhas”. No entanto, afirma que ainda outra interpretação,
que a tecnologia como o motor do mundo, ou seja, como responsável por criar e
as pessoas e a natureza apenas se adaptam à nova realidade.
Para Linsingen (2002), a práxis da engenharia tende para esta última forma
de pensar, ou seja, uma perspectiva determinista tecnológica, que considera a
mudança tecnológica como um processo definitivo e independente da vontade
humana. Essa concepção determinista da tecnologia possui desdobramentos que,
segundo o autor, influenciam muitos dos procedimentos e condutas adotadas no
ensino de engenharia que repercutem na atuação profissional de seus egressos. O
autor cita, como exemplos dessas influências, uma aparente falta de compromisso
dos profissionais com os rumos e consequências das mudanças tecnológicas na
sociedade e uma tendência a se eximir das responsabilidades pelos resultados de
suas atividades profissionais (Linsingen, 2002).
Nesse sentido, a investigação do que afirmam os documentos nacionais a
respeito da formação em engenharia é relevante quando analisamos a problemática
que envolve essa formação, as concepções de tecnologia presentes na profissão,
conforme apontadas por Linsingen (2002), e o papel que os engenheiros exercem
na estrutura capitalista (Kawamura, 1979). A compreensão da tecnologia,
principalmente em um contexto formativo como o ensino superior, faz-se de suma
importância para compreender quais ideias guiam esse ensino e a quais interesses
essas ideias buscam atender.
Diante do exposto, dividimos nossa investigação em quatro categorias que
consideramos relevantes para nossas análises e que compõem também seções
importantes em ambos os documentos: o perfil do egresso, as competências, os
conteúdos e os PPCs. Abarcamos em nossos resultados a reflexão do que significa
ser um engenheiro hoje, considerando as especificidades deste período histórico, e
uma organização do trabalho influenciada pelo neoliberalismo, pelo ensino baseado
em competências e suas consequências para a organização da formação em
engenharia atualmente.
As análises realizadas neste artigo fazem parte da pesquisa de doutorado da
autora, que visa investigar as concepções de tecnologia que moldam a formação de
engenheiros e engenheiras no curso de bacharel em Engenharia Civil de uma
5
instituição federal de ensino superior. A investigação foi realizada por meio da
análise do Projeto Pedagógico do Curso (PPC) e de outros documentos que
oferecem diretrizes para a sua elaboração, como as DCNs de Engenharia.
O profissional esperado: o perfil do egresso
O perfil do egresso é o conjunto de características que um estudante daquele
curso deve apresentar no momento de completude de seus estudos de graduação.
Expressa o que deve ser desenvolvido ao longo dos anos de formação e, dessa
forma, guia a educação superior não apenas em termos de conteúdos e disciplinas,
mas também no escopo de uma formação universitária mais ampla.
Nas DCNs anteriores, essa informação é apresentada em um parágrafo curto
em seu artigo 3º, que especifica que o curso de Graduação em Engenharia tem
como perfil do formado egresso/profissional o engenheiro
com formação generalista, humanista, crítica e reflexiva, capacitado
a absorver e desenvolver novas tecnologias, estimulando a sua
atuação crítica e criativa na identificação e resolução de problemas,
considerando seus aspectos políticos, econômicos, sociais,
ambientais e culturais, com visão ética e humanística, em
atendimento às demandas da sociedade (BRASIL, 2002, p. 1).
O perfil do egresso apresentado nas DCNs vigentes mantém muitas das
informações de seu antecessor, mas as organiza em formato de lista e adiciona
detalhes e maiores especificações para cada item. O fato de muitas informações
terem se mantido de um perfil para o outro ressalta, durante o processo de análise,
quais são as diferenças encontradas e quais adições foram feitas, o que nos leva a
refletir sobre as razões pelas quais se considerou necessário adicionar uma
informação ou, ainda, por que motivos as informações foram reorganizadas em seu
texto. Organizado em seis tópicos, é apresentado também no artigo do
documento, estabelecendo que
O perfil do egresso do curso de graduação em Engenharia deve
compreender, entre outras, as seguintes características:
I - ter visão holística e humanista, ser crítico, reflexivo, criativo,
cooperativo e ético e com forte formação técnica;
II - estar apto a pesquisar, desenvolver, adaptar e utilizar novas
tecnologias, com atuação inovadora e empreendedora;
III - ser capaz de reconhecer as necessidades dos usuários, formular,
analisar e resolver, de forma criativa, os problemas de Engenharia;
6
IV - adotar perspectivas multidisciplinares e transdisciplinares em sua
prática;
V - considerar os aspectos globais, políticos, econômicos, sociais,
ambientais, culturais e de segurança e saúde no trabalho;
VI - atuar com isenção e comprometimento com a responsabilidade
social e com o desenvolvimento sustentável (BRASIL, 2019, p. 1)
Neste ponto importante do documento, que explicita em poucas frases o que
um profissional formado neste curso deve ter aprendido com sua formação e que,
nestas mesmas frases, direciona a educação em engenharia no país inteiro, a
escolha das palavras é de suma importância. Se antes era necessário que o perfil do
egresso em engenharia tivesse uma “formação generalista, humanista, crítica e
reflexiva”, primeira informação do perfil, agora este deve possuir uma “visão holística
e humanista, ser crítico, reflexivo, criativo, cooperativo e ético e com forte formação
técnica”.
Embora as DCNs atuais mantenham as palavras “humanista, crítica e
reflexiva”, elas não se referem mais à formação propriamente dita, como diretamente
explicitado no perfil anterior. O egresso não necessita mais ter uma formação
humanista, mas uma “visão” humanista. Também não precisa ter uma formação
crítica e reflexiva, mas “ser” crítico e reflexivo. Essa mudança implica que tais
características não necessariamente precisam ser adquiridas por meio da formação
ou, ainda, que são atributos que os estudantes precisam ter, sem importar se elas
vieram efetivamente da formação, indicando um processo formativo individualizado
que está sob a responsabilidade do próprio estudante, e não mais da instituição.
Essas observações apontam que se mantém o vínculo da formação em
engenharia como uma preparação exclusiva para o mercado de trabalho, conforme
apontado por Kawamura (1979) no século passado, atendendo aos interesses
empresariais e as demandas dessa forma de produção, de acordo com as
características mencionadas por Antunes (2018).
Ramos (2006) afirma que, nesse contexto, a construção de uma identidade
profissional torna-se resultado de um conjunto de estratégias individuais, em uma
profissionalidade liberal que se pauta na capacidade de adaptação de cada um às
mudanças socioeconômicas dessa etapa neoliberal do capitalismo. Dessa forma,
o surgimento de uma nova forma de profissionalismo, em que o indivíduo deve estar
preparado para uma “mobilidade permanente entre diferentes ocupações numa
mesma empresa, entre diferentes empresas, para o subemprego ou para o trabalho
7
autônomo. Em outras palavras, o novo profissionalismo é o desenvolvimento da
empregabilidade” (Ramos, 2006, p. 284). Dessa forma, em um contexto de um
sistema integrado e flexível, a importância é localizada nas pessoas e em sua
capacidade de se empregar, e não mais nos papéis que elas exercem enquanto
profissionais em uma organização estabelecida. Importam os resultados alcançados,
de forma que estes mantenham o equilíbrio organizacional. Assim, importa a pessoa
que “mobiliza seus atributos cognitivos e sócio-afetivos para obter os resultados
esperados. Então, na verdade, a unidade mínima da análise funcional desloca-se do
posto de trabalho para a competência dos trabalhadores” (Ramos, 2006, p. 288,
grifos da autora).
Às informações do que o egresso deve “ser” também foram adicionadas as
palavras “criativo, cooperativo e ético”, termos que também reforçam a característica
da adaptabilidade mencionada por Ramos (2006) e que voltam a aparecer de
diferentes maneiras em todo o documento aprovado em 2019. Outra modificação
significativa nesse primeiro trecho do perfil do egresso é a retirada da “formação
generalista” para o acréscimo de uma “visão holística”, mantendo novamente a
problemática mencionada do que a formação deve oferecer, substituindo a palavra
anterior por um termo que se adequa a uma perspectiva neoliberal e empresarial.
O termo “formação” foi mantido apenas para a “técnica”, uma informação que
não existia no perfil de 2002. Podemos compreender que, com as informações
organizadas dessa maneira, as diretrizes atuais indicam que cabe às instituições
oferecerem, no âmbito da formação, apenas os aspectos técnicos que
compreendem o perfil do engenheiro. Além disso, também foi acrescentado à
formação técnica o adjetivo “forte”.
A discussão acerca da formação estritamente técnica da engenharia é antiga
e foi problematizada por Kawamura (1979), que destacou como esse tipo de
formação pode afastar o profissional de uma compreensão ampla e crítica da
sociedade em que atua. Linsingen (2002) também salientou essa questão. Uma
“forte formação técnica” parece ir na contramão do que o restante do item I do perfil
indica. No entanto, isso sugere que a instituição deve priorizar a formação técnica,
de forma a fortalecê-la e mantê-la como a sua estrutura principal, colocando as
outras características em um plano inferior. Isso também reforça a concepção
determinista da tecnologia na educação em engenharia.
8
Da mesma forma, caberia ao estudante ter uma visão holística e humanista,
bem como ser crítico, reflexivo, criativo, cooperativo e ético. Ao retirar desses
elementos a palavra formação, implica-se que não necessariamente eles devem ser
desenvolvidos pela formação recebida dentro da universidade e que, portanto, são
mais responsabilidade do aluno do que da instituição, de forma que não importa
onde essas características sejam desenvolvidas por ele, desde que as tenha.
Novamente, podemos notar a ênfase no aprendizado pelo próprio estudante e não
pela instituição, em processo de individualização da formação.
Ramos (2006) problematiza essa ênfase dada aos aspectos subjetivos dos
alunos, principalmente aqueles relacionados ao processo de aprendizagem, pois
negligenciam “o conjunto das determinações históricas e sociais que incidem sobre
a educação, promovendo uma certa despolitização de todo o processo” (Ramos,
2006, p. 277). Em uma formação que possui um histórico de afastamento de
outras áreas do conhecimento, essa configuração se torna ainda mais problemática.
Une a uma noção determinista da tecnologia a perspectiva neoliberal de
individualização, flexibilização e instabilidade, sem que exista possibilidade de se
analisar criticamente esse contexto. É solicitado que os egressos sejam críticos, mas
a formação pautada nessas bases do determinismo tecnológico e da precarização
da educação não oferece elementos para que se pense criticamente acerca da
própria posição na estrutura de produção, bem como dos impactos de sua atuação
profissional na sociedade.
Quanto à absorção e desenvolvimento de novas tecnologias, o tópico se
manteve, com adição de maiores especificações. No entanto, recebeu o acréscimo
de uma “atuação inovadora e empreendedora”. A inovação e o empreendedorismo
são duas palavras que passam a aparecer com frequência nos documentos
educacionais e se relacionam diretamente com a etapa atual do capitalismo
neoliberal adentrando também no campo da educação. Daremos maior ênfase a
elas nas próximas seções.
As competências
Logo após o perfil do egresso, as DCNs revogadas trazem, em seu artigo 4º,
que a formação do engenheiro “tem por objetivo dotar o profissional dos
conhecimentos requeridos para o exercício das seguintes competências e
9
habilidades gerais” (BRASIL, 2002, p. 1). O artigo das DCNs vigentes também
trata do mesmo assunto, porém não mais partindo da formação do engenheiro, mas
que “O curso de graduação em Engenharia deve proporcionar aos seus egressos,
ao longo da formação, as seguintes competências gerais” (Brasil, 2019, p. 2).
A palavra “competência” carrega significados que refletem a etapa atual do
capitalismo, conforme apresentadas por Antunes (2018) e Ramos (2006). É
importante ressaltar essa diferença entre os dois documentos, pois, segundo Ramos
e Magalhães (2022), o ensino por “competências” foi incorporado institucionalmente
na educação brasileira na década de 1990 e foi aprofundado nas diretrizes
curriculares nacionais elaboradas após a Lei n. 13.415/2017. Ramos e Magalhães
(2022) analisam o Ensino Médio e o Ensino Profissional e Técnico, mas podemos
observar essa mesma tendência em ambas as versões das DCNs de engenharia.
Para Ramos (2006), a utilização do conceito está associada a um processo de
aprendizagem que se volta à aquisição de competências, ou seja, o desempenho
profissional de uma pessoa resulta do conjunto de competências que ela mobiliza.
Portanto, caberia à formação fornecê-las, para que o indivíduo possa utilizá-las
conforme necessário em sua atuação profissional.
A noção de competência no âmbito educacional atende às necessidades de
uma organização neoliberal do trabalho, no sentido de adequar os profissionais a um
contexto de flexibilidade constante e individualismo, de forma a fragilizar ações
coletivas. Segundo a autora, esse processo de adequação é coerente com o papel
educador do Estado e a apropriação dessas noções nos documentos oficiais, bem
como no discurso oficial de uma maneira geral, faz parte de uma estratégia
educativa no processo de construção de um novo modo de regulação, que atenda a
essas novas necessidades do âmbito produtivo (Ramos, 2006). Mantém-se,
portanto, o elo de conexão entre a formação em engenharia e a empresa, bem como
a movimentação da universidade em tentar acompanhar as mudanças que ocorrem
no processo produtivo, citadas por Kawamura (1979).
Embora a palavra “competência” apareça no documento anterior, é possível
perceber que ela é utilizada de maneiras diferentes no mesmo artigo de cada
documento. Se primeiro a formação tinha por objetivo fornecer conhecimentos para
que os profissionais pudessem exercer determinadas competências e habilidades,
agora o curso deve proporcionar, durante a formação, determinadas competências.
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Fica claro, na elaboração do texto, que não cabe à formação proporcionar as
competências, mas ao curso. Isso dialoga com a análise realizada quanto ao perfil
do egresso, no que diz respeito à “forte formação técnica”. Compreende-se que as
competências listadas, assim como aquilo que o egresso deve “ter” e “ser”,
expressadas anteriormente, não necessariamente serão adquiridas por meio da
formação propriamente dita, mas por outras atividades que compõem o período de
passagem pela universidade, ou seja, o período em que se está matriculado em um
determinado curso. A premissa anterior era de que o objetivo da formação era
fornecer conhecimentos, e que esses conhecimentos fossem de tal forma que os
egressos pudessem exercer (e não “ter”) as competências e habilidades listadas.
Em ambos os documentos, podemos observar uma transição no modo de
pensar a educação. Ramos (2006) analisa esse deslocamento da noção de
“qualificação” para “competência”, que implica diferentes relações de trabalho e
daquilo que era esperado da formação:
A relação entre os registros conceituais das atividades profissionais
formalizados por meio dos títulos e diplomas reconhecidos
socialmente e a inserção profissional fazia da qualificação um código
de comunicação entre as categorias profissionais e empregadores.
Com base nesse código construíram-se normas e regras de acesso e
permanência no emprego, carreira e remuneração. À medida que
essa relação se dissolve, é a competência que passa a ser esse
código. Com isto, as negociações e os contratos que se baseavam
em normas e regras pactuadas e aplicadas coletivamente, passam a
se processar com base em normas e regras que, mesmo pactuadas
coletivamente, aplicam-se individualmente. Em síntese, a
competência enfraquece também a dimensão social da qualificação
(RAMOS, 2006, p. 282).
Dessa forma, o ensino por competências está de acordo e serve aos
interesses da nova organização de trabalho mencionada por Antunes (2018). Além
disso, é promovido devido às supostas vantagens que oferece dentro desse novo
modelo, alinhado aos fundamentos da Teoria do Capital Humano5. Segundo Ramos
(2006), uma dessas vantagens é o aumento da produtividade resultante do
5A Teoria do Capital Humano tem sua origem nos Estados Unidos na década de 1950 e a ideia de
capital humano é atribuída à Theodore Schultz, professor de economia da Universidade de Chicago.
Pauta-se na concepção de que a educação é o pressuposto do desenvolvimento econômico. A
educação é vista como um meio de qualificar o trabalho humano de forma a ampliar a produtividade
e, consequentemente, os lucros capitalistas. Com isso, valida a ideia de que os investimentos na
educação sejam pautados nos critérios especificados pelas necessidades capitalistas e atribui ao
âmbito individual problemas sociais como aqueles relacionados ao emprego e ao desempenho
profissional (MINTO, 2006).
11
adequado desenvolvimento e utilização das competências dos trabalhadores. Outra
vantagem é o destaque na importância do investimento individual e social para lidar
com a necessidade de adaptação e instabilidade da vida. Por fim, a crença de
que o ensino por competências resultaria em maior bem-estar social, por
supostamente proporcionar maior autonomia e liberdade de escolha aos
profissionais. Considerando que a engenharia é cercada de concepções
deterministas que consideram que mais tecnologia traria maior bem-estar social,
conforme exposto por Linsingen (2002), a abertura acrítica para um ensino que
também promete um maior bem-estar social se torna ainda mais problemática.
Podemos observar algumas dessas defesas em um livro recente sobre a
formação e a profissão de engenheiros no país, intitulado Engenheiros para Quê?
Formação e Profissão do Engenheiro no Brasil. Em um capítulo que discute as
novas diretrizes curriculares e que é favorável às mudanças com relação ao ensino
por competências, Cardoso (2020, p. 162, grifos nossos) afirma que
Nas escolas de Engenharia, devemos continuar mantendo o status
quo do momento, que se diferencia muito pouco daquele do século
passado, ou devemos ousar? Ousar no sentido de ter cursos com
trajetórias flexíveis, como aquelas em que o aluno identifica a trilha
adequada ao seu perfil; ou de adotar o modelo do agrupamento por
interesses, como aqueles construídos para um grupo interessado em
abrir uma empresa ao sair da universidade; ou aplicar a
aprendizagem ativa, como na prática da aprendizagem por pares,
com ensino baseado em projetos e problemas; ou ainda incentivar
professores a trabalharem em equipe, com suporte dos recursos do
ensino a distância.
Nota-se a defesa da flexibilidade e da individualização da formação, criticadas
anteriormente por Ramos (2006), e a associação das vantagens dessa formação em
termos do interesse por abrir uma empresa, ou seja, pelo empreendedorismo. No
mesmo capítulo, o autor faz uma reflexão sobre as DCNs aprovadas em 2002 a
partir do envolvimento do Movimento Empresarial pela Inovação6, indicando uma
consonância de interesses entre a defesa pelo ensino de competências e a
aproximação com o discurso empresarial, o que corrobora as afirmações feitas
6“Em 2012, o Movimento Empresarial pela Inovação (MEI) requisitou a [professor Roberto] Lobo três
longos estudos sobre o ensino tecnológico, sobretudo o de Engenharia, mas incluindo até mesmo a
formação tecnológica na educação básica. O envolvimento do MEI no processo levou a comunidade
a refletir sobre as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) das Engenharias em vigor, datadas de
2002” (Cardoso, 2020, p. 157).
12
anteriormente por Ramos (2006), quando analisadas no contexto específico das
engenharias.
Essas observações e discussões se tornam ainda mais claras quando
analisamos a listagem das competências gerais nas DCNs vigentes, em contraste
com aquelas apresentadas na versão anterior. O documento aprovado em 2002
explicita treze competências e habilidades gerais, das quais sete giram diretamente
em torno de conhecimentos específicos da área de conhecimento. As outras seis
competências e habilidades gerais são mais amplas e dizem respeito à aspectos
sociais do exercer profissional, tais como comunicação eficiente, atuação em
equipes multidisciplinares, ética e responsabilidade profissional, avaliação de
impactos das atividades no contexto social e ambiental, viabilidade econômica de
projetos e permanente atualização profissional. Nessas diretrizes (Brasil, 2002), as
treze competências e habilidades gerais são listadas em treze tópicos, sem uma
elaboração maior acerca de cada item.
As diretrizes vigentes modificam essa lista em tamanho e elaboração. Com
explicações em cada item, esclarece os direcionamentos atuais da formação em
engenharia. As competências gerais são elaboradas em oito tópicos, cada um com
subtópicos que detalham o que o egresso deve ser capaz de fazer com relação
àquela competência em específico. Esse maior detalhamento é o elemento mais
elucidativo das diferenças dessas competências em relação àquelas especificadas
nas diretrizes anteriores. São nesses subtópicos que se explicita mais diretamente o
pensamento que guia a elaboração dessas diretrizes: a adaptação da formação em
engenharia às necessidades do modo de produção atual. Com as especificações, o
texto deixa claro o que estava aberto à interpretação no caso da versão anterior.
Um exemplo disso é o tópico IV, que diz respeito a implantar, supervisionar e
controlar soluções de Engenharia, algo que estava presente nas diretrizes
anteriores. Nesse caso, as especificações apontam ainda mais diretamente para as
competências de gestão e administração que os profissionais devem ter dentro da
profissão. A ênfase é colocada não apenas na aplicação dos conceitos de gestão,
que também aparece no tópico III, mas também na aptidão de gerir força de trabalho
e recursos físicos, no desenvolvimento de “novas estruturas empreendedoras” e de
“soluções inovadoras”. Novamente, as palavras empreendedorismo e inovação, que
apareceram no perfil do egresso.
13
IV - implantar, supervisionar e controlar as soluções de Engenharia:
a) ser capaz de aplicar os conceitos de gestão para planejar,
supervisionar, elaborar e coordenar a implantação das soluções de
Engenharia.
b) estar apto a gerir, tanto a força de trabalho quanto os recursos
físicos, no que diz respeito aos materiais e à informação;
c) desenvolver sensibilidade global nas organizações;
d) projetar e desenvolver novas estruturas empreendedoras e
soluções inovadoras para os problemas;
e) realizar a avaliação crítico-reflexiva dos impactos das soluções de
Engenharia nos contextos social, legal, econômico e ambiental;
(BRASIL, 2019, p. 2, grifos nossos).
Ao especificar que os conceitos de gestão precisam ser aplicados, o
documento direciona o currículo para a aprendizagem de conteúdos do campo da
administração. É possível notar também que, embora nas diretrizes aprovadas em
2019, cada um dos tópicos tenha detalhamentos das competências que apresenta,
algumas dessas “expressões” tem um sentido consideravelmente amplo, utilizando
palavras e expressões que não são devidamente conceitualizadas quanto à sua
significação para o documento. É o caso, por exemplo, do item c: o desenvolvimento
de uma “sensibilidade global” nas organizações. Não é esclarecido, em nenhum
momento no documento, o que seria exatamente essa “sensibilidade” que precisa
ser desenvolvida, e que tipos de ações podem ser feitas no processo formativo para
alcançá-la. Mais uma vez é possível observar no texto do documento a ênfase em
características subjetivas, como apontado por Ramos (2006), como característica
do ensino por competências e dos interesses que busca atender.
Isso nos leva ao processo de individualização da educação mencionado por
Ramos (2006), em que cabe ao estudante ser responsável pela própria educação,
dentro do que fundamenta a pedagogia das competências. O último item dessa
listagem, que não estava presente nas diretrizes revogadas, escancara esse
raciocínio, deixando claro que os estudantes precisam desenvolver a competência
de “aprender de forma autônoma”, ou “aprender a aprender”:
VIII - aprender de forma autônoma e lidar com situações e contextos
complexos, atualizando-se em relação aos avanços da ciência, da
tecnologia e aos desafios da inovação:
a) ser capaz de assumir atitude investigativa e autônoma, com vistas
à aprendizagem contínua, à produção de novos conhecimentos e ao
desenvolvimento de novas tecnologias.
b) aprender a aprender. (BRASIL, 2019, p. 2, grifos nossos).
14
Ainda que esse tópico não exista nas competências e habilidades gerais nas
diretrizes aprovadas em 2002, seu artigo também especifica que uma ênfase
deve ser dada “à necessidade de se reduzir o tempo em sala de aula, favorecendo o
trabalho individual e em grupo dos estudantes” (Brasil, 2002, p. 2), algo que não se
encontra mais presente no documento atual. É possível notar, dessa forma, um
início desse processo de individualização, que se torna explícito no documento
vigente, apontando para concepções que permeiam a educação no contexto
neoliberal deste século, conforme apresentadas por Ramos (2006). Da mesma
forma, as atividades empreendedoras estavam listadas entre as atividades
complementares que deveriam ser estimuladas.
As diretrizes ainda estabelecem, em um artigo adicional, a necessidade de se
definirem as competências específicas de cada curso, salientando que a listagem
anterior se refere apenas a competências gerais. As diretrizes também especificam
que o perfil e as competências estabelecidas “visam à atuação em campos da área
e correlatos, em conformidade com o estabelecido no Projeto Pedagógico do Curso
(PPC)” (Brasil, 2019, p. 3). Dessa forma, as diretrizes deixam clara a especificação
de uma formação voltada para o trabalho e diretamente relacionada com as
empresas em que esses profissionais atuarão quando se graduarem. O texto ainda
apresenta três áreas de atuação possíveis para os profissionais: projeto de produtos
(bens e serviços), empreendimentos (inclusive gestão e manutenção) e formação e
atualização de futuros engenheiros e profissionais. Em outras palavras, as diretrizes
estabelecem que as possíveis atuações futuras dos profissionais de engenharia
dizem respeito à produção, à gestão da produção ou à formação de novos
profissionais que, por sua vez, estarão novamente envolvidos com alguma dessas
três possibilidades7. Mais uma vez, o texto relaciona a atuação profissional de
engenheiros ao processo produtivo capitalista, voltada apenas para a produção e
gestão de bens e serviços. A única possibilidade de atuação que não está envolvida
diretamente a isso diz respeito à formação de novos profissionais.
7“Art. O desenvolvimento do perfil e das competências, estabelecidas para o egresso do curso de
graduação em Engenharia, visam à atuação em campos da área e correlatos, em conformidade com
o estabelecido no Projeto Pedagógico do Curso (PPC), podendo compreender uma ou mais das
seguintes áreas de atuação: I - atuação em todo o ciclo de vida e contexto do projeto de produtos
(bens e serviços) e de seus componentes, sistemas e processos produtivos, inclusive inovando-os; II
- atuação em todo o ciclo de vida e contexto de empreendimentos, inclusive na sua gestão e
manutenção; e III - atuação na formação e atualização de futuros engenheiros e profissionais
envolvidos em projetos de produtos (bens e serviços) e empreendimentos” (BRASIL, 2019, p. 3).
15
Dessa forma, as competências listadas se relacionam com a possibilidade de
atuação profissional em uma dessas três frentes, e o desenvolvimento das
competências subjetivas apresentadas não necessariamente visa à formação ampla
do estudante, mas ao atendimento das necessidades desse mercado em que “a
própria eficiência da produção tem solicitado atributos como participação,
criatividade e pensamento crítico no lugar de outros como disciplina, obediência e
passividade” (Ramos, 2006, p. 254). As consequências desse direcionamento
restrito para o mercado de trabalho, com a utilização de um ensino por
competências que visa atendê-lo e ainda concentra muitas das responsabilidades da
formação no sujeito, é consideravelmente problemática em diversos campos do
conhecimento. Entretanto, em conjunto com as problemáticas existentes na
formação em engenharia, podem levar a uma concepção ainda mais problemática
da tecnologia, sem um processo de pensamento crítico sobre a própria área, como
salientado por Linsingen (2002). Além disso, afasta ainda mais o acesso a outros
campos de conhecimento que complementem a formação técnica e que
possibilitariam uma educação interdisciplinar que considere não apenas a ciência e
a tecnologia, mas também a sociedade. Como nos mostra Ramos (2006, p. 303): “se
a escola deve voltar-se para o desenvolvimento dessas competências, perde
importância sua participação, assim como de todos os elementos culturais, na
formação da consciência de classe e na construção de uma nova concepção de
mundo”.
Os conteúdos
As diretrizes atuais apontam que todo curso de graduação em engenharia
deve conter os conteúdos básicos, profissionais e específicos em seu PPC, sempre
em relação direta com as competências especificadas. Quanto aos conteúdos
básicos, as diretrizes compreendem, em seu Art. 9º, que:
§ Todas as habilitações do curso de Engenharia devem
contemplar os seguintes conteúdos básicos, dentre outros:
Administração e Economia; Algoritmos e Programação; Ciência dos
Materiais; Ciências do Ambiente; Eletricidade; Estatística. Expressão
Gráfica; Fenômenos de Transporte; Física; Informática; Matemática;
16
Mecânica dos Sólidos; Metodologia Científica e Tecnológica; e
Química8(BRASIL, 2019, p. 5).
Salientamos que, entre os conteúdos básicos dispostos nas diretrizes,
nenhum se refere diretamente a conteúdos relacionados às ciências humanas, nem
mesmo enquanto compreensão dos fundamentos teóricos e históricos do próprio
curso. Noble (1979) salienta, no contexto de criação dos cursos de engenharia nos
Estados Unidos, que as disciplinas de humanidades adicionadas ao currículo em
dado momento, estavam relacionadas aos novos campos das ciências sociais que
dialogavam e serviam aos interesses tanto das indústrias quanto ao
desenvolvimento de habilidades de gestão que serviriam, conforme também explicita
Kawamura (1979), à função dirigente dos engenheiros. No caso das atuais diretrizes
curriculares, isso pode ser observado na inclusão dos conteúdos de Administração e
Economia no conjunto dos conteúdos básicos.
As diretrizes também dispõem que as atividades complementares realizadas
tanto dentro quanto fora do ambiente escolar de engenharia, “devem contribuir
efetivamente para o desenvolvimento das competências previstas para o egresso”
(Brasil, 2019, p. 5). Visto que as competências listadas estão direcionadas para uma
formação majoritariamente técnica, com o desenvolvimento de habilidades de
gestão e empreendedorismo, e não envolvem, ao menos de forma direta e clara, o
desenvolvimento do pensamento crítico, podemos inferir que as atividades
complementares desejáveis também se aproximem desta mesma direção. Portanto,
atividades que fujam do escopo das competências listadas não são
necessariamente encorajadas dentro da formação em engenharia, ainda que
contribuam para uma formação completa dos estudantes enquanto cidadãos e
profissionais.
Historicamente, o processo formativo presente nos cursos de engenharia foi
desenvolvido de forma a privilegiar um currículo estritamente técnico e deficiente de
disciplinas de outras áreas de conhecimento, como as ciências humanas. Para
Nascimento (2008), os cursos de graduação em engenharia se inserem em um
contexto que incorpora uma perspectiva geral da ciência como neutra e voltada para
o que se entende por progresso, reproduzindo um discurso determinista, além de
satisfazer as necessidades do sistema capitalista. Quando analisada em um cenário
8A Resolução 1, de 26 de março de 2021, altera o Art. 9°, § da Resolução aprovada em 2019. A
modificação consiste no acréscimo, aos conteúdos básicos, do Desenho Universal (BRASIL, 2021).
17
de modificações na organização do trabalho, essa concepção da tecnologia aponta
para questões significativas no processo de formação de novos profissionais da
engenharia. Conforme aponta Linsingen (2002, p. 31):
Para essa forma de ver, principalmente na área técnica, os
argumentos que defendem a necessidade de mudança no ensino
técnico, que visam entre outros a criatividade, a inovação, a
negociação, a sociabilidade, parecem estar voltados mais para o
atendimento das pressões por aumento de produtividade e
diversificação de produtos das empresas, apresentando-se
aparentemente descolados das ou como se desconhecessem as
realidades que ajudam a construir.
Considerando o papel que estes profissionais exercem na sociedade, bem
como o papel que é esperado deles exercer, a formação limitada em termos das
relações interdisciplinares entre ciência, tecnologia e sociedade apresenta-se como
problemática (Amorim, 2016).
Nesse sentido, uma alteração considerável e interessante de se notar está na
listagem dos conteúdos básicos que todo curso de engenharia deve contemplar. Nas
diretrizes aprovadas no ano de 2002, esses conteúdos são:
§ O núcleo de conteúdos básicos, cerca de 30% da carga horária
mínima, versará sobre os tópicos que seguem:
I - Metodologia Científica e Tecnológica; II - Comunicação e
Expressão;III - Informática; IV - Expressão Gráfica; V - Matemática;
VI - Física; VII - Fenômenos de Transporte; VIII - Mecânica dos
Sólidos; IX - Eletricidade Aplicada; X - Química; XI - Ciência e
Tecnologia dos Materiais; XII - Administração; XIII - Economia; XIV -
Ciências do Ambiente; XV - Humanidades, Ciências Sociais e
Cidadania (BRASIL, 2002, p. 2, grifos nossos).
Os conteúdos grifados são aqueles que foram excluídos do texto da
Resolução atual. Foram incluídos nas diretrizes atuais Algoritmos e Programação e
Estatística, conteúdos que vão ao encontro das competências estabelecidas,
principalmente no que diz respeito às competências de modelagem computacional.
Por outro lado, foram excluídos justamente os conteúdos que diziam respeito à
Comunicação e Expressão e ao campo das Humanidades, Ciências Sociais e
Cidadania. Essa exclusão corrobora nossas análises anteriores, que dizem respeito
ao objetivo atual da formação que se volta apenas para os aspectos técnicos e
delega aos estudantes a responsabilidade de obterem as competências que os
permitirão “serem” críticos, reflexivos, criativos, cooperativos e éticos a partir das
18
outras vivências que compõem o estar matriculado em um curso de graduação.
Dessa forma, ainda que o texto das diretrizes possa parecer contraditório quanto ao
que se espera do estudante e ao que oferece a ele, quando analisamos os detalhes
do que é salientado a partir do seu texto, é possível notar uma linha de raciocínio
que se estende por todo o documento e que é coerente com a proposta que oferece,
principalmente quando o analisamos a partir da discussão levantada por Ramos
(2006) com relação às competências.
Ainda sobre os conteúdos, enquanto as diretrizes vigentes não especificam
quais seriam os conteúdos profissionalizantes e nem a sua carga horária mínima, as
diretrizes anteriores determinavam uma listagem de tópicos. Estas afirmavam que a
carga horária dos conteúdos profissionalizantes consistiria de um subconjunto
desses tópicos, a ser definido por cada instituição de ensino. Ademais, afirmavam
que o núcleo de conteúdos específicos seria uma extensão e aprofundamento dos
conteúdos profissionalizantes, completando a carga horária restante9, sendo
propostos exclusivamente por cada instituição. As diretrizes ainda observam que
esses conteúdos específicos “constituem-se em conhecimentos científicos,
tecnológicos e instrumentais necessários para a definição das modalidades de
engenharia e devem garantir o desenvolvimento das competências e habilidades
estabelecidas nestas diretrizes” (Brasil, 2002, p. 3, grifo nosso). Nesse sentido, as
diretrizes aprovadas em 2002 indicavam uma ênfase nos conteúdos técnicos nos
currículos de engenharia, reforçando a perspectiva determinista da tecnologia
durante a formação, além de relacionar esses conhecimentos diretamente ao
desenvolvimento das competências necessárias.
Os Projeto Pedagógico de Curso (PPCs)
As diretrizes também estabelecem a obrigatoriedade do Projeto Pedagógico
de Curso para os cursos de graduação em engenharia, de forma que o documento
contemple “o conjunto das atividades de aprendizagem e assegure o
desenvolvimento das competências, estabelecidas no perfil do egresso” (BRASIL,
2019, p. 3). Entre as informações que os PPCs devem especificar e descrever de
forma clara, estão a “descrição das competências que devem ser desenvolvidas”
9Sendo o conteúdo básico 30% e o profissionalizante 15%, os conteúdos específicos compunham
55% da carga horária total dos cursos de engenharia segundo as diretrizes aprovadas em 2002.
19
(Brasil, 2019, p. 3), as atividades de ensino-aprendizagem “necessárias ao
desenvolvimento de cada uma das competências estabelecidas para o egresso”
(Brasil, 2019, p. 3), bem como outras especificações, sempre diretamente
relacionadas às competências gerais que devem ser desenvolvidas, bem como as
competências específicas de cada curso. Há, portanto, novamente uma ênfase no
desenvolvimento das competências e o posicionamento dessas na centralidade da
formação oferecida atualmente.
Neste mesmo capítulo as diretrizes também determinam, entre outros tópicos,
a obrigatoriedade de atividades de laboratório; o estímulo às atividades que
articulem teoria, prática e contexto de aplicação (o que, segundo o texto, inclui ações
de extensão e integração empresa-escola); a implementação de atividades que
promovam a integração e a interdisciplinaridade; estímulo ao uso de metodologias
para aprendizagem ativa, “como forma de promover uma educação mais centrada
no aluno” (Brasil, 2019, p. 4); o estímulo a diversas atividades acadêmicas, incluindo
atividades empreendedoras; é recomendado que “as atividades sejam organizadas
de modo que aproxime os estudantes do ambiente profissional, criando formas de
interação entre a instituição e o campo de atuação dos egressos” (Brasil, 2019, p. 4),
além da promoção frequente de
fóruns com a participação de profissionais, empresas e outras
organizações públicas e privadas, a fim de que contribuam nos
debates sobre as demandas sociais, humanas e tecnológicas para
acompanhar a evolução constante da Engenharia, para melhor
definição e atualização do perfil do egresso (BRASIL, 2019, p. 4).
Podemos notar, dessa forma, a consolidação das informações
apresentadas nos itens anteriores das diretrizes e debatidas nas seções anteriores
deste artigo. O documento orienta diretamente que a formulação dos projetos de
curso se volte para o desenvolvimento das competências por ele especificadas,
reforça a necessidade de maior interação entre a universidade e as empresas
durante todo o processo formativo, e aponta novamente para um processo de
individualização do ensino. Além disso, ainda destaca que a Engenharia, enquanto
profissão e setor econômico, evolui constantemente, e que a aproximação das
instituições com o mercado proporciona que aquelas possam definir e atualizar o
perfil de seus egressos de acordo com este. Em outras palavras, formular a
formação de acordo com as necessidades sempre em atualização das empresas.
20
Kawamura (1979) assinalou o quanto essa constante tentativa de
acompanhar as mudanças que ocorrem na indústria mantém a educação em
engenharia em um lugar de defasagem, posto que as mudanças nas instituições
ocorrem em ritmo mais lento que nas empresas. Ter essa indicação no documento
educacional nacional, que guia a educação em engenharia em todo país, reforça o
lugar da universidade como defasado em relação ao setor produtivo e, portanto, a
necessidade de constantes aprimoramentos, de forma a alcançá-la. Reforça também
a função da universidade como formadora de profissionais para as empresas e,
portanto, submetida a elas e às suas necessidades.
Considerações finais
Na análise das DCNs vigentes em conjunto com a sua versão anterior,
buscamos verificar, como apontam Evangelista e Shiroma (2019), por quais razões
certos termos nos são apresentados e como os textos das diretrizes são
organizados em torno deles. A análise atenta do que está e do que não está
expresso no documento pode nos indicar para onde se deseja direcionar o ensino de
engenharia hoje, bem como quais interesses esse encaminhamento busca atender.
A problemática da formação em engenharia é antiga e se relaciona tanto com
as concepções de tecnologia que conferem aos profissionais status social e
formação majoritariamente técnica mais valorizada, quanto com a indústria e a
adaptação dos currículos às necessidades do mercado de trabalho. É possível
observar essas características nas diretrizes brasileiras desse século XXI, com
ênfase na relação da educação com o processo produtivo. No entanto, na análise do
documento vigente em relação à sua versão anterior podemos notar uma transição
na forma como essa educação busca atender as necessidades das empresas de
acordo com as modificações da atual etapa do capitalismo neoliberal.
O documento também apresenta diversas expressões que se encontram em
voga nas discussões educacionais atualmente, de cariz neoliberal. Expressões
como “estratégias de ensino ativas”, “práticas disciplinares” e “desenvolvimento de
competências” são amplamente utilizadas no texto das diretrizes; no entanto, essas
palavras e expressões não são conceitualizadas, deixando a cada instituição a
tarefa de interpretá-las. Isso salienta ainda mais a necessidade de investigação das
concepções e ideias que circundam uma determinada instituição e um determinado
21
curso, mas também apontam que, embora exista um maior detalhamento no texto
das diretrizes atuais em relação à anterior, ela não necessariamente está mais clara
em relação aos objetivos da formação em engenharia.
Na análise conjunta das duas versões do documento, podemos observar um
processo de transição nas concepções que permeiam a educação, presentes no
documento aprovado em 2002 e que são apresentadas de forma clara no
documento atual. O ensino por competências guia todo o documento, e o perfil do
egresso indica que cabe à instituição oferecer uma forte formação técnica, e que
cabe aos alunos, em um processo de individualização da formação, obterem e
incorporarem as características esperadas de um profissional de engenharia, sem
que isso necessariamente seja oferecido por meio da formação. Ou seja, cabe a
eles “serem”, por conta própria, os profissionais de engenharia que as diretrizes
apontam, a partir de uma ênfase nas atitudes comportamentais e características
socioafetivas que não estão diretamente incluídas no escopo da formação.
Isso se reflete também nos conteúdos básicos que todo curso de engenharia
deve ter, dos quais foram retirados os conteúdos referentes ao campo das
humanidades e ciências sociais e adicionados campos de algoritmos e estatística. A
ênfase no ensino fortemente técnico reforça a problemática da formação em
engenharia que privilegia os conhecimentos específicos da área, afastando os
estudantes e futuros profissionais de uma reflexão crítica acerca da tecnologia,
ciência, sociedade e da relação indissociável entre elas. Além disso, também
mantém uma concepção instrumental e determinista, de forma que a tecnologia é
vista como um fim em si mesma, conforme apresentado por Linsingen (2002), e o
único conhecimento necessário para obter o bem-estar social, que seria alcançado
por meio da inovação e do empreendedorismo, outras das palavras altamente
salientadas no documento atual.
Os conteúdos que não envolvem a formação técnica estão relacionados ao
campo da Administração e Economia, e servem para a atuação profissional dos
engenheiros nas empresas, como abordado por Noble (1979) e Kawamura (1979),
e no atual contexto neoliberal atendem às competências exigidas no que diz respeito
à individualização, flexibilidade e constante adaptação à instabilidade, conforme
apresentado por Antunes (2018) e discutido por Ramos (2006).
22
Dessa forma, as diretrizes vigentes não abrem espaço para uma formação
crítica, apoiada em outros campos do conhecimento e que possibilite oferecer aos
estudantes um contexto mais amplo de sua atuação no meio social ao qual
pertencem. Ao buscar atender as necessidades da indústria, o documento
educacional afasta os estudantes de uma formação que não dependa das
transformações tecnológicas e produtivas, e mantém a estrutura em que a
universidade é vista como defasada em relação às exigências do mercado de
trabalho, conforme apontado por Kawamura (1979).
Consideramos, portanto, que a noção de competência, apropriada
acriticamente pela sociedade brasileira, necessita de uma análise crítica não
pelos educadores, mas por todos os intelectuais orgânicos da classe trabalhadora,
como afirma Ramos (2006). É necessário reconstruir o que essas competências
significam dentro do contexto brasileiro, no sentido de realmente valorizar o
potencial humano “como meio de transformação dessa realidade e não de simples
adaptação a ela” (Ramos, 2006, p. 170).
Apontamos também a necessidade de pesquisas que se aprofundem em
diferentes assuntos das diretrizes, como a ênfase na inovação e no
empreendedorismo na educação em engenharia, as concepções de tecnologia
trazidas nos documentos, e as competências subjetivas e relacionais esperadas dos
estudantes.
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24
V.22, 48 - 2024 (maio-agosto) ISSN: 1808-799 X
NOVAS TECNOLOGIAS, VELHAS PROPOSTAS: SOLUÇÕES EDUCACIONAIS
PRIVADAS DO ANALÓGICO AO DIGITAL1
Paula Valim de Lima2
Vera Maria Vidal Peroni3
Daniela de Oliveira Pires4
Resumo
O artigo discute as relações entre público e privado na educação mobilizando categorias do
pensamento materialista histórico-dialético que situam o debate como parte da totalidade da
sociedade capitalista. Em torno de uma perspectiva solucionista, analisam-se as formas de atuação
do privado que historicamente se propõe a salvar a educação pública. Desde as tradicionais formas
analógicas de privatização até o atual processo de transformação digital da educação protagonizado
por sujeitos privados, verifica-se a vinculação do conteúdo das propostas privadas ao projeto mais
amplo do capital.
Palavras-chave: Público-privado; Soluções educacionais; Capitalismo na era digital.
NUEVAS TECNOLOGÍAS, VIEJAS PROPUESTAS: SOLUCIONES EDUCATIVAS PRIVADAS DE LO
ANALÓGICO A LO DIGITAL
Resumen
El artículo discute las relaciones entre lo público y lo privado en la educación, movilizando categorías del
pensamiento materialista histórico-dialéctico que sitúan el debate como parte de la totalidad de la sociedad
capitalista. Desde una perspectiva solucionista, se analizan las formas de actuación del sector privado que
históricamente se ha propuesto salvar la educación pública. Desde las formas tradicionales analógicas de
privatización hasta el actual proceso de transformación digital de la educación liderado por actores privados, se
verifica la vinculación del contenido de las propuestas privadas al proyecto más amplio del capital.
Palabras clave: Público-privado; Soluciones educativas; Capitalismo en la era digital.
NEW TECHNOLOGIES, OLD PROPOSALS: PRIVATE EDUCATIONAL SOLUTIONS FROM ANALOG TO
DIGITAL
Abstract
The article discusses the relations between public and private in education by mobilizing categories of
historical-dialectical materialist thought that situate the debate as part of the totality of capitalist society. From a
problem-solving perspective, it analyzes the ways in which the private sector historically endeavors to rescue
public education. From traditional analog forms of privatization to the current digital transformation of education
led by private entities, the connection of the content of private proposals to the broader capital project is evident.
Keyword: Public-private; Educational solutions; Capitalism in the digital age.
4Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Brasil. Professora da
Universidade Federal do Paraná (UFPR), Brasil. E-mail: danielaopires77@gmail.com.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/5744203752177071. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6671-9195.
3Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP), Brasil. Professora do
Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Brasil.
E-mail: veraperoni@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/9945008202279221.
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6543-8431.
2Mestra e doutoranda em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Brasil.
Professora da Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre (RME POA). E-mail: paulavalimd@gmail.com.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/0506929649115557. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1798-7476.
1Artigo recebido em 10/03/2024. Primeira avaliação em 27/04/2024. Segunda avaliação em 21/04/2024.
Aprovado em 30/07/2024. Publicado em 07/08/2024. DOI:https://doi.org/10.22409/tn.v22i48.62246.
1
Introdução
O desenvolvimento tecnológico e a inserção de tecnologias digitais nas
escolas vêm sendo foco de atenção de pesquisadores no Brasil e no mundo, sob
diferentes perspectivas, especialmente desde o contexto de pandemia global de
Covid-19. Este artigo apresenta o debate a partir de algumas ferramentas analíticas
que permitem situar a criação de soluções tecnológicas e digitais em relação aos
processos mais amplos de privatização educacional, em curso nas últimas
décadas, ainda que principalmente em formato analógico. Trata-se de uma
concepção, difundida, particularmente a partir dos anos 1970 com as propostas de
reestruturação produtiva e sob influência do neoliberalismo, em que o mercado é o
parâmetro de qualidade e o público deve incorporar suas formas de gestão e
dinâmicas de atuação. Nessa perspectiva, o privado é chamado a salvar a educação
pública.
Mais recentemente, neste período particular do capitalismo em sua era
digital (Saura, Peroni, Pires, Lima, 2024) incorpora-se a essa perspectiva uma
visão tecnosolucionista, em que as soluções não somente serão ofertadas pelo
privado, mas elas deverão ser de base tecnológica. Muito vinculada ao paradigma
da inovação, esta perspectiva corresponde a uma realidade na qual as diferentes
dimensões da vida social são cada vez mais mediadas pelas tecnologias
informacionais-digitais.
Ocorre, no entanto, que o fenômeno de transformação digital da educação
não é mera continuidade dos processos anteriores, embora tampouco seja um
fenômeno absolutamente novo, como não é sua substituição, pois acabam
coexistindo. Nessa direção, o objetivo deste artigo é analisar, por um lado, como as
soluções educacionais digitais simplesmente atualizam as formas de atuação do
privado historicamente presentes e como, por outro lado, apresentam novas
particularidades e representam uma nova ofensiva do capital sobre a educação
pública.
O artigo propõe inicialmente o tratamento de algumas categorias do
pensamento materialista histórico-dialético que auxiliam na compreensão da relação
entre o público e o privado na educação pública como fenômeno inserido na
totalidade da sociedade capitalista. Em seguida, retomam-se as tradicionais
soluções propostas privatizantes para a educação vinculadas ao capital desde as
2
reformas gerencialistas dos anos 1990 no Brasil, tomando o Instituto Ayrton Senna
(IAS) como um exemplo de sujeito privado que materializa este processo. Por fim,
são analisadas as atuais configurações e mecanismos de privatização decorrentes
do processo de transformação digital da educação no período pós-pandemia, com
destaque à ideologia tecnossolucionista, e como operam no processo de subsunção
da educação pública aos interesses do capital.
Relação público-privado sob as lentes do materialismo histórico dialético
Compreendidos enquanto projetos societários em disputa, público e privado
historicamente representam interesses antagônicos que se materializam nos
processos educacionais, como parte da sociedade capitalista. Nesse sentido, é
preciso compreender o movimento do real neste período particular do capitalismo,
sendo a categoria de particular uma mediação entre o singular e o universal (Lukács,
1967). A relação dialética entre tais categorias possibilita a compreensão da
essência dos fenômenos sociais.
O particular assume centralidade ao se analisar o período particular do
capitalismo, pois permite considerar particularidades de um dado contexto social,
tendo em conta a totalidade do modo de produção capitalista, suas questões
estruturantes e seu objetivo final de acumulação. Com esta categoria afirma-se, em
primeiro lugar, o próprio capitalismo, com as correlações de forças sociais de seu
tempo histórico (Peroni, Lima, 2023).
Compreender a realidade, a essência dos seus processos, equivale a
necessidade de ir além da análise do tempo presente. A realidade está em
constante transformação, considerando as experiências vivenciadas, relacionadas
às situações concretas e às relações produtivas. Ao analisar um período histórico
específico, é necessário compreendê-lo enquanto processo, por vezes, com
avanços e/ou retrocessos, rupturas e/ou descontinuidades, que não o entendemos
como resultante de fatos isolados, mas em relação, fluxos futuros ou vir-a-ser
(Thompson, 1981).
Em vista disso, o objeto de análise neste caso os processos de
privatização via proposição de soluções privadas para a educação pública é parte
de um processo histórico, que não começa e tampouco se encerra no momento
3
atual, e, mais do que isso, é parte de um contexto mais abrangente de fenômenos
sociais.
A afirmação do caráter material da história (e a consequente recusa ao seu
caráter abstrato ou determinista) indica que ela se materializa por meio da ação de
homens e mulheres, afirmando a ação de sujeitos na história (Thompson, 1981) e a
possibilidade de transformação social.
Assim, público e privado correspondem a interesses de diferentes ordens, em
permanente correlação de forças sociais, que se materializam pela ação de sujeitos
atravessados por interesses de classe, relacionando-se e opondo-se uns aos outros
(Thompson, 1981). Trata-se de um processo de luta que abrange diferentes
dimensões da vida social e transforma as relações de classe estabelecidas, sob a
compreensão de classe como categoria “histórica descritiva de pessoas numa
relação no decurso do tempo e das maneiras pelas quais se tornam conscientes das
suas relações, como se separam, unem, entram em conflito, formam instituições e
transmitem valores de modo classista” (Thompson, 2012, p. 260).
Daí decorre a afirmação inicial de que público e privado são tratados como
projetos societários em disputa, de uma forma mais abrangente, muito além da
discussão em torno da propriedade. Por um lado, o público incorpora a noção de
um projeto coletivamente construído, vinculado a uma concepção de democracia
desde a teoria crítica. O privado, por outro lado, representa, fundamentalmente, o
projeto do capital e os valores que dele decorrem. A relação público-privado
expressa as correlações de forças entre projetos societários que expressam
interesses particulares de classe (no limite, a própria luta de classes). Deste modo, o
real se constitui em um movimento permeado por contradições entre forças e
interesses antagônicos, o que atribui ao complexo social seu caráter essencialmente
contraditório e em permanente transformação.
Nesse processo de correlação de forças, as classes dominantes buscam
conquistar a hegemonia e manter seu poder de classe. Precisamente nesse sentido
é necessário considerar o papel da educação como parte de uma totalidade mais
ampla. Sendo a educação um processo societário de formação humana e a escola
um espaço privilegiado para formação social, as disputas que ocorrem em torno do
conteúdo da educação pública são centrais para a análise da privatização (Lima,
2020). Apesar dos avanços societários e educacionais na direção da construção de
um projeto democrático, coletivo e de justiça social pós-ditadura civil-militar, as
4
forças do capital se voltam à construção de uma educação com o objetivo histórico
de “não fornecer os conhecimentos e o pessoal necessário à máquina produtiva
em expansão do sistema do capital, como também gerar e transmitir um quadro de
valores que legitima os interesses dominantes, como se não pudesse haver
nenhuma alternativa à gestão da sociedade” (Mészáros, 2008, p. 35).
O solucionismo na educação e a justificativa histórica de atuação do privado
O setor privado é parte constitutiva do movimento estruturante do Estado e
sociedade civil, no qual, em termos históricos, estiveram aliados aos interesses dos
grupos sociais hegemônicos e ao desenvolvimento do capitalismo. Historicamente,
sua atuação está relacionada a uma perspectiva salvacionista da educação.
Assim, pretende-se problematizar como os discursos e o conteúdo das
soluções educacionais propostas pelo setor privado são vinculados à lógica de
mercado, que é tomado como parâmetro de qualidade e eficiência, e
fundamentalmente respondem às demandas do capital na educação.
Com relação ao papel do Estado brasileiro no atendimento do direito à
educação, historicamente a esfera pública se constitui vinculada à lógica privatista
(Pires, 2015). Isso é resultado de um processo materializado no embate de forças
sociais, através da luta de classes e determinado pela lógica da produção e da
lucratividade pelo sistema capitalista.
As parcerias público-privadas na educação foram amplamente difundidas a
partir dos anos 1990, passando a haver novas regulamentações entre a esfera
pública e a privada. Especialmente com o Plano Diretor de Reforma do Aparelho do
Estado (1995), incorpora-se uma perspectiva gerencialista, com a chamada Nova
Administração Pública (New Public Management), redefinindo o papel do Estado
brasileiro em vários setores. A partir daí, o poder público continua financiando, mas
repassa suas responsabilidades pela direção e/ou execução (Peroni, 2018) das
políticas sociais para instituições do público não-estatal e do quase-mercado.
A justificativa para a sua atuação passa a significar uma condição necessária
para atingir a melhoria da qualidade do ensino, vinculada a ideais de eficácia e
eficiência importados de uma lógica mercantil. Sendo necessário, para tanto,
5
estabelecer com o poder público a parceria5, no sentido da preservação da sua
hegemonia.
Neste contexto, entidades privadas com e sem fins lucrativos (Montano,
Pires, 2019 e Peroni, Rossi, Lima, 2021), afirmam que a posição que assumem com
relação ao direito à educação é de subsidiariedade, no entanto ao defender o
diagnóstico de que a educação brasileira possui problemas, apontam soluções
educacionais padronizadas e replicáveis, ou seja, soluções simples para desafios
historicamente complexos. Com isso, acabam assumindo uma posição de destaque
na direção e na execução da educação pública. Este é o caso do IAS, que é
ilustrativo do debate que se pretende neste artigo.
O IAS é uma organização não-governamental, associativa6e que se
apresenta como sem fins lucrativos, fundada em 1994, atuando em parceria com
sistemas públicos de educação. O instituto iniciou sua atuação nos sistemas
públicos de ensino com programas complementares no período inverso ao das aulas
e em classes de aceleração, mas passou a influenciar na política educacional, desde
a sala de aula, escola, sistemas de ensino até a direção das pautas educacionais
nacionais.
Sob o diagnóstico de que para ter mudanças substantivas, não adiantaria
atuar apenas em questões focalizadas, mas na educação como um todo, passa a
articular diversas tecnologias educacionais e ferramentas de atuação, incluindo
planejamento, monitoramento e avaliação dos sistemas públicos, currículo, gestão e
formação. Seus programas, desde o princípio, apresentam-se como “soluções
educacionais que ajudam a combater os principais problemas da educação pública
do país”7. Esta perspectiva salvacionista, de que o privado mercantil é o único capaz
7Disponível em:
http://senna.globo.com/institutoayrtonsenna/programas/programas_educacao_formal.asp. Acesso em
2 de fevereiro de 2014.
6O Instituto Ayrton Senna, por se tratar de uma Organização não-governamental, juridicamente
qualificada como uma associação, não é fiscalizada com o rigor das fundações e demais instituições
públicas, como as entidades da Administração Pública direta e indireta (Pires, 2009, pg. 103).
5Na centralidade da correlação de forças entre a afirmação dos direitos proclamados na Constituição
Federal de 1988 e a propagação do Estado neoliberal e da terceira via, é possível perceber a
hegemonia das parcerias com o terceiro setor, em âmbito legislativo com a promulgação de um
arcabouço legal que sustentação a reforma proposta: em 13 de fevereiro de 1995, com a Lei
8.987 que “Dispõe sobre o regime de concessão e permissão da prestação de serviços públicos
previstos no art. 175 da Constituição Federal”; em 2004 com a Lei 11.079 que “Institui normas
gerais para licitação e contratação de parceria público-privada no âmbito da administração pública”; a
Lei 9.637/98, que trata das Organizações Sociais (OS); a Lei 9.790/99 das Organizações da
Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP). Esse arcabouço normativo, acrescido da recente
aprovação da Lei 13.019/14 que cria o Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil
(OSCs) e acabou entrando em vigor em janeiro de 2016 (PIRES; SUSIN; MONTANO, p.245, 2018).
6
de garantir a qualidade da educação pública, não é uma visão isolada de um
instituto, ela está inserida em uma lógica que naturaliza esta participação, pois parte
do pressuposto neoliberal que não é o capitalismo que está em crise, mas o Estado.
A estratégia, para esta concepção, é reformar o Estado ou diminuir sua atuação para
superar a crise. O mercado é que deverá superar as falhas do Estado, portanto a
lógica do mercado deve prevalecer para que ele possa ser mais eficiente e produtivo
(Peroni, 2003).
Nesse sentido, vincula-se o ensino e a aprendizagem a uma forma de gestão
gerencialista, rigidamente monitorada e com atividades padronizadas, através de
aulas prontas e uma rotina pré-determinada. A aprendizagem é concebida como um
produto, que pode ser mensurado através dos resultados das avaliações e metas
pré-estabelecidas. As soluções educacionais apresentam um material com forte
conteúdo prescritivo e de controle das ações pedagógicas.
Além das ferramentas analógicas, o IAS fazia uso de tecnologias digitais
informacionais desde o início dos anos 2000 como instrumento de controle da
gestão e do trabalho docente. O Sistema Ayrton Senna de Informação (SIASI),
instrumento de controle de qualidade do trabalho pedagógico, consistiu em uma
plataforma virtual que reunia dados, informações e relatórios armazenados pelas
escolas. O SIASI foi desenvolvido sob assessoria da empresa Auge Tecnologia &
Sistemas que na primeira década dos anos 2000, propunha a “utilização de
sistemas de tecnologia de informação, comunicação e Internet, para o
desenvolvimento de Ambientes Colaborativos de Ensino e Aprendizagem, Sistemas
de Gestão Educacional e tecnologias de Gestão de Projetos Educacionais e
Melhoria de Processos de Gestão Educacional”8. Atualmente, a empresa oferece
uma solução para gerenciamento de redes de ensino, com aplicativos próprios
direcionados às famílias, educadores e gestores, atendendo 12 mil escolas, 25
milhões de alunos e 2,3 mil municípios9.
Este caso é representativo da dimensão de continuidade que as tecnologias
digitais representam em relação à atuação histórica do privado na educação pública.
Muito antes da pandemia de Covid-19, embora este contexto tenha condicionado
uma aceleração deste processo, as soluções privadas se propunham como
9Disponível em: https://www.auge.com.br/#/educacional. Acesso em 10 de março de 2024.
8A informação foi coletada em 13 de março de 2007 (Peroni, 2010). No entanto, não se encontra
mais disponível devido a atualizações no site da empresa (www.auge.com.br).
7
alternativa aos problemas educacionais e, mais do que isso, suas ferramentas
tecnológicas sempre estiveram vinculadas a processos de controle sobre a
educação pública.
No entanto, a inserção de tecnologias não substitui outras formas e
dimensões da atuação privada sobre a educação pública, intensificando este
processo, como é o caso do IAS que vem atuando em novas plataformas digitais,
como a Humane, voltada à formação de professores e o Portal Farol, de
monitoramento, gestão de dados para planejamento de políticas. Além de pesquisa
e inovação, por meio do eduLab21, o laboratório de ciências para a educação,
implementação de projetos e componentes educacionais voltados à educação
integral e ao desenvolvimento de competências para o século 21, como foco nas
competências socioemocionais, desenvolvendo soluções escaláveis em parceria
com as secretarias de educação, organizações e empresas; e mobilização
(advocacy) e disseminação do conhecimento, impactando o debate público em
educação10.
Como se observa pelo exemplo do IAS, sujeitos privados promovem
diferentes estratégias e formas de atuação sobre a educação pública, desde a
definição dos conteúdos, formação de professores até influenciando a formulação de
políticas educacionais. Novamente, situando a educação como instrumento
fundamental de formação societária, é premente considerar os interesses expressos
em suas propostas. Ao dar centralidade à formação para competências
socioemocionais como resiliência e adaptabilidade, busca-se conformar as
subjetividades de acordo com o que se julga ser adequado para não questionar as
contradições da sociedade que se vive.
Público e privado na era digital do capitalismo
Conforme verificou-se até aqui, os processos de privatização da educação se
vinculam a um discurso salvacionista mais amplo, cuja presença na realidade
brasileira acompanha a atuação do privado sobre os serviços públicos. O
capitalismo contemporâneo aprofunda essa dinâmica na educação voltada para o
10 Informações disponíveis no Relatório Anual 2022 do Instituto Ayrton Senna. Disponível em:
https://institutoayrtonsenna.org.br/app/uploads/2023/06/instituto-ayrton-senna-2023-relatorio-institucio
nal-2022.pdf. Acesso em 10 de março de 2024.
8
mercado em escala global ancorado nas perspectivas de modernização e inovação,
aceleradas pelo contexto de emergência da pandemia de Covid-19.
Com este movimento, os diferentes sujeitos privados, com e sem fins
lucrativos, ampliam suas formas de atuação, voltando-se às disputas em torno dos
processos de formulação de políticas vinculadas à transformação digital da
educação. Não por acaso, nos últimos anos no Brasil proliferam-se políticas e
diretrizes relacionadas à transformação digital da educação, seguindo as tendências
globais, aceleradas pelo contexto de pandemia. Destacam-se a Política de Inovação
Educação Conectada (PIEC) aprovada em 2021; o complemento à BNCC com
normas sobre Computação na Educação Básica, aprovado em 2022; a Política
Nacional de Educação Digital (PNED) e a Estratégia Nacional Escolas Conectadas
(ENEC), aprovadas em janeiro e setembro de 2023, respectivamente.
Desde a PIEC, conformam-se dois objetivos para as políticas educacionais
vinculadas ao processo de digitalização da educação: por um lado, “apoiar a
universalização do acesso à internet em alta velocidade” e, por outro lado, “fomentar
o uso pedagógico de tecnologias digitais na educação básica” (BRASIL, 2021).
Assim, estão presentes duas dimensões da digitalização educacional: que as
escolas estejam equipadas com as tecnologias e que as tecnologias sejam
mobilizadas para as práticas educativas. A ENEC renova estas pretensões,
desenvolvendo seus objetivos de forma mais abrangente. Seu primeiro objetivo é
“garantir que todos os educandos tenham acesso às diferentes formas de
tecnologia, com uma formação que lhes permita desenvolver um uso consciente,
autônomo e socialmente referenciado” (BRASIL, 2023).
Aqui tem-se uma associação entre a garantia de acesso à tecnologia em suas
diversas dimensões (eletricidade, internet banda larga e wi-fi, dispositivos
eletrônicos) e a formação dos estudantes para sua utilização. É natural esperar que
os estudantes sejam formados para dominar as ferramentas tecnológicas oferecidas
pela escola e tão presentes na vida social. No entanto, é precisamente a partir deste
ponto que decorrem discursos em torno do papel da escola, que hoje deve voltar-se
a educar para o chamado futuro digital. Nessa perspectiva, redefinem-se os
currículos escolares, a partir das habilidades e competências para o século XXI,
muitas vezes sintetizadas em torno do conceito de pensamento computacional,
conforme ocorreu com o complemento à BNCC.
9
Documentos de organismos internacionais como o Banco Mundial, por
exemplo, reforçam esta perspectiva quando afirmam que “o mundo está no meio de
uma revolução tecnológica, e as crianças e os jovens precisam ser adequadamente
preparados para prosperar neste mundo em rápida transformação”11. Este tipo de
afirmação opera com a naturalização de uma determinada realidade, esvaziando-a
de conteúdo econômico, político e social. Primeiro, porque trata a tecnologia como
algo dado, como um fenômeno abstrato, quase ontológico (Morozov, 2011), como
parte da natureza própria da sociedade. É uma forma de fetiche da tecnologia, que a
dissocia de seu contexto de produção e existência, assim como das relações sociais
subjacentes.
Em segundo lugar, porque esvazia também o conteúdo da educação,
tornando-a simplesmente uma ferramenta para adequação dos sujeitos ao mundo tal
como está. Embora a tecnologia digital possa ser alternativa para a resolução de
alguns problemas, isso não inclui a educação, “pelo menos não se por educação
entendemos o desenvolvimento das habilidades para pensar criticamente sobre
qualquer questão específica” (Morozov, 2011).
A Google, maior corporação tecnológica global, também favorece essa
compreensão, promovendo transformações das salas de aula pelo mundo todo, sob
a alegação de que “um ambiente mais parecido com o mundo real prepara melhor
os alunos para entrar em um mercado de trabalho cada vez mais conectado e
globalmente competitivo”12. Nessa direção, os crescentes processos de digitalização
inserem-se nas diferentes dimensões educativas (aprendizagem, ensino, gestão,
avaliação, formação de professores etc). Elaborados fora do espaço da escola, além
de não dialogarem com as necessidades reais da educação pública, respondem
exclusivamente aos interesses do mercado global, como duas faces da mesma
moeda: a dominação ideológica na formação das subjetividades coerentes ao
projeto do capital e a qualificação (se é que se pode usar este termo) das novas
gerações para responderem às novas demandas do mercado digital.
Assim, as novas diretrizes educacionais redefinem os fins da educação, agora
atualizados a um contexto produtivo que é, na verdade, pautado pela instabilidade e
precariedade, expressa principalmente na forma do trabalho informal, intermitente,
12 Disponível em: https://skillshop.exceedlms.com/student/path/111609/activity/175736#/page/5f9c46
b42ec1f8153acaff4a. Acesso em 10 de março de 2024.
11 Tradução nossa. Disponível em: https://openknowledge.worldbank.org/entities/publication/5a8
4be59-1fd5-4c52-b82d-2f2059f0acba. Acesso em 10 de março de 2024.
10
terceirizado e desprovido de direitos, para o qual é preciso desenvolver as
chamadas habilidades socioemocionais (soft skills, no universo da inovação)
compatíveis com este cenário, como adaptabilidade, persistência e capacidade
inovadora. Cabe observar, conforme discutido na seção anterior, que as habilidades
socioemocionais integram o repertório privatista sobre a educação muito
tempo, como se observa pela atuação de sujeitos como o IAS.
Concretamente, as visões hegemônicas do futuro digital que são globalmente
construídas, ainda que com especificidades nacionais, representam a materialização
de interesses particulares, orientados pelo e para o mercado, que conformam junto
ao Estado e à sociedade civil mecanismos para o avanço do projeto societário
capitalista e sua naturalização na formação de consensos. Retomando a ENEC, seu
segundo objetivo expressa a pretensão de:
Garantir que os processos de gestão dos sistemas de ensino e das
escolas e que as práticas pedagógicas desenvolvidas no processo
de ensino-aprendizagem possam ampliar sua qualidade e sua
potência, através de um uso cada vez mais consistente e
contextualizado de tecnologias digitais (BRASIL, 2023).
Neste trecho tem-se uma espécie de síntese de uma ideologia cada vez mais
presente na realidade social em geral e na educação pública em particular. O
solucionismo historicamente presente nas propostas privadas vincula-se de forma
imediata à utilização das tecnologias digitais, atualizado em forma de um
tecnosolucionismo (Morozov, 2018), para o qual as novas tecnologias são
apresentadas como o único caminho para a superação dos problemas que se
apresentem. A partir daí, as soluções não apenas devem ser oferecidas pelo
mercado, elas devem ser de base tecnológica.
Nessa direção, multiplicam-se as afirmações que vinculam a qualidade da
educação à sua transformação digital. O Todos Pela Educação (TPE), por exemplo,
principal movimento empresarial que incide sobre as políticas educacionais no país,
defende que “a adoção qualificada de tecnologias educacionais é estratégia central
para acelerar e expandir os avanços da agenda educacional brasileira”. Sob a
prerrogativa da melhoria da qualidade da educação e promoção de novas
competências e habilidades para a sociedade da era digital, amplia-se a entrada de
startups, EdTechs e empresas tecnológicas na educação, disputando o fundo
11
público e o controle da educação, dois processos que se caracterizam como formas
de privatização (RIKOWSKI, 2017).
Por isso, neste contexto, ampliam-se as formas de atuação do privado na
educação pública e, consequentemente, os seus processos de privatização, agora
em escala digital, a partir de novas dinâmicas. As propostas tecnosolucionistas para
a educação pública promovem um processo de despolitização das tecnologias, que
são apresentadas desvinculadas de quaisquer interesses sociais, políticos ou
econômicos.
Para fazer frente a este movimento, não basta analisar as tecnologias por elas
mesmas, como uma abstração ou fetiche, mas é preciso considerá-las “resultado de
tendências econômicas mais profundas [...] implicadas dentro de um sistema de
exploração, exclusão e competição” (Srnicek, 2018, p. 14). Isso significa considerar
as tecnologias hoje como parte integrante do sistema capitalista e seus processos
de acumulação e, no limite, como o elemento central em sua forma mais atualizada.
Considerações finais
O artigo desenvolveu alguns elementos conceituais e ferramentas analíticas
que contribuem para investigar a atuação do setor privado sobre a educação como
continuidade de um processo histórico, ao mesmo tempo em que apresenta novas
particularidades vinculadas ao capitalismo contemporâneo e as demandas da era
digital.
Tratando do público e privado enquanto projetos societários em disputa,
atravessados por interesses de classe, as particularidades do momento atual
direcionam a atenção às questões vinculadas aos avanços tecnológicos na
educação, como parte do projeto capitalista de formação social e dominação de
classe. Enquanto proliferam novas análises sobre as tecnologias na educação,
especialmente desde o contexto de pandemia de Covid-19 com a aceleração do
processo de digitalização das práticas educacionais, é necessário considerar a
historicidade deste fenômeno, não tratando-o de modo isolado da realidade social ou
como um acontecimento inédito.
Analisando a atuação histórica de sujeitos privados que disputam a educação
pública, verifica-se uma perspectiva salvacionista: a partir do diagnóstico de que a
educação vai mal, diferentes instituições com e sem fins lucrativos passam a
12
apresentar soluções que prometem salvar a educação. Nesta dinâmica, o privado é
tomado como parâmetro de qualidade e como caminho possível para a solução dos
problemas educacionais.
No entanto, não um interesse real em compreender criticamente a
complexa natureza dos problemas educacionais, por sua vez vinculados a enormes
problemas sociais da tão diversa e desigual realidade brasileira. O comportamento
típico dos solucionistas é retorcer os problemas de tal forma que estes se
transformam em algo novo, simplificados e desconectados da realidade (MOROZOV,
2018).
Tomando como exemplo o caso do Instituto Ayrton Senna, verifica-se que ao
longo de suas três décadas de atuação, passa por processos de reconfiguração de
suas formas de atuação. No entanto, sustenta seu controle sobre os processos
educacionais, disputando sua hegemonia sobre a educação pública por meio de
diferentes mecanismos e soluções, sejam analógicas ou digitais.
Sob a alegação de contribuir para a melhoria da qualidade e da eficiência da
educação pública, promove mecanismos de controle via monitoramento digital das
redes e proposição de soluções padronizadas, replicáveis e escaláveis,
desconsiderando as particularidades de cada contexto sobre o qual incide. Trata-se
de uma forma de alienação do processo educativo e do trabalho docente que
prejudica o papel da escola na construção de conhecimento elaborado, autônomo e
criativo.
Mais recentemente, o imaginário da tecnologia como solução de todos os
problemas sociais e a entrada de soluções educacionais digitais na escola pública
abrem um novo terreno para a privatização. Diante da suposta necessidade de
transformação digital da educação, diferentes sujeitos privados atualizam seus
mecanismos de atuação e buscam influenciar na formulação de políticas públicas
para ampliar seu espaço de inserção. Os diferentes programas e políticas
apresentados no último período, como a Política de Inovação Educação Conectada
(PIEC); o complemento à BNCC; a Política Nacional de Educação Digital (PNED) e a
Estratégia Nacional Escolas Conectadas (ENEC), evidenciam o avanço dessa
perspectiva, reforçando o ideal tecnossolucionista e a necessidade de atualização
dos conteúdos educativos em acordo com o que se naturalizou como demandas do
século XXI.
13
Assim, o avanço do mercado educacional digital sobre a educação diz
respeito a um processo de naturalização de uma determinada realidade social, que
não apenas legitima como fomenta a transformação digital da educação,
promovendo novas ordens de subsunção da educação aos interesses do capital e
às novas demandas produtivas dos mercados digitais.
As novas tecnologias, portanto, representam as mesmas velhas ideias. No
conteúdo das propostas privadas para a educação pública, sejam analógicas ou
digitais, situa-se como premissa a incorporação dos valores e prerrogativas
favoráveis ao capital na formação das novas gerações, o que ocorre por meio da
influência sobre os currículos, a gestão, a formação de professores, entre outras
estratégias.
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15
V.22, 48 - 2024 (maio-agosto) ISSN: 1808-799 X
TRABALHO DOCENTE E ENSINO REMOTO EMERGENCIAL (ERE)1
Maíra Fernandes Costa2
Marília Abrahão Amaral3
Mário Lopes Amorim4
Resumo
O presente estudo evidencia as desigualdades de acesso digital no Ensino Remoto Emergencial
(ERE) e analisa práticas docentes para mitigá-las. Entrevistamos oito docentes em dois colégios
públicos de Ensino Médio em Curitiba-PR, sendo um colégio em bairro periférico e outro em bairro
central. O texto é dividido em três seções, abordando: as desigualdades de acesso, a Análise de
Conteúdo das entrevistas semiestruturadas e considerações a partir da conjuntura de precarização da
educação e desigualdades sociais causando outras exclusões na sociedade.
Palavra-chave: Desigualdades; Acesso digital; Ensino remoto; Trabalho Docente.
ENSEÑANZA DEL TRABAJO Y EDUCACIÓN A DISTANCIA DE EMERGENCIA (ERE)
Resumen
El presente estudio destaca las desigualdades en el acceso digital en la Educación Remota de Emergencia
(ERE) y analiza las prácticas docentes para mitigarlas. Entrevistamos a ocho profesores de dos escuelas
secundarias públicas de Curitiba-PR, uno en un barrio periférico y el otro en un barrio central. El texto se divide
en tres secciones, que abarcan: desigualdades en el acceso, análisis de contenido de entrevistas
semiestructuradas y consideraciones a partir de la situación de precarización de la educación pública y de las
desigualdades sociales que provocan otras exclusiones en la sociedad.
Palabra clave: Desigualdades; acceso digital; Enseñanza remota; Trabajo Docente.
TEACHING WORK AND EMERGENCY REMOTE TEACHING (ERE)
Abstract
The present study highlights inequalities in digital access in Emergency Remote Education (ERE) and analyzes
teaching practices to mitigate them. We interviewed eight teachers at two public high schools in Curitiba-PR, one
in a peripheral neighborhood and the other in a central neighborhood. The text is divided into three sections,
addressing inequalities in access, Content Analysis of semi-structured interviews and considerations from our
situation of precarization of public education and social inequalities that cause other exclusions in society.
Keyword: Inequalities; Digital access; Remote teaching; Teaching Work.
4Doutorado em Educação pela Universidade de São Paulo (USP). Docente e Pesquisadora no Programa de
Pós-Graduação em Tecnologia e Sociedade (PPGTE) da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR),
Brasil. Email:marioamorim@utfpr.edu.br. Lattes: http://lattes.cnpq.br/5344824750599654.
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6610-7909.
3Doutorado pelo Programa de Pós-Graduação em Engenharia e Gestão do Conhecimento (PPGEGC) pela
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Brasil. Docente e Pesquisadora no Programa de
Pós-Graduação em Tecnologia e Sociedade (PPGTE) da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR),
Brasil. Email: mariliaa@utfpr.edu.br; Lattes: http://lattes.cnpq.br/9319101798473279;
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9327-223X.
