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V.17 nº 33 / 2019 (mai-ago) ISSN: 1808-799 X

Universidade Federal Fluminense Faculdade de Educação

NEDDATE - NÚCLEO DE ESTUDOS, DOCUMENTAÇÃO E DADOS SOBRE TRABALHO E EDUCAÇÃO


REVISTA TRABALHO NECESSÁRIO: http://periodicos.uff.br/trabalhonecessario

Redação: R. Professor Waldemar Freitas Reis, s/n°, bloco D, sala 525, Gragoatá - São Domingos, Niterói - RJ, CEP 24210-201 - revistatrabalhonecessario@gmail.com


EDITORES

Lia Tiriba, Maria Cristina Paulo Rodrigues e José Luiz

Cordeiro Antunes


CONSELHO EDITORIAL

Caridad Perez García (UCPEJV – Cuba), Celso Ferretti (UNISO - Brasil), Gaudêncio Frigotto (UFF/UERJ - Brasil), José Claudinei Lombardi (UNICAMP – Brasil), Maria Ciavatta (UFF - Brasil), Roberto Leher (UFRJ - Brasil), Tomás Rodrigues Villasante (UCM – Espanha), Sonia Maria Rummert (UFF - Brasil) e Virgínia Fontes (UFF/EPJV / Fiocruz - Brasil).


COMITÊ CIENTÍFICO

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Alexandre Maia do Bomfim (IFRJ), Ana Margarida Campello (EPSJV/FIOCRUZ), Ana Motta (UFF), André Feitosa (EPSJV/FIOCRUZ), André Martins (UFJF), Andrea Araújo Vale (UFF), Anita Handfas (UFRJ), Angela Siqueira (UFF), Angela Tamberlini (UFF), Claudio Fernandes da Costa (UFF), Célia Regina Vendramini (UFSC), Daniela Motta (UFJF), Dante Moura (IFRN), Deise Mancebo (UERJ), Domingos Leite Lima Filho (UTFPR), Dora Henrique da Costa (UFF), Edison Oyama (UFRR), Edson Caetano (UFMT), Eneida Oto Shiroma (UFSC), Eraldo Leme Batista (UNIVAS-MG), Eunice Trein (UFF), Eveline Algebaile (UERJ), Filippina Chinelli (EPSJV/FIOCRUZ), Flávio Anício (UFRRJ), Francisco José Lobo Neto (FIOCRUZ), Guadelupe Teresinha Bertussi (UNAM e UFSC), Hajime Nozaki (UFMS e UFJF), Henrique Tahan Novaes (UNESP), Ivo Tonet (UFAL), Jacqueline Botelho (UFF), Jaqueline Ventura (UFF), João dos Reis da Silva Jr. (UFSCar), José dos Santos Souza (UFRRJ), Júlio Cesar França Lima (FIOCRUZ), Justino de Souza Junior (UFC), Kátia Lima (UFF), Laura Souza Fonseca (UFRGS), Lea Calvão (UFF), Lia Tiriba (UFF), Lígia Klein (UFPR), Luciana Requião (UFF), Marcelo Lima (UFES), Maria Clara Bueno Fischer (UFRGS), Maria Inês do Rego Monteiro Bomfim (UFF), Maria de Fátima Félix Rosar (UNICAMP), Marcia Alvarenga (UERJ), Mariléia Maria da Silva (UDESC), Marisa Brandão (CEFET-RJ), Marise Ramos (UERJ,FIOCRUZ), Marlene Ribeiro (UFRGS), Myriam Feldfeber (UBA - Argentina), Ney Luiz Teixeira Almeida (UERJ), Olinda Evangelista (UFSC), Ramon de Oliveira (UFPE), Raquel Varela (Universidade image Nova de Lisboa - Portugal), Roberto Leher (UFRJ),

Ronaldo Lima (UFPA), Rosilda Benacchio (UFF), Rui Canário image (Universidade de Lisboa – Portugal), Sandra Maria Siqueira (UFBA), Sandra Morais (UNIRIO), Sérgio Lessa (UFAL),, Susana Vasconcellos

Jimenez (UFC), Tatiana Dahmer (UFF), Valdemar Sguissardi (UFSCar), Vania Motta (UFRJ) e Zuleide Silveira (UFF)


ORGANIZAÇÃO DA TN 33 (2019)

Profas. Maria Clara Bueno Fischer – Tramse (UFRGS) e Célia Regina Vendramini – TMT(UFSC)


ASSISTENTES DE EDIÇÃO

Daniel Tiriba, Lândhor Borges Camello (UFF), Olivia Morais de Medeiros Neta (IFRN) e William Kennedy do Amaral Souza (IFRO)


BOLSISTAS DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA

Ana Clara da Silva Souza (Serviço Social), João Marcoyves Carvalho da Silva (Serviço Social) e Victor Hugo Raposo Ferreira (Ciencias Sociais)


FOTO DA CAPA

Foto de Juliana Passos – Greve Nacional da Educação de 15/05/2019.


MONTAGEM DA CAPA

Daniel Tiriba

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V.17 nº 33 / 2019 (mai-ago) ISSN: 1808-799 X


Indexado por / Indexed by


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Apoio:


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Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoatá/SDC/UFF Bibliotecária: Mahira de Souza Prado CRB-7/6146


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v.17, nº 33, mai-ago (2019) ISSN: 1808-799 X


Editorial


DE VOLTA ÀS RUAS¹


No dia 15 de Maio de 2019, em plena quarta-feira, cerca de 1 milhão e 500 mil pessoas saíram às ruas de inúmeras cidades por todo o país em defesa da educação, num movimento que ficou conhecido como #15M. É ainda sob o impacto desta ação e de outras que se sucederam, como a greve geral em 14 de junho, que publicamos o primeiro volume da Revista Trabalho Necessário com a temática Trabalho, movimentos sociais e educação - I. Para nós, esta é uma bela e necessária oportunidade para reforçar o papel social da universidade, que não deve abdicar de sua tarefa de apreender e explicar os movimentos do real, em toda a sua complexidade e tensionamentos.

Como entender esses movimentos e ações coletivas? Por que mais de 1 milhão de pessoas tomaram as ruas, com as suas diversas bandeiras, cores, idades? O que foi capaz de unificá-las naqueles momentos? Para quem vem, cotidianamente, sendo surpreendido com medidas cada vez mais disparatadas e de ataque sistemático ao estado democrático de direito e, por que não dizer, à condição de mínima civilidade nas relações sociais, ir às ruas tornou-se novamente uma importante forma de luta e resistência. Que o digam os decretos presidenciais que determinam a abolição do uso obrigatório da cadeirinha para bebês no banco de trás dos carros, o fim dos radares nas estradas, a ampliação da posse e porte de armas; mas também o flagrante desrespeito à Constituição, comprovado pelo vazamento das trocas de mensagens entre o agora ministro da Justiça, Sérgio Moro e um dos coordenadores da Lava-Jato, Deltan Dalangnol, por meio do The Intercept Brasil.

