\ O IV lntercrítica e as categorias fundantes do i
:' materialismo histórico-dialéticono século XXIJ
Universidade Federal Fluminense Faculdade de Educação
NEDDATE - NÚCLEO DE ESTUDOS, DOCUMENTAÇÃO E DADOS SOBRE TRABALHO E EDUCAÇÃO
REVISTA TRABALHO NECESSÁRIO: http://periodicos.uff.br/trabalhonecessario
Redação: R. Professor Waldemar Freitas Reis, s/n°, bloco D, sala 525, Gragoatá - São Domingos, Niterói - RJ, CEP 24210-201 - revistatrabalhonecessario@gmail.com
EDITORES
Lia Tiriba, Maria Cristina Paulo Rodrigues e José Luiz Cordeiro Antunes
CONSELHO EDITORIAL
Caridad Perez García (UCPEJV – Cuba), Celso Ferretti (UNISO - Brasil), Gaudêncio Frigotto (UFF/UERJ - Brasil), José Claudinei Lombardi (UNICAMP – Brasil), Maria Ciavatta (UFF - Brasil), Roberto Leher (UFRJ - Brasil), Tomás Rodrigues Villasante (UCM – Espanha), Sonia Maria Rummert (UFF - Brasil) e Virgínia Fontes (UFF/EPJV / Fiocruz - Brasil).
COMITÊ CIENTÍFICO
Alexandre Maia do Bomfim (IFRJ), Ana Margarida Campello (EPSJV/FIOCRUZ), Ana Motta (UFF), André Feitosa (EPSJV/FIOCRUZ), André Martins (UFJF), Andrea Araújo Vale (UFF), Anita Handfas (UFRJ), Angela Siqueira (UFF), Angela Tamberlini (UFF), Aparecida Tiradentes (EPSJV/FIOCRUZ, in memoriam), Claudio Fernandes da Costa (UFF), Célia Regina Vendramini (UFSC), Daniela Motta (UFJF), Dante Moura (IFRN), Deise Mancebo (UERJ), Domingos Leite Lima Filho (UTFPR), Dora Henrique da Costa (UFF), Edison Oyama (UFRR), Edson Caetano (UFMT), Eneida Oto Shiroma (UFSC), Eraldo Leme Batista (UNIVAS-MG), Eunice Trein (UFF), Eveline Algebaile (UERJ), Filippina Chinelli (EPSJV/FIOCRUZ), Flávio Anício (UFRRJ), Francisco José Lobo Neto (FIOCRUZ), Guadelupe Teresinha Bertussi (UNAM e UFSC), Hajime Nozaki (UFMS e UFJF), Henrique Tahan Novaes, Ivo Tonet (UFAL), Jacqueline Botelho (UFF), Jaqueline Ventura (UFF), João dos Reis da Silva Jr. (UFSCar), José dos Santos Souza (UFRRJ), José Luiz Cordeiro Antunes (UFF), Júlio Cesar França Lima (FIOCRUZ), Justino de Souza Junior (UFC), Kátia Lima (UFF), Laura Souza Fonseca (UFRGS), Lea Calvão (UFF), Lia Tiriba (UFF), Lígia Klein (UFPR), Luciana Requião (UFF), Marcelo Lima (UFES), Maria Clara Bueno Fischer (UFRGS), Maria Cristina Paulo Rodrigues (UFF), Maria Inês do Rego Monteiro Bomfim (UFF), Maria de Fátima Félix Rosar (UNICAMP), Marcia Alvarenga (UERJ), Mariléia Maria da Silva (UDESC), Marisa Brandão (CEFET-RJ), Marise Ramos (UERJ,FIOCRUZ), Marlene Ribeiro (UFRGS), Myriam Feldfeber (UBA - Argentina), Ney Luiz Teixeira Almeida (UERJ), Olinda Evangelista (UFSC), Ramon de Oliveira (UFPE), Raquel Varela (Universidade Nova de Lisboa - Portugal), Roberto Leher (UFRJ), Ronaldo Lima (UFPA), Rosilda Benacchio (UFF), Rui Canário (Universidade de Lisboa – Portugal), Sandra Maria Siqueira (UFBA), Sandra Morais (UNIRIO), Sérgio Lessa (UFAL), Sonia Maria Rummert (UFF), Susana Vasconcellos Jimenez (UFC), Tatiana Dahmer (UFF), Valdemar Sguissardi (UFSCar), Vania Motta (UFRJ) e Zuleide Silveira (UFF)
ORGANIZAÇÃO DA TN 32 (2019)
Dante Moura (IFRN) e Ramon de Oliveira (UFPE)
ASSISTENTES DE EDIÇÃO
Alexandre Costa dos Santos, Ana Clara da Silva Souza, Daniel Tiriba, Jean Pablo Silva de Lima, João Marcoyves Carvalho da Silva, Victor Hugo Raposo Ferreira e William Kennedy do Amaral Souza
FOTO DA CAPA
Reprodução do óleo sobre tela “ Il quarto stato”, de Giuseppe Pellizza da Volpedo, 1898-1902. Museo del Novecento, Milano (Itália); domínio público, acessado em 28 de fevereiro de 2019
MONTAGEM DA CAPA
João Carlos Pereira Vargas
Indexado por / Indexed by
Apoio:
Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoatá/SDC/UFF Bibliotecária: Mahira de Souza Prado CRB-7/6146
Brasil, chegou a vez de ouvir as Marias,
Mahins, Marielles e malês. (Estação Primeira de Mangueira, 2019)
Difícil escrever um editorial sintonizado com a conjuntura, principalmente quando se trata de refletir sobre o que, em 1967, Guy Debord (1997) denominou de “sociedade do espetáculo”. Escandalizado com a capacidade das sociedades modernas produzirem um arsenal de espetáculos que favorece “a inversão concreta da vida” (p.13), Debord afirma que a materialização da ideologia se manifesta como uma espécie de esquizofrenia, ou “um fato alucinatório social”. (p.139). Sem desconsiderar as bases materiais de produção social da existência, e, portanto, o diálogo com o materialismo histórico, e em especial com a Ideologia Alemã, de Marx e Engels, o autor assegura que “a ideologia é a base do pensamento de uma sociedade de classes, no curso conflitante da história” (p.137).
Para Guy Debord, o êxito da ideologia materializada em forma de espetáculo, se deve ao êxito da “produção econômica autonomizada” (p. 137). Afirma ser necessário “emancipar-se das bases materiais da verdade invertida, eis no que consiste a auto emancipação de nossa época” (p.141). Na verdade, na 221ª e última tese, Debord tenta nos livrar da posição de meros espectadores da sociedade do espetáculo, indicando-nos a importância de “realizar a ‘missão histórica de instaurar a verdade no mundo’” (p.141) e, portanto, de superar as determinações de homens e mulheres-de-negócio que cultuam o Deus Mercado e seus representantes no planeta Terra.
Crítico da sociedade de consumo, com discurso libertário e considerado por ele mesmo como ‘doutor em nada’, Debord faleceu em 1994. Se vivo estivesse, nos diria que, hoje, no Brasil e na América Latina incendeiam-nos milhares de notícias,
1 DOI: https://doi.org/10.22409/tn.17i32.p28299
revelações, fatos e fake news que se constituem como verdadeiros espetáculos legitimados “pela ditadura efetiva da ilusão” (p.137). Estendendo-se a todas as esferas da vida, “o espetáculo é a ideologia por excelência” (138), com capacidade de suprimir os “limites do verdadeiro e do falso”, graças ao “recalcamento de toda a verdade vivida, diante da presença real da falsidade garantida pela organização da aparência” (p. 140).
Para milhares e milhares de latino-americanos e outros tantos da população planetária que acessam televisores e as mídias sociais, fica difícil (mas não impossível) perceber a forma como tem sido tratado, por exemplo, o “caso Venezuela”, cuja população tem sido açoitada pelo boicote do império norte- americano, promovido por Donald Trump e seus asseclas, entre eles, Jair Bolsonaro que, em recente viagem a Washington, colocou a base de Alcântara a serviço dos EUA. Na verdade, a Constituição Brasileira de 1988 foi rasgada e, com ela o artigo 4º que afirma que as relações internacionais devem se pautar pelos princípios da soberania nacional, prevalência dos direitos humanos, autodeterminação dos povos, não-intervenção, igualdade entre os Estados, defesa da paz, solução pacífica dos conflitos, entre outros. E que, em seu parágrafo único, estabelece que o Brasil busque a integração econômica, política, social e cultural dos povos, visando a formação de uma comunidade latino-americana de nações.
Em Conspiração e estratégia, José Luís Fiori (2018) identifica quatro estratégias básicas utilizadas pelos Estados Unidos no sentido de intervir, de forma autoritária e com métodos rápidos e adequados, nos governos e regimes que lhe desagradem. A primeira, a mais antiga de todas, é intervir nos processos eleitorais. A novidade é que isto passou a ser feito com o desenvolvimento de técnicas eletrônicas que, adentrando nos domicílios privados dos cidadãos, corroboram para a manipulação do inconsciente coletivo, de maneira a criar uma “vontade eleitoral”. No Brasil, a eleição de Jair Bolsonaro não foi diferente! Uma segunda estratégia diz respeito aos tradicionais “golpes militares” não apenas no período da Guerra Fria, mas que persistem, quando necessário, como no caso da Turquia, em 2016 e, agora, na Venezuela. Uma terceira estratégia são as sanções monetário-financeiras, que se transformam em arma mortal, provocando a queda do valor da moeda e o estrangulamento das atividades econômicas do país alvo. Por fim, a quarta estratégia são as chamadas ‘guerras híbridas’, na qual se usa mais a informação do
que a força, capaz de produzir a desmoralização e a destruição da vontade política do adversário.
Podemos inferir que a compressão espaço-tempo, sinalizada por Harvey (1992), com a qual Guy Debord não conviveu plenamente, as redes/mídias sociais têm produzido o sentimento de que estamos bem informados e, ao mesmo tempo, pouco informados. A vida tem passado tão rápida que não sobra tempo para nos dar conta dos milhares de eventos que acontecem nos bastidores da política e da vida cotidiana de homens e mulheres da classe trabalhadora que, a cada dia, perdem os direitos sociais duramente conquistados. Sobre a Reforma Trabalhista (Lei nº 13.467/2017) e o projeto de Reforma da Previdência (PEC nº 6/2019), por exemplo, nosso atual presidente argumenta ser preciso escolher entre ter direitos e ter empregos (sic!).
Como parte da estratégia dos setores ultraconservadores, em nome da luta contra a corrupção e em nome de um Deus que está acima da Constituição e da laicidade do Estado, materializa-se na “sociedade do espetáculo” uma ideologia de cunho protofascista, necessária ao Estado de Exceção que se instalou depois da deposição da presidente Dilma Rousseff, em 2016 e da prisão de Luiz Inácio Lula da Silva, em 2018. Em março de 2019, assistimos à prisão e a soltura de Michel Temer, mesmo sabendo a justiça federal que o mesmo é chefe de quadrilha há mais de 40 anos.
Depois do vergonhoso episódio de Jesus na goiabeira, contado por Damares Alves, do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, tivemos o descalabro de ouvir de Iolene Lima, indicada para o MEC e demitida oito dias depois, que o ensino deverá ser baseado na palavra de Deus e que os componentes curriculares, em especial nos primeiros anos da educação básica, sigam a perspectiva do criacionismo, em detrimento da ciência. “O aluno vai aprender que o autor da História é Deus, o realizador da Geografia é Deus. Deus fez as planícies, o relevo, o clima. O primeiro matemático foi Deus” (Mariana Haubert, 22/03/19).
Mas não é só: há que se lembrar da triste ideia do Ministro da Educação, de espetacularizar imagens de crianças cantando o hino nacional, perfilados em frente à bandeira nacional, como parte “da política de incentivo à valorização dos símbolos nacionais”, em estilo militarizado, de maneira a cultuar e inculcar a ideologia fascista, assim como a continência de Bolsonaro à bandeira americana, a influência dos
militares e dos evangélicos em todas as esferas da administração pública. Todas estas ações fazem parte do espetáculo injusto e desumano de uma sociedade cujos dirigentes querem aprofundar as políticas neoliberais à custa da exploração sobremaneira dos seres humanos e da natureza.
Entre um espetáculo e outro, é (im)possível não perceber a delonga do processo de investigação da morte de Marielle Franco, cruelmente executada no dia 14 de março de 2018, junto com o motorista Anderson Gomes. Depois de presos os acusados da matança da vereadora do PSOL/RJ, fica a pergunta: afinal, quem mandou matar Marielle?
A vida passa! O carnaval/2019 passou! No espetaculoso desfile no Sambódromo chamou a atenção nacional e internacional o samba da Estação Primeira de Mangueira, vencedora do grupo especial da Liga das Escolas de Samba do Rio de Janeiro - Liesa. Mais que nunca, é hora de “tirar a poeira dos porões”, assim dizia o samba-enredo “Histórias para ninar gente grande”, cujo desfile terminou com o sorriso de Marielle estampado em uma enorme bandeira verde e rosa.
Além da história de Marielle, “é hora de contar a história que a história não conta”, a história de tamoios, mulatos, de mulheres negras guerreiras como Dandara dos Palmares e Luiza Mahin, ou como os Malês que lutaram por liberdade, - liberdade esta que “não veio do céu nem das mãos de Isabel”. De fato, “tem sangue retinto pisado, atrás do herói emoldurado”, pois como sabemos, a história oficial não conta, “desde 1500 tem mais invasão do que descobrimento”, e de fato, para a história oficial não são reconhecidos/as quem são os sujeitos que fazem a história. Sujeitos encarnados, datados e situados no mundo. Estas são algumas das denúncias e dos possíveis anúncios da Estação Primeira de Mangueira, para o contexto atual que vivemos.
Um belo espetáculo! Da Avenida Marquês de Sapucaí, no “abre alas para seus heróis de barracão”, o tributo à Marielle Franco repercutiu no mundo inteiro. É “na luta que a gente se encontra”; assim, mais que nunca “chegou a vez de ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês”. São “verde e rosa as multidões”! Também são azul e branco, amarelo e preto, vermelho e branco e de todas as cores das escolas de samba e dos blocos carnavalescos do Brasil.
Para desvelar o “avesso do mesmo lugar” na sua totalidade, precisamos compreender a “sociedade do espetáculo” na perspectiva de Guy Debord e, como indicam Pierre Dardot e Christian Laval (2016), considerar “a nova razão do mundo” que se plasma na sociedade neoliberal. Nos movimentos do real, captar a existência de outros “espetáculos” que a vida contraditoriamente nos oferece. Espetáculos coletivamente produzidos por homens e mulheres que lutam por processos de emancipação humana fundados na reprodução ampliada da vida, e não do capital.
Neste delicado momento histórico em que vivemos, nada mais oportuno do que trazer aos leitores da Revista Trabalho Necessário, um número temático dedicado à análise da pertinência das categorias fundantes do materialismo histórico dialético no século XXI. Em que medida os ensinamentos de Marx e da teoria marxista são capazes de nos ajudar a compreender e transformar o mundo? Organizado pelos Profs. Drs. Dante Moura (IFRN) e Ramon de Oliveira (UFPE), a TN 32 traz o debate ocorrido no IV Intercrítica, realizado em novembro de 2018, além de outras importantes contribuições do pensamento crítico em relação ao mundo do trabalho, à formação humana e as relações históricas entre trabalho e educação, conforme anuncia a linha editorial de nossa revista.
Boa leitura!
Os editores
DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo. Ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.
DEBORD, Guy. Sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
FIORI, José Luiz. Conspiração e estratégia. Sul 21, publicado em 22/02/2019. https://www.sul21.com.br/opiniaopublica/2019/02/conspiracao-e-estrategia-por-jose- luis-fiori/
HARVEY, David. A condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança na cultura. São Paulo: Edições Loyola, 1992.
HAUBERT, Mariana. Sem nem assumir, nova n° 2 diz que deixa MEC em meio à crise. https.//educação.uol.com.br/notícias/2019/03/22. Acessado em 24/03/2019.
Publicada em: 28 de maio de 2019.
Dante Henrique Moura2 Ramon de Oliveira3
Este número temático da Revista TrabalhoNecessário, com o título As categorias fundantes do materialismo histórico-dialético no século XXI, reúne trabalhos que discutem aspectos centrais do método no atual contexto social, cultural, político e econômico a partir das pesquisas apresentadas e debatidas nas conferências e mesas temáticas realizadas durante o IV INTERCRÍTICA - Intercâmbio Nacional dos Núcleos de Pesquisa em Trabalho e Educação. Reúne também trabalhos das demais seções da Revista, a saber: Ensaio; Artigos de Demanda Contínua; Teses e Dissertações e Memória e Documentos.
O IV INTERCRÍTICA foi realizado pelo GT Trabalho e Educação da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação (GT 09 da ANPEd) e pelo Núcleo de Pesquisa em Educação (NUPED/IFRN), em colaboração com o Programa de Pós-graduação em Educação Profissional (PPGEP) do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte (IFRN), de 26 a 28 de novembro de 2018, no Campus Natal Central do IFRN, em Natal/RN.
As mudanças no mundo do trabalho, a discussão de políticas educacionais e seus vínculos com a organização e formação da classe trabalhadora, além do grande volume da produção acadêmica na área, as quais necessitam a permanente
1 DOI: https://doi.org/10.22409/tn.17i32.p28300
2 Doutor em Educação pela Universidade Complutense de Madri. Professor do IFRN e Professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGEP) na UFRN na linha de pesquisa educação, política e práxis educativas. Coordenador do GT 09 - Trabalho e Educação da ANPEd. E- mail: dantemoura2014@gmail.
interlocução e debate entre pesquisadores e núcleos de pesquisa integrantes do GT 09 da ANPEd, justificam a necessidade e importância da manutenção desse espaço de reflexão e crítica.
Diante disso, a temática central do IV INTERCRÍTICA deste número da Revista TrabalhoNecessário foi definida a partir dos seguintes elementos: indicações e resoluções do III INTERCRÍTICA, realizado em Curitiba, na UTFPR, em 2016; crescimento do número de núcleos de pesquisa em trabalho e educação, os quais constituem um amplo coletivo que vem desenvolvendo pesquisas e produzindo, regularmente, artigos, livros, monografias, dissertações de mestrado, teses de doutorado; discussões realizadas no GT 09 – Trabalho e Educação, durante a 38ª Reunião Nacional da Anped, realizada em São Luís, na UFMA, em 2017, cujo trabalho encomendado, de autoria da pesquisadora Helena Hirata, tratou da temática “Gênero, classe e raça. Interseccionalidade e consubstancialidade das relações sociais”.
Os conceitos de Interseccionalidade e consubstancialidade se aproximam, mas têm especificidades. Em linhas gerais, a exposição de Helena Hirata na Anped/2017 nos esclarece que a Interseccionalidade, segundo Sirma Bilge, questiona a hierarquização do conceito de classe em relação a várias outras categorias como sexo/gênero, raça, etnicidade, idade, deficiência e orientação sexual. Já a consubstancialidade também questiona a hierarquização da categoria classe, mas apenas em relação a gênero e raça, a partir de Danièle Kergoat. Hirata enfatiza que a crítica de Kergoat ao conceito de Interseccionalidade se dá devido à existência de uma multiplicidade de categorias que contribuem para mascarar as relações sociais, colocando em jogo o par gênero-raça e deixando em um plano menos ou pouco visível a categoria classe social. Enquanto isso, para Danièle Kergoat (consubstancialidade), existem três relações sociais fundamentais que se imbricam, e são transversais, o gênero, a classe e a raça.
Essa é uma discussão teórica complexa, polêmica e que não pode ser negligenciada no âmbito do materialismo histórico-dialético, pois, se por um lado, o real está sempre em movimento de modo a não se poder negar a emergência dessas questões que fazem parte da totalidade na qual se insere a vida humana e, em consequência, a luta de classes, interpelando os conceitos constantemente, por outro lado, tampouco se pode correr o risco de uma postura relativista típica do pensamento pós-moderno.
A partir dessa problematização se chegou ao tema central do IV INTERCRÍTICA, já anunciado, As categorias fundantes do materialismo histórico-dialético no século XXI, a partir do qual foram estruturadas três subtemáticas.
A primeira foi a relação entre a categoria classes sociais e as categorias gênero, raça, etnia e geração; a segunda relacionou-se com a apropriação e utilização das categorias do método na análise das articulações neoliberais- neoconservadores face ao recrudescimento do autoritarismo no Brasil, considerando manifestações desse fenômeno as discussões atuais sobre “escola sem partido”, “lei da mordaça”, entre outras; a terceira foi a análise prospectiva sobre a luta de classes e as perspectivas sociais, políticas e econômicas para a sociedade brasileira.
Feita essa apresentação mais geral e a contextualização teórica na qual se insere este número 32 da Revista TrabalhoNecessário, passa-se à apresentação dos artigos que compõem as seções da revista.
O texto de Emir Sader, abrindo a seção Artigos do Número Temático, avalia a atual conjuntura política brasileira e se configura como um instrumental fundamental para melhor compreendermos os movimentos de retrocesso que estão sendo materializados na educação da classe trabalhadora brasileira. Mais que um texto politicamente comprometido em denunciar as estratégias que as elites brasileiras utilizam em prol do retrocesso das conquistas nos campos social e político nos governos encabeçados pelo Partido dos Trabalhadores (PT), a exposição de Emir Sader contribui para entendermos os retrocessos educacionais que as forças políticas reunidas em torno do Governo Temer e do governo Bolsonaro tentam emplacar. O retrocesso produzido pela reforma do Ensino Médio, a perseguição aos professores divergentes da ideologia neoconservadora, suscitada pelo Movimento Escola Sem Partido e todos os atos que têm se configurado como desmanche da educação pública, inclusive as instituições federais de ensino superior, podem ser melhor compreendidos como parte de um movimento maior, o qual teve como uma de suas expressões a estratégia híbrida de concretização de um golpe na democracia brasileira. O impeachment da Presidente Dilma e a prisão do ex Presidente Lula nos faz levar a considerar, a partir do artigo de Emir Sader, o quanto as elites brasileiras recorrem, cada vez mais, a estratégias escabrosas para assegurar os interesses do grande capital.
Em O método: categorias fundantes no século XXI, um texto que atendeu diretamente aos objetivos do IV Intercrítica, melhor dizendo, a anseios dos membros do GT Trabalho e Educação, Mauro Iasi se colocou diante do desafio de discutir se as categorias e os conceitos fundamentais do pensamento marxista, ainda têm validade para o entendimento dos tempos atuais e para subsidiar os enfrentamentos postos à classe trabalhadora. O autor argumenta que para se avaliar a pertinência de uma teoria para pensar um tempo histórico, demanda-se que as categorias e conceitos que a estruturam devam estar em permanente movimento de reelaboração, de revisão. Logo, não se pode pensar as categorias marxianas como imunes ou inertes ao tempo e, por conseguinte sem necessidade de revisão e atualização. O tempo impõe a reconstrução das categoriais, não como apenas um movimento de superação pela negação de sua validade, mas pela própria razão de reafirmação do método, da necessidade de diálogo com o real, de forma a ainda poder contribuir para as práticas de transformação desta realidade. Os conceitos são “realidades vivas” que se reconstroem em função da historicidade das relações sociais. Assim, aos marxistas se impõe o desafio de não só afirmar a validade dos conceitos, mas de reafirmar sua validade pelo diálogo com a realidade estruturada pelo atual estágio das relações capitalistas de produção. Só assim o legado marxiano pode manter seu poder de análise e de subsídio à organização das classes trabalhadoras.
Silvana Morais em seu artigo Luta de classes e a questão da diversidade humana: debate atual e perspectivas político-teóricas explicita o quanto é impertinente, no campo do materialismo histórico, não eleger como ponto de pauta do debate atual as lutas travadas pelos movimentos sociais estruturados em torno da afirmação e do respeito às diversidades, sejam elas relativas à juventude, aos indígenas, às questões raciais, às pautas LGBT etc. Seu texto é uma crítica ao economicismo e ao politicismo, uma vez que ambos deixam de considerar a totalidade quando articulam o debate das classes sociais ao debate dos desafios que estão postos para os diversos grupos sociais que objetivam a afirmação de outras conquistas, não imediatamente relacionadas com o movimento de exploração estabelecido pela lógica do capital. Sua discussão, rica e profícua, afirma o quanto o legado marxista é capaz de ampliar e ampliar-se diante do enfrentamento das questões relativas às lutas pela afirmação das diversidades, principalmente em uma conjuntura na qual se reafirmam práticas de silenciamento das diversidades e de
sua subjugação aos interesses do grande capital. Este texto chama a atenção para o quanto precisamos nos mobilizar epistemológica e politicamente para o entendimento dos desafios postos ao fortalecimento das lutas pelos diversos movimentos sociais. As reflexões trazidas pela autora destacam ser na vivência, enquanto condição de classe, que os indivíduos experimentam práticas de extravio e/ou empobrecimento da sua diversidade.
Cultura autoritária, ultraconservadorismo, fundamentalismo religioso e o controle ideológico da educação básica pública é o título do texto estruturado em meio à perplexidade e indignação com as práticas golpistas instauradas recentemente na república brasileira, de autoria de Gaudêncio Frigotto e Sonia Maria Ferreira. Nele, os autores retomam algumas de suas análises recentes, as quais evidenciaram o quanto as marcas das desigualdades que assolam a sociedade brasileira são fortalecidas com o projeto dual de educação que as elites brasileiras persistem em retomar para a juventude trabalhadora. Para eles, as expressões do neoconservadorismo devem ser compreendidas não só como expressões do tempo presente, mas como continuidades de um projeto societal que historicamente as elites buscam por em prática, cujas marcas centrais são a exclusão, a desigualdade, a falta de democracia e o desrespeito às diversidades. A “denúncia” que os autores realizam ao controle ideológico da educação básica pública é também uma argumentação em prol da tomada de consciência do quanto os discursos veiculados pelos “novos agentes do reacionarismo” visam retroagir as conquistas efetivadas no campo dos direitos sociais, políticos e econômicos, tal qual já apontado por Emir Sader no artigo que abre esta revista. Mas não só isso. São também mecanismos estruturados a partir de um discurso moralizante em defesa da família e da moral cristã que se inscrevem como estratégias de mercantilização da educação como passo importante no sentido de ampliar as taxas de acumulação do capital.
Os professores Celso Ferretti e Mônica Ribeiro no texto Dos embates por hegemonia e a resistência no contexto da reforma do Ensino Médio evidenciam o quanto as políticas educacionais de cunho neoliberal se fortalecem pela articulação entre o Estado brasileiro e os setores atrelados ao empresariado. Argumentam que a intervenção destes agentes não tem se limitado apenas às proposições de políticas. Eles são agentes ativos e protagonistas na constituição da legislação educacional. Enfatizando mais especificamente a recente reforma do Ensino médio
(Lei 13415/17) deixam claro o quanto os movimentos reformistas concretizam práticas reais de privatização da educação e a subsunção do processo formativo aos interesses do capital. Para eles, o processo de hegemonia neoliberal não é um fenômeno recente e tem sido vitorioso ao configurar um senso comum no qual os projetos formativos, marcadamente estruturados pelo empobrecimento da formação escolar, são aqueles que interessam à classe trabalhadora. Neste sentido, o texto é um instrumento de reafirmação de resistência, não só à recente reforma do Ensino Médio, mas a todo economicismo e empresariamento que vem direcionando a educação brasileira. Os autores destacam que se a crítica e a denúncia dos retrocessos têm se mostrado indispensável, também se faz necessário construir outros mecanismos de enfrentamento e defendem uma maior interlocução dos grupos de resistência com os sujeitos e instâncias responsáveis pela concretização no “chão da escola” do projeto formativo. Tal proximidade e interlocução deve, entre outros objetivos, reafirmar o Ensino Médio Integrado como projeto formativo e como prática concreta de enfrentamento à hegemonia neoliberal.
Em seu texto Trabalho-Educação – uma unidade epistemológica, histórica e conceitual, a professora Maria Ciavatta reflete sobre os termos “trabalho” e “educação”, apontando que ambos têm se configurado como campos específicos de pesquisa. A partir desta constatação e considerando o materialismo histórico dialético como perspectiva epistemológica, tece argumentações em torno da unidade dos termos Trabalho e Educação. Ciavatta rejeita a perspectiva de exterioridade entre os termos e afasta-se da leitura segundo a qual o papel da educação é a preparação para o trabalho, a qual implica uma determinação do trabalho por sobre a educação. Busca no diálogo com o marxismo argumentar em defesa da importância de considerar Trabalho-Educação como categoria geral de entendimento da realidade. O movimento estabelecido ao longo do texto, inclusive considerando como no interior da ANPEd a “relação” trabalho e educação ou educação e trabalho foi se constituindo e definindo um campo epistemológico, é um das contribuições deste texto para afirmar sua unidade semântica com sentido epistemológico, histórico e educacional.
Fechando a seção Artigos do Número Temático são apresentados os resultados de uma investigação que mapeou os grupos de pesquisas que têm a temática e as relações Trabalho e Educação como alvo central de sua atenção. Domingos Lima Filho, Eneida Shiroma e Mariléia Silva apresentam um levantamento
do que se produziu no intuito de caracterizar o GT 09 da ANPED – Trabalho e Educação, desde sua criação em 1991 na 4ª reunião da ANPED. Entre os resultados a serem destacados ressalta-se o quanto os grupos de pesquisa mantêm o materialismo histórico dialético como fundamentação teórico-metodológica, bem como Marx e autores marxistas como suas principais referências. Um dos achados que merece destaque diz respeito ao quanto as parcerias e vínculos dos grupos de pesquisa têm se modificado, principalmente no referente às parcerias e vinculação com os movimentos sindicais. Também é digno de destaque que, embora muito se fale da crise do referencial marxiano e da crise do trabalho, tem aumentado os grupos de pesquisa em Trabalho e Educação.
Na seção Ensaio, em A ‘mão feliz’ e a ‘mão infeliz’ de trabalho, Percival Tavares Silva se propõe a provocar uma discussão a respeito da existência de possíveis interfaces entre Gaston Bachelard e Karl Marx. Visitando categorias fundamentais do pensamento marxiano, o autor “encontra” diversas aproximações, entre as quais se destacam a visão comum entre Marx e Bachelard sobre a negatividade do trabalho na sociedade capitalista, particularmente no referente ao quanto ele produz a alienação do sujeito. Destaca-se também o conceito de práxis como elemento de proximidade, na medida em que ambos, de alguma forma, mobilizaram-se pelo interesse de mudar a realidade, de emancipar os indivíduos. Estes são alguns dos achados que o texto nos proporciona, mas sua riqueza também se expressa pela forma de buscar estas aproximações. O texto é uma excelente expressão de como forma e conteúdo não se separam.
Na seção Artigos de Demanda Contínua, como contribuição internacional, no artigo A resistência do trabalho, no período da ascensão do capitalismo no Algarve (Portugal): breve bosquejo a partir de uma perspectiva do materialismo histórico, Helder Faustino Raimundo analisa o processo de materialização e crescimento das relações capitalistas, tanto no aspecto industrial, quanto financeiro em Portugal, particularmente no Algarve. Sua interpretação é que este movimento se estabeleceu num quadro de permanentes e crescentes expressões da luta de classes. Desta forma, o texto se constitui como um contributo para melhor visualização e análise de como se expressaram diversos movimentos de resistência, os quais, na prática, foram formas diversificadas de materialização da luta de classes.
Bruno Gawryszewski, Guilherme Marques e Fernanda Lavouras no artigo Uma análise das possíveis interseções entre a base econômica do Rio de Janeiro e a oferta de educação profissional nos relatam os resultados de uma investigação realizada no estado do Rio de Janeiro, a qual teve como objetivo analisar a relação entre economia e educação, tendo como um dos parâmetros de análise a oferta de educação profissional. O artigo é bem ilustrativo no que se refere ao mapeamento das instituições responsáveis pela oferta da educação profissional, bem como à oferta de cursos. Considera-se o cenário da economia fluminense, o qual no momento atual apresenta uma expressiva dramaticidade. O artigo nos permite visualizar o que se oferta como proposta formativa para os setores mais populares da sociedade. Entre os achados da investigação destacam-se: a privatização da oferta de educação profissional, a pouca diversidade na oferta e a concentração desta nos cursos de qualificação profissional. Ou seja, os resultados evidenciam o quanto a formação pensada para os trabalhadores tem pouca complexidade e é empobrecida, tanto no que se refere ao tempo de realização, quanto ao conteúdo disponível. Os achados da pesquisa revelam que, embora tenha havido o crescimento da oferta de educação profissional, esta ainda é submissa aos interesses do capital e pouco contribui para práticas de emancipação ou de verdadeira mobilidade social, tal qual apregoam os defensores da teoria do capital humano.
Tendo como eixo central de análise o pensamento marxiano, mais especificamente a análise da categoria trabalho, Tatiana Ribeiro, em seu artigo A formação do trabalhador na sociedade capitalista, aprofunda o debate sobre a possibilidade da formação do trabalhador numa perspectiva dialética, ainda nos marcos do capitalismo. Tal possibilidade, segundo a autora, decorre do fato de o atual desenvolvimento tecnológico e as mudanças ocorridas na forma de produção de mercadorias terem levado o capital a organizar novas formas de gestão do trabalho que levaram os trabalhadores a assumirem diversas atividades, inclusive mais complexas, no ambiente de trabalho. Estas mudanças, embora não marquem o fim, apontam para o distanciamento com a lógica repetitiva do taylorismo-fordismo. Mesmo sem desconhecer que o trabalho capitalista ainda se configure como alienante e que, cada vez mais, haja o interesse do capital em tornar a força de trabalho submissa aos seus interesses de acumulação, Tatiana procura explicitar que, contraditoriamente, demanda-se ao trabalhador uma formação mais complexa,
abrindo-se a possibilidade de desenvolvimento de práticas formativas em sentido contrário aos anseios do capital na direção da emancipação da classe trabalhadora. Em síntese, para ela os obstáculos existentes na sociedade regida pelo capital não impedem a construção de projetos de formação humana vinculados ao objetivo de conscientização política, necessária à luta de classes.
Na seção Teses e Dissertações são apresentados os resultados de 3 produções acadêmicas. A primeira é a tese de doutorado de Ricardo Cavalcante Morais intitulada Trabalho, educação e regulação jurídica: formas contraditórias de subsunção do trabalho “informal ao capital. A pesquisa desenvolvida em Imperatriz (Maranhão) indica que no regime de acumulação flexível generalizam-se formas de subsunção real ao capital. Por serem diversas as relações entre trabalho e capital, mediadas pela regulação jurídica, também são diversos os nexos trabalho- educação. A segunda é a tese de José Nildo Alves Caú, intitulada A Juventude do Curso Técnico Integrado em Agropecuária do IFPE: Desejos, expectativas e experiências vivenciadas para construção dos seus projetos de vidas. Em seu trabalho, o autor procura desvelar quem são e como vivem os jovens que frequentam o Curso Técnico Integrado em Agropecuária, estabelecendo as relações com os motivos e as influências que determinaram sua escolha, e a articulação com a construção do seu projeto de vida. De Bruno Allysson Soares Rodrigues, a terceira produção, apresentamos a sua dissertação de mestrado, O Pisa e o problema da negação do conhecimento: uma crítica marxista ao discurso da Educação para a cidadania global, na qual o autor procura demonstrar a influência do capital internacional nas reformas da educação dos países periféricos, evidenciando, a partir de relatórios emitidos pela OCDE, as contradições de seu conteúdo ideológico. Finalmente, na seção Memória e Documentos apresentamos o registro- resgate histórico denominado de Memória, Educação e Resistência na Bahia: a Comissão Milton Santos de Memória e de Verdade, de autoria de Lívia Diana Magalhães e Daniela Moura de Souza. As autoras dão destaque à formação da referida comissão na UFBA, em 2013, constituída com a participação de docentes, discentes e servidores técnico-administrativos, com a finalidade de catalogar, analisar documentos e ouvir depoimentos em relação à violação de direitos da comunidade acadêmica durante o período da ditadura civil-militar, instaurada no país
a partir de 1964.
Como organizadores deste número da Revista TrabalhoNecessário, gostaríamos de registrar o prazer em apresentar aos leitores e leitoras da TN os trabalhos aqui reunidos. Revisitar e contextualizar as categorias fundantes do materialismo histórico-dialético no século XXI é, sem dúvida, um permanente desafio para os pesquisadores não apenas do campo Trabalho e Educação, mas também para os pesquisadores e outros estudiosos das ciências humanas e ciências sociais.
Como explicita a linha editorial da Revista TN, o trabalho será sempre necessário. Esperando ter contribuído para o debate acerca dos aspectos centrais do método da economia política no atual contexto social, cultural, político e econômico em que vivemos, desejamos que os leitores e leitoras apreciem nosso trabalho.
Publicada em: 28 de maio de 2019.
v.17, nº 32, jan-abr (2019) ISSN: 1808-799 X
Emir Sader2
Boa tarde! Obrigado pelo convite! Eu sou um professor como vocês. Desde o terceiro ano do meu curso de Filosofia na USP eu dou aula sempre em escola pública, sempre com concurso, com muito orgulho e com muito amor.
É a primeira conferência que eu faço depois do resultado eleitoral. As coisas mudaram. E mudaram para pior. Nós temos que entender o tamanho da derrota, as contradições da situação e o novo cenário que nós temos pela frente. Inquestionavelmente, é uma derrota da esquerda, do campo popular, da educação pública e dos trabalhadores porque eles derrubaram a Dilma, condenaram e prenderam o Lula e ganharam a eleição. Não é pouco. O que nós tínhamos há quatro anos atrás era uma quarta vitória eleitoral de um programa que diminuiu fortemente a desigualdade no país, país que era conhecido como o mais desigual do continente mais desigual. Um país no qual a gente passou a ter orgulho de viver, um país que a gente tinha presidentes que eram respeitados mundo afora. E agora, nós temos uma coisa dramática sobre a qual nós ainda estamos pensando o que exatamente vai ser. Eu escrevi um artigo, outro dia, intitulado “Que Brasil vai ser esse?”. É difícil saber, mas vamos fazer um pouco de análise para saber o tamanho do enfrentamento.
1 Conferência proferida no IV Intercrítica (Intercâmbio Nacional dos Núcleos de Pesquisa em Trabalho e Educação), realizado entre 26 e 28 de novembro de 2018, no campus central do IFRN, em Natal/RN.
2 Emir Sader, formado em filosofia pela USP, com mestrado em Filosofia e doutorado em Ciência Política, ambos pela Universidade de São Paulo (USP), por onde se aposentou como professor de sociologia. Atualmente, dirige o LPP (Laboratório de Politicas Publicas) da UERJ.
Nós vivemos, em 2014, a mais profunda e prolongada crise da história do Brasil. Não só pela reação da direita, mas porque ali estavam as raízes do que aconteceu depois. A gente podia ir muito atrás se quisesse, em 2013 e tudo mais, mas vamos tomar as eleições de 2014, que foram dramáticas, em que o Nordeste salvou o Brasil de uma derrota do projeto popular. Vamos recordar que a Dilma ganhou por uma diferença exígua de 3% mais ou menos, tendo feito um governo muito bom do ponto de vista das políticas sociais. Praticamente todo o programa Minha Casa Minha Vida foi do primeiro mandato da Dilma. O extraordinário programa Mais Médicos foi do primeiro mandato da Dilma. A continuidade do Bolsa família, de uma rede de proteção às pessoas mais desamparadas veio, em grande parte, do primeiro governo da Dilma. Houve problemas, houve erros e eu diria, se fosse localizar um erro maior, foi o silêncio. O Lula falava, o Lula argumentava, o Lula comentava, o Lula criticava, isso é fundamental. Foi um erro imaginar que a gente fazendo boas políticas sociais ganha a consciência das pessoas, porque entre as medidas e a consciência está a interferência dos meios de comunicação.
Para resumir, o resultado final, no centro-sul e no sul do Brasil, nós perdemos de dois terços a um terço. Nós ganhamos no Nordeste e no norte de Minas (que é uma espécie de Nordeste) com mais de 70% de votos e daí foi possível nossa vitória. Isso quer dizer que um candidato como o Aécio teve 52 ou 53 milhões de votos, dos quais, provavelmente, 30 milhões é de beneficiários das nossas políticas sociais, certamente camadas populares. Então, no sul e no centro-sul, nós perdemos a maioria da população trabalhadora, da população pobre, para um candidato de direita que não tinha o que dizer e não tinha proposta a fazer. Prometia que manteria as propostas sociais dos governos do PT, mas seus gurus econômicos diziam exatamente o contrário. Então, foi uma situação dramática, uma situação em que nós ganhamos por pouco e aí está o problema do Brasil e de outros países que tiveram governos progressistas ou ainda têm: perdemos uma parte dos beneficiários das nossas políticas. Vocês conhecem os argumentos, os argumentos não eram que sua vida melhorou porque mudou o governo e o governo dá prioridade às políticas sociais. Os argumentos eram “eu me esforcei”, “Deus me ajudou”, como se ele fosse
preguiçoso nos anos 90 e como se Deus não estivesse de plantão nos anos 90. Em suma, se deixaram levar por esses argumentos.
A disputa fundamental da agenda nacional nós conseguimos ganhar em 2002 e depois sucessivamente, quando convencemos a maioria da população que o problema principal do Brasil é a desigualdade social. É a fome, a miséria e a exclusão social. Priorizando as políticas sociais nós ganhamos a maioria da população. O Lula chegou ao final do seu segundo governo tendo 80% de referências negativas na mídia e saiu com apoio de 87% porque convenceu a grande maioria do país que a prioridade no Brasil é a democratização social.
Nós tínhamos democratização política quando saímos da ditadura, mas nunca tivemos democratização social. Tivemos durante 12, 13 anos. E essa foi a grande transformação que houve naquele período. Ao longo do primeiro governo da Dilma nós fomos perdendo a centralidade da questão social na cabeça das pessoas. Inclusive, porque a Dilma pretendeu, corretamente, diminuir a taxa de juros ao nível internacional para não atrair capitais especulativos e ela foi vítima de uma brutal campanha da qual as mobilizações 2013, olhando retrospectivamente, fazem parte. Aí começou a desqualificação da política, pois quando se falava “contra tudo isso que está aí”, era contra o PT. Quando se falava “o gigante despertou”, negava que tinha havido 10 anos de melhoria das condições de vida da massa da população. Então, na verdade, houve uma instrumentalização daquelas manifestações que começaram a reverter a agenda nacional. Até aquele momento, inclusive, a imagem do Brasil no mundo é extraordinariamente positiva. O Lula era mais conhecido do que o Pelé, coisas formidáveis como imagem no mundo. A partir daquele momento começou a mudar porque não era só contra a política, era a desqualificação do Estado, por corrupção do PT. O PT como partido corrupto. A centralidade deixou de estar na questão social e foi deslocada para a questão da corrupção - o problema fundamental do Brasil seria a corrupção e a operação Lava Jato veio consolidar e cristalizar isso. Foi se criando o clima que levou ao Golpe que derrubou a Dilma.
Não vamos entrar em mais detalhes, mas obviamente houve erros graves no começo do segundo mandato da Dilma, especialmente o ajuste fiscal que ela tentou colocar em prática. Errado, equivocado e socialmente injusto, porque recaía só sobre os trabalhadores e sem penalização das grandes fortunas, das heranças, nada disso. Foi economicamente ruim porque quanto mais se corta, mais aumenta a
recessão. E politicamente desastroso porque ela tinha ganho com um pouco mais de 50% e de repente baixou sua popularidade para 8% ou 10%, mesmo nos estados do nordeste.
Então, aí se consolidou um clima que a direita aproveitou para criar um cenário de instabilidade política, social e econômica no Brasil, com a ideia de que o Brasil estava em uma situação econômica crítica, com a ideia de que o Brasil estava dominado por um clima de corrupção e vocês sabem, através de argumentos que não tinham nenhum fundamento constitucional, impuseram o impeachment. Mais grave do que isso, o judiciário se calou. O judiciário está feito para abrir a constituição e saber se tal ou qual comportamento está dentro das normas constitucionais. Não é que ele se pronunciou a favor ou contra. Não se pronunciou, calou-se simplesmente. Decidiu sobre tudo, até sobre pipoca no cinema e não opinou sobre o caso mais grave da história política dentro do Brasil, que era derrubar uma presidenta sem argumento legal nenhum (a tal das pedaladas fiscais), que tinha acabado de ser reeleita. Então, foi gravíssimo aquele episódio e abriu o período que acabou levando à situação eleitoral que nós tivemos agora. Passamos a ter uma espécie de regime de exceção, passou a haver um processo de judicialização da política. O judiciário passou a se considerar com poder para julgar, por cima do voto popular, quem tem direito. Foi se configurando aquilo que é a nova estratégia da direita no Brasil e fora do Brasil.
O Brasil tinha inaugurado, em 1964, a modalidade de ditaduras militares. Mas as ditaduras militares não eram mais possíveis, inclusive, tem um consenso latino- americano de punir países que tentassem golpes militares. Então, o tipo de golpe mudou. É o que se chama de estratégia híbrida. Tem um livro escrito por um jornalista russo e publicado pela editora do MST, Expressão Popular, que se chama exatamente Estratégias Híbridas, e que é muito bom - eu recomendo fortemente. Como é que tal estratégia se deu no Brasil? Se deu pela combinação de um Congresso Nacional majoritariamente financiado com recursos privados. A Odebrecht chegou a dizer que ela financiou (que ela elegeu, na prática) 150 parlamentares, quer dizer, seria o maior partido do Brasil. Ao invés dos caras estarem com camiseta de tal ou qual partido, eles deveriam estar com a camiseta da
Odebrecht, num lugar determinado. O que é demonstrativo do peso brutal do poder econômico, instrumentalizado pelo Eduardo Cunha, naquele momento. Foi um elemento fundamental, sem o qual não teria sido possível, política e juridicamente, a derrubada da Dilma. Em segundo lugar, os meios de comunicação passaram a ter um poder enorme para condenar as pessoas sobre as quais se levantavam suspeitas no judiciário. A desqualificação pública de personagens através da ideia de que é corrupto, está condenado, etc e tal, antes mesmo de haver um julgamento das pessoas. Isso favoreceu que o judiciário, através da Lava Jato em particular, judicializasse a política e começasse a fazer o que se chama de lawfare, uma expressão inglesa que vem na verdade da ideia de guerra, mas guerra das leis. Trata-se da utilização arbitrária das leis para perseguição política. É óbvio que o caso do Lula é o caso mais escandaloso. Não há nenhuma prova para condenar e nem sequer para processar o Lula. O próprio juiz que coordenou o processo, que montou as delações premiadas, disse que não tinha provas para condenar o Lula, ele tinha convicções. Convicção é algo subjetivo; o direito se faz baseado em provas, ou então não se pode condenar absolutamente ninguém. É um caso claro de perseguição política. Antes mesmo dele [Moro] aderir ao governo do Bolsonaro, vocês sabem como é que ele tratava e trata o Lula para os seus parceiros, por escrito e oralmente? Ele chama o Lula de “nine” - em inglês, que é o seu idioma original -, desqualificando o Lula por ter tido um acidente de trabalho. Não tem coisa mais depreciativa e discriminatória do que chamar uma pessoa por isso, dessa maneira, demonstrando que ele não tinha nenhuma isenção.
Das coisas mais escandalosas do judiciário brasileiro é que, reiteradamente, com todo comportamento político do Moro, o judiciário diz que ele é isento. Isento para julgar o Lula? Ele é o inimigo político e perseguidor do Lula, é isento de imparcialidade, de vergonha ou de qualquer outra coisa, menos disso. As leis foram instrumentalizadas para a perseguição política. Não vou comparar o Lula ao Aécio porque é covardia e o Lula não merece ser comparado com o Aécio, mas olhem os casos escandalosos de confissões declaradas, como no caso do Aécio ou do governo Temer. Nunca teve uma quadrilha tão grande dirigindo o governo! Talvez tenha, a partir de primeiro de janeiro, uma pior ainda. Mas comparar isso com o Lula, contra quem não há nenhuma prova? Onde é que está o dinheiro? Onde é que estão as vantagens? Onde é que está o apartamento? É um escândalo em termos
judiciais! Então, a combinação do congresso, dos meios de comunicação e do judiciário configura a nova forma de golpe, uma forma de judicialização da política, em que o judiciário se arvora o direito de decidir quem pode ou quem não pode ser candidato. O Aécio pode ser candidato, mas o Lula não pode ser candidato. Esses bandidos que estão no governo Temer podem ser ministros, mas o Lula não podia ser ministro da Dilma. Não vou repetir porque são escandalosas e não é necessário reiterar mais isso, mas foi uma nova forma de golpe que, na realidade, destrói a democracia política. Basta dizer que até às vésperas do início da campanha eleitoral qualquer pesquisa dizia que o Lula ganharia no segundo turno, então, a vontade popular era uma e o que acabou prevalecendo foi a outra, porque Lula foi proibido de ser candidato.
A democracia está desarticulada. Eles ganharam, mas ganharam com tramoias, forçando as leis para transformá-las em instrumentos de perseguição política. Aconteceu com o golpe contra a Dilma, com o processo da condenação do Lula e aconteceu com a eleição deste ano. Vocês se lembrarão que até uma segunda-feira determinada, numa semana que terminaria com uma manifestação do Ele Não das mulheres, o Haddad passou na frente e liderava a campanha eleitoral, mas de repente, naquela semana as pesquisas eleitorais deram resultados radicalmente diferentes. Folga enorme de 10 pontos a favor do Bolsonaro. O que tinha acontecido naquele momento? Na perspectiva das manifestações das mulheres, quem acompanhou pela internet, viu as fotografias forjadas que não tinham nada a ver com a manifestação das mulheres, como se a manifestação das mulheres tivesse sido um bacanal, uma imoralidade. Na verdade, começava na quinta-feira a publicação de notícias falsas, multiplicadas aos milhões através de robôs. Vocês conhecem algumas delas, em especial a da mamadeira escandalosa. O Haddad é uma pessoa que é difícil forjar uma rejeição dele a partir do seu comportamento real, então, era preciso mentir, dizer que no Ministério da Educação ele tinha distribuído nas escolas aquelas mamadeiras e tinham até fotografias, dando uma ideia de veracidade. O kit gay e todas aquelas histórias multiplicadas aos milhões, mecanismo que foi descoberto por uma jornalista da Folha de São Paulo e que apontava, inclusive, os empresários que financiaram, mas o Tribunal Superior Eleitoral disse que não aconteceu nada.
Então, nós fomos tendo, a partir de 2016, uma espécie de regime de exceção. Já não era uma democracia, em grande medida porque o judiciário, que deveria estar cuidando das leis e do estado de direitos, passou a ser omisso ou agente de perseguição política, no caso da Lava Jato. Tivemos uma deformação enorme, mas ainda assim era possível ter ganho a eleição quando o Lula era candidato porque quando ele aparecia nas pesquisas, ele ganhava do Bolsonaro no primeiro turno. Não pesavam tanto ainda as igrejas evangélicas, que tiveram papel importante naquela virada, depois da manipulação de quinta, sexta, sábado e domingo. Ali vieram as igrejas evangélicas com um discurso brutal de desqualificação moral, do risco do PT.
Enquanto o debate se dava sobre o programa de governo – e o Haddad dizia que tinha o livro numa mão e a carteira de trabalho na outra - ele estava ganhando, mas eles conseguiram deslocar para outros temas: corrupção do PT, segurança pública e as questões morais. Supostamente, as crianças estavam sendo degeneradas nas escolas, então, era preciso proteger as crianças e tudo aquilo que vocês viram. Ele tem a vantagem de ser conservador porque isso mobiliza as pessoas, mobiliza família e tudo mais. Não porque o que o Bolsonaro defende seja majoritário no país, mas acontece que ele convocou uma quantidade grande de pessoas com aquilo que a pessoa tem de pior. Aquela mesma pessoa eventualmente é um trabalhador, mas tem uma postura machista, eventualmente agride a mulher e então acabou sendo mobilizado e convocado pelo seu pior lado.
Há uma série de avanços importantes na sociedade a que alguns setores reagiram de maneira rancorosa, especialmente no caso dos homossexuais, LGBT. Avanços que foram uma decisão não do Congresso, mas do judiciário, mas que a sociedade acolheu com grande alegria, com grande felicidade de saber que toda forma de amor vale a pena. Qualquer pessoa pode escolher sua forma de vida, contanto que não prejudique aos outros. E estava se convivendo com isso. Passamos a ter nas ruas casais de homens ou de mulheres de mãos dadas, se beijando e tudo mais. Mas é uma coisa que setores rancorosos estavam resistindo a isso e, de repente, apareceu alguém que polarizou essa questão. O tema da homossexualidade é um tema que afeta muito aquela ideia de família tradicional,
parece que está fora da normalidade. O futuro ministro da educação disse que o sexo é uma questão biológica e natural. Desde a Simone Beauvoir que vem a história de que a mulher não nasce mulher, torna-se mulher. O “homem” e a identidade se fazem na identidade social que a gente cria. No entanto, voltamos para aquela coisa conservadora do “papai” e “mamãe”. Bolsonaro já falou que quem dá educação sexual são papai e a mamãe, em casa. A escola dará informação, mas quem dá orientação é a família, projetando um ideal de “famíla estruturada”, onde todos continuam juntos, ninguém se divorciou, ninguém tem amante, não existe mais aquilo que é quase majoritário na sociedade, que é a mulher vivendo sozinha com os filhos.
Agora, a razão pela qual ele ganhou, não foi só por esses argumentos que conquistaram essas pessoas. No fundo, a razão mais importante foi que ele criou o pânico do PT, o medo do retorno do PT, como se os governos do PT não tivessem dado certo. Os governos do PT tiveram problemas, especialmente no final, mas fundamentalmente foram governos que deram certo, sendo um dos mais importantes governos do Brasil, do ponto de vista social, do ponto de vista da retomada do crescimento econômico, da retomada dos bancos públicos e de expansão do ensino. Foi esse conjunto de medidas que tentaram apagar e esquecer da cabeça das pessoas e é por isso que o Lula não pode falar. Por isso que na véspera de uma decisão do Supremo sobre um habeas corpus do Lula, o chefe do exército confessou há pouco tempo, que ele tinha que falar na noite anterior. E ele falou. Uma coisa brutal, pressionar o Supremo. Como se fossem as Forças Armadas pressionando o Supremo. Se fosse tomada outra medida, se o Lula tivesse sido libertado recebendo o habeas corpus, o processo estaria fora de controle, do controle deles. O Lula é o único líder popular do Brasil, é o único que fala para a massa da população. Nós não passamos aqui em Natal na caravana pelo nordeste, mas passamos pelo Rio Grande do Norte, pelo nordeste inteiro, pelos 9 estados. Eu estive nas 4 Caravanas e, especialmente no Nordeste, é uma maravilhosa história de amor correspondido do Lula com o povo e do povo com o Lula. Nsse livro que eu organizei, está o Lula, está o povo e o fotógrafo do Lula, o Stuckert, com essas imagens maravilhosas que vocês podem ver nos exemplares que eu trouxe para cá.
Então, o Lula é uma besta, é o diabo. É o diabo e ele tem que desaparecer, ele tem que morrer, porque a simples presença dele é uma denúncia do que eles
fizeram com o Brasil esse tempo todo. A Gleisi falou essa semana, quando a folha de São Paulo se deu ao luxo de mais uma vez criticar o PT perguntando onde estava a autocrítica do partido, ela falou: “Vocês têm 100 anos de idade, aprovaram os piores governos que fizeram do Brasil uma oligarquia com a maior desigualdade social do mundo. Cadê a autocrítica de vocês?” O PT fez um governo que diminui a desigualdade, promoveu os direitos sociais e o Lula é a personificação disso. Vocês conhecem a trajetória da famosa família Silva e do próprio Lula: que só tomou café aos 7 anos de idade, que viajou 13 dias no pau de arara com a única camiseta que cada um da sua família tinha, que foi engraxate, foi office-boy e se tornou o maior presidente da história do Brasil, o líder político do século XXI. É um caso extraordinário. Eles têm que prender esse cara, não podem deixá-lo solto. Imaginem o Lula solto! A primeira coisa que ele iria fazer era retornar uma caravana pelo Nordeste. Como é que ele ia ser recebido? Ele já era um mito, ele sim, um mito. Imagine o Lula voltar? Cada um fica pensando em que abraço dar nele e o que vai dizer para ele. Aquelas lágrimas que as pessoas tinham, imagina agora com nossa impotência diante dele na circunstância que ele está? A comunicação com ele é por escrito. Quando a gente fala “Boa noite, Lula!” no fim da tarde, ele aciona três vezes a luz da sua cela para mostrar que está ouvindo. O Lula está reduzido a isso. É uma situação dramática e, sem exagerar, eu assino embaixo, dizendo que o melhor brasileiro está preso e o pior brasileiro vai ser presidente do Brasil. Um paradoxo brutal. Como é que foi possível isso? Foi por isso, pela deterioração do modelo democrático pelo uso das leis contra o exercicio da soberania política, pela manipulação das informações em relação ao candidato que representava o Lula e pela criação na memória, na cabeça das pessoas de diabolização do PT. Porque os dois fatores que levaram à vitória eleitoral no final da campanha do Bolsonaro foram: primeiro, a corrupção e a corrupção do PT, o único partido corrupto. Segundo, a questão da segurança pública, para a qual ele não tem nenhuma solução que não seja o armamento mais generalizado da população. Mas ele aparece como alguém que se preocupa com isso. Vocês sabem que em grandes regiões, de São Paulo e do Rio de Janeiro, a população pobre está desvalida entre traficantes, milicianos e polícia e aparece ele se preocupando com isso. Quando nós vamos procurar solução para isso, a solução é nenhuma. O único exemplo que ele deu é que um caminhoneiro, se tiver um revólver, pode resistir a um assalto. A população se armar
não representa nenhum avanço e nenhuma proteção. E a esquerda não conseguiu tratar a questão da corrupção devidamente porque é uma pecha que vem sendo jogada em cima do PT desde 2005. A questão da segurança pública, não somos demagógicos para falar que vamos resolver do dia para a noite, porque é uma questão com outras dimensões, tem o narcotráfico incluído, e tudo mais. Tudo isso foi complementado com esses kits morais fabricados, que acabaram gerando um papel importante das Igrejas Evangélicas, explorando esse mecanismo, apoiadas nos robôs, na multiplicação das fake news e acabou levando ao resultado eleitoral.
Então, o juiz roubou uma, duas, três vezes. Agora, o campeonato não acabou, mas esse jogo eles ganharam. O que muda nisso tudo? Primeiro, que a iniciativa é deles, quem está no governo toma as iniciativas. Qualquer barbaridade que o Bolsonaro diga é reproduzida. Ele tem nas mãos o direito de escolher os seus assessores e como ele não é nada, ele está, perigosamente, cada vez mais incorporando militares em cargos importantes. Não sei quem é pior, militar ou aqueles imbecis na educação ou nas relações exteriores, até porque não são militares tradicionais (repressivos, mas com certo tom nacionalista), agora eles são absolutamente neoliberais e corruptos. Vários deles que estão aí têm casos de corrupção escandalosos. Bolsonaro está cercado por militares e mesmo não sendo as Forças Armadas como instituição, é claro que eles as representam.
O perigo não é um golpe militar, o perigo é isso que está acontecendo agora: a militarização do poder político e blindagem do poder do Estado. É como se a direita dissesse: “Poxa, nós cometemos erros, possibilitamos que o PT ganhasse 4 vezes seguidas e agora nós vamos tomar as medidas para o governo nunca mais escapar das nossas mãos.” Estão fazendo isso não só em medidas de repressão e desqualificação da instituição pública, mas também em medidas institucionais que podem dificultar novamente a esquerda a ganhar as eleições no Brasil. Não só com aquilo que já existe no Tribunal Superior Eleitoral, que é totalmente parcial; meios de comunicação nas mãos de algumas poucas famílias, articuladas com a direita, mas também o Supremo Tribunal Federal, que fica quieto ou adota medidas concretas, inclusive de criminalização dos movimentos sociais. Vão primeiro aos movimentos
sociais com a ideia de que o MST e MTST não respeitam o direito de propriedade e vocês sabem que o direito à propriedade é o direito mais sagrado da democracia liberal, embora tenha a ver com o direito de poucas pessoas. Onde é que está o direito ao trabalho na nossa Constituição? Não está! Se algum movimento social ocupa terras improdutivas e bota para produzir, o dono daquela terra, que mora numa cidade talvez no sul do Brasil, liga para a polícia e a polícia vai lá. Tem efetividade a reclamação do direito da propriedade, que se materializa numa ação da polícia. Mas se perde o trabalho, vai reclamar para quem? Bispo de Taubaté? Não tem para quem reclamar, nem sequer um telefone. Agora, pior do que isso, com a desqualificação dos direitos dos trabalhadores, a maioria dos trabalhos são intermitentes e informais. Parece que é melhor ser informal do que formal, mas na verdade ser informal quer dizer trabalhar sem a carteira de trabalho, sem direitos estabelecidos e sem a garantia que a gente vai trabalhar no mês que vem. Querem que a gente seja flexível ou inflexível? Flexível. Só que na verdade a palavra real é: trabalho precário, trabalho sem carteira de trabalho.
Durante o governo do Fernando Henrique, um governo neoliberal, a maioria dos trabalhadores brasileiros passou a estar na informalidade, nos trabalhos precários. No governo do PT foi se recuperando isso. Lentamente, mas foi se recuperando. A maioria dos trabalhadores já tinham carteira de trabalho mas não é só carteira de trabalho, é sindicato, é campanha salarial e tudo mais. Agora, apagaram tudo isso. É como se na campanha salarial sentassem uns e outros e os empresários dissessem: “Bom, vamos discutir. Primeiro ponto: qual é a jornada semanal de trabalho?” Porque não está definido que seja aquela. Esse banco de horas faz parte da ideia de que possa trabalhar 12h hoje, 3h amanhã. Pior ainda, o banco de horas significa a negociação individual com cada trabalhador, aumentando a desqualificação do sindicato. Além do mais, do dia para a noite, terminaram com o imposto sindical, que leva a uma falência econômica do sindicalismo brasileiro. Então, estão realizando aquele sonho da direita brasileira que era destruir todos os direitos que o Getúlio tinha implementado, que o Lula tinha consolidado, terminando com a Consolidação das Leis Trabalhistas, que vem de 1943. Então, a situação social dos trabalhadores é a mais fragilizada desde a República Velha. Vocês sabem que o Washington Luís, que em São Paulo é consagrado - quem for a São Paulo sabe que tem avenidas, tem tudo em homenagem a ele. São Paulo é tão reacionário
que os dois ídolos de São Paulo são os Bandeirantes, matadores de índio, e Washington Luís, da Revolução de 1932, que é contra o direito dos trabalhadores e contra Getúlio Vargas. Retrocedeu-se a isso. Porque Washington Luís, a frase famosa dele é que a Questão Social é caso de polícia, é dar porrada, é repressão. Esse é o cara consagrado pela elite paulista. Então, os trabalhadores estão retrocedendo a uma situação de fragilidade imensa. Mas não é só isso, porque há todo um quadro social. Com aquela medida que congelou os recursos para as políticas sociais, só estamos vendo se perpetuar aquilo que tinha desaparecido. Essa imprensa é tão imoral que nunca disse que nos governos do PT tinha desaparecido as crianças vendendo bala na rua e famílias vivendo na rua era praticamente uma exceção, porque estavam integrados de alguma maneira a algum tipo de política social. Voltou escandalosamente aquela situação doída, trágica e imoral de viver no Brasil, que é tropeçar nas pessoas morando, vivendo no meio da rua.
A razão de fundo pela qual fizeram tudo isso é uma única: a manutenção do modelo econômico neoliberal. A direita voltou ao governo com o Temer e mostrou que não aprendeu nada. Voltou a implementar a mesma política econômica de ajuste fiscal dos anos 90, que fracassou. Naquela época, pelo menos estabilizou a inflação, mas agora não tinha nenhuma conquista a prometer e a realizar, apenas ajuste. Cortar, cortar, cortar, cortar, aprofundou a recessão – lembra que temos 27 milhões de pessoas sem emprego no Brasil e sem expectativa de ter emprego no Brasil. Então, o Temer tinha euforia e em pouco tempo estava reduzido a 3% de apoio. O Macri, na Argentina, foi eleito com espetacular projeto de marketing e em pouco tempo a Argentina está na situação que está. Não vou dizer que é culpa dele a final da Libertadores, mas o clima de violência existente faz parte. Aqui querem que tenha escola sem partido e lá tem Libertadores sem jogo, sem partido. A Argentina, hoje, está numa situação mais dramática do que a do Brasil e o Macri, que tinha um prestígio por ter derrotado o peronismo com a campanha eleitoral marqueteira, está com prestígio lá embaixo. Então, quem tem esse programa econômico vai perder rapidamente o apoio popular. Provavelmente, vai aumentar a repressão, que é o que Macri está fazendo na Argentina porque quanto menos apoio popular, mais repressão. Mas, certamente, esse governo está condenado, tal qual os outros governos neoliberais, a perder o apoio da população.
Enquanto o Lula era candidato, a Igreja Evangélica não tinha esse poder que ela tem porque o evangélico é pessoa do povo, ele tem emprego ou ele está desempregado; ele tem salário ou não tem salário e assim por diante. Nós podemos interpelá-lo por um lado ou interpelá-lo por outro. Eles trataram de apagar esse lado e colocar as questões morais. Mas a vida cotidiana não se faz com isso, se faz com com feijão e arroz, se faz com emprego, se faz com salário e com mínima garantia de futuro. É isso que Lula representou e representa na cabeça das pessoas. Então, quaisquer que sejam as políticas que o Moro vai levar adiante - e ele está disposto a criminalizar tudo que ele puder -, a popularidade desse governo vai para baixo porque ninguém se alimenta de demagogia e de xingamentos. A vida cotidiana é feita de outra coisa. Então, o primeiro elemento é esse: eles vão perder apoio.
Em segundo lugar, eles vão tentar criminalizar os movimentos sociais e a esquerda porque sabem que é quem pode capitalizar o enfraquecimento dele. Por isso também vão tentar encadear condenações do Lula para inviabilizar que ele possa ser expressão do desencanto da massa da população, e da retomada da memória dos governos Lula. Só que o tempo vai passando, não dá para ficar só em base no que o PT já fez, embora tenha que se reiterar para contrapor e mostrar a diferença entre o governo do PT, o governo Temer e o futuro governo, que tem o ministro econômico mais radical do que o Meirelles. Ele é pinochetista, é Chicago boy. Ele falou que o Brasil não cresce pelas marcas social-democratas do país. Ele quer acabar com qualquer tipo de direito que traga custa para o patrão. Assim como na questão ecológica, o lema é liberar geral. Qualquer regulação do meio ambiente é um desgaste econômico. Ou como diz o ministro das relações exteriores do Bolsonaro: “A proteção do meio ambiente é uma forma de dificultar o crescimento das economias capitalistas, favorecendo a China.” Então, o Brasil acabou de cancelar a reunião do meio-ambiente, que ia acontecer no Brasil, dizendo que não tem dinheiro, mas na verdade é uma palhaçada e o governo vai tomar o caminho do Trump, saindo do acordo de Paris, para o qual o Brasil foi muito importante para contribuir e que é o máximo de regulamentação já conseguida até agora. Então, é desregulamentação generalizada. Neoliberalismo é desregulamentar. Quem pode, pode e quem não pode dança, numa espécie de luta de todos contra todos, só que em condições de absoluta desigualdade, num país tão brutalmente desigual, em que quem está por cima vai ganhar cada vez mais.
Nós entramos num período de instabilidade não menor do que antes. Agora tem um certo desconcerto e uma certa tristeza porque fomos derrotados. Mas agora nós temos a perspectiva de voltar a mobilizar a massa da população e essa perspetiva da direita não tem continuidade no tempo porque os pés deles são de barro, porque não aprenderam que essa política neoliberal leva à derrota. Os tucanos mantiveram e foram derrotados 4 vezes em condições de democracia aberta. Não incorporaram políticas sociais de jeito nenhum. Nós temos que ter capacidade de retomar nossos laços com a massa da população para fazê-la perceber, sentir qual é a sua situação real e quem é o responsável por isso. O Temer fala que está entregando a economia em bom estado e o Bolsonaro fala que vai receber a economia em péssimo estado por causa dos governos do PT. Primeiro se entendam: a economia está bem ou está mal? Segundo: a responsabilidade é de quem governou até 4 anos atrás ou de quem governou nos últimos 3 anos? Em suma, vão tentar contar histórias que não colam na massa da população. Hoje já tem muita gente desconcertada, tem gente na direita envergonhada. Muitos fecharam os olhos: “Não faz mal que ele seja a favor da tortura e da ditadura, contanto que não volte o PT.” Mas outros setores se sentem decepcionados porque ele juntou uma quantidade de políticos corruptos em torno dele. E isso possibilita que haja uma desmistificação da imagem dele. Além disso, sobretudo, é preciso dizer que o Temer e ele não governam para todos, não governam para a massa do povo brasileiro. Mostrar que tudo que eles falam é fumaça para esconder aquilo que é o mais importante: os empresários estão felizes e os trabalhadores estão descontentes. Vamos recordar que o Haddad continuou ganhando naqueles setores que a população é mais pobre, em todos os lugares. Então não é verdade que as igrejas evangélicas levaram os pobres para o outro lado. Não é verdade. O PT tem que fazer autocrítica? Tem! Mas a maior autocrítica é daqueles que achavam que não era possível um governo do PT, aqueles que disseram lá atrás que o PT tinha traído e Lula ia fracassar. O PT não traiu e o Lula não fracassou. O Lula foi o presidente mais importante da história do Brasil. Cadê a autocrítica desses setores? A autocrítica do PT tem que acontecer nos marcos de reconhecer os sucessos do governo do PT. Quando eles perderam os direitos, as pessoas começaram a se dar conta, ou têm mais propensão a se dar conta que não é porque se esforçaram mais ou menos, é porque mudou o governo. Este é um governo que governa para os ricos
e em especial para os banqueiros. Só tem um setor econômico no Brasil que está ganhando no Brasil e são os bancos. Não quer dizer que tem empresário bom, que é produtivo e outro que não é bom, que é especulativo. Todo grande grupo econômico, na sua cabeça, tem o setor financeiro que dirige. Os grandes grupos empresariais se financeirizaram, se tornaram grupos especulativos. Cada vez que se diz no final do dia que a bolsa de valores cresceu tanto, não se produziu nenhum bem e nenhum emprego, foi compra e venda de papéis.