2Mestrado pelo Programa de Pós-Graduação em Tecnologia e Sociedade (PPGTE) pela Universidade
Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), Brasil. Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Tecnologia e
Sociedade (PPGTE) pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), Brasil.
Email:mairacosta@alunos.utfpr.edu.br. Lattes: http://lattes.cnpq.br/1753080784755480.
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2094-7050.
1Ensaio recebido em 09/03/2024. Primeira Avaliação em 05/04/2024. Segunda Avaliação em 16/04/2024.
Aprovado em 17/06/2024. Publicado em 07/08/2024. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v22i48.62245.
1
Introdução
Durante o período de distanciamento social devido a pandemia da Covid-19, o
Ministério da Educação optou por manter as inscrições para o Exame Nacional do
Ensino Médio - ENEM. A chamada para o exame através de comerciais com atores
em ambientes domésticos cheio de estruturas, com acesso à internet, laptops e
smartphones disponíveis, convocava os estudantes de todo o país a prosseguirem
com seus estudos, enfatizando que independentemente da situação, o Brasil, a
educação e o ENEM não poderiam ser interrompidos. Esse acontecimento nos
impulsionou a investigar sobre a inclusão digital e a realidade em dois colégios
estaduais do Ensino Médio na cidade de Curitiba - Paraná, com o intuito de destacar
o trabalho docente para lidar com as distintas realidades em que os alunos estão
inseridos. Embora os órgãos responsáveis pela educação tenham afirmado, através
de relatos na mídia, que o ensino durante esse período foi eficaz e alcançou uma
taxa satisfatória de participação (Paraná, 2020), observamos nas redes sociais
depoimentos de professores exaustos, evidenciando as dificuldades de se conectar
com alguns alunos e de responder a todas as dúvidas através das telas.
Percebemos um distanciamento entre os relatórios sobre a educação durante o
Ensino Remoto Emergencial e o vivenciado dentro das comunidades escolares, e ao
considerar essas contradições, fomos a campo entrevistar professoras e
professores, por serem os profissionais mediadores no processo educacional.
Quando a educação entra no debate público, muitas vezes destacam-se as falas de
uma variedade de especialistas, como economistas, cientistas sociais e
administradores. Tais contribuições são válidas, no entanto, é fundamental que a
vivência da comunidade escolar seja mais valorizada, uma vez que são esses
indivíduos que estão diariamente pisando no chão da escola, vivenciando esse
cotidiano, oferecendo assim uma visão mais realista dos acontecimentos.
Observamos durante a pandemia outras dimensões desse momento crítico em um
país de capitalismo periférico como o Brasil, onde o vírus encontrou condições
favoráveis, com lideranças negligentes e um sistema de saúde enfraquecido devido
às políticas neoliberais (Carlos, 2020, p. 9). Essas políticas contribuíram para a
redução dos direitos dos trabalhadores, o sucateamento e superfaturamento do
transporte público, a devastação ambiental, o genocídio de povos originários, o
2
reaparecimento do país no mapa da fome, a precarização da educação pública,
entre outros desastres. Esses vários desdobramentos que citamos de forma rápida
requerem estudos específicos, mas são mencionados aqui para ressaltar como a
chegada do vírus SARS-CoV-2, causando a Covid-19, impactou muito a saúde, mas
também as relações familiares, a sociabilidade, todas as esferas da educação, e
como estudado nesta pesquisa, as formas de trabalho.
Do ensino básico ao superior, a primeira medida adotada foi a suspensão das
aulas, visando evitar que os estudantes levassem o vírus para suas residências.
Com o passar das semanas, sem orientações diretas do Governo Federal, coube a
cada instituição, pública ou privada, decidir suas abordagens para criar um ensino
de forma remota (Alves 2020). Alguns pesquisadores e educadores começaram a
nomear essas práticas educacionais como Ensino Remoto Emergencial (ERE),
buscando distingui-las de outros formatos de ensino digital, como o Ensino a
Distância (EaD). Essa diferenciação é muito importante, porque o EaD prevê um
ambiente educacional virtual com conteúdo projetados especialmente para aquele
formato de ensino, diferentemente da mera transposição da sala de aula para as
telas, que aconteceu durante a pandemia (Hodges et al., 2020). No âmbito do ensino
público, os recessos escolares e as férias foram adiantados como medida inicial.
Posteriormente, cada secretaria de educação desenvolveu seus planos para o
retorno às aulas, adaptando-se às medidas de distanciamento social. No estado do
Paraná, a Secretaria de Estado da Educação (SEED) implementou uma série de
medidas, incluindo: 1. Transmissão de aulas nos canais de televisão aberta e no
YouTube; 2. Lançamento de um aplicativo chamado "Aula Paraná"; 3. Utilização da
plataforma Google Classroom, com parcerias estabelecidas com operadoras de
telefonia para garantir o acesso sem consumo de dados móveis; 4. Disponibilização
de atividades impressas a cada duas semanas nas escolas, destinadas aos alunos
sem acesso à televisão e à internet (Cunha; Silva; Silva, 2020, p. 31). Não foram
todos os estados que providenciaram o pagamento de serviços de internet para os
estudantes que não possuíam acesso a essa tecnologia (Cunha; Silva; Silva, 2020,
p. 29). Mas para além do acesso à internet, são necessárias mais investigações
para compreender como ocorreu a distribuição desse recurso, se os alunos tinham
os artefatos necessários para acessar as aulas e, em um nível mais profundo, quais
eram as condições de moradia e estudo desses estudantes. Após alguns meses de
3
pandemia, as medidas começaram a ser aplicadas a partir da dinâmica de cada
cidade, com isso, “em uma sociedade desigual como é a sociedade brasileira, tem
seus efeitos diferenciados de acordo com o lugar em que as pessoas vivem e a
classe social a que pertence a família do educando” (Alves, 2020, p. 51). O acesso à
internet e equipamentos tecnológicos impactava a sociabilidade no ambiente
escolar, mas durante o ERE a exclusão digital desenvolveu novas facetas.
Reconhecemos as limitações desse artigo em abordar todas essas questões, mas
nosso objetivo foi registrar, por meio de bibliografias e pesquisa de campo,
informações que vão além dos dados divulgados pelos gestores públicos.
Entrevistamos oito professoras e professores em 2022, sendo a metade docentes
em um colégio estadual periférico e a outra metade em um colégio estadual central,
tendo como principal pergunta: como foi a experiência de lecionar para
diferentes realidades dos jovens cursando o Ensino Médio na rede pública
estadual de ensino, estando cada qual em sua respectiva residência?
Destacamos que essa etapa de ensino passava por uma série de
mudanças e contrarreformas. A história do Ensino Médio brasileiro é marcada pela
dualidade entre um currículo propedêutico para os filhos das elites e por outro lado a
busca de uma formação técnica para o trabalho simples da classe trabalhadora, mas
essa dualidade ignora a diversidade de aspirações e condições sociais dos alunos.
Essa estrutura ajuda a refletir as persistentes desigualdades socioeconômicas, com
as elites historicamente dominantes não interessadas em promover uma educação
que estimule plenamente a cidadania (Araújo, 2019). Essas políticas educacionais
não são aprovadas e implementadas sem um histórico debate e disputa de
interesses, por parte de docentes, sindicatos dos docentes, pesquisadores e
integrantes das comunidades escolares que buscam projetos democráticos e contra
hegemônicos. Mas as políticas educacionais vêm desde 1990 sendo fortemente
influenciadas por interesses neoliberais, moldando reformas que priorizam as
necessidades do capitalismo gerencial, subordinando a educação aos interesses do
mercado e perpetuando desigualdades sociais e econômicas (Shiroma, Campos,
Garcia, 2005). A Reforma do Ensino Médio, iniciada em 2016, exemplifica essa
tendência ao reduzir a carga horária obrigatória e retirar disciplinas fundamentais. A
justificativa para tais mudanças é baseada na suposta inadequação do ensino às
demandas do mercado de trabalho, mas na prática, a reforma restringe o acesso à
4
educação de qualidade e aprofunda a segregação social (Araújo, 2019). Apesar da
resistência de diversos setores da sociedade, essas políticas educacionais foram
aprovadas, seguindo os interesses dos “reformadores empresariais da educação”
(Freitas, 2012, p. 389).
A rejeição desse projeto de contrarreforma se sustenta, principalmente, por
parte de um grupo de docentes, pesquisadores da educação e comunidade
escolar, vinculado ao GT Trabalho e Educação da Associação Nacional de
Pesquisadores em Educação (ANPEd), que propugna pela construção de uma
escola de Formação Humana Integral, divergindo da histórica dualidade de
educação técnica para trabalhadores e intelectual para uma elite pensante da
sociedade. Seguindo a proposta da escola unitária desenvolvida por Antonio
Gramsci.
A fórmula marxiana de formação onilateral ou de escola unitária, para todos,
é antes de tudo a superação da dicotomia entre o trabalho produtor de
mercadorias e o trabalho intelectual. (...) por isso afirma que, assim como
todos os homens são intelectuais, os intelectuais também são trabalhadores,
pois nem o trabalho braçal dispensa o cérebro, nem o trabalho intelectual
dispensa o esforço muscular nervoso, a disciplina, os tempos e os
movimentos. (NOSELA, 2007, p. 148)
A Formação Humana Integral esteve em pauta em diferentes construções de
políticas públicas educacionais, desde a discussão sobre a Lei de Diretrizes e
Bases, iniciada na década de 1980. Porém, assim como outros conceitos, foi
inadequadamente apropriada pelos reformadores empresariais da educação, e
esvaziadas do seu sentido original. O documento intitulado “Por Uma Formação
Humana Integral - Não Ao Retrocesso No Ensino Médio (Maio 2014)”, assinado por
diversas entidades educacionais, docentes, pesquisadores da educação e
cidadãos em geral, demonstra essa apropriação por parte da Comissão Especial da
Câmara Federal sobre a Reformulação do Ensino Médio.
O relatório final da Comissão confunde propositalmente educação integral
com educação em tempo integral. Enquanto a primeira significa formação
humana, ou seja, dotar os estudantes de uma base sólida de conhecimentos
que lhes permita desenvolver-se plenamente, a segunda preocupa-se em
estender o tempo que os estudantes passam na escola. (OBSERVATÓRIO
DO ENSINO MÉDIO, 2014, s/p) movimentos. (NOSELA, 2007, p. 148) 007,
p. 148)
Presenciamos nos dois primeiros anos de implementação desta
contrarreforma do Ensino Médio uma situação anteriormente anunciada pela
5
comunidade escolar e especialistas da educação: o esvaziamento do conteúdo, a
ênfase em formação de competências para o trabalho simples, a precarização de
vida e atuação profissional das pessoas que trabalham na educação, uma limitada
promoção da cidadania para as juventudes e uma visão reducionista da presença da
tecnologia na educação.
Esse artigo tem como objetivo destacar a existência das desigualdades de
acesso digital durante o Ensino Remoto Emergencial (ERE), e analisar as práticas
docentes que tiveram a intenção de reduzir essas barreiras. Através de entrevistas
semiestruturadas com oito professores, quatro pessoas entrevistadas atuando como
docentes em um colégio de bairro periférico e outras quatro docentes em um colégio
em bairro mais central, ambos colégios de ensino médio, da rede estadual, na
cidade de Curitiba - PR. Para a análise dessas vivências dos docentes durante o
ERE, utilizamos como metodologia a Análise de Conteúdo, que envolve certos
momentos de “categorização" (Minayo, 2007, p. 88), como inferência, descrição e
interpretação, apesar da distinção em etapas, as estratégias são ajustadas conforme
cada objeto de pesquisa.
Após essa introdução, organizamos o presente texto em mais três seções,
sendo a próxima um levantamento de dados sobre as desigualdades no acesso
digital em nosso país e as especificidades da presença das tecnologias da
informação e comunicação (TICs) na educação, destacando algumas políticas
públicas de tecnologias na educação no estado do Paraná. Na segunda seção
elencamos nossas análises a partir das entrevistas realizadas com professores,
registrando suas vivências durante o ERE e analisando as alternativas criadas pelos
docentes para buscar conexão com os alunos. Na terceira seção tecemos
considerações sobre a combinação de um vírus letal, desigualdades sociais,
políticas neoliberais, precarização do trabalho e sucateamento do ensino público,
concluindo que todos esses fatores foram favoráveis para o aumento da exclusão
social existente em nosso país.
Desigualdades de acesso digital e TICs na educação
Gestores públicos e projetistas do planejamento urbano começaram nos
últimos anos a utilizar alguns termos como “cidades tecnológicas”, “pólos
6
tecnológicos” ou até “cidades digitais” (expressão em inglês conhecida como smart
cities) (NIC.BR, 2016). Esses termos funcionam como estratégias de publicidade
para destacar o compromisso dessas cidades com o desenvolvimento tecnológico,
promovendo um ambiente propício à inovação e incentivando os investimentos
empresariais. Algumas das cidades incluídas nesse conceito de "cidades digitais"
são: São Paulo, Florianópolis, Curitiba, Brasília, Vitória, entre outras (Gitel, 2021).
Contudo, em um país marcado por profundas desigualdades sociais e pela
ausência de políticas de equidade, é possível que as cidades se tornem como um
todo digitais? A série histórica de pesquisas, demonstra que em 2015, a população
com acesso à internet em seus domicílios era de 50,9%, em 2023 chegamos a
84,1% da população com acesso à internet em seus domicílios (NIC.BR, 2023). Os
dados sugerem que, de fato, testemunhamos nos últimos dez anos um aumento no
número de usuários e principalmente uma informatização de diversos processos que
anteriormente não o eram.
Esse processo tem sido acompanhado por muitos grupos em exclusão digital, a
partir dos artefatos utilizados para acessar a internet: em 2022 “a presença tanto de
Internet quanto de computador foi observada em 96% dos domicílios da classe A e
em 10% dos das classes DE” (NIC.BR, 2023, p. 3). Podemos associar a outros
dados como, “seis a cada dez usuários de Internet no Brasil acessaram a rede
exclusivamente pelo telefone celular (62%)” (NIC.BR, 2023, p. 3).
Os integrantes do Núcleo de Pesquisa e Formação em Raça, Gênero e Justiça
Racial (Afro-CEBRAP) produziram materiais informativos com ênfase na análise das
"disparidades educacionais durante a pandemia de covid-19" (Venturini et al., 2020),
utilizando dados provenientes da PNAD Especial Covid-2019 e da PNAD Contínua
2019. Os pesquisadores analisaram o Ensino Remoto Emergencial (ERE)
considerando a renda per capita e a região dos alunos. Ao compararem dados de
todo o país, concluíram que as regiões mais afetadas foram Norte e Nordeste, e os
20% mais ricos nessas regiões enfrentaram piores condições educacionais do que
os 20% mais pobres das regiões Sudeste, Sul e Centro-Oeste (Venturini et al., 2020,
p. 8).
7
Uma métrica significativa para compreendermos a dinâmica do Ensino Remoto
Emergencial é o tipo de acesso à internet utilizado pelos estudantes, conforme
revelado por uma pesquisa realizada em 2019 pelo Centro Regional de Estudos
para o Desenvolvimento da Sociedade de Informações (Cetic.br). Os alunos das
escolas públicas urbanas predominantemente utilizavam o celular móvel (86,4%)
como o principal dispositivo para acessar a internet, enquanto outros meios, como
televisão (3,9%), computador de mesa (3,3%) e computador portátil (2,4%), eram
muito menos utilizados, como ilustrado no Gráfico 1.
Gráfico 1: Alunos de escolas urbanas, por principal dispositivo utilizado para acessar a internet
- Total Escolas Públicas (CGI.br/NIC.br)
Fonte: Costa (2023, p. 70)
Os pesquisadores do Afro-Cebrap destacaram que a disparidade se torna
ainda mais evidente ao se considerar o acesso à internet por meio de computador,
uma condição mais favorável para o aprendizado remoto. A pandemia ressaltou a
disparidade entre alunos de escolas públicas e privadas, com os últimos geralmente
possuindo melhores recursos estruturais para o estudo, conforme demonstra os
dados do Gráfico 2.
8
Gráfico 2 Alunos de escolas urbanas, por tipo de computador existente no domicílio Alunos
de rede pública e particular (CGI.br/NIC.br)
Fonte: Costa (2023, p. 73)
No ano de 2019, os estudantes de instituições particulares apresentavam uma
presença significativamente maior de dispositivos eletrônicos em seus lares, em
comparação com os alunos da rede pública. Enquanto 53,5% dos estudantes de
escolas privadas possuíam computador de mesa, 71,3% possuíam computador
portátil e 43,7% tinham tablets, os alunos da rede pública apresentavam a menor
proporção desses dispositivos em casa, com apenas 31,3% possuindo computador
de mesa, 34,8% com computador portátil e 25,9% com tablets.
Durante este estudo, destacamos que os alunos do ensino médio foram
afetados de maneira diferenciada, dependendo de fatores como classe social, etnia
e região geográfica. Esses efeitos também podem influenciar suas perspectivas
futuras, influenciando seu desempenho no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem)
e por consequência acesso a vagas em instituições de ensino superior, através de
programas como o Sistema de Seleção Unificada (SiSU), vestibulares, Programa
Universidade para Todos (Prouni) e Fundo de Financiamento Estudantil (Fies)
(Venturini et al., 2020).
Antes da pandemia, essas disparidades resultavam em maior acesso das
classes sociais mais privilegiadas às universidades. A ampliação da inclusão de
grupos historicamente excluídos nas universidades ocorreu somente após a
implementação de políticas de ação afirmativa nas instituições públicas de ensino
9
superior, como cotas para estudantes negros, indígenas e provenientes de escolas
públicas (Venturini et al., 2020).
Os setores governamentais e da sociedade civil reconhecem as
desigualdades no acesso, e debatem sobre a necessidade de se promover acesso
às novas tecnologias da informação e comunicação (TICs). Sartório (2008) aponta
que muitas dessas ações são guiadas pela intenção de diminuir o abismo, retirando
as pessoas do “obscurantismo” que consideram ser a exclusão digital, mas
desenvolvendo nas pessoas excluídas apenas as demandas informacionais básicas
requeridas pelo mercado de trabalho. Silva (2020), ao analisar as políticas públicas
sobre inclusão digital no Brasil, mostra como foram ações mais voltadas a um
acesso aos dispositivos.
Como encontramos nas escolas jovens de diversas realidades materiais e
subjetivas, é preciso refletir para além do acesso a um material e à infraestrutura
necessária, para entender de que forma levamos os conteúdos para esse espaço,
podendo servir a vários interesses, como dominação ou autonomia dos educandos.
Nesse sentido, as propostas de inclusão digital precisam lembrar que a
Internet não é apenas uma "ferramenta", mas sim um sistema
sociotécnico que carrega em sua infraestrutura, protocolos ou
serviços a história, os interesses e os objetivos de quem o
desenvolveu. Assim, se a inclusão digital não vislumbrar a possibilidade de
"transformar a Internet", e não apenas "transformar as pessoas/sociedades
pela Internet", acabará recorrendo a uma visão de neutralidade que
desestimula as potencialidades dessa tecnologia na inclusão social. (SILVA,
2020, p. 65, grifo nosso)
As chamadas "cidades digitais" promovem um imaginário de um mundo mais
democrático através da tecnologia, mas falar de uma sociedade digital democrática,
sem enfrentar as desigualdades estruturais e reconhecer a fragilizada democracia
que vivemos no Brasil, significa aceitar que uma grande parte da população
permanece excluída desse espaço de vivências e tomada de decisões.
No âmbito das políticas públicas educacionais, pesquisadores apontam a
existência de projetos que debatem a presença das TICs nas escolas do Paraná,
mas todos esses projetos foram ignorados ao se implementar o ERE, como se não
existissem estudos sobre as TICs na educação e tecnologia nas escolas.
Observa-se que esses projetos estudavam o uso das TICs em sala de aula, que as
10
escolas não estavam totalmente fechadas a essas tecnologias e existiam pesquisas
com os envolvidos para a criação de novas políticas.
Reconhecemos que muitos desses sistemas e artefatos ainda não chegam
em todas as escolas, e isso acontece principalmente devido à falta de incentivo
financeiro e formação de quadro docente. Muitas das políticas de inserção de
tecnologias são projetos governamentais e ficam suscetíveis a desmontes e
interesses de cada governo, criando descontinuidades. Como aconteceu com a
iniciativa TV Paulo Freire5, um canal educativo que poderia ser o canal utilizado
durante o ERE. Em vez disso, o governo do Paraná firmou um contrato improvisado,
escoando em torno de 22 milhões de reais da verba pública para uma rede de
canais do setor privado (Guimarães, 2021).
A propaganda de Curitiba e outras cidades como "cidades digitais" sugere um
futuro onde a tecnologia promova a inclusão e o desenvolvimento, mas o acesso
desigual às tecnologias da informação e comunicação (TICs), evidenciado durante a
pandemia, expõe as lacunas da tecnologia na educação e na equidade social.
Enquanto gestores públicos e projetistas urbanos buscam criar uma narrativa de
progresso tecnológico, os desafios estruturais permanecem, destacando-se a
necessidade de políticas públicas inclusivas e de longo prazo. A exclusão digital não
é apenas uma questão de acesso material, mas também de garantir que as
tecnologias sirvam aos interesses da população, promovendo não apenas a
inclusão, mas também a autonomia e a transformação social. A constatação da
falha, devido ao modo fragmentado de implementação das políticas sobre a
presença da tecnologia na educação, ressalta a importância de um compromisso
permanente para enfrentar essas disparidades e promover um acesso equitativo à
educação emancipadora, inclusiva e tecnológica.
Buscando conexão entrevistas com professores em dois colégios
Como citado anteriormente, a cidade de Curitiba é conhecida por seu
planejamento urbano, mas também mantém alguns padrões de desenvolvimento
5A TV PF foi um canal aberto de televisão com objetivo educativo, desenvolvido a partir de pesquisas
realizadas pela SEED-PR com docentes e implementado em 2006. “A TV Paulo Freire atendia a
comunidade escolar da rede estadual de educação” (MATOS, 2021, p.23).
11
das cidades modernas em um país de capitalismo periférico, tais como a tendência
de ignorar a existências dos bairros periféricos e das ocupações consideradas
irregulares na cidade, e ocultar a falta de interesse do setor público em investir na
infraestrutura urbana para essas populações.
Em nossa pesquisa, buscamos evidenciar essas diferenças no critério de
seleção dos dois colégios dentro da Regional Cajuru, que é a segunda mais
populosa da cidade (CURITIBA, 2021). Embora bairros vizinhos, o público que esses
colégios atendem são distintos, conforme pudemos constatar a partir de pesquisas
de censo dos próprios colégios e nas falas de docentes entrevistados. O Colégio 1
(C1) fica em um bairro considerado periférico, a maioria dos alunos residem em
áreas de ocupações irregulares, dependendo de programas sociais, trabalhos
informais e enfrentando alto índice de evasão escolar. Enquanto a maioria das
famílias no Colégio 2 (C2), localizado em bairro de centralidade, são financeiramente
mais estáveis, uma lista de espera de alunos interessados, o que leva os
familiares a monitorar a frequência, resultando em baixas taxas de abandono
escolar. Esses dados oferecem uma visão geral, mas não abrangem a totalidade das
condições socioeconômicas dos alunos.
Organizamos as perguntas das entrevistas em seis seções, abordando
diferentes aspectos da experiência das pessoas entrevistadas. Essas seções foram
delineadas da seguinte forma: 1. Informações básicas do trabalho da pessoa
entrevistada; 2. Contexto do colégio; 3. Jornada de trabalho antes e durante a
pandemia; 4. Experiência docente durante o ERE; 5. Interação docente com os
alunos durante o ERE; e 6. Considerações sobre a transição para o modelo híbrido e
retorno ao ensino presencial.
Embora reconheçamos que alguns temas podem se sobrepor, a divisão em
seções foi útil para estabelecer uma linha temporal dos eventos ocorridos durante o
ERE entre 2020 e 2022. Essas seções representam categorias iniciais de análise
que foram validadas ou não por meio do diálogo com os entrevistados, no decorrer
desse item, destacamos em negrito as categorias encontradas durante as falas.
Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética da Pesquisa da UTFPR-CT
(CAAE 57030522.0.0000.5547) e pelo Comitê de Ética da SEED-PR. Entrevistamos
12
um total de 8 pessoas, sendo 5 mulheres e 3 homens. Para manter o anonimato das
respostas, conforme combinado no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
(TCLE), codificamos as respostas dos professores, identificando o colégio: sendo C1
professores do colégio periférico e C2 professores do colégio central, em seguida
numerando os professores entrevistados: P1, P2, e assim sucessivamente.
As pessoas entrevistadas possuem uma variedade de experiências e tempo
de carreira, que vão de 2 a 31 anos como docentes. Elas continuaram trabalhando
nos colégios durante a pandemia e até a realização da pesquisa de campo, em
outubro e novembro de 2022. A maioria das pessoas entrevistadas tem mais de 6
anos de experiência nos colégios, sendo seis concursadas e duas com contrato
temporário anual pelo Processo Seletivo Simplificado (PSS).
Durante as entrevistas, enfrentamos dificuldades em encontrar docentes
dentro dos critérios estabelecidos, especialmente devido a um dos critérios, que
excluía professores que não atuaram durante o ensino remoto no colégio
entrevistado. Esses professores que não entrevistamos eram em sua maioria
contratados pelo processo simplificado (PSS) e mudavam de colégio com
frequência, sendo maior o número de professores PSS no colégio mais periférico.
Isso sugere um cenário desafiador para os trabalhadores docentes do estado do
Paraná, com contratos anuais, falta de plano de carreira e instabilidade no emprego.
As duas pessoas entrevistadas com contrato PSS possuíam perfis distintos: uma
docente iniciante aguardando concursos para uma carreira estável e uma docente
aposentada pelo Quadro Próprio de Magistério (QPM), mas que continuava
trabalhando com PSS para complementar sua aposentadoria.
Devido às limitações temporais da pesquisa, não entrevistamos professores
de todas as disciplinas, mas nos esforçamos para incluir docentes de áreas variadas
do Ensino Médio, conforme divisão estabelecida pelo MEC. Entrevistamos
professores das disciplinas de: Biologia, Educação Financeira, Ensino Religioso,
Filosofia, História, Inglês, Língua Portuguesa, Matemática e Química. Após
apresentarmos um resumo sobre os docentes entrevistados e o contexto escolar,
partimos para as seções de perguntas mais focadas ao tema da pesquisa.
13
Na seção 3 de perguntas “Jornada de trabalho antes e durante a pandemia”,
abordamos questões mais amplas sobre suas rotinas de trabalho, permitindo que
compartilhassem suas experiências de forma mais detalhada. Constatamos que
antes da pandemia, a rotina era descrita como mais organizada e estruturada.
durante a pandemia, houve um aumento de trabalho edificuldades de
organização, tanto das instituições superiores em definir protocolos, quanto dos
docentes, por estarem aprendendo novas ferramentas e formas de lecionar.
Alguns docentes também lembraram dos desafios em aprender novas
ferramentas e sistemas, como em uma fala, “as adaptações que nós tivemos que
fazer em relação à própria ferramenta utilizada, que foi tudo muito novo, então a
novidade pediu assim um conhecimento e testes” (C2P3, 2022). A necessidade de
estar em constante atualização era uma preocupação dos docentes antes
mesmo da pandemia. De acordo com Duarte (2010), a demanda contínua de
adquirir novas habilidades para desempenhar suas funções é uma das facetas e
manifestações do aumento da carga de trabalho enfrentada pelos professores.
As ações da SEED tentaram solucionar questões de acesso dos alunos, mas,
de acordo com a pesquisa de Guimarães (2021), os professores não receberam
uma formação consistente para usar as plataformas, então precisaram contar com a
ajuda de colegas para aprender rapidamente.
Outro docente faz uma observação interessante, que a maior mudança sobre
demanda de trabalho que percebeu foi a “questão de controle que a gente tem,
questão de sistema de Power Bi67, metas ali que tem que ser cumpridas, e o uso
de tecnologias porque tudo é contabilizado” (C2P2, 2022). Cabe ressaltar que as
formações para os docentes sobre o uso das plataformas foram divulgadas apenas
em junho de 2020, enquanto em maio de 2020 a ferramenta de monitoramento
Power Bi era citada em publicações da SEED, indicando que a mantenedora
priorizou a implementação de um sistema de monitoramento do trabalho dos
professores nas plataformas, sem fornecer treinamento adequado para os
professores, reforçando a percepção de monitoramento e controle do trabalho
7
6Um serviço de análise de negócios e dados desenvolvido pela Microsoft, na educação foi
compreendido como um “instrumento complexo que possibilita o preenchimento de presenças, faltas
e desenvolvimento de gráficos em Excel” (MATOS, 2021, p.72).
14
citada pela entrevistada C2P2. Essa adaptação da escola a formas de administração
empresarial vem ao encontro dos interesses dos reformadores empresariais da
educação (Freitas, 2018).
A dificuldade enfrentada devido à falta de acesso às TICs para os alunos
participarem do ERE também foi uma questão citada, dado que os estudantes
enfrentavam diferentes obstáculos para acessar os materiais, nem todos os
protocolos da SEED eram adequados para todas as situações. Professores
destacaram a interação das professoras e professores com os alunos e alunas
como parte essencial da rotina docente, e durante o ERE a falta de acesso dificultou
ainda mais o alcance de um ensino eficaz, aumentando o trabalho dos professores
para tentar se comunicar e até gerando frustrações aos docentes por não conseguir
dialogar com os alunos.
Foram falas recorrentes à falta de rotina perda de divisão do horário de
trabalho e horário de descanso. A discussão sobre a interferência do trabalho nas
atividades de recreação e repouso das pessoas tem recebido atenção nos últimos
tempos, especialmente nos estudos relacionados à saúde e ao bem-estar. Essa
subordinação da esfera pessoal ao mundo profissional tem se intensificado com a
disseminação dos meios de comunicação na vida diária, “como o indivíduo pode ser
alcançado em qualquer lugar do mundo pelos meios de comunicação, a convocação
para o trabalho a qualquer momento se tornou uma rotina invasora da privacidade”
(Dal Rosso, 2010). E podemos perceber essa invasão do trabalho na vida privada na
fala da professora C1P4.
Foi muito estressante, foi muito cansativo, eu nunca trabalhei tanto. Primeiro
porque você tinha que se logar, você tinha que ficar logada, às vezes
aparecia dois, às vezes aparecia três, até por causa dos alunos aqui da
própria escola mesmo, eles não tinham computador, não tinham celular, a
maioria dos pais dos nossos alunos são todos coletores de reciclagem,
então às vezes tinha um celular família, e às vezes a mesma família todos
eles estudam aqui na escola, ao mesmo tempo que eu tava dando aula,
outra professora estava dando aula, então acho que nem sei como eles
estavam resolvendo essa questão, se era por sorteio, como que eles faziam
pra cada dia um, entendeu? [...] o que que acontecia? Um ou outro que
conseguia depois o acesso, ele tava perdido porque ele conseguia acessar
e você tinha que voltar, você perdia alguns que estavam achando chato,
que tinham aprendido. E muito trabalho na questão de fazer muita
atividade, as atividades impressas. Para atingir aquele aluno, você tinha que
fazer um monte de atividade remota pra mandar, vinha pra escola que
eles distribuíam, voltava aquilo pra você corrigir... (C1P4, 2022)
15
Em suma, as respostas da seção “jornada de trabalho antes e durante a
pandemia” destacam que o ERE foi marcado por exaustão dos docentes e
desafios significativos, incluindo a adaptação ao ensino remoto, sobrecarga de
trabalho, monitoramento do trabalho e falta de conexão com os alunos e alunas.
Na quarta seção, buscamos conhecer a “Experiência docente durante o
ERE”. Nos relatos sobre a transição para o Ensino Remoto Emergencial (ERE) os
docentes destacaram a importância do diálogo com colegas e coordenadores.
Enquanto no Colégio 2 as ferramentas mais utilizadas para comunicação com os
alunos foram Whatsapp, e-mail e Google Meets, no Colégio 1 foram citados outros
meios de comunicação como telefonemas, curtos diálogos no dia de retirada dos kits
de atividades impressas e até mesmo nos próprios materiais impressos entregues
quinzenalmente.
As pessoas entrevistadas apontaram alguns desafios enfrentados na
adaptação das avaliações ao ambiente remoto, com dificuldades em fornecer
retornos individualizados aos alunos. Como aponta o docente, “era mais precário
porque é mais difícil de dar o retorno aos estudantes a respeito daquilo que eles
conseguiram como sucesso escolar” (C2P1, 2022). Outros três docentes
demonstraram suas insatisfações e até frustrações sobre o processo de avaliação,
por não conseguirem medir se os alunos estavam aprendendo ou apenas cumprindo
as obrigações de preencher a plataforma ou as folhas impressas.
Depois de um período de ERE, a mantenedora SEED-PR solicitou às
coordenações das escolas que realizassem uma busca ativa dos alunos e seus pais,
enfatizando que a presença dos alunos seria registrada com base nas atividades do
Classroom. Apesar dessa busca ativa, houve a necessidade de ampliar a logística
das atividades impressas em alguns colégios, especialmente aquelas em que os
alunos enfrentavam maior exclusão digital, como foi o caso do Colégio 1.
Ah, na metade do ano de 2020, quando a gente viu que não tinha acesso.
As atividades impressas… tinha essa possibilidade, mas a gente tentou
fazer o Class porque a mantenedora não queria, queria que a gente usasse
oClass, mas os nossos alunos não têm acesso a internet, muitas vezes em
casa, ou o celular, ou falta de vontade mesmo, muitos deles parecia falta de
vontade. E quando teve as atividades impressas que mudou, que eles
vinham na escola de 15 em 15 dias buscar.
Pesquisadora - E era obrigatório que eles buscassem?
C1P1 - É, eles tinham que buscar, a família tinha que buscar, eles
assinavam um documento que estavam retirando, assinava que estava
entregando. (C1P1, 2020).
16
Algumas professoras observaram que muitos alunos enfrentavam dificuldades
estruturais que os impediam de acessar as atividades escolares, enquanto outros
pareciam desinteressados em estudar. Isso reflete uma realidade comum na
educação brasileira, especialmente no Ensino Médio, em que por este motivo,
dentre outros, jovens acabam abandonando os estudos.
Os docentes elencaram alguns pontos positivos durante o ERE, como o
interesse por parte de alguns alunos em compreender os conteúdos, tirar dúvidas
e realizar atividades, aproveitando o ambiente online, e às vezes a quantidade
reduzida de alunos, para interagir mais de perto com os professores. Além disso,
docentes do Colégio 1 citaram casos em que alunos sem acesso à tecnologia
agendaram dias para usar os recursos da escola, demonstrando uma procura em
acessar esses conteúdos.
Outro aspecto positivo citado pelos docentes foi a oportunidade de aprender
a utilizar novas ferramentas tecnológicas, permitindo diferentes abordagens
pedagógicas e dinâmicas de aprendizagem. Algumas professoras também
superaram o receio em relação à tecnologia, facilitando a partir do ERE, o uso de
recursos multimídia nas aulas presenciais também.
Aflexibilidade de horários foi mencionada como um benefício,
especialmente para um docente que citou morar distante do colégio. Nesta questão
específica, pontuamos que o entrevistado era do gênero masculino, evidenciando
que a sobrecarga e a desigualdade de gênero, nesse cenário de imbricação do
trabalho formal com o trabalho doméstico, foram questões mais vivenciadas pelas
entrevistadas mulheres.
Como pontos negativos do Ensino Remoto Emergencial (ERE), nos dois
colégios os docentes citaram a mudança na interação entre professores e alunos,
resultando em uma falta de participação e/ou interesse dos alunos, como
demonstrado na Figura 1.
17
Figura 1 Pontos negativos do ERE
Fonte: Costa (2023, p. 124)
No Colégio 1 todos os professores citaram como principal ponto negativo a
falta de acesso às TICs que os alunos sofriam. Em seguida citaram a falta de local
de estudo em suas casas, alunos sofrendo com as desigualdades sociais, a falta da
escola como espaço de socialização, o desinteresse dos alunos, falta de
compromisso familiar, desigualdades de conhecimento e defasagem de conteúdo.
Enquanto no Colégio 2, os alunos não tiveram tantos problemas de acessar as
plataformas online, mesmo assim houve uma redução significativa na
participação dos alunos nas aulas, dificultando para os professores avaliar se os
alunos estavam compreendendo o conteúdo ou simplesmente desinteressados.
No Colégio 1, uma professora expressou que a sua preocupação com os
alunos vai além do acesso e estudos durante o ERE, ”agora fora isso, tem outros
fatores, estou falando das dificuldades, a miserabilidade, é a fome, é o desinteresse,
é tudo” (C1P4, 2022). Apesar dos auxílios governamentais, ela se inquietou com o
aumento da vulnerabilidade dos estudantes eafalta de espaços de
socialização, enfatizando a importância da escola na luta contra a miséria, fome e
exploração de menores.
Ao chegarmos na quinta seção das entrevistas algumas questões sobre a
“Interação docente com os alunos durante o ERE” haviam sido citadas, mas
puderam ser aprofundadas. Todos os docentes entrevistados apontaram como
18
desafio essa interação com os alunos, refletindo a preocupação central com a baixa
participação dos estudantes nas aulas.
As ferramentas oficiais fornecidas pela SEED-PR, como o Classroom, foram
amplamente utilizadas, mas alguns docentes relataram a necessidade de recorrer a
outras plataformas, como WhatsApp e redes sociais, para manter o contato com os
alunos. Essa prática de dialogar com os alunos em várias redes sociais, embora não
muito recomendada, justamente por exceder alguns limites entre o tempo pessoal,
de descanso e a carga horária estipulada para o Trabalho Docente (OLIVEIRA,
2010), foi justificada pele docente, “é a realidade dos alunos. Diversas razões
acabam tirando eles de uma frequência constante, e aí, como eles vão saber por
exemplo o que foi passado?” (C1P3, 2022).
No Colégio 1, os docentes, em conjunto com os coordenadores pedagógicos,
assumem a responsabilidade de garantir a participação dos estudantes nas aulas,
validando a tendência crescente dos professores em desempenhar múltiplos papéis
dentro das instituições educacionais (Oliveira, 2010). Uma das professoras
mencionou que nas atividades impressas escrevia perguntas para estimular o
diálogo com os alunos, proporcionando oportunidades para que expressassem suas
dúvidas, ou contassem alguma coisa sobre sua rotina para a professora.
No Colégio 2, a responsabilidade de garantir a presença dos estudantes
parece ser compartilhada entre a secretaria, coordenadores e os próprios familiares.
Dos quatro professores entrevistados, três relataram que participavam em grupos de
turma no WhatsApp mas que raramente utilizavam, passando os conteúdos nas
plataformas oficiais definidas pela SEED-PR, como o Classroom eGoogle Meets.
Para compreender melhor essas interações, indagamos se os estudantes
utilizaram as ferramentas e plataformas. Enquanto a questão sobre acesso no
Colégio 2 pareceu até óbvia, conforme ilustrado por uma resposta direta "Sim,
eles precisaram acessar porque tudo estava na plataforma, certo?" (C2P2, 2022) —,
no Colégio 1 foi uma pergunta importante, pois apenas alguns alunos fizeram uso
das ferramentas, exigindo alternativas de contato adicionais, reforçando a suspeita
de que o ERE foi vivenciado de formas distintas em cada colégio.
No Colégio 1, o acesso ao Classroom foi limitado, as estratégias para lidar
com a ausência dos alunos foram diversas, de contatos telefônicos, visitas nas
residências até avisos nos mercados do bairro. Houve um esforço conjunto para
19
engajar os alunos, inclusive com horários marcados para acessar a escola e usar os
recursos disponíveis e com a maioria estudando através das atividades impressas
entregues quinzenalmente. Um docente do Colégio 1 relata que muitos alunos
retomaram a participar quando as aulas voltaram a ser presenciais.
A falta de acesso à internet foi um obstáculo significativo, especialmente no
Colégio 1, onde poucos alunos acessaram as plataformas fornecidas, levando os
professores a criarem várias alternativas. A preferência por plataformas de
comunicação mais acessíveis, como WhatsApp, em detrimento do Classroom,
sugere limitações no acesso à internet, dificuldades no uso e destaca as
disparidades na experiência do Ensino Remoto Emergencial (ERE) entre os colégios
pesquisados.
Finalizamos a pesquisa na sexta seção com as “considerações sobre a
transição para o modelo híbrido e retorno ao ensino presencial”, que criaram outros
desafios e problemáticas. Durante o ensino híbrido, a movimentação em sala de
aula foi limitada devido à necessidade de transmitir as aulas para alunos online,
enquanto lecionava para os alunos na sala presencial. Esse formato comprometeu a
dinâmica das aulas; além disso, o retorno ao ensino presencial revelou questões de
disciplina, com os alunos demonstrando menos comprometimento e mais dispersão
em sala de aula.
Para lidar com esses desafios, as professoras precisaram desenvolver
estratégias para retomar a rotina de aprendizagem e enfrentar as defasagens de
conhecimento dos alunos. No entanto, algumas pessoas pesquisadas expressaram
frustração. C1P4 evidencia a problemática do foco excessivo em índices
educacionais, que prioriza resultados quantitativos em detrimento da qualidade da
educação.
Não sei se você sabe, tem o “se liga”, “se orienta”, “se toca”... por
exemplo, tem Redação Paraná, inglês, um monte de plataformas, que o
aluno é obrigado a fazer, se o aluno não faz, você cai índice da escola,
cai o índice da direção, cai o índice do professor. Porque na realidade, o
povo quer índice, e isso acaba passando pro aluno. Porque eles
sabem, eles chegam pra você e dizem: “final do ano a gente faz aquela
provinha e passa”, a minha questão não é reter o aluno, a minha questão é
o conhecimento propriamente dito. [...] Fico nervosa porque não consegui
desenvolver nem um terço do meu trabalho. E não vou conseguir daqui pra
frente. E isso tudo é resquício da pandemia. era desse governo aí, esse
neoliberalismo maluco, mas com a pandemia piorou. (C1P4, 2022).
20
A professora menciona o programa da SEED-PR chamado “Se Liga!”
(PARANÁ, 2020), uma ação de intensificar aulas em poucas semanas ao fim do ano,
para os alunos passarem nas provas e diminuírem-se as retenções. Essas políticas
educacionais refletem uma visão de sociedade preconizada pela “nova direita
(Freitas, 2018), que privilegia o livre mercado e os interesses empresariais em
detrimento do bem-estar dos alunos, dos profissionais da educação e da qualidade
do ensino.
Por fim, notamos a exaustão e descontentamento dos docentes pesquisados,
tanto durante o ERE, quanto no retorno ao ensino presencial, ao perceberem as
defasagens do aprendizado dos alunos. Fica também evidente a frustração dos
docentes por não disporem de tempo e recursos suficientes para retomar esse
conteúdo com os alunos, que vivenciamos um projeto que intensifica, precariza,
flexibiliza e desprofissionaliza a educação do Brasil.
Considerações
No início deste estudo, propusemos investigar como foi a prática docente
durante o ERE e as alternativas que criaram para lidar com as desigualdades digitais
que seus alunos vivenciam. A pandemia da Covid-19 acentuou os problemas
estruturais existentes no Brasil, revelando as profundas desigualdades sociais. Essa
crise expôs ainda mais a existência de grupos marginalizados, cujos direitos são
sistematicamente negados pela negligência do Estado, interesses políticos e
econômicos.
A partir de nossos estudos, fica evidente que o acesso digital em nosso país
não é neutro e sofre influências estruturais. Muitas vezes, ouvimos dos líderes
educacionais a promoção do "novo", incluindo novas abordagens pedagógicas,
formatos de ensino, conteúdos e plataformas. No entanto, se implementadas em um
contexto de desigualdade estrutural, como o nosso, essas inovações tendem a
perpetuar os mesmos problemas.
No âmbito educacional a contrarreforma do Ensino Médio foi promovida pelos
reformadores empresariais como uma iniciativa moderna que proporciona uma
educação acessível a todos. No entanto, ela tem demonstrado “mais trabalho” para
21
os profissionais da educação, flexibilizado os rumos da formação dos jovens e
introduzido novas formas de segregação no sistema educacional.
Importante destacar que o cenário do trabalho dos professores no Paraná
era de precarização antes da pandemia, com contratos temporários, diminuição de
carga horária de aulas, falta de reajustes e sucateamento das estruturas físicas.
Durante a pesquisa de campo, observamos o papel da escola como uma
comunidade, demandando muitas vezes dos docentes ações além das suas funções
estatutárias, em prol do ensino dos alunos dos colégios que trabalhavam.
Nessa conjuntura de precarização do setor público, a Covid-19 alcançou o
Brasil tendo um presidente que negligenciou a crise de saúde, minimizando a
gravidade do vírus e insistindo na continuidade da atividade econômica. Como
resultado, coube a cada estado e município estabelecer seus próprios
procedimentos, privilegiando os interesses financeiros ao decidir quais serviços
eram indispensáveis. Isso resultou em uma disseminação mais perigosa do vírus
entre os mais vulneráveis, que dependiam dos transportes públicos para chegar aos
seus empregos precários e, se infectados, recorrer aos hospitais públicos, muitas
vezes infelizmente sucateados.
Na educação, cada estado e instituição criou seus próprios protocolos, que
não houve uma diretriz nacional do Ministério da Educação - MEC. No Ensino Médio
da Rede Estadual do Paraná, as férias de meio do ano foram antecipadas, e a
Secretaria Estadual de Educação implementou o que foi erroneamente chamado de
"EaD", posteriormente corrigido para Ensino Remoto Emergencial. As medidas
incluíam aulas por canal de TV aberta, um aplicativo chamado "Aula Paraná" para
acesso às aulas transmitidas, publicação das aulas no YouTube e o uso do
Classroom como plataforma de interação entre professores e alunos.
As medidas iniciais para o ERE buscaram abordar diferentes níveis de acesso
digital, oferecendo conteúdo em TV aberta e um aplicativo offline para quem possuía
apenas smartphones. No entanto, logo surgiram problemas relacionados às
condições de acesso à internet e dispositivos, afetando a qualidade do ensino para
muitos alunos. Durante as entrevistas com os professores, ficou evidente que todos
enfrentaram desafios semelhantes, como a necessidade de se adaptarem a novas
ferramentas e tecnologias, independente de suas condições materiais. A falta de
22
preparo e apoio da SEED-PR deixou os professores desorientados, dependendo da
colaboração entre colegas e coordenação escolar para lidar com as mudanças.
Destaca-se também as decisões e modos de comunicação adotados pela
mantenedora, a Secretaria Estadual de Educação do Paraná-SEED, em que muitos
comunicados eram enviados via WhatsApp e alguns em longas transmissões ao
vivo. No início do ERE, a SEED-PR introduziu a plataforma da Microsoft, a Power Bi,
destinada à análise de dados para avaliar o impacto do ensino, mas que foi
percebida pelos docentes como uma ferramenta de controle e punição. Essa
implementação ocorreu antes mesmo de oferecer treinamento aos professores,
resultando em monitoramento do trabalho dos professores nas plataformas de
educação, antes mesmo de fazerem formações sobre o uso das próprias
plataformas.
Com a pandemia, as difíceis condições dos professores se agravaram,
exigindo maior esforço em diversos aspectos: intelectual, para aprender novas
tecnologias rapidamente; emocional, para lidar com a nova rotina misturada com o
trabalho e cuidados domésticos; e físico, devido à invasão do espaço de trabalho e
descanso. Antes de analisar a experiência em dois colégios de Curitiba, notamos
que, embora houvesse projetos para reduzir a exclusão digital na educação estadual
do Paraná, estas políticas não resolveram completamente as desigualdades.
Durante o Ensino Remoto Emergencial (ERE), políticas anteriores de promoção das
Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) foram ignoradas, e outras
enfraquecidas anteriormente, como o projeto da TV Paulo Freire, um canal de
televisão aberta que poderia ter substituído o contrato milionário de uma empresa de
canais de televisão privada.
Entrevistando oito professores de dois colégios com públicos diferentes,
observamos algumas experiências semelhantes e outras muito distintas durante o
Ensino Remoto Emergencial (ERE). Enquanto no Colégio 2 a maioria dos alunos
participava das atividades online, no Colégio 1 a participação era maior nas
atividades impressas. As interações entre professores e alunos variaram
significativamente, com maior envolvimento online no Colégio 2 e limitações de
acesso às TICs no Colégio 1. A introdução de aulas síncronas via Meets aumentou o
contato, especialmente no Colégio 1, onde poucos alunos participavam. Uma das
23
principais preocupações dos professores foi a falta de diálogo dos alunos sobre o
entendimento dos conteúdos. O ERE gerou uma desconexão na interação entre
professores e alunos, exigindo esforços adicionais na divulgação do conteúdo
através de várias mediações, sem retorno se esses alunos estavam acessando.
Portanto, é crucial ressaltar no debate político e nos ambientes educacionais
que o processo didático-pedagógico acontece por meio do diálogo. Parte do trabalho
dos professores e professoras é se preocupar com a forma que o conteúdo chega
para os alunos, adaptando-o para que faça sentido para a realidade dessas
juventudes. Contudo, para que isso não fique apenas em debates no âmbito
acadêmico das licenciaturas, é fundamental que a valorização da nossa profissão
seja incorporada no plano político nacional.
Nós, profissionais, buscamos alguma utilidade social e individual em nossas
atividades, porém o sistema educacional abandonou o objetivo de formação humana
para atender aos interesses empresariais, colocando pressão sobre os professores
para seguirem esses interesses. Nossas práticas se tornaram cindidas, pois
buscamos a formação cidadã dos alunos, no entanto, precisamos atender às
demandas do programa neoliberal dos bons índices para o desenvolvimento do país
conforme os interesses do capital.
Durante a pandemia, os professores enfrentaram ataques contínuos, como a
fragilização dos sindicatos e a normalização da precarização, afetando
profundamente essa categoria de trabalhadores. Apesar disso, as mobilizações da
comunidade escolar têm demonstrado sua força, com movimentos estudantis,
sindicatos e grupos sociais utilizando a tecnologia para reivindicar uma escola
pública, gratuita, de qualidade e democrática.
O acesso digital é comprovadamente desigual, pois exclui partes da
sociedade, ampliando a lacuna na formação da juventude e na precarização do
trabalho dos professores, mostrando que o Ensino Remoto Emergencial (ERE) criou
outras exclusões que não devem ser normalizadas. É essencial implementar
políticas públicas para inclusão digital e tecnológica, não apenas fornecendo
dispositivos, mas também promovendo uma educação crítica sobre ciência e
tecnologia, permitindo que as pessoas participem ativamente no desenvolvimento e
24
implementação dessas tecnologias. A conjuntura pós-pandemia tem nos demandado
novas formas de resistência nas políticas educacionais, incluindo a luta por
melhorias nos serviços públicos, mais professores, melhores condições de trabalho
e adaptação das ferramentas tecnológicas para os contextos escolares. Esses
debates precisam ser priorizados!
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27
V.22, 48 - 2024 (maio-agosto) ISSN: 1808-799 X
TRANSFORMAÇÕES DO TRABALHO E FORMAS DE SOFRIMENTO: UM NOVO
SUJEITO SOCIAL DOCENTE NO BRASIL?1
Flavia Maia Cerqueira Rodrigues2
Carla Macedo Martins3
Resumo
O artigo analisa a construção do sujeito social docente contemporâneo à luz das mutações
tecno-precarizantes do trabalho sob o neoliberalismo. Para tal, exploram-se os efeitos da
flexibilização, terceirização, informalização, plataformização, uberização e empreendedorismo
neoliberal em termos não de afecções na saúde física e mental, mas também nas formas de
subjetificação do professorado, ocorrendo, em última instância, uma desidentificação e
despersonalização, via submissão ao controle integral, às violências e às transformações da função
social do profissional.
Palavras-chave: precarização; neoliberalismo; empreendedorismo; trabalho docente; sujeito social
TRANSFORMACIONES DEL TRABAJO Y FORMAS DE SUFRIMIENTO: ¿UM NUEVO SUJETO
SOCIAL DE ENSEÑANZA EN BRASI?
Resumen
El artículo analiza la construcción del sujeto social docente contemporáneo a la luz de las mutaciones
tecno-precarias del trabajo bajo el neoliberalismo. El texto explora los efectos de la flexibilización, la
subcontratación, la informalización, la plataformatización, la uberización y el emprendimiento
neoliberal en términos no sólo de las condiciones de salud física y mental, sino también en las formas
de subjetivación de la profesión docente, que en última instancia resultan en una desidentificación y
despersonalización del sujeto, vía sumisión al control total, violencia y transformaciones en el rol
social del profesional.
Palabras clave: precariedad; neoliberalismo; emprendimiento; trabajo docente; sujeto social
TRANSFORMATIONS OF WORK AND FORMS OF SUFFERING: A NEW TEACHING SOCIAL
SUBJECT IN BRAZIL?
Abstract
The article analyzes the construction of the contemporary teacher´s subjectivity considering the
techno-precarious mutations of educational work under neoliberalism. The text explores the effects of
flexibilization, outsourcing, informalization, platformization, uberization and neoliberal entrepreneurship
in terms not only of physical and mental health, but also in the forms of teacher´s subjectification,
ultimately resulting in a de-identification and depersonalization, via submission to full control, violence,
and transformations of the teachers´ social roles.
Keywords: precariousness; neoliberalism; entrepreneurship; teaching; social subject.
3Doutora em Linguística pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil. Pesquisadora da Escola
Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, da Fundação Oswaldo Cruz (EPSJV/FIOCRUZ), Rio de Janeiro - Brasil.
E-mail: carla.martins@fiocruz.br. Lattes: http://lattes.cnpq.br/9499749627869968.
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5432-2687.
2Mestre em Educação Profissional em Saúde pela Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, da Fundação
Oswaldo Cruz (EPSJV/FIOCRUZ), Rio de Janeiro - Brasil. Professora da Educação Básica (EJA) na Rede
Municipal do Rio de Janeiro. E-mail: flaviaginho@gmail.com.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/4036413082454037. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2547-8778.
1Artigo recebido em 27/01/2024. Primeira avaliação em 05/04/2024. Segunda avaliação em 24/04/2024.
Aprovado em 30/07/2024. Publicado em 07/08/2024.
DOI:https://doi.org/10.22409/tn.v22i48.61611.
1
Introdução
As expressões atuais de precarização do trabalho no contexto do
neoliberalismo - projeto capitalista de reestruturação do Estado, da política, do
trabalho e das relações sociais - têm determinadas formas de sujeito social. O
professorado não se coloca à parte deste conjunto de mutações. Neste sentido, o
artigo analisa a constituição do sujeito social docente contemporâneo e seus
sofrimentos, inclusive condicionadas e potencializadas pelas tecnologias digitais, à
luz do neoliberalismo e da precarização do trabalho.
O texto se divide em cinco itens. No primeiro, percorremos as expressões da
precarização do trabalho docente, considerando, em particular, as tecnologias
digitais. No segundo, discutimos o sujeito social contemporâneo, tomando, como
suas determinações, o trabalho precarizado sob o neoliberalismo. No terceiro,
focamos nas formas de sofrimento da classe trabalhadora vis a vis o exposto nos
itens anteriores. No quarto, a partir de uma análise descritivo-exploratória de um
corpus constituído por 22 artigos científicos, publicados no período de 2018 a 2022,
apresentamos um panorama das implicações deste contexto na saúde física e
mental do professorado. Por fim, no quinto, também a partir do corpus mencionado,
tecemos considerações sobre as mutações sofridas pelo sujeito docente
contemporâneo.
Precarizações e tecnologias no trabalho docente contemporâneo
Nosso foco, neste item, consiste em apresentar, de forma panorâmica, as
tecno-mutações precarizantes do trabalho docente, cuja compreensão consideramos
fundamental para a análise do sujeito social docente e seus sofrimentos. O sujeito
social deve ser considerado, numa perspectiva materialista-histórica, à luz do tempo
histórico e da realidade concreta das múltiplas determinações da sociedade
capitalista, dentre as quais as mutações sofridas pelo trabalho para a continuidade
da reprodução do capital (Mattos, 2019, p. 47).
A classe trabalhadora, assim como a burguesa, apresenta uma unidade,
porém também especificidades em seu interior. Para os fins de nosso artigo, a
heterogeneidade da classe marca a perspectiva da singularidade da categoria
docente e de seus sofrimentos - enquanto objeto de análise, ao mesmo tempo em
2
que tal categoria se encontra mergulhada na produção da totalidade da sociedade
capitalista.
Uma segunda observação preliminar se relaciona ao conceito de
precarização. Embora, em certo sentido, o trabalho sob o capital tenha sempre sido
precarizado, tomamos, como ponto de partida, a novidade dos fenômenos rotulados
genericamente de “precarização do trabalho”. Assim, a precarização “é um novo e
um velho fenômeno” (Druck, 2011, p. 37). Ademais, a classe trabalhadora hoje é
mais intrincada e fragmentada do que o proletariado industrial clássico (Antunes,
2020a), o que exige aportes e abordagens articulados à dinâmica do presente.
Para analisar a conformação atual do trabalho docente, Rodrigues (2023)
discute um panorama das formas hodiernas de precarização - como flexibilização
(Antunes, 2021; 2020a; Alves, 2021), terceirização (Oliveira e Druck, 2021),
informalização (Souza e Trovão, 2022), plataformização (Grohmann, 2020),
uberização (Abílio et al., 2021A; Abílio, 2021) e empreendedorismo (Pereira e
Martins, 2023) - concluindo que tais formas estão presentes hoje no trabalho
docente. Turmas com número excessivo de estudantes, demandas de produtivismo,
submissão a duplas ou triplas jornadas, manuseio de ferramentas tecnológicas sem
apoio, gestão de redes sociais, aquisição de ferramentas tecnológicas sem recursos
financeiros do empregador, e disponibilidade constante para atendimento a
coordenações, famílias e estudantes, além de outras situações laborais Rodrigues
(2023) são expressões destas mutações laborais. Em particular, a ampliação do
trabalho remoto, da uberização e da plataformização tem contribuído para
aprofundar a precarização e intensificação do trabalho docente (Elias e Navarro,
2019; Troitinho et al,2021; Pinho et al., 2021), inclusive impactando negativamente a
formação discente (Palácios e Fleck (2020).
Neste contexto, não constitui originalidade apontar que as tecnologias digitais
da informação e comunicação, traduzidas na expressão “indústria 4.0”, exercem
papel crucial tanto na informalização dos contratos laborais, quanto no controle e na
expansão do trabalho intermitente (Antunes, 2020a e 2020b, entre outros). A rigor,
para Antunes (2020b, p. 13), “as tecnologias de informação e comunicação
assumem um papel central “entre os distintos mecanismos de acumulação criados
3
pelo capitalismo financeiro de nosso tempo”4. O trabalho docente não se situa à
parte desta tendência geral, na qual a tecnologia digital ocupa um lugar essencial.
Para Previtali e Fagiani (2020, p. 230), “o processo de trabalho docente, sob o
impacto da indústria 4.0 (...) tem vivenciado transformações que levam à perda de
autonomia para tomada de decisões sobre os meios e os fins do processo
educacional”.
Sobre a relação entre precarização e uso de tecnologias, podemos retomar,
em específico, a uberização do professorado5. Em termos meramente fenomênicos,
esta parece assolar apenas os entregadores e as entregadoras de aplicativos;
contudo, a uberização aliada ao uso de tecnologias, em distintas manifestações,
vem atingindo também a categoria docente das mais distintas formas. Silva (2019)
conclui que, além da precarização do trabalho docente, a plataformização via
utilização de aplicativos possibilita o monitoramento ideológico, coerente com a
lógica da “fiscalização dos serviços pelos consumidores”: nas palavras da autora, “a
tecnologia não ajudaria a convocar docentes para o trabalho, mas também a
vigiá-los e puni-los" (p. 248).
O sujeito social contemporâneo
A consolidação do trabalho flexível e, portanto, precarizado, no capitalismo do
fim do século passado - condição traduzida genericamente pela expressão “espírito
do Toyotismo” desafiou o materialismo histórico para a compreensão das novas
formas de subjetividade geradas; o estudo de Alves (2011) constitui um exemplo
deste enfrentamento teórico-conceitual. No século XXI, o termo “capitalismo de
plataforma”, tratado no item anterior, tem hoje, de forma semelhante, colocado
questões para o delineamento do sujeito social.
De saída, por se apresentarem como simples tecnologias comunicacionais, os
aplicativos contribuem para ocultar “a exploração e espoliação do trabalho, assim
como a degradação dos direitos laborais” (Casulo, 2022, p. 14). Na mesma direção,
5É importante marcar, entretanto, inclusive para desfazer perspectivas fetichizantes da tecnologia,
que a uberização não se confunde com a plataformização ou o uso de tecnologias digitais. Venco
(2019) nos possibilita chamar a atenção para este fato, ao analisar uma semi-uberização docente
uma permanência de formas contratuais que apontam, entretanto, para o oferecimento dos “serviços
educacionais” em diferentes escolas, perfazendo um modo de ser docente “empreendedor”.
4Esta afirmação, destacada por nós em Antunes (2020b), não implica uma adesão das autoras a
perspectivas deterministas ou fetichistas a respeito do desenvolvimento tecnológico (para uma
abordagem materialista-histórica de tecnologia, referir-se a Lima Junior, 2014).
4
Antunes (2020b) - embora tratando especificamente do fenômeno correlato da
uberização - afirma que, neste contexto, de mutações, “as relações de trabalho são
crescentemente individualizadas e invisibilizadas, assumindo, assim, a aparência de
‘prestação de serviços’ e obliterando as relações de assalariamento e de exploração
do trabalho” (p. 11). Tais processos confluem para a afirmação do
“empreendedorismo”, que, ao lado de outras ideologias, como a da “prosperidade”,
produzem o que Casulo (2022) denomina de uma “dessubjetivação da classe” (p.
138).
Portanto, o funcionamento do capitalismo de plataforma nos encaminha para
a análise do empreendedor neoliberal, enquanto sujeito social característico do
capitalismo hodierno. Para tal, é necessária uma breve incursão no neoliberalismo
como forma de sociabilidade, consubstanciando ideais, desejos, visões de mundo,
linguagem e modos de ser trabalhador e trabalhadora: em outras palavras, as novas
dinâmicas formativas do sujeito e sua (auto)gestão. Sob este aspecto, a obra de
Dardot e Laval (2016) se mostra incontornável6. Os pesquisadores entendem o
neoliberalismo como um “modo de ação que um indivíduo exerce sobre si mesmo
por meio das técnicas de si, como encontro entre as técnicas de dominação
exercidas sobre os outros e as técnicas de si” (Dardot e Laval, 2016, p. 18).
O desafio de acumulação capitalista à qual o neoliberalismo responde está
longe de ser uma crise do capitalismo sempre igual em si mesma. A originalidade do
neoliberalismo se expressa como um novo conjunto de regras, que não apenas
define em uma forma de acumulação diferente, mas também propõe uma sociedade
específica (Dardot e Laval, 2016, p.24). Em linhas gerais, o neoliberalismo exige,
obrigatoriamente, novas instituições e novo preceito subjetivo, que não
correspondem mais àqueles do trabalhador produtivo das sociedades industriais. Em
primeiro lugar, “o ser referencial desse neoliberalismo não é primeiro e
essencialmente o homem da troca que faz cálculos a partir dos dados disponíveis,
mas o homem da empresa que escolhe um objetivo e pretende realizá-lo” (Dardot e
Laval, 2016, p. 140). Ou seja, o sujeito empreendedor neoliberal não é um
6Dardot e Laval (2016) tomam como referência a obra de Foucault. Embora as distinções
epistemológicas e ontológicas entre a matriz marxista e a foucaultiana extrapolem o objetivo deste
artigo, não podemos deixar de mencionar que tais distinções são relevantes. Entretanto, a rigor, para
compreender as mutações sociometabólicas do capital agrupadas sob o rótulo “neoliberalismo”,
Dardot e Laval (2016) não deixam de lado as determinações - econômicas e políticas. Os autores
afirmam ser necessário considerar o próprio materialismo histórico-dialético para buscar captar a
novidade do capitalismo neoliberal (p. 21), além dos aportes foucaultianos.
5
capitalismo do liberalismo clássico de Adam Smith ou um produtor das sociedades
industriais clássicas. Ademais, a “racionalidade neoliberal” desenvolvida entre os
anos 1980-1990 não é a simples implementação da doutrina “neoliberal” elaborada
nos anos 1930, numa condição de passagem de “teoria para a prática”. Ela é o
resultado de uma “multiplicidade de processos heterogêneos (Dardot e Laval, 2016,
p. 33-34).
A racionalidade neoliberal reconfigura a perspectiva de sociedade, que passa
a ser idealizada plenamente como um mercado, onde cada pessoa é concebida
como uma empresa em constante concorrência. A empresa de si mesmo é uma
“entidade psicológica e social, e mesmo espiritual” (p. 335)7. Logo, a competição se
internaliza e a vida pessoal passa a ser percebida como um capital a ser
continuamente valorizado, processo no qual o sujeito social passa a ser o
empreendedor de si mesmo (Dardot e Laval, 2016).
O mercado se constitui como um artifício que emprega motivações
psicológicas e competências particulares, apresentando uma dinâmica auto
formativa, onde o sujeito econômico se auto educa e aprende a se administrar
(Dardot e Laval, 2016, p. 140)8. Agora, esse sujeito é envolvido por uma ordem de
desempenho e gozo, flexível, precária, imprecisa, competitiva e fluida. Valoriza-se,
destarte, a instabilidade e adaptabilidade infinita do sujeito. Tal subjetividade impõe o
desenvolvimento, pelo indivíduo, da capacidade para “reagir rápido, inovar, criar,
‘gerir a complexidade numa economia globalizada’”, como um intérprete da
incerteza; nesta complexidade incontrolável, “o domínio de si mesmo e das relações
comunicacionais aparece como contrapartida” (Dardot e Laval, 2016, p.342).
Importante reiterar que a subjetivação determinada pela forma societária
capitalista não foi inaugurada pelo neoliberalismo. Processos históricos de
normatizações e técnicas de construção do sujeito social foram uma necessidade da
sociedade industrial e mercantil, condicionando a educação, a moradia, o descanso
e o lazer. No entanto, para Dardot e Laval (2016, p. 324), “a nova normatividade das
sociedades capitalistas impôs-se por uma normatização subjetiva de um tipo
8Para os autores, o novo sujeito precisa necessariamente “naturalizar” as regras do jogo neoliberal,
isto é, se adaptar, por exemplo, ao cenário do Estado-empresarial, no qual educação, saúde,
previdência e lazer se definem apenas como mercadoria e a privatização destas esferas sociais
possibilita a assim chamada liberdade de escolha.
7Como uma normativa generalizada, desde o Estado até a subjetividade, ela se reproduz na relação
do sujeito consigo mesmo, como um “capital humano que deve crescer indefinidamente, isto é, um
valor que deve valorizar-se cada vez mais” (Dardot e Laval, 2016, p.31-34).
6
particular”. Conforme abordamos, uma onda de naturalização do risco, de
estímulo à autossuperação ininterrupta e de responsabilização individual invade as
relações sociais.
Em suma, para os autores mencionados, contrapondo-se às particularidades
do sujeito liberal clássico - satisfeito ao circuito de produção, poupança e consumo,
e à perspectiva de ascensão social linear e progressiva -, o sujeito neoliberal é
produzido pela fluidez, pela incerteza e pela díade “desempenho/gozo”, a partir do
“domínio de si mesmo” e do acúmulo de conhecimento suscitado pela existência
individual e contingente. Por esta razão, de acordo com a nova razão do mundo, não
haveria mais interesse em salário fixo e direitos trabalhistas que, de fato, estão
degradados - transformando o empreendedorismo em espaço de suposta liberdade
e autonomia.
Sofrimentos (e sujeito social contemporâneo)
Uma vasta literatura vem sendo produzida sobre os efeitos da precarização
do trabalho e da neoliberalização da vida na saúde do trabalhador. Por exemplo,
Antunes e Praun (2020) consideram que a expansão do processo de precarização
provoca degradação nas condições de trabalho e de vida das trabalhadoras e
trabalhadores, como adoecimentos de toda ordem, psíquicos e físicos. O trabalho
causa cansaço, dor e uma desconexão entre a atividade laboral e as relações
humanas. Indica-se um aumento da instabilidade da saúde mental e dos níveis de
estresse, ansiedade, irritabilidade, insônia e depressão. Os autores sinalizam ainda
para a questão do suicídio, como uma das consequências de maior gravidade
(Antunes e Praun, 2020, p. 148).
A perda de autonomia e de autoestima, aliada à impossibilidade de planejar o
futuro, torna o ser social inseguro e vulnerável (Assunção, 2020). É relevante reiterar
que elementos disciplinadores, como o gerenciamento das metas de produção e da
assiduidade, o controle de parâmetros de qualidade, a diminuição do tempo de
repouso e a competição, são geridos e potencializados, muitas vezes, por
dispositivos tecno-digitais de coerção.
Assim, mesmo que o sofrimento da classe trabalhadora não seja restrito à
contemporaneidade, Antunes e Praun (2020) consideram que um novo mapa de
acidentes e doenças laborais, consequência das diferentes formas que o capital
7
assume hoje para garantir sua reprodução. Antunes e Druck (2020) vão na mesma
direção, afirmando que a nova era da degradação do trabalho impõe contornos
decisivos sobre o sofrimento da classe trabalhadora. Por fim, Praun (2019) também
reitera que, embora os processos de sofrimentos no nexo laboral não sejam
novidade no modo de produção capitalista, o que de novo é justamente a atual
forma de precarização do trabalho, que enfraquece o reconhecimento, a valorização
simbólica e as identidades individual e coletiva.
Formas de sofrer e subjetivação não são processos sociais desconectados.
Por exemplo, Alves (2021) sintetiza a relação entre os sofrimentos gerados pelas
mutações do trabalho e a constituição do sujeito. Para o autor, as alterações
subjetivas são tão fundamentais quanto às mudanças objetivas na morfologia do
trabalho. Assim, Alves (2021) destaca que as dimensões da precarização do
trabalho, seja do valor da força de trabalho, seja das condições de existência social
do trabalho vivo, condicionam formas de ser trabalhador e trabalhadora, se
apresentando através dos adoecimentos e resultando no que o autor denomina de
“vida reduzida”.
Tal relação (des) humana determinada pelo trabalho sob o capital é
evidenciada no neoliberalismo. Os processos político-sociais e institucionais alteram
e modulam as variantes do sofrimento e assumem o controle sobre a sua nomeação
e renomeação.
Antes de nos aprofundarmos nesta questão, entretanto, é necessário reiterar
que o sujeito neoliberal, ao empregar o envolvimento de si mesmo como centro do
processo e do desejo de sucesso, desenha uma situação falseada em que toda
satisfação depende unicamente dele e em que sua vontade se origina em si mesma.
Em outras palavras, “o ‘homem empresarial’ caracteriza-se, assim, como sujeito
unitário, como sujeito do envolvimento total de si mesmo na atividade à qual se
propõe” (Dardot e Laval, 2016, p.327). A economia passa a ser uma disciplina
pessoal, na qual todas as atividades são representadas como um investimento.
Consequentemente, dando um passo adiante em uma formulação
apresentada do item anterior, podemos afirmar que a originalidade do neoliberalismo
consiste em criar um conjunto de regras que definem não apenas outro regime de
acumulação, mas uma nova sociedade adoecida (Dardot e Laval, 2016, p. 24, grifo
nosso). A vicissitude de desempenho, que prova o valor da pessoa - e o próprio
valor de sua reprodução enquanto ser vivo - produz efeitos patológicos: estresse,
8
assédios, suicídios, além de outros riscos psicossociais dolorosos e perigosos
(Dardot e Laval, 2016, p.362), como a depressão, acompanhada de ansiedade,
perda de interesse, falta de concentração, cansaço, distúrbios do sono e do apetite e
oscilações entre a culpa e a baixa autoestima.
Os sofrimentos aparecem e se mantém, pois o sujeito social do neoliberalismo
contemporâneo precisa assumir dois papéis obrigatoriamente. O primeiro é o de ser
um mestre em desempenho e competência9; o outro é de ser o sujeito e objeto de
um gozo descartável. O sistema interioriza que os indivíduos vivam tal gozo sem
barreiras, utilizando ferramentas como vigilância constante dos espaços sociais,
rastreabilidade dos movimentos humanos, formas cada vez mais controladoras e
auto controladoras inclusive digitais - dos indivíduos (Dardot e Laval, 2016, p.361).
Neste ponto, se torna possível definirmos o sofrimento nos termos aqui
abordados: “o sofrimento é entendido como tradução psíquica do sentimento social
da indignidade, respeito e humilhação do operário ou do trabalhador intelectual”
(Dunker ET AL., 2021, p. 239). Os sofrimentos surgem a partir das condições
existenciais, externalizadas nas narrativas que promovem controle sobre o
trabalhador, responsabilidades fora do período laboral, criação de metas
impraticáveis e políticas competitivas. Na totalidade da vida social, o sofrimento está
mediado pelos campos da linguagem, da cultura, da economia e da política (Junior,
2021).
Tal definição nos possibilita retomar a questão da nomeação e renomeação
acima referida. O próprio termo “sofrimento” implica uma disputa política e histórica.
Para Safatle, Junior e Dunker (2021), o sofrimento “localiza-se de modo
intermediário entre, por um lado, os sintomas e sua regularidade clínica e, por outro
lado, o mal-estar e suas conflitivas existenciais”, concluindo que “determinar qual
sofrimento é legítimo e qual não é, portanto, é uma questão não apenas clínica, mas
também política” (Safatle, Junior e Dunker, 2021, p.8).
Safatle, Junior e Dunker (2021) apontam que uma estrutura moldada
nessa nova forma de vida neoliberal, cuja estratégia é promover um elevado
comprometimento com o trabalho, sem implicar uma responsabilidade empresarial;
isto é alcançado quando tal sofrimento é visto como algo espontâneo ou inerente ao
ser humano. Assim, os autores apontam que “a força do neoliberalismo é
9Por isso, sob o neoliberalismo, a mínima proteção de direitos trabalhistas e sociais se traveste em
um papel protetor da preguiça e da ausência de iniciativa (Júnior, 2021).
9
performativa”, no sentido que não se trata apenas de uma coerção comportamental,
mas de “efeitos ontológicos na determinação e produção do sofrimento”. Em outras
palavras, a razão neoliberal não é externa ao sujeito ou uma distorção dos
diagnósticos clínicos: ela “recodifica identidades, valores e modos de vida por meio
dos quais os sujeitos realmente modificam a si próprios, e não apenas o que eles
representam de si próprios” (Safatle, Junior e Dunker, 2021, p.7). Cumpre aqui
explicitar uma contradição do neoliberalismo no que tange ao sofrimento: ao mesmo
tempo que categoriza novas afecções oriundas das relações sociais, sobre as quais
discorreremos mais adiante, neste mesmo movimento, o diagnóstico clínico da
subjetividade neoliberal permite que o “patológico” faça parte da normalidade social
(Dardot e Laval, 2016, p.373).
Neste sentido, podemos afirmar que o neoliberalismo implica um certo
usufruto do sofrimento: o discurso de "autorrealização" e “sucesso na vida”
estigmatiza e mesmo patologiza - o fracasso e a infelicidade. Essa
“dessimbolização” gera uma “nova economia psíquica” (Dardot e Laval, 2016,
p.368): “técnicas de si que visam ao desempenho individual por meio de uma
racionalização gerencial do desejo” (Dardot e Laval, 2016, p.360). O discurso “psi”,
transmutado e reunido ao econômico, é legitimado como elemento primordial de
conduta e motor de transformação por técnicas próprias, como o coaching.
Nesta direção, a partir da perspectiva psicanalítica, Dunker et al (2021, p. 240)
elucidam que “a defesa contra a angústia, ou seja, a preservação do eu, sob forma
de negação, racionalização, projeção ou sublimação do conflito, é o que é visado
pela gestão liberal do sofrimento”, numa busca de acomodação narcísica do Eu. Os
mecanismos de defesa são percebidos pelo trabalhador e pela trabalhadora, no
meio de um turbilhão de sentimentos conflituosos, como angústia, insatisfação e
contrariedade. Desse modo, as relações trabalhistas, de acordo com os autores, são
pautadas em discursos que carregam narrativas religiosas e místicas e que são
enquadradas como experiências individuais isoladas. Essas exposições constituem,
portanto, a “psicologia da gestão neoliberal do sofrimento” (Dunker el al, 2021, p.
241) e traz a depressão e a ansiedade como narrativas hegemônicas, geradas pelo
padrão esperado pela autoridade e pelo auto empreendimento.
Para Safatle (2021), os processos aqui descritos apontam para a criação de
uma gramática do sofrimento e seus códigos de CID. O sujeito passa a se definir
por esta gramática, cujo controle se insere no conjunto da luta de classes. Safatle
10
(2021, p.15) afirma que, nesta gramática neoliberal das emoções, ocorre uma
psicologização peculiar da economia, dificultando a divergência política e se
expressando como uma “racionalidade”.