É assim que entendemos o #15M: uma ação coletiva que assume um caráter cada vez mais organizado, explicitando um protagonismo partilhado entre as centrais sindicais/sindicatos e vários outros movimentos – estudantil, de mulheres; movimentos negros, LGBTQI, de luta por moradia; pela reforma agrária – que, juntos, “botaram seu bloco na rua”. Inicialmente, contra a ameaça de uma Reforma da Previdência que efetivamente destrói o seu caráter público, ao propor o regime de

capitalização individual, no qual nem os empregadores nem o Estado participam com qualquer contribuição.

Mas, se a Reforma da Previdência não fosse o bastante, logo a pauta das manifestações incorporou também a defesa da educação, após o ministro da pasta, Abraham Weintraub, anunciar cortes no orçamento das universidades e institutos federais de educação superior, numa atitude clara de perseguição (citou especialmente a UFBA, UNB e UFF, com cortes maiores) ao acusá-las de promover a “balbúrdia” e atacar a moral e os bons costumes da sociedade brasileira. Mas, o ataque à educação não ficou apenas nisso: antes, o ministro também indicara a possibilidade de “descentralizar investimento em faculdades de filosofia e sociologia” (áreas/campo das ciências humanas), por não terem valor na vida prática. Não satisfeito, promoveu cortes efetivos nas bolsas de pesquisa na pós-graduação2, comprometendo a produção do conhecimento. Ou seja: também o conhecimento científico encontra-se ameaçado!

Quando se está diante de um cenário deste, os sujeitos coletivos podem dar como resposta o silêncio, o medo, até mesmo a adesão a esta ideia-força, mas podem, também, em contraposição a esta opressão concreta e simbólica, serem capazes de se colocar como agentes importantes na luta por transformação social. Como salientam Gunder Frank e Fuentes (1989), os movimentos sociais são variados e mutáveis, mas têm em comum a mobilização baseada num sentimento de (in) justiça contra as privações, pela sobrevivência e identidade coletiva.

Quem esteve presente nas diversas manifestações (ou acompanhou os registros das mídias alternativas e mesmo pela imprensa/mídia “oficial”, que não pode esconder totalmente a sua contraditoriedade), pode perceber este sentimento de indignação e denúncia da injustiça a que os autores citados se referem. E é por isso que também nós, no exercício intelectual, devemos nos ocupar de compreendê-los, não de forma neutra, como propõe o “Escola sem partido”, mas com a preocupação de reforçar a construção de uma sociedade justa e igualitária.

Por isso, quando anunciamos a revista Trabalho Necessário de número 33 (volume I), com a temática Trabalho, movimentos sociais e educação - I, exatamente num momento de expressão de força de muitos destes movimentos frente ao grave


²Romão, Wagner. Por que o #15M foi tão grande e balançou Bolsonaro? www.cartacampinas.com.br, acesso

ataque sofrido pela classe trabalhadora brasileira – e que não pode ser compreendido senão como parte das estratégias de reorganização do capital a nível global – nos alegramos por estar antenados e por contar com uma série de artigos que nos possibilitam conhecer mais detalhadamente algumas das ações coletivas e dos movimentos sociais que contribuíram, ao longo das últimas décadas no Brasil, para fazer avançar o mínimo de direitos – no campo do trabalho, no campo da educação, no campo dos costumes – que a sociedade brasileira, hoje, corre o risco de ver soterrados.

Concordando uma vez mais com Gunder Frank e Fuentes (1989), reconhecemos o caráter transitório da maioria dos movimentos sociais, mas também percebemos neles a capacidade de atuação no sentido de ampliar, aprofundar e até mesmo redefinir a democracia, por isso, esperamos que a leitura deste novo número da Revista Trabalho Necessário contribua para reforçar o interesse da academia e outras forças sociais do campo progressista no conhecimento das ricas experiências que tais sujeitos coletivos expressam na sua existência.


Boa leitura!


Lia Tiriba, Maria Cristina Paulo Rodrigues, José Luiz Cordeiro Antunes Editores da Revista TN


Referências

GUNDER FRANK, A., FUENTES, M. Dez Teses acerca dos Movimentos Sociais.

Revista Lua Nova. São Paulo, junho/1989 (tradução: Suely Bastos). pdf


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v.17, nº 33, mai-ago (2019) ISSN: 1808-799 X


Apresentação TN 33


QUEM SABE FAZ A HORA NÃO ESPERA ACONTECER! TRABALHO, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO NO BRASIL CONTEMPORÂNEO¹.


Célia Regina Vendramini2 Maria Clara Bueno Fischer3


Apresentamos aos leitores e leitoras o número temático da Revista Trabalho Necessário intitulado Trabalho, Movimentos Sociais e Educação. A proposta do número foi lançada com o objetivo de reunir artigos que dessem visibilidade a práticas e estratégias político-educativas de lutas, sindicatos e movimentos sociais organizados na atualidade, bem como outras ações coletivas. A resposta à chamada da TN 33 superou nossas expectativas. Diante do significativo número de artigos recebidos, organizamos dois volumes com a mesma temática, sendo o primeiro deles aqui apresentado.

Avaliamos que o interesse pelo tema está relacionado a diversos aspectos. Entre eles, destacamos: a) as tentativas de organização da classe trabalhadora brasileira na atualidade diante dos altos níveis de exploração associados com a expropriação, do crescimento das taxas de desemprego4, das formas de contratação da força de trabalho (“uberizadas”, “pejotizadas”, informais, intermitentes,


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1Publicado em 04/07/2019. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.17i33.p29286

2Doutora em Educação pela Universidade Federal de São Carlos. Professora da Universidade Federal de Santa Catarina, na linha de pesquisa Trabalho, Educação e Política. Bolsista PQ CNPq. E-mail: celia.vendramini@ufsc.br ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9600-2868.

3Doutora em Educação pela Universidade de Nottingham, Inglaterra. Professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, na linha de pesquisa Trabalho, Movimentos Sociais e Educação. Bolsista PQ CNPq. E-mail: mariaclara180211@gmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2289-5282.

