V.18 nº 35 - 2020 (jan-abr) ISSN: 1808-799 X
Universidade Federal Fluminense Faculdade de Educação
NEDDATE - NÚCLEO DE ESTUDOS, DOCUMENTAÇÃO E DADOS SOBRE TRABALHO E EDUCAÇÃO
REVISTA TRABALHO NECESSÁRIO: http://periodicos.uff.br/trabalhonecessario
Redação: R. Professor Waldemar Freitas Reis, s/n°, bloco D, sala 525, Gragoatá - São Domingos, Niterói - RJ, CEP 24210-201 - revistatrabalhonecessario@gmail.com
EDITORES
Lia Tiriba, Maria Cristina Paulo Rodrigues e José Luiz Cordeiro Antunes
CONSELHO EDITORIAL
Caridad Perez García (UCPEJV – Cuba), Celso Ferretti (UNISO - Brasil), Gaudêncio Frigotto (UFF/UERJ - Brasil), José Claudinei Lombardi (UNICAMP – Brasil), Maria Ciavatta (UFF - Brasil), Roberto Leher (UFRJ - Brasil), Tomás Rodrigues Villasante (UCM – Espanha), Sonia Maria Rummert (UFF - Brasil) e Virgínia Fontes (UFF/EPJV / Fiocruz - Brasil).
COMITÊ CIENTÍFICO
Alexandre Maia do Bomfim (IFRJ), Ana Margarida Campello (EPSJV/FIOCRUZ), Ana Motta (UFF), André Feitosa (EPSJV/FIOCRUZ), André Martins (UFJF), Andrea Araújo Vale (UFF), Anita Handfas (UFRJ), Angela Siqueira (UFF), Angela Tamberlini (UFF), Claudio Fernandes da Costa (UFF), Célia Regina Vendramini (UFSC), Daniela Motta (UFJF), Dante Moura (IFRN), Deise Mancebo (UERJ), Domingos Leite Lima Filho (UTFPR), Dora Henrique da Costa (UFF), Edison Oyama (UFRR), Edson Caetano (UFMT), Eneida Oto Shiroma (UFSC), Eraldo Leme Batista (UNIVAS-MG), Eunice Trein (UFF), Eveline Algebaile (UERJ), Filippina Chinelli (EPSJV/FIOCRUZ), Flávio Anício (UFRRJ), Francisco José Lobo Neto (FIOCRUZ), Guadelupe Teresinha Bertussi (UNAM e UFSC), Hajime Nozaki (UFMS e UFJF), Henrique Tahan Novaes (UNESP), Ivo Tonet (UFAL), Jacqueline Botelho (UFF), Jaqueline Ventura (UFF), João dos Reis da Silva Jr. (UFSCar), José dos Santos Souza (UFRRJ), Júlio Cesar França Lima (FIOCRUZ), Justino de Souza Junior (UFC), Kátia Lima (UFF), Laura Souza Fonseca (UFRGS), Lea Calvão (UFF), Lia Tiriba (UFF), Lígia Klein (UFPR), Luciana Requião (UFF), Marcelo Lima (UFES), Maria Clara Bueno Fischer (UFRGS), Maria Inês do Rego Monteiro Bomfim (UFF), Maria de Fátima Félix Rosar (UNICAMP), Marcia Alvarenga (UERJ), Mariléia Maria da Silva (UDESC), Marisa Brandão (CEFET-RJ), Marise Ramos (UERJ,FIOCRUZ), Marlene Ribeiro (UFRGS), Myriam Feldfeber (UBA - Argentina), Ney Luiz Teixeira Almeida (UERJ), Olinda Evangelista (UFSC), Ramon de Oliveira (UFPE), Raquel Varela (Universidade Nova de Lisboa - Portugal), Roberto Leher (UFRJ), Ronaldo Lima (UFPA), Rosilda Benacchio (UFF), Rui Canário (Universidade de Lisboa – Portugal), Sandra Maria Siqueira (UFBA), Sandra Morais (UNIRIO), Sérgio Lessa (UFAL),, Susana Vasconcellos Jimenez (UFC), Tatiana Dahmer (UFF), Valdemar Sguissardi (UFSCar), Vania Motta (UFRJ) e Zuleide Silveira (UFF)
ORGANIZAÇÃO DA TN 35 (2020)
Profa. Maria Ciavatta – THESE (UFF-UERJ-FIOGRUZ) / NEDDATE
ASSISTENTES DE EDIÇÃO
Daniel Tiriba, Francisco das Chagas Silva Souza (IFRN), Lândhor Borges Camello (UFF), Luiz Augusto de Oliveira Gomes (Doutorando em Educação/UFF), Olivia Morais de Medeiros Neta (IFRN) e William Kennedy do Amaral Souza (IFRO)
BOLSISTAS DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA
Ana Clara da Silva Souza (Serviço Social), João Marcoyves Carvalho da Silva (Serviço Social) e Roberta Carmem de Oliveira Malvão (Ciências Sociais)
FOTO DA CAPA
Jovem Trabalhador – Foto de autor desconhecido, sem data, Arquivo Edgar Leuenroth/Unicamp
MONTAGEM DA CAPA
Daniel Tiriba
V.18 nº 35 - 2020 (jan-abr) ISSN: 1808-799 X
Indexado por / Indexed by
Apoio:
Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoatá/SDC/UFF Bibliotecária:
Mahira de Souza Prado CRB-7/6146
V.18, nº 35 - 2020 (jan-abr) ISSN: 1808-799 X
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v18i35.40488
Editorial
ANO NOVO, VELHOS PROBLEMAS... E UM PRESENTE CHEIO DE POSSIBILIDADES
Para onde vamos? Ah, onde vamos parar?
Nessa encruzilhada, que estrada vamos pegar? Que perigo de mau tempo, temporal.
De temperatura em alta e de desastre existe para todos nós, afinal?
Afinal? Que desmatamento, incêndio ou inundação? Nossos olhos tristes ainda inundarão?
Que geleiras tem que ainda derreter, Pra quebrar a pedra de gelo que tem no peito,
quem tem um podre alto poder? Quanto tempo vamos seguir sem de fato agir? Contra a gana, por grana que aqui só faz destruir? Quantos homens, aos milhares, aos milhões,
vão morrer de fome e de sede, vitimas de ações de outros homens, de outras nações?
Que mundo nós Deixaremos às gerações que virão após? Que futuro preparamos, que manhã?
Que manhã? Nosso tino ou desatino hoje define nosso destino,
Aqui. Amanhã.
https://www.youtube.com/watch?v=QV6uYi189Mc
Como diz o dito popular, “Ano novo, vida nova”. É quando desejamos um certo arrefecimento dos problemas e do stress do ano anterior, e um revigoramento de nossas forças para enfrentar o que virá. É por isso que em nosso primeiro Editorial do ano de 2020 escolhemos a letra da música de Beto Villares e Carlos Rennó como epígrafe: para que os questionamentos feitos por eles, com a sua arte, ecoem em nossas mentes e corações e nos ajudem a pensar nos desafios para a construção de
um outro destino para a humanidade. Arte que expressa em perguntas fundamentais e se articula profundamente com a temática da TN 35, que tem na história – entendida como produção da existência – o seu eixo central.
Destacamos a dificuldade de realizar, neste espaço do Editorial, uma profunda análise de conjuntura ou mesmo uma avaliação das relações econômicas, políticas, sociais, culturais em que estamos imersos e que atingem todas as dimensões da vida humana, e da natureza. Entretanto, não queremos, com essa escrita, nos portar como Polianas (otimistas ao extremo), diante do quadro que se apresenta no plano nacional ou no internacional. Um quadro composto por retrocessos políticos, éticos e sociais, que parece nos levar de volta à Idade Média. A “caça às bruxas”, com o anti- intelectualismo, os cortes nas ciências, nas artes e na cultura, em geral, têm sido a resposta do neoconversadorismo e seus fundamentalismos (econômico, religioso, científico, político), por se sentir ameaçado pelas forças progressistas das sociedades.
Para combater os efeitos dessa força que nos assola, é preciso utilizar de todas as ferramentas possíveis, vindas dos mais variados campos, em especial do campo científico, para identificar, tocar corpos e mentes, compreender, interpretar com acuidade, para intervir com ações consistentes no meio social. Essa é, a nosso ver, a função da Ciência Comprometida.
O fundamental é pensarmos com amadurecimento necessário, com as lentes das teorias e experiências diversas e, acima de tudo, por perguntas que somos capazes de formular, que os espaços-tempos históricos trouxeram e trazem, para não só constatar ou analisar, mas transformar as relações sociais. Como dizia Marx, em A Ideologia Alemã: “Os filósofos se limitaram a interpretar o mundo de diferentes maneiras; o que importa é transformá-lo”1.
Assim, neste Ano Novo, invocamos que transformemos em ações os desejos que sempre nos tomam neste período, pois o desejo pode e deve ser convertido em ações, com o objetivo de acabar com os velhos problemas. Desejos, anseios e sonhos que se apresentam como um horizonte possível – nossa utopia. Por isso é que dizemos que o presente ou o ano que chega está prenhe e cheio de possibilidades, por entender que a história humana – com contradições e mediações diversas, como síntese de múltiplas determinações, como processo e como método, permite a
1Karl Max e Friedrich Engels em A Ideologia Alemã: introdução de Jacob Gorender; tradução de Luís Cláudio de Castro e Costa. São Paulo; Martins Fontes, 1989.
apreensão da realidade em sua concretude, como elemento possível para análise de seus problemas.
E porque a história não tem fim, e nem tudo que dita o sistema capitalista, se efetiva de forma absoluta. Na verdade, são os sujeitos sociais os senhores da história; sujeitos encarnados e com lugares de pertencimentos específicos que podem transformar o caos que vivemos no momento. Os fatos estão postos, mas não definitivamente, porque é o movimento dos sujeitos sociais que faz com que tais fatos perdurem ou deixem de existir.
O sentido da vida está nessa disputa posta pelas lutas de classes, por distintos processos de construção societários, nos quais a educação, a saúde, a cultura, as ciências também são parte constitutivas. Por isso é que hoje, no presente, tanto como no passado, ideias contra-hegemônicas recebem ameaças constantes.
Em relação à arte, se ela não explica ou muda a realidade, ela, com as perguntas que nos traz, nos interroga, nos envolve, nos toca, nos emociona, nos faz sentir, sobretudo, as coisas do mundo e da vida. Nos faz pensar de que natureza humana nos constituímos. Nós, humanos, em relações diversas, com os outros homens, com a natureza. A arte canta, baila, declama, expressa teatralmente a realidade. Sozinha ela não muda a realidade, mas nos inspira a pensar e a sentir sobre ela. Ela é história. Ela também faz história.
No contexto que vivemos, sem desconhecer o papel dos movimentos sociais populares, é a arte que ainda grita, que não se cala. É ela que nos alerta sobre todo ser vivente. Vida em sociedade que às vezes queima, mas que ainda teima em se constituir. Nesse mundo, a arte faz agitar a nossa esperança, na medida que nos faz nos enxergar melhor, em um momento que o sistema capital tenta coisificar os humanos.
Por isso voltamos à pergunta feita por Villares e Rennó, colocada em nossa epígrafe: Para onde vamos?
E ao tentar respondê-la podemos pensar nas diferentes dimensões da vida humana, quando um contingente grande da população mundial e nacional, por pertencimento de classe, raça/etnia, gênero é excluído e impedido de usufruir dos bens materiais e imateriais que produz cotidianamente, o que acarreta mortes (físicas e simbólicas) das potencialidades humanas, apesar de todo o desenvolvimento tecnológico.
O que a perversidade e pervesão do sistema capital e seus representantes tem realizado com a classe trabalhadora, com as contrarreformas? A perda dos direitos historicamente conquistados, alavancando as desigualdes sociais tais como o trabalho (desregulamentação e aumento do desemprego), a negação da previdência (saúde, aposentadoria, segurança), da educação, de acesso a cultura, a falta de moradia e de acesso/apropriação da terra, em detrimento da vida dos trabalhadores, das trabalhadoras e de seus filhos.
Uma nova diáspora forçada vem ocorrendo no mundo, por questões de ordem política e/ou econômica. Trabalhadores pobres, desprovidos de tudo, em situação de migração ou de imigração como refugiados, devido ao esfacelamento das democracias, ou por toda a riqueza produzida estar concentrada nas mãos de poucos, os mais ricos do planeta.
Especificamente no Brasil, a ofensiva do sistema capital pode ser percebida no desmatamento e nas queimadas da Amazônia (e seu impacto internacional), na poluição das águas, no desastre ambiental (Brumadinho sem resposta até hoje, as manchas de petróleo no mar), nos assassinatos no campo e na cidade (Quem matou Mariele, as lideranças indígenas e os moradores de rua?), na invasão e usurpação das terras indígenas, quilombolas e população ribeirinha, realizadas de diferentes formas; no retorno de algumas endemias, por causa da ausência do saneamento básico; no avanço e estímulo das propagandas nazi-facistas, e mais recentemente, nos golpes recebidos pela cultura e artes, com os cortes, proibições de espetáculos e atentados (Porta dos Fundos). No campo da educação, há a privatização de todas as etapas de ensino, inclusive a Educação Superior. A EAD – Educação à Distância caminha a passos largos. E na calada da noite surge uma nova versão do Future-se, que transforma-se em anteprojeto (24/12/19), ao mesmo tempo que surge a MP 914/2019, que ataca a democracia e a autonomia das Universidades, diante da escolha presidencial para reitor, retirando o que se tinha conquistado a partir dos anos 90 do Século XX, a lista tríplice.
Como sinaliza Carlos Augusto Aguilar, no Jornal da ADUFF (Dez de 2019/Jan de 2020)2
2 Associação Docente da UFF-SSind. Em 2020, a UFF se encontra (de novo) nas ruas. Niterói: Jornal da ADUFF-SSind, Dez de 2019/Jan de 2020.
A medida tem essa tentativa de impor o Future-se através da nomeação do reitor pelos interesses políticos do [presidente] Bolsonaro. E foi dado o poder dos reitores nomearem os diretores das unidades. É uma maneira de concentrar um poder sem medida nas mãos dos reitores e dessa forma conseguir a aprovação do programa Future-se. Outro aspecto da medida resswaltado por ele [o diretor] envolve o ataque ideológico às instituições de ensino. Fica muito mais fácil realizar um controle das atividades acadêmicas”.
Para além deste ataque, devemos estar atentos, por exemplo, diante da PEC Emergencial, que deve ser votada em fevereiro de 2020, e que pode reduzir salários e asfixiar serviços públicos. Caso aprovada, “proporcionará a curtíssimo prazo aquilo que a Emenda Constitucional 55 demoraria um pouco mais para fazer: a destruição dos serviços e dos servidores públicos (ADUFF-Ssind, id ibdem)”.
Por fim, entendemos que esta forma perversa não ocorre somente com o campo da educação pública, mas se estende para todos os serviços públicos básicos destinados para a população, o que exige de todo o campo progressista atenção e ação coletiva. Neste sentido, utilizando a história e arte como companheiras de reflexão, conclamamos que uma unidade de esquerda seja construída, dentro da diversidade posta no contexto social, na medida que no ano de 2020 teremos eleições municipais, o pode reverberar no ano de 2022. Que nossas diferenças sejam pequenas em prol do que O Comum exige de nós. Esperamos que a TN 35 – História e historiografia em trabalho-educação seja profícua para a tarefa que cabe para todos nós. Sigamos avante!
José Luiz Cordeiro Antunes, Maria Cristina Paulo Rodrigues, Lia Tiriba Editores da Revista TN
V.18, nº 35 – 2020 (jan-abr) ISSN: 1808-799 X
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v18i35.40489
Maria Ciavatta - Grupo These (UFF/UERJ/Fiocruz)1
O historiador Jean Chesnais pergunta: “Que lugar ocupa o saber histórico na vida social? Atua a favor da ordem estabelecida ou contra ela?” Na historiografia em trabalho-educação, perguntamos, em que consiste o pensamento crítico em um mundo que cresce em conhecimento e em novos poderes científico-tecnológicos. Mas cresce, também, no volume de pessoas desamparadas, de migrantes, de pessoas pobres em todas as dimensões da necessidade de bens, para ter uma vida digna, acossados pela sedução da publicidade do consumo fácil, pelas mentiras edulcoradas de verdade.
O termo pensamento crítico2, como outros termos e conceitos, tem sido apropriado por ideologias diferentes do significado que lhe atribuem os grupos onde foram produzidos. No senso comum, a crítica é uma censura, um julgamento desfavorável. Mas tem origem no grego krísis que significa julgamento, critério, decisão, debate, desatar um nó. O pensamento crítico é aquele que não fica na aparência, mas utiliza critérios de discernimento que se referem a vários aspectos de uma questão, que “desatam nós”, mostram aspectos não evidentes, não revelados.
1 Licenciada em Filosofia, Doutora em Ciências Humanas (Educação), Professora Titular em Trabalho e Educação da Universidade Federal Fluminense, Niterói, Rio de Janeiro, mciavatta@terra.com.br. ORCID: 0000-0002-2374-2627.
2 Esta reflexão consta, originalmente, de CIAVATTA, Maria. O Golpe Civil-militar e o pensamento crítico em trabalho e educação Seminário de Produção Científica do Grupo THESE, UFF, UERJ e EPSJV- Fiocruz, dezembro de 2014.
O pensamento crítico é fundamental para entendermos nosso país. Convivemos com o desmonte das estruturas de democratização da sociedade, que foram conquistas das instituições renovadas, dos partidos políticos e dos movimentos sociais, após vinte anos de ditadura (1964-1985). “A eleição do populismo autoritário de direita como rejeição ao establishment político uniu, no Brasil, a agenda do conservadorismo moralista ao fundamentalismo de mercado”.3 A verdade não edulcorada que se nos revela é de difícil aceitação. Vemos a perda de direitos conquistados com a contrarreforma e a desregulamentação do trabalho, com a dubiedade na obediência à Constituição Federal, o corte nos programas sociais, o aumento do desemprego e da desigualdade de acesso à moradia, à saúde, educação, segurança.
A ciência, as universidades públicas, os institutos de pesquisa, as instituições de arte e cultura, o teatro, a música e o cinema enfrentam um dia a dia de corte de recursos básicos, combinado a critérios inverossímeis de censura moral e política. “Terra plana, ideias rasas. Há alguma coisa muito errada quando é preciso reabrir a discussão sobre a esfericidade da terra. Voltamos ao pré-iluminismo? Fomos transportados para algum ponto anterior ao século XVII?” 4
A ordem estabelecida no Brasil, a partir das eleições presidenciais de 2018, desafia todos os critérios da modernidade, porque o poder governamental atua segundo o próprio arbítrio, à revelia da tradição das instituições democráticas, impondo a ortodoxia econômica liberal, implantada no Chile pela ditadura de Pinochet (1973-1990). Em vez da comunicação oficial de governo, desde seu início, operam as redes sociais manipuladas pela família presidencial, as fake news, o anti- intelectualismo, a guerra contra o chamado “marxismo cultural”, a criminalização das políticas institucionais, atingindo a produção cinematográfica e teatral, o desmatamento e as queimadas autorizadas, a omissão diante da invasão de terrar indígenas, a privatização da educação pública e dos serviços básicos de saúde, a militarização das escolas, as investidas contra a autonomia dos professores...
3 CARVALHO, Laura. A fórmula explosiva do bolsonarismo. Folha de São Paulo, Ilustríssima, dom., 1º. De dezembro de 2019, p. 6.
4 ALCÂNTARA, Eurípedes. Terra plana, ideias rasas. O Globo, Opinião, sáb., 2 de novembro de 2019,
p. 3
Pensar historicamente,5 “consiste em compreender e esforçar-se por fazer compreender os fenômenos sociais na dinâmica de suas sequências”6. Significa buscar compreender a realidade nas múltiplas mediações que a constituem, identificar seus sujeitos sociais, no espaço-tempo em que trabalham, vivem e se educam para a vida social em toda a sua complexidade.
Para Marx e Engels7 a história é a produção social da existência, nos atos de comer, abrigar-se, reproduzir-se, criar os meios de vida na interação com a natureza e com os demais seres humanos. Assim se produz e reproduz a vida, cria-se a cultura em todas as formas que conhecemos.
Do ponto de vista teórico-metodológico, significa considerar a história como processo e a história como método de pesquisa. A história como o processo real da vida dos homens em sociedade, os acontecimentos, as estruturas, os sujeitos sociais. A história como método, como sua representação ao nível do pensamento, seus relatos e narrativas. A historiografia é a análise crítica da história escrita, o amadurecimento do campo científico que pensa sobre seu próprio fazer.
Passado e futuro se expressam no presente, no instante de cada momento em que se contempla ou se deplora a vida. Para Antoine Prost, o historiador olha o passado em função das questões do presente: “A história faz-se a partir do tempo, um tempo complexo, construído e multifacetado”8. A dimensão social dos fenômenos deve ser buscada no espaço-tempo social dos tempos complexos dos fenômenos da vida humana, o que nos leva a ver que a historicidade do momento que vivemos supõe uma concepção dialética do espaço-tempo e o tratamento dos fenômenos sociais na sua temporalidade múltipla de que fala Braudel.9
Qual o lugar da história em um ambiente onde a ciência secular é desafiada por declarações inconsequentes? Do que deve se ocupar a história da educação e do trabalho-educação no exame científico e crítico dos fatos que são objeto dos estudos históricos? Quais os critérios de cientificidade? Muitas são as vertentes analíticas
5 Parte destas reflexões constam de CIAVATTA, Maria. “Ensaio sobre a lucidez” e a realidade brasileira. Democracia, violência, anti-intelectualismo. XIII Colóquio Nacional e VI Colóquio Internacional do Museu Pedagógico, Universidade do Estado da Bahia, Vitória da Conquista, 15 a 18 de outubro de 2019,
6 VILAR, Pierre. Pensar a história. México, DF: Instituto Mora, 1992.
7 MARX ENGELS. A ideologia alemã (Feurbach). São Paulo: Ciências Humanas, 1979.
8 PROST, Antoine. Doze lições sobre história. Belo Horizonte: Autêntica, 2008, p. 96.
9 BRAUDEL, Fernand. A longa duração. In: . História e Ciências Sociais. Lisboa: Editorial Presença, 1982.
pelas quais os historiadores relatam os acontecimentos e escrevem a história dos indivíduos e dos povos. Nós nos situamos no materialismo histórico dialético (MARX, 1980 entre outros)10 que permite compreender o modo de produzir a vida nos últimos séculos, e constatar o acirramento das contradições entre a reprodução e a acumulação do capital e o empobrecimento e abandono generalizado das populações. De modo complementar, procuramos fazer a interlocução com outras vertentes historiográficas, algumas das quais presentes neste número temático da Revista Trabalho Necessário.
Com o apoio dos pareceristas e dos editores, estabelecemos dois critérios básicos para organização da TN 35: o primeiro é a pertinência ao campo da história da educação e questões referentes ao mundo do trabalho-educação em suas particularidades, tais como, as relações entre o capital e o trabalho, seus vínculos com a sociedade, a educação profissional, as políticas educacionais e sua expressão na cultura material em espaços formativos, o uso das imagens e de outras fontes documentais sobre a preparação para o trabalho na escola, nas empresas, nos movimentos sociais, na saúde etc.
O segundo critério foi o mérito acadêmico-científico na elaboração do tema e sua articulação com processos de pesquisa. Do ponto de vista teórico, a contradição capital e trabalho e a aceitação da luta de classes como motor da história11 não está presente em todos os trabalhos aqui apresentados. O que não significa que não escrevam a história da educação profissional e de outros temas afins. Prevaleceu nossa opção pela interlocução com a história e a historiografia do trabalho-educação.
A seção Artigos do Número Temático é composta por dez artigos, sendo um internacional. Inicia com o trabalho de Vitor Benvindo, que encontra no materialismo histórico um recurso teórico para a compreensão da “atual conjuntura de avanço do pensamento conservador e reacionário em todo mundo”, realizando a escrita da história “a contrapelo”, nos termos do filósofo Walter Benjamin. “Em tempos de avanço do obscurantismo, “clarear essa obscuridade” “é a honra da pesquisa histórica”, diz o autor, com base na concepção de história presente nas obras de Marx e Engels. A história, assim escrita, obriga a ver o mundo real, onde vivemos nas suas contradições geradas pelo conjunto das forças sociais e seus projetos individuais, de grupos e
10 MARX, Karl. O capital (Crírica da Economia Política). Rio de Janeiro; Civilização Brasileira, 1980.
11 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. São Paulo: Cortez, 1998, p. 4.
classes. Do “desafio de compreender a cultura e a ideologia como elementos fundamentais da luta de classes, emerge um segundo desafio, o de perceber o movimento da história não apenas como o “cortejo triunfal dos vencedores, dos dominadores”, mas também o outro lado da história, os ganhos históricos dos vencidos.
O trabalho de Dalton José Alves situa-se na historiografia de longa duração, revelando a natureza da escola. “A escola surge, assim, como ‘Scholé’” (lugar do ócio), mas não era um lugar de descanso ou de lazer, ao contrário, era “o lugar para onde eram enviados aqueles que não precisavam trabalhar para viver. Os filhos dos proprietários.” Será o “modelo geral de educação para todos”. Na Modernidade inaugurada pelo pensamento burguês, em particular com a Revolução Industrial, aplica-se à “pedagogia da hegemonia da classe proprietária, antes feudal” e, depois, capitalista. O restante da população destina-se ao aprendizado para os processos produtivos, em uma sociedade que parte do “trabalho centrado na indústria e na cidade, oriundo da organização do trabalho na manufatura capitalista”. Ao longo dos séculos, torna-se o “princípio educativo por excelência da escola pública para todos”. Compreendemos hoje suas contradições porque “O conhecimento da história do ser e estar humano no mundo passa pela compreensão do papel do trabalho e da educação no processo de humanização”.
e da emancipação. Destaca ainda “as experiências no ‘mundo do trabalho associado’” e as geradas na educação como “embriões de educação para além do capital”.
Carlos Alberto Lucena traz um relato etnográfico, denso de história política, sobre a greve dos petroleiros de 1995, a partir da memória dos petroleiros da base, de dirigentes e de militantes dos sindicatos de trabalhadores. “Se a história de todas as sociedades até hoje é a história das lutas de classes” como afirmam Marx e Engels12 nas primeiras linhas do Manifesto Comunista, o autor deste artigo nos apresenta um retrato vivo dos longos processos de decisão dos trabalhadores na construção de uma greve de reivindicação e de enfrentamento com o “Governo Federal, o corpo diretivo da Petrobras e a mídia brasileira para desestabilizar o movimento paredista” no início do primeiro governo neoliberal de F. H. Cardoso. O texto remete aos processos de “financeirização das economias e à mundialização do capital”, “às formas de obtenção de mais-valia absoluta e relativa em sua dinâmica de reprodução do capital composto de juros” do Livro Terceiro de O Capital de Marx. Deste ponto de vista, a greve também poderia ser analisada como “resistência a um amplo processo de subordinação da periferia ao centro do capitalismo manifesto em privatizações e quebra de monopólios estatais”. É um texto exemplar da história viva das difíceis tentativas de emancipação dos trabalhadores frente ao capital e à totalidade social de seus vínculos com o Estado, a mídia impressa e televisiva e as instituições em processo de democratização.
A contribuição de Michelle Freitas Teixeira situa-se no eixo teórico marxista gramsciano para o estudo da luta por hegemonia na educação de jovens e adultos e na educação rural. O foco principal da pesquisa, em desenvolvimento, tem início nos anos 1990. É o “Movimento Por Uma Educação do Campo, ao qual integram diversos organismos privados campesinos, dentre eles o Movimento do Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). No campo da cultura e da educação, os movimentos sociais resistem à formação restrita, tanto de uma “mão de obra disciplinada para o trabalho assalariado rural quanto de consumidores de produtos agropecuários”. O artigo fundamenta sua “análise teórico-metodológica da concepção de Estado” como “Estado Ampliado”; na história como produção social, “processo real da vida humana em sociedade”; nas contradições que permeiam as relações entre o capital e o trabalho; e na “disputa por diferentes projetos de educação para a classe trabalhadora
12 MARX; ENGELS, ibid.
rural”. Os estudos e pesquisas sobre a organização da classe trabalhadora supõem “pensar as bases, os fundamentos, as categorias que se alinham a um projeto que se faça coerente à luta contra hegemônica contra o “projeto de capitalismo agrário no período de avanço da contrarreforma capitalista neoliberal no Brasil”. A autora observa a presença agressiva do “capitalismo empresarial nas relações produtivas do campo alicerçadas na difusão do projeto do agronegócio e articuladas ao processo de reorganização da sociabilidade do capital.”
Tendo, como foco específico, a relação entre o trabalho e a educação, Patrícia Furtado Fernandes Costa e Lucília Regina de Souza Machado têm por base um levantamento das “referências históricas e teóricas para a análise crítica da produção do conhecimento no Brasil sobre currículo integrado e ensino médio integrado.” Seu ponto de partida é o debate sobre currículo integrado e ensino médio integrado na história da educação brasileira a partir da Lei n. 9.394/1996 e as iniciativas de regulamentação sobre a educação profissional. Seu debate, amplo e polêmico, “fez emergir o conceito de formação humana integral, suas várias dimensões, seus obstáculos advindos das contradições sociais” repondo, em termos atualizados até os dias de hoje, a dualidade estrutural da sociedade de classes do país. A formação integrada é um tema recorrente na literatura científica educacional desde 2004. Ela faz parte de um projeto em disputa na sociedade brasileira: a educação geral, integral, omnilateral e de qualidade no ensino médio público, ou seu estreitamento na preparação para a ordem, a disciplina e a preparação funcional no trabalho simples para o mercado. Além da documentação legal apresentada, dos anos 1970 a 2017, as autoras recuperam ampla bibliografia analítica sobre a questão, remetendo alguns aspectos aos primórdios da educação no Brasil do século XIX e na antiguidade ocidental.
Os quatro artigos que se seguem contemplam a historiografia da educação profissional com diferentes abordagens: sobre as fontes de um arquivo institucional; a escrita de professores de uma escola polivalente, em um periódico local; a educação profissional e a instituição escola do Império à Primeira República.
escolar, currículo, cultura material escolar e sociabilidades.” Além da história e da memória institucional, o Portal democratiza o acesso às informações que revelam a historicidade do IFRN que, em 2009, comemorou 100 anos de existência, por ter sido uma das 19 Escolas de Aprendizes Artífices criadas em 1919. “O Portal também se preocupa em registrar, por meio de imagens fotográficas e relatos orais gravados em vídeos, algumas práticas do cotidiano da instituição que dizem respeito à cultura escolar”. Citado pelos autores, para Marc Bloch13 “o passado é, por definição, um dado em que nada mais modificará. Mas o conhecimento do passado é uma coisa em progresso, que incessantemente se transforma e se aperfeiçoa”. O Portal da Memória, “como arquivo/museu escolar digital, nasceu com o desenvolvimento das novas tecnologias da comunicação geradas pela memória eletrônica, na segunda metade do século XX.” Como outras fontes, seu uso e pertinência na historiografia depende das perguntas que lhes são feitas pelos historiadores, adverte Le Goff14: “O Portal representa um potencial instrumento de democratização da memória na modernidade, ao acabar as fronteiras físicas e temporais entre os sujeitos que o acessam, [mas] é também um desafio, visto que representa um novo modo de produzir, registrar e guardar a memória no mundo contemporâneo.”
13 BLOCH, Marc. Apologia da história ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001, p. 75.
14 LE GOFF, Jacques. História e memória. 5. ed. Campinas-SP: Editora da Unicamp, 2003, p. 463.
a Lei n. 7.044, tornara opcional a profissionalização compulsória prescrita pela n. 5.692/71 e o Parecer nº 895/71, mas, “diferentemente do que era pautado pela legislação, os docentes preocupavam-se com uma formação integral”. Além do termo integrado, algumas categorias eram básicas na concepção dos docentes para a análise da educação polivalente naquele A contextualização e o espaço político da redemocratização incorporam a crítica à “hegemonia estrangeira, principalmente dos Estados Unidos, [que] é amplamente criticada, bem como o papel periférico/marginal ocupado pelo Brasil na esfera global”.
No sentido de historicizar a Educação Profissional do Império à Primeira República, José António Martin Moreno Afonso e Renato Marinho Brandão Santos, retomam um tema comum na sociologia histórica do século XX, que é o conceito de “classes perigosas” para designar a população abandonada pelo poder público, remanescente de um processo de libertação dos escravos que foi uma medida de lei, a Lei Áurea n.º 3.353, de 13 de maio de 1988, que nunca completou a integração social e política dos libertos. A sociedade das elites, os brancos, nunca promoveu os meios de vida (moradia, trabalho, saúde, educação, segurança), dignos e suficientes para essa população. Diante da desigualdade e da exclusão social, o medo dos ricos e o ressentimento dos pobres, as “classes populares”, geraram a defesa e rigor punitivo “à ociosidade, mãe de todos os vícios” nos primeiros; e resistência através do fortalecimento das culturas de origem, agressão e revoltas nos segundos. Os autores estudam o ensino profissional no Brasil, “desde os Liceus e Casas de Educandos, no período imperial, até as Escolas de Aprendizes estabelecidas nas capitais brasileiras a partir de 1910, durante a Primeira República”. Assim, foi possível observar, ao longo dos períodos, “a associação entre o ensino profissional e o controle das denominadas “classes perigosas”. O controle das “classes populares” e o “culto ao trabalho” para os “desfavorecidos da fortuna” alimentaram a criação de várias instituições de ensino profissional no Império e na Primeira República.
O artigo de Francisco Carlos Oliveira de Sousa dá continuidade à história do ensino profissional na Primeira República, particularmente, a Rede de Aprendizes Artífices, criada em 1909, pelo Presidente Nilo Peçanha. “A análise das fontes apoia-
se nos referenciais propostos por Magalhães (2004), Nosella e Buffa (2007),15 segundo os quais, compreender a genealogia de uma instituição educativa pressupõe relacionar a sua função social e o contexto no qual está inserida.” As Escolas de Aprendizes Artífices dão continuidade à política de governos anteriores e posteriores, de destinar aos escravos, aos libertos e a seus filhos o ensino das práticas laborais, em detrimento da educação. Mas o foco do artigo é compreender a escola em sua historicidade e natureza institucional, e aos seus determinantes do modo de produção capitalista .”Como possibilitar a incorporação da população aos novos preceitos políticos, sociais e culturais que a nova era prometia?” Eram crescentes os problemas sociais e a agitação da incipiente classe operária dos primórdios do industrialismo. Apesar da pretendida modernização com a criação dos grupos escolares para a educação elementar no final do século XIX, a instituição escolar na Primeira República caracterizou-se pela “importância dos ofícios manuais, em suas dimensões preventiva e corretiva”.16
Na seção Ensaio encontramos importante reflexão enviada pelo professor Juan Mainer Basqué, da Fundação Icaria (Espanha), outra contribuição internacional apresentada na TN 35. Em uma perspectiva histórica crítico-genealógica, no texto Fábricas de Inequidad: crítica de la escuela capitalista, o autor analisa que, longe de promover a igualdade social, os sistemas escolares têm se constituído como elementos eficazes para legitimação e consagração da estrutura de classes, do colonialismo e da segregação de gênero. Para ele, por ser a instituição escolar um espaço de debate e de luta, é fundamental submeter à crítica equivocadas concepções de educação, cultura e ensino que têm embasado o pensamento dos setores da esquerda.
Na seção Documentário, em O Rio dos Trabalhadores - a educação do olhar e a fotografia como fonte histórica, Maria Ciavatta apresenta contribuições teórico- metodológicas em relação a como podemos fazer história e historiografia de maneira a compreender e interpretar os mundos do trabalho e do capital. Por meio da
15 MAGALHÃES, Justino. Tecendo nexos: história das instituições educativas. Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2004.
NOSELLA, Paolo; BUFFA, Ester. Instituições escolares: porque e como pesquisar. Campinas: Alínea, 2009.
16 CUNHA, Luiz Antônio. O ensino de ofícios nos primórdios da industrialização. São Paulo: Editora UNESP, Brasília: Flacso, 2000, p. 24, grifo do autor do artigo.
fotografia, entendida como fonte histórica, pode-se educar o olhar, com a perspectiva de desconstruir os caminhos do capital e sua influência na vida das cidades, na conformação da classe trabalhadora. Além do texto de apresentação, o leitor poderá acessar o link do vídeo.
Na seção Resenha, os autores José Lúcio Nascimento Júnior e Patrícia Maria Pereira do Nascimento tecem considerações sobre a obra “A historiografia em Trabalho-Educação: como se escreve a história da educação profissional, de Maria Ciavatta et al. Contendo a participação de diversos pesquisadores, a obra “marca a posição de um campo de estudo”, na medida em que são poucos os estudos que tentam fortalecer e entender as tramas que compõem a história e historiografia em Educação Profissional. Como aborda o prefaciador do livro, o Prof. Gaudêncio Frigotto, a obra recupera o papel da história, ou seja, a história entendida como processo e como método. Navegam os autores por diferentes contextos históricos, mas fincam o pé no Brasil Republicano. A obra é resultado de vários trabalhos de pesquisa e de organização e realização de seminários sobre o tema.
A TN 35 conta também com a seção Artigos de Demanda Contínua, a qual contém 4 interessantes textos.
Com o propósito de refletir sobre limites das políticas públicas educativas na atual fase de desenvolvimento do capitalismo, Antonio Nascimento da Silva, Deribaldo Santos e George Amaral nos brindam com o artigo Educação na Crítica ao Programa de Gotha: uma síntese. Para os autores, referendando a perspectiva marxiana, Lassalle estava equivocado ao pretender, enquanto proposta revolucionária de um partido comunista, obter do Estado as condições e o apoio para estruturar uma educação alinhada aos propósitos comunistas. Isto porque, o Estado, como gerenciador dos interesses da burguesia, apenas concederá formação para os trabalhadores na medida em que tal formação contribua para perpetuar a ordem constituída. Como afirma Marx na “Crítica ao Programa de Gotha” “é o Estado que, ao contrário, necessita receber do povo uma educação muito rigorosa”.
Tendo a perspectiva de analisar as políticas para o campo da educação na atualidade, o artigo de Catia Eli Gemelli intitulado A quem serve a ‘neutralidade’? Análise do Movimento Escola Sem Partido à luz da ideologia gerencialista, aborda os projetos de lei que foram apresentados nos poderes legislativos do Brasil, tendo estes o objetivo de “combater a doutrinação ideológica” no ensino. Para além da profusão
da ideologia gerencialista, tais projetos são pensados como proposta para os espaços educacionais numa retomada do discurso de defesa de uma educação tecnicista, com uma nova roupagem: traz-se a teoria de capital humano, pensada nos anos 50-70 do século XX, para uma nova aplicação no Século XXI. Junta-se a essa teoria a onda neoconservadora e seus fundamentalismos diversos (econômico, religioso e político), trazidos pelos projetos. Com o artigo, além dos conceitos e categorias próprios do método que adota, a autora sinaliza a atualidade do projeto, como parte do projeto de disputa do capital, camuflado de uma certa neutralidade, e que precisa ser enfrentado pela classe trabalhadora.
Já no artigo Encarceramento das mulheres: trabalho, violência e abandono, Yara Elizabeth Alves e Fernando Selmar Rocha Fidalgo analisam as relações sociais de exploração, tanto econômica como de opressão sexual, a que estão submetidas as mulheres encarceradas em unidades prisionais. Por meio de análise documental, observação e entrevistas semiestruturadas com 14 mulheres em privação de liberdade na Região Metropolitana de Belo Horizonte, os autores evidenciam a violência contínua e crescente contra as mulheres, afirmando que capitalismo e patriarcado combinam entre si e se reforçam mutuamente. Os dados apresentados demonstram que as mulheres em cumprimento de pena são, não por mera coincidência, em sua maioria, jovens, negras e com baixo nível de escolaridade, respondendo majoritariamente por um tipo de crime, tráfico ilícito de drogas, cujo envolvimento está relacionado a diferentes fatores e, em especial, à situação de vulnerabilidade em que reproduzem sua existência.
Finalizando a seção, no artigo de Fábio Mansano de Mello e Ana Elizabeth Santos Alves, intitulado História e Memória do Ensino Superior: caminhos de uma investigação, os autores esmiúçam o método do materialismo histórico-dialético, e como fonte documental de pesquisa, indicam duas revistas (Revista Educação e Sociedade; Revista Estudos), trazendo aportes sobre história e memória da educação superior na contemporaneidade (1995-2010). Analisam os contextos em que a educação superior está imersa e o processo de disputa entre dois projetos de ensino superior no Brasil.
Na seção Teses e Dissertações apresentamos os resumos expandidos de duas teses de doutorado defendidas no Programa de Pós-Graduação em Educação
da Universidade Federal Fluminense, ambas orientadas pela Profa. Dra. Maria Ciavatta, e que merecem leitura atenta e cuidadosa.
A primeira delas, de Renata Reis, intitula-se A “Grande Família” do Instituto Oswaldo Cruz: a contribuição dos trabalhadores auxiliares dos cientistas no início do século XX. Sustentada em pesquisa documental de grande envergadura, levantada no Departamento de Arquivo e Documentação da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, que conta com mais de 100 fundos e coleções, incluindo fotografias também utilizadas como fonte de pesquisa, a tese se propõe responder quem eram os trabalhadores subalternos da instituição, como se deram as relações destes com os cientistas, qual a sua contribuição para o desenvolvimento da ciência e da saúde pública no Brasil. Suas análises apontam, ao final, para a confirmação da contribuição fundamental do trabalho dos auxiliares para o desenvolvimento da ciência e da saúde pública brasileira. Também indicam que a divisão de classe presente nas relações de trabalho do Instituto Oswaldo Cruz, reproduziu uma divisão social do trabalho que limitou o reconhecimento do trabalho e dos conhecimentos adquiridos pelos auxiliares de laboratório. Ao mesmo tempo, a autora sinaliza que “agindo como sujeitos de suas próprias histórias”, estes trabalhadores “buscaram nas brechas da instituição e na construção de relações de reciprocidade entre si, trabalhar e viver suas vidas, ora se submetendo e ora subvertendo o curso da história”.
Quanto à tese de Rosângela Aquino da Rosa, intitulada A cultura material da educação profissional, a memória e a história de sua transformação – o acervo de fotografia da Rede Federal de Educação Profissional e Tecnológica (1909-1985), é resultado de uma longa e profícua relação da autora com o acervo de memória institucional do Campus Rio de Janeiro do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro (IFRJ). Na pesquisa em tela, a autora parte do pressuposto de que imagens fotográficas “são documentos que informam sobre a cultura, o movimento da história, dos sujeitos sociais e da educação vivida”. Defendendo a análise das mesmas “em um movimento de intertextualidade”, afirma que as fotografias possibilitam a recuperação da historicidade da Educação Profissional. Com base no referencial marxista, Rosa destaca a fotografia “como fonte histórica, como mediação ou processo social complexo subjacente à sua representação” e defende a importância da sua produção social para a compreensão do significado da cultura material presente nas escolas.
Na seção Memória e Documentos da TN 35 trazemos dois ricos materiais. O primeiro, refere-se à entrevista do historiador brasileiro José Luiz del Roio, nascido em São Paulo, à “Revista Memória”, do Departamento Patrimônio Histórico da ELETROPAULO, publicada em setembro de 1992. Apresentada de forma breve e contundente pela Profª Dra. Elina Pessanha, coordenadora do Arquivo de Memória Operária do Rio de Janeiro (AMORJ/UFRJ), a entrevista traz um relato emocionante e comprometido de Del Roio sobre sua atuação para a recuperação, organização e divulgação de inúmeros documentos reunidos ao longo de um extenso período histórico por lideranças operárias brasileiras, a maioria delas ligadas ao PCB (Roberto Morena e Astrojildo Pereira em destaque), num momento político grave, que foi a ditadura civil-militar instituída a partir de 1964 no Brasil. Como afirma Pessanha, com sua atuação “del Roio deu uma contribuição inestimável à história de nossa classe trabalhadora e de suas iniciativas de organização e resistência desde o início do século XX”. E a Trabalho Necessário tem um imenso prazer em contribuir para que esta memória permaneça viva.
O segundo documento é o memorial de Ana Lúcia Espíndola (In memorian) - Breves cartas a uma jovem professora, alguns poemas e outros relatos, apresentado por Léa de Lourdes Calvão da Silva. Em seu memorial, como parte da seleção para professora titular da Universidade Federal do Mato do Grosso do Sul (UFMS), é ressaltada a história/trajetória de uma trabalhadora da educação que se utiliza da ciência com rigor e da arte (a linguagem da poesia) como propulsora dos processos formativos de si e dos outros, demonstrando os diferentes momentos, experiências e espaços educativos da formação humana e um fazer-pensar compartilhado. Em seu memorial é evidenciado o papel indispensável que cumpre o conhecimento elaborado nos espaços públicos de formação, mas, acima de tudo, a responsabilidade do trabalho do educador.
Desejamos uma excelente leitura da TN 35! Entendendo ser a história, a história do processo real de produção da existência humana, também desejamos dias melhores para a história das relações trabalho-educação. Em 2020, e sempre!
V.18, Nº 35 - 2020 (jan-abr) ISSN: 1808-799X
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v18i35.40490
Vitor Bemvindo2
A atual conjuntura de avanço do pensamento conservador e reacionário em todo mundo, obriga os historiadores marxistas a recuperar a essência da concepção dialética da história sem esbarrar em certas interpretações simplistas, etapistas, evolucionistas ou positivistas do materialismo histórico e dialético. Em tempos de avanço do obscurantismo, “clarear essa obscuridade” “é a honra da pesquisa histórica”. Este artigo pretende recuperar o sentido dialético da concepção de história presente nas obras de Marx e Engels, a partir das contribuições do filósofo alemão Walter Benjamin. O estudo aqui proposto, pretende reconhecer, em especial, as elaborações em torno as ideias de “escovar a história a contrapelo” e de história aberta.
La coyuntura actual del avance del pensamiento conservador y reaccionario en todo el mundo obliga a los historiadores marxistas a recuperar la esencia de la concepción dialéctica de la historia sin toparse con ciertas interpretaciones simplistas, escalonadas, evolucionistas o positivistas del materialismo histórico y dialéctico. En tiempos de avance del oscurantismo, "despejar esta oscuridad" "es el honor de la investigación histórica". Este artículo tiene como objetivo recuperar el significado dialéctico de la concepción de la historia presente en las obras de Marx y Engels, a partir de las contribuciones del filósofo alemán Walter Benjamin. El estudio propuesto aquí pretende reconocer, en particular, las elaboraciones en torno a las ideas de "cepillar la historia a contrapelo" y la historia abierta.
The current conjuncture of advancing conservative and reactionary thinking around the world forces marxist historians to recover the essence of the dialectical conception of history without bumping into certain simplistic, stepped, evolutionist, or positivist interpretations of dialectical and historical materialism. In times of advancement of obscurantism, "clearing this obscurity" "is the honor of historical research." This article aims to recover the dialectical meaning of the conception of history present in the works of Marx and Engels, from the contributions of the German philosopher Walter Benjamin. The study proposed here intends to recognize, in particular, the elaborations around the ideas of “to brush history against the grain” and open history.
1 Artigo recebido em 08/10/2019. Primeira avaliação em 15/11/2019. Segunda avaliação em 15/11/2019. Aprovado em 15/12/2019. Publicado em 23/01/2020.
Historiador e Doutor em Educação. Professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia. vitor.bemvindo@ufba.br ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6472-2246
“Nunca há um documento da cultura que não seja, ao mesmo tempo, um documento da barbárie. E assim como ele não está livre da barbárie, também não o está o processo de sua transmissão, transmissão na qual ele passou de um vencedor a outro. Por isso, o materialista histórico, na medida do possível, se afasta dessa transmissão. Ele considera sua tarefa escovar a história a contrapelo”.
Walter Benjamin
Desde a crise do socialismo real, há um esforço dentro do meio intelectual em apontar possíveis limites no modelo teórico de análise da realidade elaborado por Marx e Engels. O materialismo histórico dialético tem perdido espaço como referência teórico-metodológico nos trabalhos acadêmicos para tendências pós-modernas que resvalam em certo relativismo e ceticismo epistêmico. Como consequência dessa hegemonia pós-moderna, há a emergência de um pensamento que, ao mesmo tempo que reivindica o fim da modernidade enquanto período histórico, tende a negar a história. Ellen Wood afirma que, “a despeito de sua insistência em diferenças e especificidades que marcam épocas, a despeito de sua reivindicação de terem denunciado a historicidade de todos os valores e conhecimentos”, os pós-modernos são “insensíveis à história” (WOOD, 1999, p. 14). Ainda segundo a autora, trata-se de uma contradição em termos: “uma teoria de mudança de época baseada na negação da história” (idem, p. 15).
Ao triunfalismo capitalista vigente após o fim da década 1980, somou-se a hegemonia das políticas econômicas de corte neoliberal, responsável por uma apropriação peculiar da história. Para Joseph Fontana, o neoliberalismo até admite a relação entre história e política, “porém sem levar em conta o filtro do presente”. Sendo assim, a conexão entre esses dois aspectos se estabelece “no terreno das ideias, das concepções do mundo, sem que apareça viciada pelo contágio com interesses”. Cria- se assim o mito da história imparcial, e admite-se o trabalho do historiador como uma análise isenta e sem influência das disputas pela hegemonia (FONTANA, 1998, p. 10).
A premissa da crítica às contribuições dos marxistas para o pensamento social gira em torno à categoria de totalidade e ao universalismo. Questiona-se, portanto, os
modelos interpretativos fundamentados na história e decreta-se a crise da ciência histórica. Ignora-se, no entanto, uma série de reelaborações feitas no último século que permitiram ao marxismo aprofundar a análise da realidade a partir do abandono de concepções dogmáticas do materialismo histórico que se demonstraram limitadas diante da própria realidade. Autores como Antonio Gramsci, Walter Benjamim e E.P. Thompson foram alguns dos responsáveis por promover uma nova compreensão das ideias de Marx e Engels a partir de uma concepção dialética da história já presente nas obras originais do marxismo, porém que havia sido negligenciada pelo marxismo vulgar disseminado na primeira metade do século XX.
A queda do dito socialismo real, o refluxo revolucionário e burocratização dos Estados operários abriram espaço para narrativas triunfalistas de que não há alternativas ao capitalismo e pela disseminação da tese do “fim da história”. No campo acadêmico e político, as posições pós-modernas e neoliberais foram também responsáveis pelo declínio do pensamento crítico, que ajuda, pelo menos em parte, a explicar a crise das esquerdas na conjuntura atual. No entanto, a atualidade do materialismo histórico dialético está evidente nas contradições ainda não superadas dentro do próprio capitalismo que apontam para uma desigualdade social crescente e para um colapso ambiental.
Atualmente, uma nova onda de ataques ao pensamento crítico se acirra com a ascensão, em escala internacional, de grupos políticos ultraconservadores e reacionários. Com isso, volta-se a perceber uma tentativa de desqualificação do materialismo histórico e dialético como referência científica para trabalhos nas ciências humanas e sociais. Diante desta nova realidade emerge a necessidade de recuperar o sentido científico do pensamento marxista, porém sem resvalar na armadilha de certas interpretações simplistas, etapistas, evolucionistas ou positivistas. Para isso, as contribuições do filósofo alemão Walter Benjamin para a concepção dialética da história se apresentam com grande atualidade. Para Michael
Löwy:
A concepção da história de Benjamim não é pós-moderna, antes de tudo porque, longe de estar “muito além de todos os relatos”
– supondo-se que isto seja possível – ela constitui uma forma heterodoxa do relato da emancipação: inspirando-se em fontes messiânicas e marxistas, ela utiliza a nostalgia do passado como método revolucionário de crítica do presente. Seu pensamento não é, então, nem “moderno” (no sentido habermasiano) nem
“pós-moderno” (no sentido de Lyotard), inspirada em referências culturais e históricas pré-capitalistas (LÖWY, 2012, p. 15).
A despeito da heterodoxia do pensamento benjaminiano, acredita-se que suas contribuições para a concepção dialética da história colaboram de forma efetiva para a renovação do marxismo, em especial por retomar os aspectos dialéticos das elaborações originais de Marx e Engels. O presente artigo pretende analisar essas contribuições em especial, a partir das elaborações em torno às ideias de “escovar a história a contrapelo” e de história aberta. Este texto aprofunda reflexões presentes nas referências teórico-metodológicas da tese de doutorado “Por uma história da educação politécnica: concepções, experiências e perspectivas” (BEMVINDO, 2016), orientada pela professora Maria Ciavatta e defendida no ano de 2016 no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense.
O pensamento de Marx e Engels foi apropriado, ao longo do tempo, das formas mais variadas possíveis. Seria impossível no espaço de um artigo, desenvolver como a ideia destes autores foram recebidas pelas mais diferentes tendências do marxismo. De certa forma, o que procuraremos fazer neste trabalho e olhar a concepção de história marxiana no sentido de encontrar os aspectos que afastem a ideia de uma história que apresentaria um certo padrão. Nas palavras de Leandro Konder, buscaremos nos afastar de uma certa “racionalidade da história que aponta para um sentido ascensional, por onde se infiltram, algumas vezes, algumas ideias do tipo evolucionista” (KONDER, 2014, p. 145). Essa racionalidade foi responsável por certa deturpação das ideias de Marx, atribuindo-as certo sentido teleológico. Veremos que este tipo de apropriação é derivado de uma interpretação limitada de trechos da obra de Marx e Engels que tratam especial da história como método. É preciso, portanto, compreender o duplo sentido da história na acepção marxiana: como processo e como método.
Maria Ciavatta (2009) nos auxilia na análise dessa concepção de história em Marx e Engels, afirmando que existem três caminhos para compreendê-la:
O primeiro é a defesa intransigente de uma ciência da história, principalmente em A ideologia alemã. O segundo é a instituição da historicidade do social que só pode ser compreendida pela análise dialética, isto é, em sua gênese, seu desenvolvimento e
transformação, como bem expressam sua Contribuição para a crítica da economia política e mesmo sua obra econômica, em que as relações econômicas são sempre, também, relações sociais. O terceiro está em suas obras de história, a exemplo do clássico O 18 Brumário de Luís Bonaparte. (CIAVATTA, 2009, p 52-53).
Baseado nesse apontamento, dedicaremo-nos, aqui, a compreender esses três aspectos da concepção de história em Marx e Engels, começando pela contida n’A ideologia alemã. Nessa obra, os autores originais do marxismo se dedicam a fazer uma análise crítica da obra de estudiosos do trabalho de Hegel na Alemanha, em especial Ludwig Feuerbach, Bruno Bauer e Max Stirner. Esses jovens hegelianos, segundo a análise de Marx e Engels, eram responsáveis pela disseminação de uma ideologia conservadora na Alemanha, já que tinham uma visão reduzida das contribuições filosóficas de Hegel, em especial do materialismo. O ponto central da crítica marxiana é a desconsideração que esses autores alemães fazem da história: “na medida em que Feuerbach é materialista, nele não se encontra a história, e na medida em que toma em consideração a história ele não é materialista. Nele, materialismo e história divergem completamente”. (MARX, ENGELS, 2007, p. 32).
A partir dessa crítica, Marx e Engels se dedicaram a compreender o que é a história e como, a partir da ciência História, é possível fazer uma análise coerente da realidade concreta. O ponto de partida para a compreensão da concepção marxiana de história está no:
[...] primeiro pressuposto de toda a existência humana e também, portanto, de toda a história, a saber, o pressuposto de que os homens têm de estar em condições de viver para poder “fazer história”. Mas, para viver, precisa-se, antes de tudo, de comida, bebida, moradia, vestimenta e algumas coisas mais. O primeiro ato histórico é, pois, a produção dos meios para a satisfação dessas necessidades, a produção da própria vida material, e este é, sem dúvida, um ato histórico, uma condição fundamental de toda a história (MARX, ENGELS, 2007, p. 32-33).
Marx e Engels destacarão ainda outros dois pontos pressupostos para a história. O segundo deles está no fato que a satisfação dessas necessidades primordiais gera novas necessidades. Por último, o terceiro pressuposto dá conta de que o homem tem a tendência de procriar-se, gerando, a partir das relações familiares, uma série de novas relações sociais que geram o crescimento populacional e a criação de novas necessidades. Esses três pressupostos, em conjunto, determinam
que o movimento da história é dado pela própria produção material da vida. Em síntese:
Essa concepção da história consiste, portanto, em desenvolver o processo real de produção a partir da produção material da vida imediata e em conceber a forma de intercâmbio conectada a esse modo de produção e por ele engendrada, quer dizer, a sociedade civil em seus diferentes estágios, como o fundamento de toda a história, tanto a apresentado em sua ação como Estado como explicando a partir dela o conjunto das diferentes criações teóricas e formas de consciência – religião, filosofia, moral etc. etc. – e em seguir o seu processo de nascimento a partir dessas criações, o que então torna possível, naturalmente, que a coisa seja apresentada em sua totalidade (assim como a ação recíproca entre esses diferentes aspectos) (MARX, ENGELS, 2007, p. 42).
Eric Hobsbawm (1999) nos auxilia a compreender essa assertiva de Marx e Engels quando recorre a Eric Wolf para entender o conjunto de relações engendradas pela produção da vida material:
Devemos notar, de passagem, que para Marx e Engels “o processo real de produção” não é simplesmente a “produção material da vida [imediata]3” mas algo mais amplo. Para empregar a correta formulação de Eric Wolf, é “o conjunto complexo de relações mutuamente dependentes entre natureza, trabalho, trabalho social e organização social”. Deve-se notar também que os seres humanos produzem tanto com a mão quanto com a cabeça (HOBSBAWM, 1999, p. 175).
A partir dessa distinção feita por Hobsbawm (com base em Wolf) pode-se inferir que existe uma relação dialética entre a produção e as formas de organização social. Essa relação é mais explorada quando Marx faz algumas considerações sobre o método em sua Contribuição para a Crítica da Economia Política. Será nessa obra que Marx deixará firmada a célebre e polêmica afirmação que até hoje alimenta os seus críticos: “não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência”. Essa assertiva foi aprofundada no momento em que o autor descreveu as bases do seu método de análise da realidade:
O resultado geral a que cheguei e que, uma vez obtido, serviu-me de fio guia para os meus estudos, pode ser formulado, resumidamente, assim: na produção social da própria existência, os homens entram em relações determinadas, necessárias, independentes de sua vontade; essas relações de produção correspondem a um
A citação original traz “produção material da vida em si mesma” ao invés de “produção material da vida imediata”. Alteramos a citação já que a tradução utilizada aqui da A ideologia alemã (MARX, ENGELS, 2007) traz a segunda forma ao invés da primeira.
determinado grau de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. A totalidade dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se eleva a superestrutura jurídica e política e à qual correspondem as formas sociais determinadas de consciência. O modo de produção da vida material condiciona o processo da vida social, política e intelectual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; ao contrário, o seu ser social é que determina a sua consciência (MARX, 2008, p. 47).
Talvez a compreensão da concepção dialética da história, apesar de todas as notas de caráter teórico-metodológicas produzidas por Marx, Engels e seus seguidores, esteja mais evidente na análise das obras de cunho histórico desses autores. Dos autores originais do marxismo, talvez tenha sido Engels o que tenha mais se dedicado a trabalhos de análise histórica utilizando-se do método que os dois descreveram. Porém, o próprio Marx também se dedicou a trabalhos de pesquisa histórica, que talvez, nos dias atuais, recebessem a etiqueta de “história do tempo presente”. Destacam-se na obra marxiana dois títulos com esse teor: O 18 de Brumário de Luís Bonaparte e A Guerra Civil na França.
O foco deste trabalho não permite que nos dediquemos a uma interpretação mais profunda desses trabalhos. Por isso, para descrever os elementos de contribuição para análise histórica nessas obras, usaremos as próprias observações feitas por Marx e Engels sobre O 18 de Brumário de Luís Bonaparte. No prefácio da segunda edição4 do livro, o próprio Marx, ao comparar o seu trabalho com outros dois que tratam do mesmo tema – Napoleón le petit, de Victor Hugo, e Coup d’état, de Proudhon –, aponta para os avanços que sua obra em relação às demais:
Victor Hugo se limita a invectivas amargas e espirituosas contra o responsável pela deflagração do golpe de Estado. O acontecimento propriamente dito parece ser, para ele, como um raio vindo do céu sem nuvens. Ele vê no golpe apenas de um ato de poder de um indivíduo isolado. Não se dá conta de que engradece esse indivíduo, em vez de diminuí-lo, atribuindo-lhe uma capacidade de iniciativa pessoal que seria impar na história mundial. Proudhon, por sua vez, procura apresentar o golpe de Estado como resultado de uma evolução histórica precedente. Sorrateiramente, no entanto, a sua construção histórica do golpe de Estado se transforma numa apologia do herói do golpe de Estado. Desse modo, incorre no erro dos nossos assim chamados historiadores objetivos. Em contrapartida, eu demonstro
A primeira edição de O 18 de Brumário de Luís Bonaparte foi lançada em 1852, como primeiro fascículo da Revista Die Revolution. A segunda edição, de 1869, foi lançada para o mercado editorial europeu, com revisão do próprio Marx. Em 1885, saiu uma terceira edição da obra, com prefácio de Engels, sobre o qual faremos referência mais adiante.
como a luta de classes na França criou circunstâncias e condições que permitiram a um personagem medíocre e grotesco desempenhar o papel do herói (MARX, 2011, p. 18).
Ao deixar a modéstia de lado, exaltando as qualidades de seu trabalho e demonstrando a limitação das análises de seus “colegas historiadores”, Marx ressalta a importância do método descrito por ele e seu companheiro Engels. Apesar de não citar explicitamente as questões que envolvem a produção da vida material, ele dá ênfase a uma categoria de análise a qual nenhum historiador marxista pode se furtar a observar: a luta de classes.
Marx põe em prática, em sua análise sobre o golpe de Estado na França em 1851, a assertiva de cunho ético-político e metodológico que fizera em seu Manifesto Comunista – escrito em parceria com Engels –, a de que “a história de todas as sociedades até hoje existentes é a história da luta de classes” (MARX; ENGELS, 2010,
p. 40). Ao observar as classes sociais que disputam a hegemonia em determinado momento histórico, Marx, de fato, historiciza o acontecimento, dando dimensão não só dos interesses políticos em jogo, mas também da organização social imposta pelo modo de produção hegemônico. Esse aspecto da obra marxiana foi ressaltada também por Engels, quando o mesmo prefaciou a terceira edição do “18 de Brumário”.
Marx foi o primeiro a descobrir a grande lei da história, a lei segundo a qual todas as lutas históricas travadas no âmbito político, religioso, filosófico ou em qualquer outro campo ideológico são de fato apenas a expressão mais ou menos nítida de lutas entre classes sociais, a lei segundo a qual a existência e, portanto, também as colisões entre essas classes são condicionadas, por sua vez, pelo grau de desenvolvimento da sua condição econômica, pelo modo da sua produção e pelo modo do seu intercâmbio condicionado pelo modo de produção. Essa lei – que para história tem a mesma importância que a lei da transformação de energia para a ciência natural –, essa lei lhe proporcionou, também nesse caso, a chave para uma compreensão da história da Segunda República francesa. E essa história lhe serviu para submeter a sua lei à prova, tanto é que, trinta e três anos depois, ainda temos de reconhecer que ela passou no teste com brilhantismo (ENGELS, 2011, p. 22).
Engels utilizou essa “lei” também em seus trabalhos de pesquisa histórica e dedicou toda uma das suas obras, o Anti-Dühring, a fazer apontamentos de ordem teórico-metodológica sobre a escrita da história, ao fazer a crítica do trabalho do filósofo alemão Eugen Dühring. Engels acusava Dühring de ter sua compreensão dos processos históricos limitados por conta do mesmo não observar os aspectos da luta
de classes e da consequente divisão social do trabalho. Nessa obra, ele atribui à economia política o status de “ciência histórica” e por algumas vezes reforça a comparação entre essa ciência e as ciências naturais. O mesmo o faz em Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico.
Talvez essas afirmações tenham sido responsáveis pela equivocada interpretação que, no marxismo, a história obedece a padrões e que se seguido o método à risca seria possível, inclusive, prever o desenvolvimento da história no futuro. Isso é uma evidente distorção do materialismo histórico e dialético, que se perpetuou dentro mesmo dos círculos de pensamento marxistas em especial após a Terceira Internacional. Essa distorção fez com muitos historiadores passassem a ter uma visão etapista da história.
Mais uma vez, Eric Hobsbawm nos dá subsídio de como fugir dessa concepção distorcida e limitada do materialismo histórico e dialético. O historiador britânico, mesmo nunca se desvinculando da sua filiação com o Partido Comunista da Grã- Bretanha5, soube, sabiamente, fazer a crítica das limitações interpretativas feitas a partir do trecho supracitado da Contribuição para a crítica da economia política, dando elementos para análise histórica de caráter mais amplo:
A formulação mais completa [da concepção materialista da história] ocorre no Prefácio de 1859 à Para a crítica da economia política. Claro que é preciso perguntar se é possível rejeitá-la e continuar sendo marxista. Porém, é perfeitamente claro que essa formulação ultraconcisa requer elaboração: a ambiguidade de seus termos suscitou debate sobre o que exatamente são “forças” e “relações sociais” de produção, o que constitui a “base econômica”, a “superestrutura” e assim por diante. Também está perfeitamente claro desde o início que, uma vez que os seres humanos possuem consciência, a concepção materialista da história é a base da explicação histórica mas não a explicação histórica em si. A história não é como a ecologia: os seres humanos decidem e refletem sobre o que acontece. Não está tão claro se ela é determinista no sentido de nos permitir descobrir o que inevitavelmente acontecerá, enquanto distinto dos processos gerais de transformação histórica. Isso porque é somente numa visão retrospectiva que a questão da inevitabilidade histórica pode ser solidamente estabelecida, e mesmo então apenas como tautologia: o que aconteceu era inevitável porque não aconteceu outra coisa; portanto, o que poderia ter acontecido é uma questão acadêmica (HOBSBAWM, 1999, p 175).
O Partido Comunista da Grã-Bretanha, fundado em 1920, após a Terceira Internacional, foi um dos principais responsáveis pela disseminação das interpretações stalinistas sobre o materialismo histórico e dialético no mundo ocidental.
Hobsbawm reforça a ideia de que Marx almejava provar que o desenvolvimento das forças produtivas levaria inevitavelmente ao comunismo, no entanto, ele nunca se utilizou da história para provar essa tese. Não há elementos científicos, dentro do materialismo histórico e dialético que apontem especificamente para o comunismo. Além disso, esses apontamentos do historiador britânico nos dão elemento para refutar a tese do determinismo economicista pelo qual Marx foi e segue equivocadamente sendo acusado. Para Hobsbawm, o cerne da concepção materialista da história está na “relação fundamental entre o ser social e a consciência”. Ele reforça a ideia de a distinção entre base e superestrutura se dá apenas na dimensão retrospectiva da análise histórica e que existem sociedades que, sob as mesmas bases materiais, estruturam suas relações sociais de formas distintas. Ou seja, o autor reforça a dimensão da totalidade histórica que é constituída por múltiplas determinações. Para ele isso fica evidente na análise das obras de caráter histórico de Marx, nas quais é possível notar a consideração dessas múltiplas determinações, sendo essas análises um “oposto exato de um reducionismo econômico” (ib., p. 176).
Ainda assim, Hobsbawm não nega a importância da análise dos elementos de ordem econômica. Ao contrário, ele reforça que
a análise de uma sociedade, a qualquer momento de seu desenvolvimento histórico deve começar pela análise de seu modo de produção: em outras palavras, (a) a forma tecno-econômica do “metabolismo entre homem e natureza” (Marx), o modo pelo qual o homem se adapta a natureza e a transforma pelo trabalho; e (b) os arranjos sociais pelos quais o trabalho é mobilizado, distribuído e alocado (ib., p 177).
Por fim, entre as inúmeras contribuições de Hobsbawm para a compreensão da concepção materialista da história, destaca-se a ampliação que o historiador britânico faz do conceito de modo de produção. O autor destaca que há uma visão equivocada na interpretação de que existe um encadeamento lógico e inevitável entre a superação de um modo de produção e constituição de um novo modo de produção historicamente mais “evoluído”. Ele ressalta que essa sucessão de modos de produção não pode ser encarada como meramente evolutiva, cronológica e unilinear. Essa interpretação desconsideraria, por exemplo, a coexistência e interação de modos de produção distintos num mesmo momento histórico.
A ideia central da interpretação de Hobsbawm sobre essa categoria está na ideia de que dentro de cada modo de produção “há uma ‘contradição básica’ que gera a dinâmica e das forças que o levarão a sua transformação”. Isso, no entanto, não implica na certeza da transformação desses modos de produção, mas na potencialidade dessa transformação (ib., p.180-181).
Nessa perspectiva, acreditamos que Walter Benjamin contribui de forma decisiva para a compreensão da concepção dialética da história numa acepção mais ampla do que a disseminada pelo dito marxismo vulgar. Benjamin, ao se dedicar aos estudos sobre a cultura, ajudou a ampliar os domínios do materialismo histórico e dialético.
Walter Benjamin faz uma crítica bastante pertinente aos historiadores em geral e dos pensadores marxistas em particular por conta da pouca familiaridade que os mesmos têm com os aspectos culturais do desenvolvimento histórico. Baseado também nas concepções de classe social e luta de classes elaboradas por Marx e Engels, Benjamin convida-nos a escrever uma História que valorize as lutas das classes historicamente postas em posição subalterna. Trata-se da quarta das “Teses Sobre o Conceito de História”, texto publicado em 1940, no qual Benjamin faz algumas das mais profundas reflexões e provocações sobre a concepção materialista e dialética, dentre as quais a que se segue:
A luta de classes, que um historiador educado por Marx jamais perde de vista, é uma luta pelas coisas brutas e materiais, sem as quais não existem as refinadas e espirituais. Mas na luta de classes essas coisas espirituais não podem ser representadas como despojos atribuídos ao vencedor. Elas se manifestam nessa luta sob a forma da confiança, da coragem, do humor, da astúcia, da firmeza, e agem de longe, do fundo dos tempos. Elas questionarão sempre cada vitória dos dominadores. Assim como as flores dirigem sua corola para o sol, o passado, graças a um misterioso heliotropismo, tenta dirigir-se para o sol que se levanta no céu da história. O materialismo histórico deve ficar atento a essa transformação, a mais imperceptível de todas (BENJAMIN, 1996, p. 223-224).
Benjamin se utiliza de uma retórica recheada de ironias para chamar a atenção dos historiadores marxistas para elementos que normalmente são negligenciados nas
análises. O uso dos termos “coisas brutas e materiais” em oposição às “refinadas e espirituais” é um evidente recurso utilizado para chamar atenção para que não só de comida vive o trabalhador, o oprimido. Isso, aliás, não é uma conclusão original de Benjamin. Como já foi dito nesse mesmo trabalho, Marx e Engels já afirmavam que “a satisfação dessa primeira necessidade [a produção da vida material imediata], a ação de satisfazê-la e o instrumento de satisfação já adquirido conduzem a novas necessidades” (MARX, ENGELS, 2007, p. 33). Para os autores originais do marxismo, o segundo ato histórico, por mais que seja determinado do primeiro (a produção da vida material imediata) é a produção de novas necessidades, podendo-se inferir que a esfera da produção da cultura está a esse ato relacionado.