Ainda na nova gramática do sofrimento, é notória a substituição de termos
políticos por termos emocionais: justiça, espoliação e equidade são sobrepostos por
ódio, frustração, medo e raiva. Este processo se num contexto que o autor
denomina de “economia moral”, fruto da relação entre autonomia da economia
política e a psicologia moral, onde a primeira influencia o campo social, incorporando
determinações da segunda. As consequências da economia moral se apresentam
na supressão abusiva do setor político enquanto espaço legítimo deliberativo e
decisivo e no fortalecimento da condição patológica, que afeta os modos de sujeição
psíquica e sofrimento social (Safatle, 2021, p.14).
Ademais, opera-se também a equivalência das relações político-sociais aos
familiares. As relações passam a ser glosadas pelas figuras maternas e paternas,
pautadas no amor e reconhecimento de família, como padrão para uma (inexistente)
harmonia social. Ou seja, a ideia de eliminar qualquer conflito exige que a ligação
seja devota, quando compara a administração governamental com a gerência
familiar-residencial. Além de apontar uma fantasia naturalizada dos modos de
produção e circulação de riquezas, também se almeja uma resiliência dócil entre
corpo social e corpo materno, fraterno e paterno, gerando uma dependência e
naturalização da sujeição desses corpos (Safatle, 2021).
Assim, as relações sociais foram “psicologizadas”, numa espécie de
“humanização” da empresa capitalista, gerando modelos reprogramados para afetar
as subjetividades. Com o uso do vocabulário administrativo-psicológico, a política de
capital humano otimizou a transferência dos recursos humanos da empresa para os
consultórios e as salas de terapia (Safatle, 2021, p.24).
Portanto, ocorre uma nomeação e renomeação de categorias clínicas
psíquicas (Dunker el al.., 2021; RossiI e Junior, 2018). Para Safatle (2021), “modelos
socioeconômicos são modelos de governo e gestão social de subjetividades (...).
Eles não podem ser elucidados sem a gestão de uma psicologia que lhes é inerente”
(p. 26).
Não à toa, quando o neoliberalismo ascendeu em 1970, houve
concomitantemente uma alteração nas formas descritivas do sofrimento,
sistematizadas no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais
11
(DSM-III). Este manual, utilizado pela psiquiatria, traduziu um distanciamento da
gramática social anterior, apontando uma nova consciência da dimensão conflitual
dos processos sociais próprios ao sistema capitalista (Safatle, 2021). Ocorreu uma
reformulação completa, retirando as neuroses como determinante principal para o
surgimento do sofrimento e promovendo a hegemonia das depressões.
Consequentemente, a depressão aparece como uma tragédia inerente à
inadequação do indivíduo, retirando do sofrimento psíquico o contexto consciente da
violência social (Júnior, 2021; Safatle, 2021).
Em suma, as formas de interpretação e nomeação do sofrimento altera a
própria experiência deste afeto, não sendo algo externo à subjetificação - o que
remete à apontada dimensão ontológico-performativa do sofrimento neoliberal. O
sofrimento é indissociável das formas como é expresso e percebido socialmente
(Júnior, 2021). Tal máquina subjetiva e objetiva tem a intenção de garantir a
reprodução social, de apagar a inconsistência das relações e de ocultar as
consequências das metamorfoses do trabalho. Há, portanto, uma "normalização" da
alta incidência de sofrimento mental. Ao tratar a ordem estabelecida como natural -
mesmo sem mencioná-la -, estabelece-se um diálogo com a lógica da culpabilização
dos sujeitos, disseminada e reforçada no atual estágio do capital.
É importante observar, por fim, antes de passarmos aos sofrimentos
docentes, que a historicidade dos sofrimentos neoliberais exposta neste item não
significa que não um efetivo aumento do sofrimento. Segundo a literatura (Dunker
et al.., 2021; Safatle, 2021; Rossi e Junior, 2018; Secco e Kovaleski, 2021; Antunes
e Praun, 2020; entre outros), podemos afirmar que, sim, sofremos mais globalmente.
A resposta neoliberal tem sido a patologização dos sujeitos, deslocando este caráter
dialético do sofrimento, sintomático de crise social, rumo ao campo biomédico. Em
outras palavras, trata-se o sofrimento e suas locuções como exclusivamente
biológicos, criando critérios diagnósticos e medicalizando um conjunto de problemas
de natureza estrutural.
As formas de sofrimentos do trabalho docente no Brasil
Para constituir um corpus de análise sobre as formas de sofrimento do sujeito
docente contemporâneo e as articulações com sua constituição, foram acessadas
duas fontes de busca - a Biblioteca Virtual da Saúde (BVS) e a Scientific Electronic
12
Library Online (SCIELO) - nas quais se levantaram, em artigos publicados no
período de 2018 a 2022, os cruzamentos entre os seguintes grupos de palavras:
“trabalho docente/trabalho do professor/docência”; “sofrimento, adoecimento
psíquico, saúde psíquica, mal-estar, saúde mental, violência” e
"precarização/precariedade/flexibilização/precário”.
Ocorpus resultou em um total de 22 artigos, analisados numa abordagem de
caráter descritivo-exploratório, revelando um mapeamento dos efeitos psíquicos da
precarização neoliberal e as características do sofrimento no sujeito social docente:
Figura 1 - Efeitos e tipos de sofrimento oriundos da precarização do trabalho docente no
Brasil, segundo a literatura (2018-2022)
Fonte: elaborada pelas autoras, 2023.
A figura reitera que as exigências laborais despertam sentimentos de
sofrimentos, incertezas e angústias dos profissionais, tanto no Ensino Superior como
na Educação Básica, conforme atestam os trabalhos de Ferreira e Menezes (2021),
Vivian et al. (2019) e Elias e Navarro (2019)10. Nesse sentido, cabe destacar o
10 Não é objeto de discussão, no artigo, as singularidades do sofrimento dos profissionais em cada
nível de ensino. Não podemos deixar de observar, contudo, que o sofrimento no ensino de nível
superior também é uma temática relevante. Essa categoria vem se submetendo a contratempos
materiais e administrativos que interferem no fazer docente cotidiano, apontando para a rotinização
da atividade (Ferreira e Menezes, 2021, p.7). O trabalho de Vivian et al. (2019) reconhece que esses
aspectos, juntamente com a necessidade de resposta à mobilização emocional, influenciam a saúde
13
estudo de Ferreira e Menezes (2021), que mostra que a docência exerce seu
trabalho tanto na educação quanto na pesquisa, sendo capturada por prazos e
cronogramas diversos. Além disso, não é atípico o(a) professor(a) acumular as
funções com algum cargo de gestão. Podemos concluir que, a partir de Elias e
Navarro (2019), esse acúmulo de funções é acompanhado da perda de sentido
sobre seu papel, surgindo os efeitos em seus corpos e psiquismo (Elias e Navarro,
2019, p.52).
Uma primeira questão de destaque relativa ao sofrimento docente incide no
fenômeno da medicalização crescente. Vivian et al. (2019) referem que o consumo
dos medicamentos psicotrópicos, muitas vezes, rege a vida de professoras(es),
disfarçando as tensões advindas do ambiente laboral. Portanto, a medicalização
pode maquiar o sofrimento mental, dificultando que profissionais reconheçam as
implicações e os incômodos causados pelas experiências no trabalho. O estudo de
Penteado e Neto (2019, p.145) também trata da temática, considerando,
especificamente, a automedicação: os autores afirmam que os(as) docentes
procuram por ajuda profissional médica quando chegam ao limite de suas forças,
fazendo com que o processo de automedicação (e medicalização) se intensifiquem.
Ou seja, a medicação e automedicação podem camuflar o sofrimento, gerando o
denominado “presenteísmo" - trabalho exercido mediante situações de sofrimento ou
adoecimento, por vezes, à base de automedicação.
A síndrome de Burnout ganha relevância entre os sofrimentos discutidos na
literatura (Ferreira e Pezuk, 2021; Ribeiro et al.,2022; Dias e Silva, 2020). Nesse
tema, o estudo de Ferreira e Pezuk (2021, p. 486) se sobressai, ao apontar que as
condições trabalhistas, os conflitos interpessoais e o mau uso do tempo causam um
estado máximo de esgotamento mental e físico aos(às) docentes; por esta razão, os
autores se referem à síndrome como uma condição tridimensional de fatores
relacionados às atividades de trabalho, sendo geradores da crise de sentimentos,
frustração em relação ao sentido de produção, desempenho e perda de propósito
profissional. Ainda sobre o burnout, a pesquisa de Dias e Silva (2020) merece
atenção, por duas razões: diferentemente dos demais trabalhos, os autores
e qualidade de vida dos (as) docentes que atuam no ensino superior. Por fim, de acordo com Elias e
Navarro (2019), o processo de reestruturação produtiva modifica a organização do trabalho,
envolvendo o uso de tecnologias e exacerbando, assim, o gerencialismo que afeta diretamente a
psiquê desses(as) trabalhadores(as).
14
concluem que a síndrome de Burnout pode ser mais prevalente no sexo masculino.
Embora tanto professores quanto professoras sintam dificuldades para identificar a
síndrome, devido às pressões da masculinidade, os homens demoram mais para
buscar o diagnóstico.
Sobre o contexto da pandemia de Covid-19 (2020), as pesquisas de Troitinho
et al. (2021) e Pinho et al. (2021) trazem elementos fundamentais sobre o
agravamento dos impactos na saúde mental de professoras(es) neste período no
Brasil. Vale destacar aqui as conclusões de Troitinho et al. (2021), inclusive pela
relação com a tecnologias digitais: os autores demonstram que, durante as
atividades remotas, os (as) docentes apresentaram inúmeros sofrimentos, devido à
sobrecarga de trabalho e às novas demandas do trabalho docente, como produção
de conteúdo virtual e edições de vídeos. A pesquisa traz ainda contribuições
consideráveis em relação à instauração de sofrimentos, como sentimentos de
solidão e isolamento, gerados pela ausência de convivência com colegas de
profissão. Na mesma direção, Pinho et al. (2021, p.11) apontam que a saúde mental,
com alterações no sono, foi agravada na pandemia, prevalecendo, os maiores
níveis, em trabalhadoras (es) que tinham alta sobrecarga doméstica, medo do
desemprego e inaptidão para utilizar ferramentas digitais (“tecnoestresse”)11.
Por fim, verifica-se, ainda, a partir da literatura, a importância de sinalizar a
depressão, ao lado do burnout, como manifestação do sofrimento psíquico docente
e como a causa mais frequente de incapacitação profissional. Machado, Almeida e
Dumith (2020, p.74) citam dados do Brasil, que apontam que 28% da população, em
média, será acometida com algum tipo de depressão em algum período da vida,
mesmo que os sintomas apareçam de forma velada. As condições precárias que
docentes brasileiros (as) vivenciam - a pesquisa foi realizada em uma universidade
federal - causam-lhes adoecimentos físicos e psíquicos. Esse texto merece a nossa
atenção, pois nele se expressa a maior incidência de depressão em docentes
fumantes e em mulheres. Ficou demonstrado, no estudo, que a condição atinge o
dobro de professoras, em relação aos professores, pois, nas mulheres, adoecimento
está acompanhado por culpa da condição de sofrimento.
11 “Tecnoestresse” é um conceito proposto na década de 1980 para explicar uma enfermidade de
adaptação decorrente da baixa habilidade para lidar, de maneira agradável, com as novas tecnologias
(PINHO ET AL.,2021, p.11).
15
As mutações do sujeito social docente contemporâneo
Neste item, exploramos como as atuais configurações do trabalho e seus
sofrimentos, tratados nos itens anteriores, podem indicar um novo perfil docente.
Para organizar nossa análise, sistematizamos, a partir da literatura, quatro questões
interligadas na subjetificação deste trabalhador, conforme a tabela a seguir,
ressaltando que estas mutações podem ocorrer sobrepostas no corpus.
Tabela 1: Mutações do sujeito social docente contemporâneo na literatura da área no Brasil
(2018/2022)
PROCESSOS
SÓCIO-SUBJETIVOS
NÚMERO DE
ARTIGOS
(TOTAL 22)
PERCENTUAL
(TOTAL 100%)
DESIDENTIFICAÇÃO/DESPERSONALI
ZAÇÃO DOCENTE
8
36%
CONTROLE DA SUBJETIVIDADE
DOCENTE
6
27%
VULNERABILIDADE DOCENTE E
VIOLÊNCIAS SOFRIDAS PELAS (OS)
DOCENTES
6
27%
TRANSFORMAÇÕES NA FUNÇÃO
SOCIAL DOCENTE
8
36%
Fonte: elaborada pelas autoras, 2023.
A desidentificação é um processo amplamente referido na literatura (Troitinho
el al.., 2021; Elias e Navarro, 2019; D’Oliveira et al., 2020; Sardi e Carvalho, 2022).
Dentre esses estudos, por partir de uma abordagem marxista, se destaca o estudo
de Troitinho et al. (2021), que vincula diretamente a desidentificação docente com a
precarização do trabalho no contexto atual. De fato, a solidão e o isolamento são
elementos presentes na profissão e causam grande impacto no cotidiano laboral.
Tal processo pode se vincular, por sua vez, às transformações das funções
sociais docentes, das quais trataremos mais adiante, sugerindo uma mudança na
atividade pedagógica dos profissionais. A aquisição de habilidades de edição de
16
vídeo, organização e manutenção de redes sociais, participação em atividades
remotas e utilização de diversas plataformas e/ou aplicativos são exemplos dessas
alterações. Dessa forma, a desidentificação surge quando novas atividades são
introduzidas no cotidiano docente.
No entanto, a desidentificação não se limita às alterações de funções
profissionais. A competitividade e intensa produtividade, apontadas por D’Oliveira et
al. (2020), implicam alterações nas relações tanto entre pares, quanto entre
profissional e objeto laboral, promovendo uma insensibilidade emocional - ou uma
nova “sensibilidade emocional” - que também altera a identidade.
Quanto ao controle da subjetividade docente, os textos (Sardi e Carvalho,
2022; Elias e Navarro, 2019; Pinho et al., 2020; Alves et al., 2022; Gerheim e Castro,
2018; Penteado e Neto, 2019) apontam sua utilização como mecanismos do capital,
para promover formas de alienação da categoria. Aulas podem ser gravadas e
transmitidas a qualquer tempo. Pinho et al. (2020, p. 11), sobre o tema, destacam o
ataque à autonomia pedagógica através dos recursos tecnológicos. Outro traço da
cultura do controle da subjetividade docente se na coerção social que se
manifesta através do imperativo da "qualidade" do ensino. Segundo Alves et al.
(2022, p.1034), “a coerção social está relacionada a situações como pressionar para
obter melhores notas”. Gerheim e Castro (2018, p.46) comparam tal demanda com
operários de fábrica de parafusos, submetidos às exigências dos clientes e mercado,
sobretudo, na rede privada. Portanto, os docentes assumem uma resiliência e
internalizam uma disciplina, em função do fato de que outros, que não seus
estudantes, podem assistir às aulas gravadas, o que possibilita um controle
permanente de seu desempenho.
A violência, como expressão da vulnerabilidade, é definida por Alves et al.
(2022, p.1028), como “fruto da sociedade, que surge do tecido socioeconômico e
político e se estrutura no indivíduo e nas instituições, que não são naturais”.
Identificamos contribuições relevantes também nos textos de Elias e Navarro,
(2019), Dias et al. (2022) e Albuquerque et al.(2018). Os estudos sinalizam que a
violência laboral pode ser de natureza verbal - relacionadas à identidade de gênero
e à orientação sexual, por exemplo - e de natureza física - como interrupções na
sala de aula, gestos ou falas obscenas, assédio sexual, ou agressões sem contato.
As violências causam medo, insatisfação, deixando docentes vulneráveis no
ambiente em que trabalham. Foram identificadas em todos os níveis escolares, da
17
educação básica ao ensino superior, em áreas urbanas, suburbanas e rurais,
prevalecendo a física, seguida da verbal. Também expostos (as) às violências,
estudantes reproduzem comportamentos agressivos, que acabam por desrespeitar
as regras de convívio social escolar. Um artigo que merece destaque neste tema é o
de Albuquerque et al. (2018), pois os autores partem da relação entre, de um lado,
violência e vulnerabilidade docente e, de outro lado, a negação dos direitos de
cidadania da população atendida. A violência que pauta mutações nas relações
sociais, inclusive interpessoais, entre docentes e seus pares e entre docentes e
estudantes - gera formas degradadas de ser profissional da educação.
Retomando a transformação de funções laborais, como último aspecto da
constituição do sujeito docente, podemos mencionar as análises de Martins,
Salvador e Luz (2020), Alves et al.(2022), Gerheim e Castro (2018), Simões e
Cardoso (2022), Elias e Navarro (2019), Pinho et al. (2021), Sardi e Carvalho (2022),
e Penteado e Neto (2019). Dentre tais estudos, damos ênfase ao exposto por
Gerheim e Castro (2018, p. 45), que explicitam que, para manter-se no mercado,
cada instituição opera e define as suas prioridades, cada vez mais, de acordo com o
imperativo da flexibilidade, tornando os docentes meros agentes e as suas funções
um trabalho mecânico. Nesse contexto, observamos que o professorado cria
relações arriscadas e conflituosas com estudantes, familiares, representantes
administrativos (coordenações e direções) e até com colegas de trabalho. Em torno
destas demandas, determina-se uma série de formas de ser e de trabalhar, cruzadas
por sentimentos de profundo desprezo e desvalorização. Tais relações impõem
funções que ultrapassam o educativo, redimensionam o papel social docente e as
formas de ser trabalhador da área.
A percepção dos professores (as) é de trabalho constante, nos dias de
trabalho ou fora dele, e até mesmo quando estão de férias. Ainda que as atividades
letivas, presenciais ou remotas, sejam encerradas, o docente permanece vinculado
às futuras atividades dos próximos períodos letivos, à recepção de turmas, aos
planejamentos - e aos grupos de aplicativos. Sobre este tema, o estudo Sardi e
Carvalho (2022) é crucial. Sendo dedicado a compreender o processo de trabalho
na transição da educação presencial para o ensino remoto emergencial, os autores
destacam a nova função de tutoria. Dentro das novas técnicas gerenciais, os
profissionais encontram limites para se expressar e interagir, perdendo o controle do
trabalho e alterando estilo e gosto pessoais. Fica evidente que o docente não ocupa
18
a centralidade do processo de aprendizagem. Há, inclusive, dificuldades de se
reconhecer como docentes. Temos, assim, concomitantemente, processos de
desidentificação, vulnerabilização, controle e mutação de função social - no caso,
suscitados pela pandemia, porém não determinados ou restritos a ela.
Em suma, sobretudo depois do período pandêmico, a docência se encontra
em disputa continuamente. Assim como houve aumento da carga horária, dos
custos relacionados a meios (aparelhos, materiais pedagógicos, pacotes de internet
e outros recursos) e da submissão ao controle, também se elevou a demanda por
educação presencial e, concomitantemente, à distância, nos feriados e finais de
semana. O incremento de produtividade, tanto na educação básica quanto no ensino
superior, leva o (a) trabalhador (a) a diminuir suas horas de descanso, sono e lazer,
aprofundando o sofrimento.
Considerações Finais
O artigo buscou tratar do sofrimento docente contemporâneo como uma
questão política determinante na construção deste sujeito social. Partimos das
expressões da precarização do trabalho docente, para ampliar nossa análise
mergulhando nas formas de sujeito social e nos sofrimentos sob o trabalho
precarizado no contexto do neoliberalismo. Ao impor que o sujeito se valorize como
uma empresa de si mesmo, o neoliberalismo gera o sofrimento psíquico, mas
também administra e categoriza este mesmo sofrimento numa chave individualista.
Este referencial teórico-analítico nos permitiu tratar do sujeito docente
hodierno, mapeando seus sofrimentos e os processos de subjetificação a eles
relacionados. Foi possível identificar, assim, que as formas de sofrimento e de
subjetificação contemporâneas encontram expressões específicas no trabalho
docente. Tratamos, nesta direção, ao lado das manifestações concretas dos
sofrimentos físicos e mentais, da desidentificação/despersonalização, do controle da
subjetividade docente, dos efeitos da vulnerabilidade e violências sofridas pelo
professorado, e das transformações na função social docente. Em síntese, os
resultados desta pesquisa evidenciam que o reconhecimento profissional e da
identidade ficam comprometidos, sugerindo que está em curso, uma dinâmica de
novas formas de ser sujeito social docente, determinada pelas transformações do
mundo do trabalho e da vida social-política. Tal determinação está longe de explicar
19
todas as afecções e os sofrimentos do ser social, mas indica que a individualização
não é explicação socialmente suficiente e pode mascarar o processo social em
curso.
Para buscar superar esta degradação da vida social, nos ancoramos em Marx
e Engels (2007, passim, sobretudo p. 46 e p.69): a concorrência entre os
trabalhadores destrói a cada momento a organização dos proletários em classe;
porém, no bojo destes mesmos processos históricos, encontram-se condições
objetivo-existenciais a partir das quais tal organização pode ser refeita em outros
termos. Assim, as formas hodiernas destruidoras de ser docente e sua análise
constituem as próprias condições para a superação dos sofrimentos, uma vez
reimaginadas nossa organização enquanto classe.
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24
V.22, 48 - 2024 (maio-agosto) ISSN: 1808-799 X
O TELETRABALHO NA UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA (2020-
2023): UMA ANÁLISE DA FASE PILOTO DA SUA IMPLANTAÇÃO1
Merielle Martins Alves2
Mário Borges Netto3
Resumo
Neste texto apresentam-se os resultados de um estudo sobre a implantação da modalidade de
teletrabalho na Universidade Federal de Uberlândia-UFU, segundo a Instrução Normativa Conjunta
SEGES SGPRT/MGI 24, de 28 de julho de 2023. Da análise documental, cotejada com as
reflexões teóricas sobre as mudanças no mundo do trabalho nas últimas décadas, conclui-se que a
efetivação do referido programa impactará sobremaneira na qualidade do serviço prestado a
população e nas condições de trabalho dos servidores, expondo-os, ainda mais, às consequências
precarizantes da lógica neoliberal em seu cotidiano.
Palavras-chave: Educação; Teletrabalho; Programa de Gestão e Desempenho PGD; Universidade
Federal de Uberlândia-UFU.
EL TELETRABAJO EN LA UNIVERSIDAD FEDERAL DE UBERLÂNDIA - UFU DE 2020 A 2023: UNA
ANÁLISIS DE LA FASE PILOTO DE LA SU IMPLANTACIÓN
Resumen
Este texto presenta los resultados de un estudio sobre la implementación de la modalidad de teletrabajo en la
Universidad Federal de Uberlândia, según la Instrucción Normativa Conjunta SEGES SGPRT/MGI 24, de 28
de julio de 2023. Del análisis documental, cotejada con reflexiones teóricas sobre los cambios en el mundo del
trabajo en las últimas décadas, se concluye que la implementación del referido programa impactará sobremanera
en la calidad del servicio prestado a la población y en las condiciones laborales de los servidores exponiéndolos,
aún más, a las precarias consecuencias de la lógica neoliberal en su diario.
Palabras-clave: Educación, Teletrabajo, Programa de Gestión y Desempeño - PGD, Universidad Federal de
Uberlândia UFU.
REMOTE WORK AT THE UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA–UFU FROM 2020 TO 2023: AN
ANALYSIS OF THE PILOT PHASE OF IT’S IMPLEMENTATION
Abstract
This work presents the results of a study on the implementation of the remote work modality at the Universidade
Federal de Uberlândia-UFU, according to Joint Normative Instruction SEGES SGPRT/MGI No. 24, dated July 28,
2023. Through document analysis, coupled with theoretical reflections on changes in the world of work over the
past decades, it is concluded that the actualization of this program will significantly impact the quality of services
provided to the population and the working conditions of the employees, exposing them even more to the
precariousness consequences of neoliberal logic in their daily routines.
Keyword: Education; Remote Work; Management and Performance Program PGD; Universidade Federal de
Uberlândia - UFU.
3Doutor em Educação pela Universidade Estadual de Maringá (UEM), Paraná - Brasil. Professor da Faculdade de
Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Minas
Gerais - Brasil. Pesquisador do Grupo de Estudos e Pesquisas Trabalho, Educação e Formação Humana
HISTEDBR. E-mail: mario.netto@ufu.br. Lattes: http://lattes.cnpq.br/7631482288936524.
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5277-5789.
2Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Minas
Gerais - Brasil e Assistente social da Universidade Federal de Uberlândia. E-mail: merielle.martins@ufu.br.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/2054300248512002. ORCID: https://orcid.org/0009-0004-3443-9246.
1Artigo recebido em 18/01/2024. Primeira Avaliação em 03/04/2024. Segunda Avaliação em 15/05/2024.
Aprovado em 13/07/2024. Publicado em 07/08/2024. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v22i48.61490.
1
Introdução
O ano de 2020, no Brasil, começou com grandes preocupações, devido à
chegada da pandemia da Covid-19 ao país. A doença, que é caracterizada,
sobretudo, pela síndrome respiratória aguda, foi identificada pela primeira vez, em
dezembro de 2019, em Wuhan, na província de Hubei, República Popular da China.
No Brasil, os primeiros casos foram confirmados no início do ano de 2020 e, a partir
daí, milhões de pessoas foram contaminadas e milhares foram a óbito.
Como estratégia de distanciamento social para a prevenção à contaminação,
diversos órgãos públicos e empresas privadas adotaram a modalidade de
teletrabalho. Segundo Góes, Martins e Nascimento (2020), em junho de 2020, o
percentual de servidores públicos executando essa modalidade de trabalho foi três
vezes maior que o dos empregados no setor privado. “24,7% dos trabalhadores do
setor público exerciam atividade remota, fora das dependências das instituições,
mas, no setor privado esse número era apenas 8%” (Góes, Martins Nascimento,
2020, p. 22). Ainda segundo os autores, na administração pública, no ano de 2021,
os órgãos federais foram os que concentraram a maior proporção de trabalhadores
em Home Office/teletrabalho, sendo 40,7%. No âmbito estadual essa proporção foi
de 37,1%, enquanto no municipal foi de 21,9% (Góes, Martins e Nascimento, 2021).
Em relação à prática adotada pela Universidade Federal de Uberlândia-UFU,
no dia 17 de março de 2020, foi publicada a Portaria REITOR 311, definindo os
procedimentos e as rotinas para as atividades administrativas da UFU durante o
período de pandemia. Na portaria, foram estabelecidas as condições para o
teletrabalho dos servidores, uma vez que não havia previsão para o retorno ao
trabalho presencial.
Para ampliar e normatizar a adoção da modalidade no setor público federal, a
Secretaria de Gestão e Desempenho de Pessoal da Secretaria Especial de
Desburocratização, Gestão e Governo Digital (SGP/SEDGG) vinculada ao Ministério
da Economia, publicou a Instrução Normativa 65, em 30 de julho de 20204. A
4A Instrução Normativa 65, de 31 de julho de 2020 foi revogada pela Instrução Normativa 89, de
13 de dezembro de 2022 e, sucessivamente, esta foi revogada pela Instrução Normativa 2, de 10
de janeiro de 2023, estipulando prazo para publicação de nova instrução normativa e novas
orientações. Destaca-se que, a IN 2, de 2023, indica que os PGDs criados até o momento de sua
publicação permaneceriam vigentes, exatamente como foram instituídos, aplicando-se a eles as
normas do Decreto 11.072, de 17 de maio de 2022, e os que viessem a ser criados estabeleceriam
2
norma buscava orientar a adoção/realização do regime de teletrabalho nos órgãos e
entidades integrantes do Sistema de Pessoal Civil da Administração Federal (Sipec),
propondo foco na entrega de resultados e na redução de despesas
administrativas. O documento trazia, no art. 3º, a definição de teletrabalho:
VII - teletrabalho: modalidade de trabalho em que o cumprimento da
jornada regular pelo participante pode ser realizado fora das
dependências físicas do órgão, em regime de execução parcial ou
integral, de forma remota e com a utilização de recursos
tecnológicos, para a execução de atividades que sejam passíveis de
controle e que possuam metas, prazos e entregas previamente
definidos e, ainda, que não configurem trabalho externo, dispensado
do controle de frequência, nos termos desta Instrução Normativa
(BRASIL, 2020).
Ainda segundo o documento, a implantação do Programa de Gestão era
facultativa aos órgãos e entidades da Administração Pública Federal e deveria levar
em consideração o interesse do serviço. Cada órgão definiria, com base em suas
necessidades, quais atividades poderiam ser desempenhadas à distância, e caberia
ao dirigente máximo/responsável por cada pasta autorizar a implementação do
programa (Brasil, 2020).
A partir dessa normativa, a Universidade Federal de Uberlândia publicou a
Resolução CONDIR 16, de 09 de maio de 2022, regulamentando o Programa de
Gestão–PDG na UFU. A resolução estabeleceu os objetivos, os critérios e as
normativas para a execução do programa nas unidades organizacionais e apontou a
possibilidade de execução do trabalho na modalidade presencial e na modalidade de
teletrabalho de maneira parcial ou integral.
Todo esse cenário incitou o interesse em pesquisar sobre o tema, somado ao
fato de os pesquisadores serem servidores da UFU e terem executado o modelo
durante período de pandemia, vivenciando os impactos dessa prática no cotidiano
profissional. Essa modalidade de trabalho pode provocar alteração na vida do
indivíduo, pois as rotinas de trabalho são transferidas para o espaço privado,
alterando a dinâmica de gestão do tempo e de responsabilidades da vida pessoal e
profissional.
prioridades para pessoas com deficiência ou com problemas graves de saúde, pessoas com
mobilidade reduzida etc.
3
Diante do exposto, este estudo se justifica pela relevância do tema na
atualidade, uma vez que, mesmo diante da crescente discussão sobre o assunto,
ainda são poucos os estudos científicos que analisam sua implantação e
implementação no serviço público federal e os impactos da execução desse modelo
de trabalho para a classe trabalhadora. Assim, este trabalho está estruturado da
seguinte forma: introdução, discussão e análise e considerações finais. Será
apresentado o tema do estudo e sua contextualização, no caso a adoção da
modalidade de teletrabalho na UFU, por meio de legislações que introduzem esse
modelo no serviço público federal. Na etapa de discussão e análise, será
apresentado o assunto abordado, destacando autores que refletem sobre a questão
e suas implicações para a classe trabalhadora, além de apresentar uma análise do
relatório de avaliação da implantação do PDG–UFU, em sua Fase Piloto, ocorrido no
ano de 2022. Nas considerações finais, constam os resultados das discussões e a
análise com base no conteúdo explorado.
O contexto de gestão do teletrabalho na UFU
A pandemia da Covid-19 se estabeleceu no Brasil no início de 2020, e trouxe
consigo grandes mudanças na vida social e profissional dos brasileiros. Diante do
cenário preocupante, foi estabelecido o distanciamento social como medida
preventiva para reduzir o contato físico e a interação entre as pessoas e a
comunidade, evitando que fossem contaminadas. Outra estratégia utilizada foi a
adoção da modalidade de teletrabalho por algumas empresas e órgãos públicos. A
prática se intensificou durante o período pandêmico e tem se consolidado em vários
setores públicos e privados, mesmo após o fim da pandemia. Diante dessa
conjuntura e da alteração das relações de trabalho, faz-se necessário refletir sobre
sua execução e suas implicações para a classe trabalhadora.
Para Nogueira e Patini (2012), o teletrabalho se caracteriza como o trabalho
realizado à distância, por meio do uso das novas tecnologias de comunicação e
advém do fenômeno da globalização e dos processos de reestruturação
organizacional no qual as empresas “modernas” buscam formas flexíveis de
trabalho, gerando novas formas de contratação.
4
A relação que antes envolvia exclusivamente o trabalhador de
período integral com vínculo empregatício em um determinado
espaço físico, hoje, envolve também contratos flexíveis por períodos
determinados, contratos de meio período, contratação
especificamente para determinadas atividades, terceirização de
serviços entre outras formas encontradas para flexibilizar o trabalho
(NOGUEIRA; PATINI, 2012, p. 122).
Segundo Antunes (2018), as mudanças ocorridas no mundo do trabalho,
determinadas pelo modo de produção capitalista pautado no neoliberalismo e no
modo de acumulação flexível, adotam padrões tecnológicos e de organização que
implicam em um processo de desregulamentação, terceirização e flexibilização da
força de trabalho, dentre outros.
Na empresa “moderna”, o trabalho que os capitais exigem é aquele
mais flexível possível: sem jornadas pré-determinadas, sem espaço
laboral definido, sem remuneração fixa, sem direitos, nem mesmo o
de organização sindical. Até o sistema de “metas” é flexível: as do
dia seguinte devem ser sempre maiores do que aquelas obtidas no
dia anterior (ANTUNES, 2018, p. 41- 42).
O autor aponta para o fato de que, no teletrabalho, o trabalhador utiliza outros
espaços fora da empresa para realização das atividades laborais, sendo
majoritariamente o ambiente doméstico, mas destaca que essa execução possui
pontos positivos e negativos, pois:
[...] pode trazer vantagens, como economia de tempo em
deslocamentos, permitindo uma melhor divisão entre trabalho
produtivo e reprodutivo, dentre outros pontos positivos. Mas com
frequência é, também, uma porta de entrada para a eliminação dos
direitos do trabalho e da seguridade social paga pelas empresas,
além de permitir a intensificação da dupla jornada de trabalho, tanto
o produtivo quanto o reprodutivo (sobretudo no caso das mulheres).
Outra consequência negativa é a de incentivar o trabalho isolado,
sem sociabilidade, desprovido do convívio social e coletivo e sem
representação sindical (ANTUNES, p. 42, 2018).
O autor ainda acrescenta que o trabalho online “fez desmoronar a separação
entre o tempo de vida no trabalho e fora dele, faz florescer uma nova modalidade
laborativa que combina mundo digital com sujeição completa ao ideário e à
pragmática das corporações” (Antunes, 2018, p. 43).
Trazendo uma reflexão sobre a dicotomia que se coloca na adoção do
teletrabalho, Huws (2018), em sua obra A formação do Cibertariado, diz que essa
5
modalidade “implicitamente, promete o melhor de ambos os mundos: a participação
total no tráfego de ideias e informações e a reclusão no santuário protetor do lar”
(Huws, 2018, p. 101).
Assim, o discurso que projeta o teletrabalho como vantajoso à classe
trabalhadora, ancorado na ideologia neoliberal aliada aos interesses capitalistas,
transfere ao trabalhador a ideia de que ele pode ser gestor de seu próprio tempo e
empreendedor de si mesmo, enquanto máscara um maior controle do tempo e
produção do trabalho realizado e, consequentemente, maior exploração.
No que diz respeito à realidade do modelo no setor público, o Grupo de
Estudos Trabalho e Sociedade–GETS da Universidade Federal do Paraná–UFPR,
em parceria com a Rede de Monitoramento Interdisciplinar da Reforma Trabalhista
(Remir), produziu um relatório técnico baseado na pesquisa sobre o teletrabalho na
pandemia e aponta que, em uma comparação entre setor público e privado, os
trabalhadores do setor público precisaram cumprir um número maior de metas de
produtividade do que os trabalhadores do setor privado.
O relatório destacou que a maior parte dos profissionais disse ter trabalhado
em um ritmo mais acelerado na pandemia. Segundo os autores, esses são fatores
de riscos invisíveis, chamados de “riscos psicossociais", que podem contribuir para o
aumento do estresse, levar ao esgotamento profissional, à síndrome do pânico, à
ansiedade e a outras doenças psicossomáticas (Bridi et al., 2020).
Todo esse cenário de alteração no mundo do trabalho, que tem afetado
diretamente o serviço público, tem forte influência do gerencialismo estatal nascido a
partir das reformas nas décadas de 1980 e 1990 no Reino Unido. Essas reformas
trouxeram como ideologia o gerencialismo, uma ideia de negócios utilizada no setor
privado que se espalhou pelo mundo e que adentra o Estado e o setor público.
Assim, os serviços públicos passaram a se assemelhar a um negócio, sendo exigido
um desempenho como se estivessem num mercado competitivo. O Estado assume
um papel de gestor com discurso de organizar as contas e diminuir a burocracia,
“Isto introduziu novas lógicas de tomada de decisão que privilegiavam economia e
eficiência acima de outros valores públicos” (Newman, 2012, p. 358).
O gerencialismo, como parte da “nova gestão pública”, representa uma gama
de ferramentas que prioriza o controle e traz consigo uma nova visão de gestão para
6
o Estado, que deve se tornar mais eficiente e eficaz sob os valores do capital. Para
Antunes,
A reestruturação dos meios produtivos com finalidade de menor
gasto com os trabalhadores, potencializa a fragmentação do trabalho
no qual exige-se especificidade de dada produção do trabalhador,
reduzindo sua interação com o produto final de seu trabalho,
parcelando sua função (ANTUNES, 2009, p. 39).
O teletrabalho, visto como alternativa durante período pandêmico no setor
público, começou a ser uma possibilidade de prática permanente com a publicação
da Instrução Normativa 65 de 2020. A norma foi publicada pela Secretaria de
Gestão e Desempenho de Pessoal da Secretaria Especial de Desburocratização,
Gestão e Governo Digital (SGP/SEDGG), vinculada ao Ministério da Economia “para
ampliar e normatizar a adoção do teletrabalho e estabelecia orientações para o
regime de teletrabalho nos órgãos e entidades integrantes do Sistema de Pessoal
Civil da Administração Federal (Sipec), focando na entrega de resultados e
reduzindo despesas administrativas” (Brasil, 2020, p. 1).
Segundo a normativa, a implantação do Programa de Gestão-PDG seria
facultativa aos órgãos e entidades da Administração Pública Federal e poderiam
participar, além de servidores efetivos, ocupantes de cargos em comissão,
empregados públicos e contratados temporários. Cada órgão definiria, de acordo
com suas necessidades, quais atividades poderiam ser executadas à distância.
Caberia ao responsável de cada pasta autorizar a implementação do programa
(Brasil, 2020).
A UFU, após publicação da Instrução Normativa 65 de 2020, constituiu, em
fevereiro de 2021, a Comissão de Estudos do Teletrabalho, com o objetivo de
elaborar uma proposta de normativa para a implantação do teletrabalho na
universidade. Após fim dos trabalhos da comissão, o Conselho Diretor da UFU
publicou a Resolução CONDIR 16, de 09 de maio de 2022, que regulamenta o
PDG-UFU. Segundo a resolução, o PDG-UFU “consiste em ferramenta de gestão
para disciplinar o exercício de atividades no qual os resultados possam ser
efetivamente mensurados” (UFU, 2022, p. 1). Caracteriza também “a possibilidade
de dispensa de controle de assiduidade dos servidores envolvidos,” seja na
modalidade de trabalho presencial ou na modalidade de teletrabalho, e “devem
permitir a mensuração da produtividade e dos resultados das unidades
7
organizacionais e do desempenho do(a) participante em suas entregas” (UFU, 2022,
p. 1). De acordo com a resolução, são objetivos, resultados e benefícios esperados
do PDG-UFU:
I instituir e aprimorar ações voltadas à melhoria da prestação dos
serviços oferecidos pela UFU;
II promover a gestão da produtividade e da qualidade das entregas
dos(as) participantes;
III contribuir para a motivação e o comprometimento dos (as)
participantes com os objetivos da Instituição;
IV estabelecer procedimentos que visem à desburocratização da
gestão administrativa e à redução de custos na UFU;
V promover a utilização de ferramentas tecnológicas para propiciar
ganho de eficiência e qualidade por meio do teletrabalho;
VI estimular o desenvolvimento do trabalho criativo, da inovação e
da cultura de governo digital;
VII melhorar a qualidade de vida dos(as) participantes;
VIII atrair e manter novos talentos;
IX promover a cultura orientada a resultados, com foco no
incremento da eficiência e da efetividade dos serviços prestados à
sociedade;
X reconhecer as vantagens e benefícios diretos e indiretos
advindos do teletrabalho para a administração, para o (a) participante
e para a sociedade; e
XI estimular a sustentabilidade ambiental (UFU, 2022, p. 1-2).
A proposta do PDG-UFU ainda estabelece que as atividades na modalidade
de teletrabalho podem ser executadas de maneira integral ou parcial. Para isso,
devem ser usados recursos tecnológicos e as atividades devem ser passivas de
mensuração com prazos de entrega estabelecidos previamente. Chama-se atenção
ao fato de que o servidor(a) participante é responsável por manter toda a
infraestrutura para o exercício de suas atividades, com atenção à questão da
segurança da informação, quando executar o PDG (UFU, 2022).
As unidades organizacionais que tenham interesse em fazer adesão ao
PDG-UFU devem elaborar um plano de trabalho relacionando as atividades a serem
desempenhadas e os resultados pretendidos, para posteriormente solicitar a
participação no programa. É importante destacar que não poderão participar do
PDG-UFU os agentes públicos do Hospital de Clínicas da UFU que estão sob a
gestão da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares EBSERH e os servidores
do cargo de Professor da Carreira de Magistério Superior. (UFU, 2022).
No dia 1/6/22, por meio da Portaria de Pessoal UFU 2.546, foi instituída a
Comissão Permanente de Acompanhamento do Programa de Gestão-CPAPDG,
8
com o objetivo de acompanhar a implantação do PDG-UFU, avaliar as propostas de
adesão apresentadas pelos dirigentes das unidades organizacionais e acompanhar
os resultados do programa.
A comissão permanente conduziu o período de implantação da fase, intitulada
Fase Piloto do Programa de Gestão da Universidade Federal de Uberlândia, no
período de 3/10/22 a 2/12/22, com a finalidade de “testar o fluxo do processo de
adesão, formulários, modelo de tabela de atividades e, principalmente, o sistema
informatizado, para dar sequência ao cronograma de implantação do PDG-UFU”
(UFU, 2022, p. 1). Participaram alguns servidores de unidades organizacionais, de
maneira voluntária, que executaram o trabalho na modalidade presencial e na
modalidade de teletrabalho de maneira integral ou parcial. Com o fim dos trabalhos,
a comissão fez uma avaliação da fase piloto, apresentando o Relatório
6/2022/CPAPDG/REITOR e seus anexos encaminhados à gestão superior da UFU.
Análise da fase piloto da implantação do Programa de Gestão na Universidade
Federal De Uberlândia
Como parte do processo de implantação do PDG na UFU, foi realizada uma
fase de teste, chamada Fase Piloto, em que alguns setores participaram de maneira
voluntária, com a finalidade de avaliar a execução e ajustar proposta de implantação
do programa na universidade.
Os setores escolhidos para participarem da fase piloto foram: Centro de
Tecnologia da Informação e Comunicação–CTIC, Diretoria de Administração de
Pessoal–Dirap, Diretoria do Sistema de Bibliotecas–Dirbi e Faculdade de Gestão e
Negócios–Fagen. A Fase Piloto ocorreu no período de outubro a dezembro de 2022
e contou com a participação de 66 servidores que executaram o trabalho nas
modalidades totalmente presencial (12), teletrabalho integral (13) ou parcial (41).
Como produto, a CPAPDG apresentou um relatório de avaliação dos setores
envolvidos na Fase Piloto, incluindo a percepção dos servidores e das chefias sobre
a experiência vivenciada. O relatório, objeto de análise deste trabalho, expressa a
percepção de 655servidores que não ocupavam cargo de chefia, sendo a maioria
deles, executores da modalidade de teletrabalho (54). O relatório foi gerado com
5Do total de participantes da Fase Piloto do PDG-UFU, 65 servidores que não ocupavam cargos de
chefia responderam ao formulário organizado para esse público.
9
base nas respostas assinaladas no formulário de avaliação desenvolvido pela
comissão ao final da Fase Piloto.
Não foram apresentadas, nos relatórios, as informações de como se deu o
processo de “escolha” dos setores que participaram da Fase Piloto de implantação
do PDG-UFU. Ademais, destaca-se o fato de que a maioria dos servidores lotados
nos setores indicados realizam tarefas essencialmente administrativas, portanto, a
Fase Piloto não contou com a participação de servidores que trabalham com a
dimensão subjetiva em seus atendimentos.
A seguir, serão apresentadas as considerações aos gráficos extraídos do
relatório de execução da Fase Piloto de implantação do PGD-UFU.
GRÁFICO 1 Dificuldade em operar o Sistema PDG-UFU
Fonte: Relatório de Avaliação da Fase Piloto Participante sem função de chefia
As atividades desempenhadas durante a execução da Fase Piloto estavam
relacionadas num sistema eletrônico desenvolvido pela Superintendência de
Seguros Privados–SUSEP, utilizado pela maioria dos órgãos e entidades do Poder
Executivo Federal que implantaram o PDG. A finalidade do uso desse sistema era
registrar, aprovar, acompanhar e monitorar os planos de trabalho e as atividades
executadas, bem como aprovar as entregas dos participantes.
Sobre o uso da ferramenta, a maioria dos servidores, 52%, apontaram
dificuldade na operacionalização apenas na primeira semana, enquanto 8%
apontaram dificuldade em todo período devido às falhas no sistema, o que
dificultava sua plena execução. Apesar disso, 40% dos servidores assinalaram não
ter dificuldade com o sistema em questão. Segundo a CPAPDG:
10
O sistema não gera relatórios gerenciais que permitam o controle dos
programas e planos de trabalho executados na instituição, mas a
ausência da funcionalidade foi solucionada pelo CTIC após a fase
piloto, permitindo tanto aos gestores das unidades quanto à CPAPDG
acesso facilitado aos dados constantes no sistema por meio de
planilhas extraídas a qualquer tempo (UFU, 2022, p. 3).
Porém, acrescentam:
Todavia, com a publicação da IN 89/2022 serão necessários
ajustes no sistema informatizado utilizado pelos órgãos e entidades
que implementaram o programa de gestão. Assim, a CPAPDG
pretende, com o apoio do CTIC, acompanhar as mudanças
propostas pelos desenvolvedores dos sistemas existentes, para
avaliar a viabilidade de sua utilização na UFU (UFU, 2022, p. 3).
GRÁFICO 2 O uso de aplicativos durante a Fase Piloto
Fonte: Relatório de Avaliação da Fase Piloto Participante sem função de chefia
Durante a execução da Fase Piloto, os servidores utilizavam de aplicativos de
mensagem para atendimento de demandas do público usuário e para se
comunicarem com a equipe. Foram utilizados os aplicativos Kaizala, Chat Teams,
WhatsApp Business e WhatsApp pessoal. Segundo aponta o gráfico acima, 62%
dos servidores usaram o WhatsApp como aplicativo de mensagens, sendo 14% na
modalidade business (vinculado ao ramal institucional) e 48% utilizaram o aplicativo
pessoal. Isso demonstra que o WhatsApp foi o aplicativo de maior uso, em relação
aos demais e o uso do aplicativo pessoal se destaca.
Chama-se a atenção para o fato de que, mesmo tendo outras opções,
inclusive institucionais, o WhatsApp pessoal foi o de maior uso. Esse uso para o
trabalho pode dificultar a desconexão e o equilíbrio entre a vida pessoal e
profissional, pois as mensagens podem chegar a qualquer hora. Também pode
11
ocorrer a perda de informações importantes e a dificuldade de acompanhamento de
tarefas e projetos, além de possíveis sobrecargas de notificações, tornando mais
difícil priorizar certas tarefas, tanto pessoais quanto profissionais. Essa situação, em
longo prazo, pode se tornar prejudicial. Quanto a isso, a CPADG não se manifestou
no relatório.
GRÁFICO 3 Gestão do tempo na Fase Piloto
Fonte: Relatório de Avaliação da Fase Piloto Participante sem função de chefia
Sobre a gestão do tempo durante a Fase Piloto, 44% dos servidores
responderam que conseguiram executar os planos de trabalho com pouca ou
nenhuma necessidade de ajuste, enquanto 43% apontaram que tiveram que ajustar
os planos algumas vezes, pelo surgimento de novas demandas durante a execução.
O relatório não apresenta informações sobre a natureza das novas demandas ou o
porquê de elas surgirem durante a Fase Piloto.
No que diz respeito aos planos de trabalho, deveriam conter as atividades a
ser realizadas, o tempo gasto para cada uma delas e a produtividade a ser entregue,
seja semanal, quinzenal ou mensal. Alguns servidores, 5% do total, assinalaram que
tiveram que ajustar os planos de trabalho porque não tinham o hábito de fazer esse
tipo de planejamento, talvez porque na modalidade de trabalho a que estavam
acostumados, e sob o registro de frequência (ponto eletrônico), não havia a
exigência de registrar as atividades de maneira tão específica e o tempo gasto para
cada uma delas. Fato é que essa prática, a depender das atividades desenvolvidas,
ao mesmo tempo em que organiza e possibilita quantificação, pode incorrer na
12
expectativa de um processo de padronização e mecanização das atividades, o que
nem sempre é possível, dada à dinâmica da universidade e o público-alvo atendido.
GRÁFICO 4 Jornada de trabalho na Fase Piloto
Fonte: Relatório de Avaliação da Fase Piloto Participante sem função de chefia
Sobre a jornada de trabalho, 78% dos servidores assinalaram que
conseguiram executar suas atividades dentro do período semanal e do horário
estabelecido no plano, porém 18% apontaram para o fato de que, algumas vezes,
tiveram que trabalhar fora do horário acordado, ultrapassando a jornada semanal.
Sobre essa última questão, ainda que em menor proporção, chama-se a atenção
para o fato de que ao ultrapassar a jornada diária de trabalho, o(a) servidor(a) pode
ser levado ao desgaste profissional e pessoal ao tentar equilibrar as tarefas, que
os limites se tornam menos delimitados.
GRÁFICO 5 Adesão ao PDG-UFU
Fonte: Relatório de Avaliação da Fase Piloto Participante sem função de chefia
13
Por fim, o levantamento feito mostrou que 83% dos servidores demonstraram
interesse em aderir ao PDG-UFU após a Fase Piloto, 15% assinalaram a opção de
“talvez no futuro”, enquanto 2% assinalaram que não fariam a adesão. Quanto à
última situação, não foi apresentada no relatório a motivação para tal, mas
acredita-se que as dificuldades apontadas pelos servidores e demonstradas nos
gráficos anteriores apontam possíveis razões.
Segundo dados do relatório, a Fase Piloto ocorreu de maneira exitosa,
porém, com algumas questões a serem observadas, avaliadas e aperfeiçoadas,
questões essas que provavelmente serão objeto de revisão pela universidade. De
maneira geral, os dados apresentados são genéricos e lacunares o que levou a
problematizar a implantação do PDG no modo como foi organizado em sua Fase
Piloto.
No início do ano de 2023, foi publicada a Instrução Normativa
SGP-SEGES/SEDGG/ME 2, de 10 de janeiro de 2023 que revogou a IN 89, e
orientava sobre implementação do Programa de Gestão e Desempenho-PGD6. A
nova instrução normativa orientava sobre futura publicação de nova regulamentação
em até 90 dias7, e salientava que os PGDs criados até a data de sua publicação
permaneceriam vigentes, na forma que foram instituídos.
A nova instrução normativa acrescentava que novos PGDs poderiam ser
implementados nos termos do Decreto 11.072, de 2022 e também estabelecia
prioridades para participação no programa, na modalidade de teletrabalho em
regime de execução integral, em destaque para as seguintes situações:
a) pessoas com deficiência ou com problemas graves de saúde, ou
que sejam pais ou responsáveis por dependentes na mesma
condição;
b) pessoas com mobilidade reduzida, nos termos da Lei 10.098,
de 19 de dezembro de 2000;
c) gestantes e lactantes, durante o período de gestação e
amamentação; e
d) servidores com horário especial, nos termos dos §§ e do art.
98 da Lei 8.112, de 11 de dezembro de 1990 (Brasil, 2023, p. 1).
7Instrução Normativa SGPRT/SEGES/ME 2, de 10 de janeiro de 2023 foi alterada pela Instrução
Normativa SEGES/SGPRT-MGI 16, de 12 de maio 2023 prorrogando o prazo para expedição de
nova regulamentação, nos termos do art. 16, do Decreto 11.072, de 17 de maio de 2022, no prazo
de 150 dias a partir da publicação.
6A partir da Instrução Normativa SGP-SEGES/SEDGG/ME 2, de 10 de janeiro de 2023, o PDG
passa a ser chamado de Programa de Gestão e Desempenho PGD. Diante disso, no transcorrer do
texto, será utilizado o nome atual do programa bem como a sigla correspondente.
14
Diante das orientações da nova instrução normativa e de um movimento de
reivindicação por parte de alguns servidores, a UFU publicou a Portaria REITO
389, de 02 de junho de 2023, estabelecendo os procedimentos para a
implementação do Programa de Gestão e Desempenho na universidade, seus fluxos
e formulários de solicitação.
No entanto, em 28 de julho de 2023, o Ministério da Gestão e da Inovação em
Serviços Públicos, por meio da Secretaria de Gestão e Inovação, publicou a
Instrução Normativa Conjunta SEGES-SGPRT/MGI 24, que estabelecia
orientações a serem observadas pelos órgãos e entidades integrantes do Sistema
de Pessoal Civil da Administração Federal Sipec e do Sistema de Organização e
Inovação Institucional do Governo Federal Siorg, relativas à implementação e à
execução do PGD. O Programa tem o objetivo de “promover a gestão orientada a
resultados, estimulando a cultura de planejamento institucional e otimizando a
gestão de recursos públicos” e a seleção dos participantes deverá considerar a
natureza do trabalho e as competências dos interessados (Brasil, 2023, p. 1).
A publicação de nova normativa não impediu a continuidade da implantação
do PGD na universidade, uma vez que a Portaria UFU atendia as normativas
anteriores, vigente na época de sua publicação, porém, a partir da publicação
da Instrução Normativa Conjunta SEGES-SGPRT/MGI 24, de 28 de julho de
2023, a CPAPDG/UFU iniciou os estudos para apresentar revisão da minuta de
resolução, propondo adequações do programa na UFU em até 12 meses, contando
da data de publicação da Instrução Normativa 24, de 2023 (UFU, 2023).
Atualmente, a implantação da modalidade de teletrabalho, vinculada ao
PGD-UFU, encontra-se na fase de avaliação das propostas de adesão das
unidades. Ademais, foi organizada capacitação para os participantes para utilização
do sistema informatizado, ainda em fase de ajustes pelo CTIC. O sistema será
responsável por fazer o registro, avaliação e controle dos planos de trabalho dos
servidores. Há, ainda, a previsão para capacitar os participantes em relação à Lei
Geral de Proteção de Dados e Segurança da Informação para a modalidade
teletrabalho.
15
Considerações finais
Diante do conteúdo exposto, fica evidente que uma perspectiva de
alteração na execução do trabalho na UFU, mas também no serviço público de
maneira geral, com isso, prováveis alterações na oferta dos serviços, prática
profissional e cotidiano dos trabalhadores. Esse cenário evidencia um processo de
alteração no mundo do trabalho, que se intensificou em escala global pela pandemia
da Covid-19, como parte do modo de produção capitalista e das flexibilizações do
mundo do trabalho na era neoliberal.
Ao mesmo tempo em que a modalidade de teletrabalho pode ser vista como
“modernidade”, atrativa para alguns, ela traz consigo aspectos problemáticos
quando busca maior produtividade e redução de custos ao serviço público, enquanto
expõe os trabalhadores a uma lógica de maior produtividade e individualidade.
Apesar de serem apontadas vantagens da execução do teletrabalho, é
preciso refletir sobre a aplicabilidade deste, com base no interesse coletivo da classe
trabalhadora e não nos interesses pessoais e individuais. Ademais, a assunção do
teletrabalho na UFU parece mais ser uma questão gerencial em resposta ao déficit
de recurso financeiro e humano, causado pelos diversos cortes no orçamento
universitário nos últimos anos, do que a busca pela eficiência e qualidade do serviço
público prestado.
Chama-se a atenção ao fato de que essa modalidade pode abrir brechas para
maior adoecimento dos servidores, intensificação da precarização do trabalho e, até
mesmo, a terceirização dos serviços. Atualmente, os servidores públicos que
executam a modalidade de teletrabalho continuam assegurados quanto a seus
direitos e sua estabilidade, porém, não se sabe até que ponto, no decorrer das
metamorfoses do mundo do trabalho, isso será garantido.
Nesse aspecto, torna-se imprescindível o papel dos sindicatos na articulação,
para que nenhum direito seja comprometido e para que a categoria não se dissipe
em sua organização, haja vista que com a execução do teletrabalho,
consequentemente, realizado fora das dependências da instituição, pode haver a
perda da capacidade coletiva de articulação entre os trabalhadores, dando lugar ao
trabalho individual e isolado, eliminando-se os espaços de sociabilidade e relações
de solidariedade.
16
Referências
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18
V.22, 48 - 2024 (maio-agosto) ISSN: 1808-799 X
TECNOLOGIA SOCIAL: DESAFIOS ÀS ORGANIZAÇÕES DE CATADORES DE
MATERIAIS RECICLÁVEIS1
Ana Paula Dalmás Rodrigues2
Sandro Benedito Sguarezi3
Douglas Alexandre de Campos Castrillon Junior4
Resumo
O artigo apresenta o aplicativo que está sendo construído junto às Organizações de Catadoras/es de
Materiais Recicláveis (OCMR) do Alto Pantanal Mato-Grossense. O objetivo é analisar dados de
campo, identificando os desafios pelo método da pesquisa-ação suportada pela técnica bibliográfica,
descritiva, diagnóstico socioeconômico e entrevistas junto aos sujeitos da pesquisa. Espera-se que o
aplicativo aprimore processos de comercialização direta entre as OCMR e as indústrias que adquirem
os materiais recicláveis fortalecendo o poder de barganha das OCMR.
Palavras-chave: Aplicativo; Associação; Cooperativa; Resíduos Sólidos.
TECNOLOGÍA SOCIAL: DESAFÍOS PARA LAS ORGANIZACIONES DE RECOLECCIONADORES
DE MATERIALES RECICLABLES
Resumen
El artículo presenta la aplicación que se está construyendo junto con las Organizaciones de
Recolectores de Materiales Reciclables (OCMR) del Alto Pantanal Mato-Grossense. El objetivo es
analizar datos de campo, identificando desafíos a través del método de investigación acción apoyado
en técnicas bibliográficas, descriptivas, diagnóstico socioeconómico y entrevistas a sujetos de
investigación. Se espera que la aplicación mejore los procesos de marketing directo entre la OCMR y
las industrias que compran materiales reciclables, fortaleciendo el poder de negociación de la OCMR.
Palabras clave: Solicitud; Asociación; Cooperativa; Residuos sólidos.
SOCIAL TECHNOLOGY: CHALLENGES FOR RECYCLABLE MATERIAL COLLECTOR
ORGANIZATIONS
Abstract
The article presents the application that is being built together with the Organizations of Collectors of
Recyclable Materials (OCMR) of Alto Pantanal Mato-Grossense. The objective is to analyze field data,
identifying challenges through the action research method supported by bibliographic, descriptive
techniques, socioeconomic diagnosis and interviews with research subjects. The application is
expected to improve direct marketing processes between OCMR and the industries that purchase
recyclable materials, strengthening the OCMR's bargaining power.
Keywords: Application; Association; Cooperative; Solid Waste.
4Doutor em Administração pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul-UFMS(2022), professor da Secretaria
de Estado de Ciência, Tecnologia e Inovação do estado de Mato Grosso (SECITECI), Brasil.
Email: douglasjunior@secitec.mt.gov.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5726-8679.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/8548335564059296.
3Doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo-PUC/SP, Professor do Programa
de Pós-Graduação em Educação e em Ciências Ambientais da Universidade do Estado de Mato Grosso
(UNEMAT), Brasil. E-mail: sandrosguarezi@unemat.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7361-8977.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/6517662915137218.
2Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências Ambientais da Universidade do Estado de Mato Grosso
(UNEMAT), Brasil. Email: ana.rodrigues1@unemat.br.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3547-0614. Lattes: http://lattes.cnpq.br/2049863460867568.
1Artigo recebido em 09/04/2024. Primeira Avaliação em 25/05/2024. Segunda Avaliação em 02/05/2024. Terceira
Avaliação: 04/06/2024. Aprovado em 01/07/2024. Publicado em 07/08/2024. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v22i48
62526
1
Introdução
As reflexões aqui apresentadas em relação à Tecnologia Social que está
sendo desenvolvida junto às Organizações de Catadoras/es de Materiais Recicláveis
(OCMR) estão em consonância com os preceitos do Movimento Nacional dos
Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR). Apoiam-se em um diagnóstico
realizado com as OCMR atendidas, apoiadas e incubadas pela Incubadora de
Organizações Coletivas Autogestionárias Solidárias e Sustentáveis (IOCASS),
pertencente à Universidade do Estado de Mato - Grosso (UNEMAT).
Resgatando memórias institucionais entre os catadores e catadoras de
materiais recicláveis e a UNEMAT, através do Núcleo de Pesquisa, Extensão e
Estudos da Complexidade do Mundo do Trabalho (NECOMT), institucionalizado em
2004, o Núcleo teve e tem como principais ações o processo de incubação de
grupos informais ligados à coleta seletiva de materiais recicláveis e a agricultura
familiar. Um dos principais focos da época foi a organização de trabalhadores e
trabalhadoras que se encontravam em situações precárias no lixão do município de
Tangará da Serra - MT. O NECOMT alinhou-se, em 2005, com a Rede de Estudos e
Pesquisas sobre o Trabalho (UNITRABALHO), com o objetivo de fortalecer das
atividades de extensão pretendidas pelo NECOMT e a criar o setor de pesquisa
sobre o mundo do trabalho.
Em 2006, foi criado o Grupo de Pesquisa Desenvolvimento Regional
Sustentável e as Transformações no Mundo do Trabalho (GDRS), que tratou de
ações de pesquisa com ênfase na coleta seletiva, trabalho associado e economia
solidária. A partir das atividades de ensino, pesquisa e extensão realizadas pelo
NECOMT e dos resultados das primeiras pesquisas do GDRS, surgiu, em 2006, a
aproximação com Catadoras e Catadores do antigo “Lixão” de Tangará da Serra -
MT, e a proposta de pré-incubação com o grupo informal, que resultou, em 2007, na
fundação da Cooperativa de Produção de Material Reciclável de Tangará da Serra
(COOPERTAN), que passou a ser incubada pelo Núcleo. Com o passar dos anos e
o aumento de atividades ligadas à incubação, em 2011, foi formalizada, dentro do
NECOMT, a Incubadora de Organizações Coletivas Autogestionárias Solidárias e
Sustentáveis (IOCASS).
Em 2012, para participar do Programa CATAFORTE II, a
UNEMAT/NECOMT/IOCASS, com apoio do Movimento Nacional dos Catadores de
2
Materiais Recicláveis (MNCR), fundou a Rede Autogestionária de Cooperativas e
Associações de Catadores de Resíduos Sólidos do Estado de Mato Grosso
(CATAMATO), que teve a COOPERTAN como proponente junto a outras duas OCMR
do Mato Grosso.
Em 2017, foi criada a rede de grupos de pesquisa a Rede de Pesquisa,
Inovação e Tecnologia Social em Gestão de Resíduos Sólidos, Sustentabilidade e
Economia Solidária (REPITES), sediada na Universidade Federal do Rio Grande do
Norte (UFRN), em consórcio com Universidade Federal do Pará (UFPA),
Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA), Universidade Federal de
Uberlândia (UFU), Universidade do Estado do Mato Grosso (UNEMAT) e a
Universidade Católica de Pelotas (UCPel). Assim, a relação entre a Universidade e o
MNCR foi se constituindo em uma ação estratégica, sempre vinculada à
pesquisa-ação.
Ao longo do tempo, as pesquisas tomaram a forma de dissertações e teses,
com foco na discussão da formação em espaços formais ou informais de educação e
nas análises ambientais, sociais, culturais e econômicas, por meio da ligação
institucional com o Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGEDU) e no
Programa de Pós Graduação em Ciências Ambientais (PPGCA), ambos vinculados
à Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT). As principais pesquisas
desenvolvidas no âmbitos das OCMR, situadas no Alto Pantanal Mato-Grossense,
incluem as seguintes publicações: Arruda (2019), Carvalho (2020), Correa (2022,
2023, 2024), Martins (2016), Melo (2019, 2021, 2022, 2024), Santos (2021),
Sebalhos (2022), Senger (2022) e Sguarezi (2014, 2016, 2018, 2019, 2020).
Estas instituições facilitam a aproximação dos pesquisadores aos seus
objetos de estudo, permitindo a compreensão das necessidades reais das OCMR.
Por meio de metodologias como pesquisa-ação, entrevistas e questionários
aplicados em diversas cooperativas e associações de Catadoras e Catadores de
materiais recicláveis situadas na região do Alto Pantanal Mato-Grossense,
identificou-se que a comercialização do material reciclável é um fator limitante para o
desenvolvimento dos empreendimentos. Isso ocorre porque, em sua maioria, os
empreendimentos, não produzem material reciclável em quantidade suficiente para
realizar a comercialização direta com os compradores finais. Em geral, os materiais
recicláveis são revendidos a intermediários, que agrupam volumes de vários
empreendimentos para fechar cargas e viabilizar o transporte direto às indústrias
adquirentes.
3
A presença dos intermediadores, combinada com a baixa produção de cada
empreendimento, prejudica a venda da produção. Com base no diálogo com os
catadores sobre essa dinâmica de mercado, a tecnologia social proposta neste
artigo visa não apenas promover a comercialização direta, mas também aumentar a
escala de produção, haja vista que os empreendimentos estarão interligados em
rede54por meio de um aplicativo, o que permitirá valorizar o produto e melhorar a
negociação com as indústrias adquirentes. Atualmente, os pequenos
empreendimentos vendem os materiais pelo preço definido pelos intermediários,
sem qualquer poder de negociação.
O diagnóstico da situação dos empreendimentos, levantado pelos
pesquisadores, foi realizada por meio da pesquisa-ação, entrevistas e questionários
com os catadores de materiais recicláveis pertencentes às cooperativas e
associações de materiais recicláveis do Alto Pantanal Mato-Grossense, envolvendo
dezenove empreendimentos e onze municípios, incluindo a capital do estado de
Mato Grosso, Cuiabá-MT. No presente artigo, através do método da pesquisa-ação,
será apresentado o diagnóstico socioambiental das OCMR, pela técnica descritiva, e
após análise dos dados e revisão bibliográfica acerca do tema, propor a tecnologia
social como um instrumento de mitigação da precarização do trabalho.
Tecnologia Social: dimensões conceituais
O desenvolvimento de uma Tecnologia Social requer uma interlocução
dialógica entre o campo técnico e o político, entre a universidade e os
trabalhadores/as envolvidos enquanto sujeitos de um processo, no caso uma
incubadora e o coletivo de trabalhadores que atua no campo da reciclagem. De
acordo com Furlanetto, Vargas e Lasta (2018, p. 8):
[...] o termo tecnologia social se espalhou pelo mundo na década de
80, inspirada em empreendimentos que se caracterizam de forma
alternativa ao modelo industrial de desenvolvimento, estando em
procura do progresso interno compatível com as necessidades de
cada comunidade.
Trazendo para a realidade brasileira, o termo foi consolidado e expandido em
2001 pela Fundação Banco do Brasil. No ano de 2004, seu conceito foi definido pelo
5Em rede informal, interligada pelo aplicativo, que posteriormente poderá ser formalizada via
cooperativa de segundo grau (Cooperativa Central). Conforme art. 60 da Lei 5764/1971.
4
Instituto de Tecnologia Social Brasil (ITS Brasil) como um “conjunto de técnicas e
metodologias transformadoras, desenvolvidas e/ou aplicadas na interação com a
população e apropriadas por ela, que representam soluções para inclusão social e
melhoria das condições de vida” (Cavalcante, 2022).
As Tecnologias Sociais se apresentam como maneiras apropriadas para
abordar questões e problemas sociais relacionados à exclusão, demandas por
inclusão e outros fatores preponderantes nas sociedades (Dagnino, 2010; Fonseca,
2010). Desta forma, a Tecnologia Social consiste na quebra de um paradigma do
modelo hegemônico, que enfatiza o desenvolvimento científico-tecnológico no
âmbito corporativo, caracterizado pelo individualismo e competitividade. Em
contrapartida, ela propõe discussões e aplicações focadas no contexto social,
inclusivo, coletivo, solidário e sustentável. As Tecnologias Sociais, portanto, são
estratégias que visam identificação e solução de problemas sociais, buscando a
superação de desigualdades por meio de processos organizacionais aplicados à
coletividade, especialmente em associações e cooperativas populares
fundamentadas na autogestão (Bocayuva, 2009).
Novaes (2007) explora a tecnologia com base nas experiências das fábricas
recuperadas na América Latina, trazendo à tona a relação entre ciência, tecnologia e
sociedade. O autor dialoga com outros estudiosos, como Dagnino (2002, 2010), no
que se refere à abordagem da adequação sociotécnica. Novaes (2007) indica a
necessidade de avançar para um novo paradigma cognitivo, que abarca tanto os
aspectos produtivos quanto tecnológicos. Introduz o conceito de Tecnologia Social,
ou Tecnociência Solidária, como vem sendo denominado por Dagnino (2019).6
Duque e Valadão (2017) analisaram a evolução do conceito de Tecnologia
Social por meio da revisão da produção brasileira entre 2002 e 2015 e chegaram a
duas visões principais: a tecnologia como práticas sociais que proporcionam
transformações sociais em uma e por uma comunidade (construção social e
adequação sociotécnica), e a tecnologias como artefatos geradores de mudanças
sociais (tecnologias para o social).
A partir da ilustração do conceito da Tecnologia Social sob a abordagem
latino- americana, tem-se a Figura 1.
6Para Dagnino (2019, p. 18), “Tecnociência Solidária é a decorrência cognitiva da ação de um coletivo
de produtores sobre um processo de trabalho que, em função de um contexto socioeconômico (que
engendra a propriedade coletiva dos meios de produção) e de um acordo social (que legitima o
associativismo), os quais ensejam, no ambiente produtivo, um controle (autogestionário) e uma
cooperação (de tipo voluntário e participativo), provoca uma modificação no produto gerado cujo ganho
material pode ser apropriado segundo a decisão do coletivo (empreendimento solidário).
5
Figura 1: Modelo conceitual práticas e mecanismos-chave de uma tecnologia social
Fonte: (Souza, Pozzebon, 2020).
As setas utilizadas entre os quadros sinalizam a interação entre os elementos
identificados pela análise e buscam transmitir uma noção de movimento na
reconfiguração sociotécnica que se apresenta. O elemento “práticas” tem como
subelementos identificados “ferramentas” e “métodos”. No contexto estudado, essa
composição de elementos configura, de acordo com o modelo apresentado, um
espaço no qual a tecnologia social se manifesta como um processo (Souza,
Pozzebon, 2020).
Neste sentido, o mecanismo chave apresentado no presente artigo é o
aplicativo a ser desenvolvido, que visa promover a reconfiguração sociotécnica das
OCMR. Como o desenvolvimento do aplicativo está se baseando na
comercialização, enquanto prática, dos catadores de materiais recicláveis, enquanto
grupos sociais, resta caracterizar a tecnologia social a ser implementada.
Organizações de Catadores de Materiais Recicláveis (OCMR)
Com base em estudos realizados pelo NECOMT/GDRS-IOCASS, foi possível
identificar que o trabalho desenvolvido pelas Catadoras/es de materiais recicláveis,
está, em sua maioria, organizado por associações ou cooperativas na região do Alto
Pantanal Mato-Grossense. Contudo, ao realizar pesquisas de campo, observa-se
que muitas vezes a organização do trabalho associado por meio de associações,
cooperativas não se traduz em um trabalho emancipatório, nem do ponto de vista da
autogestão, tampouco da emancipação econômica. As OCMR enfrentam limitações
para a consolidação da autogestão do ponto de vista teórico prático. Por exemplo,
em relação aos saberes, a limitação encontrada no campo de estudo se revela no
baixo nível de escolaridade, no contexto histórico de invisibilidade social dos
6
catadores e na falta da cultura do trabalho cooperado (Cavalcanti, 2010).
É importante o papel da Incubadora de Organizações Coletivas Solidárias e
Sustentáveis (IOCASS) em orientar, acompanhar e apoiar as OCMR para que não
se tornem, como o campo revela, mais uma forma de precarização e exploração do
trabalho, quando deveria promover a emancipação. Conforme Antunes (2007),
observa-se a erosão do trabalho contratado e estável, predominante no século XX,
com sua substituição por diversas formas de “empreendedorismo”, “cooperativismo”,
“trabalho voluntário” e “trabalho atípico”. O exemplo das cooperativas, na concepção
do autor, revela-se particularmente eloquente: as cooperativas patronais ou de
fachada contrastam com o projeto original das cooperativas de trabalhadores,
funcionando como empreendimentos que visam destruir direitos e intensificar a
precarização da classe trabalhadora. Por outro lado, o empreendedorismo resolve
problemas individuais, seguindo a lógica do individualismo, enquanto o trabalho
associado busca resolver os problemas do grupo, do coletivo e da comunidade. Daí
a importância de avançar no cooperativismo de autogestão, com base nos princípios
da Economia Popular Solidária.
A primeira cooperativa de consumo chegou ao Brasil em 1889, enquanto as
primeiras cooperativas de trabalho surgiram em 1932 formadas, formadas por mão-
de-obra semiqualificada, trabalhadores braçais, artesãos, pescadores e motoristas
de caminhão, entre outros. A partir de 1965, começam a surgir cooperativas de
trabalho com perfis qualificados, como médicos, dentistas, professores etc.,
buscando solucionar problemas de inserção e exploração intensa no mercado de
trabalho. A partir daí, as cooperativas de trabalho expandiram-se para atender às
necessidades da população urbana brasileira (Culti, 2002).
Atualmente, segundo dados do anuário do cooperativismo brasileiro, as
relacionadas à gestão de resíduos sólidos ocupam o lugar em número no estado
de Mato Grosso, representando 14% das cooperativas existentes no estado. No
âmbito nacional, segundo o Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento
(SNIS), de 2022, com dados de 2021, as cooperativas e associações de
Catadoras/es atuaram em mais de 1.100 municípios, juntas, foram responsáveis por
mais de 35% do volume de resíduos coletados nessas localidades.7
O trabalho associado possui características próprias que diferem da relação
de emprego definida pelo sistema normativo vigente. A relação de emprego exige o
cumprimento dos requisitos estabelecidos no artigo da Consolidação das Leis do
7https://anuario.coop.br/ramos/trabalho-producao-de-bens-e-servicos
7
Trabalho, como subordinação, habitualidade, onerosidade e pessoalidade. A
subordinação é o fator que diferencia a relação de trabalho com vínculo
empregatício da relação de trabalho associado ou cooperado, oferecido pela
cooperativa ou pela associação. Essa subordinação na relação de emprego pode ser
de natureza legal, jurídica ou econômica, refletindo-se na ausência de autonomia do
trabalhador empregado, que possui jornada de trabalho e funções pré-determinadas.
Espera-se que o trabalho associado e cooperado seja autônomo, de livre
adesão, e que o trabalhador sócio ou cooperado entenda os estatutos, participe das
assembleias, exerça o direito ao voto e tenha acesso a prestação de contas,
promovendo transparência, autonomia e responsabilidade pelo sucesso ou
insucesso da organização.
Para Nardi (2007), um número significativo de pessoas que se inserem nas
cooperativas de trabalho esperam garantir os mesmos direitos que teriam caso
estivessem filiados à relação assalariada, ou seja, esperam a reprodução da lógica
empresarial, o que dificulta processos de apropriação da autogestão por parte de
muitos trabalhadores.
O cooperativismo e o associativismo buscam não apenas mitigar a
precarização do trabalho, mas também avançar em processos autogestionários que
fortaleçam o trabalho associado dentro do ambiente das cooperativas e associações
de OCMR no Alto Pantanal Mato-Grossense. As Catadoras/res de materiais
recicláveis são, em geral, pessoas marginalizadas, estigmatizadas, invisibilizadas
pela sociedade. Com frequência, possuem baixa escolaridade e veem na coleta
seletiva uma alternativa de trabalho digno, muitas vezes resultante da
impossibilidade de ingressar no trabalho formal devido a antecedentes de vida ou à
ausência de qualificação.
O diagnóstico obtido pela pesquisa de campo nos empreendimentos
investigados alinha-se com o cenário observado em empreendimentos de outras
regiões do país, especialmente no que tange à escolaridade e à renda dos
trabalhadores. No entanto, a pesquisa revela-se inédita ao avançar para a
proposição conjunta de uma inovação tecnológica que atende aos interesses das
OCMR.
8
O contexto das Cooperativas e Associações do Alto Pantanal Mato-Grossense:
desafios do cotidiano
O NECOMT/GDRS-IOCASS tem se dedicado à construção de conhecimento
e à formação de alianças estratégicas com Catadoras/es para o fortalecimento da
coleta seletiva realizada por esses trabalhadores nos territórios da baixada
Cuiabana, Alto Paraguai e Grande Cáceres, no estado de Mato Grosso, Brasil. A
presente pesquisa foi conduzida em empreendimentos que incluem onze
associações e oito cooperativas, abrangendo uma área de onze municípios. A
pesquisa envolveu 344 Catadoras/es, dos quais 56,10% são homens e 43,9% são
mulheres. O estudo abrange um universo de 205 Catadoras/es sócios de
cooperativas e 139 sócios das associações (Figura 2).