4Segundo o IPEA (2019), vem crescendo o número de desempregados que estão nesta situação há mais de dois anos. No primeiro trimestre de 2015, eram 17,4%, já no mesmo período de 2019, essa porcentagem avançou para 24,8%, o que corresponde a 3,3 milhões de pessoas. No caso dos trabalhadores mais jovens, a situação é ainda mais adversa, combina desemprego elevado (27,3%), baixo crescimento da ocupação (0,4%) e queda de rendimento real (-0,8%). Disponível em: http://www.ipea.gov.br/cartadeconjuntura/index.php/tag/taxa-de-desemprego/. Acesso em 20 de junho de 2019.

flexibilizadas), restrição e retirada de direitos trabalhistas e sociais e da consequente fragmentação da classe; b) as diversas experiências de lutas e formas de organização que estão se constituindo em espaços-tempos, para além das tradicionalmente conhecidas no trabalho e em locais de moradia; c) e o interesse por parte de pesquisadores e pesquisadoras em reconhecer e estudar as identidades, as formas de luta, as táticas e estratégias, as bandeiras de luta, bem como o contexto imediato e histórico que faz emergir os levantes e organizações na atualidade.

Realizamos a seguir uma problematização dos aspectos acima mencionados, a título de apresentação e convite ao debate. Deixemos, no entanto, que os autores e autoras dos artigos também apresentem suas análises com base nas experiências que investigaram.

O primeiro aspecto nos remete à lei geral da acumulação capitalista desenvolvida por Marx (2008) na obra “O Capital”. O autor evidencia que o processo de acumulação aumenta, juntamente com o capital, a quantidade dos “pobres laboriosos”, isto é, dos assalariados que transformam sua força de trabalho em força de valorização crescente do capital. Sendo assim, a população trabalhadora excedente ao mesmo tempo que é produto, alavanca a acumulação capitalista.


Ela constitui um exército industrial de reserva disponível, que pertence ao capital de maneira absoluta como se fosse criado e mantido por ele. Ela proporciona o material humano a serviço das necessidades variáveis de expansão do capital e sempre pronto para ser explorado, independentemente dos limites do verdadeiro incremento da população. (MARX, 2008, p. 735).


Essa massa de trabalhadores a serviço da expansão do capital, conforme análise de Marx, está completamente disponível para a exploração em qualquer lugar (veja-se o gritante crescimento dos migrantes no Brasil e no mundo4), a qualquer tempo5 e em qualquer ocupação. Constituem um conjunto de trabalhadores flexíveis e adaptáveis a novas situações, ocupações e relações de trabalho. Conforme análise de Kuenzer (2016), o desafio é ser multitarefa e exercer trabalhos disponibilizados


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5De acordo com dados da ONU, o número de migrantes no mundo aumentou 50% desde 2000, contabilizando 245 milhões de pessoas. No Brasil, segundo dados do IBGE (2010), no período de 2005 a 2010, foram identificados 5.018.898 migrantes internos.

6Na provocativa obra 24/7 – capitalismo tardio e os fins do sono (São Paulo: Cosac Naify, 2014), J. Crary aborda a tendência do trabalho sem pausa e sem limites, numa disponibilidade instantânea, dentro das tentativas do capitalismo de redução do tempo do sono, visto que “nenhum valor pode ser extraído do sono” (p. 20).

pelo mercado, com poucas exigências educativas. Segundo a autora, basta um rápido treinamento, associado à uma nova disciplina para o trabalho flexível, para exercer trabalhos temporários simplificados, repetitivos e fragmentados.

Tal realidade é captada por Antunes de forma chocante em “O privilégio da servidão” (2018). O autor analisa o novo proletariado do setor de serviços na chamada era digital. É o retrato da tendência geral de precarização e terceirização do trabalho no Brasil ou, nos termos de Antunes, é a devastação do trabalho.

Esta situação vivenciada pelos trabalhadores e temida pelos jovens futuros trabalhadores é expressão da conjugação da dominação econômica com a dominação política e cultural, nos termos de Thompson (1987), e de elementos estruturais e conjunturais. Para tal, colabora a atual conjuntura brasileira, marcada pelo profundo ataque e privatização de todos os direitos sociais, os quais são transformados em mercadoria. Para exemplificar os ataques, ocuparíamos todas as páginas deste volume. Citamos apenas a contrarreforma trabalhista, a qual suprimiu os poucos direitos trabalhistas conquistados, aprovada por um congresso nacional abominável e sancionada por um presidente ilegítimo. Ou a atual proposta de contrarreforma da previdência, que na verdade significa o fim da previdência social, imposta por um governo autoritário orientado pelas políticas neoliberais.

Tal contexto é marcado pela violência e criminalização de pessoas, grupos, sindicatos e movimentos sociais. Cresce a violência do Estado, em especial do aparato policial, nas periferias das cidades, contra jovens pobres e negros e LGBTs. Por outro lado, estes não contam com a presença do mesmo Estado na oferta de políticas públicas que atendam seus direitos sociais e garantam condições dignas de vida. A violência também é dirigida à mulheres, indígenas, quilombolas e camponeses. De acordo com o artigo de Kelli Mafort, constante deste número temático, os indicadores de violência no campo revelam que o aumento nos casos de violência está intrinsecamente ligado ao modelo do moderno agronegócio, da mineração e do hidronegócio. Aponta ainda que as mulheres ficaram mais expostas à violência de

caráter político associada às agressões misóginas, incluindo as mulheres trans.

A violência vem sendo direcionada aos sindicatos e movimentos sociais, lideranças políticas do campo da esquerda, manifestações públicas, greves, entre outros, os quais sofrem repressão direta e formas coercitivas de conter suas ações.

A servidão dos trabalhadores ou a devastação da classe trabalhadora, associada à repressão, traz consequências para a organização desta. Diferente do relatado por Marx e Engels no século XIX, quando os trabalhadores eram numerosos, homogêneos e concentrados nas fábricas, constituindo-se como classe e criando as primeiras organizações na forma de sindicatos, no século XXI a única similaridade é a classe trabalhadora numerosa, entretanto heterogênea e completamente dispersa e fragmentada. Portanto, os desafios que se colocam para a sua organização são imensos. Como organizar jovens entregadores de comida (Uber east de bike)? Motoristas de Uber que trabalham longas jornadas assumindo todos os riscos? Famílias sem moradia? Desempregados? Negros, homens e mulheres, de periferia e LGBTs que sofrem racismo e intolerância, vítimas da polícia de Estado e das milícias? Migrantes sem documentos e direitos? Indígenas expulsos de suas áreas? Trabalhadores rurais temporários e camponeses que não conseguem produzir a sua existência no campo? Mulheres pobres oprimidas historicamente pelo capitalismo patriarcal?