No entanto, Benjamin avança no que se refere às proposições de Marx e Engels, pois compreende que a conquista do poder pela classe dominante não se dá apenas a partir da dominação econômica. Há um elemento que o Marx e Engels abordaram de forma menos detida que diz respeito à produção de ideologia na tentativa de subjugar as classes trabalhadoras a uma condição de subalternidade. No entanto, é óbvio que os trabalhadores não aceitam esse subjugo passivamente. Eles também produzem a sua ideologia, que entra em disputa com a hegemônica.
O que Benjamin nos chama a atenção é de que nesse processo de disputa entre as classes sociais antagônicas há produção de cultura dos dois lados, por mais que os historiadores negligenciem a cultura dos “vencidos”. Essa tese benjaminiana sobre a história se complementa muito bem com as disputas de hegemonia tão bem ressaltadas por Gramsci. Subsidiária das reflexões de Gramsci, as categorias de contra-hegemonia e hegemonia alternativa – elaboradas por Raymond Williams – nos dão elementos para compreender esse elemento cultural e ideológico da luta de classes no contexto da análise histórica.
Uma hegemonia vivida é sempre um processo. Não é, exceto analiticamente, um sistema ou uma estrutura. É um complexo realizado de experiências, relações e atividades, com pressões e limites específicos e mutáveis. Isto é, na prática a hegemonia não pode nunca ser singular. Suas estruturas internas são altamente complexas, e podem ser vistas em qualquer análise concreta. Além do mais (e isso é crucial, lembrando-nos o vigor necessário do conceito), não existe apenas passivamente como forma de dominação. Tem de ser renovada continuamente, recriada, defendida e modificada. Também sofre uma resistência continuada, limitada, alternada, desafiada por pressões que não são as suas próprias pressões. Temos então de acrescentar ao conceito de hegemonia o conceito de contra-
hegemonia e hegemonia alternativa, que são elementos reais e persistentes da prática (WILLIAMS, 1979, p. 115-116).
A complementaridade das ideias de Benjamin, Gramsci e Williams nos fazem olhar para a história pelo prisma da luta de classes, mas compreendendo que nesse processo há mais do que simplesmente a disputa pelo controle dos meios de produção ou do que a transformação do modo de produção. Há, também, nesse embate, produção de cultura e contracultura, disputa de hegemonia e produção de pensamentos contra-hegemônicos. Não observar esses aspectos na análise histórica é não perceber as contradições do processo de desenvolvimento das forças produtivas. Desta ideia emerge a tese benjaminiana sobre escovar a história a contrapelo:
Todos os que até hoje venceram participam do cortejo triunfal, em que os dominadores de hoje espezinham os corpos dos que estão prostrados no chão. Os despojos são carregados no cortejo, como de praxe. Esses despojos são o que chamamos bens culturais. O materialista histórico os contempla com distanciamento. Pois todos os bens culturais que ele vê têm uma origem sobre a qual ele não pode refletir sem horror. Devem sua existência não somente ao esforço dos grandes gênios que os criaram, como à corveia anônima dos seus contemporâneos. Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie. E, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura. Por isso, na medida do possível, o materialista histórico se desvia dela. Considera sua tarefa escovar a história a contrapelo (BENJAMIN, 1996, p. 225).
Assumir essa tese de Walter Benjamin sobre a história é assumir uma posição política clara em favor da construção de horizontes interpretativos que privilegiem os saberes acumulados durante a longa luta dos povos oprimidos.
Outro aspecto fundamental da contribuição benjaminiana é o reforço do caráter dialético da história, através de uma revisão da ideia de totalidade. Konder ressalta que Benjamin propôs forma própria de lidar com a totalidade, entendendo-a como uma visão de conjunto transitória determinada pela relação dialética entre presente e passado.
A grande dificuldade do pensamento dialético é promover a reestruturação permanente e radical do todo, que não é uma operação simples, nem é uma operação agradável. É uma operação delicada, difícil. Para tanto, tem que haver uma revisão de convicções enraizadas, coisas construídas com esforço, que foram assimiladas com paixão. Então, na visão benjaminiana, inclui-se uma ação
importante, que é a revalorização da totalidade. (KONDER, 2014, p. 165)
Essa revalorização da totalidade construída a partir da relação dialética entre presente e passado está expressa por Benjamin na quinta das suas “Teses sobre a história”, que diz:
A verdadeira imagem do passado passa célebre e furtiva. É somente como imagem que lampeja justamente no instante de sua recognoscibilidade, para nunca mais ser vista, que o passado tem de ser capturado tem que ser capturado. “A verdade não nos escapará” - essa frase de Gottfried Keller indica, na imagem que o historicismo faz da história, exatamente o ponto em que ela é batida em brecha pelo materialismo histórico. Pois é uma imagem irrestituível do passado que ameaça a desaparecer com cada presente que não se reconhece nela visado (BENJAMIN apud LÖWY, 2012, p. 62).
Esta tese aponta para a “abertura da história”, promovida por Benjamin, que permitiu ao marxismo escapar das análises etapistas presentes numa interpretação vulgar das obras de Marx e Engels. No entanto, Michael Löwy destaca que essa apreensão sobre a concepção dialética da história benjaminiana é feita a partir de “uma herança marxista altamente seletiva” que prescinde dos trechos a obra marxiana que “serviram de referência às positivistas/evolucionistas do marxismo”. Benjamin abre mão das ideias de “progresso irresistível”, de “leis da história” e de “fatalidade natural” para ressaltar o aspecto dialético que existe entre presente e passado na escrita da história (LÖWY, 2012, p. 147).
Sem dúvida, a obra de Marx e Engels é atravessada por tensões irresolutas entre um certo fascínio pelo modelo científico-natural e uma conduta dialética – crítica
–; entre a fé no amadurecimento orgânico e quase natural do processo social e a visão estratégica da ação revolucionária que apreende um momento excepcional. Essas tensões explicam a diversidade dos marxismos que disputam entre si a herança após a morte de seus fundadores. Nas teses de 1940, Benjamin ignora o primeiro polo do espectro de Marx e se inspira no primeiro (idem, p. 148).
A proposição de uma história aberta de Benjamin inaugura um “marxismo da imprevisibilidade” e a busca por uma racionalidade dialética que “recusa as armadilhas da ‘previsão científica’ de gênero positivista” (idem, p. 150). Löwy ressalta, no entanto, que “a imprevisibilidade é certamente apenas relativa”, já que de certa forma existe a possibilidade de se inferirem movimentos da história a partir da sua análise
processual. Porém, “ao contrário dos eclipses da lua ou da próxima passagem do cometa Halley, o resultado da ação histórica dos indivíduos e dos grupos sociais continua consideravelmente imprevisível” (idem).
Joseph Fontana destaca como a experiência do nazifascismo foi crucial para a concepção de história aberta proposta por Benjamin. Para ele, a imprevisibilidade da ascensão de regimes altamente reacionários em um momento histórico de avanço da organização dos trabalhadores e dos movimentos políticos de esquerda marca a forma de ver a história de Benjamin. Sendo assim, o filósofo alemão “propunha ao historiador que trabalhasse como o físico na desintegração do átomo, com o fim de liberar as enormes forças que ficam presas na explicação linear da história” que teria sido, para ele, “o narcótico mais poderoso” do século XX (FONTANA, 1998, p. 277).
A atual conjuntura de avanço do pensamento conservador e reacionário em todo mundo, obriga os historiadores marxista a recuperar a essência da concepção dialética da história sem esbarrar em certas interpretações simplistas, etapistas, evolucionista ou positivista do materialismo histórico e dialético. Em tempos de avanço do obscurantismo, “clarear essa obscuridade” “é a honra da pesquisa histórica”. (LÖWY, 2012, p. 51).
Para isso, as lições de autores como Walter Benjamin e sua resistência ao economicismo e mecanicismo vulgar são cada vez mais úteis na construção de uma referência crítica para a História. Neste ponto, Benjamin se encontra com Antonio Gramsci e E. P. Thompson, responsáveis pela renovação do marxismo durante o século XX. Os três autores abriram caminho para uma interpretação da história que não abre mão da dialética. Para isso é importante a apropriação de categorias fundamentais do pensamento dialético como totalidade, mediação e contradição.
Em especial sobre a categoria totalidade, Benjamin traz contribuições fundamentais para a compreensão dialética entre presente e passado, reforçando a ideia que a totalidade é apenas um momento da visão de conjunto que é sempre transitória. Para isso, surge a necessidade de identificar as “contradições concretas e as mediações específicas que constituem o ‘tecido’ de cada totalidade” (KONDER, 1984, p. 46).
É nesse sentido de enfrentamento aos determinismos que a obra de Benjamin, Gramsci e Thompson se encontram a parir da constatação que o materialismo histórico de Marx e Engels é “constatativo e não normativo”, tal qual ressalta Leandro Konder:
nas condições de insuficiente desenvolvimento das forças produtivas humanas e de divisão da sociedade de classes, a economia tem imposto, em última análise, opções estreitas aos homens que fazem a história. Isso não significa que a economia seja o sujeito da história, que a economia vai dominar eternamente os movimentos do sujeito humano. Ao contrário: a dialética aponta na direção de uma libertação mais efetiva do ser humano em relação ao cerceamento de condições de econômicas ainda desumanas (idem, p. 68-70).
Sendo assim, vale ressaltar os pontos de contato entre as contribuições de Gramsci e Benjamin. Ambos deram atenção aos elementos da cultura e da ideologia como fundamentais para a construção da hegemonia. Apesar do filósofo alemão não se valer diretamente desta categoria gramsciana, há evidentes congruências no pensamento de ambos na percepção dialética da história. Sem abrir mão das categorias fundamentais do método proposto por Marx e Engels, em especial da categoria classe social, Gramsci aponta elementos de como um historiador marxista pode tentar dar conta das múltiplas determinações de uma totalidade histórica.
Pelo menos como orientação metodológica, deve-se chamar a atenção para as outras partes da história da filosofia; isto é, para as concepções de mundo das grandes massas, para as dos mais restritos grupos dirigentes (ou intelectuais) e, finalmente, para as ligações entre estes vários complexos culturais e a filosofia dos filósofos. A filosofia de uma época não é a filosofia deste ou daquele filósofo, deste ou daquele grupo de intelectuais, desta ou daquela grande parcela das massas populares: é uma combinação de todos esses elementos, culminando em uma determinada direção, na qual sua culminação torna-se norma de ação coletiva, isto é, torna-se “história” concreta e completa (integral) (GRAMSCI, 1978, p. 31).
Assim como Gramsci, Benjamin ressalta a importância de compreender a história não apenas através dos determinantes materiais. Surge então o desafio ao historiador marxista de compreender a luta de classes não apenas como “uma luta pelas coisas brutas e materiais”, mas também pelas “coisas materiais” (BENJAMIN,
1996, p. 223-224). O autor alemão destaca a necessidade de integrar a história da cultura à história da luta de classes.
Deste desafio de compreender a cultura e a ideologia como elementos fundamentais da luta de classes, emerge um segundo desafio, o de perceber o movimento da história não apenas como o “cortejo triunfal dos vencedores dos dominadores”. Sendo assim, Benjamin recusa qualquer identificação afetiva com os heróis oficiais, interessando por escrever a história no sentido contrário, tal qual salienta Michael Löwy:
Benjamin se interessa pela salvaguarda das formas subversivas e antiburguesas da cultura, procurando evitar que sejam embalsamadas, neutralizadas, tornadas acadêmicas e incensadas pelo establishment cultural. É preciso lutar para impedir que a classe dominante apague as chamas da cultura passada, e para que elas sejam tiradas do conformismo que as ameaça (LÖWY, 2012, p. 8).
A tese de Benjamin sobre a abertura da história pressupõe, portanto, “uma opção ética, social e política pelas vítimas da opressão e por aqueles que a combatem” (idem, p. 159). Esta ideia coincide com a assertiva de Hobsbawm de que “a história pode ter vencedores a curto prazo, mas os ganhos históricos vêm dos vencidos”. Daí, reforça-se a árdua tarefa do historiador de “escovar” cotidianamente “a história a contrapelo”.
BEMVINDO, Vitor. Por uma História da Educação Politécnica: concepções, experiências e perspectivas. 2016. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal Fluminense.
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V.18, Nº 35 - 2020 (jan-abr) ISSN: 1808-799 X
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v18i35.40491
Dalton José Alves2
O tema deste artigo resulta de pesquisas sobre o princípio educativo da escola pública, localizado no trabalho urbano industrial a partir da Modernidade. A pesquisa evidenciou que o trabalho na indústria e na cidade revolucionou os modos de vida. O desenvolvimento das potencialidades humanas passou a depender dos progressos da indústria. Disto surgirá uma nova pedagogia da hegemonia da classe proprietária, antes feudal, agora capitalista, para a consolidação do seu projeto de sociedade. A proposição da escola para todos surge neste contexto. Analisa-se as contradições em relação à escola para os trabalhadores.
El presente trabajo es el resultado de investigaciones sobre el principio educativo de la escuela pública, a partir del trabajo urbano industrial en la Modernidad. El estúdio evidencia que el trabajo en la indústria y en la ciudad revolucionó los modos de vida. El desarrollo de las potencias humanas pasó a depender de los progresos industriales. Con ello, surgió una nueva pedagógia hegemónica de la clase proprietária, antes feudal, ahora capitalista que busca su proyecto de sociedad. La escuela para todos surge como propuesta ante este panorama, queriendo analizar con ello las contradicciones en relación a la escuela para los trabajadores.
The theme of this article results from research on the educational principles of public schools stemming from modernity: the urban industrial work. Research has shown that work in industries and in the city has revolutionized lifestyles. The development of human potential came to depend on the progress of industry. This will result in the emergency of a new pedagogy of hegemony of a previously feudal, now capitalist,
1 Artigo recebido em 01/07/2019. Primeira Avaliação em 01/09/2019. Segunda Avaliação em 05/11/2019. Aprovado em 21/11/2019. Publicado em 23/01/2020.
2 Doutor em Educação na Área de Filosofia e História da Educação. Professor Associado II da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). E-mail: dalton.alves@unirio.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2036-4069.
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proprietary class for the consolidation of their project of society. The proposition of a “school for all” emerges in this context and contradictions regarding a school for the working class are analyzed.
Neste texto, tem-se por objetivo geral abordar o conceito e o fato do trabalho, entendidos como atividades teórico-práticas e da sua relação, na história, com a origem da educação e o surgimento da escola. Trata-se de como a organização do processo de trabalho nos primórdios da humanidade exigiu a necessidade da educação como meio de passar para as novas gerações os conhecimentos desenvolvidos pelas anteriores, tendo em vista a perpetuação da espécie humana; bem como dá-se um enfoque específico ao contexto histórico, o qual determinou a emergência da Scholé (lugar do ócio), na antiguidade grega e romana, como nova modalidade particular de educação, restrita a pequenos grupos, destinada às classes economicamente dominantes da sociedade, diferente da educação própria das demais classes. Este modelo se estenderá ao conjunto da sociedade como a principal forma de educação para todos, a partir da Modernidade, o qual permanece até hoje como a forma predominante de educação da maioria.
Entender as razões que deram origem à escola é fundamental para compreender qual é o papel da escolarização na formação dos seres humanos na atualidade, uma vez que a escola se tornou a modalidade de educação para todos. Deste modo, é possível delimitar, mais precisamente, quais os limites e a importância da educação escolar no tempo presente, sobretudo da escola pública, que, em linhas gerais, é a responsável também pela educação da classe trabalhadora, da maioria dos cidadãos.
O conhecimento da história do ser e estar humano no mundo passa pela compreensão do papel do trabalho e da educação no processo de humanização. Pelo trabalho, a humanidade produz a sua própria existência e pela educação, garante a continuidade e o aperfeiçoamento desta produção. Ao existirem, os seres humanos precisaram trabalhar e se educar de alguma forma, necessariamente. Todavia, se a educação é tão antiga quanto o homem e, desde sempre, foi uma exigência social e para o trabalho, para todos os membros da sociedade, a educação escolar, no entanto, nem sempre se submeteu a estas exigências.
A educação escolar passa a ser uma exigência social para todos somente a partir da época Moderna e, sobretudo, após a primeira Revolução Industrial, que deslocou a economia da agricultura para a indústria, a política do campo para a cidade e o processo produtivo do trabalhador para as máquinas.
O trabalho produtivo material, pelo qual os seres humanos criam coisas úteis para a sua sobrevivência, tais como, alimentos, vestuários, abrigos, transportes etc., foi desde sempre um princípio educativo da educação em geral dos homens. Em outros termos, a organização do trabalho, nos primórdios da humanidade, exigiu a necessidade da educação como meio de passar para as novas gerações os conhecimentos desenvolvidos pelas gerações anteriores, tendo em vista a perpetuação da espécie humana. O trabalho e a educação, portanto, são tão antigos quanto os seres humanos. Desde o surgimento da espécie humana, impôs-se a necessidade de se dedicar ao trabalho, de agir sobre a natureza para transformá-la e de criar coisas úteis para o consumo e o bem-estar humanos, bem como teve a premência de se educar, de passar para as novas gerações o domínio dos conhecimentos sobre o trabalho e de outras atividades, descobertas e criações humanas adquiridos em cada momento da história.
Compreende-se o “trabalho como princípio educativo”, conforme a definição de Ciavatta (2009), que traduz este conceito de Marx e Gramsci, segundo a qual,
[...] No caso do trabalho como princípio educativo, a afirmação remete à relação entre o trabalho e a educação no qual se afirma o caráter formativo do trabalho e da educação como ação humanizadora por meio do desenvolvimento de todas as potencialidades do ser humano (CIAVATTA, 2009, p. 408).
Nesta acepção, o trabalho como princípio educativo dos seres humanos, acima comentado, irá se traduzir também, no Período Moderno, em princípio educativo da escola pública para todos, proposição defendida pela Burguesia na sua fase revolucionária. E este era o trabalho industrial.
O trabalho na indústria e na cidade, à medida que produz mercadorias para os capitalistas, com base nas novas tecnologias criadas por engenheiros e cientistas de todos os tipos e áreas, revoluciona o modo de vida dos grupos humanos da Modernidade, inicialmente na Europa, depois em todo o mundo, até a contemporaneidade.
O desenvolvimento das potencialidades humanas, desde então, passou a depender dos progressos da indústria. Gramsci (2001) percebeu bem este fato ao analisar o papel da escola primária e notar a sua relação com o trabalho na indústria. Segundo ele,
[...] a lei civil e estatal organiza os homens do modo historicamente mais adequado a dominar as leis da natureza, isto é, a tornar mais fácil o seu trabalho, que é a forma própria através da qual o homem participa ativamente na vida da natureza, visando a transformá-la e socializá-la cada vez mais profunda e extensamente. Pode-se dizer, por isso, que o princípio educativo no qual se baseavam as escolas primárias era o conceito de trabalho, que não pode se realizar em todo seu poder de expansão e de produtividade sem um conhecimento exato e realista das leis naturais e sem uma ordem legal que regule organicamente a vida dos homens entre si [...] O conceito e o fato do trabalho (da atividade teórico-prática) é o princípio educativo imanente à escola primária, já que a ordem social e estatal (direitos e deveres) é introduzida e identificada na ordem natural pelo trabalho. (GRAMSCI, 2001, p. 43).
Assim é, porque, à medida em que a criança é introduzida na apropriação do desenvolvimento histórico da humanidade é que ela irá melhor se situar no mundo atual, enquanto indivíduo e ser social, bem como é devido a isto que poderá intervir, ativamente, na construção do futuro por sua ação no presente. Esta ação se traduzirá em sua maior capacidade de intervenção pelo trabalho na realidade material, física, natural e pela política na sua melhor intervenção na realidade humana e social, retomadas a um nível mais elevado, para transformá-las.
Deve-se a isto a razão de estarem os estudos veiculados pela escola centrados nas áreas das ciências físicas e naturais, nas áreas dos estudos histórico-sociais e da linguagem. O estudo das ciências, por exemplo, ensina à criança sobre as leis naturais, “objetivas e rebeldes”, que independem da vontade humana e não podem ser suprimidas, em relação às quais apenas é possível conhecer e se adaptar. Tratam- se de elementos e fenômenos naturais em que não há possibilidade de evitar ou controlar (GRAMSCI, 2001, p. 42). Tais como: a morte; não é possível evitá-la, mas pela medicina, a química e outras ciências, pode-se adiá-la, bem como curar várias doenças e enfermidades que tornariam a vida mais dolorosa e sofrida. Há também a meteorologia, que permite ao homem prever chuvas, furacões, secas, etc. Entretanto, não se pode evitá-los; mas é possível se preparar para enfrentar esses fenômenos da natureza, e, assim, sofrer menos.
Na escola, aprende-se, também, sobre as leis civis e estatais que regem a organização e a vida em sociedade nos tempos atuais, porém, ao contrário das leis naturais, estas podem ser modificadas, pois trata-se de produtos humanos. São leis estabelecidas pelos próprios homens tendo em vista o seu desenvolvimento coletivo, por isto, por se tratarem de leis construídas pelos homens, podem por eles serem desconstruídas e modificadas. A escola visa, em linhas gerais, proporcionar aos homens o domínio mais adequado possível dos conhecimentos necessários para atuarem sobre as leis da natureza e da vida social de forma a facilitar a sua vida e tornar mais fácil o seu trabalho.
Evidencia-se, assim, que, a partir da Revolução Industrial do século XVIII, o trabalho urbano produtivo material com base na indústria tornou-se, paulatinamente, o princípio educativo, agora centrado na escola, para todos os membros da sociedade. Todos precisam dominar esses conhecimentos. Seja para aplicá-los na produção, no trabalho industrial, mas também para compreender os fundamentos científicos que sustentam a vida nessa nova sociedade baseada na produção industrial.
Esta é uma exigência posta para todas as classes sociais. Na sociedade urbana industrial, a situação da educação se apresenta de modo substancialmente diverso dos períodos anteriores, antigo e medieval, uma vez que o modo de vida atual das classes proprietárias e não-proprietárias assenta-se nos mesmos fundamentos, científicos e tecnológicos. Tanto é assim que o currículo das escolas é formalmente o mesmo para todas as escolas, de todos os níveis sociais, de acordo com a política de estado de educação em vigor.
Nas demais partes deste texto visa-se esmiuçar esta realidade de modo a mostrar, tanto quanto possível, como está estruturada a escola na sociedade atual, a partir da identificação dos seus fundamentos históricos, conceituais e sociais e das suas contradições.
Cumpre agora destacar brevemente qual foi o processo histórico que deu origem à escola e com quais finalidades ela foi criada no mundo antigo, em especial no mundo grego e romano. Inicialmente, pode-se dizer que a escola surge como uma modalidade específica de educação diferenciada da educação em geral pela qual se
educavam as gerações anteriores. Outra característica, tratava-se de uma educação à qual só tinham acesso as classes nobres, aristocráticas e ricas. Estavam impedidos de frequentarem a escola: as mulheres, os escravos e os pobres, ou seja, a maioria da sociedade.
A escola surge, assim, como Scholé (lugar do ócio), mas não era um lugar de descanso ou de lazer, ao contrário, era o lugar para onde eram enviados aqueles que não precisavam trabalhar para viver, ou seja, os filhos dos proprietários. Surge e se consolida como resultado da divisão da sociedade em classes sociais, a classe dos proprietários e dos não-proprietários. Nasce com a transformação da propriedade coletiva dos meios de produção fundamentais, como a terra, em propriedade privada. Na Scholé, ensinavam-se os conhecimentos e as técnicas necessários para dirigirem os trabalhos da mente, os quais exigiam esforço mental e intelectual. Não exerciam atividades manuais, consideradas indignas do homem livre, uma vez que estas eram próprias de escravos ou serviçais. As demais crianças, filhas dos não- proprietários, estavam impedidas de frequentarem a Scholé, restrita aos nobres e aristocratas, mas também passavam por um processo de educação pelo qual aprendiam e dominavam os conhecimentos e técnicas necessários para dirigirem os trabalhos das mãos, os quais exigiam esforço físico e manual para o trabalho produtivo que deveriam exercer a serviço dos nobres e proprietários. (ZANELLA, 2003, p. 142).
A origem da propriedade privada que mudou radicalmente, pela raiz, a forma de vida das pessoas e dos povos para sempre, até os dias de hoje, teve início quando na história, além dos bens de produção privados, os meios de produção também passaram a ser privados. Passaram a pertencer apenas a uma família ou a um grupo restrito, deixando o restante da comunidade sem tais meios de sobrevivência. Disto irá resultar, aos poucos, a noção de “propriedade privada”, particular, dos principais meios de produção da existência humana. E, muito rapidamente, as terras e os animais, que antes eram de todos, passaram a ser a propriedade particular de apenas alguns e a tribo, ao invés de trabalhar e ver os produtos do seu trabalho gerarem recursos para todos, passou a trabalhar e gerar recursos apenas para alguns poucos que se apoderaram da propriedade, antes coletiva e agora privada.
Segundo Engels,
Ao dividir-se a produção nos dois ramos principais – agricultura e ofícios manuais – surgiu a produção diretamente para a troca, a
produção mercantil, e com ela o comércio, não só no interior e nas fronteiras da tribo como também por mar [...] A diferença entre ricos e pobres veio somar-se à diferença entre homens livres e escravos. A nova divisão do trabalho acarretou uma nova divisão da sociedade em classes. A diferença de riqueza entre os diversos chefes de família destruiu as antigas comunidades domésticas comunistas, em toda parte onde estas ainda subsistiam; acabou-se o trabalho comum da terra por conta daquelas comunidades. A terra cultivada foi distribuída entre as famílias particulares, a princípio por tempo limitado, depois para sempre; a transição à propriedade privada completa foi-se realizando aos poucos [...] A família individual começou a transformar- se na unidade econômica da sociedade. (ENGELS, 2018, p. 200).
Os proprietários passaram a dominar a comunidade e, por conseguinte, o excedente de produção e passaram também a se sentirem no direito de não mais precisarem trabalhar na terra para o próprio sustento, obrigando toda a comunidade, depois de subjugada, a trabalhar para a sua própria subsistência e para sustentar os novos donos da terra. Se antes todos viviam do trabalho de todos, a partir deste momento “alguns passaram a poder viver do trabalho dos outros” (SAVIANI, 1995, 2ª. parte: “Origem e finalidade da escola”). Surge, a partir daí, o trabalho como exploração e não mais como meio próprio de vida e de subsistência. E a maior exploração de todas que foi o trabalho forçado, trabalho escravo, conhecido como Modo de Produção Escravista (NETTO e BRAZ, 2010, p. 65).
A escravidão, a princípio restrita aos prisioneiros de guerra, mas que se desenvolve depois e abrange os membros da própria tribo e até da própria gens; a degeneração da velha guerra entre as tribos na busca sistemática, por terra e por mar, de gado, escravos e bens que podiam ser capturados, ação que chegou a ser uma fonte regular de enriquecimento. Resumindo: a riqueza passa a ser valorizada e respeitada como um bem supremo, e as antigas instituições da gens são pervertidas para se justificar a aquisição de riquezas pelo roubo e pela violência. (ENGELS, 2018, p.131).
Ocorre assim, segundo Engels (2018, p.131), a legitimação histórica e social da propriedade privada, “antes tão pouco estimada”, consagrada e santificada como o “objetivo mais elevado da comunidade humana”, juntamente com a perpetuação da “nascente divisão da sociedade em classes” e do “direito de a classe possuidora explorar a não possuidora e o domínio da primeira sobre a segunda”. Nestas condições, os proprietários passaram a ter mais tempo livre para se dedicarem a outras coisas, vez que estavam livres do trabalho produtivo, agora realizado por outros seres humanos escravizados.
É neste contexto que teve origem a escola, como Scholé, uma modalidade restrita de educação, destinada apenas para aqueles que viviam do trabalho de outros homens, pois, a maioria continuava a se educar como sempre fez, no próprio trabalho e na vida. A escola nasce no mundo antigo, grego e romano, com esta marca congênita baseada na divisão entre trabalho intelectual e trabalho manual, resultante da divisão de classe da sociedade entre proprietários e não-proprietários, fruto do surgimento da propriedade privada dos meios de produção.
Isto perdurou até o fim da Idade Média, sofrendo mudanças durante as Revoluções Burguesas do Período Moderno, quando se levanta a bandeira e se efetiva a proposta da universalização da escolarização para todos da sociedade. Todavia, para a classe trabalhadora, em essência, as coisas não mudaram tanto assim. Não se modificaram, pois alterou-se a forma, mas não a lógica de organização e funcionamento da sociedade, uma vez que não se transformou, substancialmente, o regime de propriedade. Prevaleceu, portanto, o regime da propriedade privada dos meios de produção em detrimento do regime da propriedade coletiva, o que trouxe consequências também para o tipo de escola pública destinada aos trabalhadores, que irá resultar desse processo.
Entre os séculos XVI e XIX, principalmente após a Revolução Industrial do século XVIII, intensifica-se a necessidade de capacitar técnica e cientificamente a mão-de-obra que deveria realizar os trabalhos na indústria, porque as máquinas tinham engastadas em seus mecanismos os fundamentos do conhecimento científico, sobretudo da física e da matemática, e como estes não eram passíveis de serem desenvolvidos espontaneamente, precisavam ser apreendidos de forma sistemática. A exigência de democratizar o acesso aos conhecimentos intelectuais e teóricos, inclusive para os trabalhadores, surge aos poucos, levando o sistema burguês de produção (capitalista) a colocar a necessidade da escolarização dessa mão-de-obra para atender aos seus objetivos na produção, a qual se tornou um imperativo conforme avançava o desenvolvimento da indústria, cada vez mais impulsionada pelos progressos científicos e tecnológicos das forças-produtivas a serviço da produção industrial e da acumulação ampliada do capital.
A Scholé, que antes era uma modalidade restrita de educação, apenas para os nobres e aristocratas, generaliza-se e torna-se, com o passar do tempo, a modalidade principal de educação de toda a sociedade, consubstanciada na bandeira empunhada pela burguesia, em sua fase revolucionária da “luta pela escola pública para todos”.
Segundo Saviani (1994, 1995, 2007), é nesse período que a escola se tornará uma necessidade geral, convertendo-se na modalidade principal de educação. O surgimento da indústria, no século XVIII, a expulsão dos camponeses de suas terras, o crescimento das cidades, a vida urbana, a invenção da imprensa, a Reforma Protestante, dentre outros fatores, são algumas das razões de as pessoas precisarem dominar os códigos escritos e os saberes científicos desenvolvidos pela escola.
Após a Revolução Francesa e a instituição da República como forma de governo, centrada na observância da Lei escrita (Constituição), no direito positivo, nos contratos de trabalho e do casamento civil etc., evidenciou-se o problema do analfabetismo. Como cobrar a observância da Lei de quem não sabe ler e escrever?
[...] a sociedade contratual, baseada nas relações formais, centrada na cidade e na indústria, vai trazer consigo a exigência de generalização da escola. A produção centrada na cidade e na indústria implica que o conhecimento, a ciência que é uma potência espiritual, se converta, através da indústria, em potência material [...]. Se se trata de uma sociedade baseada na cidade e na indústria, se a cidade é algo construído, artificial, não mais algo natural, isto vai implicar que esta sociedade organizada à base do direito positivo também vai trazer consigo a necessidade de generalização da escrita [...]. Na Época Moderna, a incorporação da ciência ao processo produtivo envolve a exigência da disseminação dos códigos formais, do código da escrita. O direito positivo é um direito registrado por escrito, muito diferente do direito natural que é espontâneo, transmitido pelos costumes. O domínio da escrita se converte, assim, numa necessidade generalizada. [...]. Quanto mais avança o processo urbano-industrial, mais se desloca a exigência da expansão escolar. Por aí é possível compreender exatamente por que esta sociedade moderna e burguesa levanta a bandeira da escolarização universal, gratuita, obrigatória e leiga. A escolaridade básica deve ser estendida a todos. (SAVIANI, 1994, p. 05).
E mais ainda: o domínio dos códigos escritos e a importância da alfabetização ligam-se à nova relação que se estabelecerá entre ciência e técnica, em que a ciência pura tornar-se-á ciência aplicada à produção – tecnologia – e colocará a exigência de um domínio teórico, por mínimo que seja, dos fundamentos científicos dos instrumentos e técnicas necessários à indústria. E, uma vez que eram os trabalhadores quem deveriam operar tais maquinários, era preciso dar a eles o
domínio do saber científico engendrado nas técnicas e máquinas da indústria. É assim que irá surgir, como uma necessidade objetiva, o problema do acesso dos trabalhadores à Scholé, local por excelência do desenvolvimento e acesso aos conhecimentos científicos e teóricos.
A mudança principal realizada pela Revolução Industrial foi a substituição da mão-de-obra humana pela máquina no processo produtivo. Se antes, na manufatura, o homem era a força produtiva central, se era ele (o trabalhador) quem agia sobre a matéria para transformá-la em algo útil para o consumo humano, agora, na indústria, transferiu-se para as máquinas as atividades manuais. Esta é a grande revolução industrial operada a partir de então, e que colocou a máquina no centro do processo produtivo, deslocando o homem (o trabalhador), transformando-o num “adendo” da máquina, que está ali apenas para garantir que esta continue funcionando bem e de modo eficiente. Não é mais ele (o trabalhador) quem age sobre a matéria para transformá-la, o trabalhador não é mais o produtor direto, e sim, é a máquina que agora ocupa esta função. De produtor, o trabalhador foi reduzido a “servo” da máquina.
Além disso, a produção mecanizada é muito mais eficiente e uniforme do que o corpo humano. Por esta razão é que a substituição do homem pela máquina apresenta inegáveis vantagens para o capital, tanto na redução dos custos, como na redução do tempo de produção, com a qual o trabalhador manual não pode competir. Daí o porquê de o modo de produção anterior, baseado na manufatura, ter sido abandonado e superado pela produção industrial (maquinofatura), devido às vantagens objetivas deste novo modo de produção.
A indústria, tendo o seu processo produtivo centrado nas máquinas e não mais no trabalho humano direto, e sendo a máquina resultado de conhecimentos científicos da física, da mecânica, da matemática etc., passou a exigir, gradativamente, dos trabalhadores que as operavam algum nível de conhecimento científico-tecnológico, mas, estes conhecimentos teóricos não podiam ser desenvolvidos somente pela observação empírica, como antes, no trabalho manual. Precisavam de estudos mais complexos, só acessíveis e veiculados por instituições específicas, conhecidas como escolas ou academias. Neste contexto, é que a escola, aos poucos, irá se converter na principal forma de educação da maioria, em substituição à educação empírica e espontânea das épocas anteriores, nas quais a educação escolar estava restrita aos
nobres e aristocratas. Atualmente, a educação escolar é tão natural e óbvia que muitos nem têm a noção de que nem sempre ela foi uma necessidade para todos da sociedade. (SAVIANI, 1995, 3ª. parte: “Quando a escola se generaliza”).
Todavia, para os trabalhadores estas mudanças não foram tão vantajosas conforme o prometido. Segundo Saviani (1995), estas mudanças poderiam ser vantajosas ao liberar os trabalhadores das atividades manuais pesadas, sobrando mais tempo livre para se dedicarem a outras coisas. Mas, na prática, isto acaba não ocorrendo porque a máquina não é dos trabalhadores, elas têm um dono (o capitalista) e estão a serviço deste. Por isto, a Revolução Industrial irá trazer muitos prejuízos para o trabalhador, principalmente o desemprego, vez que uma máquina poderia exercer a função de muitos operários manuais ao mesmo tempo, necessitando-se apenas de alguns poucos homens para o manuseio dessas máquinas. (SAVIANI, 1995, 4ª. parte: “A escola e a Primeira Revolução Industrial”).
Outra desvantagem para a classe trabalhadora foi em relação ao acesso à Scholé. A escola, ao surgir no cenário das Revoluções Burguesas como uma necessidade objetiva e erigindo-se na forma principal de educação para todos, para desenvolver o domínio do saber ler, escrever e contar, bem como dos conhecimentos científicos e teóricos, surgiu como uma grande conquista, o que de fato foi, mas não sem contradições e limites.
A defesa da educação escolar para todos, inclusive para a classe trabalhadora, coloca para a burguesia o problema de em que medida isto deveria ser feito? Até onde poderia ir o domínio, por parte dos trabalhadores, dos conhecimentos veiculados pela escola? Note-se que, do ponto de vista histórico, da história da educação da mão de obra à serviço da classe dos proprietários, é a primeira vez que a classe dirigente irá se ver diante do problema de que não bastava mais uma formação apenas manual, empírica, do ser que trabalha, como forma de o explorar para a geração de riquezas e subsistência da classe senhora do trabalho.
A solução será organizar um tipo de escola para a classe trabalhadora, por quem não é trabalhador, mas dele precisa. Assim essa escola é planejada e oferecida aos trabalhadores, em sua forma e conteúdo, de acordo com as necessidades dos seus idealizadores. (ALVES, 2018, p. 184).
Por esta razão é que a burguesia, ao criar a escola pública no processo de consolidação do novo modo de produção (capitalista), não considerou a participação
dos trabalhadores na elaboração do modelo de educação escolar que melhor convinha aos próprios trabalhadores. Apesar de se proclamar o princípio de “uma escola pública, laica, gratuita, para todos”, ignorou-se, em vários aspectos, as necessidades específicas dos trabalhadores, os quais foram excluídos deste processo e não foram ouvidos sobre a educação que melhor atenderia às suas necessidades.
Daí entende-se o porquê de se criar um modelo de escola “para” e não “com” a classe trabalhadora. Este modelo foi pensado a partir dos interesses dos capitalistas, para atender às suas necessidades de acumulação ampliada do capital, pouco interessando a formação dos trabalhadores, a seu serviço, naquilo que não atendesse a estas necessidades. Tal modelo de escolarização não considerava, em última instância, favorecer o desenvolvimento mais amplo das potencialidades humanas e profissionais dos indivíduos da classe trabalhadora para além dos interesses imediatos da economia capitalista. Do que se depreende qual é a concepção do ser que trabalha subjacente ao projeto de escola pública burguesa forjado neste contexto, qual seja, concebe-se o indivíduo que trabalha apenas como mão-de-obra útil ao capital, em detrimento de ele ser também um ser humano e tudo o que isto implica do ponto de vista da sua educação e emancipação. Assim como nos modos de produção anteriores, feudal e escravista, concebia-se a mão-de-obra útil, o ser que trabalha, como uma classe de seres tipicamente humanos, porém, desprovidos da sua humanidade.
O objetivo da burguesia foi, de fato, promover a escolarização dos trabalhadores, porém, no dizer de Gramsci, como seres “[...] aridamente instruídos para um ofício, sem ideias gerais, sem cultura geral, sem alma, mas só com o olho certeiro e a mão firme” (GRAMSCI apud MONASTA, 2010, p. 67), e não uma escola propriamente de formação humana em sentido omnilateral.
Tratar-se-á de uma escola pública, de direito, mas, de fato, estará restrita a pequenos grupos. A Modernidade capitalista e burguesa, já na primeira Revolução Industrial, lança as bases do que seria uma nova Scholé, criando duas modalidades distintas de educação escolar, uma não tendo ligação com a outra. Tratou-se de uma escola de tipo dualista, isto é, uma escola de excelência intelectual, de formação geral, para o trabalho complexo, reservada aos ricos e outra escola de qualidade inferior, minimalista, de formação prática, para o trabalho simples, destinada aos pobres, para a classe trabalhadora.
É neste contexto que surge, então, a tese da educação escolar em “doses homeopáticas” para os trabalhadores como a solução mais adequada aos interesses em jogo, visando adaptar todos à nova ordem social nascente, à ordem burguesa e capitalista, a qual irá determinar o sentido real do lema e da defesa de uma escola pública para todos, proposição defendida pela burguesia. Tratar-se-á de uma escola pública, mas não igual e nem do mesmo tipo para todos (ZANELLA, 2003, p. 142- 170).
Segundo Ana Margarida Campello,
a escola não é única, nem unificadora, mas constituída pela unidade contraditória de duas redes de escolarização: a rede de formação dos trabalhadores manuais e a rede de formação dos trabalhadores intelectuais [...] Essa diferenciação se concretizou pela oferta de escolas de formação profissional e escolas de formação acadêmica para o atendimento de populações com diferentes origens e destinação social [...] A escola de formação das elites e a escola de formação do proletariado [...] A educação profissional destinada àqueles que estão sendo preparados para executar o processo de trabalho, e a educação científico-acadêmica destinada àqueles que vão conceber e controlar este processo” (CAMPELLO, 2009, p.136).
A dualidade educacional caracteriza-se, em resumo, pela oferta de um tipo de escolarização de excelência para as classes ricas e dirigentes, com enfoque no desenvolvimento intelectual destinado à preparação para o ingresso no ensino superior e para assumir, posteriormente, os cargos de direção e comando no mercado de trabalho e na sociedade. E outro tipo de escolarização minimalista, destinada às classes pobres e subalternas, para o ingresso imediato no mercado de trabalho, num emprego qualquer, de baixa remuneração e que pouco exige do seu desenvolvimento intelectual para atuar na produção, geralmente em trabalhos manuais.
Em outros termos, a dualidade é inerente à escola na sociedade capitalista. Não se trata de um fenômeno acidental e nem de um equívoco, e sim, configura uma dualidade estrutural, essencial, própria do sistema liberal-burguês. É por isto que apesar dos ganhos que representou para a classe trabalhadora a possibilidade do acesso à educação escolar, em relação à sua situação anterior, isto não se alterou tanto conforme prometido, uma vez que o real fundamento da escola está na dualidade educacional.
Percebe-se que já na origem a educação prevista para o trabalhador está condicionada às necessidades da produção capitalista. Desde o
início a educação requerida, pensada e oferecida à classe trabalhadora é concebida apenas como a formação de um “meio de produção” para o mercado de trabalho capitalista e não como uma educação para a formação humana, do ser humano que há no trabalhador, ao contrário, trata-se de um modelo de educação que visa a formação do trabalhador no ser humano, daí desenvolver-se mais os aspectos operacionais na sua formação em detrimento dos aspectos humanistas e de formação geral (ALVES, 2018, p. 166).
Enfim, as correlações de forças não permitiram à classe trabalhadora uma escola melhor, que lhe proporcionasse cultura geral e formação omnilateral. Resultou que a burguesia inaugura, de fato, uma nova modalidade de educação ao universalizar a escola como a forma principal de educação, a escola pública para todos, mas também cria uma diferenciação na escolarização destinada aos capitalistas e aquela que seria destinada aos trabalhadores.
Tal como a Scholé na antiguidade e no Período Medieval, a educação dos trabalhadores, a partir da Modernidade, não será a mesma da classe dirigente, capitalista, os novos “proprietários” no poder. A escola para os novos proprietários irá continuar a sua antiga função de desenvolver os aspectos intelectuais e a capacidade de “mando”, para a qual estão destinados apenas aqueles que irão ocupar as funções de direção geral da sociedade e/ou do processo produtivo.
A escola pública popular, por outro lado, consolida-se como uma forma limitada de educação para os subalternos, com vistas a desenvolver, nestes, apenas os conhecimentos práticos e manuais e que pouco exijam da sua capacidade intelectual. Nesta acepção, a qualidade da escola pública para os trabalhadores deve ser encarada sob outra ótica. A notória e muitas vezes alegada “má qualidade” da escola pública popular, realmente não é má, e sim, trata-se da qualidade requerida pelo
sistema para a educação desta classe social. Segundo Gaudêncio Frigotto (2001),
A desqualificação da escola, para a grande maioria que constitui a classe trabalhadora, não é uma questão conjuntural – algo, como insinua a tecnocracia, a ser redimido, recuperado pelos mecanismos técnicos (ou pela tecnologia educacional). Trata-se de uma desqualificação orgânica, uma “irracionalidade racional”, uma “improdutividade produtiva”, necessária à manutenção da divisão social do trabalho e, mais amplamente, à manutenção da sociedade de classes. (FRIGOTTO, 2001, p. 180).
Cabe destacar, neste contexto, um problema para os professores e aqueles que se identificam com a defesa do princípio da escola pública e de qualidade para
todos, que, ao se confrontarem com esta realidade, isto pode configurar nesses profissionais e outras pessoas da sociedade civil uma série de dramas e levá-los a um sentimento de desânimo e de apatia ao saberem que a escola, em especial a escola pública, ao contrário do que se imagina e se espera, na realidade, foi criada para controlar e limitar tanto quanto possível o acesso dos trabalhadores ao conhecimento sistematizado, científico e aos instrumentos de produção do conhecimento teórico, não por alguma situação conjuntural, por ignorância ou equívoco dos governantes de plantão, mas que isto faz parte estrutural da própria concepção da escola pública popular.
Todavia, apesar desta situação adversa, não se deve perder de vista que a escola é muito importante para a classe trabalhadora. Qualquer ideia em contrário tende a condenar os trabalhadores a uma “miséria” cultural ainda maior e que lhes seria muito mais prejudicial, em última instância, negar o valor da educação escolar em sua vida. A questão da escola para os trabalhadores implica algumas contradições as quais, se consideradas, podem converter-se em ganhos para esta classe.
A este respeito pode-se destacar o que diz Saviani (1994):
Na medida em que o saber se generaliza e é apropriado por todos, então os trabalhadores passam a ser proprietários de meios de produção. Mas é da essência da sociedade capitalista que o trabalhador só detenha a força de trabalho. Aí está a contradição que se insere na essência do capitalismo: o trabalhador não pode ter meio de produção, não pode deter o saber, mas, sem o saber, ele também não pode produzir, porque para transformar a matéria precisa dominar algum tipo de saber. Sim, é preciso, mas "em doses homeopáticas", apenas aquele mínimo para poder operar a produção. É difícil fixar limite, daí por que a escola entra nesse processo contraditório: ela é reivindicada pelas massas trabalhadoras, mas as camadas dominantes relutam em expandi-la (SAVIANI, 1994, p. 09, grifos nossos).
Isto significa que, apesar dos limites do ensino escolar como veículo de transformação social, dado aos seus condicionantes políticos, econômicos e ideológicos, as contradições apontadas dão margem para ações rumo à constituição de uma escola emancipadora, porque, por exemplo, à medida em que se lute por melhores condições de trabalho dos profissionais da educação, dos professores e dos alunos que atuam na escola; à medida que se consiga melhorar a qualidade do ensino e da aprendizagem, com professores bem formados, escolas bem equipadas, novas didáticas e novas metodologias de ensino que despertem o interesse dos jovens pelo
estudo etc.; enfim, ao melhorar a qualidade da escola pública, garante-se um melhor aproveitamento dos estudos por parte dos estudantes trabalhadores e, quiçá, para além dos limites desejados e impostos pelo capitalismo. Vez que “é difícil fixar este limite”, então, um dos caminhos é forçar a escola a ultrapassá-lo.
Tendo em vista a importância de garantir a qualidade da escola pública popular para a classe trabalhadora, pode-se situar os reflexos no Brasil das transformações ocorridas na Europa, no período em que se inicia a profissionalização do trabalho docente, consubstanciado na Constituição Federal de 1934.
Dentre as transformações econômicas, políticas e sociais ocorridas na Europa no período da Modernidade, após a Revolução Industrial e a Revolução Francesa, destaca-se, nesta parte, os seus desdobramentos no campo educacional, em relação à necessidade da valorização do trabalhador docente, os quais se fizeram sentir no Brasil com maior intensidade e força a partir da Constituição de 1934, que instituiu o princípio republicano da educação como direito de todos. Neste contexto, a partir de então, passa a ser considerado essencial o papel do professor.
Não restam dúvidas de que o principal patrimônio do Sistema Educacional Brasileiro é a capacidade docente, tanto intelectual, como também técnica ou profissional, para desenvolver projetos, pesquisas e oportunizar a todos os cidadãos o direito social à educação, previsto no artigo 6º. da Constituição Federal vigente (OLIVEIRA e PIRES, 2014, p.75).
Colocar no centro do processo educativo escolar a relevância e a “essencialidade do trabalho dos professores”, implica garantir a efetiva valorização dos profissionais de ensino.
A necessidade de valorização do trabalhador docente após 1930, coincide com o início da intensificação do processo de industrialização brasileira, a qual ganha força e avança a passos largos com Vargas. Pode-se associar isto à primeira Revolução Industrial europeia do século XVIII, podendo considerar a década de 1930, de certa forma, o princípio da “revolução industrial” nacional.
A Revolução Industrial europeia opera, como se sabe e já comentado neste trabalho, uma inversão no processo produtivo: se antes, na manufatura, o ser humano,
a mão-de-obra humana, ocupava o centro do processo produtivo, pois era o ser humano quem, efetivamente, produzia com suas próprias mãos, e com auxílio de instrumentos, os produtos destinados à venda e ao consumo humano, com o surgimento das máquinas, estas passam a ocupar este lugar, deslocando os seres humanos (os trabalhadores) para a “periferia” do processo produtivo, transformando- os em um adendo das máquinas. Agora são as máquinas que produzem e a “mão-de- obra” humana passa a ter apenas a função de “cuidar” do bom funcionamento das máquinas. O homem (o trabalhador) passa a ter a função acessória de ligar, desligar, limpar, consertar as máquinas. “De produtor, o operário é literalmente reduzido a servente de um mecanismo, com cuja força, regularidade e velocidade ele não pode competir” (SINGER, 1987, p. 17).
A questão dos professores, da docência e da escola ganha relevância neste contexto, pois, sendo as máquinas criadas a partir de conhecimentos científicos complexos e especializados, com base na física, química, engenharia, matemática etc., estas passaram a demandar operadores também especializados e que dominassem, minimamente, tais conhecimentos científicos, uns mais outros menos, dependendo da função que cada um ocupava no processo produtivo. Assim, a necessidade de trabalhadores que tivessem algum conhecimento científico e técnico aumentava, gradativamente, conforme avançava o desenvolvimento e a complexidade da produção industrial, uma vez que a formação espontânea, manual e intuitiva não dava mais conta de formar, adequadamente, para as novas funções requeridas pelo trabalho industrial.
A atividade científica que dará origem às máquinas, sendo ela própria uma atividade sistemática e sistematizada, não espontânea, irá requerer um estudo e aprendizado igualmente sistemáticos e sistematizados. Esta é uma das razões pelas quais se tornará imperiosa a necessidade do acesso à escola para os trabalhadores. Daí a afirmação de Saviani (1995) de que “essa revolução industrial que colocou a máquina no centro do processo produtivo, teve uma correspondente revolução educacional que colocou a escola no centro do processo educativo” e com
ela desponta o papel central dos professores na educação de todos da sociedade.
Porque é a partir do conceito de escola que a realidade educacional pode ser explicitada. O que quero dizer com isto, é que os professores, então, são os educadores por excelência da nossa época. E o habitat dessa atividade educacional são as escolas. E, portanto, o movimento
dos professores, as condições de trabalho dos professores, os salários dos professores, estão diretamente ligados ao desenvolvimento ou não, à melhoria ou não, da educação da nossa época. (SAVIANI, 1995).
Por isto, pode-se entender porque o Estado brasileiro irá assumir e implementar a partir de 1930, a profissionalização do trabalho docente no país, vez que é também deste período o início ou a intensificação da industrialização nacional. E, assim como na Revolução Industrial europeia, coloca-se aqui, do mesmo modo, a necessidade da escolarização da mão-de-obra e, portanto, de profissionais da docência mais preparados para a função de escolarizá-la.
Apresenta-se, neste contexto no Brasil, na década de 1930, o trabalhador docente como o principal patrimônio do sistema educacional brasileiro e enfatiza-se a capacidade docente tanto intelectual como técnica e profissional. Disto resultará todo um “ordenamento jurídico brasileiro” com o objetivo de “garantir a valorização profissional do trabalho docente” (OLIVEIRA e PIRES, 2014, p. 75).
Porém, ao nível das políticas de Estado da Educação realmente efetivadas durante o século XX e atualmente no século XXI, a situação dos professores sofre profundas mudanças no sentido contrário aos objetivos proclamados, de precarização do trabalho docente, sobretudo, a partir da década de 1970 e, depois, durante e após a década de 1990, quando são adotados os princípios neoliberais como política oficial de Estado no Brasil. A partir daí, será introduzido o trabalho precário com maior intensidade causando, consequentemente, uma reordenação nos sistemas educacionais, redefinindo o papel do Estado em relação às políticas sociais, dentre as quais a educação, introduzindo-se a lógica gerencial empresarial como a medida de eficiência e eficácia da escola.
Trata-se da mercantilização da educação e do trabalho docente, ou seja, considerar tudo como redutível à lógica de mercado, de compra e venda. Esta “nova organização laboral do ensino”, do trabalho docente, é marcada por forte “ideologia de mercado”, a qual compreende a função docente como uma mercadoria e não como um direito. A consequência imediata se fez sentir na forma de uma crescente desvalorização do papel social do professor e na flexibilização do trabalho docente que trouxe o efeito da queda da qualidade do ensino e, consequentemente, da aprendizagem.
Curioso observar que isto ocorre num contexto em que a escola se generalizava para “todos” no Brasil; justamente aí cai a qualidade do ensino e da aprendizagem na escola pública. Quando o acesso ao saber elaborado, sistematizado, teórico e científico, é colocado acessível à grande massa, observa-se a queda da qualidade da escola pública de nível básico no país.
Considerando estas ideias, pode-se afirmar que essa nova organização laboral (neoliberal) tem contribuído para a desvalorização do papel social do professor, pela flexibilização do trabalho docente, com efeitos na atividade laboral e na qualidade do ensino. Situação que se agrava se situada com base no princípio do Estado Democrático de Direito, do qual o Estado brasileiro se diz signatário, e como tal deveria primar pela “proteção da dignidade da pessoa humana”. No caso do trabalho docente, “este princípio basilar é estendido quando do ambiente de trabalho digno ao exercício pleno da profissão docente” (OLIVEIRA e PIRES, 2014, p. 76).
Formalmente, o corpo legislativo brasileiro é repleto de elementos que indicam a defesa de princípios de valorização dos profissionais do ensino e de compromissos com uma qualidade educacional elevada. Porém, qual é o grau de efetividade dessas leis no cenário atual brasileiro? O problema, neste caso, é evidenciar “o grau de comprometimento do Poder Público para com a efetivação dessas normas, visto que foram elaboradas com fincas no princípio da dignidade da pessoa humana, quando da sua extensão ao meio ambiente de trabalho docente” (OLIVEIRA e PIRES, 2014, p.76).
O que precisa ser evidenciado é que esta precarização do trabalho resulta, dentre outros fatores, do fato de a adoção das políticas neoliberais do estado-mínimo estarem em franca contradição com o princípio basilar do Estado Democrático de Direito.
Em relação à determinação constitucional que exige, do Estado, zelar e garantir a “valorização do trabalho docente”, ao se assumir como política pública de Estado os princípios neoliberais do estado-mínimo, opera-se na realidade a “demissão” do Estado em relação às suas obrigações de garantir a eficácia das normas de valorização do trabalho docente. Essas leis e normas tendem a se tornarem “letra morta”, inócuas, pois, o princípio basilar do Estado Democrático de Direito implica num alto grau de comprometimento do Poder Público para a efetivação das normas existentes (OLIVEIRA e PIRES, 2014, p. 76). Numa situação em que se adotam os
princípios neoliberais do estado-mínimo não se pode mais contar com este comprometimento do Poder Público para a efetivação dessas normas.
É neste aspecto que o neoliberalismo entra em contradição com os princípios de um Estado Democrático de Direito. Dado que o segundo se caracteriza pela criação e a garantia de direitos e a efetivação das normas e o primeiro pela eliminação de direitos e a flexibilização das normas. A política do estado-mínimo prega a não intervenção do Estado na gerência da economia, devendo reduzir ao máximo a criação de leis que limitem e controlem a livre iniciativa do capital, flexibilizando a aplicação das leis existentes e aquelas a serem criadas. Pode-se concluir que sob a lógica do princípio do estado-mínimo é insustentável a manutenção de uma sociedade “democrática” e de “direitos”. Isto porque a adoção de um destes torna impossível a sustentação do outro. São mutuamente excludentes. As políticas públicas assentadas nos princípios de um Estado Democrático de Direito são incompatíveis com a adoção do neoliberalismo, pois, ao contrário do apregoado por este, aquele exige um Estado forte e presente no cuidado para a efetivação das normas que ele mesmo cria, “elaboradas com fincas no princípio da dignidade da pessoa humana” (OLIVEIRA e PIRES, 2014).
O caminho, neste caso, para se conquistar a dignidade do exercício do trabalho docente, passa pela luta contra a adoção dos princípios neoliberais para que se tenha um comprometimento do Estado com a efetivação das normas, para que sejam aplicadas em defesa dos direitos do profissional docente.
As considerações feitas neste texto sobre trabalho e educação, o surgimento e universalização da escola como modelo predominante de educação para todos, bem como o papel central do trabalho urbano industrial como o princípio educativo por excelência do processo de escolarização da sociedade, visaram evidenciar a importância, não sem contradições, da educação escolar em nossa época, sobretudo, da educação para os trabalhadores.
Os avanços das forças produtivas, a partir do século XVI e, principalmente, do século XVIII, na Europa, provocaram uma inevitável crise das relações de produção pré-existentes exigindo a sua transformação e adequação às novas condições materiais e sociais constituintes a partir de então.
Dentre o estabelecimento das novas relações de produção, tem a exigência de que seja dado aos trabalhadores o acesso aos conhecimentos científicos, ao menos aos seus fundamentos, e o domínio básico dos instrumentos de produção do saber sistemático e teórico, tais como o saber ler, escrever e contar.
A contradição se configura pelo fato de o caráter do acesso que é dado aos conhecimentos desta natureza, para os trabalhadores, não ser pleno, como o que é proporcionado aos filhos da burguesia. Como já visto, a escola pública era para todos, mas não do mesmo tipo para todos. A dualidade educacional aparece como a real estrutura e fundamento da defesa da “escola pública”.
Isto se deve, fundamentalmente, ao tipo novo de relações de produção que passou a se construir. Se é certo que as revoluções burguesas promoveram a emancipação política dos servos, por outro lado, a sua emancipação humana foi obliterada, pois manteve-se a dependência econômica dos trabalhadores, do proletariado, transformados nos “novos servos” – antes, do senhor feudal; agora, “servos” dos capitalistas.
Com efeito, o regime burguês emancipou os homens das relações de dependência pessoal, vigentes na feudalidade; mas a liberdade política, ela mesma essencial, esbarrou sempre num limite absoluto, que é próprio do regime burguês: nele, a igualdade jurídica (todos são iguais perante a lei) nunca pode se traduzir em igualdade econômico- social – e, sem esta, a emancipação humana é impossível. (NETTO e BRAZ, 2010, p. 19).
Todavia, nem todas as contradições são negativas para os trabalhadores. No campo educacional/cultural, apesar de todo o desinteresse das classes economicamente dirigentes em dar acesso efetivo aos trabalhadores quanto aos conhecimentos sistematizados e teóricos, mediados pela escola, percebe-se o potencial da escolarização como mediação necessária para a elevação do nível cultural das classes exploradas e da importância da escola no processo de luta rumo à emancipação humana omnilateral da classe trabalhadora.
O “capital” também percebe isto e procura limitar, tanto quanto possível, o acesso das classes subalternas aos conhecimentos “escolares” em “doses homeopáticas”: somente aquele mínimo de conhecimentos que interessam para o bom funcionamento do sistema econômico, político e social estabelecidos.
Mas, conforme já mencionado, como é difícil fixar este limite, a classe explorada tem aí um campo de luta contra a classe exploradora e se devidamente aproveitado, a escola pode se converter em mediação contra-hegemônica a favor dos subalternos.
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V.18, Nº 35 - 2020 (jan -abr) ISSN: 1808-799 X
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v18i35.40492
Maria de Fatima Felix Rosar2
O artigo aborda as relações entre capital, trabalho e desenvolvimento humano, enfatizando processos de produção e exploração da força de trabalho. Trata da indústria sustentada pelo trabalho de crianças, mulheres e homens, da reestruturação produtiva e seus efeitos sobre a subjetividade humana. Revisita textos de Marx sobre as necessidades humanas no capitalismo e as necessidades qualitativas possíveis no pós-capitalismo. Destaca a exploração dos trabalhadores, sob formas violentas e edulcoradas, propondo reflexões para se resistir ao reducionismo da perspectiva de desenvolvimento humano.
El artículo aborda la relación entre capital, trabajo y desarrollo humano, enfatizando los procesos de producción y explotación de la fuerza laboral. Se trata de la industria apoyada por el trabajo de niños, mujeres y hombres, la reestructuración productiva y sus efectos sobre la subjetividad humana. Revisa los textos de Marx sobre las necesidades humanas en el capitalismo y las posibles necesidades cualitativas en el pos-capitalismo. Destaca la explotación de los trabajadores, en formas violentas y endulzadas, proponiendo reflexiones para resistir el reduccionismo de la perspectiva del desarrollo humano.
The article addresses the relationship between capital, labor and human development, emphasizing processes of production and exploitation of the workforce. It deals with the industry sustained by the work of children, women and men, the productive restructuring and its effects on human subjectivity. Revisits Marx's texts on human needs in capitalism and the possible qualitative needs in post-capitalism. It highlights the exploitation of workers in violent and sweetened forms, proposing reflections to resist the reductionism of the perspective of human development.
1 Artigo recebido em 14/10/2019. Primeira avaliação em 31/10/2019. Segunda Avaliação em 25/11/2019. Aprovado em 06/01/2020. Publicado em 23/01/2020.
2 Professora aposentada da Universidade Federal do Maranhão. Doutorado pela Unicamp em Filosofia e História da Educação, Estágio de Pós-Doutorado na USP. Pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas em História Sociedade e Educação (HISTEDBR).E-mail: mffrosar@uol.com.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3238-9191.
Produziu-se no Brasil uma farta e rica produção científica dedicada aos temas do desenvolvimento humano, da educação e de sua relação com o trabalho, à luz da concepção histórico-dialética da realidade, cujos fundamentos encontram-se na história e na historiografia crítica. Foram construídas referências fundamentais para essa compreensão por meio dos textos de Dermeval Saviani, Gaudêncio Frigotto, Maria Ciavatta, Marise Ramos, Lucília Machado, Acácia Kuenzer e muitos outros pesquisadores que delinearam esse campo de conhecimento científico na área da história e política da educação.
Nos anos 1980, particularmente no Brasil, durante uma década florescente para a expansão das concepções críticas acerca da educação e da sociedade, foi possível superar a visão do humanismo ingênuo e da referência à moral, sob o manto da hipocrisia, segundo a qual o trabalho seria sempre a chancela da dignificação humana e a educação um processo necessário e indispensável para o condicionamento dos seres humanos aos modos de vida existentes no campo e na cidade.
Traduzindo-se essa concepção em contextos que contêm elementos reproduzidos até a atualidade, em escalas e modos diferenciados, crianças, jovens e adultos foram sendo conduzidos para o trabalho, como forma de garantir a própria sobrevivência e, portanto, seu “desenvolvimento” resultante do esforço físico, neuropsíquico e emocional, sem o qual poderiam ser condenados à miséria e à fome.
Entretanto, a realidade vivida pelos milhares de seres humanos deslocados de suas terras de origem, aprisionados e exportados do continente africano para o Brasil e também a situação histórica dos habitantes originais do próprio território brasileiro, escravizados pelos colonizadores sob as bênçãos dos representantes das ordens religiosas, que aportaram o novo mundo para “a domesticação dos selvagens”, constituem a demonstração suficiente de que a relação entre trabalho e condição digna de vida não se sustenta no âmbito das relações sociais de produção, desde os primórdios da história do Brasil.
Essa concepção de caráter ideológico de educação, trabalho, dignidade e desenvolvimento humano obscureceu a compreensão do dinâmico e contraditório nexo entre capital e trabalho, que se materializou, de modo geral, a partir da gênese do modo de produção implantado pela Revolução Industrial, nos séculos XVIII e XIX. Para implantar, expandir e consolidar o processo de acumulação capitalista, fez-se
necessário dinheiro, máquinas e corpos humanos levados ao esgotamento nas linhas de produção do primitivo sistema fabril, em que trabalhavam durante 15 horas crianças, homens e mulheres em troca de um mísero salário insuficiente para a reprodução de sua existência física. Foi nesse contexto de violência física instaurada em relação às crianças, que começaram a ser definidas as leis de regulação desse tipo de trabalho infantil, como a Chimney Sweepers Act of 1788.3 No entanto, esse processo de regulação demorou a se efetivar de fato. Somente em 1833, o governo britânico publicou uma lei sobre o trabalho nas indústrias têxteis (Factory Act of 1833), especificando as condições a serem observadas em relação ao trabalho infantil4.
Em consequência desse processo violento de exploração de trabalhadores e trabalhadoras, muitas reações ocorreram, desde a investida dos luditas ingleses contra as máquinas até a transformação do sistema de produção, em grande medida, como resultado também da luta, resistência e organização dos trabalhadores, como os macartistas do século XIX. Desde a primeira, a segunda, a terceira e, atualmente, a quarta Revolução Industrial, máquinas e homens se confrontam. Os modos de subordinação dos humanos ao componente constante do capital foram progressivamente realizando a sua subsunção formal e real5 até se alcançar a automação e robotização, no atualíssimo modo de produção de objetos, ideias e sonhos transformados em mercadorias, que materializam e contrapõem: riqueza e escassez, excesso e miséria, distribuídos conforme a estrutura de classes sociais que se reproduzem, desde a consolidação do capitalismo, como modo de ordenamento das sociedades modernas.
A Primeira Revolução Industrial fez emergir o setor fabril, desencadeando um amplo processo de produção e consumo, ao mesmo tempo que permitiu a expansão
3 “Já em 1788, uma primeira lei, a Chimney Sweepers Act of 1788, visava a impor limites etários à exploração da mão de obra de crianças na limpeza de chaminés, muito embora, somente com a Lei Chimney Sweepers Act, publicada em 1875, as regras quanto ao trabalho de crianças neste ofício conseguiriam ser aplicadas pelo Estado britânico”. (JUNIOR; VASCONCELLOS, 2017, p. 278).
4 “Essa lei: a) proibia o emprego de menores de nove anos; b) determinava que os empregadores deveriam manter um certificado de idade das crianças trabalhadoras; c) limitava o máximo de 9 horas por dia de trabalho para as crianças entre 9 e 13 anos; d) limitava o máximo de 12 horas por dia para o trabalho de crianças entre 13 e 18 anos; e) proibia o emprego de crianças no trabalho noturno; f) especificava a obrigação de duas horas de estudo por dia para as crianças; g) criava o cargo de inspetor de fábricas (United Kingdom, 1933a)”. (JUNIOR; VASCONCELLOS, 2017, p. 280).
5A subsunção formal expressa a separação entre a força de trabalho e os meios de produção e possibilita a inserção do trabalhador no processo de valorização do capital, por meio da produção da mais-valia absoluta. A subsunção real resultante do processo de desenvolvimento da ciência e da tecnologia, aplicada aos processos produtivos, possibilita intensificar os ritmos de trabalho, produzindo a mais-valia relativa, materializando-se ainda mais profundamente a alienação do trabalhador, reduzido à condição de apêndice da máquina. (MARX, 1985).
de relações comerciais ultramarinas, entre 1760 e 1850, aproximadamente. A Segunda Revolução Industrial possibilitou um processo de aperfeiçoamento de máquinas, equipamentos e tecnologias, principalmente pelo estabelecimento de equipes de pesquisa articuladas com o setor industrial e de produção de conhecimentos na área da medicina, do uso de novas fontes de energia (petróleo, eletricidade) e de novos materiais a partir da indústria do aço.
Essas invenções das quais resultou o aumento exponencial dos lucros e da exploração da força de trabalho, atingiu seu ápice na metade do século XIX até o final da Segunda Guerra Mundial, tendo contribuído para que países da Europa, da América e da Ásia mantivessem as negociações de produtos transacionados em mercados compartilhados entre a maioria dos países dos três continentes. Após a Segunda Guerra Mundial, portanto, a partir da metade do século XX até o século XXI, deu-se um processo muito mais ampliado e radical de mudança dos processos produtivos, com a incorporação da biotecnologia, genética, robótica, informática, telecomunicações, do transporte, a ponto de modificar dimensões espaciais e temporais construídas no mercado globalizado, em que a financeirização6 da economia mundial tornou-se expandida e preponderante para garantir a lucratividade dos capitalistas.
Com efeito, a reestruturação produtiva7, resultante da Terceira Revolução Industrial, possibilitou o aumento da produtividade e, simultaneamente, a redução do trabalho vivo, alterando os eixos do sistema de produção, circulação e consumo. O meio ambiente e a saúde dos seres vivos têm sido atingidos brutalmente, enquanto o aprofundamento da desigualdade entre as classes sociais multiplica-se, inclusive com os incontáveis desastres naturais e científicos, que atingem a natureza e a humanidade, tais como as guerras, as epidemias, pandemias, ações destrutivas que atingem os ecossistemas, e também agridem frontalmente os seres humanos.
6 Processo caracterizado pelo aumento e pela valorização da riqueza financeira, como ações, títulos da dívida pública e privada, bem como os ativos derivados desses, comparativamente aos ativos reais, empregados na produção de bens e serviços que produzem lucros aos seus detentores. No caso dos primeiros, a moeda não faz girar bens e serviços na esfera industrial, mas sim papéis de empresas financeiras, com elevada liquidez, visando aos ganhos com juros e a valorização. Já os ativos produtivos são ilíquidos, constituem o capital produtor de lucros. (ROSAR, 2019).
7 “Sabemos que a partir do início dos anos 1970, o capital implementou um processo de reestruturação em escala global, visando tanto à recuperação do seu padrão de acumulação, quanto procurando repor a hegemonia que vinha perdendo, no interior do espaço produtivo, desde as explosões do final da década de 1960, onde, particularmente na Europa ocidental se desencadeou um monumental ciclo de greves e lutas sociais”. (ANTUNES; BRAGA, 2009, p. 233).
Ao mesmo tempo, o processo de reestruturação produtiva tornou predominante a lógica da organização do trabalho, a partir da concepção do toyotismo8, porém manteve de forma associada a essa nova matriz as modalidades anteriores de enquadramento dos trabalhadores no processo produtivo, como o taylorismo. Desse modo, o neotaylorismo concorre para a subtração da subjetividade, sobretudo no trabalho realizado pelos empregados nas Centrais de Teleatividades.