Figura 2: Mapa identificando as OCMR investigadas.
Fonte: Autores, 2024.
A amplitude desse trabalho de incubação e Tecnologia Social das
Organizações de Catadoras/es, pode ser melhor compreendido através da Figura 3.
Esta Figura ilustra os empreendimentos atendidos, apoiados e incubados,
destacando as associações envolvidas e a quantidade atual de associados.
9
Figura 3: Associações Atendidas
Fonte: Autores, 2024.
10
Nota-se que as associações apresentam características distintas no que se
refere ao quadro associativo. A principal legislação que trata do associativismo é o
Código Civil - Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002. No que se refere ao número
de sócios, para fundar uma associação, são necessários, no mínimo, dois sócios, o
que facilita a formalização. No entanto, as associações apresentam baixo número de
associados, e muitas ainda estão iniciando suas atividades sem o apoio de políticas
públicas, especialmente em municípios que não implementaram a coleta seletiva.
Essa situação dificulta a consolidação dos empreendimentos, resultando em alta
rotatividade de trabalhadores, pois não assegura a autonomia econômica, tampouco
a emancipação dos trabalhadores.
Ressalta-se que as associações, como formas jurídicas de representatividade,
por serem menos burocráticas, facilitam a formalização das OCMR. Porém, a
limitação de não poder atuar no campo da comercialização impõe alguns
impedimentos formais para a atuação na cadeia produtiva da coleta seletiva. Uma
associação não possui capital social e não tem fins lucrativos, não permitindo a
distribuição de sobras. Caso ocorram sobras em suas atividades, estas são
reinvestidas em seu patrimônio, sem a distribuição entre os sócios.
Nesse contexto, o NECOMT/GDRS-IOCASS orienta que novas OCMR sejam
formadas na estrutura de cooperativa. A forma jurídica de cooperativa garante a
ação econômica, essencial para a produção e reprodução da vida, além de ser
fundamental para a autonomia política. Não existe autonomia política sem
emancipação econômica.
A Figura 4 ilustra as Cooperativas atendidas, apoiadas e incubadas pela
NECOMT/GDRS-IOCASS.
11
Figura 4: Cooperativas Atendidas
Fonte: Autores, 2024.
As cooperativas, por terem legislação específica como a Lei 5.734/1971 e a
Lei nº12.690/2012, possuem requisitos mais específicos em comparação às
associações, que são regulamentadas de forma geral pelo Código Civil Brasileiro.
Essa especificidade faz com que a constituição e a gestão de uma cooperativa
sejam mais burocrática em relação à associação. No entanto, é justamente essa
estrutura normativa que assegura a transparência e facilita o processo
autogestionário dentro das cooperativas.
Entre os resultados do trabalho de incubação realizado na COOPERTAN,
12
destaca-se a ausência de uma relação hierárquica de patrão e empregado
(Sguarezi, 2019). A cooperativa realiza reuniões periódicas dos setores de produção
para implementar as adequações sociotécnicas, reuniões ampliadas com todo o
coletivo para deliberar sobre a organização do trabalho e, quando necessário,
assembleias gerais extraordinárias. A COOPERTAN se destaca como a organização
de Catadoras/es que, dentro do processo de autogestão, parece promover um
crescimento gradual de seu quadro associativo, assegurar maior transparência e,
embora com limitações, traz consigo a compreensão do mundo do trabalho que
avança em romper o paradigma do individualismo na práxis da autogestão.
De acordo com as pesquisas de campo, a Cooperativa de Produção de
Material Reciclável de Tangará da Serra- COOPERTAN tem uma relativa autonomia
política. . A cooperativa fundou o Fórum Municipal de Economia Solidária (FMES) e
tem assento no Conselho Municipal de Economia Solidária e participa em outros
espaços coletivos deliberativos. Ela também possui representação regional do
MNCR e coopera na formação de Catador para Catador junto à categoria
Catadora/o. No aspecto da emancipação econômica, a COOPERTAN fundou a Rede
Autogestionária de Cooperativas e Associações de Catadores de Resíduos Sólidos
do Estado de Mato Grosso (CATAMATO) em 2012, junto a outras duas OCMR.
Fundou o Fundo Rotativo Solidária Unidos Vivendo em Ação (FRS-UVA) junto com
mais cinco Empreendimentos de Economia Solidária-EES, e internamente, fundou e
mantém o Fundo Rotativo Solidária Catadores Andando Juntos Ambientalmente
(FRS-CAJA), quem em 2023, tinha quase R$ 200.000,00 (duzentos mil reais), dos
quais aproximadamente 75% estavam emprestados aos seus sócios, que
contribuem mensalmente com uma taxa de R$ 10,00, (dez reais) além da parcela de
seus empréstimos, fazendo a rotatividade esperada de um FRS.
Além disso, a COOPERTAN é um centro de produção de conhecimento,
através de estágios, monografias ou trabalhos de conclusão de cursos (TCC),
dissertações de mestrado, teses de doutorado, artigos científicos, livros, capítulos de
livros, visitas técnicas e outros processos de educação ambiental, atendendo às
demandas tanto da universidade quanto dos Catadores/as.
Sguarezi, Sguarezi e Souza (2018), com base na práxis junto às OCMR na
região Centro-Oeste, refletem sobre os diferentes resultados do processo de
incubação, elencando fatores como autonomia, auto estima, compromisso com a
qualidade dos produtos, aprendizado sobre o processo de trabalho e articulação com
os movimentos sociais. Para os autores, o processo de incubação pressupõe a
13
educação unitária, aquela que se constrói no cotidiano diante ao enfrentamento das
contradições entre capital e trabalho. Criar um empreendimento coletivo, uma
associação, uma cooperativa não é o desafio principal; o verdadeiro desafio está em
organizar processos autogestionários que superem relações de produção
hegemônicas, numa perspectiva emancipatória.
Embora as cooperativas não sejam a maioria dos empreendimentos
investigados, oito cooperativas em relação às onze associações, elas possuem mais
integrantes, totalizando 205 sócios (duzentos e cinco), enquanto as associações
somam 139 (cento e trinta e nove associados) associados no total das OCMR
investigadas. Os resultados da pesquisa indicam um menor número de cooperativas,
o que aponta para uma orientação equivocada de alguns gestores públicos, do
MNCR e da própria Defensoria Pública para a formalização de associações. Isso é
preocupante, pois a figura jurídica associação não é a mais adequada para fins
econômicos, pois a associação não tem finalidade econômica, o que pode criar
entraves burocráticos, principalmente na hora da comercialização.
Sendo assim, para encontrar soluções, observa-se que várias OCMR, devido
às orientações inadequadas, recomendam que seus sócios e dirigentes criem uma
personalidade jurídica de Microempreendedor Individual (MEI). Essa operação nem
sempre é revestida de transparência, porque o MEI assume o controle sobre a
comercialização. Isso pode degringolar desvios dos recursos e impedir a
participação das associações em Programas de Logística Reversa (PLR) , devido à
falta de emissão de notas fiscais (registro de comercialização pela associação). Essa
situação impede que as associações recebam créditos da logística reversa, gerando
uma série de problemas e transtornos para os sócios e sócias das OCMR.
Ainda existe uma linha muito tênue entre o embrionário trabalho associado,
vincado à autogestão, e a lógica hegemônica do empreendedorismo individual. A
realidade de campo mostra o que a lógica hegemônica tende a prevalecer. Esses
aspectos são objeto de construção de conhecimento, problematizados pela
Incubadora de Tecnologia Social junto às OCMR, promovendo a consciência e o
exercício da autogestão, uma verdadeira pedagogia autogestionária. A Cooperativa
dos Trabalhadores e Produtores de Materiais Recicláveis do Mato Grosso
(COOPEMAR), fundada em 1994, e a COOPERTAN, fundada em 2007, são as
cooperativas mais antigas, o que contrasta com a realidade da COOPERVIDA, por
exemplo, que ainda está em fase formalização, com aproximadamente 90
Catadoras/es oriundos do antigo “lixão” de Cuiabá-MT.
14
A COOPERTAN, formada por Catadoras/es oriundos do antigo lixão de
Tangará da Serra-MT, contou com o apoio da NECOMT da UNEMAT desde 2005, na
fase de diagnóstico, pré-incubação, formação e educação para o cooperativismo.
Apesar das contradições, a COOPERTAN se mostra mais consolidada em diferentes
aspectos: aumento do número de postos de trabalho gerado de 22 na fundação para
68 em 2023, um crescimento de mais de 300% em 17 anos; a autogestão é utilizada
como processo de aprendizagem, aplica a prática da politecnia8entre cargos de
gestão e operacional na linha de produção. Em termos de estrutura, a cooperativa
possui sede própria; caminhões, máquinas e equipamentos; promove a produção e
socialização de conhecimentos entre catadores utilizando a metodologia “de
Catador para Catador” e a metodologia Cosme & Damião juntos aos técnicos. A
cooperativa também possui autonomia econômica, com um dos melhores contratos
de prestação de serviços ambientais do Brasil, embora ainda se mostra precário, em
vários aspectos, como a dependência de políticas governamentais, em vez de
políticas de Estado.
A COOPERTAN, é considerada uma cooperativa de referência entre os
dezenove empreendimentos que participam da pesquisa, destacando-se nos fatores
de produção, renda e autogestão. Por outro lado, a pesquisa sugere que a
tecnologia social do aplicativo pode ser uma ferramenta importante para melhorar a
comercialização dos materiais recicláveis, sobretudo dos pequenos
empreendimentos. Um exemplo disso é Cáceres-MT, uma cidade com 94.861
habitantes segundo o censo de 2020, que atualmente possui três empreendimentos
que não conseguem comercializar diretamente seus produtos com a indústria, não
possuem equipamentos próprios suficientes para produção, e cujo maior
empreendimento conta com apenas 24 associados. Tais características impactam
diretamente na renda dos catadores, que não conseguem atingir um salário mínimo
mensal, evidenciando a precarização do trabalho.
O Produto Tecnológico
A Tecnologia Social proposta atenderá às necessidades das OCMR e seus
trabalhadores/as, permitindo-lhes melhor apropriação dos processos de
comercialização e garantindo maior valor ao material reciclável a ser comercializado.
8Conceito de politecnia [...] postula que o trabalho desenvolve, numa unidade indissolúvel, os aspectos
manuais e intelectuais. [...] Todo trabalho humano envolve a concomitância do exercício dos membros,
das mãos e do exercício mental, intelectual. Isso está na própria origem do entendimento da realidade
humana, enquanto constituída pelo trabalho (Saviani, 1989, p. 15).
15
Atuando de forma interligada com as demais cooperativas e associações que
atendam o mesmo município ou região, será possível obter uma maior renda na hora
da venda. Neste sentido, um dos projetos em desenvolvimento pelos pesquisadores
é a criação de um produto tecnológico na forma de um aplicativo. Este aplicativo
facilitará a interligação entre as associações e cooperativas de materiais recicláveis
localizadas no Alto Pantanal Mato-Grossense e as indústrias que compram essa
matéria prima, eliminando a necessidade de atravessadores. Com a comercialização
direta e em rede, haverá maior poder de negociação e, sobretudo, valorização do
produto final.
O projeto está sendo desenvolvido com o financiamento da Fundação de
Amparo à Pesquisa de Mato Grosso (FAPEMAT), dentro do Programa de
Pós-Graduação de Ciência Ambientais da Universidade do Estado de Mato Grosso
(UNEMAT), como parte de uma tese de doutorado. Os pesquisadores envolvidos
são integrantes do NECOMT/GDRS-IOCASS.
O potencial impacto do produto tecnológico consiste em um compromisso da
ciência com a possibilidade de transformação da realidade social. O aplicativo,
baseado na Tecnologia Social, terá um efeito emancipatório aos sujeitos da
pesquisa, garantindo mais transparência que levará ao fortalecimento da
autogestão. Também permitirá a ampliação da comercialização dos resíduos sólidos,
aumento da produtividade e da competitividade dessas organizações. O aplicativo
contribuirá aumentando a renda dos catadores de materiais recicláveis, trazendo
mais dignidade e satisfação ao trabalho associado, além de melhorar a qualidade de
vida e garantir a emancipação econômica.
A Tecnologia Social proposta contribuirá para a ampliação da coleta seletiva
de materiais recicláveis, impactando positivamente na preservação ambiental e
aumentando a vida útil dos aterros sanitários. Com o aumento da produtividade e
competitividade das cooperativas e associações, será possível agregar valor aos
produtos comercializados, indicar formas de verticalização, com a industrialização,
gerando aumento da renda das Catadoras/es e valorização do trabalho, o que abre
possibilidade para ampliar o número de postos de trabalho nessas organizações,
fortalecendo essa categoria.
O aplicativo permitirá melhor governança da cadeia produtiva da reciclagem e
da autogestão interna das organizações de Catadoras/es de materiais recicláveis.
Essas organizações poderão ampliar ações de educação ambiental e desenvolver
projetos institucionais que visem a captação de recursos para melhoria da coleta
16
seletiva de resíduos sólidos. Pela lógica da economia circular,9esses produtos
serão reinseridos na cadeia produtiva da reciclagem, diminuindo a demanda por
matéria prima virgem extraída da natureza. Logo, o projeto está comprometido com
a conservação ambiental, a inclusão socioeconômica produtiva, trabalho decente e
digno, pelo reflexo imediato do trabalho que vem sendo desenvolvido, mas também
apresenta seu compromisso com a sustentabilidade e a agenda 2030/ODS.
Desta forma, o aplicativo visa impactar pequenos empreendimentos, uma vez
que permitirá a comercialização direta com a indústria e uma interligação entre os
empreendimentos que possibilita a venda em maior escala, a negociação do preço e
a valorização do produto. Como os empreendimentos se situam em locais próximos,
na região do Alto Pantanal Mato-Grossense, como demonstrado no mapa
apresentado, o aplicativo também se encarregará de elaborar a logística da rota de
transporte do material reciclável que sai dos barracões dos empreendimentos de
forma direta até as indústrias que adquirem, conforme Figura 4.
Figura 4: telas do App
Fonte: Autores, 2024.
Pelo aplicativo, a indústria adquirente terá acesso à informação sobre o
material produzido por cada empreendimento, permitindo a aquisição de produtos
em diversas cooperativas. Com esses dados, será possível organizar o frete para
retirada do material, incentivando a indústria a adquirir produtos com maior
frequência e em maior quantidade. Isso não apenas evita que os empreendimentos
incorram em gastos desnecessários com armazenamento , mas também minimiza o
risco de incêndio, uma vez que o material é comercializado com mais regularidade.
Além dos benefícios sociais, como a melhoria da qualidade de vida dos
catadores, tem-se ainda o impacto ambiental. A partir do momento que a profissão
9Economia circular é o conceito de uma economia sustentável, que funciona sem resíduos, poupa
recursos e atua em sinergia com a biosfera. Em vez de encarar as emissões, os subprodutos e os bens
danificados ou indesejados como “resíduos” ou “lixo”, esses itens, na economia circular, tornam-se
matéria-prima e insumos para um novo ciclo de produção” (Weetman, 2019).
17
de catador proporciona uma renda considerável e é desenvolvida em um ambiente
autogestionário, ela passa a ser vista como uma verdadeira opção de trabalho digno,
atraindo mais pessoas para o setor. A pesquisa de campo também aponta que um
maior número de catadores trabalhando nos empreendimentos resulta em maior
produção e, consequentemente, em uma redução do volume dos rejeitos destinados
aos aterros sanitários. Isso contribui para aumentar a vida útil dos aterros e elevar a
quantidade de materiais recicláveis, resultados que trarão um impacto ambiental
positivo.
Outro resultado apontado pela pesquisa de campo é a confiança das
Catadoras/es pelo trabalho desenvolvido pela Incubadora. Apenas desenvolver o
aplicativo e disponibilizar para os empreendimentos não se mostra suficiente, dado
que os catadores possuem resistências a novas tecnologias e mudanças, até que se
produza um resultado efetivo, novas idéias são rejeitadas. É por essa razão que o
projeto se destaca dos demais projetos e aplicativos até então existentes. A trajetória
dos pesquisadores, através dos grupos de pesquisa em que estão inseridos,
aproxima os sujeitos da Tecnologia Social.
Se faz necessário realizar treinamentos, visitas constantes, e o maior desafio:
conquistar a confiança dos trabalhadores, demonstrando que a Tecnologia Social
tem o objetivo de facilitar a comercialização e trazer melhorias aos processos
internos. É por essa razão que o projeto, desenvolvido pela Incubadora, que atua
desde 2011 junto com esses empreendimentos, é particularmente adequado para
implementar essa Tecnologia Social.
É necessário compreender que o processo de incubação, visto em Eid (2004),
tem como aspecto ser contínuo, longo e complexo. Assim, cada empreendimento
enfrentará o desafio de amadurecer, aprender a implementar e executar a
tecnologia social e, principalmente, promover o trabalho associado. Essa jornada
inclui se apropriar de conhecimentos que favoreçam a emancipação econômica e
política por meio da práxis da autogestão.
Considerações finais
As Organizações de Catadores de Materiais Recicláveis (OCMR) operam por
um novo paradigma de produção e de um novo paradigma científico. Por uma lado a
organização pela autogestão dentro das OCMRS e por outro a interdisciplinaridade
fundamental para problematizar a realidade e junto com esses trabalhadores
construir outras possibilidades. Para Sguarezi (2020), é fundamental superar a
18
cultura do ‘eu’, do individualismo e do MEI. A cultura individualista da lógica
hegemônica depõe contra o processo de consolidação da autogestão. Por outro
lado, a cultura do trabalho livre e associado e a práxis da autogestão se apresenta
como um instrumento de identidade de classe e do real sentido do cooperativismo
autogestionário.
As organizações de Catadores/as ultrapassam as questões de coleta seletiva
e da conservação ambiental, assumindo um papel sócio econômico, político e
ambiental como protagonistas de uma nova realidade. As Catadoras/es,
organizados, produzem uma nova cultura: a cultura do trabalho associado e livre.
Essa categoria, geralmente relegada à invisibilidade, é deixada à margem da
sociedade, excluída do mercado de trabalho formal e vítima do desemprego
estrutural. É composta por pessoas de faixa etária mais avançada, com baixa
escolaridade e limitações para a utilização de novas tecnologias. Mesmo assim, elas
reexistem e demonstram que outro mundo é possível desde o lixo - resíduos sólidos
- que se tornou a principal matéria prima para essas trabalhadoras/es construir
outras possibilidades. Possibilidades emancipatórias.
A maioria dos empreendimentos investigados ainda não passou pelos
processos de pré-incubação, nem de incubação. O atendimento ainda está na fase
de aproximação e diagnóstico. São OCMR que se encontram isoladas pelo poder
público, com renda inferior a um salário mínimo e sem contratos de prestação de
serviços ambientais. É evidente a discrepância entre os empreendimentos
investigados, a diversidade e o interesse pelo apoio da Incubadora IOCASS, e o
desejo de participar da construção de uma Tecnologia Social, sob a forma de um
aplicativo, que pretende organizar a comercialização do material produzido.
Não é um aplicativo com base no interesse do mercado. Ele dialoga com o
mercado, com os compradores e com a cadeia produtiva da reciclagem, mas está a
serviço de uma rede de OCMR. Será construído entre a Incubadora e as
Catadoras/es. O mais importante talvez não seja o aplicativo em si, a ferramenta,
mas o processo de criação coletiva desse aplicativo, o processo de construção, o
processo de aprendizagem, trocas horizontais de saberes, a criação e a apropriação
de conhecimentos que possibilitem uma práxis que leve a uma prática, a um modo
de produção e reprodução da vida mais justo, sustentável, democrático
autogestionário, entendendo a autogestão como forma de radicalizar a democracia
política e econômica.
19
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23
V.22, 48 - 2024 (maio-agosto) ISSN: 1808-799 X
TECNOLOGIA E MOVIMENTOS SOCIAIS: CONSTRUÇÃO DE FERRAMENTAS
DE COMERCIALIZAÇÃO DE PRODUTOS DA REFORMA AGRÁRIA1
Nathalia Ferreira Gonçales2
Celso Alexandre Souza de Alvear3
Resumo
Este artigo sistematiza as ações do projeto "Construção de Ferramentas de Comercialização de
Produtos da Reforma Agrária no Rio de Janeiro", realizado entre agosto de 2021 e dezembro de 2022
no Armazém do Campo do Rio de Janeiro, do MST. O projeto, executado como pesquisa-ação,
desenvolveu um sistema de vendas para atender diferentes regiões e núcleos de comercialização no
estado. A produção de sistemas de código aberto e a elaboração participativa permitiram criar um
ambiente virtual de comunicação entre consumidores e produtores, aproximando cidade e campo.
Palavras-chave: Tecnologia Social, Software Livre, Cestas agroecológicas, Reforma Agrária.
TECNOLOGÍA Y MOVIMIENTOS SOCIALES: CONSTRUCCIÓN DE HERRAMIENTAS PARA LA
COMERCIALIZACIÓN DE PRODUCTOS DE LA REFORMA AGRARIA
Resumen
Este artículo sistematiza las acciones del proyecto "Construcción de Herramientas de
Comercialización de Productos de la Reforma Agraria en Río de Janeiro", realizado entre agosto de
2021 y diciembre de 2022 en el Armazém do Campo de Río de Janeiro, del MST. El proyecto,
ejecutado como investigación-acción, desarrolló un sistema de ventas para atender diferentes
regiones y núcleos de comercialización en el estado. La producción de sistemas de código abierto y la
elaboración participativa permitieron crear un entorno virtual de comunicación entre consumidores y
productores, acercando la ciudad y el campo.
Palabras clave: Tecnología Social, Software Libre, Canastas Agroecológicas, Reforma Agraria.
TECHNOLOGY AND SOCIAL MOVEMENTS: CONSTRUCTION OF TOOLS FOR MARKETING
AGRARIAN REFORM PRODUCTS
Abstract
This article systematizes the actions of the "Construction of Marketing Tools for Agrarian Reform
Products in Rio de Janeiro" project, carried out between August 2021 and December 2022 at the
Armazém do Campo in Rio de Janeiro, by MST. The project, executed as action research, developed
a sales system to serve different regions and marketing centers in the state. The production of
open-source systems and participatory development allowed the creation of a virtual communication
environment between consumers and producers, bringing city and countryside closer together.
Keywords: Social Technology, Free Software, Agroecological Baskets, Agrarian Reform.
3Doutor em Engenharia de Produção pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil. Professor do
Programa de Pós Graduação em Tecnologia para o Desenvolvimento Social (PPGTDS/NIDES/UFRJ).
E-mail: celsoale@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/9785186855702461.
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7979-1543.
2Doutora em Antropologia Social pelo Programa de Pós-graduação em Antropologia Social do Museu Nacional
da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil. Professora substituta do Departamento de Ciências
Sociais de Campos da Universidade Federal Fluminense (UFF).
E-mail: goncales.nat@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/0041118372325700.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6934-849X
1Artigo recebido em 25/03/2024. Primeira Avaliação em 13/07/2024. Segunda Avaliação em 11/07/2024.
Aprovado em 18/07/2024. Publicado em 07/08/2024. DOI:https://doi.org/10.22409/tn.v22i48 62413
1
Introdução
Este artigo sistematiza as ações realizadas no projeto de Emenda
Parlamentar4"Construção de Ferramentas de Comercialização de Produtos da
Reforma Agrária no estado do Rio de Janeiro", executado no formato de uma
pesquisa-ação, entre agosto de 2021 e dezembro de 2022, no Armazém do Campo
(AdC) do Rio de Janeiro, instrumento do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem
Terra (MST) para comercialização de produtos oriundos de assentamentos e
acampamentos da reforma agrária. O projeto desenvolveu um sistema de vendas
habilitado a atender diferentes regiões e núcleos de comercialização existentes no
estado do Rio de Janeiro. A construção de conhecimentos acadêmicos relacionados
à produção de sistemas de código aberto e elaboração participativa permitiu a
consolidação de um ambiente virtual de comunicação entre consumidores e
produtores, proporcionando uma aproximação da cidade ao campo5.
Trabalhamos inicialmente na formação da equipe, apostando em sua
composição multidisciplinar, através de grupos de estudos e diálogos com os
integrantes do Armazém do Campo. Em paralelo à formação, realizamos reuniões
periódicas com os trabalhadores do Armazém do Campo, além de operar a partir da
observação participante para acompanhamento do processo organizacional das
cestas agroecológicas. Desta forma, levantamos os requisitos para o sistema de
comercialização e, em seguida, lançamos um protótipo do site que ficou em
funcionamento até a implantação da versão definitiva.
A segunda etapa do projeto teve como foco o desenvolvimento e a
implantação de um sistema virtual de comercialização de produtos da reforma
agrária. O desenvolvimento do sistema buscou qualificar a organização do trabalho,
melhorando a experiência entre os espaços de comercialização e os consumidores,
além de aumentar a circulação de produtos agroecológicos no estado do Rio de
Janeiro. Um dos elementos essenciais do sistema foi a premissa do Software Livre,
5O sistema desenvolvido abrange duas frentes de trabalho: o plugin de comercialização, intitulado
"Sementes Sistema de Cestas Agroecológicas e de Grupos de Consumo Responsável", que será
apresentado ao longo do artigo, e o site do Armazém do Campo do Rio de Janeiro, disponível em:
https://rio.armazemdocampo.com.br/. Acesso em: 21 de março de 2024.
4Emenda Parlamentar 41600012/2019. Este projeto é uma parceria entre três grupos universitários
Núcleo de Solidariedade Técnica da UFRJ (Soltec), Laboratório Interdisciplinar de Tecnologias
Sociais da UFRJ/Macaé (LITS) e um grupo de professores e alunos da Escola de Engenharia de
Produção da UNIRIO e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).
2
ou seja, seu código deveria ser aberto para todos, permitindo o uso, a distribuição e
a alteração de forma gratuita, sem a necessidade de permissão do desenvolvedor.
O sistema também visou a formação do consumidor, apresentando as etapas
que compõem o processo produtivo por detrás da mercadoria adquirida. Deste
modo, o campo e os/as agricultores/as são protagonistas do conteúdo que compõe o
site, ganhando um espaço de destaque para apresentação da trajetória de
cooperativas, coletivos e famílias assentadas e acampadas da Reforma Agrária
Popular. Esse conteúdo busca contribuir com a promoção da agroecologia, do
cooperativismo, do desenvolvimento sustentável e dos direitos humanos,
econômicos, sociais, culturais e ambientais das diversas comunidades do campo e
da cidade.
Com o propósito de estruturar os diferentes momentos que integram o
projeto, cuja duração se estendeu por pouco mais de um ano, dividimos o artigo em
quatro partes, incluindo essa primeira contextualização. A segunda parte está
subdividida em: desenvolvimento, testes, lançamento e monitoramento. A terceira
parte aborda os desdobramentos do projeto, como a realização do grupo de estudos
e, por fim, a quarta seção apresenta os resultados alcançados.
Desenvolvimento e Implantação do Sistema
Antecedentes
O projeto se desenvolveu no âmbito do Núcleo de Solidariedade Técnica
(Soltec), laboratório de extensão, ensino e pesquisa integrante do Núcleo
Interdisciplinar para o Desenvolvimento Social da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ). O laboratório atua no campo da Economia Solidária e Tecnologia
Social desde 2003, realizando diversos projetos de extensão que desenvolvem
tecnologias junto a movimentos sociais. Desde 2014, o Soltec atua em parceria com
o MST na esfera da gestão e da organização do trabalho.
Foi criado em 2008, no Soltec, o projeto Tecnologias da Informação e
Comunicação, Democracia e Movimentos Sociais (TICDEMOS). Esse projeto vem
refletindo e desenvolvendo softwares a partir de demandas específicas dos
movimentos sociais. Em função da parceria Soltec e MST, iniciamos a atuação do
projeto TICDEMOS para assessoria no campo em 2018, desenvolvendo o sistema
de comercialização de cestas agroecológicas para a feira Terra Crioula do MST
3
(Alvear et al., 2020). Tal experiência, ao lado de outras assessorias afins (Furtado et
al., 2023; Miranda, 2023), permitiram construir a Emenda Parlamentar em questão,
amplificando e fortalecendo a perspectiva do trabalho participativo.
Desenvolvimento: planejamento, organização e ferramentas
A partir do recurso disponibilizado pela Emenda Parlamentar para viabilizar as
ações aqui descritas, a equipe do projeto abriu chamada pública para
implementação de otimizações na plataforma de comercialização vigente no
Armazém do Campo. A proposta da prestadora do serviço “EITA Cooperativa de
Trabalho Educação, Informação e Tecnologia para Autogestão” foi selecionada
dentre as nscritas e admitida para desenvolver melhorias indicadas no Termo de
Referência da contratação. Cabe mencionar que EITA é uma cooperativa que possui
enorme experiência de trabalho com Software Livre junto a movimentos sociais.
Software Livre é uma perspectiva de desenvolvimento de software que tem
como princípio o conhecimento aberto e o desinvestimento da sua mercantilização.
Nessa chave, todo software deveria ter seu código-fonte público, permitindo o uso, a
cópia, modificações, e distribuições livres e de forma gratuita, sem necessidade de
solicitar autorização de seus criadores (GNU, 2022). O Software Livre também pode
ser entendido como um movimento social global (Silveira, 2004) que luta contra as
grandes corporações, conhecidas como big techs, para manter a internet aberta e
diversa (Kelty, 2008).
No contexto da chamada pública, priorizamos a contratação de cooperativas
e empreendimentos da Economia Solidária. Dado que o sistema seria voltado para
fortalecer grupos auto-organizados de agricultores familiares, empreendimentos da
Economia Solidária nos quais não patrões e empregados, ou seja, funcionam
na base da autogestão (Singer, 2002) teriam maior inclinação ao desenvolvimento
de sistemas que atendessem a esses princípios. A EITA, como uma cooperativa de
Software Livre, contemplava ambos os critérios.
Após efetivar a contratação, acordou-se a realização de encontros mensais
para acompanhamento do desenvolvimento e priorização das demandas de
4
melhorias. O foco de trabalho foi fixado na criação do plugin6Sementes, uma
ferramenta complementar ao sistema de comercialização que permite a criação dos
ciclos7, a abertura e fechamento da loja, e a geração de relatórios específicos. O
Sementes foi desenvolvido, em todas as suas etapas, com Software Livre8. Essa
escolha estava colocada no termo de referência de contratação, dado que por
nossa experiência prévia de assessoria ao MST, definimos desenvolver o site
usando o Software Livre Wordpress e a ferramenta de comercialização
Woocommerce.
O plano e o cronograma de trabalho foram elaborados em diálogo
permanente entre a cooperativa EITA e a equipe do projeto. Realizamos reuniões
periódicas com Grupos de Consumo Responsável (GCRs)9, usuárias do sistema e
desenvolvedoras/es da EITA e da equipe. A partir dessas interações, foi homologada
a arquitetura do sistema de comercialização, que ficou disponibilizada no GitLab do
projeto10. O GitLab é um gerenciador de repositório de código aberto capaz de
organizar o comando de tarefas, permitindo dar transparência ao processo e
abertura para que outras pessoas possam contribuir no projeto.
O GitLab guarda as notificações de todas as demandas de desenvolvimento e
atualizações de status de cada issue trabalhada. As issues, entendidas como
questões ou problemas ocorridos no desenvolvimento do projeto, são utilizadas no
GitLab para auxiliar a construção do sistema de forma coletiva, permitindo a
possibilidade de comentários dinâmicos. Neste espaço logístico, foi possível
organizar um plano de trabalho no qual cada ação poderia ser desenvolvida de
modo autônomo. diversas tarefas relatadas no GitLab do projeto, como, por
exemplo: desenvolvimento de aplicativo mobile para modificação facilitada dos
parâmetros do site por parte das/os administradoras/es; melhoria no desempenho do
10 Para outras informações, ver: https://gitlab.com/eita/armazem-rio/-/issues. Acesso em: 21 de março
de 2024.
9Grupos de Consumo Responsável são iniciativas de consumidores organizados que viabilizam o
consumo de produtos agroecológicos a preços acessíveis, estabelecendo uma relação de compra e
venda entre agricultores familiares e consumidores que estimule a proximidade entre estes dois
atores ao fortalecer os circuitos curtos de comercialização. Os GCRs são baseados nos princípios da
Economia Solidária e do Comércio Justo e Solidário, como a transparência de preços e a autogestão.
8Disponível em: https://gitlab.com/eita/sementes. Acesso em: 21 de março de 2024.
7Os ciclos marcam as fases da comercialização on-line. Ciclo aberto é o período em que a loja fica
aberta e os itens ficam disponíveis para compra. Ciclo fechado é o período em que a loja fica fechada
e os itens ficam indisponíveis para compra.
6Plugin é uma ferramenta que oferece soluções específicas. No caso do plugin Sementes, permite
fechar a loja quando não Ciclos Abertos, gerar relatórios e outras soluções que importam para
iniciativas de cestas agroecológicas.
5
site; formas diversas de pagamento por cartão de débito e crédito, pix, boletos,
depósito bancário, entre outros; possibilidade de destaque de produtos na página
inicial para permitir a visualização de produtos em promoção, produtos da época,
produtos que possuem grande estoque ou produtos que estão tendo dificuldade de
escoamento; existência de diversos perfis adaptados aos usuários e sua função,
como agricultoras/es, coordenadoras/es de coletivos, administradoras/es da loja.
Figura 1: Painel do GitLab com demandas e atualizações de status de cada issue trabalhado no
desenvolvimento do sistema de comercialização.
No início do desenvolvimento do sistema, identificou-se a necessidade de
encontros síncronos de programação com os estudantes integrantes da equipe, uma
vez que o Soltec aposta nas diretrizes da extensão universitária, tendo a formação
dos discentes como fundamental (Addor, 2020). Assim, incluímos a realização de
nove encontros em formato de oficinas até o final do cronograma do projeto. A
equipe de estudantes estabeleceu uma dinâmica de trabalho colaborativa e
totalmente integrada à equipe da cooperativa EITA, incidindo em sugestões,
complementações e modificações de dados no código-fonte. O desenvolvimento do
sistema nessas oficinas envolveu Wordpress, PHP, CSS e HTML.
O ambiente de realização dessas oficinas foi o Discord, uma plataforma
gratuita de comunicação virtual. Essa ferramenta permitiu, naquele momento, o
encontro dos estudantes da área tecnológica para trabalho conjunto com a equipe
da EITA, além de, futuramente, facilitar a continuidade da contribuição desses
estudantes para melhorias do sistema, mesmo após o encerramento formal do
6
projeto. A partir da reunião que marcou o princípio do trabalho, começou-se a
desenhar o plano para desenvolvimento de um sistema de comercialização de
produtos da reforma agrária. O plano é composto por sete atividades articuladas:
Arquitetura: etapa de definição e organização das funcionalidades, fundamental
para definir a estrutura inicial do software. Neste momento, buscamos resolver se
todas as funcionalidades ficariam em um único plugin ou se seriam distribuídas em
mais de um plugin, e quais funcionalidades ficariam no site específico do Armazém
do Campo e quais ficariam disponíveis de forma ampliada.
Usabilidade: etapa de qualificação dos fluxos de uso público e do painel
administrativo, bem como proposição das melhorias do template (organização visual
do site para os usuários).
Programação: trabalho dedicado ao desenvolvimento das issues, tendo como
orientação a arquitetura e a usabilidade, bem como as prioridades indicadas pela
Comunidade. Um elemento importante do Software Livre é sua Comunidade, ou
seja, todas e todos que usam ou participam do desenvolvimento. Quanto maior for a
Comunidade, maior a chance do software receber melhorias contínuas,
aperfeiçoamentos e correção de problemas. No caso do Sementes,
aproximadamente 10 grupos utilizam o plugin.
Traduções: etapa de revisão de termos que precisam de tradução e adequação
para o português.
Reuniões com a Comunidade: mobilização envolvendo iniciativas usuárias do
plugin, equipe do projeto, desenvolvedoras/es interessadas e a EITA. A partir da
experiência de uso do sistema, a Comunidade buscou indicar as melhorias
substanciais, a priorização das issues e a especificação ou a validação, quando
necessário. Foi criado um canal no Telegram para facilitar a comunicação com a
Comunidade.
Manuais: elaboração de manuais com as orientações para gestão do sistema,
trazendo conteúdos explicativos e diretrizes para a instalação das funcionalidades.
Oficinas de formação: qualificação de usuários/as como forma de ampliar o
conhecimento das funcionalidades do sistema que contribuem para a gestão da
oferta da produção e seu escoamento. A mobilização para estas atividades teve foco
nas iniciativas que usam o sistema, no entanto, as oficinas foram abertas a
pessoas interessadas em conhecer a ferramenta.
7
As sete etapas que compõem o desenvolvimento do sistema foram realizadas
em paralelo a reuniões periódicas entre as equipes de trabalho da EITA e do projeto,
sendo organizadas conforme a demanda das atividades acima apresentadas. Os
encontros serviram como um espaço de trabalho coletivo e validação dos produtos
realizados. Além disso, diversos encontros com a Comunidade do sistema foram
efetuados, no intuito de apresentar a nova versão do plugin com atualizações que
contemplavam solicitações de usuárias/os apresentadas em reuniões anteriores.
Nos encontros com a Comunidade, buscou-se introduzir as usuárias/os ao
"Manual de Uso do Sistema" e também propagar o endereço para acesso e
avaliação, localizado na loja do Wordpress. O objetivo do diálogo com os GCRs se
deu igualmente no sentido de coletar impressões e demandas de melhorias,
apresentar demandas identificadas, além de priorizar issues expostas pelas
iniciativas que utilizam o sistema de comercialização. Esse empreendimento reforça
a importância de desenvolver uma ferramenta de livre acesso e distribuição para ser
utilizada por um número ilimitado de coletivos de comercialização.
Figura 2: Reunião entre a cooperativa EITA, Soltec/UFRJ e representantes de Grupos de Consumo
Responsável que utilizam o sistema de comercialização.
As oficinas on-line de formação de pessoas para uso do sistema trabalharam
a edição e criação de páginas e menus no plugin. Ao longo da construção do
projeto, foram realizados diversos ciclos curtos de especificação, utilizando
metodologias ágeis (Sommerville, 2007) com foco no desenvolvimento e entrega de
um sistema virtual de compra on-line para comercialização de produtos oriundos da
8
reforma agrária. O objetivo desses ciclos curtos é desenvolver de forma rápida as
funcionalidades mais urgentes, testá-las junto aos usuários e verificar quais são as
próximas necessidades de cada ciclo. Diferente dos métodos tradicionais de
Engenharia de Software, que levam um grande tempo especificando todas as
funcionalidades para depois desenvolver o sistema, nas metodologias ágeis
busca-se um desenvolvimento mais interativo (Fowlwe; Highsmith, 2001).
Esse trabalho envolveu visitas e reuniões semanais ao local de
comercialização presencial, a loja do Armazém do Campo do Rio de Janeiro,
oficinas presenciais para formação da equipe, além de visitas aos assentamentos do
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra no estado. Além disso, utilizamos
de metodologias participativas, como o design participativo (Schuler; Namioka,
1993), para incorporar as demandas dos interlocutores no software.
Importante destacar que, mesmo quando se pretende participativo, o
desenvolvimento tradicional de sistemas tende a envolver apenas os gerentes ou os
clientes/consumidores da plataforma (Bria; Morozov, 2020). No nosso caso,
priorizamos dialogar com os trabalhadores do Armazém do Campo, além de projetar
um sistema que valorizasse os agricultores no próprio processo de levantamento de
requisitos, modelagem e desenvolvimento, e nas etapas de pesquisa-ação.
O trabalho dedicado ao desenvolvimento do sistema organizou-se em dois
fluxos progressivos: 1) Reformulação do sistema existente, criando um novo fluxo de
uso e melhorias no acesso e uso da ferramenta; 2) Criação da funcionalidade de
ciclos de pedidos restritos a determinados produtos/produtoras/es. Com a entrega
dessas duas fases, o Wordpress aprovou o sistema como um novo plugin da
plataforma. Esse momento marcou um avanço importante ao trabalho desenvolvido:
a publicação em repositório aberto, como Software Livre, com créditos no
código-fonte com o fim de informar que foram desenvolvidos com recursos da
Emenda Parlamentar que financiou este projeto.
Plugin Sementes
Oplugin “Sementes Sistema de Cestas Agroecológicas e de Grupos de
Consumo Responsável” foi desenvolvido para oferecer diversas melhorias à
plataforma Woocommerce, tornando-a adequada para uso em Grupos de Consumo
Responsável e Cestas Agroecológicas. uma questão importante que precisa ser
9
mencionada quando falamos de ferramentas de comercialização de produtos
agroecológicos, e que foi determinante para o desenvolvimento do plugin: o tempo
de produção no campo. As premissas da agroecologia devem considerar os ciclos
da natureza no que concerne à sazonalidade, aparência e variedade dos alimentos
(Alatier, 2012).
A particularidade do tempo de produção agroecológica, somada à
necessidade de valorização dos trabalhadores rurais e de uma maior conexão entre
produtores e consumidores, incide na necessidade da criação de circuitos curtos no
escoamento desses produtos. Um circuito curto ou regional de comercialização pode
ser caracterizado, entre outras coisas, pelo respeito aos processos de cultivo
camponeses e à biodiversidade, além da aproximação do produtor com o
consumidor através da venda direta de seus produtos, fortalecendo a autonomia do
trabalhador rural (Maluf, 2004.). Segundo Addor e Almeida (p. 117, 2021), “no geral,
quanto maior a cadeia, menor é a atuação dos agricultores na comercialização dos
produtos e mais baixa é a renda destinada para esses trabalhadores”. Nos canais
curtos, a venda direta envolve no máximo um intermediário engajado no processo,
garantindo a relação com o produtor de origem, sua identidade territorial e as
informações que orientam o sistema produtivo (Retiére, 2014).
Esta estratégia de escoamento da produção agroecológica, que busca a
consolidação dos sistemas de produção da agricultura familiar, quando transferida
para ferramentas de comercialização on-line, geralmente, se organiza em ciclos. No
âmbito virtual, o ciclo é o período em que a loja fica aberta e seus itens estão
disponíveis para compra. Um ciclo tem um momento específico de oferta dos
produtos à disposição para compra na loja virtual e outro momento de preparação
para entrega dos pedidos. Nesse segundo momento, a loja virtual segue exibindo os
produtos, mas não é permitido ao cliente fazer compras.
A demanda por uma análise minuciosa dos rendimentos da comercialização
distribuídos por ciclos resultou na criação de relatórios específicos, contendo
informações detalhadas por pedido, fornecedor, local de retirada, etc. Ao extrair
esses relatórios, que podem ser baixados em planilhas no formato PDF ou XLSX, a
intenção é viabilizar uma análise das vendas de forma cruzada e dinâmica,
respeitando os princípios de escalas pequenas presentes nos circuitos curtos de
10
comercialização. Atualmente o plugin encontra-se disponível para download
gratuito11 na loja do WordPress.
Figura 3: Painel de administração do Wordpress com a loja de plugins aberta, indicando o
"Sementes" na ferramenta de busca que antecede sua instalação.
Painel Simplificado
Um dos principais eixos de trabalho que mobilizaram o projeto foi a
simplificação de recursos que, se convertidos em mecanismos fáceis, poderiam
auxiliar nas atividades de comercialização de grupos com pouca ou nenhuma
familiaridade com sistemas tecnológicos. Alvear (2014) aponta que é essencial
facilitar os painéis de administração dos sistemas voltados para movimentos sociais,
de forma a reduzir a necessidade de uma assessoria técnica externa. Para
materializar esse caminho de simplificação, desenhamos um painel de
administração a partir das demandas do Armazém do Campo e de Grupos de
Consumo Responsável, com as funções mais utilizadas por seus usuários, com o
objetivo de eliminar à primeira vista funções dispensáveis ao cotidiano da loja e
descomplexificar o manuseio do sistema elaborado.
Realizamos uma reunião concentrada em discutir e elaborar um novo painel
de administração para o sistema, partindo do entendimento de que o painel vigente
estaria sobrecarregado de informações e recursos que, na prática, seriam pouco
11 Para instalação, basta realizar uma busca pelo termo “Sementes” na loja de plugins do WordPress.
Em seguida, deve-se clicar em “Instalar agora” e “Ativar”
(https://wordpress.org/plugins/sementes-cas-gcrs/).
11
utilizados pelo administrador. O instrumento básico de uma cesta agroecológica é
pensar a dinâmica que envolve os ciclos: atualização de estoque (preço e
quantidade); cadastro de produtos novos; abertura do site; acompanhamento dos
pedidos (pagamento); fechamento de ciclo; download de relatórios; liquidação de
estoques. Deliberou-se o esboço de um painel de administração inteligível, capaz de
descentralizar a função de gerenciamento da loja ao possibilitar uma ampliação do
seu manuseio.
Deste modo, transpomos o desenho elaborado em papel para a tela do
computador, em um diálogo permanente entre a equipe de desenvolvimento do
sistema e seus principais usuários. A implementação de um painel simplificado -
chamado de Painel de Admin Fácil - divide a tela em seis comandos básicos: 1)
atualizar produtos; 2) cadastrar produtos; 3) formas de entrega; 4) gerenciar ciclos;
5) gerenciar pedidos; 6) relatórios. Além disso, o botão “Painel Simplificado” esconde
o menu à esquerda, deixando disponível para o usuário apenas as funções
essenciais para administração da comercialização.
Figura 4: Painel de Admin Fácil do plugin Sementes no modo avançado (com o menu à esquerda
aparecendo para o usuário).
O Painel de Admin Fácil tem como objetivo tornar o gerenciamento do site
amigável para pessoas com pouca ou nenhuma familiaridade com sistemas
tecnológicos, permitindo o gerenciamento das principais funcionalidades do
12
processo de comercialização necessárias para a tarefa de um gerente de loja,
agregando as funções de cadastro de produtos, controle de estoque, abertura e
fechamento da loja, emissão de relatórios, cadastro e gerenciamento de
consumidoras/es, realização de pedidos, controle de pagamento, possibilidade de
entregas, dentre outras.
Testes, implantação e homologação
Ao final do período de desenvolvimento, realizamos uma simulação do
processo de comercialização, para que o sistema pudesse ser testado e
homologado pelo grupo de acompanhamento. Criamos uma série de perfis fictícios
com endereços de usuários diferentes e pedidos variados. A fase de testes
empreendida pela equipe realizou sucessivos pedidos com entrega em bairros
heterogêneos, organizados por zonas da cidade, no intuito de verificar se o
funcionamento da comercialização, tanto para o cliente quanto para o administrador
da loja, estava apresentando alguma debilidade. O grupo buscou efetuar compras,
checar a produção de relatórios e garantir a viabilidade do uso do sistema antes da
inauguração oficial da nova loja on-line do Armazém do Campo.
Tendo sido aprovado, o sistema foi instalado no site do Armazém do Campo,
após um período de migração dos dados de clientes antigos, que constavam no
banco de cadastro. Neste sentido, mesmo com a alteração do sistema de
comercialização, a plataforma preservou as informações de acesso dos clientes que
possuíam um registro prévio.
Lançamento do site
No dia 01 de junho de 2022, lançamos o novo site do Armazém do Campo. O
sistema de comercialização da loja do Rio de Janeiro seguiu funcionando por meio
do mesmo endereço: http://rio.armazemdocampo.com.br. Atualmente, o site está
com tema atualizado e desenvolvido especificamente para a comercialização de
produtos agroecológicos, além de atender a critérios para que seja responsivo e
amigável aos usuários e clientes. As funcionalidades implementadas no sistema
correspondem às demandas do Armazém do Campo, que foram recolhidas por meio
de um diálogo contínuo com a equipe, em incursões semanais ao espaço físico da
13
loja. O sistema busca atender alguns pontos fundamentais para o funcionamento da
loja virtual, a saber: simplificar o painel de administração, facilitando o
gerenciamento total do processo de comercialização, controle de estoque, cadastro
de novos produtos, abertura e fechamento da loja, emissão de relatórios específicos,
controle de pagamento, entre outras funcionalidades.
Figura 5: Site após o lançamento de 01 de julho de 2022.
Destacamos também a presença da seção “Produtoras”12, que contém
informações de diferentes parceiros do Armazém do Campo, e busca fortalecer o
protagonismo camponês no site, visibilizando os/as agricultores/as, coletivos e
demais trabalhadores/as responsáveis pelo fornecimento e transporte dos produtos.
O objetivo dessa parte do site é proporcionar aos consumidores uma aproximação
com os temas da agroecologia, soberania alimentar, consumo consciente e Reforma
Agrária Popular. Para isso, uma bolsista da área de comunicação criou conteúdos
12 Disponível em: https://rio.armazemdocampo.com.br/produtoras/. Acesso em: 21 de março de 2024.
14
informativos, recuperando a trajetória de coletivos e cooperativas parceiros que, em
alguns casos, ainda não possuíam nenhum espaço virtual de visibilidade sobre sua
história e contribuição na luta pela reforma agrária. Uma das questões importantes
na comercialização de produtos agroecológicos é a politização do consumo
(TANAKA; PORTILHO, 2019), capaz de desfetichizar a mercadoria para estabelecer
uma relação de solidariedade entre o consumidor, o produtor e a própria natureza.
Figura 6: Página das produtoras.
No total, reunimos 19 fornecedores e parceiros que contribuem com sua
produção e integram a loja do Armazém do Campo. O processo de entender “quem”
está por trás do produto foi nosso ponto de partida, encurtando pontes entre o
campo e a cidade, criando um rosto e uma história particular para cada mercadoria
comercializada na loja. Além de reunir iniciativas de famílias assentadas e
cooperativas que extraem da agroecologia sua fonte de renda, buscamos indicar
que é possível construir uma economia solidária através de uma perspectiva capaz
de ampliar a percepção do consumidor para um diálogo de proximidade com o
produtor e sua terra. O material que consta no site foi posteriormente impresso e
15
compõe parte das prateleiras da loja do Armazém do Campo, com conteúdo
informativo referente às produtoras.
Uma das atividades realizadas pelo projeto, ainda na fase de diálogo com as
produtoras, foi a visita ao Assentamento Roseli Nunes, localizado em Piraí, região
Sul do Estado do Rio de Janeiro. Realizamos uma roda de conversa com um grupo
de mulheres do território. Fomos apresentados ao Coletivo Alaíde Reis grupo
formado por núcleos de famílias dos assentamentos Roseli Nunes, Terra da Paz e
Irmã Dorothy, localizados no Sul Fluminense –, que coopera na organização da
produção e comercialização de alimentos agroecológicos, avançando no
escoamento da agricultura familiar local. Atualmente, o Coletivo Alaíde Reis se
organiza através da venda de cestas da reforma agrária para o Sindicato dos
Professores da região, para a Rede Ecológica, e da venda de seus produtos para a
loja do Armazém do Campo. A representante do Coletivo enfatizou a importância da
implementação do site desenvolvido pelo projeto para a facilitação do sistema de
comercialização dos produtos do coletivo.
Figura 7: Visita ao Assentamento Roseli Nunes, localizado em Piraí, região Sul do Estado do Rio de
Janeiro.
16
Formação e monitoramento
Após a implantação do sistema, que foi, por fim, colocado em uso com a
supervisão da equipe de Tecnologia da Informação, iniciamos a fase de treinamento
e formação da equipe do Armazém do Campo com o novo plugin. Nessa etapa do
projeto, foi elaborado o Manual de Uso do Sistema13 para auxiliar na utilização do
plugin. Desenvolvemos vídeos em formato de tutorial, com gravação de tela do
painel de administração e narração como forma de conduzir o usuário a
funcionalidades específicas do plugin, tais quais: relatórios, análise de clientes,
dados brutos, produtos, habilitar margem, habilitar local de retirada, entre outros.
Como forma de fortalecer a autonomia do Armazém do Campo sobre o
processo de gestão da cesta e do sistema, realizamos diversas formações para que
a equipe pudesse dominar a extração de relatórios e análise dos dados. Esse foi um
dos elementos apontados como centrais na Tecnologia Social (DAGNINO et al,
2004), que seria não discriminatória entre patrão e empregado (no caso do
Armazém do Campo, no sentido de dar autonomia aos trabalhadores e não
centralizar apenas nos gerentes), adaptada a pequeno tamanho, libertadora do
potencial criativo do produtor direto, etc.
Entre os dados de gestão importantes para se analisar estão os números de
cestas vendidas por mês, de faturamento, de acompanhamento do número de
clientes, do número de fornecedores para diferentes produtos, entre outros. A
possibilidade de gerar relatórios e gráficos sobre todos os indicativos apontados
anteriormente permite aos gerentes e funcionários da loja um manejo específico
sobre a gestão das vendas, possibilitando mapear os pontos altos e baixos da
comercialização, bem como realizar análises cruzadas entre o fornecimento de
produtos e o volume da demanda. Concede também uma análise do desempenho
dos clientes no site em função das métricas, possibilitando o direcionamento do
marketing e das operações da loja em diálogo com a tecnologia desenvolvida pelo
projeto.
13 Manual de Uso, vídeos, relatórios completos da Emenda e outros materiais podem ser encontrados
em:
https://nides.ufrj.br/index.php/projetos-soltec/20-programas/soltec/soltec-projetos/555-construcaofera
mentas. Acesso em: 21 de março de 2024.
17
Pontes entre a teoria e a prática: formação dos integrantes do projeto
Para dar suporte teórico à continuidade do projeto, foi fundamental que a
equipe pudesse debater conceitualmente algumas ideias que estruturaram a
organização do trabalho de desenvolvimento do sistema. Os participantes do projeto
deram sequência ao grupo de estudos, introduzido desde o começo das ações,
enquanto formação essencial à aplicação prática do trabalho, através da leitura de
textos acadêmicos, dossiês e outros materiais informativos, como vídeos e podcasts,
reforçando o caráter da formação dos estudantes envolvidos no projeto,
preocupação central da ação extensionista do Soltec/UFRJ.
Abordamos questões relativas à Economia Solidária e autogestão, pensando
nos termos de um modo de produção alternativo à economia capitalista (Singer,
2002). No âmbito das comunidades de Software Livre, focando principalmente no
Wordpress, sistema de gerenciamento de conteúdo utilizado pelo projeto, buscamos
problematizar o discurso do global presente nessas Comunidades (Primo, 2017),
inspirados pela desconstrução da ideia de uma ciência universal, defendida por
autores dos Estudos CTS (Ciências-Tecnologias-Sociedades). As comunidades de
Software Livre se identificam como globais, sendo compostas por pessoas
distribuídas por todo o mundo. A ideia difundida parte da afirmativa de que a
participação nestes grupos seria aberta a todos, tornando irrelevante o local de
residência dos colaboradores. Tal premissa reforça o mito de uma ciência universal
desvinculada de um território de produção, noção problematizada pela equipe deste
projeto.
Acreditamos que, ao desconstruir a universalidade da ciência, abre-se
caminho para pensar uma ciência latino-americana comprometida com os problemas
locais. Valorizando a importância do local na produção de software, e entendendo
que uma das características dessa indústria é justamente a concentração em
poucas zonas, partimos para leituras sobre o papel fundamental do contexto
particular no qual as várias ciências estão inscritas.
Os territórios que concentram a produção tecnológica e científica estão
situados no que poderíamos chamar de Norte Global. Assim, ao refletir que a
tecnologia não é neutra, pois está atrelada aos interesses daqueles que a controlam,
passamos a nos fazer as seguintes perguntas: Como a tecnologia é parte da luta de
classes e da dinâmica de acumulação do capital? Quem investe em tecnologia para
18
o pequeno agricultor? As big techs, grandes empresas de tecnologia que dominaram
o mercado nos últimos anos, reorganizaram as dinâmicas de trabalho? Como a
tecnologia digital está afetando o mundo do trabalho? E como ela está chegando no
campo? (Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, 2021).
Tais reflexões, elaboradas de forma coletiva por intermédio da leitura de
textos e demais materiais, contribuíram para a solidificação de uma postura crítica
em relação ao trabalho que estava sendo executado. Ao partir do princípio
metodológico da Tecnologia Social (Dagnino et al, 2004; Dagnino, 2014), que
orientou a realização deste trabalho, temos a busca pela interação do conhecimento
acadêmico com o conhecimento popular como uma das múltiplas dimensões do seu
processo, a fim de fortalecer sistemas tecnológicos alternativos e dar visibilidade aos
atores sociais a partir de um trabalho associativo e dialógico. Nesse sentido, o
desafio de desenvolver um sistema de comercialização alinhado a esses preceitos
seria incorporar o protagonismo do agricultor e seu território ao plano de trabalho.
Nos encontros do grupo de estudos, buscamos aprofundar o debate dessas
questões, tendo como base a indagação central do papel do/a engenheiro/a na
democratização do desenvolvimento tecnológico, entendendo os projetos de
extensão universitária como instrumentos fundamentais no engajamento entre
saberes acadêmicos e populares e como ferramenta de luta pela reforma agrária.
Resultados alcançados
O projeto se concentrou no desenvolvimento de um sistema de
comercialização de produtos para o Armazém do Campo, espaço de
comercialização organizado pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
(MST) no Rio de Janeiro. A premissa principal desse processo foi o desenvolvimento
participativo entre pesquisadores da UFRJ, coletivos e cooperativas que
comercializam produtos da reforma agrária e equipes de desenvolvedores, de modo
a atender as demandas de trabalho dos grupos apoiados, facilitando seu cotidiano.
O processo de desenvolvimento desse sistema, capaz de ser seguro para
comercialização e apto para atender diferentes regiões e núcleos existentes no
estado do Rio de Janeiro, procurou fortalecer o uso de tecnologias por
assentados/as e acampados/as.
19
O resultado da entrega do plugin e do desenvolvimento do site trouxe
resultados visíveis no faturamento da loja do Armazém do Campo, principal
instrumento de comercialização dos assentamentos do Rio de Janeiro, ainda no seu
primeiro ciclo de vendas do mês. O primeiro ciclo contou com 34 pedidos,
totalizando R$4.639, indicando 38% de aumento em comparação ao primeiro ciclo
do mês anterior. Ao final do projeto, realizamos uma análise comparativa de vendas
pelo site nos meses que compreendem o período de setembro de 2021 a julho de
2022:
Na avaliação Cestas vendidas por mês, observamos uma média de
aproximadamente 120 cestas mensais, tendo como pontos altos dezembro de 2021,
em função das cestas promocionais de Natal, e março de 2022;
Na avaliação Faturamento por mês, observamos uma média entre R$15.000 e
R$20.000, tendo como meses de maior receita setembro de 2021 e dezembro de
2021;
Na avaliação Número de produtos vendidos por mês, observamos uma média de
aproximadamente 1.200 produtos, tendo como pontos altos setembro de 2021 e
março de 2022;
Na avaliação Número de usuários cadastrados no site, observamos uma média de
aproximadamente 75 novos usuários por mês. Os últimos meses do projeto apontam
para um aumento significativo do número de cadastros.
Por fim, realizamos um encontro de avaliação final sobre o percurso do
projeto, o que permitiu à equipe a possibilidade de debater e refletir sobre o
desenvolvimento das ações realizadas ao longo de pouco mais de um ano de
trabalho. Consideramos que seria importante futuramente ter um site em cada região
o que exigiria a consolidação da organização do trabalho das cestas em cada
território e que houvesse integração entre as bases de dados para ser possível
emitir relatórios sobre a comercialização de todos os assentamentos do estado. Com
essa perspectiva, elaboramos um manual para criação de novos sites.
Avaliamos que seria importante também avançar para sistemas que
fortalecessem outras etapas da cadeia produtiva, desde o planejamento da
produção, e da reprodução, ou seja, da produção para autoconsumo e troca entre
agricultores, da logística dos produtos saem do campo para as cidades, e da gestão
20
de outros canais de comercialização, como os meios institucionais em forma de
PNAE14 e PAA15, vendas para restaurantes, supermercados e outras cestas.
Enquanto um projeto do campo das tecnologias comprometidas com a
realidade social da população brasileira, estabelecemos um diálogo estreito em
relação aos movimentos sociais envolvidos com a redistribuição de terras e a justiça
alimentar no país. Essa imersão permitiu a reflexão crítica dos/as alunos/as e
bolsistas sobre as desigualdades que atravessam a disputa pela terra e a produção
de alimentos livres de agrotóxicos, fortalecendo o desenvolvimento participativo de
tecnologias engajadas com os territórios de atuação.
O projeto Construção de Ferramentas de Comercialização de produtos da
reforma agrária no estado do Rio de Janeiro” cumpriu um duplo papel a partir do
financiamento da Emenda Parlamentar. Por um lado, entregou um sistema de
comercialização elaborado a partir de uma perspectiva tecnológica implicada na
ampliação do trabalho realizado pelos movimentos sociais. Nesse sentido,
fortalecemos o lastro de atuação e alcance dessas organizações comunitárias,
habilitando-as para o uso de novas tecnologias. Por outro lado, o projeto apoiou o
desenvolvimento da ciência, da tecnologia e de inovações por meio de uma
dinâmica interdisciplinar, contribuindo na formação de estudantes e técnicos
envolvidos em prol da pesquisa, extensão e ensino, estimulando a universidade
pública ao cumprimento de um de seus objetivos fundamentais, a saber, a produção
de conhecimentos orientados para as demandas populares.
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V.22, 48 - 2024 (maio-agosto) ISSN: 1808-799 X
MEMÓRIA E TRABALHO DE MULHERES QUILOMBOLAS: LUTA PELA TERRA
E DEFESA DO MODO DE VIDA NO QUILOMBO DE THIAGOS BAHIA1
Priscila Silva de Figueiredo2
Rita Radl-Philipp3
Resumo
O presente trabalho - fruto de uma tese de doutorado - visa analisar a relação entre memória e
trabalho de mulheres da comunidade Quilombo de Thiagos, situada no município de Ribeirão do
Largo, Bahia. A partir de uma pesquisa teórica, empírica e qualitativa foram feitas observações-
participantes e entrevistas. A relação entre memória e trabalho das mulheres quilombolas
entrevistadas evidencia que a atuação das mulheres está intrinsecamente relacionada à luta pela
terra e defesa do modo de vida na comunidade.
Palavra-chave: gênero; comunidades rurais; divisão sexual do trabalho.
MEMORIA Y TRABAJO DE LAS MUJERES QUILOMBOLAS: LUCHA POR LA TIERRA Y
DEFENSA DEL MODO DE VIDA EN EL QUILOMBO DE THIAGOS BAHIA
Resumen
Este trabajo, resultado de una tesis doctoral, tiene como objetivo analizar la relación entre memoria y
trabajo de las mujeres de la comunidad Quilombo de Thiagos, ubicada en el municipio de Ribeirão do
Largo, Bahia. A partir de una investigación teórica, empírica y cualitativa, se realizaron observaciones
participantes y entrevistas. La relación entre memoria y trabajo de las mujeres quilombolas
entrevistadas muestra que las acciones de las mujeres están intrínsecamente relacionadas con la
lucha por la tierra y la defensa de su modo de vida en la comunidad.
Palabra clave: género; comunidades rurales; división sexual del trabajo.
MEMORY AND WORK OF QUILOMBO WOMEN: FIGHT FOR LAND AND DEFENSE THE WAY OF
LIFE IN QUILOMBO DE THIAGOS BAHIA
Abstract
This research, with results of a doctoral thesis, aims to analyze the relationship between memory and
work of women from the Quilombo de Thiagos community, located in the municipality of Ribeirão do
Largo, Bahia. Based on a theoretical, empirical and qualitative research, participant observations and
interviews were carried out. The relationship between memory and work of the interviewed quilombola
women shows that women's actions are intrinsically related to the struggle for land and the defense of
the community's way of life.
Keyword: gender; rural communities; sexual division of labour.
3Doutora em Filosofia y Ciencias de la Educación pela Universidade de Santiago de Compostela
(USC), Espanha. Professora Catedrática do Departamento de Ciência Política e Sociologia da
Universidade de Santiago de Compostela (USC). Email: ritam.radl@usc.es.
Lattes:. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9393-7753.
2Doutora em Memória: Linguagem e Sociedade pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia
(UESB), Bahia - Brasil. Professora do Departamento de Ciências Exatas e Naturais da Universidade
Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). E-mail: priscila.figueiredo@uesb.edu.br.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/7563637447326320. ORCID: http://orcid.org/0000-0002-6823-081X.
1Artigo recebido em 16/01/2024. Primeira Avaliação em 18/06/2024. Segunda Avaliação em
20/06/2024. Aprovado em 15/07/2024. Publicado em 07/08/2024.
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v22i48.61431.
1
Introdução
A existência das comunidades quilombolas no Brasil evidencia um projeto
possível de partilha, de viver em comunidade, da concepção do território como
coletivo e respeitoso com a terra e a natureza, que se contrapõe ao modo de vida e
produção capitalista (Dealdina, 2020). E as mulheres, nestes contextos, exercem um
papel fundamental, pois elas transmitem oralmente, de forma predominante, os
valores culturais, sociais, educacionais e políticos para a juventude, sendo as
guardiãs da pluralidade de conhecimentos presentes nos territórios4quilombolas
(Silva, 2020). Além disso, a organização das comunidades quilombolas em prol do
seu direito aos territórios ancestrais evidencia a luta pela demarcação de terras,
mas, sobretudo, pelo seu direito a um modo de vida (Silva, 2014), que dentre outras
coisas, envolve a forma como se relacionam com a natureza em prol das suas
necessidades, ou seja, remete a compreensão sobre o trabalho nos quilombos.
O trabalho é, assim, compreendido como a transformação sobre a natureza,
em função das necessidades humanas, em um processo em que ao transformar o
seu entorno, essa natureza, o ser humano transforma-se a si mesmo (Marx, 2017).
Marx (2017, p. 120) evidencia o caráter ontológico do trabalho ao concebê-lo como
“condição de existência do homem, independente de todas as formas sociais”. Ainda
que esta forma de conceptualização totalizadora do trabalho marxista seja
questionada por muitos autores no século XX, particularmente por parte da tradição
teórica neomarxista frankfurtiana (Adorno, 1969; Habermas, 1975; etc.), mas
também de outros autores como Althusser (1968), Sève (1975) etc., no nosso
contexto entendemos que ainda pode ter valor explicativo pelas características
intrínsecas ao modo de vida das comunidades tradicionais.
Para Habermas5, essa conceptualização totalizadora de Marx” do trabalho
que envolve toda existência do sujeito enquanto as ações humanas, não
corresponde à realidade das ações do sujeito humano que não simplesmente se
5Habermas (APUD RADL-PHILIPP, 1991) diferencia especialmente duas esferas e formas de ações
fundamentais, a esfera do trabalho e a esfera social, e assim ações instrumentais estratégicas que
seguem uma racionalidade com respeito afins, e ações interativas-comunicativas cujo fim reside nos
mesmos sujeitos, em sua autorrealização e não em uma intervenção exterior ou da natureza.
4O território em uma acepção hegemônica se expressa como uma extensão superficial da terra, um
recurso funcional que responde às demandas emergentes do modo de produção capitalista e, dessa
forma, fortalece as desigualdades sociais e a destruição natural (Santos, Ferreira, Moreira, 2024).
Nesse sentido, concebemos o território numa perspectiva contra-hegemônica que compreende a luta
e o pertencimento dos diferentes grupos culturais com o território, assumindo seu papel central como
lugar de vivências, vínculos e afetividade (SANTOS, FERREIRA, MOREIRA, 2024).
2
realiza através do trabalho, ou seja, “[...] Marx concebe a sociedade capitalista em
um sentido demasiado totalitário, que ‘desconhece totalmente o valor próprio dos
subsistemas mediados’ " (Radl-Philipp, 1996, p. 47)6. De forma mais precisa diz
Habermas,
Em suas análises de conteúdo Marx entende a história da espécie
segundo categorias do trabalho material eda eliminação crítica de
ideologias do atuar instrumental ea prática transformadora do
trabalho ea reflexão de forma conjunta; mas Marx interpreta, o que
faz, no marco mais limitado do conceito de uma auto constituição da
espécie simplesmente através do trabalho (HABERMAS, 1975, p.
59)7.
Em conclusão, Marx desconhecia e não considerava, a importância do âmbito
da interação para a realização e o desenvolvimento das ações dos sujeitos seguindo
ao autor referido8. Nem todas as ações são de trabalho da natureza, inclusive em
comunidades tradicionais com formas de produção não capitalista, pois existem
esferas simbólicas diferenciáveis onde o objeto primordial das relações e ações
humanas não é simplesmente o trabalho da natureza (Radl-Philipp, 1991) no sentido
estrito, senão onde o significado reside nos mesmos sujeitos; o objetivo é a
comunicação e interação entre sujeitos em si.
Ao não existir ainda uma separação estrita dos âmbitos de vida de atividades
de reprodução e produção, ou seja, também do trabalho doméstico e extradoméstico
de produção e da vida comunitária, por serem as ações na comunidade
desenvolvidas preeminentemente em relação ao processo de trabalho, e, nesse
sentido entendível como em transformação da natureza, importância da terra etc.,
apesar de que hoje inclusive na comunidade quilombola pesquisada não acontece
isso de forma exclusiva, acreditamos que ainda exista uma estrutura social que pode
ser conceitualizada em modo união de totalidade de vida do trabalho e de vida
social, da esfera de produção e reprodução, ao menos tendencialmente. Portanto,
enlaçamos com este conceito marxista de trabalho no sentido onipresente que
envolve toda a vida da pessoa como uma categoria-chave para compreensão do
modo de vida quilombola.
8Sobre a carência nas análises de Marx da consideração dos processos psicossociais de construção
do sujeito e, portanto, dos problemas epistêmicos da sua teoria ao respeito, importante para uma
visão teórica e pesquisa que analisa questões vinculadas às relações de gênero, veja Sève (1975).
7A tradução do original em alemão é nossa.
6A tradução do original do espanhol é nossa.
3
Ademais, é possível estabelecer uma relação entre trabalho e memória, na
medida em que a memória possibilita a reprodução social. Como afirmam Santos e
Santos (2023, p. 333), a memória também pode ser compreendida como uma
categoria ontológica do ser social, pois “[...] em condições normais, não existe ser
social sem memória e, assim sendo, ela traz consigo o ineliminável caráter histórico
mutável com todas as suas determinadas e contradições”. Em outra via, como
destaca Medeiros (2015, p. 62), “Não se pode conceber a memória sem o trabalho”.
Assume-se, a memória coletiva como uma estrutura derivada de um grupo
social, que funciona e está relacionada ao contexto social e cultural de uma
coletividade e mesmo a memória individual (Halbwachs, 2006). Cabe destacar, por
conseguinte, a memória como algo construído socialmente que está atrelada às
relações de poder, constituindo-se também como objeto de disputa nos conflitos
sociais (Pollak, 1989). Ademais, esse processo de construção envolve o movimento
de lembrar e também esquecer (Ribeiro, Radl-Philipp). Assim sendo, não se pode
considerar a memória como um objeto autônomo, que se sobrepõem aos grupos e
conflitos sociais, uma vez que ela não pode ser apresentada como autônoma em
relação aos indivíduos (Ribeiro, Radl-Philipp, 2017) e suas relações com os demais.
Em suma,
[...] a memória como construto social reflexivo não é uma simples
reprodução de uma memória unilateralmente predeterminada pelo
coletivo ou pela estrutura social. Nossa visão teórica interacionista
define assim a memória um construto social, mas como algo
construído intersubjetivamente pelos sujeitos. [...] Essa asseveração
é válida tanto para a memória entendida como fato coletivo como na
noção de fato individual (RADL-PHILIPP; MARTINEZ-RADL, 2018, p.
44).
Reconhecemos, ainda, que a memória coletiva é uma dimensão que
fundamenta o processo de reivindicação territorial quilombola e fortalece os esforços
para a manutenção de um modo de viver comunitário que foge da lógica
individualista capitalista. Desse modo, entendemos que, compreender a memória
coletiva quilombola e o trabalho nos quilombos perpassa entender o papel das
mulheres neste contexto, pois as mulheres quilombolas atuam como “[...] acervos da
memória coletiva; com elas estão registradas as estratégias de luta e resistências
nos quilombos, os conhecimentos guardados e repassados de geração em geração”
4
(Silva, 2020, p. 54). Nesse contexto, as mulheres são, indubitavelmente, sujeitos
ativos desse processo.
O presente artigo concebe, desta forma, a memória, no sentido amplo da
palavra, e o trabalho como categorias-chaves para a análise, reconstrução e
compreensão do modo de vida dos quilombos, em especial, do ponto de vista das
mulheres quilombolas. O artigo busca analisar, então, a relação entre memória e
trabalho de mulheres da comunidade “Quilombo de Thiagos”, situada no município
de Ribeirão do Largo, Bahia. A pesquisa é relevante para compreender de que
maneira a memória sobre o trabalho permite vislumbrar os desafios, em especial do
ponto de vista feminino, frente ao avanço da produção capitalista que tende a
esfarelar as formas de existências resistentes a ele.
A pesquisa foi estruturada adotando-se uma análise crítica a partir de uma
pesquisa teórica, empírica e qualitativa. A análise crítica segue a concepção
epistemológica crítica dos women´s studies, dos estudos das mulheres, feministas e
de gênero, que busca a transformação da situação social das mulheres no sentido
prático político (Radl-Philipp, 2008). Esta visão epistêmica defende um interesse
axiológico crítico que contrapõe a neutralidade do conhecimento científico. Isso é,
[...] uma abordagem epistemológica que representa uma base
metodológica para as investigações teórico-empíricas sobre
mulheres e relações intergênero, não pode necessariamente
permanecer em uma mera aplicação dos princípios científicos
modernos existentes. (RADL-PHILIPP, 2008, p. 18).
Tal concepção está inter-relacionada com o ponto central da visão epistêmica
marxista e neomarxista, anteriormente explicada, no sentido de fornecer uma
concepção crítico- ideológica da sociedade que contrasta e efetua uma crítica do
conhecimento científico moderno e sua aparente neutralidade axiológica
(Radl-Philipp, 1996). Assim sendo, a nossa concepção de teoria crítica busca
mediante a pesquisa uma transformação da mesma prática social (em suas diversas
dimensões) com o conhecimento das mulheres na comunidade Quilombo de
Thiagos pesquisada, na linha do pensamento da tradição epistemológica social
neomarxista da escola hermenêutico-crítica frankfurtiana, também mencionada
anteriormente.
A parte empírica se caracteriza por dados coletados em campo, no momento
em que a ação ou fenômeno a ser estudado está ocorrendo, segundo Burke
5
Johnson e Larry Christensen (2019). O método utilizado, por sua vez, é o qualitativo,
pois a pesquisa visa explorar e entender algum fenômeno experimentado por
indivíduos em um local específico, objetivo característico deste proceder (Johnson;
Christensen 2019). Assim, a pesquisa opera em profundidade em um número
limitado de casos com significados, motivos, aspirações, crenças, valores, atitudes
etc., correspondendo a um espaço determinado de relações (Johnson; Chistensen,
2019).
A pesquisa foi realizada na comunidade denominada “Quilombo de Thiagos”,
que obteve seu reconhecimento pela Fundação Cultural Palmares, conforme portaria
de 19 de novembro de 2009 do Diário Oficial da União, número de registro:
01420.002507/2009-66. Além disso, o reconhecimento foi atualizado em relatório de
certidões expedidas às comunidades, na portaria publicada no Diário Oficial da
União de 20 de janeiro de 2022 (Brasil, 2022).
A comunidade “Quilombo de Thiagos” possui 95 hectares, existe mais
de 100 anos e está localizada na zona rural do município de Ribeirão do Largo
Bahia, Brasil. A comunidade em questão, inicialmente chamada Boa Nova, passou a
ser conhecida com o tempo, como “os Thiagos”, porque foram Tiago Silva Lima e
sua esposa Ermelina Modesto da Silva que fundaram a comunidade formada
principalmente por sua descendência. Atualmente, a comunidade conta com 48
casas, onde vivem famílias formadas principalmente a partir de descendentes de
Ermelina e Tiago, e conta com uma população de 137 pessoas, segundo
informações passadas pelo presidente da Associação que fez o recenseamento do
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2022. Foi possível verificar
que a comunidade está envolvida no plantio de feijão, mandioca, frutas, dentre
outras atividades e o local ainda conta com uma escola municipal de educação
infantil e ensino fundamental que atende as crianças da comunidade.
O trabalho de campo foi realizado através da visitação na localidade onde
está situado o Quilombo de Thiagos, ao longo de 2 anos e dois meses,
contabilizando sete visitas. Em duas delas, foram realizadas estadias mais contínuas
dentro da comunidade, a primeira de 03 a 10 de setembro de 2022 e outra entre 02
e 05 de setembro de 2023, no qual foram feitas observações-participantes,
entrevistas e análise de documentos fornecidos pela comunidade e que auxiliaram
na elucidação sobre o processo de formação da comunidade, tal como os vinculados
6
à reivindicação da certificação da comunidade e modos de vida vinculados ao
trabalho.