O que há em comum entre eles é a condição de expropriação (da terra, da moradia, dos direitos sociais e trabalhistas, dos conhecimentos, etc.) e de exploração. Mas como se identificam como classe na sua diversidade? Como construir organizações considerando, simultaneamente, interesses de classe, gênero e raça? O mais comum é vê-los concorrer entre si e reproduzir a lógica hierárquica. Por exemplo, num bar ou restaurante, qual dos trabalhadores vai fazer o serviço “sujo”, como limpar os banheiros? Provavelmente as mulheres, os mais jovens ou os migrantes. Em contraposição, também vemos solidariedade, apoio mútuo, cooperativismo e formas embrionárias de organização. Há tentativas de organização no local de trabalho, de estudo, de moradia e em outros espaços-tempo. Além disso, há notícias de greves, levantes, ocupações, ações de movimentos sociais, germes de retomada de um sindicalismo de base, os quais não são noticiados, com exceção do trabalho das mídias independentes, as quais têm contribuído para a “imprensa operária” em novos moldes. Interessa-nos, portanto, conhecer e analisar lutas sociais e formas organizativas de resistência e enfrentamento às múltiplas formas de opressão, particularmente no que diz respeito às suas experiências educativas.

Nesta direção, os dois volumes temáticos que organizamos buscam reunir análises teórico-metodológicas sobre diferentes movimentos, sindicatos e lutas

sociais. O foco se concentra nas análises de estratégias político-educativas e culturais de trabalhadores em diferentes espaços-tempo: trabalhadores rurais, urbanos, mulheres, quilombolas, índios, estudantes, professores.

Neste primeiro volume, reunimos na seção Artigos do Número Temático trabalhos que abordam as lutas dos sem-terra por meio do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST e seus processos formativos; a questão da mulher que associa o trabalho na terra com a luta coletiva; as experiências de jovens ativistas das periferias; as lutas e organização de estudantes e professores, os primeiros por meio da ocupação de escolas e os segundos organizados em sindicatos na defesa da escola pública. Contemplamos ainda análises sobre a resistência de trabalhadores no cotidiano no contexto da precarização das relações de trabalho e sobre metodologias político-organizativas transformadoras, que partem dos movimentos sociais.

Iniciamos com o artigo do espanhol Tomás Villasante, professor emérito da Universidade Complutense de Madrid, intitulado Metodologías desde los movimientos sociales: Una pedagogía que “no conciencia”, pero transforma con la gente. O autor apresenta uma reflexão instigante, com base em suas práticas formativas na América Latina e Europa, sobre metodologias de trabalho de base para construir novas formas de participação. Metodologias centradas em estratégias operacionais de incentivo à participação e organização coletiva, de base e democrática. Com certeza, suas análises são muito pertinentes para o momento atual de busca de renovação das formas de atuação e organização das forças progressistas, democráticas e de esquerda.

Contamos neste número temático com três artigos que abordam a experiência do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, entre os muitos estudos que têm sido realizados por acadêmicos e militantes do próprio MST, como expressão de uma trajetória de 35 anos de luta, organização e enfrentamento. Trajetória esta que colocou em evidência a pauta da reforma agrária, no que diz respeito ao uso, a posse e a propriedade da terra no Brasil e constituiu um movimento nacional de massa de caráter popular e com formas de luta originais, articulando ocupações, acampamentos e assentamentos e o desenvolvimento de experiências produtivas e educacionais.

O artigo de Rose Márcia Silva, sobre o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra no Brasil e as perspectivas de luta pós golpe de 2016, situa o MST no

conjunto dos movimentos sociais enquanto alternativas de produção e reprodução da existência e no contexto das lutas no campo. Tais movimentos, segundo a autora, têm se mostrado em luta constante e permanente, com pautas iniciadas como reação imediata a processos de expropriação, exploração e dominação, mas que vêm sendo, também, construídas na luta como alternativas anticapitalistas. O artigo aborda a luta pela terra e a constituição do MST, sua organização e dinâmicas de luta e chega à atualidade, pautando o golpe de 2016 e os ataques neoliberais, bem como as perspectivas e as resistências.

A autora assinala que o MST tem se destacado como um dos principais movimentos de luta anticapitalista nas mobilizações pós golpe no país, pela reforma agrária popular, pela liberdade e pela democracia. Indica, portanto, a necessidade de reinvenção e diversificação das estratégias de luta do Movimento, para além da luta pela terra e pela reforma agrária, mesclando aspectos dos movimentos denominados pela autora de tradicionais (como a luta de classes, a redistribuição de terra e de renda) com demandas, dinâmicas e estratégias dos chamados novos movimentos sociais.

O artigo de Nalva Araújo e Ademar Bogo, acerca dos Processos formativos do MST: desafios e limites históricos, apresenta um conjunto de análises que apontam contradições e desafios do Movimento, em alguma medida diferentes das apresentadas no artigo de Rose Márcia Silva. Fazemos questão de expô-las, no sentido de propiciar o debate e convidar os leitores a refletir sobre as questões tão candentes na luta política atual. Os autores retomam os elementos constitutivos do MST no bojo das contradições capitalistas e das suas próprias contradições, com foco nas estratégias de luta pela terra e na luta pela educação e sua relação com as alternativas de organização do trabalho experimentadas pela Movimento.

Nalva e Bogo assinalam as contradições de um governo de tendência democrático-popular que não freou os avanços do agronegócio e manteve um modelo econômico que favoreceu ao grande capital. Portanto, o verdadeiro golpe (nos termos dos autores – golpe mortal) deferido foi contra a reforma agrária. O MST, assim, foi atendido apenas nos aspectos auxiliares por meio de políticas públicas e desatendido no seu eixo estrutural de renovação da força, pela não desapropriação de terras. Neste sentido, focalizam os desafios e perspectivas do MST para um novo acúmulo de forças e sobre novos fundamentos, orientados pela luta de classes. No que diz

respeito à agroecologia como modelo produtivo alternativo em contraposição à agricultura capitalista/agronegócio, questionam em que medida este modelo contribui para a construção da educação e do projeto histórico socialista.

Kelli Maffot também se coloca no debate acima assinalado, no seu artigo intitulado Mulher, terra e luta - a mistura da radicalidade que educa. Assim como Nalva e Bogo, observa que as políticas e programas sociais criados nos governos do PT, ainda que tenham melhorado as condições de vida das famílias assentadas, levaram os assentados a buscar na agricultura familiar e suas políticas públicas um leque não só de proteção, mas também uma arma política contra os imperativos do agronegócio. Observa assim uma apartação (ainda que não consciente) da luta pela reforma agrária e enfraquecimento do enfrentamento das forças estruturais do capital. Nesta direção, aponta o desafio de retomada da luta ofensiva.