Para concluir, então, primeiro reconhecer a derrota. Segundo, saber as contradições dessa realidade. Não foi um jogo limpo, nem com a Dilma, nem com o Lula, nem com Haddad. Terceiro lugar, eles têm um governo que tem contradições profundas, especialmente, repito, pelo modelo econômico que é o que afeta a vida cotidiana de todo mundo, em todo o mundo. Em quarto lugar, eles vão endurecer a repressão e a linguagem de ameaças. O cara que vai cuidar do Instituto Agrário disse que vai fazer reforma agrária nos assentamentos do MST. O que ele quer dizer com isso? Vai retomar essas terras para dar para os latifundiários improdutivos? Estão com todas as ameaças. Tem coisas que temos que tomar como símbolos fundamentais, como linha de defesa para impedir que eles avancem ilimitadamente. Primeiro, a defesa da escola púbilca, das universidades públicas. Ali, as ameaças foram bem resistidas e até o Supremo teve uma postura favorável. Segundo, organizações sociais que são símbolo, como o MST, que tocam na questão da propriedade e que para eles são sagradas, temos que ter uma defesa intransigente. Terceiro, a questão LGBT, pela questão da diversidade de identidade na sociedade. Quarto, a questão da escola sem partido. Vamos recordar que ainda no final desse governo atual vai se votar na câmara, na comissão especial, a Escola sem Partido. Se for aprovado, vai para o novo senado, que é pior que o atual. Mesmo assim, muita gente de direita se pronunciou contra. O ACM Neto se pronunciou contra o Escola sem partido, o Olavo de Carvalho se pronunciou contra, a Globo também, então não é claro que eles possam ganhar. Um outro tema vai ser a reforma da
previdência, pendente há um tempo. Vamos ver se eles conseguem. Nós temos que retomar com o argumento com o qual os derrotamos. Claro que eles também não votaram pela proximidade das eleições e o medo dos parlamentares serem reprimidos pelos eleitores que não votariam neles. Mas nós conseguimos argumentar e levar à maioria da sociedade a ideia de que com esse mecanismo ninguém vai conseguir se aposentar. Vai morrer sem se aposentar. Então, esse argumento foi majoritário, se difundiu na sociedade e nós temos que retomar esse argumento para voltar a colocar a vida concreta das pessoas, não a ideia de que se gasta muito. Isso é uma mentira, não se toca no direito deles. No judiciário não toca, no congresso não toca e querem apertar para baixo. Então, temos que estar qualificados para retomar laços com a população e inclusive com a população evangélica, respeitando a religião deles, mas mostrando que a vida cotidiana deles vai ser afetada mais ainda do que nesse governo do Temer.
É uma hora dura para nós. É duro ver o Brasil desse jeito, é duro ver o que estão fazendo com o Lula e temos que ter muita força moral. É a hora do debate. Temos que debater e discutir para entender as coisas e não ficar só com postura psicológica nem de otimismo - de achar que eles vão se derrubar rápido e facilmente
-, nem de pessimismo – de achar que é uma coisa que veio para muito tempo. Essa é uma história de turbulência. Está marcado o Dia da Mulher em março, primeira grande manifestação popular nacional, das reivindicações sociais de todos os setores e muito em particular das mulheres. Então, é um período de luta dura, mas quem diria que o Lula seria eleito presidente do Brasil? Quem viveu o governo do Fernando Henrique e a desmoralização do movimento popular, a euforia que eles tinham! Fernando Henrique derrotou o Lula duas vezes no primeiro turno! Parecia imbatível e não foi isso que aconteceu. Nós temos capacidade de retomar a ofensiva, de nos reagrupar. Não somos menos que éramos antes, não perdemos influência porque somos nós; nós perdemos influência sobre o meio em que a gente atua. Nós temos que recuperar isso, falar com as pessoas, tentar convencê-las que o Temer governou para os ricos e o Bolsonaro vai continuar governando para os ricos. Temos que respeitar a religião, mas apontar que o basquete cotidiano vai ser o do achatamento dos salários, do desemprego e da recessão. Era isso que eu podia tentar ajudar na reflexão de todos nós, para sabermos exatamente onde a gente está. Houve um desenlace da mais profunda e prolongada crise brasileira, mas não
terminou a crise. Mudou a forma da crise porque temos um novo tipo de governo e nós temos que enfrentar esses novos obstáculos que eles colocaram para nós. São novos obstáculos que incluem as fakes news, significando para uma parte de nós uma capacidade de convencimento, atenção e sensibilidade para fazer com que a população passe a votar conforme seus interesses e não com a manipulação da verborragia teológica, teocrática dessa nova direita. Agora, é vergonha. É isso que a direita tem para oferecer para o Brasil? É Bolsonaro, é Olavo de Carvalho? Incrível! A elite brasileira, muito requintada e sofisticada, é isso que ela tem para oferecer? Temos orgulho de dizer o que nós temos para oferecer, eles têm vergonha. Daqui a pouco, principalmente setores da classe média, vão dizer que votaram no partido Novo, ninguém votou no Bolsonaro: “Não sei como esse cara passou para o segundo turno e ganhou a eleição”. Todo mundo vai contar histórias dizendo que achou que ele não faria isso. Mas ele disse expressamente o que ia fazer! Nós temos clareza sobre o que a gente fez, dos erros que cometemos, das conquistas que nós propiciamos e temos orgulho disso e eu acho que o Nordeste é a melhor demonstração disso. Não sou eu que vou falar para vocês no que o Nordeste se transformou durante aqueles anos, mas é por isso que o nordeste nos dá orgulho. A eleição dos governadores todos que vocês trouxeram. Eu até escrevi na internet para quem não aguenta mais aquele sul maravilha, vem prô nordeste, porque além de ser muito melhor, é muito mais bonito. Obrigado!
Recebido em: 30 de novembro de 2018. Aprovado em: 07 de fevereiro de 2019. Publicado em: 28 de maio de 2019.
v.17, nº 32, jan-abr (2019) ISSN: 1808-799 X
Boa tarde a todos e todas. É um prazer estar aqui. A ANPEd vem de longa tradição de resistência, de luta, de pensar a educação brasileira, o que me deixa muito orgulhoso ter sido convidado para estar participando da continuidade desse trabalho nesta IV Intercrítica.
Vivemos hoje a expectativa de uma inflexão bastante profunda no cenário internacional e nacional, que chega ao Brasil de uma forma bastante preocupante para todos nós que pensamos a educação, que vivemos o trabalho educativo e que enfrentamos nos últimos anos ações que ameaçam profundamente os patamares mínimos de sociabilidade, de civilidade, de convivência em nosso país.
Neste cenário, a questão que move nossa reflexão é se as categorias e os conceitos fundamentais do método que tanto tem nos servido para compreender a história, para compreender nossa formação social, para compreender especificamente dentro dela o trabalho educativo, ainda tem validade. Para isso devemos nos perguntar: Qual é o desafio colocado diante desse conhecimento acumulado, das suas categorias e conceitos fundamentais, diante desse período que se abre? Será que o conhecimento também envelhece? Será que os conceitos também têm a sua vida própria?
1 DOI: https://doi.org/10.22409/tn.17i32.p28302
Conferência proferida no IV Intercrítica – As categorias fundantes do materialismo histórico-dialético no século XXI, no dia 26/11/18 – Instituto Federal do Rio Grande do Norte.
Professor Associado I da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Departamento de Política Social e Serviço Social Aplicado. Graduado em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1983), Mestre em Sociologia pela Universidade de São Paulo (1999) e Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (2004). Participa do Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas (NEPEM- ESS - UFRJ). Educador popular do NEP 13 de maio. Tem experiência na área de Sociologia, com ênfase em Teoria Sociológica, Sociologia Política e Sociologia do Trabalho. Concentra sua atenção atualmente nos seguintes temas: ideologia, consciência de classe, classes
Diante destas importantes questões podemos incorrer no risco da mera reafirmação, pura e simples, desses conceitos. Nós gostamos deles, eles são conceitos construídos, não apenas pela fria e objetiva racionalidade, mas com a profunda identidade que se constrói no processo da luta de classes, no processo das opções políticas, pessoais, afetivas, que todos nós temos. Então, nós gostaríamos de reafirmar a validade profunda de todos esses conceitos. Mas isso seria paradoxal, nos colocaria diante de uma contradição não pequena, porque ele vai contra um dos elementos mais essenciais desse método. A afirmação de que os conceitos são o real elevado à condição de conceitos. Marx aprendeu isso com Hegel que estava convencido que aquilo que se expressa no conjunto de conceitos é, na verdade, o real elevado ao conceito, criticando o subjetivismo da perspectiva da teoria do conhecimento de Kant e Fichte. A perspectiva mais elementar, básica, fundamental do método é a ambição de compreender, no âmbito do pensamento, o movimento do real.
Esse pensamento está condenado à relação com o real. E se o real está em constante mudança, os conceitos, as categorias também estão no movimento de elaboração de constante revisão de crítica. Imaginar o conjunto daquilo que foi colocado como as bases do pensamento de Marx, de Engels e daqueles que, posteriormente desenvolveram e aperfeiçoaram esta teoria, como um conjunto de conceitos fechados, acabados, nos restando apenas a tarefa de utilizá-los para tentar compreender novos contextos históricos, empobrece e avilta esse referencial.
Na verdade, esse é um pressuposto de outra aproximação metodológica, aquela que acredita que, se é verdade que os conceitos e categorias emergem do real, eles emergem num processo único, da observação do real, da compreensão do seu movimento e da capacidade da razão humana transformar essa observação do real em leis, que uma vez adquiridas ficam perpetuadas como leis imutáveis. Bom, essa é uma aproximação do positivismo. Essa é uma aproximação daquilo que Comte lançou como base do positivismo e que Durkheim, por exemplo, desenvolve na sua teoria sociológica que vai caracterizar uma compreensão da sociedade de maneira rígida, de maneira a
não pressupor o seu próprio movimento, suas contradições, suas alterações.
Marx parte de uma visão diferente dessa, herdeiro da tradição Hegeliana que leva Marx através de uma perspectiva de pensamento que ambiciona captar o movimento do real dentro desse próprio movimento. Lukács (2005) numa passagem em seus ensaios reunidos em 1918, reunidos no livro intitulado Tatica e Ética, chama à atenção de que os conceitos, assim como as categorias fundamentais do pensamento marxista, estão também em movimento, eles próprios, os conceitos estão em movimento. Diz Lukács:
(...) os conceitos não são esquemas rígidos que, uma vez determinados, já não mudam seu sentido; consiste em que os conceitos não são configurações intelectuais isoladas entre si e que podem ser compreendidos abstratamente; são, ao contrário, realidades vivas, que geram um processo de transição contínua, de salto. Estes conceitos, assim compreendidos, criam um processo no qual os conceitos isolados se convertem necessariamente na antítese de sua formulação originária, na negação de si mesmos, para unificar-se ali, tal como na negação da negação, em uma unidade mais elevada, e assim sucessivamente até o infinito (LUKÁCS, 2005, p. 42).
Desta maneira, nossa questão nos leva a um desafio ainda maior, o de compreender os conceitos e categorias de nosso método como “realidades vivas” e buscar, diante dos desafios de nosso tempo, novas sínteses "mais elevadas”. No entanto, isso pode nos levar a um novo risco, no sentido oposto daquele do positivismo. Leva ao risco do relativismo, em que a história é um fluir indefinido, em que nenhuma construção conceitual pode captar a não ser de forma efêmera e ocasional, bem ao gosto das afirmações da chamada crítica pós-moderna.
A compreensão materialista e dialética da história de Marx se localiza em um ponto intermediário, entre essas duas afirmações. Existem leis, existem categorias do próprio pensamento, e essas categorias e essas leis do pensamento têm validade geral dentro da sua relatividade. Na perspectiva em que ela deve ser, o tempo inteiro, confrontadas com real que está em constante mudança. Então, se simplesmente nós afirmássemos a validade dos conceitos e categorias principais do nosso método para o momento atual, nós estaríamos afirmando algo acima e fora da história, ou navegando em conceitos sempre cambiantes ao sabor das mudanças constantes do fluir histórico.
Gramsci (1999, p. 95), num determinado momento em seus Cadernos do
Cárcere, nos diz que a filosofia tem por missão sempre responder questões do seu tempo presente. Se não fosse assim nós seríamos seres anacrônicos, tentando responder às questões atuais com questões antigas e com instrumentos antigos3.
Lógico que Gramsci está tecendo esse comentário em referência àqueles que afirmavam a universalidade e a validade eterna dos princípios liberais, das afirmações da economia política burguesa. Mas, isso vale também como alerta para as nossas próprias preferências metodológicas. Nós também podemos nos converter em seres bizarros na medida em que não revivemos os conceitos, vivificamos o nosso pensamento e a nossa teoria a partir das questões presentes que precisam ser respondidas.
Antes de chegar naquilo que consiste, ao meu ver, os elementos centrais dessa aproximação metodológica, o que que ela produziu como tentativa de compreensão do mundo, do seu movimento, para a gente refletir um pouco sobre o cenário contemporâneo e sobre a validade ou não de determinadas categorias de análise, vamos recuar um pouco, porque a raiz disso está no pensamento de Hegel, e Hegel está convencido que o pensamento é uma expressão do seu tempo.
Essa vinculação entre o saber e o tempo que ele existe não é algo próprio do Marxismo, por ele ter uma perspectiva materialista. Isso já está na base do seu pensamento filosófico que ele vai buscar em Hegel. O grande filósofo alemão parte da convicção que a filosofia é sempre o saber substancial do seu tempo, ela é "o saber pensante daquilo que no tempo é" (HEGEL, [1825/26], p. 237, apud BARATA-MOURA, 2010, p. 92).
O tempo de Hegel trazia uma característica que ele julgava essencial. Dizia: "Não é difícil ver que o nosso tempo é o tempo do nascimento e trânsito para uma nova época" (HEGEL, 1997, p. 26). Hegel estava convencido disso. Quer dizer,
"A própria concepção de mundo responde a determinados problemas colocados pela realidade, que são bem determinados e 'originais’ em sua atualidade. Como é possível pensar o presente, e um presente bem determinado, com um pensamento elaborado em face de problemas de um passado frequentemente bastante remoto e superado? Se isso ocorre, significa que somos ‘anacrônicos' em face a época que vivemos, que somos fósseis e não seres modernos." (Gramsci: 1999, p. 95)
aquilo que aparecia como problema da sua filosofia era o fato de que um velho mundo estava morrendo, um novo mundo estava nascendo. E é nesse momento onde o velho ainda não morreu, o novo ainda não nasceu, que questões essenciais são colocadas ao pensamento humano. Por que isso? Porque Hegel estava convencido de que é nesse momento da transição da crise, que os seres humanos verdadeiramente filosofam. Por que em tempos normais, dizia Hegel, as pessoas costumam viver de suas certezas, e a filosofia vivifica e se desenvolve muito pouco quando o ser humano está cheio de certezas. O terreno da filosofia é a dúvida, e a dúvida emerge exatamente no momento em que aquilo que está consolidado e instituído como mundo, começa a ruir pelo tempo, dando espaço aos germes do novo que estão na base daquilo que virá.
Captar esse momento é muito difícil. Por que? Porque as coisas não vêm com a legenda identificando como elemento do velho que está morrendo ou elementos do novo que está nascendo. Os elementos do novo e do velho se misturam e muitas vezes se apresentam invertidos, o velho apresentado como novo, o novo apresentado como velho. Tem um poema do Brecht muito bonito, que ele chama de “parada do velho e do novo” (BRECHT, 1987: p. 219), quando ele descreve um cortejo chegando na cidade, onde todos gritavam homenageando o novo, viva o novo, mas era na verdade o velho travestido do novo, apresentando-se como se fosse o novo.
A história é um processo de fluir, de trânsito sempre constante, entre as velhas formas e as novas. Em momentos de transição, a filosofia tenta captar isso, mas essa relação entre o seu tempo e o saber desse tempo não é uma relação simples. A gente poderia imaginar uma equação extremamente mecânica, aquilo que no tempo é, e se expressa na filosofia do seu tempo. Não é bem assim. Não é bem assim porque aquilo que se expressa na filosofia não é uma mera transposição daquilo que é o real. Um filósofo português, Barata Moura (2010), procura equacionar isso de uma maneira que nos parece adequado. Diz ele, que é indispensável que a gente compreenda nessa concepção hegeliana, da relação entre a filosofia e o seu tempo, nenhuma forma de reducionismo, estreito, que especifique que o filósofo, se desvaneceria através de uma mecânica remissão resolutiva, aleatória e instâncias e elementos que existem no tabuleiro empírico. Que a história condiciona, transformando a filosofia num mero efeito daquilo que acontece no mundo do real. Não é isso. Então, o que seria? Ele vai buscar
respostas exatamente numa solução hegeliana, que nós vamos usar aqui de parâmetro para ir ao nosso tema. Hegel vai dizer da seguinte maneira, vejam, diz ele:
A relação [das Verhältnis] da história política, [das] constituições do estado [Staatsverfaussungen], [da] arte, [da] religião, com a filosofia não é, por isso, a de que elas fossem causas [Ursachen] da filosofia, ou inversamente, [a de que] esta [fosse] o fundamento [Grund] daquelas; mas, antes, [a de que] todas elas juntas [alle zusammen] têm uma e mesma raiz comum [gemeinschaftliche Wurzeli]: o Espírito do tempo. (HEGEL, [1825/26], p. 74, apud MOURA, 2010, p. 93).
Vamos lá: o que que Hegel está chamando de Espírito do Tempo? Não é o pensamento como forma exterior às formas políticas, artísticas, religiosas, filosóficas e científicas, mas é o conjunto disso, naquilo que ele chama da essência de uma época. Nós não acreditamos num espírito do tempo, mas nós acreditamos e estamos convencidos de que cada época, na sua forma material de produção da vida, na sua forma com que os seres humanos se relacionam para produzir essa vida, se dão em certas condições, que se expressam numa forma de pensar o mundo, numa consciência social que predomina numa certa época. Essa relação é uma relação em que, não apenas este mundo se expresse em ideias, mas como essas ideias interferem e agem sobre esse mundo do qual elas partem. Esse segundo elemento, que está muito forte e presente na filosofia hegeliana, será uma das bases do desenvolvimento do método naquilo que lhe é fundamental, que é a sua lógica, que é a dialética.
Marx dialoga com essa dialética hegeliana estabelecendo de maneira original uma relação entre esses elementos, entre os elementos que constituem as formas políticas, as formas jurídicas, as formas artísticas, as formas filosóficas e as formas materiais de produção e reprodução da vida. Elas não apenas coexistem amarradas por um espírito do tempo, existe uma relação de determinação entre elas, de maneira que é a base material da vida, a forma de produção e reprodução da vida material, que condiciona, em última instância, as formas espirituais, políticas, jurídicas, filosóficas de uma época. Veja, essa relação de determinação que está pela opção materialista do autor não elimina, não suprassume a relação dialética antes afirmada por Hegel, pelo
contrário, a implica.
A determinação material, também está numa relação dialética, onde um elemento se expressa no seu contrário, as ideias se expressam em realidades materiais, as realidades materiais se expressam como ideias, formando uma unidade. Se nós perdermos essa perspectiva, as bases do método que Marx desenvolve se perdem. Passam a ser meras afirmações, como leis gerais explicativas da história, independente dos contextos de onde elas surgiram, negando um dos seus próprios pressupostos. Ora, mas o que que é isso? Quais são os elementos centrais desse método, que permitiriam a Marx ler o seu tempo e aí que vem a nossa grande pergunta: Se ele produziu o conjunto dos seus conceitos e suas categorias para responder às questões do seu tempo, terão eles validade para os nossos? Essa é a questão. Vamos lá então.
Primeiro, Marx nasceu em 1818. Marx nasceu numa região, daquilo que na época, se configurava como estado prussiano, numa região fronteiriça com a França, região de Treves, que nem sequer ainda se conformava como uma unidade nacional, que depois viria ser Estado alemão. Ele nasce numa época de trânsito, assim como Hegel, de transição, mas ele nasce em um outro momento dessa transição. Ele nasce no momento em que essa transição já se consolidara na Inglaterra, na França, nos Estados Unidos, mas ainda ocupavam um pequeno pedacinho, um cantinho do mundo, como Marx gostava de dizer, ali na Europa.
Mas, era possível prever que esse modo de produção, nessa sociedade que superava as sociedades feudais europeias, tinham um devir, podendo se tornar um modo de produção mundial, universal. Marx apostava nessa perspectiva.
Nós podemos dizer, como Lenin já afirmava, que nosso método deriva de três fontes fundamentais: A filosofia Alemã, o socialismo francês e a Economia Política britânica. O ponto de partida é uma filosofia, a filosofia alemã. É nela que se encontra a base daquilo que estamos chamando das categorias e dos conceitos fundamentais do materialismo dialético. Mas o marxismo não é apenas uma filosofia, ele se desdobra para dois outros elementos fundamentais: uma crítica da economia política e uma teoria da revolução social, uma teoria social a serviço de uma revolução social. Esses três elementos que costumam ser descritos como economia política inglesa, filosofia alemã,
socialismo francês, são três elementos que, na verdade, confluem para a formação do pensamento de Marx, mas eles não são três momentos cronológicos, como muitas pessoas imaginam, de maneira que Marx seria um filósofo, enquanto jovem, depois se tornou bastante influenciado pelas teorias econômicas na Inglaterra e leu alguma coisa sobre a teoria das transformações sociais, inspirados pela Revolução Francesa.
Esses três elementos constituem, como por exemplo defende o Professor José Paulo Netto (2011), uma unidade. Você não vai ter um Marx filósofo na juventude, um Marx que pensou a revolução social em um certo tempo e um Marx maduro que escreveu obras econômicas, científicas, etc. Esses três elementos se combinam, de maneira que os seus pressupostos filosóficos remetem uma compreensão da sociedade, que o leva à necessidade de compreender a sua base material, que é a economia política, na perspectiva da sua transformação. E a nossa hipótese é que isso fica presente em todo o pensamento do Marx, ainda que não de maneira inalterada. Dizer que Marx já tinha isso no início é falso. Passemos a apresentação de como Marx desenvolveu seus conceitos e categorias e se esses conceitos e categorias têm um diálogo com contexto que estamos colocados hoje.
Os elementos mais essenciais do método emergem na crítica que o jovem Marx realiza no seu estudo de direito. Terminando seus estudos jurídicos, ele escreve uma bonita carta ao seu pai dizendo que intenciona transitar para a reflexão filosófica e se distanciar da questão do direito. Daí resulta seu esforço em produzir uma crítica à Filosofia do Direito de Hegel. Aponta contradições nas concepções de Hegel, mas o que mais nos interessa nesse momento, para dar essa dimensão de um pensamento que é produzido no próprio processo da sua construção, é a maneira como procede para tentar produzir esta crítica. Parte da aceitação de um pressuposto materialista, neste momento bastante influenciado por um pensador chamado Ludwig Feuerbach, que criticava Hegel dizendo que as ideias centrais do pensamento de Hegel, do Homem, da História, do Espírito Absoluto que se colocava no mundo, eram abstrações que derivavam da vida real. E para tentar fazer uma crítica a isso, ele usa um conceito
de Hegel, que é alienação, para dizer como que essa alienação produz um movimento de separação do ser humano, das objetivações ideais que ele produz. Para isso ele vai estudar religião. Como que o ser humano produz, projeta para fora de si, elementos da sua própria essência, da sua própria natureza, que se distanciam do ser humano, se objetivam, se distanciam dele e se voltam contra os seres humanos, como uma força hostil que os controla, ao invés dele as controlar. Marx se apropria desta aproximação de Feuerbach para dizer que esse processo de alienação e de estranhamento que os seres humanos produzem nas suas ideias e concepções religiosas, também pode servir para compreender a estrutura jurídica. Tudo aquilo que Hegel descreve na sua filosofia do direito, na verdade uma filosofia do Estado, são na verdade produções humanas respondendo as necessidades humanas, se objetivaram na história, se distanciaram dos seres humanos e que passaram a voltar-se contra eles como uma força hostil, estranhada, alienada. Feuerbach não autoriza essa perspectiva. Feuerbach acredita que aquilo que ele utiliza na crítica, serviria apenas para religião. Marx, contrariando às ponderações de Feuerbach, realiza uma transposição dessa crítica da alienação da religião para as esferas da política e do direito. Irritantemente, com bastante pertinência, ele consegue comprovar isso, mas acaba se enredando em um problema.
Para ilustrar é necessário remetermos a uma das afirmações de Hegel em seu estudo sobre o Direito. Hegel vai dizer que o estado é a expressão de uma síntese das vontades individuais que existem na sociedade. Na verdade, uma síntese da luta entre as vontades individuais que existem numa certa Sociedade Civil, e que, portanto, o Estado e a Sociedade Civil são dois elementos de uma unidade de contrários em luta. Aquilo que o velho contratualismo separava em um Estado de Natureza, onde existia uma luta de todos contra todos, por exemplo, como Hobbes afirmava, e a passagem para um Estado Civil, onde predomina o direito, a lei.
Na verdade, esses dois momentos coexistem na relação entre o Estado e a Sociedade Civil. A Sociedade Civil como espaço da liberdade, das lutas entre as vontades individuais. O Estado como momento genérico possível, uma universalidade possível diante dessa diversidade que compõem a sociedade. Por isso que Hegel chega a conclusão. O estado tem por finalidade o bem comum, mas a substância desse bem comum são as vontades individuais em luta na sociedade, na qual ele faz parte.
Veja, é uma solução que se aproxima do liberalismo. Hegel não é um liberal, mas ele se aproxima do liberalismo no sentido de tentar equacionar a vontade dos indivíduos na vontade geral que se expressa no Estado. Hegel, na sua juventude, havia lido e é um admirador confesso de Rousseau, então a ideia de vontade geral está aqui presente e com força. Assim afirmando, Hegel tem que equacionar um problema. Ora, se o estado é a expressão dessa vontade geral, por que que essa vontade geral não se expressa a si mesma como pensava Rousseau? É na assembleia, é no conjunto dos cidadãos que está o poder soberano, dizia o genebrino. Então, para que esse poder se alienaria numa força externa a ele, que é o Estado? Para o Hegel, é condição para que o Estado se estabeleça. A vontade geral do povo tem que se expressar fora dele. Nele próprio é um absurdo. Hegel é um crítico da vontade popular, do governo popular. O governo para poder ser efetivo tem que ser alienado para fora dele no corpo do Estado. Para que essa luta entre os indivíduos de uma sociedade não se expressasse no corpo do estado, Hegel está convencido que é necessário um ser, que ainda que seja um ser particular da sociedade, tenha que se expressar no estado como manifestação dessa vontade geral. Para Hegel, quem desempenha este papel é o monarca. Equacionando, na sua teoria política, a existência de uma sociedade civil burguesa livre, com um Estado centralizado fundado numa lei, e no direito, e no poder coercitivo de um polo, e um rei acima disso, como forma de garantia da unidade dessa diversidade que compõe a sociedade, que se expressa no Estado. Portanto, Hegel equaciona nos três níveis da sua análise, os elementos que constituem uma teoria do Estado: a sociedade civil, o estado, a soberania, o poder soberano do monarca. E conclui isso com uma frase de efeito, diz ele: já que o estado tem por finalidade da vontade geral, mas a substância desta vontade geral é a vontade dos indivíduos particulares, o rei, como expressão dessa vontade geral é a expressão dessa vontade dos indivíduos, portanto, conclui Hegel: a substância da monarquia, a verdade da monarquia é a democracia. Uma monarquia constitucional, com base na vontade geral, é feita pela sociedade civil, pelas suas mediações. Veja, é elegante. Na academia as pessoas gostam dessa expressão. É uma solução elegante de Hegel porque ela é complexa, ela é bem articulada, ela é logicamente perfeita, ela articula todas as dimensões do método que nós vamos referir daqui a pouco. Ela parte da singularidade dos indivíduos, as mediações particulares da
sociedade civil, a universalidade possível no estado, portanto, se nós pegarmos, de um lado a teoria política e do direito de Hegel e do outro lado seu método de análise, um é a exata expressão do outro, ele está construindo a explicação do mundo através dos elementos da lógica.
E é nesse ponto que Marx concentra sua crítica, que nos interessa diretamente como preâmbulo para nossa análise. Diz Marx: A lógica não serve à demonstração do Estado, mas o Estado serve à demonstração da lógica" (MARX, 2005, p. 39). O Estado é uma forma pela qual ele comprova a estrutura lógica do seu pensamento. E para Hegel isso é correto porque o real é o racional, então aquilo que eu estou prevendo no meu pensamento, no conjunto das minhas estruturas categoriais lógicas, me permite revelar o real. Marx, no entanto, está dizendo o inverso, é necessário estudar e compreender o real através do pensamento. Usar a lógica para compreender o Estado e não o Estado para comprovar a lógica.
Esta indagação leva nosso autor ao seguinte: Por que o Estado precisa se apresentar como universal? Será que ela é universal? Será que a vontade do rei é a vontade real, substantiva de cada um daqueles que compõem a sociedade? Marx resolve isso com uma pergunta muito simples: a quem cabe o poder soberano? Ou melhor, quem decide em última instância? Se é o rei, não é o povo, se é o povo, não é o rei. Portanto, ele provoca Hegel respondendo da seguinte forma. Se a verdade da monarquia é a democracia, a verdade da democracia não é a monarquia.
Quem precisa, através do Estado, apresentar o seu interesse particular como universal? Qual é o interesse particular, que através do Estado se apresenta como universal? Veja, nesse momento nós podemos dizer que a crítica filosófica já virou a crítica do direito, já virou a crítica da política, mas a resposta de Marx nesse momento é muito importante. Como é que Marx responde essa questão? De uma forma bastante sincera e interessante. Não tenho a menor ideia. Marx não sabe, ele não tem como responder essa questão. Qual é a vontade particular na sociedade que através do Estado, se apresenta como universal? Não tem, faltam elementos de compreensão teóricos e elementos de compreensão do real para que essa pergunta seja respondida. E essa pergunta não poderia ser respondida pela mera continuidade do estudo do direito e do Estado.
Ainda faltava a Crítica da Economia Política. Alguns elementos biográficos são essenciais para compreender a trajetória que levou nosso autor a buscar sua resposta.
Marx está saindo da universidade, da formação de direito, transitando para formação filosófica, buscando seu doutorado. Tem uma mudança política muito grande. Ele perde a chance de uma vaga na academia para lecionar. Está recém- casado. Então, você tem uma pessoa que está recém-formada em filosofia, com uma tese não publicada, apaixonado, casado e desempregado. Então, ele é obrigado a trabalhar numa revista, como redator e é nessa revista que ele encontra um companheiro, também alemão, também influenciado pelas ideias de Hegel, também influenciado pelas ideias de Feuerbach, que entrega a ele um artigo para avaliar, como redator da revista Gazeta Renana, que trata dos elementos fundamentais da economia política. Quando Marx lê esse artigo, de um jovem chamado Friedrich Engels, ele encontra a resposta que faltava. Quer dizer, a base material que permite compreender as relações e os sujeitos que, no Estado tem que se apresentar como universal, não estava na filosofia, não está no jurídico, não está na política, está na base disso que são as relações econômicas. É, a partir daí, além da intensa colaboração e cumplicidade dos dois, que eles abrem uma linha de estudo que vai ser resumida em 1859, no prefácio de uma obra fundamental, que é “Contribuição à Crítica da Economia Política”, onde Marx (2007) resume isso da seguinte maneira: É impossível compreender a natureza do direito do Estado em si mesmo. O direito e o estado só podem ser compreendidos se inseridos nas relações, daquilo que Hegel, a exemplo dos franceses e ingleses da sua época, chamavam de sociedade civil burguesa. Portanto, o direito e o estado só se explicam se inseridos nas relações sociais que constituem uma certa sociedade civil, numa determinada época. Mas, essa sociedade civil burguesa é
uma abstração, se desconsiderarmos a sua base, a sua anatomia, que se encontra na economia política, ou seja, na forma como seres humanos produzem e reproduzem a sua vida. Compreendendo como se dá a produção e reprodução da vida, eu compreendo a natureza das relações que constituem uma sociedade, e aí eu compreendo a natureza do estado e do direito dessa sociedade.
Veja! Olha que projeto ambicioso. Você imagina definir o seu objeto de estudo dessa forma, para explicar a natureza do direito do Estado eu tenho que compreender a sociedade que o insere, para entender essa sociedade e os elementos materiais que estão na sua base. É um projeto enorme que tomara os próximos quarenta anos da vida do autor. O fato é que Marx vai estudar na biblioteca de Londres, na Inglaterra, os elementos da economia política que considera suficiente para fechar sua análise, levando à sua principal obra que é O Capital.
Quando você estuda, tanto os prefácios como nos textos anteriores, nas cartas e outros documentos, percebe que O Capital é parte de um projeto para estudar a base da economia para compreender a sociedade, para responder o que é o Estado e o que é o direito, como totalidade articulada e dinâmica. Então veja, nessa pequena descrição da trajetória, os três elementos se sobrepõe, coincidem. É uma análise que parte de elementos filosóficos, que precisa compreender o estado e o direito, para isso, remete a sua análise para as relações que constituem a sociedade e a luta que está dentro dela. Para compreender isso é necessário compreender a base da sociedade, que é a economia. Então, a economia, as relações sociais, as relações políticas, e sobre ela, todos os elementos supra estruturais que daí derivam, como arte, o pensamento científico, a filosofia, a política, a religião, articulam-se numa totalidade determinada materialmente. É disso que deriva as principais afirmações daquilo que a gente chama de uma teoria social de Marx, mas é necessário que a gente agregue um elemento, essa preocupação de compreender essa totalidade social, econômica, determinada por uma certa produção material da vida, tem uma intencionalidade, tem uma direção determinada.
É necessário compreender essa sociedade no seu devir, não apenas para explicar como ela funciona, mas para explicar como ela surgiu, como ela se desenvolveu e para onde ela vai. Marx está preocupado com a superação dessa
sociedade, e daí que essa teoria está articulada inseparavelmente a uma teoria da revolução, inseparavelmente a uma teoria da mudança social. O tema da revolução, o tema da luta de classes, o tema da transformação social e da perspectiva de construção de uma sociedade, além da sociabilidade capitalista, na perspectiva comunista, não é um elemento exógeno à teoria de Marx, não é um desdobramento da sua teoria, ele é parte constitutiva da sua teoria. Não há como compreender o pensamento desse autor separando esses três elementos que constituem sua unidade. Agora veja que interessante. É o mesmo autor que diz que o pensamento e a realidade da qual ele parte são inseparáveis. Ora, essa forma inseparável entre pensamento e realidade se expressa no pensamento, onde as formas ideais também são inseparáveis das formas materiais onde elas se apoiam, na unidade entre a chamada estrutura econômica e a superestrutura e sua unidade naquilo que Gramsci chamava de bloco histórico.
Marx vai tecer algumas hipóteses, teses, sobre o funcionamento da sociedade, e é bom que se diga, em nenhum momento ele fecha essa análise num conjunto de afirmações prescritivas, definitivas, imutáveis. Se uma coisa que chama atenção no pensamento de Marx, é que é uma hipótese constantemente em construção, enriquecida e agregada com os novos elementos que a própria realidade vai agregando. Então, quem gostaria de um método que tivesse um conjunto de categorias e conceitos fixos, definidos de uma vez por todas, não vai encontrar isso no Marxismo. A resposta que Marx dá para estrutura política, em 1843, é incompleta, faltava a ele a crítica da economia política, agregada à crítica da economia política, Marx modifica, sensivelmente, aquela visão que ele tinha na crítica de Hegel, de 1843. A superestrutura política e jurídica, para ele, ganha uma dimensão muito maior. Veja, não é que ele descarta aquela crítica. É que aquela crítica ganha um outro conteúdo, agrega-se a ele um outro conteúdo, a eleva e enriquece. Não é pouca coisa. É dizer que, o interesse particular que na sociedade existe, e que no estado se apresenta como interesse universal, é da burguesia. Mas qual é o interesse particular da burguesia?
Bom, o que que é burguesia? Eu preciso desvendar o ser do capital, compreender a natureza da propriedade privada, do modo de produção, da extração da mais valia. É isso que materializa o ser da burguesia e é isso que materializa seus interesses particulares. Agora, isso não resolve como esses interesses particulares se expressam no estado como interesse universal. A própria teoria de estado, em Marx, chega a um novo ponto em que, mais uma vez, para. A teoria da revolução também, ela ganha contornos mais nítidos em 1848. Isso vai estar expresso antes, no Manifesto Comunista, vai estar expresso em uma série de reflexões que Marx e Engels fazem nesse período, mas ela é incompleta, ela é insuficiente para definir uma teoria política de corte marxista. Por que? Porque essa teoria implica numa luta de classes, e essa luta de classes ainda não havia se desenvolvido suficiente, para que, projetasse no real, aquilo que vai aparecer como conceito na teoria. Para vocês terem uma ideia, isso só vai ocorrer em 1871, com a Comuna de Paris. Alguns elementos da teoria do estado, só se resolvem em 1850, com golpe de Luís Bonaparte, o chamado 18 Brumário de Luís Bonaparte, onde Marx desvenda, através da luta de classes na França, os elementos de uma luta política, da luta entre as classes, e a expressão disso numa forma política.
Em 1859, quando escreve “A contribuição à crítica da economia política”, Marx apresenta a seguinte tese: Uma sociedade se transforma, somente quando as forças produtivas que ela contém, se desenvolve a tal ponto, que entram em contradição com as relações sociais de produção existentes. Essas relações sociais de produção existentes, que tornaram possível o desenvolvimento das forças produtivas até então, travam esse desenvolvimento, precisam ser superados, abrindo assim uma época de revolução social.
Essa afirmação é central, quer dizer, Marx está aí articulando os três elementos do seu pensamento, tanto a base dialética e materialista do seu método, a crítica da economia política, como a expressão disso numa transformação social.
Nesse momento, Marx está em pleno debate com os socialistas utópicos. Não basta anunciar uma nova sociedade. É necessário dizer das condições históricas que tornam possível o surgimento dessa nova sociedade, e Marx vai buscar isso na própria história e em suas determinações. A sociedade muda a partir de uma contradição
econômica, o avanço das forças produtivas materiais, que se choca com as relações sociais de produção, mas não se trata apenas de uma contradição econômica. É preciso definir o sujeito desse processo. Marx já havia alinhavado lá atrás, em 1843, a questão do sujeito, ao afirmar em sua Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel que o sujeito desta transformação é o proletariado. Nesse texto em 1859, está implícito. Ele não cita isso. Veja, é um texto posterior ao Manifesto Comunista. No Manifesto Comunista ele falou disso claramente, mas nesse texto, na hora de descrever o mecanismo, a forma como a sociedade muda, parece desaparecer o sujeito. Pode parecer, numa leitura superficial, que a história, não mais do que um processo objetivo de desenvolvimento, das forças produtivas, ou seja, das técnicas, da força de trabalho, da ação da força trabalho sobre a natureza, na sua transformação, gerando um quadro cada vez mais desenvolvido de forças produtivas materiais. Esse desenvolvimento, objetivo e independente da vontade dos indivíduos, entraria em contradição com a forma das relações sociais de produção existentes, isso permitiria uma mudança social. Ora, se a gente não tomar cuidado, o sujeito da história é a própria história, ou o próprio avanço das forças produtivas.
Por que o sujeito não aparece nesta frase? O momento da análise aponta as condições objetivas que tornam possível a mudança, no entanto, nos limites do prefácio não comparece um elemento central da teoria social de Marx, a afirmação que a história se move pela luta de classes.
As forças produtivas avançadas, inscrevem na história uma classe social que precisa, exige, necessita da mudança das relações sociais existentes, no entanto, essas relações sociais de produção existentes, se expressam em outra classe social, que ao contrário, necessita manter essas relações sociais. Uma classe quer manter as relações sociais, a outra classe quer alterar as relações sociais, o que vai ocorrer é uma luta entre essas classes. A história é uma resultante dessa luta. Se a classe que representa o avanço das forças produtivas derrota a classe que representa a necessidade de manter as atuais relações sociais, a história muda. Se o inverso ocorre, se a classe que representa a necessidade de manutenção das relações sociais vence essa luta, a história não muda.
Portanto, não há nenhum automatismo na história. Há na verdade, o resultado de
uma luta de classes que faz com que a história avance ou permaneça como está, ou em certos casos, regrida. Ora, mas quando a gente volta aos elementos essenciais do pensamento filosófico alemão e a maneira como Hegel compreendia o fluir da história, isso não é nenhuma novidade. A história não é linear. A história caminha por contradições, por saltos de qualidade. De maneira que o novo ainda traz em si o velho, o velho já traz em si elementos do novo. As formas que são definidas por certas contradições internas que, ao se desenvolverem, rompem essas formas, geram formas novas, que já trazem contradições, que vão gerar novas formas. Cada um dos elementos que constitui o ser da dialética, que nada mais é do que a pretensão de captar, lembremos, o movimento do real. A dialética é a lógica de captação desse movimento do real em movimento.
Todos os elementos contidos nesta visão de sociedade de Marx, são profundamente enraizados com cada um desses elementos da dialética. E com um pressuposto, qual o pressuposto? Que é a base material, é a que determina o terreno dentro do qual esse movimento se dá. Uma dialética de base materialista. Conclusão que ele tinha, aplicando esses conceitos ao ser da história em movimento: a história não mudará pela vontade dos indivíduos, não adianta, os socialistas se reunirem e dizerem “a história tem que mudar”. Tá bom, mas quando que ela pode mudar? A conclusão que Marx tira dessa aplicação do método é para o seu tempo uma resposta correta, mas uma resposta dramática. Qual a conclusão a que Marx chega?
Retomemos. Uma sociedade só muda com o pleno desenvolvimento das forças produtivas, até que elas entrem em contradição com as relações sociais de produção, a conclusão que segue no texto é a seguinte: nenhuma sociedade muda antes que a sociedade anterior desenvolva todas as formas de produção, todas as formas produtivas existentes. Jamais surgem relações sociais mais altas e mais novas antes que, no seio da sociedade antiga, surjam condições para tanto. E nós podemos agregar, mesmo dadas essas condições, é necessário um sujeito histórico, uma classe capaz de representar na luta de classes, essa necessidade histórica, em luta contra o
seu adversário, derrotá-lo. O que implica derrotar todos os instrumentos que garantem essa classe dominante o seu domínio, portanto, os instrumentos políticos, os instrumentos jurídicos e a sua expressão nas formas de consciência.
É uma hipótese teórica extremamente complexa. O que autorizava Marx a dizer que ela era possível, era uma possibilidade aberta, claramente no devir? O processo histórico, a luta de classe que está vivendo. Ele está vivendo em 1848, a classe trabalhadora em emergência, ele está vivendo a burguesia consolidando o seu poder e enfrentando já um novo inimigo, que não a ordem feudal em decadência, mas o proletariado em ascensão. Ele está vivendo um processo onde, o máximo do desenvolvimento da ordem burguesa bate em limites, só que ele está também, vivendo um processo onde a forma capitalista ainda não se desenvolveu plenamente. Portanto, ele é obrigado a chegar na seguinte conclusão: vai acontecer uma transformação social, já estamos numa época de transformação social, mas ela não ocorrerá na forma e quando as pessoas desejam, mas só em certas condições. É uma afirmação dramática. Se Marx pode afirmar junto com Engels, ao final do Manifesto Comunista: "proletários de todo mundo uni-vos"; agora ele é obrigado a dizer: "proletários de todo mundo calma, não é agora".
Uma vez que ainda não estava dado o avanço das forças produtivas capaz de gerar não apenas a contradição com as relações sociais existentes, mas as bases de novas relações, teria Marx caído no imobilismo? Nos parece que não. Seria, então, necessário construir as condições políticas, organizativas de consciência, na perspectiva dessa transformação necessária, que em germe, já está apresentada na realidade. Notem, sempre é bom lembrar, que estamos falando de alguém passando da metade do século XIX. Ele está lendo corretamente a realidade. Ele está vendo isso 20 anos antes, aproximadamente 20 anos antes, da experiência que, pela primeira vez os trabalhadores chegam ao poder, que é a Comuna de Paris em 1871.
Quando eclode a Comuna de Paris, Marx pode escrever no seu texto sobre esta experiência e a forma de Estado que anuncia: "eis a forma finalmente encontrada". Esta frase é interessante para o nosso tema: de onde sai o conceito de Estado Proletário,
adequado à transição que ele estava propondo ou prevendo como devir da luta de classe? Não sai de uma concepção teórica, não sai de uma genialidade da construção de um conceito, sai de uma experiência histórica, que é a Comuna de Paris. Portanto, a relação entre os conceitos e o real é uma relação que está sempre em movimento, porque sempre a história vai colocar questões que precisam ser transferidas para o âmbito de conceitos. O método é a ferramenta, é a mediação entre esses dois elementos, entre o real e o universo dos conceitos. Ele é aquilo que permite a quem analisa a história, compreender as contradições do real e, compreendendo-as, expressá-las em conceitos.
O capital, sua principal obra, nada mais é, do que um monumental esforço de captar o movimento próprio do capital num conjunto de conceitos. O que ele faz de forma brilhante. A conclusão de Marx, portanto, é que a forma capitalista ao se desenvolver geraria as condições da superação desta forma de sociabilidade, que ele traz historicamente, no seu bojo, que é a sociedade capitalista, que é a sociedade burguesa, que é o Estado burguês, que é a ideologia burguesa. Essa totalidade social determinada pelo capital, compreendendo a sua base material, ao se desenvolver, geraria as contradições e criaria um cenário propício para o desenvolvimento de um sujeito histórico, que representasse a possibilidade de uma profunda mudança social e política.
Ora, Marx morre em 1883, doze anos depois da Comuna de Paris. O que se segue à derrota da Comuna de Paris não é um momento de avanço da luta de classes, pelo contrário, é um momento de influxo da luta de classes. A derrota da Comuna de Paris vem seguida de uma retomada da reação, no conjunto da Europa e no mundo. Marx morre num momento de refluxo da luta de classes. Seus impiedosos críticos, já nesta época, se apressam a decretar a falência de suas teses.
Marcello Musto, lançou um livro recentemente, pela editora Boitempo, que é “O velho Marx”. É uma brincadeira com os livros sobre o jovem Marx, Marcelo Musto, que é um italiano, hoje vivendo no Canadá, e pesquisador da Universidade de York, foi atrás das cartas, textos e descobriu algo bastante interessante. Marx não só viveu bastante, viveu até 1883, como ele ficou muito produtivo até o final da sua vida, escreveu muito. Cartas, ensaios e diversos estudos. Ele começa o livro sobre o velho
Marx com uma afirmação bastante interessante: “Marx foi um idoso extremamente otimista, muito animado, muito alegre”. Contando, a partir de cartas e relatos de pessoas que conviveram com ele, que era uma figura muito amável, que gostava de contar piadas, contrastando com aquela ideia de uma pessoa amargurada, porque suas ideias não deram certo. Dois motivos me fazem pensar que isso é compreensível. Primeiro, Marx tem uma visão diferente sobre teoria. Para ele, a teoria social não é uma teoria exata que pode ser comprovada em laboratório, você faz uma hipótese, faz uma experiência, e aí dando certo você confirma suas hipóteses, dando errado você descarta e vai buscar outras. O laboratório da teoria social é a história, e temos aqui o problema do tempo. A história tem um ritmo de tempo diferente do ritmo dos indivíduos. Marx morre em 1883, estoura a Revolução Russa em 1917. Uma comprovação de suas teses, só que foi depois. O que ele tem a seu favor? Um método que lhe permite compreender o movimento do real. Ele permite compreender, a partir do real existente, o seu desenvolvimento, cenários do seu desenvolvimento. Vejam, não são adivinhações, mas são tendências do seu desenvolvimento. O capital é uma obra que reflete muito bem essa característica do método, o capital não é sobre o capitalismo existente no século XIX, é o capital e o seu movimento. Quando ele prevê, conceitualmente, o ser do capital, ele prevê e aponta para um devir desse ser do capital. O interessante é que quando nós analisamos o capital hoje e o seu desenvolvimento, ele é, em grande medida, muito mais próximo do desenho conceitual traçado por Marx do que daquele que os teóricos do capitalismo traçaram.
A previsão de Marx é muito mais próxima do real: desenvolvimento de um capitalismo plenamente desenvolvido, do que era dos seus adversários. Portanto, a teoria social também tem que ter comprovação. Ela é ciência, na perspectiva de Marx, mas ela não tem uma comprovação empírica, ao gosto dos moldes positivistas. Ela tem e precisa ter uma comprovação no próprio processo de desenvolvimento da história e na luta de classes. É aí que se encontra o nosso desafio. Para onde foi o processo de desenvolvimento da sociedade capitalista e da luta de classes? Distanciou-se da previsão de Marx? Comprovou as previsões de Marx? Ainda permite que a gente se apoie nesse método, para compreender as contradições do tempo presente e o seu desenvolvimento?
Boaventura de Sousa Santos (1999), no seu Pela mão de Alice, quando vai analisar a tradição sociológica de tentar explicar a sociedade, formula uma frase bombástica. Diz o sociólogo lusitano: dos três grandes pensadores da sociologia moderna, Weber, Durkheim e Marx, este último é entre os três o que errou de forma mais espetacular. Por que Boaventura expressa com tamanha convicção este juízo? Ele está expressando um pensamento que se tornou quase um senso comum acadêmico, nas duas décadas finais do século passado. Marx teria sido um pensador do século XIX, que antecipou de forma brilhante o século XX e que não conseguiu explicar o século XXI. Essa é, em resumo, a maldição apontada por Boaventura nesse texto. Ele não está sozinho, Claus Offe, de outra maneira, fala o mesmo. Alain Touraine, vai falar a mesma coisa. Foucault, diz algo semelhante. O Claus Offe, tem uma passagem onde ele fala: diante da configuração do capitalismo contemporâneo, o pensamento de Marx não tem mais respeitabilidade acadêmica, perdeu a respeitabilidade, ele errou, o mundo está muito diferente daquele que Marx havia apontado. Um outro autor alemão chamado Ralph Dahrendorf (1982), começa por um largo elogio a Marx, dizendo o seguinte: Marx é um gênio, desvenda como ninguém o ser do capital industrial, consegue compreender o seu movimento, consegue captar sua contraditoriedade, consegue chegar à explicação do seu desenvolvimento e da sua crise, mas Marx não compreendeu o final do século XX. Por que? Para não ficar apenas numa exposição de afirmações. Vamos a alguns argumentos do Dahrendorf: Marx acreditava que a sociedade se simplificaria do ponto de vista das classes, cada vez mais entre burgueses e proletários. As sociedades contemporâneas são sociedades diversificadas, que entre burgueses e proletários surgiu segmentos médios e subsegmentos superiores e inferiores, dentro da própria classe trabalhadora, fazendo com que a sociedade se diversificasse. Segundo, Marx achava que essa dualidade levaria a um confronto entre burguesia e proletariado, não levou. Burguesia e proletariado se aliam nas sociedades industriais para poder gerar uma sociedade em que ambos possam garantir seus próprios interesses, o corpo da sociedade
democrática. Errou achando que a única possibilidade dos de baixo, os trabalhadores, subirem e ascenderem socialmente, era derrotando e destruindo essa sociedade. Quando na verdade gerou-se uma espécie de institucionalidade dessa luta transferida para formas institucionais e parlamentares. E por fim, uma previsão do Ralph Dahrendorf, tem que explicar que ele é alemão, que a sociedade contemporânea não é uma sociedade de carência, onde a posse dos meios de produção e dos recursos essenciais, poderia realizar ou o interesse dos trabalhadores ou o lucro dos capitalistas, mas é uma sociedade de abundância, graças ao desenvolvimento tecnológico, e portanto, essa abundância geraria possibilidade de critérios de repartição da riqueza, no centro muito mais do que a posse e propriedade dos meios de produção.
São argumentos dos sociólogos contemporâneos tentando criticar Marx. André Gorz (1987), outro, esse francês, que diferente de Dahrendorf, vem de uma tradição marxista, afirmará que Marx errou em três pontos fundamentais: na sua afirmação que o desenvolvimento das forças produtivas geraria as condições da revolução proletária, as forças produtivas se desenvolveram, mas geram um capital cada vez concentrado e monopolista, mais forte, e quanto mais se cresce mais consolida o capitalismo apesar do seu mau funcionamento. A frase do Gorz é mais ou menos essa, o capital sobreviveu ao seu mau funcionamento, e mais, ao invés desse desenvolvimento do capital gerar o sujeito da transformação, ele diminui o sujeito da transformação, o próprio capitalismo ao crescer diminui e não faz crescer o proletariado, portanto, a transformação social não virá, como Marx imaginava. Para ele (André Gorz), “o proletariado morreu", daí o título de seu livro mais famoso - Adeus ao proletariado. Ele não está sozinho nessa afirmação. Hannah Arendt (2000) em 1958, vai escrever e publicar o seu livro - A condição humana -, dizia que o desenvolvimento das forças, ela não fala em forças produtivas, o desenvolvimento da técnica, da ciência, geraria possibilidade do ser humano escapar do seu mais antigo fardo, o trabalho. O trabalho seria superado na sociedade, diz ela. Ela está falando isso na década de 50. Dentro de décadas as fábricas se esvaziarão, não existirá mais trabalho operário. A sociedade do trabalho será superada, isso gera um mito, gera uma afirmação que se consolidou com uma grande força nos anos finais do século XX. Habermas (1990) irá recuperar Hannah Arendt, para dizer que não, ela estava certa só que errou na data, agora o capitalismo
contemporâneo, plenamente desenvolvido vai caminhar para sociedade do fim do trabalho. E vai ser substituída pela centralidade da distribuição e dos critérios dessa distribuição, portanto, da política, dos valores éticos e da comunicação entre os agentes que conformam a sociedade. Ele vai, a partir daí derivar a sua teoria do agir comunicativo.
De forma geral, vai se consolidando, nas duas últimas décadas do século passado, a convicção que as principais afirmações de Marx haviam batido no limite.
Agora o que daria materialidade a esse pensamento social, que se expressa no final do século passado? A crise das experiências socialistas. Em 1917 e nos anos posteriores, ninguém afirmaria isso, pelo contrário. Marx parecia ser um pensador surpreendente. Ele no século XIX, havia traçado uma perspectiva que estava se materializando em efeitos históricos muitos anos depois da sua morte. Mas o final do século é o século da reversão disso. Do impasse na União Soviética, na sua regressão, na sua desconstrução, a partir de 1989. A desconstrução da experiência socialista, a partir da crise da União Soviética, mas não só, no impasse e nas opções tomadas pela Revolução Chinesa, do isolamento de Cuba, das experiências de libertação nacional na América Latina, na África e na Ásia, faz com que a experiência socialista passe a ser considerada um episódio, de uma tentativa que bateu no limite e deu errado. Francis Fukuyama, um filósofo hegeliano profundamente comprometido com as teses liberais, formula sua tese do fim da história, exatamente nesse contexto que estamos falando: a humanidade finalmente percebeu o equívoco da alternativa socialista e descobriu o seu destino final, que seria a sociedade burguesa plenamente desenvolvida, com uma economia de mercado livre e um estado democrático, portanto, o mundo já chegou no ponto aonde ele tanto tempo buscou: a sociedade democrática e a liberdade mercado.
Com o "fim" do socialismo, a humanidade seria unificada por essa meta comum. Estava muito forte, estava muito presente no final do século passado esta ofensiva contra as hipóteses de Marx. Tal fato não é original, várias vezes desde a época em que Marx ainda vivia que anunciam sua definitiva superação e seus evidentes erros.
Parece que Marx tem que ser morto várias vezes. Todo mundo, no final do século passado, estava convencido que agora era o verdadeiro enterro, com o desfecho das experiências socialistas, a forma do capitalismo mundial, as mudanças materiais pareciam gerar um cenário estranhíssimo, onde o próprio Marxismo havia previsto a sua superação, não era uma tese estranha ao Marxismo, o capitalismo se desenvolveu e gerou uma materialidade que superou a própria classe trabalhadora, portanto, acabou. Eis, no entanto, que estoura a crise de 1974, se arrasta com uma longa crise estrutural, nos termos de Mészáros (2002), e que pega no seu ponto de inflexão mais agudo agora em 2018. Cada vez que o capital entra em crise, didaticamente ele comprova as teses principais desse autor, portanto, ele volta a ser considerado atual.
É um autor, nesse sentido, incômodo, porque ele consegue explicar o mecanismo do Capital que os próprios capitalistas não conseguem entender plenamente. Então, quando estoura uma crise, ele acaba sendo resgatado novamente. Ele vai ser recuperado, na forma mais recente como autor que tem que acertar contas com algumas das suas previsões, e é o que a gente aqui encerra na última parte da fala. O quadro seria mais ou menos o seguinte. Ao que parece o capitalismo plenamente desenvolvido gera uma contradição em que ele altamente concentrado e centralizado mundialmente, ameaça de fato a existência da humanidade. Isso é uma constatação, no entanto, ele parece ser, ao mesmo tempo que incapaz de garantir a continuidade da vida humana, extremamente capaz de perpetuar as condições da sua própria reprodução, ou seja, ele não tem uma força histórica de garantir a reprodução do conjunto da humanidade, mas tem uma incrível capacidade de reproduzir as condições da sua existência enquanto capital, entre elas uma incrível capacidade de impedir que o sujeito histórico dessa transformação contrária ao capitalismo se expresse.
A segunda constatação é que isso leva a um impasse. Pela primeira vez a humanidade se vê diante da possibilidade da sua extinção, porque o capital plenamente desenvolvido, e diante da "impossibilidade", de sua superação, pode eliminar as condições da vida humana. Veja, essa é uma coisa interessante, porque isso é impensável no século XIX. Marx não poderia pensar nisso. Não se poderia supor que nenhuma forma histórica poderia inviabilizar a vida humana, mas o capitalismo
desenvolveu as condições para inviabilizar a vida humana, as forças produtivas avançadas capitalistas em contradição com as relações sociais existentes ameaça à vida humana, e pode eliminar a humanidade da face da terra. Isso faz com que o mundo contemporâneo seja o mundo que está à beira de uma catástrofe. Essa catástrofe assume a forma de barbárie.
Vejam, é muito diferente da previsão idílica que os liberais haviam previsto. Os liberais apontavam para a ideia de que o capitalismo plenamente desenvolvido iria, paulatinamente, resolvendo os problemas da humanidade, as desigualdades sociais, as desigualdades de riquezas, as desigualdades regionais, o acesso à cultura, a expansão dos serviços, o acesso a bens e serviços essenciais a todos; aquilo que Marshall chegou um dia a chamar de “Plena Cidadania”. Ora, o capitalismo real é o inverso disso, quanto mais ele cresce, ele vai reduzindo o acesso à bens, serviços e direitos para a grande parte da população. A questão que parece ser decisiva é até que ponto essa crise produz o sujeito da sua superação?
E essa é uma questão que precisa ser pensada, ele não é o sujeito que Marx imaginava no século XIX, porque é evidente que a forma capitalista do século XXI é diversa daquela que Marx conheceu e desenvolveu no século XIX. Da mesma forma, a sociedade que se fundamenta nessa base também é diferente e dentro delas, as classes que a compõe. No entanto, a tese do fim do trabalho e do fim do proletariado como sujeito, se apegou a mudanças de forma da produção capitalista, e não da sua substância e da sua essência. O capital continua a se reproduzir em escala ampliada e a se concentrar. A produção continua social, a acumulação continua privada, a forma que essa riqueza assume para poder ser o ciclo de vida do capital ainda é a forma mercadoria. Ora, dentro dessas condições é impossível que essa forma de produção continue sobrevivendo sem o sujeito dessa forma, que é o trabalho. O trabalho ainda é a base sobre a qual o capital se apoia para poder extrair o mais valor, ainda que a forma dessa extração e a forma desse trabalho tenha sido alterada. Ela não é mais o proletariado do século XIX e não é mais o proletariado do início do século XX. O
proletariado do início do século XXI assumiu uma forma particular, mais geral, muito mais ampla do que o proletariado de outras épocas. E isso, as estatísticas comprovam e o hiperempirismo do fim do trabalho ignora. Da população mundial, o número de pessoas que, não tendo como produzir sua própria existência são obrigados a vender sua força de trabalho duplicou, duplicou mundialmente. Se você pega essas estatísticas por países, ele se estabilizou no centro do sistema e praticamente dobrou na periferia do sistema ou nos chamados países em desenvolvimento, nos países em industrialização, seja como queiram chamar.
Mas, o fato é que, no meio desse crescimento da força de trabalho assalariada, portanto, do proletariado, cresceu significativamente a extensão da mercantilização da vida para outros setores. Você não vê um processo de diminuição disso. Você não vê um processo de outras formas de produção da riqueza que não pela mediação da mercadoria, pelo contrário, a mediação da mercadoria persiste e ela é estendida a outros segmentos; chegando inclusive à educação, à saúde, à serviços fundamentais, etc. Formando aí um novo contingente de assalariados, como trabalho desses segmentos que foram então mercantilizados, isso em escala mundial, numa escala mundial sem precedentes. Principalmente no final do século passado para cá, há uma ampliação consistente disso, portanto, nós temos aí um segundo paradoxo: você tem um sujeito, ele é mundial, ele é extremamente numeroso, mas ele é cada vez mais invisível. Você tem um proletariado mundial que não se vê como um proletariado mundial, uma classe que não se vê como uma classe. Isso é um problema central da luta de classes contemporânea. E um problema que interessantemente, tem pistas na própria formulação marxiana, mas que certamente, não foi totalmente desenvolvida. E não o foi não por um desvio ou erro teórico, mas porque o autor morreu em 1883.
Se o pensamento é a expressão ideal da realidade em movimento, não adianta ficar querendo o pensamento do autor preveja o que ele não viu e não poderia ter visto. Ele morreu. Porque se a realidade é um movimento constante, o pensamento também é. Os pensadores representam momentos da construção desse pensamento, a base que Marx nos deu é fundamental. Ali há uma pista interessantíssima: as classes não são em si mesmo classes, não é pela simples posição dos indivíduos na divisão social do trabalho, diante da propriedade, que as pessoas constituem uma classe. A forma de
expressão imediata dos trabalhadores que constitui a classe trabalhadora é um bando de indivíduos concorrendo entre si, não se forma enquanto classe. Ele só se forma enquanto classe na medida em que, diante das contradições da vida, se juntam para lutar contra o capital. Esse aspecto é essencial. A classe não é uma realidade sociológica. Esse é o maior erro da sociologia burguesa, achar que a classe é uma realidade sociológica. Marx tem a convicção de que a classe é uma realidade histórica. Ela se forma na medida em que o processo de luta de classes se dá. É só quando os trabalhadores se juntam para lutar contra a burguesia que eles se constituem numa classe, aquilo que Marx chama de classe em si, mas mesmo esse momento não faz dessa classe o sujeito que Marx previu como necessidade histórica, é exatamente do desenvolvimento dessa classe que se juntou, no processo de luta, que se constituiu como classe, diante das barreiras da realidade, dos limites da luta de classes, que coloca para si a mesma necessidade de transformação da sociedade e pode se converter, no calor da luta de classes, em uma classe para si. A classe que se junta para lutar contra o capital ainda é uma classe da sociedade do capital, por isso em si. É só em certas condições que ela assume a consciência da necessidade da transformação da sociedade para o outro patamar, e portanto, se constitui num sujeito histórico da transformação. Marx só pode prever isso teoricamente, naquilo que se dá em germes da expressão dessa classe no tempo em que ele viveu. Ele talvez tenha visto isso de forma um pouco mais desenvolvida somente na experiência, na experiência da Comuna, mas sua época foi, sem dúvida, uma época de intensa luta de classes, desde os levantes de 1848, passando pelo movimento sindical, até a Comuna. Entretanto, não podemos afirmar que foi um período linear de ascenso de lutas, isto é, foi marcado igualmente por derrotas e retrocessos.
Aqui se apresenta um aspecto que nos traz uma pista interessante para entender nosso tempo. Se a classe é esse processo de constituição, esse processo pode avançar e pode retroceder. A classe pode, no processo de luta, se constituir enquanto classe, mas também diante de uma derrota se desconstruir enquanto classe, voltando a
ser aquele coletivo serializado de trabalhadores, fazendo as mesmas coisas, mas não formando um conjunto ou uma unidade política que permite se constituir como sujeito. Marx viu isso durante vários momentos na sua vida.
Nós vimos o mesmo fenômeno durante o século XX e nos tempos que nos cabem viver agora. O risco é que diante dessas manifestações de constituição e desconstrução da classe, a consciência de cada época toma decisões muito precipitadas, seja de um lado, seja de outro. Se um analista olha um momento onde a classe está unida, lutando contra o capital batendo em barreiras e ultrapassando na perspectiva revolucionária, chegam à conclusão que a classe é um ser revolucionário, mas se ele vai analisar um outro momento, onde essa classe derrotada, se desconstrói, se serializa, se fragmenta, ele vai falar: bom, a classe não existe. A sociologia ao tentar entender se existe ou não a classe trabalhadora, se ela é ou não revolucionária, fica presa aos momentos particulares em que a classe se manifesta e não à totalidade do movimento, então ela vai analisar, agora naquele momento que a gente estava estudando, final dos anos 80, acabou a classe trabalhadora, não existe a perspectiva da revolução, a classe está preocupada em sobreviver, ela deixou de ter um comportamento político, não existe classe. De repente, a classe entra em luta e bom, voltou a classe. Lembro de Boaventura de Sousa Santos: Marx errou, não tem mais luta de classe, acabou a classe. Ele recentemente, escreveu um texto sobre a Europa dizendo a luta de classes voltou. Porque voltou? Basta ver as manifestações na França, agora recentemente.
Presa a aparência, a sociologia ora decreta o fim da luta de classes, ora se espanta diante de sua vigorosa manifestação. Não percebe, como Hegel, que a verdade está no todo. São momentos do movimento da própria construção da classe, ora se constituindo em luta contra o capital, em certas condições, se constituindo como sujeitos históricos e diante da luta de classes sendo derrotada, se desconstruindo. Não existe um juízo definitivo. Gorender (1999), que é, sobre todos os aspectos, um marxista honrado, com uma contribuição séria, caiu nessa ilusão ao escrever um dos seus últimos livros chamado Marxismo sem utopia, no qual afirma que o Marxismo acabou caindo numa visão utópica, supondo a construção de um sujeito revolucionário, que mudaria o mundo, quando na verdade, os trabalhadores não são esses sujeitos. E
usa uma frase definitiva e muito complicada, “os trabalhadores seriam ontologicamente reformistas. Bom, eles não são tão ontologicamente nem reformistas, nem revolucionários, na verdade eles oscilam em comportamentos políticos diferentes em cada um dos momentos da luta de classes.
Essa perspectiva nos permite olhar para a realidade contemporânea para dizer o seguinte: o capital se aproxima da barbárie. Essa é a boa notícia de hoje. O capital ao se aproximar da barbárie, ele está dando claros sinais que a sua sociabilidade não é mais compatível com o desenvolvimento das forças produtivas que ele tornou possível gerar. Isso não é uma negação de uma hipótese de Marx, é a confirmação de uma das principais afirmações deste autor. O capital já é uma força que entra em contradição com o avanço das forças produtivas. A sociabilidade do capital só pode existir em contradição com a reprodução social da vida do conjunto da humanidade, em poucas palavras, o capital ao desenvolver-se ele ameaça a existência da humanidade. A humanidade para se desenvolver tem que superar o capital. Abre-se uma época de revolução social. Segunda hipótese de Marx: nesse momento inscreve-se uma classe como sujeito da transformação necessária. Aqui reside o problema. Aquela classe que deveria se insurgir diante dessas condições, parece ser a base de massas para projetos contrários a ela. Veja, essa é uma contradição da luta de classes na época contemporânea. Isso se produziu em outros momentos. É bom que se diga, mais dramáticos do que nós estamos vivendo hoje, o nazi-fascismo na Europa, por exemplo. Hoje produz fenômenos aparentados a isso, mas que são explicados por categorias muito semelhantes àquelas que explicaram a emergência do nazi-fascismo nos anos 20 e nos anos 30. Uma derrota da classe, uma necessidade do Capital resolver suas lutas intra e infra burguesas por uma alteração na forma do Estado. A necessidade de uma opção da pequena burguesia para realizar os interesses do grande capital, lograr uma base de massas no proletariado, quer dizer, isso só é compreensível com uma última categoria que gostaria de trazer da atualidade do pensamento de Marx, que resulta da aplicação do seu método, que é a ideologia.
Sem o conceito de ideologia é incompreensível a sociedade
contemporânea. Marx nunca afirmou que os trabalhadores ao pertencer à classe trabalhadora, desenvolve um conjunto de ideias e valores que o impulsionam à transformação da sociedade. Ele nunca disse isso. Pelo contrário, as ideias que movem os trabalhadores, os valores, os conceitos, os juízos, em poucas palavras, a concepção de mundo que conforma a sua consciência imediata do mundo é a consciência da sociedade burguesa. Quando uma consciência social assume a forma de uma consciência de uma classe dominante, para manter o mundo atual, e portanto, implica em ofuscar, obscurecer as determinações, inverter, naturalizar, justificar a existência dessa sociedade e fundamentalmente, apresentar o interesse particular dessa classe como se fosse o interesse do conjunto da sociedade, essa forma de consciência assume uma forma de uma ideologia. A ideologia é extremamente eficiente para manter a sociedade agonizante, perpetuada, porque os próprios trabalhadores são capturados por essa ideologia defendendo os interesses da classe dominante no lugar de defender seus próprios interesses.
