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Trabalho e educação em comunidades tradicionais

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V.16 nº 31 / 2018 ISSN: 1808-799 X


Universidade Federal Fluminense Faculdade de Educação


NEDDATE - NÚCLEO DE ESTUDOS, DOCUMENTAÇÃO E DADOS SOBRE TRABALHO E EDUCAÇÃO

REVISTA TRABALHO NECESSÁRIO: http://periodicos.uff.br/trabalhonecessario

Redação: R. Professor Waldemar Freitas Reis, s/n°, bloco D, sala 525, Gragoatá - São Domingos, Niterói - RJ, CEP 24210-201 - revistatrabalhonecessario@gmail.com


EDITORES

Lia Tiriba, Maria Cristina Paulo Rodrigues e José Luiz Cordeiro Antunes


CONSELHO EDITORIAL

Caridad Perez García (UCPEJV – Cuba),Celso Ferretti (UNISO - Brasil), Gaudêncio Frigotto (UFF/UERJ - Brasil), José Claudinei Lombardi (UNICAMP – Brasil), Maria Ciavatta (UFF - Brasil),Roberto Leher (UFRJ - Brasil), Tomás Rodrigues Villasante (UCM – Espanha), Sonia Maria Rummert (UFF) eVirgínia Fontes (UFF/EPJV / Fiocruz - Brasil).


COMITÊ CIENTÍFICO

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Alexandre Maia do Bomfim (IFRJ), Ana Margarida Campello (EPSJV/FIOCRUZ), Ana Motta (UFF), André Feitosa (EPSJV/FIOCRUZ), André Martins (UFJF), Andrea Araújo Vale (UFF), Anita Handfas (UFRJ), Angela Siqueira (UFF), Angela Tamberlini (UFF), Aparecida Tiradentes (EPSJV/FIOCRUZ, in memoriam), Claudio Fernandes da Costa (UFF),Célia Regina Vendramini (UFSC),Daniela Motta (UFJF),Dante Moura (IFRN),Deise Mancebo (UERJ),Domingos Leite Lima Filho (UTFPR),Dora Henrique da Costa (UFF),Edison Oyama (UFRR),Edson Caetano (UFMT),Eneida Oto Shiroma (UFSC),Eraldo Leme Batista (UNIVAS-MG),Eunice Trein (UFF),Eveline Algebaile (UERJ),Filippina Chinelli (EPSJV/FIOCRUZ),Flávio Anício (UFRRJ),Francisco José Lobo Neto (FIOCRUZ), Guadelupe Teresinha Bertussi (UNAM e UFSC), Hajime Nozaki (UFMS e UFJF), Henrique Tahan Novaes, Ivo Tonet (UFAL), Jacqueline Botelho (UFF),Jaqueline Ventura (UFF), João dos Reis da Silva Jr. (UFSCar), José dos Santos Souza (UFRRJ),José Luiz Cordeiro Antunes (UFF),Júlio Cesar França Lima (FIOCRUZ),Justino de Souza Junior (UFC), Kátia Lima (UFF),Laura Souza Fonseca (UFRGS),Lea Calvão (UFF),Lia Tiriba (UFF),Lígia Klein (UFPR),Luciana Requião (UFF),Marcelo Lima (UFES), Maria Clara Bueno Fischer (UFRGS), Maria Cristina Paulo Rodrigues (UFF), Maria Inês do Rego Monteiro Bomfim (UFF), Maria de Fátima Félix Rosar (UNICAMP),Marcia Alvarenga (UERJ), Mariléia Maria da Silva (UDESC), Marisa Brandão (CEFET-RJ), Marise Ramos (UERJ,FIOCRUZ), Marlene Ribeiro (UFRGS), Myriam Feldfeber (UBA - Argentina), Ney Luiz Teixeira Almeida (UERJ), Olinda Evangelista (UFSC), Ramon de Oliveira (UFPE), Raquel

Varela (Universidade Nova de Lisboa - Portugal), Roberto Leher image (UFRJ), Ronaldo Lima (UFPA), Rosilda Benacchio (UFF), Rui Canário (Universidade de Lisboa – Portugal), Sandra Maria Siqueira (UFBA), Sandra

Morais (UNIRIO), Sérgio Lessa (UFAL), Sonia Maria Rummert (UFF), Susana Vasconcellos Jimenez (UFC), Tatiana Dahmer (UFF), Valdemar Sguissardi (UFSCar), Vania Motta (UFRJ) e Zuleide Silveira (UFF)


ORGANIZAÇÃO DA TN 31 (2018)

Profs. Drs. Doriedson do Socorro Rodrigues e Ronaldo Marcos de Lima Araújo - GEPTE / UFPA


ASSISTENTES DE EDIÇÃO

Brunna Santana Ribas, Daniel Tiriba, Jean Pablo Silva de Lima, Sandra Butschkau, Victor Hugo Raposo Ferreira, Victória Sias e William Kennedy do Amaral Souza


FOTO DA CAPA

Por do Sol no Pantanal Matogrossense-MT, 2016, autoria de Lia Tiriba


MONTAGEM DA CAPA

Daniel Tiriba

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V.16 nº 31 / 2018 ISSN: 1808-799 X


Indexado por / Indexed by


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Apoio:


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Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoatá/SDC/UFFBibliotecária: Mahira de Souza Prado CRB-7/6146


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EDITORIAL: DOS LUTOS À LUTA, SEMPRE!¹


Erga essa cabeça, mete o pé e vai na fé Manda essa tristeza embora

Basta acreditar que um novo dia vai raiar

Sua hora vai chegar. (...) Às vezes a felicidade demora a chegar Aí é que a gente não pode deixar de sonhar Guerreiro não foge da luta e não pode correr

Ninguém vai poder atrasar quem nasceu pra vencer (...)


(Tá escrito, Grupo Revelação, 2009)


O que dizer após o recente resultado das eleições no Brasil?

Os lutos se fazem necessários e, para nós, eles não representam somente a perda de um ente querido, como normalmente é visto e representado simbolicamente pelas diferentes culturas. Nossas perdas não se referem somente as pessoas que não estão mais conosco e que lutaram pela possibilidade de um mundo melhor e mais justo. Chico Mendes, Dorothy Mae Stang, Mariele Franco são apenas alguns que a memória destaca em defesa do planeta Terra e das nossas riquezas naturais, que permitem a existência humana. Aqui, nossa homenagem póstuma também a Rubem Thomaz de Almeida, um dos maiores especialistas em Guarani Kaiowá e Nãndeva. Rubinho foi o primeiro pesquisador e antropólogo a chamar a atenção para a difícil situação fundiária dos Guarani no Mato Grosso do Sul, confinados e sujeitos à violência de fazendeiros que ocuparam seus territórios tradicionais ainda na década de 1970.

Nossas perdas, acima de tudo, dizem respeito aos direitos inalienáveis dos seres humanos, garantidos pela Constituição Federal de 1988 – a Constituição Cidadã. Nossas perdas dizem respeito aos direitos civis e políticos, já atingidos ou em vias de o serem pelas diferentes contrarreformas do sistema capital (política, trabalhista, da previdência, da saúde, da educação).

Estas perdas têm atingido, ainda, instituições fundamentais para a cultura e a formação humana, como a do Museu Histórico Nacional do Rio de Janeiro (UFRJ). E podem ser explicadas pelo descompromisso do Estado Nacional, que minimiza o seu papel e entrega de bandeja, nas mãos da burguesia nacional e internacional, nossas riquezas, incluindo as tecnologias e conhecimentos produzidos pelos institutos de pesquisa e pelas universidades.

¹ DOI: https://doi.org/10.22409/tn.16i31.p27368

Na perspectiva do capital e de seus representantes, tudo se transforma em mercadoria. A educação pública, direito de todos/as é atacada exata e principalmente em seu caráter de universalidade (vide a reforma do ensino médio, as diretrizes curriculares propostas nas BNCC do ensino fundamental e do ensino médio e os cortes para a educação superior). Tudo é transformado em prol dos interesses privados e em detrimento do que é e deve ser público.

O Golpe jurídico-midiático-parlamentar, com apoio de empresários, impetrado recentemente no Brasil e a onda conservadora e fascista que assola todos os recantos do mundo, atingindo hoje, principalmente os países da América Latina, exige de nós a paciência histórica necessária para a compreensão e interpretação do que estamos vivendo. No caso brasileiro, o Estado Teocrático se avizinha. Basta ver a composição do Congresso Nacional e das Assembleias Legislativas. Muita luta está por vir!

Se o capitalismo reproduz tudo aquilo que representa seus interesses, é fundamental dizer que nele permanecem as suas próprias contradições, o que faz com que outras respostas à crise por ele criada, possibilitem a (re) invenção do mundo e das relações sociais que o sustentam. Se o modo de produção capitalista busca constituir uma certa humanidade em nós, em contrapartida, como anuncia David Harvey em 17 Contradições e o fim do capitalismo (Boitempo, 2016), um “humanismo revolucionário” pode e deve ser tecido, sustentado na singularidade-pluralidade e na unidade-diversidade.

As ações de solidariedade, companheirismo, compromisso político em defesa dos espaços democráticos, que fomos capazes de colocar em prática no cenário brasileiro recente, se, por um lado, ainda têm alcance limitado, por outro, não deixam de apontar para a possibilidade e a necessidade de um outro mundo, mais justo e igualitário.

Como cientistas sociais, é nossa responsabilidade desconstruir o que foi sendo criado sobre a política pelas fake news ou pela mídia oficial, e que teve forte impacto no imaginário de grande parte dos cidadãos e contribuiu para o resultado do pleito eleitoral, produzindo: a) o antipartidarismo, b) o antipetismo, c) o descrédito na política, e d) o não entendimento da população sobre quem é o real inimigo, o que gerou a expectativa de um “messias-salvador da pátria”’.

O atual momento histórico precisa ser analisado com lucidez e com as “lentes necessárias” - da teoria, da filosofia, da política e da arte. Para tanto, nada como

recorrer a Guevara, que nos propõe endurecer-nos com ternura: a serenidade, significação de não “perder la ternura jamás”, aquieta nossos corações e nossa mente para prosseguir. O “endurecerse”, para nós, diz respeito ao rigor e coerência de conceitos e pressupostos para a análise e intervenção consistente sobre a realidade, transformando os lutos (processos vividos necessários) em luta permanente.

E diante de uma realidade tão perversa quanto a que vivemos e que tem trazido efeitos tão deletérios para os cidadãos e cidadãs brasileiras, a lição que a música/poesia do Grupo Revelação, acima citada, nos ensina é que a história não acabou, que a luta é permanente e que todo guerreiro, comprometido com as transformações radicais da sociedade, segue avante, não foge dela.

Por fim, é importante dizer que a Revista TrabalhoNecessário, cuja temática é Trabalho, educação em comunidades tradicionais” é muito cara para nós, pois se apresenta como um desafio teórico, ético e político, alargando e complexificando o conceito de mundos do trabalho. Incorpora trabalhadores-trabalhadoras indígenas, ribeirinhos, pescadores artesanais, caiçaras e remanescentes de comunidades quilombolas que, com suas experiências de trabalho, reforçam o que nos constitui enquanto trabalhadores/pesquisadores-sociais do Campo Trabalho-Educação.

É com a experiência reunida nos artigos da TN 31, no contexto dos embates que teremos pela frente, que propomos pensar nossa história baseada na filosofia africana Ubuntu, que trata da importância do relacionamento das pessoas, umas com as outras. EU SOU O QUE NÓS SOMOS. Assim, nutrimos o conceito de humanidade, em sua essência. Queremos uma sociedade sustentada pelos pilares do respeito e da solidariedade. Com esse espírito apresentamos a TN 31, organizada por Doriedson do Socorro Rodrigues e Ronaldo Marcos de Lima Araújo, ambos do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Trabalho e Educação (GEPTE / UFPA).


Lia Tiriba, Maria Cristina Paulo Rodrigues e José Luiz Cordeiro Antunes


Publicado em: 22 de novembro de 2018.

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APRESENTAÇÃO TN 31¹


TRABALHO E EDUCAÇÃO: INVESTIGAÇÕES EM COMUNIDADES TRADICIONAIS – A EMERGÊNCIA DE UM NOVO


Neste número temático da Revista TrabalhoNecessário, com o título Trabalho e Educação em Comunidades Tradicionais, encontra-se um conjunto de trabalhos que focam processos formativos do ser social trabalhador no interior de comunidades tradicionais, a partir da relação trabalho e educação, partindo-se do pressuposto de que pelo e no trabalho homens e mulheres se formam e constroem objetividades e subjetividades voltados para a sua humanização, contrariando racionalidades que tendem a promover a sua objetalização.

São estudos que possibilitam entender as relações históricas construídas por homens e mulheres em diferentes dimensões da vida humana – quer políticas, sociais, econômicas, culturais ou de construções de técnicas de trabalho – para dar conta de suas necessidades de existência, e como estes sujeitos vão se constituindo enquanto sujeitos coletivos, enquanto classe social. Pode-se dizer, a partir de uma perspectiva thompsoniana, que estes estudos são reveladores dos processos históricos que constituem frações específicas da classe trabalhadora, tomando essa última como “[...] um fenômeno histórico, que unifica uma série de acontecimentos díspares e aparentemente desconectados, tanto na matéria-prima da experiência como na consciência” (THOMPSON, 1987, p. 9), ocorrendo efetivamente, no dizer de Thompson2, a partir das relações humanas.

Nos artigos da TN 31, o trabalho, na sua interação com a educação, é tomado em meio a relações sociais que se estabelecem com a realização de formas tradicionais de produção material, não necessariamente ultrapassadas do ponto de vista econômico ou cultural, que sobrevivem, resistindo e/ou aderindo às novas formas de organização e de gestão dos processos de produção de bens materiais e serviços marcados pela acumulação flexível, convivendo conflituosamente, na maioria das


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1 DOI: https://doi.org/10.22409/tn.16i31.p27369

2 THOMPSON, Edward P. A formação da classe operária inglesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

v. 1.

vezes, com as modernas tecnologias físicas e de processos, e conferindo identidades coletivas aos diferentes sujeitos que nelas interagem.

E são essas relações no interior de comunidades tradicionais – como quilombolas, indígenas, pescadoras e coletoras – que são apresentadas nos artigos que compõem a seção artigos do número temático, expondo o que homens e mulheres produzem no contexto de uma sociedade de classes, em termos de experiências de trabalho, organização, formação, construção de identidades e práticas de escolarização, considerando as metamorfoses do mundo do trabalho, mas também as especificidades de suas construções históricas.

A concretude das práticas produtivas e educativas ainda é uma temática marginal na produção da área de Trabalho e Educação, no Brasil, o que indica a sua relevância, e que se apresenta como um campo de possibilidades de novas pesquisas, novos aportes teóricos e novas abordagens para o estudo do trabalho na sua relação com a educação. A Revista TrabalhoNecessário, ao promover, portanto, uma renovação temática da área, contribui para uma certa renovação desta sem, contudo, abandonar a sua perspectiva marxista.

Com base em Thompson (1987), diríamos que os trabalhos aqui reunidos mostram-nos a classe acontecendo à medida que homens e mulheres, “[...] como resultado de experiências comuns (herdadas ou partilhadas), sentem e articulam a identidade de seus interesses entre si, e contra outros homens cujos interesses diferem (e geralmente se opõem) dos seus” (THOMPSON, 1987, p. 10). São experiências que resultam das relações de produção vivenciadas por povos e comunidades tradicionais, construídas a partir de suas materialidades históricas, com racionalidades que podem se opor a outras perspectivas de ordenar o tempo e o espaço das existências humanas.

E, parafraseando Engels3, salvaguardadas as proporções, também diríamos que os trabalhos constituintes desta seção temática apresentam a situação da classe trabalhadora, não a operária, como o fez em “A Situação da Classe Trabalhadora em Inglaterra”, mas a que vive do trabalho no interior de comunidades tradicionais, produzindo experiências culturais, “[...] encarnadas em tradições, sistemas de valores, ideias e formas institucionais [...]” (THOMPSON, 1987, p. 10), que possibilitam entender mais ainda o aspecto formativo do trabalho humano.


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3 ENGELS, F. A situação da classe trabalhadora em Inglaterra. Porto: Edições Afrontamento, 1975.

E os povos e comunidades tradicionais, a partir do trabalho, produzem cultura, valores, saberes, habilidades, conhecimentos e atitudes, que precisam ser compreendidos em seus contextos históricos, mas numa relação de totalidade com outras experiências de existência humana, no sentido de se compreenderem as singularidades que as tornam distintas, assim como as universalidades que as aproximam e as constituem como classe e que permitem a homens e mulheres buscarem condições que lhes assegurem a própria vida, em oposição ao modo de produção capitalista que promove a barbárie.

As análises aqui produzidas sobre o que e como povos e comunidades tradicionais produzem, no interior de uma sociedade de classes, fornecem, portanto, elementos para se entender a possibilidade de uma outra realidade societária, contrária à da mercadoria, que toma o dinheiro como central em suas relações, como salienta Milton Santos4, tomando-se, ao contrário, a precedência do homem “[...] no centro das preocupações do mundo, como um dado filosófico e como uma inspiração para as ações” (SANTOS, 2001, p. 72), sendo “[...] assegurados o império da compaixão nas relações interpessoais e o estímulo à solidariedade social, a ser exercida entre indivíduos, entre o indivíduo e a sociedade e vice-versa e entre a sociedade e o Estado, reduzindo as fraturas sociais, impondo uma nova ética, e, destarte, assentando bases sólidas para uma nova sociedade, uma nova economia, um novo espaço geográfico”. E, no dizer de Santos, “o ponto de partida para pensar alternativas seria, então, a prática da vida e a existência de todos”, muito tendo a contribuir com essa utopia societária, nesse sentido, o que fazem-pensam povos e comunidades tradicionais em oposição à fetichização da vida.

É como base nessas considerações, portanto, que apresentamos, inicialmente, os 09 trabalhos da seção artigos do número temático.

A partir do trabalho de José Efraín Astudillo Banegas e Miguel Angel Galarza Cordero, da Universidade de Cuenca, Equador, com o título El trabajo comunitario en la práctica del buen vivir: comuna manteña de Agua Blanca – Ecuador, os leitores terão acesso a uma discussão sobre trabalho comunitário como fundamento do Bem Viver – pautado na reciprocidade, na solidariedade, no cuidado com a natureza e no desenvolvimento da espiritualidade –, a partir de uma comunidade indígena do litoral


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4 SANTOS, Milton. Por uma outra globalização do pensamento único à consciência universal. São Paulo: Editora Record, 2001.

de Equador, com destaque para um processo de reintegração/recuperação de valores ancestrais dessa comunidade, favorecendo a implementação de uma alternativa ao desenvolvimento capitalista, porque, como salientam os autores, “El desenvolvimiento de la Comuna está sustentado en valores que defienden lo común, centrado en la defensa de la vida en todos los sentidos […]”, sendo que “[…] las personas y familias son parte del ecosistema que les rodea”.

Com a leitura do trabalho de Lucília Regina de Souza Machado, intitulado Inserção sóciocomunitária como alicerce dos processos formativos das escolas profissionais de Moçambique, os leitores terão contato com a experiência das escolas técnicas de Moçambique, com destaque para a dimensão da inserção sóciocomunitária das Escolas Profissionais desse país, revelando-se o contexto e algumas ideias de referência para a construção daquelas escolas, com ênfase para a ideia de desenvolvimento, mas também participação e valorização dos saberes comunitários, “[...] no âmbito do currículo e dos processos educativos”.

Jane Felipe Beltrão, por outro lado, apresenta o Ser trabalhador/a entre povos indígenas: o Relatório Figueiredo sobre trabalhos espúrios em tempos ditatoriais, tratando da realização do trabalho em comunidades indígenas, estabelecendo um interessante diálogo da antropologia com a área de trabalho e educação. Ao abordar as relações de trabalho próprias de comunidades indígenas, identifica as especificidades de suas experiências de trabalho e o impacto da lógica capitalista sobre estas, a partir do que vai revelando a construção identitária das comunidades indígenas. Uma contribuição importante dada pelo artigo é a compreensão do trabalho como atividade social, indissociável das demais atividades das comunidades indígenas. Outro aspecto importante é o registro de imposições de uma “mentalidade empresarial” na gestão do Serviço de Proteção ao Índio – SPI – e a exploração dos indígenas por esta ‘lógica empresarial”, que previa “um regime disciplinar, (no qual) os/as indígenas poderiam civilizar-se, via trabalho, criando excedentes agrícolas para venda, mesmo em completo desacordo com os valores de sua cultura”.

Raimundo Nonato Gaia Correa, Doriedson do Socorro Rodrigues e Ronaldo Marcos de Lima Araujo trazem à cena o trabalho Práxis produtiva, metamorfoses no mundo do trabalho e processo de constituição de identidade entre trabalhadores na Amazônia paraense, discutindo a relação entre práxis produtiva e processos de constituição de identidade de pescadores artesanais do município de Cametá, estado

do Pará. Os autores salientam que um processo de gestão coletiva e repartição igualitária de pescado obtido em atividades de pesca, a partir de acordos estabelecidos por comunidades ribeirinhas, e a realização de manejo em atividades produtivas em oposição à simples extração de produtos da região vêm corroborando para a constituição de uma identidade numa perspectiva contra hegemônica às investidas do capital, voltado para “[...] uma lógica de mercantilização da produção [...]”. Para os autores, “[...] o capital ainda não consegue controlar a totalidade dos processos de trabalho dos pescadores”.

Em Processos educativos em experiências de trabalho em comunidades ribeirinhas da Amazônia, Maria das Graças da Silva discute a produção de saberes nessas comunidade, decorrentes da relação direta com a natureza, que informam processos educativos em prol de uma concepção epistemológica ampliada de educação, apontando ainda a necessidade do reconhecimento dessas comunidades como sujeitos históricos portadores de conhecimentos, que engendram ações educativas e de aprendizagem, em contextos diferentes da pedagogia escolar.

A leitura de Trabalho-educação, economia e cultura em comunidades tradicionais: entre a reprodução ampliada da vida e a reprodução ampliada do capital, de Ana Elizabeth Santos Alves e Lia Tiriba, os leitores terão acesso, como salientam as autoras, a “[...] evidências de práticas econômicas e culturais que, embora atravessadas por mediações do capital, são calcadas nos valores de solidariedade, reciprocidade e cooperação”, a partir das experiências construídas/vividas por pescadores artesanais do Pantanal mato-grossense, quilombolas de Mato Grosso, ribeirinhos e pescadores artesanais do Pará, bem como pequenos agricultores e trabalhadores associados da Bahia.

Com A produção associada em comunidades e povos tradicionais em Mato Grosso: pesquisas e reflexões coletivas do GEPTE/UFMT, de Edson Caetano, Anatália Daiane de Oliveira Ramos e Eva Emília Freire do Nascimento Azevedo, os leitores terão acesso a uma discussão sobre produção associada, a partir de povos de comunidades tradicionais que, conforme os autores, “[...] questionam os ditames da sociedade capitalista e podem contribuir para a construção de uma sociedade pautada na existência solidária e igualitária entre os seres humanos, bem como, respeito aos demais seres vivos [...]”.

Em Do contexto histórico à realidade das classes multianuais sediadas em comunidades caiçaras da Ilha Grande, de Maria Aparecida Alves, os leitores terão acesso a uma análise do contexto educacional de escolas presentes em comunidades caiçaras de Ilha Grande, município de Angra dos Reis, no estado do Rio de Janeiro, discutindo-se a necessidade de implementação de políticas públicas para o atendimento das especificidades de classes multianuais que atendem crianças e adolescentes, considerando o trabalho docente realizado e as condições objetivas em que se encontram as escolas.

Márcio Gomes da Silva e Eugênio Alvarenga Ferrari nos brindam com o artigo Cultura camponesa, educação e agroecologia. Analisam de que forma elementos da cultura camponesa podem se constituir como mediação de processos educativos voltados para agroecologia. Tratam da constituição do campesinato no Brasil e evidenciam processos formativos promovidos junto a trabalhadores de comunidades rurais na Zona da Mata de Minas Gerais.

Por outro lado, na seção Artigos de Demanda Contínua, o leitor poderá apreciar dois interessantes textos. O primeiro intitula-se O princípio educativo da produção associada: um olhar a partir da organização coletiva dos trabalhadores e da gestão democrática do processo de trabalho, de autoria de Anderson Roik, Danuta Estrufika Cantóia Luiz e José Henrique de Faria. Acreditando ser necessário que as organizações geridas pelos trabalhadores forjem uma cultura do trabalho calcada na gestão democrática do processo de trabalho, os autores têm como propósito sistematizar a categoria princípio educativo da produção associada, recorrendo ao pensamento de Tiriba quanto à pedagogia da produção associada e cultura do trabalho e ao pensamento de Faria em relação à organização coletivista de produção associada.

O segundo artigo dessa seção é de Neila Pedrotti Drabach e se intitula A escola unitária em Gramsci e a educação profissional no Brasil. A autora situa o contexto em que é elaborada a proposta de escola unitária por Antônio Gramsci, tendo como base os “Cadernos do Cárcere”, e toma essa concepção para analisar a educação profissional no Brasil. Em seguida, aborda os principais conceitos do pensamento gramsciano, a fim de situar o papel da escola e a proposta de escola unitária na perspectiva desse teórico, apresentando um panorama das iniciativas públicas federais de educação profissional no Brasil, no contexto contemporâneo, cotejando-

as a partir da concepção de educação do marxista sardo. Para ela, as críticas dirigidas por Gramsci à escola italiana de sua época estão presentes na educação brasileira. Assinala que a construção de uma escola unitária, que contemple formação humanista e formação para o trabalho, constitui-se, ainda, um objetivo a ser alcançado.

A seção Teses e Dissertações acompanha o espírito da TN 31, dedicada ao tema “Trabalho e Educação em Comunidades Tradicionais”. Assim, Ana Paula Bistaffa de Monlevade apresenta o resumo expandido de sua Tese de Doutorado, denominada Comunidade Tradicional Raizama em Jangada/MT: Produzindo a existência associadamente por meio de enxadas, ralos, sucuris e torradeiras. A tese procurou demonstrar que, na contramão do sistema capitalista de produção – que é alicerçado na divisão social do trabalho que oprime e explora –, existem trabalhadoras e trabalhadores que seguem lutando historicamente contra este sistema, buscando (rememorando) outras formas de produzir a existência, sendo uma delas baseada na organização coletiva do trabalho e da vida, nos princípios de igualdade, solidariedade, autogestão e reciprocidade, no que denominamos produção associada.

Saberes do trabalho e formação de identidade de pescadores artesanais no município de Cametá-Pará é o título da Dissertação de Mestrado de José Carlos Vanzeler Pompeu. O trabalho de campo revelou que a formação identitária do pescador artesanal, na ilha de Tentém, município de Cametá, Estado do Pará, foi se constituindo no palco de disputas entre trabalho e capital. A identidade que se formou a partir das mudanças na produção dos saberes do trabalho da pesca, decorrentes da construção da Usina Hidrelétrica de Tucuruí (UHE), corroborou processos de emancipação dos sujeitos pescadores e, ao mesmo tempo, de conformismo e manutenção da lógica do capital.

Por último, na seção Memória e Documentos, encontra-se importante contribuição para refletir sobre povos e comunidades tradicionais no Brasil. Em A “República dos Guaranis” e os Sete Povos das Missões dos Jesuítas, Francisco José da Silveira Lobo Neto se dedica a resgatar aspectos da história dos índios guaranis, catequizados pelos padres jesuítas, os quais foram expulsos do Brasil em 1767. Para isto, reproduz e analisa um trecho da carta do Padre Anton Sepp, o relato do missionário Charlevoix e o trecho de uma carta – escrita em guarani - da Municipalidade (Cabildo) de S. Luiz Gonzaga, dirigida ao Marquês de Bucareli (Governador de Buenos Aires), em 28 de fevereiro de 1768. Conta que tanto o Rei de

Espanha quanto o Rei de Portugal mobilizaram seus exércitos para vencer a resistência dos índios e que, no período entre 1753 e 1759, este confronto da união de tropas portuguesas e espanholas contra os guaranis dos Sete Povos, foi denominado “guerra guarani”.

Eis pois, aos leitores, um conjunto de produções ligadas à área de Trabalho e Educação que dão conta do que vem sendo realizado a partir do que homens e mulheres fazem-pensam no interior de comunidades tradicionais, em suas relações de produção, bem como reflexões que tomam a categoria trabalho como crucial para se entender processos formativos que permeiam a materialidade histórica de lutas em prol de projetos societários voltados para a humanização.

Nem todas as análises são marxistas, mas todas dialogam com o marxismo e/ou com algumas de suas categorias teóricas principais, vivificando essa perspectiva por meio do diálogo, contribuindo para o fortalecimento da área de Trabalho e Educação, já que esses estudos nos deixam novas possibilidades de aportes bibliográficos para o estudo do trabalho e da educação (destaca-se, por exemplo, o artigo de Jane Beltrão que ao descrever diferentes aspectos do trabalho indígena, aponta para cada uma delas referências teóricas específicas) e novas abordagens metodológicas (tal como no artigo de Lucília Machado, que faz uma detalhada descrição metodológica do trabalho com grupos focais), fazendo do trabalho tradicional o novo para área. Assim, no dizer de Santos (2001, p. 82), se “[...] autoriza uma outra percepção da história por meio da contemplação da universalidade empírica constituída com a emergência das novas técnicas planetarizadas e as possibilidades abertas a seu uso”, de modo que a “[...] dialética entre essa universalidade empírica e as particularidades encorajará a superação das práxis invertidas, até agora comandadas pela ideologia dominante, e a possibilidade de ultrapassar o reino da necessidade, abrindo lugar para a utopia e para a esperança”.

Belém, 11 de novembro de 2018.


Doriedson do Socorro Rodrigues e Ronaldo Marcos de Lima Araujo Coordenadores do GEPTE/UFPA

Publicado em: 22 de novembro de 2018.

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EL TRABAJO COMUNITARIO EN LA PRÁCTICA DEL BUEN VIVIR: COMUNA MANTEÑA DE AGUA BLANCA – ECUADOR1 2

José Efraín Astudillo Banegas3 Miguel Angel Galarza Cordero4


Resumen

El artículo tiene como objetivo comunicar los resultados de una investigación participativa sobre el trabajo comunitario como fundamento del Buen Vivir en una comuna indígena del litoral ecuatoriano. Se trata de Agua Blanca, una Comuna Manteña del litoral ecuatoriano, que a través de un proceso de reindigenización, ha recuperado sus valores ancestrales desde los cuales implementa una alternativa al desarrollo capitalista. La propuesta se construye colectivamente con un alto nivel de creatividad y sustentado en el trabajo comunitario, la reciprocidad, solidaridad, el cuidado de la naturaleza, y el desarrollo de la espiritualidad, encaminándose hacia el Buen Vivir.

Palabras claves: Reindigenización; Trabajo comunitario; Comunidad; Identidad.


O TRABALHO COMUNITÁRIO NA PRÁTICA DO BEM VIVER: A COMUNA MANTEÑA DE AGUA BLANCA – EQUADOR

Resumo

O objetivo do artigo é apresentar resultados de uma investigação participativa sobre o trabalho comunitário como fundamento do Bem Viver em uma comunidade indígena do litoral equatoriano. Trata-se de Água Blanca, no município de Manta no Litoral Equatoriano que, por meio de um processo de reintegração indígena tem recuperado seus valores ancestrais, a partir dos quais tem sido implementada uma alternativa ao desenvolvimento capitalista. A proposta se constrói coletivamente com um alto nível de criatividade e sustentado no trabalho comunitário, na reciprocidade, na solidariedade, no cuidado com a natureza e no desenvolvimento da espiritualidade, caminhando na perspectiva do Bem Viver.

Palavras-chave: Reintegração indígena; Trabalho comunitário; Comunidade; Identidade.

COMMUNITY WORK WITHIN THE PRACTICE OF GOOD LIVING: COMMUNE IN THE PROVINCE OF MANTA IN THE LOCATION OF AGUA BLANCA – ECUADOR


Abstract

This article aims to communicate the results of participatory research about community work as the foundation of good living in an indigenous commune of the Ecuadorian coast. “Agua Blanca” is a commune in the province of Manta in the Ecuadorian coastal region which, through a process of re- indigenization, has recovered its ancestral values as a basis to implement an alternative to the predominance of capitalist development. The proposal herein is collectively built with a high level of creativity and is based on community work, reciprocity, solidarity, care for nature, and the development of spirituality, all of this leading to the concept of Good Living.

Key Words: Re-indigenization; Community work; Community; Identity.


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1 DOI: https://doi.org/10.22409/tn.16i31.p27370

2 Este artículo se escribe en el marco del proyecto de investigación, ALTERNATIVAS AL DESARROLLO EN EXPERIENCIAS DE CULTURAS LOCALES de la Universidad de Cuenca - Ecuador y forma parte de la tesis doctoral: EL BUEN VIVIR PARA LA SUPERACIÓN DE LAS DESIGUALDADES PRACTICAS EN LAS COMUNIDADES INDIGENAS DEL ECUADOR presentada, por uno de los autores en la Universidad Complutense de Madrid.

3 Doctor en Sociología y Antropología. Docente Investigador. Universidad de Cuenca. jose.astudillo@ucuenca.edu.ec +593-7 9982 96936

4 Abogado. Docente Investigador. Universidad de Cuenca. miguel.galarza@ucuenca.edu.ec +593-7 991 604539


Introducción


El Ecuador se constituyó en un proceso de permanente exclusión entre diferentes grupos, desde el regionalismo entre la costa y la sierra, hasta la segregación, exclusión y aniquilamiento lento de la población indígena. La desigualdad se expresa en el regionalismo que concentró la distribución de la riqueza y los ingresos, en dos ciudades Quito y Guayaquil, generando así un estado bicéfalo con una capital político-económica formalmente constituida en la serranía-Quito, y otra ciudad que históricamente representa al sector industrial agro-exportador en la costa- Guayaquil.

La exclusión operó desde los intereses de grupos oligárquicos de ambas regiones con respecto a los sectores pobres y de manera especial a las poblaciones indígenas. Era imposible juntar a empresarios quiteños y guayaquileños y aún peor poner en condiciones de horizontalidad a los indígenas cuya mano de obra sustentaba la producción, pues la historia, los valores y las aspiraciones de cada grupo eran abismalmente diferentes (ACOSTA, 2012)

El indígena fue considerado un obstáculo para el desarrollo capitalista. Se le acusó de ser pre-moderno en la alimentación y el vestido, de consumir productos propios como el maíz, la papa, el melloco, la yuca, etc. y de vestir con ponchos, frazadas, y trajes propios elaborados por ellos mismos. La industrialización implicaba la elaboración de productos externos a la cultura y en este caso el indígena no era un buen consumidor.

El racismo es uno de los rezagos fundamentales del pensamiento colonial que impide el desarrollo de los pueblos y fomenta la exclusión. A inicios del Siglo XX, el exdictador Federico Páez (1939), expresaba:


El Ecuador necesita más que ningún otro país de América, la inmigración de capital extranjero, y de hombres de raza blanca […] Mientras gentes torpes o de mala fe que no quieran dejar de ser caciques de pueblo combatan al blanco y al capital extranjero, el Ecuador seguirá yaciendo en la miseria y el oscurantismo. Solo la inmigración europea en gran escala, puede engrandecernos […] La independencia, la República solo se debe a los blancos y descendientes de los blancos. Los indios no son sino una rémora a todo progreso; y lo propio son quienes aun cuando racialmente blancos, tienen mentalidades de indios (apud ACOSTA, 2012, pág. 41).

La mentalidad neocolonial, que aún permanece en la población ecuatoriana, impide el desarrollo de los pueblos y aún más el avance hacia el Buen Vivir, para lo cual se requiere de un Estado que se guíe por principios de: “universalidad, igualdad, equidad, progresividad, interculturalidad, solidaridad y no discriminación” (NUEVA CONSTITUCION DEL ECUADOR, pág. 159).

Para el sistema capitalista el indígena no representó otra cosa que fuente de acumulación. En la colonia funcionó el despojo de las tierras y sus riquezas, en la época republicana el intento de vincularlo a los procesos de industrialización y modernización vía expulsión de los indígenas de sus comunidades a las grandes plantaciones para convertirles en asalariados agrícolas. El trabajo dejó de ser una actividad socio-cultural de los pueblos y las culturas para convertirse en su propio enemigo.

El trabajo que a continuación se presenta, responde a la pregunta: ¿Qué relaciones de colaboración y trabajo subsisten en la Comuna Manteña de Agua Blanca, que construyen el Buen Vivir en la comunidad?

El análisis de las experiencias colaborativas se sustenta teóricamente en la construcción de comunidad, el trabajo desde la Economía Social y Solidaria, el turismo comunitario y la arqueología participativa. Estas consideraciones teóricas han sido contrastadas y validadas con las entrevistas realizadas a los actores del territorio.


Ubicación y organización territorial de la comuna Agua Blanca en Ecuador


En la búsqueda de alternativas al desarrollo de las comunidades del Ecuador, encontramos la Comuna de Agua Blanca, donde ha sido habitual realizar estudios antropológicos, culturales, sociales sobre este territorio. La organización para el trabajo y la creatividad para desarrollar emprendimientos, hace que en esta comunidad sorprenda el encanto y la magia de su gente, su cultura, la arqueología, el paisaje, la naturaleza, sus rutas vivas desde el valle del Río Buenavista hasta el bosque nublado de la Gotera, pasando por el bosque seco tropical, el baño en la laguna sulfurosa, la festividad de la Balsa Manteña (12 de octubre); además, de la generosidad, la reciprocidad y el trabajo de sus habitantes (RUIZ, 2009).

Agua Blanca, es una comuna, regulada desde 1937 por la ley de comunas, y logró en 1964, establecerse como una entidad jurídica con territorio comunal, en lo que ahora es una reserva ecológica. Agua Blanca se ubica dentro del “Parque

Nacional Machalilla, parroquia Machalilla, cantón Puerto López, provincia de Manabí. […] a 12 kilómetros al norte de Puerto López. Posee un camino pavimentado hasta el centro poblado de la comuna” (Endere & Zulaica, 2015, pág. 267).

Esta comuna se encuentra ubicada en la Parroquia Machalilla del Cantón Puerto López, Provincia de Manabí en la Región Litoral o Costanera; es el corazón del Parque Nacional Machalilla que representa a una de las Áreas Naturales Protegidas más importantes del país, incluye 55.095 hectáreas terrestres y marinas a cargo del Ministerio del Ambiente del Ecuador (MAE). Sus habitantes se identifican con el pueblo Manta y la cultura Manteña, que fueron reportados por primera vez en el siglo XVI, y reconocidos por el Estado ecuatoriano en el año 2005. En la actualidad Agua Blanca está habitada por 300 personas, agrupadas en 80 familias.

Jurídicamente, la Comunidad de Agua Blanca aparece en el año de 1964, a través del Acuerdo Ministerial 34.33, que se reclama fundada en 1930; interviene en esta gestión Don Pablo Lemaire Baduy, quien como antecedente años atrás adquirió este territorio denominado “La Hacienda” a los cónyuges Coronel Pablo Borja Larrea y señora Rosa Poveda y a los esposos León Erdstein y Halina Nadel, que se dedicaban al comercio de la tagua.

La Hacienda es un hito en la historia de Agua Blanca que se confunde con la propia constitución de la comunidad y con la llegada de sus pobladores. Para 1979 se crea el Parque Machalilla, pasando el territorio a manos del Estado y generando incertidumbre sobre la continuidad de la población. La comuna se movilizó debido a la falta de información y al hostigamiento que recibieron por la explotación de los recursos naturales del área tales como el carboneo, la extracción de madera, y la caza, todas actividades incompatibles con la conservación del parque (RUIZ, 2009).

En el año de 1978, el Arqueólogo Colin McEwan dirigió las primeras excavaciones arqueológicas, teniendo amplia participación los comuneros. Y para 1986 se inauguró la sala de exhibición en la Casa Comunal de Agua Blanca. En 1987 empezaron los trabajos para la construcción del museo arqueológico y tres años después se inauguró la Casa Cultural Agua Blanca. A partir de 1998, se empiezan a ampliar las actividades turísticas de la Comuna y su proyecto de arqueología participativa, dando paso a los recorridos por el bosque húmedo, la elaboración de artesanías con materiales de la zona, la construcción de cabañas y restaurantes, se

decide establecer un costo para ingresar al parque, para ayudar a la gestión del mismo.

La comuna ha tenido muchos proyectos pero la arqueología participativa es el de excelencia, que marca la historia de la comunidad en los últimos años. Ello en gran parte se debió a la buena relación que establecieron los arqueólogos con la población. Los comuneros fueron empleados y entrenados para excavar, levantar mapas topográficos, y procesar el material post excavación. Las principales decisiones estratégicas fueron discutidas y consensuadas con la comunidad.

La estructura política-administrativa de Agua Blanca, se compone de la siguiente manera: La dirección y manejo de esta comunidad la ejerce el Consejo de Gobierno, integrado por el presidente, vicepresidente, secretario, tesorero, el dirigente de territorio, dirigente de educación y juventud, dirigente de las mujeres, todos elegidos por la Asamblea General de la Comunidad.

Mantienen reuniones ordinarias una vez al mes y de forma extraordinaria pueden reunirse en el momento que el caso amerita. La Asamblea General es la reunión de todas las personas que viven en esta comunidad y se denominan socios, debiendo cumplir con los requisitos: Ser mayor de edad, residir en la comunidad, presentar una solicitud y pagar una cuota (valor económico). Es importante resaltar que, si no es socio no se puede acceder a los beneficios de la comunidad. En la asamblea todos los socios y socias son iguales, con derecho a voz y voto para la toma de decisiones.

El territorio donde se encuentran asentados es comunitario, no existen títulos de propiedad de la tierra por cuanto el área física natural es protegida como Parque Nacional a cargo del Estado; y, los integrantes de las primeras familias de Agua Blanca llegaron desde las localidades circundantes o aledañas. Otra particularidad es que, en estas tierras comunitarias se hallan vestigios, entierros y un museo de sitio de la Cultura Manteña; y, como atractivo natural se localiza una laguna de agua sulfurosa.

Su etnicidad alude a factores socioculturales, simbólicos, normas comunes, pautas de conducta, organización social, tradición histórica, entre otros, que caracterizan, en rigor, a todas las colectividades humanas. De esta manera, la etnicidad es una categoría constitutiva de todos los actores sociales, (GUERREO; OSPINA. 2003)

El sustento étnico del pueblo Manta, ha sido el resultado de un proceso de varias décadas de transformación rural, de organización y de formación y capacitación permanente de dirigentes locales. La negociación por el reconocimiento como pueblo indígena constituye un factor muy relevante en el proceso contemporáneo del Estado pluricultural y multiétnico establecido en la Constitución Política del Ecuador de 1998 y ratificada como plurinacional por la vigente Constitución de 2008. Cabe resaltar que los manteños no tienen una lengua propia o ancestral, hablan el castellano. Tampoco se aprecian rasgos culturales en su vestimenta.


Metodología utilizada en el caso de investigación


La investigación tiene como objetivos: La identificación de las experiencias comunitarias que impulsan la construcción del Buen Vivir y el análisis del trabajo comunitario como sustento de la propuesta del buen vivir en la comuna de Agua Blanca.

El método etnográfico permitió una observación participante; a través de continuas visitas a la Comuna para compartir su vida cotidiana, permitiendo de esta manera una objetivación científica. La historia de la Comuna comprometió a todos los actores involucrados (BOURDIEU, 2008).

Al decir de Toledo & Barrera-Bassols (2008), más allá de la etnografía a secas, lo que permite acercarse a la cultura es la etno-ecología, que implica un nuevo paradigma científico, que propone acercarse a la complejidad de la realidad desde tres dimensiones: El cosmos como un sistema de creencias, el corpus como el sistema de conocimientos y la praxis en los procesos de producción, así como la interrelación de rituales, representaciones y simbolismos, esta compleja interrelación es lo que satisface las necesidades tanto materiales como espirituales, pues para el conocimiento tradicional, “ naturaleza y cultura son aspectos que no se pueden separar” (pág. 108).

El equipo de trabajo partió de la Investigación Participativa, como método para empoderar a la comunidad de sus actividades, así como para la construcción colectiva de conocimientos. Sin embargo nos encontramos con un interesante proceso que dinamiza a la comunidad y es lo que el mismo Arqueólogo Colin McEwan, junto a

María Isabel Silva a finales de los años /70 y en la década de los /80, denominaran a levantamiento de los vestigios como un proceso de arqueología participativa.

Así la investigación participativa, se sustentó en la búsqueda de los vestigios arqueológicos que todavía constituye una actividad propia de la comunidad, con el fin de aportar al engrandecimiento del museo de sitio que mantienen y la recuperación de la identidad; actividades propias de su trabajo para el fortalecimiento del turismo comunitario.

También el proceso organizacional está basado en la ancestralidad de su cultura, pues las reuniones, talleres han sido desarrollados con la participación de toda la comunidad. En esta comuna todo acontecimiento es parte de la vida comunitaria. Cada taller parecía una fiesta y de hecho reemplazaba a actividades culturales que planifican durante los fines de semana.

Se ejecutaron los siguientes talleres: Autodiagnóstico, socio grama, devolución de la información y la participación en algunos momentos importantes de la comuna, como es la fiesta de la interculturalidad que celebran el 12 de octubre en contraposición con el día de la raza que se celebraba hace algunos años en referencia a la conquista de occidente.

Se realizaron 16 entrevistas abiertas, muy abiertas pues los investigadores lograron la confianza necesaria, fueron invitados a las casa de los comuneros y en esa medida las entrevistas fueron largas conversaciones sobre la vida que ellos mantienen en su territorio, el análisis de los temas planteados tienen discursos de los actores entrevistados.

La etnoecología es un sistema complejo para entender los procesos de vida, pues no solo implica: Integralidad, globalidad, complementariedad, sino que rompe con el sistema de pensamiento occidental. Junto a la arqueología participativa, potencializaron el involucramiento de la comunidad en los talleres donde se discutió entre otras cosas el trabajo como la realización personal y comunitaria, para vivir bien. De hecho el trabajo en la comunidad es lo que más se redistribuye. Cada propuesta que se presenta en el Consejo de Gobierno, y que va encaminado a la generación de empleo tiene como metodología la participación comunitaria. Se aprueban propuestas siempre que sean novedosas y que los proponentes no tengan

otras iniciativas, con la finalidad de no permitir el acaparamiento.

La estadía de los investigadores fue distribuida por el Consejo de gobierno, en cada visita el equipo se hospedaba donde diferentes familias, de esta manera los recursos se distribuyen porque se paga por la estadía, por otro lado se aprende y se recoge mucha información en la cosmovivencia con los comuneros.


Construcción de la identidad comunitaria


Uno de los elementos característicos de Agua Blanca, es su identidad como comunidad, valor que se rescata de la cosmovisión de los pueblos ancestrales del Ecuador. El debate entre los conceptos de comunidad y comuna, ha sido importantes para desarrollar la conciencia de pertenencia de los pueblos ancestrales, fortalecer sus organizaciones indígenas y la lucha por el reconocimiento de sus derechos.

La comunidad implica un sistema de vida que se asienta sobre el reconocimiento de vecindad de un mismo lugar, compartir y respetar los valores históricos de reciprocidad y solidaridad, entre otros. La vida en comunidad, posibilita la cohesión social y facilita el desarrollo de objetivos comunes y de beneficio colectivo. La comunidad se diferencia de la comuna por su carácter de informalidad y de fluidez en las experiencias de vida cotidiana, así como por la organización y gestión. Son espacios donde las relaciones de parentesco se fortalecen a través de rituales, el intercambio de bienes de uso, trabajo mancomunado, energía positiva y se desarrolla el prestigio simbólico. Por esta razón es que se presentan en muchas ocasiones, como redes de vida desbordantes y alucinantes de convivencia (R-Villasante, 2014). En la comunidad, prevalecen las relaciones de reciprocidad, practicadas sobre todo en la familia (FIELD, 1991; MARTINEZ, 2000; GUERRERO y OSPINA 2003; R-

VILLASANTE, 2014).

El concepto de comunidad es un proceso de legitimación permanente de la vida, y se va construyendo como alternativa a las diferentes realidades: económicas, sociales, ambientales, espirituales; donde los seres humanos experimentan su existencia. La comunidad es el sentimiento de amor por el territorio y el respaldo de la familia ampliada.

La comunidad se desarrolla en el habitar la tierra, donde las personas en diferentes espacios cuidan de su alimentación, salud y bienes comunes (R-Villasante, 2014). Así la comunidad es un proceso instituyente y en permanente cambio para que

pueda ser una novedad, frente a la defensa de lo común, pues: “Los bienes comunes son alternativos en la medida en que haya apropiaciones “pro-comunes”, y no dominaciones por parte de un sistema patriarcal o de acumulaciones de bienes muy desiguales” (R-VILLASANTE, 2014, pág., 132).

En el núcleo de las organizaciones con identidad ancestral, se mantiene una cosmovisión y valores promovidos desde “la reciprocidad, la ayuda mutua, el valor comunitario de los bienes, el respeto de la naturaleza, la solidaridad, la responsabilidad social, la discusión colectiva y el respeto al otro” (GUERRERO; OSPINA, 2003, pág. 142).

La Comunidad es una organización de hecho no de derecho que agrupa a personas que tienen aspectos en común como el idioma, las costumbres, los valores o la religión; en tanto que, la Comuna es un centro poblado que no alcanza la categoría de parroquia, siendo una organización formal de derecho. Es una forma de organización que no es exclusiva del mundo indígena y que se halla muy difundida en el medio rural ecuatoriano. La primera Ley de Comunas en el Ecuador aparece en 1937.

La Constitución de la República del Ecuador, de 2008, reconoce y garantiza a las comunas y comunidades, en los numerales 4, 5 y 6 del artículo 57, el derecho colectivo a conservar la propiedad imprescriptible de sus tierras comunitarias, que serán inalienables, inembargables, indivisibles y estarán exentas del pago de tasas e impuestos; el derecho colectivo a mantener la posesión de las tierras y territorios ancestrales y obtener su adjudicación gratuita; y, el derecho colectivo a participar en el uso, usufructo, administración y conservación de los recursos naturales renovables que se hallen en sus tierras.

También encontramos en nuestro sistema legislativo la Ley Orgánica de Tierras Rurales y Territorios Ancestrales, publicada en el Suplemento del Registro Oficial No. 711, del 14 de marzo de 2016, que tiene por objeto normar el uso y acceso a la propiedad de la tierra rural, el derecho a la propiedad de la misma que deberá cumplir la función social y la función ambiental. Regula la posesión, la propiedad, la administración y redistribución de la tierra rural como factor de producción para garantizar la soberanía alimentaria, mejorar la productividad, propiciar un ambiente sustentable y equilibrado; y otorgar seguridad jurídica a los titulares de derechos.

Así mismo, esta Ley reconoce y garantiza a favor de las comunas y comunidades el derecho a conservar la propiedad comunitaria y a mantener la posesión de sus tierras y territorios ancestrales y comunales que les sean adjudicados a perpetuidad gratuitamente. Igualmente se garantizará el derecho a participar en el uso, usufructo, administración y conservación de sus tierras y territorios.

La propiedad comunitaria de la tierra consiste en el derecho colectivo a usar, gozar y disponer de ella, a través de la entidad colectiva que representa a los miembros de la comuna y comunidad y de las decisiones del órgano o instancia de dirección de la misma, de conformidad con las normas consuetudinarias, las leyes y las disposiciones constitucionales. En las tierras y territorios en propiedad o posesión ancestral, a partir de sus propias formas de convivencia y organización social y de generación y ejercicio de la autoridad, esta ejercerá la administración y control social del territorio de conformidad con sus usos y costumbres. La propiedad de las tierras comunitarias y de las tierras y territorios en posesión ancestral, es imprescriptible, inalienable, inembargable e indivisible y estará exenta del pago de tasas e impuestos. (LEY ORGANICA DE TIERRAS Y TERRITORIOS ANCESTRALES, 2016)

La propiedad sobre el suelo para las comunas indígenas, es una de las conquistas más importantes en la constitución del 2008, pues del territorio depende la sobrevivencia de los pobladores. El trabajo está ligado a la producción del territorio donde pertenecen.


Legitimación del espíritu comunitario en el espacio territorial de la Comuna


Comuna es el espacio territorial definido en la ley que se expidió en 1937, y que consiste en pequeños pueblos con menor extensión que una parroquia, como cita Álvarez en su texto:


“Todo centro poblado que no tenga categoría de parroquia, que existiera en la actualidad o que fuera conocido con el nombre de caserío, anejo, barrio, partido, parcialidad o cualquier otra designación, llevara el nombre de Comuna, a más del nombre propio con el que haya existido o con el que se fundare” (ALVAREZ, 2015, pág. 10).


La denominación de un espacio territorial como comunidad, ha producido una confusión conceptual entre comuna y comunidad, pues en muchas comunas con

reconocimiento jurídico, no necesariamente se viven los valores de la comunidad. La ley de comunas no pretendía rescatar los valores de la comunidad andina, ni de los pueblos ancestrales, lo que pretendía es integrar a los indios libres al sistema de desarrollo, modernización e industrialización del agro, encaminada al mercado externo, y la explotación de la mano de obra en las haciendas.

Figueroa (2014), hace una crítica a las posiciones esencialistas que vinculan a la comuna como el espacio donde se rescatan los valores pre-colombinos y de oposición al estado: “la Ley de Comunas de 1937 fue una forma de intervención del Estado, que buscaba racionalizar su presencia en el agro en una época de entrada del capitalismo al espacio rural ecuatoriano” (pág. 146). La ley de comunas, rompe con el gran espacio territorial de la comunidad, donde se asentaban los grupos étnicos, pues aunque la ley significó un acercamiento entre el Estado y lo grupos indígenas, de ninguna manera reconoció su derecho ancestral a los territorios; lo que promovió el Estado fue la inserción de los indígenas a la incipiente industrialización de la época, ya que se requería mano de obra que trabaje el campo para mantener la ciudad.

Antes de la ley de comunas de 1937, las grandes comunidades estaban asentadas en territorios cuya producción fue de auto subsistencia y el excedente ligado al mercado entre pueblos. “Un elaborado calendario agrícola festivo permitía alcanzar altos grados de complementariedad entre zonas de producción, recolección, caza y pesca, localizadas a grandes distancias” (ALVAREZ, 2015, pág. 20).

La ley además desconoce el nombramiento de las autoridades tradicionales de los pueblos indígenas. Las nuevas comunas, se establecieron como pequeñas unidades productivas ligadas a la industria agraria.

Aunque el objetivo fundamental fue la inclusión de los indígenas y campesinos al Estado industrial moderno, la ley posibilitó que los indígenas se organizarán para establecer territorios comunales y así defenderse del acaparamiento y concentración del suelo en manos de pocos hacendados, también sirvió para fortalecer el proceso de organización de los pueblos indígenas, y la emergencia política, que detona en la década de 1990, donde la comuna, adquiere un significado de organización social y representación política (SANTANA, 1995; GUERRERO Y OSPINA, 2003).

El espíritu comunitario, permanece, ya sea en la “gran comunidad” como espacio territorial habitado, o en las comunas establecidas jurídicamente. Los

indígenas, han logrado preservar los valores que dan sentido a lo comunitario. Manuel Chiriboga (1985), afirma que la comuna cumple las siguientes funciones:

La legitimación de valores, modos y prácticas indígenas; la representación política y defensa frente al mundo externo; la gestión social de recursos naturales fundamentales y otros necesarios para la reproducción; y la cohesión social ideológica que genera un sentimiento de identidad” (GUERRERO Y OSPINA, 2003, págs.. 130

– 131).


Los consejos de Gobierno se legitiman en el territorio, administran y gestionan la vida, manejan los conflictos de tierras y el uso de recursos al interior de la Comuna, tiene una función moral, hacen cumplir las norma establecidas y median en conflictos familiares e intrafamiliares, dan consejos y alternativas a los conflictos presentados.

El Estado no logro, proletarizar a las comunidades indígenas convirtiéndolas en asalariados de la industria agraria, y empujándole a una nueva identidad como trabajadores agrarios. Las comunidades indígenas aprovecharon de la ley de comunas para conseguir suelo comunal y para fortalecer los lazos comunitarios basados en la solidaridad, reciprocidad, y el trabajo mancomunado, como es la minga4.


La resistencia de las Comunas al modelo neoliberal


Hoy las comunas se ven enfrentadas al proyecto político neoliberal de acaparamiento de las tierras, con la finalidad de integrarlas definitivamente al capital global, sobre todo frente a la presión que ejercen los megaproyectos inmobiliarios y hoteleros que se extienden en la costa ecuatoriana, como es el caso de la comuna Engabao del cantón Villamil Playas, quienes lograron conseguir la vida jurídica, en el año de 1995. Los habitantes de Engabao fueron a la península, buscando agua dulce, trabajo y un territorio para conseguir sustento como pueblo pesquero, la comuna tiene atractivos importantes a nivel paisajístico y de playa.

El turismo está entre las actividades más importantes en la nueva matriz productiva del Ecuador, como expresa el Plan Nacional del Buen Vivir: “Para el 2030, el Ecuador exportará un 40% de servicios, en su mayor parte de alto valor agregado


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4 Trabajos que se realizan en las comunidades para la realización de grandes obras, así como para la siembra y cosecha, y elaboración de vivienda entre las diferentes familias. En la minga el trabajo no tiene valor monetario, sino está valorado por la presencia de la persona como tal.

y con una participación relevante del turismo” (SENPLADES, 2013, pág. 73). Esta política de desarrollo ecuatoriano ha llevado a que los inversionistas pongan la mirada en los territorios de las comunas como Engabao en la Costa Ecuatoriana, antes olvidada y que ahora por su importancia turística es intervenida por parte de empresas y grupos económicos ligados al turismo comercial. La comuna de Engabao ha emprendido una lucha por la defensa del suelo, con el fin de no permitir la invasión, ni la privatización de sus tierras, para el uso de turismo comercial (GILLS ARANA, 2013). La organización para la defensa de los derechos colectivos, la cultura e identidad, son elementos cohesionadores de la comunidad que se fortalecen en la comuna como espacio de lucha por la sobrevivencia de los socios y modos propios de vida. La intención de integrar a los pueblos campesinos e indígenas, al sistema capitalista con mecanismos como “la ley de comunas”, ha sido revertida, pues hoy

algunas comunas son espacios donde el espíritu de la comunidad ha prevalecido.

La Comuna de Agua Blanca recuperando su identidad como indígenas manteños, han re significado valores ancestrales de la comunidad tales como la reciprocidad, la solidaridad, el trabajo colectivo y el desarrollo del turismo comunitario como una propuesta alternativa al desarrollo capitalista.

A través de esta propuesta supera la vulnerabilidad a la que están expuestas otras comunas de la costa Ecuatoriana, en la franja del litoral que se denomina la “Ruta del Spondylus”, las mismas que son apetecidas por el capital del turismo convencional. El sistema Capitalista convierte a la cultura y las comunas en museos para el turismo.

La Comuna de Agua Blanca tiene una economía de reciprocidad, los servicios que presta se encaminan al bienestar de la persona y las familias y no de la acumulación de capital.


El trabajo comunitario como elemento cohesionador de los comuneros


El trabajo es una actividad del ser humano, que le permitió a través de los tiempos su subsistencia y el desarrollo de la sociedad; y, conforme se fue organizando apareció el trabajo en común, como un elemento social.

El trabajo es la base de la economía. Por lo tanto se plantea el reconocimiento en igualdad de condiciones de todas las formas de trabajo productivo y reproductivo. El trabajo contribuirá a la dignificación de la persona (CORAGGIO, 2011).

Sobre el trabajo comunitario, su organización y básicamente el desarrollo social, encontramos a Josep Barbero y Ferran Cortés, quienes manifiestan:

A veces se entiende el Trabajo Comunitario como una forma de abordaje que puede estar presente en una atención individual, un enfoque globalizador, superador de lo meramente asistencial; en otras ocasiones parece comprenderse que se trata del desarrollo de proyectos que tratan de integrar la acción de varios servicios, disciplinas y profesiones de un territorio; finalmente, también se comprende como una intervención que implica la participación a través de grupos y asociaciones vertebrados por objetivos comunes (BARBERO; CORTES, 2005).

De esta manera, se entiende que el trabajo comunitario, es un tipo de actividad que pretende la organización de las poblaciones; es abordar la transformación de situaciones colectivas mediante la organización y la acción asociativa, es decir, una fracción de población que tiene intereses comunes, se transforma en grupo organizado de manera eficiente, capaz de promover sus intereses. Entre las labores que pueden desenvolver los trabajadores comunitarios para promover y desarrollar los procesos organizativos, tenemos: Descubrir necesidades y potencialidades del espacio social de la comunidad; reunirse con los comuneros para desarrollar la voluntad de trabajar a fin de satisfacer sus necesidades; establecer e integrar las estructuras colectivas para repartir las tareas; identificar y elaborar objetivos claros para establecer prioridades; y, sostener la organización comunitaria siempre activa.

Históricamente las prácticas económicas estuvieron orientadas por la reproducción de la propia vida de los individuos, grupos y comunidades en sus formas autogestionadas y asociativas, para cooperar, organizar y dirigir automáticamente actividades económicas esenciales para el funcionamiento de cualquier sociedad. Las comunidades son, en lo interno y en principio, económicamente solidarias (CORAGGIO, 2011).

En la Comuna de Agua Blanca, inicialmente los habitantes eran campesinos obreros, macheteros, jornaleros agrícolas asalariados, dedicados a la producción de la tagua; también era común la labor de la caza y el corte de leña para la producción del carbón, pero poco a poco se desarrolló una política de protección ambiental que

culminó en la creación del Parque Nacional Machalilla en 1979. Hoy en día, se destacan como elementos de relación social su huerta y la producción para el autoconsumo, la crianza de animales como cabras, cerdos, ganado vacuno, aves de corral, también se dedican a la extracción del barbasco que proviene del algarrobo; y, la recolección de palo santo para los sahumerios. Por otra parte, en Agua Blanca existen excavaciones arqueológicas que se desarrollan de forma continuada desde finales de los años 70´ lo que les ha permitido mantener un museo de sitio como el atractivo central de la comunidad; y, la mejor alternativa al desarrollo ha sido el turístico comunitario (HERNANDEZ; RUIZ, 2011).

A más de las labores antes mencionadas, tres personas de Agua Blanca se han comprometido con el trabajo de guardaparques del Parque Nacional Machalilla; 21 socios laboran en el Museo de Sitio de la Comunidad de Agua Blanca, que fue inaugurado en 1990 y está construido sobre restos de la propia cultura Manteña y vienen utilizado técnicas de construcción tradicionales; y, las mujeres de la comunidad se dedican a la elaboración y venta de artesanías especialmente de tagua, semillas, concha perla y concha espondylus.

En el Blog de Betzaida, publicación del 5 junio de 2009, se manifiesta que:

El trabajo comunitario no es solo trabajo para la comunidad, ni en la comunidad; es un proceso de transformación desde la comunidad: soñado, planificado, conducido y evaluado por la propia comunidad. Sus objetivos son potenciar las fuerzas y la acción de la comunidad para lograr una mejor calidad de vida para su población y conquistar nuevas metas dentro del proceso social elegido por los pobladores; desempeñando, por tanto, un papel relevante la participación en el mismo de todos sus miembros (BETZAIDA, 2009).


Los pobladores de Agua Blanca en su cotidianidad se sienten comprometidos con sus tareas, las ejecutan con mucho entusiasmo y dispuestos a vencer cualquier tipo de adversidades. Las personas mayores están siempre preocupadas por dejar un buen ejemplo a los jóvenes, y curiosamente se observa como mantienen la tradición oral de sus costumbres que se trasmiten de padres a hijos.


El Buen Vivir de Agua Blanca radica en sus valores comunitarios


Es interesante como el descubrimiento de restos arqueológicos en los territorios de la comuna, logra despertar en los comuneros, una conciencia histórica que les ha permitido identificarse como indígenas de la cultura manteña, pues previo a estos

descubrimientos y debido a su situación de jornaleros asalariados de la hacienda, sufrían una condición de explotación. Ha logrado levantar su propuesta comunitaria a través de la “sensibilidad perceptiva que construye el medio socio-político en el que la comunidad tiene lugar” (RUIZ, 2009, pág. 468).

Este proceso de indigenización, posibilitó la emergencia de un sujeto social en los habitantes de Agua Blanca, pasando de comuneros que luchaban por el derecho al territorio a herederos de una cultura ancestral, cuyas vidas adquieren sentido en la recuperación de los valores simbólicos identitarios, desarrollando un fuerte sentido de pertenencia al lugar: “Agua Blanca es un asentamiento milenario, por un poco más de

5.000 años que está ahí nomás […] es asentamiento actual, es un pueblo descendiente de esta cultura” (MARTINEZ, 2016).

La medicina ancestral se recupera en agua blanca, como expresa el Yachay (médico indígena) de la comunidad, en la entrevista realizada:


“todavía hago la limpia, las limpias con montes, agua ardiente a los niños adultos no! hago la limpia utilizando tabaco, plantas como la hierba buena, la ruda, la albaca para curar ojeados como decimos acá un mal de ojo eso, todavía se utiliza el huevo criollo, la vela, agua desarrollo, también sauna eso” (MERCHAN, 2016).


La recuperación de la identidad, está ligada al proceso de reterritorialización, se sienten descendientes de la cultura que habitó ese territorio y herederos de la misma, así se expresa un miembro de la comunidad:


“Por eso les llamamos que son tierras ancestrales, son tierras que pertenecieron a nuestros antepasados, nuestros tatarabuelos, nosotros nos sentimos, […] descendientes de las culturas pasadas y muchos llevamos todavía los apellidos y la sangre corre en nuestras venas” (MERCHAN, 2016).


La recuperación de la cultura ha fortalecido la lucha por el territorio y el concepto de comunidad. Ellos diferencian entre lo que significa la Ley de Comunas y la construcción de comunidad como un espacio de vida: “una comunidad, es un grupo de personas que trabajan juntos, ahí la llamamos comunidad, pero la comuna es territorio que está libre de pagar impuestos”, concluye: SAN LUCAS, P. 2016.

Es una comunidad que se interesa por conocer su historia, por informarse sobre los hitos más importantes. Mientras otras comunidades tienen la historia a flor de piel, y corren el riesgo de perder por la influencia cultural, en esta comunidad existe un

proceso de enraizamento: “La gente de la comunidad es muy informada sobre su historia y se interesa por conocerla aún más, también quieren conocer cada detalle” (DOLLONOVO, 2016).

Un elemento histórico recuperado con carácter socio-político es la “Fiesta de la Balsa Manteña”, donde los habitantes elaboran una balsa y se visten como sus antepasados para rememorar la navegación que hacían en sus veleros para comercializar con habitantes de México por el norte y Chile al sur. También recuerdan la invasión española de la cual la gente huyó, dispersándose en la montaña, “y luego de los españoles, se reintegraron nuevamente en estos pueblos” (MARTINEZ, 2016). Para ese entonces ya habían perdido el idioma.

Para recuperar la historia, “se hacen las fiestas culturales del 12 de Octubre que llamaban “día de la raza”, ahora se llaman día de la interculturalidad” (ASUNCION, 2016). Para los aguablanquences, el encuentro con otras culturas siempre ha significado una riqueza y sienten orgullo, como comenta un funcionario del Parque Nacional: “Salango era la puerta de Sudamérica de ingreso e intercambio con otras culturas, quizás de otros continentes, navegaban en corrientes, con vela, entonces ahí está el tema de la balsa manteña” (MACIAS, 2016). Su cultura de navegantes hacia otros lugares del mundo, le ha permitido mantener la apertura y la interculturalidad en la cotidianidad.

Para ser socio o habitar en la comunidad, se debe establecer una relación matrimonial con una persona del lugar, sin embargo siendo una comunidad cerrada en lo étnico se fortalecen de los encuentros culturales. La calidez de los aguablanquences atrae a los visitantes, así expresa una pareja de adultos mayores que ofrece hospedaje en su casa: “Aquí en mi casa han venido muchos extranjeros, unos han estado hasta un mes, […] vino una pareja no recuerdo, Italianos parece que eran. Oiga, créalo!, ese señor con su esposa no se querían ir de aquí de la casa” (PROBO & CARMEN, 2016).

La actitud de reciprocidad es un elemento fundamental de la cultura ancestral recuperada hoy en Agua Blanca, lo que a su vez ayuda a enfrentar las desigualdades económicas, por ejemplo cuando alguien ha tenido una mala cosecha, siente la solidaridad de quienes lograron una buena producción: “si yo no tuve no me fue bien los compañeros, dicen llévate algo para que te comas, entonces así convivimos más bien, acá en este lugar” (MERCHAN, 2016).

De la misma manera el trueque se da cotidianamente, sin ninguna reglamentación, es sencillamente una forma de vivir y hacer el bien. No existe un mercado o espacio de intercambio. Cuando van a pescar, o a cultivar sus huertas y tienen un excedente inmediatamente piensan en su familia o amigos con quienes compartir, como comenta un comunero: “Le manda el pescado, (y el pana5) le da un racimo de guineo, un pedazo de yuca, entonces se siguen haciendo este tipo de prácticas locales” (MARTINEZ, 2016). La comuna regula los trabajos que genera el turismo, para que nadie acapare actividades, no pueden tener dos empleos, y así alcanza para todos.

La seguridad no demanda de gastos extras, cuando se ausentan, dejan recomendando a sus vecinos sus bienes: “aquí nos cuidamos el uno al otro, sí, somos buenos vecinos”. (PROBO; CARMEN, 2016)

La reciprocidad, no solo radica en lo económico, la seguridad o la comunicación que mantienen en el cuidado de sus animales y bienes. La vida social funciona en reciprocidad, de esta manera la exclusión y aislamiento quedan superadas. Una de las anécdotas del arqueólogo Dollonovo, es que la gente comparte sus alegrías, triunfos o simplemente su cotidianidad festiva, como él manifiesta:


Si un joven va a matricular, es una fiesta y todos van a la fiesta; si uno tiene un cumpleaños, todos van al cumpleaños, si es una fiesta por un santo es, una razón para tener otra fiesta y todos van. Si los jóvenes van a jugar fútbol aquí hay siempre una audiencia, bastante gente. Si yo voy a arreglar una cosa en mi carro, yo tengo una audiencia. Todo aquí es público (DOLLONOVO, 2016).


Etno-turismo una alternativa de trabajo comunitario


El Turismo se ha convertido en una actividad que motiva e induce a las personas a salir de su sitio habitual de residencia a otro lugar diferente, para conocer otra gente, su historia, su cultura, la gastronomía, los paisajes y atractivos; el recorrido puede ser durante unas horas en el día, o un fin de semana, aprovechar de los feriados o días festivos que pueden durar de tres a cuatro días; o, por último viajar varios días en los períodos de vacaciones.


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5 Se utiliza la palabra “pana”, para expresar amistad. Amigo.

La Comunidad de Agua Blanca asume al turismo como una alternativa potencial para su desenvolvimiento, y lo implementa como una táctica comunitaria. Si existe una posibilidad de desarrollo turístico desde abajo ese es el turismo comunitario.

Los pobladores de Agua Blanca rompen con el concepto de cosificación de las culturas, para mostrarse al turismo comercial, han desarrollado una vivencia donde los turistas pueden entrar en el mundo de sus vidas y sentir una experiencia diferente de cómo está marchando el mundo en estos tiempos de globalización. “Es la comunidad en el turismo y no el turismo en la comunidad lo definitorio para comprender el turismo comunitario como modalidad turística”. (RUIZ, 2009, pág. 312)

Así mismo, la Comunidad de Agua Blanca mantiene vigente desde años atrás el proyecto de arqueología, que es otra de las alternativas de trabajo potenciales del proceso de desarrollo turístico y de consolidación de la comunidad. Es uno de los principales referentes de la arqueología del Ecuador. Hoy han desarrollado un proyecto que se denomina “se Arqueólogo por un día”, propone a quienes desean pasar un período de tiempo en la comunidad trabajando en el proceso de desenterrar objetos arqueológicos en Agua Blanca, que sirven para mejorar su museo de sitio, mientras aprenden de la historia manteña y experimentan la vida de los comuneros en su cotidianidad.

Los clientes del turismo comunitario de Agua Blanca son niños, adolescentes y jóvenes estudiantes de diversos planteles educativos del país, familias que aprovechan de sus vacaciones, personas extranjeras y los voluntarios que apoyan durante períodos a esta tarea.

Los habitantes de la comuna, están convencidos de que el turismo es la manera para ayudar a una vida sana y equilibrada, y no solo para el crecimiento económico local: “No hay hostales grandes, maravillosos como en la ciudad, sino que acá usted viene a una comunidad, usted ve la vegetación, es otro respiro, es diferente a la ciudad, no hay ruido” (Ventura, 2016). La iniciativa es de la comunidad, por lo tanto el manejo es comunitario, no de una operadora privada que ofrece turismo comunitario, su posicionamiento en este sentido es muy claro: “hacemos y lo decimos, entonces esa es la diferencia, hemos ido viendo que nuestro espacio es de ir aglutinando más gente, entre más oportunidades tenga la gente, más participativo el proyecto”, (MARTINEZ, 2016).

Los nuevos servicios que se van creando, buscan generar trabajo para la comunidad y con un manejo muy cuidadoso y transparente de su dinero, por ello, esta es otra experiencia de suma importancia para el Buen Vivir, como nos narra el arqueólogo que actualmente vive en la comunidad:


“Ellos dicen estos centavos para apoyar al proyecto de masajes, y así, crean un nuevo servicio de turismo comunitario que es el masaje con barro en la laguna o dicen: Estos centavos para la Laguna y mejoran notablemente la infraestructura. ¿Si con centavos ésta comunidad hace cosas grandes y experimenta grandes cambios, imagínense si manejaran dólares, miles de dólares?” (DOLLONOVO, 2016).


El turista se une a sus fiestas comunitarias y la nueva práctica del chamanismo, que han aprendido de las culturas amazónicas, recuperando sus plantas medicinales y la relación espiritual con la naturaleza. Tienen mucho cuidado de montar espectáculos para los turistas: “…me quedo pensando, que eso es para los turistas, de pronto… ¿es algo más profundo?” (Castro, 2016). Los aguablanquenses han decidido aprender de otras culturas no para comercializar, sino para el servicio. La cultura evoluciona, se aprende de otras experiencias y ellos que están muy abiertos a la interculturalidad, por su propia experiencia de encuentro con la identidad, incorporan a su vida nuevas prácticas, así manifiestan en la práctica del temazcal o “los baños sauna con las piedras calientes, eso lo hacemos el 21 de junio y en diciembre, el 22 de marzo y el 22 de septiembre, equinoccios…”, (AVILA; VENTURA, 2016).