Os procedimentos envolveram, assim, análise de documentos, as
observações-participantes e entrevistas semiestruturadas com 17 mulheres da
comunidade, com idade acima de 18 anos, com o suporte de roteiro de entrevistas,
caderno de campo e smartphone para gravação de áudio.
A observação-participante busca a investigação do fenômeno,
compartilhando-se a vivência, participando de hábitos e costumes do grupo
estudado (Angtrosino, 2009). as entrevistas semiestruturadas se baseiam em um
roteiro em que a entrevistadora tem a liberdade de fazer outras perguntas, no intuito
de precisar conceitos ou obter mais informações sobre os temas desejados
(Sampieri, Collado, Lucio, 2013).
As entrevistas ocorreram por meio da visita da pesquisadora (primeira autora)
nas casas. no que tange às observações-participantes, elas foram feitas durante
a participação de diversas atividades de cunho cultural, social e religioso, como
reunião de oração da Igreja Católica, participação no bingo beneficente, ensaio do
samba de roda, na observação de atividades na escola, observação do manejo dos
cultivos, produção de cachaça, torra de café etc.9
Salientamos, ainda, que o artigo encontra-se dividido em três pontos: 1-
Contextualização da comunidade “Quilombo de Thiagos”; 2 - Memória e trabalho das
mulheres na comunidade, e; 3 - Memória e atuações das mulheres quilombolas.
No primeiro apartado, apresentamos uma breve contextualização conceitual
sobre os quilombos no Brasil e sobre a referida comunidade, para então debater os
dados empíricos sobre o trabalho das mulheres no Quilombo de Thiagos no
segundo apartado, seguindo a linha de memória coletiva. No ponto três, nos
debruçamos de forma mais específica sobre a atuação social, política e cultural das
mulheres no Quilombo de Thiagos, buscando determinar o papel delas da ótica da
memória coletiva da comunidade.
9Destacamos que o presente trabalho é fruto das atividades de pesquisa da tese intitulada “Mulheres
e as Plantas Medicinais: Memória e Etnobotânica na Comunidade ‘Quilombo de Thiagos’ de Ribeirão
do Largo Bahia”, defendida em março de 2024, no âmbito do Programa de Pós-Graduação em
Memória: Linguagem e Sociedade (PPGMLS), da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia
(UESB). Gostaríamos de ressaltar, também, que o projeto da tese foi submetido ao Comitê de Ética
na Pesquisa (CEP) da UESB, tendo sua aprovação segundo parecer do relator, número 5.176.457 de
2021.
7
Contextualização da comunidade “Quilombo de Thiagos”
As comunidades quilombolas são formadas por indivíduos fortemente
marcados pela ancestralidade africana e, frequentemente, ancestralidade indígena,
que possuem características culturais e sociais próprias e estão presentes em todo o
território brasileiro, desde o início da invasão europeia no nosso território e
imposição do sistema escravista. Aqui assumimos o entendimento - apresentado na
Coleção Terras de Quilombo (Costa, 2015) - de que as comunidades quilombolas
são territórios étnico-raciais com ocupação coletiva baseada na ancestralidade, no
parentesco e em tradições culturais próprias, que expressam resistência a diferentes
formas de dominação. Cabe destacar que as comunidades quilombolas podem ser
rurais e urbanas, além de toda a diversidade e diferenças existentes entre elas por
ocuparem, dentre outros motivos, diferentes espaços do território brasileiro e serem
formadas por diferentes matrizes culturais (Oliveira, D'abadia , 2015).
No Brasil, os estudos e trabalhos sobre as comunidades quilombolas
adquirem força maior a partir dos movimentos de intelectuais pela questão negra,
principalmente, a partir da década de 1970 (Oliveira, D'abadia, 2015). Nesse âmbito,
destacamos a produção e militância de intelectuais como a historiadora Beatriz
Nascimento (1942-1995), a antropóloga Lélia Gonzalez (1935-1994) e o escritor
Abdias do Nascimento (1914-2011). Nas últimas décadas surgem, então, diversos
trabalhos, em diferentes áreas, provocando uma significação muito ampla, na
literatura especializada, sobre os quilombos.
O período atual assinala o enorme desafio pela garantia dos territórios
ocupados séculos e, cujas populações estão no caminho do desenvolvimento do
sistema de produção capitalista (Braz, 2021). A Bahia, neste contexto, é o estado
brasileiro com a maior população quilombola - 397.059 pessoas se reconhecem
como quilombolas - segundo o Censo de 2022 (Brasil, 2023). Além disso, possui o
segundo maior percentual populacional, sendo que 2,81% da população baiana se
reconhece como quilombola (Brasil, 2023). É também o segundo estado com maior
número de comunidades reconhecidas pela Fundação Cultural Palmares,
atualmente sendo 829 (Brasil, 2022).
Dentre as comunidades quilombolas baianas temos a anteriormente citada,
denominada “Quilombo de Thiagos”, localizado na zona rural do município de
Ribeirão do Largo - Bahia, situado a 13 km do centro da cidade e onde vivem
8
diversas famílias que possuem entre si laços de consanguinidade, ancestralidade e
compartilhamento de conhecimentos e de práticas socioculturais.
Segundo documentos fornecidos pela comunidade quilombola, foi possível
averiguar que Tiago Silva Lima viveu entre 1885 e 1957 e Ermelina Modesto da Silva
viveu entre 1890 e 1982. Tiago era filho de Henrique da Silva Lima que havia sido
escravizado e sua mãe, Marcelina Maria de Jesus, era indígena Pataxó. Dados
importantes para entender a matriz étnico-racial desta comunidade que inicia a partir
da compra daquelas terras por parte de Tiago e Ermelina. Estas informações,
contidas em documentos, também foram validadas por meio da fala de algumas das
mulheres entrevistadas. Segundo Valéria dos Santos (2020), existe uma falsa ideia
de que os quilombos referem-se a negros apartados da sociedade ou escravizados
refugiados. No entanto, a característica marcante do quilombo não é o isolamento e
a fuga, mas a resistência e a autonomia (Santos, 2020) e um modo de vida (Oliveira,
D´Abadia, 2015).
Carlídia Almeida (2020) salienta que dinâmicas diversas para além das
estratégias de fuga, estiveram na base da constituição das comunidades
quilombolas, tais como a ocupação de terras livres, o recebimento de heranças e
doações, a aquisição de terras pela compra ou como pagamento pela prestação de
serviços, entre outros. Destarte, cada quilombo é diferente do outro e não existe a
necessidade de fixar categorias estáticas (Almeida, 2020).
A compreensão e auto-identificação do Quilombo de Thiagos como
comunidade quilombola esteve fortemente presente nas últimas duas décadas,
principalmente a partir do momento em que a associação comunitária se organizou
para reivindicar sua certificação pela Fundação Cultural Palmares. Esse movimento
causou repercussões na comunidade, em suas atividades sociais, culturais e no
campo do trabalho, pois a luta coletiva estimulou a coesão do grupo, e a coesão do
grupo organizou a luta. Este processo culminou na obtenção da certificação em
2009 e marcou o início da luta pela titulação coletiva das suas terras.
A comunidade possui o título das terras que foi repartido entre a
descendência de Ermelina e Tiago, mas a associação reivindica a regulamentação
fundiária para obtenção da titulação coletiva. Uma das dificuldades destacadas por
uma das mulheres entrevistadas se refere ao fato do Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária (INCRA) ainda não ter executado a regulamentação
fundiária coletiva do território. Segundo ela, “existem várias comunidades que são
9
reconhecidas pela Fundação Palmares, mas não têm a declaração do INCRA”. Para
ela, a falta desse título representa uma ameaça à comunidade, pois possibilita que
pessoas externas comprem terra ali dentro. Segundo ela, isso aconteceu no
passado e ações de uma destas pessoas (sem vínculos com a família e com a
comunidade) provocaram grandes impactos ambientais em uma das fontes de água
presentes no quilombo. E a comunidade tem buscado ajuda de órgãos para
solucionar o problema que prejudica não apenas as pessoas que vivem ali, como
toda a biodiversidade presente naquele território que ainda possui uma área de mata
preservada.
A luta pela certificação como comunidade quilombola e pela regulamentação
coletiva da terra aparece como uma demanda do grupo por este compreender que
este processo fortalece a luta pela materialização dos direitos da comunidade, e
para tanto, a luta coletiva ecoa na valorização cultural e na preservação da memória
coletiva do quilombo em uma relação indissociável. Desse modo, a memória coletiva
da comunidade é inerente aos processos reivindicatórios e a luta organiza a
coletividade e mantém viva a memória coletiva.
Destacamos, ainda, que antes de Lula assumir a presidência em 2023, nos
últimos sete anos o Brasil esteve governado por representantes totalmente
descompromissados com a promoção de políticas públicas direcionadas a essas
populações. Além disso, como afirma Dealdina (2020), ainda que a legislação atual
seja favorável ao reconhecimento dos direitos territoriais quilombolas, é evidente o
seu descumprimento. Ainda segundo Dealdina (2020, p. 29),
A boa vontade política não existe e o racismo estrutural, que se
ramifica nas instituições públicas, formatando o Estado e a sociedade
brasileira, faz com que o exercício do direito seja vivido enquanto
conflito imediato.
Os conflitos se configuram, neste contexto, por uma disputa de interesses
sobre os territórios, marcada pela violência, com mortes, ameaças, afastamento das
lideranças dos quilombos, restrições de direitos, entre outras consequências
(Dealdina, 2020).
Oliveira e D'Abadia (2015) destacam que as comunidades quilombolas de
ambientes rurais vivenciam dificuldades relacionadas à manutenção de seu território,
principalmente aquelas que não possuem a titulação da terra, haja vista que grande
parte dessas comunidades teve perda brusca de hectares via procedimentos
10
ilegais [grilagem de terras], avanço de obras urbanas sem respeito às suas áreas
territoriais e prática de racismo ambiental. Uma das entrevistadas relatou que
mesmo que a comunidade sempre tenha possuído a documentação sobre a
propriedade das terras, as marcações foram modificadas por fazendeiros no
passado e o território do quilombo foi bastante diminuído, principalmente na parte de
mata.
Uma importante vitória atual foi, por outro lado, a aprovação do projeto da
comunidade ao edital do Bahia Produtiva para Comunidades Quilombolas, do
Governo do Estado da Bahia no ano de 2018 (Bahia, 2018). Segundo uma das
entrevistadas, “Nunca tinha saído edital específico em que comunidades
quilombolas concorressem entre comunidades quilombolas” - o que representa
para ela um grande avanço porque a comunidade era impedida de concorrer a
editais anteriores, pois não se adequava ao perfil solicitado. Através do referido
edital, a comunidade tem tido acesso a assistência técnica para a produção
agroecológica de alimentos com foco na produção de hortaliças. Sobre a
preocupação com a produção agroecológica, umas das entrevistadas relata que
Sim. Uma das preocupações nossa, é essa, né? Que todo mundo
que produz, planta hortaliças e tudo, né? É tudo sem veneno,
né? É uma das questões que a gente tem muito... Graças a Deus,
dentro da comunidade não temos problemas com veneno.
Nesse sentido, cabe destacar que embora não seja uma prática nomeada
necessariamente em comunidades tradicionais, “a agroecologia é uma ciência que
valoriza o conhecimento agrícola tradicional, desprezado pela agricultura moderna”
(Almeida, 2020, p. 134). Santos (2020) aponta, na mesma linha, que o saber
tradicional traduzido nas práticas e fazeres das mulheres quilombolas evidencia um
diálogo profundo com os princípios da agroecologia.
A agroecologia é concebida, neste trabalho, sob uma perspectiva feminista,
tanto como um campo do conhecimento de natureza multidisciplinar, como uma
prática baseada em saberes ancestrais, através de princípios que promovam a
sustentabilidade e reconheçam a invisibilização e violência histórica sofrida pelas
mulheres (Siliprandi, 2009). As mulheres entrevistadas relataram também sobre o
uso de fertilizantes naturais e sobre a importância do agente comunitário rural que é
um jovem quilombola, que presta assistência técnica através do financiamento do
edital Bahia Produtiva.
11
O contexto de participação da comunidade a esse edital torna possível o
trabalho comunitário. Pois ainda que cada família receba a estrutura e os insumos e
tome conta dos seus quintais produtivos, a conquista foi coletiva, assim como todas
as decisões inerentes a ela. Aqui a memória coletiva, no Quilombo de Thiagos,
desempenha um papel relevante na opção da comunidade por cultivos que fazem
parte do trabalho da comunidade ao longo dos anos, cujos saberes10 são
transmitidos pela oralidade. A seguir, trataremos sobre o trabalho dentro do
quilombo, com ênfase nas mulheres, articulando com a discussão sobre memória.
Memória e trabalho das mulheres na comunidade
A importância das mulheres e seu papel na consolidação e mesmo na
construção da comunidade pesquisada foi mencionada no apartado anterior, mas
vamos analisar de forma mais específica agora na linha de memória sobre o
trabalho das mulheres na comunidade e seu significado. Nesse sentido, destacamos
que elas sempre estiveram presentes nas produções dos quintais, nas roças do
território, ao contrário de muitos homens que saíam e ainda saem para trabalhar em
fazendas vizinhas.
No que tange ao trabalho, além do trabalho doméstico e como agricultoras, as
entrevistas identificaram ainda as seguintes ocupações: professora, cuidadora de
crianças, zeladora, atendente, agente comunitária de saúde, artesã, produtora
animal, produtoras de goma e farinha de mandioca e auxiliar de limpeza.
Como citado anteriormente, as mulheres quilombolas destacaram que os
homens saem da comunidade para trabalhar, sobretudo nas fazendas vizinhas. E
cabe, principalmente, às mulheres o cuidado do lar e a produção nos seus quintais.
Uma das entrevistadas relata, contudo, que:
O objetivo da gente, na verdade, é conseguir uma renda própria, sem
ele precisar sair para trabalhar, porque ele fica um tempo trabalhando
fora, empregado e tal, mas hoje a gente tentando ver se a gente
consegue tirar essa renda da própria propriedade, né?! A gente sabe
que a dificuldade é grande, né?!
10 Segundo Víctor Toledo e Narciso Barrera-Bassols (2015), conhecimento e saber são igualmente
formas de crer, reconhecer e significar o mundo. Ainda que seja possível diferenciar conhecimento
como baseado em teorias, postulados e leis sobre o mundo e, portanto, supõe-se que seja universal e
a sabedoria como baseada na experiência concreta e em crenças compartilhadas pelos indivíduos
acerca do mundo (TOLEDO, BARRERA-BASSOLS, 2015), assumimos no presente trabalho ambos
os termos como sinônimos, na medida em que expressam formas de significar o mundo.
12
Algumas relataram também que tiveram que sair de casa em busca de outras
oportunidades. Uma delas relatou que quando ela e o esposo trabalhavam fora, o
vínculo com a comunidade permanecia, segundo ela,
Sou moradora, nasci e me criei aqui na comunidade. Fiquei um
tempo fora trabalhando, na cidade vizinha, Itambé, né?! [...] mas o
ponto de partida e de volta sempre foi a comunidade né?! Sempre
tava na semana, mas todo final de semana, tava aqui. E sempre
participei de todas as atividades, as atividades da igreja né?! Fui
catequista na comunidade desde novinha, sempre participei das
questões da igreja, em toda a comunidade sempre, sempre estava
presente.
Outra mulher entrevistada relatou que,
Morar aqui é muito legal e é bom. Eu gosto de morar aqui. É tanto
que eu nem me vejo em outro lugar. eu sempre fui... trabalhei... eu
trabalhei 6 anos em uma farmácia, em Ribeirão, ia e voltava. Ia de
manhã cedo e voltar de noite, mas não ficava lá, não. E aí, agora eu
estou fazendo um curso. no sábado.
As falas das mulheres ilustram um importante resultado da pesquisa, que
apareceu em todas as entrevistas que é o forte vínculo que as mulheres quilombolas
possuem com sua comunidade. Outro resultado, sobre as memórias elaboradas
durante as entrevistas, evidencia que embora algumas mulheres do Quilombo
tenham se dedicado ao cuidado do lar durante toda a sua vida, a maior parte delas
desenvolveu ou ainda desenvolve algum trabalho externo, tal como empregada
doméstica, atendente em farmácia, zeladora de escola, cuidadora, agente de saúde,
professora etc. Através da compreensão sobre os diferentes trabalhos
desenvolvidos, ao longo dos anos, pelas mulheres quilombolas foi possível capturar
a materialização do vivido, a memória coletiva.
Como destaca Santos (2021, p. 91),
[...] o trabalho, assumindo o seu legado ontológico, captura a
memória como elemento de materialização do que fora vivido.
Colocado dessa forma, permite-se infundir, por mais esta menção, a
memória como elemento construto das experiências humanas,
nascidas no coletivo, no vivido em grupo, em sua base social de
constituição, a qual a legitima como instrumento de grande
relevância para dar visibilidade ao passado pelas das experiências
individuais e, portanto, estabelecendo relação direta entre o passado
e o presente.
13
Outro importante aspecto, identificado nas entrevistas, se refere à divisão
sexual do trabalho na comunidade. Todas as mulheres entrevistadas são as
principais responsáveis pelo trabalho doméstico e pelo cuidado com as crianças.
Algumas trabalham em atividades de produção nos terrenos de suas famílias, como
atuam em trabalhos externos, como os citados anteriormente. Assim, como
destacam Grossi, Oliveira e Bitencourt (2018), apesar de atuarem como lideranças
nas suas comunidades, as mulheres quilombolas continuam tendo que
desempenhar os papéis tradicionais de gênero associados ao cuidado, mais além do
seu trabalho da terra, o que contribui para a sobrecarga de trabalho. Além disso, são
invisibilizadas nas políticas públicas específicas para as comunidades quilombolas,
sendo os interesses voltados para o coletivo e não contemplam as necessidades
específicas de gênero atravessadas pela questão racial (Grossi, Oliveira, Bitencourt,
2018).
Ana Elizabeth Alves (2013) destaca que as relações de classe ou relações de
sexo / antagonismos de classe ou antagonismos de sexo costumavam ser
estudadas de forma separada e é preciso contextualizar de modo inseparável,
indissociável, as relações sociais de sexo e de classe. Ainda segundo Alves (2013),
a divisão sexual do trabalho é acompanhada de uma hierarquia de poder, que situa
os homens no campo produtivo e as mulheres no campo reprodutivo, uma
separação que se expandiu no modelo capitalista. A tradição de inferioridade, de
subordinação e de desvalorização do trabalho da mulher contribuiu para a sua
marginalização nas funções produtivas, permitindo que o capitalismo extraísse o
máximo de trabalho excedente, base do enriquecimento dos capitalistas (Alves,
2013).
Segundo Patrícia Grossi, Simone Oliveira e João Bittencourt (2018, p. 9)
A mulher quilombola vivencia suas experiências sociais atravessadas
por um modo de produção capitalista que a explora, diante de
relações que minimizam seu valor social e reprodutivo (econômico),
tal como é subjugada frente às práticas sociais de cunho hierárquico
- potencializadas pela subordinação e jurisdição masculina. Ainda,
sofre com o sistema político e as crenças que estabelecem a
desigualdade entre raças e etnias.
As condições de trabalho entre homens e mulheres são extremamente
desiguais e cabe destacar, que as mulheres brancas em geral possuem melhores
condições de trabalho que as mulheres negras, assim como existem trabalhos que
14
são mais predominantemente exercidos por mulheres negras, como o trabalho
doméstico remunerado, como destacam Luana Pinheiro e colaboradoras (2019).
Historicamente, as mulheres negras experimentam maior precariedade no
mercado de trabalho, marcada por uma remuneração extremamente baixa quando
comparada a outros grupos e a uma concentração em determinados setores do
mercado e em certas atividades cujos salários e condições de trabalho são
inferiores, como destacado por Maria Aparecida Bento (1995). Deste ponto de vista,
o sistema de produção capitalista explora economicamente as mulheres, se
beneficiando do sistema patriarcal como forma institucionalizada de poder que
inferioriza ainda mais as mulheres negras; por uma parte, no tocante aos homens
negros e brancos, e, por outra, pelo racismo que as discrimina quando comparadas
às mulheres brancas e homens brancos. A seguir, trataremos de uma forma um
pouco mais específica sobre o protagonismo e a luta das mulheres quilombolas,
concretamente, das atuações e atividades do grupo feminino no Quilombo de
Thiagos.
Memória e atuações das mulheres quilombolas
A atuação pública das mulheres frente às lutas sociais ocorre através da sua
participação em movimentos em que homens e mulheres se aliam e se organizam
para defender, reivindicar e promover novas formas de organização do trabalho e
das relações sociais do campo ou quando organizam grupos específicos de
mulheres para tratarem de questões inerentes ao público feminino nos movimentos
(Oliveira, 2007). Por outro lado, no que se refere às mulheres em geral, sua
participação nos movimentos sociais historicamente tem se projetado em uma ampla
dificuldade para adentrar os espaços públicos e assumir papéis tidos como
exclusivos aos homens e mesmo quando essas barreiras foram rompidas e elas
conseguiram penetrar nesses espaços e atuaram, lado a lado com os homens, ainda
assim não tiveram suas participações devidamente reconhecidas (Oliveira, 2007).
Partindo dessa premissa, no presente tópico, buscamos compreender, como
também dar visibilidade para a atuação social, política e cultural das mulheres do
Quilombo de Thiagos, através da memória coletiva, buscando determinar o papel e o
significado delas para a comunidade.
15
A memória reconstruída - através das falas das entrevistadas e análise de
documentos -, evidencia que as mulheres da comunidade sempre tiveram um papel
muito forte de liderança, a exemplo de sua fundadora. A referência à Ermelina da
Silva apareceu em diversos momentos da pesquisa de campo. Ermelina foi descrita
como uma mulher muito firme, que atuou como parteira em diversos partos da sua
descendência. Aqui cabe destacar o respeito e prestígio que as parteiras possuíam
em suas comunidades. “As mulheres parteiras possuíam, frente à comunidade,
família e toda a sociedade uma força e reconhecimento de valor, de poder” (Cruz,
Radl-Philipp, 2018, p. 81). Contudo, o ato de partejar - que durante séculos - foi
considerado uma prática exclusiva das mulheres nas últimas décadas, foi sendo
expropriado enquanto campo de saber e poder feminino, agora considerado de
menor valor, quando comparado à visão androcêntrica da ciência (Cruz,
Radl-Philipp, 2018).
Ermelina, viúva, permaneceu na convivência com sua descendência por mais
de 30 anos após o falecimento de seu esposo. Além de Ermelina, outras três
mulheres foram citadas como parteiras: Marcelina, mãe de Tiago e indígena Pataxó;
Laudicena, uma das filhas de Ermelina, e Vitalina, avó paterna de uma das
entrevistadas. Na atualidade, nenhuma mulher foi apontada como parteira, sendo
que os partos geralmente ocorrem em Vitória da Conquista, Itambé ou Ribeirão do
Largo, em unidades de saúde.
Cruz e Radl-Philipp (2018, p. 80) destacam que “as memórias e os saberes
das parteiras tradicionais são de fundamental importância no resgate da
humanização do parto e nascimento em nosso país”. Além da atuação como
parteiras, a memória das mulheres do Quilombo de Thiagos evidencia que seu papel
de destaque ocorre em diferentes âmbitos da comunidade como na área da saúde,
educação, cultura, política e social.
Também na área da saúde, o Quilombo de Thiagos conta com uma Agente
Comunitária de Saúde (ACS) que atua na comunidade mais de 24 anos.
Segundo a lei 11.350/2006, o ACS tem como atribuição o exercício de atividades de
prevenção de doenças e de promoção da saúde, a partir dos referenciais da
Educação Popular em Saúde (Brasil, 2006). A ACS, que possui 47 anos, é bisneta
de Ermelina e Tiago e quando perguntada sobre viver na comunidade, ela
respondeu que “Ah, eu adoro, minha filha. Nunca pensei em sair daqui. Meus filhos
falam ‘vou embora pra São Paulo’. que eu não tenho plano, nunca tive”.
16
O trabalho da ACS envolve visitar as famílias, dando orientação sobre a
marcação de exames e de atendimentos no posto de saúde, contribuir nas
campanhas de vacinação do Sistema Único de Saúde etc., no município de Ribeirão
do Largo. Um trabalho de suma relevância para a comunidade.
Ainda sobre o tema saúde, outra entrevistada relatou que
Quando alguém adoece, que a gente precisa ir até o posto, né, de
Ribeirão, aconteceu várias vezes assim de precisar de uma
medicação e no próprio posto não ter, né, na farmácia popular não
ter a medicação. A gente tem que comprar né?!
As dificuldades enfrentadas na qualidade do atendimento à saúde não são
restritas a essa comunidade. A população negra tem sido objeto de políticas de
saúde, tendo em vista as particularidades concernentes às disparidades de suas
condições de saúde, tanto do ponto de vista individual como coletivo (Cardoso,
Melo, Freitas, 2018). Estudos evidenciam, contudo, desigualdades no acesso à
saúde diretamente relacionadas à questão étnico-racial agravando-se em indivíduos
de cor de pele preta, parda e indígena (Cardoso, Melo, Freitas, 2018).
Além disso, a ACS destacou que as mulheres cuidam mais da saúde do que
os homens, segundo ela “Os homens são muito teimosinhos, vai naquela última
hora mesmo. Não quer procurar o médico, não. Raramente”. Ela explica que essa
constatação se porque ela está “sempre agendando, tem os programas de
saúde. Eu vejo as mulheres mais participativas”. O fato de homens procurarem e
acessarem menos os serviços de saúde - mesmo tendo maiores taxas de
mortalidade e adoecimento se comparados às mulheres - tem sido identificado em
diversas pesquisas na literatura específica e dentre as motivações estão as
diferenças dos papéis de gênero presentes no imaginário social, que atribuem o
cuidado como próprios do âmbito feminino e demonstrar vulnerabilidade é algo que
afronta o ideal de masculinidade (Gomes, Nascimento, Araújo, 2007).
As entrevistas evidenciaram que as mulheres têm um papel de protagonismo
na associação. Uma das lideranças da comunidade participa dos conselhos e era a
presidente da associação até pouco tempo, e sua participação ainda é muito forte,
pois o atual presidente é o seu esposo, e assim muitas das atividades de
representação da comunidade ela continua assumindo. Ela também esteve
fortemente presente na elaboração e submissão do projeto ao edital do Bahia
Produtiva. Como evidencia Dealdina (2020), as mulheres quilombolas têm um papel
17
de extrema importância nas lutas de resistência, pela manutenção e regularização
dos territórios, seja no ambiente urbano ou rural, por manterem viva a memória
quilombola, que perpassa a transmissão de saberes no artesanato, na agricultura
tradicional, na culinária, na preservação das tradições locais.
A comunidade também realiza atividades de cunho social, como bingos
beneficentes, para arrecadação de fundos a fim de ajudar pessoas vinculadas à
comunidade em alguma necessidade. Além da associação, o Quilombo de Thiagos
também possui uma comunidade católica, que realiza atividades como catequese e
reuniões de grupos de oração. Sendo que esta comunidade religiosa também é
coordenada por mulheres.
A comunidade ainda desenvolve atividades culturais como a roda de samba e
segundo a professora da comunidade “[...] nós criamos o grupo né?! O samba de
roda, nós na verdade resgatamos essa cultura, que por um tempo ela ficou, né,
parada e tal”. Segundo Graeff (2015, p. 37), “o samba de roda é essencialmente
uma roda de dança acompanhada por canto e percussão” que possui sua origem
ligada aos povos de África que vieram para o Brasil, como os povos iorubás, gegês,
haussás, entre outros, da costa ocidental africana e os banto são da África Central
(Graeff, 2015). Assim, é possível verificar que a comunidade do Quilombo de
Thiagos não apenas possui práticas culturais que remetem à ancestralidade e
cosmologias africanas como existe um esforço da comunidade para construir
memórias da comunidade que resgatem tais práticas.
Apesar da relevância, a professora complementa sua fala trazendo uma
preocupação:
A gente com dificuldade na parte cultural. A gente tem dificuldade
de achar assim patrocínio, pessoas que nos ajude nesse sentido...
Semana passada mesmo, nos tivemos um ensaio, eu falei: - gente
vai acabar, do jeito que está, as pessoas, os meninos dos
instrumentos não querem participar...
Nesse sentido, cabe destacar a ineficiência do poder público na elaboração
de políticas públicas efetivas para o incentivo à cultura nas comunidades
quilombolas. Segundo a entrevistada,
O que nós conseguimos do samba de roda é assim a gente faz um
bingo, a gente consegue um prêmio para comprar um tambor, as
roupas das vestimentas a gente mesmo é que faz bingo, que a
gente reúne e compra as roupas. Para a percussão mesmo, os
18
meninos a gente tem vontade de colocar os meninos mais novos
para aprender, mas a gente não tem um instrutor, um professor que
possa estar fazendo isso. Aula de capoeira também foi tentado,
né, fazer aqui na comunidade. Vir alguém do Largo. teve
dificuldade até de trazer a pessoa de pra ensinar os meninos
aqui. Então, a gente não tem esse apoio para a cultura. Então se a
gente, foi o que eu falei na última, no último ensaio, “se a gente não
cuidar até o samba vai acabar, vai morrer, né”.
Com os resultados acima expostos, no que se refere especificamente à
questão das atuações e atividades das mulheres, destacamos que a comunidade
realiza muitas atividades coletivas, como bingo beneficente, roda de samba, grupos
de orações nas casas, campanhas de saúde, dentre outras, e as mulheres do
quilombo estão sempre à frente, seja a frente das atividades promovidas pela escola
(através da professora), seja à frente das atividades políticas culturais (através da
liderança comunitária), seja à frente das campanhas de saúde (agente comunitária)
ou a frente das atividades religiosas (coordenadora da comunidade católica).
Aqui se entrecruzam atividades e trabalhos referidos ao papel do cuidado
tradicional das mulheres, mas também atividades consideráveis públicas políticas
culturais. Assim o cuidado não ocorre apenas nos seus lares, mas também a nível
comunitário e elas desempenham um papel fundamental para a manutenção da
memória coletiva do grupo. As atuações das mulheres na comunidade transpassam
a função do rol de gênero tradicional e do cuidado das mulheres no campo
doméstico e afetam todos os âmbitos da vida comunitária. Sendo que a memória
coletiva articula as mulheres quilombolas em torno da terra, da etnia e do território e
a permanência dessas comunidades ocorre sob as tensões que reforçam o modo de
vida que (re)constroem (Carril, 2017).
Considerações finais
A memória coletiva sobre o trabalho, as ações e atuações na comunidade
-expressas pelas memórias das mulheres quilombolas entrevistadas - em um
movimento entre passado e o presente - evidencia que as mulheres apresentam um
forte vínculo com um modo de vida comunitário e que elas estão engajadas em
defendê-lo. Para tanto, aliam a luta pela terra - no sentido de se organizar para a
obtenção da regulação fundiária coletiva do território e na adoção de práticas
agroecológicas com projeções públicas sociais– com o fortalecimento da memória
19
coletiva. O trabalho no quilombo, por sua vez, evidencia aspectos sobre as relações
de gênero na comunidade de ruptura com o papel de gênero social tradicional - ao
menos em alguns campos das atuações sociais que observamos - e sobre os
desafios de políticas públicas direcionadas para as mulheres quilombolas. Mulheres
que possuem uma atuação cultural, política e social de extrema relevância para a
comunidade, e mais além dela, e, portanto, excedem o que habitualmente é
considerada a esfera da (re)produção doméstica.
A pesquisa permitiu compreender que a memória do trabalho evidencia as
estratégias de luta, através da organização coletiva e comunitária, e os desafios, em
especial do ponto de vista do coletivo feminino, frente ao avanço do sistema de
produção capitalista na comunidade que a todo tempo tenta inviabilizar a existência
e o modo de ser e trabalhar do quilombo e segue invisibilizando o trabalho das
mulheres. A pesquisa pode observar também que a comunidade passa por muitas
dificuldades, e o trabalho coletivo das mulheres - segundo as mulheres entrevistadas
- que contribui para a gradativa superação delas.
Concluímos, por fim, desta forma, que apreciamos uma intrínseca relação
entre memória e trabalho no Quilombo de Thiagos e as atuações das mulheres
quilombolas estão fortemente relacionadas à luta pela terra e defesa do modo de
vida na comunidade.
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V.22, 48 - 2024 (maio-agosto) ISSN: 1808-799 X
A REFORMA DO ENSINO MÉDIO PAULISTA E O
APARTHEID SOCIAL E EDUCACIONAL1
Felipe Alencar2
Resumo3
Parte-se do referencial gramsciano de escola unitária para análise da reforma do ensino médio na
rede estadual de São Paulo, por meio do programa Inova Educação, componente de todos os
itinerários formativos do Novo Ensino Médio. Com base em documentos, indicadores educacionais e
da força de trabalho, discursos de agentes privados formuladores do programa e entrevistas com
educadores discute-se que a reforma, no contexto de austeridade e informalidade do trabalho,
institucionaliza o apartheid social e educacional ao destituir conhecimentos da formação escolar
visando ao trabalho subalterno.
Palavra-chave: Reforma do ensino médio. Inova Educação. Trabalho e educação. Políticas
educacionais. Rede estadual paulista.
LA REFORMA DE LA ENSEÑANZA SECUNDARIA DE SÃO PAULO Y EL APARTHEID SOCIAL Y
EDUCACIONAL
Resumen
Utilizamos la referencia gramsciana de la escuela unitaria para analizar la reforma de la enseñanza secundaria
en el estado de São Paulo, a través del programa Inova Educação, componente de todos los itinerarios
formativos de la Nueva Enseñanza Secundaria. A partir de documentos, indicadores educacionales y de fuerza
de trabajo, discursos de los agentes privados que formularon el programa y entrevistas con educadores, se
argumenta que la reforma, en un contexto de austeridad e informalidad del trabajo, institucionaliza el apartheid
social y educacional al remover conocimientos de la educación escolar con vistas a la formación para el trabajo
subordinado
Palabra clave: Reforma de la Enseñanza Media. Inova Educação. Trabajo y educación. Politicas educativas.
Educación del estado de São Paulo.
THE SÃO PAULO’S HIGH SCHOOL REFORM AND THE SOCIAL AND EDUCATIONAL APARTHEID
Abstract
The study is based on the Gramscian reference of a unitary school to analyse the high school reform in the state
of São Paulo, through the Inova Educação programme, a component of all the training itineraries of the New High
School. Based on documents, educational and workforce indicators, discourses by the private agents who
formulated the programme and interviews with teachers, it is argued that the reform, in the context of austerity
and informality of work, institutionalises social and educational apartheid by removing knowledge from school
education with the aim to training for subordinate work.
Keyword: High School Reform. Inova Educação. Work and education. Educational policies. São Paulo State
Education Network.
3Este artigo foi produzido a partir da Dissertação de Mestrado, defendida em março de 2023, na Faculdade de
Educação da Universidade de São Paulo, com o título: Escola pública entre ditames e resistências: Inova
Educação na Rede Estadual Paulista (Alencar, 2023), sob orientação da Profa. Dra. Carmen Sylvia Vidigal
Moraes.
2Doutorando e Mestre em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), Brasil.
Pedagogo da Universidade Federal do ABC (UFABC), São Paulo - Brasil.
E-mail: alencar.felipe@ufabc.edu.br. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/8382339312873192.
Orcid: http://orcid.org/0000-0002-2011-8941. Pesquisador da Rede Escola Pública e Universidade (REPU), do
Grupo de Estudo e Pesquisa em Política Educacional e Gestão Escolar (Unifesp) e do Grupo de Pesquisa em
Trabalho e Educação (USP).
1Artigo recebido em 06/01/2024. Primeira avaliação em 08/04/2024. Segunda avaliação em 26/03/2024.
Aprovado em 28/07/2024. Publicado em 07/08/2024.
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v22i48.61360
1
Introdução
Nenhum determinismo ideológico pode aventurar-se a prever o futuro, mas
parece muito evidente que este está marcado pelos signos opostos do
apartheid ou da revolução social (Oliveira, 2013, p. 119).
O título deste trabalho e a epígrafe do clássico O ornitorrinco, de Francisco de
Oliveira (2013), sugerem que a atual reforma do ensino médio faz da escola pública
um meio pelo qual se relaciona o processo de aprofundamento das desigualdades e
da divisão social do trabalho. Nossa perspectiva crítica de análise toma o referencial
do marxismo de Antonio Gramsci (2014; 2018) para conceber a escola como parte
dos diversos tipos de “instituições de elaboração colegiada da vida cultural” (2018, p.
65, Q 12 § 1),4e não isoladamente pedagógica ou como via de formação para
inserção profissional, mas por uma atuação conjunta de aparelhos estatais.
Para construir uma história distinta para a formação popular que supere a
marca social de formação para a subalternidade, Gramsci propõe um tipo único de
escola que conduza a juventude até a escolha profissional para formar pessoas que
sejam capazes “de pensar, de estudar, de dirigir ou de controlar quem dirige”
(Gramsci, 2018, p. 87, Q 12 § 2). Na proposta de escola unitária, de currículo
integrado, o trabalho é princípio educativo que articula teoria e prática,
fundamenta-se nas ciências e na filosofia da práxis, com “uma linha consciente de
conduta moral” que contribua “para manter ou modificar uma concepção do mundo,
isto é, para suscitar novas maneiras de pensar” (Gramsci, 2018, p. 91, Q 12 § 3).
Sua ideia de escola unitária, elaborada em contraposição à reforma
educacional implementada pelo governo fascista italiano, consiste em esforço
analítico que contribui decisivamente até os dias atuais para o campo de pesquisa
Trabalho-Educação e para a formulação de políticas de educação integral, opostas à
escola dualista criticada por educadores democráticos, pelo fato desta promover a
cisão entre uma escola que prepara para o mundo do trabalho e outra que promove
formação científica e humanista (Moraes, 2023).
Contrariamente à proposta de escola unitária, na Itália de Gramsci e no Brasil
de hoje, vivenciamos, com a reforma do ensino médio, uma política educacional que
estimula a distinção entre escolas que são destinadas a formar os quadros
4As citações de escritos de Gramsci (2014; 2018) neste trabalho se referem aos Quaderni del carcere
indicando-se o Quaderno (Q) e o parágrafo (§) em que a citação pode ser localizada. As traduções
foram realizadas livremente pelo autor deste artigo.
2
intelectuais e políticos do país, as do ensino privado, e aquelas que são das classes
subalternas, as das redes de ensino público, que devem se preparar tão somente
para as chamadas “profissões do novo século”. Nas palavras de Frigotto (2016),
trata-se de uma reforma “que legaliza o apartheid social na educação no Brasil”.
O objetivo do artigo consiste na análise da implantação da reforma do ensino
médio, com ênfase na relação trabalho e educação, na rede estadual de São Paulo,
a maior rede pública do país5e a primeira rede de ensino a adotar os parâmetros da
referida reforma por meio do programa Inova Educação, em maio de 2019. O
programa propõe uma nova matriz curricular para o ensino fundamental II e o ensino
médio, com inserção de três disciplinas: Projeto de Vida, Tecnologia e Eletivas, como
parte diversificada; ampliação do horário de permanência de estudantes nas escolas
para 5 horas e 15 minutos; sete aulas por dia; ajuste do tempo de aula de 50 para 45
minutos e previsão de atividades de formação para educadores (São Paulo, 2019). A
partir de 2021, os componentes do programa Inova Educação passam a compor
todos os itinerários formativos do Novo Ensino Médio paulista.
Para realizar esta discussão, no estudo, intercala-se a fonte documental do
programa, em textos escritos e discursos da Secretaria de Estado da Educação de
São Paulo (Seduc) e de agentes privados, com dados relativos à força de trabalho
no país, entre 2012-2019, e da demanda educacional na rede estadual paulista,
entre 2007-2019. Agregam-se à pesquisa realizada conteúdos de entrevistas,6feitas
em 2021, com quatro diretores e um professor coordenador, membros do Grupo
Escola Pública e Democracia (GEPUD), grupo que reúne comunidades de 15
escolas da rede paulista.7
7O GEPUD foi criado em 2019, reúne profissionais da educação básica e superior pública (no caso da
superior também de instituições privadas) do estado de São Paulo para discutir a relação entre
políticas educacionais e práticas escolares. Tem se dedicado ao estudo das propostas educativas da
rede estadual paulista e à discussão de sua implementação na prática escolar, orientado pelos
princípios constitucionais do direito à educação, da gestão democrática da escola e da qualidade
socialmente referenciada da educação pública. Informações sobre o GEPUD estão disponíveis em
<gepud.com.br>. Acesso em 15 out. 2021. O processo de resistências e apropriações do GEPUD é
retratado em: Alencar; Perrella (2022); e Alencar; Moutinho Jr; Jacomini (2023).
6Tomou-se cuidado em relação a procedimentos de ética em pesquisa, com termos de anuência das
escolas e autorização para gravação das entrevistas. Os nomes das pessoas entrevistadas e das
escolas são fictícios. Projeto aprovado no Comitê de Ética em Pesquisa: 45796621.1.0000.5421.
5A rede estadual paulista atendia, em 2019, um total de 3.656.265 de estudantes nas diferentes
etapas e modalidades de ensino, matriculados em 5.681 escolas e contava com 146.464 docentes
atuando como efetivos, por contratações temporárias ou pela Consolidação das Leis do Trabalho
(INEP, 2020). A magnitude do atendimento na rede sugere que os programas e projetos
implementados pela Seduc têm potencialidade de influenciar tanto municípios paulistas, como demais
redes estaduais e municipais em âmbito nacional.
3
Na tentativa de expor este trabalho e as ideias aqui apresentadas de uma
maneira clara, o artigo é dividido em três partes, além desta introdução e das
considerações finais. Na primeira parte, o programa Inova Educação e o Novo
Ensino Médio paulista são apresentados e discutidos com base em elementos
considerados centrais na sua proposta político-pedagógica: a perspectiva de
formação para o trabalho e a sustentação da dualidade do ensino, presentes no
cerne do programa e da reforma, e que conferem uma marca social para a escola
pública. Na segunda parte, contextualizamos que tais medidas se relacionam com
mudanças e continuidades na vida da classe subalterna no que diz respeito à
informalidade no trabalho, o convívio com a política econômica de austeridade e a
negação de direitos. Por fim, na terceira parte, as entrevistas realizadas com
educadores da rede paulista, a partir de sua práxis junto às comunidades de
estudantes, embasam o argumento de que o sentido da reforma educacional visa ao
preparo da juventude para o trabalho subalterno, informal e precário.
Dualidade do ensino e formação para o trabalho: onde está a inovação?
As reformas educacionais ao longo do século XX evidenciaram a dualidade
educacional amplamente tratada na literatura. Embora este conceito tenha
limitações explicativas para situar as desigualdades e a diversidade da juventude no
Brasil, a atual reforma do ensino médio traz à tona a validação desta conceituação
para tratar de um processo de longo prazo de democratização da escola pública.
Do ponto de vista analítico, abordar a dualidade do ensino “permite fazer uma
primeira incursão sobre a ideia de trajetórias e possibilidades formativas que passam
a compor o modo como se organiza o sistema escolar no país” (Silva; Krawczyk;
Calçada, 2023, p. 3) e consideramos profícuo e atual para a caracterização e a
crítica do apartheid educacional no estudo da implantação da reforma do ensino
médio paulista, por meio do programa Inova Educação.
“No papel”, o cerne da proposta para o Inova Educação é anunciado
ressaltando mudanças sistêmicas para o conjunto das escolas da rede estadual
paulista, nos anos finais do Ensino Fundamental e nos três anos de Ensino Médio, e
conteúdos úteis previstos para o futuro, ligados ao marco temporal do “século XXI”:
4
O Inova Educação tem como objetivo tornar a escola mais conectada com
os sonhos e as necessidades dos adolescentes e jovens e os formar para
as competências do Século 21. Todos estudantes do ensino fundamental
anos finais e do ensino médio terão componentes de Projeto de Vida,
Tecnologia e Eletivas. As Eletivas serão escolhidas pelos estudantes,
conforme as possibilidades oferecidas pela escola. O novo programa coloca
os estudantes no centro do processo de aprendizagem, promovendo seu
engajamento e protagonismo. […] As mudanças têm como objetivo trazer
mais sentido para a escola e engajar os estudantes, promovendo a
aprendizagem de todos por meio de uma educação integral que trabalhe as
competências para o Século 21. A proposta é garantir que o estudante se
desenvolva plenamente, tanto a partir de habilidades cognitivas quanto
socioemocionais. O programa é uma forma de ampliar para toda a rede as
experiências exitosas do Programa Ensino Integral (PEI) e do Escola de
Tempo Integral (ETI) e as práticas bem-sucedidas implementadas por
diversas escolas da rede em período parcial (São Paulo, 2019, p. 19-20).
A evidente intencionalidade de mudar a situação presente das escolas está
ligada tanto a adequar a formação de estudantes e o trabalho pedagógico em
consonância com a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e ao Currículo
Paulista, “a fim de incorporar componentes curriculares inovadores e propor
estratégias para a incorporação de práticas pedagógicas mais inovadoras e a
melhoria do clima escolar” (idem, p. 4) e à obtenção das “metas para o Ideb Índice
de Desenvolvimento da Educação Básica” (ibidem, p. 16).
Como explicitado no excerto acima, o Inova Educação amplia para a rede
estadual o que havia sido experimentado em menor escala nos programas que
implantaram o tempo integral na escola, como PEI e ETI. O ETI, implantado em
2006 consiste em atividades em contraturno voltadas para desenvolver
protagonismo juvenil por meio da elaboração de projetos autorais para buscar
soluções de problemas na escola e na comunidade e conteúdos de Matemática e
leitura e produção de textos. o PEI propõe uma gestão do sistema de ensino
focado em resultados de desempenho de estudantes em avaliações externas,
redesenhando a gestão, o currículo e a concepção de educação, além de incidir
sobre a remuneração docente prevendo contratos de dedicação exclusiva, por meio
do PEI implantaram-se tanto a diversificação curricular, com disciplinas eletivas
moldadas sob as competências socioemocionais, bem como instrumentos de
funcionamento tipicamente gerenciais como Avaliação 360º.8
8A Avaliação 360º “envolve todos os que participam diretamente do processo educativo. Assim, cada
professor é avaliado pelos colegas, pelo diretor e pelos professores coordenadores, pelos alunos,
5
Com o lema “Transformação hoje, inspiração amanhã” a pauta principal do
programa se auto anuncia como arrojada. Mas sua adaptação a medidas
existentes, sobretudo em relação ao controle por meio da política curricular e de
índice e metas, amplamente criticadas, exibem sua função conservadora de
padronização da educação escolar complementada com elementos de flexibilização
curricular.
Tal elemento se confirma com a manutenção de programas e projetos
anteriores que se justapõem, desde 1995, quando o Governo do Estado de São
Paulo é encabeçado pelo Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB). Como a
política de avaliação externa, o Sistema de Avaliação do Rendimento Escolar de São
Paulo (Saresp), que em 2009 foi associado a bônus de remuneração por resultados
para as equipes de educadores das escolas que apresentassem mudanças no
resultado do Índice de Desenvolvimento da Educação de São Paulo (Idesp). Bem
como o próprio programa São Paulo Faz Escola, de 2007, que consiste num
currículo centralizado distribuído em materiais hiperestruturados, denominados pela
Seduc de Cadernos do Aluno e pelas comunidades das escolas de “apostila”,
denotando seu caráter fortemente dirigido com sequências de aulas prontas
(Perrella; Alencar, 2022). Essas medidas continuam na rede estadual paulista,
coexistindo com o Inova Educação.9
A respeito de certa complementaridade desta padronização, identifica-se uma
dimensão de flexibilização na proposta do programa Inova Educação que consiste
nas disciplinas Eletivas, planejadas por docentes e que devem ser expostas no
âmbito de cada escola para a escolha de estudantes, como um “cardápio”, no que a
Seduc propôs que se denominasse “Feirão das Eletivas” (São Paulo, 2019, p. 24-5).
Ao modo da lógica do serviço público atendendo clientes, as disciplinas devem ser
executadas somente se os conteúdos forem do desejo do estudante em cursá-las.
Nos materiais da Seduc, os conteúdos propostos para as Eletivas indicam que
9A complexidade e as contradições da trajetória da política educacional paulista, em seus vários
programas e projetos, durante os governos do PSDB em São Paulo, são analisadas em Jacomini &
Stoco (2022).
pelo supervisor de ensino e pelo professor coordenador do núcleo pedagógico”. [...] “Desenvolvido no
mundo empresarial, esse modelo de avaliação é apresentado como um importante instrumento de
aperfeiçoamento profissional, uma vez que possibilita uma avaliação a partir de diferentes sujeitos e
variáveis” (Girotto; Jacomini, 2019, p. 94-98).
6
sejam trabalhadas noções como empreendedorismo, educação financeira,
competências socioemocionais, liderança e protagonismo juvenil.
Essas determinações, nos termos do programa Inova Educação, tratam-se de
um “modelo pedagógico” que modifica os tempos e os currículos do ensino
fundamental e médio. A despeito de as alterações previstas para o nível
fundamental não serem de menor importância, é no nível médio que elas ocorrem de
modo mais dramático.
À medida que foram implantadas, na rede estadual paulista, as adequações
estabelecidas pela Reforma do ensino médio, Lei n. 13.415/2017, as disciplinas do
programa Inova Educação vieram a integrar todos os itinerários formativos. Mas no
âmbito do fatiamento do conhecimento previsto no teor da referida Reforma,
segundo a qual uma parte do currículo escolar deve cumprir a BNCC, com
disciplinas cujos conteúdos são comumente ensinados e denominados de
“formação geral básica” com o invólucro de “objetivos e direitos de aprendizagem”. E
outra parte do currículo, composta por itinerários formativos de áreas do
conhecimento escolhidas pelo estudante segundo seus interesses de inserção no
trabalho (Brasil, 2017).
Em São Paulo, os itinerários formativos foram divididos: uma parte da carga
horária de estudantes é destinada para disciplinas do Inova Educação e outra parte
da carga horária é dedicada aos Aprofundamentos curriculares das áreas do
conhecimento, no qual a educação profissional compõe um desses
aprofundamentos.
Durante o período da pandemia de Covid-19, em que as escolas ainda
estavam parcialmente esvaziadas em função das medidas de isolamento físico, em
junho de 2021, a proposta do chamado “novo ensino médio” foi assim apresentada
no site da Seduc:10
A implementação dos itinerários formativos nas escolas estaduais passa
pelos três componentes curriculares propostos pelo Inova Educação
(Projeto de Vida, Eletivas, Tecnologia e Inovação) e pelo aprofundamento
curricular apenas na segunda e terceira séries. Este item é composto por
quatro opções nas áreas de conhecimento (Linguagens, Matemática,
Ciências Humanas e Ciências da Natureza) e seis opções de áreas
integradas (Linguagens e Matemática, Linguagens e Ciências Humanas,
10Disponível em <educacao.sp.gov.br...> acesso em 15 jul. 2021.
7
Linguagens e Ciências da Natureza, Matemática e Ciências Humanas,
Matemática e Ciências da Natureza, além de Ciências Humanas e Ciências
da Natureza). O estudante ainda poderá optar pela formação técnica e
profissional.
“Ação humana e suas consequências”, “Tradições e heranças culturais”, “A
tecnologia nas narrativas das relações sociais”, “Compromissos com o
Patrimônio cultural e ambiental”, “Como se tornar um resolvedor de
problemas?” e “Com quantas estratégias chegamos a uma solução?” são
alguns exemplos de aprofundamento, que variam conforme as áreas de
conhecimento e áreas integradas definidas (São Paulo, 2021, s/p).
Os itinerários formativos no ensino médio têm paulatina redução da carga
horária de formação geral comum ao longo dos três anos, como prossegue a Seduc:
Na proposta, a divisão de 1.050 horas ocorre desta forma:
série: 900 horas de formação geral básica e 150 horas para os itinerários
formativos (Inova Educação)
série: 600 horas de formação geral básica e 450 horas de itinerários
formativos (300 horas de aprofundamento curricular + 150 horas do Inova
Educação)
série: 300 horas de formação geral básica e 750 horas de itinerários
formativos (600 horas de aprofundamento curricular + 150 horas do Inova
Educação) (São Paulo, idem).
O argumento utilizado pela equipe da Seduc é equivalente ao utilizado para
justificar a implantação da reforma do ensino médio. Nas palavras do então
secretário da educação paulista Rossieli Soares: “dar outras opções para os nossos
estudantes, para que eles possam querer aprender. […] É através da competência
socioemocional, da motivação, que vamos conseguir engajar mais estudantes” (ibid).
E mesmo uma leitura mais estereotipada de que rigidez e não
flexibilidade nos currículos e conhecimentos componentes da formação de nível
médio, como disse o chefe da Coordenadoria Pedagógica da Seduc, com histórico
de empreendedor, Caetano Siqueira: “Desejamos um Ensino Médio menos rígido e
mais flexível, voltado ao projeto de vida individual e que contribua ainda mais no
caminho escolhido para a sequência da vida” (ibid).
Qual caminho é o escolhido pelo estudante da escola pública? Numa outra
sessão de apresentação das reformas na educação paulista, com as quais se
relaciona o programa Inova Educação, o ex-secretário estadual de educação de São
Paulo Rossieli Soares é explícito:
[…] Ensino médio não é preparatório para vestibular, ele é parte disso para
aqueles que têm esse projeto de vida. Mas ele precisa ser um auxílio para a
8
realização dos sonhos, para a ida para o mercado de trabalho. Nós não
podemos simplificar, somente para aqueles que querem ter o caminho para
o vestibular que todos têm que seguir exatamente esta mesma trilha
(Anúncio sobre o Ensino Médio de São Paulo, 2021).
Assim, a mudança educacional na rede paulista é sustentada pela
compreensão do ingresso no mundo do trabalho como um sonho e a continuidade
dos estudos na universidade uma atividade para poucos.
Embora pautado pelo protagonismo juvenil nas escolhas, a oferta dos
itinerários pelas escolas dependeu, centralmente, das condições materiais das redes
de ensino, mais que das aspirações individuais de estudantes para escolherem os
itinerários. Como demonstram Cássio e Goulart (2022, p. 528), escolas cujas
comunidades possuíam nível socioeconômico mais elevado tiveram maior liberdade
de escolha: “a implementação de uma reforma curricular de grandes proporções
sem uma alteração substantiva das condições materiais das escolas resulta no
reforço de desigualdades escolares que existem como desigualdades sociais”.
O Inova Educação, por seu turno, visa incluir jovens no mundo do trabalho por
meio das competências do século XXI: “As competências para o Século 21 estão
relacionadas ao sucesso na vida e a uma inserção mais qualificada em um mercado
de trabalho, o qual está em constante mudança em função das transformações
tecnológicas” (São Paulo, 2019, p. 22). O programa é ofertado sob aparente aposta
no reforço do individualismo e do mérito para atingir o sucesso de inserção no
mercado de trabalho.
A combinação do discurso das competências e da flexibilidade como
argumento para justificar o hiperfatiamento do conhecimento em itinerários
formativos reproduz a limitação prescritiva do currículo e “não permite o aprendizado
e o exercício da reflexão com a profundidade que a formação cultural exige” (Silva,
2018, p. 12).
A escola de formação humanista e científica tem seu currículo empobrecido,
são esvaziadas suas atribuições de socialização do conhecimento e passa a
assumir, sem mediação, a finalidade de formar tão somente para o trabalho. Mas,
qual trabalho?
9
Trabalho e educação: da austeridade à informalidade contínua
As propostas relativas ao cerne do programa Inova Educação obedecem a um
percurso lógico de criação de um novo tipo de jovem com as “competências
relevantes para a vida no século XXI” que repetem o seguinte “mantra”:
flexibilidade na escola para oferta de disciplinas do interesse do estudante,
desenvolver tomada de decisão, garra, determinação, perseverança,
esforço e resiliência, autoconhecimento, autocuidado, autoestima,
autoconfiança e autoeficácia (SÃO PAULO, 2019, p. 10).
Elementos todos que compõem o discurso comportamental para induzir a
legitimidade da política econômica de austeridade11 que, após a crise internacional
de 2008, voltou a ter destaque no debate econômico.
Com origem na filosofia moral, o termo austeridade foi assimilado por
economistas para exaltar o comportamento associado a rigor, disciplina, parcimônia
e também para repreensão de comportamentos dispendiosos, insaciáveis etc. Em
períodos anteriores, como das grandes guerras mundiais, também foi utilizado por
governos que buscavam legitimar o racionamento e a regulação do consumo privado
em favor da mobilização de recursos para a atuação na guerra. A intuição do
argumento é que, em tempos de crise, políticas fiscais restritivas podem ter efeito de
aumento do crescimento econômico (Rossi; Dweck; Arantes, 2018).
Nos contornos dos efeitos da contração fiscal, a austeridade pode ser definida
por seu instrumento, o ajuste fiscal em especial o corte de gastos governamentais,
e seus objetivos, gerar crescimento e promover equilíbrio das contas públicas
(Rossi; Dweck; Arantes, 2018).
No Brasil, é possível afirmar que a austeridade é uma política de longo prazo
que está aliada também aos pequenos ciclos econômicos de formação de mercado
de trabalho formal, em que coexistem distintos tempos históricos, mas que têm
predominância da informalidade: “se no polo dinâmico formalizado a luta do
11Cf. Mark Blyth (2020), nos países de subcapitalismo foi implantada uma versão do neoliberalismo
que punha a austeridade em primeiro lugar como política do dia, cortesia do consenso de
Washington, com medidas que foram reelaboradas por John Williamson. Em países da OCDE, até
1999, não se seguiam essas políticas em grau significativo. Foram instituições sediadas em
Washington, como FMI e Banco Mundial, que, de fato, adotaram completamente tais ideias e
buscaram testá-las no mundo inteiro, trataram de formular e aplicar para países da América Latina
políticas de austeridade durante um período de inflação crônica que se seguiu à crise da dívida da
década anterior.
10
‘trabalhador coletivo’ por direitos que depois se individualizam, na informalidade
vigora a luta de indivíduos cuja conquista se materializa coletivamente fora da
relação salarial e se espraia” (Secco, 2020b, s/p).
Com o fim da Nova República,12 que tem como marco o golpe que levou ao
impeachment de Dilma Rousseff, em 2016, no primeiro mês de governo, Michel
Temer apresentou a proposta de “Novo Regime Fiscal” que se converteu na Emenda
Constitucional n. 95/2016 que instituiu uma austeridade permanente, fazendo
retroceder 20 anos os poucos avanços do país em termos de consolidação dos
direitos sociais (Dweck; Silveira; Rossi, 2018).
Para Fagnani (2018), o período de 2015 a 2018 apresentou ameaças de
dissolução do breve e inédito ciclo de construção de uma cidadania no Brasil,
iniciado com a Constituição Federal de 1988 e que foi encoberto com o imperativo
do ajuste fiscal.
No bojo das recentes medidas de austeridade, a reforma trabalhista, Lei n.
13.467, de 13 de julho de 2017, sancionada por Temer, altera de modo significativo o
modo de ingresso no trabalho e direitos garantidos, mesmo anteriormente à
Constituição de 1988. Parte desse pacote de desmonte foi implantado com vistas a
alterar a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), sob o discurso hegemônico que
aborda a legislação como rígida e incompatível com a contemporaneidade cada vez
mais globalizada. Seria possível, com essa alteração, promover geração de
empregos, incrementar a produtividade e a competitividade com base na
flexibilização das normas das relações de trabalho (CESIT, 2017).
A política econômica de austeridade e a reforma trabalhista possuem
correspondência com a reforma do ensino médio, uma das primeiras ações no
campo educacional do governo Temer (2016-2018). Com a diminuição progressiva
dos recursos disponibilizados para as políticas sociais, todos os níveis de ensino
público são atingidos, sobretudo com a abertura para iniciativas de privatização “seja
por meio da criação de escolas charter (escolas públicas com gestão privada), seja,
o que tem se ampliado bastante, por meio da oferta de consultorias ou pela
participação em parcerias” (Krawczyk; Ferretti, 2017, p. 42).
12Caracterizamos o fim da Nova República em consonância com Secco (2020a).
11
No enfraquecimento do papel público do Estado na regulação e orientação
dos sistemas de ensino, agências multilaterais, ONGs e interesses e influências de
empresas constituem, separadamente ou em conjunto, alternativas de política para o
fracasso do Estado. E, assim, novas redes e comunidades de políticas propagam
determinados discursos e conhecimentos e ganham legitimidade e credibilidade.
Ball (2020) denomina este processo de privatização endógena que ocorre
através da política educacional, que confere um crescente e ativo papel de agentes
privados na formulação de políticas, no qual
cada vez mais essas empresas atuam como dispositivos de ligação,
“intérpretes” de políticas operando entre o Estado e as organizações do
setor público tornando as reformas sensatas e administráveis (Ball, 2020,
p. 157-158).
Nesta perspectiva, a escola se mantém pública, estudantes não pagam para
ter sua matrícula, o patrimônio segue estatal, mas o conteúdo da escola é, em
grande medida, advindo do privado.
Por meio de uma rede política denominada Movimento Inova, promovida pela
Seduc com vários agentes privados, que foram os think tanks da reforma
educacional, a difusão da agenda contrarreformista, com o programa Inova
Educação, alcançou amplitude na rede estadual paulista.
No segundo semestre de 2019 foi realizado um evento do Movimento Inova,
na Escola de Formação e Aperfeiçoamento dos Profissionais da Educação do
Estado de São Paulo “Paulo Renato Costa Souza” (Efape), com objetivo de
promover vivências dos três novos componentes curriculares do programa, contando
com a participação de estudantes e equipes das escolas, membros da Seduc, do
ex-governador do estado de São Paulo João Dória (PSDB) e de vários palestrantes
do setor privado,13 representantes das fundações empresariais que formularam o
Inova Educação e a reforma do ensino médio.
No Movimento Inova, os discursos se pautam pela inserção do léxico do
mercado, as formas “educativas” do setor corporativo com palestras motivacionais,
13 Dentre os agentes privados estavam: Ashoka Empreendedores Sociais, Fundação Telefônica,
Inspirare, Instituto Ayrton Senna (IAS), Instituto de Corresponsabilidade pela Educação, Mathema,
Microsoft, Mundo Maker, Palavra Aberta, PROA, Quebrando o Tabu, Rede Brasileira de
Aprendizagem Criativa, Reúna, Singularidades e Tríade Educacional.
12
teor de autoajuda, e defesa do empreendedorismo, da empresa como modelo
pedagógico e empobrecimento do currículo para propiciar, de modo antiético, a
denominada inovação educativa.
Haroldo Rocha, o ex-secretário executivo de educação de São Paulo,
apresentou a perspectiva da Seduc ao implantar o Inova Educação:14 “2 milhões de
estudantes terão uma escola totalmente diferente, mas o prédio vai ser o mesmo”.
Enfatiza-se um caráter pragmático de ensinar de acordo com os objetivos individuais
dos projetos de vida de estudantes com previsão de parceria com agentes
privados:
Estamos conversando com uma startup que é uma espécie de Linkedin para
estudantes, para todo mundo fazer seu projeto de vida e ir administrando
seu projeto de vida [...] e atuando na escola de acordo com seu projeto de
vida (Movimento Inova Palestra “Educação para o Século XXI, 2019).
Viviane Senna, do Instituto Ayrton Senna, confere à escola o papel de
treinamento flexível para o trabalho, caracterizando um momento diferenciado que
não é meramente uma evolução na história do capitalismo, de necessidade de
reformas escolares para o ajustamento da juventude a esse distinto período.
60% dos alunos que estão sentados hoje nas salas de aula, eles vão
trabalhar em empregos que não existem […]. Como você vai preparar esse
aluno para o emprego que você nem sabe que existe, que forma ele vai ter?
Não para preparar do mesmo jeito, concorda? Eles vão precisar de
habilidades como abertura, criatividade, flexibilidade, capacidade de se
adaptar a mudanças cada vez num volume maior (Movimento Inova
Palestra “Competências Socioemocionais”, 2019).
Na fala de Anna Penido, coordenadora do Instituto Inspirare, noções de
competência, liderança, flexibilidade, trabalho em grupo, capacidade de resolver
problemas, de comunicar-se etc são reiteradamente reforçadas como habilidades do
mundo do trabalho traduzidas para práticas escolares, utilizando-se da BNCC como
validação de uma formação supostamente integral para a atuação no mercado.
A formação para o trabalho hoje demanda mais competências humanas do
que simplesmente a operação de apertar botão, de apertar parafuso. A
gente precisa formar profissionais, não formar necessariamente um técnico
14 Em junho de 2021 Haroldo Rocha abandonou o cargo de secretário-executivo de educação
de São Paulo para assumir função de líder da organização privada denominada Profissão Docente,
cujos mantenedores são Fundação Lemann, Itaú Social, Instituto Natura, Instituto Península e
Instituto Unibanco. <profissaodocente.org.br> Acesso em 24 nov. 2022.
13
em alguma coisa específica [...] (Movimento Inova - Palestra “Adolescências
e Juventude”, 2019).
A fala de Débora Garofalo, assessora de tecnologia da Seduc, no referido
evento, enfatiza o trabalho com tecnologia associado à criatividade, reiterando que
não é necessário aplicar recursos nas escolas. Aponta-se que a mudança passa por
conceber o estudante como ponto central, mas prescindindo de condições
adequadas de estudo e trabalho.
Trazer uma aprendizagem diferenciada, que envolva criatividade, que
envolva inovação, que envolva paixão porque ser criativo também envolve
isso, envolver amor. […] Disponibilizar altos recursos tecnológicos e
ambientes virtuais de aprendizagem não garantem aos alunos
aprendizagem efetiva. […] Para ensinar robótica a gente não precisa ter
altos recursos, mas a gente precisa ter muita vontade. (Movimento Inova
Palestra “Por uma educação criativa a todos”, 2019)
O Instituto Proa é um dos agentes que incidiu diretamente na disciplina
eletiva, propondo uma intersecção com a disciplina projeto de vida. Em sua
proposta, importa que a escola ensine estudantes a fazerem seu currículo e os
aproximem, o máximo possível, da empresa.
Primeiro começar com eletivas voltadas para o comportamental […] que
possam proporcionar essa entrada no mercado de trabalho. […] simular
entrevistas [...] simulações de dinâmicas. […] O jovem até consegue ser
empregado, mas muitas vezes não consegue se manter. Então a gente
investe fortemente na questão comportamental. […] Uma outra experiência
[...] é fazer parcerias com empresas [...] propor uma empresa que receba
vocês. […] Eles [os estudantes] vivenciarem uma empresa. (Movimento
Inova Palestra “Eletivas e sua ligação com o Projeto de Vida”, 2019).
Nesse ajustamento que reside a intencionalidade rebaixada e instrumental da
competência de que o jovem precisa, nas palavras das palestrantes do instituto:
“como atender telefone”; “como fechar um caixa” (Movimento Inova Palestra
“Eletivas e sua ligação com o Projeto de Vida”, 2019). Com o entrelaçamento das
disciplinas Eletivas e Projeto de vida, a primeira ação é o ajustamento
comportamental, como exposto, que tenha a subordinação do trabalho educativo
à empresa. O currículo escolar deve ser veículo de uma parte das experiências do
ambiente empresarial mais competitivo: a seleção de novos empregados.
Assim, da competição por uma vaga de emprego ao ajustamento
comportamental do jovem, a escola pública deve passar a funcionar exatamente
como os agentes privados recomendam, sujeitar as propostas pedagógicas ao que o
mercado julga relevante para selecionar alguns e excluir muitos.
14
Se o propósito é inserir o jovem no trabalho, envolvendo-o na proposta de
empreendedorismo, a que tipo de trabalho se induz? Vejamos, então, alguns dados
da admissão no mundo do trabalho por setor de atividade. Conforme a Tabela 1,
predominância do setor de serviços, seguido pelo comércio, indústria, agricultura,
construção e administração pública. Na Tabela 2 constam informações de que
demanda por jovens na força de trabalho, ainda que num contexto de
desindustrialização.
Tabela 1: Pessoas ocupadas por setor de atividade, Brasil, 2012-2019
Ano
Indústria
Construção
Comércio
Administração
pública
Serviços
Mal definidas
2012
12.840.330
7.041.963
16.361.987
5.651.481
35.458.360
38.280
2013
12.883.482
7.573.246
16.766.789
5.814.230
36.010.211
7.132
2014
12.937.465
8.001.145
17.389.180
5.802.825
37.082.006
18.769
2015
13.185.619
7.607.102
17.350.248
5.275.042
38.666.314
6.813
2016
11.678.786
7.522.376
17.363.981
5.071.109
39.211.032
9.334
2017
11.342.470
6.809.468
17.142.300
4.919.412
39.745.052
14.109
2018
11.584.438
6.536.846
17.415.981
4.998.167
41.267.376
54.048
2019
11.667.136
6.518.284
17.542.238
5.038.573
42.612.055
62.867
Fonte: Elaboração própria com base em dados da PNAD Contínua/IPEA (1º trimestre).
Tabela 2: Pessoas na força de trabalho por faixa etária, Brasil, 2012-2019
Ano
14 a 24 anos
25 a 59 anos
60 anos ou mais
2012
19.134.021
70.434.308
5.622.966
2013
18.746.029
72.079.971
5.876.375
2014
18.129.173
73.657.836
5.996.304
2015
17.892.434
75.118.274
6.427.413
2016
18.064.788
76.500.095
6.673.782
2017
18.375.667
77.512.210
6.796.376
2018
18.394.588
78.165.690
7.346.257
2019
18.135.457
79.202.009
7.912.376
Fonte: Elaboração própria com base em dados da PNAD Contínua/IPEA (1º trimestre).
Alguns dados específicos da faixa etária de estudantes da rede estadual
paulista fazem-nos crer que estes jovens que ocupam uma cadeira na sala de aula
da escola pública também ocupam alguma vaga na força de trabalho, lutando por
sua sobrevivência, pois a maioria de estudantes está na faixa etária compreendida
entre 15 e 17 anos de idade.
15
Gráfico 1: Faixas etárias de estudantes da rede estadual paulista, 2007-2019
Fonte: Censo Escolar. Microdados organizados no Laboratório de Dados Educacionais/UFPR
<dadoseducacionais.c3sl.ufpr.br/#/indicadores/matriculas>
As situações de sobreposição entre trabalho e estudo podem ocorrer em
distintos contextos de trajetórias de vida de jovens. Embora algumas décadas
tenha se estendido a permanência de parcela significativa da juventude na escola
brasileira, estudar e trabalhar não se configuram como etapas sucessivas, mas
concomitantes e tal sobreposição pode significar experiências muito diversas
(Abramo; Venturi; Corrochano, 2020).
Com a proposição do empreendedorismo, como parte dos conteúdos
estruturantes do Inova Educação, o tema do trabalho da juventude adquire uma
dimensão mais explícita que diz respeito à difusão de uma cultura empreendedora
que busca “moldar um determinado tipo de personalidade, em tese ajustada ao
espírito do capitalismo: concorrencial, individualista, focado na responsabilização
das pessoas” (Tommasi; Corrochano, 2020, p. 354).
Deste modo, deparamo-nos com um novo contexto de processos de criação e
de transformação dos tipos de ensino que identificam articulação entre mudanças
sociais e mudanças educacionais, como designado por Celso Beisiegel (2009), na
qual os serviços de educação encontram as determinações de sua evolução
circunscritas num processo global de mudanças sociais.
Por sua multidimensionalidade, o processo educativo pode ser investigado
sob diversificadas perspectivas e ângulos diferentes: do ponto de vista estritamente
16
pedagógico, de suas repercussões na economia, dos métodos de ensino.
Concordando com Beisiegel (2009, p. 63): “é no campo da política que se
esclarecem as suas determinações mais significativas”, porque os vários
movimentos de educação “só ganham pleno sentido no âmbito das ideologias em
que se exprimem as orientações dos grupos no poder”.
A contextualização com as recentes modificações do ciclo econômico
corroboram a apreensão das relações da reforma na educação com dimensões
econômicas, ideológicas e sociais como parte de uma luta política mais ampla.
Preparo da juventude para o trabalho subalterno
O programa Inova Educação implica uma adequação do conteúdo da escola
às condições econômicas e sociais da sociedade capitalista e da política neoliberal.
Visa à preparação para o trabalho subalterno, acentuando a dualidade do ensino e
as dificuldades de atuação das classes trabalhadoras, na situação de
hiperexploração e subalternidade, visto que as condições delas são “politicamente
mais restritivas do que as leis de necessidade histórica que dirigem e condicionam
as iniciativas das classes dominantes” (Gramsci, 2014, p. 2286, Q 25 § 4).
Disciplinas como Empreendedorismo, Educação Financeira e Economia
Criativa, exemplos de disciplinas eletivas do Programa, tornaram-se eixos da política
educacional paulista. Elas forjam a ideia de sucesso, mas, na essência,
constituem-se em um dos mecanismos da classe dirigente/dominante, por meio dos
seus aparelhos de hegemonia, de produzir um consenso em torno de uma formação
direcionada a conhecimentos limitados e voltados ao saber-fazer. Em detrimento da
apropriação das condições em que se este “fazer”.
Embora o vínculo com trabalho se explicite na implantação do programa, uma
das medidas organizativas previstas no seu cerne é o reajuste da duração das aulas
de 50 para 45 minutos. A inclusão de mais uma aula por dia, resultando em 15
minutos a mais de permanência do estudante na escola.
Para o estudante trabalhador, esta medida foi um problema. Conforme os
relatos dos educadores, o aumento de horário de permanência nas escolas foi feito
desconsiderando a situação da dupla jornada do estudante trabalhador.
17
Não deu tempo pra perceber, mas eu tenho certeza que iria chover pedido
pra sair mais cedo, assim, vira e mexe os pais vão lá, querem autorização
pro filho sair mais cedo (Clarice, Diretora da EE Anis).
Uma boa parte dos estudantes do EM no ano começam a trabalhar, ou
fazem cursos à tarde. Nós da gestão tínhamos vários desafios para
implementar como foi. Primeiro problema: passar a ser sete aulas e
aumentar o tempo do aluno na escola em mais 15 minutos, passou a sair
12h35. Para que esses estudantes do ano do EM que tinham problema
em sair da escola 12h20 por conta da correria para ir para o seu curso ou ir
trabalhar para entrar 13h no serviço. Isso teve um impacto muito grande
(Adriana, Diretora da EE Íris).
[…] também mexeu com a vida dos alunos, 80% da nossa escola vêm de
bairros periféricos da cidade de Guarulhos. E por quê que eles vêm? A
nossa escola está localizada no centro expandido da cidade, eles têm o
interesse, é claro que eles se apegam a uma questão de uma nota melhor,
de ter estudado numa escola que tem um bom histórico na cidade, mas isso
ajuda a vida do aluno porque ele trabalha nas mediações, então ele estuda
de manhã na escola e, geralmente, ele pega esses 20 minutinhos finais e
ele pede pra ir embora, ele fala assim: “Diretor, eu preciso ir embora”, eu
falo: “Por quê que você vai embora meu filho?”, e ele fala o seguinte: “Olha,
eu trabalho na loja tal, eu faço estágio na loja tal, eu ajudo tal pessoa”,
então, enfim, ali também é um caminho pra ele chegar mais rapidamente ao
estágio ou ao trabalho. Então o aluno, antes, ele saía meio dia, agora ele
sai... Ele continua saindo meio dia, que ele perde 35 minutos de aula,
antes ele perdia um pedacinho da aula, agora ele perde praticamente a aula
inteira, e se você insistir muito e falar assim: “Não, você tem que optar pela
escola”, isso promove uma evasão escolar, porque entre o emprego e a
escola, esse aluno que necessita ajudar a complementar a renda na sua
casa, ele opta por esse emprego, ainda que esse emprego seja um
emprego, assim, que não lhe as garantias, que seja bem precário
(Itamar, Diretor da EE Íris).
Os contextos de vida e de empregos dos jovens estudantes informam a
condição de vulnerabilidade socioeconômica, e mesmo a dissociação do próprio
programa com a realidade dos jovens da rede estadual paulista. Se o Inova
Educação se ornamenta de uma roupagem de ensino flexível, adequado às
expectativas dos jovens, o que se manifesta é a dissimulação da coerção da
própria condição do trabalhador sob o capital: o permanente processo de
expropriação (da terra e de direitos que subjaz como condição fundamental
à produção capitalista de braços ‘livres’ é novamente naturalizado (Fontes,
2018, p. 219).
A implantação da proposta de preparo para o trabalho é revestida pelo tema
da disciplina Projeto de vida e pelas competências socioemocionais que levam as
comunidades a interpretarem de modo associado ao contexto de crise
socioeconômica, aumento de violência e uma indução à passividade dos jovens
diante das desigualdades.
18
E o Inova, eu acho que é essa coisa, ele virou band-aid pra Suzano,
band-aid para as complicações da escola […]. A sociedade está mudando
muito rapidamente, a gente não consegue acompanhar, as redes sociais
tiveram um papel fundamental nessa questão, o bolsonarismo com as
violências, eu acho que a gente até... A pandemia nos poupou isso, que a
gente não saberia como é que estariam nossos alunos, meninos e meninas,
assim, né? Com essa beligerância do bolsonarismo de pegar e matar, não
sei como é que seria no físico aqui (Nara, Diretora da EE Rosa).