A maneira como isso se sofisticou durante o século XX, tem encontrado reflexões bastante pertinentes, como a Escola de Frankfurt, como, por exemplo, o conceito de indústria cultural. Devemos lembrar, também, os estudos de Gramsci, que busca entender a maneira como o domínio político, necessariamente se completa com o domínio ideológico.
Marx e Engels, em seu famoso estudo sobre o tema da ideologia afirmam que: a crise da sociedade, aquela onde as forças produtivas avançadas acusam a contradição com as relações sociais de produção, é acompanhada de uma crise da ideologia, onde os antigos valores e ideias que eram correspondentes à um sistema de dominação, ideias e valores através das quais a classe dominante apresenta os seus interesses particulares como se fossem universais, também entra em crise, perdendo a correspondência que existe com a realidade, se tornando ideias não correspondentes, inautênticas, se transformando em pura hipocrisia deliberada.
Marx e Engels aí descrevem o processo que, creio eu, é o conceito da crise atual da sociedade capitalista. Eles não estão falando isso apenas presos à sua época, apesar de falar da sua época, eles estão projetando isso para uma sociedade plenamente desenvolvida e em crise, que é a nossa. E é perfeito para descrever o
fenômeno ideológico de hoje. Porque a ideologia burguesa representa no campo das ideias aquilo que no terreno concreto é a crise da sociabilidade capitalista. Elas são o conjunto de ideias que representam, no âmbito das ideias, o que na história é, a sociedade burguesa. O que acontece na crise? A base material se altera e essas ideias permanecem paradas, elas perdem a correspondência. No entanto, o que Marx diz que nos permite caminhar para nossa conclusão?
Poder-se-ia imaginar que a burguesia, então, abandona as suas ideias que perderam a correspondência e finalmente, os trabalhadores vão buscar aqueles que passaram tanto tempo defendendo e desenvolvendo ideias revolucionárias. Não parece ser o que ocorre. Quando a burguesia entra em crise e a ideologia entra em crise, ela defende de forma mais veemente as suas ideias, de forma ainda mais sagrada, por isso ela assume a forma de uma hipocrisia deliberada, porque a burguesia sabe que não corresponde mais à realidade, mas mesmo assim, as defende.
É uma consciência cínica, é uma consciência hipócrita. Veja, um exemplo disso muito rapidamente: a sociedade burguesa hoje é a defesa da democracia, mas a democracia não corresponde à realidade das sociedades. A realidade das sociedades é a profunda desigualdade, é a profunda contradição entre quem tem poder e quem não tem, é o poder descarado dos mais ricos, é o poder de quem tem poder, e que pressupõe a exclusão da maior parte da sociedade, de fato, das esferas de decisão. Quando as máscaras da democracia caem e revela-se sua face cruel, os poderosos respondem: é assim mesmo, não há alternativa. Essa é a síntese da sociedade hipócrita, da consciência da hipocrisia deliberada. A sociedade é para poucos. A ideologia tem que achar uma maneira de incluir esse princípio, absolutamente desumano, na ideia de uma sociedade humana. Como que, se sociedade é para poucos, o caminho para poder sobreviver nessa sociedade é estar entre os poucos. E daí as trajetórias individuais de autopromoção, da autoajuda, do empreendedorismo. São os caminhos individuais para transitar do grupo da maioria dos excluídos para fazer parte da minoria dos beneficiados.
Não é mais o sonho ideológico de uma sociedade que pouco a pouco vai estabelecendo a igualdade, vai estabelecendo a liberdade. A sociedade mundial é uma sociedade hoje concentrada na mão de pouquíssimas pessoas, que se beneficiam dela.
Como manter a maioria das pessoas fora disso, ainda sobre esse domínio? Sem o elemento da ideologia é impossível e sem os elementos políticos que transformam a democracia em formas cada vez mais abertamente autoritárias e violentas, isso é impossível. Então, a forma da sociedade contemporânea é dramaticamente a confirmação das previsões de Marx.
No entanto, se diante da crise da ordem do capital, o sujeito da transformação não se constituir? Ora, se esse sujeito não se constitui, essa ordem se perpetua em sua agonia. Ela não existe por natureza. Ela existe por interesses e por equilíbrio de forças. Se a classe trabalhadora não encontrar os caminhos da sua unificação para derrotá-la, ela se perpetua, assim como no fascismo hoje, colocado como possibilidade no Brasil.
A conclusão que nós podemos chegar é que os instrumentos de análise teóricos que Marx desenvolveu, no século XIX, construíram um poderoso arcabouço teórico que permite uma mediação entre a realidade em movimento e um conjunto de saberes que se constituem numa teoria. Essa teoria, estando em movimento, ela se realimenta do movimento do real e corrige, nega, amplia, aperfeiçoa, esses conceitos num eterno movimento de aproximação da realidade e do seu movimento. Ele não é uma forma acabada, no entanto, ele tem categorias, ele tem instrumentos que permitem, seja no escopo da lógica dialética, seja no princípio materialista, seja na aplicação concreta disso no conjunto de conceitos que derivam dessa formulação teórica, uma poderosa mediação para captar o movimento do real. Ainda que esse movimento do real não nos seja agradável. Na história, nós só podemos pretender captar o movimento do real e suas contradições. Nós só podemos interferir nesse movimento do real não com a teoria, mas com ação prática, com ação política, e isso pressupõe muito mais do que instrumentos teóricos. Isso depende dos instrumentos organizativos, isso depende da ação política, isso depende que a teoria se expanda para o caminho da práxis, construindo práticas revolucionárias que permitam à classe se constituir como um sujeito, derrotar seus inimigos e inaugurar uma nova fase da humanidade. Essa é uma possibilidade. Nos dias de hoje uma necessidade, mas não é uma inevitabilidade. Se
nós não construímos os caminhos para isso, a burguesia prevalece e encontra as formas de garantir a sua perpetuação, ainda que sejam formas cada vez mais destrutivas, reacionárias, como aquelas que, nos dias de hoje, parecem prevalecer na ordem mundial e no Brasil. Isso faz com que a gente se veja diante, novamente, de desafios que pareciam superados. Nós nos vemos diante de uma armadilha do tempo. Hegel dizia que a história se repete. Não é um privilégio só dele, Maquiavel dizia que a história se repetia. Marx, de certa forma, também acredita que a história se repete, mas ele faz um complemento à Hegel, dizendo a história se repete, mas Hegel esqueceu de dizer que a primeira vez como tragédia, a segunda vez como farsa.
A história se repete como se fossem expirais e não círculos. Ela é um movimento em que as voltas se dão cada vez em patamares distintos daqueles dos quais partimos. Você tem aparentemente, esses círculos, porque a história não é linear, a história é dialética. Os tempos se repetem? Se repetem, mas não se repetem. Como a gente precisa encerrar isso de alguma forma, eu costumo encerrar com uma poesia. Talvez a poesia dê um pouco a conta desse nosso impasse diante dos tempos que estamos vivendo e para talvez, encontrar alguma expectativa diante dessa aparente volta da barbárie que nós estamos vivendo. O poema se chama Outros Tempos4 e com ele me despeço:
Os tempos são outros não se enganem, atentos.
Mudaram as vestes, os nomes, não são mais os mesmos.
Seguem, no entanto querendo nossa carne e nossos sonhos. Se alimentam de nosso medo, querem nosso sangue, sedentos.
Os tempos são outros, é certo, mas, parecem que são os mesmos.
Suas botas, suas marchas, suas togas, até seus tropeços e contratempos.
Será que nós seremos os mesmos? Uma espécie de destino, sina, sorte? Seremos sempre a caça, a presa,
Outros Tempos, Mauro Iasi. Rio de Janeiro: Mórula, 2017, p. 77-78.
nosso fardo é sempre a morte?
Não, são outros os tempos. Talvez algo aprendemos.
À noite não apenas sonhamos, pelos dias não apenas passamos.
Sabemos olhar através dos disfarces, sob as máscaras o reconhecemos.
Não nos enganaremos.
Agora... talvez seja nosso tempo!
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Recebido em: 30 de novembro 2018. Aceito em: 08 de fevereiro de 2019. Publicado em: 28 de maio de 2019.
v.17, nº 32, jan-abr (2019) ISSN: 1808-799 X
Silvana Mara de Morais dos Santos3
O artigo analisa a concepção de diversidade humana em uma perspectiva de totalidade, elegendo o materialismo histórico como referencial teórico. Tem como objetivo realizar a crítica às perspectivas economicistas e politicistas de entendimento da diversidade e afirmar uma concepção de diversidade como característica do processo de individuação e sua necessária relação com a sociabilidade e as determinações oriundas da luta de classes.
El artículo analiza la concepción de diversidad humana en una perspectiva de totalidad, eligiendo el materialismo histórico como referencial teórico. Tiene como objetivo realizar la crítica a las perspectivas economicistas y politicistas de entendimiento de la diversidad y afirmar una concepción de diversidad como característica del proceso de individuación y su necesaria relación con la sociabilidad y las determinaciones oriundas de la lucha de clases.
The article analyzes the conception of human diversity from a perspective of totality, choosing historical materialism as a theoretical reference. Its purpose is to critique the economist and politicist perspectives of understanding diversity and to affirm a conception of diversity as a characteristic of the process of individuation and its necessary relation to sociability and determinations derived from the class struggle.
1 DOI: https://doi.org/10.22409/tn.17i32.p28303
2 Artigo revisado a partir da palestra proferida no IV Intercrítica realizado no dia 27/11/2018 em Natal/RN. A mesa foi coordenada pelo Profº. José Mateus do Nascimento. Agradeço ao Profº Dante Moura (IFRN) e a Prof.Lia Tiriba (UFF).
O IV Intercrítica – Intercâmbio Nacional de Grupos de Pesquisa em Trabalho e Educação – se realiza em um momento difícil de avanço do conservadorismo no Brasil e no mundo, que se expressa na radicalização das classes dominantes para a superexploração da força de trabalho, com destruição de direitos e profundo retrocesso no respeito à diversidade humana. “Veloz e furioso”, o sistema do capital se empenha para assegurar sua auto reprodução, orientada para acumulação e reprodução ampliada, sem considerar, em tempos de crise estrutural3, conquistas históricas e civilizatórias da classe trabalhadora em sua heterogeneidade e diversidade. Nas particularidades da realidade brasileira, a vitória das forças políticas de direita representa explícito avanço da combinação entre política reacionária, fundamentalismo religioso e moralismo. Isto mostra os grandes desafios que temos para assegurar reflexão crítica e práticas na perspectiva emancipatória. A interação acadêmico-política se torna ainda mais fundamental e o INTERCRÍTICA contribui nesta perspectiva.
Nosso objetivo, portanto, nos limites desse artigo, destina-se à discussão de quatro questões fundamentais: (1) os limites do entendimento da diversidade em determinadas concepções teórico-políticas no campo da esquerda; (2) Qual a concepção de diversidade que estamos defendendo; (3) Algumas polêmicas que gravitam em torno do tema da diversidade humana e sua relação com a luta de classes e (4) lições históricas e desafios que reflitam por que é imprescindível que um projeto de resistência na perspectiva da transformação social contemple a diversidade humana.
Em face desse objetivo não abordaremos as diferentes expressões da diversidade, que aglutina, dentre outras, a questão do feminismo, das relações sociais de sexo/gênero, de raça, étnicas e de identidade de gênero. Partiremos da concepção de diversidade humana em seu aspecto teórico-histórico, que envolve e, ao mesmo tempo, vai além das expressões que particularizam dimensões da diversidade.
3 Para análise da crise estrutural do capital e sua diferença ontológica para as crises cíclicas, ver MÈSZÁROS (2002).
Em termos teórico-metodológico, buscamos extrair, do legado marxiano e da tradição marxista, indicações que possibilitem o entendimento dessa complexa relação entre a luta de classes e a diversidade. Ademais, o tema soma-se a um conjunto de reflexões que visam, também, promover um processo de resistência teórico-política em tempos de avanço de um certo tipo de irracionalismo e da disseminação de uma cultura política fundada na defesa do anti conhecimento, do pragmatismo e do preconceito.
A produção do conhecimento em sua densidade histórica tem sido bastante desvalorizada nessa conjuntura. As contribuições para o entendimento da complexidade da realidade, por meio da crítica qualificada da vida cotidiana, do ethos burguês, do papel do Estado, das políticas sociais e dos limites das instituições na sociedade capitalista parece não ter valor nenhum para determinadas forças políticas conservadoras. O pior é que estas forças incidem ideologicamente sobre amplos segmentos da população brasileira e da classe trabalhadora, em particular. Por estas razões, não há dúvida quanto à relevância acadêmica, política e social da temática e sua atualidade no Brasil contemporâneo.
No final dos anos 1960 em nível mundial e, no Brasil, um pouco mais adiante, década de 1980, considerando o largo período da ditadura civil-militar, um conjunto de sujeitos coletivos anunciaram a necessidade histórica quanto ao reconhecimento da diversidade, levantaram suas bandeiras e questões, deixando vir à tona processos de auto-organização, principalmente, por meio de movimentos sociais e diferentes grupos, dentre outros, da juventude, das mulheres, dos indígenas, de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais (LGBT), da população negra nas lutas anti raciais e de grupos em defesa da questão socioambiental.
Estes movimentos sociais e demais coletivos provocaram uma série de questionamentos ao evidenciarem, na trilha dos movimentos feministas, que “o pessoal é político” e que expressões da diversidade humana relacionadas à sexualidade, gênero, à raça/etnia significava, na vida cotidiana, um perigoso caminho de opressão. Invisibilizados na vida social e submetidos às práticas de humilhação, violência e violação de direitos, os indivíduos, por apresentarem um
jeito de ser e viver de forma diversa aos padrões e sistemas hegemônicos, se tornaram alvo preferencial da discriminação e do preconceito. O inusitado foi que estas formas de opressão, historicamente reproduzidas em ambientes fundados no ideário conservador, tão funcional às classes dominantes, pareciam permeáveis, também, às forças políticas no campo das esquerdas.
Embora que a relação entre esquerda e diversidade, em suas diferentes matrizes, no plano internacional e nacional seja uma questão polêmica de longa data4, aqui faremos referência a um período mais recente, as últimas décadas do século XX. Sobre isso é pertinente a afirmação de Rodrigues (2011, p.26):
[...] é preciso ressaltar que mesmo os movimentos de esquerda, socialistas, dos trabalhadores, sempre tiveram uma dificuldade muito grande para incorporar alguns temas, como os direitos das mulheres, o combate ao racismo, e especialmente os chamados direitos sexuais. [...] sempre foram uma questão menor (como no caso das mulheres) ou simplesmente uma não questão (no caso dos homossexuais).
A presença especialmente dos movimentos feministas, LGBT, antirracistas, chamou atenção para o fato de que transformar as relações sociais vigentes era bem mais complexo do que os processos até então desenvolvidos de investimento na organização política da classe trabalhadora e na formação da sua consciência de classe. Até porque, valendo-nos de uma abordagem de totalidade na apreensão da realidade, podemos nos questionar: a auto-organização desses sujeitos significa, necessariamente, apostar na lógica da fragmentação, constituindo-se em obstáculo à formação da consciência de classe? Voltaremos a esta questão mais adiante.
As perspectivas teórico-políticas divergentes, que historicamente permearam as discussões entre as forças de esquerda, se voltaram para inquietações mais contundentes referentes à necessidade de aprofundar diferenças entre lutas gerais e lutas específicas; ao questionamento quanto à ameaça que o apelo político à diversidade provocava, por fragmentar a classe trabalhadora e descentralizá-la da construção de um projeto revolucionário anticapitalista. E, na base dessas polêmicas, emergia, com vitalidade, elementos de crítica ao marxismo, por supostamente desconsiderar a relevância do cotidiano, da diversidade e da
4 Podemos indicar as discussões que permeiam as reivindicações e lutas feministas por ocasião da Revolução Russa, a exemplo: SCHENEIDER (Org.) (2017) e GOLDMAN (2014) bem como as dificuldades da esquerda de tomar para si a agenda de combate ao racismo e defesa das estratégias anti-raciais e LGBTfóbicas.
individualidade/subjetividade5. Digo supostamente, porque discordo dessa crítica e espero, que ao abordar o conjunto das questões propostas e, notadamente, a relação entre diversidade e luta de classes possa explicitar tal discordância e mostrar a pertinência da perspectiva de totalidade na análise da vida social para apreensão dos complexos sociais da individualidade e da sociabilidade.
De modo mais abstrato, sem adentrarmos para as diferenças internas no universo das forças políticas, podemos afirmar que, no campo da direita, jamais houve acolhimento para a diversidade humana. A defesa da propriedade privada; de valores morais conservadores que, via de regra, se transmutam em moralismo e defesa da família tradicional, fundada no casamento monogâmico integram sua concepção de mundo e plataforma política. Assim, era plausível a expectativa dos movimentos sociais de que as forças de esquerda dialogassem e assumissem as reivindicações da diversidade em sua agenda política.
A realidade, no entanto, mostrou que a relação entre as forças de esquerda e a diversidade demanda um longo caminho de construção, que se apresenta, na maioria das vezes, bastante tortuoso. Obviamente que existiram forças de esquerda que conseguiram incorporar com mais capacidade política de articulação e criticidade às demandas da diversidade, mas a tendência majoritária foi o predomínio de uma leitura determinista/economicista da realidade. Tal leitura disseminou com muita força ideológica que a agenda em defesa da diversidade significava um entrave à formação da consciência de classe e que representava um certo atraso, decorrente de possíveis capitulações de militantes e organizações políticas ao universo pequeno-burguês.6 A ideia prevalecente é de que as formas de opressão, além de completamente apartadas dos processos de exploração da força de trabalho, tenderiam a se resolver de forma “mágica” com a superação do sistema do capital.
5 Para a crítica da crítica ao marxismo em face de uma suposta incapacidade teórico-metodológica para apreensão da diversidade humana e em particular da diversidade sexual, Cf. SANTOS (2018).
6 GREEN (2000, P. 433) ao resgatar a trajetória da homossexualidade masculina no Brasil do século XX, afirma que em 1979 em um debate público na Universidade de São Paulo “as discussões que se seguiram às apresentações dos oradores foram acaloradas, à medida que os ataques e contra- ataques entre os representantes dos grupos estudantis de esquerda e defensores dos interesses de gays e lésbicas cruzavam a sala. Pela primeira vez, as lésbicas podiam falar abertamente em público sobre a discriminação que sofriam. Os estudantes gays se queixavam de que a esquerda brasileira era homofóbica”.
A crítica a esta leitura economicista teve como principal alvo o marxismo. Acusado de se constituir como uma concepção teórico-política que considerava todas as dimensões da vida social como epifenômenos da economia, além de desvalorizar os complexos sociais do direito, da cultura e da individualidade e simplificar a construção de um projeto emancipatório, o marxismo foi, então, amplamente descartado no universo de boa parte das esquerdas, incluindo alguns partidos políticos, movimentos sociais e intelectuais historicamente identificados nesse campo político.
Em relação ao tratamento dado à diversidade, o resultado foi que as forças economicistas, para se diferenciar e criticar a denominada “nova esquerda” que emergia mundialmente, reforçaram, sem atenção nenhuma à vida concreta, a instauração de um fosso ainda mais abissal entre as lutas gerais e específicas; entre economia e cultura; indivíduo e classe social e entre vida subjetiva e militância política.
Consideramos que a crítica a esta tendência economicista foi e é pertinente. O problema é que a crítica ao determinismo ganhou o mesmo sentido de crítica ao marxismo. Houve uma generalização absurda quanto à inviabilidade teórica do marxismo para apreensão da realidade contemporânea. Renegado a uma teoria do século XIX, estava decretado pelas novas forças de esquerda, a impossibilidade de entendimento da realidade e da diversidade a partir de uma perspectiva de totalidade.
Esses aspectos característicos de uma visão reducionista da vida social foram atribuídos, equivocadamente, ao legado de Marx e se disseminaram, com intensidade, no seio do movimento operário e de suas organizações. Caracterizado enquanto um marxismo vulgar, de caráter positivista, os postulados da II Internacional erigem como a específica contribuição teórica de Marx – uma concepção simultaneamente reducionista e indevidamente generalizadora. Reducionista enquanto dissolve as concretas mediações e determinações histórico-sociais com a sua inserção num esquema lógico-interpretativo[...] e indevidamente generalizadora enquanto impõe esse esquema à realidade como um todo [...] (NETTO, 1981, p.20).
Se, para este tipo de esquerda, o marxismo não apresentava fundamentos capazes de favorecer o entendimento da sociedade contemporânea e da diversidade dos indivíduos, era preciso, então, buscar fontes teórico-políticas que pudessem incorporar o direito à diferença como algo fundamental. Amplos
segmentos de esquerda romperam com o marxismo e abraçaram uma perspectiva de análise da realidade que priorizava análises do cotidiano, da política, dos direitos humanos, da individualidade e da cultura. Temáticas indiscutivelmente relevantes. O grande obstáculo é que prevaleceu nessas análises a dissociação entre cotidiano e relações sociais no mundo capitalista. Não negaram a existência do capitalismo, mas não estabeleciam conexões e mediações históricas entre os fenômenos analisados e as determinações objetivas/subjetivas próprias do sistema do capital. Sobressaiu, portanto, a tendência de criticar o economicismo pelo viés de uma análise fragmentada, de caráter politicista na apreensão da realidade e, no limite, funcional à lógica dominante, em face da opção ideológica de viver e mudar as relações cotidianas, sem levar em consideração a historicidade dos processos reais que colocavam impedimentos à vigência da liberdade e da igualdade substantivas, nos termos de Mèszáros (2002).
É inegável as contribuições dadas pela esquerda não determinista. A agenda da diversidade ganhou visibilidade, com processos de politização da vida cotidiana e de inúmeras formas de opressão. A auto-organização de novos sujeitos coletivos foi um dos aspectos fundamentais para as conquistas obtidas, que, embora aquém das necessidades reais, são importantes. Ademais, por meio da visibilidade social e política que alcançaram no enfrentamento da violação de direitos, pautaram, implicaram e exigiram diante das reivindicações em defesa da diversidade, respostas do Estado, por meio de algumas iniciativas no campo das políticas públicas e sociais, destacando-se ações nas áreas da educação, saúde e cultura.
No entanto, a direção social atribuída para determinadas reivindicações se revelou insuficiente e, por vezes, equivocada ao disseminar ou naturalizar, por exemplo, a ideologia do fim das classes sociais e da impossibilidade de a classe trabalhadora construir um projeto político anticapitalista. A prevalência de uma abordagem centrada na perspectiva da subjetividade7 em detrimento da totalidade social definiu horizontes políticos e espaços prioritários de atuação.
As consequências deste ponto de vista da subjetividade para a reflexão acerca de qualquer fenômeno social são extremamente danosas. Se a realidade social não é uma totalidade articulada, mas uma coleção de fragmentos; se a fragmentação não é um produto histórico-social, mas uma determinação natural da realidade; se a nenhuma das partes da realidade pertence o caráter de matriz de
7 Cf. TONET (2013).
todas as outras; se inexiste um fio condutor que perpasse e dê unidade ao conjunto da realidade social; se não existe história, mas apenas histórias; se não existe gênero humano, mas apenas grupos sociais diferentes e, no limite, indivíduos singulares; se as categorias são meros construtos mentais e não determinações da própria realidade; se não existe verdade, mas apenas verdades; se o conceito de realidade nada mais é que uma construção mental; se perdido, rejeitado ou nunca efetivamente compreendido o fio condutor que articula todo o processo social – a autoconstrução do homem pelo homem a partir do trabalho – só resta ao sujeito interpretar e “transformar” o mundo segundo critérios por ele mesmo estabelecidos (TONET, 2013.p.63-64).
Assim, o horizonte da transformação social foi cedendo lugar para o ideário da igualdade de oportunidade8, como princípio orientador da organização coletiva de boa parte dos sujeitos coletivos e o parlamento e o judiciário se tornaram os espaços, por excelência, da disputa política, em detrimento das lutas sociais para além da legalidade burguesa.
Ressalte-se aqui que as lutas por igualdade de oportunidade são importantes, mas precisam ser bem articuladas e trabalhadas para não criar ilusões de que há condições reais de superar sexismo, LGBTIfobia9, racismo, exclusivamente por meio da legalidade, sem transformar o sistema capitalista, hetero-patriarcal-racista. Sobre o caráter ilusório da dimensão jurídico-política vale a seguinte reflexão:
a ilusão jurídica é uma ilusão não porque afirma o impacto das ideias legais sobre os processos materiais, mas porque o faz ignorando as mediações materiais necessárias que tornam esse impacto totalmente possível. As leis não emanam simplesmente da vontade livre dos indivíduos, mas do processo total da vida e das realidades institucionais do desenvolvimento social-dinâmico, dos quais as determinações volitivas dos indivíduos são parte integrante (MÈSZÁROS, 2008, p.163).
A rigor, podemos examinar que o solo histórico sinalizava a crise do capital que despontou a partir da década de 1970, mas que nos anos 1980 foi subtraída da análise de boa parte dos movimentos sociais e de outras organizações de esquerda. Uma análise criteriosa evidenciaria os limites estruturais para a efetividade real da igualdade, da liberdade e da diversidade no mundo burguês. Afinal, a tendência histórica do capitalismo desde suas origens foi de homogeneizar culturas, modos de ser, viver e sentir. E, neste sentido, desconsiderar a diversidade humana ou incluí-la
8 Para a crítica aos limites da igualdade de oportunidade, Cf. SANTOS (2010).
9 Lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e intersexuais (LGBTI).
mediante a vigência de uma relação meramente formal e/ou mercantil, sem atenção programática e política às necessidades e reivindicações no campo do feminismo, das lutas antirracistas e em defesa da diversidade sexual, exceto quando for possível transformá-las em nichos lucrativos. É necessário considerar, ainda, os limites que esta crise estrutural gera sobre os ganhos da emancipação política. Ou seja, a tendência contemporânea no mundo do capital é a regressão dos direitos.
Em síntese, para os economicistas, as reivindicações no campo da diversidade eram entendidas como lutas de caráter e relevância social inferiores, necessariamente fragmentadas e ancoradas na lógica de um pensamento e prática política completamente funcionais à reprodução do sistema do capital. Para os críticos do determinismo que formaram um novo tipo de esquerda, o momento histórico sinalizava para uma espécie de admirável mundo novo, que colocava em cena a pluralidade de atores, linguagens e um forte apelo para pensar a subjetividade dos indivíduos e a realidade em sua imediaticidade. Ocorre uma espécie de autonomização do indivíduo, da cultura, da política e do direito em face das determinações objetivas, abrindo caminho para consolidar concepções politicistas e culturalistas. E o grande equívoco teórico-político de entendimento da sociedade civil como campo exclusivo da atuação das forças populares resultou em um profundo distanciamento da realidade concreta da sociedade capitalista e da luta de classes como motor da história.
O duelo entre economicismo e politicismo marca as concepções teórico- políticas no campo da esquerda. Ambas concepções deixaram escapar o importante legado do pensamento marxiano e de autores da tradição marxista, a exemplo de Gramsci e Lukács, além de produções feministas, incluindo aquelas referentes à questão racial10, que tematizaram a necessidade da crítica ao capitalismo e relevância das lutas pelo socialismo. Apesar da importante crítica realizada por parte da esquerda ao determinismo, os fundamentos teórico-metodológicos utilizados por uma esquerda de caráter politicista reforçou processos de fragmentação das reivindicações, dos sujeitos políticos e a ilusão da colaboração entre as classes sociais ou no limite, sua extinção em plena vigência do capitalismo, assim como também, o fim das ideologias e a negação da centralidade do trabalho na vida social para afirmação da centralidade da linguagem e da política. As análises de caráter
10 Cf. DAVIS (2016).
economicista, politicista e culturalista apresentam, portanto, frágil nível de complexidade na apreensão do real, ainda que não fossem estas as intencionalidades dos sujeitos individuais e coletivos.
Feitas estas observações críticas ao entendimento da diversidade a partir das concepções economicistas e politicistas, destacaremos elementos reflexivos que possibilitem apreendê-la em uma perspectiva de totalidade.
A diversidade é, portanto, uma característica do indivíduo, que deve ser entendido como ser histórico em suas relações concretas de existência. Aí reside o caráter social da individualidade e a razão da diversidade ser apreendida na relação singular/humano-genérico. Neste sentido, abrange as expressões das relações sociais de sexo/gênero, étnico-raciais, de identidade de gênero, mas vai além. Trata- se da concepção de que todos os indivíduos são sociais, históricos e diversos. Com isto podemos afirmar a existência da diversidade Humana, aqui entendida como característica que se apresenta no processo de individuação, frente às exigências postas na divisão social do trabalho e no desenvolvimento do gênero humano (SANTOS, 2008).
Na perspectiva de totalidade é vital entender o trabalho como fundante do ser social e um conjunto articulado de mediações históricas que possibilitam apreender que “[...] a personalidade resulta da elevação das capacidades humanas como consequência indireta do desenvolvimento do processo de trabalho e, mesmo que por muitas mediações, tem sempre o trabalho como sua base ontológica fundamental” (COSTA, 2007, p. 19).
A diversidade como dimensão constitutiva da individualidade se aprofunda e se complexifica mediante o desenvolvimento histórico. Assim, as lutas contemporâneas que marcaram as últimas décadas do século XX e se atualizam nos dias atuais não traduzem toda a expressão da diversidade humana. São expressões significativas, com caráter político-estrutural, constituintes da individualidade ao lado de outras dimensões que conformam a singularidade. Pensar o indivíduo social como ser diverso pressupõe admitir que há modos singulares de apropriação do mundo. O tempo histórico, a inserção objetiva e posicionamento
subjetivo de classe, as escolhas pessoais, profissionais e políticas são determinações que incidem na formação da individualidade. Se pensarmos, por exemplo, indivíduos que vivem em uma mesma época; tendo os mesmos acessos institucionais (educação, saúde, cultura, lazer, dentre outros); mesma orientação sexual, identidade de gênero, raça, geração e escolhas ideológicas, mesmo assim são seres diversos. Com isso estamos afirmando que as relações sociais de classe/sexo/raça são dimensões politicamente estruturantes da diversidade humana, mas além de existir outras expressões, o indivíduo se faz diverso no processo de apropriação da sua existência em um determinado tempo histórico. As lutas sociais feministas, anti-raciais e em defesa da diversidade sexual foram fundamentais para pautar politicamente a diversidade humana, pois:
por intermédio dessas lutas, os indivíduos politizam a diversidade, sendo esta algo que é próprio da individualidade, que se expressa e se altera no desenvolvimento das forças produtivas, considerando as objetivações/exteriorização do ser social que demandam respostas cada vez mais complexas” (SANTOS, 2017:14).
A concepção de diversidade humana, possibilita que suas diferentes dimensões e expressões não sejam caracterizadas como recortes, marcadores sociais, estilos de vida e atributos no modo de se vestir, falar e se expressar. Em uma perspectiva de totalidade, assume um caráter bem mais complexo. Integra o processo de individuação, guarda relação de determinação recíproca com a sociabilidade e explicita o carecimento radical de cada indivíduo que, para assegurar o atendimento de suas necessidades necessita da produção do outro. Isto vale para as condições objetivas e subjetivas. Assim, “pela dimensão da diversidade, os indivíduos revelam singularidades, apresentam diferenças em seu modo de ser, de se apropriar, de se adaptar ou de buscar transformar as relações vigentes” (SANTOS, 2008, p.76).
Na sociedade capitalista, portanto, o indivíduo social, sob a perspectiva de sua inserção de classe vivencia a exploração da sua força de trabalho e o extravio e/ou empobrecimento da sua diversidade, que numa relação de consubstancialidade, expressa, também, as violações em face da raça/etnia, da sexualidade e da identidade de gênero. Isso porque os indivíduos são diversos e esta diversidade é um componente ontológico da sua individualidade.
Tem sido frequente os questionamentos sobre o caráter fragmentário das lutas sociais e organizações políticas que atuam em defesa de expressões da diversidade. Para além da posição economicista/determinista, há uma preocupação real com o possível distanciamento da luta anticapitalista por sujeitos que se organizam em torno do feminismo, da diversidade sexual e do antirracismo. De modo tal que refletiremos sobre as seguintes questões: há uma contraposição teórico-política entre a luta anticapitalista e a luta em defesa da diversidade humana? qual o potencial da agenda da diversidade para fomentar consciência de classe? E, ainda: é possível o entendimento efetivo e profundo da realidade da desigualdade social sem considerar as reivindicações por direitos relacionados ao respeito e valorização da diversidade?
Como vimos são muitas as questões. Nossa intenção é problematizar estes questionamentos em conjunto para contribuir com a reflexão sobre a relevância social, política e humana da diversidade.
A consciência de classe não se forma de modo automático a partir da experiência cotidiana com a escassez de direitos e/ou pela vivência com a exploração da força de trabalho. Ao contrário disso, trata-se de um processo histórico, não linear, mas dinâmico e contraditório, permeado por descobertas subjetivas e objetivas sobre o funcionamento da sociedade e pela superação de concepções fundadas no ideário dominante de naturalização da desigualdade social. Um processo que é forjado no cotidiano marcado no front entre a força material da ideologia dominante e da alienação e a capacidade de fomentar uma concepção de mundo que articule ações de resistência no universo do conformismo e necessidade de lutar para alterar situações de exploração e de opressão. Pressupõe um movimento simultaneamente individual e coletivo e uma dimensão educativa, que não se limita à educação formal, embora esta seja importante. Isto significa o desenvolvimento de estratégias educativas e de formação política que possibilitem a apreensão das relações sociais que estruturam a sociedade capitalista, com o antagonismo entre as classes sociais e a propriedade privada. No centro disso tudo
está o indivíduo em sua singularidade, fazendo e refazendo caminhos e aprimorando entendimentos, ora resistindo, ora adaptando-se, mas em movimento.
Diante disso, cabe questionar: há uma contraposição teórico-política entre a luta anticapitalista e a luta em defesa da diversidade humana? Defendemos que não, pois o entendimento histórico da sociedade vigente exige a superação da concepção determinista de classe social, exilada das complexas condições objetivas e subjetivas e esvaziada de historicidade. Isto implica o conhecimento de quem são os indivíduos que compõem as classes sociais. Não se trata de seres abstratos, sem vida, sonhos e buscas. São indivíduos concretos que precisam assegurar sua existência, que apresentam conflitos, que têm sexualidade, identidade de gênero, raça/etnia e que não conseguem escapar às determinações históricas do seu tempo. O feminismo materialista deu contribuição significativa para historicizar estes indivíduos, por meio da perspectiva da consubstancialidade-coextensividade que trata de forma indissociável as relações sociais de classe, sexo e raça. Contudo,
segundo Kergoat (2010, p.100) esta concepção:
[...] não implica que tudo está vinculado a tudo; implica apenas uma forma de leitura da realidade social. É o entrecruzamento dinâmico e complexo do conjunto das relações sociais, cada uma imprimindo sua marca nas outras, ajustando-se às outras e construindo-se de maneira recíproca.
Podemos pensar, também, na perspectiva de “analisar estas contradições na condição de fundidas e enoveladas ou enlaçadas em um nó [...] no seio da nova realidade – novelo patriarcado-racismo-capitalismo – historicamente constituídos” (SAFFIOTI, 2004, p.125).11
Qual o potencial, então, da agenda da diversidade para fomentar consciência de classe? Sob a perspectiva de totalidade, classe não é um todo abstrato, dissociado do cotidiano dos indivíduos. É possível e necessário para atribuir densidade histórica à classe social, captar mediações no campo da diversidade humana, que favoreça o entendimento de que as determinações societárias não se constituem como uma escolha que podemos considerar ou não. Simplesmente não há nenhum fenômeno realmente existente que não sofra determinações e
11Sabemos que se instaurou uma polêmica entre as perspectivas da consubstancialidade- coextensividade e a perspectiva da interseccionalidade que não vamos desdobrar neste artigo. No entanto, ressaltamos a relevância de promover entre estas perspectivas um bom debate, que significa entendê-las, optar por um caminho de análise, mas sem que isto represente a aniquilação das contribuições de ambas à reflexão crítica da realidade.
implicações das relações sociais vigentes e do modo como o hetero patriarcado e o racismo se tornaram funcionais à exploração e à dominação capitalista, alicerçando um sistema imperioso de dilaceramento da classe trabalhadora, em suas condições de vida e de trabalho.
Portanto, no sistema do capital que se estrutura mediante a propriedade privada dos meios de produção, a desigualdade social com a exploração da força de trabalho, combinada com inúmeras formas de opressão, temos determinações absolutamente contrárias à igualdade real, prevalecendo a igualdade meramente formal. O sistema vigente visa a acumulação em detrimento do atendimento das necessidades humanas, das mais básicas às mais complexas. Isto em si já seria suficiente para argumentar a inviabilidade teórico-política de cancelar as classes sociais na apreensão de qualquer fenômeno. Assim também como não é possível abstrair as relações sociais de sexo e de raça, posto que estas implicam dimensões da diversidade humana que além de serem constituintes da individualidade, representam, em uma sociedade desigual, um caminho fértil para aprofundar exploração e disseminar violação de direitos, formas de preconceito e de discriminação.
Do meu ponto de vista, é mais pertinente a pergunta inversa: como é possível consciência de classe sem consciência da diversidade humana? O mundo do trabalho não é um universo abstrato. Trabalhadores e trabalhadoras são históricos, sociais e diversos. Assim:
A classe como unidade na diversidade é especificada, ela própria, pela autonomia dos indivíduos que a compõem. Pensá-la como matriz única a partir da qual se constituem os indivíduos como sua repetição em nível do micro é não entendê-la como produto da multiplicidade desses indivíduos. A classe é, portanto, um coletivo de indivíduos. Coletivo que deve ser enriquecido pela história empírica desses indivíduos enquanto construtores das racionalidades sociais (DIAS,1996, p.39).
Prevalece, assim, um real potencial da agenda da diversidade para fomentar consciência de classe. Tudo vai depender da direção social atribuída ao entendimento e às reivindicações dessa agenda. Da mesma forma, o entendimento efetivo e profundo da realidade da desigualdade social só é possível mediante o conhecimento da formação sócio histórica e devida apreensão de como historicamente o racismo e o hetero patriarcado se constituíram em relações que
obstaculizaram o desenvolvimento da individualidade e o acesso à visibilidade social, ao trabalho com direitos e a viver sob a mira da reprodução cotidiana da violência. Não há como não considerar as reivindicações por direitos relacionados ao respeito e à valorização da diversidade, se a intenção for o conhecimento do real, em suas múltiplas determinações.
A diversidade, portanto, não se contrapõe à luta de classes, mas pode enriquecê-la, por possibilitar o conhecimento, resistência e luta contra o que explora, oprime, humilha e viola direitos em sua densidade histórica, pois são os indivíduos determinados, de carne e osso que dão concretude à classe social
É vital em todos os momentos históricos buscarmos apreender as lições que nos sirvam de reflexão crítica para superar equívocos e⁄ou aprofundar estratégias que possibilitaram conquistas importantes relacionadas ao universo do trabalho e da diversidade humana. Destacamos as contribuições da perspectiva de totalidade na análise da vida social como lições históricas densas de significado e desafios.
Uma dessas lições é a certeza que não é possível ignorar a crise do capital neste momento contemporâneo, que gera um processo de regressão dos direitos que atinge mundialmente a classe trabalhadora como sujeito político coletivo e os indivíduos em suas singularidades. Com isso, submete os indivíduos a viver um cotidiano sem possibilidade e acesso às condições de trabalho, saúde, cultura e lazer e com alto índice de adoecimento em face das relações e condições de trabalho e, também, em decorrência das inúmeras batalhas cotidianas. Prevalece, portanto, uma tendência de profundo empobrecimento das condições objetivas e subjetivas, que apesar do amplo desenvolvimento das forças produtivas, a maioria da população não tem acesso ao que de melhor a humanidade tem produzido do ponto de vista material e espiritual, caracterizando a complexa relação entre capitalismo, questão social e barbárie.
Assim, o entendimento crítico da particularidade da questão social no Brasil exige que façamos articulação entre três divisões que assumem dimensões estruturais e que, mediadas por inúmeras determinações, estabelecem organicidade entre si: a divisão social, fundada nas relações entre classes sociais e projetos distintos de sociedade; a divisão racial, fundada nas relações sociais de raça e a
divisão sexual, fundada nas relações sociais e patriarcais de gênero/sexo. Isto significa que a diversidade não é uma questão específica ou de teor menor, que possamos optar por considerá-la ou não na apreensão da realidade.
Vivenciamos, portanto, uma situação de barbárie que é objetiva e subjetiva, marcada por um processo de decadência ideológica12 em que as classes dominantes disseminam, mesmo diante da crise estrutural do capital, a impossibilidade de transformação das relações sociais vigentes. Temos um arsenal teórico-metodológico que ao articular história, humanismo e razão dialética (COUTINHO, 2010) e obviamente ser apropriado e atualizado, de modo permanente, torna-se importante ferramenta para desmistificar a naturalização da desigualdade social e pôr em relevo a possibilidade da crítica radical à sociabilidade do capital e a necessidade histórica de sua própria transformação.13
É certo que a arma da crítica não pode substituir a crítica das armas, que o poder material tem de ser derrubado pelo poder material, mas a teoria converte-se em força material quando penetra nas massas. A teoria é capaz de se apossar das massas ao demonstrar-se ad hominem e, demonstra-se ad hominem logo que se torna radical. Ser radical é agarrar as coisas pela raiz [...] (MARX, 2005, p.151).
Indiscutivelmente o papel da pesquisa na produção do conhecimento crítico e no combate ao conservadorismo é um desafio fundamental. Conhecer a realidade, apreender mediações e estabelecer conexões entre os fenômenos da vida cotidiana e as determinações societárias é um caminho para a superação de todas as tendências de simplificação da realidade, a exemplo do economicismo, do politicismo e do culturalismo.
Nosso ponto de partida teórico-metodológico – a centralidade do trabalho, o que implica os indivíduos em suas relações concretas de existência - além de estabelecer profundas diferenças com os fundamentos liberais e pós-modernos, evidencia os limites do entendimento da vida social e da individualidade, quando é tomado como ponto de partida o discurso, a linguagem e as representações. Há, desse modo, uma grande lição que consiste, também, em um desafio que é superar
12 Cf. o significado histórico e teórico da decadência ideológica em LUKÁCS (2010).
13 Exemplo do caráter radicalmente destrutivo que assume a produção e reprodução capitalista neste momento. Em março de 2018, o IBGE divulgou que 13,7 milhões de pessoas estão desempregadas no país, recaindo sobre a população negra e em especial sobre a mulher negra, as formas mais precárias de inserção no trabalho e de mais ataque e controle sobre sua vontade subjetiva e seu corpo, por meio do assédio moral, sexual e estupro, além das iniciativas de invisibilizar e destruir suas raízes históricas e sua presença atual na vida pública em diferentes espaços.
unilateralidades centradas ora na objetividade, ora na subjetividade. Apanhar a totalidade:
trata-se , pois, para Marx, de partir não das ideias, especulações ou fantasias, mas de fatos reais, `empiricamente verificáveis´, no caso os indivíduos concretos, o que eles fazem, as relações que estabelecem entre si e as suas condições reais de existência, para então apreender as determinações essenciais que caracterizam este tipo de ser e o seu processo de reprodução (TONET, 2000,p.42).
A individualidade tem lugar na reflexão crítica e de totalidade e entendê-la exige transitar entre as contradições e conflitos da relação entre sociabilidade e individuação, localizando o ser singular como ser histórico, genérico e diverso. Neste sentido, decifrar e entender as complexas relações entre o Estado, a propriedade privada e o casamento monogâmico/família monogâmica abre fronteiras para a ruptura com concepções idealistas na elaboração da concepção da subjetividade e da própria diversidade, tidas ambas, neste campo teórico, como algo que existe nas trilhas internas dos indivíduos, como uma espécie de mundo interior, que supostamente não tem vínculo com as relações sociais vigentes. De outro modo, na perspectiva da totalidade, a essência dos indivíduos está no conjunto das relações sociais e somente inseridos em suas relações concretas de existência é que podem ser apreendidos.
A auto-organização dos sujeitos é outro aspecto decisivo contra as formas simplificadoras e se diferencia da especificação de sujeitos de direitos proposta na agenda liberal, notadamente por Bobbio (1992). O ideário da especificação pressupõe reconhecimento jurídico-político de vários segmentos: mulheres, crianças, adolescentes, idosos, população negra, LGBTI, pessoas com deficiência, dentre muitos outros. Este reconhecimento legal é importante, no entanto, tal especificação levou um conjunto de autores(as) a decretar a impossibilidade objetiva da elaboração pela classe trabalhadora, em sua heterogeneidade e diversidade, de um projeto político emancipatório.
Exatamente por isso, a agenda da diversidade foi equivocadamente denominada como uma “agenda pós-moderna”, que necessariamente celebra a fragmentação, cada segmento voltado para as suas reivindicações e obstaculiza a organização dos sujeitos em torno de um projeto político classista, emancipatório e voltado à defesa dos interesses da classe trabalhadora. Esse fio de articulação só é
possível mediante o reconhecimento pelos sujeitos daquilo que os unifica na vida cotidiana. A reivindicação em face de uma expressão da sua diversidade pode ser diferente, mas estão vivenciado de forma comum quase sempre, a escassez de direitos; a violência; a inserção precária no mundo do trabalho ou o próprio desemprego e formas de violação de direitos do trabalho e em face da sua raça/etnia, orientação sexual, identidade de sexo/gênero. O mundo do trabalho tão desigual e classista é permeado pelo racismo, sexismo e LGBTIfobia.
Para finalizar, umas das grandes lições que podemos apreender da história, notadamente entre as esquerdas é o total prejuízo teórico, político e humano que as práticas sectárias causaram no percurso vivenciado até aqui. A superação das concepções restritas de diversidade - economicista, politicista, culturalista, incluindo aqui o ideário do “politicamente correto”, que embora importante, restringe o respeito à diversidade ao uso de uma linguagem inclusiva – exige das esquerdas e dos sujeitos individuais e coletivos que desejam contribuir no enfrentamento do conservadorismo, capacidade de auto crítica, de profundo entendimento quanto à relevância política da articulação entre os sujeitos e as lutas sociais, em busca de desenvolvimento da unidade na diversidade.
Esta tarefa jamais foi fácil, não seria no tempo atual, em que a construção histórica de um projeto de transformação social que contemple a diversidade apresenta-se como teórica, política e humanamente necessários frente ao avanço do conservadorismo e da barbárie capitalista. Trata-se, afinal de uma sociedade que tem no seu modo de ser uma determinação fundante que é a apropriação privada da riqueza socialmente produzida e que intensifica a precarização e a superexploração da força de trabalho. É nesta perspectiva que se coloca como uma grande necessidade histórica hoje os processos de organização da resistência no enfrentamento desta sociabilidade. Fundamental, no entanto, entender que existem condições histórico-estruturais que possibilitam ou não a transformação real. Segundo Marx (1986, p.57):
Os elementos materiais de uma subversão total são, de um lado, as forças produtivas existentes e, de outro, a formação de uma massa revolucionária que se revolte, não só contra as condições particulares da sociedade existente até então, mas também contra a própria produção da vida vigente, contra a atividade vigente, contra a atividade total sobre a qual se baseia.
Quando falamos, portanto, de um projeto de transformação social outra importante contribuição do marxismo e que também emerge como um desafio se refere à superação do verdadeiro desvio de rota vivenciado por parte significativa da esquerda em nível mundial e nas particularidades do Brasil. De acordo com Mèszáros (2002, p.21), “a criação da alternativa radical ao modo de reprodução metabólica do capital é uma necessidade urgente, mas não há de acontecer sem uma avaliação crítica do passado”.
E aqui considero que o marxismo fornece por meio do seu método importantes contribuições para a superação do pragmatismo e do imediatismo das análises. Novamente é válido enfatizar que a perspectiva de totalidade na análise da vida social possibilita apanhar as múltiplas determinações e conhecer a realidade em sua densidade histórica, na perspectiva de entender que pensar do ponto de vista de classe não significa destituir os indivíduos de sua individualidade e de sua diversidade. Assim, o conhecimento e a formação da consciência de classe exigem o entendimento e a consciência da diversidade humana.
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Recebido em: 22 de fevereiro de 2019. Aceito em: 06 de maio de 2019. Publicado em: 28 de maio de 2019.
Gaudêncio Frigotto2 Sonia Maria Ferreira3
Este artigo busca analisar as determinações histórico-culturais que impedem que a maioria dos jovens brasileiros tenha o direito social e subjetivo do Ensino Médio. No primeiro ponto, situamos o que Karel Kosik denominou de “metafísica da cultura” para designar a concepção da realidade social como soma de fatores e não como uma estrutura de relações sociais de poder. Essa visão a- histórica, do liberalismo conservador nascente transforma-se em ultraconservadora no contexto da crise estrutural do capital. Na sequência, buscamos analisar a cultura autoritária e ultraconservadora na especificidade de nossa formação social e que, no presente, conjuga-se com o fundamentalismo religioso.
This article aims at analyzing the historical-cultural determinations, as much as legal, political and economic, which thwarts the majority of young Brazilians, in consecutive generations, from guaranteeing their social and subjective right to middle school. Initially, we situate what Karel Kosik denominated as “metaphysics of culture” to designate the bourgeois conception of social reality as a sum of factors and not as a structure of social relations of power. This ahistorical, racionalist and empiricist perspective of emerging conservative liberalism becomes ultraconservative in the context of the structural capitalist crisis. Following up, we seek to analyze the authoritarian and ultraconservative culture in the uniqueness of our social formation, which is conjugated with religious fundamentalism in our contemporary period.
1 DOI: https://doi.org/10.22409/tn.17i32.p28304
2 Graduado em Filosofia e Pedagogia. Mestre e Doutor em Educação. Professor titular em Economia Política da Educação, na Universidade Federal Fluminense (aposentado) e, atualmente, professor no Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas e Formação Humana, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
3 Doutora em Políticas Públicas e Formação Humana, pela Universidade do Estado do Rio de
Janeiro. Realiza pós-doutorado sob o título Traços históricos do autoritarismo no Brasil: uma visão a partir do elemento cultural, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Este artículo busca analizar las determinaciones histórico-culturales que impiden que la mayoría de los jóvenes brasileños tenga el derecho social y subjetivo a la Enseñanza Media. En el primer punto, situamos lo que Karel Kosik denominó de “metafísica de la cultura” para designar la concepción de la realidad social como suma de factores y no como una estructura de relaciones sociales de poder. Esa visión a-histórica del liberalismo conservador naciente se transforma en ultraconservadora en el contexto de la crisis estructural del capital. En secuencia, buscamos analizar la cultura autoritaria y ultraconservadora en la especificidad de nuestra formación social y que, en el presente, se conjuga con el fundamentalismo religioso.
O contexto político dentro do qual se efetiva o IV Intercâmbio Nacional de Pesquisa em Trabalho e Educação (INTERCRÍTICA) nos interpela a um balanço que extrapola este evento e que demanda uma agenda de médio prazo sobre nossas análises que tomam por base o materialismo histórico dialético. Interpelação esta que, ao contrário de sua negação, incide na questão sobre a saturação de suas categorias no âmbito de nosso tempo e na particularidade de nossa sociedade.
Estamos dentro de um clima em que o autoritarismo, o ultraconservadorismo econômico3 e o fundamentalismo religioso assumem feições neofacistas em escala ampliada em relação ao que se manifestou nos movimentos de 2014-2015 e que orquestraram o Golpe de Estado de agosto de 2016. Escrevemos este texto um dia após a definição das eleições em que, como afirma o sociólogo Roberto Dutra: “trata-se da maior vitória eleitoral da direita na história política brasileira. E não se trata de qualquer direita, mas de uma direita extremada (grifos do autor), militarizada e autoritária em todas as esferas da sociedade, na Igreja, na escola, no partido, em tudo4”.
3Ao longo do texto utilizaremos o termo ultraconservador ou ultraconservadorismo no plano econômico e social para expressar uma fase que radicaliza o que a literatura denominou de neoliberalismo. Fase esta que vai além das teses do ajuste das economias periféricas à custa de direitos da classe trabalhadora. Trata-se, agora, de ajuste com austeridade. O caso brasileiro, pós- golpe de Estado de 2016, em suas contrarreformas, expressa esse ultraconservadorismo de forma extrema. Com a eleição de forças sociais de extrema direita, o que se anuncia é uma radicalização. O futuro Ministro da Fazenda anuncia o projeto de privatizar tudo. E o anúncio da carteira de trabalho verde e amarela coloca o dilema cínico: os direitos ou o trabalho?
4Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/584206-a-maior-vitoria-da-direita-na-historia-politica- brasileira-entrevista-especial-com-roberto-dutra. Acesso em: 30 out. 2018.
O que se anuncia em termos de ministeriáveis confirma a análise de Dutra. No Ministério da Educação, os nomes que circulam são os protagonistas do Movimento Escola Sem Partido ou pessoas afinadas com esta ideologia, que se autodenominam sem partido e sem ideologia. No Ministério da Justiça, já confirmado o ministro Sérgio Moro, nacional e internacionalmente interpelado por suas decisões, e que por esta razão está sendo questionada sua indicação no Conselho Nacional de Justiça.
Listas de autores para não serem lidos já circulam há mais tempo. De igual modo, agora se confirma, em pronunciamento do recém-eleito presidente da República, aquilo que o Movimento Escola Sem Partido postula: a eliminação nas escolas do pensamento da obra de Paulo Freire. Mas o que de demoníaco, revolucionário e perigoso teria a obra deste professor se o seu livro mais importante, Pedagogia do oprimido, está publicado em dezenas de idiomas?
Seria pelo simples fato que expõe um método de alfabetização de adultos que os reconhece como sujeitos detentores de saberes, valores e cultura e ponto de partida para avançar no conhecimento sistematizado que os faculte a uma leitura autônoma e consciente da sociedade em que vivem? Ou seria, talvez, ignorância sobre sua obra?
Estamos, pois, numa encruzilhada sem precedentes em nossa história, que tem que ser lida na gravidade de suas possíveis consequências. Nos termos de Walter Benjamin, trata-se de nos dispormos a perceber que “a história deve ser escovada a contrapelo” (BENJAMIN, apud LÖWY, 2011, p. 2). Este escovar a contrapelo implica levar a sério o que nos alerta o historiador e educador norte- americano Mark Bray:
O combate ao fascismo hoje começa pela capacidade de reconhecê- lo para além dos lugares-comuns, como ensina a dura experiência da Europa no período entre as duas guerras mundiais (...). O fascismo e o nazismo emergiram como clamores emocionais, antirracionais, fundados em promessas másculas de renovação do vigor nacional. (BRAY, 2018, p. 1).
No processo de escovar a nossa história a contrapelo, os lugares menos comuns a que se refere Mark Bray, certamente, encontram-se, como veremos adiante, na cultura colonizada e colonizadora e escravocrata marcante desde o descobrimento do Brasil. Este é o eixo central de pesquisa que estamos
desenvolvendo e que busca analisar as determinações de ordem histórico-culturais e de caráter legal, político e econômico que impedem que a maioria dos jovens brasileiros, em sucessivas gerações, garanta o direito social e subjetivo do Ensino Médio e, para os que o frequentam, o façam dentro de uma concepção dual, fragmentária e economicista e em condições materiais objetivas que impedem sua efetiva qualidade.
O percurso que efetivamos até o presente nos conduz a perceber que, desde nossa gênese como sociedade colonizada e colonizadora e de quase quatro séculos de regime escravocrata, herdamos o conservadorismo e o autoritarismo como traços culturais permanentes e que, com o aprofundamento da crise estrutural universal, global e contínua do sistema capitalista, assumem traços de fascismo societário. Traços estes que, em nossa particularidade de sociedade de capitalismo tardio5 e dependente, sustentam um aparato político jurídico que garante uma descomunal concentração da propriedade privada dos meios e instrumentos de produção e da riqueza a velhas e novas oligarquias.
Compreender o que nos trouxe até aqui no interior das relações sociais capitalistas, e estas na especificidade de nossa sociedade, implica desvelar as mediações que, no final do século XX e início do século XXI, o conservadorismo liberal transformou-se em ultraconservadorismo que conjumina fundamentalismo econômico, autoritarismo e fundamentalismo religioso. Por essa via, também
5 O capitalismo tardio é entendido aqui em dois sentidos, mas que se potenciam para compreender nossa estrutura social despótica, autoritária e profundamente desigual. No primeiro sentido se refere a nações como o Brasil, que tiveram longos períodos de colonização e escravidão e que só tardiamente efetivaram a revolução burguesa e com características específicas. No caso brasileiro, como mostra, entre outros pesquisadores, Florestan Fernandes (1974; 1975), constitui-se uma burguesia que não efetivou a revolução burguesa no padrão clássico, mas um capitalismo dependente de desenvolvimento desigual e combinado. O conceito de desenvolvimento desigual e combinado foi formulado originariamente por Ernest Mandel (1972). Este designa estruturas sociais que combinam nichos de desenvolvimento com alta concentração de propriedade e riqueza e manutenção e ampliação da pobreza e miséria. Também é de Mandel a formulação inicial de capitalismo tardio num segundo sentido. Partindo da herança teórica de Marx sobre a crise no sistema capitalista, crise fundamentalmente de reprodução ampliada do capital, Mandel sustenta a inviabilidade do atual padrão de produção e de consumo em face do esgotamento dos recursos naturais. E como mostram as análises contemporâneas de István Mészáros (2000), David Harvey (2011; 2018) e Elmar Altvater (2010) trata-se de um capitalismo de produção destrutiva que, ao dizimar as bases da vida (natureza e trabalho), dizima junto o acúmulo de direitos econômicos, sociais e subjetivos, alcançados pela humanidade com lutas e sacrifício de vidas.
desvelar as raízes e suas permanências na forma de autoritarismo, ultraconservadorismo e fundamentalismo religioso e controle ideológico da escola pública.
Diferentes perspectivas teóricas nos mostram que a afirmação do modo de produção capitalista nas suas relações sociais de produção implicou uma ruptura civilizatória com o Estado absolutista, com o regime escravocrata e com a hegemonia do pensamento metafísico da Igreja Católica. Mas, concomitantemente, para manter a nova estrutura social instaurou-se o que o filósofo Karel Kosik (1986) denominou de metafísica da razão e da cultura, vale dizer, do pensamento individualista, racionalista e meritocrático do liberalismo conservador.
Dos teóricos do liberalismo conservador — John Locke (1632-1704), David Hume (1711-1776), Adam Smith (1723-1790) e John Stuart Mill (1806-1877) —, aos que depois de um período de liberalismo social retomam o neoconservadorismo em outras bases (neoliberalismo) — Friedrich Hayek (1889-1992), Ludwig von Mises (1881-1973) e Milton Friedman (1912-2006) —, o suposto que embasa as relações sociais é de uma natureza humana sem história, centrada na racionalidade individual de um ser humano que tende ao bom, ao útil, ao agradável, e que é movido pelo egoísmo e pelo bem próprio. Uma sociedade, portanto, que estaria baseada na natureza mesmo dos seres humano.
O mercado como espaço onde cidadãos juridicamente iguais e também portadores da mesma racionalidade funcionaria, na definição de Adam Smith, como uma mão invisível, harmonizando as escolhas individuais de sorte que a tendência seria sempre o equilíbrio. Ideia esta retirada do pensamento metafísico da providência divina. O Estado, definido como o órgão do bem comum, zelaria para corrigir possíveis anomalias ou disfunções. Uma concepção que desconsidera e mascara o processo histórico, desde o surgimento do excedente, da dominação de grupos e classes sobre outros grupos e classes.
Ao igualar liberdade formal de escolha às condições desiguais reais na estrutura social, toma-se a meritocracia como sendo mérito individual. Assim, a superação do escravismo, certamente um passo civilizatório, não deu ao escravo as
mesmas condições de escolha dos que tinham acumulado capital primitivo ou capital comercial, que lhes facultou a se tornarem proprietários privados de meios e instrumentos de produção e, no mercado, compradores da força de trabalho de escravos libertos, agora duplamente livres dos seus proprietários e de propriedade.
Cabe ressaltar, todavia, que tanto no plano das relações econômicas quanto correlatamente no campo educacional, desde o início da afirmação do modo de produção capitalista, pensadores postulavam tratamento desigual entre a classe proprietária e dirigente e os trabalhadores. No plano econômico, Thomas Robert Malthus (1766-1834), estudioso da demografia e da economia, percebia a necessidade de controlar o aumento dos pobres. Do mesmo modo, Antoine Destutt de Tracy (1754-1836), em sua ampla obra Elementos de Ideologia, vai postular um sistema escolar para os filhos da classe trabalhadora diverso do da classe dominante.
Malthus propõe dois mecanismos para conter o aumento demográfico que levaria à desgraça da fome: preventivos e controles positivos. Os primeiros relacionam-se a estratégias de diminuição da natalidade para os pobres e, o segundo, seria o de facilitar o aumento de sua mortalidade. Sobre este segundo mecanismo, Malthus (1961) indica:
E se encararmos com horror a vista e por demais frequente desse terrível espectro da fome, mais uma razão para encorajarmos com diligência as outras formas de destruição, compelindo a natureza a fazer uso delas. Em nossas cidades, deveríamos construir ruas mais estreitas, apinhar mais gente no interior das casas e provocar o retorno de pragas. No campo, deveríamos construir aldeias de colonos em terrenos de água estagnada e, sobretudo, encorajar o estabelecimento de colonos e, terrenos pantanosos e insalubres. Acima de tudo, deveríamos desencorajar o uso de medicamentos específicos que anulam os efeitos devastadores das moléstias, e condenar, também, os homens benevolentes, mas profundamente equivocados, que julgam prestar grandes serviços à humanidade quando elaboram planos para extirpar determinadas moléstias. Se, por estes e outros meios semelhantes, conseguíssemos dilatar a taxa de mortalidade anual, provavelmente, qualquer um de nós poderia casar ainda na puberdade, e mesmo assim poucos morreriam de fome (grifos nossos). (MALTHUS, apud HUNT & SHERMAN, 1987, p. 64-5).
Assim como Malthus, Destutt de Tracy reconhece a desigualdade real e a fundamenta como uma questão da natureza. Por isso que Destutt sustentava que em todo o Estado bem administrado deveriam haver dois tipos de educação, um
para os filhos da classe dirigente e outro aos que se destinam ao duro ofício do trabalho.
Os homens da classe operária têm desde cedo a necessidade do trabalho de seus filhos. Essas crianças precisam adquirir desde cedo o conhecimento e sobretudo o hábito do trabalho penoso a que se destinam. Não podem perder tempo nas escolas (...). Os filhos da classe erudita, ao contrário, podem dedicar-se a estudar durante muito tempo; têm muitas coisas para aprender para alcançar o que se esperas deles no futuro. (...) Estes são fatos que não dependem de qualquer vontade humana; decorrem necessariamente da própria natureza dos homens e da sociedade. (DESTUTT DE TRACY, 1908 s/p).
O que Malthus e Destutt de Tracy assumem é a necessidade da desigualdade real entre as classes sociais, para que o novo modo de produção funcione dentro de sua compulsão à exploração e ao lucro6. O processo histórico, de forma cabal e inequívoca, mostrou que o livre mercado, sob relações sociais desiguais, teve como resultado a desigualdade contínua e crescente entre nações, classes e grupos sociais. Isto levou o historiador Eric Hobsbawm (1996) a definir o século XX como uma era dos extremos, marcada por duas sangrentas guerras mundiais, uma revolução socialista na Rússia, ampliada após a Segunda Guerra Mundial, e uma crise profunda do sistema capitalista mundial.
A crise de 1929 do sistema capitalista evidenciou que o capital desregulado constitui-se uma força destrutiva sem limites e que acaba gerando riscos ao próprio sistema capitalista. É neste contexto que surgem a teoria keynesiana sobre a função do Estado no processo de regulação do capital e, ao mesmo tempo, se busca fomentar políticas sociais na reprodução da força de trabalho e sua inserção no sistema produtivo. Como observa Hobsbawm, na obra supracitada, funcionou “o Estado de Bem-Estar Social em pelo menos duas dezenas de nações” e foi o período de ouro do capitalismo.
Contraditoriamente, as estratégias para salvar o sistema capitalista redundaram, também, em ganhos para a classe trabalhadora, ainda que de forma muito desigual em diferentes nações do mundo, inclusive no Brasil, como veremos no item 2. O modelo fordista de regulação, como ficou sendo denominado pela literatura econômica e de gestão, tratou de combinar três mecanismos: a
6 Para compreender que os liberais, no Plano Real, nunca o foram de fato, mas, ao contrário, eram escravistas, ver a análise densa de Domenico Losurdo no livro Contra-história do liberalismo (2009).
organização e divisão específica do trabalho (taylorismo/fordismo); um regime de acumulação que combina produção e consumo em larga escala; e um estatuto jurídico ideológico, com normas, leis e instituições para regular as relações sociais, conflitos intercapitalistas e capital-trabalho.
É neste contexto que a educação escolar, o treinamento e a questão da saúde entram como políticas de reprodução da força de trabalho para o conjunto dos capitalistas e como estratégia de diminuição da desigualdade entre nações e entre grupos sociais. Não por acaso os economistas e os intelectuais coletivos do capital (Banco Mundial, Organização Mundial do Comércio, Organização Internacional do Trabalho e Banco Interamericano de Desenvolvimento) assumem, a partir já da década de 1950, estudos sobre a educação como “fator de desenvolvimento e mobilidade social”.
Duas obras de Theodore Schultz explicitam a concepção de educação como um capital: O valor econômico da educação (Schultz, 1962) e Capital humano (Schultz, 1973). Uma visão ideológica que estabelece, a um tempo, a educação não como direito social e subjetivo, mas como um serviço mercantil e uma visão circular a qual não explica por que os países e indivíduos pobres têm menos investimento e graus de escolaridade7.
O sistema capital, para operar em sua natureza de buscar o lucro máximo e voltar à sua irracionalidade, tem como prerrogativa desvencilhar-se de regulações e confrontar e, se possível for anular o poder da classe trabalhadora. E isso se deu de forma gradativa, desde a década de 1940, com a estratégia das multinacionais, na década de 1960, com empresas transnacionais, e, a partir do final da década de 1970, com a hegemonia do capital mundial na sua forma financeira e fictícia. Agora, os Estados nacionais passam a ser regulados pelo direito internacional do capital com seus organismos anteriormente citados.
Duas determinações fundamentais permitiram ao sistema capital, ao mesmo tempo, implodir as políticas regulacionistas keynesianas e as políticas do Estado de Bem-Estar Social: vingar-se dos ganhos da classe trabalhadora e instaurar estratégias ultraconservadoras e autoritárias para enfrentar sua crise estrutural, universal, global e contínua. A apropriação privada deu um salto de tecnologia não
7 Para uma análise crítica da teoria do capital humano e seus reducionismos, ver FRIGOTTO (1984).
mais rígida, mais flexível (digital-molecular), que associa microeletrônica e informação e o colapso do socialismo real.
No plano político, estava dada a chave para Margaret Thatcher proclamar que não via a sociedade e sim indivíduos, senha para montar estratégias de desmontar a organização política e sindical da classe trabalhadora. E isso lhe é permitido mediante o deslocamento de empresas e a substituição do trabalho vivo dos trabalhadores pelo novo salto tecnológico que permite demitir em massa, como demonstra a socióloga Danièle Linhart (2007) na obra A desmedida do capital.
A regressão ao neoconservadorismo em sua forma ultraconservadora explicitou-se no fato de que as obras, em especial a de Friedrich Hayek — O caminho da servidão (1987) — e de Milton Friedman — Capitalismo e liberdade (1977) e Liberdade de escolher (1980) —, tornaram-se uma espécie de Bíblia para o receituário do ajuste nas décadas de 1980 e 1990 dos países endividados e de desregulamentação das leis trabalhistas. Receituário que no encontro conhecido como Consenso de Washington definiu as dez medidas básicas:
Disciplina fiscal. Redução dos gastos públicos. Reforma tributária. Juros de mercado. Câmbio de mercado (...) Abertura comercial. Investimento estrangeiro direto, com eliminação de restrições. Privatização das estatais. Desregulamentação (afrouxamento das leis econômicas e trabalhistas). Direito à propriedade intelectual8.
Esse conjunto de medidas não diminuiu a desigualdade, ao contrário, ampliou-a de forma exponencial9. Do mesmo modo, não supera a crise estrutural, mas esta se torna cada vez mais profunda, destrutiva e explosiva como demonstram as análises de István Mészáros (2016), David Harvey (2011; 2018), Elmar Altvater (2010), Eric Hobsbawm (2000), entre outros pensadores contemporâneos. Agora se acresce ao ajuste dos países a tese da austeridade com novas e radicais desregulamentações das leis que protegem a classe trabalhadora.
A síntese destas análises incide numa mesma direção: a irracionalidade do capital está, de forma crescente, aniquilando os dois fundamentos da reprodução da vida: a natureza, com a destruição ambiental, poluição e escassez da água, limite
8Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Consenso_de_Washington#A_pr%C3%A1tica_na_pol%C3%ADtica_econ
%C3%B4mica_mundial. Acesso em 24 de outubro de 2018.