“…acá se hace […], el tipo de curaciones: se arma una carpa, ¿no sé si usted ha visto en la laguna?, hay una carpa que esta armada ahí se calienta lo que es los abuelitos (las piedritas), de una a dos horas, bien, cuando esta rojito, […] pueden entrar lo que es 25 a 30 personas, […] para purificar la parte de la piel, porque es medicinal, natural, para que los poros se abran y el que no ha sudado, ahí suda como que si estuviera en el vientre de una madre, porque es caluroso, […] yo le digo va salir “papelito”, porque sale nuevecito, ahí, como que sale de una vida importante y es muy bueno para purificar la piel” (AVILA; VENTURA, 2016).


La creatividad es impresionante en la comuna, siempre están implementando nuevos proyectos, en los que se vinculan los socios y encuentran el trabajo necesario para vivir. La creatividad se sustenta en la construcción de propuestas colectivas, pues si alguien tiene una idea, se reúnen para desarrollarla, por ejemplo, el aprovechamiento del lodo de la laguna sulfurosa, que ha sido transformado en cremas

para dar masajes junto a la quema de palo santo, que tiene un olor exquisito y con propiedades curativas. Estos masajes fueron emulados a los “Spas” comerciales, ahora un grupo de mujeres tiene un espacio de trabajo para ellas, sus familias y la comuna.



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Figura 1 - Comuna Manteña de Agua Blanca en Ecuador


Conclusiones


Desde los valores ancestrales de la identidad cultural, las comunas han resistido a la pretensión del Estado de incluirlas como simples engranajes de la modernización e industrialización.

Mientras el Estado ecuatoriano aún no logra despegar en su intento modernizador (en crisis a nivel mundial), se observa que a nivel local, comunas como Agua Blanca han logrado desde la recuperación cultural un buen vivir acorde a las necesidades de los habitantes, más que del mercado cuyo objetivo persigue el capitalismo.

El trabajo en la Comuna de Agua Blanca, está ligado a la implementación de propuestas colectivas desarrolladas desde los comuneros, quienes redistribuyen a las familias los beneficios de las mismas.

El turismo etno-cultural se presenta como una alternativa de trabajo comunitario para las comunidades, donde los procesos de reindigenización o de conservación de los valores ancestrales son una experiencia vital para otras culturas y personas que requieren salir del mal vivir implementado por el mercado y el consumismo y tener una experiencia de buena vida ligada a la naturaleza, la convivencia humana, y la espiritualidad.

El trabajo en la Comuna de Agua Blanca, no está asociado al desgaste físico de las personas, que intentan un progreso individual. Por el contrario el trabajo es una actividad de socialización y creatividad permanente, a través del cual logran los medios económicos para el sustento de las familias, por un lado y despiertan desde la resiliencia un alto nivel de propuesta frente al sistema capitalista, por otro lado.

El desenvolvimiento de la Comuna está sustentado en valores que defienden lo común, centrado en la defensa de la vida en todos los sentidos, las personas y familias son parte del ecosistema que les rodea. Representa una alternativa al desarrollo nacional del Ecuador, cuyo enfoque se centra en el antropocentrismo, sacrificando el ambiente y los territorios ancestrales.


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Recebido em: 06 de outubro de 2018. Aprovado em: 23 de outubro de 2018. Publicado em: 22 de novembro de 2018.

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INSERÇÃO SÓCIOCOMUNITÁRIA COMO ALICERCE DOS PROCESSOS FORMATIVOS DAS ESCOLAS PROFISSIONAIS DE MOÇAMBIQUE¹


Lucília Regina de Souza Machado2


Resumo

Com este artigo, buscou-se resgatar a discussão sobre diretrizes, alcances e limitações referentes à efetivação de bases sociocomunitárias de escolas profissionais. Para tanto, recuperou resultados de uma pesquisa realizada em 2011 em quatorze instituições moçambicanas criadas para serem uma referência inovadora em matéria de educação profissional destinada a comunidades com predomínio de culturas tradicionais. O texto traz elementos teóricos sobre saberes comunitários tradicionais, conhecimentos escolares e desenvolvimento local à luz de algumas reflexões sobre a realidade social e cultural moçambicanas. Aborda aspectos do percurso metodológico realizado para a coleta de dados e os principais achados sobre um dos pontos focalizados por essa pesquisa, notadamente a problemática representada pelo desafio da efetivação da inserção sociocomunitária das escolas profissionais de Moçambique.

Palavras-chave: escolas profissionais; experiências educativas; comunidades tradicionais.


INSERCIÓN SÓCIOCOMUNITARIA COMO ALICERCE DE LOS PROCESOS FORMATIVOS DE LAS ESCUELAS PROFESIONALES DE MOZAMBIQUE


Resumen

Con este artículo, se buscó rescatar la discusión sobre directrices, alcances y limitaciones referentes a la efectividad de bases sociocomunitarias de escuelas profesionales. Para ello, recuperó resultados de una encuesta realizada en 2011 en catorce instituciones mozambiqueñas creadas para ser una referencia innovadora en materia de educación profesional destinada a comunidades con predominio de culturas tradicionales. El texto trae elementos teóricos sobre saberes comunitarios tradicionales, conocimientos escolares y desarrollo local a la luz de algunas reflexiones sobre la realidad social y cultural mozambiqueña. Aborda aspectos del recorrido metodológico realizado para la recolección de datos y los principales hallazgos sobre uno de los puntos focalizados por esa investigación, notadamente la problemática representada por el desafío de la efectividad de la inserción sociocomunitaria de las escuelas profesionales de Mozambique.

Palabras clave: escuelas profesionales; experiencias educativas; comunidades tradicionales.


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1 DOI: https://doi.org/10.22409/tn.16i31.p27371

2 Doutora em Educação, vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Gestão Social, Educação e Desenvolvimento Local do Centro Universitário Una. E-mail: lsmachado@uai.com.br

Introdução


O modelo curricular e pedagógico das Escolas Profissionais de Moçambique, que veio à luz em 1999, foi concebido, conforme Azevedo & Abreu (2007), para ser um avanço em relação à educação profissional tradicional moçambicana baseada nos princípios do aprender fazendo e na aprendizagem com grupo de pares.

Dentre outros princípios, trazia a proposta de que os cursos oferecidos se pautassem pela relevância com respeito às necessidades locais e regionais e que tivessem como suporte uma rede de apoio de base comunitária. Eles deveriam ser acessíveis e conduzir a qualificações conhecidas, de imediata e clara compreensão por todos, sem deixar de lado a produção e incorporação de inovações.

O argumento era de que as Escolas Profissionais (EP) deveriam se firmar sobre uma base de liderança institucional e pedagógica bastante vigorosa e que isso só poderia ser construído com ampla participação de todos, especialmente a comunitária. Ou seja, deveriam desenvolver a capacidade de tomar em consideração as dinâmicas culturais locais de desenvolvimento social e cultural. Azevedo, coordenador do projeto dessas escolas, e Abreu, seu consultor permanente, assim justificam essa aspiração:


A desenvolvimento associamos também uma vontade de participação, de autonomia e de mobilização das potencialidades endógenas de um território concreto. Aí a valorização matricial vai para todas as perspectivas e para todas as acções concretas, que incorporem o papel preponderante e crucial do homem, de cada pessoa e das comunidades locais, inscritas na sua matriz histórica específica. Por isso, o desenvolvimento deve aliar, por um lado, os esforços voluntaristas das administrações e dos governos e, por outro lado, a intervenção concreta dos actores e das comunidades. São estes que podem construir os processos do seu desenvolvimento, por mais pobres, mais iletrados, mais desorganizados que sejam e estejam, eles são os protagonistas principais, ninguém os substitui nos seus próprios espaços e nos seus próprios passos, a sua cultura é o ponto de partida, o fio estruturante da sua viagem. (AZEVEDO; ABREU, 2007, p.16).


Entendem os autores que é dessa forma, a do “[...] envolvimento nos contextos sociais locais, combinando aí o local e o global, a tradição e a ciência, o prescrito e o aberto, a norma e a página em branco” (AZEVEDO; ABREU, 2007, p.19) que a educação pode melhor contribuir com a luta em prol do desenvolvimento moçambicano.

Deixam claro que essa participação social na construção dessas escolas deve ser alargada para que, de fato, elas sejam das comunidades locais. Isso implicaria, por um lado, aberturas recíprocas para o estabelecimento de acordos com respeito ao delineamento e desenvolvimento de atividades educativas. Por outro, a sabedoria para reconhecer as dificuldades, mas também as potencialidades a respeito dos recursos existentes no meio social tendo em vista mobilizá-los como mediação dos processos de ensino-aprendizagem.

Destacam a importância da “[...] valorização constante da ligação da escola e de cada área de estudos ao meio envolvente e às suas dinâmicas sociais mais significativas (que variam de local para local)”. (AZEVEDO; ABREU, 2007, p.23). Da parte das empresas, fornecimento de apoio material, conhecimento técnico, estágios e de possibilidades de inserção profissional aos estudantes formados. Da parte das escolas (algumas com práticas de formação em alternância) e de seus alunos e professores, o estudo das necessidades da população local, a produção de bens e serviços comunitários, a recuperação do saber-fazer tradicional e o compartilhamento de conhecimentos com as comunidades.

Braga (2018, p.60) informa que:


Cada escola tem um Projecto Educativo territorializado, que lhe confere uma identidade própria e a distingue pela especificidade da sua proposta educativa, de tal modo que as EP desempenham, para as regiões onde estão inseridas, um papel de facilitador do desenvolvimento local e regional. As EP, eminentemente rurais, podem ser de natureza pública, privada e comunitária e gozam de autonomia administrativa, financeira, pedagógica e cultural. Existem 44 escolas em funcionamento (ano de 2014), sendo seus promotores diversas entidades. As escolas profissionais já realizaram 12 ciclos de formação, tendo qualificado até hoje cerca de 32 mil jovens em termos técnico-profissionais. Actualmente frequentam estas escolas 11 mil alunos, que têm à sua disposição vários cursos. Têm acesso à frequência das EP os alunos saídos da Escola Primária Completa, com a sétima classe concluída (escolaridade mínima obrigatória em Moçambique).


Azevedo (2017), porém, alerta para mudanças societárias e seus reflexos em contraposição a projetos como esses das EP: a aceleração do tempo, a rarefação dos espaços tradicionais, a hiper-experimentação e a hiper-estimulação contínua inibidoras do encontro de cada um consigo mesmo e do distanciamento crítico face ao quotidiano, as frivolidades nas relações, o desprezo pelo cuidado interpessoal, a

falta de profundidade, o apelo ao consumismo, a apatia e a passividade, dentre outros. Segundo ele, “[...] há mais fechamento dos pequenos grupos de ‘amigos’ sobre si mesmos, em pequenas ilhas e ‘comunidades de mesmidade’, como dizia Bauman, em que o longe está cada vez mais perto, mas o mais perto e os seus problemas estão também mais longe [...]”. (AZEVEDO, 2017, p.8).

Portanto, faz sentido resgatar contribuições para essa reflexão vindas de uma pesquisa realizada ainda em 2011 sobre as Escolas Profissionais de Moçambique, em atendimento à demanda da Fundação Portugal África, do Ministério da Educação de Moçambique e do Instituto Português de Apoio ao Desenvolvimento – Ipad.

Essas escolas estavam, à época, completando dez anos de idade e seu Regulamento estabelecia a necessidade de uma avaliação externa do modelo curricular e pedagógico adotado.

A pesquisa de campo foi realizada por dois consultores externos, do Brasil e de Portugal, com a colaboração de membros da Unidade Técnica de Apoio ao Programa das Escolas Profissionais de Moçambique (UTA/PEP) do Ministério da Educação de Moçambique e apoios das direções provinciais e das escolas, dos professores, alunos e comunidades. O consultor português realizou a pesquisa em EPs no norte do país e a consultora brasileira em EPs do centro e do sul.

A pesquisa foi realizada em 14 escolas de oito províncias de Moçambique: EP de Moamba e EP S. Francisco (Província de Maputo); EP de Inhamissa (Província de Gaza); EP de Inharrime e EP de Massinga (Província de Inhambane); EP de Mangunde e EP de Caia (Província de Sofala); EP de Chimoio (Província de Manica); EP D. Bosco e EP Songo (Província de Tete); EP Ilha de Moçambique (Província de Nampula); EP de Montepuez, EP de Mariri e EP de Ocua (Província de Cabo Delgado).

No conjunto, essas EPs ofereciam 45 cursos: dez em Carpintaria / Marcenaria; seis em Serralheria Civil / Soldagem; cinco em Serralheria de Manutenção Mecânica; cinco em Formação de Pedreiro; cinco em Agropecuária; três em Eletricidade para Edificações; dois em Mecânica de Automóvel; dois em Serviços de Mesa e Bar; um em Serviço Administrativo, um em Eletricidade para Bobinagem; um em Lanternagem; um em Jardinagem / Floricultura e um em Horticultura / Fruticultura.

Foram ouvidos representantes de direções provinciais, diretores de EPs, diretores adjuntos pedagógicos, professores, alunos, pais ou encarregados da educação dos alunos, autoridades e líderes locais, empregadores e representantes de organizações não governamentais.

Com este artigo, tem-se o propósito de resgatar especificamente as contribuições dessa pesquisa para a discussão sobre as bases sociocomunitárias das Escolas Profissionais de Moçambique tanto no que diz respeito às suas diretrizes quanto ao alcance e limitações para a efetivação desse pressuposto.


  1. Comunidade, comunidade tradicional, inserção sociocomunitária e educação

    Para abordar a categoria inserção sociocomunitária sobre a qual trata este artigo, faz-se necessário tecer algumas considerações específicas com respeito ao termo comunidade. Usado de diferentes formas e em referência a muitos contextos, assume diversos significados.

    Trata-se sempre de uma entidade social e/ou espacial referida ou a um grupo ou a uma agremiação, associação, corporação, empresa, organização, instituição. Necessariamente, as pessoas envolvidas podem não compartilhar a existência em um mesmo lugar físico. Basta que estejam em comunhão e reciprocidade, ter algo material ou imaterial partilhado, o que as leva a tecer laços e identificações. O arranjo pode estar estruturado por disposições, interesses e códigos culturais e funcionais específicos (religiosos, econômicos, científicos, profissionais etc) ou por ambientes e contextos onde se dão as relações sociais (rural, urbano, virtual etc). Uma comunidade é, assim, descrita por Ander-Egg:

    [...] um agrupamento organizado de pessoas que se entendem como unidade social, cujos membros participam de alguma característica, interesse, elemento ou função comum, com consciência de pertença, situadas numa determinada área geográfica na qual a pluralidade das pessoas inter-aciona mais intensamente entre si que noutro contexto. (1982, p.25).


    O imaginário da integração social está, em geral, presente, mesmo quando a complexidade das relações sociais tecidas aponta para a existência de diversidades, contradições e conflitos internos. Apesar disso, trata-se sempre de um lugar histórico, cultural e relacional a partir do qual se estruturam, pelo entrecruzamento, elementos

    formais e informais e se definem identidades individuais e coletivas. De sorte que identificar, descrever e explicar os modos de funcionamento, de organização e de participação de comunidades é sempre um desafio para quem deseja conhecê-las, estudá-las ou interpretá-las.

    As chamadas comunidades primitivas ou gentílicas têm como características a propriedade comum sobre os meios de produção e a distribuição equitativa dos resultados da produção social. Muitas comunidades ancestrais ou tradicionais assim se identificam mesmo que já atravessadas de algum modo pelo desenvolvimento da divisão social de trabalho e da propriedade privada dos meios de produção.

    Foi a partir do Romantismo, movimento artístico, intelectual e filosófico que surgiu na Europa no final do século XVIII, que o termo comunidade passou a ser utilizado para indicar a forma da vida social caracterizada por um vínculo orgânico, intrínseco e apurado entre os seus membros. Como resistência ao racionalismo e iluminismo, essa corrente apelava às emoções para celebrar a natureza e os valores do conservadorismo. A clássica contraposição estabelecida por Ferdinand Tönnies entre dois tipos de organização social, sociedade versus comunidade, em obra publicada em 1887 (Comunidade e Sociedade), recebeu influências desse movimento.

    Sawaia (1996, p.42) explica que:


    Marx difere de forma significativa das implicações valorativas tradicionais que sustentam o contraste entre comunidade e sociedade. Sua concepção dialética materialista da sociedade situa historicamente o debate comunidade e sociedade no capitalismo, isto é, no centro da luta de classes. A sociedade, na teoria marxista, não é harmoniosa, mas conflitiva, sendo que o harmonioso e o conflito não são determinados pela presença ou ausência de valores comunitários, mas por problemas nas relações de produção. O individualismo, inimigo das relações comunitárias, e fruto do “fetiche” da mercadoria, do trabalho alienado e produtor de mais valia. (aspas no original).


    Porém, segundo Sawaia (1996, p.42):


    Marx também se rendeu ao comunitarismo, enquanto ética da vida social digna e justa. Mas sua ideia de comunidade não se refere à volta ao passado perdido, ou à recuperação dos valores comunitários em nível local ou nacional para superar as agruras do individualismo. Ele se afasta de modelos baseados no tradicionalismo e no localismo, pois acredita na vasta associação de nações na comunidade transnacional e encontra na classe trabalhadora a estrutura para a redenção ética da humanidade, como demonstra o apelo que fez no

    Manifesto do partido comunista (1983:45): “Proletariado de todos os países, uni-vos”. (aspas no original).


    A autora estende essa análise de Marx para os dias atuais para reafirmar o que nesse Manifesto foi anunciado: o desmoronamento pelo processo de mundialização do capital de todas as fronteiras tradicionais de apartação das nações e das pessoas, para o qual concorrem favoravelmente as tecnologias de informação e comunicação. Isso, contudo, não implicou em desconsiderar a importância dos estudos sobre a gênese e funcionamento das comunidades, pois o mesmo movimento da derrubada das antigas fronteiras tem feito despontar formas de diferenciação e de discriminação, algumas já existentes e outras emergentes. Com isso, as questões da relação com o outro e das identidades reaparecem com força como reação em busca de soluções de integração.

    O significado de comunidade vem passando, assim, por transformações de relevo, dentre as quais as que põem ênfase nas referências ao caráter local das relações sociais estabelecidas, a despeito do quanto no local se reproduz o global e vice-versa, os sentimentos e atitudes heterogêneos, a complexidade na sua forma mais simples.

    São movimentos dialéticos que precisam ser considerados nos estudos sobre as chamadas comunidades tradicionais e os processos educacionais que nelas se desenvolvem. Por exemplo, as articulações e contradições entre a educação escolar regular e a educação tradicional com características comunitárias.

    Tal coexistência se faz de maneira informal, ampla, nem sempre aberta e pacífica, mas sempre contextualizada em situações vivenciais, em rituais de reprodução de valores culturais e ancestrais. Por vezes, é a educação tradicional que impõe sua influência à educação escolar. Em outras, é a escola que recorre a mediações sociais, instrumentais e simbólicas para fazer sua inserção sociocomunitária.

    Essa intercalação de uma educação em outra resulta em processos sempre abertos à indeterminação. Às vezes, é a comunidade que faz valer seus princípios e regras utilizando-os para empapar a educação escolar, seja ela de caráter geral ou profissional. São referências difusas e presentes em todos os lugares e momentos, na convivência no seio das famílias e nos espaços públicos, realizando-se pela experiência.

    A inserção sociocomunitária se apresenta para as escolas, portanto, como uma disputa com as influências exercidas pelos adultos das comunidades tradicionais, com a linguagem da qual essas se servem para se comunicar, com os instrumentos mediadores que promovem a impregnação de determinados modos de pensar e viver.

    Resta a dúvida sobre os limites e possibilidades dessa trama para a efetivação do comunitarismo movido pela ética da vida social digna e justa.


  2. Saberes comunitários tradicionais, conhecimentos escolares e desenvolvimento local

    Libombo et al. (2017) lembram que o tema do desenvolvimento local tem ocupado lugar de destaque nos debates e agendas políticas, sociais e econômicas de organismos internacionais e de países como Moçambique, que ainda enfrentam contradições e entraves à (re)construção nacional, alguns decorrentes da herança e resquícios colonialistas, mas outros inerentes às limitações que vieram a seguir, tais como: economia vulnerável, dependência de recursos externos, falta de investimentos, práticas centralizadoras, insensibilidade às particularidades e às especificidades locais, a não qualificação técnica e a baixa escolaridade da força de trabalho, a evasão de profissionais para o exterior, sem contar as sabotagens. Os autores informam que:


    A redução da pobreza absoluta em Moçambique, assim como o crescimento econômico, tem entraves sérios, sem um desenvolvimento sustentável efetivo da agricultura. De acordo com o programa quinquenal do governo (2015-2019), continua definido como objetivo central o “combate” à pobreza como forma de melhorar as condições de vida da população e coloca-se a agricultura como a base do desenvolvimento econômico e social do país, por esta ter um papel determinante na redução da pobreza. (LIBOMBO et al., 2017, p. 136). (aspas no original).


    A esse respeito, dados informados por esses autores são importantes. Primeiro, que 70% da população moçambicana vivem na zona rural sendo que grande parte desse contingente encontra-se abaixo da linha de pobreza absoluta. Segundo, que a agricultura contribui com cerca de 50% do PIB e 75% das exportações do país.

    Para eles, o conceito de desenvolvimento local é importante por dar visibilidade e destacar a necessidade de se considerar as diversidades e as particularidades de contextos locais, dos territórios, cada qual com suas necessidades e demandas. Entendem ser fundamental, como concepção de desenvolvimento, reconhecer a importância dos processos endógenos, dos espaços, ações e manifestações das comunidades locais.

    A reflexão de Nguiraze e Aires (2011), ao comentar o que seria a participação cidadã no sentido ético dos agentes do poder estatal moçambicano, conduz, contudo, à problematização do que seria a ação comunitária, pois reificada pode se transformar em mero objeto ou


    [...] um encontro das ações na direção daquele que demanda ou é estimulado a demandar. Criam-se, inclusive, os canais para receber as demandas. Sob diferentes concepções, a reificada comunidade ora surge como o demandante, ora é evocada como uma alternativa para coletivizar os pedidos ou, ainda, é empregada como um termo substituto para referir-se à população carente. (NGUIRAZE; AIRES, 2011, p.42).


    Previnem esses autores com respeito a esse processo de reificação, pois, segundo eles:


    Comunidade – e suas derivações – é um termo substantivo para outras denominações que tanto pode dizer respeito aos limites físicos ou territoriais, como também à adesão de pessoas a determinadas ideias, enfeixando-as em um senso comum legítimo. E ainda o termo comunidade é frequentemente substantivado. Passado, desta forma, a substituir o sujeito da ação. (NGUIRAZE; AIRES, 2011, p.43).


    Nguiraze e Aires (2011) preferem falar em inserção social, um processo que implicaria em participação efetiva e intervenção ativa da população rural pobre moçambicana na superação dos fatores estruturais, que a levam à falta de acesso à renda, educação, oportunidade de trabalho, dentre outros direitos. Eles enfatizam o caráter político dessa inserção referindo-se à intromissão dessa população na promoção da mudança das suas condições de vida, o que implicaria instituir ou por em vigor novas relações sociais, que propiciem a construção da cidadania.

    Martins e Azevedo (2015) adotam o termo sóciocomunitária para se referirem à educação inserida no processo de desenvolvimento local. Esse também é o termo

    utilizado nos documentos do Programa das Escolas Profissionais de Moçambique. Lembram que há bastante consenso com respeito à ideia de círculo virtuoso entre desenvolvimento e educação, mas que se essa última, tal como assinalou Cardoso (2011), “[...] não tiver como premissas determinados aspetos, como uma lógica participativa, flexível, local, prática e equitativa, pode mesmo ser contraproducente no que respeita ao desenvolvimento das comunidades” (MARTINS; AZEVEDO, 2015, p.170).

    Mas como assegurar essa lógica informada por tais critérios e requisitos se a falta de princípios de unidade territorial, política e cultural caracteriza as vinte etnias ou quantidade semelhante de grupos linguísticos que vivem em Moçambique? Segundo Namuholopa e Vettorassi (2017, p.127), ao definir as fronteiras desses grupos ou etnias, o colonizador baseou-se em “[...] acidentes naturais (rios e montanhas) e, noutros casos, em linhas imaginárias contorcidas arbitrariamente. Assim, é frequente encontrar o mesmo povo dividido, um de um lado e outro de outro lado da fronteira.” Essa realidade multiétnica e multilinguística, fragmentada artificialmente, é também coabitada, no atual Moçambique, por povos de origem chinesa, árabe e indiana.

    Partes consideráveis dessas etnias formam culturas orais, que trazem conhecimentos e saberes de longa data, acumulados e atualizados ao serem repassados na sucessão de cada geração. Segundo Castiano (2005, s/p),


    Há saberes ancestrais sobre plantas e animais, sobre as causas de certas doenças e procedimentos para o seu tratamento, sobre técnicas de construção e de cultivo, saberes estes que são usados para resolver problemas concretos locais. Estes saberes subsistem, na maioria dos casos, lado a lado com os saberes modernos, não necessariamente numa relação de exclusão mútua. Alguns deles (por exemplo, relacionados com o uso de ervas e insectos para o tratamento de determinadas doenças) estão em perigo de desaparecer da memória colectiva das pessoas das aldeias.


    O reconhecimento da importância de tais saberes ancestrais motivou a homologação, no Brasil, da Lei 9.394/1996, modificada pelas leis 10.639/2003 e 11.645/2008, e suas diretrizes referentes à inclusão, nos currículos da educação básica, de conteúdos culturais africanos, contemplando também os de povos originários indígenas. Contudo, os diálogos entre o conhecimento tradicional e o científico e as intervenções pedagógicas neles referenciadas, tal como propõem as

    etnociências, são complexos, tanto que Verrangia toma emprestada a expressão de uma rezadeira para dizer que “é preciso muita ciência para esse desafio” (2010, s/p). Por conta disso, mas não somente disso, Castiano (2005, s/p) lamenta:


    Infelizmente, em vez de estes saberes terem sido integrados num debate argumentativo e terem sido submetidos à rigidez e exactidão da tradição científica, eles continuam cobertos por um véu de certo misticismo. O véu do misticismo com que se cobrem certos saberes tradicionais afecta profundamente o processo de integração, disseminação e validação dos saberes locais para a sua projecção num contexto mais universal da produção e circulação do conhecimento científico.


    Apesar disso, o autor reconhece que, na educação moçambicana, iniciativas voltadas para essa integração têm sido feitas, tais como e dentre outras: a participação de comunidades na formatação de currículos, o emprego de idiomas maternos em certas disciplinas, o convite a artesãos locais para ensinar conteúdos de seu domínio, a utilização de oficinas situadas no território como espaço de visita de alunos, o ensino por pessoas mais velhas da história local e dos usos e costumes comunitários. (CASTIANO, 2005, s/p).

    Para o autor, o ensino de saberes locais apresenta diversas vantagens. Dentre elas, a abertura de possibilidades para a inserção dos alunos no sistema ocupacional local e o aprendizado, por eles, de normas e valores semelhantes aos de sua socialização familiar. Além disso, a finalidade de fazer o resgate do que foi negado pelo colonizador. Segundo ele,


    [...] no tempo colonial, as diversas versões do currículo para as crianças negras ou indígenas eram desenhadas consciente e sistematicamente para responder ao projecto do “imperialismo cultural”, quer dizer, com a intenção declarada de dominar e inferiorizar saberes, valores e práticas de povos autóctones.


    Assim, embora aqueles programas estivessem voltados, por exemplo, para a prática da agricultura ou ainda para o domínio de alguns ofícios geralmente aplicáveis nas localidades, o sistema nunca valorizou as cosmovisões e tradições culturais locais. Não havia espaço para uma relação argumentativa entre os saberes. (CASTIANO, 2005, s/p). (aspas no original).


    O autor admite avanços na educação moçambicana com respeito à legitimação desses saberes traduzidos por formas de institucionalização da

    participação comunitária na definição de conteúdos de ensino-aprendizagem, pelo estímulo à interação entre os saberes, práticas e valores locais e os universais e pelo reconhecimento da importância do professor na realização dessas mediações e na promoção da inserção comunitária nos projetos e espaços escolares. Porém, se acautela e observa que:


    [...] não podemos de forma nenhuma nem romantizar o tradicionalismo da comunidade e nem ser muito optimistas no sentido de que o currículo local é recebido de mãos abertas por professores e pelas comunidades.


    De facto, acho que seria um engano deduzir que a comunidade pode participar curricularmente só em assuntos que dizem respeito às tradições locais. Uma atitude romântica, tradicionalista e reduccionista deste género seria simplista em relação às potencialidades de desenvolvimento existentes nas comunidades. (CASTIANO, 2005, s/p).


    São tensões e possibilidades, que vêm sendo densamente argumentadas por Boaventura de Sousa Santos, quando critica e propõe a ultrapassagem do que chama de pensamento abissal por meio do resgate do que também entende como epistemologias do Sul e ecologia de saberes.

    A esse respeito, Santos (2007, p.73) se refere “[...] aos conhecimentos populares, leigos, plebeus, camponeses ou indígenas do outro lado da linha, que desaparecem como conhecimentos relevantes ou comensuráveis por se encontrarem para além do universo do verdadeiro e do falso”. Ele advoga “[...] um aprender com o Sul usando uma epistemologia do Sul” [...] (SANTOS, 2007, p.85), uma ecologia de saberes baseada na idéia de que o conhecimento é interconhecimento.


  3. Percurso metodológico


    Este artigo resgata parte de uma investigação, que foi realizada com a finalidade de analisar aspectos valorativos, normativos e motivacionais que servem de referência a avaliações subjetivas do modelo de referência do Programa das Escolas Profissionais de Moçambique.

    Por se referir a pontos de vista, entendimentos, compreensões, concepções, perspectivas, visões, ângulos, olhares, significados sociais e sentidos pessoais, esse

    tipo de investigação recebe usualmente, a designação de pesquisa qualitativa. Porém, é importante lembrar que as atribuições de valor não estão desconectadas de representações quantitativas.

    A coleta de dados para essa pesquisa foi feita mediante a observação direta, entrevistas semiestruturadas e grupos focais. De igual modo, é importante lembrar que apreciações subjetivas, que foram objeto dessas estratégias metodológicas, não estão alheias à realidade material objetiva e que a relação entre o individual e o social guarda unidade dialética. Isso significa considerar a não existência de acontecimentos ou ocorrências que se dêem a conhecer apenas como manifestação singular ou particular, da mesma forma que não há os que se revelem apenas como universalidade.

    Tais incursões ao campo foram precedidas da análise documental dos principais instrumentos normativos das EPs, inclusive de seus regulamentos; de reunião no Ministério da Educação - MINED para a apresentação desse Programa e discussão sobre o trabalho a ser desenvolvido; e da realização de um pré-teste em duas EPs próximas à capital, Maputo, para aferição e validação final dos instrumentos de consulta.

    Os guias de questões para os grupos focais foram elaborados com a previsão de tempo de uma hora e meia de debate e orientados por objetivos bem precisos considerando os possíveis interesses e contribuições de cada grupo de participantes, a terminologia mais apropriada a cada um deles e os critérios para a seleção de questões, tais como ser relevantes, convidativas, desprovidas de julgamentos de valor, não indutoras de respostas etc.

    A aplicação da metodologia de avaliação nas escolas participantes foi iniciada com entrevistas às Direções Provinciais. Em seguida, já no ambiente das escolas, foram feitos o conhecimento dos espaços, das instalações e dos equipamentos e as entrevistas como o Diretor e Diretores Adjuntos Pedagógicos. Por último, foram realizados os grupos focais.

    As pessoas que participaram dos grupos focais foram definidas por terem visto, assistido e/ou observado fatos, particularidades e circunstâncias relacionadas a aspectos e dimensões da avaliação do modelo das escolas profissionais e que se mostraram dispostas a manifestar a respeito, a darem seu testemunho apreciativo com base em suas experiências subjetivas.

    Elas representaram pequenas amostras da população compostas de forma intencional, mas coerente com os objetivos da pesquisa. Os grupos eram heterogêneos entre si com respeito aos papeis institucionais desempenhados, mas relativamente homogêneos internamente de sorte a favorecer reflexões e, ao mesmo tempo, encorajar a manifestação de opiniões divergentes.

    A função de moderação foi exercida de maneira atenta com respeito a como intervir verbal e não verbalmente sem comprometimento da necessidade de assegurar a abertura, o acolhimento e a disposição para escutar posições diversas e até contrárias. Foram feitos os registros das falas, dos gestos e das interações estabelecidas pelos participantes.

    Alguns preceitos em relação ao emprego da técnica dos grupos focais foram seguidos, tais como: a) proporcionar um ambiente acessível, reservado previamente para a atividade proposta, silencioso, livre de interferências de outras pessoas, com boa luminosidade, acolhedor; b) disposição dos participantes em círculo tendo em vista criar condições propícias à participação de todos os componentes; c) destinação do intervalo de tempo de uma hora e meia para a atividade pondo a salvo certa flexibilidade caso houvesse necessidade do aprofundamento do debate sobre alguma questão de interesse; d) estabelecimento de relações que favorecessem a comunicação e o diálogo entre os participantes e destes com o(a) mediador(a), considerando que grupos focais representam situações artificiais de interação discursiva entre pessoas convidadas a emitirem opiniões; e) colocação em debate apenas de questões que não fossem sensíveis a ponto de causar embaraços ou impedir a participação individual; f) abertura para contemplar questões e preocupações não previstas pelos pesquisadores e que fossem consideradas importantes para os participantes; e g) atenção à emergência de questões e conceitos de interesse para futuras investigações.

    Em cada escola, foram realizados quatro grupos focais. Um formado por oito alunos observando-se a representação por curso, gênero e ano escolar. Um constituído por oito professores com representação equitativa das disciplinas socioculturais e técnico-profissionais. Um grupo específico para pais ou responsáveis substitutos, autoridades e líderes locais. E, por último, um grupo com a participação de empregadores e representantes de organizações não

    governamentais. Em relação a esses dois últimos grupos, o número de participantes dependeu da capacidade de mobilização das escolas.

    Ao todo, a pesquisa contou com a participação de 380 consultados. Foram realizadas 7 reuniões com Direções Provinciais; 13 reuniões com diretores de EPs; 14 reuniões com diretores adjuntos pedagógicos; 14 grupos focais com professores (111 participantes); 14 grupos focais com alunos (125 participantes); 14 grupos focais com pais ou encarregados da educação dos alunos, autoridades e líderes locais (92 participantes) e 12 grupos focais com empregadores e representantes de organizações não governamentais (25 participantes).

    Os grupos focais se reuniram em espaço fornecido pela própria EP. Não foram utilizados equipamentos de gravação ou de fotografia com a preocupação de não causar constrangimentos aos participantes. Os registros das falas foram feitos manualmente. À noite, eram complementados com informações e observações memorizadas.

    As direções das escolas eram responsáveis pelo contato com os segmentos externos à escola e pelo convite à participação nos grupos focais. Alguns pais ou encarregados substitutos não mediram esforços para chegar à escola e tiveram que enfrentar alguns quilômetros de caminhada a pé.

    O início das sessões dos grupos focais era marcado por explicações sobre o trabalho de avaliação das escolas profissionais, os selecionados para participar desse trabalho, a importância da participação de cada um, a maneira como os resultados a serem alcançados seriam utilizados, a possibilidade e a necessidade da expressão livre de cada um.

    As diferenças de linguagem foi um dos problemas maiores encontrados na realização dos grupos focais. Entre a língua portuguesa falada em Portugal, no Brasil e em Moçambique há diferenças, por vezes significativas. Neste último, as influências das línguas africanas ali faladas sobre a língua portuguesa são importantes. Além disso, há a enorme diversidade linguística moçambicana, indicador da heterogeneidade étnica e cultural da população. O Relatório do III Seminário sobre Padronização da Ortografia das Línguas Moçambicanas, organizado por Armindo Ngunga e Osvaldo G. Faquir e publicado em 2012, relata a

    existência de 17 línguas principais2, sem contar as secundárias, e o pouco uso do português no interior do país, onde a grande maioria dos grupos focais foi realizada. Por conta disso, foi necessário recorrer à colaboração de tradutores. Houve situação em que foi preciso contar, simultaneamente, com a ajuda de mais de um intérprete. Para tanto, era preciso assegurar a boa compreensão por parte dos tradutores dos objetivos da avaliação e das questões postas à discussão.

    Afora essa dificuldade de comunicação, as discussões ocorreram de forma livre, espontânea e fluida, com muitas riquezas de detalhe. O convite para participar dos grupos focais foi muito bem aceito por todos e foi possível obter um importante volume de informações. Isso se deveu, em grande parte, ao interesse e ativo envolvimento das escolas na identificação e mobilização de participantes, com particular destaque para aqueles da comunidade externa à escola. Cabe também mencionar o engajamento e a disponibilização de meios por todas as Direções Provinciais envolvidas no processo e o entusiasmo e acompanhamento dos diversos interlocutores regionais.

    Após a realização da pesquisa de campo, os dois consultores elaboraram um relatório intermediário e apresentaram os resultados parciais em uma reunião, em Maputo, da qual participaram técnicos da Direção Nacional do Ensino Técnico do Ministério da Educação de Moçambique, a membros das Equipes Locais de Implementação e Desenvolvimento das Escolas Profissionais – ELIDEPs, aos representantes da Embaixada de Portugal, além de outros.

    Após o retorno aos seus países de origem, Portugal e Brasil, os dois consultores elaboraram o plano de análise dos dados e realizaram a consolidação das informações colhidas. Para tanto, estabeleceram oito categorias de análise: criação das Escolas Profissionais; capacitação prévia de diretores; inovação curricular e pedagógica; prova de aptidão profissional – PAP; estágio profissional; sucesso escolar dos alunos; inserção sociocomunitária3 e aspectos marcantes do modelo EP. Essas categorias foram desdobradas em subcategorias, estreitamente ligadas às questões consideradas nos instrumentos de avaliação.



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    2 Kimwani, Shimakonde, Ciyaawo, Emakhuwa, Echuwabu, Cinyanja, Cinyungwe, Cisena, Cibalke, Cimanyika, Cindau, Ciwute, Gitonga, Citshwa, Cicopi, Xichangana, Xirhonga.


    3 Categoria sobre a qual trata este artigo.

    O Relatório final 4 , concluído em dezembro de 2011, traz um sumário executivo, introdução, sistematização dos dados obtidos, síntese e recomendações, a análise dos dados colhidos e os anexos, onde podem ser encontrados os guias de questões por grupo focal e os documentos que serviram de referências para o desenvolvimento da metodologia e da interpretação dos resultados.

    A análise dos elementos obtidos deu importância à recuperação das anotações nos diários reflexivos de campo produzidos a partir da observação direta e transversal, das entrevistas semiestruturadas e aos que vieram à tona nas discussões dos grupos focais. Todas essas informações foram cotejadas com os contextos em que foram obtidas, com a compreensibilidade apresentada pelos participantes a respeito das questões que lhes foram formuladas e com os registros de gestos, reações, diferenças e/ou alterações de opiniões.

    Para a interpretação dos dados, buscou-se apoio em leituras de reconhecimento do campo e sobre o tema do estudo, em reflexões críticas, inclusivas e sintéticas com respeito a significados e à totalidade social.


  4. Inserção sociocomunitária das escolas profissionais de Moçambique


    Este artigo aborda apenas os resultados de uma das dimensões tratadas pela pesquisa realizada: a referente à inserção sociocomunitária das Escolas Profissionais de Moçambique. São respostas datadas porquanto obtidas em 2011 e de uma parte dessas escolas, uma amostra de 14.

    A dimensão da inserção sociocomunitária foi desdobrada nos seguintes indicadores: importância e alcance da função social desempenhada pelas Escolas Profissionais; correspondência dos conhecimentos técnicos com respeito à história, ambiência e identidade cultural locais; estratégias para adequação do ensino- aprendizagem às necessidades sociais locais; abertura da gestão à participação e sustentação das escolas por instâncias locais; cooperação técnica de profissionais e instituições da comunidade nos trabalhos das escolas; ofertas de qualificação profissional e de certificação a trabalhadores tendo em vista o desenvolvimento sociotécnico das comunidades locais; reconhecimento social e valorização dos saberes adquiridos pelos alunos.


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    4 Disponível em: http://www.epmocambique.com/Relatorio_Aval_Int.pdf



    1. Importância e alcance da função social desempenhada pelas Escolas Profissionais:

      Não houve quem dos entrevistados ou participantes de grupos focais, que sobre as Escolas Profissionais e o ensino profissional, não dissesse algo sobre algum aspecto relativo ao seu valor e relevância social, ao seu grande interesse para a sociedade e à sua influência sobre as comunidades. Houve, contudo, variações com respeito ao ponto ou dimensão destacada e aos argumentos utilizados para apresentar as justificativas.

      Numa perspectiva mais informal e cotidiana, apareceram menções a casos de sucesso profissional de alguém que tinha passado por esse tipo de ensino ou de escola. Nesse sentido, vieram os exemplos tirados da própria família (um irmão, um primo etc.), de vizinhos ou mesmo de donos de oficinas e de empresas presentes na comunidade.

      Mencionaram os bons resultados alcançados por essas pessoas, fatos ou episódios ou ações e atitudes a elas atribuídos, presenciados e/ou que se tornaram marcantes devidos às repercussões que tiveram. Ou seja, figuras ou personagens que se destacaram ou vinham se distinguindo pelo seu trabalho, pelas suas atuações no território como agentes dinâmicos de mudanças, com potencial produtivo e transformador, que demonstraram saber fazer.

      Essas referências vieram acompanhadas de outras sobre carências locais de serviços profissionais, de necessidades de força de trabalho qualificada, mas que não seja muito cara, capaz de servir à população em especialidades para as quais há insuficiência de quadros técnicos.

      São argumentos que levavam, por vezes, à lamentação com respeito ao atraso no desenvolvimento do país ou do território e à realidade do grande desemprego e falta de perspectivas para os jovens. Assim, da utilidade social da profissão se passava aos debates de natureza política sobre a necessidade de se combater a pobreza e se alcançar níveis de vida mais elevados. Três setores eram invariavelmente citados como prioritários: a agricultura de subsistência alimentar; a eletricidade para atender necessidades da população e como base para o desenvolvimento de outras atividades produtivas e a hotelaria pelo seu préstimo crucial à expansão do turismo.

      Foram, também, citados alguns aportes da educação profissional ao desenvolvimento tecnológico do país e à recuperação de tradições comunitárias locais relacionadas aos saberes tradicionais. Por exemplo, o caso da premiação de um aluno que desenvolveu um sabão em pó com aroma de bálsamo a partir da raiz de uma árvore nativa; a redescoberta da batata-reno considerada variedade extinta graças aos ensaios realizados por professores e alunos; a reintrodução e o aumento da produtividade no cultivo de um tipo de manga, que havia desaparecido da província.

      Contudo, houve quem justificasse a importância e a função social das Escolas Profissionais e do ensino técnico considerando-os como alternativa de combate à marginalidade e à delinquência. Nesse sentido, a correlação se estabeleceu entre a formação para o trabalho e a promoção da moralidade e da disciplina pessoal.

      Em menor número, mas também presentes, surgiram os argumentos de que essas escolas são as mais convenientes para beneficiar pessoas carentes, aqueles que têm dificuldade para aprender e os jovens mais velhos com histórico de insucesso escolar, mas que precisam se tornar independentes dos pais e garantir seu próprio sustento.

      Discursos mais lapidados lembraram a importância das Escolas Profissionais como modelo pedagógico comprometido com a emancipação social, como locais de produção de saberes e de cultura, como motores de organização coletiva, como ambientes de reciprocidade e de relações democráticas, como agências de solidariedade e de apoio ao associativismo.


    2. Correspondência dos conhecimentos técnicos com respeito à história, ambiência e identidade cultural locais:

      Os diretores e professores ouvidos alegaram que não tem sido fácil para as Escolas Profissionais desenvolverem essa sintonia, apesar do propósito do modelo pedagógico adotado de buscar o atendimento das necessidades e demandas comunitárias, de fazer com que os cursos correspondam e dialoguem com as especificidades históricas e identidades econômicas, sociais e culturais dos territórios.

      À dimensão técnica da formação, os interlocutores da pesquisa associavam a importância da educação em valores e crenças importantes para o desenvolvimento

      do sentimento de pertencimento comunitário e da atenção às normas de convivência, aos costumes, hábitos e tradições.

      Houve, também, destaque para a necessidade de preparar os jovens à participação em estratégias individuais e coletivas de trabalho criadas pelos setores populares e o reforço, nos currículos, dos conteúdos e das atividades de educação cooperativa e autogestionária.

      Porém, as discussões realizadas evidenciaram ser esse um ponto ainda frágil das Escolas Profissionais, muito embora ainda em 1972, portanto quatro décadas antes da pesquisa realizada, Amadou Hampaté Ba, maliense dedicado à administração pública, à diplomacia e à UNESCO e com importantes estudos sobre a tradição oral de povos tradicionais, já o tivesse reclamado em suas análises sobre aspectos da civilização africana:


      Actualmente, reconhecendo a importância do património cultural representado pela sabedoria popular e pelas práticas de educação tradicional, os governos africanos tentam adoptar políticas culturais para resgatar o capital de conhecimentos e de cultura acumulados nas aldeias para que não ocorra a perda do património cultural tradicional, pois é sabido que, “nas sociedades tradicionais, quando morre um ancião, perde-se uma biblioteca”. (BA, 1972). (aspas no original).


    3. Estratégias para adequação do ensino-aprendizagem às necessidades sociais locais:

      Esse é um ponto sobre o qual os diretores e professores ouvidos reconheceram como exemplo das dificuldades encontradas para a superação de resquícios do modelo pedagógico tradicional das antigas escolas de artes e ofícios. Isso implicava várias coisas que não estavam sendo atendidas, tais como adequações em currículos, desenvolvimento de materiais pedagógicos específicos, capacitação de docentes, disponibilidade de meios de transporte, condições para capilarizar a divulgação das escolas, aproximação das lideranças locais, dinamização dos conselhos de escola, celebração de convênios e parcerias, avaliação contínua dos resultados alcançados e acompanhamento dos egressos.

      As justificativas apresentadas por eles diziam respeito à escassez de recursos. No caso do acompanhamento da inserção socioprofissional dos alunos graduados consideravam muito precárias as informações que dispunham, o que pode ser

      considerado como um aspecto importante com respeito uma variável desfavorável à inserção social e comunitária das escolas.

      Salientaram, porém, as vantagens que dispunham de ter prerrogativas de autonomia cultural, fator considerado por eles como muito importante para o cultivo da sensibilidade institucional com respeito às características das comunidades atendidas.

      Apesar das limitações existentes, foram dados diversos depoimentos sobre ações das escolas de valorização da diversidade e da riqueza culturais locais, os esforços empreendidos para realizar a articulação com as comunidades inclusive com a promoção de atividades culturais de teatro e música e abertura da escola à participação das comunidades.

      De fato a implicação comprometida, refletida e partilhada a respeito das estratégias para adequação do ensino-aprendizagem às necessidades sociais locais requer o envolvimento não apenas das escolas profissionais, mas de todos os setores das comunidades. Esses laços demandam ser trabalhados para que os processos de cooperação na busca dessa adequação possam se desenvolver. Tais dificuldades evidenciam, por outro lado, as dificuldades para fortalecer os vínculos entre as escolas e as comunidades, para fazer face à fragmentação e segregação de que a educação profissional tende a experimentar mesmo em contextos de organização social comunitária.


    4. Abertura da gestão à participação e sustentação das escolas por instâncias locais:

      As Escolas Profissionais de Moçambique, segundo os diretores e professores ouvidos, não têm tido, em geral, as condições necessárias para exercer plenamente a autonomia, que lhes é concedida no plano administrativo e pedagógico. Delas estava sendo solicitado, inclusive, empenho para a conquista de sua autonomia financeira.

      A falta de aparelhamento e as dificuldades enfrentadas pelos potenciais parceiros para viabilizar o apoio requerido às escolas e à sua gestão foram citadas como motivos das dificuldades que elas estavam encontrando para exercer suas finalidades sóciocomunitárias de promoção do desenvolvimento local.

      Excetuando a Hidroelétrica de Cahora Bassa, empresa moçambicana situada no município de Songo e na província de Tete, distinguida com prêmios

      internacionais de responsabilidade social5 e com atuação no Plano Integrado de Desenvolvimento do Vale do Zambeze, outras empresas de maior porte não estavam oferecendo qualquer patrocínio às Escolas Profissionais.

      Por outro lado, as pequenas empresas locais alegavam ter dificuldades para subsidiar material e financeiramente a criação e o desenvolvimento dessas escolas. Na interlocução realizada para fins desta pesquisa, ouviu-se deles demandas para que os alunos estagiários levassem ferramentas, pois em suas oficinas havia número insuficiente delas. Requeriam, também, das escolas o provimento de insumos necessários à prática dos estagiários. Houve aqueles que esperavam receber compensações do governo, tais como incentivos para obtenção de maquinários e de materiais, como forma de reparação das despesas que tinham no apoio à realização dos estágios dos alunos.

      Os diretores e professores expuseram as dificuldades que estavam tendo para implicar também as famílias dos alunos na gestão e no arrimo às escolas. Esse era mais um dos fatores das atribulações que passavam para conseguir avançar no enraizamento sociocomunitário e manter os Conselhos das escolas em funcionamento regular. Grande parte das famílias, além das diversas carências próprias do estado de pobreza, precisava enfrentar condições de transporte muito limitadas e deslocamentos a pé para ali chegarem.

      Os diretores e professores afirmaram que as dotações governamentais não estavam sendo suficientes para cobrir as despesas correntes e os investimentos necessários à melhoria das condições de operação das escolas e que precisavam aprofundar seus conhecimentos sobre como ampliar e tornar mais eficazes suas bases de apoio sociocomunitário.

      Isso implicava em expandir suas ações no contexto local para melhor conhecê-lo e descobrir potenciais recursos e meios, o que em si também requeria contar com infraestrutura física, administrativa, financeira e de pessoal.

      Dentre as estratégicas mencionadas pelos intervenientes internos e externos às escolas com respeito à conquista de apoios e solidariedades em favor delas -

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      5Guiados, usualmente, por paradigma distante e até mesmo oposto ao conceito de responsabilidade social entendida como cuidados éticos na maneira de atuar junto às comunidades, na escolha do critério da emancipação social para definir com quem se comprometer e cooperar, nas relações de parceria estabelecidas, na compreensão das diferentes formas de compreender a relação entre conhecimento e autoridade, na definição dos objetivos e rumos das ações desenvolvidas, enfim, com o compromisso com a transformação social.

      uma perspectiva cara aos pesquisados entendida como amparo, respaldo, reciprocidade e coparticipação - apareceram sugestões como: campanhas sobre a importância e necessidade da educação profissional e que ela deve ser assumida como responsabilidade de todos; estímulo à ajuda das empresas; envio de cartas; captação de recursos mediante a oferta de serviços à comunidade; criação e manutenção de páginas na Internet de divulgação das escolas; criação de associações de amigos das escolas; divulgação das produções dos alunos; promoção da semana do ensino técnico com visitas à escola e realização de oficinas para alunos da sétima classe das escolas primárias; organização de palestras, encontros e atividades de confraternização; criação de projetos de interesse comum; identificação e mobilização de saberes, recursos e disponibilidades de ajuda existentes na comunidade; mecanismos para que as comunidades possam acompanhar os processos e os resultados da gestão das EP; dentre outras.

      Foram lembradas a esse respeito as recomendações e orientações que constam do Diploma Ministerial n. 75/2010 de criação das Elidep - Equipes Locais de Implementação e Desenvolvimento das Escolas Profissionais e do Regulamento Geral das Escolas e Institutos Técnicos do País.


    5. Cooperação técnica de profissionais e instituições da comunidade nos trabalhos das escolas:

      O Regulamento das Escolas Profissionais incluiu a alternativa do aproveitamento das experiências e saberes existentes na comunidade para o desenvolvimento do trabalho pedagógico. Trata-se de oportunidade de contato dos estudantes com o ambiente e a vida social e cultural do seu meio comunitário por meio da interação com empregadores, líderes e profissionais locais, inclusive com ex-alunos da própria escola.

      Porém, não estava sendo uma tarefa simples para essas escolas criar e assegurar tais adesões, parcerias e cooperação. Elas não dispunham de recursos financeiros para remunerar tais colaborações e nem estavam autorizadas a formalizá-las.

      Por outro lado, se interpunham questões de ordem pedagógica e organizacional, que requeriam o acompanhamento desses cooperantes por professores das escolas. Essas diziam respeito ao saber se ocupar de adolescentes e jovens, intimidade com vocabulários técnicos, observação de normas de

      segurança do trabalho, possibilidade de se comunicar na língua portuguesa. Foi aventada, inclusive, a necessidade e a possibilidade de promoção da própria escola de processos de legitimação e certificação dos saberes e experiências dessas pessoas da comunidade para seu envolvimento nas atividades pedagógicas.

      A cota de colaboração ao trabalho pedagógico oferecida pelos empregadores mereceu uma atenção destacada, a começar pela participação em Conselhos de Escola. Houve também menção à importância de outros apoios que eles estavam dando ou poderiam dar, tais como: a oferta de oportunidades de estágios, a participação em júris para avaliar alunos submetidos a provas de aptidão profissional, a realização de palestras sobre assuntos técnicos e de informação profissional, a liberação de funcionários das empresas para eventuais colaborações nas escolas, consertos de máquinas avariadas das escolas, suprimentos de orientações técnicas, discussão sobre necessidades e demandas de formação profissional, atualização técnica de professores, estímulo e orientação de alunos à criação de suas empresas, contratação preferencial ou indicação de egressos das EP para recrutamento por outros empregadores.

      Os empregadores alegaram, contudo, que lhes faltavam mais conhecimentos sobre as escolas, suas oficinas e o que tem sido feito por elas para que pudessem melhor se engajar nos seus trabalhos.

      Sobre a disponibilização de locais para estágios, colocaram alguns comedimentos. Alegaram falta de espaço físico nas suas oficinas, a quantidade e diversidade limitada das ferramentas disponíveis, os custos que teriam que arcar com materiais e outros insumos utilizados pelos estagiários. Comentaram, além disso, o investimento que tinham que fazer para fazer face à precária formação prática com a qual os alunos chegam para estagiar. Isso estaria a lhes exigir o trabalho de ensiná-los desde o mais elementar começo.


    6. Qualificação e certificação de trabalhadores adultos:

      Tais linhas de atuação apareceram em interlocuções durante a pesquisa de campo como forma de favorecer o desenvolvimento sociotécnico das comunidades locais. Os encarregados de educação dos alunos das Escolas Profissionais, pessoas que os acompanham, orientam e participam das suas vidas escolares e que fazem a articulação das escolas com as famílias se mostraram muito interessados

      na implementação dessas propostas. Da mesma forma se manifestaram alguns pais. O tema também esteve presente em entrevistas com direções provinciais e diretores das escolas.

      Trata-se da formação inicial e continuada de adultos, de ofertas de grande relevância social previstas no Regulamento das Escolas Profissionais e que já têm sido realidade em algumas delas por meio do desenvolvimento de cursos de inglês e de informática. Além desses, houve indicação da necessidade da oferta de cursos no domínio da agricultura e sobre empreendedorismo, corte e costura, culinária, avicultura, construção civil e serviços de mesa e bar.

      Levantou-se, inclusive, a hipótese de que essa via de desenvolvimento de atividades formativas de trabalhadores poderia ser de interesse das empresas, que ao pagarem pela oferta desses serviços contribuiriam com o aumento das receitas das escolas. Aventaram a possibilidade de que tais cursos pudessem ser oferecidos utilizando-se a infraestrutura de oficinas das empresas.

      Porém, verificou-se não haver naquele momento apoio material e financeiro governamental para o desenvolvimento dessas atividades, nem as escolas conseguiriam lançar mão dos seus professores para tal já que eles não deveriam ser desviados das funções docentes para as quais foram originalmente designados.

      Apurou-se, porém, que comunidades próximas estavam se beneficiando das experiências e conhecimentos desenvolvidos pelas escolas dedicadas ao ensino- aprendizagem da agricultura, especialmente com relação às inovações referentes às modificações de processos produtivos, intervenções fitossanitárias e cultivo de novos produtos e que isso estaria provocando a melhoria da produtividade dos seus plantios e hortas.

      As interações das escolas com as comunidades locais estavam, segundo se concluiu das interlocuções nos grupos focais e entrevistas, contagiando famílias e pessoas a mudarem costumes, hábitos e tradições em favor de uma melhor qualidade de vida.

      Portanto, o papel educacional e indutor do desenvolvimento local das Escolas Profissionais, de certa forma, por conta da promoção de projetos transversais, dos contatos dos alunos e professores com a vida social e cultural do meio comunitário e dos vínculos aí estabelecidos, acaba sendo ampliado com respeito ao combate da pobreza no país, ao incentivo às pequenas inovações produtivas e à disseminação

      de novas técnicas e novos conhecimentos. Isso se volta a favor da própria escola no sentido de despertar o interesse da população do entorno a conhecê-la de perto e com ela estabelecer parcerias.


    7. Reconhecimento social e valorização dos saberes adquiridos pelos alunos:

A Prova de Aptidão Profissional é um procedimento que as Escolas Profissionais utilizam para apreciar o desempenho, validar a formação dos alunos e legitimar a conclusão do curso realizado. Ela compreende a apresentação e defesa, perante um júri, de um projeto e sua concretização na forma de um produto ou de uma atuação técnica específica, acompanhados de um relatório final.

Por meio dessa prova, espera-se que o concluinte demonstre ter adquirido as habilidades e conhecimentos profissionais requeridos ao exercício da ocupação ou profissão para a qual se preparou. Ele é avaliado por uma comissão, que pode contar com a participação de representantes do nicho socioprofissional ao qual se destina, da comunidade, de setores das direções provinciais e professores.

Os produtos submetidos pelos alunos nessas provas são, em geral, bens tangíveis destinados ao uso de suas famílias, comunidades ou mesmo da própria escola. Já quando se trata de atuações específicas apresentadas para avaliação, essas se referem a demonstrações que evidenciem o domínio de determinadas técnicas.

Essas provas podem ter caráter individual ou se referir a um projeto coletivo. Neste último caso, envolvem desafios mais complexos e permitem avaliar também a capacidade de trabalhar em grupo. São momentos memoráveis para cada um que de uma forma ou outra participa do processo.

Seja numa ou outra situação, elas possuem uma forte dimensão sociocomunitária e são assistidas, de forma comovida, por membros da família, encarregados de educação, pessoas do entorno da escola e por representantes de empresas interessados no recrutamento de trabalhadores com habilidades e saberes comprovados.

É um momento importante de reconhecimento social e valorização dos saberes adquiridos pelos alunos, fundamental para os processos de desenvolvimento de suas profissionalidades. Para as escolas, elas permitem dar

visibilidade ao seu trabalho pedagógico, mostrar resultados de aprendizagens, trazer familiares, encarregados de educação e pessoas da comunidade para conhecê-las.

Os alunos expressaram durante a pesquisa de campo que a realização dessas provas traz motivos de muito orgulho para si pela oportunidade de superação pessoal e pela chance de poder evidenciar domínios de técnicas de intervenção profissional ou de produzir um bem concreto de utilidade seja para suas famílias, vizinhos, comunidades ou para a própria escola.

Os empregadores ouvidos fizeram, porém, algumas ponderações no sentido de considerar muito elementar a formação recebida pelos alunos, o que não lhes daria grandes possibilidades de emprego e nem lhes proporcionaria capacidade de adaptação às variações do mercado de trabalho.

Em vista disso, recomendaram investimento na formação para o chamado autoemprego, para o desenvolvimento da capacidade de fazer planos de negócio. Reforçaram essa indicação com a observação de que muitos dos alunos que eles têm recebido para a realização de estágio em suas empresas se mostram desinteressados em aprender o que eles se propõem a lhes ensinar.

Nesse sentido, veem que seria importante investir na orientação profissional dos alunos, pois eles têm se matriculado nessas Escolas Profissionais ainda muito jovens e imaturos com respeito ao que gostariam de se dedicar profissionalmente.

Não apenas os empregadores assim se posicionaram com respeito à inserção profissional dos alunos após a conclusão dos estudos na Escola Profissional. Todos os que foram ouvidos, representantes de direções provinciais, diretores das escolas, professores, encarregados de educação, autoridades locais e, inclusive, os próprios alunos se mostraram preocupados com as dificuldades para encontrar um posto de trabalho depois da conclusão do curso.

De forma consensual, eles também privilegiaram a alternativa do investimento em pequenos empreendimentos, por acreditarem que a inserção socioprofissional mediante o assalariamento tem ficado cada vez mais difícil em face das características que o mercado de trabalho vem assumindo por conta das mudanças tecnológicas e do aumento do nível de competição entre os próprios trabalhadores.

Assim, apontaram para a necessidade da inversão por parte das Escolas Profissionais em conteúdos curriculares relacionados à gestão, em desenvolvimento

de habilidades que estimulem a criatividade e impulsionem a capacidade de inovar processos, produtos e serviços.

Da parte do governo, destacaram a necessidade de adoção de políticas que ajudem os ex-alunos das Escolas Profissionais a superarem as dificuldades que possuem do ponto de vista financeiro para constituírem seus pequenos empreendimentos.

Essas abrangeriam diversas formas de apoio e incentivos tais como acesso gratuito a kits de ferramentas, a linhas de créditos preferenciais, a incubadoras de empresas, a orientações sobre cooperativismo e associativismo. Além disso, caberia ao governo abrir oportunidades de absorção dos serviços desses pequenos empreendimentos. Por exemplo, mediante a criação de programas de construção e reparação de habitações populares e de equipamentos sociais e comunitários.


Considerações finais


Não é simples discorrer sobre a inserção sóciocomunitária como alicerce de processos formativos de escolas profissionais. Colocá-la em prática é ainda mais complicado, intricado, enigmático, penoso e oneroso. Por isso, mesmo o pouco que se conquista nesse desafio se apresenta com um halo de excepcionalidade e astúcia.

Groppo (2013, p.10) entende que relações sociais que correspondam ao atendimento de “[...] necessidades propriamente humanas: sobrevivência, cuidado e identidade (em seu viés comunitário) e liberdade, autonomia e criação (em seu viés societário)” são os ingredientes da lógica ou princípio sociocomunitário.

Ele considera, entretanto, que essa lógica tem sido instrumentalizada em favor da integração sistêmica ao mundo do capital, mas que pode ter seus indícios identificados em realidades educacionais concretas tais como as que promovem as construções de valores coletivos, de identidades, do sentimento de pertença, de redes e relações de proteção e segurança, de relações de solidariedade socioeconômica e de redes de criação artístico-cultural. (GROPPO, 2013).

A pesquisa realizada permitiu ver alguns desses indícios nas práticas pedagógicas das Escolas Profissionais de Moçambique. Mas, também, possibilitou divisar e presenciar o quanto é ampla e complexa a realidade em que estão imersas,

com a qual interagem e da qual recebem influências e pressões positivas e negativas.

Elas experimentam um misto de oportunidades e de ameaças, conflitos nem sempre explícitos, a necessidade da desmontagem de preconceitos, o combate à indiferença, o difícil equilíbrio na construção do interconhecimento. Acordos sobre seu futuro não podem ser feitos, mas alguns dos seus resultados incentivam a realizar apostas.

Isso porque, de um lado, o próprio desenvolvimento humano reclama a não existência de limites que cerceiem seus caminhos. Mas, por outro, as incertezas e as complexidades envolvidas são irrefutáveis enquanto possibilidades.

Quando se propôs que a inserção sociocomunitária se constituísse como alicerce de processos formativos das Escolas Profissionais de Moçambique um grande desafio estava sendo lançado, pois isso significava também realizar a articulação da educação com as políticas de desenvolvimento local, tomar a educação não como uma área dentre outras importantes para as comunidades envolvidas, mas dela fazer um eixo estruturante do desenvolvimento local, do fomento das relações de proximidade e de convivência solidária.

A pesquisa constatou a importância atribuída pelos interlocutores que dela participaram às relações de caráter local, consideradas até mais significativas do que as de caráter nacional, talvez porque essas últimas estavam de certo modo distantes dos seus quotidianos. Nesse sentido, percebeu-se que a inserção sociocomunitária das escolas profissionais representa oportunidades para realizar ações significativas para as pessoas envolvidas.

Nesses termos, o desenvolvimento educacional ou dessas escolas profissionais aparece como indissociável do desenvolvimento comunitário, embora o valor das aprendizagens por elas proporcionadas ainda estivesse em busca de um lugar garantido no coração da própria vida comunitária.

A pesquisa realizada evidenciou, assim, a amplitude político-antropológica da inserção sociocomunitária das escolas profissionais de Moçambique, revelando muitos dos desafios para a materialização desse desiderato de ir mais longe e mais fundo na transformação dessas escolas em lugares históricos, identitários e relacionais das suas comunidades.

Inserção sociocomunitária se refere às dinâmicas de entretecimento de laços sociais e culturais mediante convivências, inter-relacionamentos, intercomunicações, compartilhamentos de valores, realizações conjuntas, implicações recíprocas e formação de sentimentos de mútuo pertencimento.

Se as Escolas Profissionais de Moçambique se mostraram aquém das atribuições que lhes foram designadas nessa matéria, elas se revelaram conscientes da necessidade de se afirmarem como sujeitos capazes de ocuparem e construírem esse lugar de intercalação de práticas sociais.

Desafios de todo tipo foram explicitados, desde como captar e ouvir as comunidades do entorno até como construir redes de convivência mais solidárias, justas e dignas e como conseguir captar a concretude histórico-social das relações humanas comunitárias, vividas na sua singularidade.

É preciso ter em conta a situação social do país, marcada por desigualdades sociais e pela extrema pobreza. Assim, a inserção sociocomunitária dessas escolas profissionais não pode se furtar à necessidade de fazer convergir os valores e princípios da educação democrática e as práticas e valores da educação das comunidades tradicionais, buscando sempre, nesse movimento, as congruências com a defesa da dignidade humana.

O princípio básico de buscar na vida comunitária o alicerce para essas escolas significa reconhecer que é preciso dar conta e crédito ao modo de vida simples das comunidades, saber que tecnologias e livros do mundo letrado nem sempre estão disponíveis, que ferramentas e equipamentos tradicionais ainda podem ter seu papel, que a dispersão e o isolamento das comunidades podem limitar as condições básicas de vida; que índices de pobreza e de analfabetismo precisam ser minimizados; que tradições culturais encontram-se enraizadas; que a tendência ao conservadorismo está presente; que as condições de existência ainda são pouco dignas para muitos; que o regime do patriarcado e da gerontocracia são elementos modeladores das culturas locais, que as representações sobre a mulher tendem a reservá-las para funções de pouco destaque na sociedade, que dia a dia cresce o número dos casamentos precoces dos adolescentes, que há preconceitos mútuos entre a escola regular e os agentes educacionais tradicionais.

Todos esses desafios com os quais a pesquisa se deparou são coerentes com a realidade de uma sociedade multiétnica como a moçambicana. Cabe às

escolas profissionais, no seu esforço de realizar sua inserção sociocomunitária, promover diálogos, viabilizar intercâmbios, discutir valores, realizar aberturas à participação social, construir sentimentos de mútuo pertencimento. No caso específico da realidade moçambicana, é preciso considerar as fissuras deixadas pelos conflitos passados, não apenas decorrentes da luta contra o colonizador, e as que ainda se estão produzindo pelas contendas atuais.

Pode-se, assim, concluir que, como política cultural de inserção sociocomunitária, encomendas importantes foram feitas às escolas profissionais de Moçambique, muitas das quais estavam carentes de realização. Nesses termos, considera-se que a prioridade a ser dada à valorização da cultura local no âmbito do currículo e dos processos educativos, a promoção de investigações com a participação das comunidades, a divulgação das tradições culturais e o incentivo às manifestações culturais comunitárias.


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Recebido em: 06 de agosto de 2018. Aprovado em: 09 de outubro de 2018. Publicado em: 22 de novembro de 2018.

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SER TRABALHADOR/A ENTRE POVOS INDÍGENAS:

O RELATÓRIO FIGUEIREDO SOBRE TRABALHOS ESPÚRIOS EM TEMPOS DITATORIAIS¹


Jane Felipe Beltrão2


Resumo

Discutir o que é ser trabalhador/a entre povos indígenas é o objetivo do artigo. Toma-se como ponto de partida questões sobre a organização social, considerando as dinâmicas do mundo do trabalho e as especificidades das experiências, organização, formação e construção identitária. Os argumentos são referenciados por viajantes e etnógrafos para compreender o mundo do trabalho tradicional. Na sequência, discute-se a imposição de regimes de trabalho espúrios ao mundo indígena, tendo por fonte o “Relatório Figueiredo” que, em tempos ditatoriais, descreve a exposição de povos indígenas a regimes de trabalho que se contrapõem à sua tradição.

Palavras-chave: Mundo do trabalho; Trabalho indígena; Povos Indígenas; Relatório Figueiredo.


BE A WORKER BETWEEN INDIGENOUS PEOPLE: THE FIGUEIREDO REPORT ABOUT SPURIUS LABOR IN DICTATORIAL TIMES


Abstract

Discussing what is it to be a worker among indigenous peoples is the goal of the article. As a starting point, questions regarding the organization of relations, considering the dynamics of the world of work and the specificities of experiences, organization, formation and construction of identity, are taken. Arguments are referred to by travelers and ethnographers to understand the world of traditional work. Next, we discuss the imposition of spurious labor regimes on the indigenous world, based on the “Figueiredo Report”, which describes the exposure of indigenous peoples to work regimes that are in opposition to tradition in dictatorial times.

Keywords: World of work; Indigenous work; Indigenous peoples; Figueiredo Report.



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1 DOI: https://doi.org/10.22409/tn.16i31.p27372

2 Antropóloga, historiadora, professora titular, docente permanente dos programas de pós-graduação em Antropologia (PPGA) e Direito (PPGD) da Universidade Federal do Pará (UFPA) e docente colaboradora do Programa de Antropologia Social (PPGAS) da Universidade de Mato Grosso do Sul (UFMS). Bolsista de produtividade em pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) nível 1C. E-mail: janebeltrao@gmail.com.

Povos Indígenas e o ser trabalhador/a


O que é ser trabalhador/a entre os povos indígenas? E o que é o disciplinamento imposto pelo trabalho aos/as indígenas? O disciplinamento espúrio, vindo dos tempos coloniais, compromete os coletivos indígenas? Que fazem os povos indígenas como trabalho? Pescam, praticam a coleta, caçam, põem roça, quando estão em seus territórios? E quando estão nas cidades, após deslocamentos forçados ou não, o que fazem como trabalho? São preguntas frequentes no contexto de uma sociedade de classes, razão pela qual o texto, ora apresentado, tenta problematizar como homens e mulheres de comunidades tradicionais organizam suas relações de trabalho considerando as dinâmicas do mundo do trabalho e as especificidades de suas experiências de trabalho, organização, formação e construção identitárias.


Das práticas tradicionais


No campo da Antropologia as descrições sobre os trabalhos desenvolvidos entre coletivos indígenas foi sempre associada à organização social, pois a categoria trabalho não existe isoladamente. Entre alguns dos mais importantes viajantes e etnólogos as descrições referentes ao assunto constam, nas monografias clássicas, nos itens que se denominam: aquisição de sustento, alimentação, atividades econômicas, divisão do trabalho, divisão sexual do trabalho, trabalho e cultura material. Dificilmente, os/as profissionais da Antropologia usam a categoria trabalho, como entendida na sociedade ocidental, para descrever as práticas indígenas de sustento.2

Curt Nimuendaju inicia a descrição da divisão do trabalho entre os Apinayé, informando que “[a] derrubada e a queimada da roça cabe exclusivamente ao homem. O plantio é feito por ambos os sexos, a capinação e a colheita, igualmente.” (1956: p. 69) Mais adiante, diz o autor:


“antigamente, quando terminavam de plantar as roças, saiam os Apinayé para os taboleiros, onde levavam uma vida nômade de


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2 Sobre o assunto conferir, entre os viajantes: Kock-Grünberg, Theodor. 2015 [1909]. Dois anos entre os Indígenas – viagens no noroeste do Brasil (1903/1905). Manaus: EDUA. Entre os etnólogos: Baldus, Herbet. 1970. Tapirapé – Tribo Tupí no Brasil Central. São Paulo: Cia Editora Nacional/EdUSP; e NImuendajú, Curt. 1956. “Os Apinayé” In Boletim do Museu Paraense Emilio Goeldi. Belém: MPEG.

caçadores e coletores, até a época da colheita. Só ocasionalmente, uma ou outra família aparecia na aldeia. Hoje, como os territórios de caça ocupados na quase sua totalidade por neobrasileiros, e tendo a caça perdido a importância em favor da vida sedentária, eles saem, quando muito, durante as últimas semanas que precedem a colheita.”(Nimuendju, 1956: p. 71, sic)


Entretanto, segundo os relatos de Nimuendaju, as roças não ficavam “abandonadas”, pois:


“os dois txwul-putáli-txwúdn, ficavam como guardas das roças. Constroem um racho e velam com olhos de Argus3 seus ‘filhos’(id- kra), como tratam os frutos, observando o crescimento de cada jurumum, cujo comprimento marcavam de tempo em tempo, com um risco no chão. Desde manhã cedo eles se ocupavam em favorecer o crescimento dos seus ‘filhos’ por meio de cantigas e ações mágicas, motivo porque não podem, por exemplo, dormir em posição dobrada, devendo fazê-lo em posição bem estendida.” (1956: p. 71, sic)


Na verdade, qualquer que seja o título dado à sessão do estudo, a descrição das atividades requer compreensão ampliada, por conta da dinâmica da vida cotidiana dos povos indígenas, uma vez que cada grupo social compreende membros pertencentes a classes de idade diferenciadas, que possuem obrigações e reciprocidades associadas ao sustento dos/as membros do coletivo.