Da resiliência, eu quero cair duro quando eu ouço resiliência: “Não, a gente
tem que ser resiliente”, eu: “Ah não, fale tudo menos resiliência gente, né?”,
que é esse espaço de conformação do sujeito, ah, aceita tudo, se adapta a
tudo, então veio o perrengue, mas se adapte, lide com isso, não é assim
gente, tem hora que... eu lembro do Paulo Freire de novo falando da justa
ira, tem hora que a gente tem que ficar com raiva, a Seduc não fala de raiva,
não fala de medo, não fala de angústia, é tudo happy, tudo êêê, todo mundo
feliz… (Geraldo, Professor coordenador da EE Dália).
[…] a grande lógica quando você reduz 3.000, que é o que tinha no currículo
da nossa escola, pra 1.800 na formação geral básica, eu vejo uma
gravidade tremenda, é diminuir o conhecimento dos alunos nos aspectos
científicos, é diminuir arte na escola, é diminuir o diálogo e implementar uma
proposta tarefeira, ainda que tenha tecnologia implementada, mas é uma
tecnologia reduzida a operar os aplicativos, ou seja, às demandas de
precariedade que o mercado exige desse novo cidadão, o eu
empreendedor, é o pensamento individual, tudo é eu na proposta, e ela
simplesmente não é uma proposta educacional, eu entendo que seja um
raciocínio, uma lógica para o novo modelo de sociedade que não garante
mais os direitos mínimos para as pessoas, então a escola, ela é espaço, ela
é palco pra isso (Itamar, Diretor da EE Íris).
As competências socioemocionais elas têm que ser UM [ênfase] elemento
para se pensar a educação, porque vivemos num mundo hoje em que o
socioemocional é importante. […] O centro da educação não tem que ser as
competências socioemocionais e a preparação para esse mundo uberizado.
[…] vêm esses projetos mirabolantes que invertem: porque nós
precisamos ter uma mão-de-obra flexibilizada para se encaixar em qualquer
trabalho que tiver, não é formação, é qualquer trabalho. […] Eu acho que é
um modelo de educação que não vai formar nossos estudantes para a
necessidade deles, vai formar nossos estudantes para uma necessidade do
capital. Você vai estar desempregado, mas você vai ser formado para ser
empreendedor se você quiser. e empreenda, assim você está bem na
vida (Adriana, Diretora da EE Tulipa).
Alguns pontos se destacam nos relatos acima: que o contexto de repressão
também possui reproduções no âmbito escolar. Como citado pela diretora Nara, o
caso de uma escola estadual na cidade de Suzano onde houve um atentado de
atiradores, resultando em estudantes e servidores mortos.15 Um fato como este
marca gerações. Não à toa que os temas da resiliência, da felicidade a qualquer
custo permeiam atividades promovidas pela Seduc sob a ideologia de competências
15O atentado ocorreu em escola estadual na cidade de Suzano que deixou 10 pessoas mortas,
incluindo os dois atiradores que eram ex-alunos. Disponível em <brasil.elpais.com > Acesso em 11
ago. 2021.
19
socioemocionais, elemento difundido pelos organismos econômicos vinculados ao
capital que induzem a formação de um consenso de que
assim como realizam-se investimentos nas capacidades cognitivas
buscando alcançar determinados resultados (o que é sustentado pela teoria
do capital humano), também os traços de personalidade poderiam ser alvo
de investimento e intervenção no sentido de buscar determinados
resultados econômicos e sociais (Accioly; Lamosa, 2021, p. 714).
Pelos depoimentos dos educadores, o programa não se configura como uma
abordagem somente pedagógica, mas como a inculcação de uma racionalidade a
serviço de uma alternativa política desse contexto de crise que mantenha a
exploração da força de trabalho.
Estudantes são observados pelos educadores como membros da
comunidade que precisam da escola para a socialização e para instruir seu acesso à
cultura e ao emprego. Mas também relatam as contradições a respeito da orientação
profissional para um trabalho futuro, quando, na realidade, os jovens são
economicamente ativos com empregos que, embora mal remunerados, contribuem
para garantir-lhes sustentação financeira e existência.
[…] é difícil você falar de um emprego melhor pra um adolescente que quer
ter as coisas, que precisa trabalhar, que precisa ajudar em casa e que vai
ver naquele emprego ali a solução dos problemas dele naquele momento,
que é o que importa, aquele momento, viver aquele momento (Clarice,
Diretora da EE Anis).
Eu falo porque a escola não é o conhecimento, a escola é o levantar
cedo pra ir se arrumar, é passar o batom, aqui na Terra Firme16 [bairro
periférico onde se localiza a EE Rosa] você viu, nós somos muito ruins de
localização, então os meninos passeiam na escola. […] Aqui ninguém
consegue sair pra ir ali porque não tem nada pra ir ali, o ônibus é muito
difícil, a condução é cara para os meninos, né? Eu tenho 200 meninos do
Bolsa Família, pensa, pobreza, extrema pobreza, de 870 [alunos]…. É muita
gente... [...] É vinte e cinco por cento da escola que mora mal, então a
escola é o evento, essa coisa (Nara, Diretora da EE Rosa).
Este elemento é importante porque as relações do jovem com a produção
social são mediadas pelo território da comunidade à qual o jovem pertence. Então
centro e periferia são tomados de forma orgânica, pelo fato da escola ser um polo
cultural fixo mas com pessoas em trânsito. Ali, o jovem possui parte da sua jornada
de interação com o mundo.
16Nome fictício atribuído ao bairro para evitar identificação da escola e dos sujeitos participantes da
pesquisa.
20
Se o próprio cerne do programa admite que é preciso preparar jovens para
profissões ainda inexistentes, por que a intenção de antecipar uma situação
vindoura? Ou os agentes privados e políticos formuladores do programa têm
previsão de futuro para os jovens da classe subalterna?
O quanto o Novo Ensino Médio vai corroborar com uma situação que
existe, você entende? Eles são a mão de obra barata, eles são os que
vão trabalhar [...] sendo mão de obra barata mesmo o resto da vida, e
quando a gente pensa empreendedorismo, o máximo que eles vão ter,
assim [...] é uma loja de capinha de celular, sabe? (Clarice, Diretora da EE
Anis).
O que nos interessa ressaltar é que a condição de classe determina a
inserção precoce na População Economicamente Ativa. Condiciona-se não somente
o nível de escolaridade, contudo, também, o seu significado, tanto para crianças,
jovens, adultos e suas famílias, em contextos nos quais escolhas e não escolhas
possuem sua dialética. Mas para as classes subalternas prepondera a opção pelo
trabalho (Ferretti, 1988).
No contexto de modificações superestruturais, jurídico-formais do Estado, no
que diz respeito ao desmonte de direitos trabalhistas, para Virgínia Fontes (2017)
estas se realizam por um duplo movimento de reduzir a intervenção na reprodução
da força de trabalho empregada, quanto de ampliar a contenção da massa crescente
de trabalhadores desempregados. Tendo-se como finalidade o preparo para a
subordinação direta ao capital, sem a mediação de deveres do patronato para com a
classe trabalhadora. Estas ações desembocam na educação uma forma mais
incisiva da noção de empreendedorismo que visa ao apoio resoluto ao empresariado
no disciplinamento da força de trabalho, para que seja naturalizado o desemprego
não como mais uma ameaça, mas como uma condição normal.
Permanentemente são postos em prática procedimentos empresariais e/ ou
políticos para bloquear a emergência das tensões geradas por essas
contradições. […] o estímulo ao empreendedorismo, como apagamento
jurídico fictício da relação real de subordinação do trabalho ao capital, que
se apresenta como igualdade entre… capitalistas, sendo um deles mero
“proprietário” de sua própria força de trabalho (Fontes, 2017, p. 50, grifos no
original).
O Inova Educação se associa à iniciativa, fomentada por think tanks e
apoiada pela Seduc, de contribuir com a aceleração da transformação da relação
empregatícia com direitos em trabalho isolado diretamente subordinado ao capital,
21
sem mediação contratual e desprovido de direitos. A intencionalidade tende pela
formação de um novo tipo humano resiliente, flexível, autônomo, decidido e capaz
de se reinventar para inserir-se num mundo do trabalho de contratos precários, de
informalidade, de extensão de horários e com uso intenso da tecnologia.
A introdução do léxico do empreendedorismo transforma a relação da
juventude e dos trabalhadores da educação com a atividade educativa de
apropriação da cultura humano-histórica para uma simplificação instrutiva de
adequação comportamental para ações laborais precárias.
Destaca-se o tipo de conformismo que reforça a condição de subalternidade
dos estudantes da rede paulista. O deslocamento do conteúdo para aprendizagem é
efetivado por meio da produção de um consenso do fracasso da escola e a solução
é apresentada pela privatização também dos processos pedagógicos.
Com o esvaziamento da teoria, a formação da juventude é voltada para
práticas e para “escolhas”, para eleição das disciplinas de acordo com a vocação,
para busca do emprego precário e conquista do “mercado de trabalho”,
demarcações utilizadas para propiciar naturalização das condições de
hiperexploração do trabalho precário e do individualismo como única alternativa de
melhoria de vida.
Considerações finais
Sob aparência de modernização, inovação e de “competências para o século
XXI”, a reforma do ensino médio levada a cabo na rede estadual paulista pretende
educar para a incorporação de tecnologias sem saber para que e de onde vieram;
para o controle ideológico e emocional característico da contenção social; para o
preparo do trabalho subalterno, aprisionando a juventude a um eterno presente, sem
refletir sobre o passado e o futuro; para a manutenção da dualidade do ensino, que
separa teoria e prática, diminuindo a apreensão e o aprofundamento dos
conhecimentos, gerando bloqueios para o acesso à formação na universidade.
Identificamos esta dissimulação do real no cerne do Inova Educação e do
Novo Ensino Médio como parte dos objetivos da classe dominante. De uma luta
política mais ampla, que tem seu contexto circunscrito pelo processo de desmonte
22
dos direitos trabalhistas que conduziam a uma certa cidadania salarial, de aumento
das desigualdades produzido pela política econômica de austeridade e pela
articulação entre neoliberais, conservadores e fascistas na agenda política,
ideológica e cultural do país.
O conjunto de retrocessos levado no período simultâneo ao de uma política
educacional que, apesar de possuir a inovação na sua denominação, indica um
ajustamento e conformismo da juventude à ideologia de competências
socioemocionais. Quando os problemas reais eram atravessados pelas
desigualdades sociais e a destruição da natureza. Trata-se de uma contrarreforma a
serviço do capital sob a égide do neoliberalismo.
Neste cenário de desmonte da educação pública nacional e de violenta
invasão do setor privado na educação, é imperativa a revogação do Novo Ensino
Médio, por este institucionalizar o apartheid social e educacional.
Apenas mudanças curriculares não elevam padrões de qualidade do ensino e
o desempenho estudantil. São necessários recursos públicos orçamentários para a
educação pública, valorização da carreira e da remuneração de educadores,
melhores condições de trabalho, escolas bem equipadas, suporte tecnológico, corpo
técnico estável e projeto pedagógico integrado e de formação humana de base.
Nessa direção, seria fundamental ampliar o ensino técnico integrado ao
ensino médio, uma conquista dos educadores democráticos e dos movimentos
populares e sindicais concretizada nos Institutos Federais de Educação, Ciência e
Tecnologia. Paralelamente, são necessárias políticas relativas às diferentes
dimensões da sociedade, pois a qualidade da escola e a aprendizagem de
estudantes relacionam-se às condições de vida da população, a seu direito ao
trabalho, ao emprego qualificado e bem pago, ao direito à saúde pública, à cultura.
O que, por sua vez, exige a reafirmação da democracia no país e a reconstituição
dos direitos sociais.
Não basta somente a igualdade de acesso, mas também a igualdade de
objetivos intelectuais fundamentais, o acesso universal ao domínio da cultura, da
ciência, do conhecimento para que a juventude, a classe trabalhadora e os povos
oprimidos possam de fato inovar, com a construção de uma nova hegemonia.
23
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trabalho para jovens no Brasil. Estudos Avançados, v. 34, p. 353-372, 2020.
26
V.22, 48 - 2024 (maio-agosto) ISSN: 1808-799 X
COLONIALISMO DIGITAL: POR UMA CRÍTICA HACKER-FANONIANA
[DEIVISON FAUSTINO E WALTER LIPPOLD]1
Valdir Damázio Júnior2
O presente texto consiste em uma resenha do livro Colonialismo digital: por
uma crítica hacker-fanoniana, publicado no ano de 2023 pela editora Boitempo e
escrito em parceria por Deivison Faustino (UNIFESP) e Walter Lippold (UFF).
2Doutorando em Educação pela Universidade Tuiuti do Paraná (UTP), Brasil. Mestre em Educação
Científica e Tecnológica pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Brasil. Professor do
Departamento de Matemática da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), Brasil.
Email: valdir.damazio@udesc.br. Lattes: http://lattes.cnpq.br/9013039169376531.
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0741-003X.
1Resenha recebida em 19/02/2024. Primeira Avaliação em 02/04/2024. Segunda Avaliação em
07/05/2024. Aprovado em 12/07/2024. Publicado em 07/08/2024.
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v22i48.62026.
1
Ao apresentarem suas reflexões sobre as transformações sociais
proporcionadas pelas novas tecnologias, Deivison e Lippold defendem que a análise
crítica da formação social não pode perder de vista algumas características
indissociáveis do desenvolvimento e manutenção do sistema capitalista, como o
colonialismo e o imperialismo. Diante disso, defendem a tese de que vivemos uma
etapa do desenvolvimento do capitalismo que pode ser denominada de colonialismo
digital.
Segundo os autores, “o colonialismo digital não é mera metáfora ou discurso
de poder, mas um dos traços objetivos do atual estágio de desenvolvimento do
modo de produção capitalista" (Deivison e Lippold, 2023. p. 84). As características
desse colonialismo digital podem ser expressas como: 1) uma nova partilha territorial
do globo, desta vez entre os monopólios da indústria da informação; 2) controle cada
vez mais eficiente da vida humana por processos extrativistas automatizados com o
objetivo de captar o maior número de dados e convertê-los em valor.
Na primeira parte do trabalho, intitulada O dilema das redes e a atualidade do
colonialismo, os autores procuram problematizar a existência de um suposto dilema
em torno da tecnologia no qual os avanços tecnológicos propiciam perigos à
humanidade, seja pelas transformações sociais que acarretam ou mesmo pela
possibilidade da tecnologia fugir ao controle humano. Apontam também que tratar a
relação entre sociedade e tecnologia sob esta perspectiva é possível se
assumirmos como verdadeiro o mito da neutralidade, que não considera a tecnologia
como “[...] fruto de relações sociais historicamente determinadas que a projetam de
acordo com certas finalidades políticas, culturais e econômicas” (Deivison e Lippold,
2023, p. 53).
Após apresentarem seus argumentos de que a tecnologia deve ser analisada
como um elemento do modo de produção capitalista, Deivison e Lippold ampliam
esta discussão alertando para a necessidade de aprofundar as relações atuais da
tecnologia com outras dimensões históricas indissociáveis do sistema capitalista,
como o colonialismo, o imperialismo e o racismo. Isto porque “[...] não capitalismo
sem colonialismo e, por sua vez, não colonialismo sem racismo, e ambos estão
interligados dialeticamente por uma relação de determinações reflexivas” (Deivison e
Lippold, 2023, p. 45). Se a tecnologia ocupa hoje um lugar de destaque na
2
reprodução do sistema capitalista, então ela inevitavelmente reproduz também
elementos do colonialismo e, consequentemente, do racismo.
Uma vez que as transformações técnicas possibilitadas pelas tecnologias
digitais no século XXI são indissociáveis do sistema de produção capitalista,
sustentado pela divisão de classes e expropriação de valor, os autores defendem
que o método dialético e a teoria marxista do valor ainda se constituem como um
fértil instrumento teórico-metodológico de análise. Esta tese é trabalhada na
segunda parte da obra, intitulada Colonialismo digital, acumulação primitiva de
dados e a psicopolítica, onde os autores se contrapõem a perspectivas teóricas que
defendem que a teoria do valor desenvolvida por Marx não daria mais conta de
explicar o atual estágio da sociedade profundamente transformada pelo
desenvolvimento técnico.
Muitas das tendências que advogam a desatualização da teoria marxista do
valor e da luta de classes, atribuem ao desenvolvimento informacional uma
possibilidade de valorização do tipo D-D’ (valorização do valor) que prescinda da
mediação produtiva. Isso porque os produtos informacionais, ou virtuais, poderiam
ser replicados e “produzidos” indefinidamente sem efetivamente passarem
repetidamente pelas relações de produção.
Segundo os autores, tais argumentos se sustentam pela crença na
imaterialidade das novas tecnologias digitais. Neste sentido, buscam destacar
justamente o aspecto material de qualquer tecnologia, mesmo dos mais sofisticados
algoritmos ou softwares, uma vez que todos são dependentes de tempo e espaço e,
portanto, frutos de trabalho e produção humanas que podem ser expropriadas pelo
capitalismo. Não é possível existir softwares sem hardwares, ou tecnologias como
internet, armazenamento nas nuvens etc, sem uma extensa rede de cabos de fibra
óptica e servidores. Da mesma forma, não é possível existir hardwares e a estrutura
material em que pretensamente o valor possa ser produzido fora da exploração do
trabalho, sem “[...] ouro, lítio, columbita, tantalita, coltan, cobalto, entre outras
matérias-primas frequentemente extraídas de forma violenta de terras indígenas ou
africanas pelo garimpo predatório (Deivison e Lippold, 2023, p. 100)”.
Os autores apontam ainda que vivemos um processo em que se opera uma
ofensiva (sem nenhum tipo de regulamentação) sobre espaços que antes não eram
expropriados, tais como os momentos de ócio, de lazer, a criatividade, a cognição, a
3
subjetividade etc. Todas essas esferas da vida humana passam a ser consideradas
possuidoras de dados valiosos a serem extraídos e convertidos em valor sob a
lógica exploratória capitalista. Estes dados servem inclusive para permitir tornar mais
produtivo o tempo de trabalho, preenchendo espaços até então vazios por serem
considerados momentos improdutivos.
Segundo as análises apresentadas na obra, estamos vivendo um processo de
acumulação primitiva de dados operado pelas grandes corporações de tecnologia
que, sob diversos aspectos, se assemelha à acumulação primitiva nas fases iniciais
do capitalismo. Essa acumulação primitiva de dados seria uma das faces do
colonialismo digital que se manifesta por um processo de apropriação de dados que
pode ser entendido como um conjunto de práticas estabelecidas pelas plataformas
com objetivo de extrair lucro da vivência digitalizada dos sujeitos. Essa prática é
possível “[...] a partir de uma lógica violenta e despótica que lembra a velha
acumulação primitiva (Deivison e Lippold, 2023, p. 110).
Independentemente da qualidade das transformações técnicas pelas quais
estamos passando, "[...] é na catastrófica direção da expropriação e da valorização
do valor que os algoritmos e as redes neurais têm se direcionado, ou melhor, têm
sido direcionados” (Deivison e Lippold, 2023, p. 129).
Na terceira parte do livro, intitulada A descolonização dos horizontes
tecnológicos, são apresentadas algumas conclusões e perspectivas de ação frente
ao cenário atual. Para isso discute-se as promessas da “ideologia californiana”, que
se manifesta pela crença de que as soluções tecnológicas desenvolvidas pelas
empresas do vale do silício serão capazes de resolver os problemas sociais de
nossa época. Os autores se opõem a esse solucionismo capitalista denunciando a
ingenuidade e racismos presentes nessas concepções como uma nova mission
civilizatrice, reinventando a visão do fardo do homem branco em ter que propagar a
civilização, agora como o fardo do nerd branco, cuja manifestação seria a
benevolência das big techs.
A crítica que os autores fazem ao solucionismo presente na ideologia
californiana do vale do silício os leva a questionar sobre possíveis formas de
superá-lo e de organizar os trabalhadores na luta contra as novas formas de
exploração. Para responder a essa questão e apontar para possíveis perspectivas
de ação, sugerem que poderíamos aprender com Franz Fanon e suas práticas
4
visando uma descolonização da tecnologia em plena revolução Argelina. Segundo
os autores, Fanon nos apresenta muitas contribuições para pensar a resistência ao
colonialismo digital, num processo em que “[...] não se trata de refutar ou adorar a
tecnologia, mas de colocar a ciência e a tecnologia a serviço da emancipação”
(Deivison e Lippold, 2023, p. 222).
Assim como Fanon propunha a apropriação anticolonial de muitas tecnologias
introduzidas pelos franceses na Argélia, é importante o engajamento de diferentes
atores e setores nos processos de descolonização dos meios de comunicação e na
criação de conteúdos que contribuam para esse processo. Em paralelo, faz-se
necessário o aprofundamento do debate “[...] sobre o papel das big techs nas formas
contemporâneas de exploração e dominação” (Deivison e Lippold, 2023, p. 232).
Como conclusão, destacam algumas iniciativas que realizam ações
contra-hegemônicas, como o movimento do software livre e o hacktivismo. Além
disso, alertam para a importância de ampliar ações que denunciem o caráter
destrutivo do modo de produção capitalista e a socialização dos saberes que
permitam uma apropriação anticolonial das tecnologias.
Deivison e Lippold apresentam em sua obra importantes contribuições para o
entendimento de como as tecnologias digitais se relacionam com o atual estágio do
modo de produção capitalista e as consequências dessa relação para a dinâmica da
luta de classes. Tais análises são tecidas sem deixar de considerar os aspectos
políticos e econômicos envolvidos na temática. É com base na análise material que
os autores desenvolvem seus argumentos e apresentam o colonialismo digital como
uma das características do atual modo de exploração capitalista.
Dada a relevância e a qualidade da discussão desenvolvida pelos autores, a
abra aqui resenhada apresenta-se como um importante material para pesquisadores
preocupados com os efeitos das tecnologias digitais na sociedade. O livro também é
altamente recomendado para todos que queiram compreender melhor o lugar
ocupado pelas tecnologias digitais no modo de produção capitalista no século XXI.
Referências
FAUSTINO, D; LIPPOLD, W. Colonialismo digital: por uma crítica
hacker-fanoniana. São Paulo, SP: Boitempo, 2023. E-book.
5
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TRABALHO, TECNOLOGIA E ATIVIDADE [DOMINGOS LEITE LIMA FILHO E
RAFAEL RODRIGO MUELLER, ORGS]1
Patrick Dutra2
Beatriz Almeida de Oliveira3
O livro Trabalho, Tecnologia, e Atividade, publicado em 2022, pela editora
Lutas Anticapital e organizado por Domingos Leite Lima Filho e Rafael Rodrigo
Mueller, busca compreender a tecnologia considerando o seu vínculo com a Teoria
3Mestranda em Educação Profissional e Tecnológica pelo Programa de Pós-Graduação em Educação
Profissional e Tecnológica (EPT) do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Santa
Catarina (IFSC), Santa Catarina - Brasil. E-mail: beatriz.dealmeida42@gmail.com
Lattes: https://lattes.cnpq.br/4734479693286967. ORCID: https://orcid.org/0009-0001-0562-2824.
2Mestrando em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da Universidade
do Extremo Sul Catarinense (UNESC), Santa Catarina - Brasil. E-mail: patrickdutra.his@unesc.net.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/3209513052921624. ORCID: https://orcid.org/0009-0007-9039-0282.
1Resenha recebida em 10/04/2024. Primeira avaliação em 29/04/2024. Segunda avaliação em
21/06/2024. Aprovada em 24/07/2024. Publicada em 07/08/2024.
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v22i48.62537
1
da Atividade, tendo em vista a relação entre a estrutura objetiva da atividade
humana e a estrutura subjetiva da consciência. A importância da abordagem
presente na obra está em verificar como a tecnologia, dimensão constituinte do ser
social, é considerada na relação entre uma atividade direcionada a um objetivo
específico, a partir da interação humana com o ambiente e sua transformação.
Quanto a sua estrutura, a obra reúne oito textos organizados em torno de três
categorias centrais, reforçando o caráter interdisciplinar e o olhar plural que envolve
a presente análise. Importante destacar que cada capítulo revela a interconexão
fundamental entre trabalho, tecnologia e atividade, expressando as relações de
sociabilidade caracterizadas pelo sistema capitalista e os reflexos desta forma social
sobre os indivíduos.
A primeira parte da obra aborda a categoria da atividade a partir de três textos
organizados. O primeiro texto, A tecnologia, ciência humana, foi escrito por
André-Georges Haudricourt e compreende a dimensão da tecnologia enquanto
ciência das atividades humanas. De acordo com o autor, para além da importância
da tecnologia na evolução humana, a evolução tecnológica não deve ser vista
isoladamente, mas sim em conjunto com as mudanças nas estruturas sociais e nos
modos de produção, sendo que as ferramentas e técnicas evoluem em resposta às
necessidades das sociedades ao lidar com essas mudanças e transformações.
Neste sentido, é essencial o desenvolvimento da compreensão da tecnologia como
ciência das atividades humanas para uma análise mais profunda do
desenvolvimento humano ao longo da história, possibilitando compreender que o
avanço técnico das sociedades se deve a fatores diversos.
O segundo texto da seção, A técnica e a tecnologia como processos
socioculturais segundo Haudricourt, foi escrito por Lucília Regina de Souza Machado
com o objetivo de recuperar as contribuições teóricas e metodológicas de
André-Georges Haudricourt para os estudos sobre a técnica e a tecnologia enquanto
processos socioculturais, permitindo um aprofundamento na compreensão do
desenvolvimento humano e suas relações sociais a partir de uma abordagem
interdisciplinar. Influenciado por pensadores de diversos campos, Haudricourt
apresenta importantes contribuições ao considerar a tecnologia como uma ciência
humana, destacando relação entre atividade humana, formação e evolução das
técnicas. Sua análise enfoca uma compreensão ampla das relações socioculturais e
2
do progresso humano, caracterizado pela herança da técnica por meio de processos
educacionais.
Na sequência temos o texto Automação e ser humano, do psicólogo russo
Aleksei Nikolaievitch Leontiev. O texto expõe a necessidade de compreensão da
atividade humana considerando o contexto de avanço da tecnologia e a
consequente automação das atividades produtivas, buscando entender os reflexos
das relações de produção na subjetividade dos sujeitos a partir da psicologização da
tecnologia como uma consequência direta do desenvolvimento da automação e da
relação homem-máquina ao longo da história. De acordo com Leontiev (2022),
mesmo o desenvolvimento tecnológico proporcionando o potencial de impulsionar as
capacidades humanas, os desafios da saturação tecnológica e a necessidade de
adaptação rápida ao progresso científico e tecnológico levaram a necessidade de
refletir sobre uma abordagem equilibrada que valorize os aspectos sociais e
promova uma adaptação inteligente às transformações em curso.
A segunda parte da obra analisa a categoria da Tecnologia a partir de dois
textos: o primeiro, Marx e o problema da tecnologia, escrito por György Márkus,
analisa o conceito de tecnologia em Marx a partir de seus manuscritos originais, em
específico, o texto-fragmento (cadernos 19-20) do manuscrito de 1861-1863, parte
integrante da coleção MEGA. Márkus indica que a tecnologia, para Marx, não é
entendida apenas como uma ferramenta de produção, mas como um elemento com
capacidade de moldar a mediação da relação humana com a natureza e as próprias
relações sociais. A partir da atividade técnica fundamental do trabalho constante em
todas as sociedades, Marx nos leva a repensar a noção de progresso e
desenvolvimento, não como algo isolado, mas como parte de um processo mais
amplo de transformação social. Essa visão nos desafia a pensar além dos avanços
tecnológicos em si e a considerar suas implicações sociais, econômicas e
ambientais.
O terceiro texto, Tecnologias de subjetivação e o debate sobre o conteúdo
material e a forma social da Tecnologia, escrito por Rafael Rodrigo Mueller, tem por
objetivo ampliar o debate teórico-conceitual acerca da tecnologia, estabelecendo
relação com elementos da Psicologia Histórico-cultural. A relação proposta entre
tecnologia, atividade humana e estrutura social expressa a influência que a atividade
produtiva estabelece no desenvolvimento técnico enquanto elemento constituinte do
3
ser social, refletindo as relações de poder deste processo. Ao propor os aspectos
subjetivos e psicológicos da tecnologia, temos o argumento de que a necessidade
de perpetuar o processo de valorização do valor estabelece um processo de
subjetivação, onde a tecnologia age como instrumento psicológico que media a
relação entre a subjetividade humana e a realidade concreta, moldando a
subjetivação dos indivíduos e contribuindo para a naturalização de relações sociais
fetichizadas.
A terceira parte da obra, centrada na categoria Trabalho, se estrutura a partir
de três textos organizados. O primeiro foi escrito por André Scholl de Almeida e Laís
Trajano Alves, intitulado Atividade sensível, trabalho, técnica e sociabilidade: o
conceito de ser humano em Álvaro Vieira Pinto. O objetivo do texto é analisar a
compreensão do ser do homem a partir de suas principais dimensões, tendo por
base a compreensão materialista histórico dialética.
A essência humana e a formação da consciência são moldadas pela relação
do ser humano com a natureza, constituída ao longo da existência a partir das
condições materiais e sociais, especialmente a partir de sua capacidade única de
produzir para suprir suas necessidades a partir do trabalho. Neste processo, a
consciência surge como um reflexo das operações de abstração requeridas pela
necessidade teleológicas determinadas pelo trabalho, onde as técnicas são
constituídas para tornar a ação humana mais eficiente. Portanto, a atividade
transformadora do trabalho não apenas modifica o mundo material, mas também
molda a própria essência humana e as relações sociais.
O segundo texto, Trabalho docente no Ensino Básico, técnico e tecnológico:
uma atividade e algumas reflexões, de Rosana de Fátima Silveira Jammal Padilha,
aborda a constituição da atividade docente no Ensino Básico, técnico e tecnológico,
a partir da análise da significação dessa docência, seu contexto de criação e
materialização. Neste sentido, são desenvolvidas reflexões e inflexões sobre a
constituição dessa atividade e os conflitos nela envolvidos, objetivando
problematizar o que acredita ser um olhar determinista sobre essa atividade e sua
significação.
O terceiro texto a compor a terceira seção do livro sobre trabalho, intitulado A
ciência enquanto conhecimento abstrato: um diálogo entre Sohn-Rethel e Lukács, foi
escrito por Domingos Leite Lima Filho e Dayani Cris de Aquino, com o objetivo de
4
analisar a ciência enquanto resultado do processo de separação das dimensões
intelectual e manual do trabalho originário, realizando uma síntese entre as ideias de
Lukács e Sonh-Rethel.
A separação entre produção e pensamento, ocasionada pelo surgimento das
classes sociais e pela automatização do conhecimento, levou à predominância do
conhecimento abstrato e valorativo no capitalismo, em detrimento do conhecimento
empírico. Historicamente, o trabalho representava a unidade entre o pensar e o
produzir, sendo fundamental para o desenvolvimento da consciência humana e da
capacidade de abstração, produtos históricos derivados da complexificação da
práxis social, que contribuíram para o surgimento do pensamento moderno.
O que se consta ao final da leitura da obra é que a organização dos textos
aqui presentes revela a coerência temática e a compreensão de totalidade entre as
categorias trabalho, tecnologia e atividade tanto em um sentido ontológico, quanto
no contexto capitalista neoliberal, proporcionando a compreensão da tecnologia não
apenas como um fenômeno isolado, mas sim como parte integrante da atividade
humana e das relações sociais. Os textos ressaltam a complexidade dessas
relações, destacando que o desenvolvimento tecnológico está ligado às mudanças
nas estruturas sociais, nos modos de produção e na evolução das técnicas ao longo
da história.
A abordagem materialista histórico-dialética revela uma perspectiva profunda
sobre como a tecnologia molda não apenas a realidade material, mas também a
subjetividade e as relações sociais em um contexto marcado pela dinâmica do modo
de produção capitalista. Portanto, a obra Trabalho, Tecnologia e Atividade, se
constitui como importante fonte de conhecimento estimulando uma reflexão crítica
sobre os impactos e desafios éticos da interação entre essas categorias,
contribuindo para o enriquecimento do debate acadêmico a partir de práticas
formativas mais contextualizadas e uma compreensão mais ampla das dinâmicas
sociais contemporâneas.
Referências
FILHO, D. L. L; MUELLER, R.l R. (org.). Trabalho, Tecnologia e Atividade. Marília:
Lutas Anticapital, 2022. 196 p.
5
V.22, 48 - 2024 (maio-agosto) ISSN: 1808-799 X
TECNOLOGIAS DIGITAIS E PLATAFORMIZAÇÃO DO TRABALHO E DA
EDUCAÇÃO: DESAFIOS PARA A CLASSE TRABALHADORA1
Adriana Barbosa da Silva2
Regis Argüelles3
3Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil. Professor da
Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF), Rio de Janeiro - Brasil.
E-mail: rarguelles@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/0075852341880711.
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6103-4659.
2Doutora em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Brasil. Professora da
Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF), Rio de Janeiro - Brasil.
E-mail: adrianabs@id.uff.br. Lattes: http://lattes.cnpq.br/485954375200545.
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7841-9993.
1Entrevista recebida em 24/05/2024. Aprovada pelos editores em 24/07/2024. Publicada em
07/08/2024. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v22i48.63098.
1
Entrevista com a Profa.Drª Adriana Mabel Fresquet
Doutora em Psicopedagogia pela Universidad Católica de Argentina e
Professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro
UFRJ / Brasil Rio de Janeiro. Coordena o Grupo CINEAD: Laboratório de
Educação, Cinema e Audiovisual, que desenvolve atividades de pesquisa, ensino e
extensão em colaboração com a Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de
Janeiro, escolas públicas municipais, estaduais e federais (da educação infantil ao
ensino médio) e os serviços de pediatria e geriatria do Hospital Universitário. É uma
das fundadoras da Rede KINO: Rede Latino-Americana de Educação, Cinema e
Audiovisual e participou da elaboração da Proposta de regulamentação da Lei do
Cinema nas Escolas (13006/14). Seu último livro organizado reflete e problematiza a
lei que estabelece a Política Nacional de Educação Digital (14533/23) e as
possibilidades do cinema nas escolas nesse novo contexto. Atualmente desenvolve
estudos de pós-doutorado na USP, pesquisando sobre Acervos Digitais no contexto
do Plano Nacional de Educação Digital e da Estratégia Nacional de Escolas
Conectadas, sob a supervisão da professora Giselle
Beiguelman.(adrianafresquet@gmail.com - cinead.org - cinenaescola.org)
Trabalho Necessário: Atualmente, existe um debate mundial sobre
a regulamentação e necessidade de controle social das tecnologias
digitais de comunicação e informação, internet, redes sociais e, mais
recentemente, da chamada inteligência artificial.
Como avalia a importância desta temática? Como estamos no Brasil
em relação a ela? Qual a importância da presença da comunidade
acadêmico-científica, da universidade pública e dos movimentos
sociais neste debate e movimento?
Adriana: É possível que em algum curto prazo de tempo olhemos para atrás
e identifiquemos o momento em que tudo mudou abruptamente. Fernanda Bruno
disse em 2023 ao Jornal Globo, que não podemos errar novamente como fizemos
com as redes sociais, que hoje é urgente que a IA siga protocolos de segurança
como existem quando se testa um medicamento ou algo delicado que pode colocar
em risco a vida de indivíduos ou comunidades.
2
Precisamos definir o que entendemos por Inteligência Artificial (IA). A IA,
curiosamente, não é inteligente e muito menos artificial. Trata-se de um ramo da
ciência da computação que se concentra em criar sistemas capazes de realizar
tarefas que, normalmente, exigiriam inteligência humana. Estas tarefas incluem
raciocínio, reconhecimento de padrões, aprendizado, planejamento, e interação
linguística. A IA é construída sobre disciplinas como matemática, estatística,
psicologia, neurociência e ciência cognitiva.
À medida que a tecnologia se desenvolve, o mesmo acontece com
as formas como a definimos. Não existe uma definição única ou fixa
de IA, mas um consenso comum de que as máquinas baseadas
em IA “são potencialmente capazes de imitar ou mesmo exceder as
habilidades cognitivas humanas, incluindo detecção, interação
linguística, raciocínio e análise, resolução de problemas e até
criatividade”. (Documento da UNESCO4, 2023, p. 7).
A Comissão Mundial da UNESCO sobre a Ética do Conhecimento Científico e
Tecnológico5(2019) elaborou um Estudo preliminar sobre a ética da inteligência
artificial.
Nesse documento, identificamos que uma maneira de entender a IA é
classificá-la por capacidades: Inteligência Artificial Estreita (ANI, sigla em inglês) que
faz parte do nosso dia a dia algumas décadas. A Inteligência Artificial Geral
(AGI, sigla em inglês). Esta segunda, ainda não totalmente realizada e mais teórica
neste estágio, seria capaz de entender e aprender qualquer tarefa intelectual que um
ser humano pode. Este tipo de IA teria consciência, sentidos e mente próprios.
Será? Causa arrepio esta definição!
E ainda, no campo da especulação, existirá também uma Superinteligência,
que se algum dia for alcançada, seria superior à inteligência humana em
praticamente todos os campos, incluindo raciocínio criativo, entendimento geral e
habilidades sociais. Este conceito é amplamente explorado e debatido dentro da
5Disponível em: https://unesdoc.unesco. org/ark:/48223/pf0000367823. Acesso em 25 abril de 2024.
4Chat GPT e Inteligência Artificial na educação superior. Guia de início rápido. Publicado em
2023 pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, 7, place de
Fontenoy, 75352 Paris 07 SP, França e o Instituto Internacional da UNESCO para a Educação
Superior na América Latina e no Caribe (IESALC), Edifício Asovincar, Avenida Los Chorros com Rua
Acueducto, Altos de Sebucán. Caracas, 1071, Venezuela. © UNESCO 2023. Código de Documento:
ED/HE/IESALC/IP/2023/12. Este trabalho está disponível em acesso aberto sob a licença
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(http://creativecommons.org/licenses/by-nc-sa/3.0/igo/). Ao utilizar o conteúdo desta publicação, os
usuários aceitam os termos de uso do Repositório de Acesso Aberto da UNESCO
(https://www.unesco.org/en/open-access/creative-commons).
3
comunidade de pesquisa em IA e filosofia da mente. Essa IA teria algumas
características tais como a amplificação cognitiva (melhorar suas próprias
capacidades intelectuais de maneira autônoma), velocidade de pensamento (muito
mais rápidas do que o cérebro humano), habilidades de aprendizado (capacidade de
aprender e adaptar-se a novos contextos e situações com eficiência extraordinária) e
memória e recuperação (quase perfeitos, de uma vasta quantidade de informações
armazenadas). Os benefícios potenciais dessa IA, tais como resolver problemas
complexos, como a cura de doenças ou a gestão de recursos globais de maneira
mais eficiente, até avanços em ciência e tecnologia ficam insignificantes diante os
riscos e desafios. As preocupações incluem o controle de tais entidades, a ética de
suas decisões, e o impacto sobre o emprego e a sociedade em geral. o temor de
que uma superinteligência possa atuar de maneiras que não estão alinhadas com os
valores humanos ou mesmo que possa se tornar hostil ou indiferente à humanidade.
No Brasil, nesse momento uma luta importante para fugir do faroeste
digital 6que se instalou em boa parte do planeta. A dificuldade de regulamentação
está dada pelos entraves que os grandes conglomerados vem impondo aos países,
fundamentalmente aos democráticos, como Brasil ou Austrália. Veja a matéria do
jornalista Luís por Luis Nassif @luisnassif, que mostra que o edital aberto para
conectar as escolas exigia uma velocidade que somente a Starlink de Elon Musk
poderia atender. Isso é muito delicado.
A importância da universidade pública e dos movimentos sociais neste
momento são decisivas para que as decisões contem com o engajamento dos
atores sociais, do conhecimento produzido envolvendo amplos debates e espertices.
Trabalho Necessário: A atividade mediada pelas TDIC e IA é uma
tendência que está se tornando cada vez mais presente na chamada
economia digital e no mundo do trabalho, inclusive com o fenômeno
da plataformização. Como analisa a plataformização do trabalho e
do consumo em diversos ramos de atividade (empresas de
transporte por aplicativo, de varejo online e de serviços de
streaming, entre outras) e sua relação com a ampliação da produção
de mais valia para os proprietários destas plataformas? Como
6Expressão do então ministro da justiça, Flavio Dino.
4
esta questão e suas implicações para a subjetividade dos
trabalhadores e para a luta de classes?
Adriana: A "plataformização" do trabalho e do consumo refere-se à crescente
prevalência de plataformas digitais que mediam transações entre consumidores e
prestadores de serviços em diversos setores, como transporte (Uber, Lyft), varejo
online (Amazon, Alibaba) e serviços de streaming (Netflix, Spotify). Este fenômeno
está profundamente interligado com a economia gig e tem implicações significativas
para a produção de mais-valia, as condições de trabalho, e a estrutura de classes
sociais. As plataformas digitais têm sido altamente eficazes em extrair mais-valia,
principalmente devido à sua capacidade de escalar rapidamente com custos
relativamente baixos, uma vez que as infraestruturas físicas são mínimas ou
inexistentes (por exemplo, Uber não possui veículos, e Airbnb não possui imóveis).
Outra coisa que elas permitem é minimizar os custos de mão de obra ao classificar
os trabalhadores como contratados independentes, evitando os custos associados a
empregados, como benefícios e segurança no emprego. Por outro lado, também
permitem capturar e analisar grandes volumes de dados para otimizar operações e
personalizar ofertas, aumentando a eficiência e o consumo.
A plataformização do trabalho tem implicações profundas para a subjetividade
dos trabalhadores. Uma das principais tem a ver com a precariedade e a
insegurança. A falta de garantias de emprego, benefícios e a incerteza de renda
contribuem para uma sensação de insegurança e instabilidade. Outro elemento
complicado é a flexibilidade com custos. Embora muitos valorizem a flexibilidade de
escolher quando e onde trabalhar, essa "liberdade" vem sempre às custas de maior
autoexploração e ausência de proteções trabalhistas. Alienação e Isolamento: A
interação limitada com colegas e a natureza fragmentada do trabalho podem levar
ao isolamento e a uma desconexão das lutas coletivas dos trabalhadores.
Alguém poderia pensar que a plataformização pode reconfigurar a luta de
classes de várias maneiras, mas o que sinto que efetivamente acontece é um
esvaziamento, uma apatia pelo desejo de comunidade e luta coletiva, certa atitude
geral de despolitização ou de indiferença política. De fato, novos desafios surgem
em relação à organização tradicional. Isto é, a natureza dispersa e individualizada do
trabalho em plataformas dificulta a organização sindical tradicional, o que é uma
barreira significativa para a resistência coletiva. Têm surgido novos modos de
5
organização e resistência, como sindicatos específicos para trabalhadores de gig7,
protestos organizados via redes sociais e até mesmo o uso de tecnologia para criar
plataformas alternativas cooperativas, mas isso tem peso ou repercussão social e
política. Embora possam surgir movimentos de conscientização e solidariedade em
relação às condições de trabalho e entre trabalhadores, podendo ser impulsionadas
por campanhas de informação e ação coletiva, isto não compensa nem
minimamente os enormes prejuízos individuais e coletivos das categorias que
trabalham “uberizadas". Recomendo muito ler os textos de Roberto Leher (UFRJ)
nesse sentido.
Trabalho Necessário: Observa-se mundialmente uma centralização
da produção e domínio das tecnologias digitais e inteligência artificial
por um grupo reduzido de grandes corporações, as chamadas big
techs (Google, Amazon, Microsoft, Facebook e IBM). Algumas
análises se referem a emergência de um novo tipo de domínio no
campo das relações capitalistas mundiais, o chamado
neocolonialismo digital. Como analisa esta questão? Vivemos uma
nova forma de colonialismo? O que isso tem a ver com o velho
colonialismo? Como o Brasil e a América Latina neste
movimento?
Adriana: Não sei se eu seja uma pessoa para falar em nome do Brasil e da
América Latina, mas posso te dizer coisas que penso ao respeito. O conceito de
"neocolonialismo digital" é uma reflexão crítica sobre como grandes corporações
tecnológicas, as chamadas big techs como Google, Amazon, Microsoft, Facebook
(Meta) e IBM, estão exercendo um tipo de domínio que tem paralelos
surpreendentes com o colonialismo tradicional. Este novo domínio se manifesta no
controle sobre tecnologias e infraestruturas digitais essenciais, bem como na
apropriação e monetização de vastos volumes de dados globais, semelhante à
extração de recursos naturais que caracterizava o colonialismo histórico.
7Um "trabalhador gig" refere-se a uma pessoa que realiza trabalhos pontuais ou freelancers, muitas
vezes mediados por plataformas digitais, ao invés de ocupar uma posição de emprego estável e de
longo prazo. Esse modelo de trabalho é característico da chamada "economia gig", que inclui uma
variedade de empregos temporários ou de projeto que são frequentemente organizados através de
aplicativos ou websites.
6
Essa influência se estende à dependência econômica e tecnológica que
muitos países têm em relação a essas empresas, situadas principalmente em
regiões economicamente desenvolvidas. Essa dependência pode limitar a inovação
local e submeter economias inteiras aos interesses e dinâmicas do mercado
tecnológico dominado por essas poucas empresas. Além disso, a proliferação de
plataformas digitais dessas corporações também impõe certos valores culturais e
sociais que predominam nos seus países de origem, muitas vezes sem levar em
consideração as diversidades culturais e sociais das regiões onde operam.
No contexto do Brasil e da América Latina, a situação é particularmente
complexa. A região mostra uma forte dependência de tecnologias estrangeiras, com
iniciativas locais e respostas governamentais ainda buscando formas de fomentar
um setor tecnológico robusto e independente. Sem um desenvolvimento tecnológico
autônomo, a América Latina corre o risco de permanecer na periferia da economia
digital global, sujeita às decisões e prioridades de empresas estrangeiras. Além
disso, a penetração tecnológica na região muitas vezes reflete e pode aprofundar as
desigualdades preexistentes, com acesso e benefícios tecnológicos distribuídos de
maneira desigual.
Essas dinâmicas globais de poder tecnológico trazem à tona questões sobre
justiça, equidade e controle dentro da revolução digital, desafiando-nos a pensar
sobre como podemos garantir que os benefícios da tecnologia digital sejam
compartilhados mais amplamente, sem replicar as injustiças do passado colonial.
Possivelmente para o Brasil e para América Latina, isso significa não apenas
desenvolver capacidade tecnológica interna, mas também se engajar ativamente
nas discussões globais sobre a governança da internet e as políticas tecnológicas,
buscando assegurar que o futuro digital seja construído de forma inclusiva e
equitativa.
Talvez, vale a pena observar ainda também o conceito de datacolonialismo.
nuances entre eles. Enquanto o neocolonialismo digital aborda uma gama mais
ampla de questões relacionadas ao domínio tecnológico e econômico exercido por
grandes corporações sobre o mercado global, o datacolonialismo se concentra
especificamente nas implicações da exploração dos dados pessoais. Ambos os
conceitos, contudo, interseccionam na ideia de que as práticas modernas de
empresas e governos em um contexto tecnológico global podem criar novas formas
de desigualdades e dinâmicas de poder que são comparáveis às do colonialismo
7
histórico. Por isso, o debate sobre como as tecnologias e os dados devem ser
regulamentados e geridos é urgente, é necessária para evitar abusos e para
promover uma distribuição mais equitativa dos benefícios tecnológicos, visando que
não perpetuem desigualdades ou imponham outras formas de dependência
econômica ou cultural sobre outras regiões ou grupos sociais.
Trabalho Necessário: Nas últimas décadas, especialmente após a
pandemia da Covid-19, vivenciamos mudanças no mundo do
trabalho com a implementação da modalidade de teletrabalho, que
prevê que a jornada regular pode ser executada fora das
dependências físicas do órgão, em regime de execução parcial ou
integral, de forma remota e com a utilização de recursos
tecnológicos. Em sua opinião, quais são as implicações destas
mudanças e seus impactos nos serviços prestados para a população
e nas condições de trabalho dos servidores?
Adriana: A implementação do teletrabalho, amplamente adotada após a
pandemia da Covid-19, transformou tanto os serviços prestados à população quanto
às condições de trabalho dos servidores públicos. Esta modalidade de trabalho
remoto, apoiada por tecnologias digitais, tem permitido que as tarefas sejam
executadas fora das instalações físicas do empregador, possibilitando uma
continuidade dos serviços mesmo em períodos de crise, como os vivenciados
durante os lockdowns. Essa continuidade foi essencial para garantir que a
população continuara acessando serviços públicos sem grandes interrupções.
Mas, por outro lado, a transição para o teletrabalho também trouxe desafios
significativos e complexos. Embora possamos reconhecer em alguns casos, uma
maior eficiência e produtividade, por eliminar o tempo de deslocamento e reduzir
interrupções, essa modalidade exige uma adaptação das tarefas que nem sempre é
possível, especialmente para serviços que dependem de interação direta ou
infraestrutura especializada. Além disso, a qualidade e a eficácia na prestação de
serviços podem ser comprometidas se as adaptações necessárias não forem bem
planejadas ou se a tecnologia utilizada não for adequada. Inclusive, Giselle
Beiguelman (USP) lembra que na “dadosfera" estamos sempre expostos ao controle
8
e a vigilância, sem proteção da nossa privacidade dos dados pessoais nem
institucionais.
Será que para os servidores, o teletrabalho pode melhorar significativamente
o equilíbrio entre trabalho e vida pessoal, oferecendo mais flexibilidade para
gerenciar compromissos diários? Muito duvidoso! Essa modalidade também pode
levar a desafios como a dificuldade de separar a vida pessoal do trabalho,
resultando em jornadas mais longas e aumento do estresse. Além disso, o
isolamento de não estar fisicamente presente no ambiente de trabalho pode afetar
negativamente a saúde mental dos servidores, diminuindo a sensação de
pertencimento e potencialmente impactando a motivação e o engajamento. O
trabalho virtual, nos leva, de forma imperceptível e inercial a uma dificuldade de
desconexão. O scroll down -descer no feed sem fim - que permitem a maior parte
das redes sociais levanta uma outra reflexão, que também nos traz a pesquisadora e
educadora paulista quem, parafraseando a Foucault, que fala sobre os corpos,
dóceis hoje podemos afirmar sobre "olhares dóceis”. Num processo de progressiva
"plataformização do trabalho e da vida mesma", caberiam as perguntas: escolhemos
o que olhar? Quanto tempo olhar? Podemos parar de olhar?
Essas mudanças na forma de trabalhar requerem uma revisão cuidadosa das
políticas e dos direitos laborais. O eventual sucesso do teletrabalho residirá na
capacidade de equilibrar os benefícios dessa flexibilidade com a necessidade de
manter a qualidade e a integridade dos serviços públicos e fundamentalmente
respeitando os direitos inalienáveis dos trabalhadores.
Trabalho Necessário: O advento da pandemia de Covid-19
intensificou a utilização das TDIC no ambiente escolar. Muitos
docentes são condicionados a utilizar essas ferramentas, condição
para não serem considerados profissionais “obsoletos”. Como você
avalia esse processo e quais são as suas perspectivas para o
trabalho docente nesse contexto?
Adriana: Recomendo especialmente a leitura dos textos sobre este tema
escrito pela professora Inés Dussel (DIE-CINVESTAV, México) assim como várias
lives que tem gravado durante a pandemia. De fato, a pandemia de Covid-19 trouxe
uma transformação significativa na educação, acelerando o uso das Tecnologias
9
Digitais de Informação e Comunicação (TDIC) no ambiente escolar. “Em aula de
chinelos” ou alguma tradução semelhante, é um dos textos que traz este fato de
estarmos em aulas, bancas, palestras com blusa e colar e de fato, calçadas de
modo confortável. Esse movimento forçou muitos e mutas docentes a adotarem
rapidamente ferramentas digitais, uma vez que as escolas tiveram que migrar para o
ensino à distância ou modelos híbridos para continuar o processo educativo durante
os períodos de confinamento e restrições sociais. Na marra, sem formação
específica (Salve Edmea Santos (UFRRJ), que correu com suas lives de educação
midiática todo o país!). No caso dos colégios particulares, exercendo uma pressão
sem precedentes a equipe docente que além de preparar e realizar as aulas em um
formato que exigia novos conhecimentos e uso de dispositivos, elas ficavam
expostas à visão de familiares no espaço doméstico.
Avaliando esse processo, é possível identificar tanto desafios quanto
oportunidades. Por um lado, o uso intensificado das TDIC tem potencial para
enriquecer o ensino, oferecendo aos docentes ferramentas inovadoras para engajar
os alunos, personalizar o aprendizado e acessar uma vasta gama de recursos
educacionais online. O acesso a arquivos de documentos, imagens, sons,
audiovisuais é infindável. Além disso, a familiaridade com essas tecnologias prepara
os estudantes para um mundo cada vez mais digitalizado.
Por outro lado, a pressão para que os docentes rapidamente dominem e
integrem essas tecnologias em suas práticas pedagógicas pode ser vista como
problemática. Muitos professores se viram obrigados a usar ferramentas digitais sem
o devido suporte ou formação adequada, o que pode gerar estresse e uma
sensação de inadequação. Além disso, a expectativa de que todos os professores
se adaptem às TDIC sem considerar as diferenças individuais, contextos de ensino e
recursos disponíveis pode levar a uma valoração superficial de suas competências,
rotulando-os como "obsoletos" se não se adaptarem rapidamente.
As perspectivas para o trabalho docente nesse contexto dependem em
grande medida de como as instituições de ensino e os sistemas educacionais vão
apoiar seus educadores. É fundamental que haja investimentos contínuos em
formação profissional que não apenas apresentem as ferramentas digitais, mas
também discutam como integrá-las de forma pedagógica e eficaz. Igualmente
importante é o desenvolvimento de uma infraestrutura tecnológica robusta que
garanta acesso equitativo tanto para alunos quanto para professores.
10
Além disso, é crucial reconhecer e valorizar a adaptabilidade e a resiliência
dos docentes que, mesmo em circunstâncias desafiadoras, continuam a se dedicar
ao ensino e à aprendizagem. O futuro do trabalho docente em um mundo
pós-pandêmico provavelmente continuará como o uso das TDIC, mas o sucesso
desse futuro dependerá de como essas tecnologias são integradas às práticas
pedagógicas de forma respeitosa, responsável e que enriqueçam a experiência de
aprendizagem sem sobrecarregar os educadores negligenciado os seus direitos. Ou
melhor, entender que a tecnologia não é neutra e muito menos universal, como afira
o filósofo da tecnologia Yuk Hui (China). Ela é diversa. Tecno-diversa. De fato ela
surge em íntima relação com os territórios, com as comunidades e suas culturas,
crenças e modos de existência. E se integra cada vez mais com a natureza e com a
cultura em uma relação inseparável. Se cada território produzisse suas próprias
tecnologias, não teríamos este cenário de dependência de quase o total dos 8
bilhões de habitantes de tão poucas empresas que vendem dispositivos,
conectividade, sistemas operativos, aplicativos, etc.
A educação escolar em tempos de educação digital não pode virar um
palimpsesto da educação analógica. Tempos e espaços do analógico e do digital
precisarão armonizar para que o aceleracionismo que os avanços das tecnologias
imprimem à vida cotidiana não desconhecem os tempos da vida, esses que não
podem ser acelerados, como o de gestar uma vida, aprender a andar, a falar, ou
fazer amigos. Criar redes nunca poderá substituir ou criar laços. A escola é um lugar
privilegiado para ambos.
11
V.22, 48 - 2024 (maio-agosto) ISSN: 1808-799 X
ENSINO MÉDIO: PAUTA PARA DEBATE1
Paolo Nosella2
Resumo
Pautando tópicos essenciais para a reforma do Ensino Médio, o texto foi apresentado no VI
Congresso Municipal de Educação de São Paulo. O debate enfatiza a necessidade de refletir sobre
adolescência e puberdade dos jovens de 14 a 17 anos; a escolha do percurso formativo e da
profissão; e entender que o Ensino Médio unitário é o horizonte democrático a ser perseguido,
reduzindo a multiplicidade curricular. Referenciando Gramsci, define-se um tríplice objetivo ao Ensino
Médio: cultura geral elevada, autodisciplina intelectual e autonomia moral.
Palavra-chave: Ensino Médio; Reforma; Pauta para debate.
ESCUELA SECUNDARIA: AGENDA PARA EL DEBATE
Resumen
Pautando temas esenciales para la reforma de la Educación Secundaria, el texto fue presentado en el
VI Congreso Municipal de Educación de São Paulo. El debate enfatiza la necesidad de reflexionar
sobre la adolescencia y la pubertad de los jóvenes de 14 a 17 años; la elección del recorrido formativo
y de la profesión; y entender que la Educación Secundaria unitaria es el horizonte democrático a ser
perseguido, reduciendo la multiplicidad curricular. Referenciando a Gramsci, se define un triple
objetivo para la Educación Secundaria: cultura general elevada, autodisciplina intelectual y autonomía
moral.
Palabras clave: Educación Secundaria; Reforma; Pauta para debate.
HIGH SCHOOL: AGENDA FOR DEBATE
Abstract
Highlighting essential topics for high school reform, the text was presented at the VI Municipal
Congress of Education in São Paulo. The debate emphasizes the need to reflect on the adolescence
and puberty of young people aged 14 to 17; the choice of educational and professional path; and to
understand that unified high school is the democratic horizon to be pursued, reducing curricular
multiplicity. Referring to Gramsci, a threefold objective is defined for high school: high general culture,
intellectual self-discipline, and moral autonomy.
Keywords: High School; Reform; Agenda for debate.
2Doutor em Filosofia da Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP),
Brasil. Professor aposentado e colaborador do PPGE da Universidade Federal de São Carlos
(UFSCar), São Paulo - Brasil. Pesquisador sênior do CNPQ. Email: nosellap@terra.com.br.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/7159165045266256. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6272-9073.
1Ensaio recebido em 14/04/2024. Primeira Avaliação em 22/04/2024. Segunda Avaliação em
12/05/2024. Aprovado em 15/07/2024. Publicado em 07/08/2024.
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v22i48.62289.
1
Introdução
O texto foi solicitado no VI Congresso Municipal de Educação de São Paulo,
em 04 de outubro de 2023. Trata-se de um texto atípico, no sentido de fugir do
padrão tradicional dos artigos de revista. Com efeito, solicitava-se listar e comentar
os tópicos essenciais para o debate dos educadores reunidos em Congresso em
vista da reforma do Ensino Médio que aquela Prefeitura se propunha.
Entretanto, o texto, mesmo nessa forma, suscitou algum interesse. Por outro
lado, as revistas não pretendem somente oferecer aos leitores artigos acadêmicos
originais em seu conteúdo, visam também oferecer aos leitores textos/documentos
atuais e interessantes sobre a temática. O interesse, às vezes, decorre da própria
forma de apresentação evidenciada no título: pauta para debate, considerando que
estamos vivendo, no Brasil, na atualidade, um momento de debates sobre reformas
do Ensino Médio.
Primeiramente, é preciso que os reformadores foquem na idade dos
adolescentes, de 14 aos 17 anos, sem generalizações por meio da ampla categoria
‘juventude’. É necessário refletir, junto aos especialistas da psicologia e da
sociologia, sobre os fenômenos da adolescência e puberdade Precisa-se, ainda,
superar o fácil engano sugerido pela expressão ‘médio’, oco de conteúdo próprio.
Médio pode e deve ser concebido no sentido aristotélico de equilíbrio, harmonia: in
medio stat virtus.
Ponto mais complexo é representado pela escolha do percurso formativo e da
profissão do adolescente. Não se trata de um momento cronológico e
burocraticamente preciso. Trata-se de um processo complexo, às vezes longo.
Difícil de ser conduzido até mesmo pelos educadores mais próximos e dedicados.
Em todo caso, abre-se nessa complexidade uma certeza: o acesso à cultura geral,
atualizada. A indefinição profissional é um direito do adolescente.
O texto/pauta insiste em afirmar que o estudo é o trabalho principal do jovem
adolescente, bem como na necessidade da escolarização no Brasil reduzir
progressivamente a multiplicidade dos percursos curriculares do Ensino Médio.
Afinal, pergunta-se o autor, um objetivo geral específico do Ensino Médio?
Referendando-se em Gramsci, afirma haver um tríplice objetivo: elevada cultura
geral, autodisciplina intelectual e autonomia moral. Conclui o texto afirmando haver
2
grande diferença entre o objetivo do Ensino Médio Regular e o Supletivo, em que
pese alguma identidade de conteúdo.
Adolescência e puberdade (de 14 a 17 anos).
A adolescência é um fenômeno psico-sócio-cultural multiforme. Entretanto, a
puberdade, sua base orgânica, é um fenômeno ‘fisiologicamente universal, unitário’.
Por isso, é preciso correlacionar, dialeticamente, adolescência e puberdade.
Texto de apoio:
Vico uma interpretação política do famoso dito de Sólon, que
Sócrates depois assumiu para a filosofia: ‘Conhece-te a ti mesmo’.
Vico afirma que Sólon, com este dito, quis aconselhar os plebeus,
que acreditavam ser de origem bestial, enquanto os nobres seriam
de origem divina, a refletirem sobre si mesmos para se
reconhecerem de igual natureza humana que os nobres e, por
conseguinte, para pretenderem serem igualados no direito civil. E,
em seguida, [Solon] põe essa consciência da igualdade humana
entre plebeus e nobres como a base e a razão histórica do
surgimento das repúblicas democráticas na Antiguidade. (GRAMSCI,
2004, p.56-57).
Frequentemente, as análises sobre o fenômeno da adolescência destacam
sua diferença nas classes dirigentes e nas subalternas. Com efeito, a diferença é
grande, mas não natural, é reflexo de pertencer a uma determinada classe social.
Ao destacar essa diferença, Gramsci adverte que, de modo sub-reptício e
ideológico, pode-se justificar e ‘naturalizar a desigualdade social ao invés de motivar
a luta contra.
Função estratégica do Ensino Médio no amadurecimento individual e no
equilíbrio democrático da Nação.
É fruto de simplismo teórico a concepção do sistema escolar como sendo uma
linha homogênea, regular, ascendente e ‘infinita’ que vai da educação infantil até os
cursos de pós-graduação e de formação permanente. O sistema escolar é melhor
representado, arquitetonicamente, por uma linha curva, um arco, onde o ensino
médio é a pedra de centro que segura a abóbada (chiave di volta clef de voûte) do
processo formativo e, portanto, do sistema escolar.
3
Quem me fez perceber esse equívoco ‘arquitetônico’ foi um texto de Giovanni
Maria Bertini (1857), citado por Luzio (2007), que defende, em termos claros, a
função estratégica central do Ensino Secundário (Médio) numa correta filosofia de
formação das jovens gerações e, eventualmente, na reforma dos estudos. A citação
é longa, mas vale a pena:
Alguns acreditam que a reforma da pública instrução deva começar
pelo ensino elementar. Eles se deixam enganar pelos termos: uma
vez que os estudos das ciências naturais começam pelos elementos,
acreditam que também a reforma dos estudos tenha que começar
pelas escolas elementares: e, uma vez que essas escolas se dizem
também primárias, acreditam que sua reforma tenha que ocorrer
primeiramente antes de qualquer outra. Mas, por favor, qual é a
primeira coisa a ser feita para reformar as escolas elementares?
Certamente, fornecê-las de bons mestres. E onde se formam os bons
mestres do primário? Talvez nos cursos de magistério de três, de
quatro ou também de dez meses? [...] Todos os professores
frequentaram, além da escola elementar, o curso secundário. Ora, se
neste os estudos fossem ministrados de forma que [...]
representassem para os futuros professores a melhor preparação,
tornaria realmente proveitoso o curso de magistério de dez meses e
os habilitaria no exercício de sua função. É claro, portanto, que uma
reforma do ensino secundário [...] deve preceder a reforma do ensino
elementar. (LUZIO, 2007, p.46-49).
À luz dessa concepção do ensino médio como momento estratégico do
sistema escolar e da formação geral do cidadão, a França do pós Guerra Mundial,
na reforma do ensino, priorizou o ensino secundário. Seus docentes passaram a
ganhar igual ou mais do que os do ensino superior. Conhecido exemplo é o de Jean
Paul Sartre, professor de filosofia no ensino médio francês. Não ele. Merleau
Ponty também foi professor de Ensino Médio. Muitas outras figuras ilustres da
cultura europeia, da Áustria, da Itália, etc., foram professores do Ensino Secundário.
A função estratégica do Ensino Médio justifica-se também pela função
estratégica do setor populacional médio no Estado. Existe uma íntima relação
político-cultural entre a escolarização média e a elevação social desse setor. A
atenção dada a essa fase escolar por parte do Estado depende de sua concepção
de hegemonia nacional articulada ao sistema escolar. Ora, o Brasil precisa enfrentar,
com determinação e clareza, essa problemática no momento em que o segmento
médio da população está em expansão. Qual o projeto educativo nacional?
Infelizmente, a sociedade brasileira, historicamente, esteve alicerçada na
irracionalidade dos extremos da pirâmide social, os muitos ricos e os muito pobres,
4
justamente quando o populismo político contemporiza o elitismo oligárquico com o
assistencialismo social. A presença e influência de um amplo setor médio da
população sempre foram, e continuam sendo, tênues. Elite de um lado e povo de
outro utilizam duas linguagens diferentes e antagônicas, pragmaticamente
‘acomodadas’, como dissemos, por políticas de caráter populista.
Ora, sabe-se que: “As políticas populistas imediatistas abrem flancos a
ditaduras ou a uma lidership de tipo carismático e, ainda, à formação de uma elite de
‘iluminados’, de intérpretes quase sagrados da vontade e do espírito do povo”
(Bobbio, 1990, p.835).
Uma dialética construtiva (revolucionária) entre essas duas linguagens
antagônicas seria oportunamente fortalecida pela difusão de instituições de cultura,
entre as quais, e prioritariamente, uma escola média unitária.
A palavra “média”, em si e no senso comum, é conceitualmente vazia, mero
reflexo dos termos que intermedia. Conota, inclusive, pobreza conceitual,
mediocridade. Assim, também no sistema escolar, o Ensino Médio é considerado
entre nós mero elo entre o fundamental e as novas fases da vida, universidade ou
mercado. Portanto, é um ensino conceitualmente heterônomo. Mas, de outro ponto
de vista, o termo “médio” expressa um significado rico em si mesmo,
conceitualmente autônomo, denotando equilíbrio, estabilidade, moderação,
harmonia, resgatando, em suma, a conhecida noção de Aristóteles In medio stat
virtus [a virtude está no meio]: “Pois aqui também se trata de uma questão de
chegar ao ponto médio ou da virtude que, como Aristóteles sabia, era o ponto da
excelência, o mais difícil e elevado a alcançar” (Croce, 2006, p.201).
O leitor, com razão, dirá que não pode haver um bom Ensino Médio sem o
fundamental e infantil de elevada qualidade. Perfeito. Entretanto, destacar a
relevância máxima da fase escolar do Ensino Médio é oportuna reação ao senso
comum que, enquanto prioriza os extremos do processo escolar (elementar e
superior), minimiza o Ensino Médio como mera transição, desconsiderando seu
específico objetivo formativo.
Na contramão da história e da evolução dos estudos de psicologia do
adolescente, no Brasil, o Ensino Secundário (Médio) perdeu destaque na estrutura
do sistema escolar. Prova disso é que, na Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional de 1996, o sistema tradicional tripartite (primário, secundário e superior) foi
5
reduzido a bipartite (básico e superior) e o ensino médio foi incorporado à primeira
parte. Não foi mera formalidade jurídica. O ensino médio/secundário perdeu
identidade conceitual, ficou despossuído de significação pedagógica autônoma e
própria. E, consequentemente, creio eu, diminuiu o grupo de pesquisadores e
especialistas sobre a temática do “Ensino Médio ou Secundário”.
Sobre a escolha do percurso formativo e da profissão.
Cabe-nos perguntar: o jovem de 14 a 17 anos opina ou decide sobre seu
percurso formativo? Sozinho ou junto com seus educadores? A decisão ocorre em
momento cronologicamente exato de sua história de vida ou ocorre durante um
processo? Enfim, quando e como o adolescente decide sobre seu percurso
formativo e profissional?
Trata-se de um processo complexo, às vezes, longo. O adolescente busca
seu rumo ético-profissional junto aos seus educadores e adultos responsáveis ou,
quiçá, nas ‘redes sociais’. Em todo caso, o direito à indefinição profissional precoce
e ao acesso à cultura geral profissionalmente indiferenciada deve ser sempre
garantido.
Exemplos3e depoimentos:
Karl Marx, aos 17 anos, disserta sobre a escolha da profissão de um
jovem4.
Texto pré-marxista? Alguns dizem que sim. Redigiu-o em Trier, durante o
exame de ‘conclusão’ do Ensino Médio visando a acessar aos estudos superiores na
Universidade de Bonn. O parecer dos avaliadores sobre a dissertação foi positivo,
com alguns reparos. Marx escreve que é importante acertar na escolha da profissão
que determinará o percurso individual de toda a vida. Pergunta: como tomar a
decisão certa? Os obstáculos que se impõem na escolha de uma profissão, sejam
eles frutos de nossas ambições fantasiosas ou de nossas limitações físicas e
sociais, podem servir para aperfeiçoar nosso senso de adequação moral e social à
profissão escolhida. Reconhece a existência de um conflito entre determinações
‘ideais’ e determinações ‘materiais’ da vida humana. Marx entende que convém ao
4Ver: Observação de um jovem na escolha de uma profissão (1835). In: Revista Universidade
Rural. Série Ciências Humanas. Seropédica, RJ, EDUR, v. 29, n. 2, p. 103-117, jul.-dez., 2007.
3Levantei exemplos de autores e pessoas familiares.
6
próprio jovem examinar, primeiro junto aos pais, seus ancestrais imediatos, depois
no conjunto da sociedade, o lugar que melhor lhe cabe.
Escreve: “Nossas relações em sociedade de certo modo se iniciaram antes
mesmo que nós estivéssemos em condições de determiná-las. (...) A esfera social é
sua condição determinante que advém da relação dos homens em sociedade.
(Marx, 2007, p.114).
Para o jovem Karl, será justamente esta experiência determinante que levará
o jovem à escolha acertada de sua vocação. Entre as diferentes vocações, ele
divisa, para si próprio, a possibilidade de se tornar poeta. E é em tom poético que
encerra a redação.
Antonio Gramsci, com 19 anos, os primeiros passos na profissão
de jornalista. Frequentava, em Cagliari (Sardenha), o Ensino Médio Regular, público
(Liceu Clássico). Esmerava-se nas redações. O professor de italiano, Raffa Garcia,
chegava a ler para a classe, em voz alta, suas composições, “(...) exemplares não
somente de estilo, mas também de clareza intelectual”. (Fiori, 1977, p.64). O
professor era também diretor do jornal L’Unione Sarda. Emprestava-lhe livros e o
convidava para ir ao escritório da redação do jornal. Poucos dias antes do fim do
ano de Ensino Médio, antes de voltar para casa (Ghilarza, interior da Sardenha) para
as férias, Gramsci foi conversar com ele: “Gostaria, se possível, estrear no
jornalismo escrevendo pequenas notas, talvez breves correspondências, sobre sua
cidade” (Fiori, 1977, p. 68). Raffa concordou. Poucos dias depois, Antonio recebe a
seguinte correspondência: “Eis aqui a carteira [profissional] desejada. Será
bem-vinda sua colaboração: envie-nos, agora e no futuro, todas as informações de
público interesse e lhe seremos gratos nós e os leitores. Afetuosamente, R. Garcia”
(GRAMSCI, 2009, p.46).
Ou seja, o exórdio profissional jornalístico de Gramsci, antes do ano do
Ensino Médio, aconteceu de forma espontânea e ‘integrada’ à sua tendência e
valores. Obviamente, não poderia decidir, de forma burocrática, no ato da matrícula
do 1o ano do Ensino Médio.
Mais tarde, no Caderno 12 do Cárcere, com base nesse debut profissional,
escreveu: “Por isso, nesta fase [do Ensino Médio], (...) serão recolhidas as
indicações orgânicas para a orientação profissional.” (GRAMSCI, 2001, p.40).
Michael Leão, chamado Maicom, filho de Neuza, minha empregada
7
doméstica. Aos 14 anos matriculou-se no ano do Ensino Médio Regular, público,
turno da manhã. No ano, queria mudar e matricular-se no turno da noite para
trabalhar de dia e dispor de algum dinheiro. Minha esposa e eu nos opusemos a
isso, dizendo: ‘o ensino do turno da noite será a antessala do abandono da escola’.
Neuza, solteira, possuía salário e casa onde vivia com o filho e a mãe. Isso, e nosso
conselho, permitiram ao Maicom completar o Ensino Médio no turno da manhã.
Infelizmente, ‘estudava’ de manhã e ‘trabalhava’ de tarde em dois tipos de
‘atividades’ desorgânicas, díspares, uma atrapalhando a outra. Ou seja, a atividade
de estudo da manhã nada tinha a ver com a outra da tarde. Uma bolsa de estudo
permitiria fazer a tarefa (lição de casa), no período do contraturno, monitorado em
estudo dirigido, portanto, em duas atividades orgânicas, correlacionadas.
Considero, todavia, que o fato de Maicom ‘estudar de manhã permitiu-lhe,
mais tarde, fazer um ‘curso tecnológico’. Desejava, confessou-me um dia, ser como
eu: trabalhar em universidade, escrever, viajar ou, então, disse num tom de tristeza,
serei tapeceiro como o tio. Sem bolsa de estudo, sem estudo dirigido no contraturno,
Maicom será encaminhado para uma prática produtiva imediata. A necessidade
matará seu direito à indefinição profissional de ao menos 4 a 5 anos, sufocando o
sonho de ‘entrar numa boa universidade’.
Qual a tendência profunda, o talento de Maicom? Vários. Mas, não haverá
tempo, nem condições materiais, para identificá-lo. Menos ainda para favorecê-lo.
Virgínia, minha filha, ao concluir o Ensino Médio, 18 anos, não queria
continuar os estudos na Faculdade. Queria ser radialista. Opus-me. Foi uma luta.
Havia encontrado alguém que a considerou com talento para essa profissão.
“Certamente, disse-lhe, poderá ser radialista. Mas, agora, vai fazer Faculdade.” -
“Essa Faculdade -retrucou- não vale nada”.
Contei-lhe uma parábola: o prédio de quatro andares estava em fogo. A
fumaça subia. O filho, na janela do terceiro andar, gritava desesperado. O pai, na
rua, com ajuda dos vizinhos, estendeu um cobertor e gritou: - ‘Jogue-se!’ O filho não
enxergava o cobertor por causa da fumaça: - ‘Não vejo nada, respondia’. O pai
gritou mais forte: ‘Se jogue, porque eu vejo’. O menino se jogou e se salvou.
Virgínia não via necessidade do Ensino Superior. Eu via. Foi difícil. Ela fez
Terapia Ocupacional na PUC de Campinas. Hoje me agradece. É uma profissional
realizada e contente.
8
Berilo Luigi, meu primeiro filho (desculpem os exemplos familiares)
cursou Ensino Médio regular, de manhã, no Instituto Álvaro Guião, Escola pública
central da cidade, antiga Escola Normal de São Carlos. Excelente escola. Pertenceu
à última turma que fez ‘vestibulinho’ para conseguir vaga. Posteriormente, a seleção
foi feita por sorteio. Hoje, por residência geograficamente próxima à escola.
Pessoalmente, questiono esses critérios e escrevi sobre o assunto. Poderia, meu
filho, ‘estudar em escola particular. Não quis. Sua turma liderava o Grêmio Escolar.
Publicava um jornalzinho. Ao término do Colegial, prestou vestibular em Ciências
Sociais na UNESP de Araraquara. Passou. Era um bom Curso. Mas, antes de
concluí-lo, decidiu mudar para o Curso ‘Imagem e Som’ da UFSCar. Prestou novo
vestibular. Passou. Hoje é Professor de Teatro na Universidade Federal de São João
del Rei, Minas Gerais, especialista em ‘iluminação’.
Vitor Petinelli Mariotto, 30 anos. Morador de Américo de Campos,
interior do Estado de São Paulo, hoje cidade de cerca de 6.000 habitantes. Menor de
dois irmãos. O pai faleceu quando Vitor tinha dez anos. Ao completar o Ensino
Fundamental em Escola Pública, matriculou-se no Ensino Médio, infelizmente, em
turno noturno: “No Colegial, estudava de noite e trabalhava de dia em atividades
totalmente diferentes uma da outra. Após 4 meses, fui forçado a abandonar a
Escola para trabalhar de ajudante de pintor” (Depoimento oral ao autor).