9 O economista Thomas Piketty (2014), com o suporte de uma série histórica de dez décadas mostra que a desigualdade sistematicamente cresceu em todos os países do mundo.
dos bens fósseis e aquecimento global; e a destruição ou exploração e expropriação da força de trabalho. Uma destruição que se mantém por regimes políticos cada vez mais autoritários e com práticas neofacistas. O malthusianismo no século XXI se materializa pelo assalto do capital ao fundo público e pela restrição das políticas públicas, tendo como consequência a morte decorrente da fome, o retorno de pragas, as guerras regionais, pela morte de refugiados nos mares e pelas mais diversas formas de violência contra os pobres do mundo.
O que foi apresentado de forma sintética anteriormente é da natureza das contradições insanáveis do sistema capital e a sua necessidade de utilizar-se de formas cada vez mais autoritárias, regressivas e destrutivas da vida humana para manter-se. Todavia, isto assume um caráter mais devastador na sociedade brasileira de capitalismo tardio e dependente em decorrência de sua forma de colonização e de quase quatro séculos de escravidão. Nos âmbitos econômico, jurídico e político, estas raízes plasmam uma cultura autoritária e conservadora que se reproduz e se potencia ao longo de nossa formação histórica e, atualmente assume traços neofacistas.
Colono é aquele que cultiva a terra alheia e paga tributos ao proprietário. Colonizado é aquele que é submetido a um processo de assumir a cultura e a visão de mundo dos colonizadores. O escravo na modernidade é concebido como meio de produção, coisa e animal que fala. Os colonizadores trouxeram consigo suas visões de mundo, seus deuses e seus modelos educativos. Num tempo histórico em que dominava a visão metafísica do mundo e onde a Igreja Católica era detentora de poder dos “céus e da terra”, os povos originários foram concebidos como selvagens ímpios e, portanto, sem alma. Os escravos, seres não civilizados e cultuando deuses estranhos. Portanto, suas crenças, seus deuses, seus saberes e valores não tinham legitimidade. A tarefa era convertê-los a qualquer preço, vale dizer, colonizá-los e, em grande medida, dizimá-los.
(...) a dominação essencial de determinada classe na sociedade mantém-se não somente, ainda que certamente se for necessário, pelo poder, e não apenas, ainda que sempre pela propriedade. Ela
se mantém também inevitavelmente pela cultura do vivido: aquela saturação do hábito, da experiência, dos modos de ver, que é continuamente renovada em todas as etapas da vida, desde a infância, sob pressões definidas e no interior de significados definidos. (WILLIAMS, 2007, p. 14).
A cultura do vivido, que cimenta e reitera ao longo do tempo o autoritarismo, o conservadorismo, o moralismo e o preconceito dos povos originários (índios), dos negros e, mais tarde, dos pobres, tem suas raízes entre nós, como demonstra Juremir Machado da Silva, sobre o regime escravocrata. Os defensores dos donos dos escravos viam na escravidão um bem para a civilização. Muitos de nós lemos José de Alencar em seus romances, mas não o lemos, talvez, em seus pronunciamentos, como deputado ultraconservador na defesa da propriedade das fazendas e dos escravos e que era contra a abolição. Por um lado, a escravidão, o tráfico era benéfico à civilização. Por outro, acusava os abolicionistas de serem os veiculadores do socialismo e do comunismo, isso na década de 1867, onze anos antes da abolição.
Eis um dos benefícios do tráfico. Cumpre não esquecer, quando se trata desta questão importante, que a raça branca, embora reduzisse o africano à condição de uma mercadoria nobilitou-o não só pelo contato, como pela transfusão do homem civilizado. A futura civilização da África está aí neste fato em embrião. (ALENCAR, apud DA SILVA, 2018, p. 61).
Percebendo tendências abolicionistas nos quadros de poder da monarquia, Alencar advertia sobre o que, com a abolição, poderia ocorrer:
Tolerado semelhante fanatismo do progresso, nenhum princípio social fica isento de ser ele atacado mortalmente ferido. A mesma monarquia, senhor, pode ser varrida para o canto entre o cisco das ideias estritas e obsoletas. A liberdade e a propriedade, essas duas fibras sociais, caíram desde já em desprezo ante os sonhos do comunismo (grifos nossos). (ibid, p. 57).
Vale ressaltar que, 140 anos depois desta argumentação de Alencar, a defesa da liberdade e da propriedade é o foco permanente a defender e o que ameaça são os sonhos do comunismo. Esta continuidade, impregnada na cultura e reiterada pelos diferentes aparelhos de hegemonia, é acionada toda vez que as lutas sociais buscam alterar uma das mais perversas estruturas sociais de desigualdade mundial. A síntese de Luis Fernando Verissimo capta esta continuidade. “Está no DNA da
classe dominante brasileira, que historicamente derruba, pelas armas se for preciso, toda a ameaça ao seu domínio, seja qual for sua sigla10.”
Duas passagens da obra Raízes do conservadorismo, de Juremir Machado, expõem como a classe dominante brasileira incorpora mudanças na lei, mas não rompe a defesa de seus interesses e com as formas de dominação e exploração para mantê-los11.
A abolição da escravidão inaugurou simultaneamente o longo ciclo de marginalização do negro. Uma marginalização nova, em relação ao que acabava de extirpar, a marginalização do homem livre como suspeito por antecipação de crimes que poderia ou não cometer. O crime maior seria o de ser negro. (ibid. p. 25).
A reiteração da continuidade das novas formas de escravidão dos libertos sintetiza-se na conclusão do livro de Da Silva: A história não para de exumar cadáveres. Não há mais trégua para a infâmia. O ano esquecido, 1888, é um espectro que ronda (ibid. p. 436). Espectro que ressurge 140 anos depois e que se espelha nas cadeias, nos crimes de estado contra os negros e pobres e se alastra para a desregulamentação das relações de trabalho. A contrarreforma trabalhista (Lei no 13.467/1917) expressa uma regressão social aos padrões escravocratas do século XIX, agora estendidos ao conjunto da classe trabalhadora. As forças sociais vitoriosas na eleição de 2018, com sua face política autoritária conjugada à defesa do ultraconservadorismo econômico, tenderão impor uma exploração e expropriação consentidas para a classe trabalhadora.
A proposta no plano de governo do presidente eleito em outubro de 2018 de criar a carteira de trabalho “verde e amarela” expressa a liquidação total da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), sancionada pelo Decreto Lei no 5.452 de 1o de maio de 1943. Esse processo iniciou-se em 1966, logo nos primeiros anos da ditadura empresarial militar de 1966, com a proposta da criação do Fundo de
10Disponível em: http://oglobo.globo.com/opiniao/odio-16546533#ixzz3eAZnOCwa. Acesso em: 1 nov. 2018.
11 Ver a esse respeito o mecanismo de burla das Constituições, desde o Império, em texto de Fabio
Konder Comparato. Este jurista mostra a reiteração de inclusão nas Constituições das demandas populares — texto oficial — e sua burla pelo que ele denomina de Constituição subliminar. Fabio, Konder Comparato, Duas Constituições concomitantes, a democracia incompleta. Disponível em: http://www.ihuonline.unisinos.br/artigo/7223-num-brasil-de-duas-constituicoes-concomitantes-a- democracia-e-incompleta. Acesso em: 1 nov. 2018.
Garantia (Projeto de Lei no 10/1966) em substituição à estabilidade no emprego, depois de dez anos atuando numa mesma empresa.
Este desmonte continuou na década de 1990, mas dada à resistência organizada na sociedade não conseguiram efetivar o que se faz dentro do golpe de Estado com a contrarreforma em vigor desde 2017. Esta mantém a atual carteira que ainda assegura o Fundo de Garantia e o INSS. Com a carteira “verde e amarela” proposta, mesmo que repita o que se disse em relação à opção pela estabilidade ou Fundo de Garantia, na verdade não há opção. Nenhum empregador vai querer manter a antiga carteira e, por isso, a opção é entre o emprego sem direitos ou o desemprego.
O ideário de imposição de escravidão consentida é proclamado pelo economista ultraconservador Gustavo Franco, ligado ao Partido Novo, mas que festeja a eleição de Bolsonaro, ao afirmar que a nova composição do Congresso não fará apenas “mudancinhas”, e sim o que os empresários de fato precisam. E justifica que estes são “quem realmente produz algo neste país”12. Franco, ao dizer que quem de fato produz são os empresários, verbalizou que o trabalhador volta a ser considerado coisa, meio de produção como eram os escravos.
Na cultura do vivido, ao longo de nossa história, sedimenta-se o discurso da ameaça do socialismo e comunismo à liberdade e à propriedade, mas também, como sinalizamos anteriormente, à moral, à religião e aos valores da família. A imposição da religião aos selvagens e aos escravos assume novas determinações. Embora na forma da lei nos constituíssemos um estado laico, o que tem sido dominante desde o século XX é a reiteração do uso do conservadorismo religioso, mantendo os mesmos argumentos do perigo do comunismo para a nação, propriedade, liberdade e para a família.
Entretanto, no Brasil, especialmente nas últimas quatro décadas e de forma crescente, amplia-se um fundamentalismo religioso que vai além do moralismo conservador de amplos setores da Igreja Católica e de outras igrejas com fundamentos de doutrina teológica. Trata-se da expansão de diferentes denominações religiosas neopentecostais que usam Deus e a fé simples para explorar aqueles que a estrutura social mantém na pobreza e lhe nega a educação
12https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2018/11/01/gustavo-franco-empresarios-
congresso.htm. Acesso em: 05.Fev. 2019.
básica. São os modernos vendilhões dos templos que, sob as categorias de exorcismo e ideologia (teologia) da prosperidade e milagre, tiram especialmente das populações pobres para construir fortunas econômicas. Como traduziu no seu tempo Leonel Brizola (2000)13: “Estes pastores querem estação de rádio e dinheiro. São adoradores dos bezerros de ouro.”
O ideário pautado no processo da eleição de Bolsonaro, afirmado tão logo eleito, explicita de forma emblemática a junção de autoritarismo, ultraconservadorismo econômico e fundamentalismo religioso. Três sinalizações reforçam estas junções: os livros sobre a mesa, mostrados na primeira mensagem via internet; a reza do pastor neste mesmo ato; e, posteriormente, a declaração num canal de TV de propriedade de grupo religioso ao lado de um pastor que é símbolo do fundamentalismo. A história nos mostra que os resultados da junção destes dois fundamentalismos têm sido trágicos. O primeiro fundamentalismo, em nome da pátria, da raça, da propriedade cometeu e comete extermínios de povos e, o segundo, em nome de crenças, instaurou a inquisição e eliminação de hereges.
O que Raymond Williams sublinha é que a dominação de classe se dá pelo poder, se preciso, e pela propriedade, sempre, mas também pela saturação da cultura do vivido em nosso processo histórico se assenta sob as marcas do autoritarismo, do liberalismo conservador ou ultraconservador, do conservadorismo ou fundamentalismo religioso. É sob a relação desta base cultural que a burguesia brasileira forjou uma sociedade de capitalismo dependente. Uma negação permanente a um projeto econômico social autônomo e, do mesmo modo e como decorrência, de termos uma cultura, ciência e educação autônomas. Como nos indica Florestan Fernandes:
O que está em jogo é antes o estabelecimento de limites e explicar porque uma ordem social burguesa, na periferia do mundo capitalista, enfrenta na esfera cultural as mesmas impossibilidades que se concretizam na esfera econômica. A dominação imperialista não deixa claros. Ao fechar o tempo histórico no plano da economia, ela também fecha o tempo histórico no plano da cultural. (FERNANDES, 1977, p. 230).
Ao renunciar à construção de um projeto de nação autônomo, a burguesia brasileira sempre abriu mão do investimento qualitativo e quantitativo na ciência
13 Ver esta afirmação de Leonel Brizola na Revista Veja, edição 1663, de 23/8/2000.
básica de marca original. Optou pela cópia ou compra. Consequentemente, não só não precisou, mas sempre se opôs à universalização da Educação Básica. Isso explica o fato de que, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Penad) de 2016, entre os adultos, cerca de 12 milhões continuem analfabetos; entre os adultos com 25 anos ou mais, 66,3%; ou 51% da população adulta tinha apenas o Ensino Fundamental. Nesta faixa etária, apenas 15% têm nível superior. Em 2017, a taxa de escolarização das pessoas de 15 a 17 anos era de 68,4%. Destes jovens, cerca de 1,3 milhão de adolescentes nessa faixa etária está fora da escola, enquanto outros 2 milhões estão atrasados14.
Mas ao examinarmos o tipo de formação escolar oferecida à maioria dos jovens brasileiros constatamos que o que predomina ao longo da nossa história é a escola dual e, cada vez mais, a diferenciação na dualidade para a maioria dos jovens brasileiros que frequenta as escolas públicas15. O que se consolida é uma reiterada continuidade na negação ao conhecimento e cultura socialmente produzidos à classe trabalhadora. O que defendia Destutt de Tracy, no final do século XVIII, sobre uma escola restrita, prática e rápida para os que se destinavam ao duro ofício do trabalho e uma ampla e demorada para quem se destinava dirigir à sociedade tem sido uma opção até o presente em nossa história. Os avanços na construção democrática, no âmbito econômico e educacional alcançados pela luta das organizações e movimentos sociais da classe trabalhadora e seus intelectuais, sistematicamente, foram truncados por ditaduras e golpes institucionais.
A partir do Golpe de Estado de 2016, com a Emenda Constitucional no 95/2016, a contrarreforma trabalhista (Lei no 13.467/1917), a contrarreforma do Ensino Médio (Lei no 13.415/2017) e o projeto de contrarreforma da Previdência, em processo de aprovação, mesmo antes da eleição de 2018, o foco é liquidar com a esfera pública, o trabalhador público, liquidar com a Educação Básica e dar ao mercado a prerrogativa de gerir as relações trabalhistas e os processos educativos, mesmo que se mantenham formalmente o nome de escola pública. Junto a essas contrarreformas, e para mantê-las, se necessário pela força, tramitam a lei antiterror,
14Disponível em: https://www.correio24horas.com.br/noticia/nid/apenas-684-dos -jovens-de-15-a-17- anos-estao-no-ensino-medio-diz-ibge/. Acesso em: 5 nov. 2018.
15 Ver a esse respeito a análise de Algebaile (2009).
a luta para ampliar o direito de armas, o projeto do Movimento Escola Sem Partido, o projeto da diminuição da idade penal, a lei contra o aborto, entre outras iniciativas.
O que se desenha não é apenas a reiteração do passado, no que de mais trágico engendra: escravidão, desigualdade estrutural mantida por ditaduras e golpes e a manutenção da negação ao conhecimento histórico e socialmente produzido. Estas marcas culturais, econômicas, políticas e legais, sob nova face do autoritarismo articulado a teorias ultraconservadoras e ao fundamentalismo religioso, engendram e desenvolvem um tecido de fascismo societal.
Mal saído o resultado das urnas, esse conjunto de iniciativas parlamentares ganhou o ingrediente que sintetiza o retorno ao autoritarismo, opção pelo ultraliberalismo econômico e pelo fundamentalismo religioso. Deste modo, antes mesmo de assumir o governo, pode ver aprovada alguma dessas iniciativas parlamentares com maior teor coercitivo. É o caso da Lei Antiterror aprovada com vetos pela ex-presidente Dilma Rousseff. Com efeito, o senador Magno Malta, do núcleo básico da campanha de Bolsonaro, incluiu na pauta da Comissão de Constituição e Justiça do Senado a votação de um projeto que abre a possibilidade de ampliar ações que podem ser consideradas terrorismo, incluído movimentos sociais, ativistas etc. Neste contexto, as teses do Movimento Escola Sem Partido voltam com força ampliada para tornar-se lei.
Duas coisas são infinitas: o universo e a estupidez humana. Mas, em relação ao universo, ainda não tenho certeza absoluta.
(Albert Einstein)16.
A cultura do autoritarismo que, como vimos, tem suas raízes na colonização e no longo processo de escravidão, no contexto da crise estrutural do capitalismo e como esta se materializa em nossa sociedade de capitalismo dependente ganha novas determinações de caráter regressivo em todas as esferas da vida. Luciano Gallino (2015), sociólogo italiano, caracteriza os governos que adotam o receituário neoliberal ou ultraconservador como governos da estupidez humana. Trata-se das
16 . https://www.pensador.com/frase/MjQ3Mw/. Acesso em: 26 de Fev. 2019.
políticas que se afirmam sob o argumento de ajustes e austeridade necessárias — sem o que, o caos se instalaria —, para as quais não há sociedade, não há seres e necessidades humanas, há apenas mercado e o lucro maximizado, hoje predominantemente do capital financeiro.
A manutenção destas políticas, pela produção de desigualdade, desemprego estrutural, perda de direitos e degradação social que produzem, somente pode ser sustentada pela violência do arbítrio da lei e/ou das armas. Um contexto em que as teses políticas de extrema direita ganham terreno no mundo e se ampliam as práticas do Estado policial. Como vimos, a manutenção de nossa estrutura social com abismal desigualdade, e de um projeto de capitalismo dependente, manteve-se pela manipulação das leis pelas oligarquias ou por ditaduras e golpes.
Não tivemos, todavia, de forma explícita uma força social que buscasse implantar um projeto político de extrema direita. A perplexidade de parte da sociedade brasileira funda-se, atualmente, no fato de que começa entender o ovo de serpente ou a esfinge que nos ameaçam. Perplexidade que advém do teor das teses claramente defendidas por estas forças que se tornam agora governo. Mais espantoso, é que este ovo de serpente e esfinge tem como outro ingrediente o fundamentalismo religioso de seitas ou denominação neopentecostais que fundam igrejas-mercado explorando a miséria e a fé simples de multidões.
Esta materialidade tecida no terreno específico de nossas relações sociais tem como contrapartida a manutenção no obscurantismo da maioria da população brasileira, negando-lhe bases de conhecimento para uma análise autônoma da realidade em todas as suas dimensões. Concomitantemente, ao longo de nossa história, o combate ao pensamento divergente desenvolvido por intelectuais, pesquisadores, políticos e lideranças de movimentos sociais sempre se deu pelo jargão do risco do socialismo e comunismo. O paradoxal é que os que sustentam este jargão são os mesmos que veiculam as teses do fim da história com o colapso do socialismo real. Ou seja, a humanidade teria a prova de que o capitalismo é a forma de produção da existência que corresponde à natureza humana.
Diferentes análises, nos diversos âmbitos da ciência social, buscam decifrar, mormente a partir de 2013, o tecido social em que o ovo de serpente esboçou seu crescimento e como este crescimento assumiu celeridade. No campo da educação, o esforço tem sido de apreender a relação entre o processo de mercantilização da
educação pública e o controle ideológico do conteúdo do conhecimento e métodos de abordá-lo. Isso se expressa pela criação de duas organizações que se denominam movimentos, mas que se constituem no que Gramsci denomina de partidos ideológicos: Movimentos Todos pela Educação e Escola sem Partido.
Em continuidade ao que um grupo de pesquisadores que têm buscado refletir, em duas recentes coletâneas17, sobre esta relação e seus desdobramentos no plano jurídico, buscamos neste item, ainda que de forma indicativa, retomar o que está subjacente no plano ontológico, no plano epistemológico que articula estes dois movimentos e os vendilhões dos templos do fundamentalismo religioso. Por esta via tentamos desvelar: o jogo ardiloso e cínico que engendra o termo partido, e o furor moralista que une o ultraconservadorismo econômico, o fundamentalismo religioso e o aprofundamento da cultura autoritária de extrema direita na sociedade brasileira.
A base ontológica que sustenta os fundamentos do liberalismo econômico e sua face atual ultraconservadora partem do suposto, como vimos no item 1, de uma natureza humana que tende ao bom, ao útil e ao agradável. Sendo um legado da natureza dado a todos, igualmente, a luta de cada um para satisfazer suas necessidades e desejos se daria em condições de igualdade. Assim, a luta egoísta de cada um seria a chave para a prosperidade social em que cada um receberia pelo que contribuiu para a sociedade, mas a tendência seria o equilíbrio. Adam Smith, fundador da economia clássica liberal, situou o mercado como locus no qual cada indivíduo racionalmente e livre faria suas escolhas e trocas18.
O caráter falso deste suposto se evidencia, por um lado, pelo fato de que no plano da ciência, o homem é um ser histórico natural. Isto significa que a natureza humana é histórica. E se somos seres históricos, nossa individualidade é social. A partir do suposto de uma natureza humana dada e invariável, sem levar em conta as relações sociais dominantes, anulam-se as formas históricas presidentes ao capitalismo sob a escravidão e o servilismo e mascara-se a exploração no presente. Esta anulação do processo histórico é a base sobre a qual se fundamenta a tese de que o que cada indivíduo consegue de riqueza, cultura etc. resulta de seu mérito e
17 Ver: Frigotto (Org.), 2017; Penna; Queiroz; Frigotto (Orgs.), 2018.
18 Ver a esse respeito Hunt & Sherman (1987, p. 566), o que eles denominam de credo psicológico, político e econômico derivados desta concepção ontológica.
não, no mais das vezes, da meritocracia. Esta não leva em conta em que condições os indivíduos fazem as suas escolhas.
Assim como os escravos não tinham as mesmas condições de escolha de seus donos, os trabalhadores não negociam a venda de sua força de trabalho em iguais condições dos seus compradores. Em situação mais dramática, são os milhões de subempregados e desempregados em todo mundo. Este suposto foi desmentido pelo percurso histórico do capitalismo que, ao contrário da igualdade e liberdade reais, tem como seu fundamento estrutural a desigualdade real e a liberdade formal.
O fundamentalismo religioso reforça esta concepção a-histórica e individualista do ser humano, mas sob o fundamento do criacionismo. O fundamento ontológico da burguesia e o antropocentrismo sem história, e o do fundamentalismo religioso a ontologia metafísica, esta supra-histórica. Não por acaso, Adam Smith vê no mercado uma espécie de um deus (mão invisível) que iria harmonizar os múltiplos e diversos interesses e escolhas individuais.
Sob estas concepções ontológicas desenvolve-se a matriz epistemológica positivista, racionalista e empirista que postula um conhecimento neutro e, portanto, isento de valores, de ideologias19. Trata-se de abordagens que tomam a realidade social, humana como uma coisa, um dado não resultante de relações sociais historicamente produzidas. Para esta matriz epistemológica, a compreensão dos fatos, acontecimentos, problemas econômicos, sociais, psíquico etc., é alcançada pela soma de fatores isolados, e não da relação das partes com a totalidade histórico-social que os constitui.
Karel Kosik denomina esta matriz ontológica e epistemológica, como já nos referimos, de metafísica da cultura. Ao entender a economia como um fator e não como uma estrutura de relações sociais assimétricas mascara-se como de fato os seres humanos produzem e reproduzem sua vida material, cultural, educacional socialmente.
A economia não é apenas a produção de bens materiais: é a totalidade da produção e reprodução do homem como ser humano social. A economia não é apenas a produção de bens materiais, é ao
19 Para uma compreensão aprofundada desta matriz epistemológica. Ver Michael Löwy (2013, p. 81- 118).
mesmo tempo produção das relações sociais dentro das quais a produção se realiza. (KOSIK, 1986, p. 173).
Isto nos indica que a miséria humana e religiosa é produzida nos indivíduos nas relações sociais. Se estas relações são de desigualdade real, não será no mercado que compradores de força de trabalho e vendedores fazem escolhas igualmente vantajosas. Do mesmo modo, não será a pregação da teologia, da prosperidade, sob a pregação do exorcismo e do milagre que tira os indivíduos da miséria humana e religiosa.
Em duas pequenas passagens, no livro a Sagrada família, Karl Marx, diz:
Se o homem é formado pelas circunstâncias, será necessário formar as circunstâncias humanamente. Se o homem é social por natureza, desenvolverá sua verdadeira natureza no seio da sociedade e somente ali, razão pela qual devemos medir o poder de sua natureza, não através do poder do indivíduo concreto, mas sim através do poder da sociedade (grifos nossos). (MARX, 2003, p. 150).
A frase que antecede o texto acima, na sociedade brasileira, reveste-se de uma atualidade extrema em relação ao como tratar a questão da violência. As teses da diminuição da idade penal e, mais brutalmente, o senso comum que se quer criar para a violência do Estado de que “bandido bom é bandido morto” exime a sociedade e este mesmo Estado de serem os agentes produtores da violência.
Se o homem não goza de liberdade em sentido materialista, quer dizer, se é livre não pela força negativa de poder evitar isso e aquilo, mas pelo poder positivo de fazer valer sua verdadeira individualidade, os crimes não deverão ser castigados no indivíduo, mas [deve-se] sim destruir as raízes antissociais do crime (grifos nossos) e dar a todos a margem social necessária para exteriorizar de um modo essencial sua vida. (ibid. p. 150).
Sob o horizonte de análise que desenvolvemos até aqui é possível desvelar porque, mesmo operando de forma independente, os autodenominados Movimentos Todos pela Educação, Escola sem Partido e o fundamentalismo religioso se relacionam e se reforçam. Nesta relação, entender por que isso só pode ser sustentado sob a exacerbação da cultura autoritária na forma legalizada de um Estado de exceção de marca policial.
Todos pela Educação e Escola sem Partido, por argumentos distintos, têm como pressuposto a neutralidade do conhecimento. Esta, no contexto do
ultraconservadorismo econômico, pavimenta as ações do Movimento Todos pela Educação, não apenas de fazer da educação um negócio rendoso, mas, também, de orientar os conteúdos e métodos, supostamente neutros, para os conhecimentos e valores que servem ao mercado. A neutralidade, por sua vez, está na base do Movimento Escola sem Partido, no argumento da doutrinação ideológica dos professores sobre os alunos, tanto no conhecimento quanto nos valores; estes propriedade exclusiva não dos pais, tidos como “donos dos filhos” e a escola como mercado, pois regulada pelo “código do consumidor”.
O fundamentalismo religioso relaciona-se com ambos pelo viés mercantil da religião, sendo que com a Escola sem Partido, também, e, especialmente, pelos valores da família, combatendo o que denominam de ideologia de gênero, não com base na ciência, mas no criacionismo. Isto fica evidente nas teses que “homem nasce homem e mulher nasce mulher” e, em consequência, a diversidade de gênero e orientação sexual são consideradas doenças ou coisa do demônio. Longas sessões de encenação de “exorcismo” ou de “milagres” e a “teologia” da prosperidade são uma espécie de marketing “sagrado” do mercado destas empresas religiosas.
A acusação da ideologização pelas ciências sociais e humanas conflui para o apoio do conjunto dos dois movimentos e do fundamentalismo religioso a suas bancadas no Congresso para o que se consubstanciou na contrarreforma do Ensino Médio, nas Bases Curriculares Nacionais e agora, já, a Educação a Distância na Educação Básica, com a aprovação das Diretrizes do Ensino Médio. Esse conjunto de mudanças atende a todas essas forças conservadoras, mediante a diluição ou simplesmente das áreas das ciências sociais e humanas, e mesmo ciências da natureza na formação da maior parte da juventude brasileira.
Para impor seus objetivos tanto o Movimento Escola sem Partido quanto o fundamentalismo religioso as suas crenças valem-se do falseamento de conceitos e manipulação da boa-fé. Ao acusar que a escola tem partido, busca-se confundir os pais e a sociedade de modo geral, pois grande parte dos professores vale-se de seu público cativo para doutrinar de acordo com o partido de preferência. Se isso fosse verdade, até que seria uma doutrinação democrática, pois no conjunto dos professores há adeptos de todos os partidos políticos. Mas os proponentes do movimento sabem muito bem que não é isso.
O que eles pretendem é que o professor se constitua um tipo de robô ou máquina neutra. Que ensine o que está programado e prescrito e de preferência por um dos dezoito institutos apoiadores do Movimento Todos pela Educação que vendem pacotes de ensino. Todas as mudanças anteriormente assinaladas na Educação Básica concorrem para esta direção. Chega-se, assim, a submeter o trabalho docente na escola pública aos padrões das prescrições da gerência científica do setor privado.
O Movimento também sabe que nenhuma escola defende um determinado partido político. O que o preocupa é sob que bases teóricas os professores efetivam sua docência em toda e qualquer área de conhecimento. Sabe que pelo conteúdo e método de produção e socialização do conhecimento trabalhado na escola, ela exerce uma determinada função política: transformadora ou conservadora. O que o preocupa e autoritariamente querem silenciar são aquelas análises que têm sua base em autores que ajudam aos jovens a entender a natureza das relações sociais de classe, sob uma sociedade das mais desiguais e violentas do mundo. Ou seja, autores e análises que dão base para que cada um, autonomamente, exerça aquilo que Aristóteles dizia do ser humano: um ser essencialmente político (zoon politikon). Mas qual a neutralidade dos autores que fundamentam suas teses?
Unicamente porque são autores que defendem que é possível um conhecimento neutro, despido de valores e, portanto, de ideologia? Mas que neutralidade seria esta se é justamente os autores que afirmam ser o capitalismo uma sociedade do tipo natural, ou que corresponde à natureza humana e, portanto, postulam a manutenção das relações sociais que produzem a desigualdade e a exploração. Mas isso nada tem a ver com ideologia e política!
Por fim, o fundamentalismo religioso, ao utilizar-se do criacionismo para opor- se ao que denomina de ideologia de gênero e entender que o homossexualismo e o lesbianismo são uma doença, manipula os pais e a sociedade, afirmando que determinados professores e conteúdos nas escolas estão induzindo as crianças a se tornarem homossexuais ou lésbicas.
Em torno dessa manipulação, criaram a expressão “Kit gay”, acusando o governo e profissionais que estariam distribuindo materiais que incentivam o homossexualismo. Uma grosseira e criminosa inversão daquilo que é a orientação da Organização dos Direitos Humanos, que condena qualquer descriminação de
gênero e opção sexual. A solicitação foi para que em todos os países se elaborassem materiais de orientação nas escolas de não descriminação de gênero e orientação sexual. Esta indicação era resultado de uma pesquisa elaborada em 2011 pelo Alto Comissariado das Nações Unidas (ACNUDH), na qual se evidenciou alarmante incidência de violência e discriminação em função de sua orientação sexual e identidade de gênero. A partir desta constatação, órgãos das Nações Unidas passaram a elaborar orientações contra a homofobia, feminicídio e descriminação por opção sexual20.
A junção de ultraconservadorismo econômico-social, da ideologia “Escola sem Partido, do fundamentalismo religioso e a disseminação do ódio contra adversários políticos, diversidade de gênero e orientação sexual e a falsificação de notícias constituíram o horizonte das forças sociais de extrema direita que governarão o país nos próximos quatro anos. Com a cultura extremada do autoritarismo, estas forças sinalizam um crescimento de traços de fascismo societário.
Os traços deste fascismo expressam-se mediante: a crescente investida ultraconservadora no campo econômico e social com o desmanche da esfera pública da educação, saúde, trabalho e, como tal, dos direitos universais; as investidas do partido ideológico “Escola sem Partido” contra a liberdade de expressão e de análise por parte dos professores sobre os temas científicos, filosóficos e culturais etc., com a incitação ao ódio e à delação por parte de pais e alunos, censura de autores e afirmação da pedagogia do medo; e, por fim, o fundamentalismo religioso que “adora bezerros de ouro” e que retroage à Idade Média querendo impor o criacionismo (interpretação metafísica) à ciência. A tese de que nascemos “homem e mulher” pode estar correspondendo à tese de que vivíamos num sistema geocêntrico e não o que a ciência demonstrou, heliocêntrico. Quando isto foi comprovado, a inquisição tinha torturado e mandado à fogueira seres humanos, assim como o regime fascista perseguiu os estrangeiros, ciganos e levou ao holocausto milhões de judeus.
Não existe verdade científica acabada. Tanto as ciências sociais e humanas quanto as ciências da natureza, da qual o ser humano é parte, são ciências
20https://nacoesunidas.org/onu-apresenta-recomendacoes-sobre-a-protecao-dos-direitos-de-lgbt/
Acesso em 11 /11/2018. Ver também recomendações da UNESCO. Disponível em: https://www.terra.com.br/noticias/educacao/unesco-e-dever-do-mec-criar-politica-contra-homofobia- na-escola,214a42ba7d2da310VgnCLD200000bbcceb. Acesso em: 20. Jan.2019.
históricas. Se existe diferentes identidades de gênero e de orientação sexual, no plano das ciências, é algo que tem que ser compreendido biológica, histórica e culturalmente e não pelo dogma metafísico. Como explicita, de forma clara, Jaime Breilh ao analisar o que determina a saúde e o que determina a vida:
Cuando pensamos sobre la dicha determinación social de la salud, si queremos cuidar uma perspectiva dialética que no recaiga ni en el determinismo biológico ni en el determinismo histórico, tenemos que trabajar las relacionas “social-biológico” y “sociedad-naturaleza”, de tal manera que ninguna de las partes pierda su presencia en la determinación. (BREILH, 2010, p.110).
Cabe à sociedade brasileira em suas instituições científicas, jurídicas, culturais, políticas, sindicais e movimentos sociais e populares criar mecanismos, não para barrar, mas para reverter o que não é apenas ameaça, mas uma realidade no tecido cultural e social em nossa sociedade. Reverter o conjunto de contrarreformas que aniquilam a esfera pública e, com ela, todos os direitos universais. Reverter a ideologia do ódio e pedagogia do medo dos ideólogos do partido da “Escola sem Partido” e, sobretudo, combater e buscar formas de impedir o avanço dos vendilhões dos templos e a subordinação da ciência ao credo de fanáticos do fundamentalismo religioso. Mais que nunca, colocar barreiras à junção de fundamentalismo econômico, fundamentalismo de extrema direita e fundamentalismo religioso, a esfinge que se coloca como mandato de “deus”.
A estupidez humana, no sentido que sugerem Luciano Gallino e Albert Einstein, encontra em nossa sociedade atualmente o seu grau extremo, por ter sua força instalada no coração das instituições parlamentares, jurídicas e de gestão do Estado. Tratemos de nos defender pela unidade profunda, substancial e inabalável das forças sociais que querem que haja futuro visível.
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Recebido em: 08 de janeiro de 2019. Aceito em: 30 de janeiro de 2019. Publicado em: 28 de maio de 2019.
v.17, nº 32, jan-abr (2019) ISSN: 1808-799 X
Celso João Ferretti2 Monica Ribeiro da Silva3
Neste texto nos propomos a refletir sobre processos que circunscrevem embates e disputas em torno das finalidades e formas de organização do ensino médio com vistas a apontar perspectivas de resistência em face dos retrocessos anunciados pela Lei 13.415/17. Partimos da constatação de uma certa hegemonia de concepções economicistas da educação. Defendemos, apoiados em Gramsci, que aliado à crítica rigorosa a esse movimento, outras formas de ação mostram-se necessárias, dentre elas, a (re)afirmação de uma proposta contra hegemônica, qual seja, a do Ensino Médio Integrado.
In this paper we reflect on the processes that circumscribe conflicts and disputes around the aims and forms of organization of secondary education in order to point out perspectives of resistance in face of setbacks announced by the Law 13.415/17. Our starting point is the realization of a hegemony regarding educational conceptions with an economic approach. We argue, supported by Gramsci, that allyed with the rigorous criticism of this movement, other forms of action are necessary such as the (re) affirmation of a counter-hegemonic proposal, that is, of an integrated secondary education.
En este texto nos proponemos reflexionar sobre procesos que circunscriben enfrentamientos y disputas en torno a las finalidades y formas de organización de la enseñanza media con vistas a identificar perspectivas de resistencia de cara a los retrocesos anunciados por la Ley Nº 13.415/17. Partimos de la constatación de cierta hegemonía de concepciones economicistas de
la educación. Defendemos, apoyados en Gramsci, que, aliadas a la crítica rigurosa a ese movimiento, otras formas de acción se revelan necesarias, como la (re)afirmación de una propuesta contrahegemónica, la de la Enseñanza Media Integrada.
1 DOI: https://doi.org/10.22409/tn.17i32.p28305
No contexto das disputas circunscritas à educação básica, atualmente no Brasil verificamos em curso um movimento de ampliação de ações de matriz neoliberal que se evidencia pelo alargamento da presença de Institutos e Fundações ligados ao setor empresarial sobre a oferta pública de educação. Tais entidades passam a assumir parte do que antes era atribuição do Estado e operam por uma dupla via: por um lado, por meio da atuação no âmbito mesmo da produção da legislação e da política educacional, e, por outro lado, uma vez obtido sucesso na seara da regulação da política educacional, passam a compor protagonismo no processo de implementação da legislação e das ações dela derivadas. É possível ilustrar esse tipo de ação que se diferencia da presença clássica do setor privado na área educacional ao recorrermos, por exemplo, ao crescimento exponencial daquilo que Freitas (2012) já alertava no início da década e que denominou de “reformadores empresariais”. No Brasil, a organização emblemática que atual diretamente junto ao Estado e que agrega um expressivo número de Institutos e Fundações é a ONG “Todos pela Educação”. O modus operandi dessas entidades compreende tanto a interlocução direta com os poderes executivos (federal, estaduais e municipais) em busca de assessorias e oferta de “tecnologias educacionais” quanto a ação junto ao poder legislativo, especialmente o Congresso Nacional, pressionando por mudanças nos marcos legais. Exemplo disso foi a intensa ação desses grupos quando da tramitação da atual MP 746/16. (FERRETTI e SILVA, 2017).
Os argumentos aqui apresentados tomam por base duas ações em curso: de um lado, a reforma do ensino médio por meio da Lei 13.415/17 e, de outro, a proposta de Base Nacional Comum Curricular (BNCC) a ela vinculada. Evidências do movimento acima mencionado são encontradas já nas investidas de entidades empresariais durante a tramitação e aprovação da Medida Provisória 746/2016 (FERRETTI e SILVA, 2017) e no processo de produção e implementação dos documentos de BNCC.
A ampliação da presença dos representantes do capital no contexto mencionado deriva de uma perspectiva economicista de compreensão da educação e da ação do Estado. O empresariamento da educação propriamente dito se manifesta por meio da ação direta dos institutos e fundações privados sobre os sistemas e redes
de ensino e contam com aprovação e indução do poder executivo federal. As evidências coligidas atestam que está em curso a ampliação da ação privada sobre a educação pública gerando um processo de transferência de responsabilidade do Estado e configurando formatos particulares de imbricamento entre as esferas pública e privada.
Silva e Scheibe mostram que se verifica uma linha de argumentação incorporada na reforma atual do ensino médio (MP 746/16; Lei 13.415/17) que tem se mostrado presente desde a aprovação da LDB em 1996: “a defesa da necessidade de adequação do ensino médio a requisitos postos pelo mercado de trabalho e/ou por necessidades definidas pelo setor empresarial”, e que “tal defesa aproxima a última etapa da educação básica a uma visão mercantil da escola pública e adota critérios pragmáticos para definir os rumos das mudanças, tais como o desempenho nos exames em larga escola e o acesso limitado à educação superior por parte dos concluintes do ensino médio” (SILVA e SCHEIBE, 2017, p. 21). A essa lógica pragmática e ancorada em argumentos que submetem a educação à dinâmica da produção capitalista denominamos de economicismo.
A perspectiva economicista adquire contornos peculiares nos últimos vinte anos no Brasil, o que se evidencia especialmente nas produções normativas no pós-LDB de 1996 que, ao buscar atender a prescrições de organismos internacionais como a UNESCO, o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento, passam a associar mudanças do mundo do trabalho com supostas necessidades de mudanças no mundo da escola. É o caso, por exemplo, das proposições em torno do “aprender-a-aprender”, tão bem analisado e criticado por Duarte (2001) que relaciona tais formulações à produção do discurso pós-moderno que o autor caracteriza como “ilusões da assim chamada sociedade do conhecimento” (p.38). O ponto de vista do economicismo foi central, por exemplo, quando da aprovação das Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio em 1998 (Parecer CNE/CEB 15/98; Resolução CNE/CEB 03/1998). Esteve presente, também, na tramitação, na Câmara dos Deputados, do PL 6.840/2013; na Exposição de Motivos e nas proposições presentes na Medida Provisória 746/16, bem como no Relatório e Projetos de Lei que resultaram na Lei 13.415/17.
Ao estabelecer o ensino médio como uma das etapas da educação básica, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB 9.394/96), indica o reconhecimento de
que se assegure uma formação básica comum e sinaliza para a progressiva extensão da obrigatoriedade. Em atendimento ao Artigo 26 dessa Lei, o Conselho Nacional de Educação exara Diretrizes Curriculares Nacionais para a etapa (DCNEM) por meio do Parecer CNE/CEB 15/98 e na Resolução CNE/CEB 03/1998. Em consonância com os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (PCNEM) produzidos pelos Ministério da Educação, as justificativas das proposições presentes nesses documentos se assentam em argumentos que buscam aproximar a educação escolar a requisitos originários do “mundo do trabalho”, contextualizado a partir de inovações tecnológicas e de gestão atinentes ao processo de reestruturação produtiva que estariam demandando um novo perfil de trabalhador.
As habilidades profissionais requeridas comporiam o “modelo de competências”, movimento que em vários países orientava a definição dos currículos da formação profissional em todos os níveis (SILVA, 2008). No Brasil tal modelo serviu de fundamento para que também o ensino médio de formação geral, isto é, não profissionalizante, nele se pautasse. Desse modo, tanto os PCNEM quanto as DCNEM de 1998 se estruturavam de modo a descrever as competências que estariam sob responsabilidade da escola desenvolver em cada estudante. O referencial na definição dessas competências estava ancorado, sobretudo, na propalada necessidade de adequar a formação escolar a necessidades dos processos de produção de mercadorias e serviços. Lê-se no Parecer CNE/CEB 15/98, que adequar a escolarização “supõe desenvolver a capacidade de assimilar mudanças tecnológicas e adaptar-se a novas formas de organização do trabalho”. Estes textos compõem a primeira tentativa do pós-LDB em associar educação, política educacional e setor produtivo e exemplificam a perspectiva economicista aqui mencionada.
Mais recentemente, em oposição às Diretrizes Curriculares Nacionais homologadas em 2012 (Parecer CNE/CEB 05/2011 e Resolução CNE/CEB 02/2012), e que se distanciavam das DCNEM de 1998 ao não vincular de forma tão pragmática educação e mundo produtivo, vimos surgir na Câmara dos Deputados a CEENSI – Comissão destinada a promover estudos e proposições para reformulação da última etapa da educação básica, por iniciativa do Deputado Reginaldo Lopes (PT-MG), que alega, no requerimento que deu origem à comissão, que não haveria correspondência entre o que a escola oferece e “as expectativas dos jovens, especialmente no tocante à sua inserção na vida profissional”, e, além disso, “vem apresentando resultados que
não correspondem ao crescimento social e econômico do país” (SILVA e SCHEIBE, 2017, p. 24). Tanto nos pressupostos que embasaram os trabalhos da Comissão, quanto nas propostas que deram origem ao Projeto de Lei 6.840/2013, é possível identificar o viés pragmático e economicista da argumentação em prol de uma reformulação, seja no que diz respeito à imediata associação entre a necessidade de mudanças e o desempenho dos estudantes nos exames em larga escala, seja no que se refere à defesa de vinculação da educação básica ao mercado de trabalho, pela via da ampliação da profissionalização que ocorreria na forma de uma das opções formativas que seriam incluídas na Lei de Diretrizes e Bases da Educação. O PL não chegou a ir a plenário para votação. Em seu lugar é publicada, por ação do executivo federal que assume após o impeachment de Dilma Roussef, a Medida Provisória 746/16, que com ele guarda grande semelhança. A proposta que daí deriva é o assunto do qual passamos a nos ocupar.
Dentre os argumentos presentes na Medida Provisória encontramos, na exposição de motivos que explicitava as justificativas da reforma, que não se verificam diálogos entre a última etapa da educação básica e o setor produtivo e, ainda, que se estaria formando uma juventude incapaz de impulsionar o desenvolvimento econômico do país. Em razão dessa associação imediata entre educação e economia, é proposta a formação técnica e profissional na forma de um dos itinerários formativos que passariam a compor a organização curricular. Vale lembrar que, por meio do Decreto 5.154/2004 a LDB de 1996 passou a assegurar a possibilidade da oferta da Educação ProfissionalTécnica de Nível Médio, preferencialmente na forma integrada
– o Ensino Médio Integrado – que se assenta na integração entre ciência e trabalho, entre formação científica básica e formação técnico-profissional3.
A mudança aprovada por meio Lei 13.415/17, decorrente da MP 746 recupera o formato anteriormente priorizado e presente no Decreto 2.208/97, que tem na concomitância o modelo de articulação entre formação geral e formação profissional.
3Acerca das bases conceituais que orientaram a oferta do ensino médio integrado à educação profissional recomendamos a leitura do artigo: MOURA, Dante H.; LIMA FILHO, D. e SILVA, Monica R. Politecnia e formação integrada: confrontos conceituais, projetos políticos e contradições históricas da educação brasileira. Revista Brasileira de Educação, vol. 20, n. 63, out dez, 2015.
O que a reforma atual traz evidencia um retrocesso ao conferir ênfase ao formato concomitante e secundarizar a perspectiva integrada, mas essa escolha é perfeitamente orgânica ao viés economicista que a orienta. Além disso, incorre-se, na atual formulação, em redução da carga-horária da formação técnico-profissional posto que passa a estar restrita ao tempo destinado ao itinerário formativo, isto é, ao que resta tendo sido cumpridos tempos destinado à educação básica comum, de até 1.800 horas.
No texto da Base Nacional Comum Curricular redigida pelo Ministério da Educação e encaminhada ao Conselho Nacional de Educação em 03 de abril de 2018 se verifica igualmente a perspectiva economicista, especialmente no que diz respeito à recuperação do modelo de competências. O documento propõe que a finalidade dessa etapa seja o desenvolvimento um conjunto de competências gerais e outro de competências específicas. Competência está definida nesse documento como “mobilização de conhecimentos (conceitos e procedimentos), habilidades (práticas, cognitivas e socioemocionais), atitudes e valores para resolver demandas complexas da vida cotidiana, do pleno exercício da cidadania e do mundo do trabalho”. (BRASIL, 2018, p. 8).
A BNCC resgata o que estava disposto nos Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (BRASIL, 1999) e nas Diretrizes Curriculares Nacionais de 1998 (BRASIL, 1998), sobre os quais recai ampla crítica, inclusive pela conotação economicista que carregam (SILVA, 2008; LOPES e MACEDO, 2002; PACHECO, 2001). Além disso, desse texto constam detalhadas apenas duas disciplinas (Língua Portuguesa e Matemática), e a justificativa para isso, dada pela então Secretária Executiva do Ministério da Educação, Maria Helena Guimarães de Castro, é a de que se estaria atendendo a uma suposta necessidade de ajustar as prioridades do ensino médio brasileiro aos critérios e prioridades do PISA (Programa Internacional de Avaliação de Estudantes), organizado pela OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico). A prioridade do ensino de Língua Portuguesa e Matemática já estava prevista nos enunciados da Medida Provisória 746/16 foi incluída Lei 13.415/17 e atesta a subserviência da educação pública brasileira ao economicismo e a um discurso eficienticista4.
4As Teorias da Eficiência Social se inserem no quadro argumentativo circunscrito a uma interpretação mecanicista e pragmática da sociedade, da escola e do currículo. Como decorrência temos “a organização curricular com base nos objetivos comportamentais, a estruturação curricular com base
Como afirmado no artigo anteriormente citado (FERRETTI e SILVA, 2017), estamos em meio a batalhas que têm como foco a negação da pretendida hegemonia neoliberal no campo educacional. Nesse sentido observa-se, de um lado, a existência de educadores, mas, também, de outros profissionais da sociedade brasileira, bem como de jovens e seus familiares que, por desinformação, ou por estarem seduzidos por determinados aspectos prometidos, ou ainda, por estarem convictos de seus fundamentos, a defendem em diferentes espaços, inclusive o do próprio trabalho.
De outro lado, grupos de semelhante composição, fazem-lhe severa crítica, inclusive no referente a seus fundamentos, buscando solapá-la. No contexto adverso das medidas autoritárias promovidas pelo governo Temer ocorreram, por meio das redes sociais, manifestações de um misto de desânimo e revolta após a aprovação da Lei 13.415, bem como da promulgação da proposta da Base Nacional Comum Curricular e da minuta referente à “atualização” das Diretrizes Curriculares Nacionais, as duas últimas homologadas em 2018 pelo Conselho Nacional de Educação. Afirmou-se, então, a necessidade de resistir, desta vez, à implementação da referida Lei.
Entretanto, tal resistência não é algo que se põe apenas nesse momento. Na verdade, ela não começa agora. Já está em curso desde 2013, quando do surgimento do PL 6.840, efetuada, por exemplo, por meio de palestras, de participações em audiências públicas, do apoio às ocupações das escolas, dos textos que têm sido produzidos, das intervenções junto a congressistas. A ela deve-se dar continuidade por diversas formas que puderem ser criadas nesse novo momento, contando com o auxílio de dados provenientes de diversas fontes, entre elas as oficiais, que o grupo EMpesquisa5 tem recolhido junto ao Ministério da Educação e às Secretarias
nas competências e o planejamento do currículo com base na divisão de tarefas[que] fazem parte da mesma lógica que engendra mecanismos de controle do trabalho docente e discente”. Tal perspectiva visaria assegurar eficiência e eficácia no sistema de ensino. (Lopes, 2006, p. 47).
Estaduais de Educação. Tais dados se referem às diversas ações que visam à mencionada implementação. As ações do Movimento Nacional em Defesa do Ensino Médio6 igualmente se destacam na produção de manifestos e intervenções junto ao Congresso Nacional.
Todavia, as referidas ações têm envolvido, em grade parte, os que já estão afinados com as críticas à reforma. Essa prática é importante, pois contribui para a coesão da resistência, mas talvez seja insuficiente, do ponto de vista da luta hegemônica. Parece, assim, desejável a intensificação sistemática do processo de discussão crítica junto a outros envolvidos, de algum modo, com ela ou por ela, entre os quais os professores, gestores e técnicos das escolas públicas estaduais e dos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia, bem como os jovens e suas famílias.
Quais as razões para essa observação? A nosso ver, há pelo menos três. A primeira, óbvia e também principal, é a de ganhar a adesão ao grupo crítico, daqueles que hoje defendem o que está na Lei 13.415/17 e sua implementação, de maneira a fortalecer a postura de questionamento. A segunda e a terceira referem-se, em consequência da primeira, à necessidade de desenvolver junto ao grupo que se pretende incorporar, ações que se refiram ao conteúdo e aos objetivos, bem como aos fundamentos teórico-epistemológicos da concepção de ensino médio que se opõe à defendida na atual legislação. Em outros termos, retomar com os públicos mencionados acima, a proposta do Ensino Médio Integrado (EMI), tendo em vista que ela é a negação das políticas para esse nível da educação básica produzidas já durante a segunda gestão de Fernando Henrique Cardoso. Tais políticas, como se recorda, propunham não apenas a cisão entre a formação geral e a técnico- profissional, mas, além disso, ancoravam-se na orientação didático-pedagógica afinada com o desenvolvimento de competências, como volta a ocorrer por meio da
Base Nacional Comum Curricular. Não se trata, como pode parecer à primeira vista, de um movimento apenas educacional, mas político, em seu sentido mais amplo, posto que a formação determinada pela reforma dá continuidade ao anterior processo formativo afinado com as perspectivas do capitalismo neoliberal.
A necessidade de tal retomada funda-se, de um lado, na verificação, em 1990, por meio do Seminário sobre o Ensino Médio Integrado produzido pelo GT9 da Anped, assim como por intermédio da análise, realizada por Ferretti entre 2014 e 20167, de teses e dissertações voltadas para o estudo da implementação do EMI em escolas públicas estaduais e em Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia, que o conhecimento detido por gestores, professores e técnicos a respeito do EMI e de seus pressupostos teórico-filosóficos era precário, contribuindo, entre outros fatores (tais como, por exemplo, as condições infraestruturais das escolas, as condições de trabalho dos docentes) para os insucessos verificados a respeito de tal implementação.
De outro lado, ela funda-se no argumento de que a crítica de uma dada concepção de mundo é insuficiente para promover sua negação É necessário, entre outras medidas, oferecer a tal público outra concepção em torno da qual este possa aglutinar-se. No entender de Gramsci, trata-se de construir uma “vontade coletiva” (GRAMSCI, 1978a, p. 7) diversa da existente, com apoio em outras bases teórico- epistemológico-filosóficas, bem como em outras práticas educacionais. No caso da atual reforma do ensino médio desencadeada no governo de Michel Temer, não basta, nesse sentido, fazer a crítica das consequências da flexibilização curricular para professores, gestores e jovens. Sem aprofundar as razões da crítica para além do nível imediato, tal flexibilização pode ser incorporada apenas na sua dimensão econômico-corporativa, sem atenção às razões mais centrais que a movem. O mesmo se dá no que concerne à crítica sobre as concepções de trabalho presentes na proposta reformista, bem como no que diz respeito à formação oferecida. Entendidas na sua dimensão imediata (um risco não desprezível) tais proposições podem ser vistas pelo público anteriormente referido até mesmo como satisfatórias e afinadas
7 Ainda não publicada. A realização da pesquisa implicou na análise de 37 produções acadêmicas, sendo 25 dissertações de mestrado e 12 teses de doutorado produzidas entre 2011 e 2015 em instituições de Educação Superior das regiões Norte, Nordeste, Centro-Oeste, Sudeste, Sul e Distrito Federal. Vinte e sete estudos referem-se aos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia e oito focaram o ensino médio integrado à educação profissional ofertado por escolas pertencentes a redes estaduais de ensino.
com seus interesses. As peças e os eventos de divulgação, bem como os documentos legais produzidos pelo Ministério da Educação e por quadros políticos e empresariais afinados com os efetivos propósitos da reforma têm se encarregado, na perspectiva da construção da hegemonia, de promover reiteradas afirmações sobre as qualidades da mudança proposta, tendo por referência não seus propósitos reais, mas a dimensão imediata de seus possíveis efeitos, procurando, por essa forma, manter a discussão no nível do senso comum.
Nesse sentido cabe, com os devidos cuidados, examinar em que medida os que atuam nas escolas podem aderir às concepções da proposta curricular defendida pela reforma, ou ao processo de sua implementação. Essa possibilidade pode se efetivar devido a uma possível não familiaridade de professores, jovens e gestores com as discussões teórico-epistemológicas sobre diferentes concepções de educação, ao assédio exercido sobre esse público pela intensa ação político- ideológica desenvolvida por sítios oficiais e pela mídia, bem como à pressão funcional realizada por instâncias governamentais federais e estaduais.
Em função das razões acima expostas deve-se considerar que professores, gestores e técnicos podem simplesmente amoldar as proposições reformistas às práticas escolares já existentes, na medida das possibilidades e necessidades, ou adequá-las às concepções e reivindicações de caráter meramente corporativo. Tal movimento pode resultar em atividades fragmentárias caóticas e de senso-comum. Se, de um lado, tais procedimentos não dão pleno curso à reforma, de outro, não permitem a absorção e desenvolvimento de uma concepção mais coerente e consistente de educação que conduza à auto-disciplina intelectual e à autonomia moral a que Gramsci se refere quando discute a concepção de escola unitária (GRAMSCI, 1979, p. 124).
É necessário, por isso, ir além da crítica. Cabe insistir e investir na afirmação de concepções que se opõem à BNCC e à Lei 13.415/2017. Consideramos, nessa perspectiva, as proposições que se seguem, decorrentes das considerações teóricas de Gramsci a respeito das disputas por hegemonia e, no âmbito desta, do conceito de “guerra de posição”8 ou seja, nas tentativas de obtenção de consenso em torno de
8 “A riqueza polissêmica do conceito de guerra de posição é significativa no método gramsciano: ela tem um valor descritivo e gnosiológico e registra a transformação da arte militar aplicando-a à ciência política, tornando-se nos Q [Cadernos] um dos principais instrumentos utilizados pela filosofia da práxis para definir as modalidades com as quais se afirmam a luta e a organização das classes e para descrever as principais estratégias militares adotadas pelos exércitos modernos na Primeira Guerra
uma ideologia, de uma concepção de mundo ou de uma proposição de natureza política, no caso, a concepção político-ideológica de educação que defende um processo formativo radicalmente contrário à reforma.
A obtenção do consenso em torno da concepção de mundo e de educação que defendemos implica o desenvolvimento de um conjunto de práticas de convencimento que podem ser efetivadas por meio dos diferentes organismos da sociedade civil, entre eles a escola e as instâncias a que está referida no âmbito das Secretarias de Educação estaduais, bem como os sindicatos docentes.
Trata-se de sensibilizar e de orientar grupos aliados sobre os quais se pretende exercer certa direção político-ideológica, tendo em vista o fortalecimento das concepções educacionais que se opõem às que fundamentam a BNCC. É necessário, nesse sentido, apresentar e debater com gestores, professores, técnicos das escolas públicas estaduais e de Institutos Federais, os fundamentos teórico-epistemológicos em que nos baseamos para fazer a crítica, qual o conteúdo de tais referências e quais as proposições educacionais e curriculares que dele resultam, posto que tal concepção não é, necessariamente, de seu domínio. Em outros termos, há necessidade, como resistência, de ressaltar, para esse público, não somente a negação de uma concepção curricular, a partir de suas proposições, mas a afirmação elaborada e convenientemente “traduzida”, de outra que lhe é adversa, ou seja, do Ensino Médio Integrado, quer essa integração envolva ou não a educação profissional.
Em termos gramscianos, trata-se de, como grupo social antagônico ao que propôs e defende a reforma, realizar ações de direção sobre os grupos aliados ou que estão em dúvida sobre suas benesses, no sentido de atraí-los para nossas posições por meio da apresentação e repetição, pelas mais diversas formas, da concepção curricular integrada e das possibilidades de sua efetivação pelas escolas, destacando, em particular, o caráter de formação ampla, no plano cognitivo, assim como no plano valorativo, formação essa que visa colocar tanto alunos, quanto professores, gestores e técnicos na condição não apenas de lutar por direitos, mas, também, de, pelo
Mundial. Em comparação com a guerra de movimento, a guerra de posição é preparada minuciosamente pelos Estados e pelas classes sociais em tempo de paz (...) Para G. a guerra de posição não ocorre somente em época de guerra (...) mas é a expressão do ‘assédio recíproco’ entre as classes que se desenvolve constantemente em todas as sociedades capitalistas modernas”(Liguori e Voza, 2017, p. 357).
exercício critico, promover mudanças sociais que os beneficiem, mas, sobretudo, beneficiem a sociedade como um todo.
Isso implica o exercício de uma ação que busca não apenas tornar dirigentes membros dos grupos aliados, ou parcela destes, mas, também, atrair intelectuais articulados ao grupo dominante, mas não inerentes a tal grupo, de forma a, de um lado, enfraquece-lo e, de outro, sensibilizar tais intelectuais para as concepções educacionais que defendemos, com o objetivo da conquista do espaço político e ideológico ocupado pelo grupo dominante. Em outros termos, buscar a desarticulação de um bloco histórico e, simultaneamente, desencadear ações político-culturais cujo objetivo é estruturar um novo bloco histórico.
No entanto, Gramsci considera difícil a adoção de novas concepções quando estas contrariam as crenças conformistas difundidas pelas classes dominantes, o que significa que a construção da “vontade coletiva” é um processo longo e espinhoso. Nesse sentido, à ação cultural sistemática, tendo em vista tal construção, caberá exercer papel político fundamental, fazendo, como apontado anteriormente, a crítica das ideologias dominantes, mas, além disso, a divulgação daquelas que defendemos, pelas mais diversas formas, instrumentos e organismos.
Esta a razão pela qual Gramsci postula a necessidade de elaboração dos interesses populares, como construção que corresponde às exigências de um dado momento histórico complexo e orgânico, como unidade entre teoria e prática favorecedora de uma mudança intelectual-moral que resulte no desenvolvimento de concepção de mundo mais avançada. No entanto, esse movimento não é, em primeiro lugar, espontâneo e, de outro lado, não resulta da ação meramente especulativa, mas da reflexão sobre a prática real, cotidiana, que é sempre “devir” e que os próprios envolvidos, por sua atuação, estarão moldando a cada momento. Trata-se, dessa perspectiva, de um enfoque histórico, mas também filosófico. Refere-se, portanto, a uma “práxis” que deve ser estimulada pelos que estão em luta contra a reforma do ensino médio, como ação não apenas individual, mas, principalmente, coletiva, comprometida com os interesses dos envolvidos com os processos educativos escolares.
Cabe-nos, nesse sentido o árduo trabalho de promover o exame crítico do senso comum fundado nas ideologias deterministas de modo as alçar, com base em seu núcleo sadio, ao bom senso, ou seja, a uma construção filosófica mais elaborada
sobre a educação e sobre o mundo de modo a promover a construção da unidade ideológica do movimento cultural por meio da articulação teoria-prática.
Tal construção histórica implica uma relação dialética entre os que intentarem tal ação política em defesa do ensino médio que defendemos e os professores, gestores, técnicos e jovens que estão na escola pela qual os envolvidos superem continuamente e, ao mesmo tempo, transformem as condições existentes ao mesmo tempo em que são transformados por elas.
A possibilidade dessa relação reside na criação de “um mesmo clima cultural” entre os que se propõem tal ação política e que atuam na escola. em outros termos, um ponto de referência comum, seja pela contiguidade de interesses e objetivos, seja pela instauração de conteúdos e formas de comunicação dos quais ambos possam participar por meio do estabelecimento de um vínculo orgânico entre eles.
Nesse processo o ponto de partida é constituído não pelo “certo” dos que exercem a ação dirigente, mas pelas condições objetivas do grupo a que essa ação se dirige (ou seja, sua concepção de mundo e sua espontaneidade) que devem ser contrapostas ao seu próprio passado. Isso não impede, antes exige, que o momento inicial de elevação cultural se faça através da atuação de quem exerce a ação dirigente. À medida que essa ação se desenvolve há um progressivo caminhar da condição inicial, em que a concepção orgânica de mundo é recebida como fé, para a condição de consenso ativo, de racionalidade, de maior homogeneidade entre os envolvidos, condição essa propícia à constituição da vontade coletiva e criativa no plano político e cultural.
Referidas práticas talvez devam ocorrer em períodos variados de tempo a depender da complexidade do tema a que se referem, das circunstâncias envolvidas, das relações de força9 em presença e da adesão maior ou menor de professores,
9Gramsci identifica três tipos de “relações de força”: 1) “relações de força estreitamente ligadas à estrutura objetiva, que independe da vontade dos homens, que pode ser medida com os sistemas das ciências exatas ou físicas” (Gramsci, 1978, p. 49); 2) relações das forças políticas, que se refere ao grau de homogeneidade, de auto-consciência e de organização alcançado pelos vários grupos sociais. Tais forças podem ser analisadas em vários graus os quais correspondem a momentos da consciência política coletiva que se manifestam na história a saber: a) o momento econômico-corporativo; b) o momento da aquisição da “consciência da solidariedade de interesses entre todos os elementos do grupo social”, todavia ainda preso ao campo econômico (idem); c) o momento da aquisição da “consciência de que o próprios interesses corporativos superam, no seu desenvolvimento, o círculo corporativo do grupo econômico e podem e devem tornar-se interesse de outros grupos subordinados. Esta é a fase mais política e assinala a passagem nítida da estrutura às superestruturas, nas quais as ideologias germinam e se transformam em partido; 3) relações das forças militares, que se subdividem em técnico-militar e político-militar (idem, p, 51). No entender de Gramsci o desenvolvimento histórico oscila continuamente entre as forças 1 e 3, com a mediação da 2.
gestores, técnicos, jovens a grupos que perfilam concepções de mundo e de educação que divergem das presentes na reforma ou que não têm clareza sobre as diferenças entre estas e as que fundamental o ensino médio integrado.
O foco principal, todavia, não é tão somente a produção de mudanças individuais, mas, principalmente, a coletiva. Para que seja realizado um processo efetivo de mudança, tal como vem sendo discutido, há necessidade da construção da unidade entre pensamento e ser, entre filosofia e política, teoria e prática, de modo a ser possível converter a perspectiva da formação integrada em “vontade coletiva” (unidade cultural e social orientadora da ação), entendida por Gramsci “como consciência atuante da necessidade histórica, como protagonista de um drama histórico real e efetivo” (GRAMSCI, 1978a, p. 7).Tal drama se expressa de diversas formas, inclusive por meio dos problemas concretamente postos a professores, gestores, técnicos e jovens pelo desenvolvimento histórico da sociedade em que vivem.
Por isso, no plano da sociedade concreta, a elevação do nível de elaboração crítica desses sujeitos sociais relativamente à proposta de formação integrada e mesmo a construção de uma vontade coletiva em relação a ela é condição necessária, mas não suficiente para que ocorram mudanças significativas na oferta pública do ensino médio no país.
Determinações políticas, econômicas e sociais interferem nesse processo. O país enfrenta, no momento presente, adversidades de diversa natureza resultantes da crise político-econômica desencadeada no decorrer do governo Dilma Rousseff, mas que ganhou contornos dramáticos a partir da assunção ilegítima do poder por Michel Temer e da ascensão a ele de Jair Bolsonaro, propiciada, não apenas, mas também, pelo afastamento seletivo, por meios jurídicos, de seu principal opositor, conforme interpretações da defesa deste e do noticiário veiculado pela mídia.
Além das ações restritivas ao desenvolvimento do Ensino Médio Integrado abordadas na parte inicial deste texto, outras medidas político-econômicas de caráter mais amplo, afetam a sociedade como um todo e mais especificamente os setores populares. Entre elas destacam-se a reforma trabalhista que, ao flexibilizar as relações de trabalho, reduziu drasticamente as oportunidades de emprego, promoveu a precarização do exercício de atividades profissionais e reduziu salários; e, no momento presente o projeto de reforma da previdência, ainda em discussão, que,
dependendo do que for aprovado, poderá significar agravamento das condições de vida e educação para amplos setores da população. Para o que interessa mais de perto à discussão sobre a reforma iniciada no governo Temer, cabe destacar a Emenda Constitucional 95 que congelou por 20 anos, a partir de 2017, os recursos destinados às políticas sociais, principalmente para saúde e educação, afetando negativamente, as possibilidades de desenvolvimento da proposta da forma integrada dessa etapa da educação básica.
Em pronunciamentos feitos em 2019 o Presidente Bolsonaro, sugerindo malversação dos recursos por parte dos governos Lula e Dilma, reforçou a necessidade de contenção de gastos no campo educacional alegando que o alto volume dos recursos utilizados por esses governos em educação não havia resultado em melhoria do desempenho dos jovens brasileiros nos exames, como o PISA (Programa Internacional de Avaliação de Estudantes). Os atuais ocupantes do MEC, por seu turno, não tinham se pronunciado, até os primeiros meses de 2019, sobre a reforma do ensino médio. Manifestações recentes do atual Ministro da Educação priorizam fundamentalmente o itinerário “formação técnica e profissional” da estrutura curricular proposta pela Lei 13.415/2017 tendo em vista sua adequação ao trabalho flexível e aos avanços tecnológicos. Fazem coro, assim, às formulações presidenciais quanto aos gastos com educação, piorando o quadro desalentador já existente no que respeita à formação de natureza crítica.
Inspirados em Gramsci, defendemos que a crítica aos graves retrocessos por que passa a educação básica brasileira, e em particular sua última etapa – o ensino médio – é necessária. Tal crítica, produzida no âmbito das pesquisas e dos movimentos sociais organizados em torno da temática, têm cumprido a finalidade de sistematizar e apontar os riscos da reforma produzida por meio da Lei 13.45/17. No entanto, para além da crítica acadêmica, ainda que esta se assente no movimento histórico de compreensão da realidade, mostra-se imprescindível a construção de outras formas de ação, que a ela se alia, quando se trata de produzir resistência aos retrocessos anunciados. Dentre estas ações, chamamos a atenção para a
necessidade de interlocução direta com os sujeitos e instâncias responsáveis pela implementação das mudanças.
Além disso, mostra-se insuficiente a crítica e negação do que é proposto pela reforma. (Re)afirmar a proposta contra hegemônica é tão imperativo quanto denunciar os retrocessos que se avizinham. Nessa direção, destacamos a urgência de revigorar as concepções e ações que cercam a proposição do Ensino Médio Integrado. Vale lembrar que as bases conceituais que fundamentam essa perspectiva foram incorporadas nas Diretrizes Curriculares Nacionais: as finalidades de uma formação humana integral com vistas à emancipação individual e societária; as dimensões do trabalho, da ciência, da cultura e da tecnologia como eixo integrador do currículo e dos processos formativos; o princípio educativo do trabalho como fundamento epistemológico e metodológico (BRASIL, CNE/CEB Resolução 02/2012).
Por fim, cabe considerar que qualquer ação no âmbito da política educacional que circunscreva aspectos isolados está fadada ao fracasso. Resolver questões complexas, como as que envolvem o ensino médio na atualidade, necessita de um conjunto articulado de ações, desde as que envolvem a organização pedagógica e curricular, às formas de avaliação, da formação inicial e continuada de professores, das condições materiais da escolas, das condições da docência. A formulação de uma política pública consistente não se há de fazer, no entanto sem que se estabeleça uma interlocução direta com as juventudes que frequentam a última etapa da educação básica, bem como com educadores e gestores diretamente envolvidos com essa etapa.
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institui a Política de Fomento à Implementação de Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral. D.O.U., Brasília, 16 de fevereiro de 2017.
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Recebido em: 08 de dezembro de 2018. Aceito em: 11 de maio de 2019. Publicado em: 28 de maio de 2019.
v.17, nº 32, jan-abr (2019) ISSN: 1808-799 X
Maria Ciavatta3
Neste texto busquei refletir sobre dois termos, trabalho e educação, ambos substantivos, que têm sido assumidos como campo de pesquisa, nos últimos trinta anos, no Brasil. Semanticamente, independentes, têm, no entanto, servido aos pesquisadores para o estudo da relação trabalho e educação, como uma unidade semântica. Discuti alguns argumentos sobre sua unidade também do ponto de vista epistemológico, histórico e educacional, incluindo a distinção o trabalho como princípio educativo e o princípio educativo do trabalho.