Cada atividade requer a compreensão do contexto e das pessoas envolvidas. Por exemplo, ao descrever as atividades agrícolas – como visto acima – o/a antropólogo/a considera os rituais de semeadura e colheita, pois eles estão diretamente relacionados à preparação e aos resultados do trabalho na roça. Tratando-se de caça e pesca, em geral os/as profissionais descrevem minuciosamente os instrumentos e as técnicas utilizadas pelos indígenas, descrições que vem acompanhadas de ilustrações que, no início do século XX, consistiam em elaborados desenhos explicando cada detalhe, hoje, com o uso corrente da fotografia, temos ensaios fotográficos e registros em vídeo para informar sobre o conhecimento dos povos indígenas.4


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3 Gigante da mitologia grega com cem olhos. Ao dormir, Argus fechava, apenas, a metade dos olhos, o que permitia manter-se em eterna vigília.

4 Sobre registros fotográficos a respeito de trabalho entre povos tradicionais consultar: SAUTCHUK, Carlos Emanuel. “Pesca e aprendizagem: Gestação e metamorphoses no estuário do Amazonas” In: Amazônica – Revista de Antropologia. (Online) vol. 5, no. 2: p. 502-519, 2013 e SILVA, Elissandra Barros da. “Sobre aquela ponte existe um mundo: Ivaynti e os Arukwayene no Urucauá” In: Amazônica – Revista de Antropologia. (Online) vol. 8, no. 2: p. 568-608, 2016. Sautchuk observa que:

É Koch-Grünberg quem descreve em detalhes a pesca no Alto Rio Negro e seus afluentes.


“na época das águas baixas, nos meses de dezembro até março, quando secam os pequenos afluentes, os peixes retiram-se para o rio principal e permanecem nos lugares mais profundos abaixo das corredeiras e cachoeiras e nos numerosos lagos que estão ligados aos rios. A localização das aldeias indígenas torna-se menos favorável na época da seca, e os indígenas deslocam-se para lugares piscosos, levando consigo todos os seus apetrechos caseiros, crianças e cachorros, para pescarem de maneiras diversas. De varas e folhas de palmeiras rapidamente são construídas barracas, e a vida ferve nas grandes praias que ficaram desnudadas, quando as águas se retiraram. As mulheres preparam logo uma parte dos peixes para as refeições, mas a maior parte dos peixes será conservada, secando-a nos moquéns, que são grelhas grandes de varas verdes elevadas sobre um fogo lento. O peixe seco, defumado servirá de alimento nos dias de chuva, que não faltam nem na época da seca. Tendo esgotado o peixe num lugar, todo o bando muda-se para outro lugar. Os indígenas na média, permanecem três meses, nessa peregrinação.” (2005 [1909]: p. 393, sic)


Nos trabalhos etnográficos há, ainda, informações sobre a domesticação de animais tanto para fins de alimentação, como para garantir, por exemplo, as plumas necessárias à aerodinâmica de flechas e dos artefatos confeccionados para o cotidiano e eventos rituais. Os trabalhos referem, também, a presença de xerimbabos (animais de estimação) de forma frequente em quase todas as aldeias. Entre os Xikrín do Cateté, por exemplo, há alguns anos atrás, era possível encontrar aves sem penas, colocando nova plumagem, pois a emplumação anterior foi utilizada, pela mulheres, para preparar diversos artefatos. As aves eram “apanhadas” para serem criadas e cuidadas como xerimbabo e fonte de matéria prima.

Quando os itens das monografias clássicas descrevem a cultura material dos povos indígenas, é possível se aperceber da técnica e do cuidado de especialistas


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“[a]pesar de totalmente alheios à experiência embarcada, durante a infância os filhos de pescadores costeiros vivem intensamente a relação com o barco e com a água, exercitando antecipadamente o tipo de relações em que estarão envolvidos no futuro.” (2013: p. 513) E Silva chama atenção para escolha dos lugares entre os Arukwayene, como informa a autora: “[p]ara além do caráter utilitário das ivaynti, sobre as quais, no período de seca, todo o transporte de pessoas e mercadorias é realizado, as pontes se tornaram também espaços de convivência, brincadeiras, encontros e esperas.” (2016: p. 568)

no fabrico de utensílios domésticos; instrumentos de caça, pesca e coleta; e adereços rituais e cotidianos.

As atividades de subsistência são amparadas pela organização social do coletivo indígena que traça estratégias de aliança para manter as relações sociais e de parentesco em ordem. Entre os Tapirapé, as famílias – à época do trabalho realizado por Herbert Baldus (1970) – eram extensas, chefiadas por um homem, mais experiente e de certo prestígio social, que reunia jovens para seu grupo familiar, por meio de residência matrilocal.5 E os maridos das jovens passavam a cooperar com o líder, quando este empreendia caçadas ou colocava roças. As relações de trabalho são “costuradas”, a partir do parentesco, pois implicam em reciprocidade e obrigações entre parentes consanguíneos e afins. Hoje, muito se modificou, em face das relações sociais permanentes entre povos indígenas e com as sociedades não indígenas, como veremos a seguir.


Notas sobre imposições


Urge pensar que a realização de trabalho entre povos indígenas se faz em função da cultura e dos contextos históricos, razão pela qual se insiste na contextualização das atividades laborais.

É importante compreender que, desde a chegada dos europeus ao Brasil, o processo de trabalho, entre os povos indígenas, é organizado sob valores que podem estar integrados a diversos domínios quer eles sejam, unicamente, sociais (strictu senso) ou religiosos, o que aumenta a complexidade das relações estabelecidas.

As complexas relações concebidas entre os coletivos indígenas não impediu

– tampouco impede, hoje – as investidas do colonizador estrangeiro e/ou interno que forja novas relações de trabalho, influenciada pelo processo de monetarização que produz a diminuição dos territórios indígenas, com a prática de sedentarização, como disse certa vez Hõpryre Rõnôre Jõpikti (Paiaré), líder Akrã- Kyikatêjê, “os brancos fizeram os chiqueiros [territórios demarcados] e querem que os índios



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5 O sistema matrilocal, exige que os homens, ao casarem, se desloquem para aldeia de suas mulheres. A mudança implica em complexas relações sociais e de parentesco que procura manter o equilíbrio dos coletivos indígenas.

fiquem dentro. Antes era só liberdade.”6 Ele se referia, em forma de lamento, a como as restrições do território original tolhia a liberdade de se movimentar conforme as necessidades de subsistência e os padrões tradicionais de relacionamento. Comparava a terra demarcada a chiqueiros, porque nem sempre se ouvia os indígenas e se respeitava a relação destes com a terra.

Os contextos históricos a partir dos quais se pode entender o trabalho entre povos indígenas são muitos, entretanto para demonstrar os efeitos sociais das imposições feitas aos povos indígenas, aqui se selecionou o período ditatorial estabelecido no Brasil, nos anos sessenta do século passado, que será lido via Relatório Figueiredo, documento elaborado pelo próprio Estado brasileiro, que expõe as mazelas da política indigenista adotada na primeira metade do século XX.

Procurar-se-á demostrar, como os povos indígenas sofreram com as imposições do Serviço de Proteção aos Índios (SPI) encarregado da política indigenista, no Brasil.


Do Relatório Figueiredo


Durante quase meio século as atrocidades ocorridas em tempos ditatoriais ficaram “desaparecidas” entre as linhas do Relatório Figueiredo (RF) “abandonado”, em meio a muitos outros documentos no Museu do Índio, no Rio de Janeiro. Os/as estudiosos/as sabiam da existência do documento, entretanto não conheciam o teor das investigações levadas a efeito, pela Comissão de Inquérito, presidida pelo procurador Jader de Figueiredo Correia, porque supostamente o documento teria ardido em incêndio ocorrido no Ministério da Agricultura.

O conjunto documental, constituído por 30 volumes, com mais de sete mil folhas, faz do Relatório Figueiredo, talvez, o mais importante registro que permite pensar a relação do Estado brasileiro com os povos indígenas, especialmente se a etnicidade for tomada como política, que permite ver o genocídio inscrito nas amareladas folhas do processo, indicando a opção do Estado brasileiro.

Em 2012, o RF foi encontrado pelo pesquisador Marcelo Zelic, vice- presidente do grupo Tortura Nunca Mais de São Paulo, que colocou ao alcance de estudiosos/as a partir do Armazém da Memória.


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6 Em conversa sobre as relações indígenas e não indígenas na Reserva Indígena Mãe Maria, em 1998.

O documento revela as faces do indigenismo ou da política indigenista, no Brasil, e altera radicalmente a visão da História Indígena que, se antes da “descoberta” do RF, restava-nos a suspeita dos crimes cometidos contra os povos indígenas; hoje, não faltam argumentos para indicar a crueldade das ocorrências, as quais abalam pessoas indígenas de diversas etnias, apenas pela leitura de trechos do referido documento.

Aqui, nos detemos nas relações de trabalho impostas às pessoas e coletivos indígenas, que indicam os atentados à tradição de subsistência, mantida pelos povos indígenas, os quais comprometeram sua sobrevivência, especialmente quando, deslocados forçosamente, sucumbiram ou amargaram a distância do território original em função da prática estatal.


Casos emblemáticos


Diz o procurador, no Relatório Síntese (RS), ao encaminhá-lo ao Ministro do Interior, que: “palmilhando o campo em todos os sentidos o índio fixou-se nos sítios onde o solo mais rico permitia maior abundância de elementos para sua atividade típica de colheita.” (RF – Síntese: fls. 4919).

Nas folhas do Relatório Figueiredo quando o rol de crimes cometidos pelos funcionários do SPI, considerados pelo procurador Jader de Figueiredo, como “... verdadeiros celerados, que lhes impuseram um regime de escravidão [aos/as indígenas] e lhes negaram um mínimo de vida compatível com a dignidade da pessoa humana.” (RF – Síntese: fls. 4912) O que o permite afirmar que, mesmo não tendo a veleidade de conhecer o Serviço de Proteção aos Índios (SPI), “o pouco que lhe foi dado a ver é suficiente para causar espanto e horror.” (RF – Síntese: fls. 4911)

E, a observação acurada lhe permitiu verificar que no Posto Indígena (PI) Cacique Doble, a “produção agrícola seria suficiente para dar-lhes maior conforto do que os seus bem assistidos vizinhos do PI Paulino de Almeida.” (RF – Síntese: fls. 4918, sic)

Constatou, o zeloso procurador, que “o patrimônio indígena é fabuloso. As suas rendas alcançam milhões de cruzeiros novos se bem administrados. Não requereria um centavo sequer de ajuda governamental e o índio viveria rico e saudável nos seus vastos domínios.” (RF – Síntese: fls. 4919)

É necessário considerar que, no SPI, dominava a “mentalidade empresarial”, como informa Cardoso de Oliveira, a partir do momento em que os diretores do órgão “... passaram a ser recrutados entre homens completamente divorciados da doutrina de Rondon, fossem eles civis ou militares.”(1972 [1968]: p. 74) A referida mentalidade tentava transformar os postos indígenas – unidades bases do SPI – implantadas em diversas aldeias indígenas, em empresas dedicadas a produção e lucro que integrariam a chamada Renda Indígena. Como diz Cardoso de Oliveira,


“a concepção inerente a essa orientação é a de que o índio só pode ‘civilizar-se’ pelo trabalho induzido, o que lhe é ensinado pelo civilizado. E a consequência imediata disso é tornar o Posto Indígena uma unidade auto-suficiente, o que viria dispensar verbas orçamentárias destinadas à assistência e à proteção. .”(1972 [1968]: p. 74-75, sic)


Não parece à toa o SPI, chamou-se no momento de sua criação, em 1910, de Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais (SPILTN), o interesse da recém criada República era adaptar-se aos padrões internacionais de exploração de mão-de-obra e produção capitalista, obrigando os povos indígenas a abandonar as relações sociais baseadas em reciprocidade e na não produção de excedentes.

O procurador, como excelente funcionário do Estado brasileiro, comungado da ideia de imposição do trabalho, feita aos indígenas, declara:


“[p]roclama-se à míngua de recursos orçamentários escondendo-se que o índio brasileiro, um dos maiores latifundiários do mundo, tem meios de auferir rendas de suas terras, de suas dezenas de fazendas, capazes de tornar cada um deles imensamente rico se convenientemente administrados, com zelo e honestidade. São milhões de hectares de terras espalhados em quase todo o País, justamente nas regiões mais férteis, nos lugares mais aprazíveis, nos climas mais amenos.” (RF – Síntese: fls. 4919, sic)


Para ler o Relatório Figueiredo, na chave “trabalho indígena” é preciso escoimar, em meio as informações sobre fome e desnutrição sofridas pelos povos indígenas para, então, identificar as relações econômicas que impõem os escorchantes padrões capitalistas aos “donos da terra.”

São emblemáticos os casos de esbulho da terra produzindo o deslocamento forçado de povos indígenas. Na sequência, as terras “livres” de seus moradores, ou mesmo “com” seus moradores, eram arrendadas aos empresários da região.


“Os Kadiweus (antigos Guaicurús), donos de ricas terras que lhes deu o Senhor D. Pedro II pela decisiva ajuda à tropas brasileiras naquela região durante a Guerra do Paraguai, sentem-se escorraçados em seus domínios, o seu gado vendido e suas mulheres prostituídas.” (RF – Síntese: fls. 4919, sic)


Imagine-se a arbitrariedade, os Kadiweu receberam seus próprios domínios como doação, no Império, pela suposta magnitude de D. Pedro II, e alguns anos depois, foram despojados de suas terras. O gado que conseguiram criar foi vendido por terceiros e suas mulheres obrigadas a trabalhar como profissionais do sexo. A diferença em relação aos não indígenas, no caso da prostituição, é que as kadiweu era exploradas pelos cafetões do SPI.

Para Jader de Figueiredo, o modelo de administração exemplar do SPI, era o Posto Indígena Paulino de Almeida, no Rio Grande do Sul, pois “àquele Pôsto, o único dêsse nome de que a CI [Comissão de Inquérito] têm notícia, administrado em elevados padrões de decência, tem hoje excelente produção agrícola e seus índios gozam de apreciável “status” sócio-econômico-cultural.” (RF – Síntese: fls. 4920, sic)

Fica ao leitor a possibilidade de imaginar o grau de coerção praticada para obrigar os indígenas a produzir nos moldes “de empresa” desejados pela política indigenista. Muitas vezes, além do arredamento das terras, nos domínios indígenas eram instaladas serrarias para promover a derrubada de madeira de lei (mogno, cedro, castanheiras entre tantos outros), a qual poderia ser vendida como matéria prima ou, ainda, minimamente beneficiada em tábuas.

Entre os muitos exemplos de extração ilegal de madeira, temos a denúncia contra Alan Kardec Martins Pedrosa que diz ser ele o


“responsável pela venda irregular de 500 pinheiros no Pôsto Indígena Xavier da Silva, em Londrina, com edital publicado na Folha de Londrina, quando a coleta foi feita em Curitiba, dando ganho de causa à Serraria Santa Tereza, de Kantor & Franco Ltda. com preço de Cr$ 19.000, simplesmente porque pagava à vista quando a Serraria Irerê, de Isidro Maximino, ofertou Cr$ 21.050 dentro das

cláusulas do edital – Prejuízo para repor Cr$ 1.025,00.” (RF – Síntese: fls. 4927, sic)


Observe-se que Cardoso de Oliveira (1972[1968]) indicou a mentalidade empresarial e esta preside a observação constante do RF, o procurador não condena o arrendamento e a devastação das terras, mas sim a perda de lucros pela forma da transação.

Nos registros constantes do RF, está explícito o uso de mão-de-obra indígena, como no município de Tenente Portela, quando Acir Barros permitiu que seus correligionários políticos e autoridades “... lavrassem gratuitamente as terras indígenas ... com o agravante da utilização do braço indígena. “(RF – Síntese: fls. 4926) Muitos funcionários do SPI eram coniventes com a assinatura de contratos irregulares de arrendamento de terras indígenas, denunciados que são nas folhas do RF.

O procurador diz a certa altura do RF que para comprovar as fraudes e o incentivo as mesmas,


“basta citar a atitude do Diretor Major Aviador Luis Vinhas Neves, autorizando todas as Inspetorias e Ajudâncias a vender madeira e gado, e arrendar terras, tudo em uma série de Ordens de Serviço Internas cuja sequência dá uma triste ideia daquela administração. (Fls. 4065 a 4088). (RF – Síntese: fls. 4920)


E, Jader de Figueiredo prossegue as acusações: “[a]liás esse militar pode ser apontado como padrão de péssimo administrador, difícil de ser imitado, mesmo pelos seus piores auxiliares e protegidos. “(RF – Síntese: fls. 4920)

Em outros momentos, as terras devastadas recebiam pasto e a pata de bovinos e ocupava a extensão das terras indígenas, muitas vezes, a partir da compra de reprodutores pelos chefes de posto, em benefício próprio, transformando as pessoas indígenas em vaqueiros não remunerados, vivendo em péssimas condições de pastoreio. E segundo o RF,


“... não para ainda a espoliação do índio. Aquilo que não podia render dinheiro farto e fácil podia ser distribuído ou tomado pelos poderosos locais, por seus afilhados ou testas de ferros. Os dirigentes do SPI nas diziam ou providenciavam para obstaculizar [desmandos e irregularidades].” (RF – Síntese: Fls. 4925)

Cultivar o solo era atividade mais frequente nas terras indígenas, pois sedentarizados, os/as indígenas colocavam roças, entretanto essas atividades não observavam os preceitos tradicionais de cada etnia. Eram extensas roças de uma só cultura: milho, arroz ou trigo entre outros gêneros de grande aceitação no comércio local. Os indígenas preparavam a terra, semeavam e colhiam os frutos entretanto, em muitos postos, aos indígenas restava alimentar-se com “grãos de milho seco e mamão verde cortado em pedaços.” e mesmo assim os precários alimentos, que não faziam parte da dieta alimentar dos/as indígenas, eram distribuídos ao talante do administrador, pois tudo que era produzido pelos/as indígenas, inclusive grandes quantidades de farinha de mandioca, que era vendida e os produtores indígenas não auferiam renda alguma, os valores eram embolsados pelo administrador. (RF Vol. VIII: fls. 1681).

O trabalho escravo – como conceituado pelo autor do RF – era a regra nos domínios do SPI. A noção de trabalho escravo, no RF, está associada a não remuneração e a péssimas condições de trabalho que gerava vidas precarizadas pela operação de poder desfechada pelo Estado que insta a chamada feita por Judith Butler de condição precária que, no caso estudado, aponta os povos indígenas como “enlaçados” em “redes sociais e econômicas de apoio deficientes,

...” expondo-os de diversas formas “... às violações, à violência e à morte. (BUTLER, 2015: p. 45)

Uma vez que o Estado vive um embate eterno com os povos indígenas, impondo aos mesmos uma guerra sem fim, pois a cada imposição de paz, os direitos são esquecidos e a luta dos movimentos indígenas continua, atravessando os séculos. (SOUZA LIMA, 1995)

Em diversos registros é possível vislumbrar os números da produção agrícola, pois apenas no Relatório síntese há inúmeros registros. Por exemplo, “Luiz Martins Cunha, vendia grandes partidas de gêneros da produção do Posto para manutenção de sua família em regime de mesa lauta” (RF – Síntese: fls. 4918). Ou como em Cacique Doble que a produção agrícola era satisfatória para bem prover os moradores do lugar. No Posto Indígena Santana informa-se que sem a devida concorrência pública, foram vendidos 75 sacos de arroz, por Alberico Soares Pereira. (RF – Síntese: fls. 4927). Attilio Mazzaloti cultivou e arredou ilegalmente terras indígenas em benefício próprio. (RF – Síntese: fls. 4929)

O que mais causa espécie nos registros do Relatório Figueiredo diz respeito as discriminações de gênero contra indígenas mulheres obrigadas ao trabalho. Inúmeros funcionários são acusados de coloca-las para trabalhar em situações absolutamente desumanas. Flávio de Abreu é acusado de mandar “... as parturientes para os roçados um dia após o parto, deixando as criancinhas em uma mansarda imunda sem terem direito de alimentar os próprios filhos.” (RF – Síntese: fls. 4937).

O mesmo administrador, “suspendia as aulas e mandava as crianças para o eito, porque os adultos estavam de castigo, trabalhando noutras fazendas.” (RF – Síntese: fls. 4937), Pelo exposto, é possível dizer que, não apenas, os homens adultos eram “escravizados”, as indígenas mulheres e as crianças eram obrigadas a trabalhar de sol a sol, sem direito a condições de trabalho decente. E, nas entrelinhas do RF, sabe-se que a quaisquer ameaças de reação dos povos indígenas contra a conduta dos/as funcionários/as, os/as membros do coletivo eram desterrados/as, a título de castigo, para outros espaços, evitando assim que o regime de trabalho implantado pudesse ser revertido. Muitas vezes, a não obediência cega aos funcionários gerava sessões de suplício (tortura) e prisões arbitrárias. Evidentemente, dada a não adaptação dos/as indígenas ao regime de escravização, as punições eram diárias.

Entre os suplícios (torturas) mais comuns descrito no RF temos o “tronco”, assim descrito:


“... o mais encontradiço de todos os castigos, imperando na 7a. Inspetoria. Consistia na trituração do tornozelo da vítima, colocando- o entre duas estacas enterradas juntas em ângulo agudo. As extremidades, ligadas por roldanas, eram aproximadas lenta e continuamente.” (RF – Síntese: fls. 4913).


O volume VII do Relatório Figueiredo traz inúmeras imagens das situações encontradas pela Comissão de Inquérito, presidida por Jader de Figueiredo. As fotografias, em uma rápida passada de olhos, parecem pousadas para confirmar o trabalho nos postos, pois são demonstração de resultados da colheita de milho, de trigo quando, muito provavelmente, os/as indígenas eram fotografados para comprovar a tese de que, submetidos a um regime disciplinar, os/as indígenas poderiam civilizar-se, via trabalho, criando excedentes agrícolas para venda, mesmo em completo desacordo com os valores de sua cultura.

As situações de trabalho não cessam com as denúncias acima. No volume VIII do RF há referências aos contratos de extração de minérios indicando haver


“exploração de cassiterita, em Rondônia, na região do Igarapé Floresta dos índios ariquemis; que são conhecidos como principais compradores uma francesa denominada Jaqueline, Plínio Benfica, Flodoaldo Fontes Pinto e um tal Jucá; que o contrato de exploração de minérios firmados por Maj. Neves parece ter sido denunciado pelo Ministro da Agricultura Sr. Ney Braga; que o comenta-se no SPI que o inspetor Alberico Soares arestado [arrestado] da chefia da IR9, em virtude de haver denunciado exploração de índios no trabalho de cassiterita, vinte e quatro horas depois do fato; que a comentada matança dos índios Cinta Largas se prende ao caso da cassiterita em Roraima; ...” (RF, vol. VIII: fls. 1579-1580, sic)


Talvez, o trabalho na mineração de cassiterita é, provavelmente, o mais distante da tradição de trabalho entre indígenas, e produz uma corrida de garimpeiros à área fato que traz efeitos sociais indeléveis para os indígenas e moradores/as do entorno da mina.

Acredita-se que o garimpo de cassiterita – informado no RF – coincide com o hoje, chamado garimpo do Bom Futuro, localizado no município de Ariquemes, em Rondônia, considerada como a maior jazida de cassiterita do mundo. Da descoberta da jazida aos dias atuais, calcula-se que cerca de 30 mil garimpeiros passaram pela região. Pelos números referidos, imagina-se o que o fato significou e, ainda, significa, para os povos indígenas da região: conflitos de interesse intermináveis.


De volta ao início


Para responder as perguntas propostas à partida, apontam-se algumas veredas que respondem parcialmente os desafios. O que é ser trabalhador/a entre os povos indígenas? Para responder a interrogação temos que considerar, sobretudo, as relações permanentes entre sociedades indígenas e destas com a sociedade nacional, especialmente, porque o contato modifica as relações sociais tradicionais, e de alguma forma aponta novos horizontes de trabalho. É importante considerar que os povos indígenas, como portadores de etnocidadania ou dupla cidadania, são ao mesmo tempo indígenas e cidadãos/ãs brasileiros/as, com os direitos devidamente assegurados pela Constituição de 1988. (Luciano, 2006; Beckhausen, 2008)

E ao responder o que é o disciplinamento imposto pelo trabalho aos/as indígenas? Considera-se que o disciplinamento espúrio, vindo dos tempos coloniais, compromete os coletivos indígenas, trata-se da imposição do regime de trabalho mercantil, em tempos coloniais, ainda pelos portugueses e demais estrangeiros que por aqui aportaram. Mas, após a constituição do Estado nacional, o regime capitalista, continuou produzindo o genocídio, iniciado pelos europeus, que dizimou aos milhares membros de coletivos indígenas e, mesmo, e povos indígenas Brasil afora foram extintos.7

Que fazem os povos indígenas como trabalho? Pescam, praticam a coleta, caçam, põem roça, quando estão em seus territórios? Em seus territórios, garantidos ou não pela demarcação, os povos indígenas praticam suas atividades de tradicionais com as modificações impostas ou adquiridas em face das alterações produzidas pela proximidade com os não indígenas. Evidentemente, as mudanças não se fazem sentir de pronto, vão sendo incorporadas cotidianamente de acordo com a dinâmica cultural e a agência indígena.

Com o tempo e a luta intermitente dos movimentos indígenas, fortalecidos muito especialmente a partir dos anos setenta do século passado, reivindicando territórios, educação e saúde. A rota dos povos indígenas foi mudando e eles foram se inserindo em muitas atividades, hoje, trabalham em suas aldeias, como professores, agentes de saúde, agentes de saneamento. Fato que em muito auxilia o fazer política indígena. Entretanto, o assalariamento precisa ser estudado com parcimônia.

E quando estão nas cidades, após deslocamentos forçados ou não, o que fazem como trabalho? Um pouco de tudo na medida em que encontram formação universitária, nos dias de hoje muitos sãos os/as intelectuais indígenas que se encontram nas cidades trabalhando como advogados/as, professores/as, educadores/as, antropólogos/as, entre outras tantas possibilidades.

As mudanças nas relações de trabalho aconteceram, entretanto a intolerância e a violação dos direitos de povos etnicamente diferenciados continuam a ocorrer e, elas embaçam a possibilidade de relação menos conflituosa.


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7 Sobre o assunto, e para aprofundar a discussão, considero importante ler o Relatório Figueiredo/Síntese; o Relatório da Comissão Nacional da Verdade no que diz respeito aos Povos Indígenas; e ainda, o recém saído Relatório do CIMI com os dados de 2017 sobre: Violência contra os povos indígenas no Brasil. Documentos e publicações que dão ao leitor a real dimensão do genocídio que ainda acontece e que sempre foi negado.


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Fonte: Relatório Figueiredo, folha 4911

http://pt.scribd.com/doc/142787746/Relatorio-Figueiredo


Referências


Documental

BRASIL. Relatório Figueiredo: documento na íntegra. Disponível em: http://racismoambiental.net.br/2013/06/02/relatorio-figueiredo-documento-naintegra- 7-mil-paginas-pdf-pode-agora-ser-baixado/. 2013. Acesso em 01 de julho de 2017.

BRASIL. Comissão Nacional da Verdade (CNV). 2012. “Povos Indígenas e Ditadura Militar – Subsídios à Comissão Nacional da Verdade 1946-1988”In: Relatório parcial 01 de 30/11/2012. Disponível em: https://idejust.files.wordpress.com/2012/12/povos- indc3adgenas-e-ditadura-militar-relatc3b3rio-parcial-30_11_2012.pdf.


CIMI. 2018. Relatório Violência contra os Povos Indígenas do Brasil – Dados de 2017. Brasília.


Depoimento de Hõpryre Rõnôre Jõpikti (Paiaré), líder Akrã- Kyikatêjê, em set.1998. (Arquivo J. F. Beltrão)


Bibliográficas

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BUTLER, Judith. Quadros de Guerra, quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015 [2009].


CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. “O índio na consciência nacional (1965)” In A Sociologia do brasil Indígena. São Paulo: Tempo brasileiro/EdUSP, 1972 [1968].


KOCK-GRÜNBERG, Theodor. Dois anos entre os Indígenas – viagens no noroeste do Brasil (1903/1905). Manaus: EDUA, 2015 [1909].


LUCIANO, Gersem José dos Santos. O Índio Brasileiro: O que você precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil de Hoje. Brasília: MEC/SECAD MUSEU NACIONAL/UFRJ, 2006. v. 1. 232p . Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/images/0015/001545/154565por.pdf.


NIMUENDAJÚ, Curt. “Os Apinayé” In Boletim do Museu Paraense Emilio Goeldi. Belém: MPEG, 1956.


SAUTCHUK, Carlos Emanuel. “Pesca e aprendizagem: Gestação e metamorphoses no estuário do Amazonas” In: Amazônica – Revista de Antropologia. (Online) vol. 5, no. 2: p. 502-519, 2013.


SILVA, Elissandra Barros da. “Sobre aquela ponte existe um mundo: Ivaynti e os Arukwayene no Urucauá” In: Amazônica – Revista de Antropologia. (Online) vol. 8, no. 2: p. 568-608, 2016.


Recebido em: 16 de agosto de 2018. Aprovado em: 29 de setembro de 2018. Publicado em: 22 de novembro de 2018.

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PRÁXIS PRODUTIVA, METAMORFOSES NO MUNDO DO TRABALHO E PROCESSO DE CONSTITUIÇÃO DE IDENTIDADE ENTRE TRABALHADORES NA AMAZÔNIA PARAENSE¹


Raimundo Nonato Gaia Correa2 Doriedson do Socorro Rodrigues3 Ronaldo Marcos de Lima Araújo4


Resumo

O texto objetiva responder como ocorre a relação entre práxis produtiva e processos de constituição de identidade de pescadores artesanais. Faz-se uso de revisões bibliográficas e entrevista semiestruturada e os dados foram analisados à luz do Materialismo Histórico-Dialético. Após os impactos ambientais da UHE-Tucuruí os pescadores dedicam-se ao manejo do açaí e dos recursos pesqueiros. A venda do açaí para exportação facilita a inserção do capital em sua práxis produtiva, mas gestão coletiva e repartição igualitária do pescado nos Acordos de Pesca corrobora para a constituição de sua identidade numa perspectiva contra hegemônica.

Palavras-chave: Práxis produtiva; contradições entre capital e trabalho; pescadores artesanais; identidade.


PRODUCTIVE PRAXIS, METAMORPHOSES IN THE WORLD OF LABOR AND PROCESS OF CONSTITUTION OF IDENTITY AMONG WORKERS IN THE PARAENSE AMAZON


Abstract

The text aims to answer how the relationship between productive praxis and processes of identity formation of artisanal fishers occurs. It was used bibliographical reviews and semi-structured interviews and the data were analyzed in the light of Historical-Dialectical Materialism. After the environmental impacts of UHE-Tucuruí fishermen dedicate themselves to the management of açai and the fishing resources. The sale of açai for export facilitates the insertion of capital into its productive praxis, but collective management and equal distribution of fish in the Fisheries Agreements corroborates for the constitution of its identity in a counter-hegemonic perspective.

Keywords: Productive praxis; contradictions between capital and labor; artisanal fishermen; identity.


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1DOI: https://doi.org/10.22409/tn.16i31.p27385

2Mestre em Educação e Cultura (UFPA). Pesquisador do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Trabalho e Educação – GEPTE/UFPA. E-mail: r.nonatog@hotmail.com.

3Doutor em Educação. Docente do Programa de Pós-Graduação em Educação e Cultura (PPGEDUC/UFPA) e do Programa de Pós-Graduação em Currículo e Gestão da Escola Básica (PPEB/UFPA). Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Trabalho e Educação – GEPTE/UFPA. E-mail: doriedson@ufpa.br

4Doutor em Educação. Docente do Programa de Pós-Graduação em Currículo e Gestão da Escola Básica (PPEB/UFPA). Coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Trabalho e Educação – GEPTE/UFPA.E-mail:rlima@ufpa.br.


Introdução


O artigo expõe parte dos resultados de pesquisa e versa sobre a relação entre práxis produtiva e processos de constituição de identidade entre pescadores artesanais da Amazônia Paraense, adotando como lócus de pesquisa a Colônia Z-

16. Essa entidade tem sede localizada na cidade de Cametá, Estado do Pará, mas se faz presente em quase todas as comunidades ribeirinhas do município, uma vez que conta com 91 coordenações de base e um total de 15.087 pescadores/as associados/as4.

Numa breve revisão de literatura, observamos alguns estudos de pesquisadores ligados ao Campus da UFPA de Cametá, sobretudo do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Trabalho e Educação da Universidade Federal do Pará, que vêm dando ênfase à relação entre trabalho e educação no contexto da organização dos pescadores artesanais de Cametá5.

Rodrigues (2012) analisou a relação entre os saberes sociais e a materialidade de luta de classes experienciada pelos pescadores artesanais da Colônia Z-16 frente aos interesses antagônicos do capital, personificado na região por meio da UHE-Tucuruí e das elites econômico-políticas.

Martins (2017) constatou que os pescadores da Z-16 materializam relações de produção-formação e, integradamente, constituem uma práxis política que se contrapõe à lógica da classe dominante. Em outro momento, Martins (2011) havia analisado a relação entre o saber produzido pelo trabalho dos pescadores artesanais e a participação política desses sujeitos no contexto social de seus movimentos.

Barra (2013) analisou os Acordos de Pesca enquanto formas estratégicas para a gestão dos recursos pesqueiros e como mecanismo capaz de fomentar a organização coletiva entre os pescadores artesanais. Adenil Rodrigues (2016)


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4 Fundada na década de 1920, esta entidade só recentemente (início dos anos 1990) passou a ser conduzida por gestores que se constituem pescadores artesanais, uma vez que desde sua fundação “[...] não estava sob a gestão dos pescadores, mas sim sob os auspícios de sujeitos não pescadores ligados aos interesses das oligarquias locais [...]” (RODRIGUES, 2012, p. 257).

5 O município de Cametá, segundo o IBGE (2010), pertence à mesorregião do nordeste paraense e à microrregião Cametá, apresenta uma área correspondente a 3.122 km². Limita-se ao norte com o município de Limoeiro do Ajuru; ao sul, com o de Mocajuba; a leste, com o de Igarapé-Miri; e a oeste, com o de Oeiras do Pará. Trata-se de um município com contingente rural maior do que o urbano.

problematizou se os jovens pescadores egressos de um curso técnico de aquicultura utilizam os conhecimentos adquiridos em correlação com os saberes produzidos e aprendidos no cotidiano da pesca como elementos de formação da identidade pescadora.

Pompeu (2017) analisou a organização coletiva dos pescadores artesanais como mecanismo de enfrentamento aos impactos da UHE-Tucuruí, mas também observou um distanciamento do trabalho da pesca de uma perspectiva de produção de valores de uso. E Furtado (2017) concluiu que as práticas e saberes das mulheres pescadoras ainda se limitam ao espaço dos afazeres domésticos em detrimento da participação política em organizações de classe.

Em termos metodológicos este estudo pauta-se em revisões bibliográficas e pesquisa de campo. Os dados empíricos foram coletados por meio de entrevista semiestruturada6 (PÁDUA, 2012) e as análises foram estruturadas a partir da dialética singular-particular-universal de Lukács (1978), entendendo-se que os fenômenos sociais não se limitam à expressão imediata e factual, mas vinculam-se, por uma série de mediações, às leis gerais que condicionam o funcionamento da sociedade capitalista como uma totalidade (KOSIK, 1976).

O texto apresenta três seções. Numa primeira, analisa-se o processo de constituição do ser social pescador artesanal em meio as relações que estruturam sua práxis produtiva, no âmbito da qual se constitui a identidade dessa fração de classe, desde um ponto de vista ontológico.

Na segunda seção discute-se a mediação exercida pelo capital na dinâmica de produção da existência dos pescadores artesanais, em particular o projeto de desenvolvimento capitalista para a Amazônia Paraense que tem como objetivo utilizar o potencial hídrico do rio Tocantins7 para produção de energia elétrica, donde se observou consequências negativas para a pesca artesanal, impactos ambientais decorrentes da construção da Hidrelétrica e a precarização das condições de trabalho e de vida dos pescadores.


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6 Os pescadores entrevistados serão nomeados de maneira fictícia para preservar suas identidades, conforme fizemos na dissertação de mestrado. Aparecerão no corpo do texto como: Pescador P1; P2; P3; P4; P5; P6; e P7.

7 Segundo o IBGE (2018), “o Rio Tocantins, que atravessa os estados de Goiás, Tocantins, Pará e Maranhão, tem uma área de 803.200 quilômetros quadrados, sua extensão de 2.416 quilômetros. É muito utilizado para navegação fluvial. Nele estão instaladas grandes usinas hidrelétricas, sendo a principal a Usina Hidrelétrica de Tucuruí.

Na terceira seção debate-se as alternativas produtivas criadas pelos pescadores artesanais e seus desdobramentos para o processo de constituição identitária desses sujeitos – processo esse que vem sofrendo a interferência do antagonismo entre capital e trabalho e, por conseguinte, a identidade que daí resulta caracteriza-se como uma unidade de contrários. Em seguida apresentamos as considerações finais.


Práxis produtiva e constituição da identidade do ser social pescador artesanal


Partindo do Materialismo Histórico Dialético (LUKÁCS, 2013), entende-se que é por meio do trabalho8 que o homem estabelece com a natureza uma relação consciente, na medida em que todos os atos do primeiro dirigidos para a transformação da segunda são orientados por fins conscientemente prefigurados.

Lukács (2013), ao colocar o trabalho como fundamento ontológico de constituição do homem, caracteriza esta atividade especificamente humana como pôr teleológico, no sentido de que não se trata de uma tomada de consciência à posteriori de um ato prático que ocorre à revelia das faculdades mentais, mas de um ato que implica o pensar (o projetar) com o agir, em uma palavra, uma ação na qual imbricam-se a atividade intelectual e a atividade material.


Pôr, nesse contexto, não significa, portanto, um mero elevar-à- consciência, como acontece com outras categorias e especialmente com a causalidade; ao contrário, aqui, com o ato de pôr, a consciência dá início a um processo real, exatamente o processo teleológico. Assim, o pôr tem, nesse caso, um caráter irrevogavelmente ontológico (LUKÁCS, 2013, p. 48).


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8 Neste artigo, a partir de Vázquez (2011), entende-se práxis produtiva e produção da vida material como sinônimos, e que dizem respeito à forma de objetivação humana, por meio do trabalho, levada a efeito para produzir valores de uso. Em termo de práxis produtiva, partimos da compreensão de Vázquez (2011) que a compreende como “[...] a atividade prática produtiva, ou relação material e transformadora que o homem estabelece – mediante seu trabalho – com a natureza. Graças ao trabalho, o homem vence a resistência das matérias e forças naturais e cria um mundo de objetos úteis que satisfazem determinadas necessidades” (VÁZQUEZ, 2011, p. 228). Nessa perspectiva teórica, a práxis produtiva se materializa por meio da relação que o homem estabelece com a natureza no processo de transformação dos recursos naturais nos bens úteis que satisfazem suas necessidades de alimentação, abrigo, locomoção, etc.

Pode-se dizer que o ser humano singular, como ser natural, para se reproduzir como homem, tem de produzir sua própria existência, processo que é mais bem caracterizada como um salto do que como evolução. Segundo Marx (2013, p. 255), ao colocar em movimento seus braços, pernas, cabeça e mãos, “[...] agindo sobre a natureza externa e modificando-a por meio desse movimento, ele [homem] modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza”.

Assim, autoprodução do ser social só é possível na medida em que os homens singulares entram em determinadas relações de produção uns com os outros. Dessa forma, o trabalho é o elemento mediador que está na base da constituição concomitante do homem singular e da sociedade, de modo que a relação indivíduo-sociedade é uma relação de autodeterminação.

Com isso, é possível dizer que a partir do momento em que estabelecem relações entre si, quando produzem a sociedade e a si mesmos, os homens deixam se ser meras singularidades (como membros naturais de uma espécie que viria a ser espécie humana) para se autoproduzirem como individualidades (seres humanos que atuam conscientemente em sociedade).


O modo de manifestação, o órgão dessa nova forma de reprodução dos seres humanos tornada social é seu modo de ser como individualidades. A singularidade meramente natural (biológica) do homem singular correspondia ao estágio da reprodução biológica espontânea, superado, em princípio, pelo trabalho (LUKÁCS, 2010, p. 89-90).


Em síntese, pode-se dizer que a formação ontológica do ser social obedece à dialética singularidade-particularidade-universalidade, conforme sumaria Lukács (1978, p. 93), apoiado em Marx:


Deve-se evitar, sobretudo, fixar a “sociedade” como uma abstração em face do indivíduo. O indivíduo é ente social. A sua manifestação de vida – mesmo que não apareça na forma direta de uma manifestação de vida comum, realizada ao mesmo tempo com outros

– é, portanto, uma manifestação de uma afirmação de vida social. A vida individual e a vida genérica do homem não são distintas, ainda que – necessariamente – o modo de existência da vida individual seja um modo mais particular ou mais geral da vida individual.

Nestes termos, a formação do ser social ocorre no processo de produção dos bens materiais indispensáveis à sobrevivência humana (universalidade). Essa autoprodução humana efetiva-se por meio do trabalho de indivíduos humanos singulares (singularidade) produzindo suas existências sob relações de produção, distribuição, troca e consumo que particularizam um determinado contexto histórico e social (particularidade). Esse processo é descrito por Marx (2011) como relação geral entre produção, distribuição, troca e consumo.


A produção cria os objetos correspondentes às necessidades; a distribuição os reparte segundo leis sociais; a troca reparte outra vez o já repartido, segundo a necessidade singular; finalmente, no consumo, o produto sai desse movimento social, devém diretamente objeto e serviçal da necessidade singular e a satisfaz no desfrute (MARX, 2011, p. 44).


Sob a compreensão de que a constituição do ser social ocorre em concomitância com o processo de transformação da natureza pelo ser humano, busca-se analisar a relação entre práxis produtiva e processos de constituição da identidade dos pescadores artesanais da Colônia Z-16.

Consideramos que, em termos empíricos, a pesquisa realizada no contexto da Colônia Z-16 nos permite inferir que o pescador artesanal se autoproduz como individualidade por meio das relações constitutivas do mundo do trabalho. Segundo Lukács (2010), o homem, como um mero ser biológico (singularidade natural), só se torna um ser propriamente humano (individualidade) quando estabelece relações com outros homens (sociedade) por meio da práxis produtiva.

Conforme depoimentos dos sujeitos entrevistados, verifica-se que a singularidade se constitui como individualidade pescador artesanal, ao logo da história, na mediação da atividade produtiva da pesca compartilhada socialmente entre as gerações de pescadores artesanais. “Eu comecei na pesca com o meu pai, de piloto9, aí depois já passei para ir jogando rede, daí ficou a rede pra mim, depois meu pai ‘foi embora’10 e vendemos a rede. Depois, e eu já comprei a minha” (PESCADOR P3).


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9 O piloto é aquele que conduz as embarcações de pesca (ou cascos de rede), geralmente à remo.

10 Alusão ao falecimento.

O trabalho da pesca é transmitido de geração para geração no próprio ato de pescar e, assim, novos pescadores artesanais vão se (auto) produzindo, perpetuando a atividade pesqueira artesanal, conforme esclarece a fala do entrevistado a seguir: “os meus filhos eu levo comigo para pescar desde criança. Vão logo aprendendo. Todos sabem pescar” (PESCADOR P3).

Como a constituição do homem é um processo social, compreende-se que a formação social do pescador artesanal é mediada por essas relações de aprendizado das atividades produtivas. Vygotsky (2007) postulava que a constituição do pensamento, da ação e da consciência acontece nas relações concretas da vida social, no estágio em que o aspecto cultural, socialmente construído, sobrepõe-se ao aspecto biológico da criança em formação. Esse processo é puramente social, na medida em que os atos que medeiam a relação da criança com o meio são interpretados e acrescidos de significados pelos adultos que a cercam. Assim, [...] “o caminho do objeto até a criança e desta até o objeto passa através de outra pessoa” (VYGOTSKY, 2007, p. 20).

Mas os dados nos mostram que não só na pesca pode ser visualizada a formação social do pescador artesanal. No trabalho agrícola com o açaí11, também a mediação do adulto é fundamental para que a criança possa aprender um dos ofícios que está na base de seu processo de socialização:


Eu tenho é dois pedacinhos de terra que é da minha família, porque é dos 4 filhos que eu tenho. Lá que a gente mora, é pra onde eu levo as crianças pra gente apanhar o açaí, ir limpando, cuidando das coisas, , de lá a gente tira açaí pra beber, pra vender e ir arrumando uma comidinha pra se comer e ir vivendo, (PESCADOR P2).


Nessa perspectiva, pode-se dizer que a formação social do pescador artesanal, de acordo com os dados empíricos e dos postulados Vygotskyanos, é mediada pelas relações de aprendizagem que as crianças estabelecem com os


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11 O açaizeiro (Euterpe oleracea Mart.) é nativo da Amazônia brasileira e o estado do Pará é o principal centro de dispersão natural dessa palmácea. O açaizeiro se destaca, entre os diversos recursos vegetais, pela sua abundância e por produzir importante alimento para as populações locais. Dos frutos do açaizeiro são extraídos o vinho e a polpa. O açaí é habitualmente consumido com farinha de mandioca, associado ao peixe, camarão ou carne, sendo o alimento básico para as populações de origem ribeirinha. Com o açaí são fabricados sorvetes, licores, doces, néctares e geleias, podendo ser aproveitado, também, para a extração de corantes e antocianina (NOGUEIRA, 2005, pp. 11-12).

pescadores adultos. A práxis produtiva revela-se como um tempo-espaço de ensino- aprendizagem por excelência, e por meio do qual as crianças, ao serem inseridas no exercício das atividades produtivas, vão se autoproduzindo como seres sociais pescadores artesanais.

Nessa perspectiva, observa-se que o processo de formação do ser social pescador artesanal está na base da constituição de sua identidade12. Trata-se de um processo intrinsecamente relacionado ao mundo do trabalho, pois a formação do pescador artesanal individual se dá em meio às relações de interação entre muitos outros pescadores em um processo mediado pelo trabalho. A identidade dos pescadores artesanais, portanto, é uma identidade socializada.

Sob esta perspectiva, pode-se dizer que não existe pescador artesanal individual fora das relações sociais que permeiam o exercício das suas práxis produtivas. Estas relações formam o pescador artesanal como um sujeito coletivo, isto é, uma categoria de trabalhadores. A fala desse entrevistado corrobora essa tesa: “na verdade, eu pesco há muitos tempos atrás, eu acho que desde o começo das atividades a gente é relacionado à pesca” (PESCADOR P7).

A partir disso, cunhados em Dubar (2005), também se pleiteia que o processo de constituição da identidade do ser social pescador artesanal da Colônia Z-16 é resultado de um processo que é, ao mesmo tempo, “individual e coletivo, subjetivo e objetivo, biográfico e estrutural” (p. 136). Noutros termos, a constituição da identidade dos pescadores artesanais sob investigação é um processo mediado pelo trabalho e, por isso, inseparável das relações travadas entre si e com a natureza no interior de sua práxis produtiva.


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12 Para Dubar (2005) a identidade é constituída socialmente mediante a utilização de formas de identificação socialmente válidas para atribuir identidades, tanto a si mesmos quanto aos outros. Entendemos que as identidades dos sujeitos sociais (individuais e/ou coletivos) são resultantes, tanto de processos de atribuição por outrem, como de processos de autoidentificação. Por isso, sua definição do que seja identidade leva em consideração aspectos objetivos (meio) e subjetivos (homem): “Desse ponto de vista, a identidade nada mais é que o resultado a um só tempo estável e provisório, individual e coletivo, subjetivo e objetivo, biográfico e estrutural, dos diversos processos de socialização que, conjuntamente, constroem os indivíduos e constroem as instituições (DUBAR, 2005, p. 136).

O projeto capitalista na Amazônia paraense e metamorfoses na práxis

produtiva dos pescadores artesanais


Entre os anos de 1976 e 1984 foi construída a Usina Hidrelétrica de Tucuruí (UHE-Tucuruí), no rio Tocantins, Estado do Pará13. Esta grande obra foi criada “[...] para atender às demandas de grandes projetos industriais que se instalavam na região Norte, como o Complexo Industrial do Alumínio, em Vila do Conde, e a ALBRÁS e ALUNORTE14, em Barcarena-PA” (RODRIGUES, 2012, p. 219).

A despeito do objetivo principal da obra e de suas reais consequências, o Estado disseminou um discurso de desenvolvimento regional e, particularmente no contexto do Baixo Tocantins15, tal discurso pregava a criação de melhores oportunidades sociais, tais como a geração de emprego e renda e o acesso à energia elétrica pela população local. Assim,


[...] junto às camadas populares da região construía-se o saber de que sua implantação [UHE-Tucuruí] traria o desenvolvimento, implicando melhorias nas áreas da educação, da saúde, da geração de emprego e renda, principalmente para os ribeirinhos (RODRIGUES, 2012, p. 219).


Terminadas as obras, no entanto, os habitantes da Região, sobretudo a população ribeirinha, passou a conviver com os impactos ambientais: “mudanças na qualidade da água, perda do ‘controle’ da maré devido à alteração do regime do rio, estrangulamento das atividades de pesca e do extrativismo” (SILVA, 2003, p. 02).

Esses impactos, naquele contexto (início da década de 1980), ameaçavam a própria continuidade da sobrevivência dos ribeirinhos nas suas comunidades nativas

– sobretudo dos pescadores artesanais, cujo sustento depende historicamente da oferta natural de pescado pelo rio Tocantins. A pesca artesanal, então, entra em um


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13 A construção da UHE-Tucuruí integra-se ao plano de desenvolvimento da Amazônia deflagrado pelo Regime Militar que governou o Brasil entre os anos de 1964 e 1985 (RODRIGUES, 2012). Pretendia-se colocar em prática grandes projetos de exploração de riquezas naturais da Amazônia para dá continuidade às políticas de modernização e enriquecimento do país.

14 O complexo industrial Albrás/Alunorte localiza-se em Vila do Conde, município de Barcarena, nas proximidades de Belém do Pará. A Alunorte - Alumínio do Norte processa a bauxita para a produção de alumina. A Albrás - Alumínio do Brasil transforma a alumina em alumínio.

15 A Região do Baixo Tocantins engloba sete municípios: Abaetetuba, Igarapé Miri, Limoeiro do Ajuru, Cametá, Mocajuba, Baião e Oeiras do Pará. Em seu interior está a microrregião de Cametá que é formada pelos municípios de Baião, Cametá, Limoeiro do Ajuru, Mocajuba e Oeiras do Pará. (IBGE, 2010).

período de decadência pela diminuição vertiginosa da oferta natural de pescado, tanto em Cametá como em toda a região do Baixo Tocantins, situação que se mantém até a atualidade, conforme relato do entrevistado a seguir.

Agora por último o matapi não dando, é só com malhadeira, isso também não está dando lá essas coisas. Bom, dum certo tempo pra cá, de uns dez anos depois que veio o fechamento da Barragem, ainda se via um peixinho, mas agora tem vez que você sai pro rio, você não arranja pra comer (PESCADOR P2).


De acordo com Silva (2003), essa constatação empírica dos pescadores vem sendo comprovada cientificamente por meio de pesquisas que demonstram uma queda considerável do volume de peixe capturado à jusante16 da Barragem. Conforme destaca a autora, “os dados sobre as capturas das pescarias comerciais mostram que, se em 1981 a produção pesqueira atingiu 900t/ano, em 1998, a produção caiu para 492 t/ano, uma queda relativa de aproximadamente 54,3%” (SILVA, 2003, p. 13-14).

As entrevistas realizadas nos mostram que os rios cametaenses sempre foram abundantes em termo de reprodução de pescado de variadas espécies, sendo que os pescadores tinham à sua disposição esse ambiente farto para, a qualquer momento, ir até ele e capturar sua alimentação.


Olha, quando nós era criança ainda, uns 14, 15 anos, aqui era peixe e camarão que você não vencia. Camarão, chegava a zoar na beira do aningal17, a gente ia lá, tinha uma rede de fio aqui que a gente comprava no Abaeté e a gente tinha uma. Aí nós ia, chegava na touceira da aningueira e cercava. E agora a gente passava pra dentro, nós vinha tocando, tocando e quando suspendia a rede vinha o camarão, vinha pescada, vinha tucunaré, o jacundá, vinha tudo lá no meio (PESCADOR P4).


16 Tudo o que está abaixo de ponto de referência, ao longo do curso do rio até à foz, diz-se que se situa "a jusante" (águas abaixo), enquanto tudo que se situa acima, diz-se que se situa "a montante" do mesmo ponto. De acordo com Silva (2003), o barramento do rio Tocantins configurou duas realidades distintas: a área situada a montante da barragem apresentou um aumento da produção pesqueira, ao passo que à jusante, a realidade é essa que estamos discutindo, qual seja a diminuição do pescado. Em relação à UHE-Tucuruí, na área à jusante inclui-se dinâmicas ribeirinhas pertencentes a municípios como Cametá, Baião e Mocajuba.

17Aningal é a paisagem característica das margens dos rios do município de Cametá, cuja incidência da aningueira é alta. Trata-se de uma planta adaptada às condições de alagamento da terra onde se encontra e, por isso, mesmo é comum sua presenta nas paisagens das praias e pequenas ilhas fluviais.

Em acordo com Rodrigues (2012), compreende-se a UHE-Tucuruí como legítimo representante do projeto capitalista na região do Baixo Tocantins não só por assegurar a alimentação, com energia elétrica, da infraestrutura necessária à ampliação da acumulação de capital, mas também por promover a desarticulação de um modo de produção da existência humana que não se enquadrava historicamente no circuito de produção e acumulação de capital. O trabalho da pesca constituía, em termos marxianos, um elemento de identificação dos pescadores como produtores independentes, “[...] que exercem seus trabalhos artesanais ou cultivam a terra de modo tradicional” (MARX, 2013, p. 579), isto é, que produzem de forma não subordinada diretamente patrão.

Num contexto natural de abundância de pescado na região, conforme depoimento do entrevistado Pescador P4, a pesca se efetivava da seguinte maneira: “a gente tapava o igarapé e aí a gente só tirava o peixe graudão para gente comer, porque a gente não tinha pra quem vender”.

Em primeiro lugar, vê-se a constituição de um elemento de identificação pautado no mutualismo18 entre homem e natureza, pois a abundância permitia que os pescadores artesanais operassem uma pesca que não ameaçava a continuidade da reprodução das espécies, na medida em que era possível selecionar o tamanho do pescado capturado.

Em segundo lugar, daquela abundância de pescado decorria uma atividade pesqueira voltada para a satisfação das necessidades de alimentação do pescador, isto é, tratava-se de uma produção de valores de uso, na perspectiva posta por Lukács (2013), para o qual “[...] o valor de uso nada mais designa que um produto do trabalho que o homem pode usar de maneira útil para a reprodução de sua existência” (p. 44).

Para o capitalismo, essa forma de produção e sociabilidade é vista como mais um obstáculo que deve ser superado em nome do progresso, leia-se: expansão do capital. Nas palavras de Foster (2011, p. 90), “para manter sua riqueza sob esse sistema, o capitalista deve continuar a busca para estendê-la”, sendo assim,


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18 Para categorizar esse elemento de identidade resultante da relação pescador-rio, a qual estamos chamando de elemento de identidade pautado no mutualismo, esse último termo é por nós tomado emprestado da biologia, onde designa “relações ecológicas interespecíficas, que resultam em benefício para todos os organismos participantes” (ELIAS, et. al., 2007, p. 253).

prossegue o autor, se “recusa em aceitar qualquer barreira absoluta para seu avanço, que [são] tratadas como meras barreiras a serem superadas”.

O que se observa, ao analisar esse processo de desestruturação da pesca na Região, é o adentramento da lógica de reprodução sociometabólica do capital nessa região da Amazônia Paraense. Num breve exame histórico, observamos a similitude desse processo à expropriação das terras dos camponeses europeus em benefício do estabelecimento do agronegócio, num contexto de transição do modo de produção feudal para o capitalista.


[...] os produtores camponeses, especificamente na Inglaterra, foram expropriados, criando, de um lado, uma classe de fazendeiros arrendatários capitalistas sujeitos aos imperativos do mercado e, de outro, um proletariado de trabalhadores agrícolas obrigados a vender sua força de trabalho em troca de salário (WOOD, 2011 p. 133).


Naquele contexto temporal destacado por Wood (2011), tratava-se da expulsão do camponês de suas terras, onde produziam a subsistência, em função do estabelecimento do agronegócio. Já no contexto de construção da Barragem de Tucuruí, trata-se da expulsão do pescador ribeirinho de seu ambiente natural e histórico de produção da existência em proveito da utilização da natureza (água) para produção de energia elétrica conforme interesse do capital. Em ambos os casos a vida e a forma de sociabilidade dos habitantes nativos são colocados em segundo plano perante a demanda do capital pelos seus recursos naturais.

Verificou-se que os interesses do capital se tornaram incompatíveis com uma perspectiva de sociabilidade que coloca os seres humanos em primeiro lugar, pois a vida em sociedade, sob o capitalismo, é regida pelas necessidades de reprodução constante do capital, ainda que para isso seja necessário promover a precarização das condições de vida e trabalho dos seres humanos, como é o caso ao qual estão sujeitados os pescadores artesanais da Z-16.

Com apenas uma investida (construção da UHE-Tucuruí) o capital consegue um duplo objetivo: as condições infraestruturais para exploração produtiva dos recursos minerais da Amazônia e a penetração de relações mercantis na dinâmica social de uma população que vivia sob relações de produção diversa da forma capitalista de produção e distribuição da riqueza.

Ressignificação da práxis produtiva e seus desdobramentos para o processo de constituição da identidade do ser social pescador artesanal


Com os impactos ambientais decorrentes da construção da UHE-Tucuruí, os pescadores precisaram objetivar alternativas produtivas à pesca extrativista. Assim, o manejo de açaizais transforma-se em uma das principais atividades produtivas do pescador artesanal nesse novo contexto.

A coleta do fruto de açaí integra historicamente a práxis produtiva dos pescadores artesanais que têm no vinho desse fruto, no pescado e na farinha de mandioca a base cultural de alimentação (SILVA, 2003). Até o estabelecimento do quadro ambiental de escassez de pescado na região, contudo, a coleta do açaí era uma atividade de caráter extrativista, pois o açaizeiro é uma palmeira nativa dessa região da Amazônia e, assim, produz naturalmente com facilidade o fruto.

A diminuição da produção da pesca artesanal e a necessidade de se comprar os bens necessários a sobrevivência do pescador fez com que a produção do açaí passasse a se destinar para a comercialização: “este produto tem experimentado nos últimos anos uma grande expansão/aceitação no mercado externo regional, nacional e global” (CORRÊA, 2016, p. 01).

Nesse sentido, destaca-se a fala do entrevistado Pescador P7: “não vou dizer que a gente se sustenta só da pesca que não sustenta, mas uma parte do tempo é sim. O outro trabalho que a gente faz é o açaí tempo da safra que é o que ajuda a gente”.

Nesse cenário, observa-se a constituição de um elemento neoextrativista de identidade, pois a diminuição de pescado na região acarretou que a produção do açaí como coleta de recursos naturais tivesse que ceder lugar ao manejo dos açaizais, dada a necessidade de se aumentar a produtividade.


[...] o extrativismo apenas como coleta dos recursos naturais vem deixando de ocorrer no caso do açaí na região estudada. Pode-se ainda utilizar os termos neoextrativismo ou agroextrativismo para definir esse momento de transformação, onde se pratica o cultivo e não apenas se extrai os recursos da natureza (CORRÊA, 2016, p. 07).

A prática do manejo decorrente dessa exigência de intensificação da produção do açaí como valor de troca é descrita nos relatos do entrevistado Pescador P4: “mês de novembro em dei por terminado o açaí do nosso terreno pra fazer o manejo numas árvores que estavam muito altas”.

Nesse contexto, ocorre a produção de saberes do trabalho19 de manejo pelos pescadores artesanais, cuja identidade se metamorfoseia após a construção da Barragem de Tucuruí com a emergência de um elemento de identidade que permite reconhecer o pescador artesanal como pescador-lavrador20.


Passamos a um novo momento onde os açaizais passam a ser manejados, onde ocorre os desbastes das touceiras, a retirada de árvores improdutivas, deixando de 3 a 5 estipes em cada touceira, além da retira de outras árvores de menor valor comercial, raleando a vegetação, para o controle de luz no açaizal (CORRÊA, 2016, p. 07).


Em termo de comercialização, a pesquisa constatou que, além da venda nas feiras municipais da Região, a produção do açaí destina-se atualmente à exportação, quando da compra do açaí por Agroindústrias, conforme corrobora o depoimento do entrevistado Pescador P2: “agora tem umas firmas que comprando, que leva aí pra fora, mas nós vende aí na cidade de Cametá, Mocajuba, Baião. Mas tem o comprador específico que vai comprar de nós lá no porto”.

A venda do açaí para exportação, a nosso ver, facilita a penetração da lógica mercantil do sistema capitalista na vida do pescador artesanal da Z-16. Esse processo constitui-se em um dos exemplos mais categóricos que ajudam a explicar a intensificação da metamorfose da identidade desses pescadores: negam-se os elementos de identidade que caracterizam os pescadores como produtores independentes, para afirmar-se outros elementos identitários próprios do modo de produção capitalista – como a troca de mercadorias – e, assim, intensificar o processo de proletarização da identidade dos pescadores artesanais.


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19 Em acordo com Franzoi & Fischer (2015, p. 148), “entendemos saberes do trabalho como aqueles produzidos, mobilizados e modificados em situação de trabalho”.

20 Pescador-lavador é quem detém os saberes da pesca e do trabalho agrícola e exerce ambas as atividades concomitantemente. No caso dos pescadores artesanais da Colônia Z-16, a identificação como pescador-lavrador, é uma metamorfose da identidade do pescador artesanal imposta pela construção da hidrelétrica de Tucuruí.

A comercialização do açaí revela-se como uma estratégia do capital para inserção do pescador artesanal do seu ciclo produtivo de expansão. A produção de açaí, nesse aspecto, transforma-se em produção capitalista, ainda que, à primeira vista, esse caráter capitalista não se expresse substancialmente devido apresentar- se em imbricação com a economia familiar. Sobre esse fenômeno, Marx (2013) argumenta que “[...] certas formas híbridas [de produção capitalista] são reproduzidas aqui e ali na retaguarda da grande indústria, mesmo que com uma fisionomia completamente alterada” (p. 579).

Do ponto de vista do pescador, a produção do açaí termina ao vender para o atravessador. Na aparência, trata-se de uma produção de subsistência, mas do ponto de vista do capital trata-se de uma produção de mercadorias.


[...] ele quer produzir valor de uso que tenha valor de troca, isto é, um artigo destinado à venda, uma mercadoria. Em segundo lugar, quer produzir uma mercadoria cujo valor seja maior que a soma do valor das mercadorias requeridas para sua produção, os meios de produção e a força de trabalho, para cuja compra ele adiantou seu dinheiro no mercado. Ele quer produzir não só um valor de uso, mas uma mercadoria; não só valor de uso, mas valor, e não só valor, mas também mais-valor (MARX, 2013, p. 263).


Nesses moldes de produção de mercadorias, a produção de açaí opera a subsunção formal do trabalho do pescador artesanal ao capital. Quer dizer, apesar de ser o capital quem lucra com essa produção, é o pescador artesanal quem detém os conhecimentos, as técnicas e o ritmo da produção do açaí. Trata-se de uma subsunção do trabalho nos moldes em que ocorria nas oficinas do estágio inicial do capitalismo, nas quais o capital investido era de um capitalista, mas as técnicas e todo o processo de produção de mercadorias estava sob controle dos trabalhadores.


Essas primeiras oficinas eram simplesmente aglomerações de pequenas unidades de produção, refletindo pouca mudança quanto aos métodos tradicionais, de modo que o trabalho permanecia sob imediato controle dos produtores, nos quais estavam encarnados o conhecimento tradicional e as perícias de seus ofícios (BRAVERMAN, 1974, p. 61).


Ademais, esse processo de comercialização do açaí constitui um elemento de identificação que imprime um caráter fetichizado à identidade dos pescadores

artesanais da Colônia Z-16, na medida em que a relação de troca que se estabelece entre pescador artesanal e as agroindústrias não se apresentam como uma relação entre produtores de mercadorias, mas entre as próprias mercadorias, ou seja, açaí- dinheiro.

Marx (2013), analisou esse processo como fetichismo das mercadorias, isto é, o fato de a mercadoria assumir, nas relações de troca, uma objetividade fantasmagórica com poder de trocar-se entre si e determinar a vontade humana. Nesse processo, as mercadorias se humanizam e os homens se coisificam.


A estes últimos, as relações sociais entre seus trabalhos privados aparecem como aquilo que elas são [na aparência], isto é, não como relações diretamente sociais entre pessoas em seus próprios trabalhos, mas como relações reificadas entre pessoas e relações sociais entre coisas (MARX, 2013, p. 148).


Tendo o capital a teleologia de reduzir ao máximo possível, por meio dos impactos da UHE-Tucuruí, a autonomia dos pescadores artesanais no que diz respeito à produção da existência, coloca a pesca extrativista em vias de desaparecimento e leva o pescador a intensificar a produção do açaí. No longo prazo, o objetivo do sistema do capital é “[...] a subsunção do produtor a um ramo exclusivo da produção, [e] a supressão da diversidade original de suas ocupações é um momento necessário do desenvolvimento” (MARX, 2013, p. 556).

No contexto dos pescadores artesanais o capital pretende que o açaí seja a única mercadoria que o pescador disponha para conseguir no mercado, por meio da sua venda, a sobrevivência. Então, será a mercadoria (açaí) quem se tornará o sujeito perante um homem-objeto (pescador), pois aquela tornar-se-á capaz de determinar a existência deste: se essa mercadoria tiver no mercado valor suficiente para conseguir para ser trocada pelos bens dos quais o pescador necessita para sobreviver, este sujeito terá uma vida razoável. Caso contrário, viverá em dificuldades.

Por outro lado, os pescadores artesanais não se mostram passivos a essa teleologia do capital, mas objetivam outras alternativas de modo a não se tornarem reféns da produção de uma mercadoria específica, tal como o açaí. É nessa perspectiva que destacamos a criação dos Acordos de Pesca, cujo objetivo principal

é reorganizar a atividade pesqueira artesanal sob uma lógica semelhante àquela aplicada na produção do açaí, isto é, de manejo dos recursos pesqueiros.


Se a gente não procura fazer esse tipo de Acordo de Pesca, aqui era um rio que você andava daqui pra boca não encontrava o peixe. Olha, até hoje em dia você pode olhar aqui, se descer um taleiro aí nesses poços tudo aí tem mapará. O peixe que mais dá aqui pra nós é o mapará. (PESCADOR P4).


Nas comunidades onde existem os Acordos, os relatos dos entrevistados atestam a ocorrência de um processo de recuperação da incidência de espécies pesqueiras, cuja reprodução nessa região foi quase que impossibilitada, dada as mudanças experimentadas pelo hábitat fluvial após o barramento do rio Tocantins.


Aí veio esse peixe e encheu de tudo quanto foi qualidade. Aí foi, foi, foi, e o pessoal gostavam que quando a gente pegava o peixe a gente repartia com tudo. E hoje ainda existe essa preservação, ela mais ou menos com uns 30 anos já que já existe (PESCADOR P4).


A criação dos Acordos de Pesca caminha junto a um processo de metamorfose da identidade dos pescadores artesanais: em períodos anteriores à construção da UHE-Tucuruí, do trabalho da pesca em um contexto de abundância, decorria uma perspectiva de identificação dos pescadores artesanais como sujeitos extrativista-coletores. Após os impactos dessa Barragem, contudo, a necessidade de manutenção da atividade pesqueira, que leva a criação dos Acordos de Pesca, está no fundamento do elemento de identificação neoextrativismo”, dada a nova configuração do trabalho da pesca artesanal, agora baseado no manejo dos recursos pesqueiros.

Os Acordos de Pesca expressam a luta de classes, entre interesses antagônicos de capital e trabalho, que passa a configurar o mundo do trabalho da pesca artesanal cametaense após a construção da Barragem. Por um lado, o capital nega a identidade coletiva, socializada, produzida nas relações constitutivas da práxis produtiva. Assim, interfere negativamente no ciclo de reprodução natural das espécies e impõe ao trabalhador da pesca um “esvaziamento de elementos que o constroem enquanto pescador, partícipe de coletivo de sujeitos que se identificam por ações similares no campo do trabalho” (RODRIGUES, 2012, p. 222). Por outro

lado, os pescadores antagonizam-se ao capital, construindo alternativas que garantam a continuidade da pesca como a práxis produtiva estruturante de sua identidade.

Contudo, os Acordos de Pesca não estão alheios à influência da lógica capitalista. Sendo a economia mercantil a forma hegemônica de estruturação das relações sociais no capitalismo, as formas alternativas de produção estão sujeitas à influência ideológica do capital. Sabe-se que


[...] a ideologia e as relações sociais de produção formam um todo dialético, ou seja, não estabelecem simples relação de complementaridade, mas uma união de contrários. Por mais elaborada, sofisticada ou eficiente que seja uma ideologia, ela é ainda uma representação mental de certo estágio das forças produtivas historicamente determinadas (IASI, 2011, p. 26).


Para empreendermos essa análise sobre a influência da lógica capitalista nos Acordos, primeiramente é preciso considerar que a captura em larga escala do pescado da área de preservação é realizada nos primeiros dias subsequentes ao término do período do defeso21. Essa captura é realizada pelas turmas de pesca sob acordo de repartição firmado entre o proprietário da rede de pesca e a comunidade. Cada uma das partes tem direito a metade do total de pescado capturado.


A nossa base aqui é o seguinte: 50% é dele [do dono da rede] 50% é nosso [da comunidade]. Se ele pegar 100 paneiros de mapará 50 é dele e 50 é nosso. Do dele ele faz o que ele quiser e o nosso é pra nós repartir com as famílias que tem e pronto, acabou. Porque a gente espera pra isso (PESCADOR P4).


Observe-se que existe uma divisão primária, em que a totalidade da captura é dividida em duas partes iguais entre a comunidade e a turma rede de pesca. Mas também há uma divisão secundária: a metade que coube à comunidade é dividida entre seus membros; a outra metade é dividida entre os membros da turma de pesca.


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21 Na região de Cametá, de acordo com Silva (2003), a reprodução da maioria das espécies ocorre na época da subida das águas (novembro e março), correspondendo, aproximadamente ao período chuvoso, denominado regionalmente de “inverno” e, por isso, o período de defeso se estende do início do mês de novembro de um ano até o final do mês de fevereiro do ano seguinte.

Nessa divisão secundária coexistem duas formas distintas de repartição da produção: uma primeira forma é baseada em critérios de divisão igualitária da produção, ou seja, a parcela de pescado que coube à comunidade é dividida igualitariamente entre seus membros; uma segunda forma é baseada em critérios desiguais de repartição.

Nessa segunda forma, trata-se da divisão da produção entre os donos das redes de pesca e os trabalhadores que constituem a mão-de-obra das turmas de pesca: “a gente pesca o mapará, tainha, dourado, apapá, esses peixes aí. Vamos dizer, se eu sair para o rio com uma rede dessas aqui e eu fazer cinco mil reais, eu divido no meio: eu tiro a metade pra rede e a metade eu dou para os trabalhadores” (PESCADOR P6).

Uma turma de pesca geralmente é constituída de 20 a 25 pescadores que realizam as várias funções necessárias à captura do pescado: os pilotos, o taleiro, o mergulhador, etc. Os 50% do total da captura que coube à turma de pesca não é subdividido igualmente entre os trabalhadores, pois a propriedade da rede permite ao dono se apropriar, sozinho, de metade do pescado que coube à turma. A outra metade dos 50% da captura que coube à turma é repartida entre os trabalhadores que, efetivamente, realizam a pesca. Quer dizer, o dono da rede fica com ¼ da produção total do Acordo, ao passo que a todos os trabalhadores da turma cabe também ¼ da totalidade do pescado capturado, mas esse ¼ deve ser repartido entre aqueles 20 a 25 pescadores.

Se isolarmos apenas a relação de produção e troca estabelecida entre o dono da rede e os pescadores trabalhadores da turma, é possível visualizar que se trata de relações estabelecidas sob a lógica do modo de produção capitalista. O dono da rede da rede exerce o papel do patrão (capitalista), dono dos meios de produção, ao passo que os pescadores que compõem a turma de pesca funcionam como trabalhadores assalariados, pagos com dinheiro ou parte da produção.

Essa forma de relação de produção revela-se como um elemento de identidade de consentimento ao capital e reitera o processo de proletarização da identidade do pescador artesanal ao disseminar na sociabilidade dos pescadores artesanais da Colônia Z-16 a lógica capitalista de relações sociais assentada na venda da capacidade de trabalho e na forma-mercadoria.

A ideologia mercantil naturaliza, em termos gramscianos, um senso comum, isto é, “formas aparentes de o homem entender a realidade, sem ainda perscrutar as bases materiais que a explicam em sua essência” (RODRIGUES, 2012, p. 228), que referendam a hegemonia da lógica de apropriação desigual da riqueza socialmente produzida.

Por outro lado, a divisão da parcela da produção que coube à comunidade sob Acordo obedece aos critérios de repartição igualitária da produção.


Mas até então o povo vem achando bom, por uma maneira que se você pegar 10 paneiros de mapará num Acordo desse, a gente tem que repartir por tudo, então tudo participa, é bom por isso. Então, se tocar 50 peixes toca pra mim, toca pra um que mora lá nas cabeceiras, sendo daqui do setor pra tudo toca. Então por isso que eu acho que vem dando certo (PESCADOR P4).


Trata-se de um processo de distribuição da riqueza social fora dos padrões capitalistas de produção socializada e apropriação privada da riqueza, com base nos critérios de propriedade que colocam a maior parcela da riqueza socialmente produzida nas mãos dos proprietários dos meios de produção. A repartição da produção dos Acordos entre a comunidade obedece aos critérios da propriedade social dos meios de produção e revela-se como um importante elemento de identidade com base no trabalho associado, ao contestar


[...] outras dimensões do sistema produtor de mercadorias e criam soluções para a desmercantilização. Isto pode ser visto nas tentativas de produção de valores de uso, com graus crescentes de controle social [...] [para] gerar trabalho e renda no local das habitações (NOVAES, 2013, p. 74).