Venco, ao analisar o processo de taylorização que se deslocou do setor fabril para a esfera do trabalho das CTAs, identifica “um crescente movimento na organização do trabalho para tentar apropriar-se da subjetividade dos funcionários”. (VENCO, 2009, p.159). Segundo Linhart, esse processo aproxima--se “muito mais a um esforço de racionalização e de prescrição da subjetividade coletiva e individual dos assalariados, do que uma renúncia aos princípios fundamentais do taylorismo”. (LINHART, 2007, p.117 apud VENCO, 2009, p. 159). Noël Lechat e Jean-Claude Delaunay reconhecem os trabalhadores das Centrais de Teleatividades como “os novos proletários deste novo milênio”. Para esses estudiosos, os jovens teleoperadores9 “não vendem somente sua força de trabalho, mas também seu engajamento emocional e pessoal”. (VENCO, 2009, 169).
Observa-se que outro impacto das novas formas de trabalho e de comunicação atingem a privacidade dos indivíduos, transformando-a em conteúdo da esfera pública, em consequência da explosão dos circuitos das redes virtuais, de forma desmesurada e, em grande medida, usadas de modo insano. Por exemplo, no caso de trabalhadores que, individualmente, se insurgem às práticas de dominação e controle do capital, em diversos setores de produção e de serviços, são submetidos rapidamente a processos de desqualificação profissional, por meio de campanhas difamatórias e outras modalidades de assédio moral, tornando-se presa fácil de “milícias” virtuais.
8 “Para Coriat (1994), o modelo Toyota inverte as regras tradicionais da lógica fordista, que se assentavam na parcelização das tarefas e separação entre concepção e execução, em que os trabalhadores do chão de fábrica eram desincumbidos de pensar o processo de trabalho ao qual tinham de sujeitar-se. (...) Desta feita, esse sistema, denominado just in time, não preconiza a produção em larga escala, mas sim em lotes de séries menores determinados pelo fluxo da demanda”. (MAGNO; BARBOSA, 2011, p.126)
9“Os trabalhadores selecionados por empresas terceirizadoras de teleserviços são predominantemente mulheres, jovens, afrodescendentes, homossexuais, transexuais, obesos, enfim pessoas frequentemente rejeitadas em postos de trabalho que envolvem o contato vis-à-vis, relegando-os a permanecerem invisíveis a uma sociedade de consumo que privilegia certos padrões estéticos”. (VENCO, 2009, 170).
Além dessas evidências, recentemente no Brasil, a disseminação sem limites de conteúdos destrutivos acerca de pessoas que ocupam destaque na esfera política tornou-se um fenômeno que ganhou uma dimensão preocupante, sendo hoje objeto de investigação, do ponto de vista policial. Diversas análises sobre as múltiplas dimensões desse fenômeno têm sido divulgadas pelos especialistas da área de filosofia, sociologia, psicologia, psicanálise. Destacam--se algumas obras relevantes, tais como: A sociedade individualizada – Vidas Contadas e Histórias Vividas, Zygmunt Bauman (2008); A reinvenção da intimidade. Políticas do sofrimento cotidiano, Christian Dunker (2017); O privilégio da Servidão – o novo proletariado de serviços na era digital, Ricardo Antunes (2018); The Age of Disruption: Technology and Madness in Computational Capitalism, Bernard Stiegler (2019).
No século XXI, ainda que seja possível constatar a existência de uma amálgama de processos produtivos, englobando formas pregressas de trabalho e de produção, instaurou-se a hegemonia da era da informação digital, transformando radicalmente os conhecimentos, as informações e os dados em bens intangíveis de extraordinário valor agregado para a expansão do capital em sua dimensão fictícia. Já não se pensa a indústria como locus predominantemente reservado à produção de mercadorias, uma vez que se pode dispensar até mesmo a presença dos operários na indústria 4.0.10 Aproximadamente, a partir de 2011, foi sendo concebido e materializado o conceito de indústria inteligente e autônoma, na qual a conexão entre máquinas, sistemas e ativos permite que a produção seja ao mesmo tempo controlada pelas redes de computadores, com dispositivos de inteligência artificial capazes de fazer a gestão da produção, controlar todas as fases, identificar falhas no processo e superá-las por meio de readequação automática dos procedimentos em curso, até que se realizem todos os requisitos necessários para a finalização com êxito e garantia de excelência dos produtos.11
10 “O conceito e Indústria 4.0 é a interconexão de toda a cadeia de valor (Informações + Pessoas + Equipamentos) conectados em rede, utilizando Inteligência Artificial para a TOMADA DE DECISÕES na Indústria. Quanto as tecnologias da Indústria 4.0, há diversas e não queremos limitar o assunto. Todavia, para fins de estudo, precisamos entender que há um pré-requisito para implantação da Indústria 4.0, que passa pela Automação, Otimização e Convergência”. https://www.automacaoindustrial.info/manufatura-4-0-x-processo-4-0/
11 Na ponta desse processo, o imperialismo norte-americano projeta suas novas conquistas e manutenção de sua soberania, apostando na reindustrialização a partir desse novo processo de produção digitalizado. No entanto, não está só: o Japão, a própria Alemanha e, em alguma medida, a China seguem desenvolvendo sua indústria nessa direção com alguma relevância. Rádio Pião Informativo Operário – Ano XV, nº76, março/abril, 2019, p.2.
Neste mesmo século, paralelamente ao avanço dos novos métodos de produção, tem crescido o desemprego estrutural, transformando os processos educativos e culturais num subproduto da revolução das máquinas, que definem os novos perfis profissionais adequados a esse processo de automação, por meio do qual, progressivamente, reduz-se o número de trabalhadores necessários para o planejamento, a execução e avaliação dos processos produtivos.
A incorporação dos conhecimentos produzidos cientificamente pelos profissionais responsáveis por conceber e produzir softwares garante que a subsunção do trabalho intelectual ocorra, de modo similar, aos moldes do que se verificou com os trabalhadores fabris, progressivamente expropriados do seu conhecimento, na medida em que trabalhavam em linhas de produção cujos procedimentos operacionais e os produtos deles resultantes passaram a ser objetos das pesquisas e avaliação dos especialistas em “administração empresarial científica”.
Os efeitos do processo de subsunção se evidenciam no mercado, no qual se estabelecem novas equações entre capital e trabalho, trabalho vivo e trabalho morto, sempre garantindo a permanência de uma relação cujo resultado predominante reproduz a subordinação e a exploração do trabalho, a ponto de se realizar por diferentes meios de controle a expansão e/ou a retração de setores produtivos, alterando a própria condição de trabalho e de vida do grande contingente de trabalhadores existentes no mundo. Pode-se ter uma noção aproximada desse processo de construção e destruição encetado pelo capital, a partir de dados atualizados da OIT (Organização Internacional do Trabalho).
Um relatório recente da Organização Internacional do Trabalho (OIT) mostra: há agora 3,5 bilhões de trabalhadores no mundo. Nunca o número foi tão vasto. A conversa sobre “o fim dos trabalhadores” é prematura, quando confrontada com o peso desses dados. A OIT reporta que a maior parte desses 3,5 bilhões de trabalhadores “enfrentam ausência de bem-estar material, segurança econômica, igualdade de oportunidades ou possibilidade de desenvolvimento humano. Estar empregado nem sempre garante uma vida decente. Muitos trabalhadores precisam aceitar trabalhos pouco atraentes, normalmente informais (é o chamado trabalho flexível) e caracterizados por baixa remuneração, além do acesso escasso ou inexistente a proteção social e direitos trabalhistas”. Embora metade da força de trabalho mundial seja composta por empregados assalariados, dois milhões de trabalhadores (61% do total) estão no
setor informal. (PRASHAD, Vijay. Sobre iPhone11, tecnologia e “fim do trabalho”, 2019).
Se a maioria dos trabalhadores está composta pelos que participam do setor informal, depreende-se que o domínio da economia, decorrente do modo de produção capitalista, amplia-se quantitativa e qualitativamente, absorvendo as dimensões do trabalho produtivo e do trabalho improdutivo, alcançando desse modo a hegemonia nas esferas da economia, da política, da educação e da cultura, moldando a subjetividade dos “trabalhadores-empreendedores”12, que devem estar preparados para a concorrência e a busca da sua sustentabilidade, mesmo que isso não faça o menor sentido para aqueles despossuídos de capital ou de qualquer outro patrimônio material, para investir em matéria-prima, equipamento e remuneração de auxiliares.
Na realidade, a expressão política do capital mais contundente projeta-se com a emergência do neoliberalismo na sua primeira fase, pós-crise dos anos 1970, quando impulsiona um retorno ao ordenamento da sociedade, pela via dos postulados do liberalismo clássico, com a definição do Estado mínimo e do predomínio das leis do Mercado, estendendo-se sobre a vida pública e privada dos sujeitos numa sociedade desigual e excludente, sob a direção da burguesia dominante. Mas, a primeira iniciativa de refundação do liberalismo havia ocorrido em 1938, durante o Colóquio Walter Lippmann, no qual se delinearam as bases para duas correntes do pensamento neoliberal que surgiria depois: a corrente austro-americana, com seus representantes mais destacados, como Friedrich A. Hayek e Ludwig von Mises por um lado, e a corrente ordoliberal alemã, com Walter Eucken e Wilhelm Ropke. (DARDOT e LAVAL, 2019).
Compreende-se, com Dardot e Laval, que o neoliberalismo
trata-se mais fundamentalmente de uma racionalidade política que se tornou mundial e que consiste em impor por parte dos governos, na economia, na sociedade e no próprio Estado, a lógica do capital até a converter na forma das subjetividades e na norma das existências. (DARDOT e LAVAL, 2019, p.2).
A partir dessa concepção, se recolocam os marcos do neoliberalismo que não abrange apenas as medidas de “políticas econômicas monetaristas ou de austeridade,
12 Magno, Attila; Barbosa, Silva. O empreendedor de si mesmo e a flexibilização no mundo do trabalho.
de mercantilização das relações sociais ou de ditadura dos mercados financeiros”. (DARDOT e LAVAL, 2019, p.2).
O neoliberalismo que atingiu a sua capacidade máxima de expansão e envolvimento dos países da Ásia, Europa e da América, nos anos 1990, por meio da atuação programática dos Organismos Multilaterais e da nova divisão internacional do trabalho13, alcança a segunda década do século XXI, assumindo uma feição autoritária e ainda mais excludente, no que se refere à participação da ampla maioria da sociedade civil nos processos decisórios, para a definição das políticas econômicas e sociais. De acordo com Dardot e Laval,
O neoliberalismo só se sustenta e se reforça porque governa mediante a crise. Com efeito, desde os anos 1970, o neoliberalismo se nutre das crises econômicas e sociais que gera. Sua resposta é invariável: em vez de questionar a lógica que as provocou, é preciso levar ainda mais longe essa mesma lógica e procurar reforçá-la indefinidamente. Se a austeridade gera déficit orçamentário, é preciso acrescentar uma dose suplementar. Se a concorrência destrói o tecido industrial ou desertifica regiões, é preciso aguçá-la ainda mais entre as empresas, entre os territórios, entre as cidades. Se os serviços públicos já não cumprem sua missão, é preciso esvaziar esta última de qualquer conteúdo e privar os serviços dos meios que precisam. Se a diminuição de impostos para os ricos ou empresas não dão os resultados esperados, é preciso aprofundar ainda mais nisto, etc. (DARDOT e LAVAL, 2019, p.2).
Na periferia do sistema mundial do capitalismo, os países, de modo geral, sem perspectivas de sustentabilidade econômica e ambiental, em meio a um processo continuado e acelerado de erosão dos princípios básicos da democracia burguesa, enfrentam crises cíclicas, cada vez mais profundas, nas economias nacionais. Esse contexto criou as condições ideológicas favoráveis para a ascensão de grupos organizados em movimentos, associações e partidos de extrema-direita, que passaram a cooptar lideranças e amplos setores das classes populares, para a
13 Como o Relatório da OIT indica, “espera-se que o crescimento da produtividade entre 2019 e 2021 alcance o seu pico mais elevado desde 2010, superando a média histórica de 2,1% para o período de 1992-2018”. A OIT refere-se à média mundial, visto que em muitos países — incluindo os EUA — o aumento da produtividade tem se mantido estagnado: ou seja, é o crescimento da produtividade em países como a China que puxa para cima a média global. Porém, os benefícios do aumento da produtividade não são satisfatoriamente distribuídos entre os trabalhadores, em termos de aumento salarial proporcional às suas contribuições. Os benefícios sobem diretamente para os donos do capital, o que aumenta a concentração de riqueza. O trabalho está produzindo um excedente maciço, que poderia muito bem ser usado para melhorar o bem-estar geral da humanidade. Em vez disso, vai parar nos bolsos dos capitalistas. (Prashad, Vijay. Sobre iPhone11, tecnologia e “fim do trabalho”, 2019).
construção de regimes autoritários e ultraconservadores, com a promessa de transformação da sociedade, a partir da dimensão política e cultural concebida à luz de valores e referências do pensamento medieval. Exemplos desses regimes podem ser tomados das experiências recentes de eleição de Donald Trump nos Estados Unidos e de Jair Messias Bolsonaro no Brasil.
Além disso, os episódios recentes de intensos conflitos sociais que têm atingido a Venezuela, Equador, Bolívia, Chile e Colômbia, parecem indicar que a interferência dos Estados Unidos e do Brasil, em maior grau no caso do governo americano, e em menor escala, porém de modo efetivo, do governo brasileiro, se materializa por meio de ações políticas ilegítimas, de caráter intervencionista, ao desprezarem os princípios de soberania e autodeterminação dos povos, princípios historicamente construídos no âmbito das relações diplomáticas entre países democráticos. Por essa via, os Estados Unidos e o Brasil, de modo explícito, têm financiado grupos de oposição organizados para desestabilizarem os governantes, no caso da Venezuela e da Bolívia, com o objetivo de realizar o desmonte desses Estados, como também das proteções constitucionais aos recursos naturais de elevado valor de mercado, como o petróleo, gás natural, nióbio, lítio, etc.
A perspectiva de superação do trabalho alienado, aquele que se realiza no âmbito do modo de produção capitalista, seja sob a forma de trabalho manual ou trabalho intelectual, tendo como resultado a produção de objetos materiais ou de ideias, concepções, teorias e projetos, somente poderá ser vislumbrada se se conceber esse processo, como parte da totalidade do amplo e radical movimento de transformação da sociedade, e do modo como se organizam os homens e mulheres nos espaços de socialização de atividades práticas e teóricas, que visam a satisfazer suas necessidades qualitativas ou de ordem social e espiritual.
Marx, ao tratar das necessidades humanas, mesmo sem tê-las definido nos seus escritos, critica o conceito de necessidade da economia política clássica, concebida como categoria econômica, por compreender que a necessidade econômica constitui uma expressão da alienação (capitalista) das necessidades, numa sociedade na qual a finalidade da produção é a valorização do capital, em que
o sistema de necessidades está baseado na divisão do trabalho e a necessidade somente aparece no mercado, sob a forma de demanda efetiva.
Heller, em sua obra Teoria das necessidades em Marx (1978, 1ª ed; 1986, 2ª ed.), reconhece que o conceito de necessidades necessárias nos Grundrisse corresponde às necessidades naturais, enquanto no O Capital fica destacada a diferença: as necessidades necessárias são aquelas surgidas historicamente e não dirigidas à mera sobrevivência. Marx considera na Miséria da Filosofia que existe uma contradição, ou seja, as necessidades necessárias dos trabalhadores não podem ser satisfeitas, porque não estão cobertas pela sua demanda efetiva, uma vez que prevalece como força predominante o capital, que induz a produção de necessidades a serem satisfeitas pela produção de produtos destinados ao consumo da própria burguesia.
Em Marx, as necessidades necessárias se distinguem, do ponto de vista empírico e filosófico. As necessidades necessárias são aquelas sempre crescentes, geradas mediante a produção material. Portanto, na sociedade dos produtores associados, que seria aquela sociedade que poderia suceder à capitalista, elas dizem respeito ao reino da necessidade, incluindo as necessidades de consumo e de produção, do ponto de vista material em correspondência à força e ao tempo de trabalho. Em confronto com essas, apresentam-se as necessidades espirituais e morais que não podem ser adquiridas com dinheiro e se relacionam à coletividade. Essas são reconhecidas como as necessidades livres características do reino da liberdade, no qual a necessidade, como categoria de valor referenciada na riqueza, é entendida em relação ao desenvolvimento dos indivíduos em sentido amplo, para além da concepção da economia política clássica, que reduz a riqueza à dimensão material.
Fundamentado na perspectiva histórico-dialética, Marx destaca o fato de que o capitalismo produz necessidades múltiplas e ricas, enquanto provoca o empobrecimento dos homens e converte o trabalhador em um ser isento de necessidades, dada a sua incapacidade de consumo no mercado capitalista. Assim, aparece o tema das necessidades radicais que constitui o motivo principal da obra de Marx. O homem rico em necessidades é um conceito filosófico e a essência humana, ainda que se materialize empiricamente, constitui uma categoria de valor. A alienação produzida no grau máximo deve produzir a necessidade de superá-la; a necessidade
da riqueza é a realização da “essência” da espécie, que se pode conceber como a omnilateralidade.
No capitalismo, o homem fica reduzido a uma equivalência com aquilo que possui e suas qualidades e forças são derivadas de suas posses. A individualidade do ser se subsume na relação entre sua posse e a satisfação de suas carências. Ao contrário, na sociedade futura, conforme o gênero para si, a essência da espécie não poderá alienar-se do homem e, por conseguinte, não poderá ser reduzida a uma forma quantitativa. As necessidades e as capacidades humanas seriam de natureza qualitativa, e o qualitativo somente poderá ser trocado com o qualitativo, tal como observa Marx nos Manuscritos Filosóficos.
Entretanto, como ainda se reproduz o capitalismo, apenas vislumbrando--se a ideia de uma sociedade futura, seria necessário desdobrar as necessidades sociais para dar-lhes concretude no plano empírico e no plano filosófico. Assim, Marx, No terceiro livro de O Capital, coloca a sociedade capitalista contraposta à sociedade dos produtores associados, o que quer dizer que as necessidades sociais constituem uma categoria de valor positivo, porque é a necessidade do modo de vida coletiva, do comunismo, em que os homens e mulheres vivem a sua sociabilidade de forma integral.
Os limites dentro dos quais a necessidade de mercadoria se apresenta no mercado – a demanda – se distingue quantitativamente da verdadeira necessidade social, variando muito, naturalmente, segundo as diversas mercadorias. A “necessidade social” referida à demanda é, portanto, mera aparência que não expressa as necessidades sociais reais da classe operária, inclusive as transforma no seu contrário. Então, para Marx, as necessidades sociais reais correspondem ao conteúdo empírico e sociológico das necessidades necessárias. Isto quer dizer a média das necessidades individuais desenvolvidas historicamente, transmitidas nos usos e dotadas de componentes morais.
Nos Manuscritos econômicos-filosóficos, Marx identifica que as necessidades sociais representam as necessidades autênticas totalmente conscientes, enquanto as “sociais”, que emergem no mercado, assinalam as possibilidades de satisfação das primeiras em uma determinada sociedade. As “necessidades sociais”, que podem ser adquiridas mediante o valor de troca, são irrelevantes do ponto de vista das outras necessidades. Para Marx, essas constituíam a forma mais característica do fenômeno
da alienação. Outras “necessidades sociais” correspondem à satisfação social e, às vezes comunitárias, das necessidades. Esta é uma interpretação não econômica que serve para expressar o fato de que os homens possuem necessidades não somente produzidas socialmente, mas também necessidades unicamente suscetíveis de satisfação mediante a criação de alternativas coletivas, como as organizações e instituições sociais. Como exemplo, tem-se a saúde e a educação pública, necessidade cultural e necessidade comunitária, que somente podem ser satisfeitas na vida comunitária. Embora a categoria não seja por si só econômica, pode-se destacar um aspecto econômico apontado por Marx na Crítica ao Programa de Gotha, no qual afirma que deve ser descontado um percentual da renda integral do trabalho, para se destinar à satisfação coletiva das necessidades. Em relação às necessidades sociais puramente materiais, Marx atribui um caráter de relativa estabilidade quantitativa – sua quantidade só deveria aumentar paralelamente ao crescimento da população.
Marx especula que essas necessidades seriam conscientes e pessoais e sua satisfação será tão importante que limitará outras necessidades humanas. Quando cessa o domínio das coisas sobre o homem, quando as relações inter-humanas não aparecem mais como relações entre coisas, então prevalecem as necessidades subordinadas ao desenvolvimento dos indivíduos, para a auto- realização da personalidade, tornando-se predominantes as dimensões qualitativas, que se expressam de modo variado sob atividades sociais e culturais.
Uma das estruturas interdependentes essenciais do capitalismo como “formação” é a estrutura das necessidades. Para poder funcionar na forma característica da época de Marx, para poder subsistir como “formação social”, o capitalismo no interior de sua estrutura de necessidades, inclui algumas de impossível satisfação em seu seio. Com o reconhecimento das necessidades radicais, insuperáveis no capitalismo, como elementos constitutivos do movimento de superação por meio da revolução total, Marx reafirma o processo histórico como a única possibilidade real de transformação engendrada pela luta de classes, indicando que o antagonismo entre o proletariado e a burguesia é uma luta de classe contra classe, luta que poderá levar a uma revolução total, pela qual poderiam ser superadas as antinomias entre opostos.
Somente a luta do sujeito coletivo é capaz de realizar a nova sociedade; sua revolução radical e total. Por sua vez, o dever coletivo se realiza necessariamente, posto que o próprio “corpo social” capitalista gera as necessidades radicais e seus portadores. Na sociedade dos “produtores associados” preconizada por Marx, as antinomias citadas deixam de existir e a via para superá-las é a revolução total. Quando cessa a oposição entre sujeito e objeto, a riqueza do gênero e a do indivíduo “coincidem”, como afirma Marx nos Manuscritos econômicos-filosóficos de 1844.
O reino da produção (o intercâmbio orgânico da sociedade com a natureza) continua sendo o reino da necessidade. Porém, a necessidade fica subordinada à liberdade. Liberdade, necessidade, teleologia e riqueza social do futuro não têm o mesmo conteúdo produzido na sociedade capitalista. A sociedade futura, em cada um dos seus aspectos estruturais, é radicalmente distinta da capitalista, e por isso tão somente pode realizar-se através de uma revolução total. Apesar disso, o desenvolvimento capitalista das forças produtivas é o que gera a possibilidade desta revolução social total.
Nesse sentido, Marx afirma que uma revolução social total pressupõe e ao mesmo tempo implica a superação da relação estrutural entre teoria e práxis desenvolvida no capitalismo, e também a superação da estrutura burguesa das necessidades em seu conjunto. Para alcançar seus objetivos, a revolução política é necessária, todavia não está em condição de realizar esta estrutura radicalmente nova. Para satisfazer as necessidades radicais, é necessário transcender a sociedade capitalista em toda sua estrutura, incluída a própria estrutura das necessidades.
A classe trabalhadora só pode libertar-se a si mesma se libertar a toda a humanidade, realizando a liquidação positiva da propriedade privada e a superação da alienação. Portanto, a possibilidade de se expandir o desenvolvimento da espécie humana, em contraposição à sua subordinação ao capital, requer que sejam constituídas, ainda no âmbito do capitalismo, novas formas de trabalho, produção, circulação de bens materiais e imateriais.
Nesse sentido, do esforço realizado pelas lutas anticapitalistas, têm se produzido experiências no “mundo do trabalho associado” e gerado “embriões de educação para além do capital”, como nos apresenta Novaes, et al. (2018), ao publicar juntamente com Silva, Alaniz, Rodrigues, Pires, Santos e Faria o resultado de suas
pesquisas.14 Explicitando sua aproximação à concepção de Mészáros, Novaes reitera a reflexão seminal do pensador húngaro, ao afirmar que:
a transição socialista se dá no âmbito da proposta que formula de uma mudança global que tem por objetivo a transcendência do ‘sociometabolismo do capital’. Sua teoria segue em busca das exigências qualitativamente mais elevadas da nova forma histórica, o socialismo pós-capital (e não pós-capitalista), onde o ser humano possa desenvolver sua ‘rica individualidade’. (NOVAES, 2018, p. 29).
A compreensão da transformação radical do modo de produção capitalista pressupõe a luta no âmbito da economia, da política, da cultura e da educação, de forma sistemática, programática e simultânea, considerando que se faz necessário realizar o combate em todas as dimensões, conjugando os movimentos de destruição das forças submissas ao capitalismo e de construção da alternativa socialista. Segundo Mészáros,
Aqueles que pensam que a alternativa hegemônica socialista é “irreal”
– e, sem qualquer interesse disfarçado, defenderam a todo custo a ordem estabelecida – deveriam se perguntar: é realmente possível e logicamente sustentável projetar a permanência de um sistema sociometabólico de reprodução baseado nos imperativos materiais fetichistas da lógica destrutiva do capital? Os resignados a suportar a inércia do “realismo” do capital que se autoperpetua podem seriamente continuar defendendo que a incontrolabilidade destrutiva do capital não está lançando perspectivas cada vez mais sombrias no horizonte da sobrevivência humana? Agora, até mesmo os defensores mais acríticos da ordem vigente são obrigados a reconhecer que os problemas mais sérios ainda estão diante de nós. A “única” diferença é que, confundindo desejo com realidade eles esperam do poder repressivo do capital a solução definitiva para todos esses problemas. Na verdade, porém, mais irreal não é a alternativa hegemônica socialista ao domínio do capital em todas as suas formas historicamente conhecidas e ainda possíveis, mas a projeção gratuita de que a humanidade pode sobreviver por muito mais tempo ainda dentro dos limites estruturais necessariamente destrutivos do modo estabelecido de reprodução sociometabólica. (MÉSZÁROS, 2011, p.921).
Ao se apresentar no presente texto um breve resgate da história recente das relações entre capital, trabalho e desenvolvimento humano, o que se pretendeu foi contribuir para agudizar a perspectiva crítica da historiografia da educação, dada a
14 NOVAES, Henrique Tohan et al. Mundo do trabalho e embriões de educação para além do capital. Marília, Lutas anticapital, 2018.
necessidade histórica de se realizar o enfrentamento das investidas do capital, na atualidade, sobre o pensamento crítico, utilizando-se de formas arcaicas e sórdidas de desqualificação da ciência, da educação e da cultura, prenhes de potência emancipatória, quando não transformadas em mercadoria.
Na realidade, desdobra-se sob nossos olhos estupefatos uma situação histórica que ameaça o futuro das crianças, dos adolescentes e jovens, cidadãos em formação para o exercício de sua cidadania no século XXI, em que se sucedem “décadas perdidas” em consequência das imposições do capitalismo no seu sistema de reprodução mundial, entre as quais aquelas condicionalidades determinantes de um quadro de perdas irreparáveis, na condição de existência física e psíquica dos trabalhadores e trabalhadoras em diferentes setores de produção e de serviços.
Embora possa parecer impossível uma regressão histórica a períodos do passado remoto, as manifestações e ações dirigidas contra a produção teórico-- científica derivadas do período iluminista, evidenciam o retrocesso que remonta ao obscurantismo da Idade Média, rearticulando em novas bases materiais a ideologia e os valores da Idade das Trevas, sob a tutela dos Estados Ditatoriais e das Igrejas Ultraconservadoras, que adotam concepções análogas ao período em que vigorou a “santa inquisição”.
Esta fase pode ser caracterizada não apenas como mais uma etapa do desenvolvimento capitalista, mas, sim, como um regime instaurado a exemplo do que pretenderam o fascismo e o nazismo sintetizados na expressão de Thatcher, quando afirmou: “there is no alternative”. Isto significa a expressão acabada do pensamento único com a interdição do dissenso e a desqualificação de qualquer interlocutor que se coloque em rota de colisão com o pensamento hegemonicamente imposto.
Entretanto, apesar da magnitude do ataque às forças progressistas, a história não tem fim e a contradição a impulsiona em direção a processos não definidos previamente, ou seja, o imponderável tem forte influência sobre a história da humanidade. Ainda assim, o que se coloca efetivamente como desafio para as gerações atuais de educadores é, em última instância, lutar pela emancipação humana, por meio do trabalho pedagógico e político cotidiano, realizando a práxis revolucionária desde o nível micro de atuação na transformação da sociedade.
Vislumbrando essa possibilidade histórica da luta pela emancipação humana, finaliza-se esta reflexão, levantando-se novas questões fundamentais para a
continuidade do esforço teórico-prático dos coletivos de militantes. Pois, sem este tudo poderá permanecer como está, ou pode inclusive alcançar níveis ainda mais agudos de desconstrução das sociedades, comprometendo a própria existência da humanidade na sua forma de manifestação mais avançada, que alcançamos até o presente, após muitos séculos de evolução humana de caráter físico e psíquico permeado por diferenças e contradições.
Dadas essas circunstâncias históricas, que enlaçam elementos de um passado remoto e de um presente recente, em que se torna visível a linha de continuidade da história da exploração dos seres humanos, sob as formas mais violentas e, também, sob formas as mais edulcoradas que já se pôde ver, apresentam-se algumas questões fundamentais: De que modo poder-se-á garantir às futuras gerações as possiblidades de superação desse processo contínuo e efetivo de encolhimento da condição humana? Quais as possibilidades de se resistir ao processo de reducionismo da perspectiva de desenvolvimento humano como efeito da liquefação das necessidades humanas no mercado capitalista?
Referências
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V.18, Nº 35 - 2020 (jan -abr) ISSN: 1808-799 X
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v18i35.40493
Carlos Lucena2
Este artigo tem como objetivo analisar a greve dos petroleiros de 1995. Recupera os embates que construíram a greve, seu desenvolvimento e importância para a luta dos trabalhadores no Brasil. Demonstra as formas opressivas utilizadas pelo Governo Federal, o corpo diretivo da Petrobras e a mídia brasileira para desestabilizar o movimento paredista. Recupera as memórias dos petroleiros e sua compreensão sobre a maior greve dos anos 90 no Brasil.
Resumen
Este artículo tiene como objetivo analizar la huelga de petroleros de 1995. Recupera los enfrentamientos que construyeron la huelga, su desarrollo y su importancia para la lucha de los trabajadores en Brasil. Demuestra las formas opresivas utilizadas por el Gobierno Federal, el órgano rector de Petrobras y los medios de comunicación brasileños para desestabilizar el movimiento del muro. Recupera los recuerdos de los petroleros y su comprensión de la huelga más grande de la década de 1990 en Brasil.
Palabras llave: Petrobras; Petroleros; Huelgas; Neoliberalismo; Privatización
Abstract
This article aims to analyze the 1995 oil tanker strike. It recovers the clashes that built the strike, its development and its importance for the workers' struggle in Brazil. It demonstrates the oppressive forms used by the Federal Government, Petrobras's governing body, and the Brazilian media to destabilize the wall movement. It recovers the memories of the oil tankers and their understanding of the biggest strike of the 1990 in Brazil.
Keywords: Petrobras; Oil tankers; Strikes; Neoliberalism; Privatization
1 Artigo recebido em 14/10/2019. Primeira avaliação em 25/10/2019. Segunda avaliação em 22/11/2019. Aprovado em 06/12/2019. Publicado em 23/01/2020.
2 Pós-doutor em Educação pela Ufscar. Doutor em Filosofia e História da Educação pela Unicamp. Professor Permanente do PPGED/Faced/UFU, linha de pesquisa Trabalho, Sociedade e Educação. Bolsista de Produtividade em Pesquisa 2 do CNPQ. E-mail: carlos.lucena@ufu.br Orcid: https://orcid.org/0000-0003-4383-6812
Introdução
É um grande desafio retomar as discussões sobre a greve dos petroleiros de 1995, ocorrida entre 3 de maio e 3 de junho de 19953, sobre a qual desenvolvemos nossa dissertação de mestrado em educação, defendida em 1996, na Pontifícia Universidade Católica de Campinas. A dissertação foi intitulada como “Aprendendo na luta: a história do sindicato dos petroleiros de Campinas e Paulínia” e publicada posteriormente como livro, com título homônimo, pela Editora Publisher Brasil. Soma- se também às reflexões o fato de que, nesta greve participei como ator, uma vez que era operador de processamento da Refinaria de Paulínia e, posteriormente, a investiguei como objeto de pesquisa.
Este artigo é um primeiro esboço de um livro que está em desenvolvimento, com previsão de publicação para o final de 2020, no qual submetemos a análise da greve dos petroleiros às contradições nacionais e internacionais. Os bombásticos anos 90 do século XX potencializaram disputas e mudanças econômicas no Brasil, cuja compreensão só é possível a partir da análise da inserção do país no conturbado movimento mundial.
Nossas análises tecem considerações teóricas das motivações da greve a partir da recuperação dos processos de reestruturação produtiva em âmbito mundial, sua implantação na Petrobras e seus impactos na venda da força de trabalho dos petroleiros. Partimos do pressuposto que o processo de reestruturação se explica em um conjunto de mediações expressas nos processos de financeirização das economias e na mundialização do capital.
Esse esforço teórico nos remete à discussão do Livro Terceiro de O Capital, escrito por Marx, e às formas de obtenção de mais-valia absoluta e relativa em sua dinâmica de reprodução do capital composto de juros. Esta afirmação nos permiti analisar a greve como processo de resistência a um amplo processo de subordinação da periferia ao centro do capitalismo, manifesto em privatizações e quebra de monopólios estatais. Isso possibilita, ainda, remetê-la a um nível de mediação expresso nas formas de composição – estatal e privada – do capital nos Bancos
3 O indicativo para o fim da greve pela FUP ocorreu no dia 2 de junho de 1995. Porém, consideramos o dia 03 de junho de 1995 como encerramento da greve, pois foi marcada pela saída dos trabalhadores da Refinaria Presidente Bernardes em Cubatão, que havia sido ocupada pelos petroleiros. Os trabalhadores saíram em conjunto da refinaria cantando o Hino Nacional Brasileiro.
Centrais e como a decomposição de uma das partes potencializa a instauração de crises econômicas em caráter global que atingem tanto o centro como a periferia do capitalismo4.
Contudo, a busca deste nível de mediações tem como condição o desenvolvimento de um processo investigativo centrado, à priori, na recuperação do processo empírico e suas especificidades, que constituem a materialidade investigada enquanto processo humano, real e não arbitrário. Ao fazermos esta afirmação, partimos do princípio investigativo apontado por Marx em “A ideologia Alemã”, no qual:
Os pressupostos de que partimos não são arbitrários, nem dogmas. São pressupostos reais de que não se pode fazer abstração a não ser na imaginação. São os indivíduos reais, sua ação e suas condições materiais de vida, tanto aquelas por eles já encontradas, como as produzidas por sua própria ação. Estes pressupostos são, pois, verificáveis por via puramente empírica. O primeiro pressuposto de toda história humana é naturalmente a existência de indivíduos humanos vivos […] O fato, portanto, é o seguinte: indivíduos determinados, que como produtores atuam de um modo também determinado, estabelecem entre si relações sociais e políticas determinadas. É preciso que, em cada caso particular, a observação empírica coloque necessariamente em relevo – empiricamente e sem qualquer especulação ou mistificação – a conexão entre a estrutura social e política e a produção. A estrutura social e o Estado nascem constantemente do processo de vida de indivíduos determinados, mas destes indivíduos não como podem aparecer na imaginação própria ou alheia, mas tal como realmente são, isto é, tal e como atuam e produzem materialmente e, portanto, tal e como desenvolvem suas atividades sob determinados limites, pressupostos e condições materiais, independentes de sua vontade. (MARX, 2007: 86-87).
Tendo como referência este pressuposto teórico de uma pesquisa em desenvolvimento, abordaremos neste artigo a dimensão material expressa na greve em si, seus bastidores políticos, as estratégias sindicais e as interpretações dos petroleiros.
A greve dos petroleiros, de 1995, constituiu-se no maior movimento de resistência e enfrentamento dos trabalhadores da década de 90 do século XX no
4 Sugerimos a leitura de nosso livro Tempos de destruição: educação, trabalho e indústria do petróleo no Brasil. Campinas: Autores Associados; Uberlândia: EDUFU, 2004. Sugerimos também a leitura de Carlos Lucena; Lurdes Lucena; Robson Luiz de França. A geopolítica internacional do petróleo e o golpe parlamentar no Brasil. In: Carlos Lucena; Fabiane Santana Previtali, Lurdes Lucena. A crise da democracia brasileira. Uberlândia: Navegando Publicações, 2016. Neste livro temos um capítulo que discute a geopolítica internacional do petróleo a partir da mundialização do capital. Disponível em:
<https://www.editoranavegando.com/copia-politicas-educacionais- >.
Brasil. Seu contexto histórico se insere em um amplo movimento conservador manifesto pelo então eleito governo de Fernando Henrique Cardoso, do Partido da Social Democracia Brasileira – PSDB – que apostou na quebra dos monopólios estatais e na privatização das empresas estatais como forma de estabilizar a economia nacional em consonância aos trâmites propostos pelo Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional.
O Brasil viveu um amplo processo de transição política. O impeachment de Fernando Collor de Melo e sua sucessão pelo então vice-presidente Itamar Franco, potencializou mudanças econômicas no país. O governo de Itamar teve início sustentado em uma dupla dimensão política. Por um lado, a retomada de um discurso político centrado no nacionalismo populista5, por outro lado, a adoção de políticas de estabilização econômica, expressas pelo Plano Real, que negavam os princípios deste mesmo nacionalismo.
A América Latina passava por um expressivo processo de reestruturação econômica e social fundamentada pelos princípios do neoliberalismo6. A criação do Plano Brady nos anos 80 do século XX, voltado à renegociação do pagamento da dívida externa através da emissão de títulos internacionais e dolarização da economia, fundamentou pressupostos monetaristas, fornecendo elementos para a criação de planos de estabilização econômica tal qual o Plano Real. O Brasil foi o último país a assinar este acordo no ano de 1994, resultado das negociações em curso desde a eleição do Governo Collor7.
A greve dos petroleiros, de 1995, se inseriu nessa complexa conjuntura nacional e internacional na qual estava em disputa o crescimento dos interesses monetaristas no Brasil e a luta dos trabalhadores em resistência a este processo. Um período marcado pela alta popularidade do governo FHC, sustentado pelos resultados da estabilização econômica em detrimento do processo hiperinflacionário que marcou os anos 80 e início dos 90 do século XX no Brasil.
5 O incentivo governamental para a volta da produção do automóvel Fusca exemplifica esta afirmação. 6 Sugerimos a leitura de nosso livro: Carlos Lucena. Hayek, liberalismo e formação humana. Campinas: Alínea, 2014
7 Sugerimos a leitura do livro: Antonia Costa Andrade; Carlos Lucena, – Os governos FHC e Lula e a ressignificação do neodesenvolvimentismo: o REUNI – Uberlândia: Navegando Publicações, 2017. Disponível em: < https://www.editoranavegando.com/livro-antonia>.
A campanha salarial dos petroleiros foi marcada por três greves, sendo duas em setembro e novembro de 1994, e uma em maio de 1995, a maior, até então, de toda a história do movimento sindical petroleiro. Em agosto de 1994, a Federação Única dos Petroleiros (FUP) entregou sua pauta de reivindicações à direção da Petrobras. Entre suas reivindicações, destacavam-se a reposição salarial de 108,36%, produtividade de 10%, pagamento dos passivos trabalhistas, reposição mensal da inflação pelo Dieese, anistia e reposição do efetivo de trabalhadores nas unidades de exploração e refino. Em contrapartida, a empresa apresentou uma contraproposta de reajuste próximo aos 13%, índice oficial determinado pelo governo federal, que não repunha as perdas salariais ocorridas até então.
O antagonismo das propostas proporcionou um longo processo de negociação entre as partes, centrado em heterogêneas percepções sobre os rumos econômicos do Brasil. Os petroleiros, representados pela Federação Única dos Petroleiros – FUP, afirmavam que o Plano Real tinha fins “eleitoreiros” objetivando a vitória eleitoral de Fernando Henrique Cardoso (FHC) à Presidência da República. Entendiam o Plano Real como uma estratégia política conjuntural. A direção da estatal apontava problemas de caixa na Petrobras e se dizia impedida de avançar nas negociações por imposição governamental.
A ampla divulgação midiática sobre o risco de perda da estabilidade econômica com a queda do Plano Real colocou parcela considerável da população contra os petroleiros e suas reivindicações. O fomento oriundo do governo Collor dos funcionários públicos e trabalhadores das empresas estatais como “parasitas” da República, em nítida concordância com os fundamentos hayekianos expressos em o “Caminho da Servidão”, estavam presentes na sociedade em um crescente processo de alienação política e social. Estava em disputa a cooptação da população para a quebra do monopólio estatal do petróleo, processo este que não foi compreendido em sua totalidade pelos petroleiros e seus representantes, que eram atraídos, gradativamente, para uma armadilha política com severos desdobramentos para o Brasil no futuro.
As negociações não avançaram e, diante do impasse, foi realizada uma plenária na cidade do Rio de Janeiro, no mês de setembro de 1994, onde as principais
lideranças decidiram decretar uma greve por tempo indeterminado a partir do dia vinte e sete do mesmo mês.
“Começamos as negociações esperando que elas seriam difíceis, mas não esperávamos que elas poderiam ir tão longe. Nas negociações, a Petrobras se dizia de mãos atadas, entendendo que estava um clima de ingerenciabilidade. O clima de insatisfação era muito grande, e eles passavam isso para nós na mesa de negociações, e diziam que apesar das negociações não podiam fazer nada, porque o governo não permitia. A partir de um determinado momento, quando já não poderia haver maiores avanços, ela tentava manter as cláusulas sociais, e isso na visão da empresa era uma questão fora do comum, e na minha posição pessoal, eu acho que era mesmo, pois o projeto que está sendo implantado é para retirar todos as conquistas sociais dos trabalhadores [...]“(Entrevista realizada por este autor com Sérgio Pereira dos Santos, Dirigente sindical do Sindipetro Campinas e Paulínia, em 17 jul. 1995)
A paralisação se concretizou em nível nacional, atingindo 80% de todo o efetivo da Petrobras. Dois dias após o início do movimento grevista, as principais refinarias interromperam toda a produção de derivados de petróleo. Com o incremento da greve, as lideranças petroleiras buscaram articulações políticas que os favorecessem nas negociações com a direção da estatal e o governo. Contudo, o máximo que conseguiram foi o IPC-R8 de 13,54%. Os petroleiros haviam perdido quase 20% de reposição salarial com a implantação do Plano Real, e, como resultado das negociações e, em estratégia política para desmobilizar os trabalhadores, os dirigentes da estatal ofereciam uma proposta de reposição e a retiravam em seguida, sinalizando para um índice menor.
Nesse primeiro dia já houve conciliação no TST, e na conciliação ele já queria impor o acordo de produção mínima de 30%, aí enrolamos ele na mesa por quase duas horas, que queríamos negociar com a Petrobrás e o Ministério Público. Ele queria fixar, porque além disso, estabeleceria multa pelo não cumprimento da Lei Judicial, então polemizou [...]“ (Entrevista realizada por este autor com Antônio Carlos Spis, Presidente da Federação Única dos Petroleiros, em 17 jul. 1995)
Esta estratégia de negociação visava limitar as reivindicações dos trabalhadores aos patamares empresariais, criando o sentimento de perda constante de um índice de reajuste que não pertencia a sua reivindicação original.
8 Índice de Preço ao Consumidor calculado pelo IBGE.
A greve se desenvolvia paralelamente à disputa eleitoral para a Presidência da República no Brasil. Um amplo processo de desmoralização dos petroleiros foi desencadeado por parcela da mídia. Os índices apresentados pelo Plano Real referentes à estabilidade econômica e controle da inflação sustentavam os resultados das pesquisas de intenção de voto, que apontavam para a vitória de FHC no primeiro turno das eleições. A paralisação foi divulgada como uma iniciativa desesperada das lideranças sindicais para favorecer o então candidato do Partido dos Trabalhadores – PT – Luiz Inácio Lula da Silva. O discurso político midiático se sustentou na afirmação de que os petroleiros adotavam uma estratégia corporativista orquestrada pelo PT, voltada a desestabilizar o Plano Real e prejudicar toda a população brasileira.
Em meio a intensos ataques nos jornais e telejornais, o Tribunal Superior do Trabalho – TST, após três dias de greve, julgou o movimento abusivo, retirando, do acordo coletivo, conquistas históricas dos petroleiros, como a garantia de que a estatal não promoveria dispensas sem justa causa, a redução do índice percentual de dirigentes sindicais com salários pagos pela empresa e a exigência de imediato retorno ao trabalho sob pena de demissão sumária por justa causa dos petroleiros em greve.
Como resposta à sentença proferida por esse julgamento, entendido como ofensivo aos trabalhadores, os petroleiros de todo o país decidiram pela continuidade da greve, desafiando a decisão do TST, uma ação que implicava o risco de demissão sumária de parcela dos trabalhadores. Na prática, os dirigentes sindicais buscaram canais de negociação sustentados pela composição heterogênea dos componentes do Congresso Nacional. Os trabalhadores entendiam que o processo eleitoral em curso poderia favorecê-los, pois tanto a direção da empresa como o governo federal hesitariam em reprimir o movimento, e com isso colocar em risco o resultado do processo sucessório que lhes era favorável.
A redução dos estoques de derivados de petróleo com possibilidade de desabastecimento favoreceu a saída negociada da greve. Por intermédio de Vicentinho, então presidente da Central Única dos Trabalhadores, foi agendada uma reunião, por indicação do presidente Itamar Franco, para o dia 5 de outubro de 1994, à qual, além dele, participaram 4 ministros de Estado, sendo esses, Delcídio Gomes (Minas e Energia), Mauro Durante (Secretário Chefe da Presidência), Marcelo Pimentel (Trabalho) e Ciro Gomes (Fazenda). Como resultado das negociações que
puseram fim à greve, foi feito um acordo que se chamou “Entendimento de Juiz de Fora”, garantindo a não realização de demissões e o pagamento, de forma parcelada, dos passivos econômicos oriundos do Plano Bresser. O termo de entendimento garantia a anistia aos dirigentes punidos no governo Collor, a criação de uma comissão para discutir os passivos trabalhistas e o pagamento das horas extras turno decorrente da implantação do turno de seis horas na Constituição de 1988 em vinte e cinco parcelas e nova negociação das cláusulas sociais.
“O Itamar estava com uma lista de demissões embaixo do braço, e eu falei para ele que se puxasse a lista, não iria negociar. Aí ele falou que ninguém queria destruir o sindicato. Tem que ter respeito à greve. A gente começou a conversar, que retomaria as discussões com a empresa, inclusive das cláusulas econômicas. Suspendemos a greve no dia seis de outubro, a categoria acompanhou essa suspensão sem problemas, porque na época, a gente já não tinha na greve São José, Espírito Santo e Rio Grande do Sul. Ela não estava fortalecida para uma continuidade de enfrentamento. Era um bom acordo, não teve assinatura, segundo o Presidente, ele tinha fé pública, acabaria a reunião, nós falaríamos com a imprensa, isto aconteceu, teve uma coletiva com a imprensa depois da reunião [...]“ (Entrevista realizada por este autor com Antônio Carlos Spis, Presidente da Federação Única dos Petroleiros, em 17 jul. 1995)
Contudo, após nove dias do término da greve, surgiram rumores que a direção da Petrobras não cumpriria o acordo em virtude de não ter participado das negociações. A partir daí, iniciou-se uma nova mobilização das bases e pressão da direção da FUP para o seu cumprimento. Com a ameaça de uma nova greve, o Governo Federal recuou, propondo um acordo intermediado pelo Ministro Delcídio Gomes, no dia dez de novembro de 1994, que garantia o pagamento dos passivos do Plano Bresser em duas parcelas, sendo a primeira em dezembro de 1994, e a outra em janeiro de 1995. Propôs a conversibilidade do adiantamento do 13º salário pela URV9 do dia trinta de junho de 1994, significando 80% de reajuste salarial e reintegração dos itens de pauta cortados pelo TST.
“Aí deu uma polêmica, em uma destas reuniões que nós conversamos com o Ministério do Trabalho, com o Pimentel e depois com o Ministério das Minas e Energia, fomos para o Ministério com o Delcídio, aí apareceu o Beni Veras. A reunião começou as nove horas da manhã, terminou as duas horas da manhã do dia dez, aí saiu o acordo chamado termo de acordo, que assinou eu e Delcídio, o
9 Unidade Real de Valor
Ministério das Minas e Energia assina pela Petrobras, e o Pimentel. Como ela foi até as duas da manhã, não estava mais presente, mas ele participava da redação das cláusulas pelo telefone. Uma cláusula ligava para o Ciro, outra cláusula para o Marcelo Pimentel. Eles participaram da elaboração deste acordo, quem datilografou este acordo foi o advogado da Petrobras e o Clotário, aí assinaram e não houve greve [...]“ (Entrevista realizada por este autor com Antônio Carlos Spis, Presidente da Federação Única dos Petroleiros, em 17 jul. 1995)
O processo eleitoral chegou ao final com a vitória de FHC do PSDB em primeiro turno para a presidência da República. Esta vitória foi acompanhada pela eleição da maior parte dos Governadores de estado pelos partidos aliados e a maioria no Congresso Nacional. Com a composição de um novo corpo diretivo em âmbito nacional, a relação política com os petroleiros se acirrou.
Nos bastidores governamentais surgiram rumores que o governo federal não cumpriria o acordo que ele mesmo propusera. A argumentação era que o acordo assinado não era válido, pois um dos Ministros de Estado não o havia assinado. Ao mesmo tempo, o TST revogou o enunciado que garantia como perdas salariais, os passivos do Plano Bresser. Os ministros da Fazenda, Ciro Gomes, e do Planejamento, Beni Veras, pronunciaram publicamente que não aceitariam o acordo final negociado com os petroleiros. O argumento era que se o governo federal garantisse aos petroleiros a reposição das perdas passadas e, principalmente, a atualização pela URV do dia 30 de junho da parcela de antecipação do 13º salário, todas as estatais reivindicariam o mesmo tratamento.
“As negociações se deram até a madrugada, e o Marcelo Pimentel saiu antes do término por problemas familiares. Mas na verdade, ele não queria se comprometer e assinar o que estava sendo discutido lá. Pois na verdade, ela favorecia aos trabalhadores, pois eles estavam dando passivos trabalhistas, era uma alternativa. O Delcídio Gomes concordou com isso, pois estava dando dois salários sem greve, então era um acordo muito bom. O Marcelo Pimentel percebeu isso, então ele pediu para sair, e só por isso não assinou, porque senão teria assinado. Quando no dia seguinte, nós levamos o acordo para ele assinar, ele disse que a poeira havia levantado, que estava meio assim com a questão do Plano Bresser. Então eu assino daqui uns quinze dias, não venha assim, que eu não vou assinar não. Na verdade, ele deve ter feito contato com a equipe econômica e eles disseram para cancelar“. (Entrevista realizada por este autor com Sérgio Pereira dos Santos. Dirigente sindical do Sindicato dos Petroleiros de Campinas e Paulínia em 17 jul. 1995)
A quebra do acordo foi imediata. Como resposta, os petroleiros iniciaram uma nova greve em vinte e três de outubro de 1994. Dois dias depois, horas antes da reunião de conciliação no TST em Brasília, a direção da Petrobras apresentou uma nova contraproposta. A assinatura de um acordo visando um aumento nas faixas salariais (referências utilizadas para os cargos exercidos e tempo na função), que garantia em média de 12 a 18% de reposição salarial, em troca dos outros benefícios econômicos propostos no acordo anterior. A mobilização não era grande e o acordo de interníveis interessava aos trabalhadores.
“Nós temos uma avaliação crítica que a gente se precipitou um pouco, não deveria ter pego o protocolo, porque durante a conciliação, eu recebi um telefonema que estava sendo feito o acordo. No meu celular o Rennó10 falou com o cara da empresa. Nós solicitamos a suspensão da audiência para pegar a cópia deste documento pelo Fax, para ver se dava para aceitar ou não. Aí, de comum acordo, Petrobras e trabalhadores suspenderam a audiência de conciliação devido a possibilidade de acordo“. (Entrevista realizada por este autor com Antônio Carlos Spis, Presidente da Federação Única dos Petroleiros, em 17 jul. 1995)
Os trabalhadores avaliaram que passadas as eleições, mantendo uma greve que não tinha tanta mobilização, o TST agiria com truculência contra o movimento. Por outro lado, existia um acordo assinado pela direção da empresa, que de certa forma favorecia a ambos os lados, pois, por um lado, a Petrobras se assumia como ator na negociação e, por outro lado, os petroleiros obteriam uma vitória política ao “desconsiderar” as decisões do TST.
Contudo, o acordo proposto não foi cumprido. O governo federal provavelmente se arrependera de intermediar publicamente as negociações com os petroleiros. A quebra de acordo, sucedido pela proposta de outro que não viria a ser cumprido, ação que se repetiu nas negociações com os trabalhadores das demais Empresas Estatais Brasileiras, constituiu-se em uma ação para ganhar tempo para o início do novo governo e desgastar e desmobilizar os petroleiros. O mandato de Itamar estava no final e suas promessas não teriam como ser cobradas. Estavam colocados todos os elementos para a construção do maior movimento paredista da década de 1990 no Brasil, a greve dos petroleiros de 1995.
10 Joel Mendes Rennó, Presidente da Petrobrás entre 1992 e 1999.
Com a definição da nova data para a paralisação, três de maio de 1995, as expectativas dos petroleiros em nível nacional eram heterogêneas. Uma parcela entendia que ela duraria poucos dias, resolvendo-se o impasse através da negociação. Outra, que a greve poderia ser longa, transformando-se em uma queda de braço com o Governo Federal fortalecido pela vitória nas eleições e a efetividade do Plano Real. Ao mesmo tempo, as lideranças petroleiras negociavam no interior da Central Única dos Trabalhadores a construção de uma greve unificada que fizesse frente a conjuntura existente. A união de diferentes categorias profissionais fortaleceria o movimento paredista, aumentando o poder de barganha dos trabalhadores.
As principais reivindicações apresentadas à direção da Petrobras foram o cumprimento do acordo assinado em vinte e cinco de novembro de noventa e quatro, reposição das perdas salariais pelo índice do custo de vida do Dieese (setembro de noventa e quatro a abril de noventa e cinco) equivalente a 26,63%, reintegração de todos os demitidos que participaram da greve anterior, flexibilização das normas e multifunções, contra o desconto dos dias parados por participação em movimentos sindicais e a recomposição de efetivos através de concurso público.
A negativa da direção da empresa em negociar os pontos citados no parágrafo anterior proporcionou o início da paralisação, à exceção de Manaus e Minas Gerais. Os petroleiros que estavam nos turnos de trabalho pararam de se alimentar e dormir, como forma de forçar as gerências locais a assumir a parada da produção. Esta ação dos trabalhadores se dava em virtude das refinarias, poços de exploração e plataformas marítimas se enquadrarem como setor essencial no Brasil. Caso parassem a produção, os petroleiros em serviço ficariam expostos a possíveis retaliações da direção da empresa.
Com o início da paralisação, o TST determinou que as unidades da Petrobras mantivessem uma produção mínima de 30% em todo o país, uma determinação difícil de ser cumprida em virtude da complexidade do processo produtivo. A manutenção de 30% nos serviços essenciais foi criada inicialmente para as paralisações no transporte coletivo para garantir minimamente o transporte da população. Na indústria do Petróleo, isso não é tão simples assim. Por razões técnicas, uma unidade de
processo não consegue funcionar com 30% da capacidade produtiva, e muito menos quanto ao número de pessoal para operá-la. Sem a existência de uma lei específica, que determinasse o que é produção mínima nessa atividade, ambas as partes não chegavam a um acordo. A direção da Estatal propôs que as unidades deveriam funcionar normalmente, operadas por um efetivo de funcionários superior ao habitual. Os dirigentes sindicais afirmavam que as refinarias deveriam anunciar o volume dos seus estoques de combustíveis, paralisando a produção e bombeando uma cota mínima de derivados para garantir o abastecimento da população e dos Hospitais. A produção só deveria ser retomada mediante a comprovação pela direção da Petrobras de baixos estoques de combustíveis.
Sem acordo entre as partes, dois dias após o início da greve, toda a produção das unidades da Petrobras foi paralisada, visto que os operadores de refinaria estavam sem condições físicas para exercer suas atividades.
A greve crescia com a adesão dos eletricitários e parcela do funcionalismo federal. Ao mesmo tempo, teve início uma forte propaganda midiática contra os petroleiros. Além de inimigos do Plano Real, foram caracterizados como instrumentos da CUT e do PT para acabar com a reforma da Constituição e a aprovação do fim dos monopólios da União. A pauta de reivindicações e as quebras dos acordos assinados não eram divulgados pela mídia. O objetivo era caracterizar o monopólio estatal do petróleo como um privilégio restrito aos petroleiros, visando, com isso, conseguir apoio da população ao projeto neoliberal de abertura da economia ao capital internacional. Ao mesmo tempo, o anúncio constante da provável falta de gasolina e gás de cozinha fez crescer o pânico na população.
No dia seis de maio, com a realização da reunião de conciliação do TST, surgiram esperanças dos dirigentes para o final do impasse. Os advogados da Petrobras não realizaram uma boa defesa quanto a descaracterização do acordo e, mesmo sem um entendimento entre as partes, o Ministério Público emitiu um parecer considerando o acordo legal e a greve abusiva.
A adesão era grande em todas as unidades do país, quando cerca de trezentos petroleiros ocuparam a Refinaria Presidente Bernardes em Cubatão, assumindo o controle da produção. Em Paulínia foram demitidos dois funcionários, demissões estas que foram usadas para negociar a volta em operação de uma das unidades de produção de derivados, o que foi aceito pelo sindicato.
Com a definição da data do julgamento para três dias após a conciliação, a expectativa dos petroleiros era que o resultado fosse semelhante ao parecer do Ministério Público, o que não aconteceu. O Tribunal Superior do Trabalho julgou abusiva a greve dos petroleiros e considerou inválido o acordo trabalhista assinado em novembro entre o governo e a Federação Única dos Petroleiros. Determinou ainda a imediata volta ao trabalho, autorizando a demissão por justa causa dos grevistas, o desconto dos dias parados e fixou multa de cem mil reais por dia parado a cada um dos sindicatos que organizavam a greve. Entre os doze juízes do trabalho, em relação a abusividade, onze foram favoráveis e um contra e em relação ao acordo assinado, nove pela não validade e três para que fosse mantido.
“Nós fizemos um trabalho de bastidores, juiz por juiz, e nós percebemos que o julgamento iria ser político, e isso facilitou que o movimento continuasse forte. E no início, a gente conseguiu passar para a sociedade que tinha um acordo, deixando claro para a imprensa. A partir daí, a greve tomou um caráter político, pois o Fernando Henrique mostrou a sua face, burlando a Justiça, e fazendo tudo o que fosse necessário para impor uma derrota para a classe trabalhadora em geral. Até o presidente do TST, que na conciliação era favorável ao cumprimento do acordo, mas, na hora do julgamento, o Pazzianotto argumentou que a assinatura do Superintendente adjunto da empresa não tinha valor, o que era um absurdo, mudando até o voto do presidente“. (Entrevista realizada por este autor com Sérgio Pereira dos Santos dirigente sindical petroleiro do Sindipetro Campinas e Paulínia em 17 jul. 1995)
A reação foi imediata pela continuidade da greve ignorando a decisão do TST. A paralisação assumiu um caráter de contestação à política de FHC, colocando em cheque a “neutralidade“ do TST. Os petroleiros compreenderam que o TST era um instrumento político tendendo aos interesses do Estado e da burguesia nacional.
A revolta e indignação cresceu nas bases, bem como a crítica fomentada pela mídia na sociedade. Os petroleiros resistiam através da solidariedade11 à crescente
11 A propósito, destacamos que essa categoria profissional possuía características peculiares que a distinguiam dos trabalhadores de outros ramos produtivos. A periculosidade inerente à atividade, e as jornadas de turno que implicavam em uma redefinição da lógica do tempo colocando aos petroleiros uma concepção de dependência mútua que se misturava ao exercício das atividades laborais. Este entendimento se manifestava na construção das lutas sindicais. Um sólido trabalho de base construído por décadas pelos dirigentes sindicais mais experientes que formavam os mais novos, colocavam aos petroleiros uma noção de “honra” para a participação dos movimentos sindicais. Aquele que das greves se recusava a participar era entendido como um traidor da categoria, um pária no chão da fábrica que era desprezado por todos os outros trabalhadores. Ninguém lhe dirigia a palavra, todos se recusavam a fazer suas refeições próximos a ele. As condições de trabalho e sua periculosidade punham em risco a vida de um trabalhador, sendo o trabalho coletivo e a relação entre os petroleiros condição objetiva
pressão midiática, do governo federal e da direção da Petrobras. A repressão cresceu com a instauração de novas demissões. Dois dias após o julgamento foi divulgada a primeira lista, constando vinte e cinco demitidos, entre eles, Antônio Carlos Spis, coordenador da FUP. No dia seguinte, mais trinta e quatro demissões, sendo cinco petroleiros da Replan em Paulínia e, entre eles, três dirigentes sindicais. Ao mesmo tempo, a mídia intensificou os ataques à greve, anunciando, sistematicamente, a eminente falta de combustíveis.
As distribuidoras de gás de cozinha retiraram os caminhões das ruas, formando grandes filas para a obtenção do produto. Por sua vez, a direção da Petrobras não forneceu os números de estoque e o pânico do desabastecimento cresceu na população. Os sindicalistas desconfiaram desta manobra, mas não conseguiam espaço na imprensa para a denúncia. Em Santos, o prefeito David Capistrano, filiado ao Partido dos Trabalhadores, mandou realizar uma vistoria surpresa nas distribuidoras e constatou que não havia falta de gás de cozinha, determinando que os caminhões fossem às ruas. A propaganda governamental foi descoberta, sem, porém, quase nenhuma divulgação dos meios de comunicação.
O relatório do Tribunal de Contas da União posterior à greve comprovou que não houve desabastecimento, tal qual demonstra o enunciado a seguir:
”Quanto à distribuição, foi verificado que a queda nos volumes de derivados entregues às distribuidoras, com exceção da nafta, não foi superior a 16,5% no mês de maio, com tendência conforme dados preliminares obtidos, à normalização no mês seguinte. Em razão disso, observa o Grupo Auditor, percebe-se claramente que há indícios de que as distribuidoras retiveram produtos, especulativamente, principalmente o GLP (gás de cozinha) e a gasolina, pois a redução havida na distribuição não seria suficiente para causar os contratempos verificados nas grandes cidades, com a
em que um poderia salvar a vida do outro. O petroleiro que não participava da greve era visto como um “covarde” desprovido de “solidariedade”, um “pelego” que não tinha coragem de participar de uma greve, quanto mais salvar a vida de seu colega de trabalho. Logo, ele não era digno da amizade de ninguém.
No desenrolar da greve, no dia 15 de maio de 1995, ocorreu a inesperada morte de meu pai com 53 anos de idade. O desenlace foi uma surpresa, visto que ele não apresentava problema grave de saúde. Um derrame cerebral tirou sua vida em poucos minutos. Foi aí que vivenciei um dos maiores exemplos de solidariedade dos colegas e amigos que comigo estavam em greve. Como estava sem pagamento de salários e reservas econômicas, não tinha condições econômicas para realizar o seu funeral. Os petroleiros que estavam em greve em Paulínia arrecadaram o dinheiro para que eu pudesse comprar o caixão e dar entrada no túmulo. Por ocasião do velório havia mais de 1000 petroleiros ao meu lado, carregando bandeiras de diferentes partidos, principalmente do Partido dos Trabalhadores, algo que me comove até os dias atuais e que exemplifica que a solidariedade é possível nas mais difíceis situações.
população em busca desses produtos. “ (Processo de Auditoria nº TC- 008.237/95-6, do Tribunal de Contas da União)12
A greve se estendia ao décimo terceiro dia e as lideranças petroleiras buscavam canais de negociação para a solução do impasse. O Estado não mais negociava com os trabalhadores em greve e nem mesmo aceitou a intermediação da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) que se oferecera para intermediar as negociações.
Neste período, havia “[...] mais de trezentos mil trabalhadores grevistas em todo o país. Estão parados, trabalhadores de 25 universidades federais, telefônicos (PR/MS/Campinas/SP), trabalhadores da saúde e previdência de sete estados, bem como as escolas técnicas federais“. (Boletim O Petroleiro 07 jun. 1995)
Como a sentença do TST não foi unânime, a FUP entrou com um recurso, pedindo que o tribunal reconsiderasse sua decisão. Por mais contraditória que ela fosse, as lideranças acreditavam que a categoria tinha expectativas em relação ao TST, pois o mesmo poderia representar uma saída negociada para o impasse. Na realidade, existia uma negociação nos bastidores políticos para o fim da greve. Caso chegasse a um acordo, o Governo Federal apresentaria uma contraproposta que seria apresentada pelo TST como canal de negociação, evitando o seu desgaste político.
O número de paralisações aumentou, com os funcionários da Petrobras Distribuidora, empresa responsável pela distribuição de derivados de petróleo, aderindo a greve e reduzindo a oferta de combustíveis.
As lideranças governamentais agiam contraditoriamente. Por um lado, recuando diante da pressão dos ruralistas no Congresso ao não enviar um projeto de Lei com medidas para a agricultura, que afetavam o crédito e o renegociação das dívidas. Os ruralistas ameaçavam entrar em regime de obstrução das votações, colocando em ”perigo“ a votação da emenda do gás canalizado. Por outro, endurecia ainda mais as negociações, autorizando a empresa a fazer mais demissões.
A direção da Petrobras começou a emitir telegramas de “convocação de demissão“, determinando o horário de retorno ao trabalho, cujo não cumprimento
12 Fato que já era, inclusive, de conhecimento da própria Petrobrás, segundo admitiu três anos depois o superintendente de Recursos Humanos da empresa, José Lima Neto: “Não era de interesse da Petrobrás na época acionar as distribuidoras por terem sonegado o gás de cozinha”, informou em entrevista ao jornal do DCE da USP. Fonte: <https://www.cut.org.br/noticias/greve-historica-dos- petroleiros-completa-15-anos-3b60>. Acesso em: 29 nov. 2019.
acarretaria em automática demissão por justa causa. Aqueles que receberam o telegrama chegavam aflitos à sede do sindicato. A pressão familiar para o retorno ao trabalho era intensa e muitos buscavam o conforto dos colegas de trabalho para a continuidade no movimento. As cartas de demissão e os constantes telefonemas das gerências locais objetivavam afetar o convívio familiar e social, transformando-os em agentes que os pressionariam pela volta ao trabalho.
Ao mesmo tempo, o acordo que se negociava nos bastidores para o término do movimento paredista fracassara.
Logo no início da noite de terça-feira, o comando da 11a Brigada de Infantaria Blindada, com sede em Campinas, recebeu ordem do Comando Militar do Sudeste para desencadear a operação de ocupação da Refinaria de Paulínia. A ordem determinava que às 03 horas da manhã, o efetivo militar e os equipamentos deveriam estar entrando pelos portões da refinaria. Foi o tempo necessário para que o 28o Batalhão de Infantaria Blindada, uma das principais unidades da Brigada, convocasse os homens que a mais de uma semana estavam preparados para agir. (Jornal Correio Popular, 25 maio 1995)
Foram invadidas também a Recap em Mauá, a Revap em São José dos Campos e a Repar em Araucária no Paraná. Na Replan, em Paulínia, a força do exército contou com cerca de quinhentos soldados armados de metralhadoras e granadas de mão, quinze tanques de guerra, dezenove caminhões, dezessete jipes e cães treinados, que entraram na refinaria sob os olhares de quatro trabalhadores que faziam plantão na portaria principal em nome do sindicato quando da ocupação. Um longo debate ocorreu nos bastidores políticos petroleiros sobre a continuidade ou não da greve. Para a direção da FUP, a invasão das refinarias oportunizava encerrar o movimento com pretensa vitória política sobre o governo federal que seria acusado de antidemocrático e truculento. Esta era uma proposta que não era aceita pelos petroleiros, especialmente os de Cubatão que, como afirmamos, haviam tomado o controle da produção da refinaria. Luiz Inácio Lula da Silva fez um pronunciamento13 sinalizando para o término da greve, temendo o isolamento dos petroleiros, o que foi entendido como traição por parcela da categoria
profissional.
13 Entrevista de Lula ao Jornal Nacional da Rede Globo de Televisão sobre os desdobramentos da greve e os problemas que ela acarretava à população devido à falta de gás de cozinha.
Um delicado cenário político estava posto. Os petroleiros contavam com o apoio do MST e dos professores das universidades federais que também participavam da greve. A CUT não apontava para a convocação de uma greve geral de apoio à paralisação. A invasão do exército objetivava o fechamento de todo e qualquer canal de negociação. O Presidente da República afirmara publicamente que não intermediaria o conflito. O TST, que já havia julgado a greve abusiva e não reconhecido o acordo, em novo julgamento, dois dias após a ocupação militar, repetiu o resultado do anterior.
Apesar de toda a repressão, com os vencimentos zerados, os petroleiros, em desafio à segunda decisão do TST, decidiram pela continuidade da greve em uma grande assembleia. A estratégia foi a aposta no contato direto com a população nas ruas das cidades brasileiras. Em Campinas, as reações dos transeuntes eram diferenciadas. Uma minoria ficava perplexa quando conferiam o varal de contracheques com valores muito abaixo do que a imprensa estava divulgando. Por sua vez, a maioria comparava os vencimentos dos petroleiros com os seus, não entendendo os motivos da greve. Isso se explica no comparativo entre os salários dos petroleiros e dos transeuntes ali presentes, pertencentes a uma parcela de trabalhadores cujos vencimentos não ultrapassavam dois salários mínimos, inferior ao salário dos petroleiros.
[...] as pessoas passavam na rua, amassavam o papel que estávamos entregando e jogavam na gente. Vai trabalhar vagabundo. Em casa não tem gás de cozinha [...] (Entrevista realizada por este autor com Odir Rodrigues Amaral, operador de processamento da refinaria de Paulínia. Petroleiro em greve, em 18 jul. 1995)
As negociações prosseguiam em nível parlamentar sem apresentar resultados positivos aos petroleiros. A Polícia Federal iniciou os inquéritos para apurar se os sindicatos feriam o código penal. Ameaças de demissão e abandono de emprego surgiam no noticiário, visto que a paralisação se aproximava de trinta dias. O índice de retorno ao trabalho cresceu e algumas unidades voltaram a funcionar, diminuindo o ímpeto da greve e sua capacidade de mobilização. Com o refluxo de retorno ao trabalho e um documento assinado pelos parlamentares pela retomada das negociações, a FUP, no dia 02 de junho de 1995, indicou o término do movimento condicionado à retirada de todas as tropas militares das refinarias.
O término da greve potencializou ações e discursos políticos. Por um lado, a mídia divulgou a derrota total dos petroleiros e a vitória política do governo FHC, condição que o fortaleceria no Congresso Nacional para a aprovação da quebra do monopólio estatal do petróleo e a criação da Agência Nacional do Petróleo. Por outro lado, a própria CUT difundiu a derrota da greve e a destruição dos sindicatos dos petroleiros dada as multas impostas pelo TST.