En este texto busqué reflexionar sobre dos términos, trabajo y educación, ambos sustantivos, que han sido asumidos como campo de investigación, en los últimos treinta años, en Brasil. Semánticamente, independientes, han servido, sin embargo, a los investigadores para el estudio de la relación trabajo y educación, como una unidad semántica. Discutí algunos argumentos sobre su unidad también desde el punto de vista epistemológico, histórico y educativo, incluyendo la distinción del trabajo como principio educativo y el principio educativo del trabajo.
In this text I have tried to reflect on two terms, work and education, both substantives, that have been assumed in the last thirty years in Brazi, as a field of research. Semantically, independent, they have, however, served the researchers for the study of the relation work and education as a semantic unit. I have discussed some arguments about its unity also from the epistemological, historical, and educational point of view, including the distinction between work as an educational principle and the educational principle of work.
1 DOI: https://doi.org/10.22409/tn.17i32.p28306
2 Este tema foi apresentado de modo preliminar, no Seminário de Produção Científica do Grupo THESE – Trabalho, História, Educação e Saúde (UFF-UERJ-EPSJV-Fiocruz), Rio de Janeiro, 4, 5 e 6 de dezembro de 2017.
Seriam “trabalho e educação” uma unidade semântica e científica? Esta dúvida foi expressa pelo Prof. Hugo Zemelman3 nos idos de 1990. Pode-se entender que os dois termos se conjugam para designar um fenômeno único? Os dois nomes constituiriam uma unidade epistemológica? Estando neles presentes, tanto pensamentos e práticas do campo do trabalho, como do campo da educação, poderia Trabalho-Educação estar designando fenômenos tão amplos e complexos como trabalho manual, trabalho intelectual, trabalho simples, trabalho complexo, trabalho rural, trabalho urbano, trabalho agrícola, trabalho industrial, trabalho infanto- juvenil, trabalho precário, trabalho escravo e outras formas de trabalho? Ou, no campo da educação, poderia designar as relações do trabalho com a educação, tais como educação profissional, formação profissional, ensino industrial, ensino técnico, educação tecnológica, educação de trabalhadores etc.?
Nesta segunda década do século XXI, o amadurecimento do campo da pesquisa nas ciências sociais e em educação nos permite avançar na busca de resposta à questão. Neste texto procuro discutir como os dois termos, trabalho e educação, ambos substantivos, com significados próprios, têm sido assumidos como uma unidade temática para a investigação científica, desde os primeiros estudos, nos últimos trinta anos, no Brasil.
Semanticamente, independentes, têm, no entanto, servido aos pesquisadores para identificarem um conjunto de questões relacionadas à educação e ao trabalho, sob o pressuposto implícito de que constituem uma unidade semântica. Queremos trazer à discussão alguns argumentos sobre sua unidade também do ponto de vista epistemológico, histórico e educacional.
Inicio pelo termo “epistemologia” para situar o campo de estudos em que se coloca a questão. No Dicionário Básico de Filosofia de Hilton Japiassú e Danilo
3 Hugo Zemelman, sociólogo chileno, professor titular de El Colegio de México, foi professor visitante do Programa de Pós-graduação da UFF (Universidade Federal Fluminense) no Seminário Permanente de Produção do Conhecimento para o Mestrado e o Doutorado, em 1992/93.
Marcondes (1996), lê-se: “Segundo os países e os usos, o conceito de ‘epistemologia’ serve para designar, seja uma teoria do conhecimento (de natureza filosófica), seja estudos mais restritos, concernentes à gênese e estruturação das ciências” (p. 85). Neste caso, trata-se de entender a estruturação semântica e filosófica dos estudos sobre a relação entre o trabalho e a educação, dois termos gerais para designar uma gama de fenômenos teóricos e empíricos articulados.
Este campo de pesquisa, como toda investigação científica, supõe uma concepção de realidade, categorias e conceitos4 para tratar teórica e empiricamente, o objeto de estudo. Falo em concepção de realidade no sentido de que todo pesquisador tem uma concepção de mundo, de ser humano e de cultura dos quais participa por nascimento e por experiência de vida.
Na língua portuguesa, categoria e conceito são termos utilizados quase indistintamente nos trabalhos científicos, podem até ter o mesmo significado, enquanto termos que se referem a algum atributo dos seres. Mas também podem servir a uma ordenação mais precisa desses atributos, incluindo os epistemológicos,
Categorias e conceitos são questões fundamentais para o entendimento do próprio conhecimento que se pretende produzir. Ambos os termos lidam com objetos de estudo visíveis e invisíveis. Tanto os objetos e fenômenos visíveis quanto os invisíveis ou de pensamento, são seres materiais ou mentais (afetivos, emocionais, intelectuais etc.) em situação de relação com outros tantos seres. Podem designar, tanto conteúdos de ordem geral, quanto de natureza específica.
Categorias e conceitos gerais e específicos, primeiro, ambos se referem a seres em relação, mas servem para ordená-los de modo diferenciado. De preferência, no meu entendimento, as categorias ordenam, classificam os seres (de acordo com sua etimologia, κατηγορία, atributo), a exemplo de animais vertebrados e invertebrados, seres minerais, vegetais ou animais etc. Mas servem também às ciências sociais, quando falamos nas classes sociais, a exemplo de classes de alta, média ou de baixa renda, pobres e ricos, classes altas, médias etc.
Quando falo em categorias e conceitos gerais, ambos com potencial epistemológico nos trabalhos científicos, quero dizer que os termos ordenadores da realidade precisam de conteúdo teórico, de uma concepção de realidade para serem aptos a dar uma explicação dos fenômenos, e não apenas uma ordenação dos
4 Esta seção tem por base Ciavatta (2017); sobre categorias e conceitos, ver também Koselleck (1992).
mesmos. No caso dos conceitos, por sua etimologia (conceptus, concepção), eles não ordenam simplesmente, antes, dão conteúdo teórico aos termos, a ex. de economia, sociedade, classe, cultura etc. que expressam uma determinada concepção de realidade. Mas, sem perda do entendimento, no campo científico, muitos autores atribuem às categorias a densidade teórica própria aos conceitos.
Passando ao segundo aspecto, quais categorias são gerais e quais são específicas é uma questão do universo de seres (fenômenos, sujeitos, objetos) aos quais se referem. Ao tratar o tema história e historiografia, para ver como os trabalhos de pesquisa sobre trabalho e educação “constroem as categorias” (CIAVATTA, 2012), precisei de instrumentos analíticos com densidade teórica, explicativos do que é história e historiografia, trabalho e educação e outros afins. São conceitos que devem servir ao universo amplo de todos os seres que podem ser objeto da história ou da historiografia neste campo de estudos.
Tendo como referencial teórico principal a concepção marxista de mundo, de ser humano e de sociedade, selecionei os conceitos gerais, com o maior nível de universalidade, e que se constituem em instrumentos hábeis para o estudo da realidade social da educação e do trabalho. Selecionei um conjunto de termos com densidade teórica, conceitual. O que não significa que todos estes conceitos devam estar presentes nas pesquisas, da mesma forma. Depende de sua pertinência ao objeto de estudo e do recorte da realidade escolhido pelo autor da pesquisa. No campo de trabalho e educação, por exemplo, fazemos aproximações conceituais diferenciadas se tratamos de trabalho infantil, de precarização do trabalho ou de formação integrada na educação profissional.
Algumas categorias teóricas ou conceitos são de grande universalidade, capazes de auxiliar no estudo de todos os seres, a exemplo de tempo-espaço, sujeito, totalidade, dialética, mediação, contradição, determinação, concreto e abstrato, essência e aparência. Outras, tais como, conhecimento, contexto, crítica, cultura, estrutura, igualdade, práxis, realidade, trabalho, ser social, verdade, pensamento crítico são também categorias gerais, mas não são de tão ampla aplicação como as primeiras. Um terceiro conjunto de categorias, mais específicas ao tema trabalho e educação, foram selecionadas em meus estudos e podem ser úteis para o tratamento de aspectos particulares ao conteúdo da pesquisa, a
exemplo de ensino industrial, educação profissional, trabalho precarizado, educação omnilateral, educação politécnica, educação sindical etc.)
Do ponto de vista epistemológico, Trabalho-Educação é uma categoria ou um conceito, cuja epistéme (verdade, saber, conhecimento) tem por base objetos e acontecimentos externos ao termo linguístico, que constituem a realidade de onde se parte para a elaboração teórica da unidade dos termos.
Outro aspecto conceitual importante para a unidade epistemológica de Trabalho-educação é o conjunto dos processos sociais ou as mediações históricas que constituem sua totalidade social e permitem falar em conhecimento social e cientificamente produzido. Como ensina Marx (1979) com o exemplo da população, “síntese de múltiplas determinações (...) um resultado, e não um ponto de partida, apesar de ser o verdadeiro ponto de partida e, portanto, igualmente o ponto de partida da observação imediata e da representação.” (p. 229). A totalidade social construída não é uma racionalização ou modelo explicativo, mas um conjunto dinâmico de relações que passam, necessariamente, pela ação dos sujeitos sociais. Seus referentes são históricos, quais sejam, materiais, sociais, mentais, morais ou afetivos, de acordo com as relações que constituem determinada totalidade (CIAVATTA, 2016, p. 210).
O campo de pesquisa Trabalho-Educação busca pensar analiticamente e atuar socialmente sobre os processos educativos em sua relação com o mundo do trabalho.5 Sua constituição teórica como campo de pesquisa é um processo que acompanha a criação do GT ET (Grupo de Trabalho “Educação e Trabalho”) da ANPEd (Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Educação) em 1981 (CALAZANS, 1995, p. 54).6
5 Este tema foi, originalmente, desenvolvido em outros trabalhos, particularmente em fóruns de história da educação. O conceito de mundo do trabalho difere de mercado de trabalho onde ocorre a compra e venda da força de trabalho, o trabalho assalariado, o emprego e o desemprego, o trabalho precarizado, desregulamentado. Entretanto, por mundo de trabalho, entende-se o trabalho em geral e as condições de trabalho e de vida dos trabalhadores, a sua cultura, o pertencimento a grupos religiosos, políticos ou culturais, à classe trabalhadora, à história da classe operária (HOBSBAWN, 1987).
6 Além do GT Trabalho e Educação da ANPEd, até 2015, existiam, no Brasil, 34 grupos de estudos e pesquisas neste campo de investigação.
De “Educação e Trabalho”, o GT teve seu nome modificado à medida que as pesquisas foram exigindo maior aprofundamento teórico sobre as relações entre os dois termos e a sociedade, onde ocorrem os processos educativos e as atividades produtivas, do trabalho e da educação em suas diversas formas. Em 1988, por ocasião da 11ª. Reunião Anual da Associação, levou-se adiante o “aprofundamento da temática do trabalho no interior do capitalismo hoje, a questão do trabalho como princípio educativo” (FRIGOTTO, 1988, p. 25). No ano seguinte, 1989, o GT inverteu os termos e passou a se apresentar como Grupo “Trabalho-Educação”.7
No entanto, por alguma razão que não logrei identificar, o GT passou a se identificar como “Trabalho e Educação” em 1995, voltando a se identificar pelos dois termos, separados por “e”. Mas foi mantida a antecedência do termo “trabalho” o que significa situar a educação na totalidade onde ocorre a relação entre o capital e o trabalho, o modo de produzir a vida humana em seus diversos aspectos (sociais, econômicos, políticos, culturais), teoricamente, através da crítica à economia política e da história como produção social da existência (MARX, 1980 e outros; MARX; ENGELS, 1979).
São próprios dos pesquisadores do campo de pesquisa Trabalho-Educação, desde o início do GT TE da ANPEd, os estudos sobre as relações capitalistas de produção, o mercado de trabalho, as transformações do mundo do trabalho, as políticas educacionais, a educação profissional, técnica e tecnológica no ensino médio e em suas formas iniciais como a preparação para o trabalho de “órfãos e desvalidos”, a formação de trabalhadores, a educação de jovens e adultos, a educação politécnica, a formação integrada, o trabalho como princípio educativo, o princípio educativo do trabalho e outros temas. As pesquisas têm, como base teórica fundamental, o pensamento crítico expresso pelo materialismo histórico e por seus diversos interlocutores (MARX, 1980 e outros)8.
8 A exemplo de Mészáros (2002 entre outros); Gramsci (1981 entre outros); Lukács (1978 entre outros); Antunes (2000 entre outros); Saviani (2007 entre outros); Frigotto (1994 entre outros), Ciavatta,1990 entre outros). Em trabalho recente, Nogueira (2019) cita alguns grandes intelectuais interlocutores de Karl Marx (1818-1883): Max Weber (1864-1920), Gyorgy Lukács (1885-1971), Antonio Gramsci (1891-1937), Karl Korch (1896-1961), Henri Lefvre (1901-1991), Jean Paul Sartre (1905-1980), Norberto Bobbio (1909-2004). Adam Schaff (1913-2006), Lucien Goldman (1913-1970), Zygmunt Bauman (1925-2017), Jurgen Habermas (1929) (p.46-53).
A diferença de grafia não parece ter sido sentida como significativa no interior do GT Trabalho-Educação da ANPEd, cujas reuniões anuais acompanho desde os primeiros anos de sua criação.9 Mas, do ponto de vista epistemológico, cabe observar que o termo “Trabalho-Educação” é uma unidade, enquanto “Trabalho e Educação” são dois termos justapostos, mantendo cada um seu significado próprio. Conheço apenas um trabalho que faz uma reflexão epistemológica específica sobre a questão, Lucília Machado (2005), para quem “O uso do hífen implica a ideia de indissociabilidade e de mútua implicação” (p. 128).10
Machado, citando Cours-Salies (1995, apud op. cit., p. 10), lembra que o termo trabalho tem sido utilizado com diferentes sentidos: “fator de produção mensurável e intercambiável, emprego, qualquer atividade humana orientada por uma situação concreta” (ibid.). Esta é uma questão teórica e de pesquisa das políticas educacionais nas sociedades capitalistas para a superação de uma visão do trabalho e da educação profissional restrita às necessidades do mercado de trabalho.11 Compartilho da análise da autora que cita duas referências importantes à estruturação do pensamento do GT Trabalho-Educação, Gramsci e Lukács.
Lukács (1978) trouxe uma contribuição fundamental a este campo de pesquisa, ao sentido do trabalho, quando trata das “bases ontológicas do pensamento e da atividade do homem”. O trabalho “enquanto base dinâmico- estruturante de um novo tipo de ser”, produto do desenvolvimento da reprodução dos seres inorgânicos, aos seres orgânicos da natureza, e destes à separação “dos seres vivos na competição biológica com seu mundo ambiente. O momento essencialmente separatório é constituído não pela fabricação de produtos, mas pelo papel da consciência” (p. 4). É o que nos faz humanos.
Segundo o autor, “O produto, diz Marx, é um resultado que no início do processo já existia `na representação do trabalhador`, isto é, de modo ideal”, no pensamento (Lukács, ibid.). Lucília Machado (op. cit.) também considera que a premissa fundamental do campo Trabalho-Educação “deriva de nossas leituras
9 Especificamente, desde1983.
10 Outros termos em que dois nomes adquirem unidade semântica: arco-íris, tenente-coronel. tia-avó.
11 V. a explicitação detalhada destas questões em Ciavatta (2009, p. 17 e ss.).
marxianas sobre o processo de hominização”, sobre a essência do homem (p. 130).12
Em seu artigo, Machado (id.) conclui que Trabalho-Educação tem um sentido específico: “trabalho e educação não são dois objetos de pensamento que possam ser classificados, a rigor, como elementos ou noções simples. Um já contém o outro antes mesmo de colocados em associação” (p. 129).
A educação faz parte do mundo do trabalho na medida em que participa do conhecimento gerado pelos processos de transformação da natureza e da sociedade. Cabe reconhecer a importância política da educação na vida da sociedade, e sua insuficiência conceitual como campo disciplinar para a pesquisa científica. Machado (id.) também argumenta, em seu texto, que a delimitação dos fenômenos no campo Trabalho-Educação não deve ocorrer em prejuízo das dimensões históricas da totalidade de todo fenômeno social, de suas múltiplas determinações e mediações (p. 128).
Não obstante a grande obra de Marx ser a crítica ao modo de produção capitalista, sua análise não se faz apenas pelo aspecto econômico. Sua teoria considera a economia como parte da vida social. Refere-se, assim, à vida de homens e mulheres que não apenas trabalham. Eles comem, se reproduzem, vivem em sociedade, estabelecem relações, constroem laços de amizade e de colaboração ou competição, pertencem a diferentes grupos e classes sociais, têm ideologias, afetos etc. (MARX; ENGELS, 1979).
São sujeitos que constroem sua história em espaços-tempos determinados. Esta é uma concepção ampliada do sentido do trabalho para a superação do viés marxista economicista e da visão anticlassista pós-moderna. Assim, “historiadores de ofício” marxistas elaboram suas análises históricas sobre mundo do trabalho, trabalhadores, formação da classe operária e questões afins, a exemplo de Hobsbawm (1987 e outros); Thompson (1987 e outros).
Diferente da história tradicional que registrou a vida humana dando protagonismo aos heróis, aos poderosos, aos grandes feitos, Marx eleva todos os atos da vida humana ao nível do acontecimento. A história é a produção social da existência (MARX; ENGELS, op. cit.). Esta é sua concepção inovadora de história, tão apropriada por muitos historiadores que incorporaram novas abordagens, novos
12 Citando O capital (MARX, 1980), a Ideologia alemã (MARX e ENGELS, 1979) e os Manuscritos econômico-filosóficos (MARX, 2004) (ibid.)
temas, novos objetos, os grandes acontecimentos e os fatos do cotidiano, como algumas vertentes da École des Annales13, a “história a contrapelo” (BENJAMIN, 1987), “a história dos de baixo” ou “a história dos vencidos” (DECCA, 1984).
Do ponto de vista teórico-metodológico, duas questões ainda merecem atenção: a história como processo e a história como método.14 É Marx quem vai explicitar os elementos políticos e ideológicos da história ao concebê-la como o processo da vida real dos homens e como a ciência desse processo, como conhecimento de uma matéria e a matéria desse conhecimento, ou ainda, a história como processo vivido, a história como objeto e como método de conhecimento (ODÁLIA, 1965; CIAVATTA, 2009). Na obra marxiana, a história e a pesquisa histórica não se colocam como uma questão de etapas definidas fora de um objeto de estudo. O que não significa que a questão do método esteja ausente de sua obra. Até porque, no pequeno e denso texto que é o “Método da economia política” (MARX, 1977), estão expostas as principais questões teórico-metodológicas sobre as quais Marx (1980) elaborou O capital.
O tratamento historicizado dos fenômenos envolve diferentes temporalidades, tanto em relação ao tema de estudo, quanto ao espaço-tempo em que ocorrem os acontecimentos tratados e aos sujeitos em foco nas pesquisas. Ter como fundamento o método da economia política e a história como produção social da existência significa considerar os objetos, fenômenos e acontecimentos na totalidade social de que fazem parte. São as mediações, isto é, os processos sociais complexos que os constituem enquanto tais, são as contradições que se apresentam pelas ações e interesses que se opõem entre os diferentes sujeitos, grupos e classes sociais.
Metodologicamente, no tratamento do tema, a historicidade deve estar presente na superação da visão geral política ou sociológica pela análise da especificidade do acontecimento histórico, irrepetível no tempo e no espaço do mundo que é exterior ao pensamento. Na narração ou na narrativa15 dos acontecimentos, deve-se tratar de sua particularidade histórica e,
13 Referimo-nos, especialmente, à École des Annales e seus desdobramentos (entre outros, Burke, 1991)
14 Para maior detalhamento destas questões, ver Ciavatta, 2009.
15 Não obstante os diversos sentidos dados ao termo narrativa, tradicionalmente, a narrativa histórica refere-se ao modo como a realidade é representada em cada sociedade (oral, escrita, iconográfica etc.) ou aos modos de pensar a história e de escrevê-la (TRAVERSO, 2008).
consequentemente, contemplar as categorias espaço-tempo, totalidade social, contexto, mediações, contradições, sujeitos sociais, fontes da pesquisa.
Na historiografia com base no materialismo histórico, cabe ainda ter presente a visão crítica sobre as políticas (sociais, econômicas, políticas, culturais, educacionais) que determinam o curso das relações de trabalho e da educação, como o trabalho simples e o trabalho complexo, o trabalho alienado, assalariado ou precarizado, a divisão social do trabalho e das classes sociais, os diversos sistemas educativos etc.16
O trabalho como princípio educativo ou o princípio educativo do trabalho são termos que se referem a uma mesma realidade, conceituados de pontos de vista diferenciados, ambos com base no materialismo histórico. Ao falar em "princípio" educativo, não faço apelo ao seu sentido clássico de princípio como "ponto de partida" ou "fundamento" de um processo qualquer, "causa" da qual parte um processo de conhecimento. Assumo o termo no sentido de racionalidade do real, cuja gênese está em Hegel, quando o pensamento se obriga a uma busca para compreender a razão no interior da própria trama do ser. “Princípios são leis ou fundamentos gerais de uma determinada racionalidade, dos quais derivam leis ou questões mais específicas” (FRIGOTTO; CIAVATTA, 2012, p. 749).
Trata-se, assim, de pensar o trabalho como princípio educativo a partir de uma concepção ontológica do ser, o que se opõe à tradição filosófica que separa razão e realidade e entende o racional como uma norma que se impõe ao ser, para julgá-lo e opor-lhe uma regra superior (AKOUN, 1977, P. 409). O que significa pensar historicamente o conceito, pensar a racionalidade, a normatividade implícita em determinados processos sociais que tornam (ou não) o trabalho capaz de educar
16 No Brasil, particularmente, após o regressivo cancelamento da CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) e de outros direitos complementares, das conquistas dos trabalhadores, dos anos 1940 até os dias atuais, o Decreto-Lei 5.452, de 01/05/1943, pela Lei 6.019, de 03/01/1974, pela Lei 8.036, de 11/05/1990 e a Lei 8.212, de 24/07/1991, pela atual reforma (contrarreforma) trabalhista: Lei 13.467, de 13/07/2007 (vigência em 11/11/2017) e a Medida Provisória 808, de 14/11/2017, a fim de adequar a legislação às novas relações de trabalho no sentido da desregulamentação e precarização dos direitos dos trabalhadores; a extinção do Ministério de Trabalho (MP 870/2019).
17 Esta seção tem por base Ciavatta, 2009.
no sentido de formação humana, de desenvolver o homem nas suas potencialidades.
No Brasil, muitos são os autores que tem desenvolvido este princípio da fundamental importância do trabalho na educação (a exemplo de FRIGOTTO, 1985; KUENZER, 1988; CIAVATTA FRANCO, 1990; SAVIANI, 1994; FRIGOTTO;
CIAVATTA, 2012). Nesta concepção, destaca-se a concepção gramsciana do trabalho que educa. O trabalho como princípio educativo é uma expressão tida como elucidativa da importância do trabalho na educação do jovem, não apenas no seu aspecto de preparação estrita para o exercício disciplinado do trabalho, mas também no acesso ao conhecimento técnico e científico dos processos produtivos e no entendimento das relações de classe subjacentes ao trabalho e à educação nas sociedades capitalistas.
Nas suas reflexões sobre o trabalho como princípio educativo, Gramsci (op. cit.) parte, basicamente, de duas questões: a relação educação e política e a relação educação e trabalho. Ele assume que educar é formar o homem que é um produtor e consumidor de bens materiais e espirituais, e que esta produção somente pode ocorrer em uma comunidade humana, isto é, em sociedade. O homem é um ser (animal) político segundo Aristóteles. Significa que ele não apenas produz e consome, mas também decide sobre a produção e seu uso; ele se prepara, ele se educa para a vida política, para a função de dirigente em sua sociedade.
Cabe aqui, resgatar, brevemente, a gênese histórica da expressão. Gramsci (op. cit.) polemiza a reforma Gentili de 1923, na Itália, quanto aos conteúdos e quanto à estrutura do ensino humanista tradicional. Mas seu foco principal é a crítica a uma educação escolástica separada da realidade do trabalho, das transformações da sociedade, do desenvolvimento tecnológico. Na Introdução, Manacorda (1981) argumenta que sua crítica é “cultural e política no sentido amplo”), a uma educação de classe (p. 26). Opondo a escola oligárquica à escola ampliada para toda a população, a escola democrática, Gramsci (op. cit.) defende que é preciso criar um tipo único de escola preparatória (elementar-média) que leve o jovem às portas da escolha profissional, considerando-o com pessoa capaz de pensar, de estudar, de dirigir ou de controlar quem dirige (p. 150).
Manacorda (op. cit.) expõe o pensamento de Gramsci que critica a escola tradicional e coloca-se a favor de um “novo tipo de intelectual – o técnico vinculado à
produção industrial – cuja função consiste em ser sempre persuasivo, ser construtor, organizador. Sua formação vai da técnica-trabalho à técnica-ciência e à concepção humanístico-histórica”. Gramsci reflete sobre a relação pedagógica a partir dos valores culturais e da relação política, ele “unifica a razão historicista e a tecnológica na ‘história da ciência e da técnica’ como base formativa da nova escola unitária” (p. 28)
Na expressão o princípio educativo do trabalho, destaca-se também a importância do trabalho que educa, mas seu foco específico é o trabalho na sociedade capitalista. Não se trata apenas de uma diferenciação semântica, mas da concepção do trabalho e da relação do ser humano com o trabalho. Um dos autores dessa especificação do termo assim o explicita:
O elemento central que define a concepção do princípio educativo do trabalho funda-se na explicação marxiana de que é o trabalho que humaniza o homem, mas que no modo de produção capitalista, em que encontra-se subsumido ao capital, é fonte de alienação, que educa os trabalhadores no sentido de uma sociabilidade de relações sociais estranhadas (TITTON, 2008, p. 6).
Outros autores (PALARO; BERNARTT, 2012) tratam do “trabalho como princípio educativo e princípio da alienação” (p. 293). Apoiando-se em Tumolo (2006, apud op. cit., p. 299), fazem uma leitura do trabalho, em Marx, como estranhamento do trabalhador diante do produto do trabalho que não lhe pertence, dadas as condições de exploração, na sociedade capitalista (id., p. 297-299).
A argumentação retoma uma discussão antiga no GT Trabalho-Educação, nos anos 1990: se o trabalho é fonte de exploração e de alienação na sociedade capitalista em que vivemos, como pode ser educativo? O encaminhamento teórico- prático dada à questão tem base em alguns argumentos.
O primeiro deles é a necessidade do exame das condições de trabalho, a partir da análise da mercadoria, nos elementos que Marx (1980) sintetiza como “o fetiche da mercadoria”: a dissimulação da expropriação do produto do trabalho, do conhecimento produzido e da sociabilidade que se gera na produção, quando o trabalho humano assume a forma de valor, na compra e venda da força de trabalho (p. 79-93). As condições históricas de exploração e alienação do trabalho educam no sentido adverso aos interesses da classe trabalhadora, para a realização dos interesses de classe do proprietário dos meios de produção.
Mas não são todas as formas de trabalho para suprir nas necessidades básicas da sobrevivência que se situam nas relações mercantis da produção alienada. São as condições de trabalho que constituem sua totalidade social, como “síntese de múltiplas determinações” que definem o caráter educativo ou alienador do trabalho. Ele faz parte do mundo da necessidade e da liberdade teorizado por Lukács ao tratar da ontologia do ser social (1978 e outros).
Introduzimos assim o segundo argumento crítico da análise do princípio educativo do trabalho reduzido ao trabalho alienado. O resgate da concepção dialética da realidade como totalidade social inclui o trabalho alienado na submissão às relações produtivas capitalistas; e do trabalho não alienado como produção da vida do ser humano em suas múltiplas dimensões. Esta concepção situa-se na totalidade das ações humanas, no campo da história como produção social da existência. Ontologicamente, é pelo trabalho, que o ser humano produz os meios de vida e também se educa, produz conhecimento e sociabilidade.
Terceiro, nesta visão dialética da realidade, a categoria contradição amplia a compreensão do argumento anterior. Considero o ser humano em seu permanente movimento de transformação, e o trabalho que, mesmo nas condições mais perversas de exploração, engendra a percepção da exploração e os movimentos contraditórios no sentido da libertação, como Lukács (op. cit.) expõe a dialética da necessidade e da liberdade inerente a todo trabalho humano. Quando os autores (TITTON, 2008; PALARO; BERNARTT, 2012), identificam as ações educativas apenas com o trabalho alienado, na relação Trabalho-Educação, abrem mão da historicidade das ações humanas, da totalidade social em que elas ocorrem e das contradições inerentes a toda e qualquer aspecto da vida humana.
Outra possibilidade de interpretação do pensamento destes autores, é o recurso a outros pensadores, a exemplo de Mészáros (2002; 2005 entre outros)18 que, na crítica à escolaridade forma, considera que o trabalho somente poderia educar após o fim do sistema de exploração capitalista, o que, implicitamente, requer um processo revolucionário. Esta pode ser uma perspectiva de futuro, mas, no presente, significa abrir mão das ações de intervenção na concepção de educação básica e profissional nos sistemas de ensino.
18 No entanto, ressalvamos a consistente análise de Mészáros (op. cit. e outros), das relações sociais capitalistas no uso instrumental da educação e dos sistemas de ensino a serviço do capital, assim como da concepção da “educação além do capital” (op. cit.).
Um último aspecto sobre a questão está no trabalho teórico-prático do campo Trabalho-Educação que buscou superar a visão estrita dos processos escolarizados e de preparação para o trabalho pautados pelas necessidades da produção capitalista que exige comportamentos, disciplina, qualificações, competitividade, produtividade, desregulamentação das relações de trabalho. Cabe ressaltar ainda que os processos educativos não ocorrem apenas na escola, mas também nos espaços informais da educação para o trabalho, para a cidadania, para a cultura, nos movimentos sociais e em suas organizações. 19
Todo empenho teórico e prático dos pesquisadores que utilizam a base teórica do materialismo histórico, está no sentido de superar a compreensão de formação profissional apenas como treinamento para atividades manuais, e conceber a educação como formação humana, como um processo de ampliação do conhecimento e da leitura do mundo. Como o trabalho, a formação humana deve ser entendida e praticada em relação aos conceitos de totalidade da vida social e do trabalho como atividade estruturante da vida humana em todo seu potencial, dignidade e ética.
Esse é o locus mais visível da educação pelo trabalho, seja no sentido técnico seja no sentido político, como movimento que oscila nas duas direções: tanto educação pelo trabalho na sua negatividade, enquanto submissão e expropriação do trabalho, quanto na sua positividade enquanto espaço de luta, conhecimento e transformação das mesmas condições. É nas relações imediatas do trabalho produtivo e nas relações mediatas da política que ocorrem os embates entre o capital e o trabalho e o “fazer-se trabalhador” (THOMPSON, 1987).
Observa-se que, à medida que a escola adquire a finalidade de preparar para as exigências da produção capitalista, ela assume, também, as exigências da ordem social desenvolvida nos processos de trabalho, tais como disciplina, exatidão, submissão física, técnica e moral, cumprimento estrito dos deveres, pontualidade, contenção corporal e afetiva. São os cursos breves para o trabalho simples, através dos mecanismos políticos e orçamentários do Estado; e relega a segundo plano, sob mil artifícios ideológicos, o direito à educação pública e de qualidade que fundamenta as demandas da sociedade civil. A estes se contrapõem pesquisadores e professores nos processos de resistência pedagógica, e os próprios trabalhadores
19 Esta reflexão recupera a análise de Ciavatta (2012, p. 141-145) com base em Rodrigues (2001).
nas inúmeras iniciativas organizacionais e educativas de superar a alienação imposta pelo sistema capital. 20
Neste breve texto, sobre a pertinência de um campo epistemológico de Trabalho-Educação, busquei argumentar sobre a unidade dos dois termos como unidade semântica com sentido epistemológico, histórico e educacional. Neste percurso, foi importante a leitura do texto de Lucília Machado (2005) sobre a unidade do termo Trabalho-Educação.
Concordo que este constitui uma epistéme no sentido marxista de categoria teórica ou conceito, com base na concepção de Marx da totalidade social e da contradição entre o capital e o trabalho na sociedade capitalista, e na concepção da história como produção da existência dos seres humanos em todos os tempo- espaços.
Sua unidade também tem apoio na concepção dialética do trabalho como princípio educativo, que tem sentido positivo quando a educação para o trabalho se torna formação humana, com o desenvolvimento de todo potencial intelectual, físico e afetivo de produção da vida, de compreensão dos processos sociais e de resistência à exploração. Mas Trabalho-Educação contempla também a formação para o trabalho no seu sentido negativo, como meio de alienação e sujeição dos trabalhadores às condições adversas em que o trabalho soe se apresentar. São as condições de trabalho e de educação, expressas na totalidade dialética de sua especificidade e de suas contradições históricas que permitem compreender os processos de humanização e os de alienação.
Semanticamente, as expressões o trabalho como princípio educativo e o princípio educativo do trabalho se equivalem A primeira, com base na concepção dialética da totalidade social, concebe o trabalho na produção ontológica, estruturante da vida em sua positividade, e na particularidade negativa das relações
20 A exemplo dos estudos de Manfredi (2002 e outros).
sociais de trabalho na sociedade capitalista. A segunda, reduz o trabalho e a educação à sua negatividade em decorrência da alienação histórica do trabalho na sociedade capitalista.
A discussão remonta aos anos 1990, no GT Trabalho-Educação da Anped. Como busquei desenvolver neste texto, com base em uma concepção dialética da totalidade social do trabalho e da educação e de suas contradições, o que distingue as duas expressões é a concepção epistemológica e histórica dos processos que a constituem.
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Recebido em: 31 de janeiro de 2019. Aceito em: 13 de maio de 2019. Publicado em: 28 de maio de 2019.
v.17, nº 32, jan-abr (2019) ISSN: 1808-799 X
Domingos Leite Lima Filho2 Eneida Oto Shiroma3 Mariléia Maria da Silva4
Este artigo visa contribuir com os estudos sobre o percurso do GT Trabalho e Educação da Anped, apresentando dados de um levantamento realizado em 2016 com grupos de pesquisa a respeito das temáticas privilegiadas de investigação, buscando sua articulação com os debates travados no Intercrítica. Apresentamos o perfil dos grupos, das linhas de pesquisa tendo em vista mapear a trajetória das pesquisas da área nos 16 anos (2002-2018) de Intercrítica. Procuramos relacionar os temas tomados como objeto de estudo pelos grupos que participaram deste levantamento aos discutidos nas edições do evento.
Este artículo pretende contribuir a los estudios sobre el recorrido del GT Trabajo y Educación de la Anped, presentando datos de una encuesta realizada en 2016 con grupos de investigación acerca de las temáticas privilegiadas de investigación, buscando su articulación con los debates trabados en el Intercrítica. Presenta el perfil de los grupos, de las líneas de investigación con el objetivo de mapear el camino de las investigaciones del área en los 16 años (2002-2018) de Intercrítica. Buscamos relacionar los temas tomados como objeto de estudio por los grupos que participaron de esta encuesta a los discutidos en las ediciones del evento.
This paper aims at supporting the studies about the trajectory of the Work and Education research group of Anped. It is based on a survey ran in 2016 with research groups about their organization and privileged topics, seeking their links with the debates held in the Intercrítica meeting programs. It presents the groups’ profile, their main research lines and topics of interests aiming at mapping the research trajectory of the area in the sixteen years (2002-2018) of Intercrítica. We try to discuss the connections of the object of study by the groups’ participants of this survey with the themes discussed in the editions of the event.
1 DOI: https://doi.org/10.22409/tn.17i32.p28307
2 Professor na Universidade Federal Tecnológica do Paraná. E-mail: domingos@uftpr.edu.br
3 Professora na Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail: eneida.shiroma@ufsc.br
4 Professora na Universidade Estadual de Santa Catarina. E-mail: marileiamaria@hotmail.com
Pelo presente artigo temos como propósito apresentar uma breve análise do mapeamento das interlocuções acadêmicas, teórico-metodológicas e de temáticas dos grupos que pesquisam Trabalho e Educação tendo em vista contribuir com a reflexão sobre as produções acadêmicas que estão ao abrigo deste campo de estudo. Pretende-se, também, relacionar, alguns elementos dessa reflexão com as temáticas centrais do evento Intercâmbio Nacional dos Núcleos de Pesquisa em Trabalho e Educação (Intercrítica), nas suas quatro edições.
O Intercrítica caracteriza-se como um encontro acadêmico no qual se busca estabelecer a integração e o intercâmbio de experiências entre os diversos grupos de pesquisa vinculados ao GT09 Trabalho e Educação da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação (Anped). Trata-se de um fórum de discussão sobre os temas afeitos a este GT, que pela necessidade de desenvolver reflexões coletivas e aprofundamentos, necessita de um espaço próprio, que o formato da Reunião Nacional da Anped não comporta. Em certo sentido, poderíamos afirmar que as temáticas abordadas nos Intercrítica tendem a expressar as grandes questões que atravessam as problemáticas de investigação dos grupos de pesquisa e pesquisadores participantes mais ativos no GT09, nas diferentes conjunturas político- econômicas.
É justamente por esta necessidade que nasce, dentro do GT, o Intercrítica. Com este sugestivo nome, alcançamos a sua quarta edição agora em 2018 na cidade de Natal, RN. A primeira ocorreu em 2002, em Niterói, RJ, a segunda ocorreu em 2014, em Belém, PA, e a terceira, na cidade de Curitiba, PR, em 2016.
Foi na terceira edição do Intercrítica que apresentamos os resultados do mapeamento acima referido. Este foi realizado a partir de informações coletadas por meio de um formulário google, preenchido por integrantes dos grupos de pesquisa em Trabalho e Educação no período de março a setembro de 2016. Os links para o formulário foram enviados pela lista do GT09 aos coordenadores dos grupos de pesquisa. Como fonte dos dados complementares, além do formulário, recorremos a informações do Diretório de
Grupos de Pesquisa do CNPq e aos dados compilados pelo GEPTE/UFPA e apresentados no Intercrítica II. Essa é, portanto, uma fonte diferente dos outros estudos realizados sobre o GT, pois não analisamos trabalhos, nem a produção de pesquisadores individuais, mas o registro sobre os grandes temas e linhas de pesquisa.
Pode-se dizer que já é tradição no GT a realização periódica de balanços sobre a sua produção. Tais estudos, sejam eles trabalhos encomendados ou autônomos, fruto de interesses de pesquisa diversos, em muito têm servido como estímulo às reflexões sobre os direcionamentos que o GT vem tomando ao longo de sua existência de quase 40 anos. Discutir, avaliar e acompanhar sua trajetória justifica-se, em nosso entendimento, não pelo simples fato de conhecer seu longo percurso, mas apreender as determinações mais profundas de um GT que traz em sua origem a filiação ao materialismo histórico dialético da tradição marxista.
Buscando dar a dimensão dos balanços que procuram reconstruir a trajetória do GT, destacamos algumas destas produções. Alguns pesquisadores mapearam a produção da área a partir da análise dos resumos e/ou trabalhos apresentados nas reuniões nacionais da Anped (TREIN; CIAVATTA, 2003; TREIN; CIAVATTA, 2009; KLEIN, 2012). Teses de
doutoramento tomaram a constituição do GT09, seu desenvolvimento e produções como objeto (BONFIM, 2006; HANDFAS, 2006). Cêa e Rummert (2015) organizaram um levantamento dos trabalhos encomendados e dos minicursos oferecidos pelo GT no período de 1973 a 2013.
Num esforço de compreender a constituição de Trabalho e Educação como um campo de pesquisa, estes autores relembram que o GT foi criado em 1981, na quarta reunião da Anped e destacam, nessa reconstrução histórica da relação trabalho e educação, dois documentos fundamentais: a) o relatório do Encontro realizado em 1986, sob coordenação de Acácia Kuenzer, que representa um marco na construção de uma agenda de pesquisas para a área e b) e outro produzido por Eunice Trein e Iracy Picanço intitulado O GT Trabalho e Educação publicado em Histórico dos grupos de trabalho (ANPED, 1995). Trein, à época coordenadora do GT09, recupera parte deste percurso e analisa tendências das pesquisas produzidas na área em uma entrevista
cedida à equipe do NETE/UFMG para o número zero da Revista Trabalho & Educação, lançada em 1996.
Entre 1999 e 2002, pesquisadores do GT09 revezaram-se para publicar a coletânea Trabalho e Crítica: anuário do GT Trabalho e Educação/ANPEd. A primeira foi organizada em 1999, numa parceria entre EdUFF/NEDDATE- UFF/NETE-UFMG, a segunda pelos pesquisadores da Unisinos, em 2000, e a terceira foi organizada pelo GEPETO/UFSC (SHIROMA et.al, 2002).
Outra iniciativa que envolveu esforço coletivo dos grupos de pesquisa do GT partiu do NETE/UFMG, ao propor a elaboração do Dossiê Trabalho e Educação que veio a público no n.33 da Revista Trabalho & Educação, em junho/2001. Colaboraram naquela edição, os grupos da Universidade Federal Fluminense (UFF), da Fundação Carlos Chagas (FCC), da Universidade Federal do Ceará (UFC), da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
A revista Trabalho Necessário (TN) sediada na UFF publica, desde 2003, números especiais veiculando, para um público mais amplo, os trabalhos apresentados no GT09 durante a Reunião Nacional da ANPEd e, também, as conferências e mesas redondas realizadas no Intercrítica. Em 2003, a TN n.1 publicou o Relatório do Intercrítica I, realizado nos dias 19 e 20 de agosto de 2002 na UFF. Em 2015, a TN n.20 organizou um Dossiê sobre o Intercrítica II, organizado pelo GEPTE na UFPA; em 2016, a TN n.25 publicou os textos do Intercrítica III, realizado em Curitiba em 2016, sob coordenação do GETET/UTFPR.
Em 2012, Ligia Klein apresenta o trabalho “A produção do GT Trabalho e Educação e suas interlocuções com a Educação Básica: uma demanda (des)atendida?” na sessão especial do IX Seminário da Anped Sul. Klein (2012) analisou 165 trabalhos apresentados no GT nas reuniões nacionais de 2001 a 2011 discutindo as interlocuções com a Educação Básica.
Assim, inquirir sobre uma determinada concentração temática em detrimento de outras, avaliar determinadas lacunas, promover o debate das diferentes leituras de Marx, trazer ao exame crítico a utilização das diferentes categorias analíticas do materialismo histórico e suas implicações em nossas pesquisas, é tarefa que nos cabe como pesquisadores. Proceder no sentido de
submeter o GT09 a este escrutínio constante é, portanto, uma prática e uma necessidade sempre presentes.
Com base no exposto, o texto ora apresentado, compõem-se, além desta introdução, de duas partes. Na primeira, trazemos os principais resultados do mapeamento das interlocuções acadêmicas, teórico- metodológicas e temáticas dos grupos de pesquisa de trabalho e educação realizado em 2016. Na segunda, buscamos arrolar alguns elementos para compreender as distintas conjunturas sob as quais certas temáticas ganharam relevância ao ponto de integrarem a programação dos Intercrítica.
O Intercrítica I, realizado na UFF em 2002, contou com a participação de 11 grupos de pesquisa vinculados às universidades. Em 2007, a coordenação do GT09, encaminhou uma consulta aos pesquisadores pela lista do GT para que fosse possível identificar os grupos de pesquisa que têm a área de trabalho e educação como foco, obtendo retorno de 14 grupos.4 Em 2011, Ronaldo Lima Araújo apresentou na reunião nacional da ANPEd um mapeamento sistematizando informações de 25 grupos de pesquisa em Trabalho e Educação das diferentes universidades do Brasil. Posteriormente, esse quantitativo foi ampliado pelo levantamento realizado pelo GEPTE/UFPA para o Intercrítica II.
Após um intervalo de 12 anos, mais de 40 grupos inscreveram-se para o Intercrítica II, ocorrido em Belém. Este expressivo aumento de grupos de pesquisa em Trabalho e Educação demandou uma reorganização do formato do Intercrítica. Não seria possível conhecermos e discutirmos as pesquisas em curso em poucos minutos de apresentação feita pelo coordenador ou representante do núcleo. Diante dessa dificuldade, na assembleia do Intercrítica II, foi decidido que seria interessante realizar um novo levantamento dos grupos de pesquisas cujos interesses de investigação estejam diretamente relacionados ao campo Trabalho e Educação. Trata-se, portanto, de um levantamento parcial de grupos que participam do GT09, incompleto e
4 Cf. <http://www.anped.org.br/sites/default/files/gt09_relatorio_de_atividades_2006_2007.pdf>
provisório dada a dinâmica de constituição e funcionamento dos núcleos e do próprio GT, bem como pelo baixo retorno do formulário enviado aos coordenadores e pesquisadores dos grupos de pesquisa. Temos ciência das limitações, tanto do instrumento, quanto da nossa para analisar os dados coletados, mas o fizemos visando mapear as convergências, identificar o que temos pesquisado de modo a compartilhar e incentivar a elaboração de projetos integrados e produções coletivas de maior abrangência.
Organizamos a exposição deste levantamento em dois tópicos: 1) perfil dos grupos, matriz teórica e metodologia; 2) linhas, temas e questões de pesquisa priorizadas pelos núcleos.
Preencheram os formulários 23 coordenadores e 18 pesquisadores de grupos de dez estados das cinco regiões do país. Os participantes dessa pesquisa estão vinculados a 21 instituições: 16 universidades5, quatro Institutos Federais (IFRJ, IFPA, IFRN, IFPR) e a Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV-Fiocruz), conforme no Apêndice apresentado ao final deste artigo.
O grupo mais antigo, NEDATTE /UFF, organizou-se em 1985, mas a maioria dos grupos foi criada após 2006. No que tange à constituição, a maior parte dos grupos é formada por até cinco doutores, e os que possuem mais doutores encontram-se nas universidades, sendo o THESE o que concentra maior número de doutores (vinte), pesquisadores vinculados à UERJ, UFF, EPSJV-Fiocruz.
Além do GT09 da Anped, as pesquisas desses grupos fazem interface com os GTs Movimentos Sociais, Educação Popular, Educação de Pessoas Jovens e Adultas, Estado e Política Educacional, Política da Educação Superior, História da Educação, Filosofia da Educação, Educação Ambiental, Gênero, Sexualidade e Educação, evidenciando a abrangência dos temas investigados pela interface com muitos GTs.
5As universidades apontadas pelos pesquisadores e coordenadores de grupo que responderam aos questionários são: USP, UFF, UNISC, UFES, UFSC, UTFPR, UFMG, UFMT, UFPA, UFC, UFRRJ, UERJ, UDESC, UNESC, UFRGS, UNISINOS.
O conjunto de temas dos projetos em curso, em 2016, expressava o interesse dos pesquisadores em discutir várias dimensões do trabalho, aprofundar o debate teórico-conceitual com base na teoria social de Marx e, também, desenvolver novas abordagens para investigar questões emergentes e temas candentes. A maioria dos grupos tem o materialismo histórico dialético como fundamentação teórico-metodológica e indicaram Marx e marxistas contemporâneos como autores de referência nos projetos em andamento.
Abordagens do trabalho em perspectiva ontológica, focalizando as várias dimensões da formação humana foram destacadas nos estudos teóricos desenvolvidos pelo GEPMTE/UFMG, GRUPTPE/UFC, LABOR/UFC e GEPOC/UFSC fundamentados, entre outros, nas obras de Marx, Lukács e Vasquez. Segundo o coordenador do GEPMTE/UFMG, o grupo “dedica-se a pesquisas voltadas para o desenvolvimento da ontologia do ser social focalizando os processos que envolvem as várias dimensões da formação humana, considerando a dinâmica histórica do capital, desde a sua gênese, e o desenvolvimento do sistema capitalista mundial”.
O grupo GRUPTPE/UFC volta-se ao “aprofundamento teórico-conceitual em torno da discussão sobre o princípio educativo do trabalho; sobre a categoria práxis; formação humana; a discussão sobre a dualidade da escola e sua manifestação na escola brasileira; e o papel da escola no processo de avanço da organização da luta social”. O GEPOC/UFSC “estuda questões e problemas da educação tendo como base uma abordagem marxista, em especial as perspectivas teóricas lukacsiana e histórico cultural. Pretende contribuir nas discussões sobre as diferentes vertentes do pensamento educacional, particularmente, o debate em relação ao ceticismo epistemológico e relativismo ontológico pós-modernos”.
Outra vertente é composta por estudos ancorados na abordagem ergológica do trabalho, das relações construídas no trabalho, focando os saberes formais e informais para entender as relações entre objetividade e subjetividade na prática educativa. Esta abordagem vem sendo desenvolvida nas pesquisas do grupo Trabalho, Educação e Conhecimento (TEC), TRAMSE/UFRGS, ETE/UNISC, NETE/UFMG, NEDDATTE/UFF,
GEPET/UFMT, em particular, com aporte nos estudos de Yves Schwartz com quem estes grupos mantêm intercâmbio, também incentivado pela participação
na rede de ergologia. Estudos do grupo TEC, que congrega pesquisadores da UFRGS, UFF; UNISC; UNISINOS, apoiam-se em teorizações sobre a atividade de trabalho (estudos marxianos e abordagem ergológica do trabalho), a constituição dos ofícios e das profissões, trajetórias profissionais, trabalho associado e autogestão, biografias formadoras e pesquisa-formação. De acordo com a coordenadora, visam “contribuir com respostas a desafios para implantação e consolidação de experiências de trabalho associado e autogerido em curso no Brasil, especialmente no que diz respeito aos lugares das marcas formadoras de vida e de trabalho nos ofícios e profissões exercidas por trabalhadores associados; à qualificação de trabalhadores, de processos e resultados da produção e à elaboração teórica a respeito de concepções de qualidade presentes em iniciativas de trabalho”.
Assim como o NEDDATE/UFF, “estudos do GEPTE/UFMT buscam compreender “de que maneiras a produção associada vai se plasmando nos espaços/tempos históricos? Como pode ser definida conceitualmente? Quais as particularidades da produção associada nas comunidades tradicionais? Na organização da vida social, quais as relações entre processo de trabalho e processo educativo? Nos processos de produção associada, quais são as relações entre economia e cultura? Como se materializam os tempos de ócio e os tempos de trabalho de produzir a vida associativamente? Quais as particularidades das culturas do trabalho? Em que medida é possível afirmar que se tratam de culturas do trabalho associado? Quais os saberes necessários para garantir a reprodução ampliada da vida? Em que contexto econômico e cultural se constroem os saberes do trabalho? Quais têm sido as contribuições da educação escolar?”
Com relação aos lócus das pesquisas, ampliaram-se as pesquisas sobre formação de trabalhadores realizadas em escolas públicas, especialmente as de Ensino Médio, Institutos Federais e Núcleos de Educação de Jovens e Adultos. Com menor frequência, aparecem os estudos que tomam como campo empírico a Universidade e sindicatos. O levantamento identificou algumas pesquisas sobre o trabalho realizado em hospitais, no setor do vestuário de comunidades tradicionais, setor petroquímico, elétrico, de comunicações e na indústria criativa.
A análise das ementas das Linhas de Pesquisa e dos projetos em andamento à época do levantamento dos dados, confirmam que os grupos abordam a formação do trabalhador em sentido amplo, realizada nos movimentos sociais, na escola, nos locais de moradia e de trabalho - campo, assentamentos, comunidades que realizam produção associada.
Dentre os sujeitos pesquisados, destacam-se os trabalhadores do campo e da cidade, de indústria de ponta que utiliza alta tecnologia e de comunidades tradicionais, enfermeiros e professores. Aparecem com maior frequência os estudos sobre jovens do Ensino Médio (TMT/UFSC, NUPED/IFRN, GEPTE/UFPA, GETET/UTFPR, GTAE/UFES, GEPETO/UFSC)
e da Educação de Jovens e Adultos (EJATRAB/UFF, GTAE/UFES, TEC, NUPED, LUTE/UDESC, GETET/UTFPR) e também no trabalho infanto-juvenil (TMT/UFSC) e trabalho escravo (GEPTE/UFPA). A presença significativa de estudos que tomam os jovens como sujeito de pesquisa pode expressar a necessidade de se pensar a formação humana, especialmente, num momento histórico de tremenda ofensiva do capital contra os trabalhadores. No bojo da expropriação de direitos, assalto ao fundo público, visam a formação da força de trabalho mediante a ingerência nas políticas públicas direcionadas a moldar nos jovens o perfil adequado às novas demandas do capital.
Analisando os trabalhos apresentados no GT09 de 1996 a 2007, Ciavatta e Trein (2009) concluíram que carecíamos de pesquisas sobre as ações de resistência nas escolas, tanto na rede das escolas federais quanto nas redes estaduais de Ensino Médio. No levantamento, realizado em 2016, identificamos grupos que caminharam nessa direção, investigando sob vários ângulos o Ensino Médio: o Pacto Nacional pelo Fortalecimento do Ensino Médio (GETET/UTFPR e GEPETO/UFSC), políticas, trabalho docente e práticas formativas realizadas nesta etapa da Educação Básica, os processos de escolarização, acesso, permanência e conclusão e as implicações da diversificação da organização curricular da formação proporcionada aos estudantes, tendo como referência a formação humana. Os estudos realizados nas escolas públicas, nos Institutos Federais, na EJA, no Ensino Médio,
PROEJA, PRONATEC, em seu conjunto, permitem conhecer como se desenvolve a formação de trabalhadores, permeada pela luta de classes, marcada por contradições.
A Educação Profissional e Tecnológica (EPT) é investigada a partir de distintas metodologias: pesquisa documental sobre as concepções da OCDE sobre trabalho e educação balizando um paradigma de educação profissional (NIETE/UNESC), um balanço da produção acadêmica sobre a implantação da educação profissional técnica de nível médio sob a forma de cursos técnicos integrados (GETET/UTFPR). “Busca-se compreender quais conhecimentos têm sido produzidos sobre o tema, como são investigados os aspectos do processo de implementação, dificuldades encontradas e formas de superá-las, bem como as abordagens teóricas predominantes nestes estudos”. Ainda sobre esta temática, destacam-se estudos que focam o estudante da EPT, e pesquisam os estágios na rede federal tendo em vista compreender as mediações entre a escola e o mundo do trabalho na formação de técnicos de nível médio (GTPS/UFRRJ). Há pesquisa com egressos dos cursos técnicos (TRETS/IFPR), e abordando a Inovação social na oferta de cursos do PRONATEC voltados à inclusão produtiva de jovens (NIETE/UNESC).
O trabalho docente e a formação de trabalhadores realizada na escola têm recebido atenção crescente pelos grupos GTPS/UFRRJ, GEPETO/UFSC, TRAMSE/UFRGS, NUPED/IFRN, GEPTE/UFPA, ED/IFPA. Outros grupos
pesquisam o Trabalho Docente na Educação Profissional (EJATRAB/UFF) e os nexos entre as Licenciaturas e o Ensino Médio Integrado oferecidas pelos Institutos Federais (NUPED/IFRN). Temas correlatos ao trabalho docente são abordados pelos grupos como: formação docente (NUPED/|IFRN, LUTE/UDESC, ED/IFPA, ETE/UNISC, GEPETO/UFSC, GPTEEA/IFRJ),
saberes (NUPED/IFRN, ED/IFPA), profissionalização, reconversão e carreira docente (GEPETO/UFSC); qualificação e identidade (GTPS/UFRRJ).
Como apontado nos balanços de Trein e Ciavatta (2003, 2009), predominam no GT09 estudos do tempo presente, mas também se realizam pesquisas de caráter historiográfico que lidam com fontes documentais de época, memória, Escola Nova (GEPMTE/UFMG), Ginásio Vocacional dos anos
60 (CME/USP) e estudos historiográficos sobre educação profissional e o pensamento crítico (THESE/UERJ, UFF, EPSJV-FIOCRUZ).
Dentre os estudos que versam sobre Trabalho e Educação no Campo, destacam-se o TMT /UFSC e o GRUPTPE/UFC. O TMT/UFSC desenvolve um projeto integrado com objetivo de “verificar como as escolas do campo, de ensino médio, enfrentam o dilema: formação geral e formação técnico- profissional”. Com perspectiva similar, o GRUPTPTE/UFC busca verificar “quais estratégias pedagógicas as escolas do campo adotam para aproximar as dimensões do ensino e do trabalho? Como seus conteúdos curriculares e práticas pedagógicas propõem articular ou efetivamente articulam as dimensões do ensino e do trabalho?”.
A participação dos núcleos em redes é relativamente pequena e difusa. Apenas o grupo TEC e o GPTE/USP participam de uma mesma rede, a Rede Ibero-Americana de Estudos sobre Educação Profissional e Evasão Escolar (RIMEPES-UFMG). Outras redes mencionadas foram: Rede de Estudos do Trabalho (RET), Rede de Pesquisa-ação em Educação Popular e Trabalho Autogestionário, Rede Ergológica Brasileira, Rede Universitas/BR e História, Sociedade e Educação. Em nível internacional, predomina a participação em redes regionais como o Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales (CLACSO) e a Red Nacional de Investigación políticas y acontecimentos educativos estatales, características, procesos y posibilidades / Universidad Pedagógica Nacional (UPN), México.
O levantamento de 2016 permitiu constatar uma mudança na natureza dos vínculos e parcerias firmadas pelos grupos. Observa-se que diferentemente do relatado no Intercrítica I, de 2002, quando foram registrados vínculos de grupos com sindicatos, à época apontados como conflituosas, com centrais sindicais, em particular com as filiadas à CUT, neste levantamento as parcerias e estudos vinculados aos sindicatos foram raros.
A ausência de estudos relacionados à temática sindical merece reflexão dentro do GT, num momento importante em que a classe trabalhadora necessita preparar-se para os enfrentamentos diante do acirramento das contradições sociais. Percebe-se a importância de se manter a organização da classe trabalhadora independentemente dos partidos que estejam no governo, lembrando, com Lenin (2014), que o Estado burguês é o Estado do capital. Portanto, cabe à classe trabalhadora construir suas formas de lutas com autonomia.
Por fim, dentre os Intercâmbios com pesquisadores/grupos estrangeiros, predominam os vínculos com universidades europeias, principalmente portuguesas e francesas e, em menor proporção, com pesquisadores de universidades latino-americanas (Argentina, México, Equador, Chile e Uruguai). Não obstante, observa-se grande intercâmbio de coordenadores e pesquisadores nos eventos da área, em estágios de pós-doutoramento, projetos integrados, publicações coletivas e colaborações.
Ao considerarmos o Intercrítica como um evento cuja existência justifica- se pela necessidade de aprofundar temas e/ou problemáticas consideradas centrais ao GT09, pareceu-nos apropriado, neste momento, estabelecer algumas conexões entre as pesquisas do mapeamento de 2016 e as temáticas centrais do Intercrítica nas suas quatro edições, tendo em vista que o intercâmbio busca fortalecer, ampliar e aprofundar as discussões sobre as questões relativas ao campo temático trabalho e educação visando a construção e consolidação de pesquisas voltadas à emancipação social, política, ética e cultural dos trabalhadores. A primeira constatação a ser destacada diz respeito às diferentes conjunturas, sejam elas internas ao próprio GT09 ou externas, sob as quais se realizaram os Intercrítica. Começamos pelo evento de Niterói, RJ.
Pautando-nos no relatório do Intercrítica I, ocorrido na UFF, verifica-se que, em 2002, a preocupação dos grupos voltava-se às teses sobre a crise da centralidade do trabalho ou fim do trabalho e o surgimento de uma suposta “sociedade do conhecimento”. Portanto, a necessidade de reafirmar a importância de um referencial marxista no desmonte de tais teses revelou-se fundamental. É sintomático que na síntese do referido relatório, dos três desafios a serem enfrentados pelos pesquisadores, um referia-se à necessidade de renovação e a ampliação dos quadros de pesquisadores no campo; e dois diziam respeito à posição teórico-metodológica marxista no GT09, ou seja, caberia a este enfrentar:
A pressão externa exercida por professores e pesquisadores de outros campos, por vezes de forma não muito legítima, sobre coordenações e alunos de graduação, mestrado e/ou doutorado nos programas de pós-graduação, no sentido de isolar os professores e pesquisadores de T&E que adotam o referencial marxista;
A pressão interna exercida sobre professores e pesquisadores do próprio campo no sentido de uma flexibilização das matrizes e referenciais teóricos marxistas e da incorporação de novos referenciais (REIS; LOBO, 2003, p.7).
Ressalta-se que o ano de 2002 encerra o governo FHC/PSDB, período de grandes reformas educacionais de caráter gerencialista, de difusão da pedagogia das competências como alternativa à formação de um novo perfil de trabalhador, adaptado aos novos requerimentos produtivos da chamada “globalização”. Nestes termos, coube ao GT09 o posicionamento crítico em relação ao que se considerou o desmonte do serviço público em nome da inserção do Brasil na economia globalizada, como também a defesa da teoria crítica marxista contra as perspectivas pós-modernas, já devidamente instaladas nos meios acadêmicos, portanto grassando claramente nos diversos GT da ANPEd.
Uma análise dos Relatórios do GT evidência que houve várias tentativas de organizar o II Intercrítica. As dificuldades apontadas foram: falta de financiamento e dificuldades de tempo para planejar o evento durante a Reunião da Anped (ANPED, 2004; 2005; 2007; 2012; 2013).
Depois de um intervalo de 12 anos, o Intercrítica II é realizado em Belém, PA, em 2014, em uma conjuntura na qual dois governos Lula (2003- 2010), e o primeiro mandato de Dilma Roussef (2011-2014), ambos do PT, nos apontavam claramente seus limites. Porém, esta análise não comparece de forma explícita ou com centralidade no evento, mas, em alguma medida, fica diluída nos balanços que se propuseram a discutir a relação trabalho e educação e nas pesquisas realizadas nas diferentes regiões do país neste interregno.
No âmbito de sua programação, o Intercrítica II privilegiou, nestes balanços, discussões em torno das tendências das pesquisas frente à crise do capital, bem como análises das três décadas de produção na área de trabalho e educação no Brasil, e o resgate e atualização das obras: A Produtividade da Escola Improdutiva (1984) de Gaudêncio Frigotto (UERJ); A Pedagogia da
Fábrica (1985) de Acácia Kuenzer (UFPR); Politecnia, Escola Unitária e Trabalho (1989) de Lucília Machado (UNA-MG); Opção Trabalho (1989) de Celso Ferretti (UTFPR e CEDES) e A Escola de Gramsci (1992) de Paolo Nosella (UFSCAR e UNINOVE).
No Intercrítica II foram apresentados balanços do campo Trabalho e Educação (CIAVATTA, 2015; RUMERT, CÊA, 2015; TIRIBA, 2015; MORAIS,
2015; FRANZOI e FISCHER,2015) entre outros publicados na Revista Trabalho Necessário, vol.13, n.20 (2015). Ademais, naquele momento, uma necessidade premente para o GT09 era justamente a de reconhecer seus pares, pois, de 11 grupos levantados em 2002, agora contabilizávamos mais de 40 grupos como referido. Naquele momento, foi definido que o Intercrítica seria realizado bianualmente, intercalando-o com as Reuniões Nacionais da ANPEd.
O Intercrítica III, realizado na UTFPR em Curitiba, em setembro de 2016, ocorre no embalo provocado pelo anterior. Ou seja, o entusiasmo por saber que agora somos muitos, e que precisaríamos encontrar novas formas de organização sem prejudicar o propósito do Intercrítica de verticalizar o debate. Nesse sentido, esta edição do evento contou com 240 inscritos, sendo 100 professores e 140 estudantes de pós-graduação, provenientes de 19 Estados,
56 instituições e 49 grupos de pesquisa. Além das diversas conferências, mesas-redondas e plenárias, é importante destacar que no III Intercrítica foram lançadas 23 obras e apresentados 102 pôsteres. Porém, o desafio maior estava na necessária e inadiável análise de uma complexa conjuntura política, econômica e social, cujo desfecho imediato foi o golpe parlamentar, empresarial, midiático que levou à cassação do mandato da presidente Dilma Rousseff em 31 de agosto de 2016.
Destarte, o tema deste Intercrítica “Formação e Luta de classes” parece traduzir o sentimento inquietante do conjunto de pesquisadores preocupados com a luta a ser travada, tanto no âmbito teórico-acadêmico, quanto na práxis coletiva de atuação desses professores/pesquisadores. Nesse sentido, as discussões priorizaram reflexões teóricas e metodológicas estruturadas em três eixos, a saber: a relação entre educação, trabalho e luta de classes, destacando a categoria “classe social” como fundamental na análise da conjuntura econômica, política e educacional; a interlocução do campo trabalho e educação com a teoria social marxiana, com vistas ao enfrentamento dos
desafios colocados ao campo Trabalho e Educação; a discussão sobre a formação dos trabalhadores no espaço de trabalho, da moradia, na escola e nos movimentos sociais, trazendo à tona a questão da educação da classe trabalhadora6.
Mereceu destaque neste cenário de 2016, ainda na condição de Medida Provisória, (MP) 746/2016, a proposta do governo Temer para reestruturação do ensino médio. O impacto que tal proposta traria para a formação da juventude foi amplamente debatido no Intercrítica III. Diversas palestras, eventos, publicações seguiram-se desde este período, inclusive com participação ativa de membros do GT09. (SILVA, 2016).
A referida reforma do ensino médio, instituída pela Lei nº 13.415/2017 (originária da citada MP 746/2016), e também apoiada na Base Nacional Curricular Comum do Ensino Médio (BNCC-EM, aprovada pelo CNE em 4/12/2018) e na dita “Atualização” das Diretrizes Curriculares Nacionais do Ensino Médio (Parecer CEB 3/2018, de 8/11/2018), traz em seu cerne a completa adequação do ensino médio aos requisitos postos pelo mercado de trabalho, estes definidos prioritariamente pelo setor empresarial, o que reduz a última etapa da educação básica a uma mera formação de caráter pragmático e aligeirado, voltada à lógica mercantil. Portanto, afastando-se de uma perspectiva que contemple os fundamentos científico-tecnológicos, histórico- sociais (Frigotto; Ciavatta, 2006) que embasam as proposições sobre trabalho, ciência, tecnologia e cultura no Ensino Médio e na Educação profissional Técnica de Nível Médio (SILVA, 2017; MOURA e LIMA FILHO, 2017).
Na verdade, o que toda esta quadratura vai apontar é que a radicalidade das transformações em curso na educação pública brasileira responde às determinações da nova conjuntura política e econômica decorrentes do impeachment (2016) e seus desdobramentos. A orientação das políticas da educação e do trabalho na atualidade brasileira é parte do movimento de recomposição da hegemonia neoconservadora e estas, por sua vez, não podem ser descoladas das imposições do capital diante de sua crise. Esta nada mais é do que o próprio movimento do capital se contrapondo à queda
6 Os trabalhos encomendados para o Intercrítica III estão publicados na Revista Trabalho Necessário, vol.14, n.25 (2016)
tendencial da taxa de lucros, com seus mecanismos para manter seu curso de acumulação à custa da exploração da classe trabalhadora. Conforme Marx (2008), para manter e/ou recuperar seus níveis de acumulação o capital necessita encontrar “saídas” (contratendências) compreendidas em seis dimensões: intensificação da exploração do trabalho; redução dos salários; baixa de preços do capital constante; constituição de uma superpopulação relativa; ampliação do mercado externo e aumento do capital em ações.
Não há dúvidas de que a especificidade que marca a posição do Brasil na dinâmica capitalista, como imperialista subalterno (FONTES, 2012), indica que as contratendências são não apenas recomendadas como precisam ser urgentemente implementadas na sua integralidade conforme orientações do Banco Mundial (2017). Isso explica as pautas reformistas das últimas décadas, intensificadas após o golpe parlamentar, empresarial, midiático de 2016, gestado em meio às disputas entre frações de classe burguesas pela direção deste processo (FONTES, 2017). Conforme Leher e Motta (2017), do ponto de vista das disputas internas que acarretaram a cassação do mandato da presidente Dilma, as medidas econômicas neoliberais encaminhadas pela então presidente na tentativa de manter o apoio do bloco de poder ao seu governo, não obtiveram apoio político suficiente.
Assim, o GT09 sai do Intercrítica III com uma tarefa: investir na compreensão da realidade mediante o aprofundamento do método da crítica à economia política. Seria preciso construir e/ou reforçar junto às novas gerações de pesquisadores/professores as referências necessárias para ler a complexidade dos fenômenos sociais à luz das categorias marxistas de análise.
O Intercrítica IV, em Natal, RN, ocorrido em novembro de 2018 no IFRN, responde àquelas necessidades apontadas em 2016, apresentando como temática central reflexões sobre o materialismo histórico dialético como método. A programação, à semelhança da edição anterior, constou de conferências de abertura e encerramento, mesas-redondas, sessões plenárias, apresentação de pôsteres e lançamento de obras. O evento aprofundou o debate em torno das categorias fundantes do materialismo histórico dialético, com destaque para a importância da categoria luta de classes para a adequada compreensão de questões atuais como gênero, raça, relações étnicas,
geracionais e diversidade sexual. No campo das políticas educacionais, tematizaram a reforma do ensino médio, escola sem partido, lei da mordaça como expressão das estratégias de ampliação e reprodução da lógica do capital. Diante deste quadro de retrocessos as formas de resistência fizeram-se presentes.
Os dados coletados no levantamento de 2016 indicam o crescimento dos grupos de pesquisa em Trabalho e Educação (TE) no Brasil, tanto nas universidades quanto nos Institutos Federais. É importante observar a contribuição dos grupos TE e Programas de Pós-graduação na formação de docentes-pesquisadores que atuam no Ensino Superior e também na Educação Básica. Constatamos modificações na natureza dos vínculos dos grupos de pesquisa. Em 2002, articulavam-se principalmente com sindicatos, escolas técnicas, centrais sindicais. Estes foram descontinuados, especialmente com os sindicatos ligados à CUT.