O artigo tem como foco as trabalhadoras do campo organizadas que vêm construindo uma trajetória na qual os elementos mulher, terra e luta se misturam e se constituem como sinônimos de uma radicalidade que educa. Toma como ponto de partida da análise a ocupação da fazenda do médium João de Deus (denunciado por 506 casos de abusos sexuais), em março de 2019, por cerca de 800 mulheres do Movimento dos Sem Terra e do Movimento Camponês Popular. A ocupação fez parte da jornada nacional de lutas das mulheres do campo, rememorando um ano do assassinato de Marielle Franco. A autora do artigo analisa o sentido político e pedagógico desta ação dentro do contexto de agravamento da violência contra as mulheres e os trabalhadores do campo em geral. Trata-se de um artigo de grande atualidade, abordando a primeira ocupação de terras sob o governo Bolsonaro, e retomando a pauta histórica das trabalhadoras contra o patriarcado e a divisão sexual do trabalho, no combate à violência e na defesa da igualdade nas relações sociais de gênero. Procura, ainda, dar visibilidade ao vínculo entre classe, gênero, raça e diversidade.

O Andes-SN e a defesa da escola pública: o encontro nacional de educação como espaço de resistência. As autoras Laura Fonseca, Raquel Dias Araújo e Elizabeth apresentam, a partir de suas perspectivas de análise, apoiadas em documentos do Andes-SN, uma narrativa reflexiva dos principais momentos de atuação da entidade ao longo de seus 40 anos de atuação sindical. O olhar das autoras é dirigido, especialmente, para os vários fóruns de discussão e deliberação

realizados no campo da educação, nesses anos. Trazem informações e reflexões sobre o papel do Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior

- ANDES - na construção de uma escola pública, classista e democrática.

Sérgio Paulo Morais, Denise Nunes de Sordi e Douglas Gonçalves Fávero analisam em seu artigo Ocupação e contra ocupação de escolas públicas: o caráter político-educacional da mobilização coletiva, a dimensão política e formativa da experiência de estudantes secundaristas que ocuparam escolas públicas em Uberlândia/MG, no ano de 2016. Os autores apresentam como ocorreu a ocupação e contra ocupação das escolas e o processo educativo vivido pelos estudantes a partir da ação direta. Utilizam o recurso metodológico da história oral com base em entrevistas realizadas durante o período de ocupação, em meio as ações de protesto.

Os autores observam a forma como os estudantes se apropriaram não somente do espaço físico das escolas, mas promoveram outras formas de aprendizagem, envolvendo componentes culturais, éticos e políticos. As situações de aprendizado foram propiciadas por ações coletivas, caracterizadas por meio de diálogos horizontais, como assembleias, organização de roteiros de estudos e de conteúdos de ensino, tendo sido explicitadas por meio de produção estética e textual. Nesse processo, conforme o texto apreende, “os ocupantes modificaram as relações com a escola, revisitando e ressignificando-as, tais como a si próprios”.

Carla Corrochano, Raquel Santos e Helena Abramo, em seu artigo Jovens ativistas das periferias: experiências e aspirações sobre o mundo do trabalho apresentam resultados de pesquisa inter-relacionando, de forma inovadora, inter- relações entre trabalho, juventude, educação e ação coletiva. O artigo foca em jovens brasileiros engajados em ações coletivas recentes de caráter progressista. As autoras problematizam em que medida a experiência de militância provoca mudanças nas aspirações e percepções de jovens ativistas em relação ao trabalho.

O artigo Precarização do trabalho nas telecomunicações: autoalienação e resistência dos trabalhadores, de Maria Cristina Paulo Rodrigues, analisa possibilidades e resistências da classe trabalhadora, especialmente a resistência cotidiana, silenciosa, no contexto atual de extrema precarização do trabalho. Discute a problemática da alienação na vida cotidiana, porém trabalha com a perspectiva de que há, ao mesmo tempo, um grau de liberdade e escolha, apoiando-se em Lukács.

Suas reflexões estão assentadas em pesquisa empírica com trabalhadores do setor das telecomunicações.

Na seção Entrevista, apresentamos Lutas sociais no campo – 13 perguntas para Ana Motta, na qual William Kennedy do Amaral Souza entrevista a Profa. Dra. Ana Maria Motta Ribeiro, do Observatório Fundiário Fluminense (OBFF) da Universidade Federal Fluminense. Ela nos fala longamente sobre as lutas por terra e território, destacando as recentes invasões promovidas pelos representantes do agronegócio e do neoextrativismo a áreas demarcadas e/ou ocupadas por indígenas, quilombolas e outras populações camponesas. Entre outros, analisa a participação dos jovens, as condições de vida e trabalho nos assentamentos e a diversidade de identidades das populações do campo, como agricultores familiares, beneficiários da reforma agrária, pescadores e ribeirinhos, etc. Na perspectiva de uma “Sociologia Viva”, destaca os desafios das universidades públicas na mediação e assessoria as lutas sociais das populações que vivem em situação de conflito socioambiental e agrário, indicando a recente criação da Rede Latino Americana de Observatórios Fundiários.

Em Fotografia e Movimento, da seção Ensaio, Javier Blank nos apresenta um olhar comprometido com a complexidade da experiência das ações coletivas e dos movimentos, ao mesmo tempo em que defende o registro fotográfico (e audiovisual) como produtor da realidade, na medida em que neste há sempre uma escolha do que realçar, há sempre uma (de)nominação das imagens, o que permite ao “expectador”

– presente ou não no ato – o acesso aos diversos aspectos daquela experiência.

A TN 33 conta ainda com três artigos na seção Demanda Contínua. No primeiro deles, fundamentados no pensamento crítico de base marxista e por meio de pesquisa documental e bibliográfica, Zilka Teixeira e Marcelo Lima reconstroem O percurso histórico da pedagogia do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial do Espírito Santo (Senai-ES) entre 1952 e 2002, indicando modelos de formação profissional adotados pela instituição, centrados no aprender a fazer fazendo da Série Metódica Ocupacional; no aprender a ser da Formação para o Projeto e a Transferência; e no aprender a aprender da Formação Profissional Baseada em Competências. As fontes evidenciam os deslocamentos tanto do conceito de qualificação para a noção de competências, quanto da “formação para o mercado”

para o “mercado da formação”, esvaziando o projeto de um ensino para o emprego e assumindo um ensino para empregabilidade.