O que nos chama a atenção foram os indícios que a greve dos petroleiros e o fracasso na conquista de suas reivindicações foram explorados por seguimentos dos próprios trabalhadores como exemplo concreto de que era impossível resistir ao avanço neoliberal. Nesta concepção, a única saída possível era a construção de alternativas de conciliação, condição essencial para uma possível vitória eleitoral no futuro. Esta estratégia potencializou a criação de uma espécie de estigma da destruição dos sindicatos petroleiros, o que na realidade não ocorreu. Os petroleiros construíram alternativas de resistência ao intenso processo repressivo que se seguiu após a greve. Os petroleiros demitidos tiveram seus salários mantidos pelo fundo de greve, transformando-se em dirigentes sindicais sustentados pela categoria profissional, elevando a representação e ação sindical dos trabalhadores. Ocorreu um forte trabalho político de bastidores que levou à readmissão de todos os demitidos durante a greve no ano de 2003. Todas as demissões, advertências, suspensões e punições foram suspensas.
A ação governamental de retenção das verbas sindicais através do confisco das mensalidades não ocorreu em sua totalidade. Os petroleiros sindicalizados passaram a depositar as suas mensalidades através dos fundos de greve, inviabilizando o seu confisco. Um ato que, por um lado, colocou o Sindicato na clandestinidade e, por outro, garantiu a sua própria sobrevivência. Logo, os sindicatos não foram inviabilizados ou destruídos economicamente, tal qual se divulgou na mídia e em setores críticos da sociedade. Da mesma forma, por anos, os petroleiros barraram e denunciaram os processos de reestruturação produtiva que estavam em curso na Estatal. Estas ações culminaram com as denúncias à priori das precárias condições de trabalho dos petroleiros, às quais, no início dos anos 2000, chegaram a uma morte a cada quinze dias e culminou com o acidente da Plataforma P-36 na Bacia de Campos14.
14 Em nosso livro “Tempos de destruição: educação, trabalho e indústria do petróleo no Brasil, demonstramos em detalhes os índices de mortalidade e o acidente na Plataforma P-36 de Petrobrás.
Existem questões ainda em aberto e que carecem ser investigadas sobre os desdobramentos da greve dos petroleiros de 1995. Sendo o discurso político midiático burguês sobre a derrota total dos petroleiros uma mensagem a todos os trabalhadores do Brasil que não mais deveriam resistir e/ou fazer greves em protesto aos ajustes neoliberais, por que ele foi difundido pela Central Única dos Trabalhadores – CUT – a todas as demais categorias profissionais? Quais os motivos do isolamento político dos petroleiros e os professores da Universidades Federais nos dias finais da greve e a não convocação por parte da CUT de uma greve geral em solidariedade aos grevistas? Estava em jogo a construção de uma alternativa política governamental sustentada na conciliação para o futuro que seria capitaneada por segmentos críticos? Qual o significado do pronunciamento de Lula relativo ao indicativo para o fim da greve após o último julgamento do TST que decretou a abusividade da greve? Um alerta sobre as consequências do isolamento da greve que poderia levar a dezenas de novas demissões, ou um ato de traição, tal qual entendeu parcela dos petroleiros em greve?
“Quando o Lula falou aquilo15, ele falou visualizando que quando o Presidente falou que não iria fazer o que o Itamar fez, o recado que ele passou foi o seguinte, não adianta vir o Vicentinho, não adianta vir ninguém, que eu não vou fazer reunião para resolver este problema, isto é problema deles. Eu não faço reuniões, este foi o recado. A gente entendeu isto, só que não dava para chegar na assembleia e dizer, olha não tem mais saída, só que era muito difícil, poderia ter uma influência dos parlamentares para uma saída para o impasse, não uma solução para o impasse, era diferente. Não tivemos solução até hoje, tivemos saída, foi isso que o Lula falou, ele falou isto para mim inclusive [...]“ (Entrevista realizada por este autor com Sílvio José Marques, dirigente sindical dos Sindicato dos Petroleiros de Campinas, em Paulínia, em 22 jul. 1995)
A greve dos petroleiros de 1995 representou o maior movimento de resistência dos trabalhadores ao neoliberalismo no Brasil, um movimento paredista que colocou essa categoria profissional e o MST como os principais atores de luta na década em questão.
ANDRADE, A. C.; LUCENA, C. Os governos FHC e Lula e a ressignificação do neodesenvolvimentismo: o REUNI – Uberlândia: Navegando Publicações, 2017.
15 Refere-se a uma entrevista de Lula ao Jornal Nacional sobre os desdobramentos da greve e os problemas que ela acarretava à população devido à falta de gás de cozinha.
BRASIL. Tribunal de Contas da União. Processo de Auditoria no TC-008.237/95-6, 1995.
LUCENA, C. Aprendendo na luta: a história do sindicato dos petroleiros de Campinas e Paulínia. 1996. 126f. Dissertação (Mestrado em Educação), Puccamp, Campinas, 1996.
. C. Aprendendo na luta: a história do sindicato dos petroleiros de Campinas e Paulínia. São Paulo: Publisher Brasil, 1996.
. Tempos de destruição: educação, trabalho e indústria do petróleo no Brasil. Campinas: Autores Associados; Uberlândia: EDUFU, 2004.
LUCENA, C.; LUCENA, L.; FRANÇA, R. L. de. A geopolítica internacional do petróleo e o golpe parlamentar no Brasil. In LUCENA, Carlos; PREVITALI, F. S., LUCENA, L. A crise da democracia brasileira. Uberlândia: Navegando Publicações, 2016.
HAYEK, F. O caminho da Servidão. SP: Ed. Globo, 1974.
MARX, K O Capital: crítica da economia política. Livro 3o Volume VI, tradução Reginaldo Sant’ Anna - 3. ed. - São Paulo: Ed. Nova Cultural, 1984.
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Jornal Correio Popular, Campinas. 25 maio 1995.
V.18, Nº 35 - 2020 (jan-abr) ISSN: 1808-799 X
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v18i35.40504
EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS E EDUCAÇÃO RURAL: CONTRIBUIÇÕES DO MATERIALISMO HISTÓRICO-DIALÉTICO1
Michelle Freitas Teixeira2
Neste artigo reflete-se sobre as contribuições do materialismo histórico-dialético para pesquisas no campo da educação, a partir do desvelamento das tramas históricas que se fazem presentes na realidade da EJA e da educação rural. Tendo como fundamento a compreensão da história como produção social – como processo real da vida humana em sociedade – desenvolve-se reflexões sobre: as contradições que envolvem a relação entre capital e trabalho; a disputa por diferentes projetos de educação para a classe trabalhadora rural e o caráter histórico da luta por hegemonia no cerne da estrutura do Estado em seu sentido ampliado.
En este artículo se refleja sobre las contribuciones del materialismo histórico-dialéctico para investigaciones en el campo de la educación, a partir del desvelamiento de las tramas históricas que se hacen presentes en la realidad de la EJA y de la educación rural. Teniendo como fundamento la comprensión de la história como producción social - como un proceso real de la vida humana en sociedad- se desarrollan reflexiones sobre: las contradicciones que envuelven la relación entre capital y trabajo; la disputa por diferentes proyectos de educación para la clase trabajadora rural y el carácter histórico de la lucha por hegemonía en el núcleo de la estructura del Estado en su sentido ampliado. Palabras clave: Materialismo histórico-dialéctico. Capitalismo. EJA. Educación Rural.
This article reflects on the contributions of historical-dialectical materialism to research in the field of education, from the unveiling of the historical plots that are present in the reality of EJA and rural education. Based on the understanding of history as a social production - as a real process of human life in society - we develop reflections on: the contradictions that involve the relationship between capital and labor; the struggle for different education projects for the rural working class, and the historical character of the struggle for hegemony at the heart of the state structure in its expanded sense.
1 Artigo recebido em 11/06/2019. Primeira avaliação em 29/18/2019. Segunda avaliação em 01/10/2019. Aprovado em 12/01/2020. Publicado em 23/01/2020.
Partindo da compreensão da história como produção social da vida humana, como processo no qual são forjadas as condições materiais de sociabilidade, o texto que segue apresenta reflexões sob a perspectiva do método materialista histórico - dialético, em torno de algumas categorias que – em diálogo com a tradição marxista
– consideramos fundamentais ao desenvolvimento de estudos e pesquisas no campo da EJA e da Educação Rural.
A rigor, inicialmente desenvolve-se algumas reflexões em torno do método materialista histórico-dialético e das contradições que envolvem a relação entre capital e trabalho. Em seguida, tece-se uma análise teórico-metodológica da concepção de Estado, a partir da matriz gramsciana, concebendo-o enquanto Estado Ampliado. Nesta mesma matriz, busca-se perscrutar a categoria hegemonia, compreendida à luz de Gramsci (2011, p. 268) enquanto controle político e cultural de um grupo social sobre toda a sociedade, e a importância deste conceito para o desvelamento das tramas que constituem o consenso e o controle das massas. Destacando-se, neste interim, o entendimento da sociedade civil enquanto terreno no qual se desenvolve a disputa por hegemonia, compreendida como parte fundamental na composição da estrutura do Estado.
Por fim, em linhas gerais, apresenta-se reflexões sobre a EJA e a Educação Rural enquanto modalidades de intervenção que garantem por meio do consenso, o controle da classe trabalhadora diante do projeto hegemônico do capitalismo agrário. Sem deixar de considerar no enredo, as disputas e a força da sociedade civil – enquanto instância constitutiva do Estado – na conquista de veredas para um projeto contra hegemônico articulado aos interesses da classe trabalhadora.
Partindo da crítica, busca-se desenvolver análises ancoradas em uma chave central: “o concreto é concreto porque é a síntese de muitas determinações, isto é, unidade do diverso” (MARX, 2008, p.260). Logo, parte-se da compreensão da Educação de Jovens e Adultos (EJA) e da Educação Rural como fenômenos históricos e socialmente determinados, compreendendo que as múltiplas determinações se fazem em um processo de disputa cincunscrito no terreno da coerção, do consenso e da luta por hegemonia. Analisamos, a partir deste entendimento, algumas categorias
que consideramos fundamentais para estudos e pesquisas sobre EJA e Educação Rural.
Antes disso, importa delimitar a nossa concordância com o pensamento de Leher (2018, p. 53), quando este desvela que “estamos num momento da luta de classes mundial em que é absolutamente fundamental retomarmos a preocupação da estratégia”. Logo, este trabalho propõe junto às reflexões sobre algumas categorias de análise marxistas, a ampliação do debate destas em articulação com o entendimento das contradições na realidade da EJA e da Educação Rural, historicamente forjadas pelo projeto do capital. Bem como, o levantamento de chaves para a análise coletiva da realidade, a fim de pensar caminhos estratégicos para a orientação tanto das nossas pesquisas, quanto da organização da classe trabalhadora e da luta contra-hegemônica.
Em tempos de “conhecimentos líquidos” e de valorização, no campo da pesquisa científica em educação, das “pluralidades e diversidades” como que independentes de uma totalidade real, concreta e contraditória, que as determinam que são por estas determinadas, assumimos a – muitas vezes questionada e apontada como ultrapassada – ousadia de ser professora e pesquisadora marxista e de buscar para nosso trabalho docente, estudos e pesquisas, fundamentação nos princípios do materialismo histórico-dialético. Sem com isso adotá-los de maneira acrítica, mas reconhecendo – conforme o próprio método prevê – os limites históricos e dialéticos que nos permitem questionar e movimentar as categorias de análise, compreendendo-as como “instrumentos essenciais à compreensão do real, como abstrações a adquirir concretude e a serem criticamente apropriadas no próprio processo de análise do movimento contraditório do real” (MARX, 2017; RUMMERT, 2000).
como
Sobre esta perspectiva, Gruppi reflete que o marxismo deve ser concebido
[...] um processo de construção teórica que acompanha o processo real; é uma crítica contínua do processo real e das teorizações anteriores, portanto critica também a si mesmo, suas próprias formulações e teorizações inadequadas. A não ser assim, transformar-
se-ia num dogma, numa filosofia especulativa no sentido tradicional e deixaria de ser marxismo (GRUPPI, 1980, p.70)
A ousadia de defender a crítica marxista na atualidade – bem como de apontar os riscos dos reducionismos das investigações científicas no campo da educação e da fragmentação, como analisa Fontes (2005, p.10), “acenada nos nossos dias como a forma final da vida humana” – aparece circunscrita, também, na gravidade deste tempo histórico de avanço da extrema direita no Brasil, com o advento do governo de Bolsonaro “lastreado centralmente em um anticomunismo primário, que considera todas as demais forças sociais diferentes de si mesmo como alvos de sua caça às bruxas” (FONTES, 2019, p.1). Uma realidade historicamente construída, cujas trincheiras de resistência no campo das teorias e dos vínculos destas com o questionamento do real e a organização da classe trabalhadora se fazem urgentes.
Demarca-se como elemento fundamental desta análise, o caráter classista da sociedade brasileira, amparado na condição de desigualdade social e de precariedade das políticas públicas voltadas para a classe trabalhadora, incluindo-se nesta lógica a precariedade da oferta de políticas de EJA. Compreendida, de maneira ampla, como práticas educativas escolares ou não escolares, a EJA caracteriza-se, também, enquanto modalidade de ensino voltada para jovens e adultos que não concluíram os estudos ou não tiveram acesso ao Ensino Fundamental e Médio na idade apropriada. Trata-se, portanto, de uma modalidade, que perpassa todos os níveis da Educação Básica, cuja materialidade encontra-se estreitamente relacionada às contradições que se apresentam no cerne da sociabilidade capitalista.
Logo, reconhece-se a EJA como expressão direta da desigualdade social, que garante à classe trabalhadora ao longo da história, um lugar de permanente precariedade, no que se refere à oferta de políticas educacionais. Condição esta, que revela para estudos e pesquisas no campo da educação, a centralidade do conceito de classe social, tratando-se de uma categoria de análise da realidade, que contribui com o entendimento das desigualdades econômico-sociais na sociedade capitalista, compreendida por Thompson (2018, p. 9) como “um fenômeno histórico, circunscrito nas relações humanas”. Portanto, não podemos entender classe a menos que a vejamos como “uma formação social e cultural, surgindo de processos que só podem ser estruturados quando eles mesmos operam durante um considerável período histórico” (THOMPSON, 2018, p.9). Sobre o tema, Badaró Mattos, relembra que
[...] o conceito de classe social surgiu em Marx e Engels como o centro de sua proposta para a análise das sociedades modernas. O ponto de partida dos autores era uma constatação política de que o proletariado constituía uma nova força política, que acreditavam, teria o papel preponderante na luta pela emancipação (MATTOS, 2012, p. 60)
Logo, o entendimento ao qual se busca articulação para a compreensão da lógica que circunscreve a existência de distintas classes sociais na contemporaneidade, não se situa apenas no reconhecimento da dominação instituída sob a égide do capitalismo, mas, no fato das relações de classe – determinadas em grande medida pelas relações de produção – estarem “diretamente relacionada à consciência de classe, à forma como as relações são tratadas em termos culturais” (THOMPSON, 2018, p. 10). Podendo, portanto, assumir um caráter emancipatório, conforme nos apontam Marx e Engels no conjunto de suas obras.
Trata-se, assim, da constatação da existência de um processo histórico de luta, de disputa – que ocorre, também, no nível cultural – e que por sua vez, não está expressa apenas na correlação de forças entre distintas classes, mas no interior destas. Demarcando o reconhecimento da existência de duas classes fundamentais
– a que representa o capital e a que representa os trabalhadores3 – sem desconsiderar,
[...] que as mudanças oriundas do processo de desenvolvimento das relações capitalistas, trazem dificuldades para conferir a este conceito sua representação clássica, estando este permeado de questões que emergem da especificidade das relações históricas (RUMMERT, 2000, p 15)
Com isso demarca-se que, investigar a educação de jovens e adultos da classe trabalhadora e a educação rural, sob a perspectiva do materialismo histórico-dialético requer – em diálogo com Kosik (2011, p. 13) – “um détour”, um mergulho na materialidade histórica e político-social, que permita alcançar a representação e o “conceito da coisa” em sua essência, inserida num processo de luta por hegemonia. Que, por sua vez, só é passível de compreensão aprofundada a partir de uma análise que considere as condições históricas da formação social e cultural, a totalidade que
3 Referindo-nos à classe trabalhadora, é fundamental o reconhecimento de que as transformações relativas aos novos padrões de acumulação repercutiram de forma intensa na sua constituição no Brasil, a partir de um processo multiforme e contraditório que gerou, de um lado, a fragmentação da classe e, de outro, sua cada vez maior complexificação. Tais alterações, porém, não abalaram as bases seculares de um sistema socioeconômico marcadamente gerador de desigualdades (RUMMERT, 2017, p. 153).
determina a consecução das políticas sociais e as estratégias hegemônicas impostas pela sociabilidade capitalista na reestruturação destas políticas.
Para tanto, neste artigo, parte-se da estreita relação entre a EJA e Educação Rural, considerando a materialidade de sua existência e, nesta, a precariedade das políticas educacionais ofertadas nos territórios rurais brasileiros. Dentre as consequências deste processo, destaca-se no campo brasileiro – em meio a outros problemas – os altos índices de distorção idade-série, imprimindo no campo brasileiro as marcas históricas das contradições educacionais na realidade da classe trabalhadora rural.
Desta forma, considerando a importância do desenvolvimento de estudos e pesquisas que investiguem o problema da EJA no campo, delimita-se como aspecto central da análise que ora se apresenta, a relação entre EJA e Educação Rural, partindo de uma compreensão que considera a existência de um processo de luta por diferentes projetos educacionais, no qual ambas encontram-se inseridas, reconhecendo a luta de classes e a luta por hegemonia enquanto traços importantes de suas histórias.
Como base elementar para o estudo da luta pela hegemonia no campo da EJA e da Educação Rural, demarca-se a importância da história como categoria teórica assentada na compreensão que possui essencialmente uma base terrestre, isto quer dizer que se apoia não na ideia, nem no conceito, mas sim nas classes sociais, nos indivíduos humanos reais, suas ações e condições concretas de vida e existência; “premissa à qual se chega por via empírica, apoiados rigorosamente nas ‘lentes’ da totalidade dialética” (MARX; ENGELS, 2007, p. 21). Reconhece-se, portanto, que é no processo histórico que se constituem as contradições circunscritas na sua materialidade. Logo, ressalta-se a necessidade de compreensão dos fenômenos sob uma perspectiva de totalidade, buscando a superação da fragmentação do objeto de pesquisa. A fim de evitar reducionismos e conduzir pesquisas comprometidas com
[...] o máximo de honestidade científica, de lealdade intelectual, de ausência de qualquer preconceito e apriorismo ou posição preconcebida, considerando períodos crítico-cronológicos, de modo que se possam estabelecer comparações válidas e não puramente mecânicas ou arbitrárias (GRAMSCI, 2015, p. 18)
Sob este prisma, reconhecendo o caráter histórico e classista da sociabilidade humana, a existência de um permanente processo de disputa por hegemonia,
apresenta-se como imperativa a necessidade de análise do Estado e das políticas públicas tomando-as enquanto resultado de embate entre frações de classe distintas, em disputa pela inscrição de seus projetos junto “as agências de Estado em seu sentido restrito” (MENDONÇA, 2007, p.16), no cerne das estruturas institucionais que sustentam os governos e suas políticas.
Para tanto, a fim de desvelar a correlação de forças circunscrita por distintos projetos de educação de jovens e adultos trabalhadores do campo ou da cidade, é fundamental demarcar o território político-econômico de análise, cuja materialidade histórico-dialética nos aponta, senão, para as tramas do capitalismo. Logo, para compreender os projetos políticos que ora se propõe perscrutar, é preciso analisá-los imersos nos condicionantes camaleônicos de um sistema que se constitui com base na expropriação da classe trabalhadora e na exploração do seu trabalho para a produção do lucro, seu ponto nodal.
Sendo importante desvelar inicialmente, o caráter essencial do trabalho para a sustentação do capitalismo, cuja produção de riqueza se apresenta estreitamente vinculada à necessidade, acima apontada, de existência de distintas classes sociais subsumidas a uma relação de dominação e exploração, em conformidade com os interesses das diferentes fases produtivas do capital. Tal entendimento foi circunscrito e profundamente analisado por Marx (2017), que nos aponta para o seguinte entendimento:
Abstraindo do valor de uso dos corpos-mercadorias, resta nelas uma única propriedade: a de serem produtos do trabalho. [...] Consideremos agora o resíduo dos produtos do trabalho. Deles não restou mais do que uma mesma objetividade fantasmagórica, uma simples massa amorfa de trabalho humano indiferenciado, de dispêndio de força de trabalho humana, que não leva em conta a forma desse dispêndio. Essas coisas representam apenas o fato de que em sua produção foi despendida força de trabalho humana, foi acumulado trabalho humano. Como cristais dessa substância social que lhes é comum, elas são valores – valores mercadorias. [...] Assim, um valor de uso ou um bem só possui valor porque nele está objetivado ou materializado o trabalho humano abstrato (p.116)
Marx demarca que, sem força de trabalho não há produção de riqueza. Portanto, a expropriação da classe trabalhadora é um fator historicamente imprescindível para a expansão capitalista – seja a expropriação dos meios de produção ou da cultura, cujas contradições geradas por ambas, refletem diretamente na Educação Rural e na EJA, em um duplo aspecto: na expropriação dos meios de
produção, marcantes nas condições de vida e trabalho da classe trabalhadora rural que detém apenas a força de trabalho como moeda de troca nos sistemas produtivos agrários e, no que se refere à expropriação cultural, na histórica negação de políticas educacionais que visem a ampliação do acesso à escolarização aos trabalhadores rurais.
Desta feita, reconhece-se que a base constitutiva do capitalismo é a existência de trabalhadores “livres” destituídos dos meios de produção e detentores apenas de sua própria força de trabalho. Bem como, destituídos do acesso à escolarização ou conformados por meio de processos educativos mercadologicamente definidos, a uma visão de mundo alcunhada sob os limites dos interesses do capital. Condição esta, que se faz fundamental ao processo histórico de subordinação da classe trabalhadora brasileira, seja ela urbana ou rural, cujas nuances serão analisadas em seguida.
Por hora – seguindo a intenção de “rastrear o nexo interno da matéria desta investigação”, conforme observa Marx no posfácio da segunda edição do Livro I do Capital – interessa:
[...] reconhecer a existência de transformações na vida contemporânea, bem como de repensar suas condições de surgimento e sua proximidade ou distância em face de fenômenos já existentes em outras sociedades ou em outros períodos (MARX apud FONTES, 2005, p. 19).
Neste sentido, o reconhecimento da expropriação da classe trabalhadora enquanto um fator essencial para a existência do capitalismo, bem como do caráter marcante deste processo na realidade campesina, nos remete à sua gênese analisada por Marx no capítulo 24, do Livro I do Capital, no qual descreve e analisa o processo de expropriação dos camponeses e a criação do proletariado servil, com o apoio de um aparato jurídico, garantindo condições para a estruturação e implementação do capitalismo. Para este, “a assim chamada acumulação primitiva não é, por conseguinte, mais do que o processo histórico de separação entre produtor e meio de produção, de expropriação” (MARX, 2017, p.786).
Aqui a história nos ampara, nos dá substância para a análise sobre a contemporaneidade, no entendimento do projeto do capitalismo agrário no período de avanço da contrarreforma capitalista neoliberal no Brasil4, no qual se destaca o
4 A utilização do conceito “contrarreforma” se deve ao convencimento de que o processo desencadeado a partir dos ajustes do Estado, no caso brasileiro a partir dos anos de 1990, na relação contraditória entre movimentos de restauração e renovação, o primeiro subordinou o segundo. A contrarreforma
acirramento da penetração do capitalismo empresarial nas relações produtivas do campo, alicerçadas na difusão do projeto do agronegócio5 e articuladas ao processo de reorganização da sociabilidade do capital – esta última diretamente relacionada ao campo da cultura, afetando a educação rural, afinal, “toda relação de hegemonia é uma relação necessariamente pedagógica” (GRAMSCI, 1987, p.37).
Como consequências desta contrarreforma, amplamente difundida no campo brasileiro, pode-se destacar algumas que nos remetem à permanência do processo de expropriação da classe trabalhadora camponesa, das quais destaca-se: difusão crescente do trabalho assalariado, precarização do emprego rural, expulsão de médios e pequenos produtores do setor, contínuas migrações campo-cidade, aumento da concentração de terra.
Neste contexto de expropriação, os trabalhadores rurais são indubitavelmente reduzidos a força de trabalho disponível para uma inclusão forçada6, no projeto produtivo do capital, vinculado ao agronegócio. Sobre este processo – aqui ampliado para a classe trabalhadora urbana e rural – Fontes (2005, p.24) destaca o evidenciamento desta inclusão no “processo de mercantilização da vida social e, em grande medida, a mercantilização da força de trabalho, tornando-se o assalariamento sua representação emblemática”.
O que por sua vez nos remete à análise de Marx (2017, p.796) sobre a acumulação primitiva – século XIX – quando os capitalistas burgueses transformaram o solo em artigo puramente comercial, ampliaram a superfície da grande exploração agrícola, aumentaram a oferta de proletariados livres, provenientes do campo. Levando-nos, a partir de uma análise crítico-cronológica, ao reconhecimento da perpetuação do processo de expropriação produtiva da classe trabalhadora, enquanto base fundamental para a sustentação do sistema capitalista – condição anteriormente
operada no país teve como pressupostos os princípios liberais eleitos pela agenda organizada a partir dos intelectuais coletivos do capital, entre os quais, o principal deles, ou mais influente nas políticas educacionais no Brasil, foi o Banco Mundial (LAMOSA, 2014, p. 66).
5 O agronegócio é concebido como a personificação das necessidades de reprodução do capitalismo, novo pacto político do conjunto do empresariado brasileiro em torno da definição de novas alternativas para o desenvolvimento (BRUNO, 2019, p. 150).
6 Recorremos ao conceito da Virgínia Fontes (2005, p.23), quando esta analisa que a generalização da mercantilização da sociedade, componente essencial da expansão capitalista, reduzia (ou simplesmente eliminava) a possibilidade de sobrevivência individual fora do mercado. Neste sentido, a exclusão, historicamente constituída e perpetuada – a impossibilidade de assegurar a subsistência – converter-se-ia na impossibilidade prática de escapar a esse processo. Essa inclusão forçada assegurava a própria sobrevivência do sistema, ao submeter e disciplinar a força de trabalho necessária à existência.
analisada como fundamental na constituição das contradições que permeiam a oferta de políticas de EJA e educação rural, ou a sua negação.
Caminhando em espiral, em busca das condições contemporâneas reconhece- se que:
[...] uma vez implantado, em sua “revolução contínua”, o capitalismo transforma-se por dentro, absorvendo sempre novas atividades, criando novas necessidades, multiplicando processos de produção, convertendo formas tradicionais em processos industriais, a fim de garantir os domínios do Capital (FONTES, 2005, p. 28).
Neste ponto, retoma-se a análise de Marx, segundo a qual mercadoria é resultado do trabalho humano – logo, é o trabalho que gera valor – destacando que, para a assertividade desta lógica, é imperativo que a classe que produz a riqueza seja mantida sob controle, adequada e subsumida aos interesses e processos que garantem a permanência do lugar da exploração e condições de perpetuação do capitalismo como sistema hegemônico. A classe trabalhadora precisa ser controlada e (con)formada, necessitando para isso da existência de estratégias de coerção e de consenso. Entretanto, a história não se dá sem resistências, sendo a luta por hegemonia um elemento fundamental, ou seja, a luta pelo controle político e cultural. Mais uma vez, destaca-se nesta trama, a correlação de forças entre distintos projetos de sociedade e de concepção de mundo – que se inscreve no campo da estrutura econômica e política, mas também, no campo da cultura, como demarca e avança Gramsci (2011, p.267) identificando que “o Estado tem e pede o consenso,
mas também “educa” este consenso”.
Neste interim, cultura e educação se apresentam enquanto instrumentos imprescindíveis para a manutenção da hegemonia histórica do capital. Alia-se a esta análise, a compreensão do “Estado como um equilíbrio da sociedade civil e sociedade política ou hegemonia política e cultural de um grupo social sobre toda a sociedade, como conteúdo ético do Estado” (GRAMSCI, 2017, p. 228). Logo, compreende-se o Estado como espaço de um movimento de disputas, que se inscreve no terreno econômico, político e cultural.
Para Lenin (2010, p.27), “o Estado aparece onde e na medida em que os antagonismos de classe não podem objetivamente ser conciliados”. E, reciprocamente, a existência do Estado prova que as contradições de classe são
inconciliáveis. Sendo o processo revolucionário a alternativa para a superação dos dilemas históricos da classe trabalhadora e de sua opressão dentro dos limites do sistema capitalista. Um processo que, como analisa Gruppi (1980, p. 67) acerca do pensamento de Lenin,
[...] não se dá pela quebra imediata do Estado, mas pela sua reorganização, que levará à extinção e que depende de maneira determinante da constituição de uma revolução cultural, isto é, de acesso das grandes massas operárias e camponesas a novos níveis de cultura (GRUPPI, 1980, p. 67).
Gramsci, em seu conceito de Estado – compreendido de maneira mais ampla e orgânica, considerando a análise de Lenin e de outros pensadores marxistas – retoma, aprofunda a compreensão da centralidade da cultura e demarca sua importância para o projeto revolucionário, reconhecendo que o processo de conquista e de manutenção da hegemonia depende da elaboração e da difusão de uma concepção de mundo crítica e consciente. Neste sentido,
[...] criar uma nova cultura não significa apenas fazer individualmente descobertas “originais”; significa também, e sobretudo difundir criticamente verdades já descobertas, “socializá-las” por assim dizer; transformá-las, portanto, em base de ações vitais em elemento de coordenação e de ordem intelectual e moral. O fato de que uma multidão de homens seja conduzida pensar coerentemente e de maneira unitária a realidade presente é um fato “filosófico” bem mais importante e “original” do que a descoberta por parte de um “gênio filosófico” de uma nova verdade que permaneça como patrimônio de pequenos grupos intelectuais (GRAMSCI, 1987, p. 13-14).
Trata-se, portanto, diferente da lógica do capital que historicamente estabelece limites ao acesso da classe trabalhadora à cultura e sua perspectiva crítica – na qual EJA e Educação Rural enquanto questões de classe representam de maneira determinante esta condição – da necessidade de difusão de conhecimentos aliados ao projeto socialista de emancipação da classe trabalhadora, “de criticar a sua própria concepção de mundo, tornando-a coerente e elevada até o ponto atingido pelo pensamento mundial mais desenvolvido” (GRAMSCI, 1987, p. 12), de recrudescimento da luta pela hegemonia, também, no campo da cultura. Um processo que, em Gramsci, se dá por dentro da própria estrutura do Estado, buscando superar o entendimento deste, enquanto expressão da segmentação entre base e superestrutura. Com isso, avançando para a compreensão do Estado enquanto uma
articulação entre sociedade civil e sociedade política, síntese das relações sociais historicamente determinadas.
Entretanto, a atuação por dentro da estrutura do Estado não significa a adequação aos “pilares” do capital, o abandono dos princípios da resistência fundamentais ao projeto socialista, o enfraquecimento das bases e a abertura dos projetos da classe trabalhadora às facetas sedutoras do capital em suas versões democrático-burguesas. Não se trata, portanto, de adotar estratégias de corrigir algum detalhe defeituoso da ordem estabelecida, “de forma que sejam mantidas intactas as determinações estruturais fundamentais da sociedade como um todo, considerando que as determinações fundamentais do sistema do capital são incorrigíveis”, como adverte Mészáros (2007, p. 197). Não se trata de uma estratégia reformista, mas revolucionária, “que no curso do seu desenvolvimento se rompa, de modo mais radical, com as ideias tradicionais” (MARX; ENGELS, 2010, p. 57).
Neste sentido, em Gramsci (2017, p.248), “na noção geral de Estado entram elementos que devem ser remetidos à noção de sociedade civil (Estado = sociedade política + sociedade civil, isto é, hegemonia couraçada de coerção)”, compreendida enquanto um conceito que remete ao entendimento de uma estrutura que deverá ser tomada como um espaço de recrudescimento das resistências populares e não como um espaço de adequação consentida aos ditames hegemônicos, a fim de manter em funcionamento políticas e projetos – abandonando para isso os fundamentos e as estratégias articuladas aos interesses da classe trabalhadora.
Sob a lógica gramsciana, por Estado deve-se entender além do aparelho de governo, também os aparelhos “privados” de hegemonia ou sociedade civil, reconhecendo-o, conceitual e materialmente, enquanto um território político de disputa de classe. Logo:
Compreender o Estado em seu sentido ampliado, não somente nos permite evitar as armadilhas do conhecimento reificado e simplificador, como estimula a desnaturalização dos mecanismos mais profundos de seu funcionamento, não fosse ele uma permanente reconstrução (MENDONÇA, 2007, p. 17).
Ressalta-se, nesse interim, que o Estado não se limita à função coercitiva, mas atua diretamente do campo do consenso para a conquista e manutenção da hegemonia. Destacando-se a importância da Sociedade Civil, cuja representação se dá a partir da composição dos aparelhos privados de hegemonia (APHs), vinculados
aos interesses das distintas classes sociais e compreendidos na acepção gramsciana, enquanto espaços de organização das vontades e ações coletivas, nos quais a adesão ocorre de maneira voluntária.
Sob esta lógica, demarca-se que a correlação de forças que permeia a estrutura analisada, deriva das condições sociais objetivas, das contradições das quais emergem os grupos sociais (também denominados na teoria gramsciana de frações de classe). Reconhecendo neste contexto, a educação – como sistema de socialização e de aquisição de conhecimentos, entendida como um APH – “enquanto objeto de disputa do Estado, representando as classes sociais hegemônicas ou sendo pressionada pelas demais classes, os setores contra hegemônicos” (CIAVATTA, 2015, p. 24)
A fim de cumprir a missão de garantia do “consentimento ativo dos governados”
– como aponta Gramsci (1999, p. 32) – no que se refere às condições objetivas da oferta de educação à classe trabalhadora, destaca-se o caráter imperativo de adequação das políticas educacionais às condições necessárias para a reprodução do capital, garantindo a ampliação da acumulação do capital, também, a partir da (con)formação da “força de trabalho que produz valor” – Marx (2017). Neste sentido, apresentadas como novos projetos:
[...] as políticas de formação da classe trabalhadora, expressam antigas disputas no cenário da educação brasileira, devendo ser compreendidas como rearranjos de uma mesma lógica que gera, ao longo da história, um conjunto de propostas precárias e descontínuas que visa atender prioritariamente às necessidades do capitalismo (RUMMERT, 2017, p. 151)
Desse modo, para o estudo sobre EJA e educação rural é fundamental a compreensão da cultura e educação como instrumentos imprescindíveis para o controle político e cultural do grupo social representativo dos interesses do capitalismo sobre toda a sociedade, bem como para o fortalecimento do projeto contra hegemônico da classe trabalhadora. Conforme Gramsci,
[...] o que de mais sensato e concreto se pode dizer a propósito do Estado ético e de cultura é o seguinte: todo Estado é ético, na medida em que uma de suas funções mais importantes é elevar a grande massa da população a um determinado nível cultural e moral, nível (ou tipo) que corresponde às necessidades de desenvolvimento das forças produtivas e, portanto, aos interesses das classes dominantes. A escola como função educativa positiva e os tribunais como função educativa repressiva e negativa são as atividades mais importantes
neste sentido: mas, na realidade, para este fim tende uma multiplicidade de outras iniciativas e atividades chamadas privadas, que formam o aparelho da hegemonia política e cultural das classes dominantes (GRAMSCI, 2011, p. 270).
Com base na compreensão ampliada do Estado – e na noção gramsciana de Estado ético ou de cultura – entende-se que a hegemonia capitalista não é natural e imutável, mas, política, coercitiva, histórica e culturalmente determinada. Sob esta perspectiva, as relações capitalistas são resultado da ação humana e, considerando o caráter dialético da história, estas são possíveis de serem superadas, também, pela ação humana – sendo cultura e educação fatores essenciais no processo de resistência e conquista da hegemonia do Estado para o projeto ético pela classe trabalhadora. Portanto, temos como horizonte a tarefa de difusão de uma concepção de mundo crítica, consciente e articulada aos interesses dos trabalhadores, uma tarefa árdua e imprescindível à organização da classe e dos APHs articulados aos interesses desta.
No que se refere ao processo de reprodução do capital, inúmeras são as estratégias para intervir pedagogicamente na (con)formação da força de trabalho. Sendo a EJA um terreno historicamente fértil, cujas tramas encontram-se diretamente relacionadas ao processo de expropriação desta classe, sob a perspectiva de destituição estrutural de direitos que, por sua vez, leva à negação das condições de acesso e permanência nos espaços formais de escolarização. Neste sentido, conforme analisado anteriormente, o capital se fundamenta e se estrutura por diversas formas de expropriação, “entre elas, a negação da autonomia da classe trabalhadora, cuja subsunção a esse processo constitui condição para a sua permanente produção e reprodução” (RUMMERT, 2017, p. 152).
Em vista disso, nos parece importante – à luz do materialismo histórico-dialético
– que estudos, pesquisas, bem como a elaboração de projetos educacionais articulados aos interesses da classe trabalhadora, partam de uma compreensão fundamental: educação de jovens e adultos e questão agrária são questões de classe, historicamente forjadas e circunscritas no cerne das contradições geradas pelo processo de expropriação e exploração da classe que produz valor pelo capital.
Bem como, se faz imperativa a necessidade de reconhecimento do trabalho enquanto categoria central, compreendendo que esta centralidade se traduz em movimentos contraditórios: de um lado, atividade humana que produz valor e que,
subsumida aos interesses de reprodução do capital, é inserida num processo de exploração que destitui as condições de vida e, de outro, como afirma Marx (2017, p. 120), “atividade que produz condições para a existência da vida, a partir da eterna necessidade de mediação do metabolismo entre homem e natureza, portanto, da vida humana”.
Trazendo a análise do processo de exploração do trabalho pelo capital, para a especificidade da condição da classe trabalhadora camponesa, destaca-se a “urbanização incessante e o consequente ‘esvaziamento’ das regiões rurais, que vem reduzindo drasticamente as condições de produção não mercantil da subsistência para a grande maioria da população” (FONTES 2005, p. 25). Ladeada à precarização da condição de trabalho e subsistência, evidencia-se a precariedade da realidade educacional rural, cujos impactos históricos da política capitalista podem ser identificados a partir dos dados estatísticos, nos quais o problema da EJA é amplamente refletido – dentre outros problemas – nas condições de analfabetismo dos trabalhadores rurais.
Embora neste artigo, seja destacado o problema do analfabetismo, da fase inicial da educação formal, compreende-se que este não circunscreve, nem limita a EJA, mas, é aqui apresentado por caracterizar-se enquanto um problema que gerou intensa movimentação social nos anos de 1990, considerando os altos índices apresentados nos territórios rurais. Portanto, interessa reforçar que a EJA em sua concepção ampla, nos remete a práticas pedagógicas escolares ou não, podendo perpassar todos os níveis de ensino da Educação Básica. Logo, a atenção dada a este problema, se refere ao foco da presente análise, que busca problematizar a luta por hegemonia por meio de projetos populares de educação, intensificada no campo brasileiro nos anos de 1990, diante dos índices que se apresentavam – como será analisado posteriormente.
Desta feita, destaca-se que no período de avanço do capitalismo empresarial nas relações produtivas do campo, alicerçadas na difusão do projeto do agronegócio no Brasil, os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE/1995) apontavam que 32,7% da população acima de 15 anos do meio rural era analfabeta. Observando as desigualdades regionais, o Nordeste brasileiro entra em destaque com maior taxa de analfabetismo do País, com um contingente de quase oito milhões de analfabetos, o que corresponde a 50% do total do País. Esta região apresentava no
ano de 1996 – período de forte ofensiva neoliberal – uma taxa de analfabetismo de 28,7% entre a população de 15 anos ou mais anos de (BRASIL. INEP/MEC, 2003). Sendo esta, a condição real que se apresentava, quando da implementação dos primeiros projetos de EJA voltados para a educação de trabalhadores rurais assentados das áreas de reforma agrária, desenvolvidos a partir de articulações entre os Movimentos Sociais, as Universidades e o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA).
Reconhece-se que, nacionalmente, o PRONERA guarda estreita relação com o processo de mobilização popular em torno da construção do projeto da Educação do Campo no Brasil7, cuja pauta principal – aliada à luta pela Reforma Agrária – se estabelece em torno da necessidade de conquista de uma política pública de educação que dialogue diretamente com as demandas educacionais reais do campesinato, com a história, o trabalho e a cultura da classe trabalhadora camponesa. No contexto de sua implementação – ano de 1998 – identifica-se que os primeiros projetos executados por meio da articulação entre Movimentos Sociais, Universidades e PRONERA estiveram voltados para a ampliação do processo de alfabetização de trabalhadores rurais assentados da reforma agrária, considerando a materialidade das condições vigentes à época.
Interessa destacar, que tais dados refletem uma realidade historicamente constituída, cuja análise sob a orientação do materialismo histórico-dialético nos apresenta o desafio de superação das estratégias alicerçadas no presente, sem considerar o processo histórico ou sem vislumbrar as perspectivas de transformação revolucionária das condições vigentes.
Neste cenário, entende-se em diálogo com Rummert (2013, p. 417), que as políticas de Educação Rural e EJA são marcadas pelo “controle social e pela lógica de formação para o consenso, a partir imposição de um padrão cultural que nega o valor da experiência da classe trabalhadora”. E que, além disso, busca subsumir a EJA à doutrinação empresarial, ao aprisionamento de mentes e corpos num sistema de formação de “capital humano”8, que “empreende” a capacidade histórica da utopia e de todas as dimensões sensíveis, crítica e criativas do homem em sua
7 O tema será aprofundado em seguida.
8 Teoria do Capital Humano, base importante para a reprodução do capitalismo, fortalecida nos anos de 1960 atendendo aos imperativos das novas formas que assumem as relações intercapitalistas – ver Frigotto (2010).
omnilateralidade9, a fim de (con)formar jovens e adultos para o trabalho aprisionado em sistemas trabalhistas e previdenciários análogos à escravidão.
Uma formação que, aliada à expansão da reforma produtiva capitalista sob orientação dos interesses do agronegócio no campo, delega à educação rural tanto a função de instrumento formador de uma mão-de-obra disciplinada para o trabalho assalariado rural, quanto de consumidores de produtos gerados pelas novas demandas apresentadas pela produção rural (ideológicos e produtivos – incluindo os insumos agrícolas), tendo como mote ideológico-produtivo no Brasil, o agronegócio – de maneira mais determinante a partir dos anos de 1990. Contexto no qual, o foco principal do Estado ético sob orientação do capital, está voltado para a “oferta de políticas educacionais voltadas para a classe trabalhadora camponesa, que contemplem os interesses relacionados à expropriação da terra e à consequente proletarização dos agricultores” (RIBEIRO 2012, p. 297).
Entretanto, este cenário não se dá sem resistências, sem um processo de disputa que, como indica Gramsci, ocorre no cerne da própria estrutura do Estado Ampliado. Sobre o processo de disputa por hegemonia, Mendonça indica que,
[...] a pré-condição para a transformação social e do Estado nas sociedades capitalistas é, segundo Gramsci, a multiplicação dos aparelhos de hegemonia da sociedade civil, ou seja, das visões de mundo e/ou vontades coletivas organizadas – que disputam entre sim, o tempo todo, a manutenção de um projeto hegemônico ou a imposição de outro que lhe seja contrário (contra-hegemônico), em busca de uma nova hegemonia (MENDONÇA, 2018, p. 14).
Neste sentido, observa-se no mesmo cenário histórico de avanço do capitalismo agrário sob a orientação neoliberal, o fortalecimento da atuação de movimentos sociais vinculados às lutas dos trabalhadores camponeses e sua articulação em torno do debate e elaboração de um projeto de educação da classe trabalhadora camponesa (e não para a): a Educação do Campo. Sendo fundado na década de 1990 o Movimento Por Uma Educação do Campo.
Este Movimento é instituído em torno da reflexão coletiva sobre as condições educacionais do campo e questão agrária, sendo discutidas em eventos regionais que
9 Omnilateral é um termo que vem do latim e cuja tradução literal significa “todos os lados ou dimensões”. Essas dimensões envolvem a especificidade do ser humano, sua vida corpórea material e seu desenvolvimento intelectual, cultural, educacional, psicossocial, afetivo, estético e lúdico. Em síntese, educação omnilateral abrange a educação e a emancipação de todos os sentidos humanos (FRIGOTTO, 2012, p. 265).
reuniram educadoras e educadores de áreas de reforma agrária em todo Brasil, cujo ápice se constituiu com a organização, no ano de 1997, do I Encontro Nacional das Educadoras e dos Educadores da Reforma Agrária, o I ENERA.
Neste processo de articulação e luta por um projeto popular de educação do campo, o PRONERA se apresenta enquanto uma importante conquista e I ENERA representa um marco da luta política. Expressão da decisiva atuação do MST na mobilização nacional em torno do questionamento das contradições históricas que se apresentam na realidade educacional campesina – em diálogo com a questão agrária e o projeto de reforma agrária – I ENERA contou com a participação de educadoras e educadores das áreas de assentamento do movimento social, instituições universitárias e científicas e organizações internacionais. Tendo definido em documento final, o Manifesto das Educadoras e dos Educadores da Reforma Agrária ao Povo Brasileiro, algumas das principais ideias-chave que irão orientar a construção do projeto da educação do campo:
No Brasil, chegamos a uma encruzilhada histórica. De um lado está o projeto neoliberal, que destrói a nação e aumenta a exclusão social. De outro lado, há a possibilidade de uma rebeldia organizada e da construção de um novo projeto. Como parte da classe trabalhadora de nosso país, precisamos tomar uma posição. Por essa razão, nos manifestamos
Somos educadoras e educadores de crianças, jovens e adultos de acampamentos e assentamentos de todo Brasil, e colocamos o nosso trabalho a serviço da luta pela Reforma Agrária e das transformações sociais;
Manifestamos nossa profunda indignação diante da miséria e das injustiças que estão destruindo nosso país, e compartilhamos o sonho da construção de um novo projeto de desenvolvimento para o Brasil, um projeto do povo brasileiro;
Consideramos que acabar com o analfabetismo, além de um dever do Estado, é uma questão de honra. Por isso nos comprometemos com esse trabalho (MST, 2010, p. 132-133).
Identifica-se neste pequeno trecho do Manifesto, um caráter classista, a partir da definição da relação orgânica com um projeto popular de sociedade, desenvolvimento, campo e educação, articulado aos interesses da classe trabalhadora. Destaca-se, também, o questionamento do projeto neoliberal, mesmo que este não seja questionado em sua origem orgânica – a política do capital. Entretanto, neste documento é possível reconhecer a definição de um processo de disputa política de projeto, que reforça a acepção gramsciana que nos aponta para o
Estado como expressão de governabilidade e de tensão entre classes e projetos políticos.
Apesar do reconhecimento da importância da Articulação Por Uma Educação do Campo, interessa demarcar que, o I ENERA contou com a parceria da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO). Mesma instituição que nos anos de 1990, esteve à frente na organização dos fóruns internacionais sobre educação, promovidos por organismos comprometidos com o fortalecimento e a ampliação da hegemonia do capital sobre a educação na América Latina. Dentre estes, Banco Mundial (BM), Organização Mundial do Comércio (OMC), Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL), Oficina Regional de Educación para a América Latina y Caribe (OREALC).
Trata-se, desta forma, da atuação direta da UNESCO em duas frentes, que se apresentam em perspectivas antagônicas: a organização dos movimentos sociais camponeses no Brasil em torno da luta por um projeto popular de educação para a classe trabalhadora camponesa e a atuação direta nos eventos internacionais de organização do projeto do capital sob orientação neoliberal para educação na América Latina.
Desta feita, ao passo que se identifica contradições – que precisam ser desveladas numa perspectiva de estratégia e avaliação de processo – reconhece-se que o debate sobre a educação rural brasileira e materialidade da EJA em territórios rurais então instituído, trouxe grandes contribuições para a conquista de políticas educacionais articuladas aos interesses da classe trabalhadora camponesa e esteve assentado na crítica à precariedade da condição educacional dos espaços rurais. Para os quais, como afirma Caldart (2004, p. 57), são historicamente elaboradas e difundidas “políticas educacionais sob o paradigma rural que elegem o que lhe interessa como modelo econômico e cultura, sem incorporar as demandas apresentadas pela sociedade”, bem como, a materialidade dos problemas sociais e educacionais que se apresentam nestes territórios.
Conforme a tarefa de retomar a preocupação da estratégia, Leher (2018, p. 61) reforça a necessidade imprescindível do “pensamento crítico retomar o diálogo sobre as primeiras experiências sistemáticas de educação popular”, ou seja, de buscar a gênese dos projetos educacionais da classe trabalhadora para pensar horizontes. Neste sentido, destaca-se que, em sua origem, o projeto da educação do campo
assume a dimensão de “pressão coletiva por políticas públicas mais abrangentes ou mesmo de embate entre diferentes lógicas de formulação e de implementação da política educacional brasileira” (CALDART, 2012, p. 261). Embora apresente, também, contradições que precisam ser desveladas e analisadas, o projeto originário apresenta como fundamento central, a emergência de que suas práticas reconheçam e busquem,
[...] trabalhar com a riqueza social e humana na diversidade de seus sujeitos: formas de trabalho, raízes e produções culturais, formas de luta, de resistência, de organização, de compreensão política, de modo de vida. Mas seu percurso assume a tensão de reafirmar, no diverso que é o patrimônio da humanidade que se almeja a unidade no confronto principal e na identidade da classe que objetiva superar, no campo e na cidade, as relações sociais capitalistas (CALDART, 2012, p. 262)
Trata-se portanto, em sua origem, de um projeto de luta pela hegemonia, que busca recuperar a lógica defendida por Lenin e Gramsci, de constituição de uma revolução cultural, isto é, de acesso das grandes massas operárias e camponesas a novos níveis de cultura – sendo os educadores considerados sujeitos fundamentais da formulação pedagógica e das transformações da escola e, a EJA apresentada como desafio de “instrumentalizar/armar os trabalhadores para que eles possam estabelecer ligações entre as várias áreas do conhecimento e sua relação com a luta de classes” (CALDART, 2012, p. 255).
Demarcando assim, como analisa Araújo (2018, p. 247), que a classe trabalhadora “não se porta como mera espectadora e que esta não é capaz de humanizar o capital, nem de criar uma nova sociabilidade onde seja possível articular harmoniosamente o mercado e a justiça social”, já que a atuação do capital na construção da sociabilidade (cujo lucro é o ponto fulcral) tende, ao contrário, a expropriar direitos e conquistas – neste sentido, importa reforçar que a classe trabalhadora também constrói espaços de contra hegemonia e forma seus intelectuais orgânicos.
Destacando-se, a partir desta análise, um desafio histórico que se apresenta aos estudos, pesquisas e às estratégias de organização da classe trabalhadora: pensar as bases, os fundamentos, as categorias que se alinham a um projeto que se faça coerente à luta contra hegemônica, bem como, analisar as contradições internas e externas ao processo de construção do projeto popular. Reconhecendo a
importância de valorização da história como processo e como método. Bem como, a atualidade das categorias fundantes do pensamento marxista – compreendidas em movimento – para o desvelamento do real constituído sob as tramas dos interesses do capital.
Encerra-se este texto demarcando que, diante das históricas contradições geradas pela exploração da classe trabalhadora pelo capital:
[...] nós temos que forjar um projeto político e estratégico para que os trabalhadores possam fazer luta de classes na educação à altura, com projetos objetivos, que tenham consistência teórica e metodológica, mas sobretudo, projetos que tenham o germe da perspectiva socialista (LEHER, 2018, p. 61).
Sendo essencial para o avanço estratégico – tanto no campo das pesquisas quanto da construção coletiva alternativas da classe trabalhadora à hegemonia do capital – sob a perspectiva do método materialista histórico-dialético, compreender que: partindo das categorias simples, perscrutando-as em relação com a totalidade das determinações, ou seja, das relações diversas que interferem na materialidade destas categorias, poderemos chegar ao concreto pensado, refletido, questionado – como orienta Marx em sua Contribuição à Crítica da Economia Política (2008, p. 260- 261).
Só então poderemos vislumbrar – com os pés fincados no chão da história e com o compromisso de desvelar tramas e contradições forjadas pelo capital – o fortalecimento dos projetos de enfrentamento, assumindo de maneira coerente e fundamentada a tarefa de elaboração e difusão de conhecimentos, comprometidos com a formação de intelectuais orgânicos da classe trabalhadora. Dando movimento ao projeto de Estado ético, ou de cultura, articulado aos interesses da classe que produz valor e que é historicamente expropriada de suas condições de vida, trabalho e dignidade.
A EJA e a educação rural se apresentam, assim, como territórios de disputa, cuja importância ultrapassa os limites das pesquisas, que, por sua vez, apresentam a emergente necessidade de serem refletidas e constituídas à luz do real e em perspectiva material. Sendo, para tanto, necessária a superação das redomas impostas à construção acadêmica do conhecimento, compreendendo-nos enquanto
classe trabalhadora, enquanto pesquisadores intelectuais orgânicos, mulheres e homens coletivos, capazes de criticar a própria concepção de mundo e de construir conhecimento em orgânica relação com a realidade, como orienta Gramsci.
A investigação da realidade da EJA e da Educação Rural no Brasil, aponta para uma histórica precarização das políticas educacionais voltadas para a educação da classe trabalhadora camponesa. Que, por sua vez, encontra-se aliada às condições de sociabilidade do capital, materializadas tanto através da negação de direitos e acesso à educação escolar – num processo de expropriação cultural – quanto da oferta de políticas educacionais limitadas aos interesses estreitos do mercado, a partir dos quais a classe trabalhadora é tratada como meio de produção.
Entretanto, partindo de uma compreensão dialética da história, reafirma-se que as contradições advindas do projeto de sociabilidade capitalista podem ser superadas por meio da ação humana, sendo cultura e educação elementos fundamentais para o processo de resistência e luta por hegemonia. Neste sentido, reconhece-se a luta pela Educação do Campo, articulada à luta pela Reforma Agrária como um importante instrumento de resistência popular e conquista de veredas para um projeto social revolucionário, na medida em que, a sua construção permaneça atrelada ao projeto de revolucionário, comprometido questionamento radical da realidade e não ceda às imposições interesseiras do capital, a seus fundamentos e projetos.
Interessa demarcar, também, que as políticas de Educação Rural e EJA no Brasil – enquanto questões de classe – são caracterizadas por uma lógica que indica a condição de oferta residual, frágil, descontínua, sem que os problemas e contradições presentes em sua materialidade, alcancem as necessidades educacionais requeridas pelo longo processo de negação de educação de qualidade à classe trabalhadora camponesa. Tratam-se, portanto, de problemas amplos, que se encontram envoltos em uma totalidade historicamente contraditória.
Portanto, sob a perspectiva do materialismo histórico-dialético – e, considerando a atual conjuntura brasileira, onde o incessante processo de reconfiguração do capitalismo se alia ao fortalecimento da extrema direita – reconhecemos que o tempo pede que em nossos estudos, pesquisas e organizações sociais, recortes a-históricos, fragmentações e reducionismos, narrativas sem totalidade, gabinetes sem vida e movimento sejam abandonados. E que, partindo de uma perspectiva de totalidade, o vínculo das nossas pesquisas com as necessidades
da classe trabalhadora, sejam o seu principal tom. Pois, o fantasma que assombra nosso “derredor” histórico nos quer controlados. É imperativo resistir e produzir estudos e pesquisas com fundamento, compromisso histórico e unidade.
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V.18, Nº 35 - 2020 (jan-abr) ISSN: 1808-799 X
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v18i35.40495
Patrícia Furtado Fernandes Costa2 Lucília Regina de Souza Machado3
Neste artigo, busca-se recuperar elementos necessários à análise crítica da história e da produção do conhecimento sobre o debate a respeito do currículo integrado e a oferta do Ensino Médio Integrado a partir de 2004, com o Decreto n. 5.154/2004. Esses temas são importantes para situar teórica e metodologicamente particularidades das contradições entre o capital e o trabalho no contexto das políticas educacionais brasileiras das últimas décadas.
En este artículo, se busca recuperar elementos necesarios para el análisis crítico de la historia y de la producción del conocimiento sobre el debate del currículo integrado y la enseñanza media integrada a partir de 2004 con la ley n. 5.154/2004. Esos asuntos son importantes para situar teórica y metodológicamente particularidades de las contradicciones entre el capital y el trabajo en el contexto de las políticas educativas brasileñas de las últimas décadas.
Palabras clave: Enseñanza media integrada; Currículo integrado; Educación; Historia de la educación brasileña.
HISTORICAL AND THEORETICAL REFERENCES FOR THE CRITICAL ANALYSIS OF THE PRODUCTION OF KNOWLEDGE IN BRAZIL ON INTEGRATED CURRICULUM AND INTEGRATED SECONDARY EDUCATION
This article seeks to recover the necessary elements for the critical analysis of the history and the production of knowledge about the debate about the integrated curriculum and the offer of Integrated High School from 2004, with Decree no. 5,154 / 2004. These themes are important to situate theoretically and methodologically particularities of the contradictions between capital and labor in the context of Brazilian educational policies of recent decades.
Key words: Integrated secondary education; Integrated curriculum; Education; History of Brazilian education.
1 Artigo recebido em 30/06/2019. Primeira avaliação em 23/08/2019. Segunda avaliação em 20/09/2019. Aprovado em 03/01/2020. Publicado em 23/01/2020.
2 Mestre em Gestão Social, Educação e Desenvolvimento Local pela UNA – BH, Licenciada em Ciências Sociais pela UFJF, professora EBTT no Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia do Sudeste de Minas Gerais. E-mail: patricia.costa@ifsudestemg.edu.br. ORCID: 0000-0002-4836- 6402.
3 Doutora em Educação (PUC-SP), Pós-doutora em Sociologia do Trabalho (Iresco-Paris), Professora titular aposentada da UFMG. E-mail: lsmachado@uai.com.br. ORCID: 0000-0001-9029-3019.
O ensino médio integrado (EMI), modalidade educacional em vigor no Brasil a partir da Lei nº 5.154 de 2004, caracteriza-se pela integração entre educação técnica de nível médio e ensino médio de caráter propedêutico. Segundo Frigotto, Ciavatta e Ramos (2012), no ensino médio encontra-se a maior expressão do dualismo da educação brasileira. Nele se evidencia “[...] a contradição fundamental entre o capital e o trabalho, expressa no falso dilema de sua identidade: destina-se à formação propedêutica ou à preparação para o trabalho” ? (FRIGOTTO, CIAVATTA e RAMOS, 2012, p.31).
Para Lima e Sperandio (2017), é no ensino médio integrado que a educação profissional técnica de nível médio pública e de qualidade se encontra. É nele que há a melhor forma de atingir o que preconiza o artigo 205 da Constituição Federal:
A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho (BRASIL, 1988).
A Resolução nº 6, de 20 de setembro de 2012, dispõe sobre as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Profissional Técnica de Nível Médio – DCNEPTNM. Ela é uma referência histórica importante para esse debate. No seu segundo capítulo, menciona-se a indissociabilidade entre a educação e a prática social. Neste documento, considera-se a historicidade dos conhecimentos e dos sujeitos da aprendizagem, bem como a integração entre teoria e prática no processo de ensino-aprendizagem.
O debate sobre formação integrada no ensino médio fez emergir conceitos como: formação humana integral e suas várias dimensões, seus obstáculos advindos das contradições sociais, a reposição da dualidade estrutural, a diferença dos itinerários formativos das classes sociais determinada socialmente. O debate trouxe, também, formulações sobre como a integração entre trabalho, ciência, tecnologia e cultura podem contribuir para esta formação humana integral.
Nesse texto, fruto de pesquisa bibliográfica e documental, enunciados e reflexões sobre tais questões, presentes no cenário histórico da educação brasileira das últimas décadas, foram recuperados em razão da sua importância para situar
teórica e metodologicamente particularidades das contradições entre o capital e o trabalho no contexto e historicidade das políticas educacionais brasileiras. Além de textos acadêmicos, foram também resgatadas as legislações educacionais pertinentes, em especial as do pós Decreto nº 5.154/2004, que instituiu a possibilidade da oferta de educação profissional técnica de nível médio de forma articulada com o ensino médio, podendo essa ser integrada, concomitante ou subsequente.
Sobre tal conceito, identificam-se ideias bastante diversas no contexto estudado. Logo, serão expostas as que mais se adaptam ao objetivo do artigo apresentado.
Beane (2003), Matos e Paiva (2009) e Santomé (1988, 1996) apontaram as disciplinas como objeto para integração. Contudo, há diferenças de interpretação de como realizá-la, pois há os que centram em temas, em competências e saberes ou em diálogo interdisciplinar. Estes autores também se diferem no que tange ao motivo para a integração curricular.
A respeito de quem faz a integração, Beane (2003) ressaltou que os jovens devem ser desafiados por questões pessoais e sociais, que pais e outros cidadãos devem ser envolvidos e que a integração deve ocorrer mediante colaborações. Já Santomé (1988, 1996) deixou subentendida a tarefa do “sistema”; porém, salientou a participação conjunta de professores e alunos na integração curricular. Matos e Paiva (2009) não trataram dessa questão.
Matos e Paiva (2009) e Beane (2003) assinalaram que se deve integrar tanto disciplinas quanto experiências. Os primeiros destacaram a integração como estratégia didática de organização dos conhecimentos disciplinares, das competências, dos saberes de referências, das matérias escolares. E, ainda, a necessidade de considerar as diferenças existentes entre disciplinas científicas próprias do campo acadêmico e as adaptadas para o contexto escolar.
Beane (2003) considerou a integração como apoio ao crescimento e desenvolvimento saudável dos jovens, visto que ela possibilitaria a promoção de destrezas e atitudes associadas ao modo democrático de vida. Em momento algum mencionou o desenvolvimento crítico do cidadão, que, para Santomé (1988, 1996)
seria seu objetivo maior. Para Beane (2003), a integração acontece utilizando quatro práticas interligadas: o conhecimento do desempenho, o conhecimento organizacional, a criação de comunidades e a construção de relações afetivas. Problemas significativos ou temas ligariam o currículo escolar ao mundo em geral.
Beane (2003) fez essa distinção: antes de 1980, a integração curricular tinha objetivos sociais e democráticos da educação progressista. Após tal década, ela aparece apenas como forma de organizar conteúdos, como técnica. Santomé (1988, 1996) marcou diferença ao afirmar que a interdisciplinaridade é o jeito de se fazer a integração curricular. Mas, para Beane (2003), a interdisciplinaridade diz respeito ao conteúdo, aspecto interno da disciplina e a integração curricular ao aspecto externo à disciplina, ou seja, à problemática.
Santomé (1988, 1996) se diferenciou de outros autores citados até aqui, por considerar a integração das diferentes disciplinas por meio do relacionamento interdisciplinar dos conteúdos e, principalmente, por chamar a atenção para a necessidade de se questionar a validade de alguns deles para a compreensão e intervenção na sociedade. A interdisciplinaridade, segundo ele, requer metodologias didáticas baseadas na investigação cooperativa, a construção conjunta, primeiramente pelos professores, depois com a participação dos alunos e, posteriormente, entre docentes e discentes.
Santomé (1988, 1996) ressaltou a interdisciplinaridade como maneira de preparar cidadãos e cidadãs para compreender a realidade, sua história, suas tradições e porquês, capacitá-los a intervir e melhorar a sociedade de uma maneira democrática, responsável e solidária. Ciavatta (2012), Ramos (2008, 2009, 2012), Machado (2009) e Lottermann (2012) também demarcaram a relação entre integração curricular e formação crítica dos estudantes.
Para Matos e Paiva (2009, p.14), em convergência com Santomé (1988, 1996), “[...] as questões curriculares são percebidas e enfocadas dentro de um projeto de dimensão maior que alcança a sociedade como um todo”. Nesse sentido, esse último (1996, p. 64) alegou que se deve “[...] organizar os conteúdos culturais dos currículos de maneira significativa, de tal forma que desde o primeiro momento os alunos e alunas compreendam o quê e o porquê das tarefas escolares nas quais se envolvem”. Para ele, isso motivaria os discentes a investigar, indagar e aprender.
Assim, Matos e Paiva (2009) e Santomé (1988, 1996) deram elementos para o debate sobre o objetivo e como fazer a integração curricular. Nela se veria uma maneira de melhorar o processo de ensino-aprendizagem, de possibilitar a compreensão mais reflexiva e crítica da realidade e dos conteúdos culturais.
Santomé ressaltou que fazer a integração curricular por meio da interdisciplinaridade requer a elaboração de estruturas que permitam que os especialistas de cada uma das disciplinas e níveis estabeleçam canais de comunicação e criem espaços para o trabalho em equipe. Segundo ele, os professores precisam “[...] aprender a descobrir nexos entre as disciplinas, detectar que estruturas conceituais, destrezas, procedimentos e valores são mais interdependentes [...]” (SANTOMÉ, 1996, p. 72). Os docentes devem, ainda, criar hábitos intelectuais para a resolução de problemas considerando o maior número de perspectivas possíveis para analisar, avaliar ou intervir. Lembrou da atenção que a educação deve dar às demandas do mundo globalizado. Todavia, segundo ele, estratégias didáticas a partir de um eixo integrador precisam considerar necessidades e interesses individuais, sobretudo, porque os alunos devem analisar, valorar e participar do seu contexto sociocultural e político de forma crítica.
Matos e Paiva (2009, p.12) asseveraram que os defensores da organização disciplinar criticam os currículos integrados alegando que esses desconsideram que cada área do conhecimento “[...] tem conceitos, métodos, formas de raciocínio e de produção do conhecimento próprios e específicos”. Diferentemente, eles se colocaram com uma visão próxima à de Santomé, cuja crença no currículo integrado “[...] possibilitaria o entendimento da realidade, sua história e tradições, visando a uma participação social-democrática, responsável e solidária”. Contudo, consideraram a possibilidade de que toda organização curricular revela uma dada configuração das relações de poder e, nesse sentido, destacaram que enquanto para alguns, como Santomé, a interdisciplinaridade pode significar uma resposta à efetiva integração curricular; outros pensam que ela pode levar à reprodução de poderes estabelecidos. Lottermann (2012), tal como Matos e Paiva (2009), também considerou que os currículos carregam representações do poder instituído. Entretanto, ponderou que o currículo integrado é uma proposta de educação contra-hegemônica ao capitalismo, que organiza conhecimentos visando à emancipação dos alunos e o rompimento com fragmentações curriculares instituídas pelas contradições sociais. Associou o currículo
integrado ao rompimento com o preceito da neutralidade, já que ele demanda a leitura da realidade concreta, o compromisso político e “[...] requer a compreensão de que educar exige interferir em determinada realidade e tomar posição”. (LOTTERMANN, 2012, p.22).
Davini também forneceu elementos para o debate sobre currículo integrado. Em obra de 1983, ela argumentou que integrar currículo é articular dinamicamente trabalho e ensino, prática e teoria, ensino e comunidade. Segundo ela, o currículo integrado deve romper com as concepções tradicionais de ensino e com as formas escolares academicistas, com a tradicional divisão entre teoria e prática, que deve ser elaborado com criatividade, ser flexível e adaptado às diversas situações. Na sua visão, o objetivo maior da integração curricular seria o de contribuir com a comunidade. Para tal, seria preciso adaptar o currículo a cada realidade local e aos padrões culturais de uma determinada estrutura social, buscando soluções específicas e originais para seus problemas, fazendo avançar a construção de teorias, envolver professor e aluno na investigação e na busca de esclarecimentos e realização de propostas.
Segundo Davini (1983), o currículo integrado deve ser desenvolvido de forma compartilhada. Inicialmente planejado por educadores, por ela chamados supervisores, esses devem conversar com entidades vinculadas à profissão para a qual se preparam os estudantes e com eles próprios, observar os aspectos do meio social onde a profissão se desenvolve, bem como as características discentes. Assim, durante o processo de aprendizagem, os supervisores junto aos educandos poderão readequar a metodologia, corrigir desvios, avaliar avanços e dificuldades.
Davini (1983) apontou, no entanto, alguns riscos que podem ocorrer na integração curricular: a simples aproximação do ensino ao trabalho não garante integração; pode-se tomar a “realidade do serviço” como parâmetro do ensino desconsiderando-se suas insuficiências; a reprodução sem crítica da realidade pode ocorrer e ainda “[...] o risco de reproduzir assuntos em forma de conhecimentos estanques”. (DAVINI, 1983, p. 285).
Lottermann (2012), Machado (2009), Ciavatta (2012) e Ramos (2008, 2009 e 2012) também trataram da integração curricular pelo ângulo da articulação dessas duas esferas, a educação e o trabalho.
Lottermann (2012) indica para a integração da formação básica com a formação profissional como forma de o trabalhador alcançar, por meio do eixo do trabalho, da ciência e da cultura, o acesso a uma educação abrangente e de diferentes formas de conhecimento – científico, acadêmico, do cotidiano e do senso comum. Ciavatta (2012) também colocou esses três eixos como o núcleo básico do currículo integrado e avançou ao afirmar a necessidade de que a educação geral seja parte inseparável da educação profissional em todos os campos onde se prepara para o trabalho.
Machado (2009) interveio no debate ao afirmar que a integração curricular parte do pressuposto de que conteúdos são tipificados estruturalmente como diferentes, uns seriam gerais ou básicos e outros profissionais ou tecnológicos. Para ela, o importante é discutir os objetivos e finalidades da escola considerando a prática pedagógica no contexto da prática social, tornando os conteúdos concretos ao situar o estudante nas suas diferentes maneiras de se inserir, historicamente, na sociedade e nas relações sociais.
Ramos (2008, 2009, 2012) também considerou a integração entre o âmbito escolar e a prática social concreta, realçou a integração na perspectiva da formação omnilateral do aluno, considerando todas as dimensões da vida, em especial o trabalho, a ciência e a cultura, eixos assinados também por Ciavatta e Lottermann (2012). Dessa feita, assim como Ciavatta e Machado, Ramos entende o trabalho como princípio educativo, pois tal atividade vital faz do homem produtor de sua realidade e de si mesmo, o que requer considerar a integração dos conhecimentos de formação geral e os específicos como uma relação a ser construída continuamente.
Em comum, Machado, Ciavatta e Ramos associaram a integração curricular às estratégias de superação da dualidade social e educacional. Ciavatta mencionou o propósito da superação da dicotomia trabalho manual/trabalho intelectual para garantir ao jovem, ao adolescente e ao adulto trabalhador o direito a uma formação completa para a leitura do mundo, atuar como cidadão integrado à sociedade e à política, para poder ser também dirigente.