As temáticas sobre qualificação, competências, empregabilidade, começam a refluir e avolumam-se os estudos sobre políticas públicas que têm os jovens como sujeito das pesquisas. Percebeu-se a incorporação da EJA à reflexão da área Trabalho e Educação, tanto nas pesquisas quanto nas mesas e trabalhos apresentados nas reuniões regionais e nacional da ANPEd. Outro tema que comparece nas sessões especiais da ANPEd e no Intercrítica refere- se às discussões sobre gênero, raça e etnia articuladas à categoria classe social.
Em 2002, no Intercrítica I, os grupos indicavam certa dificuldade e perda de espaço da crítica radical marxista diante do avanço da agenda pós- moderna, como um problema interno às universidades. Nos últimos anos a dificuldade vem de fora, de ataques incisivos de militantes do Movimento Brasil Livre, do Programa Escola Sem Partido. Contraditoriamente, essa irracionalidade e argumentos extemporâneos de um lado, aprofundam cisões entre grupos dentro da mesma instituição, por outro, produzem um efeito de aglutinar os que defendem a liberdade de expressão, os direitos, a democracia, congregando estudantes, professores, do Ensino Superior e da Educação
Básica, mas vai muito além, construindo ampla frente de resistência com trabalhadores, movimentos sociais.
As pesquisas que, na virada do milênio, procuraram articular trabalho e escola, focaram o trabalho pedagógico e currículo. O levantamento de 2016 mostrou uma inflexão para o estudo do trabalho docente, implicações do gerencialismo e do empresariamento da educação. O necessário retorno à escola apontado por Kuenzer (1998), comparece nas pesquisas que tematizam a privatização da educação, Educação a Distância, sistemas apostilados de ensino e outras formas de mercadorização, o protagonismo do Movimento pela Base na formulação da BNCC, processo de financeirização, entre outros.
Outras questões atuais que demandam atenção dos pesquisadores da área: O lobbying privatista no Congresso e a atuação militante dos Institutos e Fundações empresariais na definição dos rumos da política educacional, estabelecendo parcerias com Undime, Consed, Secretarias de Educação, Organizações Sociais realizando a gestão privada da educação pública; A atuação das Federações da Indústria propondo projetos, programas, ações. O interesse por estes temas indica o quanto o capital está presente na definição dos rumos da educação pública no país, particularmente pelo incremento de seus aparelhos privados de hegemonia nas últimas décadas.
As questões acima arroladas, gestadas em diferentes governos, mas consubstancializadas nos governos do Partido dos Trabalhadores (PT), certamente trouxeram implicações importantes para o interior do GT Trabalho e Educação, seja pelo envolvimento direto de alguns de seus membros com este governo, particularmente na sua primeira fase, seja por questionamento das políticas de conciliação de classes operadas pelo PT, em que se pese o surgimento deste partido no terreno da luta de classes. Aliás, um paradoxo que, em nossa avaliação, ainda necessitaria de uma rigorosa análise por parte do GT09, posto que os rebatimentos dessa via conciliatória, expressa na transferência do fundo público para o capital privado, sinalizaram o horizonte de um determinado projeto de sociedade.
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* Estes grupos não indicaram siglas. Criamos acrônimo apenas para facilitar a referência neste artigo.
Recebido em: 08 de dezembro de 2018. Aceito em: 26 de fevereiro de 2019. Publicado em: 28 de maio de 2019.
Percival Tavares Silva2
Mas ainda é tempo para mim de reencontrar o trabalhador que conheço
bem e fazê-lo entrar na minha gravura?
(BACHELARD, 1989).
Ensaio – devaneio – sobre possível investigação, em Bachelard, “da ação / da mão operária sob o jugo da negatividade da alienação” (PESSANHA). Bachelard que se cobra ao fechar o último livro que publicou: “Mas ainda é tempo para mim de reencontrar o trabalhador que conheço bem e fazê-lo entrar na minha gravura?”. O que pressupõe aproximações possíveis entre sua investigação da “mão feliz” (trabalho do artista em sua positividade) e da “mão infeliz” (alienada – trabalho em sua negatividade nas sociedades de classes) desenvolvida por Marx.
Ensayo - devaneio - sobre posible investigación, en Bachelard, de la acción / de la mano obrera bajo el yugo de la negatividad de la alienación "(PESSANHA). Bachelard que se cobra al cerrar el último libro que publicó: "Pero todavía es tiempo para mí de reencontrar al trabajador que conozco bien y hacerlo entrar en mi grabado?". Lo que presupone aproximaciones posibles entre su investigación de la "mano feliz" (trabajo del artista en su positividad) y de la "mano infeliz" (alienada - trabajo en su negatividad en las sociedades de clases) desarrollada por Marx.
Essay - daydream - about possible investigation, in Bachelard, of "the action / of the laboring hand under the yoke of the negativity of alienation" (PESSANHA). Bachelard charged with closing the last book he published: "But is it still time for me to rediscover the worker I know well and get him into my picture?". This presupposes possible approximations between his investigation of the "happy hand" (the artist's
1DOI: https://doi.org/10.22409/tn.17i32.p28308
2Doutorado em Educação pela Universidade de São Paulo (2010), mestrado em Filosofia da Educação pelo Instituto de Estudos Avançados em Educação - IESAE/FGV (1994), graduação em Filosofia pela Faculdade de Filosofia Nossa Senhora Medianeira SP (1977), graduação em Teologia pelo Instituto Teológico São Paulo (1980). É professor associado 1 do Departamento de Fundamentos Pedagógicos da Faculdade de Educação da UFF. Membro do NuFiPE - Núcleo de Estudos e Pesquisas em Filosofia, Política e Educação/FEUFF. Sócio fundador da IGS-Br International Gramsci Society Brasil (2015). Atua como voluntário na Pastoral Operária da Diocese de Nova Iguaçu e no Fórum Grita Baixada.
work in its positivity) and the "unhappy hand" (alienated - work in their negativity in class societies) developed by Marx.
Este ensaio origina-se do exercício acadêmico junto ao mestrado em Filosofia da Educação, no Instituto de Estudos Avançados em Educação – IESAE, da Fundação Getúlio Vargas - FGV (Rio de Janeiro), na década de 1990. Se naquela ocasião visava atender a exigências da disciplina “filosofia, concepções e problemas”, do saudoso professor José Américo Pessanha, hoje revisitado e reelaborado, quer provocar discussão em torno de possíveis interfaces entre Gaston Bachelard2 e Karl Marx.
Reconhecemos que, para uma empreitada mais profícua, necessitaríamos acessar a uma biografia mais fiel ao Bachelard real, do humano omnilateral, e não apenas a uma biografia de um humano seccionado entre o epistêmico diurno da elitista “Cidade Científica” e o filósofo noturno da “Casa Onírica” em seus devaneios (LIBIS, 2003, p. 114). Gostaríamos de conhecer sua vida política, escarafunchar com argúcia seus encontros e desencontros políticos, suas orientações e orientados quando na Faculdade de Dijon, na Sorbonne, na Academia das Ciências Morais e Políticas da França. Procuramos outros dados biográficos fora a mesmice sobre Bachelard, mas pouco descobrimos. Tarefa que exigiria então uma pesquisa in loco. Algo então impossível. Do pouco conseguido de mais relevante, soubemos, por exemplo, na apresentação da entrevista concedida pelo poeta e escritor Jean Libis a Alex Galeno, em 2003, que “De 1945 a 1950, Bachelard teria se nutrido de conceitos marxistas” (idem). Pudemos constatar, em decorrência dessa influência, que a partir de então ganha força em suas obras o materialismo.
O francês Gaston Bachelard é filho do final do Século XIX (1884) e grande parte do Século XX (1962). Posterior a Marx, também vive em um contexto extremamente conturbado e rico para a crítica e a produção científicas. Filósofo e poeta foca principalmente nas questões da filosofia das ciências. O ponto de partida de suas ideias é a filosofia das ciências naturais. Suas contribuições à epistemologia e à poética originam-se especialmente no campo da física, e dos recursos metodológicos da psicanálise. Neste sentido, há um Bachelard diurno e um Bachelard noturno. O diurno refere-se ao filósofo e cientista, ao pensador que assinala a instauração do novo espírito científico, “que soube traduzir em linguagem filosófica o significado e as decorrências, para o problema do conhecimento, da revolução instaurada pela relatividade de Einstein, pela física quântica” (PESSANHA, 1986, p. 5); refere-se ainda ao forjador dos conceitos de “obstáculo” e “corte epistemológico” e que mostra “a função positiva do erro na gênese do saber”. Ao lado desse Bachelard formulador de um novo racionalismo, há com igual força e riqueza, de forma complementar, “um Bachelard noturno” crítico “ao ‘vício da ocularidade’ que caracteriza a cultura ocidental, tendente a privilegiar a causa formal em detrimento da causa material na explicação dos fenômenos” (PESSANHA, 1988, p. 11). Trata-se de um anticartesianista “inovador da concepção de imaginação, explorador do devaneio da arte, amante da poesia – em renhido combate com certa tradição intelectualista” (PESSANHA, 1986, p. 5).
Jean Libis afirma, nesta entrevista, que “A questão do poder – e particularmente aquela do poder político – é precisamente quase ausente dos escritos de Bachelard.” Destaca, no entanto, que como homem ele “não é indiferente à realidade política”, mas como “Filósofo, ele desconfia do poder” (ibidem).
Observa enfático Libis:
A questão política não entra no seu campo de investigação. E se, na parte epistemológica de seu trabalho, se poderia, voluntariamente ou não, tentar articular o plano científico sobre o plano sociopolítico, em contrapartida, em relação à poética, essa articulação não existe. O devaneio poético, completa o poeta, é correlativo a uma solidão assumida.” (LIBIS, 2003, p. 113).
Da mesma forma, Pessanha constata que Bachelard, “embora estabeleça novas bases para repensar o conceito de trabalho, (...) permanece no campo estético, não vai ao social e ao político”, não leva em conta a dimensão social e política do trabalho, já investigada por Marx. “O trabalhador que descreve e cujos devaneios investiga, observa Pessanha, é antes de tudo o artista, não propriamente o operário” (1986, p. 21).
No entanto, Libis destaca:
... é claro que Bachelard parece, às vezes, próximo de certas teses marxianas, particularmente na “Terra e os Devaneios da Vontade” e nas três grandes obras epistemológicas dos anos 503. Observa que, Marx é citado várias vezes, e as ideias do trabalho, da resistência da matéria, da modificação do sujeito na confrontação com a natureza podem constituir zonas de encontro com o pensamento de Marx. (Op. cit., p.114).
Frente a esse quadro traçado, ousamos – devaneio (?) – imaginar uma possível investigação “da ação / da mão operária sob jugo da negatividade da alienação” (idem); investigação à qual Bachelard, certamente, ter-se-ia submetido se tivesse tido tempo. Algo que podemos depreender da sua última frase no último livro que publicou em 1961 – La flamme d’une chandelle (A chama de uma vela):4 “Mas ainda é tempo
Obras epistemológicas de Bachelard no período referido: O Racionalismo Aplicado, A Atividade Racionalista da Física Contemporânea, O Materialismo Racional.
A chama de uma vela, de 1961, como observa Bachelard no “Prólogo”, poderia ser intitulada “A poesia
das chamas”. Nesta última e pequena publicação em vida, “de pura fantasia” diante da chama de uma vela, amadurecido, o amigo do saber imaginado, assim se expressa: “sem a sobrecarga de saber algum, sem nos aprisionarmos na unidade de um método de investigação, gostaríamos de [...] dizer que a renovação da fantasia recebe um sonhador na contemplação de uma chama solitária. A chama, dentre os objetos do mundo que nos fazem sonhar, é um dos maiores operadores de imagens. Ela nos força a imaginar. Diante dela, desde que se sonhe, o que se percebe não é nada, comparado com o
para mim, conforme tradução de Pessanha, de reencontrar o trabalhador que conheço bem e fazê-lo entrar na minha gravura?” (1986, p. XXI).5
A consciência de ter-se omitido na investigação “da ação da mão operária”, manifesta nesta auto-cobrança é que motivou este estudo, pois esta sua atitude pressupõe aproximações possíveis entre a sua investigação da “mão feliz” (trabalho do artista em sua positividade) e a investigação da “mão infeliz” (alienada – trabalho operário em sua negatividade) desenvolvida por Marx.
Em suma, queremos avançar aqui a investigação da atividade humana, em Bachelard, para o campo da atividade operária, à luz do Bachelard da “mão feliz” e do Marx da “mão infeliz”, pois alienada.
Por isso, dada nossa ousadia, com Bachelard, é preciso alertar às pessoas racionais que nos perdoem por escutarmos os demônios dos tinteiros, pois “o filósofo pode sonhar tudo – violência e paz – quando sonha com o mundo diante da vela” (BACHELARD, 1989, p. 29 e 38). Sua máxima, “É no devaneio que somos seres livres”, nos guia nestas linhas.6
Ao investigar a função da imaginação na atividade humana, em geral, Bachelard faz uma forte crítica ao “vício da ocularidade” – característico da filosofia ocidental desde os antigos gregos, o pensar sempre entendido como extensão da ótica, a visão exercendo forte hegemonia sobre os demais sentidos.
Ora, esta crítica ao “vício da ocularidade” parece ser a chave para se fazer uma aproximação entre o Bachelard da “mão feliz” e o Marx da “mão infeliz”, pois ambos partem de uma forte crítica aos filósofos ocidentais, por valorizarem a atividade humana apenas enquanto atividade intelectual, desvinculada da atividade prática.
que se imagina” (BACHELARD, 1989, p. 9). A meditação da chama dá ao psiquismo do sonhador uma alimentação verticalizante. Uma alimentação aérea, oposta a todas as “alimentações terrestres”, é o princípio mais ativo para dar um sentido vital às determinações poéticas.
No francês original: “Mais est-il temps encore pour moi de retrouver le travailleur que je connais bien et de le faire rentrer dans ma gravure?” (BACHELARD, 1961, p. 112).
Como alertamos, gostaríamos de melhor conhecer a vida política de Bachelard, mas pouco
conseguimos. Por isso, nos apoiarmos em Pessanha e Libis. De Pessanha o alerta que nos levou a um Bachelard que se autocobra ao final da vida por não ter pesquisado a “mão do trabalhador” e suas reflexões sobre a mão do trabalhador. De Lilis, informações que nos apontam proximidades entre Bachelard e o pensamento marxista.
Se Marx afirma na XI Tese sobre Feuerbach: “Os filósofos se limitam a interpretar o mundo de diferentes maneiras; o que importa é transformá-lo”; Bachelard reforça Marx ao afirmar, em “Castelos de Espanha” na coletânea póstuma O Direito de Sonhar,7 os filósofos “não sabem conjugar a felicidade dos olhos com a felicidade dos dedos” (BACHELARD, 1986, p. 89).
Ao que tudo indica, tanto Bachelard como Marx, por caminhos diversos, recuperam a tese de Anaxágoras de que “o homem pensa porque tem mãos”.8 Com o detalhe de que Bachelard não avança na análise da atividade produtiva do trabalhador operário em sua positividade e negatividade.
Para Bachelard é no manipular a matéria e os meios para produzir a sua obra que o cientista, o artista, o artesão avança na ciência e na produção artística. Ele afirma em “Matéria e mão”, “toda mão é consciência de ação” (1986, p. 53). E em “O espaço onírico”, “toda dinâmica específica do ser humano é digital” (BACHELARD, 1986, p. 161 – destaque no original). E reitera em La terre et les rêveries de la volonté (A terra e os devaneios da vontade),9 a mão “só pensa ao comprimir, ao amassar, sendo ativa” (BACHELARD, 1948, p. 117 apud PESSANHA, op. cit., p. 20).
Para Marx é a atividade prática das mãos – produção – em processo dialético com a reflexão daí advinda, que humaniza a natureza, faz avançar o conhecimento científico, a teorização sobre a matéria e a atividade prática. A superioridade da mão em relação às outras partes do corpo advém da sua vinculação com a consciência, de seu valor propriamente espiritual (cf. VÁZQUEZ, 1986, p. 271).
Tanto Marx como Bachelard fazem o mesmo diagnóstico do trabalho em sua negatividade – “alienação do trabalho” em Marx é sinônimo de “mão infeliz” em Bachelard. Ambos identificam a origem do trabalho em sua negatividade na divisão
A coletânea póstuma O Direito de Sonhar, de 1970, referência nesse artigo, reúne textos de Bachelard relativos a “Artes”, “Literatura” e “Devaneios” em que temos “os fundamentos da legitimidade do devaneio, os motivos que tornam o sonho imprescindível à arte e à vida.” (PESSANHA, 1988, p. XI). Dessa obra, trabalhamos sobretudo com os textos: “Simon Segal”, “O cosmo do ferro”, “Matéria e mão”, “Introdução à dinâmica da paisagem”, “O ‘tratado do buril’ de Albert Flocon”, “Castelos de Espanha”, “O espaço onírico”.
“Anaxágoras, por consiguiente, sostiene que el hombre es el más inteligente de los animales por el
hecho de tener manos” (Aristóteles. De part. Anim 697 in Angel J. Cappelletti, La filosofia de Anaxágoras, Caracas: Sociedad Venezoelana de Filosofia, 1984, p. 102).
Permeia A terra e os devaneios da vontade: Ensaio sobre a imaginação das forças, de 1948, a
imaginação da matéria terrestre, o sonhar permanecendo fiel ao onirismo dos arquétipos que estão enraizados no inconsciente humano, a oposição entre o duro e o mole, as matérias duras e as imagens que suscitam, a mescla entre a linguagem poética e o rigor científico no domínio de uma imaginação fundamentalmente criadora.
social entre trabalho intelectual e trabalho manual. A crítica de Bachelard ao “vício da ocularidade” da filosofia ocidental é a mesma que Marx faz aos filósofos idealistas. A propósito, o texto de Pessanha, abaixo, se aplica a ambas análises:
Essa hegemonia da visão está, sem dúvida, vinculada à desvalorização do trabalho manual na sociedade grega antiga, escravista, determinando desde então a oposição entre trabalho intelectual e trabalho manual: as construções teóricas da ciência e da filosofia como obra do ‘ócio’ dos homens livres, a manualidade como característica das atividades de subalternos e escravos (PESSANHA, 1986, p. 14).
Ora, este “vício da ocularidade fatalmente coloca toda a questão da imaginação sob o jugo da imaginação formal, ignorando ou menosprezando a imaginação material
– aquela que, segundo Bachelard, ‘dá vida à causa material’” (PESSANHA, 1986, p. 14). Bachelard diz em L’Eau et les rêves (A água e os Sonhos):10
A mão ociosa e acariciante que percorre as linhas bem feitas, que inspecionam um trabalho concluído, pode se encantar com uma geometria fácil. Ela conduz à filosofia de um filósofo que vê o trabalhador trabalhar. No reino da estética – diríamos, no Reino da produção -, essa visualização do trabalho concluído conduz naturalmente à supremacia da imaginação formal. Ao contrário, a mão trabalhadora e imperiosa aprende a dinamogenia essencial do real, ao trabalhar uma matéria que, ao mesmo tempo, resiste e cede como cede uma carne amante e rebelde (BACHELARD, 1942, p. 19).
Para Bachelard, ainda em A água e os Sonhos, “a imaginação não é, como sugere a etimologia, a faculdade de formar imagens da realidade; ela é a faculdade de formar imagens que ultrapassam a realidade, que cantam a realidade. É uma faculdade de sobre-humanidade” (idem, p. 17). Diríamos na linguagem Marxiana, é práxis – “imaginação ativa”.
Desta forma
... a imaginação material recupera o mundo como provocação concreta e como resistência, e solicita a intervenção ativa e modificadora do homem; homem demiúrgico, artesão, manipulador, criador, fenômeno técnico, obreiro – tanto na ciência, quanto na arte (PESSANHA, 1986, p. 15),
A água e os sonhos: Ensaio sobre a imaginação da matéria. Nesta obra de estética literária, de 1942, Bachelard busca determinar a substância das imagens poéticas e a adequação das formas às matérias fundamentais. Estuda “as imagens substanciais da água”, o mais fiel "espelho das vozes"; faz “a psicologia da ‘imaginação material’ da água”. Reúne “lições de lirismo que o rio nos dá”, a meditação de uma matéria que educa uma imaginação aberta. “Poesia da água”, expressão de uma linguagem que flui, imaginação criadora que floresce da obra literária, da palavra, da frase.
e, acrescentamos, no trabalho produtivo.
Bachelard, em A terra e os devaneios da vontade, insiste em marcar a autonomia da imaginação criadora em relação à percepção (visual):
A imagem percebida e a imagem criada são duas instâncias psíquicas muito diversas e seria necessária uma palavra especial para designar a imagem imaginada. Tudo que é dito nos manuais sobre a imaginação reprodutora deve ser creditado à percepção e à memória. A imaginação criadora tem funções completamente diversas da imaginação reprodutora. A ela pertence essa função do irreal que é psiquicamente tão útil quanto a função do real, evocada com tanta freqüência pelos psicólogos para caracterizar a adaptação de um espírito à realidade etiquetada por valores sociais. Essa função do irreal reencontra valores de solidão (BACHELARD, 1948, p. 3, apud PESSANHA, op. cit., p. 22 – destaque no original).
Mas não é o mesmo humano que vivencia internamente, de forma contraditória e simultânea, o pesadelo reprodutivo e a imaginação criadora? Por que alimentar esse esgarçante dualismo do humano?
Assim, tanto Bachelard como Marx criticam o “vício do ocularismo”, idealismo próprio aos filósofos ocidentais. Críticas advindas deste acento na “imaginação formal” em detrimento da “imaginação material” das mãos, da felicidade criativa das mãos.
Segundo Bachelard em “A dinâmica da paisagem”, para o trabalhador- pensador, aquele com vontade de poder, aquele que sabe o que faz (consciência) e quer o que faz (vontade), “O mundo permanece (...) um canteiro de obra, o mundo é para ele uma tarefa em aberto” (BACHELARD, 1986, p. 69), pois para ele, construtor do mundo, o mundo nunca é suficientemente pronto, a terra nunca é suficientemente dura...
Este trabalhador pensador sabe, afirma Bachelard em “Castelos de Espanha”, que “a função do homem é mudar a face da terra” (BACHELARD, 1986, p. 93), diria Marx, humanizá-la, práxis. Sabe que possui “um destino de trabalho (...) Pelo labor e pela inteligência o homem conhece o reto destino que controla a destinação” (Idem,
p. 89 – destaque no original). Em “Simon Segal”, Bachelard afirma a supremacia do
trabalho sobre o trabalhador: “Em sua vida chega a hora em que o trabalho domina e conduz sua destinação” (BACHELARD, 1986, p. 31).
Ora, se o trabalho, em Bachelard, domina e conduz a destinação do homem, enquanto possuidor de “um destino de trabalho”; em Marx, o trabalho é o elemento determinante da natureza e da essência humanas.
Afirma Marx em O Capital livro 1:
O trabalho é, antes de tudo, um processo entre o homem e a natureza, processo este em que o homem, por sua própria ação, medeia, regula e controla seu metabolismo com a natureza. (...) A fim de se apropriar da matéria natural de uma forma útil para sua própria vida, ele põe em movimento as forças naturais pertencentes a sua corporeidade: seus braços e pernas, cabeça e mãos. Agindo sobre a natureza externa e modificando-a por meio desse movimento, ele modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza. Ele desenvolve as potências que nela jazem latentes e submete o jogo de suas forças a seu próprio domínio (MARX, 2011, p. 327).
Em suma, tanto para Bachelard como para Marx, o homem está destinado a ser produto e produtor de sua atividade, de seu trabalho.
Investigando a “vontade de poder” do trabalhador-artista, Bachelard fala em “matéria e mão” da “ação salutar das mãos dinamizadas pelos devaneios da vontade” (BACHELARD, 1986, p. 52). Ele afirma que esta é uma mão feliz por criar livremente, por unir trabalho e liberdade.
Aproximando Bachelard e Marx, percebe-se que a atividade humana, em geral, leva o homem a sentir em seu coração dois sentimentos contraditórios: o horror ao trabalho e o êxtase do trabalho. O primeiro sentimento é fruto do trabalho alienado, e o segundo do trabalho criativo.
Este horror ao trabalho advém da dissociação entre consciência (trabalho intelectual) e atividade produtiva e o produto desta atividade (trabalho manual) a que está submetida a mão ativa. Trata-se do trabalho repetitivo, reiterativo, monótono, fruto da imaginação formal. Mão ativa que, conforme o I Manuscrito “O trabalho Alienado”, encontra-se diante do produto de seu trabalho como diante de um objeto estranho:
... quanto mais o trabalhador produz, tanto menos tem para consumir; quanto mais valor ele cria, tanto menos valioso se torna; quanto mais aperfeiçoado o seu produto, tanto mais grosseiro e informe o trabalhador; quanto mais civilizado o produto, tão mais bárbaro o trabalhador; quanto mais poderoso o trabalho, tão mais frágil o trabalhador; quanto mais inteligência revela o trabalho, tanto mais o trabalhador decai em inteligência e se torna um escravo da natureza (MARX, 1962, p. 96).
Alienação pois, externo ao trabalhador, o trabalho não faz parte de sua natureza, e, por conseguinte, o trabalhador ao invés de se afirmar em seu trabalho, nega-se a si mesmo, não se sente satisfeito, mas infeliz, não desenvolve suas energias espirituais e físicas livremente, mas mortifica seu corpo e destrói seu espírito. Condição de mão infeliz do trabalhador em que “seu trabalho não é voluntário, mas imposto, é trabalho forçado” (MARX, 1962, p. 98 – destaque no original). Vázquez sentencia: “As mãos que trabalham maquinalmente, vazias de espírito, são mãos sem vida porque nelas não pulsa a inteligência do operário” (1986, p. 272).
Carlos Rodrigues Brandão sintetiza no poema “A Trama da Rede” essa situação de alienação do trabalho:
... o tear comanda do operário todo o corpo: os pés, a perna, as mãos, os braços, os jogos ágeis do tronco e dorso
e a atenção absoluta do olhar. São os movimentos do esforço do operário o que move o maquinário do tear.
Mas uma vez movido a corpo e dança ele impõe o ritmo ao corpo que o moveu. Assim, faz o homem triste o seu trabalho e é triste o seu canto, o seu cantar porque não há motivos de alegria
pra quem trabalha à força o seu tear.
(BRANDÃO, 1981, p. 8).
A mão ativa, porém, alienada pelos pesadelos do trabalho rotineiro, contempla. A matéria pegajosa vai se impondo à mão trabalhadora, como objeto de uma atividade repetitiva, rotineira, circular. De fato, a mão alienada não pensa é pensada, não comprime é comprimida, não amassa é amassada na rotina diária da atividade parcelada, repetitiva, reiterativa.
É infeliz, a mão operária, enquanto reproduz um trabalho sempre o mesmo, submetido à imaginação formal, segundo uma essência pré-determinada por outrem, trabalho imaginado, projetado pelo trabalho intelectual de outrem. É infeliz pois deixa
de ser mão, passando a ser instrumento, extensão de outrem, da vontade de poder
do capital.
Enquanto o êxtase do trabalho advém da complementariedade dialética entre consciência do trabalhador que projeta criativamente sua atividade produtiva e o produto de sua mão, fruto da imaginação material, criativa, duma vontade de poder própria. Estamos falando da mão feliz, porque criativa.
No primeiro caso temos a alienação no trabalho – a mão infeliz, no segundo temos o trabalho criativo – a mão feliz.
Em ambos os casos, porém, o homem ativo está humanizando a Natureza, dando-lhe uma marca humana, tornando-a humanizada através da violência de sua mão. Agindo, consciente ou inconscientemente, o homem determinando e sendo determinado, pois o homem, conforme Marx em Manuscritos econômico-filosóficos, é resultado de seu próprio trabalho, sua essência se dá enquanto ser ativo, prático – práxis. Isto é, o trabalho produz não apenas objetos e relações sociais, produz igualmente o próprio homem (cf. VÁZQUEZ, 1986, 137).
Desta forma, conforme Engels em Dialética da Natureza, “A mão não é apenas o órgão do trabalho, como também, produto deste” (ENGELS apud VÁZQUEZ, 1986,
p. 270). Assim, se conforme Anaxágoras, “o homem pensa porque tem mãos” teríamos que complementar de forma dialética esta sua máxima, como outro lado da mesma moeda, “e o homem tem mãos porque pensa”. Isto é, seus membros são transformados em instrumentos de trabalho e estendidos aos instrumentos criados pelo homem para sua intervenção na natureza.
Apesar da insistência de Bachelard em marcar a autonomia da imaginação criadora em relação à percepção (visual – imaginação formal), será que refletindo sobre a mão produtiva do trabalhador vinculado à produção capitalista, produção regida pelo mercado de consumo, ele não teria feito uma composição dialética entre imaginação material e imaginação formal para captar a imaginação em sua totalidade, em sua verticalidade e horizontalidade, diríamos, “imaginação ativa”, imaginação enquanto criativa e repetitiva?
Dizemos “imaginação ativa” pois queremos abranger a imaginação em sua verticalidade (imaginação material) e em sua horizontalidade (imaginação formal). Tem-se como referência aqui o conceito de Marx sobre a “atividade” como prática ou “atividade produtiva”. Segundo ele a atividade produtiva se identifica tanto em seu sentido positivo (como objetivação e autodesenvolvimento humanos, como autodeterminação necessária do homem com a natureza) quanto em seu sentido negativo (como alienação ou mediação de segunda ordem) (cf. Mészarós, 1981, p. 82), “pois, na práxis total humana, inovação e tradição, criação e repetição se alternam e às vezes se entrelaçam e condicionam mutuamente” (VÁZQUEZ, 1986, p. 279). Embora a práxis determinante seja a práxis criadora.
Não seria o acento em alguma delas (imaginação formal ou imaginação material) uma recaída no vício da unilateralidade (manualidade, ocularidade) própria de filosofias parciais? Ao que tudo indica, há na linha de produção capitalista uma conjugação dialética entre a visão (imaginação formal) e o tato, “vontade digital” (imaginação material). Diz-se isso porque o homem não só cria como também repete. E nesse repetir também humaniza a Natureza. Ele é um ser ativo que cria e repete idéias, teorias, obras materiais (ciência, arte e outros produtos do trabalho manual) que se dialetizam e determinam o homem como ser imaginante, enquanto operante e pensante de técnicas, ciência, arte e trabalho manual.
Embora sempre ativa, sempre humanizando a Natureza e também o homem, a mão trabalhadora no sistema capitalista é uma mão infeliz, pois se tornou uma mercadoria, objeto de compra e venda, meio de lucro nas “mãos” do capital fetichizado.
Marx afirma em Manuscritos Econômicos-Filosóficos de 1844, conforme Mészáros, que “o trabalho não produz apenas mercadorias: produz-se a si mesmo e produz o trabalhador como mercadoria; e o faz na medida em que produz mercadorias em geral” (MARX apud MÉSZÁROS, 1981, p. 113).
Pelo contrato de trabalho, o trabalhador alienou sua mão, sua “vontade digital”, sua “vontade de poder”, ao capital. Com isso a lei de mercado passou a determinar o quê, onde, como, quando, para quê e porque fazer: isto é, o trabalhador no sistema capitalista vendeu, alienou, sua “imaginação material”, permanecendo a “imaginação” em sentido amplo, enquanto “imaginação ativa”.
Desta forma, na linha de produção capitalista não existe mais a “vontade de poder” do trabalhador, mas somente a “vontade de poder” do capital. É a lei de mercado que quer e determina o que, onde, como, quando, para quê e porque fazer. Aí, na produção capitalista, o trabalhador intelectual, condicionado pela lei de mercado, cria, faz, reproduz o que o “pesadelo ativo” do dinheiro exige para obter mais lucro (imaginação material condicionada aos interesses do capital); enquanto o trabalhador manual submetido a uma atividade reiterativa, monótona, mecânica, contemplativa (imaginação formal) não sabe nem tem acesso ao que faz, muito menos
se reconhece no que faz.
Na produção industrial capitalista, a “imaginação ativa” se descaracteriza enquanto individual para assumir a característica de “imaginação ativa coletiva”: uns projetam (trabalho intelectual) e outros executam (trabalho manual) as atividades correspondentes. Ao final, há uma obra coletiva alienada, pois, produto da “imaginação ativa coletiva”, mas originada da “vontade de poder do Capital”.
Desta forma, o produto final da divisão social do trabalho é obra da mão coletiva. Através de micro-atividades, setorizadas, atividades que se somam – uma mão projetando, outra forjando, outra temperando, outra montando etc. – temos a atividade coletiva criativo-reiterativa, a obra coletiva alienada.
Atividades setorizadas criativo-reiterativas, frutos de um onirismo-pesadelo setorial, que se somam em um devaneio-pesadelo coletivo.
Por outro lado, na contramão da lógica do sistema capitalista, observa Vázquez sobre o “reino da liberdade”:
A libertação humana – a autêntica liberdade humana como desenvolvimento ilimitado de suas virtualidades práticas, criadoras – está vinculada à possibilidade de elevar e organizar racionalmente a produção material de tal maneira que se reduza cada vez mais o tempo de trabalho imposto pela necessidade. Já Marx acentuara claramente essa relação liberdade humana e libertação da atividade produtiva material (1986, 410).
Vázquez, para reforçar esta sua reflexão, cita do tomo III de O Capital:
O reino da liberdade só começa onde termina o trabalho imposto pela necessidade e pela coação dos fins externos; fica, portanto, de acordo
com a natureza da coisa, além da verdadeira produção material. [...] A liberdade, nesse terreno só pode consistir em que os homens socializados, os produtores associados, regulem racionalmente esse seu intercâmbio de matérias com a natureza, o coloquem sob seu controle comum em vez de deixar-se dominar por ele como que por um poder cego, e o levem a cabo com o menor dispêndio possível de forças e nas condições mais adequadas e mais dignas de sua natureza humana. Mas, mesmo com isso, este continuará sendo sempre um reino de necessidade. Do outro lado de suas fronteiras, começa o desenvolvimento das forças humanas que se considera como um fim em si, o verdadeiro reino da liberdade, que no entanto só pode florescer tomando como base aquele reino da necessidade. A condição fundamental para isso é a redução da jornada de trabalho (MARX apud VÁZQUEZ, 1986 410).
Para Marx, conforme Mészáros, “o objetivo da atividade humana, da sua produção, deveria ser o ‘enriquecimento humano’, de sua ‘riqueza interior’, e não simplesmente o enriquecimento do ‘sujeito físico’” (1981, 159).
Destaca, no entanto, este autor:
... é evidente que quando a atividade vital do homem é apenas um meio para um fim, não se pode falar de liberdade, porque a capacidade humana que se manifesta nesse tipo de atividade é dominada por uma necessidade exterior. Essa contradição não pode ser superada a menos que o trabalho – que é um simples meio na presente relação – se torne um fim em si mesmo. Em outras palavras: só é possível a referência ao trabalho como ‘atividade livre’ se ele se tornar uma necessidade interior ao homem (MÉSZÁROS, 1981, p.166).
Assim, para alcançar o “reino da liberdade” (Marx), a felicidade operante, a “mão infeliz” do operário precisa despojar a matéria de todas as tarefas tradicionais, de todas as obrigações utilitárias-necessárias do capital, fontes de alienação; precisa recuperar sua “vontade de poder”. Assim, como “o artista não está condenado a fazer ‘objetos’, mas ‘obras’, suas obras”, o operário, se quiser ser uma “mão feliz”, também deve produzir “obras”, “suas obras”, onde estejam objetivadas as forças de sua vontade de fazer, a sua subjetividade (cf. BACHELARD, 1986, p. 42).
Observa Bachelard, “E quando nos lembramos, de que toda a dinâmica específica do ser humano é digital, será necessário convir que o espaço onírico se solta quando o nó dos dedos se desata” (1986, p. 161 – destaque no original). E o trabalhador só será feliz, só alcançará o “reino da liberdade”, da felicidade, quando se soltar o nó que prende seus dedos, quando sua mão deixar de ser mercadoria, quando acabar a alienação. Então, o homem será pleno, criativo – o reino da felicidade – quando perceber que em suas mãos o poder de modificar o mundo, de transformar a
natureza, como bem expressa o “Poetinha” Vinicius de Moraes, na sua poesia “O operário em construção” de 1956:
O operário emocionado Olhou sua própria mão Sua rude mão de operário De operário em construção E olhando bem para ela
Teve um segundo a impressão De que não havia no mundo Coisa que fosse mais bela.
...
Mas o que via o operário O patrão nunca veria. O operário via casas
E dentro das estruturas Via coisas, objetos Produtos, manufaturas: Via tudo o que fazia
O lucro do seu patrão E em cada coisa que via Misteriosamente havia A marca de sua mão.
(Vinícius de Moraes, 1956).
Só assim, como em “O ‘tratado do buril’ de Albert Flocon”, do manejo de seus instrumentos de trabalho nascerão, ao mesmo tempo, consciência e vontade. O trabalhador já não será passivo, nada copiará, pois para ele será necessário produzir tudo (cf. BACHELARD, 1986, p. 74). Viverá do trabalho a face gloriosa da criação autônoma, pois criará na liberdade de sua vontade desatada pela imaginação.
Este “trabalho criador pressupõe a atividade indissolúvel de uma consciência que projeta ou modela idealmente e da mão que realiza ou plasma o projetado numa matéria” (VÁZQUEZ, 1981, p. 264).
Ao final deste estudo, sentimos que nos deixamos levar por um “onirismo ativo”. Em devaneios quisemos (vontade de poder) trabalhar, avançar a investigação da atividade humana criativa em Bachelard, para o campo da atividade operária reiterativa.
Nossa “mão feliz”, apesar de sua pouca destreza para trabalhar com Bachelard e Marx, parece ter conseguido ser criativa.
Ao término de A Chama de uma Vela, no penúltimo parágrafo da obra, preparando terreno para a pergunta motivadora desse artigo – “Mas ainda é tempo para mim de reencontrar o trabalhador que conheço bem e fazê-lo entrar na minha gravura?” – Bachelard aponta os limites desse seu devaneio ao afirmar “Eu disse apenas, seguindo meu romantismo da vela, uma metade de vida diante da mesa da existência” (destaque nosso). E continua:
Depois de tantas fantasias, toma-me uma urgência de me instruir ainda, de descartar, em consequência, o papel em branco para estudar em um livro, em um livro difícil, sempre um pouco difícil demais para mim. Na tensão diante de um livro de desenvolvimento rigoroso, o espírito se constrói e se reconstrói. Toda transformação do pensamento, todo futuro do pensamento, está em uma reconstrução do espírito (BACHELARD, 1989, p. 111).
Alguns problemas a respeito da atividade humana em Bachelard permanecem abertos. No entanto, gostaríamos de destacar um deles, no nosso entender, o de maior relevância:
— Será que a omissão de Bachelard em investigar a negatividade do trabalho operário, trabalho alienado, não está relacionada à sua não investigação da ciência- “técnica”?, pois, conforme Constança Marcondes Cesar, ele não trata da ciência “técnica: modo de desvelar o real pelo trabalho humano” (CESAR, 1989, p. 74).
Levantamos este problema, pois nesta atividade criativa (fruto da “imaginação material”) sentimos uma forte proximidade entre o Bachelard do “Novo Espírito Científico” e o Bachelard da produção artística criativa: ambos frutos da “mão feliz”, porque ativa e criativa (imaginação material).
Entendemos que seria muito enriquecedor investigar a técnica, enquanto ciência aplicada, a “mão infeliz” e suas aproximações, pois estaria dentro da investigação científico-filosófico tanto de Bachelard como de Marx. Isto porque, conforme Marx, os instrumentos de trabalho criados pelo homem para a atividade produtiva, “são produtos da indústria humana; material natural transformado em órgãos da vontade humana sobre a natureza ou de sua atividade na natureza. (...) são órgãos do cérebro humano criados pela mão humana; força do saber objetivada” (MARX, 2011, 943 – destaque no original).
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VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Filosofia da práxis. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 3a ed., 1986.
Recebido em: 06 de fevereiro de 2019. Aceito em: 26 de maio de 2019. Publicado em: 28 de maio de 2019.
v.17, nº 32, jan-abr (2019) ISSN: 1808-799 X
Helder Faustino Raimundo3
O artigo aborda o processo de construção e ascensão do capitalismo industrial e financeiro em Portugal, em particular no Algarve, no contexto da experiência da indústria das conservas de peixe. Essa ascensão dá-se num quadro de permanente e crescente luta de classes, entre a burguesia e o proletariado, como corolário dos movimentos de resistência e de revolta popular, presentes em Portugal. Neste processo assume papel de relevo o trabalho e a luta das mulheres operárias, tanto nos processos de luta de fábrica, quanto na luta nos bairros por melhores condições de vida.
The article deals with the process of construction and rise of industrial and financial capitalism in Portugal, particularly in the Algarve, in the context of the experience of the canned fish industry. This rise takes place in a permanent and growing class struggle between the bourgeoisie and the proletariat, as a corollary of the movements of resistance and popular rebellion, presents in Portugal. In this process, the work and struggle of women workers, both in the processes of factory fighting and in the struggle in the neighbourhoods for better living conditions, play an important role.
El artículo analiza el proceso de construcción y el ascenso del capitalismo industrial y financiero en Portugal, sobre todo en el Algarve, en el contexto de experiencia en la industria de conservas de pescado. Esta ascensión tiene lugar en un marco permanente de la lucha de clases entre la burguesía y el proletariado, como corolario de los movimientos de resistencia popular en Portugal. En este proceso asume papel de relieve el trabajo y la lucha de las mujeres obreras, tanto en los procesos de lucha de fábrica, como en la lucha en los barrios por mejores condiciones de vida.
1DOI: https://doi.org/10.22409/tn.17i32.p28309
2Este texto é parte do conteúdo de um capítulo da tese doutoral, em preparação, no quadro do programa de doutoramento em Educação, na especialidade de Formação de Adultos, que o autor frequenta no Instituto de Educação da Universidade de Lisboa e que aborda a educação popular no período da revolução portuguesa de 1974-1975.
Durante a ascensão do capitalismo industrial em Portugal, são vários os autores que consideram que a estrutura econômica do Algarve assentou na pequena indústria, em que os proprietários dos meios de produção eram eles próprios trabalhadores, ou na produção oficinal e artesanal3, ambas dependentes, quase sempre, do consumo interno. Apenas os ramos secundários das pescas, do sal e das conservas de peixe, rompem com esta estrutura. O que é atribuído às condições demo-climáticas da região, um troço de terra entre a Andaluzia espanhola e o Mediterrâneo (RIBEIRO, s/d; CAVACO, 1976a).
O surto industrial capitalista é incipiente e limitado, nos finais do século XIX e inícios do século XX. As estruturas de produção e as relações econômicas, até então consideradas proto-capitalistas4, só transparecem mais fortemente na sua dinâmica de relação social de produção capitalista com o incremento das indústrias de conservas de peixe, a partir de investimento estrangeiro, e da indústria corticeira (J. RODRIGUES, 1999). A primeira indústria favoreceu claramente o crescimento de atividades complementares associadas como a metalurgia, o comércio e, a seu montante, as pescas.
Se integrarmos esta perspectiva no contexto nacional, verifica-se que o controlo econômico e político da Inglaterra, sobre um país ao mesmo tempo colonizador e colonizado, pôde justificar a lentidão e a falta de autonomia do desenvolvimento da economia de Portugal (MÓNICA, 1986). Apesar disso a autora considera que
«Portugal dos anos 1930 não se podia comparar aos países do norte europeu, tão- pouco era já a sociedade rural de meados de oitocentos» (p. 217). A passagem de uma dependência política, assente no domínio do controlo administrativo e governativo, a uma dependência econômica, faz redobrar ainda mais a dependência política, sobretudo pela via dos organismos monopolistas internacionais (R. DA COSTA, 1976). No seu estudo sobre o desenvolvimento do capitalismo em Portugal este autor situa o começo da industrialização nos meados do século XIX, decorrente
3 A este estágio do capitalismo sucede a alienação progressiva do pequeno produtor, que se vê excluído do seu produto e do controle dos seus meios de produção, obrigando-o a vender o seu trabalho no mercado (Giddens, 2005).
4 Joaquim Rodrigues (1999) refere a indústria dos têxteis que ainda por volta de 1915 se constituía como um ‘trust’ industrial. A par de pequenas indústrias artesanais ou de pequena exploração como as indústrias de sapateiros, do esparto e da palma e dos fumeiros de figo para exportação.
até ao aparecimento das forças produtivas capitalistas com a República, em 1910. Para o autor, os diversos golpes e contragolpes da política nacional não surgiram como regresso ao passado, mas tão só enquanto reforços para «assegurar a continuidade da acumulação capitalista, passado o período de transição da República» (p. 60). É a partir do golpe de 28 de maio de 1926, que se constrói o processo de desenvolvimento do capitalismo em Portugal, orientado pela autonomia da burguesia industrial e financeira, dependente do capital monopolista. Situação que se irá modificar nos anos 1960, com o início da guerra colonial em África e uma dependência extrema do capital internacional.
De regresso ao Algarve assentemos então na sua limitada industrialização, que segundo J. Rodrigues (1999) nunca chegou a dar o salto em frente. Para isso concorreram, segundo o autor, algumas razões, de entre as quais: i) carência de matérias primas; ii) ausência de capital e de investidores; iii) domínio da atividade mercantil estrangeira; e iv) ausência de ‘revolução agrícola’ regional. É assim que a dita revolução industrial no Algarve também se inicia em meados do século XIX, com o arranque das indústrias da cortiça e das conservas de peixe, apostas do capital estrangeiro na região e cujas matérias primas abundavam nos seus ‘hinterlands’. Estas indústrias «movimentaram avultados capitais, dispuseram de centenas de fábricas cada uma e de muitos milhares de operários de ambos os sexos» (p. 398).
Tal como no país, no Algarve este crescimento capitalista era dominado pela burguesia comercial emergente (sobretudo estrangeira), que se apodera e desenvolve a pequena indústria artesanal e ao domicílio, predominantes à época. Só durante a primeira metade do século XX, se assiste ao desenvolvimento autónomo e à ascensão da média burguesia, muito numerosa em Portugal (R. DA COSTA, 1976).
Descrições da literatura da época dão-nos um retrato claro e sugestivo desses tempos. Entre muitos Raul Brandão (1982), na sua obra Os Pescadores, data de agosto de 1922 uma descrição sobre a vila de Olhão, que reporta a meio século antes:
«Os que não eram marítimos, eram filhos ou netos de marítimos, contrabandistas uns e outros, pescadores costeiros e pescadores do alto que iam à cavala a Larache» (pp. 176-177). E naturalmente Teixeira Gomes [1860-1941], escritor portimonense e
presidente da república de Portugal [1923-1925], que descreve em carta do natal de 1926, integrada na sua obra Agosto Azul, um episódio da pesca do atum na costa algarvia, nestes termos: «A pesca fechou acima de mil e trezentas cabeças. Mais de ‘treze centos’, como dizia a gente da companha. Fora, na verdade, uma copejada maravilhosa» (p. 41).
Estudos dos anos pós-república confirmavam que o Algarve assentava a sua economia industrial nas indústrias alimentares e corticeiras. Em 1911, o primeiro ramo (no qual se incluía a indústria conserveira) contava com 41 fábricas e 3.206 operários; o segundo contava com 20 fábricas e 1.194 operários (CABREIRA, 1918). Já em 1917, o Algarve contava com cerca de 239 estabelecimentos industriais e 9.769 operários. A percentagem de operários no cômputo geral de trabalhadores é de quase 96% e a quota feminina sobre o número de operários de 52%, o que mostra uma grande taxa de feminização5, sobretudo devido à grande presença de mulheres na indústria das conservas de peixe. A dimensão média dos estabelecimentos era ainda pequena, contando com 43 trabalhadores cada (FREIRE, 1992). Entre 1917 e 1935 o Algarve assiste a um claro crescimento da sua industrialização, quer em número de estabelecimentos, quer naturalmente em índices de mecanização e contingentes de assalariados operários. As razões para estes dados podem encontrar-se sobretudo na economia expansiva do período decorrente e posterior à primeira grande guerra (1914-1918), bem como ao processo de reorganização industrial da economia portuguesa no seu todo (J. RODRIGUES, 1999). Falamos do conjunto de legislação que marcou, no campo político e legislativo, a afirmação do estado fascista em Portugal, após o golpe de maio de 1926 e que se traduziu sobretudo por duas peças fundamentais: a lei do condicionamento industrial; e a corporativização - estatuto do trabalho nacional, grémios do comércio e da indústria e sindicatos nacionais (J. RODRIGUES, 1999; DUARTE, 2003). Esta normatividade autoritária tem reflexos imediatos nos dois principais setores econômicos. Nas conservas é criado o Instituto Português das Conservas de Peixe (herdeiro dos anteriores consórcios), os grémios da indústria conserveira de sotavento e barlavento (este com sede em Portimão) e o Sindicato Nacional dos Operários de Conservas de Peixe do distrito de Faro. Para a
5Com o termo pretendemos significar a transformação do valor social da profissão de operária conserveira, e não apenas o aumento do peso do sexo feminino na composição da profissão (‘feminilização’).
indústria corticeira são criados os grémios e a Junta Nacional da Cortiça (J. RODRIGUES, 1999).
Até aos anos 1960 o Algarve vive entre momentos de expansão e contração da sua economia industrial. Particularmente, a indústria conserveira cresce ainda nos períodos de conflito, designadamente com a exportação de conservas durante a segunda grande guerra (1939-1945), declinando com a concertação de fatores internos e externos opostos ao seu desenvolvimento: escassez de matéria prima; concorrência do capitalismo internacional; lutas operárias (CAVACO, 1976a; FREIRE, 1992; J. RODRIGUES, 1999; DUARTE, 2003;). As crises da indústria não surgem como ‘quebras’ do capitalismo mas, na perspetiva marxiana, «fazem parte do mecanismo regulador que permite ao sistema sobrepujar as flutuações periódicas a que o capitalismo está sujeito» (GIDDENS, 2005, p. 94). Com a articulação dos reajustamentos do capitalismo internacional, que acentuara o seu domínio colonial monopolista, no qual Portugal participa, as guerras coloniais contra os emergentes movimentos de resistência africanos, desertificam campos e fábricas, obrigam à emigração de jovens e trabalhadores para a Europa e à fuga às guerras em África6 (R. da Costa, 1976). As fábricas feminizam-se e o turismo surge como a panaceia para os negócios do capitalismo financeiro (J. RODRIGUES, 1999; MATTOSO; DAVEAU; BELO, 2010). Ao olhar para o Algarve deste período, Gomes Guerreiro (1977) denuncia a debilidade estrutural da região, considerando o crescimento desmesurado do turismo que anuncia uma monocultura destruidora da economia. Para essa visão aponta: i) a produção explorada e desqualificada; o trabalho mal remunerado; a delapidação da terra pelo capitalismo distante; e a instalação do pesadelo hoteleiro. A região permanece, nos anos prévios à revolução do 25 de abril de 1974, com uma indústria transformadora incipiente, com o decréscimo da indústria conserveira e a diminuição de trabalho no setor, apesar deste, em conjunto com a cortiça, manter ainda a maior capacidade empregadora na região (L. MADEIRA, 1990).
6 Sobre as temáticas abordadas podem ler-se os trabalhos coletivos: Louçã e Rosas (2004) «Ensaio Geral. Passado e Futuro do 25 de Abril»; Rosas (1999) «Portugal e a Transição para a Democracia (1974-1976)»; e Varela (2012) «Revolução ou Transição. História e Memória da Revolução dos Cravos».
A cidade de Portimão, a poente na região do Algarve e a sul de Portugal, nasce a partir do povoamento de lugares diversos das margens e da foz do rio Arade. Tendo tido presença de navegadores, corsários e comerciantes do Mediterrâneo, as fontes mais confirmadas indicam-nos a fundação de um lugar em São Lourenço da Barrosa, no ano de 1463, por carta de licença do monarca D. Afonso V. A sua criação tinha sido solicitada por moradores da cidade de Silves que se queriam instalar na foz do rio Arade. Os próprios nomes dos moradores, Portimãos, Mascorros, Barrosos, designam o lugar ou o seu inverso. No século XV já era cercada de muros e designada vila por D. Afonso V, com a formulação de Vila Nova de Portimão (S. JOSÉ, 1983; SARRÃO, 1983; VIEIRA, 1996).
A expansão quatrocentista e quinhentista de Portugal estimulou o seu crescimento populacional e consequente desenvolvimento econômico, a partir das doações feitas aos nobres da corte, oriundos do norte, de património fundiário e imobiliário, com donatário poderoso na corte (VIEIRA, 1996). O declínio da cidade de Silves, devido ao assoreamento do rio e às maleitas e pestilências provocadas pela falta de água, trouxera grande parte da sua população para a nova vila, bem como quase toda a sua função portuária e comercial (CAVACO, 1976a; RIBEIRO, s/d). Vila Nova cresce em gente e riqueza nos finais do século XVI. Nesta altura os monarcas e os nobres não dispensavam a ida à novel vila, antes dos embarques das caravelas carregadas de homiziados e reclusos de Silves e de Castro Marim. Na foz do rio Arade abrigavam-se as frotas das galés que protegiam o comércio do ouro e da prata das Américas e das especiarias das Índias, das armadas espanhola e portuguesa (MAGALHÃES, 1988; COELHO, 2005). Mas a Inquisição tratou de controlar a demografia e em 1672 a população caiu para metade: os cristãos-novos foram dizimados e a «Restauração, ao quebrar os fortes laços com a Andaluzia e a América espanhola, constituíra a causa principal do declínio» (COELHO, 2005, p. 12). Em 1776, Portimão já teria perdido 42% da sua gente (Magalhães, 1988).
Silva Lopes (1988b) dá-nos conta do crescimento populacional: em 1732 a vila tinha 1.672 habitantes, crescendo para 2.961 em 1802 e para 3.619 em 1837. Após a
implantação do liberalismo em Portugal, em 1820, a livre concorrência capitalista abriu caminho à competição comercial com Espanha e à facilidade de criação de indústrias na região e na vila de Portimão; industriais, técnicos e operários qualificados, italianos, franceses e espanhóis, enxameiam as fábricas de conserva de peixe, armazéns e litografias e as frotas pesqueiras de atum e de sardinha. Nos últimos anos do século XIX Portimão tinha afetado à pesca 1.715 marítimos, sobretudo na captura de atum (R. COSTA, 2002). O Compromisso Marítimo de Portimão era antigo. Como irmandade de socorros mútuos já era conhecida desde 1497, mas com a legislação do liberalismo, passou a ser associação de classe dos marítimos em 1880 (VIEIRA, 1996).
No seu estudo sobre a demografia algarvia, entre o liberalismo e a república,
R. Costa (2002) diz-nos que no ano de 1911, dos 917 imigrantes no distrito de Faro, Vila Nova de Portimão contava com 104 espanhóis; uma burguesia comercial e industrial que vem adquirindo património fundiário e industrial, tal como os seus antepassados nobres. De facto, a república, instaurada em 1910, vem encontrar Portimão já prenhe de pesca e conservas que, em conjunto com o figo constituem as parcelas da exportação econômica da terra e assim rapidamente se promove a cidade, em 1924 (G. VENTURA; PISCARRETA, 1997). Para isso bastou ter a decidir um intelectual escritor, Teixeira Gomes, que como afirma outro poeta algarvio
«dedicou-se ao comércio de figos secos/e foi presidente da República/ocupação imprópria para um esteta/que via a perfeição helénica/nos rochedos da praia da Rocha» (A. VENTURA, 1994, p. 49).
No início da república o foco do desenvolvimento de Portimão é, então, o seu rio e respectivo porto, por onde se importam têxteis, químicos e ferramentas, ou folha de flandres para a litografia das latas de conserva de peixe, e esparto para as cordas das embarcações, e se exportam azeite e cortiça, frutos secos do barrocal, sardinha e atum (VIEIRA, 1996). Pelo rio abaixo, embarcadas em Silves, ou nas margens de ribeiras, chegavam as madeiras da serra de Monchique, sobretudo de castanheiro, destinadas à construção naval da frota pesqueira de sardinha, carapau e cavala (RIBEIRO, s/d; SARRÃO, 1983; LOPES, 1988b; MAGALHÃES, 1988). Portimão
organizava-se dentro de um hinterland, desenhado pelas curvas do rio Arade (R. COSTA, 2002).
Na sua memória monográfica de Portimão, publicada em 1911, Vieira (1996) mostra-nos como a então vila ‘desdobrou’ um terço da população no espaço de 30 anos, rompendo os seus limites com bairros novos para 600 famílias. Razão para isto? Segundo ele «o desenvolvimento da indústria piscatória e o da conserva de peixe, que com ela se relaciona» (p. 99). Esta indústria já tinha tido o apadrinhamento da família real nos finais da monarquia, que lhe assegurava futuros esperançosos de melhoramentos e prosperidades (VIEIRA, 1996).
Na verdade, e a confiar na revista municipal de Portimão, comemorativa dos 80 anos da cidade, esta era insalubre e mal iluminada com uma área ribeirinha escusa, porca e medonha; o operariado da cidade «não era remunerado por aí além» e passava fome se não tivesse um pedaço de terra para semear ou milho para moer,
«sobrevivendo como podia e Deus mandava» (p. 14). Enquanto os operários corriam aos apitos das fábricas, os industriais descansavam ou jogavam nos chalés e vivendas arte nova na cosmopolita Praia da Rocha, inventada pela burguesia já a pensar no desenvolvimento de outra ‘indústria’, que aí viria com novos capitais e negócios (J. VENTURA, 2005).
Com o melhor porto do Algarve (LOPES, 1988b; MAGALHÃES, 1988) a cidade de Portimão cresceu a partir dos seus eixos principais na segunda metade do século XIX, sobretudo nos locais de residência burguesa (núcleo histórico e frente ribeirinha), mas afastada dos subúrbios operários e populares, encostados ao rio (G. VENTURA; MARQUES, 1993).
Na altura da escrita da sua corografia, em 1841, Lopes assinala o aparecimento de uma fábrica de salga de sardinha e extração de azeite de prensa, criada por um negociante espanhol em 1834. Na época já quase só se comerciava peixe fresco, deixando os pescadores o cansativo e caro trabalho da salga, para procurar melhor rendimento nos botes das carreiras em Lisboa (LOPES, 1988a). A experiência de catalães, bretões e napolitanos é usada como técnica para a produção da conservação em Portimão. Nas águas do rio e na costa de Portimão pescavam quase três milhares de pescadores (2.660 marítimos inscritos na capitania, incluindo a cabotagem), em embarcações diversas, capturando várias espécies. Também se mariscava bivalves, crustáceos e moluscos no rio e na ria de Alvor (VIEIRA, 1996). Na pesca da sardinha as artes usadas eram redes de arrastar, transportadas em barcos a remos, pesadas na manobra e de fraca captura, mas em breve foram
substituídas por cercos à americana, um sistema valenciano introduzido em Portimão pelo industrial Júdice Fialho, com embarcações a vapor em 1899 (NUNES, 1956). Nos anos 1920, os cercos a vapor seriam substituídos por traineiras, de menores dimensões e com mais recursos, o que possibilitou uma grande acumulação de capital.
Os capitalistas mecanizaram grandes segmentos do fabrico das conservas, para dar resposta ao boom de exportação da indústria para as rações de combate durante a 1ª grande guerra mundial (DUARTE, 2003). A mecanização, apesar de introduzida lentamente e com permanentes protestos (MÓNICA, 1986), provocou revoltas do operariado conserveiro, sobretudo dos soldadores7, considerada a ‘aristocracia operária’8 da indústria, que mantinham alguma independência e controlo da produção e que viam aproximar-se o fim do tempo do seu trabalho como artesãos e artífices autónomos, em vias de proletarização (MARX; ENGELS, 1974). Estes trabalhadores mantinham uma relação estreita com a obra criada, mediada pela sua tecnologia de execução, algo característico do antigo sistema de trabalho, para o qual Freire (1992) propõe a designação «de sistema de ofício, alargando-lhe os domínios para além do trabalho operário, centrando-o sobre o conceito de trabalho-saber» (p. 82). Na indústria conserveira, o mesmo autor encontra dois grandes grupos operários: os soldadores, comunidade qualificada, coesa e minoritária e os trabalhadores sem qualificação, em grande número, caso dos trabalhadores de fábrica ou moços, as mulheres e os rapazes.
7Os soldadores constituíam um grupo operário coeso e qualificado técnica e profissionalmente; empregavam um trabalho-saber na terminologia de Freire (1992), «que exige golpe de vista e firmeza de mão e, portanto, uma aprendizagem mais longa» (p. 104). A propósito dos soldadores deve ler-se o artigo de Valente (1981) sobre os conserveiros de Setúbal, no qual se analisa pormenorizadamente a vida e a profissão deste grupo operário, naquele contexto histórico do último quartel do século XIX, e assinalado nas referências finais.
8 Conceito desenvolvido por Hobsbawm num texto de 1954, a partir de teses leninistas sobre o papel das elites operárias no capitalismo desenvolvido, mas imerso numa visão reformista da formação da classe operária na Grã Bretanha (Hobsbawm, 2005). O conceito designa um grupo operário com elevada qualificação técnica e organização hierarquizada que permite o controlo do acesso à venda do seu trabalho, pela posse de alguns meios de produção (Mónica, 1981). No entanto, Freire (1992) considera, no seu estudo sobre o movimento operário em Portugal, esta elite como sintomaticamente libertária e vanguardista na mobilização das classes trabalhadoras no período histórico da predominância da corrente anarquista.
Mas antes, também os pescadores se tinham revoltado em Portimão com a chegada das embarcações a vapor (NUNES, 1956). Na década de 1920, cerca de dois terços da população portimonense vivia da pesca e das conservas, vendendo o seu trabalho na dezena de fábricas à volta do rio Arade ou nas embarcações de pesca da costa (G. VENTURA; MARQUES, 1993). Com o declíneo das exportações de guerra e o decréscimo do preço do pescado, Portimão entra na sua maior crise de emprego na indústria conserveira, com mais de um milhar de pessoas sem trabalho (DUARTE, 2003). Nas fábricas do industrial Júdice Fialho tinham sido despedidos 400 soldadores9 e, por isso, no I Congresso dos Operários da Indústria de Conservas, realizado em Setúbal em dezembro de 1924, aquele capitalista tinha sido
«abertamente atacado pela sua política anti-operária» por um delegado conserveiro (p. 106). Operários qualificados foram substituídos por mulheres e crianças, sujeitos a mais baixos salários, submissões e assédios, no contexto de um exército de mão de obra disponível no mercado de venda da força de trabalho (MARX, 1974). Nos anos seguintes, a crise permitiu ainda a redução de salários aos trabalhadores, alargando o desemprego para longa duração, dando os jornais conta de suicídios em desespero (DUARTE, 2003).
No seu processo de crescimento, os industriais organizaram a sua produção com a criação de sociedades anónimas, sistema típico das sociedades de desenvolvimento do capitalismo, «pela centralização do capital que operam» (R. DA COSTA, 1976, p. 113) e criaram um sistema de verticalização que permitiu controlar toda a fileira de produção. Assim, desde a posse da terra para produção de madeira e azeite, estaleiros para construção de frota pesqueira de captura de peixe, até às unidades de produção de pescado, fabrico de lata, embalagem e transporte até aos locais de consumo, se completava o ciclo industrial (G. VENTURA; MARQUES, 1993; DUARTE, 2003). Este processo revolucionou todas as relações sociais de produção, pois como referem Marx e Engels (1974), «a burguesia não pode existir sem revolucionar constantemente os instrumentos de produção, o que quer dizer as relações de produção, isto é todas as relações sociais» (p. 27).
9 O meu avô paterno, António Raimundo, era na altura (1925) soldador na fábrica de conservas ‘Frito Velho’ em Ferragudo (perto da cidade de Portimão), propriedade do industrial Júdice Fialho. Na eminência de crise de trabalho, com mulher na mesma fábrica e um filho de 4 anos, deslocou-se para outro centro conserveiro (Peniche), vindo a trabalhar noutra fábrica do mesmo patrão, na qual pôde vender, de novo, a sua força de trabalho.
No seu estudo sobre a elite dos industriais conserveiros de Portimão, a historiadora Maria João Duarte (2003) mostra como durante os últimos anos da monarquia e após a república, o movimento operário, de forma espontânea ou organizada nos coletivos republicanos, libertários e anarquistas, organizou um conjunto de protestos, marchas e greves contra a fome, pela redução do horário de trabalho, em defesa de melhores condições de vida e por aumentos salariais.
Soldadores e marítimos lideraram a primeira greve referida, a dos soldadores das fábricas da Júdice Fialho, em 1908, a partir da primeira associação de classes criada com a integração de soldadores, marítimos e corticeiros, de Portimão, Lagos, Silves e Olhão. Estas associações de classe (AC) são, na época, uma tradição instituída no movimento operário português, criadas por correntes de pensamento republicano ou socialista e que, mais tarde, a corrente anarquista vem tomar aos socialistas, contrariando as suas primeiras visões sobre a organização operária10 (FREIRE, 1992). A partir daqui os anarquistas e os anarco-sindicalistas passaram a encarar as associações de classe como o instrumento de luta fundamental pelas reformas e veículo para a revolução (MÓNICA, 1986). Como refere esta autora, no seu estudo, as primeiras associações de classe são organizações de carácter corporativo, de defesa da profissão e da carreira. Na obra dá conta da existência de associações de classe, como a dos chapeleiros fundada em 1853, ainda antes da autorização legislativa dos governos do liberalismo, emitida em 1891. Na verdade elas «nunca tinham deixado de existir: tinham-se limitado a funcionar sob a capa de mutualidades» (p. 15). Nesses anos 1890 foram várias as associações de classe que solicitaram ao governo a aprovação dos seus estatutos. Nos últimos anos da monarquia cresce o número de organizações operárias, incluindo na indústria conserveira, e a implantação da república abre caminho a um crescimento mais significativo: 55 mil em 1917.
Conhecemos o processo de escritura da associação de classe dostrabalhadores das fábricas de conservas de Lagos, no Algarve, cujos estatutos são publicados no Diário do Governo de 23 de fevereiro de 1912. No documento é claro que só podem pertencer à associação os trabalhadores daquele ramo de trabalho. Neste mesmo ano
10 O escritor anarquista Edgar Rodrigues considera 1839, o ano da criação da Associação dos Artistas Lisbonenses, o início de uma nova era operária em Portugal, quando se dão «os primeiros esforços em prol da emancipação operária», ainda antes da criação da Associação Internacional dos Trabalhadores, de índole marxista. Em 1850 era organizada a Associação dos Operários e em 1852, por iniciativa dos socialistas, é criado o Centro Promotor de Melhoramentos das Classes Laboriosas. Entre 1839 e 1885 são constituídas muitas estruturas associativas operárias (E. Rodrigues, 1977).
forma-se em Portimão a Associação de Classe dos Marítimos e no ano seguinte a AC dos Soldadores; em 1915 surge uma nova AC, a dos Estivadores (Duarte, 2003).
Entre os anos de 1920 e 1960 a população da cidade de Portimão quase duplicou, crescimento muito acima da percentagem de 16% na região do Algarve. Donde vêm estas pessoas? São pequenos camponeses e assalariados agrícolas que migram do barrocal e da serra do Algarve e dos concelhos limítrofes, para trabalhar nas fábricas de conserva de peixe, e habitantes das áreas de costa do país que integram as embarcações de pesca. Estas, crescem de 241 barcos registados em 1904 para 844 inscritos em 1957 (G. VENTURA; MARQUES, 1993).
Grande parte desta gente são mulheres, que engrossam as fileiras operárias das fábricas e dos armazéns das conservas, ou ainda integram a crescente criadagem dos patrões da indústria, nas suas várias propriedades rústicas e urbanas.
A indústria de conservas é palco de uma crescente feminização do seu operariado, quer seja permanente ou precário (eventual, no registro oficial), grande parte analfabeta, ou apenas sabendo assinar o seu nome11. Elas vinham dos afazeres da casa, de pequenos trabalhos domésticos ou das fainas do campo e da pequena horta de subsistência. Agrupam-se em barracas degradadas e insalubres à volta das cinturas industriais das conservas e nas margens do rio, num processo de proletarização de camadas sociais de trabalhadores não assalariados, nunca visto no Algarve (G. VENTURA; MARQUES, 1993; DUARTE, 2003).
No seu estudo sobre artesãos e operários Mónica (1986) faz uma descrição bem vívida do trabalho e da vida das mulheres têxteis (setor industrial no qual o trabalho em massa das mulheres primeiro se evidenciou). Acusadas de ‘zaragateiras e mães desnaturadas’, passavam o dia a trabalhar até altas horas, sem descanso e quase sem dormir, alimentando os filhos que cedo entravam na reprodução social do capitalismo, em casas insalubres e miseráveis, muitas vezes sem algo que comer.
11 De acordo com Mónica (1986), no final do século XIX a taxa de analfabetismo em Portugal era de 79%, «quando a maioria da população da Europa já sabia ler e escrever» (p. 16). No entanto, era claro que artesãos e artífices eram considerados cultos, pelo seu autodidatismo, como por exemplo chapeleiros e vidreiros (Mónica, 1986); ou sapateiros, metalúrgicos e gráficos, sendo que na indústria conserveira as mulheres eram mais letradas do que os homens (Tengarrinha, 1999).