Sabendo que “a distribuição os reparte [os produtos do trabalho] segundo leis sociais” (MARX, 2011, p. 44), os Acordos de Pesca constituem um elemento de identidade de negação-consentimento ao capital, pois ora assentam-se numa distribuição igualitária da riqueza, ora em parâmetros de distribuição orientados com base em relações de propriedade.

Ademais, o capital, por meio dos impactos da UHE-Tucuruí, impõe ao pescador em processo de reconfiguração de suas atividades produtivas, a

emergência de elementos identitários que imprimem um caráter contraditório à identidade desses sujeitos.


Ele [mapará] tem uma época que eu pego aqui com a minha rede. Agora o mapará ele já está de baixada, já indo. Ele vai até no Mandií, Maracapucu22, aí pra baixo e vai embora. Aí pra lá que tem os Acordos de Pesca. Aí tem tempo que nós vamos pra lá trabalhar com o cara que nos manda buscar. (PESCADOR P3).


Assim, há momentos em que, como dono de rede, o elemento de identificação “propriedade dos meios de produção” se sobressai no processo de constituição da identidade dos pescadores; noutros momentos, em decorrência da escassez de peixes nos rios que dificulta a produção de excedente, o elemento “produtor independente” se sobrepõe nesse processo de constituição da identidade: “na malhadeira eu levo meus filhos, mas quando é nessa rede aqui eu tenho que levar 10, 12 homens comigo que se não for esse tanto de homem não trabalha” (PESCADOR P6); há momentos, ainda, em que se observa a sobreposição do elemento de identidade “proletário da pesca” como forma de identificação desses pescadores, mais precisamente quando esses sujeitos se submetem aos trabalhos sob relações de assalariamento nas turmas de pesca.

Nas áreas sob Acordos o elemento de identidade produtor independente predomina na maior parte do tempo, pois para garantir a captura do próximo ano, o trabalho da pesca se volta para fins de subsistência.


Você tem o caniço, você tem a sua linha, você tem seu espinhel onde você põe num lugar onde você acha que vai puxar o dourado, o filhote, até uma arraia. Você bota lá. Você pega sua linha e pega o camarão, você vai procurar o poço, onde é que a pescada . Se ela tiver lá você puxa, você tem que puxar 4 ou 5 quilos de pescada. Então todo dia o pescador tem que tirar essa quantia de peixe, não é proibido, 5 quilos de peixe o pescador tem que tirar pra sustentar a família dele. (PESCADOR P5).


Essa forma de gestão dos recursos pesqueiros nos Acordos revela-se, em termos identitários, como um elemento de identidade pautado no trabalho associado e é uma experiência exemplar que imprime à identidade dos pescadores artesanais


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22 Comunidades ribeirinhas situadas na área situada ao norte do município de Cametá que vai em direção ao município de Limoeiro do Ajurú.

uma configuração de resistência à lógica mercantil da reprodução da existência, pois garante o auto sustento dos pescadores pela produção de valores de uso (pesca de subsistência). Para Novaes (2013), “o trabalho associado é um princípio educativo. Também nos permitem afirmar que estas lutas serão fundamentais para a desalienação do trabalho e ganham traços de lutas anticapital” (p. 76).

Nessa perspectiva, diz-se que os Acordos “cumprem um papel mais qualitativo do que quantitativo” (NOVAES, 2013), em termos de transformação social: por si sós não têm o poder de superar o capital, mas é um modelo de organização do trabalho que prova concretamente que é possível uma forma de produção emancipada das relações mercantilizadas. Nesse caso, os Acordos expressam-se como a reafirmação do homem à terra, aos elementos da natureza, à moradia, ao trabalho, à cultura, às relações interpessoais, ou seja, constitui elementos que concorrem para a reestruturação de sua identidade histórico-social alterada pelos impactos da construção da UHE-Tucuruí.

Essa forma de objetivação como resistência, também perpassa pela manutenção de formas de relações sociais que consubstanciam a constituição de elementos de identidade pautados na solidariedade e no companheirismo e que mantém viva uma cultura formada nas relações do trabalho da pesca num tempo em que o pescado ainda era abundante na Região.

Destaca-se, nessa perspectiva, a tradição de se separar parcela de cada captura para divisão entre os pescadores que acompanham os bloqueios dos cardumes: “naquele tempo, você fazia tapagem, não carecia de você comprar, você ia no beiço da tapagem, o dono da tapagem lhe dava pra você comer, tudo esses tipos de peixe: curimatá, mapará” (PESCADOR P2).

O pescado que o dono da tapagem distribuía para as pessoas no beiço da tapagem, em tempos de fartura, é o que os pescadores artesanais chamam de boia, pois se trata de uma quantia de pescado doada para a alimentação de outros pescadores. Essa tradição vem sendo alimentada no cotidiano do trabalho da pesca e resiste até os dias atuais: “ontem eu peguei 8 paneiros de mapará, aí como é já reserva , aí eu divido com a reserva, tirei um paneiro pra boia e resto eu mandei vender” (PESCADOR P3).

Por mais que o capital tente impor sua lógica de mercantilização das relações sociais na pesca, pois num quadro de escassez de pescado a tendência é

que a totalidade da produção seja destinada à venda, os pescadores artesanais resistem à coisificação as relações sociais e mantêm uma prática cultural que humaniza o trabalhador. “A gente faz o seguinte: se tocar os dez paneiros pra gente, a gente vende 8 e tira 2 pra distribuir como boia. É esse o sistema assim que eu trabalho” (PESCADOR P1).

A partir dessa práxis de resistência constituem-se dois elementos de identidade que recusam a identidade atribuída (DUBAR, 2005) pelo capital:

Um primeiro, que chamamos de elemento residual de identidade, devido sua constituição ter como base uma cultura residual (WILLIAMS, 2011) que expressa a resistência de uma forma de produção pré-capitalista (produtores independentes) em que o capital não conseguiu ainda se apoderar por completo.

Por “residual” quero dizer algumas que experiências, significados e valores que não podem ser verificados ou não podem ser expressos nos termos da cultura dominante são, todavia, vividos e praticados como resíduos – tanto culturais quanto sociais – de formações sociais anteriores (WILLIAMS, 2011, p. 56).


E um segundo, que surge em contrariedade ao capital, e que o chamamos de elemento emergente de identidade (WILLIAMS, 2011) pautado em novos significados e valores, novas práticas, novos sentidos e experiências [que vão] sendo continuamente criados” (p. 57). Tratam-se de experiências que comprovam empiricamente que outras formas de produção e distribuição da riqueza pautadas na solidariedade e no companheirismo, para além do capital, são possíveis.


Considerações


Com base nas reflexões empreendidas no texto, conclui-se que, no plano ontológico, a identidade de ser social pescador artesanal é constituída no seu processo de socialização mediada pelas relações de trabalho. No plano histórico- concreto, o processo de constituição de identidade entre os pescadores artesanais da Colônia Z-16 ocorre em meio a uma materialidade de disputa entre capital e trabalho pelo controle da práxis produtiva.

Por meio dos impactos ambientais decorrentes da construção da UHE- Tucuruí, o capital se utiliza de formas de identificação fundamentadas na forma-

mercadoria para atribuir elementos de identidade pautados na mercantilização das relações sociais, no individualismo, na sobreposição do valor de troca em relação ao valor de uso, na exploração da força de trabalho e na busca incessante de lucro. Tratam-se de artimanhas para impedir que os pescadores artesanais vislumbrem outras formas de relações sociais para além da troca de mercadorias e sejam inseridos na lógica do sistema capitalista.

Por outro lado, vivenciando a precarização de suas condições de trabalho e a desestruturação da pesca extrativista, os pescadores artesanais negam a perspectiva de identidade atribuída pelo capital e iniciam um processo de fortalecimento enquanto fração de classe.

Ressignificam, então, sua práxis produtiva e sua identidade, na medida em que transformam a pesca artesanal e a coleta do açaí em atividades de manejo de recursos naturais em detrimento da prática extrativista como eram desenvolvidas no período anterior à Hidrelétrica.

Embora nos interstícios dessas alternativas a lógica de mercantilização da produção e da distribuição da riqueza se façam presentes, o capital ainda não consegue controlar a totalidade dos processos de trabalho dos pescadores.

No interior da práxis produtiva, além da constituição de elementos de identidade de resistência, os pescadores ensaiam formas emancipadas de produção e distribuição da riqueza, tal como ocorre na gestão coletiva e repartição igualitária do pescado nos Acordos de Pesca, constituindo, assim, sua identidade a partir de uma perspectiva contra hegemônica.


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Recebido em: 16 de agosto de 2018. Aprovado em: 04 de outubro de 2018. Publicado em: 22 de novembro de 2018.

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PROCESSOS EDUCATIVOS EM EXPERIÊNCIAS DE TRABALHO DE COMUNIDADES RIBEIRINHAS NA AMAZÔNIA¹


Maria das Graças da Silva2


Resumo

Trata-se de experiências de trabalho de comunidades ribeirinhas na relação direta com a natureza no contexto das quais produzem saberes que informam processos educativos. Analisa-se a contribuição desses processos para uma concepção epistemológica ampliada de educação. Utiliza como referência teórico-metodológica o materialismo histórico-dialético. Os resultados da pesquisa indicam possibilidades de reconhecimento dessas comunidades como sujeitos históricos portadores de conhecimentos, que engendram ações educativas e de aprendizagem, em contextos diferentes da pedagogia escolar.

Palavras-chaves: Experiências de Trabalho; Processo Educativo; Natureza.


EDUCATIONAL PROCESSES IN WORK EXPERIENCES IN THE AMAZON RIVERSIDE COMMUNITIES


Abstract

These are work experiences of riverside communities in the direct relationship with nature in the context of which they produce knowledge that inform educational processes. Here, the contribution of these processes to an expanded epistemological conception of education is analyzed. It uses as a theoretical- methodological reference, historical-dialectical materialism. The results resource indicate possibilities for the recognition of these communities as historical subjects that bear knowledge, which engender educational and learning actions, in contexts other than school pedagogy.

Keywords: Work Experiences; Educational Process; Nature.


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1DOI: https://doi.org/10.22409/tn.16i31.p27374

2Professora adjunto IV, Universidade do Estado do Pará (UEPA), vinculada ao Departamento de Ciências Sociais e Educação e ao Programa Pós-Graduação em Educação, Coordenadora do Grupo de Pesquisa em Educação e Meio Ambiente – GRUPEMA. Email: magrass@gmail.com.

Introdução


Este artigo tem como objeto de reflexão e análise saberes e processos educativos inscritos em experiências de trabalho que dinamizam modo de vida e o cotidiano social de comunidades ribeirinhas, enquanto realidades concretas, sínteses de múltiplas determinações, em um dos municípios do baixo Tocantins, na Amazônia Paraense.

Visa o conhecimento, a compreensão e explicação de experiências que informam condições e formas de reprodução material em contextos de relação ser humano e natureza, com a perspectiva de sistematizar conhecimentos que possam contribuir para dar visibilidade àqueles espaços educativos e práticas pedagógicas que se efetivam em experiências de trabalho e contribuem para a resistência local. Origina-se da questão: Que saberes estão inscritos em experiências de trabalho protagonizadas por comunidades ribeirinhas por meio de processos de apropriação e usos de materiais e produtos dos rios e das matas?

O texto decorre e se sustenta em achados de pesquisas realizadas com comunidades ribeirinhas do município de Igarapé Mirim, com o objetivo de compreender as formas por meio das quais, homens mulheres e jovens dinamizam suas experiências de trabalho, produzem conhecimentos, enquanto práticas voltadas para a transformação de condições de vida local.

Na Amazônia, as comunidades ribeirinhas configuram-se como grupos sociais heterogêneo, cujo modo de vida e práticas socioculturais está pautado na relação simbiose com a natureza e seus ecossistemas. Uma relação que movimenta um sentimento de pertencimento, que na prática, nem sempre equivale à ideia de propriedade, mas de uma identidade tributária de afeto e respeito; como um lugar de vida. Essas comunidades têm sido reconhecidas por suas territorialidades, que se configuram como lugares concretos de vida, como espaços de resistência e luta.

Metodologicamente a realidade de algumas comunidades ribeirinhas do rio Anapú, no município de Igarapé Miri foi contextualizada como lócus da pesquisa e referencias das observações locais e das narrativas dos sujeitos: as comunidades do rio Mamangal Grande; rio Mamangalzinho; rio Miriú-Açú; rio Maiauatá; rio Santo Antonio e rio Igarapé Santana, nos anos de 2010 e 2011. Insere-se em uma trajetória de pesquisas realizadas pelo Grupo de Pesquisa Educação e Meio Ambiente

(GRUPEMA) voltada para práticas culturais e experiências cotidianas de trabalho na relação direta com a natureza.

No contexto do Baixo Tocantins, essas comunidades, a partir do final da década de 1980 em diante, até aproximadamente a primeira década dos anos 2000, sofreram de forma acentuada mudanças na organização e dinâmica dos seus territórios em face do barramento do rio Tocantins, com a construção da Hidrelétrica Tucuruí (UHE Tucuruí) nas décadas de 1980 e 1990. A pesca artesanal, como prática de trabalho predominante na região nas décadas anteriores à construção, passou por um processo de refluxo acentuado, sendo necessária a incorporação de outras práticas produtivas no contexto da reprodução social.

Grande parte dos grupos sociais ribeirinhos que moram nessa região, por dependerem do regime fluvial dos rios para a se reproduzirem material e simbolicamente, enfrentaram, durante várias décadas, as consequências da implantação de dois grandes projetos, saber: a Albrás/Alunorte e a UHE Tucuruí.

No caso da realidade ribeirinha no rio Anapú, formada por pequenas comunidades que vivem das atividades de pesca e do extrativismo vegetal, por estarem situadas ao longo das margens de rios e igarapés, elas têm enfrentado, no tempo e no espaço, um mix de situações que impuseram restrições às suas experiências de trabalho. Situações que repercutiram desfavoravelmente sobre as condições de existência de grupos sociais locais, uma vez que foram comprometidos muitos dos seus processos socioculturais associados às especificidades dos seus territórios e dos recursos naturais, em diversos casos apropriados de forma comunal. O debate teórico-epistemológico contemporâneo acerca das práticas das populações tradicionais, referido numa abordagem histórico-crítica, tem buscado valer, por meio do confronto de ideias e análise das determinações, outra percepção. Na realidade trata-se de grupos que diante das desestruturações socioambientais que experimentaram com o barramento do rio e com a convivência de constantes situações de poluição do rio e do ar por parte da Albrás/Alunorte, situada no município de Barcarena, na confluência com Igarapé Miri, frequentemente anunciadas nos meios de comunicação, na ausência de políticas públicas básicas efetivas e eficazes, como saneamento, saúde e educação, têm, por meio de uma diversidade de saberes e desenvolvimento de técnicas, buscado garantir a sua reprodução social,

apropriando-se de recursos da natureza e conformando-os por meio de ações de trabalho às suas necessidades.

Essa breve contextualização mostra o quanto situações que informam conflitos de interesses territoriais, experiências de trabalho, de luta e resistência dessas comunidades ainda precisam ser estudadas. Estudar saberes práticos que informam e conformam experiências de trabalho das denominadas populações tradicionais, é construir possibilidades de por meio da promoção de diálogos entre saberes, colocar no debate decolonial novas epistemologias. Essa é uma das perspectivas desse artigo.

É relevante estudar o cotidiano desses grupos locais para mapear e compreender saberes que orientam suas experiências cotidianas de trabalho. Optou- se pela abordagem teórico-metodológica, referida no método histórico-dialético por considerar a possibilidade da reconstrução da totalidade sócio-histórica, e sistematizá- la enquanto abstração do concreto; da reflexão da práxis dos atores locais no contexto da relação trabalho e educação; por fim, trazer para o debate práticas e saberes que, historicamente, têm sido invisibilizadas em grande parte nas políticas públicas e nos saberes sistematizados, e potencializar as possibilidades de revelação de outros conhecimentos alternativos à ciência, consubstanciados em princípios como: conhecer para incluir, saber para transformar, e que tem sua legitimidade intelectual no reconhecimento da existência de sistemas de saberes plurais, nas ideias de pluralidade cultural, respeito aos direitos do outro e igualdade de oportunidades, ou seja, numa epistemologia multicultural (VEIGA-NETO, 2003).

Portanto, referenciado em “O Capital”, no qual Marx (1983) se deslocou por entre um vasto mundo de experiências, para realizar “uma crítica da economia política”, este artigo analisa processos educativos que orientam saberes de uma diversidade de experiências de trabalho, que informam o cotidiano social de comunidades ribeirinhas mirienses.


A relação ser humano natureza orienta processos de produção


A história da humanidade mostra que sociedades e/ou grupos sociais buscam construir seus territórios na relação direta com a natureza como forma de garantir às suas condições de existência e/ou seu desenvolvimento. Neste item, analisam-se de narrativas que dão conta de relações socioambientais, práticas produtivas que as

comunidades ribeirinhas já identificadas no sibitem anterior, constroem no contexto de suas experiências de trabalho. A ideia é examinar evidências relevantes e fatores que informam práticas de apropriação e uso de matérias da natureza nessas experiências de trabalho, voltadas à satisfação de suas necessidades.

Por meio da relação que estabelecem com a natureza e suas matérias, essas comunidades constroem uma interdependência mútua, que conformam uma totalidade. Essa interdependência, dialeticamente pode ser considerada quando Marx (1983, p.149), indica que, ao “atuar, por meio desse movimento, sobre a natureza externa a ele [o ser humano] e ao modificá-la, ele modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza”. Ou no dizer de David Harvey (2013, p. 114): “não podemos transformar o que se passa ao nosso redor sem transformar a nós mesmos. Inversamente, não podemos transformar a nós mesmos sem transformar o que se passa ao nosso redor”.

A natureza disponibiliza para essas comunidades, uma série de matérias, de produtos que lhe são nativos, para que elas, por meio do trabalho, transformem qualitativamente essas matérias, em uma diversidade de produtos, que assumem prioritariamente no contexto de suas necessidades “valor de uso”.


Olha, eu acho que a gente não pode ter as árvores só pra olhar, a gente precisa também de sobreviver. Então hoje, por exemplo, dá pra gente ter o açaí como uma árvore e colher os frutos e o cacau, cupuaçu, andiroba, tantas outras árvores que derem alguma renda pra gente e o mesmo tempo preservar a floresta. (Entrevista Liderança 2, Mamangal, 2011).


Os produtos coletados por meio da matéria disponível na natureza, assumem a configuração de uma natureza heterogênea, ao serem transformados por meio do trabalho “concreto”, ou seja, do trabalho humano útil. Nesse movimento molecular de uma economia de subsistência, os arranjos produtivos vêm da criatividade familiar, de saberes ancestrais, da participação de mulheres e de jovens, das condições e determinações que lhe são dadas historicamente.

Aqueles produtos naturais, orientados por saberes e práticas criativas das comunidades, são incorporados nos seus processos de produção: açaí, palhas e cipós (cestarias e outros artefatos), capoeiras ou terras virgens (roças, roçados), mandioca (farinha, tucupi), peixes, caranguejos, camarão, copaíba (óleo), castanhas de andiroba (óleo), mel de abelha (nativo), pequenas toras de madeiras (canoas,

trapiches), criação de pequenos animais, por meio da utilização de uma diversidade de formas de trabalho concreto.

Trata-se de produtos físicos que assumem “valor de uso”, ou seja, atende uma determinada necessidade específica, que Marx (1983, p.50) denomina de trabalho útil: “o trabalho cuja utilidade representa-se, assim, no valor de uso de seu produto ou no fato de que seu produto é um valor de uso, chamamos, em resumo de trabalho útil”. Assim, ao assimilar elementos específicos da natureza às necessidades humanas específicas, como “trabalho útil”, Marx (1983, p.50) atribui ao trabalho a condição de “existência do homem, independente de todas as formas da sociedade, “eterna necessidade natural de mediação do metabolismo entre homem e natureza e, portanto, da vida humana”.

Esses produtos passam a ser configurados como produto do trabalho humano, mesmo no caso daquelas práticas de coleta de produtos nativos das matas, há nessas práticas um esforço, um dispêndio de energia. Daí incorporarem um determinado valor, que de acordo com Harvey (2013, p.35), “Marx chega ao conceito unitário de valor, que tem a ver com o trabalho humano”, no caso em análise, decorre do trabalho que homens mulheres e jovens realizam na coleta dos produtos.

Nessa perspectiva, o trabalho ontologicamente configura-se em mediação entre a existência humana e a natureza.


Rios e matas: territorialidades de práticas produtivas úteis e de aprendizagens


Para além da produção mercantil, o trabalho, nessas comunidades ribeirinhas pesquisadas está pautado em práticas produtivas que se sustentam na relação direta com a natureza. Assume, portanto, uma concepção ontológica por ser inerente à essência do ser humano, pois é por meio dele que essas comunidades garantem a existência humana do seu grupo familiar.

Ao situar epistemologicamente as experiências de trabalho das comunidades estudadas no contexto do materialismo histórico-dialético, busca-se, mesmo de forma localizada, entender as possibilidades que essas experiências têm de informar as categorias principais desse método: totalidade, historicidade das práticas sociais e relação entre teoria e práxis; e dar sustentação às análises e reflexões sobre práticas produtivas que se materializam em outros contextos, diferentes daqueles que tratam dos processos de mercantilização das mercadorias.

Trata-se de experiências de trabalho que mesmo ainda recorrendo a arranjos pré-capitalistas, incorporam também inovações tecnologias que informam a modernidade ocidental.

Essas comunidades denominadas de “tradicionais”2 e suas condições de existências, ficaram, por muito tempo, eclipsadas pela matriz colonialista, cujo pensamento hegemônico tem deixado de reconhecer sua contribuição à auto reprodução de suas condições materiais e culturais, e até mesmo para a conservação da biodiversidade, por que em grande parte sempre estiveram excluídas de programas que anunciam compromissos com o desenvolvimento regional.

Vários estudos e pesquisas têm dado conta do silenciamento que esses sujeitos, portadores de saberes, têm sido submetidos pela cultura hegemônica, universalista, de matriz colonizadora. Essa cultura além de não os considerar como produtores de conhecimentos, os invisibilizam como sujeitos de direitos e protagonistas de lutas voltadas para as transformações de suas condições de vida. Em movimentos contra hegemônicos, eles são vigilantes em prol de suas naturezas, ou seja, atuam em contraposição às forças capitalistas.

Os determinantes sociopolíticos e culturais que informam as realidades ribeirinhas mirienses são muitos e particulares, mas não se configuram como realidades alheias ou fora da totalidade social, pois dialeticamente fazem parte da dinâmica de um todo social maior. A totalidade do ponto de vista marxista não se configura como a soma das partes, tampouco de fragmentos assistemáticos, que “hipostária o todo em parte” (KOSIK, 2010, p.74).

Lukács (2003, p. 6-12) ao criticar a fragmentação, dicotomização e diferenciação das esferas da vida social, que no contexto teórico da ideologia burguesa, demandam conhecimentos próprios e específicos, considerou que “a dialética afirma a unidade concreta do todo”, chamando a atenção, contudo, para o cuidado de não se reduzir “seus vários elementos a uma uniformidade indiferenciada, à identidade”.


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2 Trata-se de uma categoria que tem sido objeto de muita disputa no campo ideológico e epistemológico, uma vez que ela é acionada em diferentes contextos (políticos, econômicos e sociais), quer como autodenominação, quer como categoria de classificação social. Neste texto, não trataremos desse debate, apenas estamos usando o termo para atender a chamada do Dossiê Temático da Revista Trabalho Necessário.

Como sujeitos históricos, essas comunidades, sustentando-se em suas experiências cotidianas, produzem e reproduzem suas condições materiais de existência, ou seja, “reproduzem-se” por meio de um processo concreto de trabalho. Processo que se materializa em contextos de relações geracionais, de vizinhança e de ajuda mútua.

Sendo assim, configuram-se como experiências de trabalho que se diferem daquelas protagonizadas pelo capital, dado que a natureza dessas experiências está pautada na lógica do trabalho humano concreto (MARX, 2008). Os ribeirinhos retiram dos rios e das matas cotidianamente o que necessitam.


O trabalho é um processo entre homem e a natureza, um processo em que o homem, por sua própria ação, media, regula e controla seu metabolismo com a natureza. Ele mesmo se defronta com a matéria natural como uma força natural. (MARX, 1983, p149).


Neste sentido, por meio do uso de suas forças úteis de trabalho, ou seja, de um trabalho não mercantilizado e de seus saberes, esses sujeitos históricos se apropriam das matérias da natureza, incorporando-as à reprodução da existência humana.

Essa compreensão nos coloca diante da impossibilidade de considerar a relação ser humano e natureza de forma dicotomizada, por trata-se de experiências que decorrem de múltiplas determinações: das relações que estabelecem com a natureza e suas diferentes formas de apropriação e uso, com os outros seres humanos e também não humanos; decorrem de suas crenças, aprendizados e saberes ancestrais, que ao final, indica a totalidade de processos que movimentam cotidianamente para garantir a sua reprodução social. Neste contexto, é preciso considerar que a realidade é portadora de contradições.


Experiências de trabalho na mediação entre rios e matas


As análises e reflexões indicam que o rio Anapú e seus afluentes se configuram como um espaço social, cujas territorialidades servem de lugar para a realização de suas práticas de trabalho e, consequentemente, dinamização da vida das várias comunidades ribeirinhas que ali vivem.

Embora não tenha sido possível tratar de todas as práticas produtivas que informam o cotidiano dessas comunidades, neste artigo são mencionadas algumas atividades que possibilitam construir aproximações em relação à práticas educativas,

e assim buscar compreender os saberes que orientam sustentam e/ou que são produzidos, no contexto das experiências de trabalho que são realizadas nas práticas de apropriação e uso dos rios e das matas.

Algumas lideranças mostraram em suas narrativas que, embora suas práticas já não se efetivem da mesma forma que os seus ancestrais realizavam, elas se fazem no sentido de buscar solução para os seus problemas e garantir a reprodução das suas condições de vida. Informaram que têm procurado desenvolver suas atividades, de uma forma renovadora, na medida em que buscam outros domínios de saberes que têm sido construídos a partir de experiências e convivências do cotidiano social.

Essas experiências de trabalho pautados em logicas próprias, fruto de suas observações, vivências, experimentos, oralidades e heranças da ancestralidade, engendram domínios de saberes que estão inscritos em artefatos produzidos, na medicina popular, nos rituais de trabalho, nas práticas da caça, da pesca, na relação que estabelecem, enfim, nas diversas formas de relações com a natureza. Trata-se de conhecimentos que vai na contramão do processo colonizador, que só reconhece do ponto de vista pedagógico e epistemológicos conhecimentos pautados em experiências da ciência moderna ocidental.

No caso da pesca artesanal, além de se configurar como uma prática produtiva no contexto das experiências de trabalho dessas comunidades, também se associa aos movimentos de luta e resistência no contexto territorial do Baixo Tocantins.

Assim como a pesca, a coleta de produtos da mata, o manejo do açaí, a produção de artefatos relacionados à suas atividades, são fontes de realização do trabalho concreto nas comunidades pesquisadas. Como um processo dinâmico, o desenvolvimento dessas e de outras atividades não está pautado em uma prática estática e rotineira, mas em um movimento ininterrupto de associação de práticas que guardam relação com a dinâmica da natureza, por meio dos seus fluxos (maré, safra, ciclo lunar...).

Assim, tal como em Marx (1983), o trabalho que informa essas atividades que se realizam no cotidiano ribeirinho se configura como um “processo” em movimento. Daí a necessidade e opção do método dialético, por considerar que “a dialética tem de ser capaz de entender e representar processos em movimento, mudança, transformação” (HARVEY, 2013, p.21).

Ainda que não esteja associada diretamente à dinâmica do capital, a produção dessas comunidades locais está associada à outra dinâmica, a outros fluxos: o da natureza, que tem um dinamismo transformador. Basta perceber as mudanças que o fluxo das marés promove na paisagem ribeirinha, na altura dos trapiches, na largura dos rios, furos e igarapés, na velocidade de barcos e canoas, no deslocamento dos cardumes, nos mangues. As paisagens se diferenciam quando a maré está “seca”, de quando está “cheia”; quando é inverno de quando é verão.

O cotidiano social ribeirinho não pode ser considerado uma mesmice, uma rotina, que exclui o ritmo natural e cósmico, tão caro para o modo de vida ribeirinho, que não se dinamiza pela lógica da acumulação. Esse cotidiano carrega em seu movimento as contradições dos seus processos históricos, pautados em tempo natural, cósmico e histórico, que se difere do tempo linear que orienta o trabalho mercantilizado (LEFEVBRE, 1991).

Sendo assim, esse cotidiano tem uma dinâmica e um movimento que lhe é próprio, que precisa ser compreendido e interpretado enquanto tal. Esse movimento acaba sendo transformador, porque exige que seus sujeitos introduzam mudanças em suas práticas, atualizem suas experiências. Muitas vezes, essas comunidades enfrentam situações que impõe necessidades de reformular, ressignificar suas práticas. Como movimento, como processo suas “ideias têm de mudar ou se reconfigurar à medida que as circunstâncias mudam” (HARVEY, 2013, p.23).

Mesmo não produzindo uma “coleção de mercadorias”, tal qual na produção capitalista, foi possível constatar nesse trabalho não mercantilizado, desenvolvido diretamente na relação com a natureza, que existe excedente, não no sentido capitalista do termo, porque muitas vezes o excedente decorre do “sacrifício” do grupo familiar, que abre mão de determinadas porções da produção em face da necessidade premente de sua comercialização, cujo preço não gera lucro, mas tão somente o necessário para a compra de outros produtos, que mesmo não produzindo fazem parte da dieta básica cotidiana, como é o caso do café, do sal, do querosene, de alguns remédios, dentre outros.

É possível então afirmar que se trata de uma troca monetizada? Na realidade assume diversas formas: escambo, comercialização em pequenas quantidades na “feira” local, na mercearia ou pequena venda da própria comunidade, também na rede de parentesco e/ou vizinhança. Assim a pequena produção “excedente” não é levada

necessariamente para um “mercado”, mas como a mercadoria em Marx (1983), ela atende duplamente a uma necessidade: daquele que compra e daquele que vende.

A qualidade do material que é colocada à venda é quase sempre na sua forma in natura. No processo de comercialização, os sujeitos locais adotam suas próprias medidas: litro de camarão, cambada de peixes; litro ou rasa de açaí. Há, portanto, uma diversidade de formas de apresentação da produção, que em “O Capital”, Marx (1983) não teve como objeto de preocupação.

As múltiplas formas de apresentação e/ou medidas para a comercialização dos produtos que decorrem cotidiana das suas práticas produtivas guardam relação com os seus processos culturais de reprodução da vida, e com processos de aprendizagem baseados na ancestralidade, ou na pedagogia da oralidade ou “da atenção” (INGOLD, 2010). O que indica que suas experiências são perpassadas por dimensões educativas, que não se constituem de acordo com a lógica escolar. A sua materialidade se diferencia dos processos cognitivos formalizados para a escola.

Sendo assim, é possível afirmar que o ato fundador das experiências pedagógicas que engendram processos educativos é o trabalho, que por meio de suas práticas, homens, mulheres e jovens satisfazem suas carências naturais e simbólicas, como também ensinam e aprendem um com os outros, e com a própria dinâmica da natureza.

Figura 1- Vista parcial de uma moradia localizada no rio Miriú-açu, no municipio de Igarapé-Miri/Pa .

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Fonte: Arquivo pessoal do Aux. de pesquisa, Rodrigo Cardoso, out.2011

Na fala dos entrevistados sobressai a relevância que é atribuída ao trabalho enquanto questão transversal às relações que estabelecem com o rio e com a mata; a mobilização de saberes necessários para o desenvolvimento de suas atividades produtivas, associadas à mata, que são qualitativamente diferentes:


roça, a gente faz para plantar mandioca, e o milho e as outras coisas que a gente planta e árvores de açaí. Também a gente faz outra atividade na mata: carvão, tanque para peixe, coleta de sementes, extração do açaí, plantação de pimenta do reino ou outra atividade. O trabalho na roça é de roçar, derrubar, queimar, plantar, capina é esse tipo que a gente trabalha. Na várzea, a gente planta a mandioca, milho, o feijão, o arroz, a banana, o maxixe. (Entrevista Liderança 1, Rio Maiauatá, 2010).


a gente planta, colhe açaí, colhe fruta, também existe a questão de pequenos tanquezinhos pra criar peixe, como forma de sobrevivência. Olha o roçado aqui, praticamente não existe mais, porque já passou a era de engenho de cana de açúcar, que se fazia roçado e tocava fogo, hoje é mais a vida de colheita de açaí e de outras produções. A gente não faz roçado, então essa atividade nós não exercemos. (Entrevista Liderança 3, Mamangal- zinho, 2010).


Essas atividades não são exclusivas dos homens, também foi destaca a participação de jovens e das mulheres no trabalho com a roça: “as atividades principais que as mulheres participam? Elas capinam, quando está madura a mandioca a elas arrancam, fazem farinha”. Outra liderança informou que “as mulheres fazem tudo, igual como os homens, fazem colheita, plantio, a organização, a venda, tudo, tudo, que os homens faz as mulheres ajudam também”. (Liderança 3, 2010).


Saberes inscritos nas relações e atividades com uso dos rios e das matas


o saber é sempre o saber de alguém que trabalha alguma coisa no intuito de realizar um objetivo qualquer. [...], o saber não é uma coisa que flutua no espaço (TARDIF, 2014, p. 11).


Com base nas reflexões e análises dos itens anteriores, o cotidiano social das comunidades ribeirinhas é dinamizado por um mosaico de atividades que decorrem do trabalho concreto. Trata-se de atividades produtivas qualitativamente diferentes, mas que se somam, se associam, se complementam, se consomem, se sanzonalizam.

No esforço para o desenvolvimento desse trabalho humano, homens, mulheres e jovens mobilizam e até mesmo produzem uma série de saberes, conhecimentos, que são repassados de geração em geração, por meio de uma série de procedimentos

de ensino aprendizagens. Por meio desses saberes, esses sujeitos históricos realizam suas experiências de trabalho concreto e útil.

Qual a natureza desses saberes? Trata-se de saberes da experiência, construídos ao longo de suas histórias geracionais, que nas últimas décadas têm sido reconhecidos como marcadores de processos educativos, ainda que circulem e se façam, portanto, fora do mundo escolar. Há nesses saberes um conteúdo social e político por tratar-se de construção histórica pautada na ancestralidade.

Na perspectiva dos saberes da experiência, é possível compreender o sentido que os rios e igarapés Merium, Muatá, Mamangal e seus afluentes assumem no cotidiano social local. Eles são significados pelo uso social que suas comunidades fazem dos seus recursos hídricos. Assume no imaginário local o sentido de territórios de vida, porque deles retiram, juntamente com as matas, o necessário à sua reprodução material e simbólica. Consequentemente, a água também assume sentido de vida; este sentido de vida transcende a dimensão material de provimento de necessidades básicas, porque assume ao mesmo tempo uma significação cosmológica.

Dessa forma, é em torno dela que as comunidades constroem suas territorialidades, que alimentam seus imaginários pautados em suas lendas e mitos, realizam seus rituais religiosos, fazem seus deslocamentos. É ela que alimenta e fertiliza seus ambientes terrestres.


Olha eu entendo que os rios e igarapés eles são os meios de ajudar a gente a sobreviver. Nossos rios são melhores do que as ruas. Porque além dele fazer a gente viajar, transportar ele ainda traz benefício. Porque ele traz, tem peixe, tem seres vivos embaixo que precisa deles, a gente precisa da água, tão têm uma importância muito grande pra gente. (Liderança 1- Rio Mamangal Grande: Projeto Mutirão, 11/2012).


A narrativa indica que as formas de utilização dos recursos hídricos feitas por essas comunidades se dão por sistemas tradicionais de acesso, apropriação e uso desses recursos. A apropriação e utilização comunitária não são exclusivas, existem formas de apropriação individualizadas em espaços das habitações e de terrenos. O certo é que existe forte dependência no uso desses recursos dada sua produtividade natural.

Os usos das águas estão associados às suas práticas cotidianas, ou seja, práticas comuns em diferentes espaços de vida: nas práticas de higiene, no consumo diário e em outras “maneiras de fazer” esse cotidiano.


Tipo de atividade que desenvolvo utilizando as águas dos rios e dos igarapés? São de todas, pra tomar banho, lavar roupas, pra lazer, tudo isso são utilizadoa água. Só que umas águas são muito barrentas! (Entrevista Liderança 1, Mamangal, 2011).


Utilizo as águas dos rios e dos igarapés. Há, são milhões de forma, né! a gente precisa pra viajar, a gente precisa pra tirar água pra viver, a gente precisa tirar dele pra tomar banho, a gente precisa dele porque têm seres vivos que moram nele vivem nele, e a gente precisa desses seres então há milhões de objetividades (Entrevista Liderança 2, 2011).


Tipo de atividade que desenvolvo utilizando as águas dos rios e dos igarapés? Hum! A gente põe o matapi, né nos rios e igarapés, a gente tapa os igarapés pequenos para colher peixe, a gente pesca, e têm muita forma de sobrevivência que vêm da água, é, inclusive até, tirar peixe. (Entrevista Liderança 3, 2010).


As narrativas destacam um conjunto de formas de uso da água, que estão associadas às suas práticas de vida e experiências de trabalho: a pesca em suas diversas modalidades, a coleta do camarão, as atividades domésticas, que se constituem práticas multiformes por meio das quais essas comunidades se apropriam dos recursos dos rios ou das matas, que assumem valor de uso. Como ponto de partida ou de chegada, de travessia, ou de navegação, o deslocamento pelas águas assume um sentido de viagem, conforme indica um dos entrevistados – “a gente precisa pra viajar” (Entrevista Liderança 1, 2011).

A pesca associada ao uso das águas tem sido uma das atividades de trabalho voltada para a reprodução material, não como uma prática econômica de configuração capitalista, porque tem uma inscrição cultural muito forte graças à mediação de hábitos de consumir peixe.

Quanto à qualidade das águas, embora considere que essa matéria é fundamental à vida local, e sua total dependência, a percepção de algumas lideranças locais é de que a qualidade da água é ruim. Alguns argumentos são utilizados para justificar essa avaliação. O primeiro se baseia na ideia da invisibilidade das comunidades ribeirinhas frente às políticas públicas, quase sempre voltadas para a capital [cidade].

No imaginário local, a qualidade da água poderia ser assegurada às comunidades ribeirinhas se à supremacia da cidade fosse contraposto o entendimento dialético de um continuum urbano/rural; cidade/campo, como espaços de vida, de cidadania.


Avaliação da qualidade da água dos rios e dos igarapés dessa área daqui? É, são ruins, porque até então a sociedade não toma nada para facilitar as coisas para que possa ter uma água limpa e sadia. A sociedade até hoje, não têm feito nada para manter a água de boa qualidade! Por que ainda não se preocuparam com os ribeirinhos, só com as capitais e os ribeirinhos ficam jogados fora. (Entrevista Liderança 1, 2011).


Além dos fluxos e das correntes das marés, fenômeno natural, outros fatores também são atribuídos para que a qualidade da água fique comprometida. “A qualidade da água dos rios e igarapés, infelizmente ela não esta como deveria ser porque existe muito barro, de viagem com óleo diesel, têm pessoas que joga tudo, ela não está com uma boa qualidade como devia ser!” (Entrevista Liderança 2, 2011). O saber local associa a qualidade das águas, às temporalidades das marés, quando ressaltam que “o período do ano em que a água fica mais ruim é de janeiro à maio” (Entrevista Liderança 2, 2011).

Figura 1 - Vista parcial do rio Miriú-açu, no municipio de Igarapé-Miri. Data: 07 de outubro de 2018.

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Fonte: Arquivo Pessoal do Aux. de Pesquisa, Rodrigo Cardoso, out.2011.

Quanto ao trabalho que a comunidade realiza para manter a água de boa qualidade para além de explicações de causa e efeitos, os relatos indicam que existem experiências locais, que em parte demonstra uma preocupação em torno dessa questão. Trata-se de uma atuação mais pedagógica, ainda que embrionária, dispersa, silenciosa, quase invisível até mesmo para os olhares locais, inscrita em algumas práticas de lideranças:


O que a comunidade tem feito para manter a água de boa qualidade? Olha, a comunidade de um modo geral, nem todo mundo faz, mas pelo menos nós temos feito esse movimento que tem mais de 2 anos quase 3 anos, e ele tem dado bons resultados. A gente tem feito palestras, a gente tem feito oficinas, a gente tem feito, assembleias, a gente têm feito é seminários como nos realizamos agora, o II seminário. (Entrevista Liderança 2, 2010).


O uso comum dos espaços aquáticos é ressaltado como outro diferencial significativo no cotidiano social dessas comunidades.


Os rios e os igarapés são utilizados de forma comum. São de tudo à comunidade [...]. Os rios de maiores portes que são utilizados como comum: Merium, Moatá ou Muatá, esses rios que são utilizados (Entrevistado - Agricultor e também presidente da Ilha Mamangal, 2010, Rio Mamangal Grande).


O termo “comum” refere-se a recursos de propriedade comum. Recursos de propriedade comum é um conceito utilizado por Hardin (1968 apud FEENY et.al, 2001) e incorpora peixes, vida selvagem, águas (superficiais e subterrâneas, pastagens e florestas).

Em relação ao acesso e uso dos rios e igarapés, que por se configurarem, neste caso, como “recursos de propriedade comum”, os entrevistados indicam problemas em relação à questão da exclusividade (controle de acesso), dada as características compartilhadas desses recursos. Ressaltam dificuldades que enfrentam para garantirem sua conservação na medida em que:


Olha, quase todos os rios eles são usados por todo mundo, todo mundo precisa direta ou indiretamente, precisa deles! Olha nem todo mundo usa do mesmo jeito, né tem gente que usa de maneira mal usada prejudicando, jogando tudo que acha que deve jogar, mas também têm pessoas que têm preocupação, no nosso caso, aqui no Mamangal, nós temos o maior movimento de preservação do meio ambiente, de muito mais voltado ao rio, preservar, cuidar, a valorização o que o nosso rio tem! (Entrevista Liderança 2, 2011).


Todas essas práticas, percepções e/ou preocupações expressas nas narrativas dos sujeitos entrevistados podem ser associadas à conjuntura atual em que cada vez se amplia o debate acerca da questão da conservação e proteção da natureza. Trata- se de saberes que têm despertado interesses de diferentes setores da comunidade nacional e internacional, particularmente dos estudiosos da questão ambiental. E tem sido objeto de conflitos de interesses, uma vez que graças ao conhecimento acerca dos ecossistemas que esses grupos detêm, tem sido possível conservar recursos em seus territórios de trabalho, e garantir, assim, ainda que minimamente a reprodução dos seus sistemas culturais e sociais.

Recorre-se a ideia de território usada por Castro (2000), enquanto espaço por meio do qual, grupos sociais garantem aos seus membros direitos estáveis de acesso, de uso e de controle dos recursos e sua disponibilidade no tempo.


O saber que informa o trabalho na Várzea


A várzea configura-se como um dos elementos fundamentais na dinâmica do cotidiano social ecológico e cultural de comunidades ribeirinhas. Trata-se da terra florestada, integrada em grande pluviosidade e alagamentos sazonais cujo aproveitamento permite o surgimento de espécies diversas e culturas particulares. Daí o significado e a importância desse recurso nas suas atividades de trabalho. A dinamização dessas diferentes dimensões é que formata a diferenciação dos territórios ribeirinhos.

Conformadas como territórios de vida, as várzeas têm sido historicamente apropriadas por grupos sociais denominadas de populações tradicionais, com sua diversidade interna. É por meio do trabalho e da cultura que esses grupos têm significado os espaços das várzeas. Enquanto produto da intervenção humana esses territórios não se reduzem a sua dimensão material, mas expressam teias de relações sociais e religiosas que configuram o plano simbólico nos seus diferentes contextos.

Do ponto de vista das experiências de trabalho, as várzeas têm servido de suporte para formas de organização dos processos sociais de produção das comunidades estudadas, é o que infere o depoimento de uma das lideranças entrevistada: “costumamos aproveitar a várzea para plantar açaí, banana, o limão, a laranja, e o coco é esses tipos de plantas” (Entrevista Liderança1).

Esses lugares particulares também são representados como expressão de vida. Nas várzeas as comunidades locais coletam e plantam, porque também reconhecidas pelo saber local, como um território de trabalho, capaz de assegurar a sua reprodução material e cultural.

É da área de várzea que a gente vive, né! Inclusive é só isso que a gente tem! É! De plantação? Olha a gente tem tudo, quase a gente tem cocô, tem cacau, cupuaçú, abacaxi, laranja, limão, e, principalmente o açaí que é a maior cultura, que a gente.... Quem pratica essa atividade somos nós mesmos! (Entrevista Liderança 2, 2011).


Esse modo singular de organizar-se a vida em torno várzea, por meio de processos de valorização e apropriação dos recursos do rio e da mata, revela uma diversidade de saberes que conformam modos de vida e definem configurações sociais dos amazônidas3 ribeirinhos, que na sua materialidade histórica, sociocultural guardam diferenças no seu interior.


A natureza como objetivações entre saberes e sociabilidade


As lideranças locais, por reconhecerem que é por meio das matérias ou produtos dos rios e das matas, que as comunidades através de seus “processos” de apropriações e trabalho, atendem suas necessidades, ao transformarem essas matérias e produtos em objetos, bens de consumo, enquanto capacidade humana objetivada, de modo geral, voltam-se cotidianamente suas preocupações para esses bens comuns.

Quando entrevistadas, lideranças comunitárias ressaltaram suas preocupações com a questão da preservação dos recursos naturais de uso comum, indicando a estruturação de mecanismos de ordenamento para acesso e uso desses recursos. Trata-se de práticas socioeducativas locais, voltadas para a elaboração e utilização de mecanismos nativos voltados para a ordenação dos direitos de uso dos recursos de propriedade comum, buscando, ao mesmo tempo, o controle da utilização e sensibilização das unidades familiares em ser consciente em seus esforços de apropriação e uso desses recursos.


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3 Precisamos considerar que essas configurações sociais que sustentam a relação entre as visões de mundo e as práticas ribeirinhas, incorporam às práticas interesses, capacidade de organização social, ao trabalho múltiplas dimensões, que modificam o projeto das comunidades na práxis; da mesma forma que não podemos ignorar unicidades socioculturais entre elas.

Quando questionados sobre os cuidados que tinham com os rios e igarapés, as lideranças, associando esses ecossistemas aos seus territórios de trabalho, informaram que hoje [ocasião da pesquisa] “a gente já tem uns certos cuidados para não deixar derribar os paus da beira dos igarapés porque se a gente derrubar tudo isso ai vem secar os rios e igarapés” (Entrevista Liderança 1, 2011). Dando continuidade às entrevistas, outras lideranças assim se manifestaram:

Tipo de preocupação que a gente tem hoje em relação o tratamento dos rios e igarapés? Hoje já existem alguns tratamentos porque a gente tem mais cuidado. Antigamente os rios e igarapés desses lugares eram muito mais bonitos. Porque os nossos antepassados eles cuidavam mais porque não deixavam os igarapés ser maltratados, eles tinham muito cuidado com isso (Entrevista Liderança 3, 2010).


Antigamente os rios e igarapés desses nossos lugares tinham dois lados, quando conheci tinha dois lados: de um lado havia reserva, muito peixe, não tinha barco pra poluir; do outro lado, também havia outra situação, onde não tinha higiene, plantavam só cana, jogava poluição no ar, jogava bagaço no rio, mas havia sempre dois lados, o que não existia era preocupação por que as pessoas naturalmente faziam isso, por que não havia necessidade de agredir o rio. (Entrevista Liderança 2, 2011).


Informaram ainda que em algumas áreas, “tem gente que utiliza veneno para pescar. Eles usam timbó e veneno de madeira” (E1). “Se nos tomar conhecimento que alguém joga veneno, a gente vai tomar preucação. No passado já tomei, já fizeram isso” (E2).

Ao serem perguntados se percebiam algum tipo de mudança, de diferença no conhecimento que as pessoas mais idosas tinham em relação ao uso dos rios e das matas, os entrevistados, depois de uma breve pausa, assim se manifestaram:


O conhecimento das pessoas de antigamente em relação aos usos dos rios e da mata era diferente. Eles tinham mais cuidado, não deixavam cortar as árvores de ucúuba, andiroba, essas coisas, tudo, eles não deixavam cortar, por que daí, eles tiravam a alimentação deles, agora tudo eles cortam, por causa, para plantar, fazer plantio do açaí, que é monocultura, e daí dá mais dinheiro, aí é cortado todo esses tipos de árvores.(Entrevista Liderança 1, 2011).


É, tinha menos gente, era mais fácil de preservarem, tinham mais cuidado, eles conseguiam, talvez, quem sabe já gostavam do rio valorizavam mais, depois é que veio pessoas que já tem o capitalismo na cabeça, acabam pensando mais no dinheiro do que nos valores naturais. Então tem esse lado de prejudicar por falta de consciência. Naquela época também havia paixão pela natureza, hoje existem só algumas pessoas que tem consciência de cuidado, mais existem pessoas que é por causa do dinheiro, da vaidade também prejudica. (Entrevista Liderança 2, 2011).


No contexto atual, em face do reconhecimento da problemática socioambiental que está presente em seus territórios de trabalho, as lideranças locais mostraram que

têm buscado orientar e promover ações educativas voltadas para mudanças na relação com a natureza.


Existem novos conhecimentos que são utilizados aqui na comunidade. Existem e muito! Bastante conhecimento: várias pessoas que estudam trazem conhecimento, a participação da gente na comunidade, a participação de gente nas associações, nos sindicatos tudo isso vai gerando conhecimento, que ajuda. Por exemplo, se hoje tivesse alguém que fosse jogar veneno, a gente ia tomar punição a gente não ia deixar. (Entrevista Liderança 2, 2011).


Existe novos conhecimento que são utilizados aqui na comunidade. O conhecimento sobre o manejo do açaí. A gente tem mais um conhecimento e faz por conta própria, mesmo. (Entrevista Liderança 3, 2010).


As narrativas revelam uma preocupação voltada para práticas educativas que tratem dos recursos naturais de uso coletivo, como é o rio e a mata. Na defesa dos interesses do coletivo, as lideranças buscam, por meio de parcerias, dar conta de práticas educativas socioambientais, voltadas para práticas predatórias, visando garantir sustentabilidade de seus territórios de trabalho, consequentemente, a reprodução material.

Na dinâmica do cotidiano ribeirinho, e em meio a tantas dificuldades no desenvolvimento de suas práticas produtivas, sobressai a vitalidade intelectual e política de agentes educadores que atuam nas comunidades. Esses agentes recorrem à práticas educativas, cuja formação e continuidade se propagam e se fazem por meio de outras pedagogias (ARROYO, 2012). Mesmo sem livros e sem escolas, tem o compromisso da aprendizagem de todos, conforme indica uma das narrativas: “eu acredito que se a gente sabe de alguma coisa é porque alguém também ajudou a repassar isso pra gente, né! e a gente tem a função de repassar para os outros” (Entrevista Liderança 2, 2011).


O conhecimento das pessoas mais velhas da comunidade tem sido repassado para os mais jovens, forma muito lenta, por que as pessoas ainda, hoje não tem aquele conhecimento do passado. Antes, no passado tinha mais cuidado com as matas virgens, hoje em dia, as pessoas não têm aquele cuidado que tinham. E por isso, ainda, há uma coisa, ainda muito que devemos fazer muito para as pessoas possam se conscientizar da natureza. (Entrevista Liderança 3, 2010).

Assim, os rios e matas como lugar/substrato das objetivações de práticas e experiências de trabalho, do agir histórico da vida cotidiana, configuram-se como espaço de produção e circulação de saberes.


Considerações finais


Os discursos educativos que informam as experiências de trabalho no cotidiano ribeirinho, materializadas nas relações diretas que as comunidades estabelecem com os rios e as matas, têm se constituídos em um conjunto de saberes que são construídos e/o dinamizam essas experiências.

Esses saberes, ainda que produzidos em contextos ribeirinhos, diferem de acordo com suas territorialidades, dos sujeitos que os constroem e/ou dinamizam e da materialidade das experiências que conformam as práticas produtivas.

Dessa forma, é possível considerar as experiências de trabalho dessas comunidades como espaços de realização de processos pedagógicos de aprendizagens, portanto, de circulação de saberes.

A episteme que preside os processos de aprendizagem e de transmissão de saberes por serem de ordem prática traz a possibilidade de se pensar a educação em suas formas de materialização a partir de uma perspectiva ampliada. Na região Amazônica, uma diversidade experiências de grupos sociais têm oportunizado essas reflexões.

Essas experiências mostram que a educação não pode ser reduzida ao espaço escolar (BRANDÃO, 2002), porque na prática ela se efetiva de forma ampliada. Nessas experiências estão evidenciados os diferentes perfis que assumem os agentes educadores (pescadores, agricultores familiares, coletores, pequenos artesãos, carpinteiros navais, dentre outros), o que indica que os processos educativos não podem ficar restritos ao contexto educacional formal e sob a responsabilidade dos professores, mesmo reconhecendo o papel relevante que eles têm no contexto educacional.

Por meio das narrativas dos agentes educadores, foi possível identificar uma preocupação pedagógica com as gerações, no contexto de suas experiências de trabalho, expressas na valorização e continuidade das atividades e com os elementos da natureza, por meios dos quais eles engendram seus arranjos produtivos. Essa

preocupação está materializada em “estratégias pedagógicas”, que pode ser o exemplo, a chamada de atenção, o desafio: “Tu garante” (MEDAETS, p. 2011).

Essas preocupações educativas e estratégias pedagógicas oferecem uma possibilidade de contribuir para o pensamento epistemológico voltado para o debate de uma concepção ampliada de educação. Neste sentido, é possível argumentar em favor de uma concepção de educação como cultura (BRANDÃO, 2002), educação como diálogo entre saberes (CHARLOT, 2002), o que se configura como um referencial teórico-epistemológico abrangente, capaz de dar conta daqueles processos educativos que se fazem em contextos do cotidiano social de uma diversidade de grupos sociais. Assim, é possível afirmar que por recorrerem à atenção, ao exemplo, esses “outros sujeitos educadores”, recorrem ao diálogo para a efetivação de suas práticas pedagógicas.

Dialeticamente, essa concepção ampliada de educação contrapõe-se àquelas concepções educacionais que estão assentadas em um prospecto de educação escolar, que acaba colocando à disposição da estrutura escolar uma concepção reduzida de educação, na maioria das vezes fechada em seu universo formal, fechada, portanto, para o diálogo com os contextos locais e outras experiências educativas que se fazem no cotidiano em que estão inseridos alunos que frequentam essas escolas, como é o caso dos grupos sociais ribeirinhos estudados.

A superação da dimensão educacional restrita ao ambiente escolar pode se fazer pela incorporação do conhecimento que dinamiza o cotidiano dessa diversidade de grupos sociais, dentre eles, os ribeirinhos mirienses. Mesmo porque esses saberes que sustentam suas experiências de trabalho decorrem e estão articulados à suas práticas culturais cotidianas.

A base de formação pedagógica é a práxis, no contexto da qual as experiências de trabalho têm um papel fundamental, e precisam ser compreendidas na relação ser humano/ natureza.

Portanto, a ideia de uma educação ampliada está presente em várias dimensões das experiências de trabalho, que se configuram como espaços por meio dos quais ocorrem processos de formação das comunidades estudadas. Os processos educativos integram, informam e fazem parte da dinâmica e do percurso cotidiano dos sujeitos ribeirinhos, no seu devir histórico. Neste sentido, ontologicamente estão ligados a sua reprodução material.

Epistemologicamente, é possível afirmar que esses saberes que as denominadas populações tradicionais (índios, quilombolas, ribeirinhos e outros grupos locais) detêm tradicionalmente em relação aos recursos dos rios e das matas, têm possibilitado que esses grupos contribuam efetivamente para a preservação da biodiversidade, pela forma como têm se apropriado da matéria natural na sua reprodução material e simbólica, portanto, reconhecidos como fundamentais aos seus modos de vida.

Daí a necessidade de se reconhecer que homens, mulheres e jovens que dinamizam essas experiências de trabalho são sujeitos históricos, portadores de conhecimentos.


Referências

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Recebido em: 05 de novembro de 2018. Aprovado em: 17 de novembro de 2018. Publicado em: 22 de novembro de 2018.

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TRABALHO-EDUCAÇÃO, ECONOMIA E CULTURA EM COMUNIDADES TRADICIONAIS: ENTRE A REPRODUÇÃO AMPLIADA DA VIDA E A REPRODUÇÃO AMPLIADA DO CAPITAL¹


Ana Elizabeth Santos Alves2

Lia Tiriba3


Resumo

Considerando que o trabalho de produção da vida social é em si educativo, apresentamos evidências de práticas econômicas e culturais que, embora atravessadas por mediações do capital, são calcadas nos valores de solidariedade, reciprocidade e cooperação. Referimo-nos a pescadores artesanais do Pantanal mato-grossense, quilombolas de Mato Grosso, ribeirinhos e pescadores artesanais do Pará, a pequenos agricultores e trabalhadores associados da Bahia. Numa abordagem qualitativa, a pesquisa foi desenvolvida por meio de observação participante, registro fotográfico e entrevista semiestruturada. A seleção das comunidades foi feita de acordo com as facilidades de acesso ao campo empírico e às fontes secundárias.

Palavras-chave: Trabalho-educação; Povos e comunidades tradicionais; Relações entre economia e cultura.


EDUCATION-LABOR, ECONOMY AND CULTURE IN TRADITIONAL COMMUNITIES: BETWEEN THE AMPLIFIED REPRODUCTION OF LIFE AND THE AMPLIFIED REPRODUCTION OF THE CAPITAL


Abstract

Considering life production labor itself is educational; we present evidences of cultural and economic practices that, though crossed by capital mediations, are founded on values such as solidarity, reciprocity and cooperation. We refer to: artisanal fishermen from Paraguay river (in the Pantanal in the state of Mato-Grosso), quilombolas from the state of Mato-Grosso, riverine communities and artisanal fishermen from the Pará, small farmers and associated workers from Bahia. In a qualitative approach, the research was developed through participant observation, photographic record and semi- structured interview. The selection of communities was made according to the facilities of access to the empirical field and the secondary sources.

Keywords: Education-labor; People and traditional communities; The relationship between economy and culture.


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1DOI: https://doi.org/10.22409/tn.16i31.p27375

2Doutora em Educação pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Docente do Programa de Pós- Graduação em Memória, Linguagem e Sociedade, da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). Membro do Museu Pedagógico da UESB. E-mail: ana_alves183@hotmail.com

3Doutora em Ciências Políticas e Sociologia (Programa de Sociologia Econômica e do Trabalho), pela Universidade Complutense de Madrid. Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação, da Universidade Federal Fluminense (UFF) – Mestrado e Doutorado. E-mail: liatiriba@gmail.com


O trabalho se constitui como mediação dos seres humanos com a natureza para assegurar a reprodução da vida social, material e simbólica. A premissa do princípio educativo do trabalho nos reafirma a necessidade de compreender em que circunstâncias históricas e em que relações sociais de produção se dá a atividade do trabalho, o que requer, entre outras coisas, responder perguntas clássicas da economia política: o que produzimos? Como produzimos? Por que e para quem produzimos? Como repartimos os frutos do trabalho? Para além da concepção ‘economicista’, que caracteriza a economia burguesa, vale recuperar o sentido etimológico da palavra economia: do grego Oikos (casa) e nemo (eu distribuo). Na Grécia Antiga, a Oikonomia era entendida como o conjunto de preceitos sobre a atividade de obtenção dos recursos necessários para a vida em família. Entendemos que, como atividade que se desenvolve no espaço familiar, dentro e fora da unidade doméstica, com o fim de satisfazer as necessidades da família e da comunidade (economia familiar/economia popular/economia comunitária), ou como ciência que rege os processos de produção, distribuição e consumo de uma sociedade, a economia só pode ser compreendida no conjunto das relações sociais que, historicamente, os grupos e as classes sociais estabelecem nos processos de produção da existência humana.

É no ambiente das comunidades tradicionais onde queremos refletir sobre as relações trabalho-educação, entendidas como unidade dialética. Tendo em conta que o trabalho de produção da vida social é em si educativo, nosso propósito é trazer à superfície evidências empíricas de práticas econômicas e culturais que, embora atravessadas por mediações do capital, são calcadas nos valores de solidariedade e cooperação. Essas evidências estão fundadas em modos de vida construídos em torno de relações sociais reproduzidas no interior das comunidades tradicionais, em que pesem a subordinação dessas relações ao modo de produção capitalista.

Propomos, neste artigo, descrever e analisar dados de pesquisa sobre comunidades tradicionais nas regiões norte, nordeste e centro-oeste do Brasil, buscando produzir uma reflexão por meio da literatura crítica sobre modos de vida que convivem, persistem e/ou resistem à lógica da acumulação flexível do capital.

Optamos pelos termos “povos e comunidades tradicionais” ou “comunidades tradicionais” para nos referir a pescadores artesanais do Rio Paraguai (Pantanal mato-grossense), a quilombolas de Mato Grosso, a ribeirinhos e pescadores artesanais do Rio Tocantins (Cametá/Pará), a trabalhadores(as) rurais que se autodenominam pequenos agricultores e a suas famílias que moram na microrregião de Vitória da Conquista (Bahia) e a trabalhadores rurais associados que residem na região cacaueira de Camacã (no sul da Bahia) 3.

Seguindo uma abordagem qualitativa, a pesquisa foi desenvolvida por meio de observações participantes, registros fotográficos e entrevistas semiestruturadas. A seleção das comunidades pesquisadas e dos sujeitos participantes foi feita de acordo com as facilidades de acesso ao campo empírico pelas pesquisadoras. Este artigo é fruto da articulação de duas pesquisas: “Reprodução ampliada da vida: dimensões educativas, econômicas e culturais do trabalho de produzir a vida associativamente”, coordenada por Lia Tiriba (2016), e “A centralidade do trabalho e da educação nas histórias de vida de mulheres e homens em comunidades rurais”, coordenada por Ana Elizabeth Santos Alves (2014-2017), com financiamento do CNPq. Os dados empíricos citados são oriundos das análises dessas e de outras pesquisas.


Economia, cultura e hegemonia: alguns pontos de partida


Poderia parecer redundante dizer que no modo de produção capitalista são hegemônicas as relações capitalistas de produção da vida social. Entretanto, acreditamos que, tanto E. P. Thompson (1981), como Raymond Williams (2011) nos ajudam a aprofundar o entendimento dessa assertiva marxiana – o que, para nós, justifica, epistemologicamente, a opção por eleger os modos de vida em comunidades tradicionais como objeto de reflexão.

Sobre a formação econômica e cultural da classe trabalhadora, mediada pela experiência humana, individual e coletiva, Thompson nos diz que



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3 A referência aos trabalhadores rurais associados da região cacaueira diz respeito a trabalhadores assentados pelo INCRA em duas fazendas desapropriadas pelo governo federal, no município de Camacã, BA, no final dos anos 1990.

[...] a classe se delineia segundo o modo como homens e mulheres vivem suas relações de produção e segundo a experiência de suas situações determinadas, no interior do ‘conjunto de suas relações sociais’, com a cultura e as expectativas a eles transmitidas e com base no modo pelo qual se valeram dessas experiências em nível cultural (THOMPSON, 2001, p. 277).


Refutando o reducionismo econômico e reafirmando as relações dialéticas entre base e superestrutura, ao se referir ao “conjunto das relações sociais”, Thompson quer chamar atenção para a necessidade de se considerar as formas como as pessoas apreendem as relações sociais capitalistas (que são hegemônicas) e, também, outras relações econômicas e culturais no fazer-se de homens e mulheres trabalhadores(as). Nessa perspectiva, a cultura popular se constitui como elemento indispensável para análise das experiências de classe ocorridas ao longo da ‘formação da classe operária na Inglaterra’. Concebendo a história como “processo estruturado”, em Costumes em comum, Thompson (1998) analisa as práticas culturais como parte integrante da “economia moral das multidões”, em defesa de um modo de vida que se contrapõe ao modo de vida capitalista.

Em nossos estudos, parece-nos fundamental a contribuição de Raymond Williams em relação à hegemonia, cujo conceito apreendeu do pensamento de Antonio Gramsci e que é chave para uma concepção materialista de cultura. Para Williams, hegemonia não pode ser entendida como um conceito estático, dado que suas estruturas internas são complexas e precisam ser constantemente desafiadas e, portanto, precisam ser recriadas e defendidas continuamente. Como um conjunto de significados e valores que são experimentados enquanto práticas e que se confirmam mutuamente, a hegemonia abrange muitas áreas da vida. Ela constitui “um sentido absoluto por se tratar de uma realidade vivida além da qual se torna muito difícil para a maioria dos membros da sociedade mover-se” (WILLIAMS, 2011,

p. 53). No entanto, é preciso considerar o que acontece “fora” do modo dominante, pois como afirma Williams (2011, p. 59):


Nenhum modo de produção e, portanto, nenhuma sociedade dominante ou ordem da sociedade e, destarte, nenhuma cultura dominante pode esgotar toda gama de prática humana e da intenção humana (essa gama não é o inventário de alguma “natureza humana” original, mas ao contrário, é aquela gama extraordinária de variações práticas e imaginadas pelas quais seres humanos se veem como capazes).


Nos Estados da Bahia, Mato Grosso e Pará, não seria coincidência encontrar nas comunidades tradicionais o que Raymond Williams chama de “culturas residuais” e “culturas emergentes”. Para não considerar como arcaicas ou atrasadas as culturas nessas comunidades e, muito menos, cair no romantismo em relação aos modos de vida que lá se configuram, é importante estar atento para perceber que, na prática, os modos de vida tanto podem ser ‘alternativos’, como podem ser ‘opositores’ ao modo de produção capitalista. Sobre as dificuldades de superar a hegemonia do capital sobre o trabalho, precisamos considerar que:


As dificuldades da prática humana fora ou em oposição ao modo dominante são obviamente reais. Elas dependem muito da prática estar ou não em uma área em que a classe e a cultura dominantes têm um interesse e uma participação. Se o interesse e a participação são explícitos, muitas novas práticas serão alcançadas e, se possível, incorporadas – ou então extirpadas com extraordinário vigor (WILLIAMS, 2011, p. 59-60).


A partir das contribuições de Thompson e Williams, acreditamos que as comunidades tradicionais são parte integrante e constitutiva dessas “variações práticas e imaginadas”, o que nos faz eleger seus modos de estar no mundo, considerando os nexos entre economia e cultura como pares dialéticos. Não se trata de entender questões de “ordem econômica” ou de “ordem cultural”, mas de apreender as relações econômico-culturais que tecem os fios da produção da existência humana, no intercâmbio com outros seres da natureza.


Entre quilombolas, ribeirinhos e pescadores: mediações do capital e do trabalho de produzir a vida associativamente


Mediação, contradição e particularidade são categorias do materialismo histórico que nos conduzem à análise da totalidade social, onde jovens, adultos e crianças, das comunidades tradicionais, (de)formam-se na luta pela reprodução ampliada da vida. No livro 17 contradições e o fim do capitalismo, David Harvey (2016) analisa a crise atual do capitalismo no século 21, a qual – assim como todas as suas crises – é essencial para sua reprodução: “como disse Marx certa vez, as crises mundiais sempre foram ‘a concentração real e o ajuste forçoso de todas as contradições da economia burguesa’” (HARVEY, 2016, p. 12). Para compreender os

problemas que nos desafiam, o autor nomeia as contradições do capitalismo como “fundamentais”, “mutáveis” e “perigosas”.

Como “contradições fundamentais”, Harvey destaca a contradição entre valor de uso e valor de troca, entre o valor social do trabalho, sua representação pelo dinheiro e a apropriação privada da riqueza, as quais geram a própria unidade contraditória entre produção e realização. São aquelas que são constantes do capital, em qualquer época ou lugar e cujas leis básicas se mantêm ao longo da história do capitalismo. São elas que “definem o terreno político no qual podemos delimitar uma alternativa para o mundo criado pelo capital” (HARVEY, 2016, p. 90). Entre as “contradições mutáveis”, ou seja, aquelas que resultam de determinadas circunstâncias do desenvolvimento das forças produtivas, o autor apresenta a questão do avanço da tecnologia, a descartabilidade humana, as formas desiguais de produção do espaço e de desenvolvimentos geográficos, as disparidades de renda e riqueza, entre outros. Quanto às “contradições perigosas”, tanto para o capital, como para a humanidade, ressalta a relação do capital com a natureza que, em nome de um crescimento exponencial infinito, é remodelada e reconfigurada pelas ações do capital, ameaçando a vida no planeta. Para ele,


[...] o ecossistema é construído a partir da unidade contraditória entre capital e natureza, da mesma maneira que a mercadoria é a unidade contraditória entre valor de uso (sua forma material e “natural”) e valor de troca (sua valoração social) (HARVEY, 2016, p. 230).


Em outras palavras, “o capital transformou a questão ambiental em um grande negócio. As tecnologias ambientais são cotadas a valores altíssimos nas bolsas de valores” (HARVEY, 2016, p. 231).

É no ambiente das contradições fundamentais, mutáveis e perigosas do sistema capital que os povos e as comunidades tradicionais resistem e afirmam seus modos de vida e o direito de decidir sobre seus destinos. Mas antes de tudo, é preciso dizer que o Brasil é considerado o maior consumidor de agrotóxicos do mundo: em 2010, foram utilizados mais de 800 milhões de litros em nossas lavouras, cabendo o consumo de 5,2 litros a cada brasileiro. Neoextrativismo, monocultura, uso crescente de inseticidas, de herbicidas e de outros agrotóxicos são alguns dos ingredientes da chamada ‘revolução verde’, cujo objetivo é promover desenvolvimento das forças produtivas do capital. Em busca de obter um rendimento

da terra superior ao dos cultivos tradicionais, as monoculturas são geneticamente uniformes (cultivos homogêneos de variedades de laboratório) e, a cada safra, o produtor precisa adquirir novos pacotes tecnológicos. Ao poluir as águas, extinguindo espécies nativas e grande parte da fauna dos rios, o modo de produção capitalista caminha no sentido contrário à preservação da vida, causando desequilíbrios ecológicos na cadeia alimentar. Sendo o avesso dos sistemas agrícolas tradicionais, o agronegócio desconsidera, ou coloca a seu favor os conhecimentos tradicionais sobre a interação solo-planta-água-ecossistema.

No Estado de Mato Grosso, encontramos 45 etnias, localizadas em 78 terras indígenas, que lutam pela demarcação e proteção de suas terras. Resistem também

68 comunidades pantaneiras e 69 comunidades quilombolas, espalhadas nos biomas do Pantanal, Cerrado e Amazônia (SATO et al., 2013). Nesse Estado, considerado a capital do agronegócio, verificam-se a exploração sobremaneira dos ecossistemas, a degradação da diversidade e de homens e mulheres, cuja racionalidade econômica e cultural dos modos de vida se distingue da lógica do modo capitalista de produção da vida social. A riqueza ambiental e cultural que ali se constitui, torna-se objeto de resistência e de luta contra a espoliação. Sobre os conflitos sociais ambientais, foi verificada, em 2012, a existência de “194 pontos de ocorrência, com 359 causas propulsoras, sendo 68 desses pontos denunciados como ameaças de morte e 12 locais sinalizam a prática desumana do trabalho escravo”, o que nos possibilita constatar o “cenário de insustentabilidade social e ecológica do modelo de desenvolvimento instituído em MT” (SATO et al., 2013, p. 124).

Em Mato Grosso4, Camilla Neves (2013) analisou os significados da produção associada para moradores da Comunidade Quilombola de Capão Verde, localizada no município de Pocomé. Os dados revelam que não são poucos os problemas encontrados, entre eles a forte influência do SEBRAE, em relação à perspectiva empreendedora da agroindústria de derivados de banana da terra; a saída dos mais jovens em busca de trabalho na cidade; além da escassez de água encanada:



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4 O Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Trabalho e Educação (GPTE/UFMT), coordenado pelo Prof. Dr. Edson Caetano, tem analisado diversas comunidades tradicionais no Estado de Mato Grosso, entre elas citamos a Comunidade tradicional pantaneira, de São Pedro de Joselândia; a Comunidade tradicional do Imbé; a Comunidade quilombola Campina de Pedra; a Comunidade quilombola Capão Verde; o Assentamento Rural 14 de Agosto, em Campo Verde; as Comunidades tradicionais de Cáceres, aldeias da etnia Chiquitano.

“Agora nós tamo nessa peleja aqui resolvendo questão de água. Fez rede, mas a água não chegou na minha casa, nas outra vai água tudinho insuficiência de falta de água entre outros” (CATARINO apud NEVES, 2013, p. 151)5. O descaso do poder público se manifesta em todas as esferas da vida. Quando não são suficientes o cuidado e a solidariedade dos moradores em relação às pessoas que adoecem, é preciso buscar atendimento médico:


Se precisa fazê exame vai lá no Chumbo. Nós não tem carro próprio, aí é difícil demais pra ir; o ônibus não passa lá. Prá nóis é até mais fácil ir prá Cuiabá, porque aqui nóis mora na beira da avenida, pega o ônibus e vai direto. Prá ir para Poconé nóis tem que ir lá no entroncamento de Livramento, é difícil (MARIA ALBERTINA apud NEVES, 2013, p. 106).


No Pantanal mato-grossense, onde existem cerca de 1.000 espécies de aves, 300 espécies de mamíferos, 480 espécies de répteis e 300 espécies de peixes, o sistema capital tem ameaçado a flora, a fauna e o modo de vida dos ribeirinhos e dos pescadores artesanais. No trabalho de campo realizado no Rio Paraguai, adentramos numa pequeníssima parte do patrimônio ambiental do Sistema Paraguai-Paraná de Zonas Úmidas, que abrange Brasil, Argentina, Bolívia, Uruguai e Paraguai. A beleza exuberante do Pantanal vem acompanhada de outras paisagens: plantações de soja, eucalipto, pinos e outras monoculturas; utilização sem limites de agrotóxicos e fertilizantes químicos; crescimento do rebanho bovino e suíno; poluição e contaminação dos recursos hídricos causadas por dejetos industriais, em especial pelos frigoríficos. Isso, sem falar dos empreendimentos futurísticos do hidronegócio: os projetos para construção de mais de 100 usinas hidrelétricas; a eminente ativação da Hidrovia Paraguai-Paraná, para escoamento da produção agropecuária; a crescente construção de barragens e de tanques para a piscicultura, nas lâminas d’água da região, etc. A ganância voraz do capital tem alterado o pulso de inundações na planície do Pantanal, prejudicando a biodiversidade da região, limitando a migração de peixes que sobem os rios para a reprodução e retendo organismos aquáticos importantes para a alimentação dos seres humanos e não humanos (TIRIBA; SANTANA, 2017).