Ramos argumentou que o currículo integrado também é importante como forma de superar a dicotomia entre conteúdos e competências, pois em questão está a necessidade de formar pessoas que compreendam a realidade para além de sua
aparência fenomênica, que possam atuar como profissionais capazes de reconstruir totalidades por meio da compreensão da relação entre partes. Isso significa:
[...] resgatar a centralidade do ser humano no cumprimento das finalidades do ensino médio e da educação profissional. [...] formar profissionalmente [...] proporcionar a compreensão das dinâmicas sócio-produtivas das sociedades modernas, [...] habilitar as pessoas para o exercício autônomo e crítico de profissões. (RAMOS, 2008, p. 5).
O debate sobre currículo integrado também se voltou para a questão sobre quem se encarregaria de fazer a integração curricular. Ramos não abordou claramente a questão. Lottermann (2012) apontou que essa tarefa cabe aos sujeitos envolvidos na aprendizagem. Para Ciavatta (2012), a integração deve ser objeto de reflexão e de sistematização do conhecimento e que o processo deve acontecer nas escolas, dentro de suas realidades, de forma participativa e mediante decisões coletivas, de sorte que essa tarefa caberia aos “[...] sujeitos sociais coletivos com história e identidade própria a ser respeitada em qualquer processo de mudança”. (CIAVATTA, 2012, p. 98). O documento da Semtec/MEC (Ensino médio: construção política) trouxe a recomendação de que as políticas curriculares devem ser “[...] planejadas, vivenciadas e reconstruídas em múltiplos espaços e por múltiplos sujeitos no corpo social da educação”. (BRASIL, 2003, p.35).
Para Machado (2009), quem faz a integração são os educadores do ensino médio e do ensino técnico de nível médio, conjuntamente com os alunos. Segundo ela (2009), a experiência educativa tem que ser significativa para o estudante, ele tem que se ver como parte do mundo e que seu mundo seja absorvido pelos conhecimentos científicos. Argumentou que:
[...] é preciso despertar, influenciar e canalizar o desenvolvimento das potencialidades que os alunos e professores trazem e torná-los os sujeitos da construção do processo de ensino-aprendizagem e seus principais e mais severos críticos. [...] Os sujeitos da transformação são as pessoas que se encontram envolvidas no processo com suas necessidades, aspirações e expectativas. (MACHADO, 2009, p.13).
Ao analisar a forma de fazer a integração curricular, Lottermann (2012) alegou a necessidade de se ter um olhar comprometido com a aprendizagem de maneira que a integração curricular possibilite a leitura do mundo, a compreensão do real como totalidade, a reflexão sobre os fatores econômicos, históricos e culturais que permeiam a produção e apropriação do conhecimento técnico. Além de incluir o questionamento do destino do produto social feito pelo trabalhador, como valor de uso
e de troca, como também a consideração das relações sociais na sociedade capitalista.
Já Ciavatta considerou importante “[...] estender ao ensino médio processos de trabalho reais, possibilitando a assimilação não apenas teórica, mas também prática, dos princípios científicos que estão na base da produção moderna”. (CIAVATTA, 2012, p. 88). De acordo com ela, o trabalho se relaciona com a educação nas atividades materiais, produtivas, nos processos de criação cultural, enfim, na vida, e que “[...] a emancipação humana se faz na totalidade das relações sociais onde a vida é produzida. (CIAVATTA, 2012, p. 85).
Esta autora (2012) estabeleceu os seguintes pressupostos para a formação integrada e humanizadora: a existência de um projeto de sociedade, visando à superação da dualidade de classes; manter na lei, a articulação entre o ensino médio de formação geral e a educação profissional; a adesão de gestores e de professores responsáveis pela formação geral e pela formação específica; a articulação da instituição com os estudantes e os familiares, por exemplo, mostrando-se atenta às necessidades e dificuldades dos alunos, à boa infraestrutura na escola; praticar uma democracia participativa como compromisso ético-político; resgatar a escola como um lugar de memória; garantir investimentos na educação.
Ramos (2008, 2009, 2012) destacou a importância de “teorizar” as atividades práticas, buscando a base científica. Nesse sentido, ela se aproximou de Ciavatta (2012) e Lottermann (2012) ao defender que se deve conhecer a totalidade pela relação entre as partes, fazer com que os conceitos sejam apreendidos dentro da totalidade concreta que se quer explicar, podendo eles ser relacionados interdisciplinarmente ou no interior de cada disciplina. Ramos (2008, 2009, 2012) traçou assim os seguintes passos para a integração curricular: problematizar fenômenos em múltiplas perspectivas como tecnológica, econômica entre outras; explicitar teorias e conceitos fundamentais para a compreensão do objeto estudado; situar os conceitos como conhecimentos de formação geral e específica; organizar os componentes curriculares e as práticas pedagógicas.
As formas de realizar a integração curricular, conforme sugeriu Machado (2009), passam pelo desenho da matriz curricular de forma a contemplar: aproximações temporais; fusões de conteúdos; realização de estudos e pesquisas compartilhados; promoção conjunta de seminários e eventos; implementação de
métodos de ensino por projetos e por temas geradores. Esta autora destacou que ela deve ocorrer por meio de processos desenvolvidos em comum por todos os envolvidos em que cada ação didática se torne parte de um conjunto organizado e articulado. Para tanto, elencou as seguintes ações didáticas integradas: revisar falsas polarizações e oposições; estabelecer consensos sobre alguns pontos de partida fundamentais (mudanças no modo de agir, formas de articulação dos conhecimentos, diversidade dos processos educativos, práticas pedagógicas); aproveitar as oportunidades, superando as fragilidades do ensino e aumentando a interação entre docentes; trabalhar a unidade dos conhecimentos; revisitar a contextualização sociocultural do processo de ensino-aprendizagem; recorrer aos desafios do desenvolvimento local como recurso significador do currículo; guardar a postura investigativa na definição das alternativas didáticas de integração; explorar as práticas que ajudem a construir o trabalho interdisciplinar.
Machado (2009) defendeu que o currículo integrado se impõe como uma ferramenta fundamental para a construção de uma sociedade mais justa, sem as dualidades estruturais e excludentes, atenta à integralidade do ser humano. Ela reafirmou que a experiência educativa tem que ser significativa para o estudante, para que ele se sinta como parte do mundo e que seu mundo seja considerado na produção dos conhecimentos científicos.
Ciavatta (2012) enfatizou que “A ideia de formação integrada sugere superar o ser humano dividido historicamente pela divisão social do trabalho entre a ação de executar e a ação de pensar, dirigir ou planejar”. (CIAVATTA, 2012, p. 85). Ramos (2008) apresentou os dois pilares conceptuais de uma educação integrada: a escola unitária (não dual, garantidora do direito ao conhecimento a todos) e a educação politécnica possibilitando “[...] o acesso à cultura, a ciência, ao trabalho, por meio de uma educação básica e profissional”. (RAMOS, 2008, p. 3).
O debate acerca do ensino médio integrado, tratado nesse artigo, pode ser compreendido historicamente como momento de expressão da capacidade da educação de refletir as contradições sociais advindas de relações sociais assimétricas em todas as épocas. Desde os tempos mais remotos, na Antiguidade Clássica, na
Idade Média e no atual sistema capitalista, a estratificação social em estamentos e a estrutura de classes sociais definem as segmentações educacionais. A educação formal de trabalhadores passou a ser objeto de atenção apenas com a emergência do capitalismo por conta da necessidade do capital de realizar o controle da cidadania e fazer aumentar a produtividade da força de trabalho e, por conseguinte, incrementar seus rendimentos.
No Brasil, até o século XIX a educação propedêutica era privilégio apenas dos filhos dos grandes proprietários de terra. Por sua vez, a institucionalização da educação profissional teve um sinal tímido de início com a criação do Colégio das Fábricas em 1809. Ocorreram outras iniciativas, todas com a perspectiva assistencialista e direcionadas a órfãos e crianças abandonadas. Em 1909, a criação das Escolas de Aprendizes Artífices objetivou a preparação de operários para o exercício profissional. Desde então, legislações são alteradas, mas sem que, de fato, se modifique o quadro social e educacional da diferenciação entre a formação profissional e a formação geral.
Portanto, o debate sobre ensino médio integrado trouxe à tona a questão da educação integral, um ideal até hoje distante de efetivar-se. A educação profissional permanece com um caráter excludente com relação à formação humana integral, ampla e sólida. Dessa forma, educação geral e educação profissional, cada qual com suas finalidades e objetivos bem diferenciados dentro da estrutura social, vêm concretizando a dualidade estrutural nos sistemas de ensino.
O Manifesto dos Pioneiros, em 1932, foi um sinal de resistência contra essa dualidade. Preconizava que a criança deveria ser iniciada ao trabalho de forma natural. Contudo, nos anos de 1940, a Reforma Capanema reafirmou com as Leis Orgânicas a segmentação na oferta da educação em geral e para o trabalho. Já em 1971, a Lei nº 5.692, buscou sem êxito transformar toda a educação de nível médio em profissionalizante. Assim:
[...] a divisão social e técnica do trabalho constitui-se estratégia fundamental do modo de produção capitalista, fazendo com que seu metabolismo requeira um sistema educacional classista e que, assim, separe trabalho intelectual e trabalho manual, trabalho simples e trabalho complexo, cultura geral e cultura técnica, ou seja, uma escola que forma seres humanos unilaterais, mutilados, tanto das classes dirigentes como das subalternizadas. É claro que isso não ocorre de forma mecânica, mas em uma relação dialética em razão das forças que estão em disputa e que, em alguma medida, freiam parte da ganância do capital. (MOURA; LIMA FILHO e SILVA, 2015, p.1059).
Estes autores mencionados na citação também reintroduziram no debate o questionamento sobre a possibilidade de se ter, numa sociedade capitalista, uma educação correspondente aos interesses da classe trabalhadora, omnilateral. Recordaram o programa proposto por Karl Marx, segundo o qual a:
[...] educação da classe trabalhadora deve compreender: Primeiramente: Educação mental [intelectual]. Segundo: Educação física, tal como é dada em escolas de ginástica e pelo exercício militar. Terceiro: Instrução tecnológica, que transmite os princípios gerais de todos os processos de produção e, simultaneamente, inicia a criança e o jovem no uso prático e manejo dos instrumentos elementares de todos os ofícios. (MOURA; LIMA FILHO e SILVA, 2015, p.1060).
No Brasil dos anos 1980, a proposta da politecnia e da escola unitária marcou presença nas discussões sobre a necessidade de quebrar a dualidade estrutural do ensino brasileiro. Chegou-se a cogitar uma proposta com esse espírito para fazer parte dos dispositivos da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN). Contudo, não obteve êxito, permanecendo a educação profissional separada da educação básica.
Assim, em 1996 a nova LDBEN, que nasce sem superar essa dualidade, estrutura a educação brasileira em dois níveis – educação básica e educação superior. A educação profissional aparece à parte, não estando contemplada em nenhum dos dois níveis, demarcando a dualidade de forma bastante explícita (BRASIL, 2007, p. 17). Destarte:
Enquanto o primeiro projeto de LDB sinalizava a formação profissional integrada à formação geral nos seus múltiplos aspectos humanísticos e científico-tecnológicos, o Decreto nº 2.208/97 [...] vem não somente proibir a pretendida formação integrada, mas regulamentar formas fragmentadas e aligeiradas de educação profissional em função das alegadas necessidades do mercado. (FRIGOTTO; CIAVATTA; RAMOS, 2012, p.25).
A nova LDBEN foi regulamentada pelo Decreto 2.208, de 17 de abril de 1997. Segundo ele, “[...] o ensino médio retoma legalmente um sentido puramente propedêutico, enquanto os cursos técnicos passam a ser oferecidos de duas formas: concomitante e sequencial” (BRASIL, 2007, p. 19). O projeto neoliberal, do então presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC), impôs ao país a perpetuação da dualidade, que passou a ser questionada por diversos setores ligados à educação.
Esse decreto foi destituído em 23 de julho de 2004 pelo Decreto 5.154, o qual possibilitou a existência do ensino médio integrado ao lado das outras modalidades: a concomitante e a subsequente. Ele determinou que a educação profissional fosse desenvolvida por meio de “[...] cursos e programas de formação inicial e continuada de trabalhadores, da educação profissional técnica de nível médio; e da educação profissional tecnológica de graduação e de pós-graduação” (BRASIL, 2004, s/p).
Formalmente o novo Decreto estabeleceu as condições jurídicas, políticas e institucionais para a oferta do ensino médio integrado. Ele buscou consolidar a base unitária do ensino médio e abranger a diversidade da realidade educacional brasileira. Esse Decreto 5.154 foi de fundamental importância, pois chegou num momento de profunda crise do ensino médio (BRASIL, 2007).
Em 16 de julho de 2008, a Lei 11.741 redimensiona, institucionaliza e integra as ações da educação profissional técnica de nível médio, da educação de jovens e adultos e da educação profissional e tecnológica. Ela possibilita ao educando o acesso ao ensino médio integrado, como também a oportunidade de se preparar tanto para o exercício profissional quanto para a continuidade dos estudos.
A instituição da Rede Federal de Educação Profissional Científica e Tecnológica em 29 de dezembro de 2008, com a Lei nº 11.892, cria os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IFs). Especializados na oferta de educação profissional e tecnológica nas modalidades de qualificação, ensino médio integrado, cursos superiores de tecnologia e licenciaturas. Eles atuam como instituições de educação superior, básica e profissional, pluricurriculares e multicampi, buscando a interiorização da oferta educacional a partir de cidades-polo, abrangendo o maior número possível de mesorregiões e a sintonia com arranjos produtivos, sociais e culturais locais.
As redes estaduais também foram conclamadas ao desenvolvimento do ensino médio integrado por meio do Programa Brasil Profissionalizado. Entretanto, os meandros para a concretização dessa modalidade de oferta e como o conceito de integração curricular passou a ser interpretado têm servido para mostrar que o debate em torno do assunto permaneceu aberto.
De acordo com o Parecer nº 5/11, a educação no Ensino Médio deve possibilitar aos adolescentes, jovens e adultos trabalhadores o acesso a conhecimentos que permitam a compreensão das diferentes formas de explicar o mundo, seus fenômenos
naturais, sua organização social e seus processos produtivos. Ela deve também, guardar relação com o projeto de vida dos estudantes para que a ampliação, a permanência e o sucesso deles na escola sejam imperativos:
Mais do que o acúmulo de informações e conhecimentos, há que se incluir no currículo um conjunto de conceitos e categorias básicas. Não se pretende, então, oferecer ao estudante um currículo enciclopédico, repleto de informações e de conhecimentos, formado por disciplinas isoladas, com fronteiras demarcadas e preservadas, sem relações entre si. A preferência, ao contrário, é que se estabeleça um conjunto necessário de saberes integrados e significativos para o prosseguimento dos estudos, para o entendimento e ação crítica acerca do mundo. (CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO, 2011, p. 40).
Segundo o Parecer nº 11/12, que apresenta proposições para as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Profissional Técnica de Nível Médio, a profissionalização é um direito inalienável do cidadão consagrado no art. 227 da Constituição Federal:
É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (BRASIL, 1988, s/p).
A Resolução nº 6/2012 reafirma a possibilidade de oferta da educação Profissional Técnica de Nível Médio integrada ao Ensino Médio. Apresenta como finalidade proporcionar ao estudante conhecimentos, saberes e competências profissionais necessários ao exercício profissional e da cidadania. Ela guarda como princípios a relação e articulação entre a formação desenvolvida no Ensino Médio e a preparação para o exercício das profissões técnicas, visando à formação integral do estudante; à indissociabilidade entre educação e prática social, à historicidade dos conhecimentos e dos sujeitos da aprendizagem; à interação entre teoria e prática no processo de ensino-aprendizagem, à contextualização, flexibilidade e interdisciplinaridade na utilização de estratégias educacionais favoráveis à compreensão de significados e à integração entre a formação e a vivência da prática profissional. Esta concepção envolve as múltiplas dimensões do eixo tecnológico do curso e das ciências e tecnologias a ele vinculadas; dentre outras. O artigo 14 dessa Resolução destaca o que deve ser proporcionado aos estudantes:
- diálogo com diversos campos do trabalho, da ciência, da tecnologia e da cultura como referências fundamentais de sua formação;
- elementos para compreender e discutir as relações sociais de produção e de trabalho, bem como as especificidades históricas nas sociedades contemporâneas;
- recursos para exercer sua profissão com competência, idoneidade intelectual e tecnológica, autonomia e responsabilidade, orientados por princípios éticos, estéticos e políticos, bem como compromissos com a construção de uma sociedade democrática;
- domínio intelectual das tecnologias pertinentes ao eixo tecnológico do curso, de modo a permitir progressivo desenvolvimento profissional e capacidade de construir novos conhecimentos e desenvolver novas competências profissionais com autonomia intelectual;
- instrumentais de cada habilitação, por meio da vivência de diferentes situações práticas de estudo e de trabalho;
- fundamentos de empreendedorismo, cooperativismo, tecnologia da informação, legislação trabalhista, ética profissional, gestão ambiental, segurança do trabalho, gestão da inovação e iniciação científica, gestão de pessoas e gestão da qualidade social e ambiental do trabalho. (CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO, 2012a, s/p).
(negritos não originais).
A Lei nº 13.005/14 aprova o Plano Nacional de Educação – PNE, estabelece 20 metas para a educação e traça estratégias para alcançá-las. Dentre as diretrizes está a formação para o trabalho e para a cidadania com ênfase nos valores morais e éticos. Dentre as metas propostas destaca-se a de número onze que propõe triplicar as matrículas da educação profissional técnica de nível médio, assegurando a qualidade da oferta e pelo menos 50% (cinquenta por cento) da expansão no segmento público. Para tal, estabelece como estratégias: expandir as matrículas na rede Federal; fomentar a expansão da oferta nas redes públicas estaduais; expandir a oferta às populações do campo, indígenas, quilombolas, para pessoas com deficiências e altas habilidades; elevar os investimentos; dentre outras.
Destacam-se neste debate sobre a aprovação do Plano Nacional de Educação
– PNE os trabalhos de Moura (2012, 2013) e Moura, Lima e Silva (2015) que trouxeram argumentos sobre a necessidade da integração entre a formação humanística e a profissional, entre os conhecimentos gerais e específicos, tendo por base os eixos do trabalho, da ciência, da tecnologia e da cultura. Frigotto, Ciavatta e Ramos (2012) também associam essa integração à formação integral do ser humano. Eles afirmam que “[...] a integração do ensino médio com o ensino técnico é uma necessidade conjuntural – social e histórica – para que a educação tecnológica se efetive para os filhos dos trabalhadores”. Alegam que esse é o caminho para a “[...]
travessia em direção ao ensino médio politécnico e à superação da dualidade educacional”. (2012, p. 45).
Araújo (2014) defende a integração entre os saberes e práticas locais com as práticas sociais globais. Lima e Sperandio (2017, p. 144) evidenciam a “[...] integração orgânica dos saberes”, das pessoas, dos tempos, dos espaços e dos conteúdos na instituição.
Lima e Sperandio (2017) salientam ser preciso formar um cidadão completo. Argumentam que é necessário que o aluno tenha uma melhor compreensão de si mesmo, do outro, do mundo natural, social, econômico, produtivo e do momento histórico onde está.
Araújo (2014) realça a importância da formação ampla dos trabalhadores como forma de promover sua autonomia e expandir seus horizontes. Revela ser função do ensino médio integrado:
Assegurar aos jovens e adultos que a ele acorrem as ferramentas culturais que permitam aos jovens as habilidades comunicativas, o desenvolvimento do raciocínio lógico, os instrumentos para se situarem em seu tempo e em seu contexto social e a construção do pensamento racional-científico, em oposição ao pensamento mágico próprio da infância. (ARAUJO, 2014, p.19).
Moura (2012, 2013) e Moura, Lima e Silva (2015) entendem que a função da integração curricular é a de acabar com a dicotomia, com dualidade social e educacional. Para eles é necessário promover o pensamento crítico-reflexivo como forma de compreender as concepções, problemas, crises e potenciais da sociedade e contribuir para a construção de novos padrões de produção de conhecimento, de ciência e de tecnologia. E que é preciso “[...] proporcionar o acesso aos conhecimentos científicos e tecnológicos produzidos e acumulados pela humanidade” com o objetivo de contribuir na formação do trabalhador, intelectualmente autônomo, participativo, solidário, crítico (Moura, 2012, p.4).
Machado (2009, p.1) concorda que é preciso fomentar: um olhar crítico, a habilidade de problematizar e de esclarecer os dilemas apresentados por situações ambivalentes ou por contradições. Somente assim mostrar-se-á cada ação didática como parte de um conjunto organizado e articulado, favorecendo a formação de “[...] pessoas abertas, interessadas, curiosas, críticas, solidárias e de iniciativa”.
Frigotto, Ciavatta e Ramos (2012, p. 42) também destacam que a função maior do ensino médio integrado é a de promover a superação do dualismo. Afirmam que
“[...] o papel do ensino médio deveria ser o de recuperar a relação entre conhecimento e prática do trabalho”. Indicam ser objetivo do ensino médio “[...] propiciar aos adolescentes a formação politécnica necessária à compreensão teórica e prática dos fundamentos científicos das múltiplas técnicas utilizadas no processo produtivo”.
Frigotto (2012, p. 78) afirma que a integração busca “[...] alterar as relações sociais que produzem a desigualdade social e assegurar os direitos sociais básicos, entre eles a educação básica, gratuita, laica, unitária, politécnica e universal”. Isso concorreria para a construção de um projeto de desenvolvimento com justiça social e efetiva igualdade, a democracia e cidadania substantivas em resposta às imposições das novas bases técnicas da produção e às exigências do trabalho complexo.
Ciavatta (2012) salienta a importância da incorporação da dimensão intelectual ao trabalho produtivo tendo em vista a formação de trabalhadores capazes de atuar como dirigentes e cidadãos. Para fazer essa integração, Araújo (2014) sugere a utilização de projetos e práticas em que cada educador deve se tornar um militante social ativo e ter uma atitude integradora. Já Lima e Sperandio (2017, p. 142) ressaltam que é necessário “[...] melhorar a gestão e ampliar os recursos para a educação” para o ensino não ser tratado como mercadoria e passar a ser um direito, “[...] com acesso gratuito, universal e de qualidade”.
Frigotto (2012) enfatiza que, para isso, é preciso proporcionar a materialidade das condições: laboratórios, bibliotecas, material didático, tempo de estudo, formação, condições de trabalho e salário dos professores etc. Machado (2009) acrescenta a articulação criativa das dimensões do fazer, do pensar e do sentir.
Frigotto, Ciavatta e Ramos (2012) defendem a politecnia, o domínio dos fundamentos científicos das diferentes técnicas que caracterizam o processo de trabalho produtivo moderno. Assim, o trabalhador poderá desenvolver diferentes modalidades de trabalho compreendendo sua essência e caráter. Isso significa:
[...] propiciar aos alunos o domínio dos fundamentos das técnicas diversificadas utilizadas na produção, e não o mero adestramento em técnicas produtivas. Não se deveria, então, propor que o ensino médio formasse técnicos especializados, mas sim politécnicos. (FRIGOTTO; CIAVATTA; RAMOS, 2012, p. 42).
A concepção de politecnia diz respeito a uma educação voltada para a superação da divisão social do trabalho existente numa sociedade dividida em classes. Ela representa “[...] incorporar no ensino médio processos de trabalho reais,
possibilitando-se a assimilação não apenas teórica, mas também prática, dos princípios científicos que estão na base da produção moderna”. (FRIGOTTO; CIAVATTA; RAMOS, 2012, p. 42).
Para Moura (2012, 2013) e Moura, Lima e Silva (2015), é preciso considerar os seguintes pressupostos na construção dos projetos político-pedagógicos: construção coletiva (inclusive com pais e representantes da comunidade, docentes); diálogo com os projetos anteriores e o vigente (desafio da mudança e transformação – na forma e na gestão); formação continuada dos dirigentes, docentes e técnicos mediante estratégias de estudos para a reflexão sobre a função da escola.
Lembra Moura (2012) que há diferença entre conhecimento científico e conhecimento escolar. O primeiro precisa ser didatizado para chegar à escola, ser transformado em conhecimento escolar e, nesse processo, muitas conexões se perdem. Para minimizar os prejuízos, seria preciso usar estratégias para se organizar o currículo, globalizadoras e “[...] baseadas em: problemas; centros de interesses; projetos; complexos temáticos; investigação do meio, entre outras”. (2012, p. 12). São metodologias que buscam substituir a centralidade das disciplinas pela complexidade das relações da ciência com o mundo real. Entretanto, tais estratégias na prática, apresentam riscos e fragilidades. No ensino médio, existe a necessidade do aprofundamento teórico, visto que cada disciplina “[...] se caracteriza por ter objeto próprio de estudo e método específico de abordagem”, o que inviabilizaria a utilização de metodologias globalizadoras. (MOURA, 2012, p. 12).
Santomé (1988) sugeriu a utilização de metodologias mistas, com dois espaços e tempos. Um com atividades integradoras e o outro com o aprofundamento teórico nas disciplinas. Tendo como base os argumentos apresentados, Moura (2012) opta por propor “[...] uma organização por disciplinas (recorte do real para aprofundar conceitos) com atividades integradoras (imersão no ou simulação do real para compreender a relação parte totalidade por meio de atividades interdisciplinares)” (MOURA, 2012, p. 13). Como atividades integradoras, ele sugere as aulas de campo, a elaboração de projetos, a construção de protótipos, a iniciação científica etc., desenvolvidas relacionando o trabalho com situações reais, estabelecendo conexões. Por exemplo, tratando de temas como: “Trabalho/Natureza; Trabalho/Sociedade; Trabalho/Ciência e Tecnologia; Trabalho/Cultura”. (MOURA, 2012, p. 14).
Araújo (2014) considera que tanto docentes quanto gestores educacionais seriam os responsáveis pela promoção da integração curricular no ensino médio, trabalho que requer ser feito de forma coletiva e colaborativa.
Lima e Sperandio (2017) alertam que apesar de existir vários documentos legais que preveem e amparam a oferta de cursos técnicos integrados, a organização curricular e as formas de acesso não estão explicitados em nenhum lugar. Nesses documentos deveriam conter a forma como deve ser feita a integração, como deve ser gerida, incentivada ou quais atitudes a gestão deve tomar a fim de cobrar dos docentes para que ela seja fortalecida.
Moura (2012, 2013 e 2015); Frigotto (2012); Frigotto, Ciavatta e Ramos (2012) referem-se ao importante papel da legislação para a efetivação do ensino médio integrado como uma política sólida de ensino. Particularmente, os três últimos destacam a
[...] necessidade de as políticas públicas de formação profissional superarem o viés assistencialista/compensatório e promover a inclusão social. Assim, elas devem estar necessariamente articuladas às políticas de desenvolvimento econômico locais, regionais e nacional, ao sistema público de emprego, trabalho e renda [...]. (FRIGOTTO, CIAVATTA e RAMOS, 2012, p. 39).
Moura (2012) chama a atenção para a gestão democrática do projeto político- pedagógico, para a necessidade de participação da comunidade escolar, dos pais e comunidade externa. Frigotto (2012) também defende essa interlocução entre docentes, gestores, educadores e sociedade na gestão de projetos pedagógicos escolares.
Segundo Frigotto, Ciavatta e Ramos (2012), ter a educação básica de nível médio como direito social e universal deve ser a condição para uma formação profissional que possa corresponder às mudanças da base técnica da produção e formar trabalhadores capazes de lutar por sua emancipação. Isto significa praticar a formação profissional não como adestramento e adaptação às demandas do mercado e do capital. Estes autores entendem que a:
[...] formação geral é uma condição necessária para se fazer a “travessia” para uma nova realidade. [...] o Decreto n. 5.154/2004 pretende reinstaurar um novo ponto de partida para essa travessia, de tal forma que o horizonte do ensino médio seja a consolidação da formação básica unitária e politécnica, centrada no trabalho, na ciência e na cultura, numa relação mediata com a formação profissional específica que se consolida em outros níveis e modalidades de ensino (FRIGOTTO; CIAVATTA; RAMOS, 2012, p. 43).
Frigotto (2012) afirma que a primeira função da escola básica, em especial para os filhos da classe dos trabalhadores, é formar a base dos conhecimentos, valores e estimular as crianças para o aprendizado, para estudar, pensar, se comunicar e viver em grupo. Nesse sentido, Ferreira e Garcia (2012, p. 165) afirmam que “[...] a integração do ensino médio à educação profissional pressupõe a formação de pessoas que compreendam a realidade e que possam atuar como profissionais”. Tais considerações são justificadas por Nóvoa (1999) quando diz que: “As democracias dependem da cidadania ativa e consciência clara das nossas responsabilidades sociais. A escola é a melhor instituição que pode cumprir esta tarefa, talvez a única”. (NÓVOA, 1999, p.2).
Com este artigo, buscou-se resgatar o debate político e pedagógico sobre currículo integrado e ensino médio integrado levado a efeito nas últimas décadas. Essa discussão ganhou grande importância para a história da educação brasileira, especialmente a que concerne à educação profissional, dando ênfase ao pensamento crítico.
As contribuições de diferentes autores serviram de luz aos anseios de todos os que entenderam e entendem que a proposta do ensino médio integrado, considerando o contexto da realidade social brasileira caracterizada por profundas desigualdades sociais, representa uma promessa de grande importância para a efetivação do direito universal à educação integral e de qualidade social.
Por conta dos limites estruturais de um artigo, optou-se por recuperar os elementos principais deste debate para a análise crítica da história e da produção do conhecimento sobre os temas tratados. Reconhece-se, contudo, a grande extensão da produção bibliográfica e documental, fundamentais ao seu acurado e merecido registro histórico.
Com esse artigo, teve-se a intenção de resgatar conceitos fundamentais para situar teórica e metodologicamente as particularidades das contradições entre o capital e o trabalho no contexto das políticas educacionais brasileiras das últimas décadas concernentes ao ensino médio e à educação profissional.
Isso se faz importante porque as questões que esse debate traz ganha novos desdobramentos por conta das dificuldades que o ensino médio integrado tem encontrado para se efetivar no país. Além da necessidade de se avaliar avanços a despeito da complexidade que essa proposta possui e para conjecturar sobre as perspectivas do seu desenvolvimento futuro em face das implicações trazidas pela reforma do ensino médio instituída pela Lei 13.415/17, que trouxe um novo artigo para a LDB, denominado 35-A. Ele é responsável por vincular os direitos e objetivos de aprendizagem no Ensino Médio à Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e em conformidade com áreas do conhecimento.
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V.18, nº 35 - 2020 (jan-abr) ISSN: 1808-799 X
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v18i35.40497
Olívia Morais de Medeiros Neta2 Francisco das Chagas Silva Souza3
Resumo
Neste artigo, analisamos o Portal da Memória do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte (IFRN). A metodologia constou de um levantamento dos tipos de elementos presentes nesse Portal. Verificamos que o conteúdo disponibilizado no Portal pode ser entendido como fontes para temas de estudo em história da Educação Profissional, a saber: história das instituições, cultura escolar, currículo, cultura material escolar e sociabilidades. Destacamos que as fontes presentes nesse Portal não falam per se, mas trazem a possibilidade de acesso às dimensões da história e da memória da educação institucional, possibilitando a democratização da memória relativa à historicidade do IFRN.
Palavras-chave: Educação Profissional. História da educação. Memória. Fonte histórica.
HISTORICIDAD DE LA EDUCACIÓN PROFESIONAL: EL PORTAL DE MEMORIA DEL IFRN
Resumen
En este artículo, analizamos el Portal de Memoria del Instituto Federal de Educación, Ciencia y Tecnología de Rio Grande do Norte (IFRN). La metodología consistió en una encuesta de los tipos de elementos presentes en este Portal. Descubrimos que el contenido disponible en el Portal puede entenderse como fuentes de materias de estudio en la historia de la Educación Vocacional, a saber: historia de las instituciones, cultura escolar, plan de estudios, cultura del material escolar y sociabilidad. Hacemos hincapié en que las fuentes presentes en este Portal no hablan en sí, sino que brindan la posibilidad de acceder a las dimensiones de la historia y la memoria de la educación institucional, lo que permite la democratización de la memoria en relación con la historicidad de la IFRN. Palabras clave: Educación profesional. Historia de la educación. Memoria. Fuente histórica.
THE HISTORICITY OF PROFESSIONAL EDUCATION: THE IFRN MEMORY PORTAL
Abstract
In this article, we analyze the Memory Portal of the Federal Institute of Education, Science and Technology of Rio Grande do Norte (IFRN). The methodology consisted of a survey of the types of elements present in this Portal. We found that the content available on the Portal can be understood as sources for studying subjects in the history of Vocational Education, namely: history of institutions, school culture, curriculum, school material culture and sociability. We emphasize that the sources present in this Portal do not speak per se, but they have the possibility
1 Artigo recebido em 15/09/2019. Primeira Avaliação em 07/10/2019. Segunda Avaliação em 08/10/2019. Aprovado em 08/11/2019. Publicado em 23/01/2020.
2 Possui graduação em História (Licenciatura e Bacharelado), mestrado em História e doutorado em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. E-mail: olivianeta@gmail.com Orcid: https://orcid.org/0000-0002-4217-2914
3 Doutor em Educação (UFRN), professor do Programa de Pós-Graduação em Educação Profissional (IFRN), do Programa de Pós-Graduação em Educação Profissional e Tecnológica (ProfEPT – Mestrado Profissional em Rede Nacional) e do Programa de Pós-Graduação em Ensino (UERN/IFRN/UFERSA). E-mail: chagas.souza@ifrn.edu.br Orcid: https://orcid.org/0000-0002-9721-9812
of accessing to the dimensions of history and memory of institutional education. Therefore, it enables the democratization of the memory related to the historicity of IFRN.
Keywords: Professional Education. History of education. Memory. Historical sources.
Em 23 de setembro de 1909, o então Presidente da República do Brasil, Nilo Peçanha, criou 19 Escolas de Aprendizes Artífices, uma em cada estado da federação. Em 2009, o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte (IFRN) comemorava, junto com outras instituições federais de Educação Profissional, seu primeiro centenário.
No IFRN, em meio às festividades comemorativas do seu centenário, uma das ações mais representativas foi a criação do Portal da Memória, cuja finalidade era apresentar ao público interno e externo a história dessa instituição de ensino, destacando os principais acontecimentos de sua trajetória por meio de cronologia, fotografias e depoimentos de sujeitos que fizeram parte do corpo escolar em temporalidades distintas. Portanto, na “festa do centenário”, como ficou conhecida a programação do aniversário, não só interessava a celebração, mas a guarda da memória institucional com o uso das tecnologias digitais.
Nosso objetivo, neste artigo, é analisar o Portal da Memória do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte (IFRN) considerando o seu conteúdo e o seu caráter de lugar de memória institucional à Educação Profissional. Por isso, partimos das seguintes questões de investigação: o que foi selecionado para ser arquivado no Portal como marcas da memória da Educação Profissional da instituição? Que imagem de si essa instituição visa criar por meio do Portal?
Para responder a essas questões, realizamos um levantamento das narrativas visuais (fotografias digitalizadas, depoimentos orais) e escritas arquivadas no Portal da Memória do IFRN para, em seguida, analisar como esse arquivo se converteu em um lugar de memória na perspectiva de Nora (1993). Portanto, com base nesses pressupostos, dividimos esse texto em duas partes. Na primeira, descrevemos o conteúdo presente do Portal e, em seguida, com base nos estudos sobre memória, discutimos como ele foi construído para ser um lugar de memória da instituição de ensino.
Como nos ensina Halbwachs (2006), são as condições sociais do presente que possibilitam as manifestações da memória. Assim, não é possível compreendermos o porquê da existência do Portal da Memória do IFRN sem considerarmos duas datas: 23 de setembro de 1909 e 29 de dezembro de 2008. Na primeira, o Presidente da República Nilo Peçanha criou, por meio do Decreto nº. 7.566, 19 Escolas de Aprendizes Artífices, dando início às políticas do Governo Federal brasileiro no ensino de ofícios (BRASIL, 1909). Na segunda, o Presidente Luís Inácio Lula da Silva, por meio da Lei nº. 11.892, instituiu a Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica, e criou 38 Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IF), trazendo uma nova institucionalidade para as antigas Escolas de Aprendizes Artífices que, ao longo do século XX, mudaram várias vezes de denominação (BRASIL, 2008). Portanto, essas duas importantes datas não apenas destacam o centenário dessa instituição de Educação Profissional, mas também são importantes marcos que alteraram profundamente a história dessa modalidade de ensino no Rio Grande do Norte e no Brasil.
Todavia, como é de se supor, o aniversário de um século não poderia ficar sem uma celebração. Partindo desse argumento, o IFRN, à época Centro Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte (CEFET-RN), deu início, já em 2006, a um projeto intitulado “A caminho do centenário”, cuja finalidade era apresentar às comunidades interna e externa a história de seus cem anos, destacando os principais acontecimentos que marcaram sua trajetória. Como parte desse projeto, foi criado o Portal da Memória, planejado para ser um museu virtual, por meio do qual os seus visitantes têm acesso a fatos que marcaram o funcionamento dessa instituição ao longo do século XX.
O Portal da Memória do IFRN está dividido em sete seções:
Uma agenda com atividades ocorridas no mês de setembro de 2009 em comemoração ao centenário: eventos esportivos e culturais, encontro de ex-alunos, ato ecumênico, apresentações artísticas, sessão na câmara municipal de Natal, exposições técnicas e culturais nos campi Mossoró e Currais Novos.
Uma cronologia com imagens fotográficas da instituição: fachadas dos prédios onde funcionou ao longo da sua história, solenidades, criação de cursos técnicos.
Na seção denominada “atos e fatos” estão disponibilizadas decisões administrativas da gestão, construções de prédios, fotografias de eventos esportivos e da banda de música, além de outros registros de acontecimentos que marcaram a sua história.
O quarto item é composto por depoimentos orais, gravados em entrevistas feitas com ex-diretores, professores aposentados e ex-alunos da instituição, alguns destes últimos hoje servidores do IFRN, alguns aposentados.
Na quinta seção encontramos depoimentos escritos por servidores atuais e aposentados e de ex-alunos relatando fatos que marcaram as suas histórias de vida e que tem relação com essa instituição de Educação Profissional.
No item ex-diretores, encontramos fotografias e dados biográficos de todos os diretores que passaram pela gestão do IFRN desde quando este era denominado Escola de Aprendizes Artífices de Natal.
Na sétima e última parte, encontramos uma relação de eventos que ocorreram na instituição e que se relacionam com a festa do centenário, mas também que fazem de sua história do tempo presente.
Por conseguinte, é possível destacar a importância deste arquivo virtual para o campo da História da Educação Profissional no Brasil. Quanto a esse tema, ressalta-se que, embora se perceba muitos esforços no incentivo aos estudos no campo da História da Educação brasileira, destes, segundo afirma Cunha (2000), poucos foram dedicados à História da Educação Profissional do Brasil. Há quase duas décadas, esse pesquisador considerava que a produção acadêmica, nesse campo, apresentava “espaços vazios”:
Esse “espaço vazio” se explica, pelo menos em parte, pelo fato de que os historiadores da educação brasileira se preocupam, principalmente, com o ensino que se destina às elites políticas e ao trabalho intelectual, deixando o trabalho manual em segundo plano – atitude consistente, aliás, com sua própria formação (CUNHA, 2000, p. 89).
A produção acadêmica deu grande ênfase à educação denominada propedêutica, destinada às elites, em detrimento da educação profissional. Essa negação ao ensino profissional pode encontrar explicação na íntima relação deste
com a marginalização a qual foram relegados os trabalhos manuais, ocupados por escravos, índios e homens livres pobres no início da história do Brasil.
Quinze anos depois de Cunha fazer esse comentário, Ciavatta também ressaltou esse problema na produção historiográfica no Brasil:
[...] à exceção de poucos, raros são os historiadores que se dedicam ao estudo da Educação [...] estudam o Trabalho em suas diversas formas e temporalidades, mas não a relação entre o mundo do trabalho e a educação ou a escola. Da outra parte, no Brasil, são ainda mais raros os historiadores de Educação que se dedicam à pesquisa envolvendo o trabalho, a divisão social do trabalho e a estrutura das classes sociais. Prevalecem os estudos com base na história cultural que, na maioria das vezes, são interessantes, mas se dedicam a cuidadosas e documentadas descrições (CIAVATTA, 2015, p. 47).
O conteúdo do Portal da Memória do IFRN contribui para a historicidade da Educação Profissional no Brasil, mais especificamente para uma abordagem acerca da história das instituições escolares, um dos temas mais recorrentes nos eventos acadêmicos na área da educação.
Os estudos de Nosella e Buffa (2013), Magalhães (1996, 2004), Saviani (2007, 2013), Sanfelice (2006), dentre outros pesquisadores da história das instituições escolares, salientam que estas têm uma temporalidade e não podem ser estudadas afastadas de um contexto maior, visto que estão associadas a projeto de político e de sociedade. Sendo assim:
Compreender e explicar a existência histórica de uma instituição educativa é, sem deixar de integrá-la na realidade mais ampla que é o sistema educativo, contextualizá-la, implicando-a no quadro de evolução de uma comunidade e de uma região, é por fim sistematizar e (re) escrever-lhe o itinerário de vida na sua multidimensionalidade, conferindo um sentido histórico. (MAGALHÃES, 1996, p. 2).
Também é elucidativa a análise feita por Sanfelice (2006, p. 23):
As instituições escolares têm também uma origem quase sempre muito peculiar. Os motivos pelos quais uma unidade escolar passa a existir são os mais diferenciados. Às vezes a unidade escolar surge como uma decorrência da política educacional em prática. Mas nem sempre. Em outras situações a unidade escolar somente se viabiliza pela conquista de movimentos sociais mobilizados, ou pela iniciativa de grupos confeccionais ou de empresários. A origem de cada instituição escolar, quando decifrada, costuma nos oferecer várias surpresas.
Com base nas observações de Magalhães (1996) e de Sanfelice (2006), podemos afirmar que o Portal da Memória e as fontes a ele associadas possibilitam pesquisas no campo da história das instituições escolares considerando os seguintes enfoques: os processos de criação e o ciclo de vida de uma instituição educativa, criada em 1909 com vistas a oferta do ensino de ofícios; a configuração e as mudanças ocorridas na arquitetura do prédio escolar; os processos de conservação e mudança do perfil dos docentes e discentes; as formas de configuração e transformação do saber veiculado nestas instituições de ensino; as concepções de Educação Profissional presentes nos discursos de gestores, servidores e ex-alunos, dentre outros temas.
O Portal também se preocupa em registrar, por meio de imagens fotográficas e relatos orais gravados em vídeos, algumas práticas do cotidiano da instituição que diz respeito à cultura escolar, categoria de análise definida por Julia (2001, p. 10) como:
[…] um conjunto de normas que definem conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar, e um conjunto de práticas que permitem a transmissão desses conhecimentos e a incorporação desses comportamentos; normas e práticas coordenadas a finalidades que podem variar segundo épocas (finalidades religiosas, sociopolíticas ou simplesmente de socialização). (Grifos do autor).
A cultura escolar como categoria de análise tem, atualmente, lugar privilegiado nos referenciais teórico-metodológicos de pesquisas no campo da História da Educação e em grupos de trabalho ou eixos temáticos de congressos desse mesmo campo. De acordo com Faria Filho e Vidal (2003, p. 10) a utilização da cultura escolar contribuiu para “adentrar a ‘caixa preta’ da sala de aula”, possibilitando “[...] desnaturalizar a instituição escolar, historicizando a própria institucionalização da educação escolar e discutindo de forma articulada os tempos, espaços, sujeitos, materiais e conhecimentos envolvidos naquilo que alguns têm chamado de processo de escolarização da sociedade”.
As memórias a respeito das normas, das finalidades que regiam a escola, da profissionalização do trabalho do educador, dos conteúdos ensinados e das práticas escolares, podem ser encontradas na seção “Mensagens”. Nela, depoimentos como o de José do Nascimento, ex-aluno da então Escola Industrial de Natal (EIN), de 1945
a 1948, enaltecem a função social dessa instituição. O entrevistado ressalta que a EIN “[...] era a grande esperança [...]” para os alunos pobres, pois a formação técnica oportunizaria a inserção no mercado de trabalho bem como uma ampla formação para a vida.
Também na seção “Mensagens”, Walter Medeiros, ex-aluno do Ginásio Industrial e do Curso Técnico em Mineração, no final da década de 1960, lembra da cor caqui da farda, da disciplina escolar, do trabalho nas oficinas e das aulas de Educação Física. Nessa mesma perspectiva memorialística, Severino do Ramo, ex- aluno da Escola Industrial de Natal e, posteriormente, professor da instituição, entre 1965 e 1995, narrou suas experiências sobre o cotidiano escolar e como ocorriam as práticas educativas no Centro Lítero-Recreativo Nilo Peçanha. O Centro foi fundado em 1940, na Escola Industrial de Natal e durante décadas reuniu alunos com fins de leitura e discussão de textos, realização de eventos cívicos e outras atividades no espaço escolar e extraescolar.
Ainda quanto à cultura escolar e às possibilidades de análise nas fontes veiculadas no Portal da Memória destacamos fontes imagéticas e orais que destacam o ensino de música na instituição em outras temporalidades – fosse o ensino do canto orfeônico, com a professora Lourdes Guilherme, ex-aluna do músico Heitor Villa- Lobos, na Escola Industrial de Natal, nas décadas de 1940 até o início da década de 1960; ou as apresentações do Coral da Escola Técnica Federal do Rio Grande do Norte, criado em 1975, denominado Lourdes Guilherme, em homenagem à docente de música.
Nos depoimentos orais de ex-alunos e ex-professores, as práticas esportivas são sempre rememoradas como indispensáveis à formação humana e cidadã. Dessa forma, Augusto Serrano e Ferdinando Teixeira rememoram as aulas e as competições esportivas que ocorriam nas décadas de 1970, principalmente. Sobre a prática de Educação Física, fontes escritas na seção “Depoimentos” e imagéticas, na seção “Atos e Fatos”, corroboram com os comentários tecidos pelos entrevistados.
Considerando que a cultura escolar se vincula às análises de normas e práticas com vistas ao corpo profissional, aos dispositivos pedagógicos e aos modos de pensar e ler nos processos formais de escolarização, na história dessa instituição de Educação Profissional, a disciplina é temática recorrente, estando presente na memória escrita ou falada de ex-alunos, professores e dirigentes. Aqui, especificamente, realçamos o
papel do Corpo de Vigilantes, criado nos anos de 1940, que tinha como propósito ampliar o controle sobre as atitudes e os comportamentos dos alunos.
O Corpo de Vigilantes era formado por um grupo de nove alunos titulares e três suplentes, escolhidos pelos professores, com a aprovação do diretor. Dentre os depoimentos que citam o Corpo de Vigilantes está o de Maurílio Pinto, ex-aluno da Escola Industrial de Natal, que relembra as exigências e punições referentes às práticas no interior da escola e em suas cercanias.
Por conseguinte, pode-se dizer que a criação do Portal da Memória do IFRN teve a finalidade de “resgatar” a memória, mesmo que isso não ocorra de forma pura e sem influências do presente e da posição social em que se encontram os sujeitos.
Essa memória coletiva
[...] tira a sua força e sua duração por ter como base um conjunto de pessoas, são os indivíduos que se lembram, enquanto integrantes do grupo. Dessa massa de lembranças comuns, umas apoiadas nas outras, não são as mesmas que aparecerão com maior intensidade a cada um deles. De bom grado, diríamos que cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva, que este ponto de vista muda segundo o lugar que ali ocupo e que este lugar muda segundo as relações que mantenho com outros ambientes. Não é de surpreender que nem todos tirem o mesmo partido do instrumento comum. Quando tentamos explicar essa diversidade, sempre voltamos a uma combinação de influências que são todas de natureza social (HALBWACHS, 2006, p. 69).
Importa destacar que, apesar do esforço institucional em guardar essas memórias para as gerações presentes e as do futuro, esse trabalho de arquivamento apresentou alguns problemas com que diz respeito à rigorosidade metodológica que deve assumir um pesquisador: recortes de jornais escaneados e com poucas condições de leitura, ausência de datas nas gravações dos relatos orais, fotografias sem data, legenda e autoria. Todavia, acreditamos que essas limitações não tiram desse Portal a capacidade de democratizar a memória institucional e criar representações sobre o passado do atual IFRN, nem ainda de mostrar como esse passado é recortado e construído pela comunidade acadêmica e pelo grupo gestor.
Para Bloch (2001, p. 75), “o passado é, por definição, um dado que nada mais modificará. Mas o conhecimento do passado é uma coisa em progresso, que incessantemente se transforma e se aperfeiçoa”. Entretanto, diz adiante esse historiador que “os textos ou os documentos arqueológicos, mesmo os aparentemente mais claros e mais complacentes não falam senão quando sabemos interrogá-los” (2001, p. 79).
A vida na/da escola também tem se constituído em objeto de estudo dos historiadores. Tornou-se frequente a divulgação do patrimônio educativo por meio da criação de museus em vários países, como ressalta Mogarro (2012/2013), sobretudo na primeira década do século XXI, um movimento que “exprime modalidades simultaneamente convergentes e específicas de perspectivar o patrimônio educativo e a cultura escolar” (2012/2013, p. 70). Em seu estudo, a autora faz um balanço do panorama internacional da criação e revitalização de museus da educação e dos museus pedagógicos, como também das iniciativas de salvaguarda e divulgação de coleções patrimoniais existentes nas escolas.
Linares e Alderoqui (2013) também ressaltam a expansão dos museus da educação no final do século XX e os distinguem dos museus pedagógicos do século
Estes últimos “tenían un fuerte carácter prospectivo y fundante de las nuevas teorías pedagógicas, metodologías, utillaje, política y estrutura escolar a la par de la intención de construir identidades nacionales” (2013, p. 3). Já os atuais museus, “Pueden ser caracterizados como museos históricos y es discutible la intención de construir identidades nacionales, aunque para algunos sea un objetivo explícito”. Além disso, diferenciam-se também quanto ao público para o qual se destinam. “Los museos pedagógicos decimonónicos estaban orientados a los maestros o a los estudiantes de magisterio. Los museos actuales, aunque plantean diferencias, se orientan hacia un público más general” (2013, p. 4). As autoras observam ainda que:
El Museo de las Escuelas es considerado un museo de última generación porque difiere en cuanto al enfoque y la forma en que el visitante interactúa con la exhibición. En este tipo de museos se promueve una participación más creativa por parte de los visitantes quienes tienen las posibilidades de elegir entre diferentes opciones de interacción (LINARES E ALDEROQUI, 2013, p. 5).
A partir do exposto, podemos afirmar que o Portal da Memória do IFRN foi idealizado e criado num cenário mais amplo. Os dados que dispõem aos seus
visitantes não são simples lembranças relativas à comemoração de um século de história e à preocupação do IFRN com o “resgate” do passado institucional, como se pudéssemos trazer à tona acontecimentos pretéritos de maneira pura e isenta de qualquer influência pessoal. Sobre esse aspecto, não podemos deixar de lembrar Benjamin (1994) ao refletir que o narrador não está interessado em transmitir o “puro em si” da coisa narrada como uma informação ou relatório. “Ela [a narrativa] mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele. Assim se exprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso” (1994, p. 205, grifo nosso).
Contudo, se Benjamin, na primeira metade do século XX, anunciava os riscos que os avanços da mídia traziam para a função desempenhada pelas narrativas (aconselhar e transmitir experiências), hoje, ao contrário disso, alguns estudiosos dão relevo à expansão das narrativas por outros suportes, como a mídia eletrônica. Defende-se que esta não sufocaria as narrativas orais como manifestação da memória coletiva, mas sim, conviveria com ela. Nessa direção, Santos e Santos (2012, p. 162) explicam que “O ciberespaço constitui, portanto, espaços-tempos de práticas sociais cujo objetivo não é o de inibir ou acabar com práticas anteriores. Não se trata de uma lógica excludente [...].” Dessa maneira, para essas autoras, os ambientes online e sua dinâmica possibilitam a criação de
redes sociais de docência e aprendizagem, pois permite experiências significativas de aprendizagem nos diferentes espaçostempos da cibercultura, assim, outras e novas redes educativas vão emergindo e inspirando novas práticas cotidianas” (SANTOS; SANTOS, 2012, p. 180).
Diante do exposto, o Portal da Memória, como arquivo/museu escolar digital, nasceu com o desenvolvimento das novas tecnologias da comunicação geradas pela memória eletrônica, na segunda metade do século XX. Esta, ao contrário da instabilidade e da maleabilidade da memória humana, é estável e apresenta uma grande facilidade de evocação, como afirma Le Goff (2003). Porém, para este historiador, a memória eletrônica
só age sob a ordem e segundo o programa do homem [...] como todas as outras formas de memórias automáticas aparecidas na história, a memória eletrônica não é senão um auxiliar, um servidor da memória e do espírito humano” (LE GOFF, 2003, p. 463, grifo nosso).
Lévy (1997) assinala que novas maneiras de conviver estão sendo elaboradas no mundo das telecomunicações e da informática. As relações entre os homens, o trabalho e a própria inteligência dependem de uma metamorfose incessante de dispositivos informacionais de todos os tipos. Por conseguinte, “não se pode mais conceber a pesquisa científica sem uma aparelhagem complexa que redistribui as antigas divisões entre experiência e teoria. Emerge, nesse final do século XX, “um conhecimento por simulação que os epistemologistas ainda não inventariaram” (1997,
p. 7, grifos do autor).
Lévy lamenta a aversão e o distanciamento que muitos intelectuais ainda têm com relação à técnica, um dos temas filosóficos e políticos do nosso tempo. No seu entender, as categorias usuais da filosofia do conhecimento, tais como o mito, a ciência, a teoria, a interpretação ou a objetividade, dependem intimamente do uso histórico, datado e localizado de certas tecnologias individuais. Daí defender que “a técnica e as tecnologias intelectuais em particular têm muitas coisas para ensinar aos filósofos sobre filosofias e aos historiadores sobre história” (LÉVY, 1997, p. 11).
O pensamento individual, as instituições sociais e as técnicas de comunicação articulam-se para compor “coletivos pensantes homens-coisas”, transgredindo as fronteiras tradicionais das espécies e reinos. Esses elementos formam um “coletivo dinâmico povoado por singularidades atuantes e subjetividades mutantes”, que Lévy denomina de “ecologia cognitiva” (1997, p. 11).
O Portal da Memória se insere no campo dessas discussões teóricas traçadas por Benjamin, Le Goff e Lévy. Ele se enquadra na cultura da atualidade “intimamente ligada à ideia de interatividade, de interconexão, de inter-relação entre homens, informações e imagens dos mais variados gêneros” (COSTA, 2008, p. 8). Nasce com um objetivo bem definido: mostrar à geração do presente e à do futuro um passado institucional glorioso, imaculado, reforçado nas falas dos entrevistados e nas mensagens expostas nesse arquivo. Documentos que antes não tinham uma pretensão clara de criar uma imagem institucional, tornam-se “provas” do êxito dessa instituição. Para tanto, seus idealizadores selecionaram imagens, relatos, recortes de jornal, dentre outros registros, para apresentar ao público e, assim, consolidar uma memória que não limite ao campo individual, mas também ao coletivo.
Nesse aspecto, é possível considerar esse Portal como um “lugar de memória” definido pelo historiador francês Pierre Nora, como:
[...] lugares, com efeito nos três sentidos da palavra, material, simbólico e funcional, simultaneamente, somente em graus diversos. Mesmo um lugar de aparência puramente material, como um depósito de arquivos, só é lugar de memória se a imaginação o investe de aura simbólica. Mesmo um lugar puramente funcional, como um manual de aula, um testamento, uma associação de antigos combatentes, só entra na categoria se for objeto de um ritual. Mesmo um minuto de silêncio, que parece o extremo de uma significação simbólica, é ao mesmo tempo o recorte material de uma unidade temporal e serve, periodicamente, para uma chamada concentrada da lembrança. Os três aspectos coexistem sempre. (NORA, 1993, p. 21-22).
Os lugares de memória estariam nas fronteiras dessas vivências. A reflexão de Nora se inicia com a expressão “aceleração da história”, que é relacionada ao atual contexto de mundialização em que nos encontramos, cujas transformações incessantes e as suas decorrências, levam-nos a sentir cada vez mais a ameaça do esquecimento e, por conseguinte, pretendemos aprisionar o que sobrou do passado. Por isso, “os lugares de memória são, antes de tudo, restos”, diz esse historiador (1993, p. 12). Daí a obsessão que temos hoje pelo registro, pelos traços e pelos arquivos.
Museus, arquivos, cemitérios e coleções, festas, aniversários, tratados, processos verbais, monumentos, santuários, associações, são os marcos testemunhais de uma outra era, das ilusões de eternidade. Daí o aspecto nostálgico desses empreendimentos de piedade, patéticos e glaciais. São os rituais de uma sociedade sem ritual; sacralizações passageiras numa sociedade que dessacraliza; fidelidades particulares de uma sociedade que aplaina os particularismos; diferenciações efetivas numa sociedade que nivela por princípio; sinais de reconhecimento e de pertencimento de grupo numa sociedade que só tende a reconhecer indivíduos iguais e idênticos. (NORA, 1993, p. 13).
São lugares onde a memória se cristaliza e se refugia. Eles se originam e vivem do sentimento que não existe memória espontânea e, por isso, “é preciso criar arquivos, é preciso manter aniversários, organizar celebrações, pronunciar elogios fúnebres, notariar atas, porque estas operações não são naturais”, diz Nora (1993, p. 13). Para ele, caso vivêssemos as lembranças que esses lugares envolvem, eles seriam inúteis e, portanto, não seriam construídos.
Ciavatta (2012, p. 96) também faz alusão à escola como um lugar de memória:
Por ser um espaço ocupado pela infância e a juventude, cujo sentimento do passado é quase inexistente, a escola [...], parece ser um lugar de memória ainda mais esmaecido. No entanto, esse sentimento aflora com o passar do tempo e até a vivência com os colegas de infância e de juventude tornam-se, mais tarde, densos “lugares de memória”, contribuindo para a construção de uma identidade singular e, ao mesmo tempo, coletiva, como pertencimento a um tempo, a um grupo com as marcas desse tempo. (CIAVATTA, 2012, p. 96)
Podemos considerar que o uso, em larga escala, das novas tecnologias da informação tem permitido a emergência de uma nova versão dos lugares de memória, propiciada, dentre outros fatores, pela digitalização de imagens e pela enorme, ou infinita, capacidade de armazenamento de dados que essas novas máquinas possuem.
Face ao exposto, podemos afirmar que o IFRN, da mesma forma que outras instituições escolares, “produz memórias ou imaginários. Mobiliza ou desmobiliza grupos de pessoas e famílias; assinala sua presença em comemorações, torna-se notícia na mídia”. Logo, não é apenas um prédio que agrupa sujeitos para trabalharem, ensinarem, aprenderem etc. (SANFELICE, 2006, p. 25). O movimento inverso também ocorre, pois a instituição é objeto de interesses contraditórios de ordem econômica, política, ideológica, religiosa e cultural, dentre outros.
Tem-se observado, nas últimas décadas, a emergência de um significativo interesse pela escola e pelo seu passado. Historiadores e investigadores da história da educação passaram a eleger o patrimônio material e a memória das instituições escolares. Conforme Mogarro (2012/2013, p. 69): “A divulgação do patrimônio educativo tem vindo a consolidar-se também com os museus virtuais, que incorporam a dimensão da formação cívica, do exercício de cidadania e contribuem para a construção de identidades individuais e coletivas”
No que tange à pesquisa no Portal da Memória, esta evidenciou a grande preocupação do IFRN em guardar memórias da Educação Profissional, reforçando uma representação de continuidade histórica e conquistas, daí a preocupação em
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destacar vitórias em jogos, construção de edifícios, atos das gestões, relatos orais e escritos de seus ex-alunos e ex-professores, dentre outros registros. No que diz respeito aos depoimentos de ex-servidores, eles são eivados de emoções e demonstram a imbricação entre as experiências dos sujeitos e a história da instituição. O Portal da Memória, ao mesmo tempo em que representa um potencial instrumento de democratização da memória na modernidade, ao acabar com as fronteiras físicas e temporais entre os sujeitos que o acessam, é também um desafio, visto que representa um novo modo de produzir, registrar e guardar a memória no mundo contemporâneo. A partir de novos suportes, e considerando que documento tem o seu “conceito em expansão” (KARNAL; TATSCH, 2009), cabe ao historiador o desafio de compreender a relação do singular com o geral, visto que essa instituição
escolar não pode ser conhecida fora de um contexto maior.
Compreendemos, com base na literatura que trata dos arquivos escolares, que as instituições de ensino, a exemplo do IFRN, devem desenvolver uma política de conservação da documentação e dos testemunhos e sensibilizar os seus atores do valor desses arquivos como patrimônio cultural, embora não sejamos ingênuos para considerar uma neutralidade na organização e seleção desses documentos. Nesse aspecto, as novas tecnologias da informação e da comunicação muito podem contribuir para o acesso e a democratização desses dados.
Para que isso ocorra, Vieira (2013) destaca a necessidade de se realizar um trabalho integrado, com a participação de pesquisadores de história da educação, de arquivistas e de profissionais da área da tecnologia que lhe assegure adequada gestão dessas fontes, com critérios bem definidos de guarda e descarte de documentação.
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V.18, Nº 35 - 2020 (jan-abr) ISSN: 1808-799 X
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v18i35.40499
REVISTA POLIVISÃO: EDUCAÇÃO PROFISSIONAL E EDUCAÇÃO INTEGRAL/INTEGRADA NA VISÃO DOS DOCENTES
DE UMA ESCOLA POLIVALENTE1
Maria Augusta Martiarena de Oliveira2
Resumo3
No ano de 1986, circulou na cidade de Osório, no estado do Rio Grande do Sul, a Revista Polivisão. Esse periódico era produzido pelos docentes da Escola Polivalente daquela cidade. Essa instituição integrou uma rede de escolas criada no âmbito dos acordos entre o Ministério da Educação (MEC) e a Agência Internacional para o Desenvolvimento (USAID). O objetivo do presente artigo é analisar a compreensão dos docentes de uma Escola Polivalente sobre educação integral/integrada e formação profissional. Para tanto, utiliza-se a imprensa pedagógica como fonte de pesquisa.
Palavras-chave: história da educação profissional; imprensa pedagógica; Escolas Polivalentes.
REVISTA POLIVISIÓN: EDUCACIÓN PROFESIONAL Y EDUCACIÓN INTEGRAL / INTEGRADA EN LA VISIÓN DE LOS DOCENTES DE UNA ESCUELA POLIVALENTE
Resumen
En el año 1986, circuló en la ciudad de Osório, en el estado de Rio Grande do Sul, la Revista Polivisión. Este periódico era producido por los docentes de la Escuela Polivalente de aquella ciudad. Esta institución integró una red de escuelas creada en el marco de los acuerdos entre el Ministerio de Educación (MEC) y la Agencia Internacional para el Desarrollo (USAID). El objetivo del presente artículo es analizar la comprensión de los docentes de una Escuela Polivalente sobre educación integral / integrada y formación profesional. Para ello, se utiliza la prensa pedagógica como fuente de investigación.
Palabras clave: historia de la educación profesional; prensa pedagógica; Escuelas Polivalentes.
POLIVISÃO MAGAZINE: PROFESSIONAL EDUCATION AND INTEGRAL/INTEGRATED EDUCATION IN THE VISION OF THE TEACHERS OF A POLIVALENT SCHOOL
Abstract
In the year 1986, the Polivisão Magazine was circulated in the city of Osório, in the state of Rio Grande do Sul. This journal was produced by the professors of Polyvalent School of the mentioned city. This institution integrated a network of schools created under the agreements between the Ministry of Education (MEC) and the International
1 Artigo recebido em 24/06/2019. Primeira avaliação em 06/09/2019. Segunda avaliação em 04/10/2019. Aprovado em 12/01/2020. Publicado em 23/01/2020.
2 Doutora em Educação pela Universidade Federal de Pelotas. Pós-doutorado em Educação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul. E-mail: augusta.martiarena@osorio.ifrs.edu.br e martiarena.augusta@gmail.com. https://orcid.org/0000-0002-1118-3573
3 Este trabalho faz parte de um projeto maior, intitulado “História e memória da educação profissional: o caso da Escola Maria Teresa Vilanova Castilhos – Escola Polivalente” e conta com um bolsista PIBIC
– CNPq e fomento do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul – IFRS.
Agency for Development (USAID). The purpose of this article is to analyze the understanding of the teachers of a Polyvalent School on integral/ integrated education and professional formation. For this, the pedagogical press is used as a research source.
Key words: history of professional education; pedagogical press; Polyvalent Schools
Pensar como se constituíram historicamente as relações entre educação e trabalho, bem como as suas influências nas acepções, na legislação e nas práticas que envolvem a educação profissional é ponto importante para os historiadores da educação que se dedicam à compreensão da história da educação profissional. O presente trabalho pretende analisar a compreensão dos docentes de uma Escola Polivalente sobre educação integral/integrada e formação profissional. A proposta de ensino integrado está presente na Lei nº 11.892, de 29 de dezembro de 2008, que criou os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul. Por integrar tal rede, considera-se fundamental dedicar-se à compreensão das concepções que se referem a esse tipo de ensino.
A análise de tal contexto se dá a partir da imprensa pedagógica como documento de investigação. Deve-se ter em conta que o presente estudo se assenta na Revista Polivisão, da qual conta-se com apenas três números. Tal periódico era produzido pelos professores da Escola Maria Teresa Vilanova Castilhos – Escola Polivalente e circulou na cidade de Osório, no estado do Rio Grande do Sul, no ano de 1986. Os números foram encontrados no Arquivo Histórico Antonio Stenzel Filho, instituição ligada à Assessoria de Cultura da Prefeitura Municipal de Osório.
Considera-se relevante o estudo de um órgão da imprensa pedagógica, cuja circulação ocorreu no litoral norte gaúcho, pois há um número restrito de investigações sobre tal região. Além disso, embora existam pesquisas sobre a rede de escolas polivalentes, ainda há muito o que estudar sobre tais instituições e sobre os embates entre o tecnicismo proposto com a sua criação e a as práticas que vieram a se efetivar nas escolas. Ressalta-se, ainda, que os docentes que escreviam para tal revista nem sempre integravam o quadro da Escola Polivalente, mas atuavam na cidade de Osório, notadamente na rede estadual de ensino.
Como mencionado, o presente trabalho dedica-se ao estudo das concepções de ensino integrado, com base nos textos publicados na Revista Polivisão, cuja circulação ocorreu na década de 1980. Deve-se ter em conta que, o contexto em que tal órgão circulou na região é marcado pela redemocratização política, após vinte e um anos de governo ditatorial e ressalta- se que, o periódico foi publicado no primeiro ano de redemocratização. Torna-se necessário, ainda, apontar para o contexto de movimentos sociais em que os docentes da rede estadual,
rede a qual as escolas polivalentes vinculavam-se, encontravam-se4. Logo, o contexto político e social influenciou sobremaneira a escrita, as práticas e os debates que serão apresentados neste estudo.
A Escola Maria Teresa Vilanova Castilhos é fruto dos acordos firmados entre o então Ministério da Educação e da Cultura (MEC) e a Agência Internacional de Desenvolvimento (USAID). Essa agência internacional contratou quatro especialistas para atuaram como consultores por dois anos, em conjunto com quatro educadores brasileiros, constituindo-se como a equipe responsável por implementar as ações previstas pelo convênio, estruturando-se a EPEM (Equipe de Planejamento do Ensino Médio) nacional, integrada por oito membros. Tal grupo assessorava os estados na implantação das EPEMs locais, subordinadas à nacional.
Faz-se necessário destacar que o entendimento de Ensino Médio não se encontra relacionado ao atual, cuja denominação remonta à Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, promulgada em 1996 (Lei nº 9394/96). As Escolas Polivalentes atendiam o equivalente às séries finais do Ensino Fundamental, que antes de 1971, recebiam o nome de ensino ginasial. O Rio Grande do Sul integrava os estados que foram atendidos pela Equipe de Planejamento do Ensino Médio (EPEM), que deu origem ao PREMEM (Programa de Expansão e Melhoria do Ensino Médio), o qual foi regulamentado pelo Decreto n. 63.914, de 26 de dezembro de 1968, e visava incentivar o desenvolvimento quantitativo, a transformação estrutural e o aperfeiçoamento do ensino médio.
Aproveita-se o desenvolvimento dessa explicação no que se refere à compreensão de ensino médio ou secundário para justificar a discussão de uma educação integral no que seria o equivalente às séries finais do ensino fundamental, tendo em vista que, conforme Gallo (1996), Proudhon considerava que a educação politécnica ocuparia o espaço do ensino secundário, o qual pode ser tanto considerado, em âmbito nacional o ensino médio (2.º grau), como incluir às séries finais do ensino fundamental (antigo ginásio, considerado ensino secundário).
Sobre o tema ver: MAUER; PIRES; MARTIARENA DE OLIVEIRA, 2017 e MAUER; SILVA; MARTIARENA DE OLIVEIRA, 2016.
Tanto Araújo (2010), como Resende e Gonçalves Neto (2013), relacionam a criação da rede de escolas polivalentes, com a reforma educacional estabelecida pela Lei nº 5.692/715, que se dedicou à reformulação dos ensinos de 1º e 2º graus e tornou o último obrigatório e necessariamente profissionalizante. Conforme Araújo (2010), a viabilização dos recursos esteve atrelada às diretrizes que pautavam a proposta para essas instituições, as quais visavam, principalmente, atender a demanda de mão de obra barata, assim como o atendimento assistencialista das classes menos favorecidas. Em consonância com os apontamentos do autor supracitado, Souza e Lima (2016, p. 77) afirmam que: “A Pedagogia Tecnicista é compreendida tendo sua origem no Brasil a partir da tendência subordinada à lógica produtivista do mercado de trabalho, sob a aprovação da Lei nº 5.692, de 11 de agosto de 1971, a qual buscou sua extensão a todas as escolas do país [...]”. Entende-se, portanto, que a educação tecnicista se encontra vinculada à proposta de formação para o mercado de trabalho, como apontam os autores.
A Escola Polivalente de Osório foi inaugurada no dia 14 de novembro de 1974, a qual, conforme nota da imprensa local: “[…] cumpre, fiel e cabalmente, os objetivos dispostos nos primeiros artigos da Lei da Reforma do Ensino, ou seja, a sondagem de aptidões e a iniciação para o trabalho” (PLANADOR, 1975, p. 15). A matéria publicada nessa revista foi assinada por José Carlos Becker, Diretor do PREMEM. Pode-se perceber a vinculação da proposta educacional proveniente das relações entre o MEC e a USAID, notadamente no que tange às aptidões e a preparação para o trabalho. A relação entre o estabelecimento da escola na cidade de Osório e tais acordos também são evidenciadas na mesma matéria: “O custo do Polivalente anda ao redor de Cr$ 3.000.000,008 (três bilhões antigos), provindos de convênios entre USAID, MEC, SEC e Prefeitura Municipal” (PLANADOR, 1975, p. 15). Em consonância com as afirmações realizadas por Araújo (2010), Resende e Gonçalves Neto (2013), bem como Souza e Lima (2016), percebe-se que a implantação dessa rede envolveu recursos de instituições diferentes, bem como das esferas nacional, estadual e municipal.