Ainda jovens, por volta dos «trinta anos, estavam velhas. A fábrica dera cabo delas»12 (p. 195). Eram ‘pau’, ou mão para toda a obra, sendo obrigadas a aceitar todos os trabalhos a que as obrigavam patrões e mestres ou mestras (BARBOSA, 1941). Quase sempre eram estes últimos que batiam, assediavam ou ameaçavam, dado que os patrões assumiam uma estratégia paternalista, mediando hierarquicamente a sua disciplina e exploração do trabalho através dos seus gestores13. Mas mesmo assim não se coibiam de despedir diretamente, despindo a sua capa patronal de estilo paternalista e assistencialista14 (DUARTE, 2003) como aconteceu com Cayetano Feu, patrão da fábrica de conservas de peixe Feu Hermanos, ao despedir uma operária por protestos contra o excesso de horas de trabalho, ou com Júdice Fialho, em vários momentos já referidos neste artigo15. Como refere Giddens (2005, p. 99) a «separação entre os possuidores do capital e os gerentes das empresas prova-nos até que ponto o primeiro grupo, que deixa assim de desempenhar um papel direto no processo produtivo, era supérfluo».
12 Descrições contemporâneas destes períodos do desenvolvimento capitalista, dão-nos uma ideia muito clara da vida dos trabalhadores e operários e particularmente das mulheres. Leia-se por exemplo a obra de George Orwell «Na Penúria em Paris e em Londres» (2003), escrita em 1933, sobre a sua experiência romanceada junto dos mendigos e trabalhadores explorados das duas grandes cidades. E ainda Jack London (2002), que no seu livro «O Povo do Abismo», publicado em 1903, retrata de forma sensível e realista a vida e o trabalho dos trabalhadores do East End de Londres, paraíso do capitalismo industrial em desenvolvimento e alfobre de miséria e exploração desmedidas.
13 Os gestores, ou a classe dos gestores, é um conceito introduzido por Bernardo (2009) numa da suas obras de análise marxista «Economia dos Conflitos Sociais», cuja primeira edição é de 1991. Nela apresenta a ideia de gestores enquanto bifurcação da classe capitalista, separando-se esta em duas, a classe burguesa e a classe dos gestores, a primeira definida no âmbito dos seus microcosmos, sendo que a segunda é perspetivada através da sua integração no processo global. Partindo do ponto de vista marxista das classes enquanto sistema de relações sociais e não como elementos estáticos, diz o autor: «Defino os gestores em função do funcionamento das unidades económicas enquanto unidades em relação com o processo global. Ambas são classes capitalistas porque se apropriam da mais-valia e controlam e organizam os processos de trabalho» (p. 218).
14 Diversos trabalhos mostram esta estratégia paternalista e assistencialista, separadamente, mas muitas vezes associadas, como por exemplo na obra de Almeida (2009) sobre o principal patrão da indústria portuguesa, Alfredo da Silva, neste caso assente na análise do chamado ‘discurso escondido’. Ver também Freire (1992) em nota 63 (pp. 147-148). Sobre as origens e os perfis históricos dos patrões da indústria em Portugal será indispensável ler o artigo de Filomena Mónica (1987) sobre capitalistas e industriais, entre 1870-1914.
15 No Arquivo Histórico do Museu Municipal de Portimão, no Fundo Indústria Conserveira/Subfundo Júdice Fialho podemos encontrar uma carta do Consórcio Português de Conservas de Sardinha, delegação de Portimão, datada de 24 de fevereiro de 1936 a pedir esclarecimentos sobre o despedimento da operária MI, sujeita a perseguições do encarregado da fábrica, assunto denunciado pelo Sindicato (doc. 5995). A empresa Júdice Fialho responde em carta de 27 de fevereiro, justificando o despedimento por incumprimento de ordens e defendendo o visado encarregado e o mestre de fabrico e informando de que «nesta fábrica não há o hábito dos encarregados perseguirem os operários, apenas exigem o trabalho bem feito e disciplinado» (doc. 5956). Ambos os documentos encontram-se na caixa 432.
Na conjuntura econômica da última década do século XIX e nas três primeiras décadas do século XX, a indústria conserveira tem sempre taxas de crescimento acima dos 245% e no advento da república já ocupava o terceiro lugar na indústria nacional, quer em número de trabalhadores, quer em produtividade (J. RODRIGUES, 1997). Estes resultados eram alcançados à custa de longas jornadas de trabalho, de trabalho noturno e horas extras não pagas, do trabalho de menores e de salários baixos, num processo de extração de mais-valia, por via do uso de força de trabalho superior ao valor da força de trabalho inserida no produto (MARX, 1974). Para contrabalançar os custos com os salários e quebrar o poder reivindicativo dos soldadores, mulheres e rapazes eram colocados nas máquinas de cravar e de soldar que mecanizaram a indústria, deslaçando a solidariedade e a coesão operárias, muitas vezes abrindo fissuras e confrontos entre categorias de operários (VALENTE, 1981; J. RODRIGUES, 1997).
Neste contexto a resposta operária, espontânea ou organizada, faz-se sentir em Portimão, durante o mesmo período, correspondendo à realidade da luta de classes, quer de forma passiva ou ativa, quer em processos mais reformistas ou de cariz revolucionário (MARX; ENGELS, 1974).
No estudo já referido, Duarte (2003) inventaria em Portimão, no pós-república, um conjunto de protestos operários, de iniciativa operária direta ou liderados pelas correntes anarquista, anarco-sindicalista e comunista. Conhecida já a primeira greve dos soldadores de Portimão, em 1908, podemos referir: i) as greves dos marítimos de 1910-1911, após a regulamentação da lei da greve pelo governo republicano, conhecido como o ‘decreto-burla’ pelos anarquistas16, e que se prolongou por dois meses; ii) a participação na greve geral de 1918, convocada pela União Operária Nacional17, em que participaram conserveiros, gráficos e ferroviários, reprimidos violentamente pelas forças militares, da qual resultaram 10 mortos e muitos feridos. A carestia de vida, o desemprego, as vidas perdidas na primeira grande guerra e a gripe
16 Ver Freire (1992).
17 A UON foi criada no Congresso de Tomar, em 1914, a partir da CECS, Comissão Executiva do Congresso Sindicalista, num momento de predomínio da corrente sindicalista revolucionária e de refluxo da corrente socialista (R. da Costa, 1976). De acordo com Freire (1992) a UON adotou o sistema orgânico federalista do anarquismo de influência francesa, designadamente da CGT (nota 58, p. 218). A partir de 1914 são os anarco-sindicalistas que dominam a liderança, por exemplo nas iniciativas do 1º de maio (Fonseca, 1990).
pneumónica de 1918, combinaram-se num efeito explosivo sem precedentes, em que os «ferroviários quiseram, ali, obrigar os marítimos a não pegar no trabalho, e coagiram os do comércio a encerrar as portas dos estabelecimentos» (DUARTE, 2003); iii) em 1922, os calafates e os operários litográficos do Fialho entram em greve de solidariedade com as 10 operárias que se tinham recusado a trabalhar com as máquinas de cravar lata, trabalho para o qual não se consideravam habilitadas. Apesar da promessa da associação dos patrões de não haver represálias, foram despedidos 155 trabalhadores; iv) o período entre 1923-192618 é de grande crise económica no Algarve, com expressão evidente no centro operário de Portimão. Aqui podemos referir as greves de apoio aos operários corticeiros de Silves que, num protesto prolongado de dois meses, colocaram os seus filhos em casas de trabalhadores de Portimão e de Olhão. Era habitual a articulação de marítimos e corticeiros no processo reivindicativo, dadas as características dos seus processos produtivos e da sua situação nas relações sociais de produção e, neste caso, desenvolveram-se mecanismos e redes de solidariedade entre ambos (J. MADEIRA, 1999); em 1926 ainda se destaca a greve dos cercos de captura de pescado da empresa Júdice Fialho, numa altura de crise económica e de fome.
A partir deste período e com o golpe militar de 28 de maio de 1926 e a implantação da ditadura militar, a repressão abate-se sobre o movimento operário, não só diretamente sobre os protestos, greves e manifestações nas fábricas e nas ruas, mas tentando decapitar lideranças e imprensa operária. Muitos dos líderes operários, anarquistas e comunistas, são perseguidos e presos19 (DUARTE, 2003; VASCONCELOS, 2011). Apesar da conjuntura política desfavorável, são conhecidas várias palestras e comícios, bem como manifestações de rua, como no caso do 1º de maio, nos anos de 1926, 1928 e 1931. Em 1926 um grande comício é convocado pela União de Sindicatos de Portimão, com a presença de líderes operários de Olhão, onde se apela à criação de comissões operárias por todo o Algarve, com vista à representação a enviar a Lisboa.
18 Para o período considerado deve ler-se a comunicação de Vasconcelos (2011), referenciada no final do artigo.
19Entre outros é devida homenagem de destaque ao professor e pedagogo José Negrão Büisel, destacado dirigente anarquista, representante e líder de grande parte das lutas operárias nas primeiras décadas do século XX. Fundou e dirigiu o grupo libertário A Verdade, inscrito na Federação Anarquista do Sul, bem como um jornal libertário com o mesmo nome, que se publicou entre maio e agosto de 1902.
Em 1931 é proibida a manifestação do dia 1 de maio em Portimão, num momento de grave conflito de classes em Portugal, em que a ditadura preparava as traves-mestras20 da sua ideologia corporativa, o que viria a acontecer nos anos de 1933-1934 (R. DA COSTA, 1976; FONSECA, 1990;). A tentativa de greve geral de 18 de janeiro de 193421 é uma resposta contra a política fascista de perseguição e de repressão ao movimento operário e aos trabalhadores de Portugal e suas organizações políticas, sindicais e culturais. Em Portimão criou-se um comitê integrado na organização nacional que incluiu ativistas anarquistas e comunistas, o qual liderou as adesões dos trabalhadores da cidade (sobretudo dos conserveiros), de Silves e de outros locais do Algarve. Para Fonseca (1990) foi o canto do cisne do sindicalismo livre e da autonomia operária em Portugal, pois o «18 de Janeiro de 1934 foi mais o enterro de uma ficção do que a morte de uma realidade» (p. 80). O sindicalismo social-democrata da corrente socialista tinha-se autodissolvido com o fim do Partido Socialista em 1933, enquanto a corrente anarquista resistia já em agonia, sob a perseguição salazarista; entretanto o Partido Comunista defendia a integração dos seus militantes nos sindicatos fascistas.
O regime não perdera tempo e no ano seguinte ao da legislação que criou os sindicatos nacionais, é criado o Sindicato Nacional dos Operários da Indústria de Conservas do Distrito de Faro, com sede em Olhão (1934). Rapidamente, em setembro desse ano, é assinado um acordo entre o sindicato e o Consórcio Português de Conservas de Sardinha, mais tarde plasmado em contrato coletivo, no ano de 1936 (DUARTE, 2003). Concretizava-se assim o sonho da conciliação entre capital e trabalho e do fim das ‘lutas de classe’. Tal como Marx referira, nas conferências de 1847, «dizer que os interesses do capital e os interesses dos operários são os
20 De acordo com R. da Costa (1976, pp. 65-66), as três pedras mestras do fascismo assentavam no seguinte suporte jurídico: Estatuto do Trabalho Nacional (encerramento da CGT/Confederação Geral do Trabalho e fasciszação dos sindicatos; Lei do Condicionamento Industrial (aparentemente não concorrencial, desenvolve os monopólios da grande burguesia); Acto Colonial (controlo político da economia colonial pelo capitalismo monopolista).
21 Não cabe aqui a análise destes acontecimentos, sobre os quais muito se tem escrito. Para além dos escritos de época e do pós-abril 1974, marcados por um necessário pendor ideológico, devemos referir sobretudo o livro de Fátima Patriarca, «Sindicatos contra Salazar. A revolta do 18 de Janeiro de 1934». Para um confronto com esta autora ler os textos de Francisco Martins Rodrigues, principalmente «Mitos do 18 de Janeiro», publicado no jornal Público e postado em: https://franciscomartinsrodrigues.wordpress.com/2017/07/15/mitos-do-18-de-janeiro/#more-4064
Para o Algarve deve ser lida a tese de mestrado de João Vasconcelos (2015), referenciada no final e o texto de João Madeira (1999), ambos sobre a greve geral de 1934 no Algarve.
mesmos significa apenas que o capital e o trabalho assalariado são dois aspetos de uma mesma relação. Um é a consequência do outro…» (1974, p. 34).
O operariado conserveiro passou a ser obrigado a registrar-se no grémio dos industriais através de um livrete, e mais tarde de uma caderneta22, sem o qual não poderia conseguir trabalho, constituindo assim um exército de reserva de produção às ordens do capital, que controlava a sua organização e liderança. Dominada a resistência operária, já seria possível a ‘submissão do trabalho ao capital’, qualificando operários e trabalhadores das conservas em cursos e escolas técnicas e, até mesmo a «participação dos operários, não só nos lucros, mas também na administração das empresas», como defendia Guerra (1945, p. 24), no após-guerra em Matosinhos, centro conserveiro destacado. Na verdade, ao capitalismo industrial das conservas, nunca interessou qualquer tipo de literacia ou de qualificação, pois esse mecanismo encareceria o preço do valor da sua força de trabalho. Como refere Marx (1974, p. 28)
«quanto menos tempo de formação profissional exigir um trabalho, tanto menor será o custo de produção do operário e mais baixo é o preço do seu trabalho, o salário».
Um dos mecanismos estratégicos para controlar e disciplinar o operariado foi a sua arregimentação em bairros operários, ditos ‘econômicos’, sob a capa da assistência ao pobrezinho. Limpos e bem dormidos em casas de alvenaria, com pouco espaço e muito pouco tempo para a reprodução social da descendência produtiva, os soldados do capitalismo podiam dessa forma mostrar o seu contentamento na produtividade explorada na fábrica. Acantonados entre os muros das casas e dos bairros23, dispersavam-se na divisão do trabalho por classe, por género e por idade, pensando sempre que qualquer protesto poria em causa a sua reles habitação.
Assim, e com pompa e circunstância, é inaugurado o primeiro bairro operário nacional destinado aos conserveiros, em Portimão, em 1936. O terreno foi vendido por um preço simbólico pelo seu proprietário, o industrial Feu Marchena, dono da
22 Documentos do Arquivo do Sindicato das Conservas de Portimão.
23 O bairro operário da fábrica S. Francisco da Júdice Fialho, no sítio do Estrumal, onde nasci e vivi até à adolescência, tinha um portão na sua única entrada, aberto e fechado diariamente por um guarda de portão, com casa anexa ao mesmo. Sucessivos vandalismos de jovens filhos de operários, e a necessidade de acelerar a chegada dos trabalhadores à fábrica, que distava 5 minutos a pé, obrigaram à retirada do mesmo.
fábrica Feu, na qual trabalhavam os operários que para lá foram viver, a cinco minutos de distância (DUARTE, 2013). A preços de renda ditos módicos, os operários poderiam aspirar a adquirir uma casinha no fim da vida, se lá chegassem24. Entretanto, estariam sempre atentos e disponíveis para ouvir a sirene da fábrica quando o peixe chegasse a que horas fosse. A inauguração do bairro foi um momento de legitimação da hierarquia disciplinadora do poder: ministros e secretários de estado, industriais e autoridades encabeçaram o cortejo desde o município, à frente dos operários que foram obrigados a comparecer, pois as «fábricas encerraram para que estivessem na recepção aos membros do governo» (p. 141). A doutrinação ideológica do capital mostrou-se na alienação do trabalho: foi um operário que anunciou o nome do bairro, no meio de uma salva de palmas, batizado de Oliveira Salazar, o nome do ditador de Portugal.
O esmero colocado na manipulação ideológica da inauguração do bairro, pode ser entendido pela documentação existente no Museu Municipal de Portimão (Fundo da Indústria Conserveira | Subfundo Júdice Fialho – FIC-SJF). Quatro dias antes da inauguração, uma circular do Grémio dos Industriais informa de que após a inauguração do bairro será distribuída uma refeição de pão, arroz, grão, toucinho e carne a todas as conserveiras e aos homens servido um lanche, para «marcar de uma maneira bem clara o caminho que ao CPCP merece o operariado da indústria de conservas»25; no mesmo dia outra carta do Grémio solicita que a) no domingo26 cada fábrica não labore e esteja embandeirada; e b) que todo o pessoal compareça à recepção do governo… e que se incorpore no cortejo27; na véspera do acontecimento, o Grémio volta a enviar carta a remeter 194 senhas para lanches na esplanada e 175 senhas para o cinema. Solicita que operários e operárias se concentrem junto dos mestres e mestras e ainda que as fábricas apitem dois minutos aquando da chegada do governo à Câmara e três minutos aquando da inauguração do bairro28. Nada foi deixado ao acaso, na ‘organização corporativa’. Para Duarte (2003, p. 142) «constituiu
24 Uma carta do Grémio, de 27 de outubro de 1936, quatro meses depois da inauguração ainda questionava os patrões das fábricas para saber «o número de operários…. que desejam adquirir moradia n’aquele Bairro» (doc. 5934, caixa 7, FIC/SJF).
25 Documento 5967, caixa 7.
26 Afinal percebe-se que o descanso semanal, previsto no contrato coletivo, não era cumprido.
27 Documento 5968, caixa 7.
28 Documento 5969, caixa 7.
um modo de fidelizar os operários às fábricas e aos valores ideológicos do Estado Novo».
Nos anos seguintes, a estratégia de mandar construir bairros, para albergar o operariado que se deslocava, muitas vezes de longe na cidade e arredores e muitas vezes da outra margem do rio, continua com o beneplácito do município (NUNES, 1956). Em 1943 a Câmara manda construir o Bairro do Pontal, «para os pobres do concelho» (p. 46); e em 1950 é inaugurado o Bairro dos Pescadores. Estes três bairros, em conjunto com o Bairro de S. Francisco e o Bairro da fábrica Facho, serviam os patrões das fábricas Feu, Liberdade, Mercantil, Encarnada, São Francisco e Facho, com todo o seu exército de reserva reprodutiva assalariada.
O controlo político do estado novo, assente no poder econômico e financeiro de uma nova burguesia comercial e industrial, e cada vez mais monopolista, aberta aos novos mercados de exploração nas colónias de África, foi-se acentuando até à designada ‘abertura marcelista’, após a morte do ditador Salazar. O complexo social e político dos anos 1960 e 1970, pautados por um conjunto de revoluções sociais e mudanças geopolíticas, vem alterar substancialmente o quadro em Portugal e no Algarve. Sabemos que o desiderato sociológico deste processo dá-se com a revolução do 25 de Abril de 1974. Este momento é, pois, o resultado do quadro de conjunção de todos os momentos de resistência, revolta e organização social, das camadas sociais mais desfavorecidas, em particular do operariado português e algarvio.
Este artigo pretendeu dar um contributo para a compreensão desses muitos momentos que construiram a história dessa luta de classes.
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Recebido em: 25 de outubro de 2018. Aceito em: 23 de janeiro de 2019. Publicado em: 28 de maio de 2019.
v.17, nº 32, jan-abr (2019) ISSN: 1808-799 X
Bruno Gawryszewski2 Guilherme Marques3 Fernanda Lavouras4
O presente artigo tem como objetivo analisar a relação entre economia e educação, a partir da base econômica do estado do Rio de Janeiro e a oferta de educação profissional em instituições de referência no ensino de cursos técnicos. A metodologia de trabalho foi a revisão de literatura de pesquisas que versam sobre as atividades econômicas no estado, a consulta a bancos de dados sobre economia, emprego e renda e as páginas oficiais das instituições de ensino. A conclusão é que a divisão social do trabalho permanece como balizador que estrutura a diversificação de possibilidades formativas.
UN ANÁLISIS DE LAS POSIBLES INTERSECCIONES ENTRE EL SOPORTE ECONÓMICO DE RIO DE JANEIRO Y LA OFERTA DE EDUCACIÓN PROFESIONAL
El presente artículo tiene como meta analizar la relación entre economía y educación a partir del soporte económico de la provincia de Río de Janeiro y la oferta de educación profesional en instituciones de referencia de enseñanza de cursos técnicos. La metodología de trabajo empleada en este análisis fue la revisión de la literatura de investigaciones que versan sobre las actividades económicas en Rio de Janeiro, la consulta en bancos de datos sobre economía, empleo y renta y las páginas web oficiales de los centros de enseñanza. La conclusión es que la división social del trabajo permanece como referencia que estructura la diversificación de posibilidades formativas.
1DOI: https://doi.org/10.22409/tn.17i32.p28310
The present study aims to analyze the connection between Economy and Education from the economic base of the State of Rio de Janeiro and the supply of vocational training in renowned training schools in the vocational teaching courses. The work methodology was the review of research about economic activities in the State, the inquiry of economical databases, employment and income and the official websites of educational institutions. The conclusion is that the social division of labor remains as a marker that structures the diversification of formative possibilities. Keyword: Vocational Training; Economy; Social division of lab
Corriqueiramente, a relação entre economia e educação é difundida como uma relação de causalidade na qual o investimento em educação, enquanto formação de capital humano, conduz a ganhos de produtividade por parte das empresas, gera renda aos trabalhadores e promove o desenvolvimento da nação. Sob o respaldo de inúmeros cases de sucesso empresarial e pesquisas acadêmicas que se dedicam a tal, trata-se de uma fórmula aparentemente inequívoca da tese da teoria do capital humano.
No entanto, o presente artigo apresenta a compreensão da relação entre economia e educação de modo inverso. Direcionamos o olhar a partir da economia para tentar compreender a materialidade da educação. A análise a ser executada compõe parte do desenvolvimento de uma pesquisa que tem como objetivo geral compreender a formação da força de trabalho no estado do Rio de Janeiro, particularizando como objeto analítico a educação profissional, tanto em relação aos cursos técnicos de nível médio quanto os cursos de qualificação profissional.
Isto posto, examinamos a base econômica do estado do Rio de Janeiro e a oferta de educação profissional em instituições de referência e redes de ensino no estado. As instituições e redes de referência postas em relevo foram o Centro Federal de Educação Tecnológica (CEFET-RJ), o Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ), o Instituto Federal Fluminense (IFF), as escolas da Secretaria Estadual de Educação (SEEDUC-RJ), a Fundação de Apoio à Escola Técnica (FAETEC), o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI-RJ) e o Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (SENAC-RJ).
A metodologia de trabalho empregada foi a revisão de literatura de pesquisas que versam sobre as atividades econômicas do estado, a consulta a bancos de dados
de instituições estatais e a coleta de dados específica da educação profissional. No que tange ao último procedimento, realizamos minuciosa busca nos sites oficiais das referidas instituições e redes de ensino, sob propósito de identificar a oferta de cursos de educação profissional. Essa identificação pode ser realizada tanto pelos informativos das páginas oficiais quanto pelos editais de seleção e abertura de inscrições. Como as informações disponíveis acerca dos cursos e sua continuidade eram imprecisas, em especial aquelas dos cursos de qualificação profissional de curtíssima duração, criamos uma planilha em que separamos os cursos técnicos de nível médio e os de qualificação profissional, alimentando com informações mais cruciais como tipo de oferta, município, matrículas de ingresso, dentre outras, embora não tenha sido possível expor aqui os dados em sua integralidade.
O percurso traçado para realizarmos nosso intento compreende, primeiramente, numa exposição sobre a constituição econômica do estado do Rio de Janeiro e seu passado recente de apogeu em virtude da realização dos megaeventos esportivos e da intensificação da exploração do petróleo em suas fronteiras e posterior queda brutal de receitas e todo tipo de indicador socioeconômico. A seguir, aproximamo-nos mais propriamente do objeto analítico. No primeiro momento, apresentam-se algumas das bases normativas que regulam o funcionamento da educação profissional, em especial às legislações que definem como essa modalidade de ensino pode ser ofertada. Posteriormente, dedicamo-nos brevemente a expor sobre as instituições e redes de ensino pesquisadas. Na última seção, a pesquisa empírica em si, através da exposição dos dados e análise dos seus sentidos formativos.
O estado do Rio de Janeiro está situado na Região Sudeste do Brasil. É composto por 92 municípios e tem área de 43.781,588 km², à frente apenas de Sergipe e Alagoas, em termos de extensão territorial. Contudo, possui alta densidade demográfica, pois apresenta a terceira maior população entre os estados brasileiros, cuja estimativa para o ano de 2017, indicava 16.718.956 habitantes.
Ao longo do século XX, o estado do Rio de Janeiro gradativamente perdeu a hegemonia econômica para São Paulo. A condição de capital do país entre 1763 e
1960 proporcionou simultaneamente uma concentração de recursos relacionados ao desenvolvimento, sobretudo de empreendimentos industriais na própria cidade, sem a dinamização de polos no interior do estado, ao contrário de São Paulo que articulou um padrão de desenvolvimento entre as atividades econômicas da capital e os diversos centros regionais. Apesar disso, o território fluminense foi escolhido para sediar empresas estatais estratégicas, como a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) em Volta Redonda, Refinaria de Duque de Caxias (REDUC), a Petrobrás S.A e Furnas Centrais Elétricas. Embora algumas empresas que foram alocadas no interior do estado ou na periferia da Região Metropolitana (RMRJ) até tenham produzido algum grau de dinamismo na economia, não havia um tecido produtivo capaz de impulsionar um amplo desenvolvimento regional (GRUPO THESE, 2015).
Entre 1960 e 1975, o município do Rio de Janeiro, após perder a condição de capital nacional, foi considerado desmembrado do resto do estado, assumindo a posição de estado da Guanabara. Tal processo favoreceu que, na própria RMRJ, que concentra 71% do Produto Interno Bruto (PIB) estadual e que tem a maior pujança econômica, esta seja composta, por exemplo, por municípios como Japeri, Belford Roxo e Nilópolis, que recebem a classificação pejorativa de “cidades-dormitório”, por conta do processo associado aos deslocamentos que os seus moradores têm de fazer cotidianamente de suas residências para trabalhar em outras cidades, geralmente localizados nos mais densos centros urbanos, caracterizando uma mobilidade pendular.
De acordo com dados oficiais do IBGE, o PIB fluminense em 2017 totalizou R$ 623,8 bilhões, o que significou variação negativa de 2,2%, enquanto que o nacional registrou crescimento de 1,0%. Sendo assim, o estado respondeu em 2017 por 9,5% do PIB do país, com renda per capita de R$ 37.314. Em comparação a 2011, o PIB do estado atingiu um volume maior em R$ 161 bilhões (R$462,4 bilhões em 2011). No entanto, desde 2014, quando atingiu o pico de R$ 671 bilhões, o PIB vem caindo sucessivamente e, sobretudo, perdendo sua participação em relação ao PIB nacional, conforme mostra a figura (CEPERJ, 2018; Banco Central do Brasil, 2014).
Fonte: CEPERJ, 2018.
Levando em conta dados provenientes de 2015, cinco municípios respondem por dois terços do PIB do estado: Rio de Janeiro (48,7%); Duque de Caxias (5,3%); Campos dos Goytacazes (5,2%); Niterói (3,9%) e Macaé (3,2%). A participação do interior de 2014 para 2015 passou de 55,3% para 51,3%, registrando decréscimo de 4,0 p.p. Um decréscimo acentuado foi o de Campos dos Goytacazes que tinha participação de 8,6% em 2014 e respondia pelo segundo maior PIB fluminense, mas perdeu mais de 3% em um ano (CEPERJ, 2017).
Com relação às regiões de governo, a classificação por ordem de participação econômica é: Região Metropolitana (71,7%); Região Norte Fluminense (10,3%); Região das Baixadas Litorâneas (4,8%); Região do Médio Paraíba (5,2%); Região Serrana (3,7%); Região da Costa Verde (2,1%); Região Centro-Sul Fluminense (1,2%); e Região Noroeste Fluminense (1,1%) (CEPERJ, 2017).
A composição do PIB em 2017 registra uma amplíssima maior participação do setor de serviços com 76,2%, com destaque em ordem de importância para os subsetores de administração, saúde e educação e seguridade social (19,87%); comércio e reparação e manutenção de veículos automotores e motocicletas (10,65%); atividades profissionais, científicas e técnicas (9,96%); atividades imobiliárias (9,44%), dentre outros (CEPERJ, 2017). Em 2012, a participação do setor
de serviços representava 67,38%, ou seja, ocorreu uma alta de quase 9% em cinco anos.
A alta do setor de serviços está proporcional ao declínio de igual valor da atividade industrial fluminense, esta responsável por 23,3% do PIB Estadual e composta por atividades da indústria extrativa mineral, especialmente pela produção de petróleo e gás natural, a indústria de transformação, a construção civil e a produção de eletricidade, gás e água. Por fim, o setor agropecuário, que registra participação marginal, não excedendo a média de 0,5% (CEPERJ, 2018; Banco Central do Brasil, 2014).
A crise que caracteriza o período iniciado em 2015 (e ainda não superada) teve como antecedente um aporte substancial de capitais internos e externos e a convergência de políticas expansionistas executadas nas três esferas de governo, a fim de impulsionar a iniciativa privada, tal como ocorrera com o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e pela volumosa participação dos bancos públicos em empréstimos ou participação acionária na compra de ativos de empresas de grande porte (especialmente através do BNDES). Dentre as diversas iniciativas, destacou-se um cenário de tentativa de estímulo às atividades econômicas ligadas a siderurgia, petroquímica, naval e de logística, favorecidos ainda pela captação de sediar megaeventos de toda natureza, sobretudo esportiva5.
O estímulo a todas essas atividades tinha como principais interessados as frações burguesas locais, especialmente organizadas em torno da Federação das Indústrias do Rio de Janeiro (FIRJAN). Tais ações indicavam que a pretensão seria fazer do estado do Rio de Janeiro um núcleo de transformação e exportação de commodities e, mais especificamente, a cidade do Rio de Janeiro como um centro especializado em serviços de alto valor agregado (turismo, grandes eventos, inovação) (MESENTIER, s/d).
4Trata-se da inversão de um ditado popular que é inspirado no salmo 126 da Bíblia que é coloquialmente conhecido como “Depois da tempestade, vem a bonança”.
5 Alguns exemplos - Megaeventos esportivos: Jogos Pan-Americanos em 2007, Jogos Mundiais Militares em 2011, Copa do Mundo em 2014, Jogos Olímpicos em 2016. Religiosos: Jornada Mundial da Juventude em 2013.
Tratava-se de um período de bonança que perdurou do primeiro mandato de Sérgio Cabral Filho como governador até o penúltimo ano do segundo mandato (2007- 2013). Nesse lastro de tempo, o estado passou a ostentar o “título” de lugar com maior concentração territorial em investimentos no mundo e, dando conta que, em 2013, estes chegaram ao ápice de R$ 110 bilhões, englobando a esfera estatal e privada e que a economia fluminense crescia a passos acima da média nacional (CALEIRO, 2014).
O irrompimento dos protestos das Jornadas de junho contra os megaeventos esportivos e o aumento das passagens de ônibus mais a greve unificada das redes municipal e estadual de ensino em 2013 anunciaram o fim do pacto social que arrefeceu as massas populares por pelo menos 10 anos. Sérgio Cabral foi duramente atingido em sua carreira política e, além de não ter se candidatado a nenhum cargo em 2014, está preso e condenado por lavagem de dinheiro a 183 anos de cadeia em sete processos. Seu sucessor, o então vice-governador, Luiz Fernando Pezão, foi eleito para o mandato no quadriênio 2015-2018, mas, às vésperas de encerrar seu mandato como governador, também foi preso em ação da Operação Lava-Jato, embora ainda não condenado.
Desde 2015, os salários dos servidores estaduais têm sido pagos no décimo dia útil do mês e, não poucas vezes, foram pagos com atraso de mais de um mês, especialmente aos aposentados e pensionistas. Essa situação levou a que não apenas os próprios servidores, mas a sociedade em geral, protagonizasse fortes mobilizações de rua em 2016 e 2017.
Em setembro de 2017 foi firmado o Plano de Recuperação Fiscal entre o governo estadual e a União. Este estabeleceu que o estado do Rio de Janeiro suspendesse até setembro de 2020 o pagamento de sua dívida com a União e reduzisse a manutenção e funcionamento do próprio aparelho de Estado, implementando medidas como limites ainda mais rígidos para o crescimento de despesas obrigatórias, a elevação da contribuição previdenciária dos servidores, a instituição de previdência complementar e a perspectiva de futura privatização da Companhia Estadual de Águas e Esgoto (CEDAE).
As razões da crise financeira que se abateu sobre o estado são complexas e controversas. Um dos componentes foi a extensa benesse de renúncias fiscais por parte do governo estadual para empresas privadas que, segundo cálculos do Tribunal
de Contas do Estado, totalizaram R$ 218 bilhões entre 2007 e 2016. Pela contabilidade da Secretaria de Fazenda do governo, a renúncia efetiva foi de “apenas” de R$ 56 bilhões, pois a redução do montante de imposto de uma empresa seria compensada pelo aumento da arrecadação de imposto em etapa posterior6 (BARREIRA, 2017).
Embora seja trágica a desoneração na cobrança de impostos, é factível que haja fatores mais complexos e que não explique a crise somente pelas desonerações fiscais ou como um problema de gastança com despesas primárias, conforme as versões mais difundidas pela grande imprensa. Em contraposição a essa versão, Sobral (2017) mostra que a abrupta queda de receitas primárias em 2016 totalizou um terço a menos do que o arrecadado em 2014, a ponto de chegar ao menor patamar desde 2003.
Fonte: Sobral, 2017.
Para o referido autor, as razões estão atreladas ao que este denomina como "estrutura produtiva oca” (SOBRAL, 2017, p.7), que só possui competitividade em determinados segmentos. Defende o autor que se trata de efeito de um processo que
6 As empresas que tiveram as maiores isenções foram a Petrobrás (R$ 4,4 bilhões), a CP-RJ Implantes Especializados, empresa do ramo de produtos médico-hospitalares para procedimentos cirúrgicos (R$ 3,8 bilhões), GE Celma, empresa de motores e turbinas aeronáuticas (R$ 925 milhões), a siderúrgica Thyssenkrupp CSA (R$ 683 milhões) e distribuidora de energia Ampla (R$ 669 milhões).
tem se acentuado de perda da diversificação da base industrial no estado e que, consequentemente, reverbera em perdas na arrecadação tributária, que era antes ocultada pela renda obtida pela indústria extrativa de petróleo e gás. Este processo tem levado a um estreitamento do cardápio exportador do estado, que, baseando-se fortemente na extração de petróleo, leva a um padrão de acumulação que pode estar corroendo sua base produtiva e que se permanecer especializada em alguns nichos com pouco adensamento produtivo, é tendência que haja a perda de valor agregado. Os efeitos da crise econômica se manifestaram fortemente nas variáveis de emprego e renda da população, conforme mostrou a Pesquisa Nacional de Amostra de Domicílio Contínua (PNADC) do IBGE do primeiro trimestre de 2018. A taxa de desocupação no estado tinha aproximadamente 1,287 milhão de pessoas que não dispunha de emprego e procuravam por um. A desocupação apresentou trajetória linear de crescimento desde o quarto trimestre de 2014 (quando bateu o valor mínimo de 5,8%) e, em 2017, ultrapassou a casa de 15%, mantendo-se assim até o período
da pesquisa (IBGE, 2018).
A intensificação da crise no mundo do trabalho é evidenciada com o indicador da taxa de subutilização da força de trabalho7. Ao levar tal indicador em consideração, o estado do Rio de Janeiro tinha um contingente de 1,662 milhão de pessoas em subutilização, o que equivale a taxa de 19% da força de trabalho (IBGE, 2018).
Possivelmente como consequência dos números acima seja o fato de que o número de trabalhadores no setor privado com carteira assinada tem apresentado trajetória linear de decréscimo (do seu pico no 3º trimestre de 2015 com 3,363 milhões para 2,871 milhões), enquanto o quantitativo de pessoas ocupadas por conta própria aumentou em meio milhão do 1º trimestre de 2012 ao mesmo período de 2018 (IBGE, 2018).
A condição de declínio no emprego da força de trabalho se refletiu diretamente na sua remuneração. O padrão observado em todos os grupamentos por atividade apresenta uma trajetória de ganhos salariais médios entre 2012 e 2015 e, a partir de então, uma estagnação ou retração nos rendimentos recebidos, em alguns casos em níveis salariais abaixo da média em 2012, como o setor de agricultura e pecuária
7 Este indicador é composto pela população desocupada, pelos subocupados por insuficiência de horas trabalhadas (que trabalhavam menos de 40 horas semanais e gostariam de trabalhar mais horas) e pela força de trabalho potencial (conjunto de pessoas com mais de 14 anos nem ocupadas nem desocupadas, mas que realizaram busca efetiva por trabalho ou estavam disponíveis para tal).
(decréscimo de R$ 1.469 para R$ 1.273), construção civil (R$ 1.718 para R$ 1.606), transporte, armazenagem e correio (R$ 2.283 para R$ 2.046) e alojamento e alimentação (R$ 1.611 para R$ 1.497) (IBGE, 2018).
Portanto, diante do cenário apresentado, qual seria o papel que a Educação Profissional teria a desempenhar?
Quando nos referirmos à educação profissional, primeiramente nos parece elucidativo remeter ao capítulo III da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), denominado originalmente como “Da Educação Profissional”. O capítulo compreende os artigos 39 a 42 e convergem diferentes níveis e modalidades de educação profissional e tecnológica8. Sua estruturação abrange cursos em três níveis de complexidade: a formação inicial e continuada, que será denominada no presente artigo como qualificação profissional; a Educação Profissional Técnica de Nível Médio; e a Educação Profissional Tecnológica de graduação e pós-graduação.
A Educação Profissional Tecnológica de graduação e pós-graduação é oferecida somente a quem tenha concluído o ensino médio e tem normas que regulamentam a sua carga horária, objetivos e demais especificidades, a partir dos setores e áreas de atividade econômica.
A formação inicial e continuada é oferecida em articulação com a educação de jovens e adultos e tem como objetivo a elevação da qualificação do trabalhador, embora sua certificação não confira uma titulação que lhe permita ascender na escolarização regular. Tal prerrogativa faz da formação inicial e continuada livre de regulamentação curricular por se tratar de uma modalidade educativa não-formal (CARNEIRO, 2015).
Já a Educação Profissional Técnica de Nível Médio pode ser oferecida por meio de três formas: integrada, concomitante e subsequente. A primeira abrange aqueles alunos que estejam com a mesma matrícula na mesma instituição, tanto no ensino médio quanto no profissional e com currículo integrado. A segunda forma trata daquele aluno que cursa ambos os níveis de ensino ao mesmo tempo, em instituições
8 Para efeitos do presente texto, a modalidade será referida apenas como educação profissional.
diferentes ou na mesma instituição, mas com matrícula diferente, sem integração do curso. A terceira diz respeito aos estudantes que cursam a Educação Profissional, mas já tenham concluído o ensino médio.
Com relação às instituições presentes no universo da pesquisa, apresentamos brevemente cada uma delas:
Centro Federal de Educação Tecnológica (CEFET-RJ): criada em 1917, dispõe do seu histórico campus no bairro do Maracanã, na capital fluminense, além dos campi Maria da Graça (o único também na capital) e nos municípios de Angra dos Reis, Itaguaí, Nova Friburgo, Nova Iguaçu, Petrópolis e Valença.
Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ): criado pela lei nº 11.892/2008, que instituiu a Rede Federal de Educação, Ciência e Tecnologia, a sede da reitoria se localiza no município do Rio de Janeiro. Na capital do estado, um campus se localiza no bairro do Maracanã e outro no bairro de Realengo, em uma antiga unidade de expansão do CEFET Química. Os demais campi se localizam nos municípios de Arraial do Cabo, Belford Roxo, Duque de Caxias, Engenheiro Paulo de Frontin, Mesquita, Nilópolis, Paracambi, Pinheiral, Resende, São Gonçalo, São João de Meriti.
Instituto Federal Fluminense (IFF): a origem do IFF remonta o decreto nº 7566 de 1909, que determinou a criação de 19 escolas de aprendizes artífices nas capitais dos estados brasileiros e em Campos dos Goytacazes (cidade natal do então presidente Nilo Peçanha) e que passou a funcionar em 1910. Assim como o IFRJ, sua caracterização como instituição própria foi através do aproveitamento de escolas já existentes ligadas ao CEFET-RJ. Atualmente o IFF dispõe de dois campi no município de Campos dos Goytacazes e em Bom Jesus do Itabapoana, Cabo Frio, Cambuci, Itaboraí, Itaperuna, Macaé, Maricá, Quissamã, São João da Barra e Santo Antônio de Pádua.
o outrora denominado Dupla Escola9 (atualmente designado como Ensino Médio integrado à Educação Profissional) – programa que funciona em 15 escolas sob regime de gestão compartilhada com empresas privadas. A partir de 2017, outra ação que teve início foi o Ensino Médio em Tempo Integral com ênfase em empreendedorismo aplicado ao mundo do trabalho10 (a partir daqui EMTI empreendedorismo) – em que os professores são capacitados pelo Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) e o Instituto Ayrton Senna. Inicialmente o projeto abrangeu 37 escolas por todo o estado. Contudo, em dois anos, ocorreu um crescimento exponencial e, conforme já organizado pela Secretaria, 151 escolas estarão cobertas pelo projeto. Não há produções acadêmicas específicas e as informações contidas no site oficial da SEEDUC são bastante imprecisas, mas ao que consta na matéria de 05 de novembro de 2018 no portal oficial, os concluintes dos cursos dessas escolas receberão diploma de curso técnico em Administração com automático recebimento do registro profissional do Conselho Regional de Administração11.
9 O programa foi iniciado em 2008 entre a SEEDUC e o Instituto Oi Futuro. Posteriormente, a Secretaria de Educação firmou convênios com outras empresas como a CCPL, Grupo Pão de Açúcar, Nissan, TKCSA e o programa foi definitivamente consolidado em 2012. Cf aprofundamento sobre o programa em Pereira (2014).
10O projeto, além do apoio técnico do Instituto Ayrton Senna e do Sebrae, recebe recursos suplementares dos programas do governo federal Ensino Médio Inovador e do Programa de Fomento à Implementação de Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral. Cf. discussão em Gawryszewski (2018).
11 Disponível em <http://www.rj.gov.br/web/seeduc/exibeconteudo?article-id=9098717>.
profissionais para exercerem ocupações em teatro e carnaval; e as Faculdades de Educação Tecnológica do Estado do Rio de Janeiro (Faeterjs), que formam profissionais para análise e desenvolvimento de sistemas em nível de graduação tecnológica.
De acordo com os micro dados do Censo Escolar da Educação Básica de 2016, a oferta da educação profissional no estado do Rio de Janeiro perfazia um total de
168.328 matrículas, o que significa 12.308 matrículas a menos do que em 2015 (INEP, 2017).
No caso das instituições de ensino federais, a oferta é composta por instituições da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica. Neste caso, citamos o CEFET-RJ, os Institutos Federais (IFRJ e IFF) e o Colégio Pedro II; a Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, unidade de ensino da Fundação Oswaldo Cruz, mas que não compõe a Rede Federal; e as escolas vinculadas às Forças Armadas, como a Fundação Osório e o Colégio Brigadeiro Newton Braga.
No âmbito da rede pública estadual, a oferta da educação profissional está principalmente a cargo de duas secretarias distintas12 e outra sob responsabilidade da Fundação de Apoio à Escola Técnica (FAETEC), vinculada à Secretaria de Estado de Ciência e Tecnologia. A distinção entre secretarias implica que na mesma esfera de governo, por estarem estruturados à parte, o processo seletivo e de matrícula para os cursos técnicos da rede FAETEC não se integram às da SEEDUC. Assim, as instituições de ensino vinculadas à SEEDUC e que funcionam com apoio de empresas privadas ou recebem verbas suplementares do governo federal, atualmente têm disponível uma situação orçamentária e de infraestrutura material mais aliviada com o que se espera de um curso técnico em comparação às instituições vinculadas à FAETEC, que dependem exclusivamente do orçamento do governo estadual e que há tempos tem padecido gravíssimos problemas na manutenção e desenvolvimento das suas atividades13.
Dentre as instituições privadas do Rio de Janeiro, constata-se a volumosa participação nessa modalidade de ensino. Do total de 168.328 matrículas no estado, registram-se 101.299 matrículas nas instituições privadas, 60,18% da oferta total (INEP, 2017). Ressalte-se que essas instituições, apesar de sua natureza jurídica privada, têm peculiaridades entre si e podem ser mais bem qualificadas se forem levados em conta aspectos, tais como se a instituição está registrada como com ou sem fins lucrativos, se é uma escola privada isolada ou se compõe uma rede de unidades (como aquelas do Sistema S – SENAI, SENAC, SENAT...)14.
Começaremos a exposição da empiria pela frequência absoluta de cursos técnicos de nível médio das referidas instituições. Conforme pode ser constatado na tabela 1, os cursos técnicos das escolas vinculadas à SEEDUC-RJ estão na liderança entre as instituições pesquisadas. É preciso ressaltar que essa preponderância se deve inexoravelmente às 151 escolas que estão cobertas pelo projeto EMTI empreendedorismo, que conferem aos concluintes o diploma de curso técnico em Administração. Os autores do presente texto desconhecem pesquisas consistentes que tratem da referida ação da SEEDUC. No entanto, entendemos que há um campo
12Há o caso isolado da Escola de Música Villa Lobos, que oferece cursos de formação profissional e livres na área de música, está vinculada à Secretaria de Cultura.
13 Para relato sobre a Faetec, cf. reportagem em Alfano (2017).
14Há um contingente residual, menos de 3% das matrículas de educação profissional, em instituições de ensino municipais, especialmente cursos ligados ao Projovem Urbano, que promove educação profissional integrada ao ensino fundamental e cursos técnicos na oferta subsequente ao ensino médio.
aberto para autores (sobretudo através de pesquisas de campo) compreenderem como estão se efetivando esses cursos.
A seguir, aparece a FAETEC como a segunda instituição com mais cursos, que embora esteja presente em mais da metade dos municípios do estado, significativa quantidade desses municípios cobertos, somente dispõem de cursos de qualificação profissional. O SENAC-RJ tem de uma quantidade de cursos técnicos de nível médio bastante superior ao seu semelhante industrial e, igualmente, o IFF em relação ao IFRJ, o que atesta sua notória importância em levar essa modalidade educacional para além das fronteiras da Região Metropolitana do estado.
Por fim, salientamos que a tabela não tem por finalidade emitir um juízo de valor sobre abrangência, até porque não nos parece razoável comparar redes com unidades escolares (casos da SEEDUC-RJ, FAETEC, SENAC-RJ, SENAI-RJ) com instituições isoladas, mesmo que essas disponham de diversos campi e/ou unidades descentralizadas (casos do CEFET-RJ, IFF e IFRJ).
INSTITUIÇÃO | QUANTIDADE DE CURSOS |
SEEDUC-RJ | 169 |
FAETEC | 141 |
SENAC-RJ | 85 |
IFF | 76 |
IFRJ | 45 |
SENAI-RJ | 43 |
CEFET-RJ | 41 |
Total | 603 |
Fonte: Elaboração própria
A tabela 2 põe em relevo a frequência absoluta dos cursos técnicos de nível médio nos municípios que têm maior oferta no estado. Conforme pode ser conferido, o município do Rio de Janeiro concentra em torno de 30% dos cursos. Embora não reflita na mesma proporção o volume do PIB do estado (48,7%), ainda assim é nítida a preponderância da capital fluminense perante aos demais 91 municípios. Considerando os cinco primeiros, quatro deles integram a RMRJ, e a única exceção é Campos dos Goytacazes, localizado no Norte Fluminense. Essa situação
caracteriza o que alguns autores denominam como macrocefalia metropolitana por conta da concentração populacional, na geração de valor e nos postos de trabalho (NATAL, 2005; SILVA, 2012 apud MEDEIROS JUNIOR, 2015).
MUNÍCIPIOS | QUANTIDADE DE CURSOS |
RIO DE JANEIRO | 184 |
CAMPOS DOS GOYTACAZES | 44 |
DUQUE DE CAXIAS | 31 |
NOVA IGUAÇU | 31 |
NITERÓI | 26 |
OUTROS MUNICÍPIOS | 287 |
Total | 603 |
Fonte: Elaboração própria
A tabela 3 expõe que o curso técnico em Administração, por conta do referido projeto EMTI empreendedorismo, é disparado aquele com maior oferta levando em consideração as instituições do universo da pesquisa. Não fosse a ação, o curso técnico mais ofertado seria o de Informática, presente nas sete instituições e, a seguir como o terceiro mais ofertado, o curso técnico em Mecânica.
CURSO | QUANTIDADE DE CURSOS |
ADMINISTRAÇÃO | 188 |
INFORMÁTICA15 | 39 |
MECÂNICA | 25 |
ELETROTÉCNICA | 24 |
SEGURANÇA DO TRABALHO | 24 |
LOGÍSTICA | 21 |
EDIFICAÇÕES | 19 |
ENFERMAGEM | 17 |
AUTOMAÇÃO INDUSTRIAL | 16 |
ELETRÔNICA | 16 |
15Foram apenas considerados aqueles cursos com a nomenclatura “Técnico em Informática”, embora tenham sido encontrados cursos derivados da informática, como “Suporte e manutenção em Informática”, “Informática para Internet” e “Redes de computadores”.
Fonte: Elaboração própria
A tabela 4 representa uma síntese das duas anteriores, pois inclui as variáveis dos municípios e os cursos ofertados. Nesse caso, é possível constatar que o curso técnico em Administração é o mais ofertado em todos os cinco municípios arrolados. Com exceção do Rio de Janeiro, devido à sua substancial concentração de cursos, há uma oferta mais diversificada em comparação aos demais, embora praticamente todos os citados na tabela abaixo componham a listagem da tabela anterior. Já nos demais municípios, excluindo Niterói, há uma ampla diferença na oferta do curso de Administração em relação aos demais (considerando a quantidade de cursos), inflado por conta do EMTI empreendedorismo.
MUNÍCIPIOS | CURSOS | QUANTIDADE |
RIO DE JANEIRO | ADMINISTRAÇÃO | 27 |
INFORMÁTICA | 17 | |
ENFERMAGEM | 9 | |
ELETRÔNICA | ||
ELETROTÉCNICA | ||
MECÂNICA | ||
EDIFICAÇÕES | 7 | |
LOGÍSTICA | 6 | |
TELECOMUNICAÇÕES | ||
MUNÍCIPIO | CURSOS | QUANTIDADE |
CAMPOS DOS GOYTACAZES | ADMINISTRAÇÃO | 8 |
MEIO AMBIENTE | 3 | |
ENFERMAGEM | ||
INFORMÁTICA | ||
ELETROMECÂNICA | ||
MECÂNICA | ||
ELETROTÉCNICA | ||
MUNÍCIPIOS | CURSOS | QUANTIDADE |
DUQUE DE CAXIAS | ADMINISTRAÇÃO | 8 |
SEGURANÇA DO TRABALHO | 3 | |
LOGÍSTICA | 2 | |
QUALIDADE | ||
PETRÓLEO E GÁS | ||
PLÁSTICO | ||
MUNÍCIPIOS | CURSOS | QUANTIDADE |
NOVA IGUAÇU | ADMINISTRAÇÃO | 13 |
ELETROTÉCNICA | 3 | |
EDIFICAÇÕES | 2 | |
ELETRÔNICA | ||
ESTÉTICA | ||
INFORMÁTICA | ||
LOGÍSTICA | ||
MUNÍCIPIOS | CURSOS | QUANTIDADE |
NITERÓI | ADMINISTRAÇÃO | 4 |
ELETROTÉCNICA | 3 | |
CONSTRUÇÃO NAVAL | 2 | |
EDIFICAÇÕES | ||
ELETRÔNICA | ||
MANUTENÇÃO DE MÁQUINAS NAVAIS |
Fonte: Elaboração própria.
Apresentamos uma síntese da oferta dos cursos técnicos, comparando a oferta de cursos técnicos de nível médio e cursos de qualificação profissional das instituições e redes cobertas pela pesquisa. Conforme pode ser constatado na tabela 5, há uma larga predominância dos cursos de qualificação profissional.
Nas instituições pesquisadas, encontramos cursos que têm carga horária de oito horas, tais como o curso básico de segurança no trabalho em altura, no SENAI- RJ de Nova Friburgo e de atualização na operação de empilhadeiras, ofertado pelo SENAI-RJ Vicente de Carvalho (município do Rio de Janeiro). A maior carga horária identificada foi de 800 horas, referente ao curso de chef executivo de cozinha, nos SENAC-RJ Barra da Tijuca e Campo Grande (ambos na capital), que, por sinal, apesar de ser um curso de qualificação profissional, tem carga horária semelhante a de um curso técnico de nível médio.
CURSOS TÉCNICOS DE NÍVEL MÉDIO | QUALIFICAÇÃO PROFISSIONAL |
603 | 1471 |
Fonte: Elaboração própria.
Por se tratar de cursos livres e sem diretriz específica para seu funcionamento, torna-se despropositado pensá-los sob um prisma uniforme. Há níveis de complexidade significativos, na medida em que variam de um aperfeiçoamento vinculado a uma ocupação (por exemplo, o curso de organização de festas infantis
pelo SENAC-RJ Nova Iguaçu) ou a uma competência pessoal (citamos o curso de endomarketing pelo SENAC-RJ, ministrado a distância), até cursos vinculados a uma aprendizagem mais extensa (como os cursos de idiomas oferecidos pelas instituições, que têm duração de pelo menos 120 horas) ou da aprendizagem de um ofício ou um serviço (web designer, maquiador, pizzaiolo, operador de áudio, dentre inúmeros outros).
INSTITUIÇÃO | QUANTIDADE DE CURSOS |
SENAC-RJ | 676 |
FAETEC | 511 |
SENAI-RJ | 229 |
IFRJ | 47 |
SEEDUC-RJ | 8 |
Total | 1471 |
Fonte: Elaboração própria
Complementando a tabela anterior, na tabela 6 decompusemos o total da oferta dos cursos de qualificação profissional dentre as instituições pesquisadas. É possível verificar que o SENAC-RJ e a FAETEC concentram 80% dos cursos. No caso específico da FAETEC, a partir de 2000, sob mandato do então governador Anthony Garotinho, foram criados os Centros de Educação Tecnológica e Profissionalizante (Ceteps), que desde sempre se caracterizaram pela preponderância da formação por meio de cursos de qualificação profissional, sobretudo levando em conta que, naquele contexto histórico vigorava o decreto federal nº 2.208/1997, que serviu como balizamento para uma série de iniciativas que priorizavam a formação básica para iniciantes ou para trabalhadores em serviço, como o Plano Nacional de Qualificação do Trabalhador (PLANFOR). Essa direção de maior expansão dos cursos de qualificação profissional em comparação aos técnicos de nível médio também foi a tônica dos mandatos no governo estadual por parte de Rosinha Garotinho e Sérgio Cabral (Farias, 2016).
Examinando de forma agregada as seis tabelas apresentadas, queremos propor algumas sínteses no sentido de compreender a relação entre a economia fluminense e os cursos técnicos. Primeiramente, foi possível perceber uma significativa heterogeneidade no que tange à oferta de cursos técnicos, pois existem diversos percursos formativos possíveis. A elevada quantidade de cursos de qualificação profissional, especialmente aqueles que têm rapidíssima duração, não nos deixa esquecer que, se por um lado essa formação aligeirada pode representar uma perspectiva imediata àqueles que precisam vender a sua força de trabalho a um preço um pouco melhor, pode também significar o lugar que se espera desse indivíduo mais desprovido de condição de subsistência. Considerando que a oferta de cursos técnicos historicamente foi justificada por um caráter de assistencialismo, preventivo e restaurativo para a classe trabalhadora, sobretudo a mais pobre, possivelmente um viés formativo que se paute pela rapidez e pelo pragmatismo (em nome dos pobres), possa estar cumprindo essencialmente, conforme formula Rummert, Algebaile e Ventura16 (2013, p. 732) “funções de acomodação social e econômica de uma força de trabalho para a qual inserção laboral não está prevista.” e que incidem na categorização dos segmentos sociais que são identificados como de “vulnerabilidade e risco social” (RUMMERT; ALGEBAILE; VENTURA, 2013, p.733).
Além do mais, mesmo entre os cursos técnicos de nível médio, há diferentes condições para que essa oferta se materialize como tal. Importa mencionar que a formação técnica de nível médio pressupõe o acesso à escolarização como precípua condição. Levando em conta que a formação técnica em nível médio não é entendida como direito público subjetivo, logo sua oferta não implica na obrigatoriedade de ser provida a todos que a desejarem. Portanto, a venda do serviço educacional privado se apresenta como alternativa àqueles que não ingressarem em uma instituição mantida pelo Estado, o que, por óbvio, gera mais uma barreira a uma parcela da população.
As instituições do Sistema S se mantêm com os polpudos repasses oriundos do governo federal. Embora estejam obrigadas a reservar uma parcela de suas vagas para matrículas gratuitas, a maioria dos seus cursos são pagos. No caso das redes estaduais cobertas pela pesquisa (SEEDUC-RJ e FAETEC), a primeira, embora
16Ressaltamos que o texto das autoras mencionadas não trata especificamente da educação profissional, mas da educação da classe trabalhadora como um todo.
disponha de verbas públicas, têm firmado uma série de contratos de parceria com empresas privadas para serviços de assessoramento, capacitação e mesmo manutenção das unidades escolares, enquanto a segunda não é de conhecimento dos autores do texto que haja a mesma iniciativa. Portanto, somente as instituições federais cobertas pela pesquisa se mantêm ainda exclusivamente pelo orçamento público e com notório reconhecimento na formação.
Essas desiguais condições estruturais provavelmente também afetam a própria condição pedagógica na formação dos estudantes. A explicação da mera diversificação formativa e o atendimento às diferentes demandas da população nos parece insuficiente para compreender os processos sociais que perpassam a formação da classe trabalhadora.
A radiografia desses cursos técnicos – somente levando em conta as instituições e redes de referência da pesquisa – evidencia que a diversificada oferta subjaz a uma miríade de percursos que nos parecem evidenciar que a divisão social do trabalho continua sendo reiterada como balizador para a formação profissional. A exposição magistral de Karl Marx no livro 1 em O Capital elucida que a base da produção de mercadorias é a divisão social do trabalho. Inicialmente sob a forma da separação entre cidade e campo, essa divisão social se complexificou e expôs as contradições dos respectivos modos de produção.
Marx desenvolve a compreensão de que a divisão do processo de trabalho, além de aumentar a produtividade das forças produtivas, consolida o capital enquanto uma relação social em que os produtores das mercadorias (os trabalhadores) estão em um processo de trabalho sob a autoridade do “[...] capitalista sobre seres humanos transformados em simples membros de um mecanismo que a ele pertence” (MARX, 2002, p. 411).
A utilização capitalista da maquinaria complexifica o processo produtivo, eleva ainda mais a produtividade do trabalho e amplia as formas possíveis de extração de mais-valia. Concretiza-se assim a extirpação dos produtores das mercadorias do domínio do processo de trabalho para se transformarem em apêndices das máquinas.
Ao se transformar em autômato, o instrumental se confronta com o trabalhador durante o processo de trabalho como capital, trabalho morto que domina a força de trabalho viva, a suga e exaure. A separação entre as forças intelectuais do processo de produção e o trabalho manual e a transformação delas em poderes de domínio do
capital sobre o trabalho se tornam uma realidade consumada na grande indústria fundamentada da maquinaria (MARX, 2002, p.483).
Nesse sentido, a divisão social do trabalho é o resultado da destituição do controle que o trabalhador detinha sobre o processo de trabalho. Assim, a divisão entre o trabalho manual e o trabalho intelectual se torna condição indispensável para a consolidação da indústria moderna. Antes de tudo, se o propósito que determina o processo de produção capitalista é a valorização de valor, tal fundamento implica a maior exploração possível da força de trabalho. Ao expor sobre processo de cooperação pré-industrial, Marx lembra que à medida que os capitalistas atingiram uma grandeza de riqueza, estes, além de se libertarem do trabalho manual, gradualmente também passaram a se desfazer da função de supervisão direta dos trabalhadores, delegando essa função a assalariados que, ao menos imediatamente, personificam o poder do capital contra os interesses dos trabalhadores manuais. Desse modo, a oposição entre trabalho manual e trabalho intelectual expressa uma relação antagônica entre classes sociais (BARRADAS, 2014).
Portanto, retomando a relação entre trabalho e educação, o que a empiria nos parece revelar é que embora as formas de acesso à educação e de qualificação profissional se diversifiquem e se expandam, há um movimento constante de subsunção dos processos formativos ao controle do capital, operado tanto pela mediação do Estado quanto pela intervenção direta de instituições vinculadas ao capital. Uma das maneiras de expressão desse controle se dá pela própria qualificação profissional. A qualificação no capitalismo é composta por capacidades de trabalho dos trabalhadores (ou seja, de valor de uso) que são hierarquizadas para atender à finalidade de maior extração de mais-valia. Por isso, o interesse do capitalista em controlar os processos formativos, de modo a atender as necessidades exigidas pela organização da produção, o que envolve tanto conhecimentos técnicos quanto comportamentais. Bruno (2011) nos ajuda a pensar como a compreensão de qualificação está circunscrita a relações sociais de produção em processos de trabalho que são distintos entre si.
Trata-se de enfatizar que a existência de cursos de qualificação profissional, especialmente aqueles de curtíssima duração, são absolutamente funcionais para o padrão de organização da produção brasileira. Queremos ilustrar essa afirmação com dois exemplos. O primeiro deles em torno da demanda da indústria para a formação
da força de trabalho. Em publicação disponível na internet, o SENAI divulgou um
“mapa do trabalho industrial” em que, ao mesmo tempo em que defende um “modelo de educação que favoreça o DESENVOLVIMENTO econômico e social”, revela a necessidade da força de trabalho da indústria até 2020, conforme segue abaixo:
Total | % | |
Superior | 625.448 | 4,8 |
Técnico | 1.836.548 | 14,1 |
Qualificação (+ 200h) | 3.348.382 | 25,7 |
Qualificação (- 200h) | 7.199.946 | 55,3 |
Total | 13.010.324 | 100 |
Fonte: Mapa do Trabalho Industrial 2017-2020, SENAI17
O segundo exemplo foi coletado através do banco de dados da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS) do Ministério do Trabalho. Utilizamos os filtros de empregos em 31 de dezembro de 2017 no estado do Rio de Janeiro, subsetores da economia e remuneração. Tendo em vista os limites de espaço do texto, não será possível expor na integralidade os dados, mas descreveremos o que é essencial para a problemática discutida.
Em dezembro de 2017, o estado do Rio de Janeiro dispunha de 4.044.736 empregos formais em seu território. Desse total, os cinco subsetores que mais se destacam em volume de empregos são, em ordem decrescente: administração pública (756.207); comércio varejista (683.923); administração técnica profissional (532.719); alojamento e comunicação (467.919); e transporte e comunicações (297.523). Trata-se, portanto, de ocupações majoritariamente do setor de comércio e serviços. Levando em conta a remuneração desses empregos, registra-se que
1.997.566 (49,39%) dos empregos formais no estado fluminense tinha remuneração de até dois salários mínimos (R$ 1.874 em valores de 2017). O único subsetor com remuneração de mais da metade da força de trabalho acima de cinco salários mínimos era o da indústria extrativa mineral.
17Apresentação completa disponível em http://arquivos.portaldaindustria.com.br/app/conteudo_18/2016/10/19/12033/ApresentaoMapadoTraba lhoIndustrial20172020.pdf, acesso em 31/10/2018.
Quando utilizamos o filtro de remuneração média mensal em relação aos subsetores, temos os seguintes resultados por ordem decrescente: indústria extrativa mineral (R$ 13.647,88); indústria química (R$ 8.481,78); instituição financeira (R$ 6.639,74); serviço de utilidade pública (R$ 4.900,71); e administração pública (R$ 4.494,05). O comércio varejista, segundo subsetor com mais empregos formais, tem a terceira pior remuneração média (R$ 1.630,35).
Dessa maneira, conforme exposto nos dois exemplos, o subsetor de comércio varejista e serviços mais elementares se destacam, embora suas remunerações estejam inversamente proporcionais à sua liderança no volume de força de trabalho empregada no estado. Já as atividades econômicas com maior valor agregado, em especial a indústria extrativa mineral, apesar de ter sido o impulsionador da receita do estado em virtude dos royalties da exploração do petróleo, não foram capazes de gerar um tecido econômico para alavancar o desenvolvimento regional em torno da própria cadeia produtiva e menos ainda para além dela. Ou seja, constatamos pelos exemplos ilustrados que a força de trabalho tem uma média remuneratória muito baixa e, não por discrepância, a base econômica do estado do Rio de Janeiro também não pressupõe a existência de uma força de trabalho que necessite uma qualificação tão robusta. Considerando a divisão social do trabalho como marco estrutural das relações sociais de produção capitalistas, as desigualdades e estratos no interior da classe trabalhadora não são um problema. Por isso, reitera então Bruno (2011, p. 558) que
[...] do ponto de vista do capital, seria um desperdício formar a totalidade das novas gerações num mesmo grau de complexidade. Com a dinâmica do mercado de trabalho formal, altamente estratificado e poupador de força de trabalho, muitos jovens jamais serão inseridos neles. Eles irão para o exército de reserva ou executarão trabalhos simples que não exigem o mesmo grau de complexidade dos trabalhos voltados para a produção de inovação e para a produção de mercadorias com alto valor agregado.
Daí queremos chamar a atenção para a ênfase formativa dos cursos técnicos em Administração, particularmente em torno da ênfase em empreendedorismo. Um técnico em Administração executa operações administrativas relativas à documentação, estoques e gestão de pessoal de uma empresa. Em tese, o campo de trabalho é bem diversificado, pois inclui todo tipo de empresa, pública ou privada. No entanto, as ofertas de trabalho para o que se anuncia como “técnico em
administração” nem sempre condizem com rotinas de trabalho que demandem um profissional com curso técnico de nível médio. Então há duas hipóteses explicativas para a compreensão dessa ênfase formativa no curso, hipóteses que não apenas não se excluem, mas até se complementam.
A primeira é que se trata de um marco discursivo por parte dos agentes do Estado e dos intelectuais da burguesia que opera através da ideologia da empregabilidade. Trata-se de conferir respaldo material a supostamente habilitar os indivíduos a se tornarem “empregáveis” em relações de produção operadas por personificações do capital que se esforçam para depender cada vez menos do trabalho vivo.
A incapacidade de fomentar mecanismos eficazes para a geração de empregos se ampara na transferência de responsabilidade de sua obtenção para os indivíduos. Portanto, trata-se de uma pedagogia para o trabalho em que a empregabilidade “obedece, portanto, a uma lógica orientada para a busca do imediato e a valorização pela obtenção do sucesso individual” (MACHADO, 1998, p.21).
As personificações do capital sustentarão através da ideologia da empregabilidade que a obtenção de um diploma de curso técnico de nível médio possibilitará uma “taxa de retorno” na remuneração dos indivíduos (não necessariamente obtidos em relações de trabalho formal, por suposto). Não queremos afirmar que a taxa de retorno seja por completa desprovida de verdade, mas é preciso ressaltar que não poucas vezes a função desempenhada pelos profissionais contratados pelas empresas não necessariamente demandam a conclusão de uma formação técnica de nível médio, mas que os requisitos por maiores níveis de escolaridade e qualificação profissional permitem a regulação do processo formativo da força de trabalho.
A segunda hipótese, complementar à primeira, é que a ênfase no empreendedorismo responde imediatamente à demanda da perspectiva de geração de renda. Na medida em que a taxa de desocupação se mantém em níveis não toleráveis, mesmo com ações por parte do Estado que supostamente visariam a desburocratização das relações de trabalho, como a Reforma Trabalhista (lei nº 13.467/2017), o apelo imediato à liberdade e autonomia de ter o seu próprio negócio surge como saída para a reprodução da vida material, especialmente entre os jovens. Enquanto o relatório Global Entrepreneurship Monitor (2016) identificou que a faixa
etária entre 18 e 24 anos perfazia o quantitativo de 20,1% na categoria “empreendedor inicial”, o indicador Serasa Experian de nascimento de empresas identificou a constituição de 2,2 milhões de novas empresas no Brasil em 2017 (DINIZ, 2018). Assim, não se torna um acaso que a taxa de desocupação na casa de 15% no estado se relacione com o acréscimo de meio milhão de pessoas que trabalham por conta própria nos mais diversos empreendimentos.
Em suma, a ênfase formativa para o empreendedorismo se revela imediatamente como um vislumbre de geração de renda aos jovens, mas mediatamente é uma pedagogia do capital sob os auspícios do aparelho de Estado para educar, sobretudo os jovens trabalhadores, às adversidades do mercado e, consequentemente, da própria reprodução ampliada do capital (MOTTA; LEHER; GAWRYSZEWSKI, 2018).
Por fim, concluímos que a materialidade da oferta de cursos técnicos não parece estar em desencontro com a base econômica do estado e o seu padrão de emprego e renda. No entanto, ressaltamos a importância de se evitar uma relação meramente determinista entre estrutura e superestrutura. Para isso, apontamos como esforço próprio avançar em outras mediações da objetivação da educação profissional, em particular a sistematização de pesquisa de campo já em andamento sobre as perspectivas e expectativas dos sujeitos escolares dessa modalidade de educação e o funcionamento e organização dos cursos nas instituições de ensino. Por ora, apontamos para essas sínteses explicativas.
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Recebido em: 25 de novembro de 2018. Aceito em: 23 de janeiro de 2019. Publicado em: 28 de maio de 2019.
v.17, nº 32, jan-abr (2019) ISSN: 1808-799 X
Tatiana Cristina Ribeiro2
O artigo discute a formação do trabalhador na sociedade capitalista, a concepção de trabalho enquanto produção da existência humana e como tal concepção é deturpada no capitalismo, marcado, sobretudo, pela exploração do trabalhador. Apresenta uma reflexão acerca da educação vinculada aos interesses capitalistas e, em contrapartida, uma educação com vistas à emancipação humana. Apesar dos obstáculos impostos pela sociedade capitalista, a educação pode contribuir para a emancipação do trabalhador, por meio de sua conscientização política necessária à luta de classes.