A mãe insistia para ele continuar o Ensino Médio, mas Vitor queria algum
‘dinheirinho’ para ajudar a mãe e adquirir alguma coisa para si. Com efeito, para as
despesas pessoais, a mãe não poderia ajudá-lo. Fez curso na SUVINIL e na
SHERWIN-WILLIAMS. Passou a ser pintor profissional: “Sempre amei pintar e
desenhar. Eu era bom nisso.” Presumivelmente, desenhar era sua tendência
fundamental: “se tivesse bolsa de estudo” - admite “e escola em tempo integral
com ajuda para fazer as lições de casa, teria terminado o Ensino Médio e, mais
tarde, faria um curso superior na área artística” (Depoimento oral ao autor).
Hoje, Vitor é uma pessoa contente, um excelente pintor de residências. Mas,
talvez, o Brasil deixou de ‘explorar melhor o talento de um seu cidadão: - “Poderia
ser um pequeno Portinari...” disse-lhe, brincando e encerrando a entrevista
(Depoimento oral ao autor).
Geraldo Basso, 57 anos. Também é morador de Américo de Campos,
interior de São Paulo. Profissão: ajudante pintor de Vitor. Antepenúltimo de sete
9
irmãos. Pai lavrador. Mãe “do lar que também trabalhava na roça quando
necessário.” Até a oitava série estudou na Escola Estadual Francisco de Vilar Horta.
Em seguida, um irmão o chamou para trabalhar numa oficina mecânica. Tinha 14
anos. Matriculou-se no Colegial (Ensino Médio). Infelizmente, no turno da noite.
Fez matrícula ‘de teimoso’, isto é, contra a opinião do entorno social que o
considerava estudado, diplomado, ou seja, que não precisava mais estudar.
Entrava na oficina às 7 da manhã e permanecia até às 18 horas. Mas,
quase sempre, serviços de urgência o obrigavam a permanecer até mais tarde.
Corria para casa (3 km), banhava-se um pouco, engolia um arroz e corria para a
Escola Pública de Ensino Médio, onde ficava até às 22 horas. Retornava à
residência (morava no sítio) para, no dia seguinte, voltar à oficina às 7 horas. Vida
impossível! Geraldo aguentou isso um mês. Saiu da Escola, abandonou o Ensino
Médio noturno. Na oficina, recebia muito pouco. Mudou de muitas atividades.
Atualmente, ajuda seu colega pintor. Ou seja, tornou-se pintor ‘profissional’ também
ele: “gostaria de ter feito o colegial, entrar na Faculdade! Se tivesse uma bolsa de
estudo, certamente, teria cursado os três anos do Ensino Médio.”
Sonhos profissionais? Policial Militar ou, quiçá, licenciado em História e
Geografia.
Sua filha mais velha fez magistério. A mais nova fez faculdade, formada em
Fisioterapia na UNIFEV. (Depoimento oral ao autor).
Valdeci Croti, 59 anos. Nasceu em Boa Esperança do Sul/SP. De nove
irmãos, quatro mulheres e cinco homens, ele é o penúltimo. Ainda pequeno
transferira-se para a Fazenda Sant’Ana, entre Ribeirão Bonito e São Carlos, onde
fez os primeiros três anos do primário. Veio morar em São Carlos quando tinha 8
anos e aqui completou o primário, na Escola Bispo Dom Gastão e na Elídia Benetti,
no período da manhã. De tarde brincava.
Com 14 anos começou a trabalhar como auxiliar de tipógrafo. Aprendia na
prática. Profissionalmente, passou a ser tipógrafo. Com 24 anos casou. Ajudava o
irmão pedreiro. Em pouco tempo sabia de tudo, até assentava tijolos. Com trinta
anos, fez o curso de Elétrica Residencial no SENAI. Assim, ajuntou às práticas de
pedreiro, eletricista e tipógrafo. Trabalhou por 35 anos como autônomo para se
aposentar. Hoje, presta serviços vários, é um fac totum excelente. Por brincadeira, é
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chamado marido de aluguel. Inclusive, por mim. Não sentia vontade de estudar,
mas aprendia facilmente.
Facilidade na aprendizagem e muita engenhosidade na solução de
problemas: um pequeno ‘Leonardo da Vinci’, disse brincando e encerrando a
entrevista. (Depoimento oral ao autor).
Sueli Maria Tizolin, 55 anos, minha diarista. Originária de um sítio no
Paraná. Família de 6 irmãos: duas mulheres e quatro homens. Ela é a
segundogênita. No sítio, cursou quatro anos do primário na Escola Pública Castro
Alves, no período da tarde. De manhã, carpia, colhia café, arrancava feijão,
quebrava milho: “Não continuei a estudar, porque os pais da gente achavam que
os homens tinham que estudar”.
Ainda no sítio, casou com 18 anos e teve os dois primeiros filhos. Com 23
anos, transferiram-se para São Carlos onde começou a trabalhar de doméstica. Aqui
teve mais uma filha. Havia o EJA noturno. Aconselhada, frequentou o EJA por um
ano e meio, completando assim os oito anos do Fundamental. Recebeu diploma EJA
com cerca de 40 anos. Disse:
No EJA, posso falar a verdade? Éramos 20 alunos na classe.
Chegava o Professor. Sentava e perguntava: - o que fizeram durante
o dia? E conversava com a gente. Nós ficávamos contentes,
porque assim a aula não era cansativa. No final, recebíamos o
diploma. (Depoimento oral ao autor).
Concluindo: Karl Marx, Antonio Gramsci, Michael Leão, Virgínia Deiró,
Berilo Luigi, Vitor, Geraldo, Valdeci, Sueli Maria etc., todos vivenciaram o drama da
escolha do percurso escolar e da profissão: uns decidiram cedo, outros mais tarde;
outros ainda num vaivém por anos; outros se matriculam no noturno antes de
abandonar a escola; outros, simplesmente, ‘não decidiram’ ou frequentaram para
receber diploma etc.
É humanamente impossível, salvo raros casos, para um adolescente definir,
precocemente e com data marcada, o percurso escolar do Ensino Médio adequado
às suas profundas tendências pessoais. É fonte de mal-entendido pensar
prioritariamente nas necessidades do mercado ou nas possibilidades materiais da
família. A psicologia ensina que essa decisão, ocorre, na grande maioria dos casos,
naturalmente, num processo complexo e ao longo de vários anos. Educadores,
11
familiares e o Estado precisam acompanhar o jovem, observá-lo com sensibilidade e
paciência, ministrando-lhe, todavia, de forma determinada e didaticamente rica, a
indispensável cultura geral, ampla e atualizada, profissionalmente indiferenciada.
A violação do ritmo vital do adolescente na escolha do seu percurso escolar e
da profissão causará frustração, sofrimento e até desvios de personalidade. O jovem
é o amanhecer da Nação, promissor e renovador, mas também, infelizmente, poderá
ser um cidadão frustrado quando não uma trágica bomba relógio5.
O estudo é trabalho.
A linguagem de senso comum reza: ‘você estuda ou trabalha’? Ou seja: para
o senso comum, ‘estudar não é ‘trabalhar’: é alternativa ao trabalho ou, no máximo,
‘preparação' ao trabalho.
Entretanto, estudar é uma forma de trabalho. Assim como pedreiro,
dona-de-casa, carpinteiro, eletricista, vendedor, jornalista, administrador,
caminhoneiro, pesquisador, radialista, professor etc., são diferentes formas de
trabalho. Mais ainda: para o adolescente de 14 a 17 anos, o estudo é a principal
forma de trabalho. Estudar é trabalho disciplinado, frequentemente, duro, difícil,
porque envolve ambiente adequado, vontade, cérebro, músculos e nervos. Resumir
um pequeno texto custa mais de aprendizagem, atenção e esforço físico-mental do
5Comentário: No dia 5 de novembro de 2023, no Espaço Aberto do jornal Estado de S.Paulo, no
artigo ‘Por que enguiça a formação profissional?’, o educador/escritor Cláudio de Moura Castro
compara Países de sucesso (Suíça, Alemanha, Japão) com o Brasil. Ora, penso eu, quando o
contexto geral é tão díspar, como comparar? “A [nossa] culpa - continua ele - está na cultura que
desvaloriza o trabalho. (...) Precisa mudar os valores da sociedade” conclui. Sim, correto, mas muito
impreciso. Da sociedade toda ou de algum setor dela? Lembro de um comentário de um empresário
italiano: “Não entendo o brasileiro: gasta horrores para adquirir a melhor máquina do mundo, mas,
para pagar o trabalhador responsável pelo funcionamento da máquina, considera suficiente um
salário-mínimo ou pouco mais. Entretanto, a máquina sem o maquinista não funciona.” Claudio de
Moura Castro citou o repetido ‘preconceito brasileiro’: - “somos um País de bacharéis!”. Ora, Cláudio
é doutor, pós-doutor e estranha e condena que a maioria dos brasileiros queira faculdade. Com efeito,
prezado Cláudio, a maioria quer faculdade porque sabe que assim ganhará mais e, ainda, porque
intui que o estudo faz bem, dilata o espírito. Intuem que a escola não ensina um ofício, mas
também educa a ser mais: ninguém a Ilíada para aprender a construir cavalos de Troia, mas para
saborear poeticamente a descrição da revolta de Aquiles contra Agamemnon. Sim, o difuso desejo
popular de bacharelado é também uma oculta forma de luta de classe: “Por que - dizem os operários
mais conscientes - não ensinaram também a nós as poesias e a literatura dos clássicos?” De sobra, o
estudo ajudará a melhorar as profissões e a própria tecnologia, a inventar, fortalecendo e elevando a
qualidade do ‘trabalho’, conforme se no Manifesto “A utilidade do inútil” de Nuccio Ordine (Ed.
Zahar).
12
que empacotar mercadorias em supermercados ou vender refrigerantes e sorvetes
nas praças etc.
No Brasil, enquanto o debate teórico sobre educação infantil avançou e
conseguimos difundir a ideia de que a brincadeira é o trabalho principal da
criança, sério, essencial, formativo, com referência aos adolescentes,
infelizmente, não conseguimos difundir a ideia de que o estudo (Ensino Médio) é o
trabalho principal do adolescente.
Por que não conseguimos? Porque identificamos ‘trabalho’ e salário. Com
efeito, certa identificação, mas não adequada, pois a categoria ‘trabalho’
transcende a de ‘salário’6.
O estudante de Ensino Médio, dependendo de sua situação socioeconômica
e do seu desempenho escolar, deve ser contemplado com bolsa de estudo e
didaticamente monitorado nas lições de casa, no contraturno do período escolar.
Cabe observar, no entanto, que, se é verdade que ‘estudar é trabalhar’,
também é verdade que ‘o estudo é um trabalho sui generis, um trabalho especial’.
Com efeito, ‘estudar é trabalhar em dois sentidos ou direções: no sentido direto,
quando o aluno aprende o que a humanidade conhece, visando a executar
operações socialmente praticadas; no sentido indireto, quando o aluno estuda
algo aparentemente ‘inútil’, mas que dilata e enriquece seu espírito, estabelecendo
com o trabalho transformador uma relação ‘criadora’ na medida em que consegue
inventar o que nunca a humanidade havia feito, isto é, resolver problemas que ainda
não foram resolvidos. É a relação focada no Manifesto A utilidade do inútil de
Nuccio Ordine (Ed. Zahar Editora, 2016).
Ensino Médio unitário ou multiforme?
‘Escola Unitária’ e ‘Escola única’ não são expressões/conceitos sinônimos: o
primeiro conota processo histórico da política-educacional, o segundo conota
identificação burocrático-formal. A unitariedade do Ensino Médio é consequência de
6Outro exemplo: pergunta-se à mulher se trabalha ou é ‘do lar’, pois ‘dona de casa ‘não seria
trabalho. Com efeito, nem os afazeres ‘do lar’, nem o estudo do ‘aluno’ recebem salário. Em suma:
existe no senso comum uma relação identificadora entre ‘trabalho’ e ‘salário’. São conceitos e práticas
capitalistas. A conclusão lógica, humanista, é: tanto as donas de casa quanto os alunos adolescentes
de Ensino Médio devem receber salário ou bolsa de estudo, dependendo, obviamente, de avaliação
positiva. Inclusive, para donas de casa, é preciso computar esse tempo como tempo de
aposentadoria.
13
determinada reforma escolar em paralelo com a democratização
sócio-econômico-cultural da Nação7.
No Brasil, a unitariedade linguística nacional é um dado de fato e um valor. A
unitariedade econômico-cultural, entretanto, é meta longínqua e ainda não
corresponde a um projeto político nacional. Em todo caso, para alcançar essa meta,
a função estratégica do Ensino Médio é indiscutível.
O passo-a-passo de uma política educacional unitária, referente ao Ensino
Médio, grosso modo, é o seguinte:
a) Primeiro: matricular todos os jovens de 14 a 17 anos no Ensino Médio regular.
b) Segundo: estabelecer para essa fase escolar um unitário objetivo de
formação geral. A saber: tornar o aluno uma pessoa capaz de pensar, estudar
e dirigir ou controlar quem dirige.
c) Terceiro: organizar, visando a esse objetivo geral, percursos curriculares
pedagogicamente adequados às diferentes condições socioculturais e
materiais dos matriculados.
Tarefa hercúlea, mas necessária.
O antigo ministro da Educação, Cristóvão Buarque, quando pensava
federalizar o Ensino Médio, visava, mais ou menos, uma reforma nessa direção.
A redução progressiva da multiplicidade dos percursos curriculares do Ensino
Médio evidenciaria que o Brasil está se movendo em direção à sua unitariedade.
Infelizmente, estamos indo em direção oposta, pois a multiplicidade dos percursos
escolares de Ensino Médio aumenta cada vez mais8.
8Existem: Ensino Médio Regular, Integrado, Inovador, destinado a jovens e adultos (EJA), EJA
integrado à formação profissional (PROEJA), voltado à educação escolar quilombola e do campo,
destinado à educação especial. Tais modalidades podem ser oferecidas pelo setor público (estadual,
municipal ou federal), privado ou misto, como é o caso do Sistema “S” (SENAI, SENAC, SESI etc.)
que recebe recursos públicos mesmo sendo privado. Os cursos podem ocorrer em turnos da manhã,
tarde, noite, sendo presenciais, semi presenciais, à distância, entre outras modalidades. Além disso, a
recente Reforma do Ensino Médio determina que os sistemas de ensino estaduais se tornem
responsáveis por definir as Diretrizes Curriculares para o Ensino Médio, desde que respeitem os
conhecimentos essenciais da BNCC. Isso implica que, além da diversidade mencionada, existem,
atualmente, 26 modelos estaduais distintos de Ensino Médio, mais o Distrito Federal.
7Na Itália do final do século XVIII, recém unificada (1860), a questão da ‘unitariedade nacional cultural
e linguística’ era da máxima importância e urgência.
14
Objetivos gerais do Ensino Médio.
Os objetivos gerais do Ensino Médio são, fundamentalmente, três: a) oferecer
para o adolescente elevada cultura geral, atualizada e profissionalmente
indiferenciada; b) desenvolver sua autodisciplina intelectual (saber estudar e
pesquisar) e c) desenvolver sua autonomia moral (saber se dirigir e comportar na
vida).
No próprio estudo aprenderá a ‘trabalhar com criatividade e dedicação
disciplinada.
Na transição do ensino fundamental, prioritariamente ‘dogmático’, para o
ensino médio mais ‘investigativo’, o aluno identificará, aos poucos, sua tendência
criativa mais profunda, conforme o dito socrático: “Conhece-te a ti mesmo”:
O problema fundamental se coloca com respeito à fase da carreira
escolar representada pelo ensino médio, que em nada se diferencia,
atualmente, como tipo de ensino, das fases escolares anteriores (...).
De fato, a Escola Unitária deveria ser organizada como Escola em
Tempo Integral, com vida coletiva diurna e noturna, liberta das atuais
formas de disciplina hipócrita e mecânica e o estudo deveria ser feito
coletivamente, com a assistência dos professores [ou monitores] e
dos melhores alunos, mesmo nas horas do estudo individual etc.
(GRAMSCI, 1975, p.1536).
Didaticamente, as aulas expositivas no Ensino Médio devem ser substituídas
progressivamente pelos seminários.
Nota: A disciplina ‘Moral e cívica’ dos governos militares, em muitos
casos, representava para eles um ‘tiro no pé’, tanto que os militares pretendiam
reformular a proposta. Isso significa que a disciplina possui um potencial formativo
ambivalente: doutrinário e formativo. Isso deve ser analisado pedagógica e
politicamente e, se for o caso, utilizado.
O Ensino Médio Supletivo difere do Ensino Médio Regular.
A idade mínima para ingressar no ensino médio supletivo é 18 anos. Ou seja,
a idade em que o jovem não é mais um adolescente em busca de sua identidade e
sim um trabalhador em busca do valor e sentido do seu trabalho.
Salvo em alguns conteúdos, os dois sistemas de ensino médio (regular e
supletivo) diferem radicalmente nos objetivos e no método, simplesmente porque o
15
momento formativo do adolescente é diferente do adulto trabalhador. Com efeito, o
adulto, aluno do Ensino Médio Supletivo, não prioriza o socrático “conhece-te a ti
mesmo” como ocorre com o adolescente de 14 a 17 anos.
Obviamente, a idade é um fator muito importante. Os educadores, ao
alfabetizarem um adulto, sabem que seu aluno conhece o mundo, ‘trabalha’ por
salário, talvez, formou uma nova família e tem filhos, enfim, não é mais um
adolescente. Logo, não podem utilizar com alunos adultos os instrumentos didáticos
que utilizavam na alfabetização, nas aulas do Ensino Fundamental 2 ou do Ensino
Médio regular. Alguns conteúdos formais são os mesmos, mas o método didático é
radicalmente diferente.
Conclusão
Hoje, finalmente, o Ensino Médio voltou a ganhar centralidade.
Mas logo percebemos ser dificílimo definirmos conteúdos, formas didáticas e
métodos de pesquisa adequados aos nossos alunos hipnotizados pelo encanto dos
meios eletrônicos de comunicação. Talvez, seja esse o desafio maior que a
sociedade da informação põe à escola.
Lembro-me de minhas aulas, em São Paulo, em 2015/16. Turno noturno. Sala
com cerca de 70 alunos. Pretendia eu explicar o mito da caverna de Platão. A maior
parte dos alunos fixava os celulares. Senti-me perdido. Disse: ‘quem quer olhar o
celular, por favor, fique na esquerda da sala; quem quiser ouvir minha aula, fique na
parte direita’. Nesta, ficou uma dúzia de alunas. Tentei explicar o mito da caverna.
Mas, dentro de mim, repetia: esta situação, nas aulas de didática no meu curso de
Pedagogia, não fora colocada, nem analisada e resolvida.
Com Tullio De Mauro (2001), hoje, pergunto-me: o homo sapiens
transformou-se em homo currens, sempre atrás de novidades? Como superar essa
triste alternativa? Faço minhas as palavras do autor:
Ohomo sapiens precisa encontrar, mais uma vez, o modo de
controlar, para melhor, as tecnologias que, nós mesmos, procurando
o melhor, desenvolvemos. Não se trata nem de capitular diante do
Grande Irmão (a TV), nem de destruir as redes telemáticas e os
satélites. Trata-se de desenvolver a capacidade de controlar
criticamente os fluxos informativos, dos quais, hoje, as sociedades
precisam para viver e produzir. (DE MAURO, 2001, p. 160).
16
Referências
BOBBIO, N. et alii. Dizionario di politica. Verbete ‘populismo’. Torino: UTET, 1990.
CROCE, B. História como história da liberdade. Trad. Julio Castañon Guimarães.
Rio de Janeiro: Topbooks, 2006.
DE MAURO, Tullio. Minima Scholaria. Roma: Laterza, 2001.
FIORI, G. Vita di Antonio Gramsci. Roma: Editori Laterza, 1977.
LUZIO, A. S. La scuola degli italiani. Bologna: Il Mulino, 2007.
NOSELLA, P. Ensino médio à luz do pensamento de Gramsci. Campinas, SP:
Alínea, 2016.
GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere: Antonio Gramsci: os intelectuais; o
princípio educativo; jornalismo. Edição e tradução de Carlos Nelson Coutinho;
co-edição de Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira. v. 2. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2001.
GRAMSCI, A. Socialismo e cultura. In: Escritos Políticos. Ed. Carlos Nelson
Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004.
GRAMSCI, A. Quaderni del carcere. Torino: Einaudi, 1975.
GRAMSCI, A. Epistolario 1. Gennaio 1906-dicembre 1922. Roma: Istituto della
Enciclopedia Italiana, 2009.
17
V.22, 48 - 2024 (maio-agosto) ISSN: 1808-799 X
FORMAÇÃO DE ECONOMISTAS: DÉFICITS E DEBILIDADES ECOLÓGICAS1
Eduardo Barreto2
Resumo
O artigo examina o descompasso atual entre a formação científica de economistas e a acelerada
transformação de seu objeto, tanto em sua dimensão propriamente socioeconômica quanto em sua
dimensão ambiental. Orientada para a temática ecológica, a discussão apresenta as principais
tradições de pensamento econômico a ela dedicadas, apontando como as limitações e possibilidades
de cada uma refletem os imperativos e impossibilidades do próprio objeto de investigação ao qual se
dedicam. Isso fornece uma chave de leitura para entendermos alguns déficits de formação decisivos
que povoam a formação corrente de economistas
Palavra-chave: Ensino de economia; Economia ambiental; Economia ecológica; Ecologia marxista.
FORMACIÓN DE ECONOMISTAS: DÉFICITS Y DEBILIDADES ECOLÓGICAS
Resumen
El artículo examina la desconexión actual entre la formación científica de los economistas y la
transformación acelerada de su objeto, tanto en su dimensión socioeconómica como en su dimensión
natural. Orientada hacia temas ecológicos, la discusión presenta las principales tradiciones del
pensamiento económico dedicadas a ella, señalando cómo las limitaciones y posibilidades de cada
una reflejan imperativos e imposibilidades del propio objeto de investigación al que se dedican. Esto
proporciona una clave de lectura para comprender algunos déficits formativos decisivos que pueblan
la formación actual de los economistas.
Palabra clave: Enseñanza de economía; Economía ambiental; Economía ecológica; Ecología
marxista.
TRAINING OF ECONOMISTS: ECOLOGICAL DEFICITS AND WEAKNESSES
Abstract
The article examines the current mismatch between the scientific training of economists and the
accelerated transformation of their object, both in its socio-economic dimension and in its natural
dimension. Oriented towards the ecological theme, the discussion presents the main traditions of
economic thought dedicated to it, pointing out how the limitations and possibilities of each one reflect
imperatives and impossibilities of the object of investigation to which they are dedicated. This provides
a key to understanding some decisive training deficits that populate the current training of economists.
Keyword: Economics training; Environmental economics; Ecological economics; Marxist ecology.
2Doutor em Economia pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Rio de Janeiro - Brasil. Professor
associado da Faculdade de Economia da Universidade Federal Fluminense (UFF), Rio de Janeiro -
Brasil, e do Programa de Pós-graduação em Economia (PPGE-UFF).
Email: eduardobarreto@id.uff.br. Lattes: http://lattes.cnpq.br/5465013386077465.
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4431-2607.
1Ensaio recebido em 11/01/2024. Primeira Avaliação em 09/04/2024. Segunda Avaliação em
10/06/2024. Aprovado em 17/07/2024. Publicado em 07/08/2024.
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v22i48.61405.
1
And all the science, I don't understand
It's just my job five days a week
Rocket Man (Elton John)
Introdução
Em novembro de 2022, o XXXVII Congresso da Associação Nacional dos
Cursos de Graduação em Ciências Econômicas trouxe em sua programação um
debate a respeito do ensino da questão ambiental nos cursos de Economia, fazendo
um chamado explícito pela transversalidade no tratamento do tema. Naturalmente,
um chamado com tais características nos inclina, a princípio, a cogitar a arquitetura
mais desejável, eficientemente desenhada e sintonizada com os desafios
contemporâneos para a formação de economistas.
Uma aproximação propriamente materialista a esta tarefa, no entanto,
rapidamente descobre uma série de barreiras objetivas para a empreitada. Delas,
tratamos nas seções 2 e 3. A seção 2 procura apresentar uma tensão fundamental
entre o pensamento marxista e o pensamento econômico em geral, o que, de saída,
cria obstáculos para a formulação e adesão de recomendações a partir do
marxismo. A seção 3 traz um panorama das limitações específicas de três
alternativas de pensamento econômico voltadas para as questões ecológicas. Sem
a pretensão de propor um percurso ideal, as duas seções seguintes mapeiam os
principais déficits formativos no que tange às questões ecológicas e, sem perder de
vista suas raízes objetivas, apontam as direções em que tais déficits poderiam ser
superados. Nesse sentido, a seção 4 explora a insuficiente incorporação das
contribuições das ciências da natureza e o tratamento incompleto da questão
energética. A seção 5, por sua vez, pretende discutir déficits menos óbvios,
abordando questões relacionadas à filosofia da ciência e à lógica formal. Na seção
conclusiva, procura-se sublinhar como esse exercício deixa progressivamente
evidente que a superação dos referidos déficits exigiria, ao fim e ao cabo, a
formação generalizada de economistas anticapitalistas, um resultado que
encontraria condições objetivas de efetivação generalizada em meio a um processo
de ruptura histórica com a presente sociedade (e não por meio da implementação
diligente de um grande projeto pedagógico mais esclarecido, por dentro da ordem
vigente).
2
O marxismo diante do pensamento econômico
Este texto pretende, a partir de uma perspectiva marxista, abordar
propositivamente que a formação de economistas enfrenta dois desafios imediatos.
Por um lado, o marxismo não compartilha com o pensamento econômico a
pretensão de divisar os meios mais eficientes e eficazes de gerir as mazelas e
disfuncionalidades da sociedade capitalista. O horizonte crítico do marxismo é
negativo, i.e. aponta para a necessidade de superação (negação) desta sociedade.
Ao contrário do que poderia parecer à primeira vista, portanto, um espaço
bastante estreito de interseção entre o que é útil e decisivo para a formação de
economistas (mesmo considerando tradições heterodoxas) e o que é entendido
como necessário ou imprescindível por marxistas. Por outro lado, o entendimento
marxiano a respeito da predominância de certas formas de consciência (inclusive as
científicas) nos leva a suspeitar que o design consciente de um percurso formativo
tem um alcance relativamente limitado na determinação da formação propriamente
dita. Abordo rapidamente esta segunda questão abaixo para, em seguida, explorar
aquela estreita zona de interseção.
É bastante conhecida a afirmação de Marx e Engels de que as “ideias da
classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes, isto é, a classe que é
a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua força espiritual
dominante”. (Marx & Engels, 2007, P. 47) Tal alegação, que a princípio pode soar
hiperbólica e determinista, carrega um sentido que pode ser elaborado aqui com
bom proveito.
A todo momento, a realidade e o movimento da realidade nos assediam com
uma série de necessidades e desafios que exigem de nós respostas. (Lukács, 2013)
Naturalmente, a variedade de respostas é imensa. Individuais ou coletivas,
consensuais ou impostas, mais ou menos espontâneas, mais ou menos
conscientemente articuladas, conservadoras ou subversivas, precárias ou
sofisticadas, mais ou menos fundamentadas, mais ou menos infundadas etc. Em
meio a essa variedade, algumas serão de maior qualidade que outras, algumas
serão mais realizáveis que outras, algumas serão centrais (dominantes) e outras
permanecerão às margens.
3
O fundamental a ser destacado aqui é que não é a maior ou menor qualidade
das ideias que garante a sua posição dominante ou marginal. O trecho citado acima
é representativo de um entendimento mais amplo segundo o qual as ideias
dominantes tendem a ser aquelas mais compatíveis com a reprodução do estado de
coisas vigentes. Neste mesmo diapasão, aquelas ideias que entram mais
frontalmente em conflito/tensão com as condições necessárias para a reprodução do
existente, tendem a sobreviver (se tanto) nas margens do tecido social.
Transpondo essa intuição básica para o domínio específico do pensamento
econômico e para a tarefa de conceber conscientemente os melhores caminhos
para formar economistas, o quadro que se apresenta possui características
marcantes. Não é por obra do acaso ou de um elaborado projeto que o perfil
predominante do(a) economista seja formado por concepções teóricas ortodoxas.
Tampouco se pode afirmar que as ideias que hoje formam a ortodoxia chegaram a
essa posição como fruto de uma arquitetura formativa levada a cabo de maneira
diligente e mais ou menos generalizada. Na verdade, tanto o perfil predominante
do(a) economista quanto os percursos adotados para formá-los(las) encontram uma
determinação mais fundamental nas maneiras como a realidade social desafia
os(as) cientistas da economia a pensar o mundo.
Desenvolver essa discussão em todos os seus ricos detalhes exigiria um
trabalho à parte. Para os fins deste texto, no entanto, é suficiente relembrarmos o
que o próprio Marx tem a dizer a respeito. (Marx, 2013) Originalmente, o projeto
básico da nascente ciência econômica esteve orientado pela necessidade de
demonstrar a superioridade da então emergente sociedade capitalista em relação à
decadente sociedade feudal. Nisto, foi fundamental oferecer uma explicação para a
capacidade extraordinária de produção de riqueza sob o comando do capital e para
as (supostas) possibilidades de harmonização espontânea de interesses privados
proporcionadas pela generalização da produção de mercadorias.
Não é difícil perceber que uma demonstração dessa natureza cobra uma
investigação profunda das estruturas e mecanismos de criação, ampliação e
circulação da riqueza. Nessa era de transição, de desmoronamento de velhas
estruturas sociais e emergência de uma nova classe dominante, as ideias mais
compatíveis com a reprodução do tempo presente foram justamente aquelas que
desafiaram o antigo e sistematizaram teoricamente o novo. Por isso, não surpreende
4
que a ortodoxia da época tenha sido a Economia Política clássica, que o tema
central tenha sido a questão do valor e que o perfil do economista típico estivesse
predominantemente condicionado por essas ideias. Nesse ambiente social, político,
científico, é claramente insustentável supor que ideias semelhantes às da ortodoxia
contemporânea (caso existentes) pudessem prosperar.
Uma vez concluída a emergência histórica da sociedade capitalista, no
entanto, esse fundamento objetivo da dominância da Economia Política clássica
deixa de existir. Quanto mais consolidado o domínio do capital sobre o movimento
da realidade social, mais o pensamento econômico perde o ímpeto desbravador
para assumir contornos de uma moral científica, i.e. de um pensamento sistemático
orientado para articular diretrizes racionais para um agir social eficaz para a
acumulação de capital (Medeiros, 2013). Nessa nova realidade plenamente
estabelecida, atravessada periodicamente por crises e tensionada permanentemente
pelo conflito entre capital e classe trabalhadora, é a ortodoxia clássica que se torna
anacrônica e insustentável, posto que sua principal descoberta científica (o trabalho
como fundamento objetivo do valor) situa nos trabalhadores a raiz do dinamismo
capitalista para a produção de riqueza, ainda que caiba ao capital a parte do leão de
tudo que é produzido.
Três alternativas e suas limitações
Para que este exercício não pareça um desvio sem sentido de nosso tema
principal, note que nele lições que podem ser extraídas para uma reflexão sobre
o lugar das questões ecológicas na formação de economistas. Numa primeira
aproximação, duas podem ser destacadas. Em primeiro lugar, não deve surpreender
que predomine no pensamento econômico uma perspectiva instrumentalista a
respeito da natureza. diversas instâncias de separação entre humanidade e
natureza que conformam o metabolismo próprio do capital: a separação entre
populações rurais e a posse da terra, a organização espacial marcada por grandes
aglomerações urbanas e a progressiva separação entre campo e cidade, a
racionalidade produtiva presidida pelo valor e não pelo valor de uso, a mobilização
das coisas do mundo como meros recursos para fins produtivos etc. Em suma, o
metabolismo social encontra-se todo calibrado para apropriar-se materialmente do
5
mundo a serviço de um fim singular que subordina todos os demais, a acumulação.
A consciência científica que se propõe divisar os melhores meios de operar esse
metabolismo tende, portanto, a espelhar o caráter utilitarista/instrumental que o
povoa.
Em segundo lugar, vivemos um momento muito singular da história humana.
Não estamos apenas diante de uma dinâmica social ecologicamente destrutiva. A
destrutibilidade dessa dinâmica é tamanha e vem erodindo a tal ponto as bases
ecológicas materiais de suporte à vida (e à vida em sociedade, evidentemente) que
o momento atual pode ser descrito, sem exageros, como um desmoronamento
iminente. Diante disso, a reflexão ecológica, se conduzida seriamente,
necessariamente traz consigo a conclusão de que a demanda material da
humanidade sobre o planeta precisa ser urgentemente moderada e, enfim,
contraída. A moderação e a contração, contudo, são inconciliáveis com o capital. O
pensamento econômico dominante não pode incorporar em seus sistemas teóricos a
dimensão ecológica a não ser como um afterthought acessório e sem
consequências para a marcha necessariamente crescente da produção.
Naturalmente, isso não significa que a discussão sobre o percurso formativo
de economistas esteja interditada. Por um lado, nada impede que antídotos às
inclinações antiecológicas do pensamento econômico dominante sejam elaborados
e espalhados ao longo do caminho de formação. Por outro lado, é preciso ter clareza
que essas “contra-sementes” precisam de solo fértil para germinar, algo que o
mundo do capital não proporciona e não pode proporcionar.
Tendo em vista essa chave de leitura, o que pode ser dito a respeito da
localização atual das questões ecológicas no pensamento econômico?
A Economia Ambiental é a tradição que espelha mais direta e acriticamente o
sentido geral do metabolismo que acabamos de destacar. A natureza, ao fim e ao
cabo, é incorporada à reflexão como mera fonte de recursos e sumidouros. Sendo
este o registro epistemológico, a elaboração teórica naturalmente se inclina às
questões relativas à escassez ou ao exaurimento de recursos, por um lado, e ao
acúmulo de resíduos em padrões (volume e ritmo) poluentes, por outro. Permanece
ausente das considerações qualquer perspectiva sistêmica a respeito das estruturas,
mecanismos e dinâmicas próprias do mundo natural e da interação entre sociedades
e natureza.
6
A condição de ortodoxia da Economia Ambiental, todavia, não é garantida
apesar dessas evidentes debilidades. Ao contrário, tais limitações tão-somente
reproduzem no plano teórico o produtivismo instrumentalista míope (ou cego) do
capital, que reconhece as determinações ecológicas apenas na medida em que elas
auxiliam ou não, dificultam ou não, a acumulação. Na medida em que considerações
estranhas (alheias, externas) ao movimento do capital encontram-se abstraídas da
teoria, é essa teoria que se apresenta mais compatível com a reprodução do
metabolismo socioecológico presidido pelo capital.
Alternativamente, a Economia Ecológica reconhece de maneira explícita o
mundo natural como base material ineliminável da vida em sociedade. Uma de suas
contribuições teóricas mais decisivas é a transposição do conceito de entropia (da
termodinâmica) para, ao mesmo tempo, caracterizar o metabolismo entre
sociedades e natureza e indicar que ele possui uma direção (o aumento da
entropia). Evidentemente, como qualquer transposição de conceitos, esta também
apresenta limites. Na física, o conceito refere-se a energia total em um sistema
isolado (Carrol, 2022). Na economia ecológica, refere-se a matéria e energia em um
sistema fechado, o que talvez torne seu uso anacrônico e indevido.
De qualquer forma, não é isso que interessa examinar neste momento.
Admitindo que o uso seja adequado, sua consequência lógica/teórica incontornável
é não apenas a impossibilidade de um crescimento perpétuo, mas o imperativo do
decrescimento. Georgescu-Roegen (2008) não se exime de formular essa
conclusão, mas é sintomático que circulem nessa tradição teórica outras
proposições a respeito do crescimento que procuram, por vias diversas, contornar o
imperativo do decrescimento. (Daly & Farley, 2010) Essa variedade de proposições a
partir de um fundamento teórico tão decisivo e determinante é sintoma de que?
Sintoma de que o decrescimento, seu corolário, é profundamente inconciliável com a
reprodução da sociedade presidida pelo capital e que, portanto, ideias que o
preconizam sobrevivem necessariamente nas margens (se sobrevivem).
Por falar em sobreviver às margens, a Ecologia Marxista tem algo em comum
com a Economia Ecológica, mas também algo de muito específico. Por um lado, por
outros caminhos, nela um esforço consciente de integrar com rigor considerações
ecológicas ao sistema teórico geral. O modo típico de fazê-lo tem sido recuperar a
7
discussão que Marx faz da assim chamada ruptura metabólica3e estendê-la para o
conjunto da compreensão acerca do metabolismo entre sociedades e natureza
regulado pelo capital. (Foster, 2005) Ainda que seja possível apontar uma
sobrevalorização indevida do peso teórico que a ruptura metabólica poderia e
deveria ter, combinada a um certo uso anacrônico da fronteira científica do século
XIX (a química dos solos de Liebig, por exemplo), também é possível encontrar
nessas contribuições elementos suficientemente consistentes para articular uma
crítica ecológica da sociedade capitalista.
A diferença, por outro lado, é que na Ecologia Marxista encontramos menos
hesitação/resistência em extrair as devidas consequências anticapitalistas dessa
crítica. Mais uma vez, não deve haver surpresa, em dois sentidos. Primeiramente, é
notório que o pensamento marxista, embora dirija seu esforço científico à
compreensão do presente, não se circunscreve aos parâmetros reprodutivos do
presente, tem um horizonte teórico e prático para além do capital. Trata-se da
tradição vocacionada a preconizar explicitamente a negação desta sociedade.
Sendo assim, diretrizes inconciliáveis com o capital e sua lógica não geram
inconsistências entre teoria e prática e os consequentes becos sem saída teóricos
que obrigam a recuos práticos. Todavia, em segundo lugar, é justamente essa
incompatibilidade insuperável entre a Ecologia Marxista e as alternativas realmente
possíveis de gestão do metabolismo do capital que garante a ela necessariamente a
localização marginal destinada às teorias subversivas (por melhores que sejam)
enquanto não se abre um processo histórico de ruptura com o presente.
Em suma, retornando à indagação a respeito das possibilidades de formar
economistas com perfil mais alinhado aos desafios ecológicos que nos defrontam,
se a ortodoxia tende a replicar as inclinações antiecológicas da realidade social
presente e a heterodoxia vê-se obrigada a recuos práticos ou ao ostracismo, quais
seriam aqueles antídotos que poderiam ser espalhados de maneira paliativa pelo
percurso formativo?
3A disrupção do fluxo de nutrientes que restabelecem a fertilidade do solo, causado perda de
fertilidade no campo e acumulação poluente de resíduos orgânicos nos centros urbanos.
8
Chamado à transversalidade: antídotos para os déficits óbvios
Conforme afirmado no início, a realidade é sempre povoada de desafios e
urgências que exigem de nós respostas. Sem dúvida alguma, o mais monumental
complexo de desafios que a humanidade tem diante de si, que exigirá um conjunto
de respostas variado, sofisticado e, em grande medida, inédito, é a crise climática.
As possibilidades de respostas bem-sucedidas pressupõem a adequada mobilização
coordenada de esforços a partir dos vários domínios do nosso conhecimento
científico (hoje enclausurados em compartimentos com pouca comunicação).
A Economia não poderá evadir-se de contemplar determinações e tendências
dessa crise que atravessam seu objeto. Sem esquecer das limitações que
acabamos de apontar, entende-se por que isso vem sendo feito com uma ênfase
excessiva em discussões acerca de impactos sobre o PIB e de custos econômicos
de mitigação e adaptação. Por outro lado, será cada vez mais incontornável a
necessidade de avançar para um entendimento minimamente rigoroso a respeito de
contribuições das ciências da natureza, ainda incorporadas de maneira desleixada.
Não é suficiente que economistas em formação sejam expostos(as), quando
muito, a considerações a respeito das emissões de gases de efeito estufa (GEE).
Para que o padrão de emissões e as trajetórias de mitigação possam ser
consistentemente apreciados, é preciso integrá-los a uma compreensão mais geral
dos mecanismos da física atmosférica. É preciso entender que a elevação da
temperatura média do planeta não tem como causa imediata as emissões, mas uma
desestabilização no balanço energético do planeta provocada por uma progressiva
mudança química da atmosfera, esta sim impulsionada em grande medida pelas
emissões de GEE oriundas de atividades humanas.
A partir dessa compreensão descarta-se, por exemplo, teses negacionistas a
respeito da importância de emissões naturais ou da atividade solar, ou da
excentricidade da órbita da Terra. Esses fatores poderiam ser determinantes de
mudanças climáticas, mas existem fortes razões e vasto conjunto de evidências para
afirmarmos que não são esses os vetores decisivos nas mudanças ora em curso.
Uma vez entendidas as mediações físicas entre emissões antrópicas e composição
atmosférica, também se compreende as razões de variações negativas nas
emissões não necessariamente implicarem variações negativas na concentração de
9
gases de efeito estufa, algo que, combinado ao conhecimento a respeito dos
sistemas oceânicos e terrestres de absorção desses gases, é absolutamente central
para conceber de maneira realista estratégias de estabilização.
Esse conhecimento, a propósito, precisaria ainda ser enriquecido por noções
mais amplas a respeito do funcionamento do Sistema Terra, abrangendo ciclos
biogeoquímicos (como o do nitrogênio e o do carbono, por exemplo), limites
planetários e mecanismos de retroalimentação. (Rockstrom et al., 2009; Steffen et
al., 2015) Apenas sobre esses fundamentos se pode articular rigorosamente
considerações a respeito de pontos críticos de não retorno, mudanças abruptas,
colapsos e, especialmente, ter maior clareza a respeito dos diversos graus de
urgência que daí emergem.
Apenas sobre esses fundamentos é possível absorver seriamente, de maneira
propriamente científica, o ritmo acelerado em que são publicadas atualizações do
melhor conhecimento à disposição, do acervo de evidências, das várias projeções
de cenários futuros. Não custa lembrar que as dificuldades para caminhar nessa
direção não são necessariamente originadas em concepções pedagógicas
mal-informadas (ou mal-intencionadas). Levar em consideração todo esse amplo
repertório de elementos torna demasiadamente flagrante o descompasso abissal
entre as destruições e urgências ecológicas que temos impulsionado e as políticas
economicamente determinadas que têm sido elaboradas e, em menor medida,
perseguidas. (IPCC, 2023) Em outros termos, levar a ciência a sério talvez seja
subversivo demais para um ramo do conhecimento de vocação conservadora.
Abstraindo momentaneamente dessa restrição objetiva, devemos apontar
outro tópico que se impõe no rastro da questão climática: a centralidade da questão
energética. Segundo dados da Climate Watch, mais de 70% de todas as emissões
de GEE estão relacionadas à produção ou ao consumo de energia.4Significa que
nenhuma estratégia crível de controle das emissões para estabilização da química
atmosférica pode passar ao largo de uma imperativa descarbonização5do setor.
As alternativas viáveis de descarbonização não são muitas. A mais evidente e
imediata seria a contração da escala total de produção e consumo de energia. Esta
alternativa, no entanto, é incompatível com um sistema compulsivamente expansivo.
5Ainda de acordo com a Climate Watch, 90,1% das emissões totais do setor em 2019 foram de CO2.
4Os dados mais recentes são de 2019, quando o setor de energia respondeu por 75,64% das
emissões. Disponível em: https://www.climatewatchdata.org/ghg-emissions.
10
Não por acaso, no debate sobre descarbonização se observa uma predominância
virtualmente completa de outra alternativa, a transição energética.
A princípio, nada impediria que a contração da escala integrasse uma
estratégia de transição energética. Todavia, uma vez que decrescimento é um tema
proscrito no pensamento econômico em geral, a transição acaba tendo que ser
concebida como uma combinação de reduções da intensidade energética do PIB e
da intensidade em emissões do consumo de energia. Para a primeira, a política
normalmente preconizada é o estímulo aos ganhos de eficiência energética. Para a
segunda, o aumento proporcional da participação de fontes menos intensivas em
carbono na matriz energética (Sá Barreto, 2018).
O histórico dessas duas vias nas últimas três décadas, contudo, tem sido de
um bem-sucedido fracasso. Explica-se: tanto a trajetória da eficiência energética
quanto a da oferta primária de energia a partir de fontes renováveis têm exibido
padrões marcadamente ascendentes, o que indica algum êxito das referidas
medidas. Nenhuma das duas, porém, demonstrou-se capaz de descarbonizar a
produção e consumo de energia em âmbito geral (e nem mesmo de caminhar ao
menos, pequenos passos nessa direção). O(a) economista médio(a) encontra-se
mal municiado de elementos teóricos para compreender esse aparente paradoxo.
Na próxima seção, procurarei elaborar um pouco a respeito dessa
incapacidade, situando-a em um dos déficits de formação mais debilitantes para
pensar sobre questões ecológicas. Antes disso, precisamos avançar um pouco mais
no tema energia.
Certamente, para um conjunto relevante de questões econômicas, é suficiente
abordar energia como meras quantidades abstratas: oferta, demanda, capacidade
instalada, consumo, preço, reservas etc. Esses determinantes não deixam de ser
importantes quando ultrapassamos considerações estritamente econômicas, mas
outros determinantes aparecem como incontornáveis. Alguns deles, inclusive,
recebem alguma atenção da literatura econômica. É o caso de um tratamento
histórico do surgimento de alguns dos principais subsetores relacionados à energia,
como o do carvão, petróleo, eletricidade, gás natural etc. Tal tipo de reflexão apura o
entendimento não apenas a respeito de raízes históricas relevantes de padrões
11
observados contemporaneamente, mas também de importantes determinações
geográficas.6
Também não é difícil encontrar discussões sobre o movimento dinâmico
desses subsetores que incorporem mais do que as variáveis quantitativas mais
básicas, contemplando, por exemplo, tensões e tendências provocadas por
interesses geopolíticos ou por inovações tecnológicas. Por outro lado, é significativa
a ausência de um exame sistemático a respeito dos limites e das zonas de
impossibilidade para esse movimento. Se enfrentar de maneira consequente os
riscos da crise climática exige reestruturações dramáticas (profundas, aceleradas e
sem precedentes) (IPCC, 2023) de toda a infraestrutura energética, então o
movimento espontâneo ou as pequenas correções de rota e gerenciamentos
incrementais serão sempre crônica e perigosamente insuficientes.
Isso posto, o(a) economista que não tem em seu repertório elementos
suficientes para um exame acurado a respeito de mudanças abruptas e das
possibilidades e impossibilidades de conduzi-las de maneira planejada estará cada
vez mais mal equipado(a) para pensar e intervir no tempo presente.
Ademais, quanto às impossibilidades, é preciso estar claro que elas têm uma
dimensão técnica, mas também irremediavelmente social. É inadequado trabalhar
com a suposição de que a transição energética depende tão-somente da criação
e/ou universalização de melhores fontes energéticas. Para haver transição de fato, é
necessário não apenas que o novo surja, mas também que substitua o velho. Isso
implica a necessidade de superar, por exemplo, os combustíveis fósseis. E superar
os combustíveis fósseis nesta sociedade requer superar o capital fóssil. (Malm,
2016) Mas a formação do(a) economista é toda voltada para pensar a promoção do
capital,7jamais sua contenção ou contração. Reside mais um aspecto de
descompasso crescente entre a Economia e os novos desafios emergentes.
Chamado à transversalidade: antídotos para os déficits não óbvios
cerca de duas décadas, ainda era comum que os cursos de Economia
tivessem uma disciplina dedicada à metodologia. Não me refiro àquela que ainda
7Tal afirmação não exclui o fato de que isso se manifesta de maneira bastante variada nas diversas
tradições teóricas.
6Cf. diversos capítulos de Pinto Jr. (2007).
12
persiste, dedicada às rotinas de pesquisa e à elaboração dos trabalhos de conclusão
de curso. Refiro-me a um momento dedicado à filosofia da ciência e à linha de
desenvolvimento das concepções epistemológicas que informam o que se entende
como ciência. À medida que a apresentação desses conteúdos foi saindo de cena,
economistas em formação foram privados do repertório mínimo para refletir
criticamente a respeito do seu próprio ofício como cientistas sociais e para integrar
rigorosamente as contribuições de outras áreas do conhecimento à sua própria.
Aqui, interessa-nos elaborar um pouco mais a respeito deste segundo aspecto.
É notório que circula no senso comum uma série de opiniões a respeito do
que a ciência faz e da qualidade dos resultados que produz. Especialmente no que
tange às ciências naturais, esse senso comum tem fortes traços positivistas:
supõe-se que o esforço científico pressupõe neutralidade dos(das) cientistas e, se
bem-sucedido, comprova teses e hipóteses por meio de testes empíricos. O
problema de incorporar essas ideias, mesmo que parcialmente, é duplo.
Por um lado, perde-se de vista que ideias positivistas nesse registro ingênuo
estiveram sob escrutínio crítico nos debates em filosofia da ciência e foram
superadas, primeiro por outras ideias positivistas mais sofisticadas, depois por ideias
pós-positivistas e, enfim, anti-positivistas. (Caldwell, 2003) O fato de ainda
persistirem até hoje traços de positivismo na maneira como cientistas enxergam e
procuram conduzir sua prática concreta não contradita essa linha evolutiva. Ao
contrário, é sintoma de deficiência crescente de formação filosófica, não apenas de
economistas, mas inclusive de cientistas de outras áreas.
Por outro lado, quando a realidade invariavelmente confronta esse tipo de
certeza quanto aos poderes da ciência de comprovar coisas, o positivista torna-se
presa fácil do irracionalismo. Quando confrontadas com a realidade, as teorias
fatalmente exibem imprecisões, incertezas, incompletudes. No que tange às
questões climáticas, a física atmosférica demonstrou-se insuficiente para sozinha,
explicar climas passados e presente e proporcionar projeções de climas futuros.
Assim, a perspectiva do Sistema Terra veio a proporcionar uma compreensão mais
rica de determinações e, por isso, ao mesmo tempo mais precisa e abrangente. As
previsões, por sua vez, precisam ser constantemente revistas e atualizadas, com o
agravante de que um forte descompasso entre os erros de previsão e a maneira
como esses erros são em geral percebidos pelo público leigo (inclusive
13
economistas). Via de regra, as previsões são vistas como catastróficas, mas a
realidade é que elas têm muito mais frequentemente subestimado a severidade e o
ritmo das mudanças em curso. Aqueles que atribuem à ciência o papel e a
capacidade de produzir certezas são levados a questionar a ciência, não suas
concepções anacrônicas a respeito dela. O irracionalismo, por isso, torna-se presa
fácil do negacionismo, em suas inúmeras versões.
Além desse efeito no plano da consciência teórica, o excesso de confiança
positivista tem consequências práticas. Como se sabe, uma das vias mais
importantes do esforço científico contemporâneo é delinear os caminhos que
teríamos que percorrer para garantir chances de evitar os piores e mais inaceitáveis
impactos da crise climática. A mente positivista tende a vê-los como “mapas da
mina”: se existe o mapa, é porque é possível; se é possível, basta reunir os recursos
necessários e a vontade e seguir os passos; se os passos forem seguidos à risca, o
objetivo é alcançado. Nada mais distante do que a ciência realmente tem dito.
Tomando dois dos relatórios mais recentes do IPCC (2018; 2023), o que
encontramos é um quadro radicalmente distinto. Em primeiro lugar, os caminhos
realmente desejáveis envolvem transformações sociais em ritmo e/ou escala para os
quais não existem precedentes históricos. Não há, portanto, certeza quanto a serem
possíveis. Em segundo lugar, mesmo admitindo completa adesão ao caminho
preconizado, a chance estimada de isso ser suficiente para conter o aquecimento do
planeta dentro da meta é inferior a 70%. Por fim, o próprio IPCC reconhece que
ainda não sabemos suficientemente como o ciclo do carbono responderia à extração
direta de carbono da atmosfera, parte substantiva da estratégia de mitigação que
vem sendo preconizada.
Enfim, um(a) economista bem formado(a) teria a clareza necessária para
saber que o que temos à disposição não são, e nem poderiam ser, certezas
científicas. O que encontramos nas contribuições científicas é “apenas” o que de
melhor produzimos até aqui em termos de conhecimento e não boas razões para
recorrer a qualquer outra coisa que não seja isso.
Outro tópico que caberia dentro de uma disciplina de metodologia e que
igualmente pode ser apontado como um déficit não óbvio é a lógica formal. De fato,
é perturbador que as diversas tradições teóricas na Economia recorram tão
fortemente ao raciocínio dedutivo e ao indutivo sem que, em geral, seja oferecida
14
qualquer base a respeito dessa modalidade de raciocínio lógico. “Aprende-se” na
prática, mas a vulnerabilidade diante das falácias é expressiva. Para os nossos
propósitos, o que nos interessa é aquela em que conclusões a respeito de
grandezas absolutas são extraídas a partir de premissas relacionadas a grandezas
relativas.
Essa espécie de falácia da comparação irrelevante pode ser ilustrada com o
tema discutido da transição energética. Ali dissemos que a política
energética/climática vem apostando décadas nos estímulos aos ganhos de
eficiência energética e ao aumento da proporção das energias renováveis na matriz
energética. A expectativa é que o menor uso de energia por unidade de produto
provoque a redução do consumo de energia e que a menor proporção de
combustíveis fósseis na matriz energética implique redução de seu consumo. Como
se pode notar, tanto no primeiro caso quanto no segundo, supõe-se
equivocadamente que a redução de uma grandeza relativa deveria levar à redução
de uma grandeza absoluta. Quando (quase sempre) isso não ocorre, economistas,
perplexos, lamentam: paradoxo!
Na verdade, não paradoxo algum, por mais que economistas insistam em
falar de paradoxo de Jevons, postulado Khazzoom-Brookes, efeito rebote, efeito
backfire etc. (Sá Barreto, 2018). O que é um erro grosseiro de raciocínio que
supõe que grandezas absolutas deveriam mover-se (ou tenderiam a mover-se) na
mesma direção de suas análogas relativas.
A título de ilustração, pense o seguinte: em 1965, as fontes renováveis
respondiam por 6,45% e as fósseis por 93,38% da matriz energética mundial; em
2021, essas proporções passaram a 13,47% e 82,28%, respectivamente.8
Pergunta-se: do ponto de vista da necessidade de mitigação das emissões totais, a
situação em 2021 representa um avanço? Um(a) economista médio, treinado(a) a
pensar em termos de taxas e variações na margem, estaria inclinado(a) a responder
afirmativamente. A situação contemporânea, no entanto, é significativamente mais
grave que a de 1965. Os 82,28% de 2021 representam, em termos absolutos, o
triplo dos 93,38% de 1965. No que se refere às questões ecológicas, pensar
estritamente em grandezas relativas é debilitante. Extrair dessas grandezas
8Disponível em: https://ourworldindata.org/explorers/energy.
15
relativas conclusões em termos absolutos é, nesse caso, mais que um erro. É um
perigo!
Conclusão
As novas exigências e urgências que emergem da crise climática colocam a
ciência econômica em uma encruzilhada entre o necessário e o possível. Por um
lado, a principal tarefa do momento o corte substantivo e acelerado do nível global
de emissões de GEE torna necessária a reestruturação profunda dos padrões de
produção, consumo e desenvolvimento/mobilização de tecnologias, assim como o
controle (desigual, envolvendo contenção, retração ou eliminação) da escala em que
esses padrões operam. Por outro lado, como forma de consciência científica
orientada para a reprodução do existente, está fora do alcance do pensamento
econômico caminhar de maneira consequente nessa direção que conflita de maneira
flagrante com a dinâmica própria desta sociedade. Por isso, para o pensamento
econômico, o possível tende a situar-se crônica e crescentemente aquém do
necessário. Isso vale especialmente para a ortodoxia atual, mas não deixa de ser
verdade para a heterodoxia, que diante de requisitos cada vez mais exigentes e
incompatíveis com a sociedade do capital, vê-se forçada a recuar ou tergiversar.
Conforme vimos, a Ecologia Marxista não está sujeita às mesmas restrições,
posto que toma para si um horizonte teórico e prático que aponta para a
necessidade de superação desta sociedade. A princípio, isso a torna particularmente
apta a formular as respostas necessárias. Por tudo que foi discutido, no entanto,
seria inadequado supor candidamente que essa tradição pudesse vir a
desempenhar um papel de maior protagonismo na formação de economistas.
Mesmo assim, naquele mesmo espírito de espalhar antídotos na formação
predominantemente antiecológica de economistas, nessa tradição uma
contribuição geral que, com alguma chance de sucesso, se poderia incorporar.
A crítica ecológica da sociedade capitalista não é exclusividade da Ecologia
Marxista. A seu modo, a Economia Ecológica também articula uma crítica nesse
sentido. Ali, encontramos inúmeras reflexões capazes de demonstrar como a
sociedade capitalista tem sido até hoje destrutiva. O passo crucial que a Ecologia
Marxista pode acrescentar é a demonstração de que o metabolismo socioecológico
16
presidido pelo capital não pode não ser destrutivo. Em outras palavras, a
sustentabilidade ecológica está fora do escopo de possibilidades desta sociedade.
Trata-se, portanto, de estender a crítica ecológica da sociedade capitalista para
abranger a demonstração de sua inviabilidade ecológica. (SÁ BARRETO, 2022).
Como se pode notar, as implicações anticapitalistas encontram-se ao dobrar
dessa esquina. Não é necessário entreter esperanças de que o curso de Economia
nos leve além desse ponto. será um avanço extraordinário se ele puder levar
alguns de nossos(as) futuros(as) economistas até esse ponto.
Referências
CALDWELL, B. Beyond positivism: economic methodology in the twentieth century.
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18
V.22, 48 - 2024 (maio-agosto) ISSN: 1808-799 X
Tese de Doutorado1
PADILHA, Rosana de F. S. J2.A Significação da docência EBTT à luz da Teoria
da Atividade. 2019. Cento e setenta (170) folhas. Tese Programa de
pós-graduação em Tecnologia e Sociedade Universidade Tecnológica Federal do
Paraná. Curitiba, 2019.
Resumo expandido
A síntese aqui apresentada é resultado da trajetória de pesquisa realizada no
Doutorado em Tecnologia e Sociedade, na Universidade Tecnológica Federal do
Paraná, sob orientação do professor Domingos Leite Lima Filho. O trabalho de
investigação junto a um Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia nasce a
partir da minha inserção como docente do ensino Básico, Técnico e Tecnológico,
acompanhamento dos processos de desenvolvimento do Projeto Político
Pedagógico, e das dinâmicas vivenciadas no espaço do campus, no qual fui inserida
como docente.
Partimos da premissa de que a compreensão da significação dos Institutos e
da carreira docente está intrinsecamente ligada à formação humana. Essa
perspectiva norteou a pesquisa, que teve como objetivo analisar os processos de
significação da docência sob a ótica de experiência de classe e mediação na
formação da consciência dos profissionais que exercem essa atividade.
Entendemos como processos de significação, as práticas sociais onde
trabalhadores e trabalhadoras, por meio de vivências individuais e coletivas,
acessam os meios de produção da vida social, podendo atribuir um novo sentido
2Doutora em Tecnologia e Sociedade pelo Programa de Pós-Graduação em Tecnologia e Sociedade,
da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (PPGTS/UTFPR), Curitiba - Brasil.
E-mail: rosana.padilha@ifpr.edu.br. Lattes: http://lattes.cnpq.br/2536276815687901.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0207-1289
1Resumo Expandido de Tese recebida em 24/04/2024. Aprovada pelos editores em 24/07/2024.
Publicado em 07/08/2024.Tese defendida em 19 de fevereiro de 2019, orientada pelo Prof. Dr.
Domingos Leite Lima Filho. Link para a Tese: http://repositorio.utfpr.edu.br:8080/jspui/handle/1/4214
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v22i48.62723.
1
para o espaço e para as relações sociais que se estabelecem. Experiências essas
transversas por dimensões históricas, culturais, econômicas, políticas, localizadas e
situadas em determinados espaços/tempos históricos. O que pode carregar
contradições inerentes à sociedade capitalista, tal como a defesa de uma
hierarquização e compreensão de desqualificação e intensificação de formas
distintas, demonstração do conflito de compreensão entre grupos sociais.
O estudo em questão aborda a significação da docência no Ensino Básico,
Técnico e Tecnológico através da lente da teoria da atividade de Leontiev, em busca
de uma compreensão mais profunda das percepções dos professores
recém-admitidos a essa carreira.
Em contraponto à perspectiva da crítica acadêmica que muitas vezes
desvaloriza o trabalho docente no âmbito técnico e tecnológico por compará-lo
pejorativamente com as atividades teóricas do ensino superior, na qual a falsa
dicotomia entre teoria e prática é a ideologia subjacente que desqualifica a carreira
EBTT. Ideologia que rotula erroneamente o trânsito dos docentes do EBTT entre
diferentes níveis e modalidades de ensino como intensificação do trabalho,
sugerindo uma desvalorização de sua complexidade e importância.
A pesquisa examinou a docência no Ensino Básico, Técnico e Tecnológico
(EBTT) sob a ótica da legislação que a regula, com o intuito de compreender as
dinâmicas de controle e configuração que incidiam sobre essa atividade. A
investigação destacou como a academia, por meio de estudos críticos, tende a
perceber certas práticas e políticas como mecanismos que intensificavam e
desvalorizavam o trabalho docente, enquanto os movimentos sindicais muitas vezes
interpretavam essas questões como centrais aos conflitos laborais.
O trabalho questionou a ideia de que a intensificação das responsabilidades
do docente EBTT decorria do trânsito entre diferentes níveis de ensino e
modalidades educacionais. Ao contrário, sugeriu que essa intensificação era
provocada pelas condições práticas da docência nesse contexto particularmente
em relação à divisão do tempo e do esforço entre as diversas obrigações definidas
pela carga de trabalho: ensino, pesquisa e extensão acumulados a atribuições
administrativas.
Adicionalmente, o estudo argumentou que o processo de desqualificação do
trabalho do docente EBTT estava menos ligado à natureza do ensino técnico e
2
tecnológico em si, e mais às condições sob as quais os professores deviam realizar
a integração conceitualmente requisitada de ensino, pesquisa e extensão. Os
desafios enfrentados na concretização dessa indissociabilidade foram vistos como
fatores críticos que contribuíam para uma possível desvalorização, tanto na
percepção do trabalho docente quanto na sua efetiva realização.
Levando em conta os conceitos fundamentais de Leontiev como atividade,
significado social e sentido pessoal, a tese reconhece que a docência no Ensino
Básico, Técnico e Tecnológico está em constante evolução e que existe uma falta de
consenso sobre sua significação em diferentes esferas: entre os próprios
profissionais que nela trabalham, os legisladores que regulamentam a profissão, os
sindicatos que alegam defendê-la, e os acadêmicos que a estudam.
De acordo com a teoria da atividade, a “atividade” se refere ao comportamento
orientado a objetivos de sujeitos em resposta às demandas do ambiente social;
enquanto o “significado social” é a compreensão compartilhada dentro de uma
comunidade sobre uma determinada atividade; e o “sentido pessoal” é a
interpretação individual que uma pessoa atribui à sua atividade no contexto de sua
vida. Nestes termos, a análise da docência EBTT é complexa e multifacetada,
variando conforme as perspectivas individuais e coletivas.
Apesar de essa variedade de perspectivas, a tese percebe um consenso
implícito de que o Magistério Superior é considerado hierarquicamente superior ao
EBTT. Esse entendimento reflete a divisão social do trabalho e a estratificação
hierárquica que são características comuns do sistema capitalista. Tal hierarquia
pode reforçar a desvalorização do trabalho docente no EBTT e sustentar ideologias
que perpetuam as desigualdades entre os diferentes níveis de ensino.
Essa visão hierárquica pode levar a uma compreensão limitada da importância
da docência no EBTT, ignorando as habilidades, conhecimentos e a integração
complexa de ensino, pesquisa e extensão que esses profissionais devem realizar. A
tese sugere a necessidade de reavaliar e reestruturar esses entendimentos para
reconhecer devidamente a contribuição valiosa e única dos docentes EBTT no
contexto educacional global e para combater a desvalorização sistêmica de suas
práticas.
A docência no Ensino Básico, Técnico e Tecnológico, neste estudo se
configurou como um campo de atuação complexo e multifacetado, marcado por
3
diversas significações atribuídas pelos docentes ao seu trabalho. A compreensão
dessas significações, em suas convergências e divergências, tornou-se fundamental
para desvendar o significado objetivo dessa prática.
A pesquisa se caracterizou por uma abordagem qualitativa, descritiva e
interpretativa, utilizando como principal instrumento a pesquisa bibliográfica e
documental, complementada por entrevistas semiestruturadas com docentes do
IFPR.
No primeiro capítulo, são apresentados os fundamentos da Teoria da
Atividade de Leontiev, destacando seus conceitos centrais como atividade, motivo,
ação, operação, objeto, necessidade, significado, consciência e personalidade.
Aborda-se o materialismo histórico-dialético como base epistemológica da teoria e
sua relevância para a compreensão da docência EBTT.
O segundo capítulo explora o conceito de "sentido pessoal" na Teoria da
Atividade, relacionando-o com as categorias de "individualidade para si" de Duarte
(2013) e "personalidade docente" de Martins (2015). Propõe-se uma
instrumentalização para análise dos sentidos pessoais da docência, subsidiando a
compreensão da significação pessoal dessa prática.
O terceiro capítulo analisa a constituição do significado social da docência
EBTT, utilizando o conceito de significado social da Teoria da Atividade. Através da
pesquisa bibliográfica e documental, examina-se o processo de significação dessa
docência, considerando o contexto histórico, os conflitos e as práticas coletivas dos
docentes.
O quarto capítulo apresenta os resultados da pesquisa empírica, focando na
configuração dos sentidos pessoais da docência EBTT no IFPR Campus Paranaguá.
A análise considera: a configuração do trabalho docente, as características da
docência EBTT, o perfil dos docentes, as trajetórias de vida e os sentidos pessoais
da docência, as convergências e divergências entre os sentidos, e a possibilidade de
um sentido pessoal compartilhado no campus.
A partir da análise das significações da docência EBTT, o estudo evidencia a
complexa relação entre os sentidos pessoais e o significado objetivo dessa prática.
As convergências e divergências entre as significações demonstram a influência de
fatores como a formação, a experiência e o contexto social dos docentes na
construção do significado da docência.
4
O estudo contribui para a compreensão das significações da docência EBTT,
destacando a importância da Teoria da Atividade de Leontiev para analisar essa
prática em suas diversas nuances. Os resultados demonstram a necessidade de
considerar os sentidos pessoais dos docentes no processo de formação e
desenvolvimento profissional, visando fortalecer a identidade docente e aprimorar a
qualidade da docência EBTT.
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7
V.22, 48 - 2024 (maio-agosto) ISSN: 1808-799 X
Dissertação de Mestrado1
SILVA, Luciano Edison da2.Educação e força de trabalho em uma economia
primário-exportadora: o panorama das ocupações para egressos do ensino
médio da microrregião de Capanema PR. 2020. 220f. Dissertação (Mestrado em
Educação) UNIOESTE, Cascavel.
Resumo expandido
As inquietações que motivaram esta pesquisa remontam à trajetória discente
desde a educação básica até a universitária, sempre ponderando a continuidade dos
estudos versus a inserção no mercado de trabalho. Como docente, a mesma
angústia é vivenciada diante da alta evasão de jovens na última etapa da educação
básica. A partir de 2016, com as primeiras experiências de pesquisa no Instituto
Federal de Rondônia, essa aflição adquiriu um contorno mais científico, investigando
as motivações desse movimento centrífugo no ensino médio.
Partindo de uma leitura mais mediada, esse abandono escolar é entendido
como parte de um "cálculo escolar", onde o ensino médio pode se tornar uma
terceira jornada de trabalho para filhos da classe trabalhadora (Kuenzer, 2007). A
pesquisa se ancorou em dados de 2007 a 2017, de diversas fontes como o
Ministério da Educação, Ministério do Trabalho e Emprego, Cadastro Geral de
Empregados e Desempregados, Instituto Paranaense de Desenvolvimento
Econômico e Social e Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Outros estudos
e relatórios, com dados tratados e fundamentados em referência teórico sobre a
temática transição escola-trabalho, possibilitou um quadro com mais fundamentação
sobre a temática. Para mensurar a movimentação desse cenário de empregos
2Mestre em Educação pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE). Professor de
Sociologia no Instituto Federal do Paraná, campus Capanema. E-mail: Luciano_soc@yahoo.com.br.
Lattes: https://lattes.cnpqbr/4941396946231360. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6449-3447.
Dissertação defendida em 04 de dezembro de 2020, orientado pelo Prof. Drº Roberto Antonio Deitos.
Link para a dissertação: https://tede.unioeste.br/handle/tede/5269.
1Resumo expandido de dissertação, recebido em 22/05/2024. Aprovado pelos editores em
25/07/2024. Publicado em 07/08/2024. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v22i48.63044.
1
disponíveis, foram tratados somente aqueles formais, ativos no sítio do MTE nos
referidos anos para admissão, filtrados pela Classificação Brasileira de
Ocupações(CBO).
A partir da adoção desta metodologia, um movimento catalisador significativo
na dinâmica do mercado de trabalho foi a análise da estrutura econômica brasileira,
historicamente marcada pela produção de commodities, notadamente
agropecuárias. Assim, partiu-se de uma fundamentação materialista, segundo a qual
a estrutura econômica influencia a superestrutura. Logo, a educação, bem como
todas as políticas de Estado, ajusta-se para atender sua demanda. É a partir dela,
com suas relações de produção, que se constitui o fundamento sobre o qual se
edificam as instituições e ideias de uma sociedade, conforme explica Marx (1996).
É nesse contexto que a educação se posiciona para fornecer força de
trabalho nos termos dessa economia. A provocação de Mészáros (2008), “[...]
digam-me onde está o trabalho em um tipo de sociedade que eu te direi onde está a
educação” (p. 17), aponta a bússola para desvelar a escola. Nesse sentido, Frigotto
(2006) explica que a educação internaliza os princípios formativos e educativos do
sistema econômico, moldando-se ao tipo de economia em curso. No mesmo
caminho, Xavier (1990) reforça que a escola se adequa às condições materiais e
ideológicas geradas pelos avanços econômicos.
A figura abaixo confirma uma participação cada vez mais reduzida da
indústria manufatureira na economia brasileira, o que trará influxos sobre a
educação e os postos de trabalho para atender os setores básicos em crescimento.
Figura 1: Brasil: Participação da indústria de transformação no PIB, em %
2
Em recrudescimento desde o final dos anos 1980 (Cano, 2012), a exportação
de commodities, que era de 50% em 1994, atingiu 64,6% em 2010 (ApexBrasil,
2011). Em 2017, contudo, o país registrou 62,8% de exportações de produtos
primários, segundo a United Nations Conference on Trade and Development
(Unctad), caracterizando o Brasil como dependente desse mercado.
Esse processo reverberou na movimentação do mercado de trabalho de baixo
agregado tecnológico, com qualificações medianas, determinado pelo investimento
adotado pelas empresas (Maciente, 2013). Logo, as ocupações foram voltadas para
atividades menos complexas, conforme explica Saboia (2009). Isso ocorre porque o
mercado brasileiro exerce pouca pressão por força de trabalho de média e alta
qualificação tecnocientífica, devido à manutenção de atividades tecnicamente
arcaicas e de baixa produtividade, como sublinha Saboia.
Conforme indicado na tabela de ocupações, embora atividades mais
complexas, como os grandes grupos 2 (GG2) e 3 (GG3) (respectivamente
ocupações que requerem domínio do ensino superior e técnico), tenham
apresentado um avanço absoluto, elas recuaram em termos de representatividade
no total geral.
A apresentação desse quadro ocorreu através de quatro capítulos. O primeiro
expõe as motivações da pesquisa e os cenários identificados de forma preliminar. A
questão central da pesquisa, foi entender por que a melhoria nos indicadores
educacionais não se traduz em melhores postos de trabalho, especialmente para os
jovens concluintes da educação básica.
No segundo capítulo, investigou-se a formação do Estado brasileiro e os
mecanismos que levaram ao desenvolvimento de uma indústria subdesenvolvida
(FURTADO, 2005). A constituição do Brasil visava atender à exploração de produtos
primários destinados ao mercado europeu e, por isso, não demandava alta
qualificação nem níveis complexos de conhecimento na produção (Prado JR, 1981).
Esse modelo agressivo, de aperfeiçoamento técnico praticamente inexistente
até o início do século XIX, conduziu a um desenvolvimento econômico mais
quantitativo do que qualitativo (Holanda, 1995). Nem mesmo a independência da
metrópole visou romper com a estrutura colonial nos termos da revolução burguesa
europeia (Fernandes, 1976). A ruptura do pacto colonial permitiu constituir uma nova
ordem social e trouxe a autonomia que as elites nativas necessitavam.
3
Nem mesmo os ventos liberais e democráticos foram capazes de abalar essa
estrutura, explica Faoro (2001). A revolução dentro da ordem deveria produzir,
segundo Fernandes (1976), os mesmos efeitos coloniais. Assim, o liberalismo
adotado pelas elites foi fundamentalmente econômico e apenas virtualmente político.
Dessa forma, sem completar o ciclo de uma industrialização madura, o que se
observa é uma economia caracterizada pela desindustrialização prematura e
reprimarização (Berriel, 2016; Bresser-Pereira, Marconi, Oreiro, 2014). A tabela
abaixo destaca o avanço dos NCITs (produtos não classificados pela indústria de
transformação) e o recuo naquelas de maior agregado tecnológico
Tabela 1 Brasil: Evolução da produção por intensidade tecnológico dos produtos exportados
entre 1997 e 2017, em dólar
Fonte: MDIC 1997; 2007; 2017
Com políticas receptivas a produtos agropecuários e outras commodities,
destaca Cano (2012), o movimento das ocupações para esse mercado e a formação
da força de trabalho segue o mesmo percurso, apresentado no terceiro capítulo.
Neste capítulo, sistematizamos os dados do Ministério do Trabalho e
Emprego para o período de 2007 a 2017, que revelam uma evolução lenta nas
ocupações mais complexas. Isso ocorre porque a estrutura econômica estaria
saturada para uma força de trabalho de alta qualificação, sendo incapaz de absorver
esses profissionais em ocupações de alta performance, como aponta Saboia (2009).
Ao analisar as admissões, especialmente aquelas que exigem maior competência e
complexidade, como as atividades do GG3 da CBO, uma baixa representação no
cômputo geral.
4
Tabela 2 Brasil: Admissão de ocupações registradas nos Grandes Grupos da CBO, para os
anos de 2017 e 2007, de janeiro a dezembro
Fonte: MTE/Caged, 2007; 2017
Mesmo apresentando variações positivas em admissões entre um período e
outro, os GG2 e GG3, a representação respectiva não ultrapassa 12% e 9% das
admissões gerais. Contudo, para o estrato juventude um avanço de 3,64% para o
primeiro e uma retração de 3,59% no segundo.
Na leitura desse quadro, Deitos e Lara (2016) explicam que a composição da
força de trabalho reflete a política educacional moldada pela base econômica.
Segundo eles, as habilidades mínimas oferecidas pelo sistema educacional são
suficientes para atender à estrutura econômica existente, preservando as vantagens
produtivas.
É nesse contexto que o quarto capítulo insere a Microrregião de Capanema
(MRC), composta por seus oito municípios: Ampére, Bela Vista da Caroba,
Capanema, Pérola d'Oeste, Planalto, Pranchita, Realeza e Santa Izabel do Oeste.
Concentrada pelo setor primário, a produção de soja e de frango da região se
destina em grande parte ao mercado externo, conforme dados do MDIC
Com registro de crescimento da monocultura, a região apresenta fortes laços
com a produção familiar, pequenas propriedades de produção de mandioca, fumo,
feijão, erva-mate, aveia, batata, cana-de-açúcar, mel, ovinos, caprinos etc. São
espaços que continuam como grandes empregadores e fonte de renda na região
(Martins, 2018). Contudo, com exceção de Ampére, Capanema e Pranchita, todos
os outros se enquadram como municípios de baixo desempenho na dimensão de
renda, mesmo registrando avanços na oferta em todos os níveis da educação, como
5
é o caso da presença do Instituto Federal do Paraná, campus Capanema e
Universidades Federal da Fronteira Sul, campus Realeza.
Em declínio na região, o encolhimento da população jovem, segundo Bosi
(2016) e Martins (2018), é atribuído ao avanço da avicultura, que tem alterado a
estrutura fundiária da área. A avicultura tem se tornado a principal alternativa de
trabalho, especialmente para pessoas com baixa escolaridade, oferecendo salários
achatados, principalmente nos frigoríficos, e resultando em alta rotatividade,
demissões e abandono.
Tabela 3 MRC: 10 ocupações que mais admitiram em 2017 e 2007
Fonte: MTE/Caged, 2007; 2017
As ocupações mais corriqueiras na região, classificadas como GG6
(avicultura) e GG7 (alimentador de linha de produção), demandam um nível de
escolaridade fundamental. Porém, se observa que a maioria dos ocupantes dessas
ocupações possui formação de ensino médio. No cômputo geral das ocupações,
65,6% do total de trabalhadores na Microrregião de Capanema (MRC) possuem
esse nível de escolaridade, indicando uma tendência na composição do estoque de
trabalhadores.