Destaca-se que tal legislação atuou no sentido de alterar a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei n.º 4.024, de 20 de dezembro de 1961.
Com base nas informações presentes na revista Planador, a escola contava com 32 professores que receberam treinamento para atuarem nesse tipo de escola. Becker destacava que o Pessoal Técnico-administrativo, segundo ele Diretor, Vice, Coordenador e Orientador, havia cursado, no mínimo, duas faculdades. Como mencionado anteriormente, a instituição recebia os alunos das séries finais do 1º grau. Em 1975, a escola contava com 640 alunos. O diferencial da proposta referia-se à inclusão de disciplinas técnicas no currículo (técnicas industriais, técnicas comerciais, técnicas agrícolas e técnicas domésticas).
Entretanto, ainda que as Escolas Polivalentes tenham sido criadas para configurarem- se em propaganda do regime militar e, conforme Souza e Lima (2016), viabilizar a entrada antecipada de jovens no mercado de trabalho, a sua estrutura ampla e organizada, bem como a circulação de docentes que propiciou, atuaram no sentido de manutenção dos estudantes na escola e na vida escolar. Deve-se ter em conta que a história das instituições escolares está marcada pelas políticas públicas, mas, também, pela atuação dos sujeitos integrantes da comunidade escolar. Nesse sentido, ao realizar-se uma aproximação com a Revista Polivisão e seu escopo, por exemplo, percebe-se como a proposta da instituição e de suas disciplinas técnicas foi ressignificada.
Como mencionado anteriormente, a Revista Polivisão foi um periódico coordenado e editado pelos docentes da Escola Polivalente de Osório. Embora presume-se a existência de números anteriores, conta-se apenas com os três números publicados em 1986. Ainda que as revistas contem com contribuições do corpo discente e de outros membros da comunidade escolar, a mesma pode ser considerada como imprensa dos professores, tendo em vista o que afirma Hernández Díaz:
El origen de la prensa pedagógica de los profesores va muy vinculado al proceso de afirmación de los maestros, de los profesores, como profesionales especializados y miembros de un grupo amplio de personas com problemas e intereses compartidos em el sector de la enseñanza [...], (HERNÁNDEZ DÍAZ, 2018, p. 19).
Deve-se ter em conta que, a revista objeto desta investigação foi produzida durante um período de fortalecimento da identidade docente, por meio dos movimentos de greve do magistério estadual, que assolaram o Rio Grande do Sul entre o final da década de 1980 e a década de 1990. Conforme Bulhões (1992, p.11): “Na década de 1980, a luta do magistério público estadual do Rio Grande do Sul acompanhou, em
linhas gerais, a trajetória do movimento sindical brasileiro”. Esses períodos de forte reivindicação e engajamento, representam momentos de estreitamento dos laços identitários, o que caracterizou o momento de produção da Revista Polivisão. Compreende-se que é relevante pesquisar o mesmo, pois, de acordo com Hernández Díaz:
El periódico profesional de los maestros, em versión semanal, quincenalo mensual, siempre que no se vea sometido a una aparición irregular por razones técnicas, económicas o políticas que lo impidan, ofrece a sus lectores artículos de opiniõn sobre política escolar, o sobre aspectos relacionados com la innovación educativa [...], (HERNÁNDEZ DÍAZ, 2018, p. 25).
A Revista Polivisão configura-se em documento muito relevante para o estudo da cultura escolar, da aplicação ou não das políticas educativas e do pensamento pedagógico que circulava entre os docentes. Tais revistas são manifestações de um tempo e um espaço definido, mas o seu estudo gera contribuições para o entendimento dos docentes do litoral norte gaúcho e do magistério estadual, bem como para compreender a rede de escolas polivalentes. Dentro os temas considerados relevantes, encontra-se a compreensão de escola e de ensino integrado/integral.
Ensino integrado/integral: um desafio à dualidade estrutural presente na educação brasileira
Deve-se ter em conta que a Escola Polivalente, criada durante o período ditatorial, relaciona-se aos ideais de polivalência, os quais, de acordo com Cruz, Ramos e Silva (2017):
O termo polivalência ou polivalente no período que compreende o governo militar foi apresentado pelo Conselho Federal de Educação, a partir das indicações do Conselheiro Valnir Chagas. Este conselheiro apresentou algumas indicações que tinham como foco a regulamentação (CRUZ; RAMOS; SILVA, 2017, p. 1189).
Tais autoras afirmam que o Parecer nº 895/71 retomou a ideia de polivalência ao indicar que o professor polivalente atuaria no 1.º e 2.º graus e poderia ministrar diferentes disciplinas, o que estaria atrelado a uma formação generalista. Entretanto, ao realizar uma leitura atenta dos textos produzidos pelos docentes, verifica-se que,
diferentemente do que era pautado pela legislação, os docentes preocupavam-se com uma formação integral.
Estudar os debates sobre educação integrada a partir dos textos dos professores da rede estadual de ensino, publicados na Revista Polivisão constitui-se em reflexão relevante. Ao verificar no periódico a presença de tal tema, propôs-se as seguintes questões: Como os professores da Escola Polivalente de Osório e da rede estadual de ensino cuja atuação ocorria na cidade de Osório-RS pensavam a educação integrada na década de 1980? Suas pautas se davam a partir de suas práticas ou, além dessas, havia referenciais teóricos que embasavam os seus posicionamentos? Nesse sentido, o presente trabalho trata de compreender como discussões que ocorriam esfera nacional eram apreendidas e ressignificadas na base.
Ainda que o tema ensino integrado seja extremamente atual, especialmente no que tange à realidade dos Institutos Federais de Educação, deve-se ter em conta que tais concepções remontam de períodos anteriores. A defesa do ensino integrado encontra- se, em geral, ligada ao enfrentamento do que Moura (2007) denomina como dualidade estrutural na educação brasileira. Segundo o autor: “A relação entre a educação básica e profissional no Brasil está marcada historicamente pela dualidade”, (MOURA, 2007, p. 5). Tal dualidade, mencionada pelo autor, refere-se à diferenciação de uma educação para as elites e de uma educação para as camadas populares, ora cerceada, ora assistencialista. De acordo com Ciavatta (2009, p. 175):
A educação pelo trabalho é um dos movimentos de políticas educacionais que podem ser identificadas na história da educação brasileira. Ele parece restrito em sua abrangência, mas é profundo como questão recorrente no quadro da formação social brasileira. Trata-se de um movimento do Estado e da sociedade civil que, primeiro, respondia aos sentimentos morais e religiosos da época e, depois, às necessidades “nacionais” da indústria nascente.
Tendo em vista essa significação, questiona-se como a defesa da superação entre uma educação para as elites e uma educação para as camadas populares se desenvolveu em uma instituição criada a partir dos acordos MEC-USAID. Nesse sentido, faz-se necessário entender como os docentes compreendiam o contexto educacional.
O estudo das concepções presentes entre os docentes realiza-se a partir dos textos publicados na seção Educação. Deve-se ter em conta que, ao longo dos três números, algumas seções, conforme Martiarena de Oliveira (2018, p. 220): “repetem-se
(Educação, Política, Psicologia e Comunicações), outras constam em dois números (Esportes, Escola, Pesquisa e Passatempo), outras constam em apenas um número (Economia/meio ambiente; Reflexão, Sociedade, Saúde, Folclore e Correspondência)”. Dessa forma, a seção que serviu como base para esta pesquisa, esteve presente em todas edições. Destaca-se que a mesma contou com três matérias no primeiro número, quatro no segundo e cinco no terceiro. No primeiro número, temos os seguintes artigos:
Número | Título do artigo | Autor (a) |
1 | A palavra do Secretário de Educação | Pronunciamento do Prof. Plácido Steffen |
Objetivos educacionais da Educação Física | Valdionor Aguiar da Costa | |
A escola em uma estrutura capitalista | Anilda M. de Souza | |
2 | A escola está sendo democrática? | Suely Eva dos N. Braga |
Quando será que a educação... | Mercedes Marchant Wolff | |
O ensino técnico agropecuário no contexto educacional brasileiro | Sebastião Fich da Rosa | |
Qualificação ou preparação para o trabalho | Roque José Walker | |
3 | O equacionamento da educação nacional | Mercedes Marchant Wolff |
Preparação para o trabalho | Mercedes Marchant Wolff | |
Educação Ambiental | Sebastião Fich da Rosa | |
Escolha profissional | Serviço de Orientação Educacional | |
Clube de matemática da Escola Rural de Osório | Elena Maria Hass Chemale Jussanã Conceição de Paula Marques Salete Oliveira Adib Tânia Raquel Oliveira Filho |
Fonte: Elaborado pela autora
A partir desse conjunto de textos, iniciou-se a identificação de quais abordavam diretamente o termo integrado, logo, localizou-se apenas o artigo intitulado “Preparação para o trabalho”, de autoria de Mercedes Wolff. Além do termo integrado, buscou-se outras categorias que são consideradas chave no ensino integrado, como:
compreensão de homens e mulheres como seres históricos; 2) trabalho como princípio educativo; 3) a pesquisa como princípio educativo; 4) interdisciplinaridade e
contextualização6. Além disso, foram destacados textos de professores que se dedicaram a refletir sobre o papel da escola na sociedade em que viviam.
Deve-se ter em conta que, de acordo com Ciavatta (2014), a proposta de ensino integrado conta como origem remota a educação socialista que pretendia a formação omnilateral.
Gramsci, conforme Dore (2014), entendia que qualificar operários não significava democratizar a escola, mas representava a possibilidade de que cada cidadão pudesse tornar-se governante. No Brasil, o ensino integrado origina-se a partir dos debates entre a educação politécnica e a educação tecnológica, embora Ciavatta (2014) reforce que a defesa dessa educação omnilateral estava presente desde a década de 1980 e integrou os debates da elaboração da LDB de 1996. Ciavatta (2007), nos afirma que:
Nos anos 1980, para a elaboração da educação na nova Constituição aprovada em 1988 e para a nova Lei de Diretrizes e Bases (LDB 9.394/1996), discutiu-se muito a questão da educação politécnica, da escola unitária e do trabalho como princípio educativo. Fazer a crítica da profissionalização compulsória (segundo a Lei 5.692/1971) e defender a introdução do trabalho na educação levava à questão de pensar o trabalho como princípio educativo, pensar a educação politécnica, o que significa a educação do ser humano em toda a sua potencialidade, (CIAVATTA, 2007, p. 131).
Nesse sentido, selecionou-se excertos que demonstravam a forma como os professores da Escola Polivalente de Osório compreendiam a escola e o seu contexto.
N.º | Artigo | Excerto |
1 | A escola em uma estrutura capitalista | As relações sociais de produção capitalista se definem pela separação entre o trabalho produtivo e a propriedade dos meios de produção. De um lado, o operariado (trabalhadores) possui a força de trabalho. De outro, os burgueses (patrões) são proprietários dos meus de produção. Assim, verifica-se a exploração do operariado pela burguesia, onde o acúmulo de |
Tais categorias foram definidas a partir de Moura (2007). O texto do autor apresenta cinco eixos norteadores para o desenvolvimento do ensino integrado vinculado à formação profissional, o eixo “d) a realidade concreta como uma totalidade, síntese das múltiplas relações” não foi mencionado por entender-se que a contextualização, presente na categoria seguinte, o contempla. O eixo de interdisciplinaridade e contextualização, conforme Moura (2007) contempla, ainda, flexibilidade. Entretanto, nos textos publicados na Revista Polivisão, não há referência a tal tema, mesmo indiretamente.
capital se dá pela extorsão da mais valia, (SOUZA, 1986, n. 1, p. 41). | ||
1 | A escola em uma estrutura capitalista | “O Aparelho Ideológico Escolar, sob controle permanente do Estado, ocupa um lugar privilegiado, inculcando a ideologia dominante. Contribui para a reprodução das relações sociais de produção através da divisão social do trabalho (manual X intelectual). Essa desigualdade reforça as necessidades do capital, uma vez que a escola, principalmente a profissionalizante, inculca no futuro trabalhador as técnicas rudimentares, mas indispensáveis, de adaptação ao maquinismo”, (SOUZA, 1986, n. 1, p. 41). |
1 | A escola em uma estrutura capitalista | “A escola não reflete as diferenças entre seus destinatários (alunos). Ela os explora e produz as desvantagens. É na escola que se realiza essencialmente a discriminação social. Todos são tratados da mesma maneira. A todos é solicitado o mesmo livro, o mesmo material, como se todos tivessem igual ritmo de trabalho e mesma capacidade de aquisição de conhecimentos. Impõe forma de linguagem e de cultura determinada, mais próximas das que vigoram na família burguesa”, (SOUZA, 1986, n. 1, p. 42). |
1 | A escola em uma estrutura capitalista | “Essa luta não pode ser apenas dos educadores no sentido de refletir os conteúdos e os métodos de ensino tecnicista”, (SOUZA, 1986, n. 1, p. 42). |
2 | O ensino técnico agropecuário no contexto educacional brasileiro | “A família patriarcal estabelece como objetivo primário a procriação, onde o casamento é um arranjo grupal e o filho representa status e mão-de-obra barata, e também, aumento do poderio econômico e político, ficando a relação efetiva como fim secundário. As oligarquias rurais evoluíram, comandaram a política e o Brasil, ao longo da História, importou tecnologia e desenvolveu um modelo altamente concentrador de riquezas, onde só os ricos tinham acesso à cultura, situação que ainda se verifica em nossos dias”, (ROSA, 1986, n. 2, p. 20). |
2 | O ensino técnico agropecuário no contexto educacional brasileiro | A partir de 1966, quando se firmou o acordo MEC-USAID, se firmou a ideologia da profissionalização e do desenvolvimento e os peritos deste acordo acabaram concluindo que a educação técnica profissionalizante era o ideal para a educação brasileira (na sua lógica, o que era bom para os EEUU é bom para o Brasil), estando sublimar a ideia de produção mais racional com mão-de- obra barata para exportar a países desenvolvidos e manter nosso país como colônia continental. Na realidade, esta ideologia está a serviço do capitalismo (mão- de-obra barata e especializada – Lei 5692/71) e de outro lado, grupos dirigentes (reforma do ensino superior). A educação como sistema é dependente do sistema econômico e é dentro da sociedade de classe que exerce um papel ideológico: “o de ocultar o projeto social e econômico da classe dominante - Gadotti, 1975.”(ROSA, 1986, n. 2, p. 21). |
2 | O ensino técnico agropecuário no contexto educacional brasileiro | Nos últimos vinte anos a educação teve um caráter eminentemente técnico e isto conduziu a uma alienação política que hoje se reflete na carência de liderança, outrora abundante, (ROSA, 1986, n. 2, p. 22). |
Fonte: Elaborada pela autora
Como pode ser percebido, os textos que abordam de forma geral o contexto educacional foram publicados pela Professora Anilda M. de Souza e pelo Professor Sebastião Fich da Rosa. Ambos apresentam referências de autores como Cunha7 e Gadotti8. Ao analisar os excertos, percebe-se que existe uma forte crítica com relação ao papel da escola enquanto instituição reprodutora do sistema vigente, de uma sociedade de classes, a reprodução das desvantagens sociais. Ressalta-se, ainda, que as críticas dos docentes pairam, inclusive, sobre a forma como a instituição em que atuavam foi criada, o que pode ser percebido notadamente, quando Rosa (1986), menciona os acordos MEC-USAID e a intencionalidade do regime vigente quando da criação da rede de escolas polivalentes, em formar mão de obra pouco onerosa.
A hegemonia estrangeira, principalmente dos Estados Unidos, é amplamente criticada, bem como o papel periférico/marginal ocupado pelo Brasil em esfera global. Outro assunto criticado é, justamente, a dicotomia entre o trabalho manual e o intelectual, que, conforme citado anteriormente, refere-se à dualidade estrutural que o ensino integrado objetiva, na opinião de Moura (2007), superar.
Agora, passa-se a identificar os excertos conforme as categorias mencionadas.
Compreensão de homens e mulheres como seres históricos
N.º | Artigo | Excerto |
2 | O ensino técnico agropecuário no contexto educacional brasileiro | É na escola que se firmam valores, que se estrutura a personalidade, a auto-imagem e a própria identidade como pessoa, (ROSA, 1986, n.2, p.19). |
2 | O ensino técnico agropecuário no contexto educacional brasileiro | A educação não deve ser um mecanismo de perpetuação de estruturas sociais anteriores, mas um mecanismo de implantação de estruturas sociais ainda que imperfeitas: as democráticas, (ROSA, 1986, n. 2, p. 19). |
3 | Educação Ambiental | A sala de aula é um espaço muito limitado em relação às potencialidades do indivíduo, por isso, ela deve ser aberta, renovadora, democrática, (ROSA, n. 3, 1986, p. 25). |
3 | Educação Ambiental | Talvez, o melhor legado que se possa deixar às gerações futuras não sejam as informações na área cognoscível, mas a nossa ação respeitosa para com o ambiente natural, o nosso espírito de harmonia, a nossa luta para a conquista de um espaço democrático em que as decisões sejam tomadas pela própria comunidade, (ROSA, n. 3, 1986, p. 25). |
CUNHA, Luiz Antonio. Uma leitura da Teoria da Escola Capitalista. Rio de Janeiro: Achiame, 1980.
No texto é referenciado Gadotti, 1975, entretanto não há a referência completa.
3 | Educação Ambiental | O educador, ao assumir uma nova postura, estará contribuindo para o aperfeiçoamento social, assumindo um compromisso mais amplo, mais abrangente e responsável, (ROSA, n. 3, 1986, p. 27). |
3 | Educação Ambiental | A Escola, com seu corpo docente e discente participantes, pode e deve ser o agente das mudanças pelas quais passa a educação ambiental, dando-lhes um tratamento globalizado, de modo que não seja mais uma matéria no currículo, mas esteja presente em todas as formas de conhecimento, pois há uma interdependência e uma intercomplementariedade de todos os fatores que garantem a qualidade de vida, (ROSA, n. 3, 1986, p. 27). |
Fonte: Elaborada pela autora
A compreensão de alunas e alunos enquanto seres históricos capazes de realizar uma transformação social foi uma constante nos dois textos publicados pelo prof. Sebastião Fich da Rosa. No texto “O ensino técnico agropecuário no contexto educacional brasileiro”, o professor afirma a importância do papel da escola em desenvolver determinados valores nos discentes, bem como o papel da educação em realizar uma transformação social.
A partir do tema “educação ambiental”, o prof. Sebastião Fich da Rosa, também aponta para a compreensão de que mulheres e homens são seres históricos, logo, podem se constituir em sujeitos de transformação social. Nessa compreensão, tanto docentes, como discentes são englobados e chamados a fazer a diferença em ações que objetivem a construção de um meio ambiente mais sadio. Tais afirmações tecidas por Rosa (1986), encontram-se em consonância com o que aponta Moura (2007), que entende que o ensino integrado deve buscar a autonomia e a emancipação através de sua participação responsável e crítica nas esferas cultural, social, econômica e política.
Trabalho como princípio educativo
N.º | Artigo | Excerto | |
2 | O ensino técnico agropecuário no contexto educacional brasileiro | A educação técnica deve estar em equilíbrio com a educação política, pois é preciso saber por que fazer, (ROSA, 1986, n. 2, p. 22). | |
3 | Educação Ambiental | […] a educação deve ser permanente, prática e aproveitar os fatos concretos, por isso temos que pensar em algo mais que o recinto da escola, tomando iniciativas constantes, estimulando, rompendo as relações formais e as estruturas viciadas, (ROSA, n. 3, 1986, p. 27). |
3 | Preparação para o trabalho | A Escola Maria Teresa Vilanova Castilhos, no cumprimento da determinação do Ministério de Educação e Cultura, a partir do ano de 1985, deu início à implantação da Lei 7044/82, que introduziu significativas alterações na Lei 5692/71, no sentido de uma abordagem em que o homem tenha possibilidade de tornar-se apto para inserir-se criticamente no mundo do trabalho, (WOLFF, 1986, n. 3, p. 6). |
3 | Preparação para o trabalho | Os alunos estão desenvolvendo trabalhos nas áreas de Técnicas Industriais, no torno, e escultura em madeira com o Professor Onofre Ramos. Nas artes gráficas, com as Professoras Ana Eulália Simoni e Marilú Nozari, um grande grupo de alunos já desenvolve trabalho de grande qualidade. O professor Domeciano Netto procura atender a grande expectativa de um grupo de alunos que, em função da forma de abordagem dos assuntos, buscaram subsídios nas técnicas comerciais. Um grupo de alunos procurou o Professor Renato Rodrigues Freitas, de Técnicas Agrícolas, no sentido de desenvolver experiências que possam equacionar problemas referentes à agropecuária, desde a hora até problemas de combate de pragas e doenças das plantes a nível de pequena propriedade, de forma mais natural, ou seja, sem uso de agrotóxicos, (WOLFF, 1986, n. 3, p. 8). |
Fonte: Elaborada pela autora
O tema do trabalho como princípio educativo consta nos textos do prof. Sebastião Fich da Rosa e da prof.ª Mercedes Wolff. Deve-se ter em conta que, conforme Moura (2007):
Está relacionado, principalmente, com a intencionalidade de que através da ação educativa os indivíduos/coletivos compreendam, enquanto vivenciam e constroem a própria formação, o fato de que é socialmente justo que todos trabalhem, porque é um direito subjetivo de todos os cidadãos, mas também é uma obrigação coletiva porque a partir da produção de todos se produz e se transforma a existência humana e, nesse sentido, não é justo que muitos trabalhem para que poucos enriqueçam cada vez mais, enquanto outros se tornam cada vez mais pobres e se marginalizam – no sentido de viver à margem da sociedade, (MOURA, 2007, p. 22).
Definitivamente, o trabalho como princípio educativo é um dos elementos mais relevantes na proposta que objetiva formar cidadãos de maneira omnilateral. No texto de Rosa (1996a), a formação crítica pelo trabalho é apresentada como crítica à formação tecnicista que esteve presente na criação da rede de escolas polivalentes. Aparece, também, na exigência de amplitude com que a educação precisa ser abordada.
Ao desvelar as limitações do espaço escolar e apontar para a necessidade de aproveitar fatos concretos, Rosa (1986) encontra-se em consonância com a concepção de politecnia presente em Proudhon. Conforme Gallo (1993):
Para a realização da aprendizagem politécnica, não basta uma escola comum, é necessária uma oficina-escola, onde a manipulação das
coisas seja possível, onde a aplicação prática dos conhecimentos teóricos seja imediata e onde do próprio trabalho prático se possa chegar à formulação e ao entendimento de novos conceitos teóricos, (GALLO, 1993, p. 37).
Wolff (1986), ao contrário, ocupa-se de apresentar as transformações que as práticas escolares que se levavam a cabo na Escola Polivalente estavam vivenciando a partir da Lei 7044/82, a qual previa que: “§ 1º A preparação para o trabalho, como elemento de formação integral do aluno, será obrigatória no ensino de 1º e 2º graus e constará dos planos curriculares dos estabelecimentos de ensino”. Exclui-se a profissionalização compulsória e passa-se a mencionar a preparação para o trabalho. Ainda que na Lei em questão não seja mencionada a expressão “mundo do trabalho”, amplamente difundida por Ciavatta (2007; 2014), Wolff já a utiliza em oposição à ideia de mercado de trabalho. Ambos Wolff e Rosa, entendem a educação para o trabalho como elemento de emancipação e de crítica.
A pesquisa como princípio educativo
N.º | Artigo | Excerto |
2 | O ensino técnico agropecuário no contexto educacional brasileiro | […] O conhecimento técnico-científico deve ser apresentado de forma que o educando possa aguçar seu espírito questionador e se lançar em novas experiências capazes até de aprimorar conceitos, apontar novas alternativas e aprender pelo princípio da redescoberta, (ROSA, 1986, n. 2, p. 22). |
3 | Educação Ambiental | […]. Nesse sentido, podemos implementar visitas a locais críticos, a autoridades, promovendo debates onde todas as faces dos problemas sejam analisadas, para que se traga à luz da verdade, a relação risco- benefício e que as decisões envolvam as comunidades interessadas, (ROSA, n. 3, 1986, p. 27). |
Fonte: Elaborada pela autora
De acordo com Moura (2007, p. 23): “Nesse sentido, assume-se que a pesquisa, enquanto princípio educativo deve estar presente em todas as ofertas, independentemente, do nível educacional e da faixa etária dos alunos, pois se localiza de forma precípua, no campo das atitudes e dos valores”. Tal proposta é percebida no texto do prof. Sebastião Fich da Rosa, que, em seus dois textos, aponta para a necessidade de apresentar o conhecimento técnico-científico e de relacionar tal conhecimento com as necessidades da comunidade.
Interdisciplinaridade e contextualização
N.º | Artigo | Excerto |
3 | Educação Ambiental | A aprendizagem se processa de forma global, através da convivência em grupo, do respeito às decisões da maioria, da finalidade de informações, da descoberta de valores como: a amizade, a união e a solidariedade, (ROSA, n. 3, 1986, p. 25). |
3 | Educação Ambiental | O processo de comprometimento da escola deve começar com as questões locais, estudando o meio ambiente em que vive o aluno, seus problemas e suas formas de solução, (ROSA, n. 3, 1986, p. 28). |
3 | Educação Ambiental | Maior que a função cognitiva do mestre, é a função de preparar os jovens para viver num mundo desconhecido e imprevisível, o qual não soubemos preservar, (ROSA, n. 3, 1986, p. 28). |
3 | Preparação para o trabalho | “A escola tentou objetivar estes elementos elaborando um projeto que, de maneira integrada ao currículo já existente, acrescentasse, como tarefa de educação, o desenvolvimento da ciência e o domínio da tecnologia visando ao progresso”, (WOLFF, 1986, n. 3, p. 7). |
3 | Preparação para o trabalho | “Para evidenciar a real interdisciplinaridade do projeto e a perfeita sintonia entre os diferentes setores da Escola, o Professor Roque Malmann, do Serviço de Orientação Educacional, vem acompanhando este processo dinâmico que tomou conta das séries finais do primeiro grau, através de um trabalho que procura mostrar as perspectivas de que os alunos dispõem ao concluir o curso”, (WOLFF, 1986, n. 3, p. 8). |
3 | Preparação para o trabalho | “Estamos colocando em suas mãos mais um exemplo de trabalho integrado de Preparação para o Trabalho, feito nesta Escola, pois esta revista resume os esforços de alunos, professores, pais, direção e comunidade em geral”, (WOLFF, 1986, n. 3, p. 8). |
Fonte: Elaborada pela autora
Conforme Moura (2007, p.24): “Assim, a interdisciplinaridade é um exercício coletivo e dinâmico que depende das condições objetivas das instituições, do envolvimento e do compromisso dos agentes responsáveis pelo processo ensino-aprendizagem”. A leitura dos textos da revista Polivisão, notadamente da prof.ª Mercedes Wolff e do prof. Sebastião Rosa apontam para o fato de que a compreensão do ensino integrado, nesse contexto, se dava, em grande parte, pela sua relação com a interdisciplinaridade. Faz-se mister ressaltar que, é justamente em excerto relacionado à interdisciplinaridade, o momento em que o termo “integrado” é utilizado. Além disso, elementos integrantes dessa concepção de ensino, são, também,
recorrentes, como “global”. Em ambos os textos, mas de forma mais frisada no de Rosa (1986), o entendimento da escola como um espaço com função social definida, é reforçado.
A contextualização e a flexibilidade são mencionadas especialmente no que tange o comprometimento da educação em inserir-se em seu contexto local e atuar no sentido de conscientização (no caso do texto de Rosa, ambiental) e de transformação.
A concepção de ensino integrado encontra-se vinculada ao ideal de escola presente nos docentes. Esses ideais de escola e de sociedade almejada, encontram-se presentes no texto do prof. Sebastião Fich da Rosa, publicados no número 2, no artigo intitulado “O ensino técnico agropecuário no contexto educacional brasileiro”. O docente afirma que: “O crescimento de todas as potencialidades do ser humano só se processa num ambiente democrático com liberdade social e individual, (ROSA, 1986, n.2, p.19). E continua:
A escola, numa sociedade justa e democrática, deve ser renovadora, proporcionar a liberdade social e individual, ser crítica, questionadora e com um currículo desvinculado de ideologias dominantes e que desenvolva suas atividades dentro de um enfoque científico- experimental, via indispensável para a reformulação do conhecimento, (ROSA, 1986, n. 2, p. 21).
Por fim, o professor Sebastião afirma: “Uma escola autocrática e conservadora leva o indivíduo à alienação e à estruturação de sua personalidade impregnada de autoritarismo e preconceitos à renovação”, (Rosa, 1986, n.2, p.19).
Considerações finais:
Ainda que os debates sobre o ensino integrado se encontrem notadamente vinculados ao nível médio e ocorram especialmente no âmbito dos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia e na proposta hoje substituída pela Reforma do Ensino Médio da introdução da politecnia, é relevante estudar o que antecede os debates atuais. A historicidade dos termos e das propostas promovem uma reflexão acerca de nossas práticas e de nosso contexto. Se efetivamente somos seres históricos que podem atuar de forma transformadora, é fundamental lançar um olhar para o passado e compreender instituições e situações que lancem luz às nossas questões atuais.
Sabe-se que nos anos de 1980, a proposta de um ensino integrado está presente. O estudo da Revista Polivisão possibilita conhecer como esses debates ocorrem em uma esfera micro. Essa investigação viabiliza entender como os pequenos (por desconhecidos, mas grandes pelo seu papel de ação transformadora no cotidiano escolar) refletem, ressignificam e levam ao dia a dia da escola em uma pequena cidade do litoral norte gaúcho, as concepções de ensino integrado e de formação humana integral.
Os textos em que se percebe a referência ao ensino integrado foram escritos por três autores: a prof.ª Anilda de Souza, a prof.ª Mercedes Wolff e o prof. Sebastião Fich da Rosa. Não se pode afirmar que todos os decentes da instituição estivessem articulados com tais concepções, entretanto, acredita-se que tais posicionamentos fossem bastante difundidos, tendo em vista que os textos foram publicados na revista organizada pelo corpo docente da instituição.
O conceito de ensino integrado apresentado é articulado, especialmente, com a ideia de preparação para o trabalho. Nesse sentido, pode-se perceber que os docentes da Escola Polivalente de Osório, interpretam os debates sobre o ensino integrado e a formação omnilateral, ocorridos na década de 1980, como temas relacionados à preparação para o trabalho.
A leitura dos textos produzidos pelos docentes aponta para o fato de que os mesmos reconhecem elementos integrantes à concepção de ensino integrado e os discutem em suas produções, compartilhadas por meio da imprensa pedagógica, seja, da Revista Polivisão. Verifica-se, portanto, que se encontram presentes nos textos, elementos que indiquem: a compreensão do ser humano como histórico, logo capaz de efetuar a transformação social; o trabalho como princípio educativo; a pesquisa como princípio educativo e a interdisciplinaridade e contextualização.
São as transformações ocorridas a partir da Lei 7044/82, que se percebe o envolvimento dos docentes em discutir abertamente suas propostas de uma escola democrática e renovadora. Verifica-se que, entre tais docentes, é na preparação para o trabalho que se encontra o gérmen do trabalho como princípio educativo, em sua visão emancipatória e na sua proposta de formação integral.
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V.18, Nº 35 - 2020 (jan-abr) ISSN: 1808-799 X
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v18i35.40501
José António Martin Moreno Afonso2 Renato Marinho Brandão Santos3
Resumo
O artigo analisa as diferentes concepções politico-educativas sobre o ensino profissional no Brasil, desde os Liceus e Casas de Educandos, no período imperial, até as Escolas de Aprendizes, estabelecidas nas capitais brasileiras a partir de 1910, durante a Primeira República. Discute, ao longo dos diferentes períodos, a associação entre o ensino profissional e o controle das denominadas “classes perigosas”. Especificamente em relação à República, observa o diálogo entre esse regime, que procura se associar às ideias do novo e do progresso, e as Escolas enquanto instituições modernas responsáveis por estabelecer padrões de comportamento e valores. Em conclusão, afirma que os caminhos para consolidação do ensino profissional no Brasil foram tortuosos, tendo como reflexo, entre outros pontos, os altos índices de evasão verificados nas Escolas de Aprendizes.
Palavras-chave: História da educação; Escolas de aprendizes; Classes trabalhadoras.
ESTRATEGIAS DE CONTROL DE CLASES PELIGROSAS: EDUCACIÓN PROFESIONAL DESDE EL IMPERIO A LA REPÚBLICA
Resumen
El artículo analiza las diferentes concepciones político-educativas sobre la educación vocacional en Brasil, desde el Liceo y Hogares de Educandos, en el período imperial, hasta las Escuelas de Aprendices, establecidas en las capitales brasileñas desde 1910, durante la Primera República. Discute, durante los diferentes períodos, la asociación entre la educación vocacional y el control de las llamadas "clases peligrosas". Específicamente en relación con la República, observa el diálogo entre este régimen, que busca asociarse con las ideas de nuevo y progreso, y las Escuelas como instituciones modernas responsables de establecer estándares de comportamiento y valores. En conclusión, afirma que los caminos para consolidar la educación vocacional en Brasil fueron tortuosos, reflejando, entre otras cosas, las altas tasas de deserción que se encuentran en las Escuelas de Aprendices.
Palabras clave: Historia de la educación; Escuelas de aprendices; Clases trabajadoras
DANGEROUS CLASS CONTROL STRATEGIES: PROFESSIONAL EDUCATION FROM THE EMPIRE TO THE REPUBLIC
Abstract
The article analyzes the different politico-educational conceptions about vocational education in Brazil, from the Lyceum and Homes of Learners, in the imperial period, to the Apprentices Schools, established in the Brazilian capitals from 1910, during the First Republic. It discusses, over the different periods, the association between vocational education and the control of the so-called “dangerous classes”. Specifically in relation to the Republic, it observes the relationship between this regime, which seeks to associate itself with the ideas of the new and progress, and the Schools as modern institutions responsible for establishing standards of behavior and values. In
1 Artigo recebido em 11/10/ 2019. Primeira avaliação em 02/11/2019. Segunda avaliação em 12/11/2019. Aprovado em 15/12/2019. Publicado em 23/01/2020.
2 Doutor em Educação – Área de conhecimento em História da Educação pela Universidade do Minho. É docente do Instituto de Educação e investigador do Centro de Investigação em Educação (CIEd) da Universidade do Minho. E-mail: jafonso@ie.uminho.pt Orcid: 0000-0002-7061-306X
3 Doutor em Educação – Área de conhecimento em História da Educação pela Universidade do Minho. É docente do Instituto Federal do Rio Grande do Norte (IFRN), campus São Gonçalo do Amarante. E-mail: renato.marinho@ifrn.edu.br. Orcid: 0000-0002-8187-7140.
conclusion, he states that the paths to consolidate vocational education in Brazil were tortuous, reflecting, among other things, the high dropout rates found in the Apprentices Schools.
Keywords: History of education; Apprentices schools; Working classes.
Nos meados do século XIX, em boa medida por conta da pressão inglesa (CASTRO, 2000, p. 62), o governo imperial, comandado por Dom Pedro II, deu início ao processo de abolição da escravatura no Brasil, com a Lei Eusébio de Queiroz, responsável por proibir o tráfico negreiro no país. O processo foi concluído, ao menos em parte, em 13 de maio de 1888, data em que a princesa Isabel, como regente do Império brasileiro, assinou a Lei Áurea. Na mente daqueles que compunham a elite brasileira restava, porém, um grande ponto de interrogação: o que fazer com os negros libertos pela Lei Áurea e com sua prole?
Mas de que elite tratamos? Referimo-nos a um grupo social marcado, segundo
J. M. de Carvalho, por uma “homogeneidade ideológica e de treinamento” (2008, p. 21) que reduzia os conflitos intraclasse e fornecia a “concepção e a capacidade de implementar determinado modelo de dominação política” (Idem, ibid.), marcado pela exclusão das classes populares da política institucional. Carvalho afirma, ainda, que “essa homogeneidade era fornecida sobretudo pela socialização da elite [...] por via da educação, da ocupação e da carreira política” (Idem, ibid.). Muitos desses membros da elite tinham formação jurídica em Coimbra, eram avessos a “doutrinas revolucionárias” (Idem, p. 39), costumavam passar pela magistratura e circulavam por “vários cargos políticos e por várias províncias” (Idem, ibid.). Em síntese, tinha-se uma “elite cosmopolita voltada para o modelo de civilização europeu”, a dirigir uma “sociedade agrária e analfabeta” (Idem, p. 417).
Na virada do século XIX para o XX, esse grupo social continua a mirar no “modelo de civilização europeu”, mas passa a usar com mais frequência o exemplo americano. A faculdade de Direito continua a ser a preferida desses homens, mas já não saem tanto para Coimbra, tendo em vista que podem ter sua formação no Brasil, na cidade do Rio de Janeiro, São Paulo ou no Recife, por exemplo, para onde ia parte razoável dos membros da elite norte-rio-grandense (SANTOS, 2018). Com a República, as elites locais passaram a ter maior força, tendo em vista que a adoção do federalismo, mesmo com suas limitações, permitiu a esses grupos o domínio dos
governos estaduais. Eram, porém, em essência os mesmos nomes que se via no período imperial (BUENO, 2002), com formação muito parecida e ainda tomando como referência o modelo europeu e, por vezes, o americano.
A descrição a seguir traz mais algumas características dessa elite no Rio Grande do Norte. Compunham tal grupo
literatos ou técnicos, com formação em agronomia, engenharia ou medicina. Mas em geral eram bacharéis, na maior parte das vezes formados na Faculdade de Direito do Recife. Podemos delinear [...] o perfil do indivíduo integrante dessas elites: a política para ele é uma grande tentação, há uma forte probabilidade de em algum momento desempenhar um cargo na administração pública, (...) escreve nos jornais, publica em livro ou nos poucos jornais da terra [e] participa de iniciativas de natureza progressista que se organizam na cidade. [...] (ARRAIS; ANDRADE; MARINHO, 2008, p. 74).
Sebastião Fernandes, primeiro diretor da Escola de Aprendizes de Natal-RN, encaixa-se bem na descrição acima. Dedicou-se ao estudo das Humanidades, no Atheneu Norte-Riograndense, escola onde se formaram os homens que governaram os destinos do Rio Grande do Norte durante as primeiras décadas da República brasileira. Ainda jovem, antes dos vinte anos, partiria para o Recife, capital de Pernambuco, onde estudaria, também como tantos outros, Ciências jurídicas e sociais. Por essa época, já se dedicava também a rabiscar alguns versos, arte que continuou a cultivar enquanto esteve à frente da Escola de Natal. Seus pendores literários foram apresentados em entidades culturais como o grêmio literário Le monde, o Centro literário Castro Alves e o Congresso Literário, em Natal. Notas do jornal A Republica, o de maior circulação no estado, indicam ainda que Fernandes se relacionava muito bem com outros membros da elite dirigente e que transitou por diferentes cargos da administração pública.
Em fins do século XIX, como dizíamos, esses homens tinham algo a resolver: tratar de controlar o espaço do negro na sociedade pós-escravidão e, em âmbito maior, das classes populares. A lei imperial nº 601, lançada em 18 de setembro de 1850, já resolvia uma parte do problema, na medida em que ajudava a constituir a “moderna propriedade territorial” (SILVA, 2008, p. 18), tendo interditado a aquisição de terras devolutas por qualquer outro meio que não fosse a compra4. Na prática, a
4 Também inserida no contexto de abolição do sistema escravocrata no Brasil está a lei eleitoral de 1881 (Decreto nº 3.029, de 9 de janeiro de 1881), pela qual ficaram proibidos de votar aqueles que não soubessem ler e escrever, o que impedia a participação de quase todos os libertos e, em geral, dos membros das classes populares, da política eleitoral. Ver J. M de Carvalho (2007, p. 24).
lei dificultava bastante, para não dizer que impossibilitava o acesso à terra aos negros beneficiados pela abertura do processo de abolição da escravatura naqueles meados do século XIX, bem como a todos aqueles que não fossem homens de posses e rendas.
Com o 13 de Maio, esses despossuídos passaram a ser donos de sua força de trabalho. E era justamente nesse ponto, na visão do referido grupo social, que residia o problema capaz de obstar o desenvolvimento e pôr em xeque a ordem nacional. A Lei Áurea não resolvia, nem de longe, “o problema social da escravidão, o problema da incorporação dos ex-escravos à vida nacional” (CARVALHO, 2007, p. 23-24), à nova sociedade pós-abolição. Em especial, os membros da elite imperial se viam incumbidos da difícil missão de tornar esse liberto um trabalhador, para o que “medidas que obrigassem o indivíduo ao trabalho” eram indispensáveis, mas não de todo suficientes. Isso porque esses homens perceberam que essas medidas só seriam verdadeiramente frutíferas se fossem acompanhadas por um significativo “esforço de revisão de conceitos, de construção de valores” capazes de constituir uma “nova ética do trabalho” (CHALHOUB, 2001, p. 65).
Nessa perspectiva, um mês após a abolição da escravatura, o ministro da Justiça, Ferreira Vianna, apresentava aos parlamentares do Império um projeto que combatia a “mãe de todos os vícios” (ANAIS do Senado do Império do Brasil, 3, 1888,
p. 309): a ociosidade. O Código Criminal do Império do Brasil, de 1830, já tinha um capítulo específico, o de número IV, dedicado aos “vadios e mendigos” (1830, p. 32- 33). Contudo, para Vianna, as penalidades impostas a esses sujeitos não vinham se mostrando eficazes, o que tornava necessário o estabelecimento de uma nova lei, destinada a tratar dos casos de vadiagem e mendicância.
A questão era vista com urgência. A partir da Lei Áurea, milhares de homens que antes viviam no regime da escravidão tornaram-se libertos, sem terem, na visão dos que dirigiam o Império, condições de viver harmonicamente em sociedade. Isso porque, de acordo com essa visão, “a escravidão não havia dado a esses homens nenhuma noção de justiça, de respeito à propriedade, de liberdade” (CHALHOUB, 2001, p. 68), o que poderia facilmente levá-los, no discurso da elite republicana, ao mundo da vadiagem, dos vícios e dos crimes.
O Código Criminal de 1830 não se mostrava eficiente, pois não bastava apenas reprimir. Era preciso educar para o labor; mostrar aos libertos que o trabalho era o
“valor supremo da vida em sociedade” (Idem, p. 69). Era nessa linha que seguiam as palavras de Ferreira Vianna. O ministro ressaltava que os pensadores modernos já não mais viam a pena como simples castigo, mas sim como elemento capaz de educar, de formar um novo sujeito, um “cidadão útil” (ANAIS do Senado do Império do Brasil, 6, 1888, p. 152). Esse “cidadão útil” seria forjado por meio de um árduo esforço de educar o povo, e os exemplos a serem seguidos, de acordo com a fala do deputado Manoel Peixoto, eram claros: os Estados Unidos e a Inglaterra.
Peixoto, porém, se colocava contra a proposta de Vianna, pois avaliava que o Brasil estava ainda muito distante dos melhores exemplos a serem seguidos e entendia que os frutos da educação popular demorariam a ser colhidos. Até lá, o governo precisaria adotar medidas mais fortes do que as presentes no projeto do ministro para combater a ociosidade. Pela proposta de Vianna, deveriam ser criados estabelecimentos de correção para aqueles que infringissem o “termo de bem viver”, ou seja, que vivessem na ociosidade, vadiagem e mendicância (ANAIS do Senado do Império do Brasil, 3, 1888, p. 310).
A correção viria pelo trabalho. Os apenados seriam levados a estabelecimentos de correção em ilhas marítimas ou noutros pontos indicados pelo governo, onde realizariam trabalhos no campo ou em oficinas. Os infratores deveriam compreender o valor do trabalho como elemento fundamental para a vida em sociedade. Por isso, parte do produto dos apenados seria destinada a eles mesmos após saírem do estabelecimento de correção, pelo que poderiam perceber o significado de ganharem a vida com o suor do próprio rosto, de maneira digna e honesta.
Essa tomada de consciência, na visão de Vianna e dos que apoiavam seu projeto, não era algo simples de acontecer entre o povo brasileiro, pois nas terras de cá, diziam como que parafraseando Pero Vaz de Caminha, o que se via era a riqueza do solo e a abundância por toda a parte. Nas palavras do deputado Rodrigues Peixoto, “o indivíduo entre nós, para subsistir, tem facilidade de obter a carne, o peixe, o fruto [...]; não experimenta grandes necessidades, nem tem [...] o mesmo incentivo dos países pobres” (ANAIS do Senado do Império do Brasil, 6, 1888, p. 152). Nesses países, completava o deputado, o trabalho era uma grave necessidade; aqui, porém, a facilidade da vida levava à proliferação de ociosos, vadios e viciados.
Reprimir a ociosidade manifestada em boa parte da população era tarefa daqueles que vigiavam a ordem nacional e queriam ver o Brasil confirmar para o
mundo o seu estatuto de país civilizado. Na visão da elite imperial, essa era uma tarefa hercúlea. Com constância, os parlamentares se referiam às “classes perigosas” que compunham o povo brasileiro. O termo foi retirado da literatura europeia da época, em especial dos autores franceses. Mas no Brasil a expressão teve seu sentido bastante alargado: “classes perigosas” passou a ser sinônimo de “classes pobres” para os legisladores do Império. Sem receio, podemos dizer também que, na República, terá sido sinônimo de “desfavorecidos de fortuna” (CHALHOUB, 2001, p. 76).
No discurso dos que dirigiam o Império, os pobres apresentavam “maior tendência à ociosidade”, eram “cheios de vícios, menos moralizados” (Idem, p. 48) e podiam, muito facilmente, se entregar ao mundo do crime. Isso significava que recorrer aos imigrantes europeus para substituir os escravos libertos poderia atenuar o problema, na medida em que os homens vindos do Velho Continente, além de serem racialmente mais puros, na visão dos que dirigiam o Império, tinham bem incorporada a cultura e a ética do trabalho, servindo como bons exemplos aos trabalhadores nacionais. Mas esse processo de substituição de mão de obra não resolveria a questão, ao menos em curto e médio prazo, já que não seria suficiente para transformar os tão numerosos integrantes das ditas “classes perigosas” em legítimos trabalhadores, em cidadãos úteis à nação. O uso de medidas coercitivas, em um horizonte mais curto, e a educação das classes populares, a médio e longo prazo, eram os caminhos a serem trilhados.
É válido reforçar que essa tal ociosidade das ditas classes perigosas e sua tendência à vadiagem, são elementos que fazem parte de uma construção da elite que dirigia o Brasil no Império e que permanecerá firme na condução da República, ao menos até 1930. A hipótese defendida por Chalhoub é de que o discurso desse grupo social “justifica os mecanismos de controle e sujeição dos grupos sociais mais pobres” (Idem, p. 80). Os mitos da preguiça, da promiscuidade e da tendência natural ao crime e vícios daqueles que conhecemos mais por desfavorecidos de fortuna foram usados pelos que comandaram os destinos da nação como elementos de justificativa para o controle desses sujeitos. A escola vai ser uma das instituições usadas por essa elite para estabelecer esse controle.
Inventada na segunda metade do século XIX, a instituição escolar tem a capacidade de “estabelecer padrões comuns de comportamentos e valores” (HOBSBAWN, 2002, p. 301). Esses padrões, devemos dizer, são definidos por um
centro de poder no qual se encontram a elite ou os grupos dirigentes. A Escola, mais do que estabelecer, difunde-os, (im) pondo-os como regras a serem seguidas, quase dogmas, sem questionamentos. Não queremos negar a existência desses questionamentos, das resistências às autoridades escolares: entre a letra fria da norma e sua recepção pelos grupos aos quais ela é destinada, há uma distância que não pode ser desconsiderada. Mas tais autoridades valem-se dos diversos mecanismos disciplinares, alguns dos quais previstos nas leis e regulamentos relativos às instituições escolares, para controlar e punir aqueles que procuram resistir. É possível que essa seja uma das razões para os índices elevados de evasão vistos na Escola de Aprendizes de Natal.
A Escola enquanto instituição pode ser concebida também como espaço dedicado a combater o “pecado da ociosidade” – tão temido pelos dirigentes republicanos no Brasil – e impedir que a mocidade tenha uma “vida lastimosa” (AFONSO, 2014, p. 93-94). A referência vem de um estudo sobre um projeto pedagógico alternativo de educação em Portugal, na transição do XIX para o XX, liderado por correntes do Protestantismo. Em nosso caso, analisamos um projeto centralizado pelo governo federal brasileiro e que se quer hegemônico. Mas ambos os casos se inserem, seja em Portugal ou no Brasil, em momentos de transição: do século XIX para o XX, da Monarquia para a República; e nesse contexto de transformações a Escola aparece como o espaço de “regeneração”, capaz de contribuir significativamente para o ordenamento social.
O projeto de Ferreira Vianna foi elogiado por alguns parlamentares do Império brasileiro justamente pela preocupação em educar por meio do trabalho. Os estabelecimentos de correção defendidos por Vianna deveriam, seguindo os preceitos dos pensadores modernos, ensinar e não apenas punir. As ações não eram antagônicas, mas o punir só faria sentido se tivesse como fim o ensinar. E as escolas, nesse contexto, não seriam elas também estabelecimentos de correção? Elas apareciam, no contexto estudado, como o primeiro espaço capaz de corrigir aqueles que tendiam aos vícios e aos crimes, de retificá-los. Os presídios eram, talvez, o último caminho para esses homens. Educar a juventude apresentava-se como meio viável para evitar que aqueles que compunham as “classes perigosas” tivessem tal fim. O pensamento de que abrir uma escola era fechar uma prisão, atribuído a Victor Hugo (CHESNAIS, 1999, p. 5), se difundia nas últimas décadas do século XIX,
especialmente porque nos jovens em idade escolar se poderia inculcar mais facilmente as normas sociais valorosas para a manutenção da ordem.
Não sabemos exatamente que fim tomou o projeto de Vianna. O Império vivia seus últimos momentos. Pouco mais de um ano depois, a República era instaurada sob a simbólica liderança do marechal Deodoro da Fonseca, um antigo aliado da Monarquia. Relativamente à estrutura social, nenhuma mudança significativa se processou nesses tempos. Os dirigentes da recém-instaurada República temiam, como aqueles do “arcaico” Império, as tais classes perigosas. De maneira assertiva, podemos dizer que o “universo ideológico das classes dominantes brasileiras” não é alterado com a instauração da República, em 1889 (CHALHOUB, 2001, p. 78).
O regime republicano nascia desligado, apartado por completo das classes populares. Estava longe de representar o “ideal da coisa pública”, a “tradição republicana popular” voltada para a “participação do povo na vida administrativa”, como dizia o historiador Câmara Cascudo, ao tentar definir o conceito de República em sua História do Rio Grande do Norte (1984, p. 203). Esse povo, na verdade, continuava a causar medo e repulsa na elite dirigente. A expressão classes populares permanecia como sinônimo de classes perigosas.
O Brasil pode ser entendido como um “país exportador de matérias-primas e importador de ideias e instituições” (CARVALHO, 2005, p.84). Dos modelos importados pelos republicanos brasileiros, prevaleceu o positivista de viés ortodoxo, responsável por definir os símbolos e, por conseguinte, a identidade que deveria marcar o novo regime. O lema escolhido para compor a bandeira nacional, Ordem e Progresso, deixava claro o modo de pensar e agir daqueles que passaram a governar o Brasil a partir de 1889. Esses homens desejavam superar o que chamavam de “arcaísmo” do Império, elevar o Brasil ao nível das nações mais civilizadas e progressistas do mundo. Mas, para tanto, era necessário manter a ordem social intacta. O povo deveria assistir à República. Os dirigentes do novo regime tutelariam a massa popular, tida como incapaz de agir por conta própria (CARVALHO, 2014).
O Decreto nº 7.566/1909 marcou o início da criação das Escolas de Aprendizes Artífices, espalhadas pelas capitais brasileiras. Uma obra ligada à República. Sem
dúvida, o novo regime, estabelecido em 1889, inaugurou no Brasil uma nova era nesse campo de ensino, mas não devemos deixar de lado algumas iniciativas tomadas nessa área durante o período imperial.
Foram várias as instituições de Ensino Profissional criadas no governo do imperador D. Pedro II. Eis aí, de início, uma diferença marcante entre o Império e a República: na era imperial as iniciativas eram difusas; não havia uma ação centralizada por parte do governo que pudesse ser sentida em todo o território nacional. As ações partiam de sociedades formadas por particulares; por vezes, nasciam no interior dos governos provinciais, ou, em outros casos, do entrecruzamento de associações civis com o Estado (CUNHA, 2000, p. 109).
Entre as instituições de Ensino Profissional criadas no Império, estavam as casas de educandos artífices5. Ao todo, foram criadas dez entre 1840 e 1865, sempre pela iniciativa de presidentes de província, e todas localizadas na região Norte do país, com exceção da Casa de São Paulo. A do Rio Grande do Norte foi criada no ano de 1858, na gestão do presidente Antonio Marcelino Nunes Gonçalves.
O Colégio, aprovado pela Lei Provincial nº 376, começou a funcionar com vinte alunos desafortunados, com idade entre 10 e 15 anos, e contava com as oficinas de alfaiate, sapateiro, carpina e pedreiro, ofícios voltados para as classes populares, de natureza artesanal ou que exigiam trabalho braçal. Além disso, os educandos artífices tinham aulas de primeiras letras – posto que a maioria deles eram analfabetos – a, princípios religiosos, geometria, mecânica, mecânica aplicada às artes e música.
A instituição começou a funcionar de maneira improvisada em prédio alugado no centro da cidade de Natal, capital do Rio Grande do Norte. Rita Gurgel, ao escrever sobre o Colégio, afirmou que “as condições físicas do estabelecimento não eram próprias para um abrigo, pois, além de poucos cômodos que oferecia, tinha uma altura de 12 palmos do pavimento ao forro de todas as salas”, o que tornava esses espaços quentes, de modo a possibilitar com maior frequência o “surgimento de doenças de pele e também nos olhos dos alunos” (2007, p. 40). O plano era de que, com mais recursos, fosse construído um prédio próprio, adequado às demandas do estabelecimento. Mas ali, no prédio alugado na Rua Nova (hoje denominada Rio
5 Usamos “casa de educandos artífices” por ser esse o termo mais comum encontrado na literatura sobre o tema. Mas as denominações variavam de lugar para lugar, como afirma Cunha (2000, p. 113). No caso do Rio Grande do Norte, usava-se a denominação “Colégio de Educandos Artífices”.
Branco, localizada no centro da cidade), permaneceria até o seu fechamento, o que não tardaria a acontecer.
O próprio presidente da província afirmava que eram precárias as condições do estabelecimento. Boa parte das oficinas planejadas não estava em funcionamento, pois o número de alunos que o governo podia sustentar no Colégio era pequeno. As oficinas que funcionavam começam já a produzir, mas produção ainda acanhada, destinada para uso próprio dos educandos. Apesar dos pesares, o presidente Nunes Gonçalves, além de elogiar a disciplina do estabelecimento, ressaltava sua importância para pôr a província nas “vias do progresso” (1860, p. 10).
O futuro da instituição de ensino foi diferente, porém, do que imaginava Gonçalves. Em 1862, o presidente da província, Pedro Leão Veloso, tratava do encerramento das atividades da instituição por ter se tornado um “foco de imoralidades” (1862, p. 25). As razões devem ter sido outras (CASCUDO, 1980, p. 180) e, certamente, envolviam a falta de recursos nos combalidos cofres da província. Mas as palavras do presidente deixavam claros dois pontos significativos para nossa análise: a educação voltada para os desafortunados visava, antes de tudo, a reforma moral desses homens, e era pensada como obra de caridade (VELOSO,1862, p. 25). Ficou evidenciado, ainda, que o mito da promiscuidade das classes populares está presente no discurso do presidente da província, que põe a culpa do fracasso do Colégio na própria natureza dos alunos, imorais e cheios de vícios (Idem, ibid.). Ao fim do processo, a instituição não conseguiu formar um único educando.
Não sabemos bem as razões que levaram as demais Casas ao fim. Certamente, as dificuldades econômicas das províncias e a falta de apoio do Império ajudaram tais Casas a não durarem muito. De um modo geral, elas dependiam das iniciativas dos governos provinciais e não faziam parte de um projeto nacional, muito embora circulasse nos diferentes cantos do Brasil o discurso que pregava a necessidade de um cuidado especial com as ditas classes perigosas.
Acontecia que o governo imperial parecia ter demandas mais urgentes a resolver do que a da educação dos desafortunados. Era preciso lidar com o processo de abolição, com a oposição dos grandes proprietários de escravos, com a questão de terras e o equilíbrio político entre liberais e conservadores, entre outros pontos. Além disso, a educação como caminho para lidar com as “classes perigosas” apareceu mesmo como uma possível solução de ordem mais para o fim do século XIX, momento
em que começou a se construir uma tradição escolar no Ocidente, sendo a escola vista como o espaço de conformação social e de transmissão, para os jovens escolares, dos valores e comportamentos que normatizam uma dada sociedade.
Nessa perspectiva, e também levando em conta as demandas por formação profissional técnica, foram criados diversos Liceus pelo Brasil6, entre os anos de 1858 e 1886. Eram eles mantidos por associações privadas que contavam com membros da burocracia estatal, o que, sem dúvida, ajudou tais instituições a angariar verbas governamentais para seu sustento material. Apesar disso, não se pode dizer que houve apoio firme e uniforme do governo imperial aos Liceus. O do Rio de Janeiro, por exemplo, interrompeu suas aulas entre 1864 e 1867, por não terem chegado as verbas prometidas pelo governo. O Liceu da capital imperial dependia do trabalho de seus professores, que lecionavam, todos, gratuitamente (CUNHA, 2000, p. 123).
O Liceu de São Paulo, inaugurado em 1882, foi fundado, de acordo com o discurso dos membros da Sociedade Propagadora de Instrução Popular, para suprir uma “carência do Estado” (GORDINHO, 2000, p. 21). Sua função, ainda segundo seus fundadores, era formar o bom, consciente e útil cidadão (Idem, ibid.). Para isso, os alunos, em sua maioria de origem humilde, eram inseridos em um “culto ao trabalho” (Idem, p. 24), tendo em vista a correção de uma natureza que tenderia justamente ao contrário.
Os liceus do Rio de Janeiro e de São Paulo permaneceram vivos com a instauração da República. Na verdade, de acordo com Cunha, o Liceu de São Paulo passou a viver tempos de mais prosperidade, posto que boa parte dos sócios que o mantinham eram adeptos do movimento republicano. Mas o Estado republicano não chegou a assumir essas instituições, embora as subvencionasse. Elas seguiram caminhos distintos, mesmo que tivessem finalidades próximas. Não havia articulação entre elas para a definição de processos de seleção, cursos ofertados ou currículo praticado. O Ensino Profissional no Brasil ainda estava distante de alcançar alguma uniformidade nesses termos.
De resto, ainda no período imperial, surgiram diversos estabelecimentos militares voltados para a educação dos desfavorecidos de fortuna. As experiências desenvolvidas nesses espaços foram, inclusive, anteriores à criação de Liceus e
6 Cunha (2000, p. 122) cita os Liceus do Rio de Janeiro (1858), Salvador (1872), Recife (1880), São Paulo (1882), Maceió (1884) e Ouro Preto (1886).
casas de educandos artífices. Tais estabelecimentos – entre os quais, os Arsenais de Guerra da Marinha e Exército e as Companhias de Aprendizes Marinheiros – foram “os primeiros a explicitarem a utilização no Brasil, a partir da segunda metade do século XIX, de menores órfãos, pobres ou desvalidos, como matéria-prima humana para a formação sistemática da força de trabalho [...]” (CUNHA, 2000, p. 112).
Esses estabelecimentos uniam a rigidez das atividades e exercícios militares ao aprendizado de um ofício, sem abrir mão, ao menos em alguns desses espaços (Idem,
p. 110), das práticas religiosas, ingredientes que eram fundamentais para o disciplinamento dos jovens desafortunados. Em Natal, cidade ainda muito acanhada no século XIX, não se chegou a fundar nenhum estabelecimento dessa espécie. Contudo, sabemos por meio de uma nota intitulada “Correio”, do jornal A Republica, que um jovem órfão e desvalido, de nome João Gonçalves Germano, após ter sido preso pela prática de roubo no mercado público da cidade, foi entregue ao capitão do Porto de Natal, que deveria fazê-lo seguir para a Escola de Aprendizes Marinheiros do Rio de Janeiro (“Correio”, 02 fev. 1899).
Se o jovem desafortunado João foi mesmo para o Rio, não sabemos dizer. Não vimos mais nenhuma referência a ele nos jornais locais. Na verdade, raramente esses desafortunados apareciam nesses periódicos, senão em relatos de crimes e vadiagem. Mas a matéria do jornal mostra, com clareza, que essas instituições comandadas pelos militares se destinavam, de fato, àqueles jovens que pertenciam às classes populares e que precisavam ser reformados moralmente, na visão da elite dirigente. A matéria revela, ainda, um tom de caridade na ação das autoridades locais. Em 1889, viria a República. Mantinha-se a preocupação com as classes perigosas, o que pode ser evidenciado pelo Código Penal de 1890. A Constituição, promulgada em 1891, era vaga ao se referir ao papel do Estado republicano na educação. Afirmava a laicidade do ensino praticado nos estabelecimentos públicos e definia atribuições das unidades federativas (CONSTITUIÇÃO da República dos Estados Unidos do Brasil, 1891). Não citava o ensino técnico-profissional. Não significava isso que não houvesse, por parte dos líderes republicanos, preocupações com a educação das classes perigosas. Mas, também naquele momento, as prioridades eram outras. A Constituição deveria dar ordem, esboçar o novo Estado
republicano e cuidar para que justamente essas classes não tivessem acesso ao poder, o que se fez com as graves restrições ao voto7.
O ano-chave para o Ensino Profissional no Brasil foi mesmo o de 1906. Neste ano, a Câmara dos Deputados propôs a inclusão de um crédito de até 100:000$000 (cem contos de réis) no orçamento do Ministério da Justiça e Negócios Interiores, destinado à instituição de escolas técnicas e profissionais nos estados brasileiros.
Apesar de ser notada uma maior preocupação do governo federal e do Congresso com o campo da educação, deve-se observar que este não representava uma pasta específica, estando integrado ao referido Ministério. Isso revela, como apontamos anteriormente, que a educação – incluso, é claro, o ramo profissional – era vista essencialmente como meio para manter a ordem social. Apenas em 1930, com a chegada de Vargas ao poder, foi criado o Ministério da Educação e Saúde Pública. Em 1937, passou a se chamar Ministério da Educação e Saúde. Antes disso, houve o Ministério da Instrução Pública, Correios e Telégrafos, criado no governo provisório da República (1890) e inicialmente dirigido por Benjamin Constant, mas já em 1891 essa pasta deixava de existir.
Observe-se, ainda, que a proposta da Câmara era lacônica quanto à implantação dessas escolas. Além de definir valores a serem gastos, ela apenas dizia que o Presidente da República deveria se entender com os governos dos estados para tal realização. Diante disso, podemos dizer que não estava de fato claro como se desenvolveria o ensino profissional no Brasil naquele início de século XX.
Por outro lado, vemos pela discussão nos Anais do Senado que os dirigentes republicanos começavam a apresentar maior preocupação com o desenvolvimento desse ramo de ensino, o que pode ser percebido pela emenda proposta pela Comissão de Finanças daquela casa legislativa, pela qual a verba destinada para a implantação das ditas escolas técnicas e profissionais passaria de cem contos de réis para quinhentos (ANAIS do Senado Federal, 1906, p. 901). Nem todos, porém, mostravam-se satisfeitos com a proposição de mudança feita pela Comissão.
O senador Barata Ribeiro, do estado do Rio de Janeiro, apresentava-se como defensor da instrução pública e afirmava a necessidade de dar-lhe um cunho prático.
7 O Art. 70, §1º, da Constituição Federal de 1891, interditava o voto aos analfabetos, mendigos, praças de pré e religiosos sujeitos a voto de obediência. Segundo Sobreira (2008), “apesar do fim do critério pecuniário dois anos antes, o número de eleitores não cresceu, pois a exigência da alfabetização, tanto para votar como para ser votado, excluiu a maioria da população”.
Contudo, alegava que não estava claro na proposta o que se queria dizer com escolas técnicas e profissionais. A dúvida era pertinente. O senador destacava que essa falta de clareza poderia levar ao aumento da “possibilidade de erros” e “sacrificar o interesse público” (Idem, ibid.) e temia, ainda, que o governo usasse a amplitude da expressão “escolas técnicas e profissionais” para criar profissões, de maneira arbitrária, sem considerar as demandas da economia nacional.
Não seria ainda naquele momento que o governo republicano despenderia seus esforços no desenvolvimento do Ensino Profissional no Brasil. Mas, de qualquer modo, vemos que naquele ano de 1906 começava a tomar corpo e a se fixar a ideia da necessidade do governo federal intervir na questão, razão pela qual pode-se dizer que a proposta da Câmara dos Deputados pode ser tomada como um marco significativo para a história do ensino industrial no Brasil.
Ainda no referido ano, o então candidato à presidência, Afonso Pena, tratava, em seu manifesto, da criação de escolas de ensino técnico e profissional como meio para desenvolver a indústria nacional (Idem, p. 172). Pouco tempo depois, Pena tornou-se o primeiro presidente a se referir a esse ramo de ensino no seu discurso de posse de 1906, enfatizando que “a criação e multiplicação de institutos de ensino técnico e profissional muito podem contribuir também para o progresso das indústrias, proporcionando-lhes mestres e operários instruídos e hábeis” (PENA Apud BONFIM, 2004, p. 97) e auxiliando as escolas de comércio já existentes.
É também de 1906 o Decreto nº 1.606, pelo qual é criado o Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio. Caberia a essa nova pasta, entre outras atribuições, o desenvolvimento do ensino agrícola e profissional, compreendendo este os estabelecimentos voltados para a indústria. Mas o ano de 1906 estava já em seus últimos dias e nada mais se fez naquele momento.
No ano seguinte, concluído o primeiro ano de seu mandato, o presidente Afonso Pena falava ao Congresso sobre suas ações no governo e os problemas a serem enfrentados pela nação brasileira. Dentre esses, destacava a Instrução Pública, que vivia, segundo o presidente, “num regime de vacilações e incertezas”, de modo a necessitar de “uma reforma séria e capaz de satisfazer as exigências do ensino moderno”, a qual deveria ser guiada pelos exemplos praticados em países da Europa ocidental e nos Estados Unidos. Por fim, Pena dava ênfase ao Ensino Profissional e
Técnico, destacando, como fizera em seu discurso de posse, sua importância para o “progresso da lavoura, do comércio, indústria e artes” (PENA, 1907, p. 17).
Em 1908, Afonso Pena nem chegou a proferir palavras novas sobre a Instrução Pública. Apenas pedia, mais uma vez, atenção do Congresso para o problema enfrentado pelo Brasil nessa área. No ano de 1909, nenhuma surpresa. Ao citar reformas das quais o Brasil precisava para seu desenvolvimento, destacou o “problema do ensino”, que reclamava uma “solução inadiável” (PENA, 1909, p. 17). É, sem dúvida, um discurso repetitivo. Mas revelava um novo olhar do Estado republicano sobre a Instrução Pública, com uma ênfase que não se via antes no Ensino Profissional e Técnico.
No governo de Afonso Pena, contudo, não houve mais tempo para reformas. O presidente viria a falecer em 14 de junho de 1909, sem chegar a concluir seu mandato. Seu vice, Nilo Procópio Peçanha, assumiria naquela mesma data a presidência do Brasil. O novo presidente, na época em que foi governador do estado do Rio de Janeiro, já havia investido no Ensino Profissional, criando, por meio do Decreto nº 787/1906, três escolas para ensino de ofícios e uma outra para o aprendizado agrícola, nas cidades de Campos, Petrópolis, Niterói e Paraíba do Sul (FONSECA, 1986, p. 174). Pouco mais de três meses após assumir a presidência da nação, seria a vez de, por meio do Decreto nº 7.566/1909, criar uma rede de escolas que aliavam o Ensino Primário ao Profissional, espalhadas pelos estados brasileiros.
O referido decreto, lançado em 23 de setembro de 1909, deixava claro que essas Escolas eram destinadas, preferencialmente, aos desfavorecidos de fortuna, um eufemismo para classes perigosas. Os jovens aprendizes chegavam à Escola com 10 ou 12 anos, em média, e lá ficavam por quatro anos aprendendo, simultaneamente, as primeiras letras e um ofício. Quanto à profissão a seguir, havia, normalmente, cinco opções. Os aprendizes de Natal, após dois anos de formação geral, podiam seguir nos cursos de Alfaiataria, Funilaria, Marcenaria, Sapataria ou Serralharia.
Permanecia naqueles que dirigiam a República brasileira o medo em relação às classes perigosas. Mantinha-se, igualmente, a concepção de que o ensino poderia
transformar a alma daqueles desfavorecidos de fortuna, fazendo com que adquirissem “hábitos de trabalho profícuo” que os afastassem da “ociosidade, escola do vício e do crime” (DECRETO nº 7.566, 1909, p. 1). A letra da lei deixava claro que ainda se temia o povo e que os mitos da preguiça, da promiscuidade e da tendência natural ao crime e aos vícios, continuavam a ser associados às classes populares.
Nesse sentido, não podemos atribuir um “espírito renovador” (FONSECA, 1986,
p. 160) à República brasileira. O novo regime, com um velho olhar marcado por paradigmas ainda do período imperial, lançou novas estratégias para controlar as classes populares, entre as quais aquela que nos interessa, a criação de uma rede de Ensino Profissional, destinada a educar e transformar homens ociosos e vadios através da cultura do trabalho, conforme se via no seu decreto de criação.
Entre a Proclamação da República e a criação das Escolas de Aprendizes, passaram-se vinte anos. O desejo por educar as “classes perigosas” já era claro no final do século XIX, mas a República tinha outras batalhas a travar. Por exemplo, o regime precisava criar uma identidade, um herói – Tiradentes foi o escolhido (CARVALHO, 2007, p. 55-73) –, conter a oposição de resistentes monarquistas, derrotar os sertanejos de Canudos liderados por Antônio Conselheiro, e estabelecer uma política de controle sobre os estados da federação.
No início do século XX, essas batalhas já haviam sido vencidas pela República. Especialmente a partir do governo de Campos Sales (1898-1902), o governo federal conseguiu uma relação de equilíbrio com as oligarquias estaduais que, por sua vez, em troca de verbas aos seus estados e cargos federais aos seus apadrinhados, garantiam a sustentação do poder do regime republicano. O povo, é claro, não fora incluído nesses acordos. A República não era pensada para ele.