El artículo discute la formación del trabajador en la sociedad capitalista, la concepción de trabajo como producción de la existencia humana y como tal concepción es distorsionada en el capitalismo, marcado sobre todo por la explotación del trabajador. Presenta una reflexión acerca de la educación vinculada a los intereses capitalistas y, en contrapartida, una educación con vistas a la emancipación humana. A pesar de los obstáculos impuestos por la sociedad capitalista, la educación puede contribuir a la emancipación del trabajador, por medio de su concientización política necesaria para la lucha de clases. Palabras clave: Trabajo; la educación; Formación del trabajador.
The article discusses the formation of the worker in capitalist society, the conception of labor as the production of human existence and as such conception is misrepresented in capitalism, marked, above all, by the exploitation of the worker. It presents a reflection on education linked to capitalist interests and, on the other hand, education aimed at human emancipation. Despite the obstacles imposed by capitalist society, education can contribute to the emancipation of the worker, through his necessary political awareness of the class struggle.
1DOI: https://doi.org/10.22409/tn.17i32.p28311
2 Mestre em Educação, Linguagens e Tecnologias pela Universidade Estadual de Goiás, atua como Técnica em Assuntos Educacionais no Campus Anápolis do IFG, Membra do Núcleo de Pesquisas e Estudos em Educação e Formação de Trabalhadores (NUPEEFT/IFG).
O trabalho na sociedade capitalista confunde-se com o emprego, bem como sua função deixa de estar ligada à produção de valores de uso para produzir valores de troca, beneficiando o detentor dos meios de produção, enquanto o trabalhador não tem acesso aos bens que produz.
A força de trabalho converte-se em mercadoria e o operário precisa trabalhar não mais para produzir sua existência, mas para garantir sua sobrevivência. Num contexto de grande desenvolvimento tecnológico, automatização de tarefas e redução dos postos de trabalho, o trabalhador se vê diante da necessidade de se adaptar às exigências do capital, sob pena de engrossar a fila de desempregados e colocar em risco sua sobrevivência e de sua família.
A formação do trabalhador, entendida como processo educativo, tem como uma de suas principais premissas o atendimento às demandas do capital, que atualmente requer um trabalhador polivalente, capaz de desempenhar várias tarefas e adaptar-se rapidamente às mudanças que o progresso tecnológico impõe.
Este artigo tem por objetivo discutir esta formação, tomando por base os pressupostos teóricos marxistas. Inicialmente buscou-se refletir sobre a concepção de trabalho enquanto produção da existência humana e como tal concepção é deturpada no capitalismo, marcado, sobretudo, pela exploração do trabalhador.
Em seguida procede-se uma reflexão acerca da formação do trabalhador numa perspectiva dialética, onde esta formação ao mesmo tempo em que atende aos interesses do capital, ao capacitar a força de trabalho segundo suas demandas, pode favorecer a emancipação dos sujeitos, conscientizando-os politicamente para a luta de classes.
A concepção de trabalho como produção da existência humana e sua deturpação pelo capitalismo permeia toda a obra de Marx (1986), partindo da compreensão do trabalho como um processo de interação entre o homem e a natureza, onde o homem, por sua própria ação, medeia, regula e controla seu metabolismo com a natureza. Mais que isto, de acordo com Tonet (2012), ao mesmo
tempo em que o homem transforma a natureza, por meio do trabalho, é também transformado nesta relação, constituindo-se como ser histórico.
É o trabalho que diferencia o homem dos outros animais, não apenas pela atividade laboral em si, mas por seu planejamento, sua sistematização a partir da capacidade racional. Como bem pontuam Marx e Engels (2007):
Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e uma abelha envergonha muitos arquitetos com a estrutura de sua colmeia. Porém, o que desde o início distingue o pior arquiteto da melhor abelha é o fato de que o primeiro tem a colmeia em sua mente antes de construí-la com a cera. No final do processo de trabalho, chega-se a um resultado que já estava presente na representação do trabalhador no início do processo, portanto, um resultado que já existia idealmente. Isso não significa que ele se limite a uma alteração da forma do elemento natural; ele realiza neste último, ao mesmo tempo, seu objetivo, que ele sabe que determina, como lei, o tipo e o modo de sua atividade e ao qual ele tem de subordinar sua vontade. E essa subordinação não é um ato isolado. Além do esforço dos órgãos que trabalham, a atividade laboral exige a vontade orientada a um fim, que se manifesta como atenção do trabalhador durante a realização de sua tarefa (p. 327).
O trabalho humano envolve, portanto, atividade mental, subjetividade, e não apenas a execução mecânica e instintiva de movimentos. Dirige-se à consecução de objetivos pré-determinados, oriundos de suas necessidades. Assim, desde os primórdios da existência humana, o homem trabalha para produzir sua existência e, ao longo da história, cria meios e/ou instrumentos para facilitar-lhe o trabalho, bem como novas formas de organização social.
Segundo Antunes (2011, p. 42), “o ato de produção e reprodução da vida humana realiza-se pelo trabalho. É a partir do trabalho que o homem torna-se ser social, distinguindo-se de todas as formas não humanas”. Isto porque pelo trabalho o homem relaciona-se não apenas com a natureza, mas também com outros seres humanos.
O trabalho, em seu sentido originário, é indissociável de seus fins sociais, voltado para a satisfação de necessidades materiais e imateriais específicas, onde o trabalhador é quem decide o que, como e em que ritmo produzir. Tanto os meios e instrumentos de trabalho, como as técnicas que envolvem o processo de trabalho são de domínio público, qualquer pessoa pode ter acesso a elas, independente de escolaridade ou disponibilidade de recursos financeiros (MANFREDI, 2002).
A concepção marxista do trabalho carrega um sentido ontológico, relacionando- se à produção da existência humana, como elemento fundante do ser social, ao qual se vinculam todas as demais atividades humanas.
Para a produção social de sua existência, o homem tem de satisfazer um conjunto de necessidades humanas, que vão do estômago à fantasia, ou seja, da alimentação à arte, passando pela vestimenta, moradia, educação, etc. Para tanto, os homens têm de produzir os elementos que possam propiciar a satisfação de suas necessidades humanas, tais como comida, roupa, casa, ônibus, escola, teatro, etc. Esses elementos podem ser chamados de meios de subsistência e são produzidos pelos homens por intermédio do trabalho. Por sua vez, para que haja a produção dos meios de subsistência, os homens têm de produzir, por intermédio de seu trabalho, os meios de produção, como o trator, a colheitadeira, os sistemas de irrigação e de transporte, as ferramentas, máquinas e equipamentos, etc. (TUMOLO, 2012, p. 157).
Para Tonet (2012, p. 52) “o trabalho distingue-se de todas as outras categorias, pois somente ele tem a função de produzir a riqueza material necessária à existência humana”. As demais categorias, como a arte, a linguagem, a ciência, a educação, entre outras, tem sua origem no trabalho. O trabalho é tido como base de qualquer forma de sociabilidade, sendo que a superação de algum modo de produção (incluindo o capitalismo), independente de como se concretize, terá como pressuposto uma mudança na forma do trabalho.
Neste contexto, o trabalho visa necessariamente a produção de valores de uso, isto é, o homem produz aquilo que serve para atender às suas necessidades imediatas (meios de subsistência) e mediatas (meios de produção). Este processo se desenvolve na medida em que vai sendo passado de geração em geração, sendo incorporadas novas práticas e novos instrumentos que favorecem o aumento da produtividade do trabalho, com vistas a possibilitar a melhor satisfação de necessidades humanas com menor dispêndio de trabalho. Tal desenvolvimento, numa concepção de trabalho enquanto produção da existência humana, beneficiaria a todos.
Com o surgimento da propriedade privada, ocorre uma importante transformação na concepção de trabalho, que se intensifica ainda mais com o advento do capitalismo, onde o trabalho passa a configurar sinônimo de exploração e não mais de produção da existência.
Nas sociedades primitivas o trabalho apresentava-se como produção da existência humana, numa perspectiva cooperativa, onde os homens produziam sua existência em comunidade educando-se enquanto lidavam com a terra, a natureza e por meio das relações interpessoais. À medida que o homem se fixa na terra, considerada o principal meio de produção, surge a propriedade privada e, com ela, a divisão em classes: a classe dos proprietários e a classe dos não proprietários (SAVIANI, 1994).
Logo que o trabalho começa a ser distribuído, cada um passa a ter um campo de atividade exclusivo e determinado, que lhe é imposto e ao qual não pode escapar; o indivíduo é caçador, pescador, pastor ou crítico, e assim deve permanecer se não quiser perder seu meio de vida. (MARX; ENGELS, 2007, p. 37-38).
A divisão do trabalho tem como reflexo uma divisão estrutural da sociedade. A partir da propriedade privada, surge a possibilidade de que um indivíduo não precise mais trabalhar para sobreviver, vivendo do trabalho alheio, desde que possua os meios de produção. Santos Neto (2012, p. 84) esclarece que “em todas as sociedades organizadas a partir de relações de expropriação do trabalho alheio, apresentam-se dois grupos sociais profundamente antagônicos: escravos e senhores, servos e senhores feudais, operários e capitalistas”. No modo de produção escravista, o “senhor” detinha a posse não só dos meios de produção como dopróprio trabalhador (o escravo). Já no modo de produção feudal, o trabalho passa por modificações e se constitui como servil. O senhor feudal não tinha a propriedade do vassalo, mas da terra e dos meios de produção. Os vassalos ofereciam trabalho e fidelidade aos senhores, em troca de proteção e um lugar para morar e produzir sua subsistência, gozando assim de uma liberdade restrita, já que não teriam condições de deixar as terras dos senhores por não dispor dos meios de produção de forma independente. O advento do capitalismo transforma mais uma vez a relação do trabalhador com os donos dos meios de produção (o capitalista), tendo como característica principal a venda, pelo trabalhador, de sua força de trabalho, transformada então em mercadoria. O trabalho na sociedade capitalista é degradado, se converte em meio de subsistência, a força de trabalho é transformada em mercadoria, enquanto o trabalho torna-se sinônimo de obrigação, adquire sentido de penúria, causa estranhamento e
alienação. O homem passa a estranhar seu semelhante, visto como simples meio para satisfação de fins privados (ANTUNES, 2011).
Uma das características essenciais do capitalismo é transformar tudo em mercadoria, “coisificando” o trabalho, seu resultado e até mesmo o ser humano. O fetichismo capitalista consiste em negar a subjetividade humana. O trabalhador, na sociedade capitalista, não só deixa de ter poder sobre o produto de seu trabalho, como passa a lhe ser submisso, assumindo uma condição praticamente de escravo do próprio trabalho. O indivíduo tem no trabalho não mais uma forma de satisfazer suas necessidades ou de produzir sua existência, mas como algo que o priva da convivência familiar, de lazer, enfim, de tempo para dedicar-se ao que lhe é prazeroso. Assim, ocorre não só o estranhamento do trabalhador em relação ao produto de seu trabalho como também em relação ao próprio trabalho, que deixa de ser voluntário para ser forçado, obrigatório, considerado um meio para satisfazer suas necessidades quando não está trabalhando.
O capitalismo distancia o trabalho de seu sentido ontológico de produção da existência humana, sendo caracterizado pela exploração do trabalhador pelo capitalista e transformação da força de trabalho em mercadoria. Mais que isto, o próprio trabalhador é objetificado, como bem assevera Honneth (2007), ao discutir o conceito de reificação, onde se deixa de perceber no outro as características que o tornam humano, tratando-o como “coisa”. O não reconhecer-se no outro provoca o distanciamento, a indiferença, manifestando-se nas relações sociais e na relação com o meio natural e social, onde tudo passa a ser “coisificado”, facilitando assim a exploração pelo capital.
Na sociedade capitalista, o trabalhador aliena sua força de trabalho, transferindo-a para outro, tendo em vista que, por não dispor dos meios de produção, não tem condições de trabalhar para si mesmo. Assim, o trabalhador vende sua força de trabalho ao capitalista, em troca de dinheiro, com o qual pode comprar as mercadorias de que necessita para sobreviver. Em contrapartida, o capitalista organiza a produção de modo a produzir uma mercadoria cujo valor seja maior do que a soma do valor das mercadorias requeridas para sua produção: os meios de produção e a força de trabalho (HARVEY, 2013).
Com a alienação do trabalho, que deixa de ser compreendido como produção da existência tornando-se algo externo, ocorre o estranhamento do homem em
relação ao seu trabalho e ao seu resultado, que não lhe pertence. Ao contrário, quanto mais trabalha, mais o sujeito se afasta de sua essência e menos possibilidade dispõe de acesso aos bens que produz, não se reconhece em seu trabalho por não dispor de sua liberdade, fazendo de sua atividade vital apenas um meio para sua existência (MARX, 2004).
O trabalho na sociedade capitalista, assim como a propriedade, a ciência e a tecnologia, deixa de ter centralidade como produtor de valores de uso para os trabalhadores. Ao contrário, passa a ter como função principal produzir valores de troca, gerando mais lucro para os capitalistas, reduzindo à mercadoria a força de trabalho (FRIGOTTO; CIAVATTA; RAMOS, 2012).
Enquanto o valor de uso refere-se à utilidade social de um determinado objeto, isto é, para ter valor o objeto precisa ser útil, justificando o trabalho empregado em sua produção, deve ser capaz de atender a uma necessidade humana, o valor de troca refere-se à valoração material de um bem, especialmente quando o “direito de uso” é transferido a outrem por meio da troca, implica estabelecer uma relação quantificada de equivalência entre as mercadorias. Neste contexto, uma mercadoria tem inúmeros equivalentes potenciais. O dinheiro, entendido também como mercadoria, surge do sistema de trocas, tendo em vista a propagação das relações de troca de mercadorias, como forma de facilitar as trocas mercantis, constituindo uma medida de valor (HARVEY, 2013).
Em meados da década de 1970 o capitalismo passa por um período de reestruturação, marcado pelo processo de acumulação flexível onde a produção de mercadorias passa a ser vinculada à demanda, tendo como uma de suas premissas a necessidade de um mesmo trabalhador operar simultaneamente várias máquinas, como forma de responder à crise financeira, aumentando a produção sem elevar o número de trabalhadores, apoiando-se na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e padrões de consumo (ANTUNES, 2011).
Com o processo de acumulação flexível, o capitalismo manifesta seu objetivo maior de:
Alcançar o máximo de produtividade da força de trabalho com o mínimo de custo, ou seja, um processo de superexploração da força de trabalho para ampliar a taxa de mais-valia e de lucro, mas sem preocupação com o crescimento e com os efeitos de barbarização da vida social daí decorrentes (BEHRING, 2003, p. 40).
Entre as consequências do processo de acumulação flexível, destacam-se o desemprego estrutural, a precarização do trabalho, o enfraquecimento dos movimentos de reação sindical e política da classe trabalhadora, e a captura cada vez mais acentuada da subjetividade do trabalho pela lógica do capital. “A flexibilidade do trabalho, compreendida como sendo a plena capacidade de o capital tornar domável, complacente e submissa a força de trabalho, caracteriza o “momento predominante” do complexo de reestruturação produtiva” (ALVES, 2008, p. 10).
A ideia de “acumulação flexível” possui uma ineliminável carga político-ideológica no interior da luta de classes. Ela explicita o elemento que robustece o poder do capital contra a sua parte antagônica, o trabalho assalariado. Embora se saliente o caráter “flexível” da acumulação de capital, o que não se contesta no “sistema da produção flexível”, são as prerrogativas “rígidas” do capital, tendo em vista que é ele quem decide ainda o que produzir e onde alocar os recursos. [...] No local de trabalho, apesar da polivalência operária, proclamada pela ideologia dos novos experimentos da produção capitalista de cariz flexível, tais como o toyotismo, a função social do trabalho assalariado continua restrita e parcial (ALVES, 2008, p. 10).
O processo de acumulação flexível coincide com o acelerado desenvolvimento tecnológico, sobretudo da microeletrônica, provocando grandes transformações no mundo do trabalho. O trabalhador é levado a realizar agora não mais uma única tarefa repetitiva, mas diversas atividades, reduzindo assim os níveis hierárquicos e a quantidade de trabalhadores necessária à produção. Além disto, passam a ter a incumbência de “gerenciar” suas equipes, inclusive mediante instrumentos de controle da velocidade e da quantidade de produção. Torna-se comum o estímulo da competitividade entre equipes de trabalho, a superação de metas, inclusive com benefício financeiro para o trabalhador. Cria-se no trabalhador a ilusão de que seu sobretrabalho o favorece (pois de fato implica uma remuneração um pouco maior), enquanto na realidade o capitalista é quem eleva seus ganhos por meio de uma exploração cada vez mais desumana do trabalhador.
Outra característica do trabalho no capitalismo refere-se ao seu caráter multifacetado, marcado por relações dialéticas, tais como a redução do trabalho vivo (aquele realizado pelo sujeito com o emprego de sua potencialidade natural) e progressiva ampliação do trabalho morto (automatizado), a valorização do trabalho produtivo (com vistas a produzir mercadorias a fim de obter mais valia), e a dualidade
entre trabalho intelectual (de natureza científica, envolvendo atividades de gestão e planejamento) e trabalho manual (aquele realizado pelo operário) (ANTUNES, 2005).
A dualidade entre trabalho intelectual e trabalho manual reflete uma dualidade social onde a classe dominante detém o conhecimento e, portanto, exerce funções de caráter intelectual enquanto à classe operária cabe a realização do trabalho manual, ao passo que tem acesso apenas ao conhecimento necessário à realização de seu trabalho. A educação, nesta perspectiva, coloca-se a serviço do capital, por meio de diversos instrumentos de controle, especialmente favorecendo a adesão do trabalhador aos objetivos do capital de uma forma mais consensual, mais velada.
O capitalismo modifica não só o trabalho em si, mas o conhecimento que o trabalhador tem a respeito de seu trabalho, o qual também é reduzido, alienado. Uma das principais características do trabalho no capitalismo é sua fragmentação, separando as atividades de planejamento e execução.
A fragmentação do processo de trabalho e a cisão entre o momento teórico e o momento prático fazem com que os trabalhadores, responsáveis pela produção da riqueza, sejam impedidos de ter acesso a um saber que implique o conhecimento e o consequente domínio sobre a totalidade do processo produtivo. Dessa forma, a separação entre trabalho manual e trabalho intelectual se torna um instrumento de dominação do capital sobre o trabalho (TONET, 2012, p.55).
O trabalho deixa de ser individual e passa a ser coletivo. Cada indivíduo domina apenas uma parcela do processo produtivo. O trabalho (e o trabalhador) cada vez mais se submete ao capital, enquanto o homem torna-se mera engrenagem no sistema produtivo. Esta diminuição do conhecimento e do controle do processo de trabalho pelo trabalhador possibilita ao capitalista controlar toda produção, uma vez que dispõe dos recursos materiais necessários, ao mesmo tempo em que administra o processo produtivo por meio do controle da atuação de cada trabalhador.
A partir da divisão do trabalho na manufatura, as forças de trabalho são hierarquizadas, com estrutura salarial diferenciada segundo a função e a respectiva qualificação. O mesmo ocorre no campo da ciência, privilégio das categorias, e a quem cabe planejar o trabalho onde, enquanto um pequeno número de funcionários
altamente qualificados domina todo o saber sobre o trabalho, a grande massa de operários tem acesso apenas ao conhecimento relativo à sua tarefa parcial. Deste modo, além do poder material, a classe dominante detém também o poder intelectual, uma vez que possui os instrumentos materiais e conceituais para a elaboração do conhecimento (KUENZER, 2011).
Diferente do artesão, que dominava todo o processo de trabalho e todo o saber que o envolvia, o trabalhador no capitalismo conhece apenas aquela atividade restrita que desenvolve, enquanto a organização e o planejamento do trabalho ficam sob o domínio do capitalista. O resultado é a desqualificação do trabalhador, que em função da divisão do trabalho tem restringidas suas necessidades de qualificação (KUENZER, 2011).
A tecnologia também inverte as relações, uma vez que a máquina não mais consiste em prolongamento das potencialidades humanas, mas assume uma posição central, onde o homem é que passa a ser usado pela máquina, a serviço do capital. O trabalhador torna-se mera engrenagem no sistema produtivo, inclusive submetendo-se ao controle de sua produtividade e/ou adequação às necessidades do capitalista.
A separação no campo do trabalho entre manual e intelectual resulta, por sua vez, em uma educação de caráter dual: a de caráter intelectual para as elites e a com foco na preparação para o trabalho, para a classe trabalhadora. No Brasil, esta dualidade se expressa mais claramente a partir das Leis Orgânicas derivadas da Reforma Capanema:
Esse dualismo toma um caráter estrutural especialmente a partir da década de 1940, quando a educação nacional foi organizada por leis orgânicas, segmentando a educação de acordo com os setores produtivos e as profissões, e separando os que deveriam ter o ensino secundário e a formação propedêutica para a universidade e os que deveriam ter formação profissional para a produção (CIAVATTA, 2005, p.4).
Cada “Lei” orgânica referia-se à articulação do ramo de ensino em questão com o ensino superior, restringindo o acesso ao ensino superior à área de formação técnica, enquanto os concluintes do 2º ciclo do ensino secundário (propedêutico) não tinham restrições de candidatura (CUNHA, 2000). Além disso, a formação que as escolas técnicas ofereciam não abarcava os conhecimentos necessários para a aprovação nos exames vestibulares. A formação da classe trabalhadora era restrita à
capacitação para o trabalho, em profissões específicas, de acordo com as necessidades do mercado e da política nacional-desenvolvimentista.
Com a reestruturação do capitalismo e o advento da produção flexível, ocorrem algumas transformações no campo da formação do trabalhador, exigindo-se do trabalhador na produção flexível novas competências, uma vez que seu trabalho não se restringe mais à execução de uma única tarefa mas supõe uma atuação polivalente e que inclusive consiga desenvolver certas atividades de controle, essenciais para a produção.
A produção flexível tem como consequência uma proposta de educação dos trabalhadores, de quem se exige as capacidades de agir intelectualmente e pensar produtivamente. Exige-se do trabalhador a capacidade de se educar permanentemente e das habilidades de trabalhar independentemente, de criar métodos para enfrentar situações não previstas, de contribuir originalmente para resolver problemas complexos (KUENZER, 2012, p. 73).
A substituição progressiva dos processos rígidos, de base eletromecânica, pelos flexíveis, de base microeletrônica, cria novas demandas no mundo do trabalho e desloca a concepção de formação profissional dos modos de fazer para a articulação entre conhecimentos, atitudes e comportamentos, com ênfase em habilidades cognitivas, comunicativas e criativas (KUENZER, 2009).
Entretanto, toda esta capacitação não assegura o acesso ao emprego num mundo do trabalho cada vez mais excludente e competitivo, onde se exige uma formação cada vez mais elevada, oferecendo salários cada vez menores, posto que as vagas são insuficientes para todos os trabalhadores.
A exploração capitalista no contexto da reestruturação produtiva manifesta-se, sobretudo pela captura da subjetividade do trabalhador, estimulando o engajamento deste com os objetivos da empresa mediante inclusive premiações por desempenho, criando no trabalhador a ilusão de que, se a empresa cresce, ele cresce junto. A subsunção do trabalhador no processo de produção flexível ocorre de forma mais consensual, envolvente e, na verdade, mais manipulativa (ANTUNES, 2011).
A educação, segundo a lógica capitalista, é considerada fator fundamental no processo de reestruturação produtiva, responsável por formar os trabalhadores desejáveis para determinado momento histórico. Mais que promover a capacitação profissional, a educação constitui uma forma eficiente de dominação, de disseminação da ideologia dominante e, até certo ponto, de “adestramento” da força de trabalho.
Especialmente na formação do trabalhador a educação tem um papel decisivo a cumprir, adequando esta formação às necessidades e exigências do mercado que, no contexto da produção flexível é a de um trabalhador polivalente, capaz de executar diversas funções e inclusive auxiliar em processos de controle de qualidade ou na solução de problemas no processo produtivo.
O conhecimento, no capitalismo, é negado ou disponibilizado conforme as necessidades do mercado. A própria ampliação da oferta de escolarização nada mais é que uma estratégia para assegurar a formação de indivíduos capazes de atuar em processos de trabalho flexibilizados, executando diversas tarefas com diferentes níveis de complexidade. O maior nível de escolarização, todavia, não assegura o trabalho de cunho científico-intelectual, ao contrário, o indivíduo precisa ser polivalente ao ponto de exercer determinadas tarefas de gestão sem abandonar o trabalho operacional, especialmente aquele ligado ao manuseio de máquinas e equipamentos tecnológicos. O trabalhador, além de lutar pelos meios de vida, precisa lutar pela aquisição do trabalho (MARX, 2004).
Aqueles que não têm acesso a esta nova qualificação são excluídos do mundo do trabalho pelo desemprego ou estão sujeitos a trabalhos ainda mais precarizados e sub-remunerados.
Para que esta formação flexível seja possível, torna-se necessário substituir a formação especializada, adquirida em cursos profissionalizantes focados em ocupações parciais e, geralmente, de curta duração, complementados pela formação no trabalho, pela formação geral adquirida por meio de escolarização ampliada, que abranja no mínimo a educação básica, a ser disponibilizada para todos os trabalhadores. A partir desta sólida formação geral, dar-se-á a formação profissional, de caráter mais abrangente do que especializado, a ser complementada ao longo das práticas laborais. Como a proposta é substituir a estabilidade, a rigidez, pela dinamicidade, pelo movimento, à educação cabe assegurar o domínio dos conhecimentos que fundamentam as práticas sociais e a capacidade de trabalhar com eles, por meio do desenvolvimento de competências que permitam aprender ao longo da vida, categoria central na pedagogia da acumulação flexível. Se o trabalhador transitará, ao longo de sua trajetória laboral, por inúmeras ocupações e oportunidades de educação profissional, não há razão para investir em formação profissional especializada; a integração entre as trajetórias de escolaridade e laboral resultará na articulação entre teoria e prática, resgatando-se, desta forma, a unidade rompida pela clássica forma de divisão técnica do trabalho, que atribuía a uns o trabalho operacional, simplificado, e a outros o trabalho intelectual, complexo (KUENZER, 2007, p. 1159).
A educação assume, neste contexto, a função de desenvolver competências, de educar para a “empregabilidade” e não necessariamente para o desempenho de uma profissão específica, mas para uma atuação polivalente, a depender inclusive do emprego que conseguir encontrar.
Importante frisar que toda esta dinâmica transfere para o sujeito a responsabilidade de uma pretensa ascensão social, onde quanto mais qualificado e polivalente for o sujeito maiores suas chances de obter êxito no mundo do trabalho, alcançando assim melhores condições de vida.
Como bem destaca Kuenzer (2011, p. 28) não é possível superar a ruptura entre o trabalho intelectual e instrumental dentro da escola, tendo em vista que “a sociedade continua perpassada pela divisão social e técnica do trabalho, de modo a assegurar a hegemonia do capital”.
Por outro lado, é necessário e urgente propiciar ao trabalhador uma educação que contribua para sua emancipação, a partir da consciência de classe e do acesso aos saberes tradicionalmente destinados à elite, favorecendo assim não só uma formação para o trabalho mas a formação omnilateral, considerando o sujeito como ser integral.
A formação do trabalhador na sociedade capitalista não pode desconsiderar sua necessidade de acesso ao emprego como forma de garantir sua sobrevivência e de sua família. Deste modo, não é possível desconsiderar por completo as exigências do capital em termos de capacitação. Por outro lado, faz-se necessário, se entendemos a educação numa perspectiva emancipatória, não restringir a formação do trabalhador à capacitação para o trabalho, mas proporcionar o acesso aos diversos tipos de saberes socialmente acumulados.
De Paula (2007) destaca a importância que Marx dá à formação, à educação, compreendida em três dimensões: intelectual, física e técnico-científica, as quais combinadas possibilitariam a elevação da classe operária acima das demais classes. Segundo o mesmo autor, o futuro da classe operária depende da formação que há de vir e alerta que, enquanto a escola for um produto da sociedade de classes, da divisão social do trabalho, ela contribuirá na manutenção da sociedade capitalista.
Em que pese a impossibilidade de uma emancipação plena do trabalhador no seio de uma sociedade capitalista, julga-se imprescindível que a educação contribua para a emancipação dos sujeitos por meio de uma formação que o considere como ser integral e não apenas restrito à figura do trabalhador.
O capitalismo reduz o sujeito ao seu papel no sistema produtivo, como se a vida do trabalhador se reduzisse ao trabalho, sendo desestimuladas as atividades de lazer ou quaisquer outras que de algum modo possa colocar em risco sua produtividade. Cria-se no trabalhador a ilusão de que dedicando toda sua energia ao trabalho, tornar-se-á possível seu enriquecimento. A expectativa de elevação do salário impele o trabalhador ao sobretrabalho (MARX, 2004), ainda que para isto tenha que sacrificar o tempo em família, o descanso, o lazer.
É papel da educação conscientizar o trabalhador desta realidade e dos mecanismos de controle utilizados pelo capital para controlar não só o trabalho como também a vida do trabalhador fora do ambiente de trabalho. Conforme Meszáros (2008, p. 15) “o objetivo central dos que lutam contra a sociedade mercantil, a alienação e a intolerância é a emancipação humana”. Nesta perspectiva, cumpre romper com a educação transformada em mercadoria e como instrumento de controle e exploração nas mãos dos capitalistas.
O empreendimento societal por um trabalho cheio de sentido e pela vida autêntica fora do trabalho, por um tempo disponível para o trabalho e por um tempo verdadeiramente livre e autônomo fora do trabalho – ambos, portanto, fora do controle e comando opressivo do capital - convertem-se em elementos essenciais na construção de uma sociedade não mais regulada pelo sistema de metabolismo social do capital e seus mecanismos de subordinação (ANTUNES, 2011, p. 11).
Como bem destacam Canielles e Oliveira (2011, p. 7), “a emancipação humana está no horizonte de toda a produção de Marx, é o princípio pelo qual haveria a possibilidade de rompimento e superação do modelo social do capital”. Esta emancipação, todavia, tem como condição o conhecimento amplo e profundo da realidade a ser transformada (TONET, 2012).
Na sociedade atual, Marx admite a impossibilidade da emancipação humana plena e, neste contexto, considera a emancipação política não só uma necessidade, mas uma forma possível de emancipação: “Não há dúvida de que a emancipação política representa grande progresso. Embora não seja a última etapa da
emancipação humana em geral, ela se caracteriza como a derradeira etapa da emancipação humana dentro do contexto do mundo atual” (MARX, 2005, p.25).
No mesmo sentido, Adorno (2006) defende uma educação voltada para a auto- reflexão-crítica, que não se reduza à transmissão de conhecimentos, mas que ajude o indivíduo a se orientar no mundo. Para tanto, faz-se necessário que as poucas pessoas interessadas nesta “educação para a emancipação” orientem toda a sua energia para que a educação seja uma educação para a contradição e para a resistência.
A formação com vistas à emancipação humana supõe o reconhecimento do sujeito em sua integralidade, realizando-se, portanto, numa perspectiva onmilateral, isto é, contrapondo-se à unilateralidade decorrente da divisão social do trabalho no sistema capitalista. Tal formação pressupõe um ensino intelectual, físico e tecnológico para todos, considerando o homem como ser completo (MANACORDA, 2011).
Esse é o destino do homem e, para isso, deve objetivar o ensino intelectual, físico e tecnológico para todos, porque a divisão dos homens, entre destinados ao trabalho e outros à ciência, os à produção e outros ao consumo, uns ao cansaço ou outros ao gozo, é o nó das contradições da sociedade capitalista que Marx pretende cortar. Eis ‘o germe da educação do futuro’ (MANACORDA, 2011, p. 82).
Como bem pontua Frigotto (2012, p. 265) uma educação onmilateral abrange “a concepção de educação ou de formação humana que busca levar em conta todas as dimensões que constituem a especificidade do ser humano e as condições objetivas e subjetivas reais para seu pleno desenvolvimento histórico”. É, portanto, compreendida como uma educação voltada para a emancipação humana em todas as suas dimensões.
Implica, sobretudo, o resgate da integralidade humana, do reconhecimento do sujeito enquanto ser social e não apenas como ser que trabalha. Por outro lado, no campo da formação para o trabalho, implica a tomada de consciência da exploração a que o trabalhador está submetido, da necessidade de ampliar o conhecimento no seu campo de atuação profissional quebrando as barreiras da dualidade entre o trabalho manual e intelectual.
Gramsci (2001) defende uma escola que priorize a formação humanista, que caracteriza como “comum, única e desinteressada”, onde o aspecto formativo não seja sobreposto pela preocupação em satisfazer interesses práticos imediatos (como a
formação profissional, por exemplo). Na sua concepção a escola não deveria ser hierarquizada por classes sociais, mas proporcionar uma educação que contemple a todos os indivíduos com as mesmas oportunidades de formação. Ainda na concepção de Gramsci (1991, p. 118):
A crise terá uma solução que, racionalmente, deveria seguir esta linha: escola única inicial de cultura geral, humanista, formativa, que equilibre equanimemente o desenvolvimento da capacidade de trabalhar manualmente (tecnicamente, industrialmente) e o desenvolvimento das capacidades de trabalho intelectual. Deste tipo de escola única, através de repetidas experiências de orientação profissional, passar-se-á a uma das escolas especializadas ou ao trabalho produtivo. (GRAMSCI, 1991, p. 118).
A formação deveria, portanto, contemplar o indivíduo em sua totalidade, valorizando o aspecto intelectual, humano, cultural, e não apenas restringir-se à formação profissional, que é sim importante, mas não pode ser a única preocupação na formação do trabalhador.
Uma educação com vistas à emancipação do trabalhador deve possibilitar a retomada do sentido ontológico do trabalho como produção da existência humana, como processo que possibilita o desenvolvimento das sociedades do ponto de vista científico e tecnológico, não para facilitar a exploração pelo capital, mas para melhorar a vida dos sujeitos, com vistas ao bem comum.
O trabalho em seu sentido ontológico é compreendido como produção da existência humana, vinculando-se basicamente às necessidades humanas. Nesta perspectiva, a educação tem no trabalho seu princípio educativo, considerando a necessidade de que todo ser humano trabalhe para sobreviver.
Com o surgimento da propriedade privada e mais tarde o advento do capitalismo, surge a possibilidade de que um grupo de sujeitos (os proprietários dos meios de produção) não precisem trabalhar para sobreviver, mas vivam da exploração do trabalho alheio. Assim, o trabalho no capitalismo é alienado e o trabalhador perde o direito aos bens que produz, vê seu trabalho sendo fragmentado e é destituído inclusive do conhecimento que envolve seu trabalho. O trabalho, convertido em
mercadoria, concebe o trabalhador como mera engrenagem no sistema produtivo, tal como funciona os maquinários.
A formação do trabalhador, nesta perspectiva, é condicionada aos interesses do mercado, que dita em que medida deve ou não ser possibilitada a qualificação do trabalhador. A dualidade entre trabalho manual e intelectual determinam os níveis de formação dos sujeitos, formação esta que não é suficiente sequer para assegurar o direito ao emprego.
A ruptura com esta educação vinculada aos interesses do mercado não é tarefa fácil, mas fundamental para a construção de uma sociedade mais justa. Para tanto, é importante que a educação contribua para a emancipação dos sujeitos, por meio de uma formação onmilateral, isto é, que abranja não só a formação para o trabalho como também a formação intelectual, ética e, sobretudo, a consciência de classe.
Sem perder a consciência de que, como bem pontua Marx em toda sua obra, a emancipação plena do trabalhador ainda está distante de acontecer, é preciso investir naquela possível, isto é, a emancipação política, a qual depende essencialmente da consciência de classe. Mais que a conscientização, é preciso possibilitar ao trabalhador o acesso ao saber historicamente acumulado pela humanidade, favorecendo sua formação como ser integral e não apenas uma formação restrita ao trabalho ou ao desenvolvimento de aptidões desejáveis ao capital.
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Recebido em: 26 de outubro de 2018. Aceito em: 21 de janeiro de 2019. Publicado em: 28 de maio de 2019.
v.17, nº 32, jan-abr (2019) ISSN: 1808-799 X
MORAIS, Ricardo Cavalcante. Trabalho, educação e regulação jurídica: formas contraditórias de subsunção do trabalho “informal” ao capital. 2018. 331p. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, 2018.1 2
Das relações trabalho-capital decorrem contradições que se manifestam na questão social, da qual deriva a “informalidade” que, a princípio, se manifesta predominantemente em situações improdutivas ao capital. Contudo, na medida em que a reestruturação produtiva do capital se converte em um padrão flexível de acumulação ela passa a integrar também o trabalho produtivo ao capital, o que repercute em uma “nova informalidade” da qual decorre a generalização do trabalho “informal” como forma social dominante de trabalho. No Brasil essas faces da “informalidade” são observadas de um lado, nas atividades da economia popular e de outro, nos processos de terceirização, “pejotização” e “uberização” do trabalho, assegurados pela reforma trabalhista de 2017 e outros diplomas legais.
Fundamentada na crítica à economia política, a pesquisa teve como objetivo analisar as formas contraditórias de subsunção real do trabalho ao capital que se manifestam nas atividades de trabalho “informal” urbano, no contexto da acumulação flexível, mediadas pela regulação jurídica do trabalho e pelas relações trabalho- educação.
1 DOI: https://doi.org/10.22409/tn.17i32.p28312
O objeto teórico da pesquisa concentra-se nas diferentes formas de subsunção real do trabalho “informal” ao capital e suas implicações nas relações trabalho- educação. O objeto empírico consiste nas distintas relações de trabalho “informal” urbano que estão inseridas na totalidade econômica do modo de produção capitalista brasileiro contemporâneo. Os objetivos específicos foram: a) identificar as concepções teórico-metodológicas que substanciam os diferentes entendimentos sobre o fenômeno da economia “informal” no interior do modo de produção capitalista; b) distinguir as singularidades do trabalho “informal” a partir do critério estrutural da produtividade do trabalho ao capital; c) analisar as atividades de trabalho “informal” urbano, considerando a relação entre regulação jurídica e produtividade geral do capital; d) analisar as relações trabalho-educação tendo em conta o princípio educativo do trabalho e as condições impostas pela subsunção real do trabalho ao capital.
Os procedimentos metodológicos envolveram principalmente revisão de literatura, análise documental, levantamento de dados primários e secundários, expedições exploratórias e observação participante. O trabalho de campo foi realizado no Município de Imperatriz -MA com levantamentos que variaram entre 2010 e 2018. Ele evidenciou duas dimensões da “informalidade”, considerando aglomerados de trabalhadores, em geral da economia popular, nas ruas e praças; e trabalhadores vinculados a empresas que promovem o marketing de rede. O intuito do trabalho de campo, neste sentido, foi investigar, no ato de trabalhar, os aspectos concretos que as reações trabalho-educação assumem nas múltiplas situações de “informalidade”.
A hipótese formulada para a pesquisa e confirmada no seu decorrer foi que: a subsunção real do trabalho ao capital avança e se generaliza no regime de acumulação flexível, tendo como mediação indelével a regulação jurídica do trabalho “informal”. Nestas circunstâncias, por serem diversas as relações entre trabalho e capital, também são diversos os nexos trabalho-educação constituindo-se o trabalho “informal” como atividade criadora que embora não anule o princípio educativo do trabalho o subverte, circunscrevendo-o nos limites imposto pelas formas e graus de subsunção real do trabalho ao capital.
A tese consiste em seis capítulos sendo o primeiro e o último, introdução e conclusão respectivamente. O segundo capítulo intitulado Trabalho, Sociedade e Educação, apresenta os fundamentos teórico-conceituais resultantes da revisão de
literatura. Em primeiro apresenta-se os fundamentos onto-históricos do trabalho a partir da relação entre seres humanos e natureza, argumentando-se que no modo de produção capitalista essa relação é subvertida pelas relações sociais de produção. Em seguida investiga-se os elementos do processo de trabalho e as peculiaridades do modo de produção capitalista e se faz a distinção entre trabalho produtivo em geral e trabalho produtivo ao capital tendo em vista a opção de análise da “informalidade” quanto à singularidade da produtividade ou não das situações de trabalho ao capital. É apresentada uma recuperação histórica dos principais modelos de organização produtiva do capital, do taylorismo ao padrão flexível de acumulação, para fundamentar que as condições de trabalho e renda estão historicamente condicionadas à organização produtiva capitalista e indicar que estes arranjos produtivos subvertem de diferentes formas a dimensão educativa do trabalho. Argumenta-se que o pauperismo da população trabalhadora é a expressão de uma questão social fundada sobre a contradição capital/trabalho. E, ainda, que a relação homem-natureza é pressuposto do trabalho enquanto princípio educativo e que a subversão de uma significa a subversão do outro.
O terceiro capítulo é intitulado Regulação Jurídica e o Direito à Educação. Em primeiro ele apresenta o Direito enquanto uma mediação social que se torna dominante no modo de produção capitalista; sendo contraditória na medida em que não pode se constituir em via de efetiva transformação social em benefício da classe trabalhadora face ao capital, mas que ainda assim é trincheira na qual a classe trabalhadora possa preservar conjunturalmente algumas garantias. Assim são apresentados elementos teóricos-metodológicos como meio de fundamentar uma epistemologia crítica do direito na pesquisa. É feito um levantamento, da formulação da educação enquanto um direito social positivado do plano internacional ao nacional. Mostra-se que esta formulação não é desinteressada e se articula com os interesses produtivos do capital internacional. É apresentado o cenário regulatório pós Constituição de 1988, com o intuito de argumentar que o modelo de ensino público, subsumido ao capital corrobora de uma forma generalizada para subversão do princípio educativo do trabalho na dimensão escolar articulando-se com sua subversão na dimensão produtiva.
O quarto capítulo é intitulado Trabalho “informal” e as diversas faces da subsunção real. Ele apresenta em primeiro um levantamento a respeito das diferentes
abordagens da “informalidade” para evidenciar a imprecisão histórica do termo e faz uma recuperação da investigação da “informalidade” no Brasil, que indica também volatilidade do tratamento do tema. Caracteriza a “informalidade” a partir de dados secundários que indicam as condições sociais, de trabalho e renda da respectiva população trabalhadora e apresenta abordagens estruturais do tema que identificam respectivamente a sua subordinação estrutural e seu atrelamento ao padrão flexível de acumulação (“nova informalidade”). Em seguida, dentro de uma separação das situações de trabalho “informal” quanto à produtividade ao capital, caracteriza em sessões distintas o trabalho “informal” improdutivo e o produtivo.
O quinto capítulo da tese é intitulado Trabalho-Educação e “Informalidade” no Município de Imperatriz -MA: do velho ao novo em cinquenta tons de cinza. Primeiramente é feita uma caracterização do campo empírico, a partir de dados do Estado do Maranhão e do Município de Imperatriz -MA. Assim evidencia-se que os dados do crescimento econômico contrastam com o do desenvolvimento escolar e com o do desenvolvimento das condições de trabalho e renda da população municipal. Em um primeiro momento, se analisa a “informalidade” improdutiva ao capital,
a partir de aglomerações de trabalhadores ao longo de ruas e praças no centro comercial; assim identifica as precárias condições de trabalho e renda, a subversão da relação homem-natureza pela exclusão social de um “lugar” de trabalho, e os aspectos concretos da dimensão educativa do ato de trabalhar destes grupos.
Por outro lado, a quantidade de trabalhadores, mediada pela organização política, oferece à categoria força para a apropriação do espaço público, não enquanto propriedade, mas como um lugar de trabalho. Não é um lugar para si, mas um lugar para ser.
Em um segundo momento se faz a caracterização da “informalidade” produtiva a partir do caso concreto dos trabalhadores e das empresas de marketing de rede ou multinível. Argumenta-se no sentido da preponderância dos discursos ideológicos sobre essas relações de trabalho; e no sentido da maior subversão da dimensão educativa no ato de trabalhar desses indivíduos, pois embora o conhecimento seja mais formalmente estruturado, se aplica a um trabalho super explorado.
A súmula da Tese resultante das conclusões é que o princípio educativo do trabalho é uma decorrência da dimensão onto-histórica do trabalho, não podendo ser anulado em qualquer formação social. Contudo, no modo de produção capitalista está sujeito à uma subversão generalizada que se dá em distintos graus e modos, manifestada na corrosão das relações homem-natureza, e na generalização da “informalidade” como forma social dominante de trabalho. O estágio atual do padrão flexível de acumulação no Brasil tem como elemento estratégico a regulação jurídica
do trabalho “informal”. Esta é meio pelo qual se legitima a divisão social do trabalho e se assegura a forma desigual de participação social no produto do trabalho, mas não determina a forma de inserção do trabalho na totalidade econômica, embora a legitime. São práticas sociais de trabalho que, no contexto da subsunção real do trabalho ao capital, determinam as singularidades nas relações homem-natureza e consequentemente nas relações trabalho-educação.
Recebido em: 19 de fevereiro de 2019. Aprovado em: 21 de fevereiro de 2019. Publicado em : 28 de maio de 2019.
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CAU, José Nildo Alves. A Juventude do Curso técnico integrado em Agropecuária do IFPE: Desejos, expectativas e experiências vivenciadas para construção dos seus projetos de vidas. 2017. 400f. Tese Doutorado - Universidade Federal de Pernambuco, CE. Programa de Pós-Graduação em Educação, 20171 2.
“Toda emancipação constitui uma restituição do mundo humano e das relações humanas ao próprio homem”. (MARX, 1989, p. 63).
A presente pesquisa articula-se à Linha de Pesquisa Política Educacional, Planejamento e Gestão da Educação do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Pernambuco, e teve como objetivo central analisar o que os jovens matriculados na Educação Profissional do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Pernambuco buscam ao realizarem sua formação no Curso Técnico Integrado em Agropecuária. Junto a isso, tecemos o esforço de explicitar quem são os jovens que frequentam o curso Técnico Integrado de Agropecuária do IFPE; discutir a construção da trajetória da formação do Técnico Integrado em Agropecuária em articulação com os determinantes sociais na condição juvenil, além de apreender como se articula o projeto de vida da juventude matriculada no Curso
1 DOI: https://doi.org/10.22409/tn.17i32.p28313
2 Doutor em Educação pela UFPE. Mestre em Educação pela UFPE. Especialista em Educação de Formadores pela UFRPE. Licenciatura Plena em Educação Física-ESEF-UPE. Gestor de Esporte e Juventude na Autarquia Municipal de Esporte Geraldo Magalhães e Diretor de Lazer na Secretaria de Turismo e Esporte – Prefeitura do Recife. Professor da Educação Básica da Rede Municipal de Olinda e Rede Estadual de Pernambuco e atualmente Prof. do Instituto Federal de Pernambuco - IFPE – Campus Barreiros/Coordenador de Educação Física, Esporte e Lazer-DAE – IFPE e Pesquisador – Formador UFMG. Realiza pesquisa nas áreas de Educação e Trabalho, Juventude, Políticas Públicas de Educação Física, Esporte e Lazer e membro do Grupo de Pesquisa GESTOR. A tese foi orientada pelo Prof. Dr. Ramon Oliveira, defendida em 24 de fevereiro de 2017. caunildo@gmail.com
Técnico Integrado em Agropecuária e as experiências vivenciadas no processo formativo.
Nesse sentido, almejamos com o estudo compreender o que os jovens buscavam ou esperavam da formação do Curso Técnico Integrado em Agropecuária do IFPE, que tem sua importância pelo reconhecimento do papel ativo dos jovens como sujeitos sociais que se produzem por meio das relações com os outros. Compreendendo que a escola tem razão de ser pelo jovem, consideramos salutar que esses jovens nos falem sobre o que os mobilizou para realizar sua formação e em que ela interferiu ou favoreceu na construção do seu projeto de vida. Essa realidade contribuiu para amadurecer o interesse de conhecer, compreender a realidade da juventude inserida no ensino médio, quem são e como vivem os jovens/alunos inseridos no processo formativo do Curso Técnico Integrado em Agropecuária, bem como apreender os sentidos e significados atribuídos pelos jovens egressos às experiências vividas ao longo do processo formativo e como foram sendo articuladas com seus propósitos de projeto de vida.
A escolha de pesquisar o Ensino Médio (EM) foi aguçada inicialmente na experiência vivida na atuação com a juventude em diferentes espaços sociais, mais especificamente nas experiências vividas com os jovens do EM no contexto do IFPE como professor efetivo da disciplina de Educação Física que foi substancial para emergirem inquietações quanto ao papel da escolarização da Escola Técnica Federal de Pernambuco (EPTNM) na vida dos jovens e o que tem alimentado suas expectativas em relação à formação do Curso Técnico Integrado em Agropecuária. Reconhecemos que a opção do objeto está inscrita em minha experiência de vida.
A pesquisa sobre os propósitos que os jovens têm em relação a buscar uma formação profissional balizou-se por uma abordagem epistemológica que procura considerar a juventude na sua totalidade social, considerando que esse grupo social vive esse momento da escolha vocacional ou profissional, sobretudo, como momento de incorporar alguns papéis construídos socialmente para sua integração à vida adulta. Entendemos que, mesmo diante de condições socioeconômicas e de histórias de vida distintas, esses jovens constituem sua identidade mediante uma materialidade determinante que os instituem como jovens filhos da classe que vive do trabalho (ANTUNES, 2003). Por mais que as escolhas ganhem contorno nas individualidades, encontramos na essência (condições materiais de existência) elementos que
interferem e condicionam as possibilidades de experiências sociais e de criação de estratégias para a obtenção de propósitos forjados na dinâmica do real e nas particularidades do processo formativo.
Corroboramos, neste estudo, que a educação básica deve ser um direito social e subjetivo, constituindo, com isso, uma condição essencial para conquista da cidadania política e econômica para as gerações de jovens (FRIGOTTO,2005).
Como visor para compreensão da realidade, toma-se a juventude como resultado de uma construção social que se caracteriza pelo processo de ressocialização. Tendo como referência o conceito de juventude como um grupo social em processo de ressocialização, entendendo que, na socialização primária, a criança, por meio da família, como instância socializadora, é forjada para viver determinadas relações sociais, instituídas pelo modo de produção capitalista, em que recebe uma bagagem de habilidades (falar, ler e escrever), ou seja, um conjunto de valores e comportamentos prescrito socialmente para integração à sociedade. Ao mesmo tempo em que apreende um conjunto de saberes necessários a essa idade e às atividades sociais desse momento. Com isso, o processo de ressocialização ganha sentido substantivo na preparação da força de trabalho para inserção no mercado de trabalho. A escola assume o papel social nos dois processos, de forma diferenciada, pois na ressocialização oferta uma escolarização que possibilita a entrada no mercado de trabalho, nos diversos níveis de aprofundamento do ensino, partindo do ensino médio, técnico e, na maior exigência, a universidade (VIANA, 2014).
Destacamos que se vislumbrou como ponto de partida desvelar quem são e como vivem os jovens que frequentam o Curso Técnico Integrado em Agropecuária, igualmente as expectativas alimentadas como projeto inicial de vida, ao buscar a formação em Técnico Integrado em Agropecuária, estabelecendo as devidas relações com os motivos e as influências que determinaram sua escolha. Ao mesmo tempo, atentamos para apreender como as experiências vividas e apropriadas das relações do dia a dia do processo formativo tornam-se significativas e articuladas com a construção do projeto de vida.
O percurso teórico-metodológico pautou-se na pesquisa qualitativa e pelo método dialético, em que se utilizam instrumentos e procedimentos plurais para coleta e produção de dados. A pesquisa realizou-se em duas etapas: uma inicial, com um estudo exploratório envolvendo 307 jovens matriculados do Campus do IFPE de
Vitória de Santo Antão e Belo Jardim, onde utilizamos aplicação de questionários para levantar os motivos da escolha do curso e suas expectativas. Na segunda etapa foram realizadas a aplicação de questionários e entrevistas semiestruturadas com 28 jovens egressos do Campus Barreiros e Vitória de Santo Antão. Acreditamos que conhecer, interpretar e compreender quem são, como vivem, e os propósitos de futuro alimentados dos jovens matriculados no Curso Técnico Integrado em Agropecuária, possibilitou-nos compreender as aspirações iniciais que eles trazem como resultado das experiências vividas e das influências construídas socialmente. Para tanto, para apreender nosso objeto de estudo, metodologicamente na segunda etapa da pesquisa, recorremos aos jovens egressos do Curso de Técnico Agrícola para compreendermos e captarmos a contribuição das experiências vivenciadas no processo formativo e de que forma elas se tornaram significativas para a confirmação de seus projetos iniciais ou na redefinição em função do despertar de novos interesses que convergiram para a definição do rumo na vida dos jovens.
Os dados reunidos foram tratados através da Análise de conteúdo (BARDIN, 2010) e os resultados revelaram que a escolha dos jovens pela instituição e pelo curso decorre da influência de vários fatores sociais: a família, amigos, professores, referência social da instituição, condições de oferta, a qualidade pedagógica do IFPE e no status de escola pública de referência no ensino médio de qualidade na região. E evidenciaram que o projeto de vida dos jovens foi alimentado/construído por meio de múltiplas experiências vividas, que se tornaram significativas na medida em que favoreceram a ampliação do convívio social e de conhecimentos, que despertaram para novos interesses, contribuíram para a identificação profissional, desenvolveram habilidades sociais, edificando, paulatinamente, a descoberta do que fazer de sua vida.
A pesquisa nos revelou alguns desafios a serem repensados: Os jovens destacam a necessidade de criar canais de diálogo para que possam ser ouvidos em relação às questões que envolvem a comunidade escolar, ou seja, cobram a participação nas decisões; os jovens precisam ser incorporados como jovens que dão sentido à instituição, cuja realidade tem apreendido apenas como aluno e desconsidera o jovem; credita-se a necessidade de ampliar a Política de Assistência Estudantil com a disponibilização de bolsas, considerando que essa ação tem constituído em um aspecto contingencial para manutenção, suporte e incentivo no
estímulo à pesquisa, extensão, monitoria, atleta, entre outras, uma vez que ganhou efetividade e interferiu de forma relevante para construção do projeto de vida dos jovens egressos da instituição.
A pesquisa nos possibilitou afirmar como tese que a construção do projeto de vida dos jovens do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Pernambuco não é controlada, mas ele pode ser influenciado socialmente afirmando aspirações ou ser redimensionado em função da qualidade das experiências vivenciadas e apreendidas ao longo do processo formativo no Curso Técnico Integrado em Agropecuária, despertando para novos interesses em direção à autorrealização.
Nesse sentido, acreditamos na possibilidade efetiva da transformação social da juventude que busca a formação em Técnico Integrado em Agropecuária, reconhecendo a educação como um dos instrumentos fundamentais para os jovens filhos da classe que vive do trabalho na sua autoconstrução e liberdade.
Recebido em: 25 de fevereiro de 2019. Aprovado em: 7 de maio de 2019. Publicado em: 28 de maio de 2019.
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RODRIGUES, Bruno Alysson Soares1 2. O PISA e o problema da negação do conhecimento: uma crítica marxista ao discurso da educação para a cidadania global. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Federal do Ceará (UFC), Fortaleza, 20183.
Esta pesquisa tem por intuito desvelar, a partir do resgate do estatuto ontológico marxiano feito por Lukács, a falseabilidade da tese que compreende a educação como elemento responsável pelo desenvolvimento econômico de uma nação e a nefasta consequência do conceito de formação para a cidadania contida na agenda mundial para o complexo educativo. Com efeito, partimos do trabalho como protoforma do ser social evidenciada pela ontologia marxiana para realizar a crítica ao projeto liberal burguês de educação, expressado aqui em sua particularidade formal, a saber, uma avaliação dos sistemas de ensino chamada PISA.
Nosso intuito é demonstrar a influência do capital internacional no âmbito das reformas estatais da educação dos países periféricos, evidenciando, a partir de relatórios emitidos pela OCDE, as contradições e artifícios discursivos de seu conteúdo ideológico que nada mais são do que uma ramificação epifenomênica do escolanovismo composto por pedagogias que formam o ideário aprender a aprender.
1 DOI: https://doi.org/10.22409/tn.17i32.p28314
Graduado em Pedagogia pela Universidade Estadual do Ceará - UECE. Mestre em Educação pela Universidade Federal do Ceará - UFC. Doutorando em Educação do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual do Ceará - PPGE-UECE. A dissertação aqui apresentada foi orientada pela professora PhD. Susana Jimenez na Universidade Federal do Ceará – UFC.
Link para o trabalho completo: http://www.repositorio.ufc.br/handle/riufc/34602
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Entendemos que este conteúdo ideológico obnubila a relação entre teoria e prática, direcionando-a para a formação de um indivíduo cuja substancialidade subjetiva é pauperizada e incapaz de realizar a devida articulação entre objetividade e subjetividade na medida em que é notoriamente orientado pelos novos paradigmas da Sociedade do Conhecimento, pela Teoria do Capital Humano e pelo arcabouço filosófico do irracionalismo pós-moderno. Argumentamos ainda que sob o jugo do capital não há possibilidade de uma educação autenticamente humana ser constituída, evidenciando o fato empiricamente constatável de que ética e capital são inimigos mortais.
No intuito de realizar uma contribuição para o entendimento de uma perspectiva onto-histórica do complexo social da educação, apresentaremos aqui uma crítica a um dos elementos de continuidade do Movimento Educação para Todos, o Programa Internacional de Avaliação do Estudante (PISA). Para tanto, buscamos nesta pesquisa, apresentar a relação íntima entre os princípios pedagógicos que norteiam tal programa e o novo ideal de homem contemporâneo necessário para a reprodução do metabolismo social do capital, hoje em crise estrutural. Os princípios pedagógicos aqui criticados refletem a necessidade que o próprio capital tem de reproduzir seu modelo social de profissional polivalente, um indivíduo capaz de pôr em movimento os valores sociais da sociedade contemporânea a partir do desenvolvimento de habilidades e competências que serão aprendidas no decorrer da chamada vida moderna.
O Programa Internacional de Avaliação do Estudante (PISA) é um programa de avaliação comparativa para mensurar conhecimentos que se constituem em competências e habilidades dos estudantes com 15 anos de idade. Este mecanismo avaliativo é aplicado a cada três anos em todos os países membros e economias parceiras da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e tem como objetivo monitorar o desempenho dos sistemas educacionais de maneira rigorosa, sistemática e internacionalmente comparável. Por meio do PISA, são avaliadas as áreas de leitura, matemática e ciências, sendo que, a cada ano de avaliação uma ênfase maior é dada em uma das áreas anteriormente citadas (Organisation for Economic Co-operation and Development, 2016a) levando cerca de nove anos para completar um ciclo de avaliação.
O PISA não se constitui como um programa individual para avaliar o aluno e sim um programa para mensurar as capacidades de um sistema educacional. A
avaliação do PISA consiste na utilização de testes realizados em computador em um período de duas horas para cada indivíduo. Os itens de avaliação são uma mistura de questões de múltipla escolha e questões que requerem dos estudantes que eles construam suas próprias respostas. As questões são relativas a problemas cotidianos, que os técnicos do PISA chamam de situações da vida real (Organisation for Economic Co-operation and Development, 2016a). Além disso, os estudantes respondem um questionário socioeconômico que leva cerca de trinta e cinco minutos para completar. Esse questionário tem informações sobre os próprios estudantes, suas casas e suas experiências de aprendizagem na escola. Um outro questionário adicional é aplicado aos membros da administração escolar que ditam os princípios que regem a prática escolar (Organisation for Economic Co-operation and Development, 2016a). Em cada país existe um instituto ou algum tipo de órgão que trabalha com pesquisa científica em educação, que coordena e que se encarrega das tarefas necessárias à aplicação da avaliação em escala nacional. No Brasil, essa tarefa é realizada pelo Instituto de Estudos e Pesquisas em Educação Anísio Teixeira, desde 2000.
É importante destacar que as chamadas políticas nacionais de melhoria da educação mencionadas nos relatórios se referem a orientações que indicam a necessidade de reformas estatais no âmbito da legislação educacional de cada país. Dizendo com outras palavras, os resultados mensurados pela avaliação dos técnicos do PISA são analisados por especialistas da OCDE em fóruns internacionais. Esses resultados são comparados com diversos países seguindo os critérios de mensuração da OCDE e são emitidos relatórios gerais que orientam os países membros e economias parceiras a atualizar e reformar seus sistemas de ensino ou sua legislação educacional no intuito de se aproximar ao máximo possível das políticas postas em prática pelos países membros da OCDE.
As reformas educacionais na legislação de ensino nos países periféricos serão justificadas a partir da tese de que “os resultados desse estudo podem ser utilizados pelos governos dos países envolvidos como instrumento de trabalho na definição e refinamento de políticas educativas” (INSTITUTO DE ESTUDOS E PESQUISAS EM EDUCAÇÃO ANÍSIO TEIXEIRA, 2015) e a busca pelo alcance aos critérios de mensuração serão justificados a partir da tese de que ao aproximar os paradigmas do
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sistema de ensino de seu país ao sistema de uma economia avançada é possível que se torne “mais efetiva a formação dos jovens para a vida futura e para a participação ativa na sociedade” (INSTITUTO DE ESTUDOS E PESQUISAS EM EDUCAÇÃO
ANÍSIO TEIXEIRA, 2015). As informações necessárias estão apresentadas nos relatórios gerais do PISA emitidos pela OCDE aos países membros e economias parceiras.
Nesses relatórios gerais são encontradas as análises de conjuntura dos especialistas da OCDE, representados pelo PISA Governing Board, bem como o enquadramento conceitual que define as competências escolares necessárias ao processo de participação no que os especialistas do PISA chamam de vida moderna3. O PISA representa a continuação, em nível global, dos chamados novos paradigmas que orientam as pedagogias do aprender a aprender, elaborando, para tanto, indicadores contextuais que relacionam os conhecimentos, as habilidades, competências e as variáveis demográficas, econômicas e educacionais dos alunos dos países membros e das economias parceiras.
É o paradigma do aprender a aprender que orienta e estrutura o conteúdo do PISA, influenciando os sistemas educacionais a pautarem suas práticas no processo de aprendizagem do aluno, nos instrumentos cognitivos desenvolvidos pelo aluno para continuar a aprender na vida fora da escola, nos recursos cognitivos desenvolvidos pelo aluno para otimizar a sua própria aprendizagem.
É desta forma que entendemos que o programa de avaliação de sistemas educativos criados pela OCDE no início do século XXI servirá de parâmetro para orientar a definição de valores, competências e habilidades que compõem os saberes atitudinais que se constituem como conhecimentos instrumentais, pragmáticos, de uso imediato e contextualizado, que permeiam sobremaneira as políticas das reformas educacionais nos Estados das economias periféricas do capital, com o intuito de tornar o complexo social da educação mais eficiente ao metabolismo do capital, utilizando, para tanto, um instrumento de coerção social tecnicista supostamente neutro, criado por intelectuais burgueses para economias dependentes.
Entramos em maiores detalhes sobre a categoria “vida moderna” no subitem 5.2 da dissertação. Demonstraremos que a chamada “vida moderna” é um falso socialmente necessário para tornar viva a tese de que a adaptação ao sistema do capital é o mecanismo mais eficiente de se alcançar a prosperidade econômica. Desta forma, a tese da “participação na vida moderna” faz parte de um conjunto de exigências do capital para a conclusão do processo de formação da individualidade do indivíduo pequeno-burguês, uma subjetividade complexa o suficiente para ser capaz de reproduzir o mecanismo sociometabólico do capital e entendê-lo como eterno e imutável.
INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS EM EDUCAÇÃO ANÍSIO
TEIXEIRA. O que é o PISA? Brasília, 2015. Disponível em:
<http://portal.inep.gov.br/pisa>. Acesso em: 19 jun. 2017.
ORGANISATION FOR ECONOMIC CO-OPERATIONS AND DEVELOPMENT. PISA
<http://www.oecd.org/pisa/pisa-2015-results-in-focus.pdf>. Acesso em: 20 jun. 2017.
SINDEAUX, R. B. Políticas do banco mundial para a educação e suas implicações para a formação docente. In: SANTOS, D.; ALENCAR, M. C. F.; SINDEAUX, R. B. (Orgs.). Sociedade ciência e sertão: reflexões sobre a educação cultura e política. Fortaleza: EdUECE, 2010. p. 215-234.
Recebido em: 23 de fevereiro de 2019. Aprovado em: 7 de maio de 2019. Publicado em: 28 de maio de 2019.
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Lívia Diana Rocha Magalhães2 Daniela Moura Rocha de Souza3
O grupo de estudos e pesquisa em História e Memória Geracional e trajetórias sóciogeracionais – GHEMPE, sediado no Museu Pedagógico da UESB, desenvolve a pesquisa “Educação, Memória e História da Bahia: processos autoritários e ditadura militar” tendo como norte o levantamento de documentos que dão suporte ao entendimento acerca dos processos autoritários que recaíram sobre estudantes, professores (as) e funcionários (as), baianos (as) durante a ditadura civil-militar (1964 - 1985).
Tomamos como parâmetro as discussões sobre memória arquivada (RICOEUR, 2007) memória coletiva e social (HALBWACHS, 2006), memória geracional (ARÓSTEGUI, 2004; MAGALHÃES, 2018), entre outras, priorizando a análise sobre memória dominante, memórias alternativas, memória e ideologia (MAGALHÃES, MASCARENHAS, 2011), buscando o potencial do documento no que corresponde à recomposição de memórias oprimidas silenciadas pela história oficial, a partir de uma perspectiva histórico-dialética.
Com a instalação da Comissão Nacional da Verdade (CNV), pela Lei de nº 12.528/2011, outras dezenas de comissões, similares a esta, foram instauradas nos âmbitos estaduais, municipais, inclusive em instituições de ensino superior em todo o
1 DOI: https://doi.org/10.22409/tn.17i32.p28315
2 Doutora em Educação pela UNICAMP, com pós-doutorado em Psicologia Social pela UERJ. Professora plena do DFCH da UESB. Coordenadora geral do Museu Pedagógico e do Grupo de estudos e pesquisa em História e Memória Geracional e trajetórias sócio geracionais – GHEMPE. Vice coordenadora do Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Memória: Linguagem e Sociedade pela UESB. lrochamagalhaes@gmail.com
3 Doutora em Educação pela UNICAMP, com pós-doutorado em Memória: Linguagem e Sociedade pela UESB. Professora do DCH da UNEB campus VI. Vice coordenadora do Grupo de estudos e pesquisa em História e Memória Geracional e trajetórias sócio geracionais – GHEMPE.
Brasil. No caso da Bahia, o Conselho Universitário (CONSUNI) criou a Comissão Milton Santos de Memória e Verdade, com o objetivo de agrupar documentos e depoimentos a fim de verificar o que se passou na UFBA, durante a ditadura civil- militar brasileira, sendo esta a única instituição de ensino em todo o território baiano a ser contemplada com essa ação. Apesar da decisão do CONSUNI ter sido em maio de 2012, a referida Comissão só foi formada no final de 2013.
A Comissão, instalada em dezembro de 2013, foi composta por docentes, alunos e funcionários da UFBA, sob a presidência do prof. Othon Jambeiro (Presidente). Em agosto de 2014, a Comissão divulgou o relatório final intitulado Golpe Civil-Militar de 1964 na UFBA: rompendo o silêncio do Estado e reduzindo o espaço da negação, contendo 173 páginas de relatos transcritos, documentos sigilosos do Gabinete da reitoria que incluía perseguição a estudantes, funcionários e professores, trocas de correspondências, atas, dentre outros documentos durante a ditadura civil- militar, além de disponibilizar 29 depoimentos de professores e estudantes, que na época sofreram repressão por serem considerados perigosos para o regime.
Os documentos estão disponíveis e podem ser acessados gratuitamente por meio do website: https://www.memoriaedireitoshumanos.ufsc.br/items/show/755. Como em breve também se encontrarão disponibilizados em nosso acervo digital disponibilizado no site do GHEMPE.
A partir do material apresentado por essa Comissão, e outros acervos por nós coletados, construímos um panorama de resistência na Bahia, onde a UFBA desempenha o papel de protagonista das manifestações de estudantes e professores em oposição ao regime instalado, dando início a uma série de iniciativas semelhantes, a fim de (re)direcionar os rumos da política educacional do período.
Este documento constitui uma referência máster da memória da resistência do campo educacional, e apresenta importantes revelações sobre a história silenciada pelo regime militar de 1964 a 1985 na Bahia.
Fonte: Capa do relatório final da Comissão Milton Santos de Memória e Verdade, 2014.
Fonte: Portaria de constituição dos integrantes da Comissão Milton Santos de Memória e Verdade, 2013.
ARÓSTEGUI, Julio. Historia del presente e interacción generacional. In: . La historia vivida. Sobre la historia del presente. Madrid: Alianza, 2004.
BAHIA. Golpe Civil-Militar de 1964 na UFBA: rompendo o silêncio do Estado e reduzindo o espaço da negação. Relatório final da Comissão Milton Santos de Memória e Verdade da UFBA. 173f. Salvador: Comissão Milton Santos/UFBA, 2014. Disponível em: https://www.memoriaedireitoshumanos.ufsc.br/items/show/755
ALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2006.
MAGALHÃES, Lívia Diana Rocha. História, memória e geração: remissão inicial a uma discussão político-educacional. In: Revista Histedbr on-line. Vol. 14, n.55, 2018.
.; ALMEIDA, José Rubens Mascarenhas de. Relações simbióticas entre Memória, ideologia, história e educação. In: LOMBARDI, José Claudinei.; CASIMIRO, Ana Palmira B.S.; MAGALHÃES, Lívia D. R (Org.). História, Memória e Educação. São Paulo: Alínea, 2011.
RICOEUR, Paul. A memória, a história e o esquecimento. Campinas: editora da UNIAMP, 2007.
Recebido em: 25 de fevereiro de 2019. Aprovado em: 28 de fevereiro de 2019. Publicado em: 28 de maio de 2019.