O artigo de Iael de Souza, A superação da cisão indivíduo/gênero – necessidades, interesses e valores sócio, humano-genéricos, traz reflexão sobre como o Homem se faz Homem e se constrói como ser social. Apresenta também que, nessa construção, o Homem produz sociabilidades diversas no tempo e espaço histórico-social. A atividade fundante dessa construção é o trabalho, sinalizando que essa atividade humana, no contexto atual do desenvolvimento do capitalismo, cria uma cisão entre a vida pública e vida privada, entre indivíduo e gênero humano, entre indivíduo e sociabilidade humana, apontando como as relações sociais produzem transformações na estrutura da vida. Nas reflexões que realiza, alicerçadas no materialismo histórico-dialético, a ética como questão, se apresenta, no dizer da autora, como elemento para a superação das diferentes cisões, na medida que inquere “sobre quais interesses, valores e necessidades a totalidade social se funda e fundamenta, pois só assim compreenderemos o tipo de relações estabelecidas e reproduzidas entre e pelos homens”, podendo modificar a realidade social para a construção de uma humanização plena.

Matheus Rufino de Castro, em artigo intitulado Capitalismo Dependente, Conservadorismo e Educação: uma análise dos ataques reacionários à Educação Brasileira, trata do avanço do conservadorismo na sociedade brasileira e, por conseguinte, no campo da educação, a partir de uma análise que, sustentada no materialismo histórico dialético, aponta-nos que só se pode compreender o crescimento desse pensamento conservador mediante uma análise das mudanças na realidade de país capitalista dependente, como é a do Brasil atual. Para tanto, faz uma exposição sobre o que é o conservadorismo e a sua relação com a formação da subjetividade dos sujeitos no capitalismo, a dinâmica interna da luta de classes no Brasil, o desenvolvimento dependente e o crescimento do conservadorismo no momento de crise, com destaque para o papel que a educação cumpre no capitalismo dependente, e os ataques reacionários que a mesma vem sofrendo, em especial com o projeto Escola Sem Partido.

Na seção Memória e Documentos contamos com a colaboração especialíssima do AMORJ – Arquivo de Memória Operária do Rio de Janeiro, o qual é vinculado ao Programa de pós-graduação em Sociologia e Antropologia do

IFCS/UFRJ e coordenado pela profª Elina Pessanha, uma das autoras, junto com Rodrigues Guedes, do material que ora apresentamos. Intitulado A coleção de Astrojildo Pereira no AMORJ, este rico material inicia apresentando, ainda que sucintamente, o próprio Arquivo de Memória Operária e, dentro dele, a importância daquela coleção. Como os autores assinalam, “seria difícil escrever a história do movimento operário brasileiro e do PCB sem os livros e documentos colecionados por Astrojildo Pereira”, cuja vida foi marcada pela militância e pela paixão pelas letras.

Em Teses e Dissertações apresentamos os trabalhos de Amanda Moreira Silva e Michelle Tinoco Xavier. Na tese intitulada A precarização do trabalho docente no século XXI: o precariado professoral e o professorado estável-formal sob a lógica privatista empresarial nas redes públicas brasileiras, de 2018, Amanda Silva analisa o trabalho docente na realidade brasileira desde os anos de 1990 até o início deste novo milênio, procurando compreender os dilemas deste trabalho na atual conjuntura brasileira “marcada pela restrição sistemática aos trabalhadores no acesso a direitos sociais fundamentais e um poder de Estado impermeável às necessidades das amplas maiorias”. Neste quadro, interroga de que maneira as reformas na educação básica atuam para conformar o trabalho educativo à criação de um determinado tipo de trabalhador adequado a essa reestruturação.

Na dissertação de mestrado intitulada Pescadoras: reflexões sobre trabalho e resistência feminina na pesca artesanal, de 2019, Michelle Xavier busca entender as transformações referentes às práticas profissionais, domésticas e relacionais das mulheres pesqueiras da Colônia Z-10, na Ilha do Governador, no Rio de Janeiro. Neste exercício, a autora apresenta um recorte temporal assentado sobre três eventos principais: a implementação da Área de Proteção Ambiental e Recuperação Urbana do Jequiá em 1993, o controle do local transferido da Marinha do Brasil para a Prefeitura em 1994, e o derramamento de óleo da Petróleo Brasileiro S/A (PETROBRAS) na Baía de Guanabara, no ano 2000. A perspectiva é associar a dinâmica da acumulação capitalista à distribuição discriminatória dos riscos ambientais, expondo ainda que “as injustiças ambientais são decorrentes da natureza inseparável das opressões de raça, gênero e classe”.

Para finalizar a apresentação deste número temático, gostaríamos de chamar a atenção sobre as recentes mobilizações ocorridas em maio e junho de 2019. Em maio, milhares de jovens estudantes e professores, e centenas de apoiadores foram

às ruas do Brasil inteiro em defesa da educação pública, o que pode ser evidenciado na foto da capa da TN 33, tirada em 15 de maio em frente à Candelária no Rio de Janeiro no dia da Greve Nacional de Educação6. Gritamos todos, em uníssono, contra os cortes dos recursos na educação básica e ensino superior e em defesa da garantia da autonomia da universidade pública. Em junho, tomamos conta das ruas novamente, agora com a pauta ampliada, a luta contra o fim da previdência social. A volta às ruas também pode ser evidenciada na reportagem fotográfica da seção Ensaio, acima comentada. Sem dúvida, movimentos de massa que recolocaram as vozes plurais do povo na rua reacendendo a chama da esperança, pelo menos na nossa capacidade de lutar por nossos direitos. Sabemos, no entanto, que a luta cotidiana e organizada é parte constitutiva de um povo forte e organizado, capaz de enfrentar as forças conservadoras e de direita. Esperamos que as reflexões deste e do próximo volume sobre Trabalho, Movimentos Sociais e Educação contribuam para consolidarmos nossas diversas formas de luta.


Referências


ANTUNES, Ricardo. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo: Boitempo, 2018.


KUENZER, Acácia. Trabalho e escola: a aprendizagem flexibilizada. REUNIÃO CIENTÍFICA REGIONAL DA ANPED, Anais. Curitiba, jul.2016.


MARX, Karl. A lei geral da acumulação capitalista. In: O Capital. 22.ed. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2008a. Livro 1, Vol. 2, cap. XXIII, p. 713-823.


THOMPSON, Edward P. A formação da classe operária inglesa. Trad. de Denise Bottmann. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. 3 v.


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7A referida foto foi gentilmente cedida pela fotógrafa Juliana Passos, a quem agradecemos a colaboração.