Nos anos seguintes ao governo Campos Sales, a Educação Profissional passou a ser tema mais comum nos relatórios dos presidentes e chegou, pela primeira vez, a um discurso de posse. Foi nesse momento, também, que começaram a se formar os primeiros grupos escolares em boa parte dos estados brasileiros, como foi o caso do Rio Grande do Norte, cujo governo inaugurou, no ano de 1908, o grupo escolar Augusto Severo8. No estado do Sergipe, também localizado no que é hoje a região
8 Apenas no período de 1908 a 1914, no segundo governo de Alberto Maranhão, foram criados vinte e seis grupos escolares, dois em Natal (além do Augusto Severo, foi criado o Frei Miguelinho, em 1912), e os demais no interior do estado. Entre 1916 e 1927, foram criados mais treze grupos (AZEVEDO; STAMATTO, 2012, p. 43-44). Por essa ação e também pela criação do Teatro Carlos Gomes,
Nordeste, esses grupos começaram a surgir a partir do ano de 1911 (AZEVEDO; STAMATTO, 2012, p. 27). Na cidade de Belo Horizonte, capital planejada do estado de Minas Gerais, os grupos escolares foram criados também a partir de 1908 (FARIA FILHO, 1998, p. 2), onze anos após a inauguração da cidade. Escola e espaço urbano estavam, em todos esses casos, imbricados.
Os grupos escolares eram formados pela reunião de escolas isoladas ou, dito de outro modo, uma “federação de escolas” (DECRETO nº 239, 1910, p. 122) que passou a adotar o sistema seriado de ensino. É ainda válido lembrar que os espaços escolares, neste momento, passaram a ser “alvo dos preceitos do higienismo e da arquitetura que indicavam, entre outros aspectos, a necessidade de que os prédios escolares tivessem salas amplas, arejadas, com iluminação natural” (CRUZ, 2014, p. 53), de modo a facilitar o desenvolvimento e a aprendizagem dos alunos. Esses mesmos preceitos influenciaram os regulamentos das Escolas de Aprendizes de 1911 e 1918. Tanto os grupos quanto as Escolas que estudamos estavam, ainda, vinculados ao discurso da elite que visava justificar um ordenamento social, especialmente a partir do início do século XX, com ênfase no enquadramento das classes populares, bem como o desenvolvimento econômico através da educação. Essas instituições pretendiam, em síntese, pôr em prática o discurso da Ordem e Progresso (AZEVEDO; STAMATTO, 2012).
É na cidade que o regime republicano tentará mostrar a sua face mais encantadora e moderna. Destacam-se, no início do século XX, as obras do prefeito Pereira Passos, que governou o Rio de Janeiro, capital federal entre os anos de 1902 e 1906. Antes do engenheiro Passos, no início do regime republicano, o Rio de Janeiro havia sido governado por um médico, Cândido Barata Ribeiro, que realizou uma operação de “limpeza” do centro do Rio, retirando dessa região da cidade os cortiços, entre os quais o famoso “cabeça de porco”9, habitados por membros daquelas “classes perigosas”.
Temos, portanto, um processo de modernização excludente (FAORO, 2000). Deve-se destacar que esse processo é sentido também na Natal do início do século
No ano mesmo da publicação do Decreto nº 7.566, uma crônica lançada no jornal
inaugurado em 1904, no seu primeiro governo, e reformado entre 1908 e 1912, Alberto Maranhão ficou conhecido como Mecenas Potiguar.
9 Para uma análise desse processo de “limpeza” do centro do Rio de Janeiro na gestão de Barata Ribeiro, ver Richard Negreiros de Paula (2003).
A Republica dava o tom das transformações materiais pelas quais a cidade vinha passando, narradas pela visão daqueles que comandavam o governo do Estado e de sua capital. No texto, o personagem Epaminondas pega o bonde elétrico, deparando- se com uma touriste smart vinda do Rio de Janeiro. Encantado pela elegante senhora, resolve desvendar-lhe a nova cidade que ia se descortinando no trajeto do bonde.
Epaminondas fazia questão de dizer à dama carioca que Natal muito progredira nos últimos anos, e que todo esse avanço vivido pela cidade só havia sido possível com a instauração da República. O novo regime criara uma “cidade quase nova” (“Notas”, 02 jun. 1909), mesmo tendo que lidar com condições econômicas “sempre precárias” (Idem). Não cabe, aqui, analisar tais condições, mas é válido ressaltar que elas são constantemente alegadas nas matérias de A Republica, como elemento que reforça o caráter regenerador do novo regime. Não é de se estranhar que o único momento de discordância entre a gentil lady e o cavalheiro natalense tenha se dado quando ela se referiu à “maldita política”. Epaminondas não se conteve e, em tom ufanista, afirmou que à política “devemos tudo” (Idem).
São várias as passagens e os símbolos que denotam o progresso vivido pela cidade naqueles anos iniciais do século XX. O bonde é um desses símbolos, que remete à ligação de diferentes espaços da cidade, espaços antes distantes, desconectados. Traz velocidade e ânimo novo à urbe. O porto da cidade, onde desembarcara a touriste smart, era outro desses elementos que representavam a modernização da cidade, porta de entrada da urbe natalense, vinha passando por reformas naqueles tempos, as quais visavam ampliar os contatos da progressista Natal com o restante do mundo civilizado. E, ainda, a referência ao bairro de Cidade Nova – correspondente hoje aos bairros de Tirol e Petropólis –, apresentado na crônica como a “nova cidade”, trazendo-nos a impressão de que os homens que arquitetaram o primeiro bairro planejado de Natal criam que os seus ares poderiam ser irradiados para o restante da urbe. Todos esses elementos refletem, do ponto de vista dos que estavam à frente da gestão do Estado e sua capital – não nos esqueçamos que o jornal A Republica representa essas vozes – o processo de modernização de Natal, e são facilmente percebidos na fonte analisada.
Há, porém, outro aspecto importante desse processo de modernização, que caminha ao lado das transformações materiais e não pode ser negligenciado: a educação. Epaminondas, além de exaltar as transformações materiais vividas pela
cidade, destacou também mudanças importantes na área da educação, dentre as quais citou a reorganização do ensino primário no estado10, incluindo a criação de grupos escolares na capital e no interior e a inauguração da Escola Normal de Natal, em 1908. E por que esse aspecto não pode ser negligenciado?
Em resposta a essa questão, devemos lembrar que aqueles que dirigiam os destinos do Rio Grande do Norte e da capital potiguar referiam-se diversas vezes, em especial nas matérias do jornal A Republica, a um descompasso entre as transformações materiais realizadas em Natal e o comportamento de seus habitantes, que pareciam desconhecer, na visão dos dirigentes, o valor daquelas mudanças vividas pela cidade. Era como se houvesse um descompasso entre o corpo e a alma da cidade. Nesse sentido, é válido apontar que, na República, o projeto de desenvolvimento da educação, em especial voltado para os desafortunados, e de modernização das cidades, caminharam lado a lado. Ambos remetiam à ideia do novo, ao desejo do país de integrar o concerto das nações civilizadas e progressistas e de, ao mesmo tempo, estabelecer uma identidade à República recém-instituída. Se a Monarquia era símbolo do velho, do arcaísmo, do atraso, a República, por sua vez, representava o novo, o moderno, o espírito do progresso.
Deve-se observar ainda que a cidade é o local por excelência daquelas classes perigosas. Nela se amontoam os homens marcados pelos vícios, os desocupados, vadios, aqueles, enfim, que importa controlar para a manutenção da ordem. Não é coincidência que nas cidades se concentrem os asilos, hospitais, leprosários, prisões e as escolas, instituições que se multiplicaram no Brasil entre fins do século XIX e início do XX. Instituições de vigilância, disciplinares (FOUCAULT, 2009), mas que, é certo, não são hermeticamente fechadas, nem impermeáveis a resistências.
Nesse contexto, a urbe podia ser representada como espaço de encanto ou medo, de desejo ou repulsa. Mas no início do século XX era vista, em essência, como espaço do moderno, com todas as contradições que lhe são peculiares. As Escolas de Aprendizes foram um símbolo do processo de “incorporação do operariado à modernidade urbana pela via do trabalho” e, ao mesmo tempo, “de criação de uma nova ordem, expressão da vontade republicana” (CHAMON; GOODWIN, 2012, p. 330) de estabelecer um novo significado ao trabalho, associando-o ao ser cidadão.
10 Para uma análise dessa reorganização, feita em especial por meio da Lei Estadual nº 249/1907 e pelo Decreto Estadual nº 178/1908, ver A. Morais; F. Silva (2009).
As instituições às quais nos referimos há pouco – asilos, hospitais, leprosários, prisões e escolas – faziam parte de uma experiência do moderno. As Escolas de Aprendizes Artífices nasceram exatamente nesse contexto em que o desejo pelo moderno, pelo Progresso – palavra por vezes grafada com inicial maiúscula, como uma força maior a mover os homens – unia-se a uma necessidade expressa pela elite dirigente de controlar uma massa perigosa de pobres desordeiros, que, segundo alegação dessa elite, era incapaz de compreender os valores do moderno, da civilização. As Escolas deveriam cuidar desses homens, discipliná-los e, ao mesmo tempo, contribuir para o progresso material da nação, para o desenvolvimento da indústria brasileira.
Em que medida tais Escolas conseguiam fazê-lo? Eis uma questão para a qual devemos buscar resposta. A missão dessas Escolas não era, de fato, simples. O primeiro passo já havia sido dado: a educação e, mais especificamente, o Ensino Profissional eram pontos de pauta mais caros ao governo republicano no início do século XX. Mas entre elaborar um decreto estabelecendo a criação das Escolas de Aprendizes Artífices e fazê-las funcionar, havia um longo caminho a ser percorrido.
A experiência era nova no Brasil. Nos estados não havia muitos exemplos a serem seguidos. Uma exceção era o Instituto Parobé, fundado em Porto Alegre-RS, no ano de 1906, voltado desde o início de suas atividades para uma formação mais prática e especializada dos aprendizes. Esse Instituto se tornaria uma referência às demais Escolas de Aprendizes, especialmente a partir da década de 1920, quando se criou o Serviço de Remodelação do Ensino Profissional, chefiado pelo engenheiro João Luderitz, professor do referido Instituto.
O Serviço de Remodelação buscou dar uniformidade às Escolas de Aprendizes, em especial estabelecendo um modelo de ensino mais prático, baseado no taylorismo (GURGEL, 2007; QUELUZ, 2000), e uma base curricular válida para todas as Escolas. A partir daí, essas instituições começaram a seguir novos rumos.
Voltando a 1909, vemos que o decreto nº 7.566, responsável por criar as Escolas, era pouco esclarecedor quanto ao funcionamento dessas instituições. Não havia regulamento, nem prazos estipulados para conclusão dos cursos, e seus
programas deveriam ser formulados por cada um dos diretores. O essencial parecia ser mesmo o caráter moralizante da instituição escolar, ficando para depois o aspecto de formação profissional. Isso pode ser observado não só na introdução do Decreto nº 7.566 e no teor de outras leis, mas também nos relatórios do Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio. Em 1910, o ministro Rodolpho Miranda ressaltava que as Escolas deveriam “impedir a tendência do menor à ociosidade, despertando- lhe o amor pelo trabalho”, de modo a “convertê-lo em criatura útil à sociedade, pelo aprendizado profissional” (MIRANDA, 1910, p. 136; grifos nossos).
A presença da preposição “pelo” indica, claramente, que o aprendizado profissional representava um meio e não um fim em si mesmo. Tratava-se de Escolas mais da ordem do que do Progresso, mais voltadas para a conformação social do que para o desenvolvimento econômico. Em síntese, o intento maior dessas Escolas era formar o cidadão ordeiro, disciplinado; o meio para tal era impregnar no aprendiz a cultura do trabalho.
Interessante é também observar a presença do conceito de menor em diversos documentos que se referem aos aprendizes das Escolas. Tal conceito começa a ser disseminado no final do século XIX e representa aquelas crianças pobres das urbes, que vagavam por suas ruas, praças, muitas vezes imersas no mundo do crime, abandonadas “tanto material como moralmente” (LONDOÑO, 1991, p. 135), tendo em vista que seus pais ou tutores, entregues aos vícios e à vadiagem, não exerciam sobre elas nenhuma autoridade. Nesse sentido, cabia ao Estado guardá-las e cuidar para que fossem tornadas cidadãs úteis.
Esse conceito aparece no próprio decreto de criação das Escolas11 e se repete em outros relatórios ministeriais, o que deixa claro qual a visão que a República tinha sobre os alunos dessas Escolas: jovens que precisavam ser moralmente reformados. Sua transformação em cidadãos úteis não deveria significar, porém, uma mudança de posição social. O ministro Pedro de Toledo dizia, em 1911, que “aqueles que tiverem aproveitado o aprendizado dessas escolas, formarão uma classe de cidadãos que, sabendo dignificar a pobreza, irão prestar, certamente, serviços úteis à sua pátria” (TOLEDO, 1911, p. 311).
11 “Nas Escolas de Aprendizes Artífices, custeadas pela União, se procurará formar operários e contramestres, ministrando-se o ensino prático e os conhecimentos técnicos necessários aos menores que pretendem aprender um ofício” (Decreto nº 7.566, 1909, p. 1; grifo nosso)
Nem sempre, porém, essa disciplina era obedecida. No relatório ministerial de 1914, chama-nos a atenção o fechamento da Escola Agrícola da Bahia, sob a alegação da presença de “sintomas de franca indisciplina naquele estabelecimento de ensino”, de modo a gerar a um clima de “desordem” (VIEIRA, 1914, p. XIV) na dita instituição. A culpa estava, segundo o relatório, no comportamento da clientela, também formada pelos desfavorecidos de fortuna, que agiam como “irresponsáveis” (Idem, ibid.), tendo entrado em atrito, inclusive, com o diretor da Escola.
É certo que a indisciplina alegada no relatório não foi a única razão que levou ao fechamento da Escola. O Decreto nº 10.855/1914, que estabeleceu o fim das atividades na instituição, cita, entre outros pontos, falta de recursos orçamentários, sem se referir, em momento algum, a casos de indisciplina. Não se deve, de qualquer modo, desconsiderar o que está dito no relatório, tendo em vista que instituições como a Escola Agrícola da Bahia, voltadas para os desafortunados, costumavam apresentar normas disciplinares rígidas.
Era assim na Escola de Aprendizes Artífices de Natal e nas outras do gênero. Nenhuma delas chegou a fechar as portas. Contudo, da Escola de Natal, alguns alunos foram eliminados a bem da disciplina ou da moral, por exemplo, além de centenas de outros que, como nos mostram os livros de matrícula, abandonaram a Escola por razões diversas, entre as quais a mudança para cidades do interior, onde certamente viviam parte de suas famílias e onde, talvez, o sustento material pudesse ser conquistado com menos dificuldade do que na capital.
Imagem 01: registro do aluno Antonio Amaral, presente no livro de matrículas do ano de 1933
Fonte: acervo do IFRN, campus Natal-Central.
A expressão “a bem da moral” (em destaque) não explicita que ato cometido pelo aprendiz, ainda em seu primeiro ano de Escola, teria levado à expulsão. Mas ela evidencia que essa instituição se apresentava como guardiã de uma determinada moral. Essa moral ligava-se aos valores do grupo responsável pela criação das Escolas de Aprendizes, a elite que comandou os destinos da República brasileira no período estudado. Referimo-nos, em especial, a uma cultura do trabalho que se contraporia à indolência e vadiagem associadas às classes pobres.
A eliminação do aprendiz Antonio Amaral e de centenas de outros na Escola de Natal reforçava o espírito republicano no Brasil. O projeto de uma rede profissional de ensino iniciado pelo decreto nº 7.566/1909, voltado para a educação de “menores”, visava torná-los dignos pela cultura do trabalho, deixando também claro para eles sua posição na sociedade. Deviam “dignificar a pobreza”, não a superar. Em síntese, para os dirigentes republicanos no início do século XX era preciso que tudo mudasse para que tudo permanecesse como estava.
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V.18, Nº 35 - 2020 (jan-abr) ISSN: 1808-799X
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v18i35.40502
Francisco Carlos Oliveira de Sousa2
Resumo
Propomo-nos analisar a formação da rede federal de educação profissional industrial no Brasil. A análise das fontes apoia-se nos referenciais propostos por Magalhães (2004), Nosella e Buffa (2007), segundo os quais compreender a genealogia de uma instituição educativa pressupõe relacionar a sua função social com o contexto no qual está inserida. Criada em 1909, a rede escolar analisada objetivou, sob a crença no industrialismo, a formação profissional para desvalidos da sorte. Em síntese, a investigação evidenciou os limites dessa proposta em uma sociedade de incipiente industrialização.
Palavras-chave: Instituição educativa; Educação profissional; Desvalidos.
SCHOOL FOR DISADVANTAGED: THE ESTABLISHMENT OF THE FEDERAL NETWORK OF VOCATIONAL AND INDUSTRIAL EDUCATION
Abstract
We aim to analyze the establishment of the Federal Network of Vocational, Scientific and Technological Education in Brazil. The source analysis is supported by theoretical references proposed by Magalhães (2004), Nosella e Buffa (2007). According to them, to comprehend the genealogy of an educational Institution presupposes to relate its social function to the context in which it is located. Created in 1909, the analyzed institution had, under the industrialism belief, the purpose of vocational training for the disadvantaged students. In sum, the investigation demonstrated the limits of this proposal in a society of incipient industrialization.
Keywords: Educational institution; Vocational education; Disadvantaged students.
ESCUELA PARA DESFAVORECIDOS: LA FORMACIÓN DE LA RED FEDERAL DE EDUCACIÓN PROFESIONAL INDUSTRIAL
Resumen
Nuestro objetivo es analizar la formación de la red federal de educación profesional industrial en Brasil. El análisis de los datos se apoyan en los referenciales propuestos por Magalhães (2004), Nosella y Buffa (2007), según los cuales, comprender la genealogía de una institución educativa presupone relacionar su función social y el contexto en el que está inserta. Fundada en 1909, la institución analizada tuvo, bajo la creencia del industrialismo, el objeto de formación profesional para los desfavorecidos. En suma, la investigación evidenció los límites de esa propuesta en una sociedad de incipiente industrialización.
1 Artigo recebido em 30/09/2019. Primeira Avaliação em 18/10/2019. Segunda Avaliação em 19/10/2019. Aprovado em 24/11/2019. Publicado em 23/01/2020.
2 Doutor em História da Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte-UFRN. Professor de História do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte-IFRN, Campus Natal- Central. E-mail: francisco.sousa@ifrn.edu.br. Orcid: 0000-0002-4303-5019.
Palabras-clave: Institución educativa; Educación profesional; Desfavorecidos.
Abordar a escola como objeto de estudo implica, inicialmente, compreender sua historicidade e natureza institucional. Na multidimensionalidade que o caracteriza, o conceito de instituição agrega-se às ideias de permanência, sistematicidade e normatividade. Essa compreensão conceitual, segundo Justino Magalhães (2004, p. 58), identifica a instituição como resultante de “uma combinatória de finalidades, regras e normas, estruturas sociais organizadas, realidade sociológica envolvente e fundadora, relação intra e extra-sistêmica.” Assim, entre as diferentes instituições existentes na sociedade, encontram-se aquelas de natureza educativa, como, por exemplo, o Estado, a família, a Igreja e a corporação.
Por essa perspectiva, “à noção de instituição corresponde uma memória, um historicismo, um processo histórico, uma tradição, em permanente atualização – totalidades em organização” (MAGALHÃES, 2004, p. 62). Do raciocínio exposto, depreende-se que, além de sua natureza institucional, a escola se constitui em uma forma específica de instituição educativa. É nesse sentido que abordaremos aqui essa instituição: “Como uma unidade escolar, espacialmente localizável [...], com componentes identificáveis na memória coletiva, tais como as aspirações coletivas fundadoras” (WERLE, 2004, p. 18). Em outras palavras, como alertam Ester Buffa e Gelson Pinto, a contínua e consagrada utilização de determinados conceitos, como o de escola, por exemplo, tornou-se tão habitual “que pensamos terem tido eles sempre o mesmo significado, que sempre foi assim. Não foi.” (BUFFA; PINTO, 2007, p. 129). Ignorar isso corresponde a desconhecer a própria historicidade da instituição escolar. Portanto, considerando-se a relevância conquistada pela instituição educativa escolar no paradigma ocidental, como, em síntese, organizou-se em seus fundamentos e suas funções sociais?
Conforme Magalhães (2004, p. 68), “o processo histórico de institucionalização da escola compreende uma complexificação crescente nos planos material e organizacional.” Pensada e originada do privado, dilatando a obra dos grupos familiares, a escola, em sua feição moderna, substituiria a família e se sobreporia aos
domínios familiar e privado, como instituição pública confiada ao Estado. Sendo ela uma instituição educativa dotada de historicidade e identidade, cumpre-nos investigar como se processou a consolidação de seus aspectos constitutivos nos termos legados ao mundo moderno no Ocidente, o que nos permitirá compreender as funções sociais assumidas por essa instituição em seu percurso histórico.
Como é perceptível, características da escola moderna, difundidas a partir da Europa, foram adotadas no Brasil. Afinal, “como não enxergar nessas descrições a [...] matriz pedagógico-espacial de nossas escolas?” (BUFFA; PINTO, 2007, p. 153, grifo dos autores). De acordo com esses autores, as semelhanças são verificáveis em múltiplas instituições escolares contemporâneas em nosso país, o que tornaria legítimo o questionamento formulado.
Na perspectiva de Saviani (2007, p. 12), as propriedades dessas instituições vinculam-se à consolidação do modo de produção capitalista, que provocou mudanças determinantes na educação, inclusive naquela de caráter confessional, e realçou o “protagonismo do Estado, forjando a ideia da escola pública, universal, gratuita, leiga e obrigatória, cujas tentativas de realização passarão pelas mais diversas vicissitudes”, até mesmo no que concerne ao entendimento de como essa pretendida instituição educativa incorporaria os desvalidos da sociedade industrial.
Nesse sentido, o pesquisador português António Ferreira (2005, p. 195) relembra que, na Europa Ocidental, até a primeira metade do século XX, “se manteve uma organização escolar que tratava, de forma desigual, as crianças que vinham de meios sociais diferentes”. Embora reconheça os avanços ocorridos, Ferreira (2005, p. 196) enfatiza: “na melhor das concepções políticas, a instrução podia ser disponibilizada a todos mas nunca ser igual para todos”. Essa constatação, na perspectiva do autor, colocaria em xeque o entendimento difundido pelo liberalismo, segundo o qual o indivíduo seria definido por sua determinação e habilidade pessoal, e não por sua origem social familiar.
Assim sendo, podemos subentender que a escola, ao incorporar funções sociais na esfera da educação profissional, “deve [...] ser entendida como uma instituição que serve um tempo determinado e que se configura em função das características dum determinado tempo” (FERREIRA, 2005, p. 179). Por isso, ao
questionar a retórica elaborada (no passado e no presente) acerca do alcance educativo da escola, esse autor refuta o discurso de caráter abstrato sobre a instituição e propõe uma reflexão com base em inquietações concretas:
Ela [a escola] só existiu e existe como tem existido porque se verificaram e verificam condições tecnológicas, económicas e políticas que a tornaram necessária e insistem na sua manutenção, ainda que com concretizações bem diversas tal como propicia o jogo dos factores que nelas influem (FERREIRA, 2005, p. 179).
À luz dessa compreensão, consideramos pertinente o seguinte questionamento: sendo a escola moderna uma instituição educativa cuja existência se relaciona com as condições históricas que permitiram sua emergência e seu desenvolvimento, em determinado tempo e espaço, como se configurou essa instituição no Brasil republicano em atendimento às necessidades educacionais de grupos sociais desfavorecidos, sobretudo no âmbito do ensino profissional?
Na perspectiva teórico-metodológica defendida por Magalhães (2004, p. 133- 134), “compreender e explicar a realidade histórica de uma instituição [...] é integrá-la de forma interativa no quadro mais amplo [...], nos contextos e nas circunstâncias históricas [...].” Caso contrário, reforçam Nosella e Buffa (2009, p. 27), nas investigações que se distanciam de tal perspectiva, “a sociedade que produziu a escola fica esmaecida”. Considerando-se que a instituição escolar investigada neste artigo teve sua formação na designada Primeira República (1889-1930), o citado pressuposto constitui-se, desse modo, no suporte para a reconstituição delineada a seguir.
Afinal, o paradigma institucional escolar moderno ocidental foi adotado no Brasil, em seus aspectos constitutivos, desde o período imperial. Mas foi a partir da instalação do regime republicano que ele se consolidou no país, principalmente no que diz respeito à escola como instituição educativa laica, pública, responsável não só pela formação geral mas também pelo ensino profissional, em larga escala, no território nacional.
No início do recorte temporal definido na historiografia brasileira como a
Primeira República, a ruína do regime monárquico e a posterior promulgação da Constituição de 1891 trariam novo alento a determinados segmentos sociais. A mudança na forma de governo seria, na perspectiva dos representantes desses segmentos, o passaporte para o progresso e o rompimento com o passado arcaico (CARVALHO, 1990; BUENO, 2002, ARAÚJO, 2009). Nessa fase de transição, aquela ordenação social existente durante o Império, centrada no binômio senhor-trabalhador escravizado – cuja resultante classificaria os demais elementos como desajustados sociais –, estava em gradual processo de desaparecimento, especialmente a partir do início do século XX, quando, nas palavras de Nagle (1974, p. 27), “emerge a nova ordem social competitiva”.
Como se observa também na análise de Machado (1989), a composição dessa intricada organização social exigia instituições complexas capazes de equacionar as demandas geradas pelas contradições existentes. Desde as últimas décadas do período imperial, sobressaía no Brasil uma economia agrário-exportadora, com ênfase na produção cafeeira. Conectada a ela, havia a concentração fundiária, fonte de controle político oligárquico, cujos interesses, especialmente no ambiente rural, eram defendidos pelo coronelismo.
Essas características, que estavam arraigadas e eram difundidas em todos os setores da sociedade, nutriam-se na manutenção de uma arcaica estrutura socioeconômica, na frágil ação do Estado em proveito dos desfavorecidos, no analfabetismo das massas e no controle oligárquico dos três poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário), em flagrantes contradições com os ideais modernizadores da República.
Certamente a reconstituição aqui delineada diz respeito aos traços definidores da organização social brasileira em seus setores hegemônicos, que, por sua vez, tiveram diferentes repercussões nas demais regiões brasileiras. Ela corresponde a uma caracterização desse período em seus traços gerais, como reconhece Nagle (1974, p. 98), “pois as transformações se deram mais em determinados Estados ou regiões, e menos, ou quase nada, em outros”, como ocorreu, por exemplo, em estados do Nordeste.
O mesmo se constatou no tocante ao proletariado industrial, cuja formação,
especialmente no Sul e Sudeste do país, conforme Nagle admite (1974, p. 28), vincula-se “a uma multiplicidade de condições”, quando as frágeis experiências de industrialização e a ampliação de centros urbanos incrementaram a “mão de obra disponível e de baixo custo, que é empregada nas modalidades cada vez mais diferenciadas do trabalho artesanal e industrial.” Uma das resultantes desse processo de propagação do capitalismo no Brasil adquiriu forma na questão social, cujos contornos tornaram-se mais evidentes a partir da segunda década do século XX, como demonstram as múltiplas formas de organização e as crescentes reivindicações do movimento operário naquele período (BATALHA, 2000).
Apesar de seus limites e contradições, a implantação da República no Brasil trouxe à baila discussões que, embora já estivessem presentes na época do Império, adquiriram maior dimensão na sociedade. Nesse sentido, a Constituição republicana assegurava a todos – inclusive aos descendentes de etnia negra e ex-escravizados – a igualdade de direitos perante a lei. Decorre daí, segundo Veiga (2010, p. 404), um dos problemas enfrentados pelo novo regime: “Como possibilitar a incorporação da população aos novos preceitos políticos, sociais e culturais que a nova era prometia?” Em decorrência disso, tornou-se necessário o rompimento da inclusão fortuita, desordenada e rebelde dos indivíduos na sociedade. Mas como promover a inclusão
– mesmo a educacional – sem macular a organização social vigente?
De acordo com a concepção teórico-metodológica defendida por Nosella e Buffa (2009), é nesse contraditório quadro histórico, no qual se conciliam costumes arraigados e transformações econômicas, políticas, sociais e culturais, que se deve analisar a organização da educação escolar brasileira em seus diferentes aspectos. Além disso, ressalva Souza (2008), as mudanças internacionais ocorridas na escolarização elementar, em especial no início do século XX, repercutiram no Brasil e provocaram a entusiasmada adesão de alguns de nossos principais intelectuais, a exemplo de Rui Barbosa. Tal interpretação é compartilhada por Jorge Nagle, como atesta a seguinte afirmação:
O entusiasmo pela educação e o otimismo pedagógico, que tão bem caracterizam a década dos anos vinte, começaram por ser, no decênio anterior, uma atitude que se desenvolveu nas correntes de ideias e movimentos político-sociais e que consistia em atribuir importância cada vez maior ao tema da instrução, nos seus diversos níveis e tipos
(NAGLE, 1974, p. 101).
Entretanto, os dirigentes iniciais do regime republicano – de diferentes matizes ideológicas (liberais, positivistas e jacobinos) –, aos quais se agregaram ex- monarquistas (representados pelo Marechal Deodoro da Fonseca), tinham projetos distintos e interesses por vezes contraditórios. Para Carvalho (1990), os três principais grupos lutaram de forma intensa desde o princípio da República (1889) até o triunfo da corrente liberal, ocorrido na transição para o século XX. Em resumo, não existia unidade no conjunto das forças políticas interessado na mudança do regime imperial para o regime republicano, cuja composição integrava diferentes segmentos sociais que, à época, abrangia, entre outros, cafeicultores, profissionais liberais e militares. Mas, no plano da educação popular, como se posicionaram as correntes divergentes? Para aqueles que formariam a força de trabalho nacional, as lideranças políticas, em sua maioria, defendiam a “importância dos ofícios manuais, em suas dimensões preventiva e corretiva” (CUNHA, 2000, p. 24, grifo nosso). Em outras palavras, defendiam a conservação de secular tradição dualista de ensino, que revela “oposição histórica entre espírito e mãos, entre escola secundária clássica e escola
profissional [...]” (NOSELLA; BUFFA, 2009).
A manutenção dessa dualidade, em contradição com os anseios por mudanças substanciais, oficializou a distância existente entre a educação proporcionada às classes dirigentes – expressa nas escolas secundárias acadêmicas e nas escolas superiores – e a educação popular – concretizada nas escolas primárias e nas profissionais. Na concepção de Romanelli (2006, p. 41), essa dualidade retratava a organização social brasileira. “O que [...] não ocorria ao sistema assim consagrado era o fato de a nova sociedade brasileira, que despontava com a República, já ser mais complexa do que a anterior sociedade escravocrata.” Não discernir isso, na avaliação da autora, criou obstáculos para o projeto modernizador republicano.
Com uma taxa de analfabetismo que atingia cerca de 80%, lideranças da sociedade brasileira, até o final do período imperial, trataram esse problema social com certa leniência. Com a implantação da República, exaltada como a suposta alvorada do progresso, os índices de analfabetismo do país envergonhavam cada vez mais os intelectuais brasileiros. Assim se tornou inadiável a tarefa de incluir o Brasil
entre os países considerados civilizados, e a instrução foi avaliada como a única alternativa para a vitalização de nosso povo (PAIVA, 2003). Dessa forma, crescia a pressão para que o governo central interviesse e auxiliasse os estados da Federação no enfrentamento do problema. Diante da gravidade do quadro educacional escolar brasileiro, como se promoveria a modernização do país? Como se colocariam em prática as pretensões modernizantes dos republicanos?
A pretendida modernização esboçou-se, em parte, na educação elementar, com a implantação dos grupos escolares, ocorrida ainda no final do século XIX. Sendo assim, o processo de modernização escolar do Brasil assemelhava-se àquele verificado na escolarização ocidental e implicava mudanças consideradas imprescindíveis (MAGALHÃES, 2010). Mas a criação dos grupos escolares atenderia às necessidades da educação popular?
As preocupações com os desfavorecidos, no início do século XX, já não se resumiam ao combate ao analfabetismo. Os crescentes problemas sociais se avolumavam de forma gradativa e se temiam, inclusive, os efeitos de agitações políticas entre o incipiente proletariado (BATALHA, 2000). Nesse contexto, ocorreram relevantes transformações na sociedade brasileira, dentre estas o paulatino processo de urbanização e de industrialização nas principais cidades do país. De forma concomitante, esclarece Cunha (2000), as mobilizações populares e a crescente organização das classes trabalhadoras urbanas colocaram em alerta os segmentos sociais hegemônicos. Na concepção desses segmentos sociais elitizados, era preciso articular respostas consistentes aos novos desafios.
Uma dessas respostas, nos maiores centros urbanos do país, viria na defesa do industrialismo – concepção que atribuía à indústria a primazia de promover o progresso da nação. Para seus propositores, a indústria seria a solução simultânea para o desenvolvimento, a independência econômica, a democracia e a integração do Brasil à civilização. Na perspectiva dos industrialistas, segundo pesquisa desenvolvida por Cunha (2000, p. 15), a ocupação do contingente populacional urbano ocioso “(que, de outra forma, poderia provocar inquietações e revoltas) e a criação de condições para o seu bem-estar eram vistos como a contribuição da indústria para resolver a chamada questão social.”
Para atingir esse objetivo, os industrialistas não poderiam desconhecer as funções sociais da escola popular moderna. Ela deveria difundir, necessariamente, saberes úteis à existência contemporânea e à instrução do povo. Por isso, conforme esclarece Souza (2008, p. 20), os conteúdos da instituição escolar primária foram redefinidos nas primeiras décadas republicanas, no Brasil, “em função das novas finalidades atribuídas à educação popular.” Era preciso mudar a escola para poder transformar o País.
Essa arraigada crença dos industrialistas foi mantida, mesmo quando os conflitos sociais se intensificaram, no início do século XX, nos principais centros urbanos, sob contexto que envolvia a convivência entre imigrantes e ex-escravizados nas manufaturas, as tentativas de embranquecimento da força de trabalho e a difusão da ideologia das classes perigosas (CHALHOUB, 2012). Nessa conjuntura, sustenta Cunha (2000, p. 16), seus mentores chegaram a defender a prioritária ação do Estado na imposição do ensino obrigatório e a secundarização das leis sociais. “Ao lado do esperado efeito moralizador das classes pobres, o ensino profissional era visto como possuidor de outras virtudes corretivas.” Entre estas, o combate ao bacharelismo predominante entre as camadas médias, fato destacado no clássico Raízes do Brasil, quando o autor adverte quanto ao fato de que “as nossas academias diplomam todos os anos centenas de novos bacharéis, que só excepcionalmente farão uso, na vida prática, dos ensinamentos recebidos durante o curso” (HOLANDA, 1995, p. 156, grifo nosso).
É a partir dessas crenças que, na análise de Cunha (2000), desde o início do século XX, os industrialistas e seus aliados, entre eles um presidente da República, Nilo Procópio Peçanha (1909-1910), defenderam a ação do Estado na implantação do ensino profissionalizante. A obrigatoriedade desse ramo de ensino foi questionada por setores privilegiados da sociedade, pois, para estes, estava claro quem deveriam profissionalizar, para que e por quê. Essa modalidade de ensino teria, segundo as convicções de seus adeptos, o desejado efeito moralizador sobre a população carente, ocuparia de forma útil os desfavorecidos da fortuna e formaria a força de trabalho necessária à incipiente indústria brasileira, até mesmo nas mais distantes regiões do país. Caso contrário, acreditavam, os mais humildes estariam à mercê da
ociosidade, do vício e do crime.
Nesse contexto, no entendimento de Queluz (2000, p. 14), a qualificação da força de trabalho e a “disciplinarização dos futuros operários”, em meio às diferentes concepções de ensino técnico na Primeira República, só seriam exequíveis sob a institucionalização do ensino profissional, caracterizado pela composição do chamado alfabetismo técnico adequado às necessidades e às condições existentes no Brasil.
Para os industrialistas, não existiam dúvidas: era preciso agir e colocar a instituição educativa escolar em harmonia com as necessidades do mundo do trabalho industrial. A fim de alcançarem esse intento, tornou-se indispensável a participação do Estado brasileiro e sua intercessão em todas as unidades da Federação. Como se desenvolveu esse processo é o que investigaremos a seguir.
De forma ampla, no quadro teórico proposto por Magalhães (2004, p. 58), registrar a história de uma instituição educativa consiste em entender e esclarecer os processos e os compromissos sociais sob os quais ela se constituiu. Decorre daí que, na concepção do autor, “conhecer o processo histórico de uma instituição educativa é analisar a genealogia da sua materialidade, organização, funcionamento [...]” e de suas práticas. Qual seria, então, a genealogia da rede escolar investigada?
Como delineado antes, no início do século XX, formava-se gradualmente o ambiente favorável ao desenvolvimento do ensino profissional em nosso país. Cresceu, enfim, a compreensão de que o Governo federal deveria intervir nesse problema com o intuito de efetivar algo que já se tornara reivindicação do meio social, em especial no tocante às aludidas classes perigosas (CHALHOUB, 2012).
Em sintonia com esse anseio, Afonso Augusto Moreira Pena, durante a cerimônia de sua posse na Presidência da República, em 15 de novembro de 1906, defendeu a propagação de instituições de ensino técnico-profissional como suporte valoroso para a evolução das indústrias, “proporcionando-lhes mestres e operários instruídos e hábeis” (FONSECA, 1986, p. 172). Segundo o autor, essa declaração era emblemática, pois nenhum presidente do Brasil fizera referência anterior ao tema em
seu programa de governo. Em suma, apesar dos avanços e recuos, a conjuntura tornou-se favorável aos intentos daqueles que defendiam o ensino industrial profissionalizante.
Como expôs Fonseca (1986, p. 172), o discurso de posse do presidente Afonso Pena, a dotação orçamentária prevista pela Câmara Federal para 1907 – destinada às negociações com os estados para a instalação das escolas profissionais –, a ampliação do orçamento aprovada pelo Senado e as propostas difundidas pelo Congresso de Instrução, ocorrido no Rio de Janeiro, integraram o conjunto de elementos que expunham a tendência “para a concretização do ideal de ver implantado no Brasil o que outras nações já ensaiavam no campo do ensino de ofícios.” Estariam, então, dadas as condições históricas para a emergência de uma rede escolar federal de ensino industrial?
Outro acontecimento agregou novo componente a esse complexo e contraditório contexto. Não por coincidência, nesse período, os assuntos educacionais passaram da jurisdição do Ministério da Justiça e Negócios Interiores para o Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio, ao qual, desde sua criação, por determinação do Decreto nº 1606, de 29 de dezembro de 1906, em seu artigo 2º, competia regular “o ensino profissional, compreendendo os estabelecimentos industriais” (BRASIL, 1906). Tal Decreto foi sancionado pelo presidente Afonso Pena, que, como se observou, havia pouco mais de um mês proferira discurso de posse exaltando o ensino profissionalizante industrial.
Percebiam-se, em vários segmentos da sociedade, aspirações coletivas de diferentes procedências, anseios que se generalizavam direcionando-se para o mesmo intuito de constituir, no Brasil, o tipo de instrução que possibilitasse o incremento da indústria nacional. Fonseca (1986, p. 173) explica, com propriedade, aquelas aspirações: “Era a preparação psicológica, necessária à cristalização da ideia, que estava em franca evolução.” De fato, mesmo imersa na predominante concepção agroexportadora, oligárquica, a elite dirigente brasileira começava a se render a determinados argumentos dos industrialistas e de seus aliados.
Embora ainda incipiente na maior parte da Federação, a indústria brasileira cresceu nos maiores centros urbanos. Num período de vinte anos, o crescimento foi
considerável: quando da proclamação da República, em 1889, o País contabilizava, oficialmente, 636 estabelecimentos industriais; daquele evento histórico até 1909, foram fundadas 3.362 novas indústrias, sobretudo no Sudeste. O incremento foi inquestionável: mais de 500%. Pelo visto, “o desenvolvimento da indústria indicava a necessidade do estabelecimento do ensino profissional. Urgia, ao Governo, tomar providências” (FONSECA, 1986, p. 174).
Entretanto, os elementos explicativos para o desenvolvimento industrial brasileiro constituem controvérsia historiográfica. Suzigan (2000), por exemplo, identifica quatro interpretações: a teoria dos choques adversos (crises externas teriam deslocado capital para atividades internas e promovido política de substituição de importações); a ótica da industrialização liderada pela expansão das exportações (produtos primários, sobretudo o café, seriam as fontes para o acúmulo de capital aplicável à indústria); a teoria do capitalismo tardio (em economia periférica como a nossa, o desenvolvimento industrial vincular-se-ia primordialmente a fatores internos e, de forma secundária, a fatores externos); e a perspectiva da industrialização intencionalmente promovida por políticas governamentais (contesta a versão que atribui insignificância à ação do Estado na promoção da industrialização anterior a 1930).
Controvérsias à parte, no início do século XX, a nação parecia despertar para as necessidades geradas pela industrialização em curso. Em meio a esse processo, a 14 de junho de 1909, Afonso Pena faleceu e, na mesma data, Nilo Procópio Peçanha assumiu a Presidência da República. As discussões sobre as necessidades de formação do proletariado brasileiro não eram estranhas ao novo governante. Três anos antes, ainda como presidente do estado do Rio de Janeiro, ele fora o responsável pelo Decreto nº 787, de 11 de setembro de 1906, que autorizou a instalação de quatro instituições educativas profissionais em diferentes cidades daquele estado: Campos, Petrópolis, Niterói e Paraíba do Sul. Como registra Fonseca (1986), à exceção da escola instalada na última cidade, as demais eram destinadas ao ensino de ofícios industriais. Considerando-se o processo de desenvolvimento socioeconômico brasileiro, as necessidades formativas exigidas pela industrialização e os riscos sociais advindos da crescente urbanização, o terreno encontrava-se fértil para o
lançamento das sementes preconizadas pelos industrialistas.
Não obstante o predomínio da economia primária agroexportadora, cresceram os argumentos daqueles que viam nas mudanças ocorridas no início do século XX, entre estas a industrialização, a oportunidade para o desenvolvimento nacional. Imerso no caleidoscópio em que se tornara o Brasil, Nilo Peçanha assumiu o Executivo federal e apoiou a reivindicação dos industrialistas. Cerca de três meses após sua posse, lançou as bases legais da rede federal de educação profissional industrial. Segundo Santos (2010, p. 212), “o pensamento industrialista converteu-se em medidas educacionais, pela iniciativa do presidente da República Nilo Peçanha”, avaliado como o criador do ensino profissional no país. Evidentemente, não fora ato isolado de um homem impetuoso: sua decisão sustentou-se nas condições históricas presentes naquele contexto.
Foi sob a influência do industrialismo que o governo do então presidente da República, Nilo Procópio Peçanha (1909-1910), determinou, nos termos do Decreto nº 7566, de 23 de setembro de 1909, a criação de 19 Escolas de Aprendizes Artífices, de ensino primário profissional, público e gratuito, subordinadas ao Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio, com instalações previstas para as capitais dos estados brasileiros (BRASIL, 1909). Assim, esse Decreto corresponde a uma espécie de atestado de nascimento das Escolas de Aprendizes Artífices, instituições educativas cuja genealogia se entrelaça com as demandas oriundas dos processos de urbanização e industrialização ocorridos nas principais cidades do Brasil, no início do século XX.
Apenas duas capitais estaduais não foram contempladas com unidades das Escolas de Aprendizes Artífices. As exceções foram o Rio de Janeiro, à época Distrito Federal (em razão de divergências com o governo estadual, que negou auxílio à instalação do estabelecimento – daí que, nesse estado, a Escola instalou-se em Campos), e Porto Alegre, onde já funcionava, a contento, o Instituto Técnico Profissional, vinculado à Escola de Engenharia da capital gaúcha – depois denominado Instituto Parobé –, o qual, posteriormente, foi incorporado à rede federal de ensino profissional (FONSECA, 1986).
Ao analisar as possíveis inspirações para a fundação das Escolas de
Aprendizes Artífices, Gilson Queluz (2000) identificou três fontes: aquelas instituições de ensino profissionalizante criadas pelo próprio Nilo Peçanha, em 1906, no estado do Rio de Janeiro (com o ensino de ofícios e o curso noturno de primeiras letras); a proposta encaminhada ao Governo federal pelos organizadores do Congresso de Instrução de 1906 (com a ideia de implantar uma escola profissional em cada município brasileiro); e o Asilo de Meninos Desvalidos (em seu caráter assistencial), inaugurado no Distrito Federal, em 1875.
Além dessas instituições educativas, acrescente-se, como antecedentes dignas de registro, as Casas de Educandos Artífices. Criadas ainda no século XIX, no período de 1840 a 1865, foram instaladas dez dessas instituições em diferentes províncias do Império. Da mesma forma que as Escolas de Aprendizes Artífices, as antigas Casas de Educandos (assim como outras instituições similares precursoras) tinham como propósito oferecer uma educação cujos objetivos institucionais eram “incutir hábitos de trabalho” (QUELUZ, 2000, p. 26) direcionados aos menores desvalidos da sorte. Ou seja, integrantes das classes ditas perigosas (CHALOUB, 2012). Tal propósito acompanharia a tendência até então verificada, e perduraria, ao longo de nossa história, no ensino técnico profissional, fato que, segundo Lucília Machado (1989), demonstra a estreita relação existente entre a educação profissional e a divisão social do trabalho.
Apesar das semelhanças com instituições educativas do passado, já no ano letivo de 1910, as 19 escolas criadas pelo presidente Nilo Peçanha começaram a funcionar em todo o Brasil, com distintas datas de inauguração. As dificuldades inerentes às reais condições existentes nos diferentes estados explicam, de certa forma, essa falta de sincronia. Afinal, as negociações do Governo central com os governos estaduais ocorreram sob condições diferenciadas. Uma dessas dificuldades atrelava-se aos edifícios nos quais as escolas seriam instaladas, que eram, em geral, conforme Fonseca (1986, p. 182), “inadequados e em precárias condições de funcionamento de oficinas. A eficiência não poderia deixar de ser senão pequena”. Mas a principal dificuldade inicial, de acordo com o autor, foi a falta de professores e mestres de oficinas capacitados para suas funções.
Todavia, as dificuldades iniciais não foram suficientes para arrefecer os ânimos
com a criação das Escolas de Aprendizes Artífices. Era uma medida pioneira, que marcava o princípio da atuação direta do Governo federal na esfera da formação profissional. Por isso, problemas verificados no processo de instalação das instituições educativas nas unidades federadas foram minimizados e soluções postergadas. Daí a improvisação verificada em diferentes localidades. As autoridades federais estavam imbuídas do propósito de inaugurar a rede de escolas profissionalizantes e, salvo a exceção verificada no Rio de Janeiro, contavam com o apoio das oligarquias estaduais.
Os dados reproduzidos, no Quadro 1, sugerem a complexa tarefa que foi inaugurar, no início do século XX, 19 instituições educativas em diferentes estados da Federação.
Piauí | 1º de janeiro de 1910 |
Goiás | 1º de janeiro de 1910 |
Mato Grosso | 1º de janeiro de 1910 |
Rio Grande do Norte3 | 1º de janeiro de 1910 |
Paraíba | 6 de janeiro de 1910 |
Maranhão | 16 de janeiro de 1910 |
Paraná | 16 de janeiro de 1910 |
Alagoas | 21 de janeiro de 1910 |
Rio de Janeiro (Campos) | 23 de janeiro de 1910 |
Pernambuco | 16 de fevereiro de 1910 |
Espírito Santo | 24 de fevereiro de 1910 |
São Paulo | 24 de fevereiro de 1910 |
Sergipe | 1º de maio de 1910 |
Ceará | 24 de maio de 1910 |
Bahia | 2 de junho de 1910 |
Pará | 1º de agosto de 1910 |
Santa Catarina | 1º de setembro de 1910 |
Minas Gerais | 8 de setembro de 1910 |
Amazonas | 1º de outubro de 1910 |
3 No caso da Escola de Aprendizes Artífices do Rio Grande do Norte, Fonseca (1986, p. 181) registra a data de 3 de janeiro para a inauguração. Entretanto, a documentação primária consultada atesta a data da inauguração em 1º de janeiro de 1910 (RIO GRANDE DO NORTE, 1910, p. 7),
Apesar de toda a argumentação favorável à necessária qualificação técnica dos trabalhadores brasileiros (elaborada principalmente pelos industrialistas), a análise do Decreto nº 7.566, de 23 de setembro de 1909, oferece elementos esclarecedores quanto às razões mais amplas que motivaram a criação das Escolas de Aprendizes Artífices. Em seu preâmbulo, o documento apresenta as seguintes justificativas:
[...] Considerando:
que o aumento constante da população das cidades exige que se facilite às classes proletárias os meios de vencer as dificuldades sempre crescentes da luta pela existência;
que para isso se torna necessário, não só habilitar os filhos dos desfavorecidos da fortuna com o indispensável preparo técnico e intelectual, como fazê-los adquirir hábitos de trabalho profícuo, que os afastará da ociosidade ignorante, escola do vicio e do crime;
que é um dos primeiros deveres do Governo da República formar cidadãos úteis à Nação [...] (BRASIL, 1909, p. 1).
O texto apresenta, inicialmente, evidente relação entre o processo de urbanização, o crescimento demográfico e o aumento dos problemas sociais para os operários e para seus descendentes. De forma explícita, propõe, para a resolução do problema assinalado, a oferta do ensino técnico, de caráter preventivo e regenerador, capaz de transmitir hábitos proveitosos para os “filhos das classes proletárias, menores percebidos como potenciais elementos de desordem social” (QUELUZ, 2000, p. 29, grifo nosso). Em resumo, o Governo republicano assumiu como sua, nos termos expostos, a tarefa de proporcionar aos estudantes uma educação escolar de formação utilitária adequada aos interesses da nação. Que formação seria essa e em quais bases estaria assentada?
No Decreto nº 7.566, em seu artigo primeiro, consta que a instituição da rede educativa criada em 1909 era destinada ao ensino profissional primário gratuito. Interessa-nos, então, identificar os objetivos desse alegado ensino profissional, sobretudo porque legalmente norteariam o ensino e as práticas formativas da rede educativa investigada durante período considerável de seu percurso histórico. Vejamos o que diz a respeito dessa questão o artigo 2º, do Decreto sob análise:
Art. 2º. Nas Escolas de Aprendizes Artífices, custeadas pela União, se procurará formar operários e contramestres, ministrando-se o ensino
prático e os conhecimentos técnicos necessários aos menores que pretendem aprender um oficio, havendo para isso até o número de cinco oficinas de trabalho manual ou mecânico que forem mais convenientes e necessárias no Estado em que funcionar a escola, consultadas, quanto possível, as especialidades das indústrias locais (BRASIL, 1909, p. 1).
Pelo exposto, além dos intentos recomendados no artigo 1º, como visto anteriormente, a finalidade dessas escolas era a precoce formação de operários e contramestres (auxiliares dos mestres de oficinas), mediante ensino prático e conhecimentos técnicos que fossem mais convenientes e necessários às unidades da Federação em que funcionassem as Escolas de Aprendizes Artífices. Ou seja, que os cursos oferecidos ao corpo discente (composto de menores) considerassem as peculiaridades da economia local, especialmente aquelas relacionadas ao setor industrial.
Mas a formação escolar realizada por essa rede de instituições educativas criada no Brasil seria compatível com os objetivos propostos nos marcos legais? Magalhães (2004, p. 69) constata que, inseridas em espaços e em tempos históricos diferenciados por elementos de caráter sociocultural, contextos e situações históricas peculiares, as instituições educativas, conforme sua análise, apesar de “estruturadas por uma matriz de base e perseguindo objetivos comuns, existem de forma própria e este quadro existencial fomenta representações e apropriações, elas mesmas diferenciadas.” Se esse autor admite que as diferenciações sejam inerentes às instituições educativas, também reconhece que, em um conjunto delas, tais diferenças não significam necessariamente a anulação de objetivos em comum. Identificados os objetivos legais das Escolas de Aprendizes Artífices, outro questionamento se impõe: quem, de fato, seriam os menores para os quais se direcionavam os fins educativos institucionais?
O artigo 6º, do Decreto nº 7.566, definiu os requisitos exigidos aos menores que pretendiam estudar nas Escolas de Aprendizes Artífices, nos seguintes termos:
Art. 6º. Serão admitidos os indivíduos que o requererem dentro do prazo marcado para a matrícula e que possuírem os seguintes requisitos, preferidos os desfavorecidos da fortuna:
idade de 10 anos no mínimo e de 13 anos no máximo;
não sofrer o candidato moléstia infectocontagiosa, nem ter defeitos que o impossibilitem para o aprendizado do oficio.
§ 1º. A prova desses requisitos se fará por meio de certidão ou atestado passado por autoridade competente.
§ 2º. A prova de ser o candidato destituído de recursos será feita por atestação de pessoas idôneas, a juízo do diretor, que poderá dispensá-la quando conhecer pessoalmente as condições de requerente à matricula.
(BRASIL, 1909, p. 2).
Além de estabelecer os limites de idade (mínima e máxima) e preocupações higienistas, típicas da época, o artigo 6º deixa evidente a preferência concedida aos denominados desfavorecidos da fortuna. A estes eram destinadas, de forma inquestionável, as vagas disponibilizadas a partir de 1910. Admitindo-se a dualidade reinante no sistema educacional brasileiro, as provas exigidas para a demonstração das condições sociais dos alunos seriam basicamente protocolares. Nas circunstâncias históricas do período aludido, sob a vigência de preconceito com o ensino de ofícios, seria improvável que pais ou responsáveis de melhores condições sociais pleiteassem o ingresso de seus filhos ou tutelados nas Escolas de Aprendizes Artífices.
Quanto ao número de matriculados no primeiro ano de funcionamento daquelas instituições, existem divergências entre dois dos principais estudos realizados sobre a história do ensino industrial no Brasil. Para Fonseca (1986), foram 2.118 alunos. Entretanto, segundo Cunha (2000), ocorreu um total de 1.982 matrículas, conforme registrado no Quadro 2, a seguir.
Amazonas | 33 |
Pará | 20 |
Maranhão | 74 |
Piauí | 52 |
Ceará | 128 |
Rio Grande do Norte | 100 |
Paraíba | 143 |
Pernambuco | 120 |
Alagoas | 93 |
Sergipe | 120 |
Bahia | 45 |
Espírito Santo | 180 |
Rio de Janeiro (Campos) | 209 |
São Paulo | 135 |
Paraná | 219 |
Santa Catarina | 100 |
Minas Gerais | 32 |
Goiás | 71 |
Mato Grosso | 108 |
Apesar das divergências assinaladas entre os dois autores, as matrículas registradas em todo o Brasil deram novo alento ao ensino industrial.
As condutas, tarefas e funções dos alunos matriculados em todo o país, bem como dos professores, gestores e demais funcionários das Escolas de Aprendizes Artífices, foram determinadas em dois documentos normativos: o Regulamento de 1911, definido por meio do Decreto nº 9.070, de 25 de outubro de 1911, e o Regulamento de 1918, com poucas alterações em relação ao anterior, estabelecido pelo Decreto nº 13.064, de 12 de junho de 1918. Em ambos, procurava-se resolver as pendências iniciais verificadas na implantação da rede escolar federal de ensino técnico industrial (BRASIL, 1911, 1918). A tarefa, entretanto, não seria fácil; mesmo porque, em cada estado da Federação – além dos problemas de amplitude nacional
–, ganharia contornos próprios, peculiares. Dentre esses, a seleção de professores capacitados para lecionarem disciplinas de formação técnico-profissional, a construção do perfil do corpo discente, a frágil estrutura física de diversas unidades
escolares e as limitações do embrionário mercado de trabalho industrial para o qual, teoricamente, deveria encaminhar seus formandos.
Na síntese analítica realizada, constatamos que a instituição escolar, em sua historicidade, adquiriu proeminência entre aquelas de natureza educativa. No mundo ocidental, em sua configuração moderna, ela assumiu múltiplas funções sociais, dentre estas a de formar crianças e jovens, inclusive no âmbito profissional. Essa instituição, que em seus traços constitutivos foi reproduzida da Europa para o Brasil, encontrou entre nós, na Primeira República, sob a égide do industrialismo – à época exaltado como imprescindível alavanca para o progresso do país – o suposto contexto favorável para desenvolver a sua função institucional de formar trabalhadores para a indústria nacional. Essa tarefa, como exposto, competiria às Escolas de Aprendizes Artífices, criadas em 1909. Porém, na conjuntura aludida, essa empreitada encontraria múltiplos obstáculos em uma sociedade caracterizada por expressiva desigualdade social, arraigado preconceito com os mais humildes, não raras vezes designados como integrantes das classes perigosas, e débil processo de industrialização.
Dessa forma, a análise da genealogia da rede escolar de educação profissional industrial, aqui estudada, abrange um núcleo de assuntos interdisciplinares, cuja condição epistêmica se determina e se concretiza pela vinculação com as temáticas centrais da educação, “designadamente as referentes ao contributo da escolarização para as mudanças socioculturais e para a modernização das economias e das sociedades” (MAGALHÃES, 2004, p. 121).
Considerando-se como válidas as reflexões produzidas no âmbito do nosso referencial teórico-metodológico e considerando-se, ainda, que o objetivo oficial para o qual foram criadas as Escolas de Aprendizes Artífices era, em essência, a formação profissional para o mercado de trabalho, sobretudo na esfera industrial, então se constata que tal intento, nas primeiras décadas do período republicano – apesar da reconhecida relevância dessa inciativa –, apresentou alcance insuficiente. Da mesma forma, embora reconheçamos as expressivas mudanças e reconfigurações ocorridas ao longo de mais de um século de sua concepção, a análise histórica aqui
empreendida permite identificarmos, na criação das Escolas de Aprendizes Artífices, a genealogia da rede federal de educação profissional industrial no Brasil.
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BATALHA, Cláudio Henrique de Moraes. O movimento operário na Primeira República. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2000.
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BRASIL. Decreto nº 9070, de 25 de outubro de 1911. Dá novo regulamento para as Escolas de Aprendizes Artífices. Câmara Federal Disponível em:
<http://www2.camara.gov.br/legin>. Acesso em: 05 out. 2012.
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V.18, Nº 35 - 2020 (jan-abr) ISSN: 1808-799 X
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v18i35.40505
Juan Mainer Baqué2
En este artículo abordamos desde una perspectiva histórica crítico-genealógica y de manera ensayística, el hecho de que los sistemas escolares del capitalismo, lejos de propiciar o fomentar la igualdad social, son un dispositivo eficaz para lograr la legitimación y consagración de la estructura de clases, el colonialismo y la segregación de género; todos ellos elementos consustanciales al desarrollo de esta formación socioeconómica.
Neste artigo, numa perspectiva histórica crítico-genealógica e de maneira ensaística, indicamos que os sistemas escolares do capitalismo, longe de propiciar ou fomentar a igualdade social, tem sido um dispositivo eficaz para a legitimação e consagração da estrutura de classes, do colonialismo e da segregação de gênero; todos eles são elementos consubstanciais para o desenvolvimento desta formação socioeconômica. Entender a instituição escolar como um espaço de debate e de luta passa por submeter à crítica as numerosas crenças e engôdos construídos pelo pensamento da esquerda, em seu conjunto, em matéria de educação, cultura e ensino.
In this article we approach from a critical-genealogical historical perspective and in an essayistic manner, the fact that the school systems of capitalism, far from propitiating or fostering social equality, are an effective device to achieve the legitimation and consecration of the class structure, colonialism and gender segregation; all of them elements consubstantial to the development of this socioeconomic formation.
1 Artigo recebido em 21/11/2019. Primeira avaliação em 17/12/2019. Segunda avaliação em 17/12/2019. Aprovado em 23/12/2019. Publicado em 23/01/2020.
https://orcid.org/0000-0002-6409-251X
3 Este artículo será publicado con el título "Fábricas de inequidad" en el nº 101 (2020) de la revista Libre Pensamiento (http://librepensamiento.org/) del sindicato CGT (Madrid-España). Buena parte de las ideas y argumentos que se sostienen en este texto, provienen del sociólogo español Carlos Lerena Alesón (1940-1988), cuya obra sigue siendo referencia inexcusable para el pensamiento crítico educativo. Dedico estas líneas a mi buen amigo y compañero de CGT-Huesca Ángel Ramírez (1955- 2016), que se fue sin poder disfrutar de su lectura.
Lo esencial de la regla oligárquica no es la herencia del padre a hijo, sino la persistencia de una cierta manera de ver el mundo y de un cierto modo de vida impuesto por los muertos a los vivos (…) No importa quién ostenta el poder con tal de que la estructura jerárquica sea siempre la misma.
George Orwell (1949). 1984.
Ante este nuevo orden de cosas no hay pues jerarquía; es decir, hay jerarquía fundada en la superioridad accidental de las personas, jerarquía, por otra parte, no de prepotencia, sino de mayor responsabilidad y servicio (…) El gobierno de esta sociedad no está, como suele decirse, en mano del dinero, ni de la fuerza, sino del talento.
Francisco Giner de los Ríos (1879).
Instrucción y educación.
¿Pueden los sistemas escolares que conocemos contribuir a la equidad en las sociedades capitalistas? A lo largo de estas líneas trataremos de dar respuesta a esta pregunta que, preciso es reconocerlo, tiene mucho de interpelación retórica. La relación entre éxito o fracaso escolar y nivel socioeconómico familiar es una evidencia aceptada. Sin embargo, sigue teniendo sentido preguntarse hasta qué punto los sistemas educativos reproducen deliberadamente, o no, el sistema de clases y, en consecuencia, en qué medida la enseñanza puede ayudar a corregir las agudas diferencias sociales que presentan nuestras sociedades actuales. Entender la institución escolar como un espacio de debate y de lucha pasa por someter a crítica y sospecha los numerosos embelecos - uno de los más devastadores posiblemente sea el mito de la igualdad de oportunidades - sobre los que se ha venido construyendo el pensamiento de la izquierda, en su conjunto, en materia de educación, cultura y enseñanza.
Como veremos, la escuela no sólo es una institución capitalista porque transmite contenidos convenientes para el sistema o porque, supuestamente, cualifique la mano de obra según las necesidades de este; lo es (y en ocasiones parece olvidarse), por el hecho mismo de existir como esfera separada de la producción material. De ahí que su contribución sea fundamental para el mantenimiento de la división del trabajo al interior de la producción y en el contexto más amplio de las relaciones sociales globales.
Ya en la escuela infantil, el potencial de la infancia está determinado por la clase social de sus progenitores. Así se afirma con rotundidad en Enfances de classe, una muy reciente obra colectiva dirigida por el sociólogo francés Bernard Lahire (2019), que retrata la vida de dieciocho pequeños escolares y sus familias, de muy diferente clase social, a través de otras tantas estremecedoras encuestas etnográficas, realizadas a los propios protagonistas y a sus padres, abuelos, educadores y adultos de referencia. En sus páginas quedan desveladas sus formas de vida material, su entorno social, su lenguaje oral y escrito, los usos del tiempo, su estado de salud, su confianza en sí mismos, su sentido de la autoridad, etc. A partir de estos relatos de vida, el libro evidencia cómo se construye la desigualdad en la Francia del siglo XXI y, sobre todo, cómo la institución escolar, de titularidad estatal o no, es, mal que nos pese, una fábrica eficaz de reproducción y legitimación de la inequidad existente4.
La relación entre éxito (o fracaso) escolar y nivel socioeconómico es un hecho, a estas alturas, incontrovertible. Ahora bien, el debate comienza cuando nos preguntamos hasta qué punto el sistema educativo (o si se quiere, la escuela) reproduce deliberadamente o no el sistema de clases (o no tanto..., o sí, pero podría dejar de hacerlo...). Dicho de otra forma, la controversia se desata (y no se agota) cuando uno enfrenta una pregunta del tipo, ¿puede contribuir la enseñanza reglada a corregir las diferencias sociales?
Al proceso de conocimiento crítico le interesan no tanto las respuestas como el sentido y la definición de los problemas. Un problema verdadero es mucho más difícil de buscar y construir que una respuesta, para la cual, además, constituye requisito indispensable haber formulado una pregunta realmente pertinente. Por decirlo claro y de una vez: preguntarse si los sistemas escolares del capitalismo pueden corregir las
4Tras las potentes protestas estudiantiles del curso pasado, la población francesa enfrenta al inicio de este un nuevo giro de tuerca en la reforma educativa neoliberal emprendida por el tecnócrata Jean- Michel Blanquier. Todo parece indicar que la reforma educativa en marcha dejará el campo libre para que un lobby de tecnócratas, neurocientíficos y neoliberales tomen el control del negocio de la educación contribuyendo así a acelerar los procesos de privatización y elitización de un sistema escolar que hasta hace poco todavía era considerado un vestigio vivo de los treinta gloriosos. Tal es el sentir y el fondo del análisis que al respecto realizan las fuerzas sociales, políticas y sindicales, de la izquierda francesa. Para muestra, pueden consultarse los artículos que incluía el diario l'Humanité del 2 de septiembre de 2019 coincidiendo con la tradicional rentrée. Nada nuevo bajo el sol.
diferencias sociales constituye, en el mejor de los casos, una pregunta retórica cuando no, una considerable necedad.
Cuando de educación y de escuela se trata, particularmente en medios "progresistas", hay un mecanismo reactivo que, cual tic, se nos dispara sin que lo podamos controlar: "igualdad de oportunidades" ante la enseñanza. Siempre me ha llamado la atención que, transcurridos casi dos siglos y medio de la Revolución Francesa, sigamos defendiendo con denuedo y terquedad los mismos principios explícitos en la concepción jacobina (pequeño-burguesa) de la institución escolar: igualdad de acceso, a cada cual según sus capacidades y como horizonte deseable esa guinda empalagosa e intragable de la escuela liberadora y del jardín epicúreo. Conviene decir, no obstante, que a diferencia de nuestra izquierda, que arrastra en estos asuntos un notable ofuscamiento desde los tiempos de la Primera Guerra Mundial5, la pequeña burguesía jacobina sabía muy bien lo que quería y por qué. Luchaba en favor de una secularización de la lógica de la desigualdad social. Defendía el fin de las jerarquías basadas en privilegios de nacimiento y en la voluntad divina y defendía su sustitución por otra, "natural, justa y verdadera", la jerarquía del mérito escolar individual, del talento y del grado de instrucción. En definitiva, que todos - nótese el masculino - seamos iguales ante un sistema de enseñanza erigido en juez de la desigualdad entre los hombres; en un sistema cuya función es dar a cada uno su merecido, escolar y socialmente hablando. Así, la escuela se concibe como una suerte de campo de pruebas: una escuela abierta para un mercado y una sociedad "abiertas". Es precisamente a través de la generalización de la versión escolar de la lógica capitalista como nuestras sociedades clasistas y patriarcales se legitiman, se mantienen y se reproducen con mayor comodidad.
5 Se hace referencia aquí a facetas habitualmente poco exploradas de aquella unión sagrada que terminó con tantas cosas, por ejemplo con la crítica radical que Marx había desarrollado sobre el sistema de enseñanza del estado capitalista y que puede rastrearse por supuesto en El Capital, pero también en sus escritos sobre la Comuna o en la propia Crítica del Programa de Gotha. Recuérdese al respecto que en el XI Congreso del PSOE celebrado en 1918 se aprobaron las Bases para un programa de Instrucción pública, presentadas por el institucionista Lorenzo Luzuriaga, que representó el humus liberal-socialista sobre el que germinó el pacto educativo interclasista que esculpió la malograda reforma educativa de la Segunda República.
Los ideales jacobinos consagraron, merced al sistema de enseñanza, dos principios básicos del orden capitalista y, diríamos ahora, de la lógica del homo economicus: el de la competencia (la lucha de todos contra todos) y el de la desigualdad social. Justamente lo único que no persigue la escuela es una sociedad igualitaria. Todo lo contrario: en ella se lucha por una sociedad desigual, pero "justa"....
- véase el texto de Giner que aparece al comienzo de este trabajo. Si nos fijamos bien, es eso precisamente lo que ocurre de la mano del correcto funcionamiento de la maquinaria escolar: nuestras actuales escuelas han desarrollado tal cantidad de agrupaciones, programas específicos y sistemas de optatividad inducida - valgan como ejemplo los programas bilingües, los de altas (y bajas) capacidades, los refuerzos, los itinerarios curriculares... - que nunca ha sido más verdad aquello de "a tal clase, etnia y género..., tal educación". Nada, absolutamente nada de lo que les ocurre a los alumnos y alumnas dentro de las aulas - el plan de estudios, las relaciones de poder, el valor y el tipo de trabajo, el comportamiento, las calificaciones escolares... - es independiente de la clase social de origen a la que pertenecen.
Pero hay más. La cultura que se dispensa en la escuela, convenientemente asignaturizada (o no) es una cultura de y para las clases medias cultivadas - precisamente las "clases de la cultura" de las que hablaba Hegel -, al servicio de los intereses de su particular ascensor social. En el fondo, la cultura culta de la escuela constituye una particular lectura que las clases medias hacen de la cultura aristocrática: la vida concebida como una suerte de ascesis que concibe el presente en términos de esfuerzo y el futuro como recompensa y salvación. En cierto modo, podríamos decir que el proceso de escolarización es una especie de secularización del ideal ascético que las clases medias han construido para defender su posición, distinguirse y proyectarse en el sueño de una sociedad meritocrática. La escuela ha sido y es para las clases medias el dispositivo que las defiende del siempre acechante riesgo de proletarización - "si estudias, llegarás lejos", "el que se esfuerza obtiene recompensa" -, por eso se ha convertido en su más firme bastión. Y también por eso, más allá de las milongas que esparcen los creyentes y practicantes de la vulgata psi, tenaces en el empeño de hacer pasar problemas sociales de calado por simples problemas individuales - inteligencias múltiples, dicen... -, la presencia de alumnado
procedente de otras clases sociales no sólo ha venido siendo una eficaz estrategia para obtener su desclasamiento, sino un dispositivo de reforzamiento de su condición de "pobres e incultos" al que, además, el sistema escolar otorga con prodigalidad el calificativo de "tontos". Son carne de eso que se ha dado en llamar "fracaso" y más recientemente, de la mano del pensamiento neoliberal, "abandono" escolar - la diferencia es importante y extraordinariamente perversa, porque la responsabilidad ahora recae en exclusiva en el sujeto que "elige" y "decide" morder la mano que le daba de comer. Bajo la ficción de la neutralidad del aparato escolar estas criaturas son descalificadas socialmente porque no tienen vocación, aptitudes o porque se han esforzado poco..., no por ser pobres o hijos del precariado o de la emigración "ilegal", por supuesto.