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5 A citação é um fragmento de entrevista colhida por Camila Neves na pesquisa de campo com um morador de comunidade na região de Mato Grosso.

Mediados pelo capital e pelo trabalho de produzir a vida associativamente (TIRIBA; FISCHER, 2013), mulheres e homens das comunidades tradicionais resistem, estabelecendo intensas relações com a natureza. Como lembra Valter Cruz (2012, p. 598), “esses grupos possuem extraordinária gama de saberes sobre os ecossistemas, biodiversidade e os recursos naturais [...]” e que “[...] o acervo de conhecimento está materializado no conjunto de técnicas e sistemas de uso e manejo dos recursos naturais, adaptado às condições do ambiente em que vivem”. É por isso que, para o pescador Sérgio, do Pantanal Mato-grossense, “é como se a [gente] fosse um biólogo, na verdade”. Para Seu Justino, que está atento ao caminho das águas e dos peixes, é um equívoco antecipar a Piracema para o mês de outubro:

Sabe por quê? Porque natureza é natureza. A chuva pode vir mais cedo ou vir mais tarde. Eu penso é isso. De repente, [a temporada de pesca] fecha mês que vem. De repente a chuva não vem. O peixe que vai sofrer. Não somos nós. O peixe não vai subir. A ova vai ficar na barriga dele. Se tiver água, ela vai subir. Se não tiver, ela não vai subir. É isso o que vale (JUSTINO apud TIRIBA; SANTANA, 2017, p. 70).


Figura 1 – Pescador artesanal do Pantanal Mato-grossense.


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Fonte: Foto de Lia Tiriba (2016).


Figura 2 – Acampamento de pescadores artesanais do Pantanal Mato-grossense.


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Fonte: Foto de Lia Tiriba (2016).


No cotidiano da pesca, é preciso se proteger de muitos perigos, entre eles, o perigo da Onça Pintada e “do bicho-homem, ou melhor, dos homens-de-negócio que se enriquecem à custa da exploração do trabalho alheio” (TIRIBA; SANTANA, 2017,

p. 70). Para driblar a lógica perversa dos atravessadores e de outros representantes dos interesses do capital, além de se vincular à Colônia de Pescadores Z-02, um grupo de pescadores e pescadoras têm se mobilizado, com o apoio do Núcleo UNEMAT – UNITRABALHO, da Universidade do Estado do Mato Grosso, para organizar uma cooperativa que fortaleça laços de solidariedade e reciprocidade.

Em Cametá, no Estado do Pará, os pescadores artesanais do Rio Tocantins sabem Prá onde sopram os ventos (BARRA, 2015). Depois da criação da Usina Hidroelétrica de Tocantins e de outras ações de empresários vinculados ao agronegócio e ao hidronegócio, os impactos ambientais foram desastrosos. A usina foi projetada na época da ditadura empresarial-militar e sua construção iniciada em 1975. O objetivo da política de modernização conservadora foi tornar navegável um trecho do Rio Tocantins, gerar energia para a região, em especial para siderúrgicas de produção e exportação de alumínio. Ao desviar o curso do rio e provocar inundações numa área de 2.830 km², a obra expulsou centenas de família das comunidades quilombolas, indígenas, ribeirinhas e pequenos trabalhadores rurais,

remanejando mais de 25 mil pessoas. Além disso, a construção da barragem, fechada em 1984, repercutiu em praga de mosquitos, em surto de malária, entre outros6. Em síntese,


[...] a instalação desse projeto alterou profundamente o modo de vida dos habitantes dessa área, principalmente por terem incluído em seu cotidiano outras formas de relacionamento com os novos atores que chegavam à região: as grandes empresas, particularmente a Eletronorte (DIEGUES, 1999, p. 55).


A cerca de 200 km ao norte de Tucuruí, às margens do Rio Tocantins, encontra-se o município de Cametá, com suas esplendorosas ilhas, igarapés e povoados. Sobre os sentidos do trabalho para o pescador artesanal, Barra (2015, p.

26) nos indica que “o rio e a terra são compreendidos não só como espaço de trabalho, mas também de moradia, de sobrevivência, de convivência comunitária e de educação”. No entanto, a deterioração do meio ambiente faz com que os ribeirinhos do Baixo Tocantins, tanto de terra firme, quanto das ilhas, tenham que buscar outras formas de trabalho.

Em julho de 2017, participamos de uma reunião com pescadores, lideranças locais, além de professores e pesquisadores da Universidade Federal do Pará/Campus de Cametá. As necessidades de complementar a renda familiar pareciam ser tantas, que um antigo pescador se mostrou muito preocupado com o futuro das crianças e jovens ribeirinhos, sugerindo que a escola passasse a dar aula de informática para os alunos, ou seja, preparasse-os para um mundo de trabalho estranho aos ribeirinhos.

Em sua tese de doutorado, Egídio Martins (2017) analisa, exaustivamente, as condições de vida e trabalho dos pescadores de Cametá. O relato de um pescador artesanal diz que eles necessitam de ajuda, “[...] porque a dificuldade é grande, não existe como a gente somente pescar para sustentar a família diretamente do Baixo Tocantins. Saio para mariscar, por exemplo, com a malhadeira, às vezes não consigo do almoço” (Pescador 5 apud MARTINS, 2017, p. 143). Para assegurar melhores condições de vida e de trabalho, os pescadores artesanais reivindicam do Estado seus direitos sociais. Foi fundamental a organização e a resistência dos(as)


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6 Sobre as consequências, 25 anos depois da construção da Hidrelétrica de Tucuruí, ver o vídeo Tucuruí – a saga de um povo, produzido pelo Movimento Nacional de Atingido por Barragens (2010). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=NSm8J3CUsOU>.

trabalhadores(as) em torno da Colônia de Pescadores Z-16 que, até o final da década de 1980, atendia aos interesses dos atravessadores e de outros representantes do capital.


Com ajuda da pastoral dos pescadores, começamos a reunir, a gente reunia três, quatro, cinco, vezes, debatendo, discutindo as formas, de conquistar a Colônia. Dessas nossas reuniões surgiu uma reunião grande, realizada no sindicato dos trabalhadores rurais, eu não estava, mas eu soube que queriam brigar, teve briga, o pessoal do Lilico se revoltaram contra o nosso pessoal (Pescador 3 apud MARTINS, 2017, p. 116).


Além de outras formas associativas de trabalho, a Colônia de Pescadores Z- 16 estimulou a criação, em 2008, da Cooperativa de Empreendimentos Autogestora de Cametá (COOPAC), que produz e comercializa palmito, além de manter um tanque de peixes, camaroeira, plantio de banana e cupuaçu. Segundo um dos pescadores “[...] o projeto da fábrica de palmito, de gelo, o laboratório de alevinos, tudo é resultado da Colônia, todos estão funcionando” (Pescador 3 apud MARTINS, 2017, p. 143).


Figura 3 – Cametá, margens do Rio Tocantins/Pará.


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Fonte: Foto de Lia Tiriba (2017).


Figura 4 – Embalagem do Palmito produzido pela COOPAC.


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Fonte: Foto de Lia Tiriba (2017).


É continua a luta para que prevaleçam os interesses do trabalho e não do capital. Os embates ocorrem, inclusive, nos momentos de eleição dos coordenadores de base, cujo trabalho é encaminhar as demandas da comunidade, estimular sua participação nos cursos de formação e em outras atividades promovidas pelo grupo. Orgulhoso, um pescador conta que quando se tornou coordenador de sua comunidade passou “[...] a contribuir na conscientização do povo da importância que tinha o nosso direito [...] às vezes ficava velho na pesca era quando ia se aposentar, não tinha entidade nenhuma para se representar” (Pescador

6 apud MARTINS, 2017, p. 150). Os pescadores considerados ‘capitalizados’ representam uma constante ameaça aos pescadores artesanais:


O desafio daqui para frente é não deixar a ‘peteca cair’, segurar a Colônia nas nossas mãos, [...] já tem uma chapa formado, para disputar a eleição da Colônia, tem um pessoal que já estão capitalizado, não querem ser considerado pescador artesanal, aquele que não tem o grande capital, pescador artesanal tem que ter barco de dez tonelada para baixo, pescador que se diz pescador capitalizado, tem grande barco e outras coisas, comércio etc. por isso que tem essa polêmica aí (Pescador 3 apud MARTINS, 2017, p. 160).

Os saberes adquiridos no processo de trabalho e nos processos formativos promovidos no âmbito da Colônia de Pescadores Z-16 têm sido importantes para enfrentar a força do vento, que sopra mais a favor do capital e muito menos a favor de mulheres e homens trabalhadores que povoam a região. No que diz respeito à conquista do Seguro Defeso e ao Acordo de Pesca, Doriedson Rodrigues (2015, p.

44) lembra que, “ao tomarem o saber sobre o Estado e suas políticas assistencialistas, [os pescadores] fortalecem-se politicamente enquanto classe para si e percebem nesses elementos, fatores importantes para manter a coesão enquanto classe” Para Martins,


[...] as experiências construídas na práxis política dos pescadores da Z-16 estão imbuídas de contradição, de modo que, ao lutarem para dar conta de sua subsistência, lutam também contra as ações das ideologias da classe que detém o poder dos meios de produção, mas, ao mesmo tempo, necessitam dessa classe, por meio do Estado, para subsidiar sua condição de existência (MARTINS, 2017, p. 49).


Enfim, ribeirinhos, pescadores e quilombolas lutam como povos e comunidades tradicionais e como classe trabalhadora para assegurar modos de vida fundados em relações de solidariedade. Sobre formas de sociabilidade que fortalecem a associatividade entre homens e mulheres trabalhadoras, John Comerford (2003) ressalta a importância dos laços existentes de parentesco, compadrio, amizade e pertencimento religioso. Tomando de Bailey o conceito de “comunidade moral”, centrada na construção de relações de reputação, indica que, no processo de luta em defesa dos direitos sociais, os laços vão se fortalecendo no interior das comunidades rurais e dos sindicatos de classe, constituindo-se como “comunidade moral militante”. Mas, é preciso não mistificar as relações que se estabelecem nas comunidades tradicionais. Como nos indica Thompson (1998), embora o sentimento de pertencimento ao grupo seja um elemento indicativo da existência de práticas e de valores compartilhados, a cultura não se constitui como campo de consenso, mas como campo de conflitos7.


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7 Pesquisas realizadas no Brasil, no campo da antropologia e da sociologia, inspiradas em teorias funcionalistas, definiam uma Comunidade “como um lugar de igualdade, integração e afeto, sem levar em conta os conflitos, as mudanças e as hierarquias” (ALVES; SILVA, 2013, p. 43). Esses estudos podem ser conhecidos em coletânea organizada por Florestan Fernandes (1972). No Estado da Bahia, por exemplo, no final dos anos 1940, realizaram Estudos de Comunidade na região da Chapada Diamantina, especialmente nas cidades de Rio de Contas e Nossa Senhora do Livramento

Modos de vida e sociabilidade em comunidades tradicionais rurais


“Modos de vida” é um conceito multidimensional e de definição incerta, em função de diversas concepções teórico-metodológicas presentes no campo das ciências sociais (BRAGA; FIÚZA; REMOALDO, 2017). Para a finalidade de nossa análise, neste texto, ‘modos de vida’ é compreendido como um conjunto de práticas sociais cotidianas de um determinado grupo social, relacionadas ao mundo do trabalho, à vida familiar, ao consumo e ao lazer, articuladas com a sociedade em geral (GUERRA, 1993). Os modos de vida, em comunidades tradicionais rurais, remetem-nos a formas de existir do camponês na luta diária em busca de sobrevivência, nas práticas rotineiras para manutenção e reprodução da vida construída em torno da terra, da família e do trabalho, mediado por relações de solidariedade com parentes e vizinhos (MARQUES, 2004). A “ajuda mútua” visa o “bem comum” da comunidade. Materializa-se nas trocas cotidianas de ferramentas de trabalho, nos mutirões para plantio e para colheita, na manutenção de estradas, pontes, na organização de casamentos, batizados e festividades que acontecem após a realização dos trabalhos coletivos.

Os saberes do trabalho são produzidos cotidianamente. A cultura é transmitida de geração em geração. Como Tardin, podemos dizer que, em seu dia a dia, o ser camponês estabelece fortes relações com a natureza e que sua forma de estar no mundo exige


conhecimentos amplos, entre outros, sobre as plantas cultivadas e os animais silvestres criados; saberes sobre produção, proteção, conservação, transformação e armazenagem; sobre usos que incluem a gastronomia [...]; sobre o clima, o vento, a temperatura, a chuva, a seca, a geada; sobre as estações do ano e o ciclo lunar; sobre fertilizantes, ferramentas e máquinas de trabalho; sobre construção; e sobre produção artesanal, roupas, calçados, adornos (TARDIN, 2012, p. 180).


Em comunidades tradicionais rurais da região de Planalto (BA8), os modos de vida se caracterizam por vínculos estreitos de homens e mulheres com a natureza,



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de Brumado, no desenvolvimento do “Programa de Pesquisas Sociais Estado da Bahia” em parceria com a Universidade de Columbia (EUA).

8 Análises sobre as comunidades tradicionais rurais de Planalto (BA) já foram objeto de outras publicações como Alves (2013, 2016).

por relações de parentesco e de vizinhança com fortes laços comunitários, fundadas em princípios de sociabilidade que visam a “construção política de um ‘nós’ que se contrapõe ou se reafirma por projetos comuns de existência e coexistência sociais” (WELCH et al., 2009, p. 13), na conservação de costumes e tradições.

A sociabilidade entre os grupos familiares se manifesta na “ajuda mútua” no trabalho doméstico, na roça e na cooperação em acontecimentos importantes, como a realização de festas de casamento e a construção de casas. Ao mesmo tempo, evidenciamos que os modos de vida também são tecidos no âmbito da sociabilidade do capital, por meio da inserção produtiva no trabalho assalariado em outras terras ou nas cidades. A narrativa de uma das moradoras retrata bem essa situação:


Nos tempo das plantações mesmo as chuvas faltam, outra hora quando dá uma chuvinha a gente pranta, o tempo levanta. Eles acham melhor trabalhar fora pra ganhar o dinheiro já apurado de que trabalhar na roça e risca não ter nada, mas muita gente não pensa assim não [...]9.


Nessa região, a produção familiar enfrenta as adversidades das condições naturais do lugar, pelo tipo de vegetação da Caatinga, com baixa precipitação pluviométrica, além da instabilidade gerada pela fragilidade das condições econômicas, educacionais e tecnológicas. A esse respeito, a Companhia de Desenvolvimento e Ação Regional (CAR), órgão do governo estadual da Bahia, desenvolveu projeto de extensão, de 2008 a 2011, nessas comunidades, com o objetivo de ensinar e de colocar em prática conhecimentos sobre quintais produtivos (para as mulheres) e sobre criação de pequenos animais (para os homens). Também distribuiu mudas de plantas e incentivou os moradores a fundar a Associação dos Pequenos Agricultores de Jacó e Poço Dantas. A iniciativa de formação de uma associação contribuiu para o fortalecimento político dos moradores. Eles tomaram para si essa ação e foram em busca de recursos e de estratégias alternativas para a construção de um projeto emancipatório, para a vida das famílias. A perspectiva de “ajuda mútua”, que caracteriza a cultura camponesa, pode ser verificada, como indica Tardin (2012, p. 181), com a “formalização de sistemas organizativos voltados para o alcance de resultados econômicos mais vantajosos”, como associações comunitárias e cooperativas. Entretanto, esse projeto esbarrou nas contradições do

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9 Entrevista concedida pela moradora Rosa, no documentário A luta da vida da gente: História, Trabalho e Educação em comunidades rurais (A LUTA..., 2014).

capitalismo, que produz um perverso processo social que desestrutura o universo das relações pessoais dos indivíduos (ALVES; ALMEIDA, 2014). Além dos conflitos com os modos de vida próprios do mundo rural, considerados por muitos como símbolo de atraso, é premente a necessidade de busca de trabalho em outros lugares.

Em grande parte, a satisfação das necessidades básicas de sobrevivência das famílias é feita fora da roça, também pelas aposentadorias e por recursos das políticas sociais. Muitas vezes, é preciso sair para trabalhar fora da comunidade. Contudo, persiste sempre a esperança e a resistência em retornar ao lugar, como explica uma das moradoras “A gente nasceu e criou aqui, né, a gente gosta daqui, né, do lugar que a gente nasceu. Eu lhe disse que eu sair fora muitos anos pra cuidar dos filhos, pra trazer sempre as coisas pra casa, mas o lugar que a gente nasceu é muito bom pra gente morar” (A LUTA..., 2014)10.

Em um passeio porta adentro, nas casas dos grupos familiares das comunidades de Planalto, observamos um modo de vida arranjado e provisório, mas, ao mesmo tempo, um lugar de acolhimento para quem visita ou para quem tem familiaridade com os moradores. José de Souza Martins (1998, p. 695) descreve realidade semelhante, quando observa os modos de vida de gente simples das cidades do interior do Nordeste. As casas são distintas entre si e evidenciam a existência de condições econômicas diferentes entre os grupos familiares, atestando a existência de uma certa hierarquia entre eles, em termos de estrutura ocupacional e nível de renda. Por exemplo, há casas que possuem instalações sanitárias, portas nos cômodos, fogão a gás e a lenha, geladeira, televisão, máquina de lavar e computador. Outras não possuem sanitários, somente o fogão a lenha, televisão e as entradas dos quartos são fechadas com cortinas.

É também interessante chamar a atenção para a marcante presença dos símbolos religiosos nas paredes de todas as casas, em acessórios usados pelas mulheres, nas roupas, nos calendários, nas estatuetas, como diferentes formas de as pessoas manifestarem sua religiosidade e seu fervor. Essa característica, própria “das tradições sertanejas” (MARTINS, 1998, p. 690), revela um modo de vida desse povo, em constante devoção, esperança e fé.


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10 Entrevista concedida pela moradora Edilene, no documentário A luta da vida da gente: História, Trabalho e Educação em comunidades rurais (A LUTA..., 2014).

A presença da antena parabólica, da TV e do telefone celular evidencia a não separação entre o urbano e o rural, entre o tradicional e o moderno. O modo de vida segue os costumes típicos da cultura nordestina, que lembram o tempo das chuvas, o tempo do São João. Porém, o modo de agir, de vestir dos jovens e os artigos dentro das casas sofrem influências da vida da cidade, construindo um elo entre as pessoas das comunidades e o mundo das mercadorias. Por exemplo, observamos a reutilização de objetos para a execução de funções diferentes das originalmente previstas, como a transformação de peneiras de cessar grãos ou areia em escorredor de pratos; a transformação de latas vazias de extrato de tomate em canecas, evidenciando “o que é reutilizado” (MARTINS, 2011, p. 33).


Figura 5 – A casa e os símbolos religiosos. Comunidade de Boa Vista, em Planalto –BA


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Fonte: Foto de Juliana Pereira Barbosa (2012).



Figura 6 – Sala de visitas de uma casa na Comunidade Poço Dantas, em Planalto –BA


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Fonte: Foto de Ediléia Rodrigues Lima (2012).


Figura 7 – A louça escorrendo na peneira. A cozinha “ao ar livre” integrada à natureza. Comunidade Poço Dantas, em Planalto -BA


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Fonte: Foto de Tânia Maria Rodrigues da Rocha (2013).


Ainda que esteja claro, entre os moradores, a apropriação dos modos de viver do mundo urbano, por meio do uso e do consumo de mercadorias – a exemplo do celular, das motocicletas – os modos de vida tradicional e o sentimento de pertencimento ao lugar permanecem. Martins (1998, p. 692) lembra que as transições de vida e de mentalidade que ocorrem nas “populações regionais, de modo algum significam que houve grandes transformações nos costumes e nas tradições”.

Em comunidades na região de Planalto (BA), essas formas específicas de modos de vida rural originaram a cooperação junto a uma associação local. Nessa associação, além do desenvolvimento das atividades de lazer, de reuniões com os associados para discutir os problemas das comunidades, os moradores conseguiram conquistas relacionadas a projetos coletivos de produção da vida social. Um exemplo são as parcerias para a construção de tanques de captação de água da chuva com a Articulação Semiárido Brasileiro (ASA), formada por uma rede de sindicatos rurais, associações de agricultores e agricultoras, cooperativas, organizações não governamentais (ONGs) e Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP). Como lembra Tardin (2012, p. 183) sobre a cultura camponesa, “do imediato familiar, as relações se estendem para o plano da comunidade, como espaço de vizinhança, da realização do trabalho solidário e cooperado e da sociabilidade mais intensa.”

A dissertação de mestrado de Urania Teixeira Amaral (2016) revela que, num outro local, no povoado de Itaipu (BA), também região de caatinga, os grupos familiares apresentam a característica particular de serem compostos por famílias extensas, que mantêm proximidade entre as casas dos parentes e que estabelecem laços afetivos com o lugar. Ao lado disso, o ciclo de vida dos moradores também se faz pela migração temporária. Os homens vão trabalhar na construção civil e as mulheres como empregadas domésticas. Outro exemplo são as migrações anuais para as lavouras de café, em regiões circunvizinhas, com o objetivo de trabalhar no processo de colheita até o término da safra, retornando, ao final do trabalho, para o povoado. Tais trabalhadores(as) não migram livremente, mas são condicionados(as) pelo sistema capital. Essa realidade confronta com o modo de vida no povoado, que se caracteriza pelas estratégias associativas das famílias com seus vizinhos e seus

parentes. Abandonam, ainda que temporariamente, a produção autônoma de sua existência “para a reprodução de um modo de vida compatível com a ordem social institucionalizada por aqueles que são os seus opressores” (WELCH et al., 2009, p. 13).

Depoimentos de trabalhadores(as) que foram trabalhar em São Paulo, segundo Amaral (2016, p. 70), evidenciam o quanto eles(as) “se sentiram muitas vezes, ‘estranhos’ num ambiente totalmente diferente do que estavam habituados”. A grande metrópole produz um “processo de estranhamento do cidadão diante da cidade”, como explica Ana Fani Carlos (2007, p. 38), e os sujeitos não se reconhecem como habitantes daquele lugar. “O processo de mobilidade do trabalho é difícil para os trabalhadores, se levado em conta a representação simbólica que construíram ao longo de um tempo histórico com o lugar e os grupos sociais com os quais conviveram” (AMARAL, 2016, p. 49).

Em outra localidade, no Assentamento da Fazenda Nova Ipiranga, município de Camacã, região sul da Bahia, onde vivem trabalhadores assentados, conforme a pesquisa de campo desenvolvida por Claudete Ramos de Oliveira (2018), há uma associação de moradores assentados, desde 1998, que garante atividades coletivas para os trabalhadores e suas famílias, ainda que rudimentares e reconhecidamente insuficientes pelos próprios moradores. Receberam os lotes por meio do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) sem, entretanto, ganhar os direitos trabalhistas por parte do antigo proprietário. O que caracteriza esse lugar como uma comunidade associada são as moradias. Dividem o mesmo espaço, quatro grupos de moradias: dois grupos que já viviam na fazenda antes dela se constituir em um assentamento e dois grupos que se mudaram para lá após o governo federal constituir o assentamento e formar a associação de moradores. O assentamento possui uma escola municipal, que atende crianças até o 5º ano do Ensino Fundamental; igrejas de denominações diferentes – Católica e Protestante – organizadas a partir das necessidades dos moradores e pelos próprios interessados. A associação reúne os moradores que discutem as necessidades coletivas como financiamentos, formação para o trabalho rural e participação em eventos do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) regional. Os assentados se autodenominam trabalhadores rurais assentados. A falta de documentos oficiais

definindo que pedaço de terra cabe a cada família provoca discussões, divergências e incredulidade de que um dia venham a obter o documento de posse.

A possibilidade da posse da terra para realização de um projeto de vida coletivo, orientado pelos valores da ética camponesa, propicia aos próprios trabalhadores se contraporem a formas de dominação da grande propriedade, “concebida como destruidora da dignidade social” (WELCH et al., 2009, p. 15), e a situações de exploração e humilhação que sofreram pelos proprietários das fazendas de cacau.

As mulheres trabalham no lote da família e quando há necessidade, por falta de renda da terra, oferecem sua força de trabalho na zona urbana da cidade, normalmente como empregadas domésticas. Quando jovens, trabalham em pequenas lojas e recebem valores insignificantes. Segundo as próprias trabalhadoras, “acabam pagando para trabalhar”, pois gastam com o transporte e a alimentação.

Em outro assentamento na mesma região, na Fazenda Auxiliadora, há três grupos de moradias, um deles pré-existente ao assentamento. A associação promove, junto à Secretaria de Governo Estadual, um projeto de piscicultura para os jovens trabalhadores rurais, mas esse tipo de cultivo não faz parte da cultura e do modo de viver dessas pessoas. Eles são, tradicionalmente, cacauicultores. Essa situação causou prejuízos para a comunidade e desânimo entre os(as) trabalhadores(as) de continuar desenvolvendo o trabalho. Há um secador e despolpador do café que é produzido no assentamento, no entanto, muitos preferem vender o café ainda “mole” aos atravessadores, como uma forma de obtenção de dinheiro mais rápido. De acordo com Oliveira (2018), essa realidade desqualifica a existência do projeto associado. Parece que esses projetos de extensão rural, fundamentalmente, são caracterizados pelos trabalhadores como uma agressão as suas próprias relações com a terra e ao sentimento de pertencimento ao lugar, ou seja, eles impõem uma luta em defesa de um modo de vida.

Ainda no Estado da Bahia, em uma Comunidade Remanescente de Quilombo, no município de Vitória da Conquista, segundo a dissertação de mestrado desenvolvida por Tania Maria Rodrigues Rocha (2015, p. 12), os moradores vivem uma relação social construída no trabalho coletivo na agricultura familiar de subsistência, entre os grupos familiares, com uso de técnicas tradicionais, “movidos

por um sentimento de pertença [...] um comprometimento com o outro, e na partilha da terra”. Os costumes introduzidos pelos antepassados são ensinados aos mais jovens, por meio da oralidade, junto aos mais velhos, a fim de assegurar a preservação da memória desse povo. Por exemplo, uma das tradições guardadas pelos moradores do quilombo é o casamento entre parentes, com a finalidade de preservar as famílias e a posse da terra. Além disso, para eles, a instituição social do casamento tem um sentido simbólico e cultural. O “exemplo disso é a confecção do vestido da noiva por uma única senhora costureira da comunidade, que além de costurar o vestido, é testemunha dos casamentos, tornando-se madrinha da maioria [...]” das noivas (ROCHA, 2015, p. 66).

A manutenção da “cultura costumeira” (THOMPSON, 1998) significa a afirmação de um modo de vida, preservando as tradições, os costumes, a memória e a força de um povo perante a sociedade em geral. O significado da terra e a sua conquista para a comunidade permitem construir um projeto coletivo de vida e de trabalho, que, quiçá, possa se tornar parte integrante de um projeto maior de homens e mulheres assumirem plenamente o controle do próprio processo de trabalho – projeto esse que se constitui como principal objetivo da luta da classe trabalhadora.


Para concluir...


O agricultor conhece as suas estações, o marinheiro conhece seus mares, mas ambos permanecem mistificados em relação à monarquia e à cosmologia (THOMPSON, 1981, p. 16).


Thompson (1981) convida-nos a refletir que a experiência do trabalho é válida dentro de determinados limites. Podemos dizer que entre a experiência vivida, a experiência percebida e a experiência modificada, há um grande caminho a percorrer, o que requer, entre outros elementos, que homens e mulheres das comunidades tradicionais tenham acesso a uma educação que lhes permita compreender e confrontar seus modos de vida com o modo capitalista de produção da existência humana. Afinal, como é possível pensar um projeto de emancipação humana sem considerar que tanto as contradições fundamentais, como as contradições mutáveis do capitalismo, indicadas por Harvey (2016), afetam sobremaneira seus modos de vida? Na verdade, essas contradições são

constitutivas da totalidade social, na qual homens e mulheres se produzem e são produzidos. O fim dessas contradições pressupõe o fim do próprio capitalismo, cujo crescimento exponencial tem ameaçado a vida de todos os seres da natureza.

Historicamente, as políticas agrárias brasileiras perpetuam as grandes propriedades e não estimulam o acesso à posse da terra por parte dos desapropriados, ou dos pequenos donos de terra, nem a formas de investimentos em capitais tecnológicos e educacionais (WANDERLEY, 2009). As classes dominantes buscam controlar a força de trabalho e a formação de um exército de reserva de desempregados ou subempregados. Nesse sentido, as formas de sociabilidades comunitárias são atravessadas por formas de sociabilidade impostas pelo capital.

Embora, muitas vezes, esses trabalhadores e essas trabalhadoras sejam obrigados(as) a vender sua força de trabalho para realização de trabalho assalariado precário, afirmam-se por meio de relações econômicas e culturais construídas no âmbito da comunidade, com o objetivo de garantir a reprodução ampliada da vida, e não do capital. Essas relações são estabelecidas mediante estreitos vínculos com a sociedade em geral, tanto pelo acesso aos meios de comunicação de massa, como pelo consumo de mercadorias produzidas por empresas capitalistas. Ali, ainda que em menor escala, o fetiche da mercadoria também se faz presente.

Acreditamos que os espaços/tempos das comunidades tradicionais, onde se verificam experiências do trabalho de produzir a vida associativamente (TIRIBA; FISCHER, 2013, 2015), podem ser considerados como espaços/tempos de formação humana tensionados pelas contradições entre capital e trabalho. Embora o objetivo das atividades de trabalho seja a reprodução ampliada da vida, o modo de produção capitalista, por ser hegemônico a outros modos de produção da vida social, vai criando as condições objetivas e subjetivas para que homens e mulheres de comunidades tradicionais se submetam, de forma subordinada, aos processos de reprodução ampliada do capital. Nessa perspectiva, o ‘trabalhar para viver’ vai se transformando em trabalho-mercadoria, cujo objetivo é a produção de valores para o mercado capitalista. Na luta cotidiana pela sobrevivência, as mediações primárias são atravessadas por mediações do capital.

De qualquer maneira, podemos afirmar que os modos de vida comunitários e observados nas pesquisas em comunidades tradicionais em Mato Grosso e no Pará,

como também na Bahia, evidenciam que as relações entre seres humanos, natureza e cultura não correspondem ao modo dominante, instituído pelo capital. Trata-se de um fenômeno extremamente mutável, conforme as transformações sócio-culturais e econômicas da sociedade, o que faz com que os nexos entre trabalho, educação e sociabilidade também o sejam da mesma forma. Como nos assegura Wanderley (2000, p. 89):


As profundas transformações resultantes dos processos sociais mais globais – a urbanização, a industrialização, a modernização da agricultura – não se traduziram por nenhuma “uniformização” da sociedade, que provocasse o fim das particularidades de certos espaços ou certos grupos sociais.


Os povos e as comunidades tradicionais resistem, em maior ou menor grau, à contradição vital entre sociabilidades pautadas na reprodução ampliada da vida e sociabilidades pautadas na reprodução ampliada do capital. Florestan Fernandes lembra que Antonio Cândido, autor da obra clássica, Os parceiros do Rio Bonito, analisou o modo de vida dos “caipiras paulistas” e em uma de suas reflexões sobre a pequena comunidade, demonstrou o “dilema social que a civilização urbana cria para a integridade e a continuidade da cultura caipira” (FERNANDES, 1972, p. 49). Entretanto, é interessante observar que os costumes das comunidades tradicionais se mantêm, pois não é pouca a resistência dessa gente em preservar seus modos de vida baseados na solidariedade, na cooperação e na reciprocidade. Não por acaso, Thompson (1987, 1998) insiste que a classe é uma formação tanto econômica, como cultural e, portanto, toda luta de classes se constitui como luta por valores.

Eleger mulheres e homens trabalhadores de comunidades tradicionais como objeto/sujeito de nossas pesquisas contribui para desvelar saberes tradicionais, costumes e normas de convivência que não coadunam com a lógica perversa do capital. Sem desconsiderar a premissa das determinações econômicas como última instância, assim como Thompson, entendemos que economia e cultura não são instâncias separada da vida social. De acordo com suas próprias palavras: “é essencial manter presente no espírito o fato de os fenômenos sociais e culturais não estarem ‘a reboque’, seguindo os fenômenos econômicos à distância: eles estão em seu surgimento, presos na mesma rede de relações” (THOMPSON, 2001, p. 208).

Estudos sobre cultura popular de povos e comunidades tradicionais podem contribuir para o entendimento de como a sociedade de mercado vai expandindo a assimilação de hábitos de consumo do “mundo maravilhoso das mercadorias” (MARTINS, 2012, p. 43) para essa gente, fomentando o processo de acumulação do capital. Também contribuem para evidenciar que, contraditoriamente, mulheres e homens expressam modos de vida calcados em relações econômicas-culturais não capitalistas. Tendo em conta as contribuições de Raymond Williams em relação à hegemonia, cujas estruturas internas são complexas e precisam ser recriadas continuamente, insistimos que os modos de vida, nessas comunidades tradicionais, nos asseguram que nenhum modo de produção e, portanto, nenhuma cultura dominante pode esgotar a “gama extraordinária de variações práticas e imaginadas pelas quais seres humanos se veem como capazes” (WILLIAMS, 2011, p. 59). Como pesquisadoras, nosso desafio é apreender a “estrutura na particularidade histórica do conjunto das relações sociais” (THOMPSON, 2001, p. 248).


Referências


A LUTA da vida da gente: História, Trabalho e Educação em comunidades rurais. Produção de Ana Elizabeth Santos Alves et al. Vitória da Conquista: Museu Pedagógico da UESB/PROVÍDEO, 2014. DVD.


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Recebido em: 22 de agosto de 2018. Aprovado em: 28 de setembro de 2018. Publicado em: 22 de novembro de 2018.

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A PRODUÇÃO ASSOCIADA EM COMUNIDADES E POVOS TRADICIONAIS EM MATO GROSSO: PESQUISAS E REFLEXÕES COLETIVAS DO GEPTE/UFMT1


Edson Caetano2 Anatália Daiane de Oliveira Ramos3

Eva Emília Freire do Nascimento Azevedo4


Resumo


Tendo como referência o materialismo histórico dialético, este texto visa analisar a produção associada como forma de produzir a existência de povos e comunidades tradicionais - MT, a partir de pesquisas desenvolvidas pelo Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Trabalho e Educação, da UFMT. Refletimos acerca da produção associada expressa pelos povos e comunidades tradicionais que questionam os ditames da sociedade capitalista e podem contribuir para a construção de uma sociedade pautada na existência solidária e igualitária entre os seres humanos, bem como, respeito aos demais seres vivos e a “Pachamama”.

Palavras-chave: trabalho-educação; povos e comunidades tradicionais; produção associada


LA PRODUCCIÓN ASOCIADA EN COMUNIDADES Y PUEBLOS TRADICCIONALES EN MATO GROSSO: INVESTIGACIONES Y REFLEXIONES COLECTIVAS DE GEPTE/UFMT

Resumen


En el marco del materialismo histórico dialéctico, este texto busca analizar la producción asociada como forma de producir la existencia de pueblos y comunidades tradicionales – MT -, a partir de las investigaciones desarrolladas por el Grupo de Estudios e Investigaciones sobre Trabajo y Educación, de la UFMT. Reflexionamos sobre la producción asociada expresadas por las personas y las comunidades tradicionales que cuestionan los dictados de la sociedad capitalista y pueden contribuir a la construcción de una sociedad basada en la solidaridad y la igualdad entre los seres humanos, así como el respeto de los otros seres vivos y la "Pachamama".

Palabras clave: trabajo-educación; pueblos y comunidades tradicionales; producción asociada.


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1DOI: https://doi.org/10.22409/tn.16i31.p27376

2Doutor em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e professor do Instituto de Educação (IE) da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Mestre em Educação pela UNI- CAMP. Graduado em Ciências Sociais pela PUCCAMP. Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Trabalho e Educação (GEPTE). E-mail: caetanoedeson@hotmail.com.

3Pedagoga e mestra em Psicologia pela Fundação Universidade Federal de Rondônia (UNIR). Doutoranda em Educação pela UFMT. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa de Educação na Amazônia (GPEA). Participante do GEPTE. Bolsista CAPES. E-mail: anataliadaiane@hotmail.com.

4Assistente social e mestra em Serviço Social pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Doutoranda em Educação da UFMT. Professora do Departamento de Serviço Social na UFMT. Participante do GEPTE. E-mail: evemilia@yahoo.com.br.



Introdução


A literatura sobre os povos e comunidades tradicionais e suas características (específicas e comuns) é vasta, entre algumas autoras e autores estão: Brandão e Borges (2007), Brandão e Leal (2012), Cruz (2013), Diegues et al. (2000), Caetano e Neves (2014), Santos (2013) e Souza e Brandão (2012).

Apesar disso, a ampliação das investigações que se ocupem da existência dos povos e comunidades tradicionais se faz necessária, sobretudo por evidenciarem elementos questionadores do modo de produção capitalista, podendo assim, contribuir para a construção de um outro modelo societário ancorado na sociedade dos produtores livremente associados.

Desta forma, partindo do materialismo histórico dialético, o presente texto tem como objetivo analisar a produção da existência de povos e comunidades tradicionais de Mato Grosso, a partir das pesquisas desenvolvidas no Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Trabalho e Educação (GEPTE), do Programa de Pós- Graduação em Educação (PPGE) da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Organizamos o texto da seguinte forma: na primeira parte, refletimos inicialmente, acerca da centralidade do trabalho enquanto elemento fundante do ser humano e posteriormente, sobre o trabalho como princípio educativo. Na segunda seção examinamos as investigações produzidas no âmbito do GEPTE/UFMT no tocante à produção associada, evidenciando as motivações que nos fazem voltar o nosso olhar para essa temática. Na terceira parte compartilhamos impressões e resultados concernentes às pesquisas desenvolvidas pelo GEPTE, realizadas junto aos povos e comunidades tradicionais. E finalmente, tecemos considerações a partir das notas de pesquisa que nortearam a produção coletiva do GEPTE quanto as

práticas econômico-culturais expressas pelos povos e comunidades tradicionais.


A centralidade do trabalho e a relação trabalho-educação


Tomando como referência os pressupostos marxiano e marxista, partimos da perspectiva ontocriativa do trabalho enquanto atividade vital do ser humano. Nesse sentido, Antunes (2009a, p. 136), afirma que o trabalho tem um caráter transitório,

pois é inter-relação do ser humano com a natureza e com seus pares – período que se caracteriza pelo “[...] salto ontológico das formas pré-humanas para o ser social”.

O uso da mão e o domínio sobre a natureza através do trabalho permitiram que o ser humano descobrisse nos objetos “novas propriedades até então desconhecidas” (ENGELS, 2013, p. 17). Assim, também foram desenvolvidas outras habilidades, como a fala e os cinco sentidos. Segundo Marx (2013, p. 31),


[...] o trabalho é um processo entre o homem e a natureza, um processo em que o homem, por sua própria ação, media, regula e controla seu metabolismo com a natureza. [...] Ele põe em movimento as forças naturais pertencentes à sua corporalidade, braços e pernas, cabeça e mão, a fim de apropriar-se da matéria natural numa forma útil para sua própria vida.


Por isso, diz-se que o ser humano transforma a natureza e também a si mesmo, submetendo-a ao seu domínio e criando conhecimentos, objetivos, objetos, necessidades, desenvolvendo seu potencial, suas habilidades etc. Tudo isso se dá através da ideação, ou seja, de um projeto que já aconteceu antes, na sua imaginação – diferença apontada por Marx (2013) entre o ser humano e os demais seres vivos.

Para Marx (2013, p. 33), a terra e a água são “[...] como fonte original de víveres e meios já prontos de subsistência para o homem”. A terra, como “despensa natural”, fornece aos seres humanos não apenas as condições para sua existência, mas também os meios de trabalho. Todavia, se em tempos mais remotos, o ser humano tinha essa relação e contato direto com a natureza para suprimento de suas necessidades, a realidade do trabalho foi profundamente alterada a partir da posse privada da terra.

Sem a intenção aqui de aprofundar a trajetória histórica da humanidade, destacamos a partir de Saviani (2007), dois momentos que foram cruciais para a mudança no mundo do trabalho: o advento do capitalismo e a revolução industrial. Para o autor,


[...] o avanço das forças produtivas, ainda sob as relações feudais, intensificou o desenvolvimento da economia medieval, provocando a geração sistemática de excedentes e ativando o comércio. Esse processo desembocou na organização da produção especificamente

voltada para a troca, dando origem à sociedade capitalista. Nessa nova forma social, inversamente ao que ocorria na sociedade formal, é a troca que determina o consumo. (SAVIANI, 2007, p. 158).


Assim, as relações entre homens e mulheres também mudaram, pois deixaram de ser fundadas nos laços naturais para se efetivarem por laços “[...] propriamente sociais, isto é, produzidos pelos próprios homens. Trata-se da sociedade contratual, cuja base é o direito positivo e não mais o direito natural ou consuetudinário” (SAVIANI, 2007, p. 158).

Nas relações sociais de produção, a exploração passou a ser cada vez mais presente, decorrente da separação entre classes. Assim, os que detêm o capital e os que detêm a força de trabalho, não possuem condições iguais – embora seja esse o discurso liberal (FRIGOTTO, 2010).

A Revolução Industrial (1820-1840) é marcada pela presença da maquinaria e a não exigência de qualificação para certos ofícios – que passaram a ser executados pelas máquinas. Isso significou menos utilização da força de trabalho humana, que se tornou coadjuvante (SAVIANI, 2007). Nesse sentido, a criação das máquinas afetou as outras criaturas – também criadoras –, cada vez mais distanciadas das possibilidades de satisfação das suas necessidades. Assim,


[...] os ingredientes intelectuais antes indissociáveis do trabalho manual humano, como ocorria no artesanato, dele destacam-se, indo incorporar-se às máquinas. Por esse processo, dá-se a mecanização das operações manuais, sejam elas executadas pelas próprias máquinas ou pelos homens, que passam a operar manualmente como sucedâneos das máquinas. Pode-se, pois, estabelecer uma relação entre o caráter abstrato do trabalho assim organizado, com o caráter abstrato próprio das atividades intelectuais: o trabalho tornou- se abstrato, isto é, simples e geral, porque organizado de acordo com os princípios científicos, também eles abstratos, elaborados pela inteligência humana. (SAVIANI, 2007, p. 158).


Uma contradição inerente ao modo de produção capitalista é a produção de riqueza de uns para apropriação da riqueza, por outros. Os que produzem se tornam mais pobres e, também, mercadorias. Nas palavras de Marx (2008, p. 80, itálico do autor),

O trabalhador se torna tanto mais pobre quanto mais riqueza produz, quanto mais a sua produção aumenta em poder e extensão. O trabalhador se torna uma mercadoria tão mais barata quanto mais mercadorias cria. Com a valorização do mundo das coisas (Sachenwelt) aumenta em proporção direta a desvalorização do mundo dos homens (Menschenwelt). O trabalho não produz somente mercadorias; ele produz a si mesmo e ao trabalhador como uma mercadoria, e isto na medida em que produz, de fato, mercadorias em geral.


No século XX, diversos acontecimentos redesenharam os rumos do capitalismo: a sua crise (1929-1932); as tentativas de encontrar respostas para ela, através de maior intervenção do Estado na economia; a segunda guerra mundial (1939-1945), os trinta anos gloriosos do capitalismo, dentre outras.

Antunes (2009a, p. 31, itálico do autor) explica que, após um período de acumulação de capitais, na década de 1970 o capitalismo começa a evidenciar uma nova crise marcada pela “queda da taxa de lucro”, pelo “esgotamento do padrão de acumulação taylorista/fordista de produção”; pela “hipertropia da esfera financeira”, pela maior “concentração de capitais graças às fusões entre as empresas monopolistas e oligopolistas”; pela crise do Welfare State; e pelo incremento acentuado das privatizações.

Essas mudanças foram – e são – sentidas pelos trabalhadores e trabalhadoras de forma cada vez mais perversa. Nesse sentido, Antunes (2009b), afirma que o trabalho que deveria ser fonte de humanidade, fez – e faz – com que homens e mulheres sejam desumanizados, pois na sociedade capitalista, o trabalho transformou-se em trabalho assalariado, fetichizado, alienado, estranhado e meio de subsistência.

As transformações no mundo do trabalho: redução do trabalho estável; aumento do trabalho terceirizado e feminino, subcontratos, trabalhadores part-time; alterações no setor de serviços; trabalho a domicílio; exclusão de idosos (ANTUNES, 2009a; ALVES, 2004; ANTUNES, 2009b), além da reforma trabalhista recentemente aprovada, são exemplos do cenário contemporâneo.

Embora o trabalho na perspectiva do modo de produção capitalista condicione homens e mulheres aos seus preceitos e intentos, educando-os com seus padrões de comportamento, de utilização do tempo e de pensamento que não os agrega enquanto coletivo, existe outra perspectiva de trabalho. Essa está relacionada a um

diferente modo de produzir a existência, no qual a educação não é utilizada a fim de inculcar no ser humano valores, padrões e ideologia correspondentes ao interesse do capital, mas de construção de outra possibilidade de ser e existir no mundo, conforme tratamos na subseção a seguir.


Trabalho e educação: possibilidades e desafios


Embora o trabalho carregue consigo uma série de características negativas – comuns ao modo de produção capitalista, como, por exemplo, aquele que nos rouba o tempo de sermos mais do que trabalhadores e trabalhadoras; que explora nossa força e energia; que nos condiciona a um tempo que não é necessariamente o nosso; que não permite que entendamos a complexidade do todo e das relações que nos circundam –, ele está intrinsicamente relacionado à educação.

Saviani (2007) afirma que, no processo de tornar-se homem, o ser humano cria a si mesmo, produz a sua própria existência, educar a si e às outras gerações, por isso, a origem da educação está relacionada à origem do próprio homem. É o trabalho o mediador desse com a natureza “no processo de criação e recriação da realidade humano-social” (TIRIBA; PICANÇO, 2010, p. 20).

Segundo Saviani (2007, p. 155), “o desenvolvimento da produção conduziu à divisão do trabalho e, daí, à apropriação privada da terra, provocando a ruptura da unidade vigente nas comunidades primitivas”. Com a separação dos homens e mulheres em classes, a educação também sofreu divisão, passando a ser uma para a classe dominante – voltada às artes, exercícios físicos etc. – e outra, para a dominada – relacionada ao próprio processo de trabalho.

A escola nascida na antiguidade foi se “[...] complexificando, alargando-se até atingir, na contemporaneidade, a condição de forma principal e dominante de educação, convertendo-se em parâmetro e referência para aferir todas as demais formas de educação” (SAVIANI, 2007, p. 156). Ela foi também subordinada aos interesses do modo de produção capitalista, a fim de reproduzir o seu metabolismo, adequando – através de seus conteúdos e instrumentalidade – homens e mulheres a um padrão previamente estabelecido (FRIGOTTO, 2010).

Caetano (2011) destaca que, devido a reestruturação produtiva e seus impactos, a partir da década de 1980 diversas estratégias de trabalho e

sobrevivência foram (re)criadas por uma parcela da classe trabalhadora, especialmente no âmbito da economia (popular) solidária. Muitas dessas iniciativas se apresentaram – e ainda se apresentam – como possibilidades para a existência de outra forma de organização do trabalho.

Dentre elas, podemos destacar a Produção Associada, que segundo Tiriba (2008, p. 81),


[...] está relacionada a associativismo, entendido como um conjunto de práticas sociais informais ou instituídas desenvolvidas por grupos que se organizam em torno dos ideais e objetivos que compartilham. [...] o associativismo caracteriza-se pela construção de laços sociais calcados na confiança, cooperação e reciprocidade, o que confere aos seus membros o sentimento de pertencimento ao grupo. Quanto à produção associada, ela pode ser entendida de duas maneiras, não necessariamente excludentes: quer como trabalho associativo ou processo em que os trabalhadores se associam na produção de bens e serviços, quer como a unidade econômica básica da “sociedade dos produtores livres associados”.


Na Produção Associada, o trabalho não é alienado nem alienante; a mercadoria não se separa do produtor; inexiste a propriedade individual dos meios de produção e a mais-valia, possibilitando que os trabalhadores e trabalhadoras possam construir de forma coletiva uma nova concepção de mundo, de trabalho e de existência.

Nos espaços da Produção Associada, nota-se a relação intrínseca da educação, da produção de conhecimento e de saberes decorrentes da experiência. Por isso diz-se que,


Conceber a educação e os saberes numa perspectiva ampliada, ou seja, que não se restrinja ao espaço da escola, não implica desconsiderar a importância da reflexão acerca da educação formal, não se trata de estabelecer critérios valorativos entre a educação formal e a educação não formal. Trata-se isto sim, do reconhecimento da existência de espaços diversos aonde os saberes podem ser construídos e dentre esses múltiplos espaços destacamos o da produção ou do trabalho [...]. (CAETANO, 2011, p. 8).


Para além de contribuir com uma crítica ao modo de produção capitalista e as mazelas decorrente do mesmo, a produção e os saberes desse outro modo de organização do trabalho “[...] reforçam o sentimento de pertencimento ao grupo e a

vontade de manter uma cultura ligada à questão da terra, o que possibilita que eles lutem coletivamente contra possíveis problemas sociais, econômicos, territoriais e culturais” (CAETANO, 2011, p. 15).


Povos e comunidades tradicionais: possíveis conceitualizações


O Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Trabalho e Educação (GEPTE), foi criado em 2010, vinculado à Linha de Pesquisa “Movimentos sociais, política e educação popular” do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da UFMT.

Os estudos desenvolvidos no âmbito do GEPTE “[...] analisam as relações entre trabalho e educação presentes nos processos de produzir a vida associativamente, em especial nas chamadas ‘comunidades tradicionais’ da baixada Cuiabana (Mato Grosso) ” (CAETANO, 2011, p. 8-9).

Neste sentido, as pesquisas se debruçam sobre os fundamentos econômicos, culturais, políticos e sociais do trabalho e dos processos formativos humanos, “[...] concebendo o trabalho não apenas no seu sentido ontológico, mas, sobretudo como princípio educativo” (CAETANO; NEVES, 2014, p. 597).


A partir da centralidade do trabalho e do seu princípio educativo, surge no interior do referido Grupo de Pesquisa uma dupla preocupação: de um lado, a tentativa de compreensão dos sentidos do trabalho como condição natural do homem e a sua possibilidade educativa; e de outro, a preocupação reflexiva sobre a configuração assumida pelo trabalho no modo de produção capitalista [...] (CAETANO; NEVES, 2014, p. 597).


Evidencia-se, assim, que a divisão do trabalho, a distribuição das riquezas, as relações de poder, as questões de gênero, as relações com a comunidade local e com os movimentos populares, os processos de decisão, os objetivos da produção associada, a concepção de mundo, a resistência, a preocupação com o meio ambiente e a utilização do tempo, são alguns dos aspectos analisados pelas e pelos integrantes do Grupo (CAETANO, 2011).

O intuito do GEPTE é questionar as premissas do modo de produção capitalista (CAETANO, 2011), dar visibilidade às formas de produção da existência dos povos e comunidades tradicionais e de outras populações consideradas

minoritárias e que são excluídas, entre elas as dos assentamentos e acampamentos, pois demonstram “[...] que o modo de produção capitalista não é onipresente em nossa sociedade [...]” (SANTOS, 2013, p. 169).

Neste sentido, visando apreender outras culturas do trabalho e outras dimensões da formação humana, o GEPTE privilegia a análise da vida cotidiana de povos e comunidades tradicionais, cujo propósito é


[...] contribuir, de alguma maneira, para a autodeterminação dos povos, para o direito de escolher e decidir soberanamente sobre suas formas de produzir a vida. Por meio da pesquisa, o GPTE4 quer contribuir com a preservação e o desenvolvimento de práticas que vão de encontro ao modo capitalista de produção da vida social. (TIRIBA; FISCHER, 2015, p. 408).


Ao realizar estudos e pesquisas com os povos e comunidades tradicionais, os participantes do GEPTE se comprometem social e politicamente com suas causas, afinal, como referem Brandão e Borges (2007), inexiste a neutralidade científica em pesquisas.

Segundo Cruz, o termo “tradicional” carrega uma conotação negativa, sinônimo de atrasado, ignorante e improdutivo, “[...] em contraponto com a ideia de um modo de vida e de um modo de produção modernos, marcados pela urbanização, pela industrialização, pela produtividade e pela velocidade [...]” (2013,

p. 598). Neste sentido, como mencionado por Silva, os povos e comunidades tradicionais são tratados como arcaicos, ultrapassados e impeditivos ao crescimento do país, já que não se enquadram “[...] aos padrões de modernidade e de progresso” (2011, p. 74), pois suas existências possibilitam a preservação das diversidades biológicas e das diferenças culturais, expressando diariamente uma resistência e possibilitando a construção de novas/velhas perspectivas de relações econômica, social, política e ambiental.

Segundo Cruz, os termos povos e comunidades tradicionais na dimensão teórico-conceitual compõem uma categoria de análise e, na dimensão histórico- política, se conceituam como categoria da ação política. Neste sentido,


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4 A partir de sua criação, já se utilizou duas nomenclaturas para se referir ao Grupo: Grupo de Pesquisa Trabalho e Educação (GPTE) (CAETANO, 2011), e posteriormente, Grupo de Estudos e Pesquisas em Trabalho e Educação (GEPETE) (SANTOS, 2013).

Entender o significado desses termos implica discutir sua origem, sua historicidade e suas diversas formas de apropriação como “categoria de análise” – ou seja, como conceito socioantropológico que busca nomear, caracterizar e classificar certas comunidades rurais – e como “categoria da ação” – ou seja, como identidade sociopolítica mobilizadoras das lutas por direitos. Estas duas dimensões, embora apresentem especificidades, entrecruzam-se nas lutas e disputas em torno dessas categorias, que são, ao mesmo tempo, epistêmicas e políticas. (2013, p. 594-595).


Nosso foco neste texto não é aprofundar a origem e historicidade do conceito povos e comunidades tradicionais – embora o julguemos importante5 – e sim, descrever algumas das características que esses povos e comunidades apresentam. Não desconsideramos que cada povo e comunidade tradicional possua sua singularidade – que deve ser estudada, apreendida e respeitada –, fundada não apenas na região geográfica e climática onde estão inseridos, mas também nos aspectos econômico-culturais. Embora como citado por Souza e Brandão (2012, p.

110), para alguns autores e autoras, o essencial é “[...] diferenciar e desvendar o que cada local pesquisado tem de singular”, no presente artigo, trabalharemos com as

características comuns aos povos e comunidades tradicionais. Nesse sentido, Diegues et. al. (2000, p. 18) afirmam que


Numa perspectiva marxista, as culturas tradicionais estão associadas a modos de produção pré-capitalistas, próprios de sociedades em que o trabalho ainda não se tornou mercadoria, em que a dependência do mercado já existe, mas não é total. Essas sociedades desenvolveram formas particulares de manejo dos recursos naturais que não visam diretamente o lucro, mas a reprodução cultural e social como também percepções e representações em relação ao mundo natural marcadas pela ideia de associação com a natureza e a dependência de seus ciclos. [...]. Essas culturas se distinguem daquelas associadas ao modo de produção capitalista em que não só a força de trabalho, como a própria natureza, se transforma em objeto de compra e venda (mercadoria). Nesse sentido, a concepção e representação do mundo natural e seus recursos são essencialmente diferentes.


Diegues et. Al. citam como constitutivos dos povos e comunidades tradicionais “[...] as comunidades caiçaras, os sitiantes e roceiros tradicionais,

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5 Evidenciamos que se trata de uma categoria de análise e de ação política produzidas desde o final da década de 1970 e, particularmente, a partir da década de 1990, os termos “povos e comunidades tradicionais” foram sendo apropriados por vários grupos sociais, movimentos sociais, organizações não governamentais (ONGs), mídia, academia e ainda pelo Estado (CRUZ, 2013).

comunidades quilombolas, comunidades ribeirinhas, os pescadores artesanais, os grupos extrativistas e indígenas” (2000, p. 22).

Para Cruz (2013, p. 595-596, itálico do autor), estão incluídos na categoria de povos e comunidades tradicionais os


[...] povos indígenas, quilombolas, populações agroextrativistas (seringueiros, castanheiros, quebradeiras de coco de babaçu), grupos vinculados aos rios ou ao mar (ribeirinhos, pescadores artesanais, caiçaras, varjeiros, jangadeiros, marisqueiros), grupos associados a ecossistemas específicos (pantaneiros, caatingueiros, vazanteiros, geraizeiros, chapadeiros) e grupos associados à agricultura ou à pecuária (faxinais, sertanejos, caipiras, sitiantes- campeiros, fundo de pasto, vaqueiros).


Entre as várias características dos povos e comunidades tradicionais, Cruz (2013) enfatiza quatro delas: “a relação com a natureza (racionalidade ambiental) [...]; a relação com o território e a territorialidade [...]; a racionalidade econômico- produtiva [...] e as inter-relações com os outros grupos da região e autoidentificação” (2013, p. 596-597).

As peculiaridades elencadas pelo autor revelam a produção da existência dos povos e das comunidades tradicionais, e como já apontado por Tiriba e Fischer (2015, p. 408), “[...] mesmo no contexto da acumulação flexível do capital, é possível identificar, nas comunidades tradicionais, características significativas de práticas econômico-culturais fundadas também em mediações de primeira ordem6” ou em outras palavras, apontam “[...] o enfrentamento dos povos e comunidades tradicionais para resistir às mediações de segunda ordem do capital7” (TIRIBA; FISCHER, 2015, p. 411).

Percebemos que os povos e comunidades tradicionais possuem forte vínculo

– de pertencimento e de identidade – com o território (CAETANO; NEVES, 2014; CRUZ, 2013; SOUZA; BRANDÃO, 2012). Por isso, extrapolam os limites e as


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6 As mediações de primeira ordem “[...] abrangem as relações em cujo quadro tanto os indivíduos da espécie humana como as entrelaçadas condições culturais/intelectuais/morais/materiais cada vez mais complexas de sua vida são reproduzidos segundo a margem de ação sócio-histórica disponível e cumulativamente ampliada” (MÉSZAROS, 2011, p. 212).

7 Mediações de segunda ordem são “[...] os meios alienados de produção e suas ‘personificações’; o dinheiro; a produção para troca; as variedades da formação do Estado pelo capital em seu contexto global; o mercado mundial [...]” (MÉSZAROS, 2011, p. 71).

fronteiras geográficas de habitação, compreendendo também “[...] os ambientes simbólicos, místicos, políticos e econômicos” (SOUZA; BRANDÃO, 2012, p. 111).

Assim, segundo Souza e Brandão (2012), para os povos e comunidades tradicionais, a terra é o lugar que possibilita a produção material da vida, bem como, proteção, abrigo e partilha vidas. Por isso, segundo Caetano e Neves (2014), a sua propriedade, posse, gestão e repartição da produção tende a ser coletiva. A terra oportuniza a plantação e o cultivo de maneira peculiar, revelando uma cultura de trabalho específica dos povos e comunidades tradicionais, que inclusive, expressa a indissociabilidade na relação entre vida, trabalho e terra, bem como, privilegia as relações fundadas na troca e na reciprocidade, “[...] o trabalho familiar, a troca de dias e os mutirões com forma de reprodução” (SOUZA; BRANDÃO, 2012, p. 113).

Desta forma, o núcleo familiar e a relação entre seus membros são valorizadas e os laços de parentesco são fortes (CAETANO; NEVES, 2014; SOUZA; BRANDÃO, 2012). Assim, a vida cotidiana é composta pelos sentimentos de afetividade, amizades, vizinhanças, compadrio, reciprocidade e laços consanguíneos ou de casamento.

Entre os povos e comunidades tradicionais existem uma concepção e uma utilização do tempo que permitem que as pessoas, além de trabalharem, realizem outras atividades como festas, visitas, passeios, conversas, reuniões, lazer, cuidado com as outras pessoas da comunidade, reivindicações referentes à terra, à cultura e à identidade, contemplação da natureza etc. (CAETANO; NEVES, 2014; OLIVEIRA; CAETANO, 2018).

Outra característica desses povos e comunidades é a forte ligação com os antepassados e às raízes históricas. Por isso, existe resistência às mudanças e persiste a produção da vida baseada em ritos e crenças tradicionais (SOUZA; BRANDÃO, 2012). Neste sentido,


Todas essas reflexões vêm reafirmar a autonomia que as comunidades tradicionais têm para a manutenção do saber tradicional e da relação harmônica com a natureza. A persistência e resistência de cada um desses povos ao “novo” reafirma a luta pela manutenção de saberes, refletidos na cultura tradicional. (SOUZA; BRANDÃO, 2012, p. 118).

Por fim, a partir de Caetano e Neves (2014) e Tiriba e Fischer (2015), mencionamos que é possível observar a presença de elementos da Produção Associada nos povos e comunidades tradicionais. Segundo Tiriba e Fischer (2015, p. 420),


Podemos observar diversos indicadores do trabalho de produzir a vida associativamente, ou melhor, do trabalho associado. O processo se caracteriza por reduzida divisão social e técnica, o que propicia ao conjunto da comunidade o conhecimento de todo o processo de trabalho. Os frutos do trabalho são, majoritariamente, para a manutenção da vida material e simbólica das famílias e das comunidades (sobrevivência) – e não para fins de troca mercantil. A relação com a natureza é de intercâmbio e de equilíbrio vital.


Neste sentido, destacamos que, ao conhecer e considerar as características que os povos e as comunidades tradicionais apresentam, o GEPTE, por meio de uma postura crítica e política, tem o intuito de “lançar luz” às suas causas e contribuir na construção de uma nova sociedade em que mulheres e homens produzam suas vidas de forma livre e associada.


Campo empírico: dizeres e fazeres dos povos e comunidades tradicionais


Nessa seção destacamos pesquisas realizadas pelo GEPTE sobre práticas econômico-culturais dos povos comunidades tradicionais do Estado do Mato Grosso. O método utilizado em todas as pesquisas foi o materialismo histórico dialético, pois além de ser postura/concepção de mundo, é um método de apreensão da realidade,

na “[...] busca da transformação e de novas sínteses no plano do conhecimento e no plano da realidade histórica” (FRIGOTTO, 1989, p. 73).

Tal método compreende que a realidade não é algo estanque, mas que se altera cotidianamente, e para apreendê-la e dar conta de seus aspectos, se faz necessário um constante exercício de sair do particular, da “aparência”, intentando “atingir a essência” dos fenômenos (KOSÍK, 2002, p.16, itálico do autor).

Pensar na possibilidade de outra forma de organização do trabalho pode, por vezes, causar estranheza, considerando nossa imersão no modo de produção capitalista, em que a força de trabalho é alienada em troca de um salário, onde existem hierarquias, relações de competitividade e os meios de produção são

privados. Tendo como pano de fundo reflexões -produzidas no âmbito do GEPTE- acerca de experiências de Produção Associada, pode-se vislumbrar a ampliação da liberdade quanto às atividades realizadas pelos trabalhadores e trabalhadoras, através da opção por determinadas etapas do processo de trabalho a partir da predileção, habilidade e satisfação pessoal. A não exploração de uns sobre os outros e a posse coletiva dos meios de produção também a marcam, pois, inexistindo capataz ou supervisor, cada trabalhador e trabalhadora compreende a importância do seu empenho na produção, privilegiando assim, o coletivo e a solidariedade.

A produção associada enquanto categoria histórica, de acordo com Tiriba (2006, p. 118)


deve ser concebida em dois sentidos. O primeiro vincula-se à constatação (a olho nu) de que a reprodução da classe-que-vive- trabalho, em especial, dos trabalhadores oriundos dos setores populares, requer uma verdadeira produção associada, pressupondo a criação de redes de solidariedade, de colaboração para que, cotidianamente, possam garantir sua sobrevivência. A reprodução ampliada de vida requer a coordenação do esforço coletivo do conjunto de pessoas que compõem a unidade de produção, seja ela unidade doméstica, cooperativa ou de qualquer outro empreendimento econômico. O segundo sentido de “produção associada” caminha no horizonte econômico-filosófico marxista, no qual a mesma é entendida como unidade básica da sociedade dos produtores livremente associados na produção.


De acordo com Neves, o trabalho associado pode ser realizado por homens, mulheres e crianças, é autogestionário, não possui regras nem funções definidas durante o processo de produção, favorecendo que as pessoas realizem “[...] a atividade de que mais gostam ou tem mais habilidade, e sempre ajudando uns aos outros” (NEVES, 2012, p. 140), prevalece o repartir equitativo dos frutos excedentes e liberdade individual e é baseado nos seguintes princípios: “[...] solidariedade, cooperação, divisão dos frutos do trabalho, decisões coletivas e democráticas, entre outros” (NEVES, 2012, p. 141).

A reflexão de Guerino (2013) reforça a prevalência do trabalho coletivo junto aos povos e comunidades tradicionais, ao reconhecer que no trabalho associado para a produção da rapadura, participam homens, mulheres, crianças e adolescentes, constituindo-se, pois, em um trabalho coletivo. Os participantes

ressaltam que a produção da rapadura é relevante por assegurar o sustento, a alimentação e a imunização contra doenças, da mesma forma que, os aproxima dos seus antepassados, face a organização da produção ser a mesma.

Fica evidente que os trabalhadores e trabalhadoras -povos e comunidades tradicionais- preocupam-se em preservar não apenas o trabalho coletivo, mas, o processo produtivo tradicional, ou seja, o mais próximo possível da forma como era realizado pelos seus antepassados. É de fato outra concepção de vida e de mundo, já que, o intuito do trabalho realizado pelos mesmos não é produzir riqueza – embora evidenciem o desejo de ter uma qualidade de vida melhor –, mas, assegurar suas existências, sem a submissão ao trabalho assalariado.

Costa (2017, p. 135) relata que a produção associada ocorre a partir de práticas coletivas e ancestrais de trabalho, como por exemplo “[...] a partir da ‘Troca de Dia’, em que uma família ajuda a outra sem que para isso utilize pagamento em dinheiro por este trabalho, mas sim dispondo do seu tempo para ajudar outras pessoas [...]”. Por seu lado, Monlevade (2018) ratifica a afirmação anterior ao destacar que o trabalho é o lugar onde se materializa em grande medida, o existir como comunidade. Os produtores e produtoras trabalham de forma coletiva, ajudando-se uns aos outros, desde o momento de cascar a macaxeira até ela se transformar em farinha. A “troca de dia” permite que uns se dediquem exclusivamente a produção de farinha do outro e esse trabalho é “pago” em outro momento, através do mesmo processo.

Outra prática coletiva e ancestral de trabalho associado recebe a denominação de


Muxirum que consiste em uma ação coletiva mediante a qual, durante a semana, os moradores realizam atividades laborais, como: plantar, carpir, colher, entre outras, na roça de uma pessoa; no outro dia, essa mesma ação ocorre na roça de outro, e assim por diante. O trabalho que uma pessoa realizaria em uma semana é realizado coletivamente em um dia. Essa prática aumenta a produção, diminui o dispêndio de força física e institui relações de solidariedade, cooperação, amizade, parceria, entre outras (CAETANO; NEVES, 2014, p. 604).


O ritmo e o tempo de trabalho são determinados pelas trabalhadoras e trabalhadores, que exercem atividades em que possuem afinidade e que lhes dão

prazer, socializando saberes. Desta forma, a Comunidade é “[...] um lugar marcado pela vida coletiva, em um espaço compartilhado e em um tempo marcado pelo som da vida e não do relógio” (COSTA, 2017, p. 23). Nesse sentido, Caetano e Neves (2014, p. 601) ressaltam que, nos territórios dos povos e comunidades tradicionais seja possível, ainda hoje, que homens e mulheres “disponham de tempo para contemplar a natureza, muitas vezes expropriado do trabalhador formal. Lá é possível ver as plantas crescerem, ouvir o canto dos passarinhos, deixar a terra correr entre os dedos e provar lentamente o doce das frutas”.

Os moradores exteriorizam sua relação com o trabalho, com a vida, com a natureza, os laços de solidariedade, o cuidado que têm entre si, os saberes da experiência, como por exemplo Dona Morena – moradora de uma comunidade tradicional-:


Aqui a gente não sente que tá trabalhando, não é uma coisa de sofrimento o nosso trabalho. Aprendemos que a vida é curta, mas precisa de cuidado, por isso, o trabalho é nossa vida, nosso cuidado com as árvore daqui, com as criança daqui, com os doente daqui, com a nossa rapadura e tudo que você pode enxergar aqui. (GUERINO, 2013, p. 49).


As observações empíricas, as entrevistadas/depoimentos e as reflexões consideradas neste texto, esboçam a configuração que a Produção Associada expressa a partir dos povos e comunidades tradicionais, onde são evidenciados os saberes da experiência; a solidariedade (no processo de trabalho, nos mutirões, nas festas, nas relações sociais etc.); a não exploração de uns sobre os outros; a inexistência de competição e a posse coletiva da terra e dos meios de produção entre outros.


Os saberes da experiência e a produção associada


Segundo Azeredo (2013), a produção associada contribui para a produção de saberes, materializada cotidianamente. Essa produção de saberes refere-se ao tempo das águas, à hora de plantar, aos mitos que rodeiam o povo pantaneiro, às plantas medicinais que curam, à produção da canoa e da viola de cocho e a produção de redes.

Os saberes da experiência são inerentes à produção associada da vida e apontam para uma velha/nova cultura do trabalho. Esses saberes são resultado da experiência (THOMPSON, 1987, 1998) com o trabalho associado, com os meios de produção (terra), com o mundo e com outros trabalhadores (CAETANO; NEVES, 2014, p. 606).

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Os saberes da experiência, elencados abaixo, podem “[...] ser o embrião de uma velha/nova cultura do trabalho” (NEVES, 2012, p. 81).


Quadro 1 – Saberes da experiência



Terra

Saberes que são transmitidos oralmente de geração para geração, como por exemplo, a cura de doenças/enfermidades por meio do uso de plantas, raízes e ervas da região.


Parteiras

Saberes que ajudavam no nascimento das crianças, que se perderam,

pois, as parteiras morreram e as mais jovens não deram continuidade à prática.


Benzedeiras

Saberes utilizados para auxiliar na cura de doenças/enfermidade.

Também não existem mais, já que não houve pessoas que perpetuassem essa prática.

Crendices e

tradições populares

Festas religiosas, nas quais materializam a crença e o culto a santos.

O processo de organização dessas festas é ensinado pelos pais, sendo que homens, mulheres e crianças participam das atividades.


Trabalho

As crianças aprendem cotidianamente por meio da observação e prática. Elas aprendem o como e o porquê. Aprendem vários tipos de atividades, como foi o caso do Sr. Justino, um dos participantes da pesquisa, que

aprendeu a lidar com a terra, a ser carpinteiro, pedreiro, marceneiro, sapateiro etc.

Experiências com o

trabalho assalariado

As pessoas que saem da Comunidade em busca de emprego e estudo, quando retornam a ela compartilham as dificuldades vividas, o que possibilita, entre outras coisas, que outras pessoas desistam de sair da Comunidade.

Fonte: Produzido pelo autor e pelas autoras com base em Neves (2012).


Os trabalhadores e as trabalhadoras valorizam os saberes transmitidos pelos mais idosos e, por isso, eles são valorizados e se constituem enquanto estratégia que assegura a perpetuação de saberes constitutivos de uma maneira singular de ser e existir. Nessa perspectiva Thompson (1988, p. 18) assevera que


O aprendizado, como iniciação em habilitações dos adultos, não se restringe à sua expressão formal na manufatura, mas também serve como mecanismo de transmissão entre gerações. A criança faz seu aprendizado das tarefas caseiras primeiro junto à mãe ou avó, mais tarde (frequentemente) na condição de empregado doméstico ou agrícola. No que diz respeito aos mistérios da criação dos filhos, a jovem mãe cumpre seu aprendizado junto às matronas da

comunidade. O mesmo acontece com os ofícios que não tem um aprendizado formal. Com a transmissão dessas técnicas particulares, dá-se igualmente a transmissão de experiências sociais ou da sabedoria comum da coletividade. Embora a vida social esteja em permanente mudança [...] ainda não atingiram o ponto em que se admite que cada geração sucessiva terá um horizonte diferente.


Azeredo (2013) conclui que o trabalho associado - que remete aos saberes da experiência transmitidos entre gerações -, é um processo educativo em si, uma vez que, além de orientar as discussões quanto ao processo de trabalho, oportuniza que os trabalhadores e trabalhadoras partilhem anseios, angústias, conflitos e sonhos presentes na produção da vida, construindo e mobilizando, assim, saberes e experiências característicos das suas existências.

Os saberes para os povos e comunidades tradicionais remetem a diferentes tempo e espaços onde a cultura, os saberes e os costumes são amálgamas de uma mesma existência material e imaterial.


Os costumes estão claramente associados e arraigados às realidades materiais e sociais da vida e do trabalho, embora não derivem simplesmente dessas realidades. Eles podem preservar a necessidade da ação coletiva, do ajuste coletivo de interesses, da expressão coletiva de sentimentos emoções dentro do terreno e domínio dos que deles coparticipam, servindo com uma fronteira para excluir forasteiros. (THOMPSON, 1998, p. 22).


Faz-se necessário ressaltar que ainda hoje saberes e costumes de outrora dão sentido à existência presente, onde as memórias de um tempo pretérito, sustentam a labuta do ser e existir. Com certa dose de melancolia e saudosismo homens e mulheres evocam o passado onde o vigor do corpo lhes permitia que estes buscassem apenas sal e tecido na cidade. Nesse tempo ido plantavam arroz, feijão, faziam açúcar etc. – levavam uma quantidade superior de mercadorias para serem comercializadas na cidade do que as que lá compravam e hoje, ocorre o inverso-. Contudo, ainda plantam para subsistência, fazem uso das plantas e ervas medicinais, comem banha de porco ao invés de óleo vegetal e muito se orgulham disso (MONLEVADE, 2018).