Das considerações feitas, conclui-se que a educação, por si só, não consegue
converter a escolaridade em melhores postos de trabalho, uma vez que os
problemas educacionais não são exclusivamente intraescolares, mas também
extraescolares. Como explica Darcy Ribeiro, a crise da educação não é uma crise,
mas sim um projeto. Assim, as ocupações precárias e de baixa e média performance
que se vislumbram no horizonte dos egressos do sistema educacional brasileiro são
6
essenciais para impulsionar o mercado constituído. Nesse sentido, as políticas
educacionais em disputa têm se direcionado predominantemente a atender as
demandas dessa economia, resultando em um investimento reduzido em ciência e
pesquisa, dada a escassa pressão por áreas mais complexas.
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9
V.22, 48 - 2024 (maio-agosto) ISSN: 1808-799 X
Memória e Documentos
A DISPUTA POR POLÍTICAS PÚBLICAS PROGRESSISTAS:
RELATO DA CONFERÊNCIA LIVRE DE TECNOLOGIA SOCIAL,
ECONOMIA SOLIDÁRIA E TECNOLOGIA ASSISTIVA1
Felipe Addor2
Sandra Rufino3
Etiane Araldi4
Resumo
A vitória democrático-progressista na eleição presidencial de 2022 permitiu a retomada de políticas
públicas de construção de práticas alternativas, o que fez aflorar uma disputa político-conceitual em
diversos campos. Apresentamos o processo de construção do Documento Final da Conferência Livre
de Tecnologia Social, Economia Solidária e Tecnologia Assistiva, no âmbito da V Conferência
Nacional de CT&I. Esperamos difundir esse relevante processo de articulação e mobilização da
sociedade civil em prol de políticas públicas mais vinculadas a processos efetivos de transformação.
Palavra-chave: Tecnologia Social e Economia Solidária; Tecnologia Assistiva; Participação Social.
LA DISPUTA POR POLÍTICAS PÚBLICAS PROGRESISTAS: INFORME DEL CONGRESO LIBRE
SOBRE TECNOLOGÍA SOCIAL, ECONOMÍA SOLIDARIA Y TECNOLOGÍA DE ASISTENCIA
Resumen
La victoria democrático-progresista en las elecciones presidenciales de 2022 permitió retomar
políticas públicas para construir prácticas alternativas, lo que dio lugar a una disputa
político-conceptual en varios campos. Presentamos el proceso de creación del Documento Final de la
Conferencia Libre de Tecnología Social, Economía Solidaria y Tecnología Asistiva, en el ámbito de la
V Conferencia Nacional de CT&I. Esperamos difundir este relevante proceso de articulación y
movilización de la sociedad civil en favor de políticas públicas más vinculadas a procesos de
transformación efectivos.
Palabra clave: Tecnología Social y Economía Solidaria; Tecnología de Asistencia; Participación
Social.
4Doutora em Psicologia Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Brasil,
professora do Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro (IFRJ), Campus
Niterói - Brasil. Email: etiane.araldi@ifrj.edu.br. Lattes: http://lattes.cnpq.br/2251914961426433.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1391-5037.
3Doutora em Engenharia de Produção pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP),
Brasil, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Brasil.
Email: sandra.rufino@ufrn.br. Lattes: http://lattes.cnpq.br/7918356337724287.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5047-1041.
2Doutor em Planejamento Urbano e Regional pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),
Brasil, professor do Núcleo Interdisciplinar para o Desenvolvimento Social (Nides/UFRJ).
Email: felipe@nides.ufrj.br. Lattes: http://lattes.cnpq.br/4471650676535041.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9419-0487.
1Artigo recebido em 19/05/2024. Primeira Avaliação em 20/05/2024. Segunda Avaliação em
04/06/2024. Aprovado em 07/07/2024. Publicado em 07/08/2024.
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v22i48 62991.
1
THE DISPUTE FOR PROGRESSIVE PUBLIC POLICIES: REPORT FROM THE CONFERENCE ON
SOCIAL TECHNOLOGY, SOLIDARITY ECONOMY AND ASSISTIVE TECHNOLOGY
Abstract
The democratic-progressive victory in the 2022 presidential election allowed the resumption of public
policies to build alternative practices, which gave rise to a political-conceptual dispute in several fields.
We present the process of creating the Final Document of the Free Conference on Social Technology,
Solidarity Economy and Assistive Technology, within the scope of the V National CT&I Conference.
We hope to disseminate this relevant process of articulation and mobilization of civil society in favor of
public policies that are more linked to effective transformation processes.
Keyword: Social Technology and Solidarity Economy; Assistive Technology; Social Participation.
Introdução
Neste artigo apresentamos o contexto de construção do Documento Final da
Conferência Livre de Tecnologia Social, Economia Solidária e Tecnologia Assistiva
com propostas para a V Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação (V
CNCTI). O Documento está publicado na seção Memória e Documentos deste
Número 48 da Revista Trabalho Necessário.
Esse documento é resultado de um processo de articulação e mobilização de
organizações da sociedade civil com o intuito de buscar influenciar no
direcionamento das políticas públicas dos campos da Tecnologia Social (TS),
Economia Solidária (ES) e Tecnologia Assistiva (TA). Ainda que ele seja o produto
formal da Conferência Livre de Tecnologia Social, Economia Solidária e Tecnologia
Assistiva (CLTS), realizada no formato híbrido nos dias 28 e 29 de fevereiro de 2024,
presencial em Brasília, na sede do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação
(MCTI) e que tenha sido desenvolvido no âmbito dos debates da V CNCTI, de 4 a 6
de junho de 2024, podemos afirmar que ele é fruto de um longo e amplo processo
participativo iniciado ainda no governo anterior.
É importante destacar que, nos três campos citados acima, estamos em um
profundo contexto de disputa conceitual e de princípios, podendo: por um lado,
fortalecer iniciativas efetivamente transformadoras e emancipatórias, de
fortalecimento da organização comunitária e dos movimentos sociais, e de
construção de práticas econômica e politicamente alternativas ao modelo
hegemônico; ou, por outro lado, estimular práticas assistencialistas e paternalistas,
apoiar as práticas filantrópicas empresariais, e manter uma perspectiva financista e
mercadológicas nas experiências populares. Portanto, este documento é fruto dessa
disputa, buscando fortalecer políticas públicas que se alinhem à primeira
perspectiva. A seguir traçamos a trajetória dessa construção coletiva.
2
O processo prévio de articulação
O enfraquecimento e desidratação das políticas em campos políticos
alternativos a partir dos anos 2015/2016 gerou um processo de enfraquecimento das
articulações em campos como Economia Solidária e Tecnologia Social. Espaços
como as redes de incubadoras tecnológicas de economia solidária (Rede de ITCPs
e Unitrabalho) e a Rede de Tecnologia Social foram desarticulados, com vários de
seus protagonistas passando por dificuldades de manutenção de projetos e equipes,
por conta da redução drástica de políticas públicas de apoio aos projetos nesses
campos.
Mas, a partir de 2019, talvez por um sentimento de necessidade de
sobrevivência diante de um cenário político nacional trágico, começa a haver uma
movimentação que se torna um ponto de inflexão. Uma das iniciativas que surge
nesse período e que vai ganhando força é o Fórum de Tecnologia Social e Economia
Solidária (ForTES), que se propõe como um espaço de integração entre as redes e
associações que atuam nesses campos. Até meados de 2022, as tentativas dos
seus integrantes de oportunizar e amadurecer, no diálogo com gestores públicos
sensíveis a essas pautas, políticas públicas e editais para esses campos foram
completamente frustradas. Apesar do interesse demonstrado por técnicos do
governo e da relevância da política e seus impactos, via de regra as iniciativas eram
barradas quando chegavam no alto escalão dos ministérios.
A vitória de um governo do campo democrático-progressista na eleição
presidencial de 2022 fez renovar a esperança pela retomada de políticas públicas
que fortalecessem campos de construção de práticas alternativas. Nesse contexto,
antes da posse do terceiro mandato do governo Lula, o ForTES começou a dar essa
contribuição. Em parceria com outras instituições e organizações (principalmente
ONGs e grupos que atuavam no campo da Tecnologia Assistiva, a partir de uma
perspectiva crítica), seus integrantes contribuíram na elaboração do Relatório
Técnico intitulado: “Documento de Apoio à Construção de Políticas Públicas para os
Campos da Tecnologia Social e da Tecnologia Assistiva - 2023-2027” (Addor et aL.,
2022), que era parte do Grupo Técnico de Ciência, Tecnologia e Inovação, e do
Subgrupo de Ciência, Tecnologia e Inovação para o Desenvolvimento Social. Esse
documento e articulação contribuíram para a criação da Secretaria de Ciência e
Tecnologia para o Desenvolvimento Social (Sedes/MCTI) e, dentro dela, da Diretoria
3
de Tecnologia Social, Economia Solidária e Tecnologia Assistiva
(Depts/Sedes/MCTI) no MCTI. Esse documento, posteriormente, também foi o ponto
de partida para a proposta inicial de documento que ia ser levada para os espaços
da Conferência Livre.
Após este trabalho coletivo, ao longo do ano de 2023, as redes e associações
que compõem o ForTES buscaram realizar espaços de articulação nos diferentes
espaços do Governo Federal para pautar demandas nos campos da TS e ES. Em
maio deste ano, uma comitiva esteve em Brasília por dois dias, fazendo reuniões
com os Ministérios de Ciência, Tecnologia e Inovação, Desenvolvimento Agrário e da
Justiça, além da Secretaria Nacional de Economia Popular e Solidária (SENAES) e
do CNPq, a partir das quais obteve-se boa evolução no debate, mas ainda com
poucos efeitos concretos nas políticas públicas.
Em meados 2023, a Depts/Sedes/MCTI começa a estabelecer diálogos para
composição de um grupo de trabalho para discussão e auxílio para a construção de
políticas públicas na área. Em um desses encontros, é dado o informe sobre a
realização da V Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação, em junho
de 2024. Diante da importância percebida de contribuir nesse processo, o grupo
decide se articular para organizar uma Conferência Livre de Tecnologia Social,
Economia Solidária e Tecnologia Assistiva (CLTS).
A construção da Conferência Livre
Em novembro de 2023, as redes, associações e demais coletivos que
integram o ForTES iniciaram o processo de construção da Conferência Livre, em
diálogo com a Depts/Sedes/MCTI. A comissão organizadora da CLTS é composta
por representantes das seguintes instituições:
- Abepets (Associação Brasileira de Ensino, Pesquisa e Extensão em
Tecnologia Social);
- Rede ITCPs (Rede Universitária de Incubadoras Tecnológicas de
Economia Solidária);
- Rede IF Ecosol (Rede de Economia Solidária da Rede Federal de
Educação Profissional, Científica e Tecnológica);
- Repos (Rede de Engenharia Popular Oswaldo Sevá);
- FBTSI (Fórum Brasileiro de Tecnologia Social e Inovação);
4
- ITS Brasil (Instituto de Tecnologia Social);
- Rede GTA (Grupo de Trabalho Amazônico); e
- ABEA (Associação Brasileira de Emprego Apoiado).
Foi estabelecido um cronograma de trabalho que contemplava a elaboração
de um documento base e a realização de uma Reunião Preparatória em formato
remoto em 05 de fevereiro de 2024, que garantisse a participação da multiplicidade
de atores que atuam nas redes de economia solidária, tecnologia social e tecnologia
assistiva nos territórios. Em janeiro de 2024, a comissão organizadora elaborou uma
primeira versão do documento base e foi disparado o formulário de inscrição da
Reunião Preparatória. Houve algumas movimentações regionais de preparação para
essa Reunião, principalmente nas regiões Norte e Nordeste. Nesta última região,
houve um encontro no dia 29 de janeiro, com a participação de 50 pessoas dos nove
estados nordestinos para organização e sistematização das demandas específicas
da região.
O formulário de inscrição foi amplamente divulgado para as bases de todas as
organizações que compõem o ForTES e demais organizações que atuam nos
campos. Inscreveram-se 468 pessoas, com representação dos 26 estados e Distrito
Federal. Todas as pessoas inscritas receberam, por e-mail, a 1a versão do texto
base. Na Reunião Preparatória estiveram presentes, remotamente, 153 pessoas de
21 unidades federativas, com a seguinte representação regional: nordeste (32.2%),
sudeste (25,7%), sul (15,1%), centro oeste (13,6%) e norte (13,2%).
A Reunião aconteceu nos dois turnos do dia 05 de fevereiro de 2024 e contou
com a participação dos principais quadros da equipe da Sedes/MCTI: o Secretário
de Ciência e Tecnologia para o Desenvolvimento Social do MCTI, Sr. Inácio Arruda;
a Diretora de Tecnologia Social, Economia Solidária e Tecnologia Assistiva, Sra.
Sônia da Costa; o Coordenador de Tecnologia Social e Economia Solidária; o Sr.
Dayvid Souza Santos; a Coordenadora Geral de Soberania e Segurança Alimentar e
Nutricional, Sra. Fernanda Gomes Rodrigues; o Coordenador Geral de Tecnologia
Assistiva, Sr. Milton Pereira de Carvalho Filho.
Além dos integrantes das organizações que compuseram a Comissão
Organizadora da CLTS e diversos/as representantes de várias organizações da
sociedade civil, também participaram representantes de outros órgãos do governo
5
federal (15% dos participantes), como a Diretoria de Educação Popular da
Secretaria Nacional de Participação Social da Presidência da República, Ministério
dos Direitos Humanos e da Cidadania, Ministério do Desenvolvimento Agrário,
Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, Instituto Nacional do
Semiárido, Centro de Tecnologias Estratégicas do Nordeste, em destaque a
participação de secretarias do estado e de Prefeituras.
A reunião teve uma participação significativa de diversos setores: docentes e
estudantes de Universidades e Institutos Federais (62,1%); Organizações da
Sociedade Civil e Movimentos Sociais (10,5%), tais como o Fórum Brasileiro de
Economia Solidária, Unisol Brasil e Movimento Nacional dos Catadores de Materiais
Recicláveis; Instituições de Pesquisa (6,5%), como Embrapa, Fiocruz, Instituto
Nacional de Tecnologia, CNPq; e trabalhadoras e trabalhadores de
Empreendimentos Econômicos Solidários (5,2%), como cooperativas, associações.
A ampla representatividade e participação da reunião preparatória permitiu a
qualificação e elaboração das principais proposições do documento base, que foi
sistematizado pela comissão organizadora para a continuidade do trabalho no
âmbito da Conferência Livre.
A Conferência Livre
A Conferência Livre de Tecnologia Social, Economia Solidária e Tecnologia
Assistiva foi realizada em formato híbrido nos dias 28 e 29 de fevereiro de 2024, no
prédio do MCTI, em Brasília. A inscrição da Conferência Livre também foi realizada
por meio de formulário e divulgado para as bases das organizações do ForTES e
demais organizações que atuam nos campos de Tecnologia Social, Economia
Solidária e Tecnologia Assistiva. Inscreveram-se 869 pessoas de todas as unidades
federativas, mostrando nossa capilaridade e alcance entre as diversas organizações.
Participaram da conferência livre, ao longo dos dois dias, 297 pessoas, sendo
80 pessoas (27%) presencialmente e 217 (73%) online, das regiões: Centro Oeste
(38,6%); Sudeste (22%); Nordeste (17,3%); Norte (11,5%), Sul (9,8%) e internacional
(0,7%). Tendo 24 unidades federativas representadas e dois outros países: França e
Indonésia.
Organizamos a programação da CLTS em 4 turnos. Nas duas manhãs foram
programadas quatro mesas redondas com os temas:
6
- “Tecnologia Social, Conhecimento e sociedade: princípios e valores”;
- “Tecnologia Social, Economia Solidária, Tecnologia Assistiva e
Desenvolvimento Social: O que foi feito e para onde se parte”;
- “A importância de se pensar uma nova política de Ciência, Tecnologia e
Inovação e o papel da Tecnologia Social”;
- “Tecnologia Social, Economia Solidária, Tecnologia Assistiva e Política
Pública: Desafios e Agenda necessária”.
Destacamos a participação de representante do estado e movimentos sociais,
tais como: Casa Civil da Presidência da República; Ministério dos Povos Indígenas;
Ministério do Desenvolvimento Agrário; Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação,
por meio da Secretaria de Ciência e Tecnologia para o Desenvolvimento Social e
suas coordenadorias de Tecnologia Social e Economia Solidária e de Tecnologia
Assistiva; Capes (presidente), Finep (presidente), Fundação do Banco do Brasil
(presidente); Movimento dos Pequenos Agricultores; Movimento dos Sem Terra e os
representantes da comissão organizadora (ForTES, Abepets, Rede ITCPs, Rede IF
Ecosol, Repos, FBTSI, ITS Brasil, Rede GTA, ABEA). As mesas serviram para
reflexão e alinhamento sobre os campos da conferência.
A programação da tarde nos dois dias ficou reservada para debate do texto
base e divisão em Grupos de Trabalho para propostas de reformulação do
documento, sempre com plenárias ao final de cada dia para socialização das
propostas e debate de encaminhamentos.
Foram organizados cinco Grupos de Trabalho, todos presenciais, sendo
quatro para cada um dos eixos ligados à Tecnologia Social e Economia Solidária, e
um para tratar dos eixos ligados à Tecnologia Assistiva. Os eixos que compõem o
documento são:
Tecnologia Social e Economia Solidária
1. Desenvolvimento, trocas de saberes, intercâmbio e consolidação de
experiências em tecnologia social;
2. Formação profissional e consolidação de grupos de pesquisa e extensão
em tecnologia social e economia solidária;
7
3. A tecnologia social para o desenvolvimento regional, local e em
integração com as organizações da sociedade civil, movimento sociais e
povos e comunidades tradicionais e periféricas;
4. Articulação com políticas públicas.
Tecnologia Assistiva
1. Desafios a serem superados no âmbito da tecnologia assistiva;
2. Diretrizes em política de CTI em tecnologia assistiva; e
3. Propostas em política de CTI em TA.
Figura 1 - Fotografia dos/das participantes presenciais da Conferência Livre de Tecnologia
Social, Economia Solidária e Tecnologia Assistiva. Fonte: Os autores.
As pessoas que participaram remotamente da CLTS enviaram suas
contribuições ao documento por e-mail, e estas foram depois incorporadas ao texto
pela equipe de sistematização. Após a Conferência Livre, a comissão organizadora
encaminhou o texto compilado com as contribuições realizadas pelos cinco grupos
de trabalho e por e-mail para todos os participantes inscritos na conferência dando
um prazo para análise e sugestões, as quais foram compiladas e permitiram
chegarmos ao Documento Final, validado por todas as pessoas que se inscreveram
e participaram tanto da Reunião Preparatória quanto da CLTS. Essa versão
finalizada e legitimada foi enviada à coordenação da V CNCTI, via formulário de
sistematização das conferências.
8
O Documento Final da CLTS e próximos passos
O Documento Final da Conferência Livre de Tecnologia Social, Economia
Solidária e Tecnologia Assistiva com propostas para a V Conferência Nacional de
Ciência Tecnologia e Inovação apresenta, portanto, o resultado dos debates e
contribuições das pessoas representantes de diversas organizações em diversos
momentos abertos para a construção coletiva. Nas Referências Bibliográficas deste
artigo, registramos as referências que foram usadas ao longo da elaboração dos
documentos.
No documento da conferência livre, apresentamos o contexto, conceitos,
princípios e diretrizes para os campos da Tecnologia Social, Economia Solidária e
Tecnologia Assistiva. Ao todo, foram elaboradas 104 propostas divididas nos sete
eixos. As propostas foram apresentadas na Conferência Temática Ciência,
Tecnologia e Inovação para o Desenvolvimento Social, organizada pela
Sedes/MCTI, ocorrida nos dias 14 e 15 de março de 2024, no Rio de Janeiro. E
estamos trabalhando para levar essas contribuições para a V CNCTI, em junho de
2024.
Temos conhecimento que uma diversidade de visões e abordagens para
os campos debatidos nesses espaços e abordados no Documento Final. uma
disputa pelos valores e princípios que devem reger os projetos e ações nesses
campos. E essa disputa torna-se ainda mais acirrada no momento em que esses
campos ganham visibilidade e a possibilidade de serem foco de recursos e políticas
públicas.
A expectativa das pessoas e organizações que dedicaram, voluntariamente,
um grande esforço para a construção da CLTS e de seu Documento Final, é que
consigamos contribuir para uma construção qualificada de políticas públicas que
fortaleçam um processo político e econômico transformador, que nos permita seguir
avançando na luta contra a desigualdade social, pela melhoria da qualidade de vida
das trabalhadoras e dos trabalhadores, e pelo fortalecimento da organização
comunitária e da luta dos movimentos sociais em nosso país.
9
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10
1
DOCUMENTO BASE
para a Conferência Livre de Tecnologia Social, Economia
Solidária e Tecnologia Assistiva
27 de fevereiro de 2024
APRESENTAÇÃO
Em preparação para a Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e
Inovação (V CNCTI), o Fórum de Tecnologia Social e Economia Solidária (ForTES),
a Associação Brasileira de Ensino, Pesquisa e Extensão em Tecnologia Social
(ABEPETS), a Rede Universitária de Incubadoras Tecnológicas de Economia
Solidária (Rede ITCPs), a Rede de Economia Solidária da Rede Federal de
Educação Profissional, Científica e Tecnológica (Rede IFEcoSol), a Rede de
Engenharia Popular Oswaldo Sevá (REPOS), o Fórum Brasileiro de Tecnologia
Social e Inovação (FBTSI), o Instituto de Tecnologia Social (ITS BRASIL), o Grupo
de Trabalho Amazônico (Rede GTA), a Associação Brasileira de Emprego Apoiado
(ABEA) e demais instituições que constituem a comissão organizadora convidam
para a Conferência Livre de Tecnologia Social, Economia Solidária e
Tecnologia Assistiva, que ocorrerá nos dias 28 e 29 de fevereiro de 2024, em
Brasília, com transmissão online via canal do youtube do MCTI .
A Conferência Livre terá os seguintes objetivos:
i. Debater o tema, "Ciência, Tecnologia e Inovação para um Brasil Justo,
Sustentável e Desenvolvido", da CNCTI com enfoque nos campos da Tecnologia
Social, Economia Solidária e Tecnologia Assistiva;
ii. Propor, impulsionar e efetivar prioridades, estratégias e instrumentos
efetivos de políticas públicas e programas de Tecnologia Social, Economia Solidária
e Tecnologia Assistiva, com participação e controle social;
iii. Mobilizar e estabelecer diálogos com a sociedade brasileira, considerando
as especificidades sociais, econômicas, culturais e ambientais nas quais se
encontram inseridos os territórios que sejam foco para as políticas e programas do
campo da Tecnologia Social.
Este documento foi elaborado para subsidiar os debates a serem feitos na
Conferência Livre, no intuito de produzir um documento para ser levado para a
Conferência Temática de Ciência e Tecnologia para o Desenvolvimento Social, que
ocorrerá nos dias 14 e 15 de março de 2024, e, consequentemente, para a 5a
Conferência Nacional de Ciência e Tecnologia, a ser realizada de 4 a 6 de junho de
2024.
2
CONTEXTUALIZAÇÃO
A partir da segunda metade do século XX, tornaram-se evidente os impactos
sociais e ambientais resultantes do modelo convencional de desenvolvimento
tecnológico adotado no país e no mundo. Ao longo da história, surgiram diversos
movimentos que se opuseram a esse modelo e buscaram criar opções tecnológicas,
pautadas pela justiça social e pela sustentabilidade ambiental. No contexto
brasileiro, o final da década de 1990 e o início dos anos 2000 marcaram momentos
significativos para o fortalecimento dessa ideia. Movimentos sociais, sindicatos,
organizações da sociedade civil, universidades e gestores públicos começaram a
participar ativamente desse processo, que se estruturou em um princípio dialógico e
de valorização dos diferentes conhecimentos e saberes, com o intuito de contribuir
para a emancipação das classes populares, por meio da apropriação do processo de
desenvolvimento e uso das tecnologias.
Essa união marcou o início da mobilização em torno do que se denominou
Tecnologia Social, reunindo esforços e recursos em prol de uma transformação
social mais inclusiva e participativa. De forma semelhante, a Tecnologia Assistiva
(TA) surgiu no âmbito da luta das pessoas com deficiência como um direito
fundamental de inclusão e participação social, tendo conseguido seu
reconhecimento mediante a ratificação da Convenção da ONU dos Direitos da
Pessoa com Deficiência, em 2008, e sendo explicitado no Estatuto da Pessoa com
Deficiência ou Lei Brasileira de Inclusão, Lei 13.146, de 6 de julho de 2015.
Desse processo resultou a criação de várias instituições, programas e
políticas públicas, tais como: Prêmio de Tecnologia Social criado pela Fundação
Banco do Brasil-FBB (2001); o Instituto de Tecnologia Social-ITSBRASIL (2001);
Secretaria de Ciência e Tecnologia para a Inclusão Social-SECIS que acolheu as
temáticas de Tecnologia Social e Tecnologia Assistiva, no âmbito do Ministério da
Ciência e Tecnologia/MCT (2003); a Rede de Tecnologia Social (RTS), o Centro de
Referência Brasileiro de Tecnologia Social-CBRTS (2004), o Sistema de Análise das
Tecnologias Sociais (SATECS); No âmbito da Tecnologia Assistiva foram
implementados o Catálogo Nacional de Produtos de Tecnologia Assistiva
(2008-2016), a Pesquisa Nacional de Inovação em Tecnologia Assistiva (2005-2017),
o Centro Nacional de Referência em Tecnologia Assistiva CNRTA (2012), a Rede
de Núcleos de Tecnologia Assistiva, dentre outras iniciativas da política pública.
Além disso, foram criados projetos de lei de implementação de políticas públicas
como a Política Pública Nacional de Emprego Apoiado e propostas de projetos de
Lei que se encontram em tramitação - Projetos de Lei, PL 2190/2019 e PL
3445/2021 - ou estão paralisadas no Congresso - Projeto de Lei do Senado 111,
de 2011 com o objetivo de instituir a Política Nacional de Tecnologia Social. A TA e a
TS dentro do âmbito da política científica e tecnológica foram temas debatidos
durante a 2 ª, e Conferência Nacional de CTI Ciência, Tecnologia e Inovação.
No entanto, nos últimos anos, com a redução de investimentos públicos em
C&T e reestruturações dentro dos ministérios federais, a política de TS sofreu uma
intensa diminuição de investimentos e desestruturação institucional no executivo
3
federal, impactando projetos e programas com perspectivas populares e solidárias,
bem como as parcerias e articulações enfraqueceram
DIRETRIZES
1. Os campos da Tecnologia Social e da Tecnologia Assistiva precisam ser,
definitivamente, inseridos e consolidados na política nacional de CT&I, inclusive
tendo destinados COM REGULARIDADE INSTITUCIONAL RECURSOS
SIGNIFICATIVOS DO FNDCT para estimular sua consolidação e ampliação
2. Tratar os campos da Tecnologia Social e da Tecnologia Assistiva como CAMPOS
ESPECÍFICOS DE PESQUISA, ENSINO E EXTENSÃO E DE
DESENVOLVIMENTO TECNOLÓGICO compreendendo as diferenças e
peculiaridades frente ao campo das tecnologias convencionais e de outros campos
que atendem demandas sociais;
3. A ideia da REPLICAÇÃO das tecnologias em contextos distintos deve ser
ADEQUADA à perspectiva da Tecnologia Social, sendo adotado o conceito da
REAPLICAÇÃO, com a valorização das realidades dos territórios, e o
reconhecimento do tempo necessário para um processo democrático e participativo
de desenvolvimento das tecnologias;
4. Os projetos de criação e desenvolvimento de Tecnologia Assistiva devem levar em
consideração o OBJETIVO FUNDAMENTAL DE ACESSO à mesma para as
pessoas com deficiência, mobilidade reduzida ou idosas, incluindo os SERVIÇOS
para a escolha, utilização e avaliação.
5. Os projetos de Tecnologia Social devem levar em consideração contextos, impacto
social e perspectiva de uma EDUCAÇÃO EMANCIPADORA E DIALÓGICA;
6. Os projetos Tecnologia Assistiva devem garantir a PARTICIPAÇÃO das pessoas
com deficiência no processo de design, desenvolvimento tecnológico, e avaliação.
7. Fortalecer a extensão universitária, considerada fundamental para garantir a
missão social da universidade e a formação de profissionais capacitados a
promover o diálogo construtivo dos saberes, a valorização da diversidade
socioambiental das regiões brasileiras e a apropriação das tecnologias pelas
comunidades locais.
8. Promover, potencializar e fortalecer a formação em tecnologia assistiva dos
diversos profissionais que atuam na área, assim como também dos familiares e
entorno próximo das pessoas com deficiência e idosas.
9. Ampliar e garantir o acesso das ONGs que elaboram e promovem Tecnologia
Social aos instrumentos de apoio e fomento. As OSC se destacam pela produção
de conhecimento direcionada a atender as necessidades da população e, com isso,
melhorar suas condições de vida e gerar inclusão social e combater a
desigualdade. Essa orientação dada ao conhecimento pelas OSC é o ponto de
partida para as atividades de desenvolvimento das tecnologias sociais.
4
10. Promover a elaboração de tecnologias assistivas de baixo custo desenvolvidas por
familiares, entidades e entorno comunitário das pessoas com deficiência e idosas
com formação e acompanhamento técnico.
11. Considerar, nas investigações científicas desenvolvidas por universidades,
institutos federais e centros de pesquisa, as organizações locais e os princípios e
valores da tecnologia social, como forma de incentivar que os conhecimentos
produzidos beneficiem as comunidades.EIXOS DE POLÍTICAS PÚBLICAS E
PROGRAMAS PARA O CAMPO DE TECNOLOGIA SOCIAL, ECONOMIA
SOLIDÁRIA E TECNOLOGIA ASSISTIVA
Tecnologia Social e Economia Solidária
1. DESENVOLVIMENTO, TROCAS DE SABERES, INTERCÂMBIO E
CONSOLIDAÇÃO DE EXPERIÊNCIAS EM TECNOLOGIA SOCIAL
1.1. Fomentar projetos de pesquisa, extensão e desenvolvimento de Tecnologia
Social em todas as áreas do saber, de maneira transversal, nos diferentes
níveis de ensino formais e não formais;
1.2. Articular troca de experiências e intercâmbio de Tecnologia Social num
enfoque de gestão compartilhada envolvendo usuários em instâncias
governamentais para assegurar a eficiência e desenvolvimento social;
1.3. Promover a Tecnologia Social para o avanço da Soberania Alimentar e
Nutricional, Segurança Hídrica, Segurança Energética e Saneamento Rural
buscando o fortalecimento socioeconômico de povos tradicionais e originários,
organização socioeconômica de trabalhadores e comunidades, expansão do
campo da economia solidária, do associativismo, do cooperativismo, incluindo
o cooperativismo de plataforma;
1.4. Fomentar programas de formação e qualificação, assessoria continuada, no
campo da Tecnologia Social através de diferentes agentes governamentais e
instituições de ensino;
1.5. Criar espaços físicos “Centros Populares de Tecnologia Social” para
democratizar, organizar, compartilhar e disseminar as tecnologias do campo
da Tecnologia Social, envolvendo organizações da sociedade civil,
universidades, institutos de pesquisa, instituições públicas, e associações
representativas de comunidades locais.
1.6. Oportunizar a implantação ou modernização de laboratórios de uso
compartilhado e aberto a múltiplos públicos, objetivando o desenvolvimento
de ecossistemas cooperativos para Tecnologia Social.
1.7. Criar plataforma nacional digital e colaborativa a partir do território
(observatório de tecnologia social) implementada nos Centros Populares de
Tecnologia Social e/ou Laboratórios de Tecnologia Social com o objetivo de
democratizar o acesso a informação, a partir de: (i) consolidação de um
5
sistema de indicadores; (ii) socialização de metodologias participativas; (iii)
ferramentas de trabalho e (iv) banco de dados de tecnologias sociais
catalogadas.
1.8. Garantir recursos para financiar, via editais descentralizados, as atividades de
extensão, pesquisa e desenvolvimento de tecnologias sociais, tanto da
Sociedade Civil Organizada como dos projetos e programas de extensão nas
diferentes Instituições de Ensino.
2.FORMAÇÃO DE PESSOAL ESPECIALIZADO E DOS TRABALHADORES
ASSOCIADOS E CONSOLIDAÇÃO DE GRUPOS DE PESQUISA E EXTENSÃO
EM TECNOLOGIA SOCIAL E ECONOMIA SOLIDÁRIA
2.1. Apoiar a formação e a consolidação de grupos de ensino, pesquisa e
extensão em Tecnologia Social;
2.2. Contribuir, em diálogo com o Ministério da Educação, na reativação do
Programa de Extensão Universitária (PROEXT), reforçando linhas de apoio
voltadas para Tecnologia Social e Economia Solidária;
2.3. Apoiar o Programa Nacional de Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas
Populares (PRONINC) e Incubadoras Públicas de Empreendimentos
Econômicos e Solidários.
2.4. Contribuir na ampliação das políticas de apoio à extensão tecnológica, dando
ênfase para a perspectiva de intercâmbio de conhecimento tecnológico entre
Instituições de Ensino Superior e a sociedade.
2.5. Apoiar a criação e consolidação de atividades de fomento de Tecnologia
Social em estado, municípios e outros agentes de governo;
2.6. Formar gestores públicos, organizações da sociedade e de movimentos
sociais no campo da Tecnologia Social;
2.7. Apoiar à criação e consolidação de disciplinas de graduação e de cursos de
pós-graduação no campo da Tecnologia Social, viabilizando, entre outros,
bolsas de pós-graduação para atuação na extensão universitária,
particularmente fortalecendo os Mestrados e Doutorados profissionais, que
têm desenvolvido prática relevante de extensão com Tecnologia Social;
2.8. Apoiar projetos de intercâmbio internacional no campo da Tecnologia Social,
principalmente fortalecendo a integração Sul-Sul.
2.9. Incluir a previsão da área de Tecnologia Social na Chamada DT do CNPq.
2.10. Garantir novos lançamentos da Chamada de Tecnologia Social pelo CNPq,
dando continuidade à Chamada CNPq/MCTIC/MDS nº. 36/2018
2.11. Criar a área interdisciplinar no CNPq, seguindo exemplo da Capes, de forma a
adequar-se melhor às demandas no campo da Tecnologia Social e Economia
Solidária.
2.12. Reivindicar a valorização dos saberes populares e a sensibilização da
sociedade e a academia para o diálogo entre os saberes populares e
científicos.
6
2.13. Oportunizar a implantação, nos níveis de Ensino Fundamental e Médio, de
políticas de ensino, pesquisa e extensão em tecnologia social, economia
solidária e tecnologia assistiva;
2.14. Garantir financiamento para bolsas de extensão em todos os níveis de
formação;
2.15. Realizar diagnóstico do cenário atual da Tecnologia Social e Economia
Solidária, principalmente sobre grupos econômicos e grupos de pesquisas
envolvidos na temática;
2.16. Reconhecer e valorizar a importância das Universidades Públicas, dos
Institutos Federais e das Incubadoras de Economia Solidária para uma
formação crítica e interdisciplinar que fortaleça o campo da Tecnologia Social;
2.17. Promover ações que deem destaque as temáticas racial e de gênero,
juventudes, pessoas com deficiência, LGBTQIA+ e garantam a inclusão dessa
temáticas nos editais e chamadas públicas voltadas para a Tecnologia Social.
2.18. Repensar critérios de avaliação da CAPES, CNPq de modo a valorizar a
Tecnologia Social e Economia Solidária.
2.19. Avaliar proposta de criação de uma Agência de Tecnologia Social e Economia
Solidária.
3.APOIO A TECNOLOGIA SOCIAL PARA O DESENVOLVIMENTO REGIONAL,
LOCAL E EM INTEGRAÇÃO COM AS ORGANIZAÇÕES DA SOCIEDADE CIVIL,
MOVIMENTO SOCIAIS E POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS E
PERIFÉRICAS
3.1. Apoiar ações de Tecnologia Social em articulação com movimentos sociais,
povos e comunidades tradicionais e periféricas fortalecendo a perspectiva do
desenvolvimento territorial local e regional.
3.2. Assegurar mecanismos de apoio e fomento de ações de Tecnologia Social
que fortaleçam a consolidação dos territórios de povos e comunidades
tradicionais (indígenas, quilombolas, ribeirinhos, caiçaras, camponeses, povos
das águas, povos extrativistas e demais) a partir da valorização social, cultural
e econômica de suas práticas tradicionais;
3.3. Assegurar mecanismos de apoio e fomento de ações de Tecnologia Social
que fortaleçam a organização e valorização sociocultural e econômica dos
movimentos sociais, grupos urbanos e periféricos (acampados e assentados
de reforma agrária, população em situação de rua, trabalhadores/as da cadeia
de resíduos sólidos, moradores de periferias urbanas) em suas práticas e
modos de vida, considerando questões de gênero, raça e etnia;
3.4. Assegurar mecanismos de apoio e fomento de ações de Tecnologia Social
que priorizem o apoio à formação e organização da juventude do campo e das
periferias da cidade por meio de organizações sociais, movimentos culturais
ou empreendimentos econômicos solidários;
7
3.5. Assegurar mecanismos de apoio e fomento a projetos que atuem em áreas
historicamente marginalizadas no campo da CT&I, dando ênfase a ações que
preservem e recuperem os biomas do território brasileiro (Amazônia, Cerrado,
Pantanal, Caatinga, Mata Atlântica, Pampas, Costeiro Marinho);
3.6. Incentivar órgãos estaduais (incluindo Fundações de Apoio à Pesquisa) e
municipais para a formulação de editais frequentes de apoio a Tecnologia
Social e a Economia Solidária;
3.7. Assegurar a criação de áreas/setores/grupos específicos para fortalecer a
temática de Tecnologia Social e Economia Solidária dentro dos órgãos ligados
ao MCTI, particularmente FINEP e CNPq e nas Unidades de Pesquisa;
3.8. Retomar o apoio da FINEP ao Programa Nacional de Apoio às Incubadoras
de Cooperativas (Proninc), buscando manter sua operacionalização via
CNPq;
3.9. Elaborar uma linha de financiamento da FINEP para empreendimentos
econômicos solidários;
3.10. Garantir a dedicação de um percentual do FNDCT especificamente para
ações de fomento ao campo de Tecnologia Social e Economia Solidária;
3.11. Incluir no Conselho do FNDCT uma representação de organizações atuantes
no campo da Tecnologia Social;
3.12. Refundar o Setor de Economia Solidária e Tecnologia Social dentro do
BNDES visando viabilizar políticas de financiamento voltadas a
empreendimentos econômicos solidários do campo e da cidade;
3.13. Promover a inclusão das temáticas de Tecnologia Social e Economia Solidária
em Fundos governamentais de apoio a programas e projetos estruturantes;
3.14. Assegurar mecanismos de apoio técnico a organizações comunitárias para
elaboração de projetos para editais de financiamento e de premiação, com
assessoria de Institutos de Ciência e Tecnologia, Instituições de Ensino e
Pesquisa, Organizações da Sociedade Civil;
3.15. Promover um mapeamento, diagnóstico, monitoramento e análise de base de
dados das instituições e experiências no campo da Tecnologia Social e
Economia Solidária;
3.16. Ampliar e garantir o acesso das organizações da sociedade civil,
organizações comunitárias e outras instituições aos instrumentos de apoio e
fomento do campo da Tecnologia Social e Economia Solidária;
4.ARTICULAÇÃO COM POLÍTICAS PÚBLICAS
4.1. Promover, em uma articulação intragovernamental, a Tecnologia Social e a
Economia Solidária como meio de viabilização de execução de políticas setoriais
específicas, como, por exemplo: Preservação Ambiental, Habitação Popular,
Saneamento Ecológico, Educação Popular, Geração De Trabalho E Renda,
Segurança Alimentar, Reforma Agrária, entre outras;
8
4.2. Respeitar o caráter local das comunidades, as diferenças geográficas e
socioculturais como referencial da Tecnologia Social e da Economia Solidária
para execução de outras políticas públicas;
4.3. Desenvolver uma estratégia de descentralização e territorialização da tecnologia
social e suas articulações com processos de desenvolvimento;
4.4. Adotar estratégias de participação da sociedade civil organizada na construção,
implementação, monitoramento e avaliação dos projetos de Tecnologia Social;
4.5. Criar a Comissão Nacional de Políticas Públicas para o campo da Tecnologia
Social no âmbito do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI),
paritária entre sociedade civil e governo.
4.6. Revisar a composição do Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia,
garantindo a presença do campo da Tecnologia Social e Economia Solidária, e
criar no âmbito do conselho, a Comissão Temática de Tecnologia Social;
4.7. Revisar e avançar na implantação do Projeto de Lei da Política Nacional de
Tecnologia Social (PL 3329/2015) que, desde 14/08/2019, encontra-se na
Comissão de Assuntos Sociais aguardando distribuição
4.8. Retomar e atualizar a proposta do Programa Nacional de Tecnologia Social
elaborado como encaminhamento da 4a Conferência Nacional de Ciência,
Tecnologia e Inovação, realizada em maio de 2010.
4.9. Criar um fundo próprio para a implementação do Programa Nacional de
Tecnologia Social, superando as barreiras legais do FNDCT, com sugestão de
alocação de recursos da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep).
4.10. Pautar junto a dirigentes políticos a necessidade de uma agenda governamental
de reindustrialização solidária associada à Tecnologia Social e à Economia
Solidária
Tecnologia Assistiva
5. DESAFIOS A SEREM SUPERADOS NO ÂMBITO DA TECNOLOGIA
ASSISTIVA
5.1. A maioria das pessoas com deficiência não tem acesso à Tecnologia Assistiva;
5.2. Falta de formação especializada em Tecnologia Assistiva em nível de graduação
e pós-graduação, respeitando as características interdisciplinares da área, bem
como, com uma visão sistêmica, dinâmica e inclusiva da vida das pessoas com
deficiência;
5.3. Comercialização de produtos focada em produtos importados, fragilidade e
pulverização do mercado de Tecnologia Assistiva;
5.4. O crescimento do Sistema de Provimento de TA no âmbito do Sistema Único de
Saúde (SUS), interrompido após 2016.
6. DIRETRIZES EM POLÍTICA DE CT&I EM TECNOLOGIA ASSISTIVA
6.1. Retomar e fortalecer os instrumentos da política de CT&I em TA implementados
nos Governos Lula e Dilma, e suspensos após 2016;
9
6.2. Realizar o Plano Viver sem Limite II ou Novo Plano Viver sem Limite,
especialmente as ações contempladas no Eixo IV Acessibilidade e Tecnologia
Assistiva, assim como também atuar em matricialidade com as ações de
tecnologia assistiva de outros ministérios;
6.3. Aumentar progressivamente a inovação em TA na agenda das políticas públicas;
6.4. Fundamentar as ações da política de CT&I em TA no direito das pessoas com
deficiência ao acesso a produtos e serviços de TA, reconhecido na Convenção
dos Direitos da Pessoa com Deficiência da ONU e ratificado no Estatuto da
Pessoa com Deficiência Lei Brasileira de Inclusão, Lei 13.146, de 6 de julho
de 2015;
6.5. Potencializar a participação das pessoas com deficiência, mobilidade reduzida e
idosas na inovação em TA, tanto nos espaços da governança das políticas,
como no âmbito técnico dos projetos de PD&I;
6.6. Diminuir as disparidades regionais na inovação em TA, fortalecendo as
capacidades de regiões com menor criação desses produtos, sem reduzir o
dinamismo das regiões com maior atividade inovadora;
6.7. Implementar políticas de amplo alcance que promovam a produção e
disponibilização de TA com qualidade, diversidade e baixo custo, especialmente
no âmbito do SUS;
6.8. Melhorar o nível de alcance do objetivo final da inovação em TA: o acesso das
pessoas com deficiência, mobilidade reduzida e idosos aos novos serviços e
produtos assistivos criados nos processos de PD&I;
6.9. Fortalecer a inserção nos mercados/concessão da TA dos novos produtos ou
serviços criados nos projetos de PD&I;
6.10. Promover novos avanços na articulação das políticas de inovação em TA;
6.11. Ampliar o acesso das pessoas com deficiência e suas famílias aos serviços de
TA, de reabilitação, que devem estar aptos a desenvolver, dispensar,
personalizar a avaliar dispositivos de TA;
6.12. Ampliar a divulgação dos diferentes produtos nacionais em TA, inclusive por
meio dos centros de referência, que devem cooperar com o objetivo de
aumentar sua competência e divulgar informações de bancos de dados
nacionais e internacionais específicos sobre TA;
6.13. Criar centros de formação nas comunidades, com o objetivo de desenvolver,
testar e fazer a manutenção de produtos assistivos;
6.14. Planejar o fortalecimento e ampliação da indústria de TA brasileira a médio e
longo prazo
7. PROPOSTAS EM POLÍTICA DE CT&I EM TA
7.1. Implementar 28 laboratórios no Âmbito da SisAssistiva Rede Nacional de
Pesquisa, Desenvolvimento Tecnológico e Certificação de Tecnologia Assistiva,
do Plano Viver Sem Limite II Novo Plano Viver sem Limite; Os laboratórios
devem contemplar a participação dos usuários de TA e estar articulados com as
redes do SUS e do SUAS.
10
7.2. Implementar 27 Centros de Acesso, Pesquisa e Desenvolvimento de Tecnologia
Assistiva, do Plano Viver Sem Limite II Novo Plano Viver sem Limite; Os
laboratórios devem contemplar a participação dos usuários de TA e estar
articulados com as redes do SUS e do SUAS.
7.3. Implementar a Central Nacional de Interpretação da Língua Brasileira de Sinais
(CONECTE LIBRAS BRASIL), proporcionando acessibilidade comunicacional
para pessoas surdas, mediante oferta de serviço 24h de tradução e
interpretação da Língua Brasileira de Sinais
7.4. Retomar, fortalecer e ampliar o Centro Nacional de Referência em TA (CNRTA)
instituído pela Portaria MCTI 139, de 23 de fevereiro de 2012, sob a forma de
uma rede cooperativa de pesquisa, desenvolvimento e inovação, articulando
nele os 28 laboratórios no âmbito da SisAssistiva e os 27 Centros de Acesso,
Pesquisa e Desenvolvimento de TA a serem criados, adotando objetivos de
desenvolvimento, disseminação de TA , acesso e participação dos usuários de
TA.
7.5. Retomar, fortalecer e ampliar o Catálogo Nacional de Produtos de TA, que é um
serviço de informação online de produtos assistivos;
7.6. Retomar e fortalecer a Pesquisa Nacional de Inovação em TA (PNITA), criada
em 2005, cujo objetivo é subsidiar as políticas públicas de inovação em TA do
MCTIC, além de outras áreas das políticas necessária a criação de um modelo
institucional sustentável;
7.7. Fomentar, em parceria com o Ministério da Educação, a criação e oferta de
processos formativos de nível superior (graduação e pós-graduação) na área da
TA e Acessibilidade, assim como também cursos de extensão e de formação
continuada.
7.8. Fortalecer, em parceria com o Ministério da Saúde, o Sistema de Provisão de
recursos de TA, ampliando a lista de recursos e produtos de TA para
dispensação pelo Governo Federal, favorecendo o acesso a esses recursos pela
população com deficiência que deles necessite;
7.9. Criar, em parceria com o Ministério da Educação e Ministério da Saúde, centros
de formação e de desenvolvimento de TA baseada na comunidade, com o
objetivo de desenvolver, testar e fazer a manutenção de produtos assistivos
desenvolvidos no entorno próximo das pessoas com deficiência, idosas e de
mobilidade reduzida;
7.10. Promover parceria do MCTI com os Ministérios da Gestão e da Inovação em
Serviços Públicos; o Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família
e Combate à Fome para a criação de projetos inovadores de serviços de
tecnologia assistiva.
7.11. Aproximar a academia e a indústria com as organizações que atendem pessoas
com deficiência no processo de desenvolvimento de TA
7.12. Promover ações de incentivo à criação de startups em TA;
7.13. Promover ações, em articulação com os ministérios de economia e de indústria e
comércio, a potencialização e diversificação de empresas que produzem e
comercializam produtos de TA.
11
7.14. Implementar nas rodoviárias, estações, embarque, terminais, etc., tecnologias de
mobilidade e inovações contemplando a acessibilidade e o provimento de
tecnologia assistiva.
Comissão Organizadora da Conferência Livre de Tecnologia Social, Economia
Solidária e Tecnologia Assistiva:
Associação Brasileira de Ensino, Pesquisa e Extensão em Tecnologia
Social ABEPETS
Fórum de Tecnologia Social e Economia Solidária - ForTES
Rede Universitária de Incubadoras Tecnológicas de Economia Solidária -
Rede ITCPs
Rede de Economia Solidária da Rede Federal de Educação Profissional,
Científica e Tecnológica - Rede IFEcoSol
Rede de Engenharia Popular Oswaldo Sevá -REPOS
Fórum Brasileiro de Tecnologia Social e Inovação FBTSI
Instituto de Tecnologia Social - ITS BRASIL
Grupo de Trabalho Amazônico -Rede GTA
Associação Brasileira de Emprego Apoiado ABEA
Departamento de Tecnologia Social, Economia Solidária e Tecnologia
Assistiva - DEPTS/SEDES/MCTI
Contato: contato.abepets@gmail.com
V.22, 48 - 2024 (maio-agosto) ISSN: 1808-799 X
Memória e Documentos
DECRETOS SOBRE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA (EAD):
ALGUNS COMENTÁRIOS1
Francisco José da Silveira Lobo Neto2
1. DOCUMENTOS
1.1 - Decreto 2.494, de 10 de fevereiro de 19983.
Regulamenta o Art. 80 do LDB 9394/96
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, no uso da atribuição que lhe confere o art. 84,
inciso IV da Constituição, e de acordo com o disposto no art. 80 da Lei 9.394, de
20 de dezembro de 1996.
DECRETA:
Art. Educação a distância é uma forma de ensino que possibilita a
autoaprendizagem, com a mediação de recursos didáticos sistematicamente
organizados, apresentados em diferentes suportes de informação, utilizados
isoladamente ou combinados, e veiculados pelos diversos meios de comunicação;
Parágrafo Único - Os cursos ministrados sob a forma de educação a distância serão
organizados em regime especial, com flexibilidade de requisitos para admissão,
horário e duração, sem prejuízo, quando for o caso, dos objetivos e das diretrizes
curriculares fixadas nacionalmente.
Art. - Os cursos a distância que conferem certificado ou diploma de conclusão do
ensino fundamental para jovens e adultos, do ensino médio, da educação
3Em fevereiro de 2002, o Ministério da Educação designou Comissão Assessora para estudar e
propor reformulações. O Relatório desta Comissão e sua Proposta de Reformulação, encontram-se
no Anexo 2.
2Doutor em Educação pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Rio de Janeiro - Brasil. Professor
aposentado da Universidade Federal Fluminense (UFF); Pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz
(Fiocruz), Rio de Janeiro - Brasil. Email: sloboneto@gmail.com.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/2774154084956899. ORCID: https://orcid.org/0000´-0002-9292-3069.
1Artigo recebido em 10/04/2024. Aprovado pelos editores em 23/04/2024. Publicado em 07/08/2024.
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v22i48 62666.
1
profissional, e de graduação serão oferecidos por instituições públicas ou privadas
especificamente credenciadas para esse fim, nos termos deste Decreto e conforme
exigências a serem estabelecidas em ato próprio, expedido pelo Ministro de Estado
da Educação e do Desporto.
§ A oferta de programas de mestrado e de doutorado na modalidade a distância
será objeto de regulamentação específica.
§ O credenciamento de Instituições do sistema federal de ensino, a autorização e
o reconhecimento de programas a distância de educação profissional e de
graduação de qualquer sistema de ensino, deverão observar, além do que
estabelece este Decreto, o que dispõem as normas contidas em legislação
específica e as regulamentações a serem fixadas pelo Ministro de Educação e do
Desporto.
§ A autorização, o reconhecimento de cursos e o credenciamento de Instituições
do sistema federal de ensino que ofereçam cursos de educação profissional a
distância deverão observar, além do que estabelece este Decreto, o que dispõem as
normas contidas em legislação específica.
§ O credenciamento das Instituições e a autorização dos cursos serão limitados a
cinco anos, podendo ser renovados após a avaliação.
§ A avaliação de que trata o parágrafo anterior, obedecerá a procedimentos,
critérios e indicadores de qualidade definidos em ato próprio, a ser expedido pelo
Ministro de Estado da Educação e do Desporto.
§ A falta de atendimento aos padrões de qualidade e a ocorrência de
irregularidade de qualquer ordem serão objeto de diligência, sindicância, e, se for o
caso, de processo administrativo que vise a apurá-los, sustando-se, de imediato, a
tramitação de pleitos de interesse da instituição, podendo ainda acarretar-lhe o
descredenciamento.
Art. A matrícula nos cursos a distância do ensino fundamental para jovens e
adultos, médio e educação profissional será feita independentemente de
escolarização anterior, mediante avaliação que defina o grau de desenvolvimento e
experiência do candidato e permita sua inscrição na etapa adequada, conforme
regulamentação do respectivo sistema de ensino.
Parágrafo Único - A matrícula nos cursos de graduação e pós-graduação será
efetivada mediante comprovação dos requisitos estabelecidos na legislação que
regula esses níveis.
Art. Os cursos a distância poderão aceitar transferência e aproveitar créditos
obtidos pelos alunos em cursos presenciais, da mesma forma que as certificações
totais ou parciais obtidas em cursos a distância poderão ser aceitas em cursos
presenciais.
2
Art. Os certificados e diplomas de cursos a distância autorizados pelos sistemas
de ensino, expedidos por instituições credenciadas e registrados na forma da lei,
terão validade nacional.
Art.6º Os certificados e diplomas de cursos a distância emitidos por instituições
estrangeiras, mesmo quando realizados em cooperação com instituições sediadas
no Brasil, deverão ser revalidados para gerarem efeitos legais, de acordo com as
normas vigentes para o ensino presencial.
Art. A avaliação do rendimento do aluno para fins de promoção, certificação ou
diplomação, realizar-se-á no processo por meio de exames presenciais, de
responsabilidade da Instituição credenciada para ministrar o curso, segundo
procedimentos e critérios definidos no projeto autorizado.
Parágrafo Único: Os exames deverão avaliar competências descritas nas diretrizes
curriculares nacionais, quando for o caso, bem como conteúdos e habilidades que
cada curso se propõe a desenvolver.
Art. Nos níveis fundamental para jovens e adultos, médio e educação profissional,
os sistemas de ensino poderão credenciar Instituições exclusivamente para a
realização de exames finais, atendidas às normas gerais da educação nacional.
§ - Será exigência para credenciamento dessas Instituições a construção e
manutenção de banco de itens que será objeto de avaliação periódica.
§ - Os exames dos cursos de educação profissional devem contemplar
conhecimentos práticos, avaliados em ambientes apropriados.
§ - Para exame dos conhecimentos práticos a que se refere o parágrafo anterior,
as Instituições credenciadas poderão estabelecer parcerias, convênios ou
consórcios com Instituições especializadas no preparo profissional, escolas técnicas,
empresas e outras adequadamente aparelhadas.
Art. O Poder Público divulgará, periodicamente, a relação das Instituições
credenciadas, recredenciadas e os cursos ou programas autorizados.
Art. 10º As Instituições de ensino que oferecem cursos a distância deverão, no
prazo de um ano da vigência deste Decreto, atender às exigências nele
estabelecidas.
Art. 1 Fica delegada competência ao Ministro de Estado da Educação e do
Desporto, em conformidade ao estabelecido nos art.; 11 e 12 do Decreto-Lei 200
de 25 de fevereiro de 1967, para promover os atos de credenciamento de que trata o
§ do art. 80 da Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996, das Instituições
vinculadas ao sistema federal de ensino e das Instituições vinculadas ao sistema
federal de ensino e das Instituições de educação profissional [em nível tecnológico4]
e de ensino superior dos demais sistemas.
4Redação dada pelo Decreto 2.561, de 27 de abril de 1998.
3
Art. 12º Fica delegada competência às autoridades integrantes dos demais sistemas
de ensino de que trata o art. 80 da Lei 9.394, para promover os atos de
credenciamento de Instituições localizadas no âmbito de suas respectivas
atribuições, para oferta de cursos a distância dirigidos à educação de jovens e
adultos, ensino médio [ e educação profissional de nível técnico 5].
Art. 13 Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação.
Brasília, 10 de fevereiro de 1998, 117º dia da Independência e 110º da República.
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO
Presidente da República
Paulo Renato Souza
Ministro de Estado da Educação e do Desporto
(REVOGADO PELO DECRETO Nº 9.057, de 25/05/2017)
1.2 - Decreto N 9.057, de 25 de maio de 2017.Regulamenta o art. 80 da Lei
9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece
as diretrizes e bases da educação nacional.
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, no uso das atribuições que lhe confere o art.
84, caput, incisos IV e VI, alínea "a", da Constituição, e tendo em vista o disposto no
art. 80 da Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996, na Lei 10.861, de 14 de abril
de 2004 e na Lei 13.005, de 25 de junho de 2014,
DECRETA:
CAPÍTULO I. DISPOSIÇÕES GERAIS
Art. 1º Para os fins deste Decreto, considera-se educação a distância a
modalidade educacional na qual a mediação didático-pedagógica nos processos de
ensino e aprendizagem ocorra com a utilização de meios e tecnologias de
informação e comunicação, com pessoal qualificado, com políticas de acesso, com
acompanhamento e avaliação compatíveis, entre outros, e desenvolva atividades
educativas por estudantes e profissionais da educação que estejam em lugares e
tempos diversos.
Art. A educação básica e a educação superior poderão ser ofertadas na
modalidade a distância nos termos deste Decreto, observadas as condições de
acessibilidade que devem ser asseguradas nos espaços e meios utilizados.
Art. A criação, a organização, a oferta e o desenvolvimento de cursos a
distância observarão a legislação em vigor e as normas específicas expedidas pelo
Ministério da Educação.
5Redação dada pelo mesmo Decreto 2.561/98.
4
Art. As atividades presenciais, como tutorias, avaliações, estágios, práticas
profissionais e de laboratório e defesa de trabalhos, previstas nos projetos
pedagógicos ou de desenvolvimento da instituição de ensino e do curso, serão
realizadas na sede da instituição de ensino, nos polos de educação a distância ou
em ambiente profissional, conforme as Diretrizes Curriculares Nacionais.
Art. 5º O polo de educação a distância é a unidade acadêmica e operacional
descentralizada, no País ou no exterior, para o desenvolvimento de atividades
presenciais relativas aos cursos ofertados na modalidade a distância.
Parágrafo único. Os polos de educação a distância deverão manter infraestrutura
física, tecnológica e de pessoal adequada aos projetos pedagógicos ou de
desenvolvimento da instituição de ensino e do curso.
Art. 6º Compete ao Ministério da Educação, em articulação com os órgãos e as
entidades a ele vinculados:
I - o credenciamento e o recredenciamento de instituições de ensino dos
sistemas de ensino federal, estaduais e distrital para a oferta de educação superior
na modalidade a distância; e
II - a autorização, o reconhecimento e a renovação de reconhecimento de cursos
superiores na modalidade a distância de instituições de ensino integrantes do
sistema federal de ensino, respeitadas as prerrogativas de autonomia.
Art. 7º Os sistemas de ensino, em regime de colaboração, organizarão e
manterão abertos ao público os dados e atos referentes a:
I - credenciamento e recredenciamento institucional para oferta de cursos na
modalidade a distância;
II - autorização, reconhecimento e renovação de reconhecimento de cursos na
modalidade a distância; e
III - resultados dos processos de avaliação e de supervisão da educação na
modalidade a distância.
CAPÍTULO II. DA OFERTA DE CURSOS NA MODALIDADE A DISTÂNCIA
NA EDUCAÇÃO BÁSICA
Art. 8º Compete às autoridades dos sistemas de ensino estaduais, municipais e
distrital, no âmbito da unidade federativa, autorizar os cursos e o funcionamento de
instituições de educação na modalidade a distância nos seguintes níveis e
modalidades:
I - ensino fundamental, nos termos do § do art. 32 da Lei 9.394, de 20 de
dezembro de 1996;
II - ensino médio, nos termos do § 11 do art. 36 da Lei 9.394, de 1996;
III - educação profissional técnica de nível médio;
IV - educação de jovens e adultos; e
V - educação especial.
Art. A oferta de ensino fundamental na modalidade a distância em situações
5
emergenciais, previstas no § do art. 32 da Lei 9.394, de 1996, se refere a
pessoas que:
I - estejam impedidas, por motivo de saúde, de acompanhar o ensino presencial;
II - se encontrem no exterior, por qualquer motivo;
III - vivam em localidades que não possuam rede regular de atendimento escolar
presencial;
IV - sejam transferidas compulsoriamente para regiões de difícil acesso, incluídas
as missões localizadas em regiões de fronteira;
V - estejam em situação de privação de liberdade; ou
VI - estejam matriculadas nos anos finais do ensino fundamental regular e
estejam privadas da oferta de disciplinas obrigatórias do currículo escolar.
Art. 10. A oferta de educação básica na modalidade a distância pelas instituições
de ensino do sistema federal de ensino ocorrerá conforme a sua autonomia e nos
termos da legislação em vigor.
CAPÍTULO III. DA OFERTA DE CURSOS NA MODALIDADE A DISTÂNCIA
NA EDUCAÇÃO SUPERIOR
Art. 11. As instituições de ensino superior privadas deverão solicitar
credenciamento para a oferta de cursos superiores na modalidade a distância ao
Ministério da Educação.
§ O credenciamento de que trata o caput considerará, para fins de avaliação,
de regulação e de supervisão de que trata a Lei 10.861, de 14 de abril de 2004, a
sede da instituição de ensino acrescida dos endereços dos polos de educação a
distância, quando previstos no Plano de Desenvolvimento Institucional e no Projeto
Pedagógico de Curso.
§ É permitido o credenciamento de instituição de ensino superior
exclusivamente para oferta de cursos de graduação e de pós-graduação lato
sensu na modalidade a distância.
§ A oferta de curso de graduação é condição indispensável para a manutenção
das prerrogativas do credenciamento de que trata o § 2º.
§ As escolas de governo do sistema federal credenciadas pelo Ministério da
Educação para oferta de cursos de pós-graduação lato sensu poderão ofertar seus
cursos nas modalidades presencial e a distância.
§ As escolas de governo dos sistemas estaduais e distrital deverão solicitar
credenciamento ao Ministério da Educação para oferta de cursos de
pós-graduação lato sensu na modalidade a distância.
Art. 12. As instituições de ensino superior públicas dos sistemas federal,
estaduais e distrital ainda não credenciadas para a oferta de cursos superiores na
modalidade a distância ficam automaticamente credenciadas, pelo prazo de cinco
6
anos, contado do início da oferta do primeiro curso de graduação nesta modalidade,
condicionado à previsão no Plano de Desenvolvimento Institucional.
Parágrafo único. As instituições de ensino de que trata o caput ficarão sujeitas ao
recredenciamento para oferta de educação na modalidade a distância pelo Ministério
da Educação, nos termos da legislação específica.
Art. 13. Os processos de credenciamento e recredenciamento institucional, de
autorização, de reconhecimento e de renovação de reconhecimento de cursos
superiores na modalidade a distância serão submetidos à avaliação in loco na sede
da instituição de ensino, com o objetivo de verificar a existência e a adequação de
metodologia, de infraestrutura física, tecnológica e de pessoal que possibilitem a
realização das atividades previstas no Plano de Desenvolvimento Institucional e no
Projeto Pedagógico de Curso.
Parágrafo único. Os processos previstos no caput observarão, no que couber, a
disciplina processual aplicável aos processos regulatórios da educação superior em
geral, nos termos da legislação específica e das normas expedidas pelo Ministério
da Educação.
Art. 14. As instituições de ensino credenciadas para a oferta de educação
superior na modalidade a distância que detenham a prerrogativa de autonomia dos
sistemas de ensino federal, estaduais e distrital independem de autorização para
funcionamento de curso superior na modalidade a distância.
Parágrafo único. Na hipótese de que trata o caput, as instituições de ensino
deverão informar o Ministério da Educação quando da oferta de curso superior na
modalidade a distância, no prazo de sessenta dias, contado da data de criação do
curso, para fins de supervisão, de avaliação e de posterior reconhecimento, nos
termos da legislação específica.
Art. 15. Os cursos de pós-graduação lato sensu na modalidade a distância
poderão ter as atividades presenciais realizadas em locais distintos da sede ou dos
polos de educação a distância.
Art. 16. A criação de polo de educação a distância, de competência da instituição
de ensino credenciada para a oferta nesta modalidade, fica condicionada ao
cumprimento dos parâmetros definidos pelo Ministério da Educação, de acordo com
os resultados de avaliação institucional.
§ As instituições de ensino deverão informar a criação de polos de educação a
distância e as alterações de seus endereços ao Ministério da Educação, nos termos
a serem estabelecidos em regulamento.
§ A extinção de polo de educação a distância deverá ser informada ao
Ministério da Educação após o encerramento de todas as atividades educacionais,
assegurados os direitos dos estudantes matriculados e da comunidade acadêmica.
Art. 17. Observado o disposto no art. 14, os pedidos de autorização, de
reconhecimento e de renovação de reconhecimento de cursos superiores na
modalidade a distância, ofertados nos limites dos Estados e do Distrito Federal nos
quais estejam sediadas as instituições de ensino dos sistemas estaduais e distrital,
7
deverão tramitar nos órgãos competentes de âmbito estadual ou distrital, conforme o
caso, aos quais caberá a supervisão das instituições de ensino.
Parágrafo único. Os cursos das instituições de ensino de que trata o caput cujas
atividades presenciais forem realizadas fora do Estado da sede da instituição de
ensino, estarão sujeitos à regulamentação do Ministério da Educação.
Art. 18. A oferta de programas de pós-graduação stricto sensu na modalidade a
distância ficará condicionada à recomendação da Coordenação de Aperfeiçoamento
de Pessoal de Nível Superior - Capes, observadas as diretrizes e os pareceres do
Conselho Nacional de Educação.
Art. 19. A oferta de cursos superiores na modalidade a distância admitirá regime
de parceria entre a instituição de ensino credenciada para educação a distância e
outras pessoas jurídicas, preferencialmente em instalações da instituição de ensino,
exclusivamente para fins de funcionamento de polo de educação a distância, na
forma a ser estabelecida em regulamento e respeitado o limite da capacidade de
atendimento de estudantes.
§ A parceria de que trata o caput deverá ser formalizada em documento
próprio, o qual conterá as obrigações das entidades parceiras e estabelecerá a
responsabilidade exclusiva da instituição de ensino credenciada para educação a
distância ofertante do curso quanto a:
I - prática de atos acadêmicos referentes ao objeto da parceria;
II - corpo docente;
III - tutores;
IV - material didático; e
V - expedição das titulações conferidas.
§ O documento de formalização da parceria de que trata o § , ao qual
deverá ser dada ampla divulgação, deverá ser elaborado em consonância com o
Plano de Desenvolvimento Institucional de cada instituição de ensino credenciada
para educação a distância.
§ A instituição de ensino credenciada para educação a distância deverá
manter atualizadas junto ao Ministério da Educação as informações sobre os polos,
a celebração e o encerramento de parcerias, na forma a ser estabelecida em
regulamento, a fim de garantir o atendimento aos critérios de qualidade e assegurar
os direitos dos estudantes matriculados.
CAPÍTULO IV. DISPOSIÇÕES FINAIS E TRANSITÓRIAS
Art. 20. Os órgãos competentes dos sistemas de ensino poderão,
motivadamente, realizar ações de monitoramento, de avaliação e de supervisão de
cursos, polos ou instituições de ensino, observada a legislação em vigor e
respeitados os princípios do contraditório e da ampla defesa.
Art. 21. O disposto neste Decreto não afasta as disposições específicas
referentes aos sistemas públicos de educação a distância, à Universidade Aberta do
Brasil e à Rede e-Tec Brasil.
Art. 22. Os atos de credenciamento para a oferta exclusiva de cursos de
pós-graduação lato sensu na modalidade a distância concedidos a instituições de
8
ensino superior serão considerados também para fins de oferta de cursos de
graduação nesta modalidade, dispensado novo credenciamento ou aditamento.
Art. 23. Os processos de credenciamento para oferta de educação a distância
e de autorização de cursos a distância vinculados, em tramitação na data de
publicação deste Decreto, cujas avaliações in loco na sede tenham sido concluídas,
terão a fase de análise finalizada pela Secretaria competente no Ministério da
Educação.
§ Os processos de autorização de cursos a distância vinculados de que
trata o caput protocolados por instituições de ensino detentoras de autonomia, sem
avaliação in loco realizada na sede, serão arquivados e a autorização ficará a cargo
da instituição de ensino, após o credenciamento.
§ Nos processos mencionados no caput, somente serão considerados para
fins de credenciamento de polos de educação a distância os endereços nos quais a
avaliação in loco tenha sido realizada, e aqueles não avaliados serão arquivados,
sem prejuízo de sua posterior criação pela instituição de ensino, conforme o disposto
no art. 16.
§ O disposto no § se aplica, no que couber, aos processos de
aditamento de credenciamento de polos de educação a distância em tramitação na
data de publicação deste Decreto.
§ Eventuais valores de taxas recolhidas para avaliações não realizadas
ficarão disponíveis para utilização em outros processos de avaliação referentes à
mesma instituição de ensino.
§ As instituições de ensino poderão optar pelo não arquivamento dos
endereços não avaliados, na forma a ser estabelecida em regulamento.
Art. 24. Ficam revogados:
I - o Decreto 5.622, de 19 de dezembro de 2005; e
II - o art. do Decreto 6.303, de 12 de dezembro de 2007.
Art. 25. Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação.
Brasília, 25 de maio de 2017; 196º da Independência e 129º da República.
Michel Temer
José Mendonça Bezerra Filho
2. Comentários
Existiram, ao menos, cinco Decretos regulamentando o Art. 80 da Lei de
Diretrizes Bases da Educação Nacional (Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996),
prevista na Constituição de 1988 e que demorou oito anos para ser aprovada pelo
Congresso Nacional. Depois, foi sancionada, sem vetos, pelo Presidente da
República Fernando Henrique Cardoso, em 20 de dezembro de 1996.
O Art. 80 prescrevia:
9
Art. 80. O Poder Público incentivará o desenvolvimento e a veiculação de
programas de ensino a distância, em todos os níveis e modalidades de ensino, e de
educação continuada.
§1º A educação a distância, organizada com abertura e regime especiais,
será oferecida por instituições especificamente credenciadas pela União.
§2º A União regulamentará os requisitos para a realização de exames e
registro de diploma relativos a cursos de educação a distância.
§3º As normas para a produção, controle e avaliação de programas de
educação a distância e a autorização para sua implementação, caberão aos
respectivos sistemas de ensino, podendo haver cooperação e integração entre os
diferentes sistemas.
§4º A educação a distância gozará de tratamento diferenciado, que incluirá:
I custos de transmissão reduzidos em canais comerciais de radiodifusão
sonora e de sons e imagens;
II concessão de canais com finalidades exclusivamente educativas;
III reserva de tempo mínimo, sem ônus para o Poder Público, pelos
concessionários de canais comerciais.
As cinco regulamentações do Art. 80 da LDB pelo Poder Executivo, foram:
mencionamos o Decreto n. 2.494, 10 de fevereiro de 1998; o Decreto n. o Decreto n.
5.622, de 19 de dezembro de 2005, que eliminou o anterior e o Decreto n. 9.057, de
25 de maio de 2017, ainda vigorando.
Não podemos, aqui, explorar os cinco Decretos. Escolhemos o primeiro e o
último, ainda vigente.
O Art. 01 do Decreto n. 9.057/2017, em vigor, define a educação a distância
como: “a modalidade educacional na qual a mediação didático-pedagógica nos
processos de ensino e aprendizagem ocorra com a utilização de meios e tecnologias
de informação e comunicação, com pessoal qualificado, com políticas de acesso,
com acompanhamento e avaliação compatíveis, entre outros, e desenvolva
atividades educativas por estudantes e profissionais da educação que estejam em
lugares e tempos diversos.”
O Decreto, de 1998, define a EAD, como:
Art. [...] “é uma forma de ensino que possibilita a autoaprendizagem, com a
mediação de recursos didáticos sistematicamente organizados, apresentados em
10
diferentes suportes de informação, utilizados isoladamente ou combinados, e
veiculados pelos diversos meios de comunicação;
Parágrafo Único - Os cursos ministrados sob a forma de educação a distância
serão organizados em regime especial, com flexibilidade de requisitos para
admissão, horário e duração, sem prejuízo, quando for o caso, dos objetivos e das
diretrizes curriculares fixadas nacionalmente”.
Fala em “autoaprendizagem”, com a “mediação dos recursos didáticos
sistematicamente organizados, apresentados em diferentes suportes de informação,
[...] e veiculados pelos diversos meios de comunicação”. Parece que a
“autoaprendizagem” é privilegiada e que é o núcleo da EAD. Os recursos didáticos
seriam “sistematicamente organizados” e “veiculados pelos diversos meios de
comunicação” para único objetivo, a autoaprendizagem.
A mais completa definição encontra-se no Decreto n. 9.057/2017: “processos
de ensino e aprendizagem”. E ainda aduz: pessoal qualificado, política de acesso,
avaliação e controle compatíveis, etc... Embora, tenha se esquecido da Inteligência
Artificial, que pode ter repercussão na avaliação: os exames orais estão voltando?
Providências estão sendo tomadas quanto aos artigos 16 e 23 do Decreto em vigor.
Precisamos discutir isso: de que modo repercute a IA na avaliação? Ou de
que forma a IA modifica o processo pedagógico, como um todo? Ou de que
transforma, especificamente, a EAD, como modalidade de ensino?
Os demais artigos tratam dos polos de EAD, para atividades e de
credenciamentos. O Decreto vigente trata de:
Art. 15. Os cursos de pós-graduação lato sensu na modalidade a distância
poderão ter as atividades presenciais realizadas em locais distintos da sede ou dos
polos de educação a distância.
Art. 16. A criação de polo de educação a distância, de competência da
instituição de ensino credenciada para a oferta nesta modalidade, fica condicionada
ao cumprimento dos parâmetros definidos pelo Ministério da Educação, de acordo
com os resultados de avaliação institucional.
E o Decreto/2017, ainda vigor, prescreve em relação ao credenciamento (Art.
22 e 23):
Art. 22. Os atos de credenciamento para a oferta exclusiva de cursos de
pós-graduação lato sensu na modalidade a distância concedidos a instituições de
11
ensino superior serão considerados também para fins de oferta de cursos de
graduação nesta modalidade, dispensado novo credenciamento ou aditamento.
Art. 23. Os processos de credenciamento para oferta de educação a distância
e de autorização de cursos a distância vinculados, em tramitação na data de
publicação deste Decreto, cujas avaliações in loco na sede tenham sido concluídas,
terão a fase de análise finalizada pela Secretaria competente no Ministério da
Educação.
§ Os processos de autorização de cursos a distância vinculados de que
trata o caput protocolados por instituições de ensino detentoras de autonomia, sem
avaliação in loco realizada na sede, serão arquivados e a autorização ficará a cargo
da instituição de ensino, após o credenciamento.
§ Nos processos mencionados no caput, somente serão considerados para
fins de credenciamento de polos de educação a distância os endereços nos quais a
avaliação in loco tenha sido realizada, e aqueles não avaliados serão arquivados,
sem prejuízo de sua posterior criação pela instituição de ensino, conforme o disposto
no art. 16.
§ O disposto no § se aplica, no que couber, aos processos de
aditamento de credenciamento de polos de educação a distância em tramitação na
data de publicação deste Decreto.
§ Eventuais valores de taxas recolhidas para avaliações não realizadas
ficarão disponíveis para utilização em outros processos de avaliação referentes à
mesma instituição de ensino.
§ As instituições de ensino poderão optar pelo não arquivamento dos
endereços não avaliados, na forma a ser estabelecida em regulamento.
A educação a distância tem a ver com a “qualidade da educação socialmente
referenciada”. Presencial ou virtualmente, busca-se a qualidade da educação.
A pandemia da Covid-19 nos ensinou muitíssimo: nem toda a qualidade da
educação foi promissora: professores não preparados; materiais não adequados;
etc... Mas ganhou na experiência: do bom ou do ruim!
Percebemos que todos os conhecimentos não são passíveis de EAD. Alguns,
sim! Outros, não!
As narrativas têm um estilo e sabor diferente de pessoa a pessoa, de
professor a professor, de tutor a tutor! Por isso temos que ter a experimentação da
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educação com a mistura do presencial e o virtual, ora prevalecendo o virtual, ora
prevalecendo o presencial, e vice-versa.
A educação é comunicação especialíssima, feita de informação, comunicados
- falados ou escritos de qualidade socialmente referenciada.
...Que não pode perder uma das inúmeras tecnologias científicas que visem à
informação e comunicação... A Inteligência Artificial entre elas...
Avante!!!
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