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v.17, nº 33, mai-ago (2019) ISSN: 1808-799 X


METODOLOGÍAS DESDE LOS MOVIMIENTOS SOCIALES: UNA PEDAGOGÍA QUE “NO CONCIENCIA”, PERO TRANSFORMA CON LA GENTE1


Tomás R. Villasante2


Resumen


Se critican los intentos concienciadores desde las vanguardias auto-proclamadas. Se ofrece un esquema de cómo son las relaciones de comunicación actuales y unas posibles estrategias con “conjuntos de acción” que venimos practicando desde las metodologías participativas. La construcción de la conciencia social parte de lo biológico y pre-consciente en los ciclos vitales básicos, y mediante “ritos de paso” construye las conciencias colectivas en las que nos movemos. Se acaba proponiendo trabajar con “grupos motores” en las democracias participativas.

Palabras clave: Metodologías participativas; Conjuntos de acción; Ritos de paso, Grupos motores; Relaciones de comunicación.


METODOLOGÍAS A PARTIR DOS MOVIMENTOS SOCIAIS: UMA PEDAGOGIA QUE “NÃO CONSCIENTIZA”, MAS TRANSFORMA AS PESSOAS


Resumo


São feitas críticas às intenções conscientizadoras das autoproclamadas vanguardas. Apresenta-se um esquema das atuais relações de comunicação e possíveis estratégias de “conjuntos de ações” por nós praticados com metodologias participativas. A construção da consciência social parte do biológico e pré-consciente nos ciclos vitais básicos, e mediante “ritos de passagem” constrói consciências coletivas com as quais nos movemos. Por último, propõe em democracias participativas o trabalho com “grupos motores”.

Palavras-chave: Relações de comunicação; Conjunto de ações; Metodologias participativas; Ritos de passagem;Grupos motores.


METHODOLOGIES FROM SOCIAL MOVEMENTS: THE PEDAGOGY THAT “DOES NOT RAISE AWARENESS”, BUT TRANSFORMS PEOPLE


Abstract


Conscientious attempts from the self-proclaimed vanguards are criticized, and a scheme of how are the current communication relations, and possible "strategies with sets of action" are offered, which we have been practicing from the participatory methodologies. The construction of social consciousness, starts from the biological and pre-conscious in the basic life cycles, and through "rites of passage" builds the collective consciousness in which we move. Finally, it is proposed to work with "motor groups" in participatory democracies.

Keyword: communication relations, sets of action, participatory methodologies, rites of passage, motor groups.


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1Artigo recebido em 28/03/2019. Primeira avaliação em 15/04/2019. Segunda Avaliação em 17/04/2019. Aprovado em 25/04/2019.Publicado em 04/07/2019. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.17i33.p29365

2Doctor por la Facultad de Ciencias Políticas y Sociología de la Universidad Complutense de Madrid –

UCM (España). Desde 1974, ha sido profesor de la Facultad de Ciencias Políticas y Sociología de la dicha Universidad y actualmente es Profesor Honorífico en la Facultad de Ciencias Políticas y Sociología de la UCM. Sus intereses de investigación se orientan hacia la democracia participativa y los movimientos sociales. En sus trabajos de investigación-acción ha desarrollado aportaciones innovadoras a las metodologías sociales (sócio-praxis). Autor de una decena de libros sobre estos temas, ha sido profesor visitante en diferentes Universidades españolas y lationoamericanas. Co- fundador de la Red CIMAS. E-mail: tvillasante@hotmail.com

Introducción: ¿qué problemas tenemos?


“¿Cómo es posible que los hombres luchen por su servidumbre como si se tratase de su libertad?” (Baruch Spinoza).


“… que tales necesidades tengan por origen el estómago o la fantasía en nada cambia las cosas y el deseo implica la necesidad: es el apetito del espíritu, tan natural como es el hambre para el cuerpo, y de ahí es que extraen su valor la mayoría de las cosas” (Karl Marx).


Cunde el pánico sobre el ascenso de las más descaradas formas de movimientos y gobiernos reaccionarios, y eso no parece aconsejable. Pues aunque es muy cierto en el panorama internacional, no es la primera vez que ocurre, ni es una tendencia que no sea reversible. Cuando hay un cierto ambiente de derrota se suele culpar más bien a los demás, y pocas veces se mira hacia dentro, hacia lo que deberíamos haber hecho y dejamos de hacer. Incluso aprender de los éxitos parciales que se tuvieron y que no se han sabido generalizar, también puede ser un buen ejercicio auto-crítico. Pues con variados movimientos sociales durante décadas se estuvo haciendo unas buenas prácticas movilizadoras y auto-pedagógicas, que cuando se abandonaron pues se entró en reproducir los errores que tantas veces vamos repitiendo. Esto nos pasa siempre cuando los sectores progresistas piensan que la historia les da la razón, que los procesos son irreversibles, y que desde los gobiernos ya no necesitan aprender de las bases sociales. Este razonamiento es tan tonto, como si los empresarios no se fijaran de las ventas que hacen en el mercado para auto-evaluarse. Si se quiere el cambio y no se escuchan permanentemente, e incluso se desmantelan los movimientos de apoyo, no hay mucho camino para la transformación social. Conviene aprender de nuestros errores, más que lamentarse de la situación, porque las lágrimas no suelen dejar ver las causas. Y sin duda alguna la hemos contribuido a crear entre todas las personas que nos quejamos, y por lo mismo está en nuestras manos cambiarla, tanto en Latinoamérica como en Europa.

En América Latina ya hemos vivido varios ciclos de subida de los movimientos de base popular, y luego ciclos de retrocesos y dictaduras o autoritarismos desde los gobiernos. Desde la Unidad Popular de Chile a la Izquierda Unida de Perú (hace pocas décadas) podemos ver fracasos por golpe de estado, o por peleas dentro de los partidos de vanguardia. O ambas cosas a la vez. Parece que no aprendemos de

nuestros errores, y esto tiene mucho que ver con las metodologías con las que pretendemos construir la política y los movimientos sociales. En las dos décadas en torno al cambio de siglo se fueron construyendo movilizaciones y movimientos populares, que acabaron con varios gobiernos neo-liberales, y que dieron paso a gobiernos más progresistas, en varias versiones (Venezuela, Ecuador, Bolivia, Uruguay, Brasil, Argentina, etc.). Hoy vemos un retroceso de aquellos movimientos y también de los gobiernos que impulsaron. Es bueno ver los errores cometidos, sobre todo para no repetirlos. Y ver también las “otras” formas de hacer democracias más participativas que solo en algunos casos se han alcanzado.