Pode-se vislumbrar que os saberes da experiência, os costumes e a existência concreta dos povos e comunidades tradicionais tem na produção associada seu corolário. Nessa perspectiva, Brandão assevera que

[...] elas não são tradicionais porque aos olhos de quem chega opõem-se ao que, segundo ‘eles’ é: moderno. São tradicionais porque são ancestrais, porque são autóctones, porque são antigos, resistentes anteriores. Porque possuem uma tradição de memória de si mesmos em nome de uma história construída, preservada e narrada no existir em um lugar, por oposição a quem ‘chega de fora’ (2012, p. 85).


Existência e resistência: o cotidiano nas comunidades tradicionais


Os moradores das comunidades tradicionais vivenciam uma relação diferenciada com a natureza. Isto porque desfrutam dos seus recursos buscando degradá-la o mínimo possível, não fazendo uso de agrotóxicos e cuidando da terra, reconhecendo que ao protegê-la, estão protegendo a si mesmos (SANTOS, 2013). Nestes territórios o ser humano estabelece forte relação com a natureza, por isso, não só condenando o uso de defensivos agrícolas, mas conservando as áreas arborizadas e mantendo um espaço entre a roça e o rio (COSTA, 2017).

A identidade étnica-cultural pressupõe o existir a partir de uma cosmologia onde os seres humanos, a “Pachamama”8 e os demais seres vivos só podem ser compreendidos a partir da existência de uma interdependência e complementariedade indissociável entre os mesmos.


Os saberes ancestrais advindos da experiência secular que designou os traços da identidade indígena Chiquitano, que são saberes legitimados e valorizados pelos Chiquitanos (sendo as anciãs e os anciãos os portadores da maior gama de conhecimento da produção material e imaterial da vida, e que por isso devem ser repassados por estes aos menores, na racionalidade indígena). Formam a unidade de saberes da experiência Chiquitana de como educar suas crianças, jovens e mesmos os adultos; de como ser Chiquitano significa ser natureza, ser o outro, ser o peixe, é falar com a música, dançar a devoção; e, principalmente, de respeitar e desejar o bem-viver de todas e todos como seres essenciais (CAETANO; NEVES; SILVA, 2015, p. 10 – 11).


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8 “Vivir Bien es recuperar la vivencia de nuestros pueblos, recuperar la Cultura de la Vida y, recuperar nuestra vida en completa armonía y respeto mutuo con la madre naturaleza, con la Pachamama, donde todo es VIDA, donde todos somos uywas, criados de la naturaleza y del cosmos, donde todos somos parte de la naturaleza y no hay nada separado, donde el viento, las estrellas, las plantas, la piedra, el rocío, los cerros, las aves, el puma, son nuestros hermanos, donde la tierra es la vida misma y el hogar de todos los seres vivos” (CESPEDES, 2010, p. 10 – 11)

A igualdade e a solidariedade são valores enfatizados e vivenciados pelos povos e comunidades tradicionais, prevalecendo nesses territórios o respeito mútuo, a cooperação, a autogestão e democracia nas decisões comunitárias. Esses valores estão atrelados às relações de parentesco (família), religiosidade e o trato com a terra (SANTOS, 2013).

As relações sociais pautadas na solidariedade e na igualdade existem para além das relações de trabalho, pois se dão em outras dimensões da existência humana, como por exemplo, no ato de comprar alimentos, organizar a casa, cuidar da roça e dos animais quando algum membro da comunidade, por razões de saúde não pode (MONLEVADE, 2018). Tudo isso a partir de outra relação com o outro, com a outra, relação essa tão presente no cotidiano dos povos e comunidades tradicionais.

A partir da produção associada e da criação de grupos/associações para a produção, as mulheres ampliaram a capacidade de compra e consumo9 – notadamente de alimentos, vestuário e produtos de higiene - Contudo, a possibilidade de produzir de forma associada, está para além das condições de consumo, já que também está relacionada à saída exclusiva do trabalho doméstico e em suas roças, de ter seu trabalho reconhecido, de interagir com outras mulheres e com seus saberes e conhecer outras realidades através dos encontros realizados em diversas regiões do país.

Neves (2017) ressalta a ocorrência de mudanças consideráveis no tocante a existência no território dos povos e comunidades tradicionais, resultantes em grande medida da mecanização do trabalho do campo, do avanço do agronegócio e das mudanças político-econômico e sociais do nosso país. Neste sentido, conforme a autora (2017, p. 261, itálico da autora),


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9 “[...] o primeiro pressuposto de toda a existência humana e também, portanto, de toda a história, a saber, o pressuposto de que os homens têm de estar em condições de viver para poder fazer história. Mas, para viver, precisa-se, antes de tudo, de comida, bebida, moradia, vestimenta e algumas coisas mais. O primeiro ato histórico é, pois, a produção dos meios para a satisfação dessas necessidades, a produção da própria vida material, e este é, sem dúvida, um ato histórico, uma condição fundamental de toda a história, que ainda hoje, assim como a milênios, tem de ser cumprida diariamente, a cada hora, simplesmente para manter os homens vivos” (MARX; ENGELS, 2007, p. 32

– 33).


[...] as mulheres do campo além de lidarem, historicamente, com desigualdade de gênero, discriminação e exclusão social, tem o seu bem viver desafiado, cotidianamente, pelo agronegócio, pela degradação da natureza e pela sedução de seus filhos pelo trabalho assalariado.


Ainda assim, as camponesas têm resistido e lutado para romper com os muros, com as cercas e com as desigualdades de gênero, em busca de melhores condições de vida para elas, suas famílias e para outras mulheres.

Costa (2017) argumenta que, embora persista vestígios da divisão sexual do trabalho nas comunidades tradicionais, as relações sociais entre mulheres e homens acontecem de forma mais solidária, humana, dialógica e participativa. Assim, as marcas dessa divisão são minimizadas pela colaboração e solidariedade na produção da existência.


Considerações finais


No decorrer da reflexão acerca dos achados expressos pelas pesquisas do GEPTE/UFMT, efetivada anteriormente, não tratamos das contradições presentes na existência dos povos e comunidades tradicionais. Cumpre destacar, que a contradição é característica imanente ao ser humano e o existir em sociedade, notadamente a partir do materialismo histórico dialético. Nesse sentido não a negamos, mas considerando-se os objetivos e limites deste texto não nos debruçamos sobre essa dimensão de maneira exaustiva.

Parte considerável das contradições vivenciadas pelos povos e comunidades tradicionais emergem a partir da presença devastadora - notadamente no Estado de Mato Grosso - do agronegócio que, em sua ânsia pelo lucro, degrada cotidianamente a natureza, o território e a existência dos povos e comunidades tradicionais.

Apesar das contradições e limites expressos pela produção associada da vida a partir dos povos e comunidades tradicionais, os resultados de pesquisas indicam a possibilidade – ainda que imersos nas contradições engendradas pelo modo de produção capitalista – de que essas novas/velhas experiências contribuam para a construção da sociedade dos produtores livremente associados.

Percebemos que os povos e comunidades tradicionais são possuidores de saberes da experiência/ancestrais/milenares, o que lhes oportuniza por um lado, definir o que, como e quando plantar; a potencialidade e o cuidado com a terra; o cultivo sem o uso de agrotóxico; a utilização das e ervas na medicina popular; o estabelecimento de relações sociais pautadas na solidariedade etc. e por outro lado, compreender a realidade em que estão inseridos de forma crítica e propositiva.

A produção da existência nos povos e comunidades tradicionais acontece por meio do trabalho coletivo, do bem viver em comum, da cultura do muxirum, da solidariedade, da dádiva da partilha, da repartição igualitária dos frutos do trabalho, da reciprocidade, da democracia, da terra coletiva, da manutenção dos costumes e tradições, do plantio e roça coletivos, dos laços de pertencimento, enfim, da produção da existência que em alguma medida questiona os ditames da sociedade capitalista.

Por isso, o trabalho não é estranhado, as pessoas são proprietárias dos meios de produção e não almejam lucro, a propriedade e a posse da terra, a gestão e a repartição da riqueza são coletivas e inexiste a dominação, a subordinação, a hierarquia, a exploração da força de trabalho de outrem, a acumulação, a competitividade e a obtenção da mais-valia.

Apesar de serem vistos como sujeitos responsáveis pelo impedimento do “progresso” e do desenvolvimento econômico do país, os povos e as comunidades tradicionais têm protagonizado uma história de resistência, de esperança e de contraposição à lógica, aos valores, às ideologias e ao modo de produção capitalista, trazendo consigo, nas palavras de Silva (2015, p. 142), uma “alternativa econômica-social composta na racionalidade do território comum e nos seres livres que se associam para o bem-viver de todos, sem hierarquização dos privilégios”.


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Recebido em: 29 de julho de 2018. Aprovado em: 21 de setembro de 2018. Publicado em: 22 de novembro de 2018.

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DO CONTEXTO HISTÓRICO À REALIDADE DAS CLASSES MULTIANUAIS SEDIADAS EM COMUNIDADES CAIÇARAS DA ILHA GRANDE¹


Maria Aparecida Alves2


Resumo

O objetivo deste artigo é analisar o contexto educacional vivenciado pelas escolas com classes multianuais, que atendem crianças e adolescentes que residem em comunidades caiçaras da Ilha Grande em Angra dos Reis, bem como discutir as políticas públicas implementadas para atender as especificidades das classes multianuais. É uma reflexão sobre as condições materiais de escolas que vivem isoladas, sem infraestrutura, sem recursos materiais e pedagógicos. Este estudo baseia-se em pesquisa empírica, bibliográfica e documental, pautando-se pelo referencial teórico das Sociologias do Trabalho e da Educação.

Palavras-chave: educação; condições de trabalho; classes multianuais.


FROM THE HISTORICAL CONTEXT TO THE EDUCATIONAL CONTEXT: THE REALITY OF THE MULTI-YEAR SCHOOLS OF ILHA GRANDE


Abstract

The purpose of this article is to analyze the educational context experienced by multi-year classes of schools that attend children and adolescents residing in caiçaras’ communities of Ilha Grande in Angra dos Reis, as well as to discuss the public policies implemented to meet the specificities of multi-year classes. It is a reflection on the material conditions of schools living in isolation, without infrastructure, without material and pedagogical resources. This study is based on empirical, bibliographical and documentary research, based on the theoretical reference of Sociologies of Labor and Education.

Keywords: education; labor conditions; multi-annual classes.


DEL CONTEXTO HISTÓRICO AL CONTEXTO EDUCATIVO: LA REALIDAD DE LAS ESCUELAS MULTIANUALES DE LA ISLA GRANDE


Resumen

El objetivo de este artículo es analizar el contexto educativo vivenciado por las escuelas com clases multianuales, que atienden a niños y adolescentes que residen en comunidades caiçaras de la Isla Grande en Angra dos Reis, así como discutir las políticas públicas implementadas para atender las especificidades de las clases multianuales. Es una reflexión sobre las condiciones materiales de escuelas que viven aisladas, sin infraestructura, sin recursos materiales y pedagógicos. Este estudio se basa en investigación empírica, bibliográfica y documental, pautándose por el referencial teórico de las Sociologías del Trabajo y de la Educación.

Palabras clave: educación; condiciones de trabajo; clases multianuales.


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1DOI: https://doi.org/10.22409/tn.16i31.p27377

2Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas. Professora adjunta da Universidade Federal Fluminense, no Instituto de Educação de Angra dos Reis. Email: mcidalves@hotmail.com.


Introdução


O presente artigo tem como objetivo analisar o contexto educacional vivenciado pelas escolas com classes multianuais, que atendem crianças e adolescentes que residem em comunidades caiçaras da Ilha Grande em Angra dos Reis, bem como discutir as políticas públicas implementadas para atender as especificidades das classes multianuais.

A realidade das escolas da Ilha Grande pôde ser observada por meio do desenvolvimento de um projeto de extensão e de ensino, que realizou visitas às comunidades caiçaras e às escolas da Ilha Grande entre os anos de 2013 e 2015, quando passamos a compreender as singularidades desse contexto escolar. Esta conjuntura nos instigou a buscar conhecer quais são as condições materiais destas escolas e se existem políticas públicas para atender as especificidades das escolas com classes multianuais.

É importante destacar que as comunidades caiçaras situadas na Ilha Grande vivem em uma realidade bem distinta daquela encontrada nas cidades do continente. Na maioria das praias da Ilha, não há estrutura para atender as necessidades básicas da população local, que se desloca constantemente para o continente para ter acesso ao comércio, ao banco, ao posto de saúde e outros serviços básicos.

Com relação à realidade material vivenciada pelas escolas da Ilha, o poder público municipal oferece condições mínimas para o funcionamento das mesmas para que possam atender as demandas da população local que necessita matricular suas crianças e jovens no ensino fundamental.

Para procurar atender as peculiaridades das populações residentes em áreas consideradas rurais, como é o caso da Ilha Grande, o sistema educacional brasileiro buscou criar formas alternativas de ensino que, no caso, foi a criação das classes multianuais, regulamentadas pela Lei de Diretrizes e Bases (no. 9.394 de 1996)2. Nesse sentido, foram implementadas as classes multianuais que têm uma realidade diferenciada, pois na prática reúnem-se em uma mesma sala de aula alunos do 1º ao


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2 Cabe enfatizar que é a Lei de Diretrizes e Bases da Educação de 1996 que regulamenta a oferta da educação básica no Brasil, e, desde 2016, a escolarização obrigatória no país foi estendida para a população dos 4 aos 17 anos de idade (Emenda Constitucional 59 de 2009), tendo sido incorporada ao Plano Nacional da Educação (2014-2024).

5º ano do primeiro segmento do ensino fundamental, abrangendo crianças e adolescentes que estão na faixa de idade entre seis e doze anos.

Assim, além da LDB regulamentar a oferta do ensino básico, ela também orienta que o sistema educacional forneça as bases para uma formação integral e voltada ao mundo do trabalho. Ou seja, a educação deve oferecer uma qualificação para o trabalho e uma formação para o exercício da cidadania conforme propõe a Lei de Diretrizes e Bases de 1996. Mas, é importante ressaltar que “a formação para cidadania oferecida na e pela escola nunca significou realmente uma formação que conduzisse a uma ruptura direta com o status quo instalado na sociedade” (SOARES, 2012, p.844).

Deste modo, pode-se indagar a respeito de qual é o sentido do trabalho do professor em uma sociedade capitalista. Nesta sociedade, embora o professor realize um trabalho socialmente útil, ele perde sua autonomia, pois as grades curriculares passam a ser definidas por outros órgãos, e o professor é levado a mediar esse processo de aplicação de determinados instrumentos pedagógicos. Portanto, no processo de objetivação do trabalho do professor, ele vai perdendo o controle sobre o resultado do seu trabalho (VÁZQUEZ, 1968). Assim, um dos objetivos da educação, que seria oferecer uma educação para estimular a autonomia do aluno, vai sendo alterado e o professor também vai tendo sua atuação restringida, passando a não compreender qual é o seu papel enquanto sujeito histórico, já que atua no interior de um sistema que busca obter resultados objetivos e mensuráveis na educação.

Cabe destacar que a burocracia estatal, através do Ministério da Educação e das secretarias de educação, cria uma legislação escolar que está diretamente vinculada a uma ordem política e econômica já estabelecida na sociedade mais ampla (CHAUI, 1980). E, ainda, estes órgãos impõem políticas educacionais que interferem no desenvolvimento do trabalho docente, sem que sejam estabelecidos canais de diálogo com os profissionais que atuam diretamente na educação.

É neste contexto de implementação de políticas educacionais que inserimos o nosso objeto de estudo. No caso das comunidades remanescentes de caiçaras a necessidade de atender as expectativas da população local, no sentido de possibilitar a escolarização de seus filhos em um sistema educacional, passou a ser uma responsabilidade dos professores e funcionários, designados para trabalhar nas escolas com classes multianuais sediadas em praias da Ilha Grande. Entretanto, as

condições materiais encontradas pelos professores que lecionam nestas escolas não criam as possibilidades para oferecer aos alunos destas comunidades uma formação integral, de modo a propiciar o acesso aos conhecimentos da cultura letrada, e, ao mesmo tempo, trabalhar com conteúdos vinculados aos saberes da cultura caiçara e, sobretudo, possibilitar a reflexão sobre a realidade em que vivem.

Assim, para realizar tal tarefa, faz-se necessário que esse professor conheça a realidade local, mas, por residir no continente ou em áreas distantes destas escolas, e devido à questão de logística, como a dificuldade de deslocamento, isso se torna difícil. Além disso, os instrumentos pedagógicos a serem utilizados devem se diferenciar daqueles aplicados na escola tradicional, que é mais conteudista e marcada pela valorização de um sistema avaliativo.

Neste sentido, cabe ao professor das classes mutianuais ter que reinventar a cada dia novas estratégias e práticas de ensino para lidar com as situações de improviso no cotidiano escolar. Assim, na direção de contribuir com o desenvolvimento de atividades pedagógicas, foram desenvolvidos dois projetos nas escolas da Ilha Grande sob a coordenação da presente autora, ambos realizados no âmbito da Universidade Federal Fluminense. Um deles foi um projeto de extensão, desenvolvido entre os anos de 2012 e 2013, intitulado “Diálogos com as comunidades caiçaras da Ilha Grande sobre os saberes de sua cultura”. O outro projeto foi realizado na área de ensino, entre os anos de 2014 e 2015, intitulado “A memória como tema transversal articulador dos conteúdos escolares das classes multianuais de escolas municipais de praias da Ilha Grande”.

Tendo em vista as considerações acima, o objetivo deste artigo é analisar o contexto educacional vivenciado pelas escolas com classes multianuais, que atendem crianças e adolescentes que residem em comunidades caiçaras da Ilha Grande em Angra dos Reis, bem como discutir as políticas públicas implementadas para atender as especificidades das classes multianuais. Quanto à metodologia utilizada, foram realizadas pesquisas bibliográfica e documental e, também, foram incorporados dados da pesquisa empírica colhidos durante a realização dos projetos de extensão e de ensino desenvolvidos no âmbito da Universidade Federal Fluminense, sendo que o último esteve vinculado ao Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência

- PIDIB-CAPES, e contou com financiamento de quinze bolsistas de iniciação à docência para atuarem em sete escolas multianuais de praias da Ilha Grande.

Este artigo está dividido em duas partes. Na primeira parte, buscamos apresentar o contexto socioeconômico e sociocultural vivenciado pelas comunidades caiçaras da Ilha Grande. Já na segunda parte, vamos analisar o contexto educacional em que se inserem as escolas multianuais, bem como discutir as políticas públicas implementadas para atender as especificidades desta modalidade de ensino.


Contexto socioeconômico e sociocultural vivenciado pelas comunidades caiçaras da Ilha Grande


Entre as décadas de 1960 e 1990, registrou-se um êxodo da população tradicional nativa da Ilha Grande para a cidade de Angra dos Reis3. Observou-se, de um lado, o declínio da população residente na Ilha Grande e, de outro, o aumento desordenado da população em outros distritos daquela cidade. Este declínio foi acompanhado da chegada de grandes grupos econômicos na região, o que pode ter estimulado a saída dos nativos da Ilha em busca de emprego, que coincidiu também com “o processo de fechamento das indústrias de salga de sardinha localizadas nas praias da Ilha Grande” (MOSCHEN, 2007, p. 17).

Portanto, a chegada dos grandes projetos nacionais a partir dos anos 1960 teve implicação direta no modo de ocupação do solo no município de Angra, transformando extensas áreas, antes tipicamente rurais, em áreas urbanas. Nesse sentido, podem- se observar os reflexos dos pesados investimentos econômicos feitos na região nesse período, tanto pelo capital privado como pelo estatal, com brutal impacto econômico, social, político, cultural e ambiental naquela região (SANT’ANNA, 2000).

Deste modo, houve um rápido processo de reordenamento da vida social e cultural em Angra, em que novos valores associados a uma política com “viés” desenvolvimentista se impuseram na região, inclusive atingindo a Ilha Grande, sem levar em conta as tradições culturais existentes nessa localidade (SANT’ANNA, 2000). Além disso, a partir dos anos 1980 foi criado o Parque Estadual da Ilha Grande,

que implicou em restrições ao uso do solo, não permitindo a construção de moradias


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3Em 1959 foi instalado o Estaleiro Verolme, sendo o de maior capacidade do Continente Latino- Americano. Já nos anos 1970 foram construídos uma Usina Nuclear, o Terminal Petrolífero da Petrobrás e a Rodovia Rio-Santos, que ampliou o acesso a essa região, promovendo uma rápida valorização das terras costeiras e da Ilha Grande levando à especulação imobiliária daquelas áreas.

nessa área. Ainda foram criadas outras 3 unidades de conservação que são: a Área de Proteção Ambiental de Tamoios (Decreto Estadual no. 9.452/1982), que permite a construção de casas desde que atenda as regras impostas; a Reserva Biológica da Praia do Sul e do Leste (Decreto Estadual no. 4.972/1981), não se permitindo o acesso a ela; e o Parque Estadual Marinho do Aventureiro (Decreto Estadual no. 15.983/1990) para permanência apenas da população remanescente do local.

Essas mudanças atingiram diretamente a vida das famílias remanescentes de caiçaras que residem, em sua maioria, em várias praias da Ilha Grande, que tem como um de seus principais pontos a Vila do Abraão, que concentra os serviços de infraestrutura e o maior núcleo populacional da Ilha, sendo que lá também está localizada a maior parte das pousadas, hotéis, campings e restaurantes da Ilha.

A população que reside na Ilha Grande está distribuída por treze praias em comunidades pesqueiras, que também engloba famílias que residem, trabalham e moram em casas de veraneio situadas na costa da Ilha (BAGANHA, 2012). Mas, as mudanças das últimas décadas alteraram profundamente a vida destas famílias que no passado extraíam da natureza seu sustento:


Até a década de 1970, as roças constituíam importante fonte de sustento das comunidades da Ilha e, naquela época, a vida local se organizava nas áreas mais altas, nos chamados sertões, devido à escassez de áreas planas para a agricultura. Com a pesca assumindo um papel cada vez mais importante, e depois com a implantação das unidades de conservação e o turismo, os espaços de ocupação, com seus núcleos populacionais, passaram a se concentrar nas praias e enseadas. Por consequência, a floresta voltou a se regenerar nas áreas mais íngremes (FERREIRA, 2014, p. 84).


Devido ao contexto apontado, “os ilhéus debandaram da Ilha a procura de empregos nas residências que se instalaram nos condomínios da parte continental municipal” (MOSCHEN, 2007, p. 17). Atualmente, dentre as atividades econômicas realizadas pelos moradores da ilha, a maioria delas está voltada às necessidades do cotidiano da Ilha Grande, eles atuam “como caseiros, comerciantes, donos de bar, pedreiros, zeladores (...), prestadores de serviço na atividade de turismo seja através do aluguel de sua embarcação ou realizando trabalhos informais nas pousadas” (MOSCHEN, 2007, p. 41).

Há vários fatores que interferem na ampliação da atividade pesqueira por parte dos caiçaras, especialmente as de pequeno porte realizadas nas áreas costeiras, dentre os quais se destaca “a crescente degradação do ambiente marinho pela

poluição causada pela falta de saneamento básico, aterro de manguezais, derramamento de petróleo, desmatamento, assoreamento dos rios e outros” (MOSCHEN, 2007, p. 21). Neste caso, alternativas vão sendo desenvolvidas como forma de sobrevivência no local:


No Saco do Céu e nas praias de Araçatiba, Vermelha, Bananal, entre outras, muitas pousadas pequenas surgem a cada dia, pertencentes a moradores nativos ou antigos, mas, também, a pessoas que migraram recentemente (principalmente a partir do final dos anos de 1990) devido às oportunidades com o setor turístico. Antigas fábricas de beneficiamento de sardinha, de propriedade de japoneses (surgiram na década de 1920, viveram seu auge na década de 1970, começando a declinar a partir dos anos de 1980, sendo que a última se extinguiu em 1992), têm-se transformado em pousadas (FERREIRA, 2014, p. 84-85).


Sob o aspecto social e econômico, pode-se destacar que há uma clara política de deslocamento dos antigos moradores da Ilha Grande, em que o poder público priorizou atender ao setor econômico em detrimento da população local, implicando na valorização imobiliária daquelas terras, tendo como consequência a dispersão dos moradores das áreas onde nasceram.

Em muitos casos, há uma inversão da situação, em que os caiçaras nativos, que não encontram condições de sobrevivência no local, vão sendo desapropriados de suas moradias por não terem a posse legal destas terras e se tornam caseiros e empregados dos atuais “ocupantes” das terras, ou seja, daqueles que nas décadas recentes se tornaram os proprietários das mesmas. Observa-se que é frequente o fenômeno de mudança de endereço de moradores de uma praia para outra.


Algumas famílias trabalham e moram em casas de veranistas, são caseiros, e é comum as desavenças com os patrões o que acaba levando as famílias a se mudarem. (...). Há também a chegada de alunos no decorrer do ano letivo, alunos vindos de outras escolas que não oferecem a mesma organização escolar e há a necessidade de adaptação deles a esse processo de ensino aprendizagem (BAGANHA, 2012, p.42).


É importante destacar que os caiçaras não encontram mais as mesmas condições de sobrevivência material das décadas passadas, que lhes permitiam extrair da terra e do mar seu sustento através do cultivo de roças e da pesca. No caso das comunidades da Ilha Grande, apesar de existir uma divisão de trabalho prévia, o desenvolvimento das atividades tradicionais sempre foi baseado em um sistema

comunitário de trabalho, em que participam as famílias, parentes e agregados tanto no preparo da terra, no plantio, na colheita e no fabrico de alimentos quanto na pesca, conforme podemos observar no depoimento abaixo:


Eu não estudei, desde criança a gente trabalhava na roça, plantava batata, milho, mandioca, gondo [vagem] e vendia aqui na comunidade, mas hoje acabou a plantação, agora é proibido. As mulheres cuidavam da casa, cozinhavam, buscavam lenha, plantavam e faziam o roçado. Aqui tinha a casa da farinha que fazia biju para toda a comunidade. Os homens caçavam paca, cotia e preá para alimentar as famílias, mas a atividade principal era a pesca, eles passavam dias fora de casa pescando no mar. [...].

A luz elétrica só chegou no ano 2000, as casas eram iluminadas por lampião de querosene, mas havia gerador de energia para atender ao comércio. Quando a gente ficava muito doente e sem encontrar recursos na Ilha e, também, no caso das mulheres grávidas que as parteiras não podiam atender, um antigo morador levava as pessoas da comunidade de canoa de remo para o hospital no continente (ANTIGA MORADORA, 80 ANOS DE IDADE, PRAIA DE PROVETÁ, 12/06/2013).


No passado, as crianças desde pequenas eram estimuladas a participar das atividades do grupo, a elas eram apresentados os saberes populares que eram disseminados pelas famílias. Por exemplo, quando as mães pediam aos filhos para apanharem determinadas ervas e cascas de arvores, elas os ensinavam a conhecer o cheiro destas plantas, sua eficácia e, também, as variedades que a natureza tinha a oferecer. Acredita-se que esse conhecimento não pode ser subtraído daquele que vivenciou essa experiência no grupo, e sim poderá se somar a outros conhecimentos já formalizados na sociedade letrada.

Quanto à realização das atividades de pesca que envolvem a construção do cerco, a captura dos peixes, o trato da rede, o preparo do pescado e a sua comercialização, neste caso o trabalho é feito conjuntamente até os dias de hoje:


Nós somos um grupo de seis pescadores, todos são nascidos aqui, eu tenho 62 anos e meu irmão 55 anos, nós trabalhamos na Cooperativa do Cerco. O cerco se localiza na Praia da Cachoeira e já tem 30 anos de existência, ele vai passando de dono em dono. O dono do cerco fica com 50% da pescaria e o restante é passado para o dono do barco, que é o responsável pela comercialização do peixe. [...].

A vida dos moradores da Ilha sempre foi muito difícil, até os anos 1970 eles se empregavam na fábrica de sardinha. O nome caiçara não era usado aqui na Ilha, todos se viam como ilhéus, pessoas de vida simples. Somente a partir dos anos 1980, com as visitas das universidades nas comunidades é que se passou a usar o nome de caiçara. Além disso, o morador da ilha também passou a ter mais

acesso à cidade, isso possibilitou melhores condições de vida. Antes morria muita gente doente sem atendimento médico, hoje quando a população precisa de apoio para locomoção, por motivo de saúde, ela é atendida pela Defesa Civil (PESCADOR E MORADOR DA PRAIA DE ARAÇATIBA, 18/04/2012).


A fala do entrevistado nos remete aos avanços propiciados pela promulgação da Constituição Brasileira de 1988, que ampliou o sentido de cidadania, pois antes era baseada no Estado de Bem-Estar Social, na regulamentação das profissões e no status oferecido pelo mundo do trabalho. Portanto, passou daquela perspectiva universalista para um sentido de cidadania ampliada, em que se busca o reconhecimento da igualdade para todos, mas, ao mesmo tempo, visa o reconhecimento de que existem diferenças no interior de alguns grupos sociais e que elas não são reconhecidas pelas políticas públicas mais amplas (MORAIS, 2009). Segundo Ademir Silva (2004, p. 169), historicamente, o Estado brasileiro não priorizou oferecer uma seguridade social universal e democrática, como podemos ver:


A democracia representativa no plano político não se faz acompanhar do pleno acesso aos direitos sociais e ao exercício da cidadania. As variadas formas de exclusão social atestam a (...) desigualdade de renda, desigualdade de raça, desigualdade de gênero e desigualdade entre regiões. (SILVA, 2004, p. 169)


Portanto, foi a partir da promulgação da Constituição de 1988 que se consolidou o pacto federativo que engloba a União, os estados da federação e os municípios, passando a estabelecer “as diretrizes de descentralização, municipalização e participação popular”, criando as condições para que pudessem ocorrer “avanços significativos na democratização das decisões e ações locais”. Nesse sentido, a criação dos Conselhos Gestores de Políticas Públicas, ligados aos três níveis da administração pública, abriu espaços para a participação popular, a qual ocorre através da ação dos movimentos sociais organizados, que passaram a exercer uma forte pressão política na busca de assegurar os direitos sociais anunciados nesta Constituição (SILVA, 2004, p.169).

Assim, foi através da legitimação destes canais de participação política que foi possível a conscientização dos moradores das comunidades remanescentes de caiçaras sobre seus direitos, para que pudessem buscar a implementação de políticas públicas que viessem a atender as especificidades destas comunidades. Conforme podemos ver abaixo:


No momento de criação das unidades de conservação, os habitantes locais não tinham poder para fazer frente às novas regras impostas e foram desapossados de seu modo de vida tradicional. Num momento posterior, a noção de população tradicional elaborada por correntes socioambientalistas trouxe novos argumentos à questão, valorizando a construção de uma identidade caiçara reafirmadora desses direitos. (...). A reafirmação da tradicionalidade é um processo que ressalta sentimentos ambíguos na população local, pois ao mesmo tempo em que permite a obtenção de direitos diferenciados em relação ao território nativo, restringe as possibilidades em relação às expectativas atuais de mudança sociocultural (FERREIRA, 2014, p.93).


Estes podem ter sido os primeiros passos na direção de mudanças no que se refere à busca de políticas públicas para atender às precárias condições de vida da população do campo, bem como a implementação de políticas voltadas à área da cultura. Foi nesta direção, como forma de atender as especificidades de grupos de cultura tradicional, que foi instituída em 2007 uma política pública de reconhecimento da cultura popular através do Decreto Federal nº 6.177/2007, que promulga a Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, assinada pela UNESCO em 2005. O texto propõe que cada Estado signatário deve promover a proteção e possibilitar o desenvolvimento das diferentes expressões culturais. Neste caso, a política de reconhecimento da cultura popular como patrimônio cultural foi importante para assegurar o fortalecimento de mecanismos internos que tem resultado na valorização do saber construído pelos grupos sociais e pela sua preservação na memória coletiva.

Nesse sentido, é no confronto com o outro, seja ele representante do Estado, ambientalista, pesquisador ou turista, e a partir de novos olhares sobre o lugar, que se reafirma a importância de resguardar costumes, de elaborar uma memória coletiva e de manter uma coesão interna no grupo de forma a construir relações de poder menos desiguais e de se adaptar aos novos tempos e às novas demandas (FERREIRA, 2014, p.93).


Como forma de compreender os efeitos da implementação da Lei da Convenção da Diversidade, Brandão (2009, p.743) direcionou seu olhar para o interior das práticas sociais, especialmente daquelas vinculados aos segmentos de cultura tradicional, para ele, o reconhecimento público da existência dessa cultura possibilitou a união de diferentes grupos regionais em torno da defesa de tradições comuns. Nesse sentido, abriu-se espaço para que os vários grupos de cultura local passassem

a retomar e valorizar aquilo que é específico de suas próprias culturas. Esse processo também pôde ser observado nas várias localidades da Ilha Grande, pois:

É na memória coletiva que a população tem se apoiado para a defesa de direitos. Por outro lado, a identidade caiçara que desponta revalorizada, anteriormente rechaçada pelos habitantes locais como nomeação de sua desvalorização, passa agora a ser vista como autenticidade e tipicidade (FERREIRA, 2014, p.93).


Partimos do princípio de que, numa perspectiva sociológica, a cultura caiçara só pode ser compreendida através de uma visão global e articulada que possa integrar os aspectos políticos, econômicos e sociais. A cultura é uma produção histórica, fruto das relações estabelecidas entre grupos sociais. Portanto, para a compreensão dos processos culturais, que nascem da dinâmica social, devemos levar em conta o contexto histórico e social em que a cultura vai sendo produzida (CUCHE, 2002).

No atual contexto vivenciado pelas comunidades caiçaras, a cultura popular adquire um novo sentido, passando a ser incorporada como meio de luta política, como forma de crítica à condição social que é vivenciada pela população do campo. Como reflexo de todo esse contexto socioeconômico e educacional, ainda hoje observa-se que boa parte da população adulta, pertencentes às famílias remanescentes de caiçaras, é composta de pessoas com baixa escolaridade. Oliveira (2011, p.334) afirma que essa questão é bem mais ampla:


A baixa escolaridade das gerações anteriores, no caso brasileiro, é um dos fatores do baixo desempenho dos alunos. E isso é resultado de uma herança histórica, de desigualdades persistentes. As estratégias de ação para alterar esse quadro devem considerar a articulação inevitável entre políticas educacionais e a dimensão social, contemplando os processos de crescimento e desenvolvimento econômico do país.


Pois no período recente, entre os anos 1990 e 2010, no âmbito nacional foram formuladas e implementadas várias políticas públicas voltadas à educação básica, mas poucas delas buscaram atender as necessidades da população do campo. Assim, o ensino tem priorizado atender as demandas da sociedade capitalista, em que o princípio básico é a fragmentação do trabalho humano em prol do aumento da produtividade. Portanto, a instituição escolar busca fornecer uma formação instrumental voltada para o mercado de trabalho.

Nesse sentido, as disparidades entre o ensino básico nas escolas regulares e nas escolas do campo só tendem a aumentar na contemporaneidade, que é marcada por um contexto de mudanças nas esferas econômicas, políticas, sociais e culturais. Pode-se destacar que com as transformações ocorridas no mundo do trabalho a partir dos anos 1990, em que se observa uma intensificação da incorporação da ciência e tecnologia nos processos produtivos, impõe-se métodos mais flexíveis de organização e gestão do trabalho, passando-se a exigir também uma maior flexibilização das habilidades do trabalhador (ANTUNES, 2014).

Assim, para atender a essa demanda, o sistema educacional acaba direcionando suas ações no sentido de atender as necessidades do sistema produtivo. Pode-se afirmar que as políticas educacionais são planejadas e formuladas pelo Estado brasileiro, sendo influenciadas pelo ideário neoliberal e pelas diretrizes construídas por organismos financeiros internacionais, com o predomínio de uma ética e de uma linguagem fundadas no mercado (GARCIA; ANADON, 2009, p.66).

Portanto, as ações adotadas no mundo do trabalho têm interferência direta no sistema educacional e, especialmente, no exercício da docência. Segundo Kuenzer (2002, p.82), o trabalho pedagógico se traduz em um conjunto de práticas sociais intencionais e sistematizadas voltadas à formação humana, mas, por estar inserido no sistema capitalista, acaba atuando como uma das suas formas de expressão.

Em decorrência disso, criam-se diferentes tipos de escola para atender o perfil de cada classe social e, também, a divisão social e técnica do trabalho. Além disso, o conhecimento é partilhado em disciplinas isoladas, cabendo seu reagrupamento através de uma grade curricular que é separada por turmas e séries, “ficando por conta do aluno a reconstituição das relações que se estabelecem entre os diversos conteúdos disciplinares” (KUENZER, 2002, p.85).

No caso das escolas sediadas na Ilha Grande, uma das questões centrais que permeia o trabalho do professor é saber qual é a formação que deve ser oferecida aos alunos das classes multianuais. Seria uma formação integral?

Os professores que trabalham nestas escolas buscam utilizar instrumentos pedagógicos que se diferenciam das práticas adotadas na escola tradicional em que, muitas vezes, os conteúdos curriculares são desenvolvidos em sala de aula de forma a fragmentar as várias áreas do conhecimento e, ainda, são apresentados como distanciados da realidade vivida pelos alunos. Portanto, para se contrapor a esse

modelo dominante, os docentes das classes multianuais, mesmo com a falta de recursos materiais, se empenham para oferecer uma formação integral de modo a estimular a autonomia do educando, visando a valorização da cultura caiçara.

Entretanto, para trabalhar com esta perspectiva, se faz necessário que esse professor conheça a realidade local, mas devido à questão da logística isso se torna difícil. Por isso, é preciso que o poder público municipal crie um plano de carreira que possa beneficiar os professores que desejam se fixar nestas localidades, para que seja possível dar continuidade ao trabalho que é desenvolvido nestas escolas. Somente com a criação de vínculos estáveis é que será possível o comprometimento dos educadores com a manutenção de um projeto alternativo, que permita acompanhar o desenvolvimento do aluno durante todo o processo de ensino e aprendizagem, sem que se tenha que priorizar a obtenção de resultados objetivos a cada semestre.

Nesse sentido, pode-se indagar quais são as perspectivas educacionais para as novas gerações pertencentes aos grupos remanescentes das comunidades tradicionais de caiçaras. Pois os professores que trabalham nas escolas da Ilha Grande, em sua maioria, entendem que os saberes populares não podem ser subtraídos dos sujeitos que os criaram e os vivenciaram como experiência coletiva; muito pelo contrário, ele só poderia se somar a outros conhecimentos formalizados na sociedade letrada. Mas, para assegurar que o saber tradicional possa ser preservado, cabe perguntar qual é a realidade material que tem permeado o trabalho que é realizado nas escolas multianuais sediadas na Ilha Grande. No próximo item buscaremos descrever essa realidade.


O contexto educacional e a realidade das escolas multianuais da Ilha Grande


A Rede Municipal da cidade de Angra dos Reis-RJ possui setenta e uma unidades escolares, sendo doze delas na Ilha Grande, todas elas vinculadas à Secretaria Municipal de Educação, Ciência e Tecnologia da cidade de Angra dos Reis. É importante destacar que das doze escolas da Ilha, sete delas foram pesquisadas durante a realização dos projetos de extensão e ensino. As escolas observadas foram: Escola Municipal Ayrton Senna (Praia Vermelha); Escola Municipal José Virgílio Pereira Maia (Praia de Sítio Forte); Escola Municipal General Sylvestre Travassos (Praia de Araçatiba); Escola Municipal Brasil dos Reis (Praia de Matariz); Escola: E.M.

Thomaz Henrique Mac Cormick (Praia da Longa); Centro de Ensino Integrado Monsenhor Pinto de Carvalho (Praia Enseada das estrelas) e Escola Municipal Alberto Torres (Praia da Gipóia).

Há uma especificidade das escolas municipais sediadas na Ilha Grande em relação às escolas do continente. Pela Ilha ser considerada área rural, a oferta da educação básica foi regulada através da criação de classes multianuais, conforme propõe a Lei de Diretrizes e Bases de 1996, em seu Cap. II- Da Educação Básica, Seção I – Das Disposições Gerais:

A educação básica poderá organizar-se em séries anuais, períodos semestrais, ciclos, alternância regular de períodos de estudos, grupos não-seriados, com base na idade, na competência e em outros critérios, ou por forma diversa de organização, sempre que o interesse do processo de aprendizagem assim o recomendar (BRASIL, 1996, p.8).


O ensino por meio de classes multianuais é oferecido nas ilhas e no chamado “sertão” no município de Angra dos Reis desde 1991; portanto já existia antes da oficialização pela LDB que só ocorreu em 1996. Esta forma de organização do ensino abrange as classes do primeiro segmento do ensino fundamental que são constituídas por turmas multianuais, ou seja, a mesma sala de aula poderá comportar alunos do primeiro ao quinto ano do ensino fundamental.

Para se chegar a estas escolas que são isoladas do continente, alguns professores e funcionários, além das crianças e adolescentes, são transportados diariamente através de barcos que são contratados pela Prefeitura Municipal de Angra dos Reis. Os barcos saem todos os dias às 6 horas da manhã do Cais Santa Luzia no centro de Angra e seguem recolhendo as crianças de várias praias, levando-as para as praias mais povoadas e próximas que possuam escolas, e retornam às suas residências a partir das 12 horas.

Na busca de alternativas para atender a essa forma de organização do ensino, o poder público de Angra se aproximou de outras experiências com escolas com multianuais que já vinham se desenvolvendo em outras regiões do país. No Brasil, em fins da década de 1990, tinha sido criado o Programa Escola Ativa, baseado no Programa Escuela Nueva, que tinha sido implementado nas escolas rurais com turmas multianuais na Colômbia em 1975, sendo que este modelo influenciou não só


Para estabelecer a parceria entre o Ministério da Educação e o município de Angra dos Reis para implementar o Programa Escola Ativa, foi realizado um convênio entre a tutoria do Programa Escola Ativa e as equipes de Coordenadoria das Ilhas e do Sertão e a Coordenação de Gestão Educacional, vinculadas à Secretaria de Educação de Angra dos Reis. Assim, estes órgãos passaram a se responsabilizar pelo acompanhamento e pela implementação do programa no município.

No caso das escolas da Ilha Grande, a implementação do Programa Escola Ativa não contribui para propiciar autonomia para o professor, mas sim aumentou sua responsabilidade, pois, além de atender os alunos do primeiro ao quinto ano, em diferentes processos de aprendizagem em uma mesma sala de aula, caberia a ele estabelecer contato com a comunidade em que atua. Entretanto, aqueles professores que não residem nas comunidades da Ilha dificilmente conseguem conhecer a realidade vivenciada por seus alunos, pois eles são transportados do continente para a Ilha através de barcos que têm seus horários estabelecidos previamente. De um modo geral, este Programa implicou em intensificação e extensão da jornada de trabalho, já que este profissional ainda deve atender as outras demandas da escola que, muitas vezes, não conta com outros profissionais de apoio.

É importante destacar que o poder público municipal, para atender as necessidades dos professores designados para ministrar aulas em salas multianuais, passou a estabelecer convênios com universidades públicas, de modo a oferecer cursos de formação continuada visando o aperfeiçoamento dos educadores. Deste modo, a citada Secretaria de Educação estabeleceu uma parceria com a Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro desde 2013, que é mantida até o presente, para


distribuindo os livros didáticos das seguintes áreas: português, matemática, história, geografia, ciências e alfabetização.

5http://portal.mec.gov.br/escola-ativa/saiba-mais. Acesso em 18/12/2017.

promover cursos de extensão visando oferecer formação continuada aos docentes que trabalham nas escolas das Ilhas e Sertões.

O trabalho dos professores da Ilha Grande nos anos 2000 baseou-se nas orientações da Escola Ativa, mas a partir de 2014 passou-se a adotar também os princípios da Educação do Campo, que é uma modalidade de ensino regulamentada pelo governo federal, através do Decreto nº 7.352/2010, que prevê:


§ 1o Para os efeitos deste Decreto, entende-se por:

I- Populações do campo: os agricultores familiares, os extrativistas, os pescadores artesanais, os ribeirinhos, os assentados e acampados da reforma agrária, os trabalhadores assalariados rurais, os quilombolas, os caiçaras, os povos da floresta, os caboclos e outros que produzam suas condições materiais de existência a partir do trabalho no meio rural; (...).


§ 4º A educação do campo concretizar-se-á mediante a oferta de formação inicial e continuada de profissionais da educação, a garantia de condições de infraestrutura e transporte escolar, bem como de materiais e livros didáticos, equipamentos, laboratórios, biblioteca e áreas de lazer e desporto adequados ao projeto político pedagógico e em conformidade com a realidade local e a diversidade das populações do campo.


A Secretaria Municipal de Educação de Angra dos Reis oficializou a Educação do Campo no município através da Resolução nº 12 de 2012, em que define os grupos a serem atendidos, sendo eles as “populações rurais, pescadores, ribeirinhos, quilombolas, caiçaras, indígenas e outros” (CHRISOSTIMO, 2016, p.7).

Foi a partir do contato com as universidades públicas que os princípios da educação do campo passaram a permear o trabalho docente nas escolas da Ilha Grande, tendo início no ano de 2014. Neste caso, é oferecida uma educação diferenciada, em que os educadores partem de um tema comum extraído da realidade local para trabalharem com as turmas multianuais. Assim, esses professores utilizam diferentes conteúdos programáticos em uma mesma sala de aula para atender alunos em processo de alfabetização e também aqueles já alfabetizados (do 1º ao 5º ano).

Cabe destacar o fato de que na maioria das escolas da Ilha o professor realiza os trabalhos de ensino e de gestão, o que implica em acúmulo de função. Esta situação se agrava ainda mais devido à falta de recursos técnicos e materiais. Durante a realização dos projetos de extensão e ensino, observou-se que a maioria das escolas da Ilha não possui telefone, computador e nem internet para realizar os

trabalhos de secretaria, como são os casos das escolas localizadas nas praias de Sítio Forte, da Longa, da Vermelha e de Matariz. Assim, esses profissionais de ensino permanecem quase incomunicáveis, pois até mesmo os telefones celulares de uso pessoal também não recebem sinal da operadora.

E, de outro lado, este profissional realiza um trabalho solitário, em que não há como socializar com outros profissionais os procedimentos relativos à construção de projetos pedagógicos, às dificuldades dos alunos e à vida escolar. Mesmo quando acontecem os encontros promovidos pela coordenadoria pedagógica, isto implica no fechamento do espaço escolar e na paralisação das atividades administrativas. Uma alternativa seria as visitas dos coordenadores pedagógicos nas escolas, mas elas são raras. Isto se explica tanto pelas dificuldades de deslocamento dos mesmos do continente para as praias, quanto por não haver profissionais em número suficiente para atender a todas as escolas da Ilha.

A escola da Praia da Longa é uma das poucas escolas que possui biblioteca e uma sala de leitura, mas falta computador e outros recursos materiais. Também a da Praia de Araçatiba está entre as poucas escolas que possui uma biblioteca e oferece um pequeno alojamento com uma mini-cozinha para atender aos professores que necessitam permanecer mais de um dia da semana na escola. Já a Escola Municipal Monsenhor Pinto de Carvalho, por oferecer uma educação em tempo integral, possui um pouco mais de estrutura, comportando itens como biblioteca e cozinha, mas carece de alguns outros itens importantes, pois não possui sala para a diretoria, sala para os professores, sala de atendimento de aluno e nem possui laboratório de informática e de ciências, ou sala de leitura e quadra de esportes.

É importante destacar que o poder público municipal implementou algumas políticas públicas reconhecendo a especificidade das escolas multianuais da Ilha Grande. Mas, por outro lado, não oferece uma estrutura adequada para o funcionamento destas escolas, que estão isoladas do continente e de outras unidades escolares, e na maioria das vezes, são espaços que foram adaptados para funcionarem como salas de aula. Conforme vimos, o isolamento destas escolas em relação ao continente é agravado pela falta de bibliotecas no local e pela dificuldade de se ter acesso a novos materiais didáticos e livros. A maioria das escolas da Ilha Grande carece de estrutura material, de equipes de apoio e da falta de professores.

Neste caso, o educador, além de exercer a docência, deve atender as atividades de direção da escola e, também, aquelas próprias da secretaria.

Nota-se que são necessárias várias ações para implementação de políticas públicas educacionais, que devem vir acompanhadas de medidas que deem suporte ao funcionamento das escolas públicas. Conforme aponta Freitas (2014, p. 27):


A implementação de ações com o objetivo de elevar a qualidade da educação e da escola pública e da formação de seus profissionais exige não apenas patamares mais altos de aplicação do percentual do PIB na educação, mas sobretudo a determinação clara da responsabilidade da união, dos estados e municípios no oferecimento da infraestrutura necessária para a educação básica e a alteração das adversas condições sob as quais se desenvolve o trabalho docente na escola pública em grande parte dos municípios.


No caso das políticas direcionadas às escolas que possuem classes multianuais, faz-se necessário conhecer a realidade específica vivida por cada escola, pois poucas delas possuem infraestrutura, a maioria constitui-se de espaços adaptados para atender as necessidades da comunidade local. Deste modo, existe a demanda em atender as necessidades de crianças e adolescentes que não sabem ler e escrever, mas, sobretudo, há que se considerar que eles “não sabem ‘ler o mundo’, desconhecem as razões e os nexos causais que formam a realidade na qual se inserem” (SERRÃO, 2013, p. 258).

Neste caso, a atividade pedagógica somente adquire sentido quando é construída por cada um dos sujeitos envolvidos na prática educacional. Assim, “é impossível desvincular a ação política da pedagógica, especialmente quando se está inserido em um contexto em que a política educacional determina e limita as ações mais cotidianas nas escolas” (SERRÃO, 2013, p. 258).


Considerações finais


O nosso recorte empírico se circunscreve ao contexto vivenciado pelas escolas multianuais, que atendem filhos de moradores residentes em comunidades caiçaras, sediadas em praias da Ilha Grande em Angra dos Reis. O artigo buscou apresentar o contexto educacional em que se inserem estas escolas, procurando analisar as condições materiais que são encontradas nas mesmas.

Embora os profissionais da área da educação que trabalham com as classes multianuais nas escolas da Ilha Grande estejam envolvidos com a proposta de oferecer uma educação que estimule a autonomia do aluno, como é o caso da adoção dos princípios da educação do campo, eles encontram muitas dificuldades para efetivar esse processo. Neste sentido, podemos indagar qual é o significado do trabalho singular do professor mediante a divisão do trabalho que é estabelecida no sistema de ensino, que diferencia aqueles que formulam as leis e políticas educacionais e aqueles que de fato implementam as mesmas, ainda que não tenham participado nem da sua elaboração e nem da sua escolha.

De um modo geral, os profissionais da área da educação e de apoio encontram muitas limitações, pois trabalham em escolas com pouca infraestrutura material, com precárias instalações físicas, inexistência de espaços para o desenvolvimento de atividades pedagógicas e extra-classe, como falta de bibliotecas, de salas de leitura e de outros espaços coletivos. Além disso, eles não encontram as condições necessárias para construir um currículo alternativo, já que as classes são formadas por grupos heterogêneos, havendo um frequente processo tanto de transferência quanto de chegada de alunos novos nas escolas, em decorrência das frequentes mudanças de endereço de suas famílias. Em relação à realização do trabalho pedagógico, observamos que, devido ao seu isolamento, eles não podem vivenciar um momento de reflexão coletiva sobre suas práticas pedagógicas.

No caso dos professores que atuam em escolas da Ilha Grande, observa-se que há um processo de intensificação do trabalho docente, de incorporação de responsabilidades com as questões de administração e gestão da escola e de ampliação das atribuições no cotidiano escolar dos professores, sem que se ampliem as horas de trabalho remunerado (GARCIA; ANADON, 2009). Este profissional enfrenta ainda precárias condições de trabalho, como a falta de plano de carreira docente, a baixa remuneração, além de receber salários em atraso devido à crise financeira que tem atingido os municípios brasileiros.

Cabe destacar que o trabalho pedagógico somente atinge bons resultados quando se consegue articular todas as ações que são realizadas na escola em prol do desenvolvimento de um projeto coletivo de educação. Entretanto, deve-se ressaltar que, na maioria das vezes, o docente realiza um ofício solitário devido à falta de outros profissionais da área da educação e de equipes de apoio ao trabalho escolar. Foi nesta

direção que as propostas dos projetos de extensão e ensino foram postas em prática sob a coordenação desta autora, tendo partido do princípio de que o despertar do olhar para os elementos da cultura e da natureza poderia levar as crianças e adolescentes a refletirem sobre o fato de que vivem em uma realidade peculiar, e de que podem se relacionar de forma diferente com aquele ambiente natural e sociocultural bastante específico. Nosso objetivo foi produzir um novo olhar, provocar novos sentidos e significados sobre aquele modo de vida.


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Recebido em: 25 de julho de 2018. Aprovado em: 12 de setembro de 2018. Publicado em: 22 de novembro de 2018.

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CULTURA CAMPONESA, EDUCAÇÃO E AGROECOLOGIA¹


Marcio Gomes da Silva2 Eugênio Alvarenga Ferrari3


Resumo

Este artigo tem como objetivo analisar de que forma elementos da cultura camponesa podem se constituir como mediação na estruturação de processos educativos voltados para agroecologia. Para tanto, recorreremos à revisão de literatura sobre a constituição do campesinato no Brasil, bem como uma análise empírica de processos educativos promovidos junto a trabalhadores do campo na Zona da Mata de Minas Gerais. Pretende-se trazer evidências históricas e empíricas sobre processos formativos que emergem no contexto das comunidades rurais com características tipicamente camponesas.

Palavras-chave: Cultura Camponesa; Educação; Agroecologia


CULTURA CAMPESINA, EDUCACÍÓN Y AGROECOLOGÍA

Resumen

Este artículo tiene como objetivo analizar de qué forma elementos de la cultura campesina pueden constituirse como mediación en la estructuración de procesos educativos orientados a la agroecología. Para tanto, recurriremos a una revisión de literatura sobre la constitución del campesinado en Brasil, así como un análisis empírico de procesos educativos promovidos junto a trabajadores del campo en la Zona da Mata de Minas Gerais. Se pretende traer evidencias históricas y empíricas sobre procesos formativos que emergen en el contexto de las comunidades rurales con características típicamente campesinas.

Palabras clave: Cultura Campesina; Educación; Agroecología


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1DOI: https://doi.org/10.22409/tn.16i31.p27378

2Professor do Departamento de Educação da Universidade Federal de Viçosa –DPE/UFV. e-mail: marcio.gomes@ufv.br . Este artigo é parte da pesquisa de doutorado em Educação na Universidade Federal Fluminense, na qual se analisa a pedagogia do movimento agroecológico e as formas de produção de conhecimento no âmbito da agricultura camponesa.

3Professor do Departamento de Educação da Universidade Federal de Viçosa – DPE/UFV. e-mail: eugênio.ferrari@ufv.br

Introdução


Este artigo tem como objetivo analisar de que forma elementos da cultura camponesa podem se constituir como mediação na estruturação de processos educativos voltados para agroecologia. Para tanto, recorreremos à revisão de literatura sobre a constituição do campesinato no Brasil, bem como uma análise empírica de processos educativos promovidos junto a trabalhadores do campo na Zona da Mata de Minas Gerais.

A elaboração conceitual e teórica da agroecologia tem seus fundamentos no conhecimento tradicional, que estabelece práticas de manejo ancoradas em saberes ecológicos fundadas no modo de vida camponês. Esse conhecimento foi organizado e sistematizado por Altieri (1989), que definiu a agroecologia como:


[....] uma disciplina que fornece os princípios ecológicos básicos para estudar, manejar e desenhar agroecossistemas produtivos e conservadores dos recursos naturais, apropriados culturalmente, socialmente justos e economicamente viáveis (ALTIERI, 1989, p.9).


A agroecologia tem suas bases materiais na agricultura camponesa. Entretanto, esse tipo de agricultura exercido no âmbito do campesinato não pode ser visto como residual, como um fenômeno que tende a se esgotar com o avanço das relações capitalistas no campo. Pelo contrário, corroboramos a tese de Martins (1986) em que o camponês não é uma figura do passado, mas é produto da contradição da expansão capitalista no campo.

Nesse sentido, além de não desaparecer com o capitalismo, o campesinato se contrapõe ao modelo hegemônico de agricultura industrial. De acordo com Martins (1986) “as ações e lutas camponesas recebem do capital, de imediato, reações de classe: agressões e violências, ou tentativas de aliciamento, de acomodação, de subordinação” (MARTINS, 1986, p.16).

Para compreender as diferentes manifestações do campesinato no Brasil, recorremos a revisão de literatura afim de traçar o histórico de sua formação social, a partir de estudos clássicos sobre o tema, destacando evidências que demonstram

as especificidades das lutas históricas presentes nos processos de reprodução sociocultural e socioeconômica no âmbito das comunidades rurais tipicamente camponesas.

A partir dessa pesquisa elaboramos uma síntese com alguns aspectos da cultura camponesa, de forma a apresentar evidencias históricas de como esses elementos culturais podem conformar processos formativos em agroecologia, seja no sentido de orientação e concepção de educação atribuída a esses processos educativos, ou no estabelecimento de metodologias que promovem a interação entre a agricultura camponesa e a agroecologia. Ou dito de outra forma, entre o repertório de conhecimento estabelecido a partir desse modo de vida camponês e os aspectos científicos sobre os ciclos ecológicos da natureza, definidos como agroecologia.

Além da revisão de literatura, fez-se uma análise empírica de processos educativos desenvolvidos junto a trabalhadores do campo na Zona da Mata de Minas Gerais. Trata-se de processos formativos estruturados a partir da década de 1980, envolvendo um conjunto de organizações sociais, tais como Movimento Sindical dos Trabalhadores Rurais, Centro de Tecnologias Alternativas da Zona da Mata – CTA-ZM, uma ONG que foi criada em 1987 e desde então promove processos de formação com agricultores/as na região, em interação com a Universidade Federal de Viçosa.

Sendo assim, pretendemos responder à seguinte questão: quais os elementos históricos da formação social do campesinato e da cultura camponesa nos ajudam na conformação de processos educativos junto à trabalhadores do campo com vistas a promover a transição para a agricultura de base agroecológica?

A formação social do campesinato no Brasil


Existe uma complexidade ao que se refere à formação social do campesinato no Brasil, marcada pelo escravismo, pelo colonato, por populações indígenas, por posseiros, por relações de trabalho livre, enfim, um cipoal de relações e sujeitos que atravessam nossa história agrária e permanecem até hoje. Com vista a compreender essa complexidade, organizaremos a análise a partir de três aspectos fundamentais, que permitem entender a cultura camponesa associada à um processo mais amplo de formação social e histórica do campesinato.

O primeiro aspecto refere-se a cultura camponesa (WANDERLEY, 1996). Esse ponto trata especificamente do tipo de relações, sociabilidades, da tradição e costumes estabelecidos nos territórios em que se inserem tanto uma forma de trabalho específica, quanto um ordenamento social ancorado em regras de parentesco, de herança e de formas de vida local.

Um segundo aspecto se refere as estratégias de reprodução social (GODOI, et al, 2009). Trata-se de diferentes formas de acesso à terra e uso comum, nos quais se expressam o dilema central da questão agrária no Brasil: a grande propriedade em detrimento as terras ocupadas por diferentes manifestações do campesinato e das comunidades rurais, quilombolas, ribeirinhas, etc.

E, por último, como terceiro aspecto analítico desse processo de constituição histórica, será feita a análise a partir dos movimentos sociais no campo (MEDEIROS, 1989). Trata-se de analisar os processos de organização política e de resistência do campesinato frente à expansão do capitalismo no campo, materializada no processo de modernização da agricultura e pelo reconhecimento no âmbito do Estado dos direitos dos camponeses.

Tratar da dimensão da cultura ao se referir à formação do campesinato é importante para compreendermos essa expressão camponesa não apenas por suas características econômicas, ou melhor, por um determinismo econômico, mas compreende-lo enquanto um modo de vida que, enquanto manifestação cultural, resiste a expansão das relações capitalistas no campo. Dessa forma, não se trata de uma cultura específica, isolada, mas que possui relação direta com os processos mais amplos de reprodução do capital.

Nesse sentido, há a reprodução de outras relações, que de certa forma estão imbricadas nas relações econômicas do campesinato, como as festas, cerimônias, troca de produtos, mutirão, entre outras. Essas relações também estão presentes nas relações de trabalho, nas quais por meio dessas manifestações culturais, reafirmam as regras de reciprocidade arraigadas nas relações de vizinhança e parentesco. Portanto, essas regras de reciprocidade fundamentam diversas práticas econômicas e formas de sociabilidades dos camponeses (BRANDÃO, 2009).

Uma dimensão importante dessa forma de expressão, nas comunidades rurais, está relacionada ao uso comum das terras, que:

[....] designam situações nas quais o controle dos recursos básicos não é exercido livre e de maneira individual por um determinado grupo doméstico de pequenos produtores diretos ou por um de seus membros. Tal controle se dá por meio de normas específicas instituídas para além do código legal vigente e acatadas, de maneira consensual, nos meandros das relações sociais estabelecidas entre vários grupos familiares, que compõem uma unidade social (ALMEIDA, 2009, p.39).


Há uma variedade de uso comum de terras no Brasil que já passou pela tentativa de regulação. O I Plano Nacional de Reforma Agrária apresentava a proposta de “demarcação dos perímetros desses domínios de usufruto comum”, evidenciando que a necessidade de titulação não “destrua ou desarticule a organização e o sistema de apossamento pré-existente” (ALMEIDA, 2009, p.42). São diversas as formas de ocupação de terras de uso comum no Brasil, cada processo histórico refere-se a um tipo de uso ancorado em um modo de vida específico. Almeida (2009) destaca a formação das terras de uso comum a partir das chamadas terras de preto3, terras de santo4, terras de herança5, terras de uso aberto6 e terras de índio.7

Cada formação específica remete a regras estabelecidas no costume, a um direito camponês, que estabelecem métodos específicos de cultivo, configurando tanto uma lógica econômica específica, quanto expressões de sociabilidades


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3 “Tal denominação compreende aqueles domínios doados, entregues ou adquiridos, com ou sem formalização jurídica, por famílias de ex-escravos” (ALMEIDA, 2009, p.48).

4 “[. ] se refere à desagregação de extensos domínios territoriais pertencentes à igreja” (ALMEIDA, 2009, p.50).

5 “Compreendem os domínios titulados, tornados espólios que permanecem indivisos, há várias gerações, sem que se proceda ao formal de partilha ou que seus títulos tenham sido reavaliados por meio de inventários que, consoantes com as disposições legais, teriam de ser realizados quando da morte do titular de direito, a fim de transmiti-los a seus herdeiros legítimos” (ALMEIDA, 2009, p.53)

6 “Utilização de formas de uso comum nos domínios em que se exercem atividades pastoris parece ser uma prática por demais difundida em todo o sertão nordestino, desde os primeiros séculos da frente pecuária, e em algumas regiões da Amazônia [ ] e no sul do pais” (ALMEIDA, 2009. p. 54).

7 “Compreendem domínios titulados, os quais foram entregues formalmente a grupos indígenas os seus remanescentes, na segunda metade do século passado e princípio deste, sob a forma de doação ou concessão por serviços ao Estado” (ALMEIDA, 2009 p.51).

arraigadas em laços de reciprocidade e por uma “[...] diversidade de obrigações para com os demais grupos de parentes e vizinhos” (ALMEIDA, 2009, p.59).

O conflito entre o direito de uso comum, ancorado no costume, e o direito legal de uso, se evidencia a partir da expansão capitalista, na qual ocorre um movimento de conversão das terras de uso comum à apropriação individual, pelo estabelecimento de um mercado de terras, que só pode se consolidar a partir da destruição da coesão e solidariedade presentes nas relações dos camponeses capazes de garantir as terras em seu domínio. Portanto, a partir do costume de uso comum se estabelece uma resistência às múltiplas pressões exercidas pelo capital para apropriação das terras. A cultura, nesse sentido, é um elemento determinante para a manutenção dessas terras, à medida que atribui normas de uso comum e garante (ou tenta garantir) o direito de posse e a reprodução social das famílias camponesas (ALMEIDA, 2009).

Esse fenômeno de elaboração de normas e valores de uso comum pelo costume, expressas na cultura camponesa, mesmo em sua diversidade de sujeitos e formas distintas de acesso ao uso da terra, como demonstrado por Almeida (2009), pode ser atribuído similaridades ou “afinidades com o direito consuetudinário”, como pesquisado por Thompson (2008), na Inglaterra do século XVIII. Assim, nas palavras do autor:

Se, de um lado, o costume incorporava muitos dos sentidos que atribuíamos hoje à cultura, de outro, apresentava muitas afinidades com o direito consuetudinário. Esse derivava dos costumes, dos usos habituais do país: usos que podiam ser reduzidos a regras e precedentes, que em certas circunstancias eram codificados e podiam ter força de lei (THOMPSON, 2008, p 15).


Essa é uma primeira aproximação que pode ser feita em relação à cultura, ou ao costume, no caso do campesinato brasileiro com os fenômenos no âmbito do campesinato inglês, analisado por Thompson. Uma segunda aproximação que nos permite analisar os traços de resistência à exploração é a forma de transmissão oral. Essa é uma característica marcante do campesinato brasileiro8, sob a qual se


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8 Essa é uma dimensão importante de transmissão dos costumes, da cultura, uma vez que essa população era pouco letrada, escolarizada. A luta pelo direito à educação do campo é uma pauta ainda atual dos movimentos sociais do campo.

estabelece uma cultura própria, marcada por regras de parentesco, de herança e das formas de vida local. Imbricadas nessa trama de relações sociais e sociabilidades específicas, a oralidade torna-se elemento fundamental de compreensão dessa cultura. Godoi et al (2009) tratam da importância da oralidade como forma de transmissão da cultura, e como a compreensão dessas referências culturais nos ajudam a compreender certas relações no meio rural:

Quem já trabalhou com grupos sociais cuja história é marcada por uma ‘memória oral’ pode constatar que muitas vezes o narrador emprega imagens míticas ou metáforas para representar e expor eventos históricos, o que muitas vezes pode ofuscar os próprios eventos, dificultando a localização no tempo e no espaço para aqueles que não partilham os referenciais do grupo (GODOI, et al, 2009, p.27).


Essa identidade do campesinato, manifesta em seu modo de vida e de reprodução social, é uma cultura que resiste e permanece, historicamente, em convívio com a plantation, com o latifúndio, com o agronegócio. Esse antagonismo9 e contradição podem se configurar, na perspectiva thompsoniana, como uma cultura rebelde no âmbito da luta de classe.

A ‘grande propriedade’ historicamente esteve presente na formação do campesinato brasileiro. Garcia & Palmeira (2001) apontam que, em determinadas regiões do país, o desenvolvimento do campesinato ocorreu em áreas periféricas e marginais à grande lavoura. De outro lado, Martins (1986) aponta que foi a crise do capital, com a crise do trabalho escravo, que possibilitou a apropriação da terra por parte dos camponeses, e, por essa razão, “o nosso camponês não é enraizado [...] o camponês brasileiro é desenraizado, é migrante, é itinerante” (MARTINS, 1986, p.17) se movimenta em busca de território.

A reprodução social do campesinato está vinculada com questões relacionadas às formas de apropriação do uso da terra, no que se refere aos aspectos produtivos, de manejo dos sistemas produtivos e a forma de ocupação do solo, que é fundamental para a reprodução da sua existência e por configurar as


9Essa contradição entre direito de uso comum e costume ainda se manifesta no Brasil atual. A pauta sempre em voga de demarcação de terras indígenas, os conflitos em torno do reconhecimento de terras quilombolas são exemplos.

relações econômicas (GODOI et al, 2009). Nesse caso, essas relações econômicas são intimamente vinculadas à cultura. Ploeg (2008), ao se referir a condição camponesa, explica as características dessa condição, na qual está presente a relação entre modo de vida e relações econômicas:

[....] uma relação de co-produção com a natureza; a construção e autogestão de uma base autônoma de recursos próprios (terra, fertilidade, trabalho e capital); uma relação diferenciada com mercados diversificados autorizando certa autonomia; um projeto de sobrevivência e de resistência ligado à reprodução da unidade familiar; a pluriatividade; a cooperação e as relações de reciprocidade (PLOEG, 2008, p. 24-48).


O processo de modernização da agricultura provocou mudanças diretas nessa relação, mas não conseguiu extingui-lo. Entretanto, essa “convivência” entre as diferentes manifestações econômicas do campesinato e as relações tipicamente capitalistas, é permeada por conflitos.

Esses conflitos já foram evidenciados por Thompson ao se referir a relação entre economia e cultura. De acordo com Thompson (2008), esse conflito se manifesta da seguinte forma:

(...) o processo do capitalismo e a conduta não econômica baseada nos costumes estão em conflito, um conflito consciente e ativo, como que numa resistência aos novos padrões de consumo (‘necessidades’), às inovações técnicas ou à racionalização do trabalho que ameaçam desintegrar os costumes e, algumas vezes, também a organização familiar dos papéis produtivos. Por isso, podemos entender boa parte da história social do século XVIII como uma série de confrontos entre uma economia de mercado inovadora e a economia moral da plebe, baseada no costume (THOMPSON, 2008, p. 21)


Essa relação descrita por Thompson, ao qual se refere ao surgimento da economia de mercado e os conflitos que emergem a partir do tipo de relações econômicas que são estabelecidas sob essa ótica, em detrimento aos costumes, o que ele denomina de ‘economia moral’, é bem próximo de alguns aspectos da economia camponesa, de seu sistemas de trocas baseados na reciprocidade, que, de certa forma também entra em conflito à medida que o padrão agroindustrial do agronegócio se expande para áreas nas quais as relações eram muito arraigadas no

modo de vida e no costume camponês, ou como afirma Ploeg (2008), na ‘condição camponesa’.

Esses aspectos econômicos e culturais que garantem a forma de reprodução social do campesinato também permite uma forma de resistência política, frente ao antagonismo que se instala nessa contradição entre campesinato e expansão capitalista no campo.

Há uma contradição histórica que, ao nosso ver, parece central: a questão agrária e a luta pela terra no Brasil. Alguns apontamentos são importantes para identificarmos a emergência dessas lutas no contexto da expansão capitalista para o campo. Essa expansão se deu com a manutenção do latifúndio, que reflete uma especificidade da forma que o país se insere no capitalismo, de forma desigual e dependente. De acordo com Martins (1994):

Enquanto para o modelo europeu de desenvolvimento no centro do desenvolvimento capitalista está o capital, no modelo brasileiro, profundamente marcado pela tradição da dependência colonial, a terra é essencial para o desenvolvimento capitalista porque propicia uma acumulação do capital com base no tributo e na especulação, isto é, com base na renda da terra (MARTINS, 1994. p. 129).


Essa estrutura fundiária centrada no latifúndio tem seus reflexos no Estado, nas relações de clientelismo; na difícil distinção entre público e privado na tradição oligárquica; na aliança entre capital e propriedade da terra, que irá orientar programas e processos de ocupação de determinadas regiões do pais (norte e centro-oeste principalmente). De acordo com Martins (1994): “Nenhum pacto político foi feito neste país, desde sua independência, em 1822, até a recente constituição de 1988, que não fosse ampla concessão aos interesses das grandes propriedades de terra10 (MARTINS, 1994, p. 96).

No período que precede a ditadura militar e após a sua implementação, o reforço a essa estrutura de latifúndio aparece no estimulo à ocupação das fronteiras pelo grande capital, bem como o incentivo a expansão da fronteira agrícola. Esse


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10Alentejano (2014), traz análises atuais sobre o processo de internacionalização da agricultura e os impactos dessa internacionalização na aquisição de terras e na definição das políticas agrícolas no Brasil. A grande propriedade continua delineando os rumos das ações do Estado.

fenômeno foi marcado pelo surgimento de conflitos, lutas e resistência. Foi nesse período que a categoria “camponês” ganhou sentido político, marcado pela resistência de trabalhadores rurais, posseiros, arrendatários, foreiros ou moradores, que se inseriram no processo de modernização tendo como resultados a expulsão de suas terras (MEDEIROS, 1989).

Sem adentrarmos na especificidade dessa forma de organização camponesa e dos agentes envolvidos nesse campo (Setores vinculados à Igreja Católica e o Partido Comunista), o que cabe destacar é que nesse contexto começam a organização das ligas camponesas11 e do sindicalismo rural, que deram as bases para a criação dos movimentos sociais no campo, tendo sua maior expressão no Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).

A esse processo histórico de constituição dos movimentos sociais no campo pode ser atribuído a concepção “fazer-se” do campesinato enquanto classe social. Longe de ser uma classe “sem consciência”, essa experiência histórica do campesinato se insere num contexto de luta de classes, na qual a partir da experiência de organização política se forma uma consciência acerca dos direitos. É nesse sentido que Thompson atribui a categoria de luta de classes, nos diferentes grupos que se colocam em contraposição e de forma antagônica com a dominação, nas palavras do autor:

[....] as pessoas se vêem numa sociedade estruturada de um certo modo (por meio de relações de produção fundamentalmente), suportam a exploração (ou buscam manter poder sobre os explorados), identificam os nós dos interesses antagônicos, debatem-se em torno desses mesmos nós e, no curso de tal processo de luta, descobrem a si mesmas como uma classe, vindo, pois, a fazer a descoberta da sua consciência de classe (THOMPSON, 2012, p. 274).


Como demonstramos, a estrutura de latifúndio é promotora da principal contradição na qual emergem as lutas sociais e as formas de resistência constituem um processo também do “fazer-se” do campesinato enquanto classe.



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11 As ligas camponesas surgem no Nordeste como forma de resolução do problema agrário, tendo sua expressão na organização dos trabalhadores do Engenho da Galileia, em Pernambuco.

A cultura camponesa e a educação comunitária para agroecologia


A narrativa do atraso produzida pela modernização da agricultura e atribuída a agricultura camponesa, em detrimento a ideia de progresso vinculada ao agronegócio, trouxe consequências para uso do conceito de campesinato no século

XXI. Se pretendemos demonstrar que a cultura camponesa é a mediação entre os processos educativos desenvolvidos junto a trabalhadores do campo, temos que tratar do tipo de relação social que se estabelece nessa agricultura, principalmente referentes ao trabalho camponês, a forma como se produz e se estabelece a relação ser humano-natureza.

Um pressuposto importante acerca da análise sobre a agricultura camponesa é que ela está inserida e vinculada ao modo de produção capitalista. Não se trata de uma sociedade isolada das relações capitalistas, dos circuitos de circulação de mercadorias e do capital. Nesse sentido:

[....] se não entendermos que os meios de produção – mesmo aqueles que estão nas mãos do camponês – se reproduzem pela dinâmica do capital e que todo excedente cedido pelo trabalhador direto – seja ele operário ou camponês – transforma-se em mais- valia capitalizada, e se também não entendermos, enfim, que todo rendimento orientado ao consumo do trabalhador funciona como parte do capital variável global, não entenderemos nada (VERGÉS, 2011, p. 2).