España lidera la tasa de "abandono escolar temprano" en la Unión Europa con un 17,9%, seis puntos por encima de la media europea. Este indicador expresa la proporción de jóvenes de 18 a 24 años que, como mucho, terminó la ESO y no está estudiando - en España, también en esto tenemos el récord europeo, siete de cada cien personas situadas en ese tramo de edad no han completado sus estudios obligatorios. Sólo Malta (17,5%) y Rumanía (16,4%) presentan niveles parecidos. Dentro de España existen diferencias significativas: el abandono es mucho más alto entre los hombres (21,7%) que entre las mujeres (14%), y en Ceuta y Melilla (26,5%), Baleares (24,4%), Murcia (24,1%), Andalucía (21,9%), que en el País Vasco (6,9%), Cantabria (9,8%), o Navarra (11,4%)6. Las causas de un diferencial tan acusado poco tienen que ver con cuestiones de inversión o de políticas educativas como se dice con frecuencia; más bien hay que buscarlas en la estructura social y económica de las poblaciones escolares, en la mayor o menor presencia de inmigración y, como dato testigo adicional, en la extensión de la red de centros de titularidad y gestión privada.
Al hilo de esto, conviene desmontar esa creencia generalizada, cacareada por todos los organismos internacionales (OCDE, FMI, BM) y con frecuencia reproducida por la izquierda, que consiste en establecer una relación causa efecto, directa, entre progreso, nivel de desarrollo, crecimiento económico y desarrollo del sistema escolar. No ha sido ni es la escuela donde se cualifica técnicamente a los obreros, sino en el tajo - y ahora, en las sociedades del capitalismo global tecnológicamente avanzado,
6 Datos obtenidos de Eurostat (2018).
menos que nunca. En los más de doscientos cincuenta años de historia del sistema de enseñanza no ha podido erigirse a plena satisfacción de las demandas del capital eso que, engañosamente, se ha dado en llamar enseñanza o formación profesional. Lógicamente. Y es que la escuela ha hecho y hace otras cosas muchísimo más importantes que enseñar, instruir y cualificar. Impone reglas, señala fronteras, inculca hábitos (disciplinas), pero sobre todo jerarquiza, selecciona, excluye, distingue, legitima... Sus enseñanzas no son la vertiente que la relaciona con el sistema productivo capitalista. La fábrica y la escuela, como magistralmente analizó M. Foucault (1996), no se relacionan en términos de productividad y rentabilidad, sino en términos de poder. Es el sistema escolar el que ha hecho posible la división jerárquica del trabajo - precisamente desde la graduación escolar -; la escuela obligatoria y de masas es el medio mediante el que el sistema escolar contribuye a legitimar nada más y nada menos que la división jerárquica de papeles y roles (de clase, género y etnia) en el proceso productivo y en la estructura social. La función del sistema escolar es, en suma, esencialmente política y no económica.
La escuela opera como una tabla de multiplicar que multiplica la división. Carlos Lerena (1986) hablaba de que el cometido del sistema de enseñanza podría resumirse en una habilidosa e inteligente "operación de trucaje" consistente en desconocer (de derecho) las desigualdades sociales y legitimarlas (de hecho) por la vía de convertirlas en desigualdades escolares. En el fondo se trata de utilizar el aparato escolar como única vía de solución individual al problema de la existencia de la desigualdad, potenciándolo como un aparente instrumento de movilidad social controlada..., cuando en realidad su modus operandi no hace sino reforzar la legitimidad de la estructura de clases. Una trampa saducea, que traduce a la perfección la expectativa nítidamente burguesa del "enriqueceos" y del "sálvese quien pueda" y a la que la izquierda española y europea se ha sumado sin matices. ¿Quién se atreve negar, siquiera a sospechar, que una ventaja académica se traduzca después en una ventaja económica? Paradójicamente, la lógica de la escuela del capitalismo, en su manera de operar, invierte la secuencia que dice defender: la igualdad ante la enseñanza, es el punto de partida, pero para, después, seguir siendo desiguales. Sólo que ahora,
pasadas por la criba escolar, las desigualdades se tornan ya legítimas e incuestionables.
En contra de lo que suele pensarse, la escuela no está en crisis - lo que está prácticamente desaparecido es la ilusión de la escuela para todas y todos (comprehensive school) del capitalismo embridado (vulgo, "estado de bienestar"), sobre todo en España, donde realmente nunca llegó a materializarse. Por el contrario, el sistema escolar sigue cumpliendo eficazmente el papel para el que fue creado y después, reconfigurado y recrecido - por lo que hace a España a partir de la Ley General de Educación de 1970. Haríamos bien entonces en tomar conciencia de que en la escuela del capitalismo no está la solución a los problemas sociales de la desigualdad; pero no porque funcione mal - eso significaría otorgarle el beneficio de la duda, considerar que podría funcionar de otra manera o, incluso, que "otra" escuela pudiera ser posible. La escuela no sólo no es la solución sino que es parte del problema: su óptimo funcionamiento es inseparable de una sociedad radicalmente patriarcal, competitiva y desigual.
Conviene no olvidar que la escuela que conocemos es una creación histórica que en el mundo occidental construye sus primeros andamiajes de la mano de la Modernidad capitalista allá por los siglos XVI y XVII. Esta escuela, aunque fue teorizada mucho antes, fue remozada ideológicamente en pleno siglo de las luces por Kant y Rousseau - el encantador de serpientes, el maestro de la violencia simbólica que ha inspirado y aún inspira los mantras de toda la faramalla idealista del movimiento pedagógico reformista; por cierto, es muy recomendable no sólo leer Émile, ou de l'éducation y leerlo "bien", sino sumergirse también en Émile et Sophie ou les solitaires - y de este modo no tardó en convertirse en un dispositivo ad hoc para el desarrollo de los Estados capitalistas7 y por supuesto para conseguir la legitimación y consagración de la estructura de clases, del colonialismo y de la segregación por género que son consustanciales al desarrollo de dicha formación socioeconómica.
La escuela que no sea la traducción de la lógica de la competencia, de la diferenciación, de la desigualdad, de la jerarquía, de la división y de la exclusión, es decir, la nuestra, está por pensar y por hacer. La otra, que conocemos, es la suya..., así que haremos muy bien en dejar que la defiendan ellos solos. Mientras tanto, a
7 Pese a lo que suele pensarse, fue el reino de Prusia, con Federico Guillermo I (monarca entre 1713 y 1740) el primero en imponer la obligatoriedad escolar y en estatalizar la enseñanza, creando las primeras Normales para la formación de maestros y regulando el pago de estos desde el Estado.
nosotros nos queda un duro pero apasionante trabajo por delante que, en mi opinión, pasa también por pensar históricamente la escuela problematizando su presente a la luz del pasado, tal como he intentado hacer fugazmente en estas páginas, y someter a crítica y a sospecha las numerosas creencias y falsedades sobre las que se ha venido construyendo el pensamiento de la izquierda, en su conjunto, en materia de educación, cultura y enseñanza.
Por lo demás, conviene enfatizar, aquí y ahora, - en contra de quienes defienden la construcción de jardines edénicos y libertarios, refugios-oasis que hacen las delicias de la cultura progre y alimentan su narcisismo - que la escuela estatal que tenemos, ideológicamente cada vez menos pública, es y debe seguir siendo el espacio donde batirnos el cobre, un lugar para la lucha y la confrontación, un espacio de conflicto y un lugar donde trabajar. El único posible, pese a todo.
Bernard Lahire, en el libro que glosábamos al principio, escribe, "à chaque recul de l'Etat dans tous les domaines concernant la famille (emploi, logement, scolarité, santé, aides sociales, transports etc.) ce sont des inégalités qui se creusent entre les classes sociales et des horizons qui se ferment"8.Pues eso. No olvidemos que "sin escuela" o fuera de la escuela, la vida es, todavía, muchísimo peor.
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8 Cada retroceso del Estado en todos los terrenos que conciernen a la familia (empleo, vivienda, escolaridad, sanidad, ayudas sociales, transportes, etc.) se convierten en desigualdades que crecen entre las clases sociales y en horizontes que se cierran.
V.18, Nº 35 - 2020 (jan-abr) ISSN: 1808-799 X
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v18i35.40506
“Na República que não era, a cidade não tinha cidadãos”
(José Murilo de Carvalho)
https://www.youtube.com/watch?v=CuDooAdduoA&list=PL4dgZR1yTWeL2WS DaAlaB0VletBhsYDLz&index=2&t=119s
1 Documentário recebido em 12/11/2019. Avaliado, revisado e aprovado pelos editores em 07/12/2019. Publicado em 23/01/2020.
“O Rio dos trabalhadores” é um vídeo documentário que pretende levar a um público ampliado, em linguagem atual e mais accessível, o trabalho acadêmico desenvolvido com estudantes, em cinco anos de pesquisa sobre fotografias de trabalho e de trabalhadores, em arquivos públicos e privados do Rio de Janeiro e de São Paulo. Esperamos que a memória nele presente possa ser útil ao diálogo com os estudantes, com os movimentos sociais e os trabalhadores, favorecendo a afirmação de sua identidade e alimentando as lutas do presente “para não apagar o futuro”3.
Neste texto, apresentamos os fundamentos de seu roteiro4: questões teórico- metodológicas que envolvem os problemas conceituais e de método da fotografia como fonte histórica; o conceito de mundo do trabalho; os trabalhadores e a cidadania frustrada; a memória oficial da cidade do Rio de Janeiro; a modernização da cidade e a Reforma Pereira Passos; a comemoração do Centenário da Independência e o arrasamento do Morro do Castelo; o mundo fabril da época (1900-1930) e a memória da construção da democracia pelas classes subalternas.
A fotografia é contemporânea de uma visão estética do mundo, por oposição a um olhar racionalista e ético que acompanha os tempos modernos. Ë neste campo fascinante e movediço, tanto o da história dos homens quanto o das linguagens, dos discursos e das interpretações que eles constroem, que se move este tema de estudo, quando falamos da fotografia como fonte histórica.
3 Este texto tem por base a pesquisa que coordenei sobre “O mundo do trabalho em imagens – A fotografia como fonte histórica”, no período 1996 a 2001, desenvolvida com apoio da UFF, CNPq e FAPERJ, no Núcleo de Estudos, Documentação e Dados sobre Trabalho e Educação (NEDDATE) da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense.
4 O vídeo “O Rio dos Trabalhadores” (20’) tem roteiro de Maria Ciavatta e Paulo Castiglioni, direção de Paulo Castiglioni e foi realizado a partir da pesquisa acima mencionada. Foi apresentados no VI Congresso Iberoamericano de Historia de la Educación Latinoamericana, realizado em San Luís de Potosí, México, de 19 a 23 de maio de 2003. Foi premiado no 9º. Concurso de Curta-metragem da Riofilme 2003.
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A linguagem cotidiana expressa a compreensão pelo olhar, os modos de ser, as relações que estabelecemos em nosso contato com pessoas e objetos. Se a imagem sempre existiu como representação da realidade, como memória e expressão da cultura de um povo, de uma época, a comunicação informatizada da linguagem verbal e visual multiplicou seu alcance e ampliou seus efeitos na cultura e na formação humana. Em todo este processo, a educação não teve apenas ampliados os espaços sociais de sua realização, mudou a qualidade dos processos educativos. A educação do olhar como forma de compreensão do mundo, como domínio dos conceitos e criação de novas formas de sociabilidade educativa é parte deste universo complexo, estetizado pela imagem, misto de um claro-escuro do aparente e do não revelado sob o fragmento visível.
Buscamos nas imagens a verdade dos fatos e nos encontramos com meras imagens da verdade, a aparência dos fatos. Metodologicamente, trata-se de fazer a arqueologia da imagem, a crítica interna das ideologias de legitimação da realidade ou das formas de apresentação da realidade pelas fotografias; a função da produção e do consumo das imagens na construção da modernidade, elemento substantivo da condição pós-moderna.
O que significa fazer a decodificação das mensagens subjacentes, a “desconstrução” de seus elementos e a busca das relações ocultas ou menos aparentes. Significa buscar ir além da fragmentação da realidade e da perda de sentido das partes, dos elementos e dos aspectos, operada pela imagem. A busca da compreensão pela totalidade implícita mas oculta na fotografia, supõe o esforço de articular as partes em um todo com seus significados. Isto supõe investigar o contexto da produção, da apropriação e do uso da fotografia.
A imagem interiorizada, refletida na retina, não é apenas uma impressão de natureza sensível. Ela é uma mediação complexa do universo dos sentimentos e das emoções que são parte da inteligência, orientam as escolhas, impulsionam os gestos e as ações. Como outras linguagens, cristaliza-se em uma memória que garante a visão do passado, alimenta as identidades e orienta a projeção do futuro.
Como ponto de partida, assumimos que não há uma identidade das classes trabalhadoras. A idéia da identidade como uma construção social perpassa o tema. Neste sentido, não há uma identidade, mas tantas as identidades quantas forem as construções subjetivas a partir da cultura (SODRÉ, 1996) ou quantas forem as
memórias individuais ou coletivas preservadas pelos indivíduos ou pelos grupos sociais (POLLAK, 1989 e 1992) ou pela dissolução das monoidentidades - identidades nacionais, étnicas, regionais (CANCLINI, 1995).
Para Sodré, a questão da identidade deve ser vista como o lugar onde se faz a interseção do sujeito com as identificações que somos obrigados a assumir na vida cotidiana. Atribuir ou assumir identidades implica atribuir valores ou utilizar categorias de pensamento, do pensamento ocidental, por exemplo, em que o colonizador europeu ocupa um lugar na história do outro e lhe atribui valores cristãos, valores da burocracia estatal, padrões pedagógicos ou industriais. O autor concebe o “problema identitário” não apenas como um problema cultural mas, também, político-econômico, indissociável da adequação do sistema produtivo aos recursos humanos e materiais de uma região específica.
Para Michel Pollak (1992) sendo um fenômeno construído social e individualmente, a memória possui estreita ligação com o sentimento de identidade (imagem de si, para si e para os outros). A identidade, individual ou de um grupo, se desenvolve em referência a outros indivíduos e a outros grupos, em meio a um processo de negociação e conflito, orientado por critérios de aceitabilidade e credibilidade. Memória e identidade podem ser negociadas, não devendo, pois, ser compreendidas enquanto essências de uma pessoa ou grupo.
Tratando de memória e esquecimento, o mesmo autor destaca a seletividade de toda memória, seletividade que ocorre em meio a um processo de “negociação” para conciliar memória coletiva e memórias individuais. O autor defende a existência de uma memória visual que seria reconstruída continuamente, e considera interessante o estudo das mudanças e da significação das imagens.
Embora neste caso, ele se refira à memória visual como parte da história oral, para ele não existe uma diferença fundamental entre fonte oral, fonte escrita e fonte iconográfica, mas destaca a história oral como aquela que põe em movimento as “memórias subterrâneas” que permanecem em silêncio diante da lógica imposta por uma memória coletiva oficial, aflorando nos momentos de crise, engendrando conflitos e disputas. Trabalhando também com memória, esquecimento e silêncio, para a construção da identidade, destaca os sentimentos de continuidade no tempo, de fronteiras físicas (o corpo) ou as fronteiras de pertencimento ao grupo, de coerência entre os elementos que constituem o sentimento de identidade.
Gilberto Velho (1988) destaca as relações entre memória, identidade e projeto, observando sua importância para a constituição da(s) identidade(s) e de projetos de futuro. A memória dá uma visão retrospectiva, do passado; o projeto permite uma visão prospectiva, projetando o futuro. Ambos contribuem para situar o indivíduo, suas motivações e o significado de suas ações nas diversas conjunturas da vida. O autor distingue a identidade socialmente dada (étnica, familiar etc.) e a identidade adquirida em função de uma trajetória com opções e escolhas, que definem diferentes conjuntos de valores. Esta seria uma das marcas da sociedade moderna.
O que vemos na Primeira República é uma profunda dissociação da função produtiva dos trabalhadores de sua possível identidade enquanto cidadãos, sujeitos de direitos enquanto trabalhadores livres. A historiografia disponível aponta as muitas tentativas dos trabalhadores de se constituírem como classe social, demarcando seus espaços de atuação, reivindicando direitos, organizando-se, lutando nas ruas e nas fábricas. De outra parte, como aponta Sidney Challoub (1986), a patronagem e o clientelismo, a cooptação de trabalhadores pelos patrões em troca de benefícios e privilégios, suscitavam divisões entre os próprios trabalhadores. Estes eram valores profundamente arraigados nas relações entre patrões e escravos, entre patrões e trabalhadores livres, presentes desde a época colonial, como mostra Maria Sylvia Carvalho Franco (1983).
Não obstante suas lutas, esses fatos tiveram uma influência profunda na exclusão das classes trabalhadoras da participação de direito nos benefícios da riqueza social e na preservação de sua memória. A negação de seu protagonismo, enquanto criadores de riqueza e bem-estar, e de uma história heróica do trabalho em todas as frentes da vida social, explica sua ausência explícita nos arquivos oficiais. Os trabalhadores permaneceram à sombra, como mais um dos inúmeros objetos presentes nas fotografias das obras e das reformas levadas adiante pela Prefeitura, no início daquele século.
A memória é fragmentada, sendo que o sentido de identidade depende, em parte, da organização desses fragmentos, organização que varia conforme os momentos e as situações.
A presente pesquisa evidenciou a quase ausência, nos arquivos públicos, de uma memória organizada sobre os trabalhadores ou pelos próprios trabalhadores.
Os fragmentos dessa memória, trabalhadores entre pedras, valas abertas, trilhos, máquinas, paisagens urbanas etc., é o material de que dispomos para a reconstrução aproximada da memória dos trabalhadores no período, e sobre sua identidade como classe social subalterna.
Por mundo do trabalho entendemos o trabalho livre e os trabalhadores urbanos, a formação profissional, o ambiente e as relações de trabalho, as condições de vida e suas lutas de emancipação. Entendemos o trabalho na sua forma ontológica6, fundamental, criativa, estruturante de um novo tipo de ser, o homem, ser social, no qual a delimitação entre a reprodução estritamente biológica e a produção/reprodução própria do homem é constituída não apenas pelo produto do trabalho, mas pela consciência, pela capacidade de representar o ser, o produto, de modo ideal, na sua imaginação criadora (LUKÁCS, 1978; CIAVATTA-FRANCO, 1990, p.43). Isso ocorre de tal forma que
“No ato mesmo da reprodução não se modificam apenas as condições objetivas - por exemplo, uma vila torna-se uma cidade, um deserto torna-se terra cultivável - modificam-se os próprios produtores, enquanto extraem novas qualidades de si mesmos, desenvolvem-se na produção e se transformam, criam novas forças e novas representações, novos modos de relacionar-se, novas exigências e uma nova linguagem”7.
Apenas enfocando o trabalho na sua particularidade histórica, nas mediações específicas, isto é, nos processos socais que lhe dão forma e sentido no tempo e no espaço, podemos apreendê-lo ou apreender o mundo do trabalho na sua historicidade, seja como atividade criadora, que anima e enobrece o homem, ou como atividade aviltante, penosa ou que aliena o ser humano de si mesmo, do
5 Parte destas reflexões constam de Ciavatta, 2002.
6 O conceito de ontologia (o estudo do ser), aqui empregado, difere da tradição da metafísica clássica, assim como das correntes positivistas e neopositivistas que compartilham de uma visão estática e reificada do ser. Utilizamos o termo no sentido que lhe dão Marx (1979) e Lukács (1978) que têm no trabalho uma categoria central, estruturante de um novo tipo de ser, o homem, e de uma nova concepção da história com base na realidade externa, objetiva, na produção da existência humana.
7 Marx, K., Grundisse, p. 394, apud Kosik, 1976, p. 172.
conhecimento produzido, dos produtos de seu trabalho e de sua relação com os demais.
Para o historiador inglês E. P. Thompson (1988), “o fazer-se da classe operária é um fato tanto da história política e cultural quanto da história econômica”. O que significa que tanto os trabalhadores participam como produtores da riqueza social, quanto da criação dos padrões e valores históricos e culturais que estruturam a vida individual e coletiva da sociedade a que pertencem. Contudo, a memória preservada e o exame da história, na sua visão mais corrente e tradicional, não registram o cotidiano estafante e penoso de milhares de homens e mulheres, que arcam com os trabalhos mais humildes ou com os mais embrutecedores. A memória que se conhece e a história que se ensina é a dos príncipes, dos reis e da nobreza, dos governantes das altas hierarquias e da administração dos negócios do país, é a história dos ricos e dos ilustres
Há muitas explicações para este fato, aparentemente, tão natural, pelo que nos mostram os livros de história, as placas com os nomes das ruas, os quadros emoldurados das autoridades governamentais, os sobrenomes da moda e da alta sociedade nos jornais e revistas, o noticiário sobre as pessoas que são notícia na televisão. A explicação mais simples e visível é que eles são os patrões, pertencem a famílias de grandes proprietários, a famílias de políticos, ou são os artistas que, de origem rica ou pobre, alcançaram a fama.
Uma outra explicação nos diz que eles são donos dos meios de produção, proprietários de empresas e de latifúndios. O que significa que eles detêm o capital que oferece emprego e salário para muitos homens e mulheres que não têm outros bens senão sua força física e mental para vender no mercado de trabalho, e daí retirar os meios de vida para si e para suas famílias.
Se avançarmos em mais um nível explicativo, visualizamos o poder material e ideológico que os proprietários e seus descendentes têm para registrar e difundir seus feitos e sua memória na literatura, na escrita da história, nas artes, nas praças e ruas, nos monumentos, nos modernos meios de comunicação como o rádio, a televisão, o vídeo, a fotografia.
Essa aparente “naturalidade” de como se faz e se perpetua a história que conhecemos está manifesta nos arquivos públicos e privados da cidade do Rio de Janeiro onde, para estudar a fotografia como fonte histórica, nos dispusemos a
procurar fotografias de trabalho e de trabalhadores das primeiras décadas do século XX (1900-1930). O trabalho inicial se caracterizou (i) pela descrição da organização dos arquivos em função da localização do tema e da compreensão da catalogação do acervo e (ii) pela descrição da documentação com o fichamento de cada foto pré- selecionada, buscando identificar, de modo preliminar, o conteúdo e o discurso fotográfico.8
Foi um trabalho extenso de revisão de quantidades de fotografias, já que, poucas vezes, encontramos nos arquivos as séries (ou entradas) trabalho e trabalhador. Assim, tivemos que pesquisar outras entradas, tais como: as diversas obras realizadas na cidade, demolições, construção de edifícios, fábricas, relevo, ruas, indústrias, cais do porto, arrasamento do Morro do Castelo, exposições industriais, escolas profissionais etc9.
Salvo exceções, as fotos encontradas limitam a visão dos trabalhadores aos seus locais de trabalho, onde eles quase se confundem com os materiais, equipamentos e instrumentos utilizados. Tomando como referência o conceito de mundo do trabalho do historiador Eric J. Hobsbawn (1987), ampliamos a visão restrita da expressão manual do trabalho para o conceito de mundo do trabalho. O autor inclui, neste conceito, tanto as atividades materiais, produtivas, como os processos de criação cultural que se geram em torno da reprodução da vida. Assim, com este conceito ampliado de trabalho, queremos evocar o universo complexo que, às custas de enorme simplificação, reduzimos a uma de suas formas aparentes, tais como a profissão, um produto do trabalho, as atividades laborais, se não levarmos em conta a multiplicidade de relações sociais que estão na base dessas ações.
Também Thompson (1988) amplia a noção de classe trabalhadora, de um conteúdo meramente econômico (proprietários e não-proprietários dos meios de produção), para suas dimensões sociais e culturais. Os autores se propõem a caracterizar a classe operária observando as especificidades do contexto ao qual pertencem e suas experiências de vida como trabalhadores.
8 Agradecemos às equipes de estudantes que nos auxiliaram neste trabalho e, particularmente, ao primeiro grupo formado por Cláudia Linhares Sanz, Hugo Belluco e Rebeca Gontijo.
9 Os arquivos onde pesquisamos foram os seguintes: Arquivo Nacional (AN), Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro (AGCRJ), Museu da Imagem e do Som (MIS), Museu da República, Fundação Casa de Rui Barbosa, Biblioteca Nacional, Centro de Pesquisa do Museu do Telefone, Centro de Pesquisa, Documentação e Dados de História Contemporânea (CPDoc/FGV), Centro Cultural da Light e Arquivo de Memória Operária do Rio de Janeiro (AMORJ-UFRJ).
O que encontramos nos arquivos são imagens fotográficas sobre o trabalho livre e os trabalhadores urbanos, a formação profissional, o trabalho feminino e o trabalho infantil, o ambiente, as moradias, as condições de vida e de trabalho durante as reformas urbanas da cidade do Rio de Janeiro, nas primeiras décadas do século XX10. Naquele momento, no Brasil, lançavam-se as bases para a industrialização que viria a tomar força no final dos anos 20 e, principalmente, a partir da Revolução de 1930.
Buscando ir além da memória restrita do trabalho e dos trabalhadores nos arquivos públicos e privados, que consideramos a “memória oficial”, preservadas pelos governantes, pelas grandes empresas e as elites, passamos a indagar onde estaria e como seria a memória preservada pelos próprios trabalhadores sobre si mesmos. Com isso queremos chamar a atenção para a importância da preservação da memória de sua vida e de suas lutas pelos próprios trabalhadores, como parte da constituição de sua identidade, para o reconhecimento de seu papel na sociedade, na conquista da cidadania e na construção da democracia.
“Na República que não era, a cidade não tinha cidadãos”. É com este duplo paradoxo que o historiador José Murilo de Carvalho (1987) assinala “a castração política” da cidade do Rio de Janeiro, neutralizada politicamente pela República, impedindo seu auto-governo e reprimindo a mobilização política da população urbana. Vários são os aspectos que concorrem para essa visão, desde a restrição do poder em mãos das elites e a concepção restrita de cidadania, até a transformação da cidade em “vitrina” pelas reformas a que foi submetida (p. 162). O que também é sinalizado pela memória tênue sobre o trabalho e os trabalhadores, quase uma ausência nos registros fotográficos dos arquivos públicos da cidade. Qual a importância dessa memória na construção da identidade dos trabalhadores? Como a noção de cidadania nos ajuda a compreender essa quase ausência de imagens dos próprios trabalhadores?
O sentido da cidadania no período pode nos dar alguma compreensão de sua relação com a memória preservada pelo poder oficial ou patronal e a identidade que
10 Detalhes deste processo estão em Franco, 2001.
se forjava entre os trabalhadores livres. Carvalho relata ainda que “O povo assistiu bestializado à Proclamação da República, segundo Aristides Lobo; não havia povo no Brasil, segundo observadores estrangeiros, inclusive os bem informados como Louis Couto; o povo fluminense não existia, afirmava Raul Pompéia” (op. cit., p. 140).
Estas imagens depreciativas, preconceituosas ou verdadeiras dos contemporâneos da época, revelam uma dissociação entre o projeto das elites e a população, expressa por uma apatia, um desconhecimento incompatível com a ideia liberal de cidadania. Mas a própria questão da cidadania é, originalmente, uma questão alheia à constituição histórica da sociedade brasileira, situação que teria se prolongado sob o fenômeno da exclusão dos “cidadãos” brasileiros de diversas instâncias da vida social. A questão subjacente, até hoje, é sobre quem pertence à comunidade política, como deve ser a participação da população em um processo que se pretende democrático e, consequentemente, quem são os cidadãos e quais são os seus direitos de brasileiros.
No início da República nasceram ou se desenvolveram várias concepções de cidadania. Com base nas práticas de cidadania no Rio de Janeiro. Carvalho registra duas manifestações particulares: a da cidadania inativa e a da cidadania ativa. A apatia política da população diante da Proclamação da República exemplifica o primeiro caso. O comportamento insurgente na Revolta da Vacina é o exemplo do segundo caso, a cidadania ativa. O desenvolvimento da análise das duas concepções e, especialmente, as práticas globais da sociedade política da época mostram que ambas as formas eram geradas pelo próprio sistema, como dois lados de uma mesma moeda.
A mudança de regime político que despertara em certos setores da população “a expectativa de expansão dos direitos políticos, de redefinição de seu papel na sociedade política, razões ideológicas e as próprias condições sociais do país” se encarregaram de frustrar essas expectativas. A elite republicana vitoriosa nem sequer ateve-se ao conceito liberal de cidadania e criou todos os obstáculos à democratização política, que era também um cerceamento sócio-econômico. Tudo que fosse julgado ameaça à ordem instalada encontrava resistência (id. ibid., p. 64). O que não era um fato novo e tinha antecedentes na forma subordinada como se proclamou a “Independência do Brasil”.
A historiadora Hebe de Mattos (2000) mostra a principal contradição da cidadania liberal (sob as idéias de liberdade, igualdade, fraternidade) no Brasil. A Constituição de 1824 assegurava a igualdade a todos os cidadãos nascidos no país, mas também garantia a propriedade dos escravos pelos seus donos, em um país de 3,5 milhões de habitantes onde 40% eram escravos (p. 16). A Lei Magna definia a igualdade entre patrões e escravos como cidadãos e a frustrava garantindo a propriedade dos primeiros e legitimando a “cidadania” desigual. O direito de voto era garantido aos homens alfabetizados com propriedades significativas. Além disso, retirou-se da Constituição de 1881 a obrigação do Estado fornecer instrução primária e de promover os socorros públicos. E o Código Criminal de 1890 tentou proibir greves e coligações operárias, em descompasso com o que ocorria na Europa.
Na política de “modernização econômica” do governo Rodrigues Alves, no início do século XX, o Rio de Janeiro, capital federal do país, seria a vitrine de um Brasil que se queria civilizado segundo os padrões europeus. Para isso, dizia-se, era necessário “limpar” a cidade de seus restos coloniais para fazê-la ingressar na civilização. O que ocorreu em dois momentos principais: a Reforma Pereira Passos (1903-1906) e os preparativos para a Comemoração da Independência (1920-1922). O Prefeito Pereira Passos, investido de plenos poderes pelo governo federal, passou a impor de forma autoritária, a transformação do espaço urbano, negando e condenando quaisquer formas de tradicionalismo ou elementos da cultura popular. Semelhante a seu mestre na engenharia urbana, Haussmann, o Prefeito de Paris, Passos criou o cargo de fotógrafo da Prefeitura, e Augusto Malta se tornou fotógrafo oficial para registrar os principais acontecimentos e as obras de transformação da
cidade, além das inaugurações, passeios e solenidades em geral.
Augusto Malta exerceu um papel singular na transformação do Rio de Janeiro no início do século. Por mais de trinta anos, seu olhar, vinculado a um olhar oficial, emoldurou imagens da cidade, guardando em suas composições histórias sobre gente dos mais variados tipos, profissões, personalidades, pessoas simples, trabalhadores, paisagens, demolições. Malta e alguns outros fotógrafos da época nos legaram um discurso expressivo sobre os trabalhadores que faziam parte da
paisagem que eles retratavam. Construíram uma memória que, como todas as memórias, revela e oculta sempre uma parte do sentido da vida dos retratados.
Guardadas em arquivos públicos e privados da cidade do Rio de Janeiro, as imagens do trabalho e dos trabalhadores, permanecem à sombra da cultura que as gerou. Elas registram a monumentalidade das obras públicas e a mão-de-obra farta e barata, a modernização do espaço urbano e as moradias nos morros e nos subúrbios distantes, o trabalho nas ruas, nas oficinas e na indústria nascente, a fábrica disciplinar e a grande “família da fábrica” (CIAVATTA, 2001).
No silêncio do anonimato e do congelamento da imagem, os trabalhadores revelam a sociedade de classes a que pertencem, a divisão do trabalho, a diferenciação social, os costumes, as funções humildes e o abandono que acompanhou a “libertação” dos escravos e acompanha, até hoje, os pobres no país.
No Brasil, no início do século, desde a passagem da economia escravista ao trabalho livre, no século anterior, até a industrialização dos anos 30, desenvolve-se um importante processo de transformação da classe trabalhadora como ator coletivo legítimo no cenário político da nação. A classe trabalhadora se constitui tanto como um fato de história econômica, quanto de história política e cultural. A memória preservada pelas imagens do trabalho se relaciona a um projeto contraditório de cidadania, de construção da identidade da classe trabalhadora pelas elites, onde “a maioria não conta para a construção da cidade” (LOBO ET AL., 1986).
Já em 1901, o Presidente Rodrigues Alves anunciara que o saneamento da cidade constituía prioridade em seu projeto. O “Rio civiliza-se” era a ordem do dia nos debates políticos e jornalísticos. O centro da cidade foi eleito o lugar de onde os maus costumes e os espaços “doentes” deveriam ser erradicados.
Uma das prioridades anunciadas pelo novo presidente, Rodrigues Alves, foi a modernização do Porto do Rio de Janeiro, acompanhando as necessidades postas pela acumulação e reprodução do capital, pela circulação de mercadorias e de força de trabalho imigrante e pelas exigências fiscais do próprio Estado (BENCHIMOL, 1992). À remodelação do porto corresponderia uma reestruturação do espaço físico
da cidade que o governo acreditava estar a caminho de transformar-se em uma metrópole à altura dos grandes centros industriais e comerciais do mundo.
Seguindo o exemplo parisiense, Passos manda arrasar as vilas coloniais, cria jardins públicos, persegue os ambulantes, constrói a imponente Avenida Central, moderniza o sistema de transportes com a introdução dos bondes com tração elétrica. Por sua vez, o “bota-abaixo”11 do casario, as reformas sanitárias e a remoção das camadas pobres para a periferia atendiam ao novo sistema político e econômico. Projetava-se espacialmente, a estrutura de classes necessária a uma economia capitalista.
“Passos vence a rotina. Declara guerra aos bacalhoeiros da rua do Mercado, aos tamanqueiros do becco do Fisco (...) e outros autores do atrazo nacional; do fundo dos armazéns manda arrancar toneladas de lixo, derrubar construções archaicas (...) extingue a cainçalha que vivia infestando as ruas da cidade, acaba com os ambulantes que vendiam vísceras de rezes apodrecendo ao sol, cercados pelo vôo contínuo do mosqueiro, alarga ruas, crêa praças, arboriza-as, calça- as, embelleza-as, termina com a immundicie dos quiosques e diminue a infâmia dos cortiços “ (EDMUNDO, 1938, p. 34).
O arrasamento do Morro do Castelo, iniciado na gestão de Pereira Passos e que iria ser concluído na gestão do Prefeito Carlos Sampaio, era objeto de polêmica. Preparava-se a cidade para a comemoração do Centenário da Independência, e o problema era referência constante no cotidiano da capital.
As reformas não ficaram restritas ao espaço físico da urbe. Eliminar os cortiços e proibir os quiosques significava também erradicar hábitos populares que não se integravam à rotina da nova divisão do trabalho. A construção do novo em matéria de hábitos, organização do espaço e da reprodução do capital foi permeada de conflitos e contradições, uma vez que a modernização da cidade constitui-se a partir de um processo de restrição das liberdades civis. A imposição da ordem
11 “Por toda parte, funcionavam as picaretas do Bota-abaixo, que, no entanto, só destruíam o que era necessário destruir, o que estava condenado, o que era preciso reconstruir e melhorar”. R. Magalhães Júnior. Eles construíram o Rio: Pereira Passos, o grande prefeito. Guanabara em revista, Rio de Janeiro, no. 1, ago. 1986, apud Rebelo, Marques e Bulhões, Antonio. O Rio de Janeiro do Bota- abaixo. Rio de Janeiro: Salamandra, 1997, p. 7.
articulou a dominação econômica a práticas de normatização do espaço e da cultura (CAVALCANTE, 1986). O Morro do Castelo com a religiosidade marginal das “casas de preto” e demais hábitos ligados à cultura africana, figurava como um escândalo ao lado de símbolos civilizados como a Avenida Central, o Teatro Municipal, a Biblioteca Nacional, a Escola de Belas Artes.
Marco histórico da fundação da cidade, o Castelo era reverenciado também por abrigar as igrejas de São Sebastião do Castelo (a dos Capuchinhos), onde estavam os ossos de Estácio de Sá (o fundador da cidade) e a Igreja de Santo Inácio (dos jesuítas), transformada, posteriormente, em Hospital Militar e sede da mais antiga Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Espécie de guarda da cidade, o Castelo assinalava a entrada dos navios. Era de lá que se levantava, nos dias de sol, o balão anunciando ao povo que era meio-dia, e que se localizavam o relógio da torre e o observatório astronômico.
De lá também partia o aviso de que havia incêndio na cidade. Local de proteção e defesa, quando os inimigos foram os franceses, habitação de ricos, quando o perigo passou a ser representado pelas epidemias oriundas da região pantanosa, baixa e muito quente, localizada a seus pés. Moradia de uma população pobre de cerca de cinco mil pessoas, distribuídas em mais de 400 casas, quando, no dizer de Luiz Edmundo (1938), “os que descem na escala da vida vão morar para o alto...”, o morro era um marco constante na vida cotidiana da capital do país. Lugar de magia e misticismo, com a missa dos Barbadinhos, às sextas-feiras de madrugada, e com as “casas de pretos”, onde a macumba ressoava, o Castelo estava envolto ainda num profundo mistério. Lá os jesuítas teriam escondido seus tesouros antes de serem expulsos no século XVIII; falava-se em doze apóstolos de ouro maciço em tamanho natural enterrados nos subterrâneos do morro (LIMA BARRETO, 1997; MOTTA, 1992).
No Rio de Janeiro de 1922, o arrasamento do Morro do Castelo – marco de fundação da cidade e local de identificação da população carioca – constitui um evento emblemático das múltiplas faces da modernidade, uma vez que a derrubada do Castelo exigiu um complexo processo de decisão, com o registro na imprensa dos prós e contras da demolição e do arrasamento, e sobre o que seria uma cidade moderna. Predominou o argumento oficial de abrir o horizonte do centro da cidade para o mar, para os “ventos da civilização”.
As mudanças no mundo do trabalho no século XIX depois da libertação dos escravos, seria um problema para as elites brasileiras. O trabalhador escravo era propriedade do senhor, e o mundo do trabalho estava, portanto, inserido em um princípio maior ligado a essa propriedade. A transição do trabalho escravo para o trabalho livre impôs às classes dominantes brasileiras a necessidade de uma reajuste no seu universo mental. A lei de 13 de maio "nivelara", de um dia para o outro, todas as classes sociais provocando um deslocamento de profissões e hábitos.
A imposição pretendida de uma ordem capitalista na cidade exigia, também, a redefinição do conceito de trabalho. Era preciso dar-lhe uma conotação positiva em oposição aos tempos da escravidão, definindo-o como princípio regulador da sociedade, uma vez que a nova ordem implantada com a República assentava-se na exploração direta do trabalhador livre.
Criam-se estratégias de controle social, empreendidas pelas autoridades policiais e judiciárias. Geram-se, também, formas de resistência àquele controle, bem como às diversas manifestações do conflito de classes que então intensificavam-se na capital federal, palco de transição de uma ordem senhorial- escravista para uma sociedade de tipo burguês-capitalista.
As novas formas de controle social vão além do espaço estrito do trabalho fabril. Como no tempo da escravatura, em que todas as esferas de vida eram sujeitas ao regime escravo, a nova ordem reinstaura os controles em todas as relações sociais. A construção das vilas operárias onde os trabalhadores moravam, as festas e comemorações locais, o trabalho feminino e infantil são algumas das faces desse processo de organização social e da inculcação de novos valores na vida do trabalhador livre.
O problema do disciplinamento das classes populares ia muito além de seu controle no ambiente de trabalho, alcançando também espaços como a rua e o botequim, lugares que tradicionalmente abrigavam o lazer popular. Note-se que tal esforço foi também um esforço moralizador, pois a definição do homem de bem, do
homem trabalhador, passa também pelo seu enquadramento em padrões de conduta familiar e social compatíveis com sua situação de indivíduo integrado à sociedade e à nação.
O desenvolvimento industrial tem um papel fundamental nesse processo. Generaliza-se, durante a virada do século, entre as elites, a ideologia do progresso. Para os industrialistas, o agente da transformação social ou do “progresso” seria a indústria. Enfatiza-se a identificação do crescimento industrial e da divisão social do trabalho com o discurso nacionalista.
Defendia-se que o sucesso da produção dependia de uma hierarquização rígida do trabalho industrial. A defesa da rigidez hierárquica na fábrica era, sobretudo, uma forma de disciplinarização da classe trabalhadora. À desvalorização da mão-de-obra associava-se a necessidade de tornar o “trabalho” um valor positivo. A presença do taylorismo e do positivismo nos debates em torno da indústria, realizados em exposições internacionais, congressos e conferências, evidenciam esse esforço da burguesia industrial em evitar o tema da luta de classes, escamoteando-o em nome de idéias como a de “cooperação” e a “harmonia”, garantidas por uma certa “organização científica” da fábrica e a cooperação entre as
classes.
Mas os industrialistas não usavam apenas do despotismo para subordinar a mão de obra ao capital. Havia também as estratégias paternalistas e a geração de um consenso sobre a “nova ética” do trabalho. O paternalismo garantia a eficácia do projeto industrial de constituir as primeiras fábricas no Rio de Janeiro. Para que o trabalho assalariado fosse aceito adotavam-se medidas “protetoras e beneficentes”
No setor têxtil, vigorava o uso frequente de métodos coercitivos para disciplinar a mão de obra, mas também formas paternalistas de controlar o trabalhador. Este controle iniciava-se no recrutamento, pois não eram aceitos elementos “agitadores”, e a remuneração era feita através de contra-mestres que recebiam uma parcela de acordo com a produção de seus subordinados. Apesar da disciplina desta indústria não seguir uma linha mais despótica e arbitrária com os trabalhadores, vigorava o sistema de multas e sanções em caso de atraso e desobediência e dos trabalhadores serem revistados diariamente na saída da fábrica (TURAZZI, 1989).
Também a localização das fábricas em bairros distantes, com o isolamento dos trabalhadores de outras fábricas e outros grupos operários, é dado como um “fator decisivo para o maior controle da mão de obra”. O paternalismo expressava-se ainda nos progressos técnicos introduzidos na vida das famílias dos trabalhadores. Eram progressos e melhorias tais como água encanada, eletricidade, máquinas de costura, abrir mão dos aluguéis das casas durante a epidemia da “gripe espanhola” (1918/19), a criação da primeira escola fabril, a instalação de uma estação de combate a incêndios no bairro, a construção da igreja, de uma sociedade musical, de um clube, a construção das casas, a cessão de terreno para auto-construção.
A fábrica contou com grande adesão e colaboração dos trabalhadores e participação nas atividades de lazer, adesão religiosa e falta de greve. Tratava-se da construção de relações sociais, políticas e econômicas capazes de sujeitar indivíduos ao trabalho assalariado fabril. O patronato não podia abrir mão da adesão dos trabalhadores ao novo modo de produção. Os patrões transformavam sua autoridade e poder numa administração paternal, chegando a apadrinhar casamentos, batizados e outros eventos da vida do funcionário. A imprensa elogiava alguns industriais comprovando a necessidade de afirmação e reconhecimento da autoridade patronal e do “ethos” industrialista daquela sociedade.
Forja-se o mundo do trabalho onde o viver regado, as distrações e o laser saudável aparecem como itens necessários para o desempenho do trabalhador e, portanto, para a conquista da felicidade. O patronato tentava introjetar na mão-de- obra o sentimento da dignidade do trabalho e a crença numa ascensão social. Progressivamente, a moral burguesa universaliza-se e as qualidades estéticas da classe dominante transformam-se em paradigma para toda a sociedade. O consumo fazia parte da adesão ao novo tempo marcado pela interferência do progresso técnico no cotidiano das pessoas.
A classe trabalhadora em movimento demonstra que as ações de seu dia-a- dia criam um padrão ideológico que contém em si os limites necessários da consciência de classe destes homens e mulheres em um determinado momento histórico. As práticas cotidianas de resistência são múltiplas e variadas e os conflitos na relação patrão e empregado estão presentes tantos nas ações individuais dos trabalhadores como nas ações coletivas das categorias. De um lado, percebiam a relação com o patrão como uma relação de cooperação paternalista; por outro lado
percebiam que tratava-se de uma relação conflituosa. Interiorizar certos conceitos da nova ideologia trabalho implicava em sérias conseqüências para esses homens (CHALLOUB, 1986).
Nas primeiras décadas do século XX, as propostas dos socialistas são as que mais se aproximam da concepção clássica de cidadania12. Os operários reivindicavam o direito de intervir nos negócios públicos através de uma organização partidária que defendesse seus interesses dentro do sistema representativo. Essa reivindicação apoiava-se na consciência de que, embora marginalizado politicamente, o trabalhador “constituía o principal fator de progresso do Brasil e de todas as nações.” No entanto, todas as tentativas partidárias, desde o início da República e ao longo das duas primeira décadas, duraram pouco, algumas nem completaram um ano13.
Outras análises, que se debruçam sobre o imaginário popular que se gerou no país, sugerem uma aproximação possível com a cidadania, relativizando os conceitos de cidadãos inativos e cidadãos ativos. Oitenta por cento da população não tinha o direito de participação política pelos mecanismo eleitorais, e os outros 20% tinham o direito mas não se preocupavam em exercê-lo. Mas havia, também, outras razões para não o exercerem. “Além de ser inútil, votar era muito perigoso. Desde o Império, as eleições na capital eram marcadas pela presença de capoeiras, contratados pelos candidatos para garantir os resultados (...) O povo do Rio quando participava politicamente, o fazia fora dos canais oficiais, através de greves políticas, de arruaças, de quebra-quebras “ (CARVALHO, op. cit., p. 87-8).
Outra forma de participação é pelo envolvimento em festas religiosas e folguedos populares como o entrudo, o carnaval. A cidade mantinha suas “repúblicas”, seus núcleos de participação nos bairros, nas irmandades religiosas, nas igrejas, nas festas religiosas e profanas, nos grupos étnicos, nos cortiços, nas “maltas de capoeiras”. Eram estruturas que não se encaixavam no modelo contratual do liberalismo conservador dominante na política. Parece também ser sintomático da
12 Carvalho cita os líderes socialistas França e Silva, Vicente de Souza, Evaristo de Moraes, Gustavo de Lacerda.
13 Dois eram os principais obstáculos à ação dos socialistas: os que defendiam a cooperação direta com o governo, a “estadania”, e os anarquistas que rejeitavam totalmente o sistema político, qualquer tipo de autoridade, principalmente a estatal e se dividiam em duas correntes principais: os anarquistas comunistas que eram pela revolução social, pela abolição da propriedade privada e do Estado, mas aceitavam o sindicato como arma de luta; e o segundo grupo, os anarquistas individualistas, além da abolição do Estado, eram contra toda forma de organização que não fosse espontânea, e queriam a propriedade privada após a revolução (op. cit.).
predominância do polo comunitário que, em janeiro de 1912, houvesse, na cidade, 438 associações de auxílio mútuo, com 282.937 associados, o que representava, aproximadamente, 50% da população de mais de 21 anos, organizadas com base em grupos comunitários (religião, etnia, local de origem, fábricas ou empresas, bairros)14.
Os jornais operários queixavam-se constantemente de gerentes e mestres mas, em geral, os donos das fábricas eram poupados. Para o movimento trabalhador, a autoridade patronal no lócus da produção colocava-se de maneira controvertida. Também o potencial revolucionário do operariado brasileiro, neste momento, tinha como contraponto as formas de incorporação e subordinação do proletariado às relações capitalistas. Os industriais tentavam, inclusive, apropriar-se de manifestações e ritos dos trabalhadores, como o 1o. de maio, e oferecer os funcionários como eleitores para determinados candidatos.
Ideologia, disciplina, dedicação profissional, pontos fundamentais da ideologia veiculada pela classe dominante e elementos estruturais dessa ética trabalhista, eram absorvidos pela classe trabalhadora. As condições precárias de trabalho (baixos salários, insalubridade, jornada extensa, repressão às atividades sindicais) somadas à abundância da força de trabalho serviam para aumentar a competição interna na classe trabalhadora.
Mas Chalhoub coloca a questão da classe trabalhadora não ser simplesmente um objeto subordinado.
É que a classe trabalhadora é, em certa medida, sujeito de sua própria dominação. (...) É necessário pensar nos elementos da ideologia popular que facilitam a reprodução dessas relações sociais. Ou seja, existem elementos na visão do mundo da classe trabalhadora que a transforma em agente inconsciente de sua própria dominação (op. cit., p. 102).
Se é verdade que as condições de vida, por um lado, propiciavam a absorção de valores que facilitavam o controle social, também é verdade que esses valores eram "lidos" pelos trabalhadores de acordo com uma visão própria de mundo. Há um
14 “Trabalho encomendado a Ataulfo de Paiva que procedeu a um estudo extremamente cuidadoso. ” Assistência pública e privada no Rio de Janeiro (Brasil). História e estatística. Rio de Janeiro, Typographia do “Anuário do Brasil”, 1922, p. 747-8, apud CARVALHO, 1987, p. 183.
diálogo onde a subordinação acontece, mas não sem antes haver uma certa forma de negociação onde os trabalhadores modificam, em certa maneira, esses valores15. A classe trabalhadora em movimento demonstra que as ações de seu dia-a-
dia criam um padrão ideológico que contém em si os limites necessários da consciência de classe destes homens e mulheres em um determinado momento histórico. As práticas cotidianas de resistência são múltiplas e variadas e os conflitos na relação patrão e empregado estão presentes tanto nas ações individuais dos trabalhadores como nas ações coletivas das categorias. De um lado, havia homens que percebiam a relação com o patronal como uma relação de cooperação paternalista; por outro lado havia aqueles que percebiam que se tratava de uma relação conflituosa.
Organizar sindicatos e reivindicar direitos de classe era uma experiência difícil e contraditória para os trabalhadores porque, além de se opor à ideologia patronal, acirrava as disputas entre estrangeiros e brasileiros. Não obstante isso, o período 1917 a 1920 foi marcado por intensa mobilização operária, tendo sido registradas 107 greves, inclusive uma greve geral nos principais centros do país, e criaram-se 52 associações de trabalhadores, enquanto que deputados e senadores de espírito avançado apresentaram 15 projetos de legislação do trabalho16.
Em 1919, o Brasil se filia à Organização Internacional do Trabalho (OIT), obrigando-se o Estado a maior intervenção nas relações patrões e empregados. As lutas sociais das primeiras décadas do século e, particularmente, dos anos vinte são decisivas para a conquista dos direitos dos trabalhadores das empresas privadas,
15 Gramsci, discutindo a relação entre o senso comum, religião, filosofia e cultura, mostra como é um fato político, uma exigência de ação, quando um grupo “toma emprestada a outro grupo social, por razões de submissão e subordinação intelectual, uma concepção que lhe é estranha (...)” (GRAMSCI, 1981, p. 15). Estudando o fenômeno das culturas populares no capitalismo e a construção da hegemonia, Canclini observa o que pode ser visto desde a Colônia, “como desde Gramsci se pensa com maior sutileza”, isto é, de que não bastam apenas a sujeição militar, nem mesmo a concorrência econômica desigual, a violência, a exploração e a geração do consentimento. A construção da hegemonia deve basear-se também na divisão em classes, no manejo da fragmentação cultural e na produção de outras divisões: entre o econômico e o simbólico, entre a produção, a circulação e o consumo e entre os indivíduos e seu marco comunitário imediato (CANCLINI, 1983, p. 76).
16 Acidentes de trabalho, duração da jornada, código do trabalho, regulamentação do trabalho feminino e de menores, criação de creches em estabelecimentos industriais, contrato de aprendizagem, comissões de conciliação e conselhos de arbitragem com representantes patronais e operários, comissão de legislação social (MORAES FILHO, 1960; GOMES, 1979).
através dos vários decretos e leis que vão tomar forma após a Revolução de 30, como a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), as Juntas de Conciliação e a criação do Ministério dos Negócios da Indústria e do Trabalho no governo de Vargas.
Onde está a memória dessas lutas? Quem as preservou? A busca de uma memória “não oficial” nos conduziu à busca de outros arquivos de fotografias de trabalho e de trabalhadores. E fomos encontrá-los em acervos mais singelos que os primeiros, preservados pelos próprios trabalhadores e pelos intelectuais orgânicos das organizações e movimentos progressistas17. É o caso do Arquivo Edgar Leuenroth que leva o nome de um dos mais importantes militantes da imprensa operária, e do CEDEM – Centro de Documentação e Memória da UNESP (Universidade do Estado de São Paulo) e no AMORJ – UFRJ (Arquivo de Memória Operária do Rio de Janeiro da Universidade Federal do Rio de Janeiro) Além de acervos pessoais de militantes dos partidos de esquerda, estão preservados documentos escritos e iconográficos coletados por pesquisadores dessas universidades. E encontramos fotografias de trabalho e de trabalhadores preservadas nos jornais operários da época.18 Também localizamos um acervo parcialmente identificado no Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de Janeiro. Antigos sindicalistas da indústria naval de Niterói, que entrevistamos, preservam fotografias pessoais, ainda não devidamente localizadas, cujo destino é incerto, mas que, certamente, fazem parte de uma identidade de trabalhadores que se empenharam em muitas lutas pela democracia, pelo socialismo e por uma vida digna para o trabalhador brasileiro.
Finalmente, se o passado nos ajuda a pensar o presente e a projetar o futuro, a memória mais recente é da participação dos trabalhadores na conquista das liberdades democráticas. São os trabalhadores do ABC paulista. Sua presença nas ruas com o ressurgimento da esquerda organizada, que apressou o ocaso da Ditadura, é o exemplo emblemático da luta pela passagem de classe subalterna a cidadãos políticos plenos, ativos, construtores da democracia no Brasil. É uma memória, amplamente documentada pelo desenvolvimento dos meios de
17 Valemo-nos, aqui, do conceito gramsciano de intelectual (GRAMSCI, 1982).
18 Importante acervo de jornais operários foi retirado do país durante a Ditadura, vindo a constituir, depois de micro-filmado pela Fondazione Giancomo Feltrinelli, em Milão, o Archivio Sociale della Memória Operaria Brasiliana (ASMOB) (CIAVATTA, 2003, p. 4).
comunicação, registrada no rádio, no cinema, na televisão, em vídeo e fotografia, por profissionais e amadores.
Mas é uma memória que está, hoje, condenada à sombra silenciosa pelos parcos recursos reservados à atividade arquivística. Diante das prioridades postas pela crise acelerada de desemprego, precarização do trabalho e pobreza que atingem os trabalhadores, pelo esvaziamento dos sindicatos que buscam alternativas concretas de formação e geração de trabalho e renda para os associados e sua sobrevivência como organizações, mesmo os setores progressistas do sindicalismo declinam da preservação e organização de sua memória. Mas, naquilo que se registra e alguém guarda, permanece a história vivida e contada, um patrimônio oculto alimentando as identidades de classe e as lutas do tempo presente “para não apagar o futuro”.
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V.18, Nº 35 - 2020 (jan-abr) ISSN: 1808-799 X
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v18i35.40507
José Lúcio Nascimento Júnior 2
Patrícia Maria Pereira do Nascimento 3
No presente texto apresentamos uma resenha do livro A Historiografia em Trabalho-educação: como se escreve a história da educação profissional organizado pela professora Dr.ª Maria Ciavatta, com mais nove colaboradores publicado pela Navegando Publicações.
En el presente texto presentamos una revisión del libro Aprender con la historiografía en Trabajo- Educación: cómo se escribe la historia de la educación profesional, organizada por la profesora Maria Ciavatta, con otros nueve colaboradores publicados por Navegando Publications.
In this text we present a review of the book The Historiography in Work-education: how to write the history of professional education organized by Professor Maria Ciavatta, with nine other contributors published by Navegando Publications.
1Artigo recebido em 25/11/2019. Primeira avaliação em 28/11/2019. Segunda avaliação em 16/12/2019. Aprovado em 09/01/2020. Publicado em 23/01/2020.
2 Doutorando e Mestre em História (PPGH-UERJ). Graduado em História (UNISUAM). Professor de Teoria e História da Arquitetura (FAU-UNISUAM). Membro dos Grupos de Pesquisa: NUCLEAS-UERJ, NUPEP-UFRRJ e eMAIS-UNISUAM. E-mail: prof.joselucio@gmail.com. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-1769-2520
3 Doutoranda e Mestra em Ensino de Ciências (PROPEC-IFRJ). Especialista em Gestão da Sistemas Integrados em QSMSRS (AVM). Graduada em Biologia (UNIGRANRIO). Professora do Curso Técnico em Segurança do Trabalho (SENAC). Membro do Grupo de Pesquisa Trabalho-Educação e Educação Ambiental (GPTEEA-IFRJ). E-mail: prof.pattynascimento@gmail.com. Orcid: https://orcid.org/0000- 0002-8654-8506
4 CIAVATTA, M. et. al. A historiografia em trabalho educação: como se escreve a história da educação profissional. Uberlândia: Navegando Publicações, 2019.
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Resenhar ou fazer a apresentação de um livro é sempre uma tarefa complicada. Devemos trazer as principais características sem oferecer aos leitores um spoiler da obra. Nesse caso, em se tratando do livro “A Historiografia em Trabalho- Educação: como se escreve a história da educação profissional”, tal empreendimento se torna ainda mais hercúleo, por se tratar de uma obra que ao mesmo tempo marca a posição de um campo de estudos, o Trabalho-Educação (TE) e visa oferecer um roteiro para uma nova área de estudos, a Historiografia em Educação Profissional (EP) e em TE. Nesse sentido, o livro já se apresenta como uma novidade e um clássico.
Além da obra ser organizada e dirigida por Maria Ciavatta5, ela conta com a participação de um grupo de pesquisadores bem diverso, como veremos a frente, e com o prefácio assinado por Gaudêncio Frigotto. Para iniciar essa apresentação, nos valemos do comentário feito por Frigotto no prefácio, quando este nos diz que “o livro engendra, pois, o duplo apreender da história: como processo e como método” (FRIGOTTO: 2019, p. 1).
A equipe que participou da escrita do livro foi composta por Jacqueline Botelho6, Jordan dos Santos7, Lísia Cariello8, Marcelo Lima9, Mônica Rocha10, Renata Reis11, Rosângela Rosa12, Sandra Morais13 e Sânia Ferreira14. Esses pesquisadores estão em diferentes etapas de seu processo formativo pessoal, pois encontramos desde bolsistas de Iniciação Científica até doutores (em diferentes áreas das ciências
5 Doutora em Ciências Humanas (Pontifícia Universidade Católica-RJ). Graduada em Filosofia e Letras (Pontifícia Universidade Católica-RJ).
6 Doutora em Serviço Social (Universidade do Estado do Rio de Janeiro-RJ). Graduada em Serviço Social (Universidade do Estado do Rio de Janeiro-RJ)
7 Mestrando em Educação (Universidade Federal Fluminense-RJ). Graduado em Ciências Sociais (Universidade do Estado do Rio de Janeiro-RJ).
8 Graduanda em História (Universidade Federal Fluminense-RJ). Bolsista de Iniciação Científica (PIBIC- UFF).
9 Doutor em Educação (Universidade Federal Fluminense-RJ). Graduado em Pedagogia (Universidade Federal do Espírito Santo-ES)
10 Mestranda em Educação (Universidade Federal Fluminense-RJ). Graduada em Ciências Sociais (Universidade Federal Fluminense-RJ).
11 Doutora em Educação (Universidade Federal Fluminense-RJ). Graduada em Serviço Social (Universidade do Estado do Rio de Janeiro-RJ).
12 Doutora em Educação (Universidade Federal Fluminense-RJ). Graduada em Educação Artística (Universidade Federal do Rio de Janeiro-RJ).
13 Doutora em Educação (Universidade Federal Fluminense-RJ). Graduada em História (Universidade Santa Úrsula-RJ)
14 Mestranda em Educação (Universidade Federal Fluminense-RJ). Graduada em Pedagogia (Universidade Federal Fluminense-RJ).
humanas), o que confere a obra diferentes nuances de escrita e análise, sem perder o rigor metodológico levado a cabo pelo grupo ao longo da pesquisa.
O leitor desavisado, por sua vez, pode acreditar que essa obra consiste em uma coletânea de textos fruto de um grupo de pesquisa e que foi escrita em sua individualidade, por um ou mais membros; ou ainda de se tratar de uma obra de gabinete, escrita na solidão do trabalho acadêmico. O que certamente não ocorreu. Fruto do Projeto de Pesquisa aprovado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ) e intitulado A Historiografia em Trabalho-Educação e o Pensamento Crítico, o livro que ora apresentamos resulta da análise das obras escolhidas pela sua contribuição aos campos de TE e EP.
Outro momento que atesta que essa não é uma obra de gabinete, foi o debate promovido no Seminário Historiografia em trabalho-educação: como se escreve a história da educação profissional realizado na UFF em Niterói em novembro de 2017, onde os pesquisadores da obra ora apresentada tiveram a oportunidade de dialogar com os autores dos livros analisados. Além disso, foram promovidos outros momentos de discussão em diferentes instancias, tais como o Seminário de Produção Científica do Grupo THESE (2017); e a publicação de parte da pesquisa em periódicos de relevância para o campo, tais como a revista eletrônica Trabalho Necessário.
Para Ciavatta et al (2019), o principal objetivo da obra consistia em apresentar como se escreveu a história do Trabalho-Educação e da Educação Profissional no Brasil considerando a produção dos últimos 20 anos, uma vez que a maioria dos livros analisados foram publicados entre 2000 e 2018. A exceção pode ser vista no livro pioneiro publicado por Celso Suckow da Fonseca, em 1961, intitulado História do Ensino Industrial no Brasil (volume 1). Quando consideremos o recorte cronológico analisados pelas obras percebemos que elas cobrem a história do Brasil desde o colonial ao republicano, apresentando um grande painel do Trabalho-Educação e da Educação Profissional no Brasil.
Além disso, o livro não deve ser visto como uma coletânea de capítulos que apresentam apenas a temática e/ou a abordagem em comum. Ele foi concebido para refletir a ideia de unidade, uma vez que os dois primeiros capítulos, assinados por Maria Ciavatta, podem ser vistos como um manifesto da área; neles são apresentados as concepções e categorias para quem visa adentrar no estudo da História (e Historiografia) de Trabalho-Educação. E os demais foram compostos de forma a
manter unidade na escrita e nos comentários aos textos analisados, como veremos a frente. Tal ideia de integração pode ser vista também no fato de que as referências bibliográficas estão reunidas no final da obra e não no fim de capítulo, como algumas coletâneas mais convencionais15.
Não podemos deixar de sublinhar que na presente obra organizada e dirigida por Maria Ciavatta se encontra a defesa de que Trabalho-Educação se constitui enquanto um campo de conhecimento, acrescido a demonstração de que faltam análises sobre a temática (historiografia sobre Trabalho-Educação) e que os autores visam apresentar como a questão foi trabalhada ao longo do tempo. Além disso, no campo da Educação, em especial na subárea História da Educação, houve uma limitada influência do pensamento marxiano, o que pode ser visto pelo próprio desenvolvimento do GT Trabalho-Educação da ANPEd16 e pelo seu desenvolvimento nos últimos 30 anos (CIAVATTA, 2019).
Todos os autores dessa obra partem do materialismo histórico para examinar a historicidade do Trabalho-Educação e da Educação Profissional. Partindo desse referencial, demonstram como o desprezo pelas duas áreas de pesquisa passou também pela desvalorização histórica do trabalho manual, compreendido como inferior, no Brasil, desde os tempos da escravidão. Para conduzir a pesquisa, a equipe que escreveu A Historiografia em Trabalho-Educação partiu da concepção que a história é vista como processo vivido e não como coleção de fatos; os autores se afastam de uma produção historiográfica factual para se aproximar de uma ligada a história como produção social da existência, aproximando-se da historiografia marxista inglesa, que tem como referências Eric J. Hobsbawm (1917-2012) e Edward Thompson (1924-1993); sem perder as referências basilares em Karl Marx (1818- 1883), Friedrich Engels (1820-1895), Georg Lukács (1885-1971) e Antonio Gramsci (1891-1937). A referência a autores estrangeiros não significa que houve o silenciamento do diálogo com pesquisadores brasileiros também de orientação marxiana, tais como Claudio Batalha, Jurandir Malerba, Ciro Cardoso e Leandro Konder.
15 Cabe aqui uma pequena crítica que não tira o brilho da obra; ao reunir as referências citadas não constam ou podem estar com ano de publicação diferentes das referências bibliográficas apresentadas no final do livro, o que poderá ser revisto na próxima edição.
16 A Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação.
No primeiro capítulo do livro, intitulado Trabalho-educação – a história em processo existe a busca de Maria Ciavatta em definir e precisar o campo de Trabalho- Educação, tanto a nível epistemológico como de história vivida, ao situar sua origem nos anos 1980/90, como ao demonstrar as bases teóricas que o fundamenta. No segundo capítulo, que tem por título Como se escreve a história da Educação Profissional – caminhos para a historiografia, Ciavatta dialoga com “historiadores de ofício” para apresentar os contornos do que ela e seu grupo de pesquisa entendem por historiografia e para demonstrar como a História da Educação, muitas vezes, ficou fora da atuação dos historiadores. Ao analisar a produção historiográfica em Trabalho- educação, aponta como existe grande número de referências a trabalhos de monta, porém pouco a fontes primárias, objeto de estudo básico do historiador de ofício17. Demonstra que a História da Educação Profissional não se constitui como uma área de relevância nem mesmo para historiadores da Educação, o que pode ser percebido pelo pequeno número de trabalhos na área.
No terceiro capítulo, intitulado História da Educação e do Trabalho no Brasil – O livro de Celso Sudckow da Fonseca, assinado por Sandra Morais e Sânia Ferreira, as autoras analisam o livro História do Ensino Industrial no Brasil de Celso Sudckow da Fonseca explorando não apenas o contexto de produção do livro e o período que ele abarca, mas também as categorias de Contradição, Classes Sociais e Ensino Industrial. Concluem, demonstrando como tal obra tem sido referência indispensável para quem visa estudar a História da EP.
O capítulo que tem por título O Passado Escravista no presente: a Sociologia histórica de Luiz Antônio Cunha – uma releitura é assinado por Maria Ciavatta e Renata Reis. Nele, o objeto de estudo consiste no livro O Ensino de ofícios artesanais e manufatureiros no Brasil escravocrata de Luiz Antônio Cunha. Dentre as categorias analisadas temos a herança do escravismo, o trabalho manual, a organização dos ofícios e o ensino de ofícios. Concluem demonstrando o caráter moralizante que a EP assumia no contexto colonial e imperial brasileiro (séculos XVI-XIX).
Rosangela Rosa assina o quinto capítulo do livro que tem por título Trabalho- Educação das crianças pobres na Primeira República – o livro de Luciano Faria Filho.
17 A expressão historiadores de ofício emerge do diálogo que esse grupo de pesquisa faz com Marc Bloch em seu livro Apologia a História ou o ofício do historiador, assim como a outros historiadores ligado a École des Annales, tais como a Fernando Braudel e suas categorias de tempo histórico (curta, média e longa duração). Para saber sobre a história da École des Annales, ver: BURKE: 1992.
Ao examinar a obra República, trabalho e educação: a experiência do Instituto João Pinheiro (1909-1934), Rosa (2019) demonstra que o historiador Luciano Faria Filho é autor de um conjunto de textos (dentre artigos, capítulos, livros e coletâneas) sobre a EP. Na obra analisa o período de 1909 a 1934, abrangendo parte da Primeira República (1889-1930) e o Governo Provisório de Getúlio Vargas (1930-1934), o que o difere das obras analisadas nos capítulos anteriores que tinham como recorte temporal grandes períodos da História do Brasil. Dentre as categorias analisadas temos: alunos, instituição, trabalho, educação, escola, questão social e resistência.
O protagonismo dos pretos e pardos na luta por escola na primeira metade do século XIX – o livro de Adriana Maria Paulo da Silva é o título do sexto capítulo de autoria de Jacqueline Botelho e Mônica Rocha. Ele examina o livro Aprender com perfeição e sem coação: uma escola para meninos pretos e pardos na Corte, que como o analisado no capítulo 5 tem como recorte temporal o período imperial brasileiro e foi escrito por uma historiadora, a saber Adriana Maria Paulo da Silva. Após a análise do contexto de produção do livro e das fontes utilizadas pela autora, Botelho e Rocha (2019) examinam as categorias de Totalidade/ particularidade, classe social, escolarização/escola, trabalho e espaço-tempo.
Maria Ciavatta assina o sétimo capítulo que tem por título A resposta republicana ao problema da infância pobre – o livro de Milton Ramon de Oliveira que analisa o livro Formar cidadãos úteis: os patronos agrícolas e a infância pobre na Primeira República. Tal como o livro de Luciano Faria Filho analisado no quinto capítulo, o de Milton Ramon de Oliveira tem como recorte temporal a Primeira República. Após o exame da obra e dos diálogos realizados pelo autor, Ciavatta (2019) analisa as categorias de infância e adolescência pobres, conformação social da força do trabalho e patronatos agrícolas.
Examinam o livro A História da formação profissional: os passos e descompassos históricos do SENAI-ES de Marcelo Lima, Jordan Rodrigues dos Santos e Lísia Nicolieillo Cariello. O oitavo capítulo analisa tanto o contexto de produção do livro como as fontes utilizadas pelo autor, para, em seguida, examinar as categorias de totalidade, mediação e contradição, trabalho-educação, historicidade do trabalho-educação, formação profissional, mudanças econômicas e educacionais, formação geral e formação profissional, requalificação profissional dos trabalhadores.
O autor analisado no capítulo VIII, Marcelo Lima, assina junto com Jaqueline Botelho o nono que tem por título História da Socialização da força de trabalho em São Paulo (1873-1934) – a contribuição de Carmen Sylvia Vidigal de Moraes. Nele, Lima e Botelho (2019) realizam o estudo da obra socialização da força de trabalho: instrução popular e qualificação profissional para demonstrar como a autora trabalhou as categorias de luta de classes, escola quartel-convento e escola-fábrica-escola. Concluem demonstrando como o modelo do Centro de Formação e Seleção do Estado de São Paulo (CEFESP) foi importante para a constituição do Serviço Nacional da Indústria (SENAI) na década de 1940.
O último capítulo tem por título Relações e tensões entre trabalho, escola e profissionalização – o livro de Silvia Maria Manfredi e tem autoria de Sandra Morais e Rosângela Rosa. Partindo do estudo do livro Educação Profissional no Brasil, Morais e Rosa (2019) demonstram como em seu livro-síntese Manfredi analisa as categorias de tempo histórico, trabalho e profissão, educação e educação profissional, educação dos trabalhadores e movimentos sociais e educação. Em termos de recorte temporal, o livro de Manfredi cobre o maior espectro, iniciando sua análise no período colonial e finalizando nos anos 1990.
Por fim, como demonstrar a importância de uma obra que já nasce como um clássico? Para quem deseja conhecer o campo da Historiografia em Trabalho- Educação e da História da Educação Profissional A Historiografia em Trabalho Educação consiste em uma excelente introdução ao tema. Não há dúvidas que essa obra será adotada em cursos de graduação e pós-graduação como referências básicas no estudo da temática, seja por sua amplitude, seja pela profundidade apresentada. Além disso, não há como desconsiderar que o roteiro de pesquisa demonstrado nos dois primeiros capítulos seja de interesse em pesquisa na área de Trabalho-Educação.
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