Em uma perspectiva da economia política do campesinato, é importante considerar as relações capitalistas em que está inserido, e sobretudo, conseguir chegar a uma “explicação das mediações e contradições por meio das quais opera” essas relações (VERGÉS, 2011, p.3). Tendo em vista esse pressuposto teórico, podemos adentrar nas relações específicas desses “tipos” de agricultura, porém, situadas no contexto atual, não como resíduo histórico, mas como uma forma de se fazer agricultura que ainda permanece e resiste ao padrão hegemônico da agricultura capitalista.

Um outro aspecto teórico importante de destacarmos é que não estamos tratando de um tipo idealizado de camponês, tendo em vista que “a maioria dos grupos agrários hoje são constituídos por uma ‘mistura’ confusa e altamente diversificada de diferentes modos de fazer agricultura” (PLOEG, 2008, p. 34), ou na

perspectiva de Vergés (2011), “um fantasma multiforme definido por sua intricada complexidade” (VERGÉS, 2011, p. 67). O que estamos buscando são relações sociais e expressões dessa forma de se fazer agricultura que nos indique elementos culturais que tem relação com a agroecologia, que são mediações na produção do conhecimento em agroecologia e, por fim, que possam contribuir para a compreensão que nesse tipo de agricultura pode-se constituir processos formativos junto à trabalhadores do campo.

Para Ploeg (2008), podemos analisar a agricultura a partir de três grandes manifestações na sociedade atual. Agricultura camponesa, agricultura de tipo empresarial e agricultura capitalista. A agricultura camponesa, que “se baseia fundamentalmente no uso sustentado do capital ecológico”, sendo a perspectiva de reprodução social da unidade produtiva camponesa, e da família, uma das principais orientações das práticas desenvolvidas nesse tipo de agricultura. As características principais desse tipo de agricultura é que a mão de obra é fundamentalmente familiar e a produção se destina ao mercado, porém, também se produz valor de uso, voltados para a manutenção da unidade familiar (PLOEG, 2008, p.17).

A agricultura de tipo empresarial é definida por estar essencialmente vinculada ao capital financeiro e industrial, especificamente sob a forma de crédito, insumos e tecnologias. O nível de especialização nesse tipo de agricultura é elevado e completamente voltada para o mercado, colocando os agricultores empresarias totalmente dependente das relações de mercado. Já a agricultura capitalista “engloba uma rede bastante extensa de empresas agrícolas de grande mobilidade, que utiliza mão de obra essencialmente, ou quase exclusivamente, baseada em trabalhadores assalariados” (PLOEG, 2008, p. 18).

Para Ploeg (2008), as diferenças principais entre esses três tipos de agriculturas se refere na escala em que são aplicados:

Assim, a agricultura camponesa representaria as unidades de produção pequenas e vulneráveis, cuja relevância é de importância secundária. No lado oposto, estaria a agricultura capitalista: vasta, forte e importante – pelo menos é essa a ideia que se generaliza. A situação intermediária seria representada pela agricultura empresarial, esta se movimentando na escala entre unidades pequenas e unidades grandes. Se os agricultores empresariais tiverem sucesso, eles poderão, tal como alguns defendem, atingir os

níveis dos agricultores capitalistas – e é precisamente isso que alguns deles sonham alcançar (PLOEG, 2008 p. 18).


Esses três modelos analíticos de agricultura apresentada por Ploeg (2008) possuem interligações. Também se apresentam de forma antagônicas. Ao se referir a agricultura camponesa, por exemplo, a centralidade é na construção e reprodução de circuitos curtos de circulação de mercadorias, que conectam a produção e o consumo de alimentos. Enquanto na agricultura capitalista, a centralidade é em empresas de processamento e comercialização de alimentos, definidas como Impérios Agroalimentares (PLOEG, 2008).

Uma outra denominação que compõe, inclusive, os documentos de políticas públicas no Brasil, é o de Agricultura familiar12. A agricultura familiar é um conceito genérico que abarca uma diversidade de sujeitos do campo. Dentro desse arcabouço conceitual, têm-se processos distintos de relações produtivas, relações culturais e de identidade, construção social de mercados, processos sócio organizativos e sociopolíticos envolvendo ribeirinhos, quilombolas, extrativistas, população tradicional, enfim, uma diversidade de povos das florestas e das águas que genericamente passaram a ser caracterizados como “agricultura familiar”. Essa diversidade expressa diferentes modos de vida, diferentes relações com o mercado e distintas relações produtivas, associadas a biomas específicos e ao manejo estabelecido em cada agroecossistema. O que congrega essa diversidade de manifestação da agricultura familiar no Brasil é, portanto, a sua forma de produção, em que a propriedade e o trabalho estão intimamente ligados à família (SILVA, 2010).

Wanderley (2004) sintetiza essas características sobre o que vem a ser agricultura familiar, ao afirmar que:


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12 Segundo a lei n. 11.326, de 24 de julho de 2006; artigo 3º [....] considera-se agricultor familiar e empreendedor familiar rural aquele que pratica atividades no meio rural, atendendo, simultaneamente, os seguintes requisitos: I – não detenha, a qualquer título, área maior do que 4 (quatro) módulos fiscais; II – utilize predominantemente mão de obra da própria família nas atividades econômicas do seu estabelecimento ou empreendimento; III – tenha renda familiar predominantemente originada de atividades econômicas vinculadas ao próprio estabelecimento ou empreendimento; IV – dirija seu estabelecimento ou empreendimento com sua família.



Esse caráter familiar se expressa nas práticas sociais que implicam uma associação entre patrimônio, trabalho e consumo, no interior da família, e que orientam a lógica de funcionamento específica. Não se trata apenas de identificar as formas de obtenção do consumo, através do próprio trabalho, mas do reconhecimento da centralidade da unidade de produção para a reprodução da família, através das formas de colaboração dos seus membros no trabalho coletivo – dentro e fora do estabelecimento familiar -, das expectativas quanto ao encaminhamento profissional dos filhos, das regras referentes as uniões matrimoniais, à transmissão sucessória, etc. (WANDERLEY, 2004, p.45).


Concomitantemente a construção acadêmica e conceitual da agricultura familiar também ocorreu a sua legitimação perante o Estado. Foi a partir da década de 1990 que o Estado brasileiro reconheceu esse segmento social por meio do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar – PRONAF (GRISA, 2010).

Esse reconhecimento foi expresso pela capacidade produtiva da agricultura familiar, principalmente na produção de alimentos. Os dados do Censo Agropecuário de 2006 demonstraram que os principais produtos que compõem a cesta básica de alimentos eram provenientes da agricultura familiar (IBGE, 2006)13. Kageyama et al. (2013) apontaram que a produção da agricultura familiar representava 52% do total de alimentos produzidos no país.

A partir da exposição das categorias, percebe-se que existem relações bem próximas entre agricultura familiar e agricultura camponesa, principalmente ao que se refere a dimensão do trabalho. A partir desses traços comuns relacionados ao trabalho e a cultura camponesa é possível compreender e analisar como o trabalho e a cultura se colocam como mediação da relação ser humano natureza e, por conseguinte, como mediação da produção do conhecimento nos processos educativos junto a trabalhadores do campo.

É no processo de trabalho que são “desenvolvidas aprendizagens e criadas novas formas de fazer as coisas” (PLOEG, 2008, p. 42). O trabalho, nessa perspectiva, exerce uma “função pedagógica” (CALDART, 2016, p. 2), e o trabalho



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13 De acordo com dos dados do Censo Agropecuário de 2006, a Agricultura Familiar produz 80% da mandioca, 70% do feijão, 46% do milho, 38% do café, 34% do arroz, 58% do leite, 50% das aves e 59% dos suínos, no Brasil. (MDA/IBGE 2006).

camponês se configura enquanto um princípio educativo, sob o qual se estruturam processos formativos em agroecologia.

Na Zona da Mata de Minas Gerais, temos evidencias empíricas de processos formativos em agroecologia que se vinculam com os elementos da cultura camponesa tratados até aqui. Trata-se de processos formativos vinculados as Comunidades Eclesiais de Base – CEBs e a Comissão Pastoral da Terra – CPT. De acordo com Silva (2010), a partir dos processos educativos estabelecidos junto as CEBs na Zona da Mata, se estabeleceu a constituição dos Sindicatos dos Trabalhadores Rurais.

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Figura 1 - Fonte: Localização dos municípios da Zona da Mata foco de análise de campo da pesquisa. Extraído de TEIXEIRA et al (2018). Farmers show complex and contrasting perceptions on ecosystem services and their management. Ecosystem Services 33 (2018) 44–58.

Alguns elementos da cultura camponesa podem ser identificados a partir dos processos formativos promovidos pelas CEBs e nos processos formativos em agroecologia promovidos na Zona da Mata de Minas Gerais. Esses elementos se expressam na forma de orientações e concepções de educação atribuída a essas práticas educativas e processos formativos, e também na conformação de metodologias participativas de interação entre a agricultura camponesa e agroecologia.

Ao que se refere as orientações vinculadas as práticas educativas, um legado importante é partir do conhecimento local, ou seja, levar em consideração a realidade vivida dos camponeses, ou como diria uma agricultora do município de Divino, município da Zona da Mata de Minas Gerais, se referindo aos técnicos extensionistas que desenvolvem trabalhos com os agricultores “eles precisam saber da gente o que a gente quer” (depoimento agricultora do município de Divino, 2017)14. Essa realidade, ou “o que a gente quer” que se refere a agricultora, envolve tanto a forma de trabalho na qual o campesinato se reproduz social, cultural e economicamente, quanto a produção de sentidos e significados que conformam repertórios de análise da realidade.

A dimensão simbólica presente na sociabilidade camponesa, como atributo de sua cultura, utilizados como ‘método’ pelas CEBs, promoveu um processo de organização política frente a questões concretas que permeavam o campo na década de 1970 e 1980. Nesse sentido, gerou-se um ambiente favorável ao envolvimento dos camponeses na solução de suas questões imediatas (PETERSEN & ALMEIDA, 2006). As questões imediatas tratavam de dimensões vinculadas diretamente ao trabalho camponês, que:

(....) requer um entendimento das relações de produção em que se dão as diversas atividades de reprodução da vida social; e pressupõe a identificação dos elementos materiais (instrumentos, métodos, técnicas, etc.) e simbólicas (atitudes, ideias, crenças, hábitos, representações, costumes) partilhados pelos grupos humanos – considerados em suas especificidades de classe, gênero, etnia, religiosidade e geração (TIRIBA & SICHI, 2012, p.8).


Essa dimensão da relação cotidiana, do vivido que se colocava como tema gerador nos processos formativos das CEBs pode ser destacado da fala de um agricultor do município de Araponga, localizado na Zona da Mata de Minas Gerais, ao se referir a formação da CEBs e da sua concepção de agroecologia: “quando falo de CEBs ou de agroecologia, eu estou falando de vida [....] diversidade de vida é a agroecologia, e as CEBs discutia justamente isso” (Depoimento agricultor de Araponga, 2017).


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14 Os depoimentos utilizados no artigo são parte da pesquisa de campo do doutorado, realizados no segundo semestre de 2017 em Espera Feliz, Divino e Araponga, municípios da Zona da Mata Mineira onde os processos formativos junto aos trabalhadores do campo foram desenvolvidos desde a década de 1980).

Cintrão (1996) e Comerford (2003) também identificaram o processo de formação das CEBs na Zona da Mata como um processo social importante para a constituição do movimento sindical e, em detrimento dessa articulação, da temática ambiental no âmbito dessa ‘comunidade moral militante’, categoria utilizada para se referir aos laços de proximidade do conjunto dos trabalhadores participantes das CEBs que vieram a compor a direção dos diversos sindicatos de trabalhadores rurais da região.

Outro elemento importante da cultura camponesa, expressa na forma de instrumentos, métodos e técnicas, são as formas de manejo dos agroecossistemas, que estão diretamente relacionadas ao patrimônio cultural historicamente transmitido. Um conhecimento acerca das práticas de manejo, que permanece até hoje como base científica da agroecologia.

A materialidade do trabalho camponês e as mediações que são possíveis de se estabelecer com o conhecimento sistematizado, científico, conforma concepções de educação, na qual o trabalho se coloca como centralidade, como afirma em depoimento um agricultor de Araponga-MG: “a educação do campo para mim é [. ] pegar um pedaço de chão e viver disso” (depoimento agricultor de Araponga – 2017).

Tendo como base social de atuação a mesma base do Movimento Sindical dos Trabalhadores Rurais, constitui-se o Centro de Tecnologias Alternativas da Zona da Mata- CTA-ZM. Por meio do CTA-ZM, em interação com o Movimento Sindical dos Trabalhadores Rurais e a Universidade Federal de Viçosa –UFV, uma série de ações voltadas à implementação da agroecologia foram desenvolvidas. Essas experiências conformaram metodologias que se vinculam diretamente aos aspectos da cultura camponesa, expressas na relação dos camponeses no trato da terra e produção da existência, no sentido de promover sistemas de produção de base agroecológica.

Tais processos educativos referem-se a diagnósticos participativos elaborados nas comunidades rurais junto com agricultores/as, como forma de compreensão da realidade e promoção conjunta de ações visando a mudança dos sistemas produtivos; intercâmbios agroecológicos, uma metodologia que se baseia

na interação entre camponeses/as na solução de problemáticas relacionas ao manejo dos sistemas produtivos fundados na agricultura de base agroecológica.

Existem diversos estudos realizados sobre a agroecologia na Zona da Mata mineira. Por exemplo, estudos que tratam da sistematização de experiências agroecológicas de manejo (CARDOSO & FERRARI, 2006), processos socioorganizativos e relacionados a compra coletiva de terra e construção de mercados (CAMPOS, 2006; SILVA, et al, 2014); estudos sobre as práticas educativas e metodologias participativas utilizadas no processo de construção do conhecimento do movimento agroecológico na Zona da Mata mineira (SILVA & SANTOS, 2016; ZANELLI et al, 2015); e estratégias camponesas de reprodução sócio econômica da famílias agricultoras (FERRARI, 2010)

Esses estudos, juntamente com as evidências empíricas dos processos educativos desenvolvidos na Zona da Mata de Minas Gerais, nos ajudam na compreensão histórica da relação entre economia e cultura, na relação das diferentes estratégias de reprodução do campesinato, que estão presentes nas práticas sociais, políticas, econômicas do campesinato.

Nesse sentido, a cultura camponesa se coloca enquanto mediação de processos formativos, trazendo elementos que tratam tanto dos aspectos simbólicos quanto aspectos materiais, que estruturados a partir de metodologias específicas, forjadas no âmbito das organizações camponesas, vão dando forma à processos educativos voltados para implantação de um modelo de agricultura de base ecológica.


Conclusões


Este artigo buscou responder a seguinte questão: quais os elementos históricos da formação social do campesinato e da cultura camponesa nos ajudam na conformação de processos educativos junto à trabalhadores do campo com vistas a promover a transição para a agricultura de base agroecológica?

Alguns elementos da cultura camponesa podem ser identificados a partir dos processos formativos promovidos pelas CEBs e nos processos formativos em agroecologia promovidos na Zona da Mata de Minas Gerais. Esses elementos se

expressam na forma de orientações e concepções de educação atribuída a essas práticas educativas e processos formativos, e também na conformação de metodologias participativas de interação entre a agricultura camponesa e agroecologia.

As evidências empíricas dos processos educativos desenvolvidos na Zona da Mata de Minas Gerais, nos ajudam na compreensão histórica da relação entre economia e cultura, na relação das diferentes estratégias de reprodução do campesinato, que estão presentes nas práticas sociais, políticas e econômicas do campesinato.

A partir da pesquisa bibliográfica acerca da trajetória histórica de formação social do campesinato no Brasil, podemos identificar aspectos relacionados a formas de uso da terra, sociabilidades e relações com a natureza para produção e reprodução sociocultural e socioeconômicas das comunidades rurais.

Esse modo de vida camponês produz uma relação social específica, na qual tanto a dimensão material do trabalho camponês quanto a dimensão simbólica, conformam processos educativos associados a organização sociopolítica, com a emergência de movimentos sociais do campo e do movimento sindical dos trabalhadores rurais, na Zona da Mata Mineira.

As experiências educativas na Zona da Mata nos apresentam elementos importantes da cultura camponesa na estruturação de processos educativos junto à trabalhadores do campo. Por meio de métodos de interação que garantem o lugar de fala e a reflexão conjunta com os camponeses sobre a realidade vivida no campo. Essa é uma concepção fundamental para conformação de perspectivas educacionais e processos educativos junto a trabalhadores do campo.

Portanto, a cultura camponesa se coloca enquanto mediação de processos formativos, trazendo elementos que tratam tanto dos aspectos simbólicos quanto aspectos materiais, que estruturados a partir de metodologias específicas, forjadas no âmbito das organizações camponesas, vão dando forma à processos educativos voltados para implantação de um modelo de agricultura de base ecológica.

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Recebido em: 05 de julho de 2018. Aprovado em: 17 de setembro de 2018. Publicado em: 22 de novembro de 2018.

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O PRINCÍPIO EDUCATIVO DA PRODUÇÃO ASSOCIADA: UM OLHAR A PARTIR DA ORGANIZAÇÃO COLETIVA DOS TRABALHADORES E DA GESTÃO DEMOCRÁTICA DO PROCESSO DE TRABALHO¹


Anderson Roik2 Danuta Estrufika Cantóia Luiz3 José Henrique de Faria4


Resumo

Trata-se de revisão teórica que objetiva sistematizar a categoria princípio educativo da produção associada, pautando-se nos conceitos pedagogia da produção associada e cultura do trabalho elaborados por Tiriba e, nos estudos sobre as condições para uma gestão democrática do processo de trabalho e o conceito de organização coletivista de produção associada desenvolvidos por Faria. O princípio educativo que se realiza nas organizações coletivistas de produção associada sob uma gestão democrática do processo de trabalho possibilita, a partir da aprendizagem coletiva na e pela práxis, forjar uma nova cultura do trabalho e estabelecer novas concepções de trabalho, de vida e de mundo.

Palavras-chave: princípio educativo do trabalho, gestão democrática, organização coletiva.


THE EDUCATIVE PRINCIPLE OF COLLABORATIVE PRODUCTION: A LOOK FROM THE COLLECTIVE ORGANIZATION OF LABOURERS AND THE DEMOCRATIC MANAGEMENT OF WORK PROCESS


Abstract

This article is a theoretical review and aims to systematize the principle education of collaborative production, guided on concepts pedagogy of collaborative production and work culture designed by Tiriba and on studies about the conditions for a democratic management of work process developed by Faria. The educative principle that take place on the collectivist organizations of collaborative production under a democratic management of work process enable from the collective learning and for praxis, forge a new work culture and stabilish new conceptions of work, of life and of world.

Key-words: educative principle of work, democratic management, collective organization.


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1DOI: https://doi.org/10.22409/tn.16i31.p27384

2Mestrado em Engenharia de Produção pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná, UTFPR e Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Estadual de Ponta Grossa, UEPG. Servidor da Universidade Estadual do Centro-Oeste, UNICENTRO. E-mail: andersonroik@hotmail.com

3Doutorado em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, PUCSP. Professora Associada da Universidade Estadual de Ponta Grossa, UEPG, atuando no Curso de Serviço Social e no Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais Aplicadas. E-mail: danutaluiz88@gmail.com 4Doutorado em Administração pela Universidade de São Paulo, USP e Pós-Doutorado em Labor Relations pelo Institute of Labor and Industrial Relations, ILIR, University of Michigan. Professor Titular Sênior da Universidade Federal do Paraná, UFPR, atuando no Programa de Pós-Graduação em Administração; e Coordenador do Programa de Mestrado em Governança e Sustentabilidade do Instituto de Administração e Economia do Mercosul, ISAE-PR. E-mail: jhfaria@gmail.com

Introdução


No processo de fundamentar teoricamente o princípio educativo do trabalho4 no contexto da produção associada, algumas lacunas e equívocos conceituais foram identificados, exigindo a proposição de uma nova categoria a fim de solucionar essas questões e, também, enriquecer a discussão sobre o princípio educativo do trabalho. Esta categoria será aqui denominada princípio educativo da produção associada.

Por seu turno, a partir de uma abordagem teórica, este artigo tem por objetivo discutir o princípio educativo da produção associada, apoiando-se nos conceitos pedagogia da produção associada e cultura do trabalho elaborados por Tiriba e, nos estudos sobre as condições para uma gestão democrática do processo de trabalho e o conceito de organização coletivista de produção associada – OCPA desenvolvidos por Faria. Tal opção reside no fato de que ambas as abordagens dos pesquisadores se complementam e sua articulação pode fornecer importantes contribuições para a temática em estudo, bem como possibilitar uma leitura correta do concreto e, assim, permitir uma correta intervenção a fim de transformá-lo.

Tiriba (1999, 2001, 2006, 2007, 2010) se dedica aos processos de formação humana – educativos e culturais – das experiências de produção associada das classes populares em seus movimentos e em suas práticas de produção das condições de sua existência. Daí o conceito de pedagogia da produção associada e cultura do trabalho.

Faria (2009, 2011, 2017a, 2017b), por sua vez, a partir de seus estudos sobre a gestão das organizações – relações de poder, processo de trabalho e controle na gestão do processo de trabalho – propõe uma reflexão crítica sobre os critérios para uma gestão democrática. Além disso, desenvolve uma crítica aos equívocos conceituais relacionados às experiências autogestionárias e, estabelece a necessária distinção conceitual entre os empreendimentos que se autodenominam autogestionários e a autogestão social, dando origem ao conceito de OCPA.


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4 Titton (2008) apresenta a distinção entre princípio educativo do trabalho e o trabalho como princípio educativo. Segundo Titton (2008, p. 4), Pistrak - no livro Fundamentos da Escola do Trabalho - explica essa diferença: princípio educativo do trabalho corresponde ao processo mais amplo de educação que se realiza “[...] por meio do trabalho na forma social em que assume num modo determinado de produção da vida”; e, trabalho como princípio educativo consiste na “[...] utilização do trabalho material socialmente útil como base para a organização de um sistema de ensino”. Neste artigo, ambos os termos serão entendidos como o processo mais amplo de educação.

Neste artigo, inicialmente, é colocado o tema da autogestão social relacionando a produção associada e o princípio educativo do trabalho. Num segundo momento, é abordada a pedagogia da produção associada discutindo-se o processo educativo que nela se desenrola e, também, as perspectivas de se forjar uma nova cultura do trabalho. No terceiro momento, são apresentadas as OCPA conceituando e delimitando as unidades básicas para uma possível autogestão social, bem como as condições para que a gestão do processo de trabalho seja efetivamente democrática. Por último, são feitas as considerações finais.

Abordar o tema do princípio educativo do trabalho e, mais especificamente, o princípio educativo da produção associada, além de ser um desafio, torna-se, no plano da práxis5, uma arma valiosa para a superação das relações sociais

capitalistas afastando o imobilismo que parece preponderar.


A produção associada e o princípio educativo do trabalho: caminhos para a autogestão social


A autogestão social, segundo Faria (2009, p. 338), propõe “[...] uma noção de economia a partir do que é necessário produzir e uma noção de política enquanto realização em todos os níveis – e sem intermediários – de todos os interesses por todos os sujeitos coletivos”. Assim, para o autor, a economia deixa de estar orientada a questão da lucratividade, sendo a exploração dos trabalhadores e a sua dominação pelo capital destruídos.

A autogestão social consiste em uma prática com um projeto político oposto a heterogestão e ao sistema de capital, uma transformação radical da sociedade nos planos econômico, político e social. Não se trata da democratização da economia capitalista, mas da alteração de seus fundamentos (FARIA, 2009).


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5 “A praxis na sua essência e universalidade é a revelação do segredo do homem como ser ontocriativo, como ser que cria a realidade (humano-social) e que, portanto, compreende a realidade (humana e não-humana, a realidade na sua totalidade). A praxis não é atividade prática contraposta à teoria; é determinação da existência humana como elaboração da realidade” (KOSIK, 2002, p. 222). Para (VÁZQUEZ, 2011), “em suma, a práxis se apresenta como uma atividade material, transformadora e adequada a fins. Fora dela, fica a atividade teórica que não se materializa, na medida em que é atividade espiritual pura. Mas, entretanto, não há práxis como atividade puramente material, isto é, sem a produção de fins e conhecimentos que caracteriza a atividade teórica”. ( p. 239).

A autogestão se inscreve no movimento de ampliação da democracia, por isso não basta que sua existência se limite às unidades produtivas, pois seu alcance é social. A autogestão social não é nem uma mera extensão da democracia representativa formal a todas as esferas da sociedade, nem uma democracia ou gestão participativa e nem uma correção dos princípios centralizadores da democracia popular (FARIA, 2009, p. 352).


Na perspectiva de Faria (2009), a autogestão tem por objetivo eliminar as estruturas autoritárias da sociedade e das suas organizações. Vai além de mera proposta democratizante no âmbito da gestão participativa que apenas cria grupos de trabalho autônomos ou acaba com determinados graus de autoridade nas organizações. Não se trata, pois, da panaceia participativa conciliadora que pressupõe o fim do conflito entre capital e trabalho e, além disso, o que a autogestão for não está pré-determinado por ninguém.

A autogestão social é uma mudança radical e revolucionária que altera qualitativamente o sistema de capital. Trata-se da criação de outro e superior modo de produção e de gestão social (FARIA, 2009).

A produção associada e a autogestão, segundo Tiriba e Fischer (2012, p. 619) “[...] situam-se no contexto de afirmação e de formação de trabalhadores e trabalhadoras para a construção de uma ‘sociedade dos produtores livremente associados’”. E, no horizonte da emancipação humana, as categorias históricas produção associada e autogestão se relacionam e se articulam e, no interior do modo de produção capitalista, são possibilidades concretas de experimentação.

Para Tiriba (2001, p. 182), a autogestão:


[...] consiste em que cada um possa constituir-se em senhor de si mesmo, de seu trabalho, como sujeito criador da história e construtor de uma nova ordem social, o que pressupõe uma relação estreita entre teoria e prática, entre o que fazer no chão-da-produção e os fundamentos filosóficos e científicos-tecnológicos relativos ao mundo do trabalho.


De acordo com Brito (2010, p. 115), a autogestão deve ser compreendida como “[...] um aprendizado cotidiano em torno de um saber historicamente acumulado, que diz respeito aos fundamentos da gestão num regime de propriedade coletiva”.

As relações econômico-sociais e culturais em que os trabalhadores têm a propriedade e/ou posse coletiva dos meios de produção estão relacionadas ao termo produção associada e autogestão (TIRIBA; FISCHER, 2012). Diferem da

heterogestão, pois são seus integrantes que criam e recriam os princípios, as regras e as normas de convivência que vão reger o trabalho associado e autogestionário. Para as autoras, a “[...] organização do trabalho (material e simbólico) é mediada e regulada por práticas que conferem aos sujeitos coletivos o poder de decisão sobre o processo de produzir a vida social” (TIRIBA; FISCHER, 2012, p. 614).

A participação direta de todos os produtores – e não apenas representativa – na tomada de decisões básicas seja em relação às organizações econômicas como à vida em sociedade, consiste no atual desafio das relações sociais (TIRIBA, 2001). É importante, nesse contexto, investigar e compreender as motivações que fazem com que os trabalhadores permaneçam mobilizados em torno do empreendimento cooperativo, considerando as condições de dificuldade em que essa luta se desenvolve.

Assim como ensinou Gramsci, é necessário olhar para as iniciativas que levem ao aprendizado e ao desenvolvimento das classes subalternas. “Estas, mais do que preocupar-se em resistir à opressão, são chamadas a buscar formas para sair da submissão e inventar os termos de uma nova sociedade” (SEMERARO, 1999, p. 71).

Neste sentido, segundo Luiz (2013, p. 98),


Permanece também a importância do fomento às práticas sociais pedagógicas e democráticas que socializem e universalizem o conhecimento e consequentemente a criação de uma cultura política madura nas classes / grupos sociais, como enfrentamento aos mecanismos de poder e de dominação hegemônicos, como rupturas moleculares frente ao instituído.


Para Luiz (2013), numa perspectiva gramsciana, a via cultural e ético-política são possibilidades de enfrentamento das contradições da sociedade capitalista. Tal enfrentamento é possível “[...] mediante o fomento da potencialidade das massas, de seu protagonismo consciente, ativo e organizado – desencadeado por um processo de rupturas que levará a edificação da emancipação social como um caminho contra- hegemônico” (LUIZ, 2013, p. 20).

Para Semeraro (1999, p. 73) “[...] o ponto central das reflexões de Gramsci se prende à formação de novos sujeitos sociais que visam à construção de um projeto de sociedade aberto à participação de todos os trabalhadores”. Para Gramsci, a vida em sociedade comporta “[...] uma práxis política consciente e coletiva que visa

transformar a realidade, combate os privilégios e promove o protagonismo das massas espoliadas e excluídas” (SEMERARO, 1999, p. 79).

Diante da contraditoriedade da realidade decorrente do modo de produção capitalista, Tiriba e Picanço (2010), afirmam que passam a (re)surgir ou a se manifestar com maior intensidade formas de trabalho cujo sentido não se limita à reprodução do capital.


É certo que, se de um lado o sistema de capital leva às últimas consequências o processo de exploração da força de trabalho, inovando e precarizando – ainda mais – as formas de apropriação de sua energia física e psíquica, de outro, contraditoriamente, a produtividade demandada pelo capital, ao mesmo tempo em que obriga os trabalhadores a estabelecer determinadas formas de relação entre capital e trabalho, os impele a recriar antigas e novas relações econômico-sociais e, por consequência, repensar o sentido mesmo da práxis produtiva (TIRIBA; PICANÇO, 2010, p. 25).


Daí a origem das diversas formas de produção – economia solidária, economia cooperativa, incubadoras populares, economia popular da produção associada – que, diferentes do modelo hegemônico capitalista, abrem caminho para uma nova cultura do trabalho centrada na produção de bens e serviços para responder às necessidades humanas. Mesmo que inseridas no campo das contradições do sistema de capital e das próprias contradições e limites internos destas formas de produção, elas são o germe para novas relações e práticas educativas e novos vínculos entre economia, educação, produção e sociedade (FRIGOTTO, 2010).

É na apreensão dos saberes e fazeres, tecidos na cotidianidade desses homens e mulheres que buscam se apropriar do processo de produção em sua totalidade – seja na mais complexa ou formas ou modalidades mais simples –, que se encontram “[...] os elementos que favoreçam a formação integral e omnilateral de um novo homem” (TIRIBA; PICANÇO, 2010, p. 20). Afinal, no processo dialético de fazer, pensar, criar e recriar o mundo “[...] o trabalho é o princípio educativo e, ao mesmo tempo, uma das formas pelas quais, com a luta dos trabalhadores, é possível fazer germinar os embriões de uma nova cultura do trabalho” (TIRIBA; PICANÇO, 2010, p. 29).

Tiriba e Fischer (2012) ressaltam que, para Marx, a produção associada consiste na célula da sociedade dos produtores livres associados, ainda que limitada

sob a égide capitalista. No entanto, é somente com o poder político nas mãos das classes trabalhadoras que será possível a derrota do capitalismo.

Enquanto potencialidades, a partir da produção associada, poderiam emergir processos educativos que “[...] desenvolvam a autonomia e elevem o senso comum a uma visão unitária e crítica da realidade, além da constituição de laços de solidariedade e igualdade para uma nova cultura do trabalho, centrada na perspectiva de novas relações sociais” (BARROS, 2010, p. 194). Quando se tem por objetivo uma economia de novo tipo, diferente do capitalismo e com vistas à emancipação humana, torna-se necessário fomentar e potencializar os elementos educativos para uma nova cultura do trabalho e novas relações sociais.

Tiriba (2001) defende que é pela práxis que o homem transforma a realidade. Isso também se aplica ao campo da produção associada “[...] tanto para aqueles que tiveram acesso a uma escolarização básica, que lhes permitiu apropriar-se dos fundamentos científico-tecnológicos do mundo do trabalho, como para aqueles que, em maior ou menor grau, não tiveram o mesmo privilégio [...]” (TIRIBA, 2001, p. 184).

Para os trabalhadores, é na produção associada que reside a “[...] possibilidade de contrariar o sentido de suas vidas e de seu trabalho de subverter a lógica que durante séculos o capital imprimiu às suas práticas trabalhistas”. (TIRIBA, 2001, p. 195). Os trabalhadores na produção associada estão diante de um novo desafio, uma nova realidade que consiste em pensar e criar o processo produtivo. Para isso é necessário se apropriar dos segredos da ciência e da gestão, além da posse dos meios de produção.


Na perspectiva de Gramsci, a gestão da produção associada pressupunha a capacidade de cada trabalhador para administrar seu trabalho de acordo com os interesses coletivos. Participar do processo produtivo significaria ir mais além da participação por representação e também favorecer uma organização que permitiria a interferência coletiva e cotidiana no conteúdo e na forma de produção. Para o trabalhador associado, viver e administrar o processo de produção lhe permitiria a elaboração crítica da atividade intelectual existente em um determinado grau de desenvolvimento, em consonância com o trabalho manual; permitiria redimensionar sua práxis em função de uma nova concepção de mundo, fundamentada em um projeto de vida que busca a hegemonia do homem e de seu trabalho. Mas se, de um lado a transformação da realidade faz-se pela práxis, de outro, também é necessária a consciência desta mesma práxis e a superação do sentido comum de que o prático se reduz ao produtivo (TIRIBA, 2001, p. 195).

A partir do pensamento de Frigotto (1999), Tiriba (2001, p. 210) afirma que, “[...] tendo ou não acesso à escola, os trabalhadores produzem e acumulam conhecimentos, em determinadas circunstâncias, em determinadasrelações sociais”. O cotidiano do trabalho da produção associada se constitui como instância possível de mediação entre mundo da cultura e mundo da produção, especialmente para os trabalhadores expulsos do mercado formal de trabalho e expulsos dos bancos escolares. Os trabalhadores associados, no processo produtivo, “[...] podem descobrir que, sob os limites impostos pela sociedade de mercado, é possível – desde o ‘pé-de- obra’, desde a práxis – inventar relações sociais e econômicas que, de alguma

maneira contrariem a lógica capitalista” (TIRIBA, 1999, p. 5).

Na produção associada se promove a articulação dos diversos saberes dos trabalhadores, diferentemente da lógica capitalista do controle e da dificuldade de acesso ao segredo do processo produtivo. Trata-se de um espaço singular de produção de conhecimentos (TIRIBA, 2001).

A apreensão e problematização das categorias produção associada e autogestão são possíveis “[...] se consideradas as condições objetivas/subjetivas em que, nos diversos espaços/tempos históricos, as classes trabalhadoras tomam para si os meios de produção” (TIRIBA; FISCHER, 2012, p. 617).

Com esta perspectiva, será discutido o conceito pedagogia da produção associada, abordando o processo educativo que se desenrola quando os trabalhadores se organizam para produzir suas condições de vida associadamente e, também, as possibilidades que se abrem para consolidação de uma nova cultura do trabalho.


Pedagogia da produção associada: processo educativo e cultura do trabalho


Kuenzer (1986) desenvolveu o conceito pedagogia da fábrica buscando compreender como se processam as relações trabalho/educação no âmbito da própria fábrica capitalista e, também, elucidar os modos como a empresa capitalista educa o trabalhador. Como analogia e ao mesmo tempo crítica, Tiriba (2001), utiliza o conceito pedagogia(s) da produção associada para poder compreender os processos educativos que se realizam nos espaços coletivos de produção da vida tão característicos no contexto da crise do emprego. Espaços estes em que, sob certos

limites e dentro de suas possibilidades, os trabalhadores (em tese livremente associados) se contrapõem a lógica perversa do capital reinventando o cotidiano do trabalho.

Conforme apresenta Frigotto (2010) no prefácio do livro O trabalho como princípio educativo no processo de produção de uma “outra economia”, contrapondo e refutando a pedagogia do capital ou pedagogia da fábrica capitalista, encontra-se a pedagogia da produção associada. Entende-se, assim, que é no espaço contraditório das relações sociais de produção capitalistas que a pedagogia da produção associada vai forjando (ou pode vir a forjar) uma nova cultura do trabalho.

A partir do estudo de Kuenzer6 (1986) sobre as relações pedagógicas no interior da fábrica, Tiriba (2001, p. 198) destaca que, “[...] é a partir das relações concretas de produção que o trabalhador, além de aprender os conhecimentos técnicos, aprende os valores e comportamentos necessários para tornar-se um ‘bom trabalhador’”. Isso porque, os homens produzem – sob determinadas relações sociais

– o saber sobre o trabalho na prática concreta dos processos produtivos.

Partindo das contribuições de Gramsci, Tiriba (2001, p. 29) infere que: “[...] a experiência viva e histórica dos processos produtivos geridos pelos próprios trabalhadores tem representado para seus atores ‘uma magnífica escola de experiência política e administrativa’”.

Os processos produtivos são entendidos “[...] como processos pedagógicos que medeiam as condições objetivas e subjetivas da cultura do trabalho” (TIRIBA, 2001, p. 32). Por isso, a autora chama a atenção para o caráter educativo das novas formas de trabalho – a produção associada – que são empreendidas pelos próprios trabalhadores no quadro da crise do emprego. Ela traz para discussão a pedagogia da produção associada, revelada a partir das motivações e práticas dos trabalhadores associados. Sua análise contempla a organização e gestão dos empreendimentos, as relações de mercado, as instâncias de produção e socialização do saber e os vínculos que se estabelecem com o governo, os empresários, as instituições de apoio e outras redes de ação coletiva (TIRIBA, 2001).



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6 A própria autora adverte que se, de um lado, o homem produz conhecimento à medida que produz as condições de sua existência, de outro, o conhecimento produzido pelos trabalhadores não é equivalente ao saber historicamente produzido pela burguesia ao longo do capitalismo, dado que os primeiros não desfrutam do acesso aos instrumentos teórico-metodológicos que nos permita sistematizar seu saber (TIRIBA, 2001, p. 198).

A abordagem da pedagogia da produção associada requer atenção sobre o fazer e o saber dos setores populares. Para Tiriba (2010, p. 97), “[...] ela requer o ir e vir na teoria e na prática, na vida real dos trabalhadores, resignificando os sentidos ético-políticos de suas estratégias de trabalho e de sobrevivência”.

O trabalho fabril, na perspectiva gramsciana, seria o lugar de uma pedagogia ativa, sendo a práxis o eixo da construção da realidade social. A fábrica então “[...] seria o locus da produção de intelectuais orgânicos do proletariado que, ao invés de executar um programa pré-estabelecido pelos capitalistas, se tornariam sujeitos capazes de gestionar técnica e economicamente o processo produtivo” (TIRIBA, 1999,

p. 5). Vale destacar que, para o sucesso de um projeto de transformação social é necessária a incorporação de outros setores sociais.

A pedagogia da produção associada, ao se colocar na perspectiva de emancipação das classes trabalhadoras e ter por horizonte a subversão do capitalismo, busca contribuir a criação e recriação de uma cultura do trabalho de novo tipo. Uma cultura do trabalho “[...] que possa materializar um outro sentido para o próprio trabalho, para economia e para as relações de convivência, não apenas no interior da unidade produtiva, mas também na comunidade local e no território mais amplo das relações sociais” (TIRIBA, 2006, p. 121-122).

Resgatando o pensamento de Gramsci, Semeraro (2010), afirma que, em suas organizações e com o desenvolvimento de suas subjetividades, os trabalhadores “[...] podem criar uma outra cultura e experimentar novas formas de produção socializada, pondo-se como alternativa ao projeto mecânico e destrutivo determinado pelo capital”. A instauração de uma nova cultura do trabalho exige processos educativos com ênfase nos aspectos filosóficos e políticos das formas de convivência humana. Afinal, para que se possa dar um novo sentido às relações sociais e econômicas é necessária

a construção de novos conhecimentos e valores (TIRIBA, 2001).

A cultura do trabalho é definida conceitualmente como:


Conjunto de conhecimentos teórico-práticos, comportamentos, percepções, atitudes e valores que os indivíduos adquirem e constroem a partir de sua inserção nos processos de trabalho e/ou da interiorização da ideologia sobre trabalho, todo o qual modula sua interação social mais além de sua prática laboral concreta e orienta sua específica cosmovisão como membros de um coletivo determinado (PALENZUELA, 1995, p. 13 apud TIRIBA, 2001, p. 230).

Nesta perspectiva, mediadas por processos educativos, diferentes culturas do trabalho dão origem a diversos significados do trabalho. Quando se analisa o trabalho em um determinado tempo e espaço histórico, uma determinada cultura do trabalho possibilita o estabelecimento de relações e a compreensão das mediações entre os aspectos objetivos e subjetivos na formação humana (TIRIBA, 2001).

Segundo Tiriba e Fischer (2013), atualmente, três importantes espaços/tempos do trabalho de produzir a vida associativamente convivem e se entrelaçam: (i) espaços/tempos revolucionários, (ii) espaços/tempos da atual crise do capital e do trabalho assalariado, (iii) espaços/tempos das culturas milenares das comunidades e povos tradicionais. Ainda que contraditoriamente, nestes espaços/tempos estão presentes elementos da produção associada e da autogestão do trabalho e da vida social. Além disso, são atravessados por mediações de primeira e de segunda ordem7. Importa, para efeito deste estudo, o segundo espaço/tempo do trabalho de produzir a vida associativamente em que se situam as experiências econômicas dos setores populares que se constituem em estratégias associativas de trabalho e de sobrevivência. No atual contexto do capitalismo, essas unidades de produção8 “[...] podem se plasmar a produção associada, entendida na perspectiva marxiana, como unidade básica da sociedade dos produtores livres associados”. (TIRIBA; FISCHER,

2013, p. 533).

Uma cultura do trabalho de novo tipo, do ponto de vista político e ideológico, tem como pressuposto novas relações de produção que tenham como características o valor de uso e não de troca, a propriedade coletiva dos meios de produção e a socialização do saber ao conjunto os trabalhadores. A partir dessas novas relações de produção, o homem seria capaz de recuperar o sentimento de produtor e sujeito- criador de si mesmo e da história. Uma cultura do trabalho de novo tipo, em última instância, exige uma sociedade de novo tipo (TIRIBA, 2001).

Para Tiriba (2001), o fenômeno dos empreendimentos geridos pelos trabalhadores difere das experiências de produção associada e, em especial, dos conselhos operários nas primeiras décadas do século XX. Esse fenômeno é resultado



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7 Mediação de primeira ordem: o trabalho como atividade produtiva autodeterminada, elemento fundante do ser do humano; Mediação de segunda ordem: o trabalho organizado pela divisão capitalista do trabalho.

8 Denominadas, atualmente, de cooperativas populares, associações, grupos de produção comunitária, grupos de produção associada, empreendimentos econômicos solidários, organizações econômicas populares, entre outras (TIRIBA; FISCHER, 2013).

da própria excrescência dos processos de exclusão social e não tem por objetivo a sociedade dos produtores livres associados. Por isso, a autora coloca que os pressupostos de uma nova cultura do trabalho, não podem ser pensados como se, na atualidade, se estivesse vivendo um processo revolucionário9. “Temos de analisar os elementos embrionários de um novo sentido do trabalho a partir das condições concretas de espaço e tempo atual em que vivemos, buscando aprender suas mediações” (TIRIBA, 2001, p. 345).

A cultura do trabalho é uma realidade dinâmica e representa “[...] a síntese das condições de trabalho e das relações que os trabalhadores associados estabelecem entre si e com a sociedade” (TIRIBA, 2006, p. 120). A cultura do trabalho é um conjunto de conhecimentos e valores que se plasmam nos processos produtivos associativos e implica a intercessão do conceito de trabalho e de cultura. “Ao trabalhar, os trabalhadores associados produzem cultura e, ao mesmo tempo, trabalham de acordo com uma determinada cultura” (TIRIBA, 2006, p. 120).


O desenvolvimento de uma cultura própria do trabalho associado acontece à medida que se reconhece a cultura do trabalho assalariado, suas possibilidades e seus limites históricos sob a perspectiva da classe trabalhadora. Ao se reconhecerem os processos de continuidade e ruptura, constrói-se com e entre os trabalhadores a análise das relações históricas entre o “velho” e o “novo” (de modos de produção da existência), em outras palavras, do “novo” que está nascendo no seio do “velho” ou, ainda, das continuidades e descontinuidades históricas (TIRIBA; FISCHER, 2009, p. 296).


No trabalho associativo e na vida cotidiana da classe trabalhadora existe uma grande quantidade de saberes produzidos, sendo que, “[...] o saber do trabalhador é a síntese dos saberes apreendidos ao longo da vida, no mundo do trabalho assalariado, na produção associada e em todos os espaços [...] compartilhados” (TIRIBA, 2006, p. 6). Por isso, de acordo com a autora, levando-se em conta o momento histórico, é preciso olhar e compreender as bases materiais e imateriais que


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9 Difere, por exemplo, do processo que aconteceu na Comuna de Paris. “A Comuna (1871), conhecida como a primeira manifestação verdadeiramente revolucionária da luta de classes na história moderna, representou a emancipação da classe operária caracterizada como uma emancipação coletiva, superando o trabalho alienado pela socialização das atividades e de poderes públicos, enfrentando a dominação da classe burguesa e do estado, negando a propriedade privada e do capital. A classe operária teve o papel primordial de governar o país; o proletário teve o poder nas mãos. Porém, tal experiência não logrou êxito por muito tempo: o governo francês fez a contrarrevolução tomando o poder novamente” (LUIZ, 2013, p. 45).

propiciam a construção desses saberes produzidos pelo povo, na prática de trabalho e nas demais instâncias das relações sociais (TIRIBA, 2006).

Assim como na fábrica capitalista, à medida que os trabalhadores associados “[...] aprendem os conhecimentos técnicos para produção, apreendem também os valores e comportamentos que são necessários para o estabelecimento de determinadas relações sociais de produção” (TIRIBA, 2006, p. 121).

Uma nova cultura do trabalho necessita de aprendizado e não basta apenas idealizar o trabalho associativo e solidário, é preciso materializá-lo no cotidiano da produção. Na dinâmica do processo produtivo se adquirem e se produzem saberes, afinal, o processo pedagógico é elemento da cultura do trabalho que media as condições objetivas e subjetivas da produção (TIRIBA, 2007).


A expressão saber(es) do trabalho associado é utilizada para designar o(s) saber(es) produzido(s) pelos trabalhadores e trabalhadoras nos processos de trabalho que se caracterizam, entre outros, pela apropriação coletiva dos meios de produção, pela distribuição igualitária dos frutos do trabalho e pela gestão democrática das decisões quanto à utilização dos excedentes (sobras) e aos rumos da produção (TIRIBA; FISCHER, 2009, p. 293).


Para Tiriba e Fischer (2009), estes saberes, frutos da própria atividade do trabalho, são concebidos e acumulados ao longo da experiência histórica dos trabalhadores que, contrapondo-se à lógica do sistema capital, se associam de forma coletiva, autogestionária.


A palavra saber é utilizada como sinônimo de conhecimento, envolvendo os aspectos materiais, intelectuais e subjetivos presentes na atividade do trabalho e sendo entendido como resultante dos processos prático-teóricos de transformação e compreensão da realidade humano-social. O conceito relaciona-se às ideias de práxis, saber popular, saberes da experiência, conhecimento tácito, trabalho como princípio educativo, produção de saberes em situação de trabalho, produção e legitimação de saberes do/no trabalho. (TIRIBA; FISCHER, 2009, p. 293).


Aos sujeitos que estão envolvidos em iniciativas de trabalho associado é necessário o desenvolvimento da práxis crítica, ou seja, identificar, reconhecer, analisar, criticar e legitimar os saberes e experiências. Para Tiriba e Fischer (2009, p.

296) tratam-se “[...] de saberes e experiências produzidos em atividades pregressas de trabalho assalariado (emprego ou subemprego), na relação de continuidade e de

ruptura com a experiência e os saberes produzidos no ambiente de trabalho associado”.

No entanto, esta tarefa consiste em um grande desafio para aqueles que interromperam o processo de escolarização devido à necessidade de buscar condições para sobreviver. Afinal, é necessária a “[...] apropriação dos instrumentos teórico-metodológicos que lhes permitam compreender os sentidos do trabalho e prosseguir na construção de uma nova cultura do trabalho e de uma sociedade de novo tipo” (TIRIBA; FISCHER, 2009, p. 294). Ainda, segundo as autoras, pesquisas indicam que nas organizações econômicas associativas o conhecimento constitui-se como um calcanhar-de-aquiles.

Enquanto Tiriba (2001) se debruça sobre o processo educativo e a cultura do trabalho na produção associada, Faria (2011, 2017a, 2017b) se preocupa com a questão do poder, controle e gestão dessas organizações.

Neste sentido, entende-se que ambas as abordagens desses autores podem se complementar, contribuindo uma para com a outra. Por isso, serão apresentadas as unidades produtivas que poderão vir a ser células para uma autogestão social e quais as condições necessárias para que se efetive uma gestão democrática do processo de trabalho, característica essencial da autogestão.


As Organizações Coletivistas de Produção Associada – OCPA e as condições para uma gestão democrática do processo de trabalho


Em seu artigo Autogestão, economia solidária e organização coletivista de produção associada: em direção ao rigor conceitual, Faria (2017b), procura delimitar conceitualmente e, assim, distinguir as experiências autogestionárias enquanto fenômenos que apesar de parecerem similares são diferentes. Nesta perspectiva, discute os conceitos de autogestão, economia solidária10 e organização coletivista de produção associada - OCPA.


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10 “As discussões sobre economia solidária, enquanto projeto dos trabalhadores em direção a outro modo de produção, estão carregadas de equívocos, ao mesmo tempo histórico e de ordem teórico- conceitual. O que se pode observar é que a leitura da história da luta dos trabalhadores é enviesada por uma concepção teórica confusa e pouco rigorosa, ao mesmo tempo que a questão teórico- conceitual é fragilizada por uma análise histórica fragmentada e superficial. Trata-se de uma desarmonia entre teoria e realidade histórica” (FARIA, 2017b, p. 635).

O uso impreciso ou genérico de conceitos não apenas cria dificuldades de análise da realidade, mas é um obstáculo à sua transformação. Ainda que a realidade não seja transformada pela via da ideia ou do conceito, mas da prática que constitui suas relações sociais, a precisão conceitual é fundamental para que se estabeleça uma análise crítica da realidade e das necessárias intervenções que nela os movimentos sociais coletivos necessitam fazer. Não se pode atribuir a um processo, cujos desdobramentos históricos sequer se desenvolveram, a condição de ser ele mesmo já seu fim último (FARIA, 2017b, p. 647).


O autor defende o argumento de que “[...] a autogestão plena somente pode ser concebida no plano social, como um modo de produção, entendido este como a forma dominante de organização da sociedade na produção de suas condições materiais de existência” (FARIA, 2017b, p. 631). A partir da dimensão social da autogestão, o autor afirma que, somente quando o sistema social for autogestionário, poderá existir uma autogestão nas unidades produtivas e, por isso, distingue11 o conceito já estabelecido de autogestão social das experiências que contém características autogestionárias.

Com isso, evita-se de atribuir uma falsa condição de universalização às experiências singulares. “Embora fundamentos importantes do capitalismo já estivessem presentes no modo de produção feudal, foi histórica, social e economicamente necessário que o sistema de capital superasse o sistema feudal para se tornar um modo dominante de produção” (FARIA, 2017b, p. 647).

Por seu turno, para as experiências com características predominantemente autogestionárias – que se constituem em unidades no sistema de capital na medida estão inseridas em sua lógica –, o autor designa o conceito de organizações coletivistas de produção associada – OCPA. Segundo Faria (2017b, p. 629) “[...] os empreendimentos chamados de autogestionários não constituem uma autogestão, mas OCPA, as quais têm características autogestionárias e apresentam-se enquanto formas de resistência ou modelos alternativos aos do sistema de capital”.


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11 “A distinção entre autogestão e empreendimentos com características autogestionárias não é um preciosismo acadêmico, mas uma necessidade crítica que permite avaliar com rigor a potência desses empreendimentos. A sobreposição conceitual exprime uma falsa análise da realidade, criando um obstáculo à reflexão crítica sobre ela. Nesse sentido, é preciso indicar, de saída, que nem a economia solidária é uma autogestão social e nem as OCPA são uma nova economia ou um novo modo de produção” (FARIA, 2017b, p. 631).

A transformação radical da sociedade e a subversão do capitalismo exigem um novo modo material de produção e, segundo Faria (2009), a autogestão social corresponde a um novo modo de produção a ser construído pelo movimento autogestionário coletivista. Modo este que, primeiramente, precisa se realizar nas unidades produtivas através das organizações coletivistas de produção associada – OCPA12. As OCPA serão células de autogestão em um modo de produção autogestionário.

Enquanto processo de construção histórica e sob certos limites, dada sua inserção no modo de produção capitalista, as OCPA são formas inacabadas de transição para uma autogestão social e, que, em pequena escala, são elementos de contradição do sistema de capital estruturados na direção contrária a heterogestão (FARIA, 2017b).

As OCPA, no sistema de capital, “[...] têm características autogestionárias (autogestão restrita), mas ainda não se consolidaram como empreendimentos autogestionários plenos, pois, para tanto, demandam inserção em um modo de produção autogestionário ou em uma autogestão social” (FARIA, 2017b, p. 642). No entendimento do autor, as OCPA ainda não se consolidaram nem como uma alternativa de superação e nem como negação do sistema capitalista no qual se encontram paradoxalmente inseridas. Afinal, constituem estruturas simples organizadas sobre as bases capitalistas primárias ou mesmo pré-capitalistas e em posição de recusa à lógica da organização capitalista de trabalho.


A autogestão plena, social, é contemplada e ao mesmo tempo contempla a gestão coletivista de trabalho associado, a qual se concretiza em OCPA. No entanto, a OCPA, ela mesma, não constitui a autogestão e nem se constitui em uma autogestão, pois esta não está dada de antemão em experiências singulares. Suas pré- condições são aquelas de superação do sistema de capital e de todas as suas contradições, mas sua forma e seu conteúdo real somente podem ter materialidade na prática política dos que forem sujeitos de sua construção (FARIA, 2017b, p. 634).


O conceito de autogestão, como argumenta Faria (2017b), deve ser entendido como negação da heterogestão e não em sua materialidade empírica. Isto porque, tal



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12 Em seu livro “Gestão Participativa: Relações de Poder e de Trabalho nas Organizações”, Faria (2009) utiliza o termo Organização Solidárias de Produção-OSP que posteriormente foi substituído por Organização Coletivista de Produção Associada-OCPA. Tal alteração se justifica pelo fato de que os trabalhadores se organizam coletivamente em empreendimentos para produzir suas condições de vida.

conceito tem sido utilizado para definir processos de gestão que “[...] embora tenham determinadas características autogestionárias, não observam completamente todos os elementos constitutivos essenciais de uma autogestão, ou seja, não se constituem em negação absoluta da heterogestão, em sua oposição” (FARIA, 2017b, p. 630).

Em meio à sociedade capitalista, no entanto, é preciso considerar que desenvolver um processo autogestionário consiste num grande desafio para as organizações que se propõem este objetivo. As ações e relações por elas estabelecidas se dão neste espaço, sendo que, “[...] todo o tempo será necessário estabelecer relações de (inter)dependência – ou mesmo de enfrentamento (autogestão como antítese) – com o mundo capitalista em que se encontra” (FARIA, 2017b, p. 634).

O conceito de OCPA refere-se a uma organização de produção – não a uma economia – que tem a produção das condições materiais de existência de uma comunidade específica e politicamente localizada como finalidade ou característica. Além disso, possui um núcleo em torno do qual se constroem os vínculos sociais comuns e, apresenta uma forma de gestão coletivista de trabalho com característica autogestionárias no nível da unidade de produção. As OCPA apresentam características predominantemente autogestionárias e são regidas “[...] por princípios autogestionários de participação coletiva nas decisões, cooperação isonômica no trabalho, auto sustentação restrita à unidade produtiva, desenvolvimento de certa responsabilidade política” (FARIA, 2017b, p. 644).

As OCPA, adaptando a certo contexto concreta e historicamente determinado, consideram a proposta que está no âmago do conceito de autogestão social. Porém, ainda não se constituem como síntese ou superação do modo capitalista (FARIA, 2017b).

Segundo o autor, tanto na esfera decisória quanto na da propriedade dos meios de produção, essas organizações supõem uma gestão democrática. Autogestão, democracia, participação, igualitarismo, cooperação no trabalho, auto sustentação, desenvolvimento humano e responsabilidade social são os princípios que regem esses empreendimentos cooperativos coletivistas de trabalho (FARIA, 2009).

A OCPA corresponde a uma autogestão parcial. Mesmo se tratando de uma unidade de produção ou de trabalho que possui características autogestionárias ela é parcial, “[...] porque não se realiza plenamente e não se realiza porque se encontra

inserida no sistema de capital e não em um modo de Autogestão Social” (FARIA, 2009, p. 324).


A autogestão coletivista de trabalho no nível da unidade produtiva (restrita) pode ser definida como um modo de gestão que tem por pressuposto básico as relações de igualdade e a valorização do trabalhador, na medida em que rompe o processo de alienação direta do trabalho ao capitalista particular, expande e estimula a difusão do conhecimento sobre o processo de trabalho, além de destruir a estrutura hierarquizada verticalmente, de modo que todos se tornem conscientes de sua responsabilidade para com o sucesso ou insucesso do empreendimento (FARIA, 2017b, p. 645).


Nas organizações autogestionárias, o elemento principal é a participação e, por isso, a democracia é fundamental. A valorização da participação dos membros em todas as esferas da empresa é condição no processo de implantação da autogestão, seja nas questões afetas ao cotidiano da produção, quanto nas questões de políticas e estratégias administrativas da organização (FARIA, 2009).

Para Faria (2009; 2011; 2017a; 2017b) é necessário reclamar por uma gestão democrática do processo de trabalho, uma gestão que seja realizada pelos próprios trabalhadores e que se efetive como projeto coletivo de produção das condições materiais de existência humana.

Em seu livro Poder, Controle & Gestão, Faria (2017a), além de discutir as formas de controle e de poder presentes nas organizações produtivas, analisa as condições necessárias para que uma gestão do processo de trabalho se efetive como democrática. “Não se trata, assim, da apresentação de um ‘modelo não capitalista de gestão’, mas da discussão das condições que devem ser observadas para a transformação radical e a superação da gestão capitalista” (FARIA, 2017a, p. 421).

Diante do sistema de capital, negar a alienação significa, segundo Faria (2017a, p. 424), “[...] construir, por meio da prática cotidiana, relações de trabalho que busquem resgatar os princípios da emancipação e integrar novamente, o sujeito à sua atividade de trabalho enquanto essência de sua existência material/social”.

Com esta perspectiva, Faria (2017a) afirma ser necessário avaliar as condições de uma gestão democrática do processo de trabalho e, coloca em discussão a “luta pelo reconhecimento social, pela redistribuição material da riqueza produzida, pela representação política paritária nas esferas de decisão e pela realização emocional”

(FARIA, 2017a, p. 424). Para o autor a materialização dessa luta se dá pelos grupos sociais organizados enquanto resistência e negação do sistema de capital.

A proposição de Faria (2017a) se apoia em Nancy Fraser (2003), uma cientista política norte-americana que se dedica aos estudos dos movimentos sociais e dos conflitos políticos.


Fraser insiste em que os conflitos sociais não podem ser explicados apenas a partir da luta pelo reconhecimento social, mas igualmente através da luta pela redistribuição da riqueza material produzida pela sociedade e pela representação política paritária nas esferas de decisão. Estas três formas, para Fraser, correspondem a três dimensões da justiça: cultural (reconhecimento); econômica (redistribuição); política (representação) (FARIA, 2017a, p. 426).


Reconhecimento social, redistribuição igualitária da riqueza material, representação paritária nas esferas de decisão seriam, então, as três categorias emergentes do ponto de vista analítico. No entanto, para Faria (2017a), a dimensão constitutiva do sujeito coletivo concreto em sua prática racional e emocional não está contemplada por estas categorias e, por isso, sugere a categoria analítica da realização emocional. Para o autor, a categoria analítica da realização emocional resolve este problema “[...] na medida em que esta represente a materialização do sujeito coletivo como componente da prática da luta pelo reconhecimento, pela redistribuição e pela representação” (FARIA, 2017a, p. 427).

Na perspectiva de Faria (2017a, p. 428), “[...] ao materializar (i) o sujeito coletivo no plano do grupo social (reconhecimento e realização) bem como (ii) as formas de organização e de gestão do processo de trabalho e da prática política (redistribuição e representação)”, estas categorias delimitam o campo empírico e, por seu turno, também o fazem com o plano epistemológico, metodológico e teórico.

Quadro 01: Aspirações do Sujeito Coletivo do Trabalho na Vida em Sociedade


O que o Sujeito Coletivo do Trabalho Aspira ser

Categorias de Análise Correspondentes

Elementos Constitutivos das Categorias de Análise


Socialmente reconhecido


Reconhecimento Social

  • Objetivação Normativa;

  • Inserção nos Espaços Coletivos de Poder (relação de pertença);

  • Definição de um Projeto Social Comum


Economicamente recompensado


Redistribuição da Riqueza Material

  • Distribuição Igualitária da Riqueza

  • Acesso aos Bens Públicos e à Infraestrutura urbana e social

  • Retribuição Justa pelo Trabalho Realizado

  • Acesso aos Resultados da Produção Social


Politicamente representado


Representação Política Paritária

  • Acesso às Esferas Públicas de Decisão

  • Práticas Políticas Coletivas

  • Inserção na Gramática do Conceito de Justiça


Emocionalmente realizado


Realização Emocional

  • Sublimação Coletiva*

  • Desejo do Reconhecimento do Desejo

  • Afirmação da Identidade

  • Satisfação Socialmente Avaliada

(*) No sentido da modificação de um impulso ou energia coletiva original (já instituído), de forma a manifestar outra ação ou atitude que venha a ser aceita e valorizada (legitimada) pela sociedade em razão de que sua finalidade considerada superior do ponto de vista valorativo.

Fonte: Faria (2017a, p. 449)


De acordo com o quadro, a redistribuição igualitária da riqueza material socialmente produzida corresponde à dimensão econômica, o reconhecimento social corresponde à dimensão sociocultural, a representação paritária nas esferas de decisão corresponde à dimensão jurídica-política e a realização emocional corresponde à dimensão psicossocial.

Por sua vez, as respostas quanto às potencialidades e quanto às probabilidades de consolidação de uma gestão democrática ou social residem na compreensão das “[...] condições objetivas e subjetivas pelas quais os sujeitos coletivos produzem suas condições de vida em sociedade” (FARIA, 2017a, p. 453).

Para Faria (2009) as OCPA, ainda que em pequena escala, são a contradição do sistema de capital e não disputam o mesmo terreno, pois atuam na periferia do mercado capitalista, na franja do sistema. Esse fato, segundo o autor “[...] não significa que este é seu único e viável lugar de existência. Significa que, diante da organização capitalista, este é o lugar em que [...] se viabiliza como forma alternativa de organização e gestão” (FARIA, 2009, p. 330).

Considerando que o enfrentamento se dá sob o modo dominante de produção, em uma disputa econômica e política com empresas capitalistas tradicionais ou modernas esses empreendimentos autogestionários se encontram em desvantagem. Por isso, a área de atuação “[...] tem sido aquela não explorada pelo grande capital, seja porque exige ainda uma grande proporção de trabalho humano com poucas exigências de qualificação técnica, seja porque se trata de uma área de baixa produtividade e lucratividade” (FARIA, 2009, p. 331).


Considerações finais


A partir da sistematização traçada nos itens: (1) a produção associada e o princípio educativo do trabalho: caminhos para a autogestão social; (2) pedagogia da produção associada: processo educativo e cultura do trabalho; e, (3) as organizações coletivistas de produção associada – OCPA e as condições para uma gestão democrática do processo de trabalho, as lacunas e equívocos conceituais identificados foram, respectivamente, preenchidas e elucidados.

Além disso, considera-se que o objetivo proposto de discutir o princípio educativo da produção associada, apoiando-se nos conceitos pedagogia da produção associada e cultura do trabalho – elaborados por Tiriba – e, nos estudos sobre as condições para uma gestão democrática do processo de trabalho e o conceito de organização coletivista de produção associada – OCPA – desenvolvidos por Faria, foi alcançado através da pesquisa bibliográfica realizada.

Esta, leva a considerar que, no Brasil, os princípios da autogestão não são, necessariamente, a referência dos empreendimentos sob controle dos trabalhadores. Num contexto de diminuição dos postos de trabalho assalariado e diante do consequente aumento da pobreza, esses empreendimentos aparecem como uma resposta dos setores populares para satisfazer às suas necessidades de subsistência (TIRIBA, 2001).

A produção associada, frente ao contexto do trabalho assalariado, segundo Tiriba (2001, p. 93), “[...] pode configurar-se em uma economia de autoajuda coletiva dos excluídos, como ‘alívio para os pobres’ e como parte integrante do projeto de ajuste do capital”. Sendo assim, em relação à formação de grupos de trabalhadores associados, não se pode afirmar que “[...] é, em si mesma, indício de um futuro

processo de contra hegemonia e que seus objetivos são antagônicos aos de uma sociedade estruturada em classes sociais” (TIRIBA, 2001, p. 346).

No entanto, as novas formas de geração de trabalho e renda “[...] permitem ao trabalhador estabelecer o trabalho sobre outros parâmetros, descobrindo existir outra forma de produção mais humanizada, menos hierarquizada, menos violenta...” (TIRIBA, 2001, p. 92-93). Isso acontece mesmo que, como afirma Tiriba (2001, p. 92), essas novas formas sejam vistas como uma “manifestação da excrescência do sistema capitalista”.

As discussões traçadas apontam que é preciso entender que o cooperativismo e outros empreendimentos associativos são requeridos pelo atual regime de acumulação e regulação social, o capitalismo. São, assim, partes integrantes da reestruturação produtiva. A propriedade dos meios de produção, por si só, “[...] não necessariamente nos indica a possibilidade de criação de uma nova cultura do trabalho. Não é sinônimo de superação das relações capitalistas de produção e tampouco representa, necessariamente, trabalho emancipado” (TIRIBA, 2006, p. 118).

Mais ainda, entender que o projeto de uma nova economia é muito mais que geração de trabalho e renda nas franjas do capitalismo é essencial para materialização dessa utopia (BARROS, 2010). Além disso, é necessário compreender que, como prática social, qualquer estratégia popular de sobrevivência, segundo Tiriba (2001, p. 31), “[...] está permeada por motivações e expectativas que refletem os valores e as concepções de seus atores quanto à vida em sociedade”.

Segundo Tiriba (2001, p. 210-211), na produção associada o mundo do trabalho “[...] é princípio e também fim educativo, é fonte de produção de conhecimentos e de novas práticas sociais, é a fonte de produção de bens materiais e espirituais”. O processo de trabalho nas unidades econômicas da produção associada se desenvolve como um ambiente de educação, em que se vive um intenso processo educativo. Isso acontece quando o grupo de trabalhadores reflete, de forma crítica e dialógica, os problemas organizacionais da unidade (TIRIBA, 2001).

Segundo a autora, porém, a produção associada, enquanto espaço educativo, não substitui o espaço escolar. Trata-se de uma “educação socialmente produtiva”, que é ao mesmo tempo técnica e política. “À medida que seus integrantes aprendem os conhecimentos específicos para produzir os bens materiais para sua sobrevivência,

aprendem, também, os valores, os comportamentos necessários para o estabelecimento de determinadas relações de produção” (TIRIBA, 2001, p. 213).

Partindo das abordagens de Tiriba e Faria, defende-se neste artigo o princípio educativo da produção associada, o qual se desenvolve nas organizações coletivistas de produção associada sob uma gestão democrática do processo de trabalho, sendo capaz de forjar, a partir da aprendizagem coletiva na e pela práxis, uma nova cultura do trabalho estabelecendo assim novas concepções de trabalho, de vida e de mundo.

Por se tratar de uma discussão teórica, as considerações finais aqui traçadas vem reforçar o posicionamento dos autores pesquisados em afirmar que, a gestão democrática em organizações coletivistas de produção associada ou autogeridas é:


[...] aquela que se encontra sob o comando dos produtores diretos, os quais têm responsabilidades ou interesses recíprocos no processo de produção e se solidarizam a partir de um vínculo social comum ou recíproco, tendo em vista a obtenção de uma condição de emancipação com base no reconhecimento social de si pelos outros do sistema de vida em comum, pela redistribuição igualitária da riqueza material produzida coletivamente, pela participação paritária nas diversas instâncias de decisão e pela realização dos projetos com os quais se encontram emocionalmente comprometidos (FARIA, 2017a, p. 452).


Importante ressaltar que, para os trabalhadores da produção associada, “[...] tornam-se indispensáveis os espaços educativos que privilegiem a socialização e a produção teórica, tendo o saber prático como ponto de partida e os novos saberes e as novas práticas sociais como ponto de chegada” (TIRIBA, 2001, p. 225).

A produção associada, mais que alternativa ao desemprego, é instância capaz de possibilitar a produção de novas concepções de trabalho, de vida e de mundo. É fato que os trabalhadores associados isoladamente não conseguem mudar o mundo, no entanto, “[...] os processos produtivos cuja lógica é a hegemonia do trabalho sobre o capital podem permitir a mudança de postura de seus integrantes frente ao mundo” (TIRIBA, 2001, p. 375).


[...] a potencialidade da economia popular radica-se no fato de que ela pode constituir-se em um amplo processo práxico-educativo, em uma escola que deve ser vivida, não apenas para atenuar os problemas do desemprego, senão também para que os trabalhadores e a sociedade descubram ser possível uma nova maneira de fazer e conceber as relações econômicas e sociais tanto no âmbito do lugar de trabalho, quanto no âmbito de toda a sociedade (TIRIBA, 2001, p. 373-374).

Além de narrativas históricas de experiências vividas no passado, os registros das experiências de trabalho associado revelam, também, “[...] a reconstrução de visões de mundo que demonstram a densidade das formas de organização do processo de trabalho e de formação de trabalhadores/as como seres históricos [...]” (TIRIBA; MAGALHÃES, 2016, p. 99-100).

Na produção associada os trabalhadores tem a possibilidade de vivenciar elementos que diferem da fábrica capitalista. “O que se vivencia deixa marcas éticas, políticas, culturais e existenciais, além de inúmeros saberes. Coletivamente também se vivenciam modos de ser, produzir e de se reproduzir material, social e culturalmente” (TIRIBA; FISCHER, 2009, p. 3). E, a partir da compreensão do que vivenciam – do como e do porquê de determinados modos de fazer, pensar ou sentir

–, os trabalhadores podem transformar as vivências em experiências do trabalhado associado.


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Recebido em: 09 de abril de 2018. Aprovado em: 17 de junho de 2018. Publicado em: 22 de novembro de 2018.

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A ESCOLA UNITÁRIA EM GRAMSCI E A EDUCAÇÃO PROFISSIONAL NO BRASIL¹


Neila Pedrotti Drabach2


Resumo

O trabalho situa o contexto em que é elaborada a proposta de escola unitária por Antônio Gramsci, tendo como base os “Cadernos do Cárcere”, e toma essa concepção para analisar a educação profissional no Brasil. Com vistas nisso, aborda os principais conceitos do pensamento gramsciano, a fim de situar o papel da escola e a proposta de escola unitária na perspectiva desse teórico, e apresenta um panorama das iniciativas públicas federais de educação profissional no Brasil, no contexto contemporâneo, cotejando-as a partir da concepção de educação do marxista sardo. Conclui apontando que muitas das críticas dirigidas por Gramsci à escola italiana de sua época estão presentes na educação brasileira e que a construção de uma escola única, que contemple formação humanista e formação para o trabalho, constitui-se, ainda, um objetivo a ser alcançado.

Palavras-Chave: Escola Unitária, Educação Profissional, Políticas Educacionais


GRAMSCI’S UNITARY SCHOOL AND PROFESSIONAL EDUCATION IN BRAZIL


Abstract

The present paper situates the context in which Antônio Gramsci's unitary school proposal is elaborated, based on the "Cadernos do Cárcere", and takes this conception to analyze professional education in Brazil. With this in mind, the main concepts of Gramscian thought are approached, in order to situate the role of the school and the proposal of a unitary school in the perspective of this theoretician, and presents a panorama of the federal public initiatives of professional education in Brazil, in the contemporary context, comparing them from the conception of education by the Sardinian Marxist. He concludes by pointing out that many of the criticisms directed by Gramsci at the Italian school of his time are present in Brazilian education and the construction of an unique school, which contemplates humanistic formation and training for work, is also an objective to be achieved.

Keywords: Unitary School, Professional Education, Educational Policies


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1DOI: https://doi.org/10.22409/tn.16i31.p27380

2Doutoranda em Educação pela Universidade de São Paulo – USP. Pedagoga vinculada ao Instituto Federal Farroupilha – IFFar.

Considerações Iniciais


Não por acaso os escritos für ewig2 do marxista Antonio Gramsci abordaram a temática da escola. Concebendo-a como central no processo de construção da hegemonia das classes subalternas, a escola, para Gramsci, tem um importante papel na difusão da cultura e na formação de intelectuais, a par de outros espaços sociais, sendo esta uma função für ewig na sociedade em qualquer período histórico.

Contrapondo-se à organização e à função da escola italiana de sua época, a qual era diferenciada entre os grupos sociais, com currículos pragmáticos e especializados, Gramsci defendia a criação de uma escola única “de cultura geral, humanista, formativa, que equilibre de modo justo o desenvolvimento da capacidade de trabalhar manualmente (...) e o desenvolvimento das capacidades de trabalho intelectual” (GRAMSCI, 2014b, C12, p. 34). Essa concepção de escola permanece, para muitos educadores, um objetivo a ser concretizado em nosso país, uma vez que continuamos presenciando uma série de iniciativas que pulverizam diferentes instituições e programas educacionais (públicos e privados) direcionados a diferentes classes e frações de classe, de acordo com sua função na sociedade capitalista, ao lado de uma grande parcela da população que evade ou sequer chega à escola.

Para compreendermos o papel da escola/educação no pensamento de Gramsci, é necessário situá-la no âmbito da sua reflexão teórica mais ampla, preocupada com a construção de um projeto de mudança social. Assim, conceitos políticos como o de hegemonia, sociedade civil, sociedade política e intelectual são importantes para situar o papel da educação na “reforma intelectual e moral” necessária para a construção do socialismo, conforme vislumbrava o marxista sardo. Com vistas nisso, esse trabalho irá abordar, de forma sumária, os principais conceitos do pensamento gramsciano a fim de situar o papel da escola e a proposta de escola unitária, na perspectiva desse teórico. A par disso, apresenta-se um panorama das iniciativas públicas federais de educação profissional no Brasil, no

contexto contemporâneo, cotejando-as a partir da concepção de escola unitária.



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2 Ao contrário dos escritos políticos publicados no jornal L’ordine Nuovo, os quais eram destinados a “morrer ao final do dia”, Gramsci pretendia, nos Cadernos do Cárcere, escrever algo para além disso, desinteressado, für ewig (para a eternidade).

O papel da escola na construção da hegemonia


Durante o período de sua prisão pelo fascismo italiano (1926-1937), a preocupação de Gramsci com a derrota do movimento operário italiano nos anos 1920 e as novas formas de hegemonia burguesa na Europa Ocidental o levou a empreitar uma reflexão que ampliou e renovou o marxismo, refutando as teses reformistas e maximalistas de sua época. De acordo com Lincoln Secco (2006), o conceito central dos Cadernos do Cárcere, é o de Hegemonia. É este conceito, segundo o autor, que articula os temas trabalhados em sua obra:


A literatura, o jornalismo, o fordismo e outros assuntos aparecem como variantes formais da mesma persistência temática: a hegemonia. É o seu processo de constituição histórica, as suas diferentes maneiras de construir o consentimento nas diversas camadas sociais, os seus diversos mecanismos e funções institucionais que interessam a Antonio Gramsci (SECCO, 2006, p. 47).


O conceito de hegemonia é utilizado por Gramsci, nos Cadernos do Cárcere, para a compreensão do Rissorgimento italiano. Esta, aliás, é uma característica da reflexão gramsciana: partir sempre de situações concretas, históricas, uma vez que pensava não haver teoria política fora da história, contrapondo-se à visão evolucionista do marxismo presente na sua época (SECCO, 2006). Nessa direção, o conceito de hegemonia não pode ser pensando fora da realidade, em abstrato apenas, devendo ser entendido como um processo e não um conceito fixo.

Em linhas gerais, Gramsci utiliza o termo hegemonia para mostrar como a classe dominante constrói e mantém sua dominação política e cultural, ou seja, ideológica (intelectual e moral), sobre os demais grupos sociais, com base no consenso e na coerção, quando necessária. Ao analisar a formação do Estado Moderno italiano, período conhecido como Rissorgimento, a partir da vitória da corrente política dos moderados, Gramsci sintetiza o conceito de hegemonia:


O critério metodológico sobre o qual deve se basear o próprio exame é esse: a supremacia de um grupo social se manifesta de dois modos, como “domínio” e como “direção intelectual e moral”. Um grupo social domina os grupos adversários, que visa a “liquidar” ou a submeter inclusive com força armada, e dirige grupos afins e aliados. Um grupo social pode e, aliás, deve ser dirigente já antes de conquistar o poder governamental (esta é uma das condições principais para a própria conquista do poder); depois, quando exerce

o poder e mesmo se o mantém fortemente nas mãos, torna-se dominante mas deve continuar a ser também “dirigente” (GRAMSCI, 2002, C19, p. 62-63).


Nessa passagem, pode-se identificar a importância da sociedade civil na construção da hegemonia, antes mesmo de este grupo social chegar ao aparelho estatal, como no caso do grupo político dos moderados na Itália. Essa direção “intelectual e moral” exercida na sociedade civil irá sustentar e dar condições para o acesso ao poder do aparelho de Estado (sociedade política). Nesse sentido, Gramsci concebe o Estado não apenas como o aparelho estatal. Em sentido amplo, o Estado, na visão deste marxista, é formado pelo conjunto da sociedade civil e da sociedade política.

A sociedade civil e a sociedade política podem ser compreendidas como dois grandes planos superestruturais, ligados organicamente entre si e em relação à estrutura3. Gramsci assim descreve esses dois planos: “o que pode ser chamado de ‘sociedade civil’ (isto é, o conjunto de organismos designados vulgarmente como ‘privados’) e o da ‘sociedade política’ planos que correspondem, respectivamente, à função de ‘hegemonia’ que o grupo dominante exerce em toda a sociedade e àquela de ‘domínio direto’ ou de comando, que se expressa no Estado e no governo ‘jurídico’” (2014b, C12, p. 21).

Nessa direção, Gramsci identificava que a função do Estado na sua época não se reservava apenas ao papel de coerção, como Marx havia identificado no período oitocentista. A construção e manutenção da hegemonia da classe burguesa passou a se utilizar também da incorporação de reivindicações democrático-popular (consenso) e dos organismos de difusão da sua ideologia, a qual agiria como amálgama entre estrutura e superestrutura, ou seja, a manutenção do bloco histórico4 sob o seu domínio. É importante ressaltar que, para Gramsci, ideologia significa uma visão de mundo, a qual implica em uma forma de pensar e de agir. Conforme sintetiza Silva, “a ideologia abarca um conjunto de ideias que dão conta de explicar e projetar uma realidade, de pautar uma concepção de mundo para determinado sujeito, coletivo ou não” (2010, p. 68).

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3 Como descrevia Gramsci: “as forças materiais [estrutura] são o conteúdo e as ideologias [superestrutura] são a forma” e ainda ressaltava a “distinção entre conteúdo e forma é puramente didática, já que as forças materiais não seriam historicamente concebíveis sem forma e as ideologias seriam fantasias individuais sem as forças materiais” (2014a, C7, p. 238).

4 A identificação entre o “conteúdo econômico-social [estrutura] e a forma ético-política [superestrutura]” forma o bloco histórico (GRAMSCI, 2014a, C10, p. 308)

Nesse sentido, sociedade política e sociedade civil compõem o Estado integral, na visão de Gramsci. Enquanto na primeira estão compreendidos os mecanismos pelos quais a classe dominante detém o monopólio legal da repressão e da violência, representados pelo controle da burocracia administrativa, do ordenamento jurídico e dos aparatos de força militar e policial, na segunda, estão compreendidas as organizações responsáveis pela elaboração e difusão das ideologias. Estas organizações são compreendidas pelo sistema escolar, pelas igrejas, pelas famílias, pelos partidos políticos, pelos sindicatos, pelas organizações profissionais, pelas organizações da imprensa (revistas, jornais, rádio, televisão, etc), entre outros (PORTELLI, 2002). Assim, não há como fazer uma separação entre sociedade política e sociedade civil, ambas, através de uma relação orgânica, visam manter a dominação pela classe fundamental, combinando consenso e coerção.

A construção/manutenção da hegemonia de uma classe é exercida, segundo Gramsci, pelos intelectuais: que são os “funcionários” da superestrutura. Conforme aponta o autor:


Os intelectuais são os “prepostos” do grupo dominante para o exercício das funções subalternas de hegemonia social e do governo político, isto é: 1) do consenso “espontâneo” dado pelas grandes massas da população à orientação impressa pelo grupo fundamental dominante à vida social, consenso que nasce “historicamente” do prestígio (e, portanto, da confiança) obtida pelo grupo dominante por causa de sua posição e de sua função no mundo da produção; 2) do aparelho de coerção estatal que assegura “legalmente” a disciplina dos grupos que não “consentem”, nem ativa nem passivamente, mas que é construído para toda a sociedade na previsão dos momentos de crise no comando e na direção, nos quais desaparece o consenso espontâneo (GRAMSCI, 2014b, C12, p. 21).


Gramsci parte do ponto de vista de que todo homem é um intelectual, no entanto, nem todos exercem a função de intelectual na sociedade, ou seja, o papel de organização e difusão da ideologia de uma classe. Os intelectuais são fundamentais para o exercício da hegemonia, pois são eles que atuam na construção da forma ético-política necessária ao conteúdo econômico-social do modo de produção. Nas palavras do autor, “Por intelectuais, deve-se entender [...] todo o estrato social que exerce funções organizativas em sentido lato, seja no campo da produção, seja no da cultura e no político-administrativo” (GRAMSCI,

2002, C19, p. 93). A hegemonia de uma classe nunca é definitiva, exige a sua renovação constante, através de novas estratégias de obtenção de consenso das classes dominadas, cabendo ao intelectual este papel, pois do contrário poderá ocorrer crise de hegemonia.

Na formação dos intelectuais de uma classe social, Gramsci destaca duas formas mais importantes: o grupo social “originário de uma função essencial no mundo da produção econômica, cria para si, ao mesmo tempo, organicamente, uma ou mais camadas de intelectuais que lhe dão homogeneidade e consciência da própria função, não apenas no campo econômico, mas também no social e político (2014b, C12, p. 15); e através da luta pela assimilação dos intelectuais tradicionais, oriundos da estrutura econômica anterior, à sua ideologia.

Ao mesmo tempo em que Gramsci identifica a função do intelectual na conservação da hegemonia de uma classe, nos casos empíricos analisados, também aponta o papel do intelectual na construção de novos projetos hegemônicos, identificando claramente a necessidade de formação de intelectuais que mobilizem a vontade coletiva das classes subalternas na construção da sua hegemonia. O papel dos intelectuais orgânicos às classes subalternas consiste no processo de formação de uma nova consciência, ou seja, uma nova forma de pensar e de agir na vida social. Em suas palavras, conduzir os sujeitos a “participar ativamente na produção da história do mundo, ser o guia de si mesmo e não mais aceitar do exterior, passiva e servilmente, a marca da própria personalidade” (GRAMSCI, 2014a, C11, p. 94).

Dentre os espaços de formação dos intelectuais, Gramsci destaca os partidos políticos e a escola. O partido político é concebido por Gramsci como o “moderno Príncipe”, o sujeito coletivo que representa “a primeira célula na qual se sintetizam os germes de vontade coletiva que tendem a se tornar universais e totais” (2007, C13, p. 16). Os membros de um partido político, em menor ou maior grau, devem ser considerados intelectuais, pois desempenham uma função que “é diretiva e organizativa, isto é, educativa, isto é, intelectual” (2014b, C12, p. 25).

A escola, segundo Gramsci, é um “instrumento para elaborar intelectuais de diversos níveis” (2014b, C12, p. 19). Nesse sentido, “a diferente distribuição dos diversos tipos de escola (clássicas e profissionais) no território “econômico” e as diferentes aspirações das várias categorias destas camadas determinam, ou dão

forma, à produção dos diferentes ramos de especialização intelectual” (2014b, C12,

p. 20). O autor destaca ainda que a complexidade da função intelectual nos diferentes Estados pode ser mensurada pela quantidade de escolas especializadas e pela sua hierarquização: “quanto mais extensa for a ‘área’ escolar e quanto mais numerosos forem os ‘graus’ ‘verticais’ da escola, tão mais complexo será o mundo cultural, a civilização, de um determinado Estado” (2014b, C12, p. 19).

Tendo em vista a importância do papel dos intelectuais na construção da hegemonia das classes subalternas, e o papel da escola na sua formação, o comunista sardo analisou a realidade da escola italiana de sua época, identificando que a sua organização favorecia a manutenção da hegemonia da classe dominante, uma vez que os diferentes tipos de escola existentes eram destinados a diferentes grupos sociais tendo como papel “perpetuar nesses estratos uma determinada função tradicional, dirigente ou instrumental” (2014, C12, p. 50). Contrapondo-se a essa lógica de formação escolar diferenciada entre os diferentes segmentos sociais, e reconhecendo que as instituições são espaços de disputa entre os diferentes interesses de classe, Gramsci propõe:


Se se quer destruir essa trama, portanto, deve-se não multiplicar e hierarquizar os tipos de escola profissional, mas criar um tipo único de escola preparatória (primária-média) que conduza o jovem até os umbrais da escolha profissional, formando-o, durante este meio tempo, como pessoa capaz de pensar, de estudar, de dirigir ou de controlar quem dirige (2014, C12, p. 50).


Com base nessa proposição, Gramsci traça as linhas gerais da “escola unitária” voltada à formação de um novo tipo de homem, autônomo, livre e construtor da sua história. É importante ressaltar que, para o autor, não apenas a escola é importante nessa formação e que a educação “significa muito mais do que a instrução escolar”, ela “equivale, simplesmente, às operações fundamentais de hegemonia” (BUTTIGIEG, 2003, p. 47). Na visão gramsciana, a relação pedagógica não se limita aos espaços escolares, ela existe em “toda a sociedade no seu conjunto e em todo indivíduo com relação aos outros indivíduos, entre camadas intelectuais e não intelectuais, entre governantes e governados, entre elites e seguidores, entre dirigentes e dirigidos, entre vanguardas e corpos de exército”, concluindo que “toda relação de ‘hegemonia’ é necessariamente uma relação pedagógica” (2014a, C10, p. 399).

Nesse sentido, conforme destaca Joseph Buttigieg (2003), a partir da análise dos Cadernos do Cárcere pode-se compreender que “as relações educacionais constituem o próprio núcleo da hegemonia” e que “qualquer análise da hegemonia necessariamente implica um cuidadoso estudo das atividades e das instituições educacionais” (p.47). No entanto, “nem as complexidades da hegemonia nem o significado da educação podem ser entendidos enquanto se pensar a educação exclusivamente em termos de ‘relações escolares’ (p. 47).

Sem perder de vista essa compreensão ampla da relação entre educação e hegemonia, em razão dos limites de um artigo, nos deteremos na compreensão da escola enquanto espaço formativo, buscando explicitar a proposição de Gramsci como base para a reflexão sobre algumas iniciativas de educação profissional no Brasil, nos dias atuais.


A escola unitária de Gramsci e sua (não) relação com a Educação Profissional no Brasil


Gramsci observava no contexto educacional italiano que a multiplicação de escolas profissionais (formação para o trabalho), destinadas a formar o novo trabalhador industrial, não constituía uma democratização, pois formava apenas o trabalhador qualificado e não o cidadão com preparação técnico-política, capaz de tornar-se também governante. Conforme ressalta o autor: “O aspecto mais paradoxal reside em que este novo tipo de escola [escola profissional] aparece e é louvado como democrático, quando, na realidade, não só é destinado a perpetuar as diferenças, como ainda a cristalizá-las de forma chinesa”. A crítica de Gramsci em relação a esse tipo de escola consistia no fato de que seus currículos eram “cada vez mais especializados” e “preocupadas em satisfazer interesses práticos imediatos, predominam sobre a escola formativa, imediatamente desinteressada” (2014b, C12, p. 50-51).

Para o marxista sardo, a escola é o espaço privilegiado de acesso ao conhecimento sistematizado para as classes populares. Por isso, a simplificação/redução dos currículos dificulta ainda mais o aprendizado, uma vez que estes sujeitos não contam, em sua grande maioria, com o apoio intelectual fora da escola, tampouco já tem desenvolvido previamente os esquemas cognitivos, e

também físicos, necessários ao trabalho intelectual. Esse tipo de escola contribuiria mais para o abismo entre as classes do que para a diminuição das desigualdades. Gramsci justifica essa análise apontando que,


Decerto, a criança de uma família tradicional de intelectuais supera mais facilmente o processo de adaptação psicofísico; quando entra na sala de aula pela primeira vez, já tem vários pontos de vantagem sobre seus colegas, possui uma orientação já adquirida por hábitos familiares: concentra a atenção com mais facilidade, pois tem o hábito da contenção física etc. Do mesmo modo, o filho de um operário urbano sofre menos quando entra na fábrica do que um filho de camponeses ou de que um jovem camponês já desenvolvido para a vida rural (2014b, C12, p. 53).


Estava claro para Gramsci que essa escola, classista, não contribuiria para as mudanças sociais necessárias. A reflexão sobre sua própria experiência enquanto estudante o “convenceram de que a libertação de que a libertação das classes subalternas requeria um esforço educacional concentrado” de forma a superar “os formidáveis obstáculos postos por um sistema educacional público que estava destinado a servir os ricos e perpetuar seu papel de dirigente na sociedade” (BUTTIGIEG, 2003, p. 42-43). A escola única, na sua visão, deveria conjugar a formação humanista e formação para o trabalho, no tempo e nas condições favoráveis para que todos os sujeitos possam adquirir a maturidade e disciplina necessária para a criação intelectual. Além disso, uma condição para que a escola unitária possa abarcar todos os sujeitos, sem divisões de grupos sociais, é de que ela seja pública, alertava Gramsci. “(...) a inteira função de educação e formação das novas gerações deixa de ser privada e torna-se pública, pois somente assim ela pode abarcar todas as gerações, sem divisões de grupos ou castas” (2014b, C12, p. 37).

Ao incluir todos na escola unitária, Gramsci alertava para o não rebaixamento ou “facilidades” para o acompanhamento de todos. Pelo contrário, a escola unitária, tendo em vista sua função de ampliação cultural e moral dos sujeitos, deve “implementar todo o rigor e toda a complexidade de conteúdos e saberes acumulados pela humanidade” (SILVA, 2010, p. 200). Conforme assumia Gramsci, “se se quiser criar uma nova camada de intelectuais, chegando às mais altas especializações, a partir de um grupo social que tradicionalmente não desenvolveu

aptidões adequadas, será necessário superar enormes dificuldades” (2014b, C12, p. 53).

Para superar essas dificuldades, a escola unitária deve apresentar uma organização prática compatível com o seu objetivo: ser de tempo integral, ter seu corpo docente ampliado de forma a apresentar uma menor relação numérica entre professor e aluno, possuir infraestrutura adequada, como bibliotecas, laboratório, refeitórios, dormitórios, material científico, entre outros. Não apenas em relação às condições materiais e humanas, o modelo didático-pedagógico da escola unitária também deve ser diferenciado, ressaltava Gramsci: partindo-se das primeiras noções de instrução (ler, escrever, fazer contas, geografia, história), deve-se estimular a autonomia intelectual, a disciplina dos estudos, encarando o estudo como um trabalho “muscular-nervoso”, com vistas a desenvolver os elementos essenciais para a construção de uma nova concepção de mundo, de forma autônoma. Em suas palavras:


Do ensino quase puramente dogmático, no qual a memória desempenha um grande papel, passa-se à fase criadora ou de trabalho autônomo e independente; da escola com disciplina de estudo imposta e controlada autoritariamente, passa-se a uma fase de estudo ou de trabalho profissional na qual a autodisciplina intelectual e a autonomia moral são teoricamente ilimitadas (2014b, C12, p. 39)


A escola unitária tem o trabalho como princípio educativo, porém não é uma escola profissionalizante desde o início, como na realidade italiana. Gramsci criticava a especialização precoce dos estudantes, apontando que essa escola do trabalho era na verdade a escola do emprego5, que conforma os jovens à realidade econômica, intelectual e moral vigente. O trabalho como princípio educativo é concebido por Gramsci como categoria basilar da sociabilidade humana, a forma como os sujeitos se inserem no meio social. Nesse sentido, defendia que “o advento da escola unitária significa o início de novas relações entre trabalho intelectual e trabalho industrial não apenas na escola, mas em toda a vida social. O princípio unitário, por isso, irá se refletir em todos os organismos de cultura, transformando-os e emprestando-lhes novo conteúdo” (GRAMSCI, 2014b, C12, p. 40-41). O trabalho nesse sentido, não é visto como uma atividade específica do processo produtivo,


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5 No texto La scuola del lavoro, escrito em 1916, Gramsci afirma que “A escola do trabalho tem sido sacrificada à escola do emprego” (apud SHLESENER, 2002, p. 67).

mas sim como “a forma própria através da qual o homem participa ativamente na vida da natureza, visando a transformá-la e socializá-la cada vez mais profunda e extensamente” (p. 43).

No entanto, a preparação para o trabalho industrial não deixa de ser importante na formação do intelectual das classes subalternas. Porém, sua formação não pode estar baseada apenas na técnica-trabalho, esta deve chegar à “técnica-ciência e à concepção humanista histórica, sem a qual permanece ‘especialista’ e não se torna ‘dirigente’ (especialista + político) (GRAMSCI, 2014b, C12, p. 54). Nesse sentido, a última fase da escola unitária (que vai até os quinze ou dezesseis anos) “deve ser concebida e organizada como a fase decisiva, na qual se tende a criar os valores fundamentais do ‘humanismo’, a autodisciplina intelectual e a autonomia moral necessárias a uma posterior especialização, seja ela de caráter científico, seja de caráter imediatamente prático-produtivo” (p. 39). Ao contrário das escolas profissionais italianas de sua época, Gramsci defendia que a escola unitária “deveria assumir a tarefa “de inserir os jovens na atividade social, depois de tê-los elevado a um certo grau de maturidade e capacidade para a criação intelectual e prática e a uma certa autonomia na orientação e na iniciativa. (p. 36).

A proposição de Gramsci quanto à escola unitária, bem como suas críticas à escola profissional italiana de sua época são elementos importantes para análise e proposições no campo da educação profissional no Brasil. Pode-se dizer que tanto as escolas profissionais criticadas por Gramsci, quanto as tentativas de elaboração de um projeto pedagógico com base na escola unitária podem ser encontradas na realidade brasileira.

Conforme destaca Moraes (2015), a iniciativa do Estado Nacional brasileiro com vistas à formação do novo trabalhador exigido com o advento da industrialização no país, foi inspirada na escola profissional italiana criticada por Gramsci. As Leis Orgânicas do Ensino, também conhecidas como Reforma Capanema, formuladas nesse período, adequavam o sistema educacional para o atendimento das demandas do capitalismo industrial que se instalava no país, passando a educação profissional a ter um papel especial nesse contexto, constituindo-se num ramo da educação básica destinado à formação de trabalhadores a partir de diversas especializações técnicas. Essa iniciativa

configurou uma dualidade educacional no sistema público de ensino: de um lado a formação profissional e, de outro, a formação propedêutica.

Aliado a isso, essa reforma institucionalizou o projeto educacional da Confederação Nacional da Indústria, a partir da criação da organização empresarial denominada Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial - SENAI, (Decreto-Lei nº 4.048, de 22/01/1942) que já vinha sendo desenvolvido no Estado de São Paulo, celeiro das primeiras indústrias no país6. Baseada no modelo produtivo das indústrias, o taylorismo/fordismo, a formação profissional desenvolvida pelo SENAI baseava-se na aprendizagem da operacionalização de equipamentos e execução de tarefas, o que se tornava muito mais eficiente se realizada no contexto da prática. Com isso, além da aprendizagem das técnicas, incluíam-se como conteúdos formativos a disciplina e o modelo de administração das fábricas, contribuindo na formação do trabalhador necessário para o “bom andamento” do processo produtivo e da reprodução das relações sociais capitalistas. Formava-se assim o especialista necessário ao desempenho de determinadas funções no processo produtivo, em detrimento do cidadão com preparação técnico-política, capaz de tornar-se também governante, conforme criticava Gramsci a partir da realidade italiana.

A partir do final da década de 1960, sob a égide da Ditadura civil-militar no Brasil, o modelo economicista de educação profissional é aprofundado por meio da ideologia do “capital humano”, que identifica a educação como fator de produtividade e desenvolvimento econômico (MACHADO, 2010). Esse modelo de educação profissional se perpetuou nas políticas educacionais no país de forma predominante, até os anos 2000, apesar dos movimentos contrários por parte de organizações e movimentos educacionais.

Com a elaboração da nova Constituição Federal, no final da década de 1980, o debate sobre a educação profissional enquanto formação integral do ser humano, com base no princípio da politecnia e escola unitária de Gramsci, ganhou força no país, buscando constituir-se enquanto princípio na nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB). No entanto, com a emergência do neoliberalismo na década de 1990, novos projetos educacionais entraram em interlocução com o


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6 A partir da criação do SENAI, o projeto da burguesia para a formação dos trabalhadores ampliou seu espaço de atuação. Hoje já são mais 4 instituições que atuam no setor educacional: SESI (Serviço Social da Indústria); SENAC (Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial); SESC (Serviço Social do Comércio); SENAR (Serviço Nacional de Aprendizagem Rural), as quais constituem o Sistema S.

governo federal, gerando um jogo de forças desiguais que se reverteu em um processo de “contrarreforma” ao projeto democrático de educação e sociedade que a Constituição Federal de 1988 apontava. Sendo resultado de uma intensa disputa de projetos que durou 8 anos, a LDB aprovada em 1996 consolidou a perspectiva do governo, claramente identificada com a perspectiva neoliberal (SAVIANI, 2004).

Em relação à educação profissional, a nova LDB foi bastante vaga, criando o espaço necessário para a publicação de um Decreto logo em seguida. O Decreto 2.208, implementado pelo Governo FHC em 1997, proibia a formação profissional integrada ao ensino médio e regulamentava formas “fragmentadas e aligeiradas de educação profissional em função das alegadas necessidades do mercado” (RAMOS; FRIGOTTO; CIAVATTA, 2005, p. 25), tendo gerado fortes críticas de entidades, organizações e atores do campo educacional.

Com a eleição do candidato do Partido dos Trabalhadores para a Presidência da República, em 2002, ampliaram-se as expectativas dos setores progressistas em retomar o debate travado na década de 1980. A partir de um processo de disputas, um avanço obtido foi a retomada legal da possibilidade de integração entre educação básica e educação profissional, com a publicação de novo Decreto (Decreto 5154/2004), que substituiu o da década anterior. Essa integração permitiria uma formação humana e científica sólida a par de uma especialização técnica, possibilitando o desenvolvimento de processos formativos que elevariam o trabalhador ao nível “especialista + político”, como se referia Gramsci.

O novo Decreto representou um importante avanço ao retomar as bases jurídicas para a oferta da educação profissional integrada à educação básica. Porém, ao mesmo tempo, como resultado de um conjunto de disputas7 expressa algumas contradições: reproduziu o modelo de Decreto, ao invés de Lei, o que seria mais democrático e legítimo enquanto instrumento legal; preservou a oferta de cursos dissociados da educação básica; e “caminhou” por 08 (oito) anos a par das

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7 Gaudêncio Frigotto, Maria Ciavatta e Marise Ramos, relatam, enquanto participantes desse processo, a existência de pelo menos três propostas diferentes que atuaram nessa disputa: “uma primeira posição expressa em três documentos defendia a ideia ou tese de que cabe apenas revogar o Decreto n. 2.208/97 e pautar a elaboração da política de Ensino Médio e Educação Profissional, de uma parte pelo fato de a LDB em vigor (Lei

n. 9.394/96) contemplar as mudanças que estão sendo propostas e, de outra, por se entender que tentar efetivar mudanças por decreto significa dar continuidade ao método impositivo do governo anterior. Uma segunda posição é expressa, mais diretamente, por um documento que se posiciona pela manutenção do atual Decreto n. 2.208/97 e outros documentos que indiretamente desejariam que as alterações fossem mínimas. Por fim, uma terceira posição, que consta de um número mais significativo de documentos, direta ou indiretamente partilha da ideia da revogação do Decreto n. 2.208/97 e da promulgação de um novo Decreto” (FRIGOTTO, CIAVATTA e RAMOS, 2005, p. 23-24).

Diretrizes Curriculares para a Educação Profissional Técnica de Nível Médio elaboradas com base no antigo Decreto8.

Na visão de Ramos (2011, p. 105), a operacionalização do novo Decreto com base nas diretrizes emanadas do antigo marco legal acabou dando “continuidade à política curricular do governo anterior, marcada pela ênfase no individualismo e na formação por competências voltadas para a empregabilidade”. Apenas em 2012, também fruto de intensas disputas e debates, é que foram publicadas as Diretrizes Curriculares para a Educação Profissional Técnica de Nível Médio, tendo como base as normativas do Decreto 5154/2004, a partir da Resolução CNE/CEB 06/2012.

Essa primeira experiência de tentativa de mudança na concepção e políticas de educação profissional em curso evidenciou, conforme analisam Frigotto, Ciavatta e Ramos, que o Governo não colocava em pauta mudanças estruturais, em razão de ser “expressão de um bloco heterogêneo dentro do campo da esquerda e com alianças cada vez mais conservadoras” (2005, p. 26). O uso de decreto, enquanto forma legal de mudança, e as contradições que ele carrega, representou, nesse cenário, a forma possível para – em face das forças conservadoras no Congresso Nacional e da ausência de forças políticas no próprio governo para sustentação de uma mudança estrutural na política da área – instituir as bases para a “(re)construção de princípios e fundamentos da formação dos trabalhadores para uma concepção emancipatória dessa classe” (2005, p. 30).

Quanto à inserção da profissionalização na educação básica, é importante destacar as divergências entre os educadores intérpretes de Gramsci. Na visão de Nosella, por exemplo, o ensino médio, com base na concepção de educação gramsciana, com vistas a uma “escola média nacional”, deveria transformar-se “num poderoso instrumento de cultura geral, moderno, opondo-se à onda crescente de sua profissionalização” (2016, p. 86). Para o autor, o ensino médio é uma etapa de ensino da “plenitude e da maturidade da pessoa, quando o jovem aprende a produzir e dirigir a si mesmo, como pressuposto para produzir e dirigir a sociedade” (p. 65) e a dualidade estrutural da sociedade que obriga parcela dos jovens a ingressarem precocemente no mercado de trabalho não justifica o “abandono, por parte do Estado, do ensino médio público não profissionalizante” (p. 66).


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8 Durante esse período as Diretrizes aprovadas em 1999, sob a Resolução CNE/CEB n. 04/99, foram atualizadas pela Resolução CEB 01/2005, que incluiu a possibilidade de oferta da forma Integrada entre ensino médio e curso técnico, aprovada pelo novo Decreto.

Embora concordando com a perspectiva de uma educação unitária não profissionalizante, outros educadores reconhecem como importante e legítima a possibilidade da profissionalização no ensino médio, admitindo-a “quando associada à educação intelectual, física e tecnológica” (MOURA, LIMA FILHO, RIBEIRO, 2015,

p. 1066), tendo em vista as necessidades da classe trabalhadora no contexto atual. A proposta gramsciana de uma formação unitária, na visão destes autores, refere-se “a uma possibilidade futura a ser materializada em uma sociedade na qual a classe trabalhadora tenha ascendido ao poder político” (p. 1066), e o ensino médio integrado pode ser encarado como uma proposta educacional de “travessia” para esse novo contexto.

Nos marcos de uma sociedade capitalista, não se poderia prescindir das necessidades da classe trabalhadora, e o ensino médio integrado ao ensino técnico apresenta-se como uma proposta de formação científica sólida associada ao domínio de técnicas de trabalho que permitem ao jovem os meios para a produção de sua subsistência no mercado de trabalho atual. Nessa direção, também Frigotto, Ciavatta e Ramos (2005, p. 43) se posicionam:


Se a preparação profissional no ensino médio é uma imposição da realidade, admitir legalmente essa necessidade é um problema ético. Não obstante, se o que se persegue não é somente atender a essa necessidade, mas mudar as condições em que ela se constitui, é também uma obrigação ética e política garantir que o ensino médio se desenvolva sobre uma base unitária para todos. Portanto, o ensino médio integrado ao ensino técnico, sob uma base unitária de formação geral, é uma condição necessária para se fazer a “travessia” para uma nova realidade.


Dessa perspectiva, aponta-se que o governo Lula promoveu avanços na educação profissional, também, ao articular a Educação de Jovens e Adultos à oferta de ensino técnico e formação inicial e continuada, através do Decreto 5.478/2005 que instituiu o Programa Nacional de Integração da Educação Profissional com a Educação Básica na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos, o PROEJA. Essa política proporcionou significativo avanço na área de educação de jovens e adultos, pois promoveu a elevação de escolaridade juntamente com a formação profissional e a partir de um currículo integrado, representando uma conquista das lutas pelo direito à educação e de “resistências à lógica fragmentária, focalizada, compensatória e reducionista das ações de

formação implementadas anteriormente” (RAMOS, 2011, p. 106). Aliado a isso, a criação dos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IFs), em 2008, os quais, por força de Lei, devem ofertar 50% das suas vagas em cursos técnicos, prioritariamente, integrados ao ensino médio, e o Programa Brasil Profissionalizado, voltado para o financiamento da oferta de ensino médio integrado nas redes estaduais de ensino, fortaleceu a oferta de educação profissional integrada à educação básica.

No entanto, como a disputa pela hegemonia é um processo permanente, e o fato de as conquistas estabelecidas no campo político não terem sido acompanhadas de mudanças econômicas estruturais (GRAMSCI, 2007), estes avanços ficaram sujeitos às alterações na própria correlação de forças que os produziram. Como expressão das disputas entre capital e trabalho, o projeto de educação profissional levado à cabo nos anos 1990 permaneceu latente, conquistando cada vez mais espaço nas políticas governamentais.

Assim, a par dessas iniciativas progressistas, persistiram as escolas e cursos de formação profissional destinados à formação do especialista em determinada tarefa no processo produtivo, seja através das instituições ligadas ao Sistema S, seja através de programas de formação profissional no âmbito dos governos9, como resultado de um governo marcado pela defesa dos direitos dos trabalhadores e pela sua governabilidade sustentada em políticas de conciliação com os interesses da burguesia (SINGER, 2009; 2015).

Nesse contexto, é possível compreender a emergência do Pronatec (Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego), criado no primeiro Governo Dilma (PT 2011-2014), pela Lei 12.513/2011, o qual fomentou/fomenta o desenvolvimento da educação profissional a partir da concepção de formação especializada para o mercado de trabalho, especialmente por meio da iniciativa denominada Bolsa-Formação10. Apesar de prever diferentes possibilidades de oferta


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9 Desde a década de 1960 vários programas de formação profissional voltada às demandas do mercado de trabalho foram desenvolvidos em âmbito nacional: como o PIPMO (Programa Intensivo de Preparação de Mão-de-Obra), na década de 1960, o PLANFOR (Plano Nacional de Qualificação do Trabalhador) na década de 1990, e o PNQ (Programa Nacional de Qualificação Profissional) nos anos 2000.

10 A Bolsa Formação é uma das iniciativas que compõem o Pronatec, a qual tem recebido o maior volume de recursos (50% do montante destinado ao Programa até 2016, conforme dados do Portal da Transparência). Essa iniciativa consiste no financiamento de matrículas em cursos técnicos e de formação inicial e continuada em unidades de ensino existentes – redes públicas e privadas. Há duas modalidades: Bolsa-Formação Estudante – oferta cursos técnicos e a Bolsa-Formação Trabalhador –

de cursos de formação profissional11 e envolver instituições públicas e privadas no seu desenvolvimento, o Pronatec Bolsa-Formação atingiu 4,6 milhões de matrículas no ano de 2016 com o seguinte cenário: 77,3% das matrículas em cursos Formação inicial e continuada, os quais são dissociados da educação básica e apresentam uma carga horária que varia entre 160 e 400 horas, e 78,8% foram desenvolvidas por instituições privadas, sendo que 66,7%, exclusivamente, por instituições do Serviço Nacional de Aprendizagem, o Sistema S (SIMEC, 2017).

Além da “privatização” do conteúdo, a predominância do Sistema S na oferta dos cursos Pronatec representa a privatização no uso dos recursos públicos e legitima o Estado enquanto financiador da iniciativa privada, a qual atende os interesses do capital. Essa realidade, na contramão do que propunha a escola unitária de Gramsci, por ser desenvolvida a partir da atuação de uma organização que representa os interesses da classe burguesa é atravessada pelos interesses dessa classe.

Aparentemente, o Pronatec democratiza o acesso à formação profissional, pois possibilita que sujeitos em diferentes níveis de escolaridade possam se qualificar para o ingresso no mercado de trabalho. No entanto, como já dizia Gramsci esse tipo de escola contribui mais para perpetuar as diferenças e desigualdades de classe, do que para a mudança social. Apesar dos grandes números atingidos, do ponto de vista da formação do trabalhador se esta iniciativa não estiver acompanhada de políticas de elevação da escolaridade, a partir de uma formação humanista sólida constituir-se-á em um grande “castelo de areia” (FRIGOTTO, 2013).

Análises realizadas sobre o Pronatec apontam, em geral, a preocupação com o volume de transferência de recursos públicos para a iniciativa privada, a secundarização, ou quase anulação, da integração entre educação básica e formação profissional no âmbito desta política e suas semelhanças com programas de formação profissional desenvolvidos no passado, como o PIPMO e o PLANFOR (LIMA, 2012; MACHADO,2013; GARCIA, 2013; MOURA, 2013; FRANZOI et al,

2013). Por outro lado, são sinalizados alguns méritos do Programa, como a tentativa de superar a pulverização de iniciativas de formação profissional no âmbito dos

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oferta cursos de formação inicial ou continuada (FICs). Do total de recursos investidos nessa iniciativa, mais de 70% foram utilizados pelo Sistema S.

11 Cursos técnicos concomitantes e subsequentes ao ensino médio, Proeja e cursos de formação inicial e continuada.

ministérios, reunindo-as no âmbito do Ministério da Educação, sem deixar de integrar-se com as demais políticas sociais do governo, e o fato de concentrar a oferta de cursos pela Rede Federal de Educação Profissional e Tecnológica e pelo Sistema S, ao contrário do PNQ e do PLANFOR que mobilizavam um grande número de instituições de diversas naturezas, inclusive ONGs (CASTIONI, 2013).

No entanto, as análises que compreenderam investigação empírica em instituições que ofertam cursos pelo Pronatec revelam a elevada evasão nos cursos, em especial nos cursos técnicos concomitantes, em razão da dupla jornada dos estudantes ao frequentar duas instituições de ensino e conciliar, em muitos casos, também o trabalho, não se confirmando, assim, o objetivo do programa em democratizar o acesso à educação profissional técnica de nível médio (SALDANHA, 2015); e a “inclusão excludente” dos estudantes nos cursos Pronatec no âmbito de um Instituto Federal, em razão das condições diferenciadas de corpo docente e pedagógico-administrativas (RAMOS, 2014), promovidas pela forma de contratação dos profissionais por meio do pagamento de bolsas.

Com o golpe parlamentar de 2016 (LÖWY, 2016), o Pronatec Bolsa- Formação ganhou uma nova “roupagem” a partir do MedioTec, que oferta cursos técnicos na forma concomitante, por meio de instituições públicas e privadas, para estudantes de escolas públicas de ensino médio, inclusive na modalidade a distância. Essa mudança de foco tem sido apontada por vários estudiosos (ARELARO, 2017; MOTTA, 2017; FRIGOTTO, 2017) como uma forma de

antecipação da Reforma do Ensino Médio, aprovada pela Lei 13.415 de 15 de fevereiro de 2017, que reduz a base formativa comum nessa etapa de ensino e insere itinerários formativos de “escolha” dos estudantes, entre eles a formação técnica, permitindo o estabelecimento de parcerias público-privadas, como é o caso do MedioTec.


Considerações finais


Apesar da distância histórica – quase um século – entre as formulações críticas e propositivas de Gramsci em relação à escola italiana, pode-se observar que elas continuam válidas para o nosso contexto. O projeto de educação profissional vigente em nosso país, excetuando-se algumas iniciativas contra

hegemônicas, visa atender à demanda de formar bons trabalhadores, mas que pensem no limite da execução de sua atividade profissional, tal como criticava Gramsci na realidade italiana.

Por sua função estratégica na construção e manutenção da hegemonia de classe, a educação é um espaço de disputa de diferentes projetos educacionais. As políticas educacionais expressam os diferentes interesses emanados da sociedade civil e da sociedade política, ora avançando para uma concepção progressista de educação, ora retrocedendo e/ou convivendo com iniciativas contraditórias e híbridas.

A construção da escola única continua sendo um objetivo a ser atingido, para uma parcela dos profissionais e militantes do campo educacional. Uma escola que possibilite a todos os sujeitos a construção da autonomia intelectual como ferramenta para a mudança da realidade social, a partir de uma construção histórica envolvendo conscientemente a classe trabalhadora.


Referências


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Recebido em: 29 de julho de 2018. Aprovado em: 17 de setembro de 2018. Publicado em: 22 de novembro de 2018.

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TESE DE DOUTORADO



MONLEVADE, Ana Paula Bistaffa de. Comunidade Tradicional Raizama em Jangada/MT:¹ produzindo a existência associadamente por meio de enxadas, ralos, sucuris e torradeiras. 2018. 206p. Tese (Doutorado em Educação) – Instituto de Educação. Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) Cuiabá, 2018.2

Resumo expandido


A presente tese procurou demonstrar que, na contramão do sistema capitalista de produção – que é alicerçado na divisão social do trabalho que oprime e explora –, existem trabalhadoras e trabalhadores que seguem lutando historicamente contra este sistema, buscando (rememorando) outras formas de produzir a existência, sendo uma delas baseada na organização coletiva do trabalho e da vida, nos princípios de igualdade, solidariedade, autogestão e reciprocidade, no que denominamos produção associada.

Esta forma de organização é constituída a partir da autogestão do processo de trabalho, da divisão igualitária dos bens produzidos, da não exploração do outro, da transmissão geracional de saberes sobre o trabalho e sobre a vida, da ajuda mútua e da resistência ao trabalho assalariado.

Assim ocorre na Comunidade Tradicional Raizama (nosso campo empírico) que está localizada no município de Jangada a 110 km de Cuiabá - Mato Grosso. Local em que as trabalhadoras e os trabalhadores lutam historicamente para se manterem no campo e tentam resistir de várias formas aos “valores” pregados pelo capitalismo, como o individualismo e a competição. Um dos exemplos de resistência é a Associação dos Produtores Rurais da Raizama I criada, em 1988, com o objetivo


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1DOI: https://doi.org/10.22409/tn.16i31.p27381

2Doutora em Educação pela UFMT. Mestra em Educação pela UFS. Especialista em Docência no Ensino Superior e Gestão de Negócios Turísticos. Bacharel em Turismo pela UNIRONDON. Professora lotada no Departamento da Área de Serviços do Instituto Federal de Mato Grosso (IFMT)

– Campus Cuiabá, atuando no Curso de Bacharelado em Turismo e no Curso de Ensino Médio Integrado em Eventos. Realiza pesquisa na linha de movimentos sociais, políticas, educação popular, turismo de base local e turismo pedagógico. A tese foi orientada pelo Prof. Dr. Edson Caetano, defendida em abril de 2018. anapaulabistaffa@gmail.com

de produzir coletivamente a farinha de mandioca, buscando o crescimento social e econômico da comunidade a partir de um produto que já era tradicional e que sempre remeteu à ancestralidade do local.



Imagem 01 e 02: Comunidade Tradicional Raizama

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Fonte: Lyra (2016)


Portanto, entendemos que a produção associada representa a dinâmica da realidade material e imaterial da trabalhadora e do trabalhador, o que permite entender os significados que o trabalho adquire na vida das pessoas, os comportamentos, as interações entre o grupo, os processos de sociabilidade e os mecanismos de controle.

Assim, consideramos Raizama uma comunidade tradicional por se diferenciar das demais comunidades pelo seu reconhecimento como grupo, pela sua história de luta, por possuir sua própria forma de organização e por preservar historicamente seus costumes e tradições.

Com base nisso, a pesquisa objetivou analisar as contradições e mediações vivenciadas pelas trabalhadoras e trabalhadores da Comunidade Tradicional Raizama/MT quando se organizam para produzir a existência a partir da produção associada. Especificamente, procuramos identificar elementos econômicos, culturais e saberes presentes na organização social da vida das trabalhadoras e trabalhadores de Raizama; apresentar as peculiaridades da produção associada que permeiam espaços e tempos históricos da comunidade e o que isto representa para a produção da vida material e imaterial em comunidade; e discutir os limites de existência e resistência da produção associada frente ao modelo de produção capitalista.

A partir dos objetivos apresentados, partimos do materialismo histórico- dialético na tentativa de entendermos a realidade concreta da Comunidade Raizama. Isto posto, optou-se pela pesquisa de abordagem qualitativa, a observação participante e a entrevista semiestruturada como forma possível para que as trabalhadoras e os trabalhadores da comunidade pudessem ser entendidos como sujeitos ativos e críticos. Em Raizama, estivemos presentes em diversos momentos e acontecimentos da comunidade e pudemos observar o andamento das reuniões da associação, a produção coletiva da farinha de mandioca, a realização dos mutirões e da festa de São Vicente de Paulo, bem como observamos o cotidiano de trabalhadoras e trabalhadores laborando na terra.

Foi também necessária a utilização da história oral como metodologia de pesquisa para entender como a comunidade se formou a partir das narrativas de memórias de seus(suas) moradores(as) e das histórias que foram passadas de uma geração para outra neste período de existência de Raizama. Histórias que perpassam desde o período em que existiam aldeias indígenas próximas à comunidade até o processo ilegal de ocupação das terras do Estado que interferiu diretamente na atual formação e delimitação das terras de Raizama.

Utilizamos, ainda, a metodologia chamada autofotográfica (ou método autofotográfico) em que entregamos uma câmera fotográfica a uma trabalhadora da

comunidade e solicitamos que a mesma registrasse fatos, objetos, acontecimentos,

produtos etc., que considerava mais importantes na comunidade e que representassem a forma de ser e viver em Raizama.

Conseguimos fundamentar teoricamente nossa pesquisa quando apresentamos a partir de Marx e demais autores da linha crítica, o trabalho em sua dimensão onto-histórica, o surgimento do capitalismo e, com ele, do proletariado e dos mundos do trabalho, bem como os aspectos históricos da produção associada. Também construímos a história da comunidade e da descendência das trabalhadoras e trabalhadores de Raizama. E contamos ainda como se deu o processo de ocupação de terras no Estado e como isso refletiu na história da comunidade.

Além disso, toda a pesquisa empírica realizada considerou os espaços de trabalho coletivo da comunidade como a farinheira e os mutirões e, ainda, apontou aspectos de sua existência/resistência frente ao capital e das relações sociais em comunidade.



Imagem 03: Mutirão para a reforma da farinheira

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Fonte: Lyra (2016)


Consideramos importante salientar que são muitas as contradições, os desafios e também as formas de resistência encontradas em Raizama. Foi possível identificar uma realidade que lhe é peculiar, pois tem-se a produção associada que

permeia espaços e tempos históricos da comunidade até um específico momento (produção da farinha de mandioca) e depois encontram-se os limites dessa existência frente ao capital (distribuição e circulação).

Raizama já sofreu com o processo ilegal de ocupação do Estado do Mato Grosso que impactou profundamente na distribuição das terras na comunidade, porém, mesmo não podendo mantê-las de forma comunal, a essência do trabalho associado não foi perdida. Isto pôde ser observado tanto na farinheira, como nos mutirões e também em outras instâncias da vida social que foram pesquisadas. Entendemos o que representa a prática histórica da “troca de dia” para estes(as) trabalhadores(as), em que uma família ajuda a outra sem utilizar pagamento em dinheiro, sem explorar a força de trabalho do outro e sem priorizar o lucro. Percebemos o quanto isso é importante para a manutenção da farinheira e para a produção da própria existência, pois além de resistirem a um sistema que escraviza e aliena, também conseguem construir uma forma de organização autogestionária e compartilhada em que a existência é pautada na solidariedade.

Atualmente, a farinheira passa por um momento importante de sua história, pois, após a sua reforma, voltou-se a produzir farinha como antes do tempo em que ficou suspensa. Novamente há fila para as famílias agendarem o dia para a produção. Muito mais associados(as) estão empenhados(as) no trabalho naquele espaço e, com isso, muito mais trabalhadores e trabalhadoras conseguem uma renda extra com a farinha.

Isto se deve aos novos equipamentos instalados no espaço, que permitiram que a produção se tornasse menos complicada e exaustiva, apesar de ainda ser um processo artesanal (um tipo de tecnologia social); hoje, mais trabalhadores(as) se dedicam a descascar a mandioca (procedimento que ainda é todo manual e que demanda mais tempo e técnica) e são necessários(as) menos trabalhadores(as) para as demais etapas devido às novas máquinas. Observamos, assim, não somente uma melhoria econômica para a comunidade, mas também social, pois Raizama reabilitou o seu espaço em participar das farinhadas e ajudar em todas as etapas do processo.

Assim, compreendemos que na farinheira de Raizama o trabalho ocorre de forma associada e autogestionária (mesmo com seus limites e contradições). Todos são proprietários do espaço e a sua administração ocorre de forma democrática. As trabalhadoras e os trabalhadores valorizam as relações de solidariedade existentes

e não exclusivamente o lucro, pois ali não existe a exploração da força de trabalho do outro.

Também em outros contextos da vida em comunidade foi muito fácil observar a preocupação de um com o outro e a responsabilidade que cada família tem em ajudar as demais, não permitindo que ninguém fique sem assistência ou passe por dificuldades extremas. Isto nos fez perceber que os laços de solidariedade e reciprocidade ainda são muito fortes no local, representando a identidade associativa da comunidade. Assim é Raizama, exemplo de existência, resistência e luta!


Recebido em: 01 de setembro de 2018. Aprovado em: 17 de setembro de 2018. Publicado em: 22 de novembro de 2018.

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DISSERTAÇÃO DE MESTRADO



POMPEU, José Carlos Vanzeler. Saberes do trabalho e formação de identidade de pescadores artesanais no município de Cametá-Pará1. 2017. Dissertação de Mestrado em Educação e Cultura, do Programa de Pós-graduação em Educação e Cultura, da Universidade Federal do Pará - Campus Universitário do Tocantins/Cametá-PA.2

Resumo expandido


O estudo em questão constituiu a dissertação intitulada “Saberes do trabalho e formação de identidade de pescadores artesanais no município de Cametá-Pará”, que foi apresentada ao Curso de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Educação e Cultura da UFPA/Campus de Cametá, linha de pesquisa: Educação Básica, Tecnologias, Trabalho e Movimentos Sociais na Amazônia. Neste trabalho analisamos processos de formação de identidade em interlocução com a produção de saberes do trabalho da pesca artesanal. O objeto de investigação foi a formação da identidade dos pescadores artesanais da ilha de Tentém, município de Cametá- PA, a partir das condições materiais de produção de saberes do trabalho da pesca no contexto da construção da Usina Hidrelétrica de Tucuruí (UHE). As análises direcionaram-se à formação identitária do pescador artesanal no palco de disputas entre trabalho e capital, uma vez que consideramos que a identidade que se formou a partir das mudanças na produção dos saberes do trabalho da pesca, decorrentes da construção da Usina Hidrelétrica de Tucuruí (UHE), corroborou processos de emancipação dos sujeitos pescadores e de conformismo e manutenção do capital.

A análise da identidade foi feita por meio da corrente materialista-histórica, por meio da qual a identidade foi entendida enquanto resultado das sínteses materiais humanas ao longo do tempo, uma vez que os pescadores artesanais materializam identidades não enquanto condição de expressão do seu modo tradicional e peculiar de vida, mas sim como sendo o resultado de múltiplas determinações que são forjadas no interior societário das relações de contradição e negação vividas por esses sujeitos.


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1DOI: https://doi.org/10.22409/tn.16i31.p27382

2José Carlos Vanzeler Pompeu é Mestre em Educação e Cultura pela Universidade Federal do Pará e Licenciado em Letras-Português pela Universidade Federal do Pará. Dissertação orientada pelo Prof. Dr. Doriedson do Socorro Rodrigues, defendida no dia 04 de setembro de 2017.

Nessa perspectiva, a identidade foi entendida como resultado de “processos que modificam os modos de identificação dos indivíduos em consequência de transformações maiores na organização econômica, política e simbólica das relações sociais” (DUBAR, 2009, p. 26).

Para melhor compreensão do objeto em estudo e sua relação dialética com os demais elementos apresentados, esta pesquisa foi pautada na abordagem qualitativa. Entendemos que o sujeito e o objeto desta pesquisa estão em inteira atuação, e nessa situação busca-se a compreensão e não a visão terminalista da explicação. Assim, foi “necessário empreender rigorosamente a análise dos aspectos ideológicos, teóricos, metodológicos e técnicos visto que estão todos inter- relacionados no conjunto dos fatos históricos próprios de cada cenário a ser pesquisado” (MARQUES, 1997, p. 22).

Como instrumento de coleta de dados utilizamos a entrevista semiestruturada, que segundo Bogdan; Biklen (1994) é uma técnica que permite relacionar teoria aos conhecimentos investigados daquela realidade; além disso, proporciona uma interação entre quem pesquisa e quem é pesquisado. Essa interação foi mediada pelo dialogismo de tal forma que se buscou aproximar a uma “conversação”, podendo assim contribuir para criar um clima de confiança e propiciar a geração de informações importantes.

Assim, as entrevistas foram realizadas com 07 (sete) pescadores que praticam ou já praticaram atividade de pesca artesanal na ilha do Tentém, sendo 02 (dois) com idade superior a 60 (sessenta) anos e 05 (cinco) com idades entre 21 (vinte e um) e 48 (quarenta e oito) anos.

Fizemos uso, também, da Observação Participante (BOGDAN; BIKLEN, 1994), como técnica de investigação, que usualmente se complementa com a entrevista semiestruturada. A observação participante requer um contato direto do pesquisador com os atores sociais investigados, que no contexto desta pesquisa são os pescadores artesanais da ilha de Tentém. Esse contato permitiu uma visão mais ampla do objeto investigado e uma análise mais realista das entrevistas realizadas.

Ao fim do percurso metodológico foi feita a análise dos dados, e como procedimento utilizamos a Análise do Conteúdo (AC), na perspectiva de Franco (2012), por ser um método de pesquisa que, entre outros aspectos, conta com o tratamento e análise de entrevistas e relatos orais dos entrevistados.

Busquei, neste estudo, problematizar as mudanças ocorridas nos modos de vida dos pescadores artesanais da ilha de Tentém, Cametá-PA, no contexto da construção da UHE de Tucuruí. Essas mudanças estão relacionadas às condições materiais de existência desses sujeitos, a partir das quais se dá a produção de saberes do trabalho da pesca. Nesse sentido, busquei problematizar as mudanças nas condições materiais dos pescadores da ilha de Tentém com a construção da UHE, as quais determinam processos de produção de saberes que, por conseguinte, corroboram para processos de formação da identidade do pescador artesanal.

Neste trabalho apresentamos a descrição e análise da observação e das entrevistas semiestruturadas feitas na ilha de Tentém com relação à formação de identidade dos pescadores a partir da produção de saberes. Com esses dados, foi possível analisar quais elementos formadores da identidade do pescador artesanal de Cametá sofreram mudanças, voltando-se para processos de resistência frente ao capital, e quais elementos voltaram-se para o conformismo e manutenção da ordem do capital.

Entendemos, por resistência, as atitudes dos pescadores relacionadas à busca do enfrentamento da realidade negativa imposta ao meio natural e às relações de trabalho, pela construção da UHE de Tucuruí. São atitudes que envolvem processos de transformação da natureza por meio de criação de saberes, organização individual e coletiva do trabalho da pesca, e outras que se mostram úteis para emancipação dos pescadores.

Por conformismo, consideramos a aceitação da realidade negativa imposta aos pescadores pela construção da UHE, no sentido de alinharem-se ao sociometabolismo do modo de produção capitalista, ou seja, processos de realização do trabalho da pesca que promoveram a desorganização dos pescadores como classe, e processos que perpassaram a busca por valores de uso e buscaram a mercantilização da produção, assim como atitudes que mesmo indiretamente, concorreram para processos de exploração do trabalho no interior da ilha.

Um dos achados da pesquisa com relação aos elementos de conformismo reside na constatação de que a pesca, que antes era feita quase sempre de forma coletiva, após a UHE passou a ser feita de forma individual, sendo raras as exceções de pesca coletiva. Essa perda da coletividade no trabalho da pesca artesanal distanciou os pescadores da troca de experiências, do compartilhamento

dos saberes e, consequentemente, de uma organização enquanto classe, uma vez que segundo Rodrigues (2012), é por meio do trabalho (coletivo) que os trabalhadores agem sobre a natureza e mantêm relação com a mesma e com os homens e, dessa forma, mantêm relações sociopolíticas enquanto luta de classes.

Outro elemento de conformismo que destacamos é a aquisição de geleiras para a busca do pescado em longas distâncias e conservação do mesmo, as quais, por terem alto custo, são de propriedade de poucos pescadores e, sendo assim, passou a haver relações patronais entre os pescadores na ilha de Tentém, isto é, relações de compra e venda de mão de obra para operar as geleiras.

A pesquisa sobre a pesca artesanal na ilha de Tentém, município de Cametá, representa uma realidade de todo o Baixo Tocantins, em municípios como Limoeiro do Ajurú, Baião, Mocajuba, Oeiras do Pará, os quais foram atingidos pela construção da UHE de Tucuruí.

Entre os desastres causados pela construção da UHE veio o desaparecimento de peixes, mudanças nos ciclos hidrológicos, entre outros que fizeram com que a pesca já não fosse mais uma profissão que garantisse o sustento dos pescadores. Constatamos, por meio das entrevistas e das observações realizadas durante a pesquisa, o quanto a construção desse projeto afetou de forma negativa o modo de vida dos pescadores artesanais da ilha de Tentém. Os pescadores artesanais dessa ilha viram-se obrigados a realizar mudanças nos seus modos de vida, principalmente na produção de saberes.

A construção da UHE de Tucuruí causou impactos negativos na materialidade produtiva dos pescadores artesanais da ilha do Tentém, fazendo com que os mesmos, a partir da produção de saberes, criassem mecanismos de enfrentamento dessas condições. No entanto, percebemos que os pescadores, em determinadas situações, alinharam-se à lógica do capital, estabelecendo processos de mercantilização da produção e de relações patronais no interior da ilha.

Assim, podemos afirmar que a identidade do pescador artesanal da ilha do Tentém possui uma formação caracterizada pelo distanciamento do trabalho da pesca como atividade criadora de valores de uso e que garanta suas condições materiais de existência, ao passo que constatamos que o mesmo depende de programas sociais do governo federal, como o seguro defeso, para custear suas necessidades vitais.

Recebido em: 16 de agosto de 2018. Aprovado em: 20 de setembro de 2018. Publicado em: 22 de novembro de 2018.

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MEMÓRIA E DOCUMENTOS


A “REPÚBLICA DOS GUARANIS” E OS SETE POVOS DAS MISSÕES DOS JESUÍTAS¹

Francisco José da Silveira Lobo Neto2


Documentos:


Carta do Padre Anton Seppi


“Há quase um ano que estávamos ocupados em formar a nova povoação [São João]. A igreja e as casas já estavam edificadas, e a colheita superara nossas esperanças. Achei que era o momento de transferir as mulheres e as crianças que eu retivera até então em São Miguel.

Era um espetáculo comovedor ver essa multidão de índias marchando pelos campos, carregando seus filhos aos ombros e os outros utensílios domésticos, que levavam nas mãos. Assim que chegaram, foram alojadas nas casas que lhes eram destinadas, onde cedo esqueceram suas antigas habitações e as fadigas que tinham experimentado para se mudarem para esta nova terra.

Já não (sic) se tratava de dar uma forma de governo a essa colônia nascente. Fez- se, portanto, a escolha daqueles que tinham mais autoridade e experiência para administrar a justiça. Outros foram encarregados da milícia, para defender a região das incursões que os povos do Brasil fazem de tempos em tempos. O resto do povo ocupou-se nas artes mecânicas”.


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1DOI: https://doi.org/10.22409/tn.16i31.p27383

2Doutor em Educação pela Universidade Federal Fluminense - UFF. Membro do Neddate. Professor da Escola Politécnica em Saúde Joaquim Venâncio da FIOCRUZ – EPSJV/FIOCRUZ

Relato de Charlevoixii


“Aí se aprendem a tocar todos os tipos de instrumentos cujo uso é permitido nas igrejas. (...) tiveram muito pouco trabalho para aprenderem a tocá-los como verdadeiros mestres. Aprenderam a cantar pelas notas as melodias mais difíceis, e somos quase tentados a crer que cantam por instinto, como as aves. (...) Saber cantar era considerado, de certo modo, como um dos primeiros deveres do cidadão.

(...) cita-se como instrumentos de orquestra o órgão, os violinos, violoncelos, contrabaixos, clarinetes, flautas, harpas, guitarras, violões, trombetas, trompas e tambores. Todos os instrumentos, de fabricação muito cuidada, saíam das oficinas dos guaranis.”


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Figura 1 - Indiozinho em frente às ruínas da Igreja de São Miguel. Autoria: Germano Schüür2


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2 Imagem retirada de banco de imagens de domínio público.

Trecho da Carta – escrita em guarani - da Municipalidade (Cabildo) de S. Luiz Gonzaga ao Marquês de Bucareli (Governador de Buenos Aires) em 28 de fevereiro de 1768iii


“Nós a municipalidade (Cabildo), e todos os caciques e índios, mulheres e crianças de S. Luiz, rogamos a Deus que tenha em Sua santa guarda Vossa Excelência, que é nosso pai. (...)

Cheios de confiança em Vossa Excelência vimos, com toda a humildade e de lágrimas nos olhos, suplicar que seja permitido aos filhos de Santo Inácio, aos padres da Companhia de Jesus, continuarem residindo entre nós e aqui permanecerem sempre. Pelo amor de Deus, suplicamos a Vossa Excelência que se digne pedir isso ao rei. (...)

... os filhos de Santo Inácio eram cheios de bondade por nós. Foram eles quem, desde o princípio, cuidaram de nossos pais, os instruíram, os batizaram e os salvaram para Deus e o rei. (...)

Os padres da Companhia de Jesus sabiam ser indulgentes com as nossas fraquezas e sentíamo-nos felizes sob a direção deles, pelo amor que dedicávamos a Deus e ao rei. (...) não somos escravos e queremos fazer ver que não nos agrada o costume espanhol que quer que cada um cuide de si, em lugar de se ajudarem mutuamente em seus trabalhos cotidianos.

Esta é a verdade nua e simples, e fazemo-la saber a Vossa Excelência, para que nela atente, senão esta Missão perder-se-á como as outras. (...) Os nossos filhos que estão atualmente nos campos e nas aldeias, se, no seu regresso, não mais encontrarem os filhos de Santo Inácio, fugirão para as florestas, para aí praticarem o mal. Ao que parece, já os povos de S. Joaquim, S. Estanislau e Timbó estão perdidos: nós bem o sabemos e o declaramos a Vossa Excelência. As próprias municipalidades já não são capazes de os fazer voltar sob a autoridade de Deus e do rei, como eles estavam antes. (...)

Eis o que vos declaramos, em nome do povo de S. Luís, hoje, 28 de fevereiro de 1768.

Vossos humildes servidores e filhos.


      1. Os membros do Cabildo da Missão de S.Luís.”

Contexto:


Há 250 anos e oito meses, “em nome do povo de S. Luís” – um dos aldeamentos, dentre os trinta, que formam a denominada “República dos Guaranis” e um dos sete povos das Missões Orientais da Companhia de Jesus, hoje situados no Rio Grande do Sul - os membros do “Cabildo” daquela municipalidade escreviam uma carta (Documento 3) ao Governador de Buenos Aires solicitando que os jesuítas continuassem a residir e permanecessem “para sempre” junto a eles. Caso contrário, o Rei e seus prepostos terão a não volta aos aldeamentos, a rebelião e retaliação.

Luis Felipe Baeta Neves (1978)iv já advertia, na conclusão de sua tese de doutorado em antropologia, que as dificuldades de se “estudar a ação da Companhia na efetiva ocupação do Brasil, porque muitos insistem em considerar que ou a Companhia era um ‘agente do colonialismo’ e estamos conversados, ou insistem em considerar que a Companhia ‘humanizou a colonização’, ou ficam com 200 anos de atraso, querendo saber se a Companhia queria fundar ou não ‘um império teocrático’ na America Latina”. E, prossegue Baêta Neves: “São todas estas questões congenitamente ligadas a uma ética moralista, não à história ou à antropologia”.


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A partir do momento em que os Padres Manuel da Nóbrega com seus companheiros, no Brasil do século XVI, assim como os missionários, enviados pelo Rei de Espanha, deslocando os guaranis da região do Rio Paranapanema para a região entre os Rios Paraguai, Paraná e Uruguai - no início do século XVII - sentiram a necessidade da criação de aldeamentosv de índios recém convertidos ao cristianismo. Assim, preservavam-nos tanto da ameaça da escravização, quanto do comportamento dos colonizadores pouco coerente com o código moral cristão.

O Padre Pierre Charlevoix (apud LEGON, 1977, pág. 32) recorda-nos que os Padres Simon Maceta e José Cataldino só aceitaram a Missão após “o bispo e o governador lhes conferirem plenos poderes para reunirem todos os cristãos em povoados, para os governarem sem qualquer dependência das cidades e fortalezas vizinhas dos lugares onde se estabelecessem, para construírem igrejas em todas as localidades e para se oporem, em nome do rei, a quem quisesse sujeitar os novos cristãos ao serviço pessoal dos espanhóis sob qualquer que fosse o pretexto”.

Um ano depois, em 1610, nascia a primeira “redução” de Nossa Senhora do Loreto, cuja população logo cresceu muito. Um dos caciques propôs, então, que se formasse uma outra redução: Santo Inácio-Mini. Ainda, em 1611/1612, organiza-se Santo Inácio-Guazu, sob a liderança do Padre Lorenzana, dizimada por uma doença contagiosa. Os poucos sobreviventes prosseguiram desenvolvendo-a e gerando novas filiais, assistidos pelo Padre Giffi, já que Lorenzana foi chamado a reassumir a direção do Colégio de Assunção.

Nesta primeira fase da evangelização da região ao sul da cidade de Assunção, marcada pelo Tratado de Tordesilhas como domínio espanhol e não português, os jesuítas europeus (espanhóis em maioria, mas também italianos, alemães, franceses) tiveram todo tipo de dificuldades. A primeira delas com os colonizadores - sejam eles colonos em suas estâncias, ou mandatários nomeados pelos Reis, bem como seus prepostos em vilas e fortalezas. Nem se deve esquecer que, no período de 1580 a 1640, a monarquia dual (um rei dois reinos) se estabelece na Península Ibérica, sendo proclamado Rei de Portugal, o Rei de Espanha Felipe II, em Portugal sob o nome de Felipe I. Assim os Felipe de Espanha III e IV, reinam também em Portugal como Felipe II e III.


Por um lado, a denominada União Ibérica propiciou a expansão do território brasileiro pelas “entradas” – expedições oficiais de exploração das terras a oeste do meridiano de Tordesilhasvi – e pelos “bandeirantes” que, sem o marco da formalidade oficial, iam em busca de ouro, prata, pedras preciosas e especiarias. Estes movimentos levaram os jesuítas a transferir suas missões da região do Paranapanema para as margens dos Rios Paraná, Paraguai e Uruguai (MIRANDA NETO, 2012, pág. 30)vii

Por outro lado, os inimigos da União Ibérica, percebendo o enfraquecimento das políticas portuguesas no ultramar, invadiram seus territórios nas Américas: franceses (em São Luiz do Maranhão) e, sobretudo os holandeses, que passaram quase ¼ de século dominando a Capitania de Pernambuco (1630-1654).

Em um segundo momento, já restaurada a monarquia portuguesa com o Duque de Bragança, proclamado Rei de Portugal como D. João IV, em 1640, os grandes ataques bandeirantes se encerraram com a Batalha Mbororé em 1641. Mas não cessaram as investidas dos paulistas, reduzindo à metadeviii o número de “reduções” e forçando sua migração para o oeste e o sulix.

Foram tão longe, os interesses do Império Português em estender o território brasileiro na direção do sul e do oeste, que determinou a D. Manuel Lobo, Governador da Capitania do Rio de Janeiro, montar uma expedição ao Rio de La Plata, com apoio dos comerciantes do Rio e de Santos, para garantir com uma fortificação os negócios com a América Espanhola. Em 22 de janeiro de 1680, em frente a Buenos Aires, os portugueses iniciam a Colônia do Santíssimo Sacramento, que consistia em uma fortaleza dotada de um porto.

Obviamente, o Governo de Espanha não se conformou. Colônia de Sacramento foi um pomo de discórdia, ora vinculada a Portugal, ora subordinada à Espanha. Com o Tratado de Madri, assinado em 13 de janeiro de 1750, foi devolvida definitivamente à soberania espanhola, sendo que passaram ao domínio português as sete “reduções” fundadas pelos jesuítas, juntamente com estâncias e terras “na margem oriental do rio Uruguai”, preservado o domínio hispânico nas “reduções” e terras na margem oeste do mesmo rio e na Bacia do Rio de La Plata.

Mas a fase de apogeu das “reduções”, começa justamente após a criação da Missão de San Francisco de Borja (hoje, São Borja, RS) em 1682 para aliviar a superpopulação da “redução” de San Thomé. Dois mil guaranis - homens, mulheres e crianças - cruzaram em balsas da margem ocidental para a oriental do rio Uruguai, formando o primeiro dos Sete Povos das Missõesx.

Seguem-se as criações das Missões: em 1687, de San Nicolás (a Nova, reconstruída sobre as ruínas da mais antiga, criada em 1626 e “abandonada há meio século pelos tapes”xi); de San Luís Gonzaga, referida acima no Documento 3; de San Miguel Arcangel. Em 1690, entre San Miguel e San Luís, a Missão de San Lorenzo. Sete anos depois (1697), para dividir a população de San Miguel (Documento 1), é criada a “redução” de San Juan Bautista. Finalmente, em 1706, é constituída a última Missão dos 7 povos, colocada sob a proteção de San Angel de La Guardia, para desafogar o excesso de população da “redução” de Concepción. Migraram para San Angel 737 famílias de tapes. O lugar desta “redução” foi escolhido, pelo Padre belga Diego de Haze, por ter abundância de “água, madeira e boas terras”xii.

A República Guarani sobreviveu, por pouco mais de século e meio, equilibrando sua autonomia entre duas metrópoles monárquicas. O segredo desta sobrevivência foi a estratégia jesuíta de criar conselhos eleitos ou “Cabildos”, já mencionados pelo Padre Mastrilli em 1626 e 1627. Lugon (1977, p. 89) nos diz que “toda administração prática se encontrava em suas [dos guaranis] mãos”. Os índios cuidavam da ordem em sua “redução” e tinham a iniciativa de tomar as providências necessárias e úteis ao bem comum. “Organizavam e dirigiam os trabalhos. Administravam os armazéns. Rendiam justiça”. As eleições ocorriam “nos últimos dias de dezembro ou no primeiro dia do ano” (ibidem). Um dos Missionários, exercia o cargo de Superior-Geral e visitava as “reduções” e escrevia as diretrizes para

manter “la uniformidad en todo, en todas las reduciones” (Regulamento de 1637, n. 5, apud LUGON, p. 91).

Os guaranis não se conformaram com o Tratado de Madri e resistiram às ordens de entregarem as reduções dos Sete Povos aos portugueses. Tanto o Rei de Espanha quanto o Rei de Portugal mobilizaram seus exércitos para vencer a resistência dos índios. No período entre 1753 e 1759, este confronto da união de tropas portuguesas e espanholas contra os guaranis dos Sete Povos, foi denominado “guerra guarani”. Tanto na Relação Abreviada da República dos Jesuítas e outras obras e panfletos espalhados pela Europa acusavam os jesuítas de desobediência ao poder monárquico, criando uma República autônoma em seu próprio benefício. Em 1759, os jesuítas são expulsos de Portugal, três anos depois banidos de França (1762) após oito anos, em 1767, do Reino de Espanha. Até que, em 1773, o Papa Clemente XIV os extingue.

Chegados à América Portuguesa e Espanhola no século XVI, atravessam o século XVII e mais da metade do século XVIII, evangelizando e educando fiéis para a Igreja Católica e súditos para os Reis de Portugal e de Espanha. Mas, sobretudo, criando uma pedagogia colonizadora, sim, mas quase sempre respeitosa das especificidades dos que denominavam de “gentios”. Mais que tudo, uma pedagogia que sabia respeitar o talento dos indígenas. Neste sentido, souberam defendê-los em aldeamentos, fizeram-nos capazes de exercer as artes e os ofícios que os Padres e Irmãos Coadjutores traziam da Europa. Uma pedagogia que – com seus defeitos e falhas, seus acertos e méritos – manifesta seus resultados nas ruínas, vestígios e documentos sobreviventes da devastação dos “civilizados”, testemunhos dos Sete Povos das Missões da República dos Guaranis. “Nenhuma outra região da América conheceu nos séculos XVII e XVIII uma prosperidade tão geral nem um desenvolvimento tão equilibrado e saudável” (LUGON, apud MIRANDA NETO, 2012, pág. 60).

Publicado em: 22 de novembro de 2018.

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i Lettres Édifiantes et Curieuses, tomo V, pág. 489. Revista Internacional da Companhia de Jesus. Lyon, 1819. In: LUGON, Clóvis. A República “Comunista” Cristã dos Guaranis: 1610-1768. 3ªed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977, p. 39.

ii CHARLEVOIX, Pierre François Xavier de. S.J. Histoire du Paraguay. 6vols. Paris, 1747, pág. 241- 242 e 257

iii Apud LUGON, Clóvis. A República “Comunista” Cristã dos Guaranis: 1610-1768. 3ªed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977, p. 307-309. O mesmo LUGON, ibidem, informa que “o texto em guarani foi publicado por Woodbine Parish, em Buenos Ayres et les provinces de la Plata, traduzido em francês por Martin de Moussy”.

iv Cfr. NEVES, Luis Felipe Baeta. O combate dos soldados de Cristo na terra dos papagaios: colonialismo e repressão cultural. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1978, p. 164.

v No caso da República Guarani o nome “reduções” foi utilizado para designar as aldeias, para acentuar o “fato de que elas estavam assim convertidas em “redutos” à margem do mundo colonial” (LUGON, op. cit, pág. 30, nota).

vi Assinado entre a Coroa de Portugal e a Coroa de Castela, em 1494. Assim é que constatamos que a região do Guayra (hoje, em parte grande do Estado do Paraná), pelo Tratado de Tordesilhas, eram terras castelhanas.

vii MIRANDA NETO, A utopia possível: missões jesuíticas em Guairá, Itatim e Tape, 1609-1767, e seu suporte econômico-ecológico. Brasília (DF): FUNDAG/MRE, 2012.


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viii LUGON, op. cit. pág. 65.

ix cfr. Idem, ibidem.

x ARAUJO, Rubem Vidal. Os jesuítas dos 7 povos. 4ª ed. Porto Alegre: Edições Renascença, distrib. Vozes, s/d (1ª. ed. Em 1998) pág. 245-306.

xi Idem, pág. 249. Os tapes são indígenas, próximos aos guaranis, que habitavam a região alta a oeste da Lagoa dos Patos, no Rio Grande do Sul.

xii idem, pág. 291-292.