Unos gobiernos se han pasado de listos y otros no han llegado, pero en general se han defraudado muchas expectativas que se habían puesto en marcha. En la década primera de este siglo XXI bastantes gobiernos progresistas han aumentado las políticas sociales, y han modernizado sus países. Pero muchos movimientos no han visto la continuidad de sus proyectos de base, sino que han sido sustituidos en la acción (y hasta desmovilizados) por los gobiernos. En unos casos por unos gobiernos más o menos autoritarios y corruptos, sin prácticas de participación democrática de base (a pesar de sus declaraciones, incluso constitucionales). En otros casos por gobiernos que no han entrado a cambiar el modelo político y económico heredado, ampliando incluso los beneficios de las rentas especulativas, y del extractivismo, frente a otras necesidades de la mayoría social (escaso apoyo a la economía social y solidaria, a los proyectos surgidos desde la base, la reforma agraria, etc.)

Hay varias crisis que se mantienen, los movimientos las vienen señalando pero no se han sabido resolver en las últimas décadas, aunque se haya prometido. Los recursos de la naturaleza son tratados por el “extractivismo” como una forma de hacer más dependientes a los países (sin capacidad de producción propia), y con altas cotas de contaminación (del agua y del aire por el cambio climático). Las economías controladas desde la “financiarización” globalizada, tratan a poblaciones enteras como elementos sobrantes, pues cada vez necesitan menos mano de obra para sus negocios especulativos. No hay apoyo a las economías sociales y solidarias sino a las grandes multinacionales de la inversión. En tercer lugar se está volviendo a autoritarismos de los gobiernos electos ante las presiones y movilizaciones sociales, con absoluto desprecio de las democracias participativas que se habían iniciado en municipios y desde los movimientos sociales. Las nuevas tecnologías (celulares y otros TIC) que prometían una libertad de cultura e información, son cada vez más

controladas para vender los “big data” donde se registran nuestra vida y apetencias, y para ser manipulados por los “trolls” que difunden las “postverdades” que interesan a los más poderosos.

Tampoco los movimientos sociales parece que hayan dado seguridad a la gente para resolver los problemas de fondo. Más bien muchos han impulsado el cambio de gobierno que han visto más posible, y han confiado en que ahora que nos hacen caso las cosas ya están en el cauce adecuado. Pero esos gobiernos progresistas, que dicen responder a los movimientos, no tienen el poder suficiente (y si muchas tentaciones) que les permitan hacer cambios a fondo. La desmovilización ha sido perjudicial para los movimientos y para los gobiernos que se decían transformadores. Ya hemos oído demasiadas veces que los cambios eran irreversibles, cuando volvemos a constatar que la reacción internacional y nacional da marcha atrás a nuestros derechos, y que en la gente cunde de nuevo la desesperanza (en los gobiernos citados de América Latina y también en muchos europeos).

Si mucha gente no ve que los movimientos sociales y los gobiernos le resuelven sus problemas, pues se guiarán por otras “verdades” o promesas que le hagan en iglesias o en partidos que se presenten como innovadores. Nuevos líderes (incluso sin partidos) que aprovechan el desconcierto de los sectores populares para lanzar promesas de seguridad y de mejoras, ante el fracaso de las propuestas no cumplidas de los gobiernos en los que habían confiado. Si no hay participación desde la base, lo que circula son las “verdades” de los grandes medios, lo que más se repite (e insulta) por los celulares y las llamadas redes sociales. No hay debates y construcción social cooperativo desde la base porque se han ido desorganizando los movimientos sociales. Lo que aquí vamos a presentar son unas propuestas de comunicación popular para la resistencia ante las amenazas que se ciernen, y de algunas pedagogías auto-concienciadoras, que ya han dado buenos resultados pero que hoy están bastante olvidadas, y desde luego muy desactualizadas (no se saben usar en el nuevo contexto tecnológico). No es que ya se tengan alternativas a las crisis, pero si que se pueden construir para cada situación concreta, de acuerdo con las nuevas formas de democracias participativas.

El objetivo del artículo es traer contribuciones para reflexionar sobre las metodologías de los movimientos sociales, considerando nuestras prácticas en Latinoamérica y Europa. En los movimientos veremos que: a) Construir contra- hegemonia se puede hacer a partir de establecer los “mapas estratégicos” con 4

variables; b) Hay diferencias entre activista, seguidores, etc, y que al cruzar estas posiciones con las culturas ideológicas, podemos radiografiar “conjuntos de acción”, para establecer posibles alianzas de cara los cambios sociales; c) Construir con metodologías participativas, no es solo partir de esquemas conceptuales, sino sobre todo de la complejidad de las “relaciones operativas”; d) Como los “ritos de paso”, algunas prácticas sociales, son los que generan conciencias eficientes; e) De esta manera “los grupos motores” son elementos clave de los movimientos sociales y de la transformaciones sociales posibles.


Contra-hegemonía y metodologías: ¿Se trata de “concienciar” mejor?


Tal vez hay quien piensa que se trata de que no concienciamos bien a la gente, ni con los movimientos ni con los partidos. Pero tal vez lo que está en cuestión es el propio “concienciar”, el estilo de ir a convencer a la gente de tus ideas, ir a predicar lo que la vanguardia dice saber, casi sin escuchar lo que la gente está planteando, o los gritos poco articulados de amplios sectores enfadados con todo, con expresiones de todo tipo (algunas muy poco racionales), y que por lo tanto es difícil encajar en los sentimientos populares. Esto es una cuestión que parece central, en que la queremos aportar algunos caminos que nos parecen más viables, porque ya los hemos visto en algunas prácticas, (en las últimas décadas en Chile, Ecuador, Perú, Brasil, Colombia, Venezuela, Argentina, México, Uruguay, Italia, Portugal, España, etc.) y nos atrevemos a sistematizarlos.

Construir contra-hegemonía desde el sentido común de la gente no es una tarea fácil, pero algún movimiento social lo suele hacer mejor que los partidos que ya se conocen. No parece que se trate de resucitar o recuperar la “vieja izquierda”, y menos con un programa que podemos escribir cada cual, sino de recuperar en todo caso la costumbre de escuchar y construir colectivamente con la gente, desde la base. Hay muchas formas de hacerlo y en eso parece consistir la democracia de base, por lo que voy a aprovechar para plantear una de las formas que venimos practicando en los barrios, cooperativas, movimientos, municipios, etc. donde actuamos desde hace algún tiempo. Es solo para no dejar la crítica en puro debate teórico. Y mostrar que para construir estrategias y unos programas de sentido común, no hay que rescatar lo peor de la gente (como hace el populismo), o lo mejor (que nos imaginamos en la izquierda), sino partir de la contradicciones que todas las personas tenemos, y poder

ir construyendo síntesis superadoras y desbordantes. Seguramente son posiciones superadoras que habrá que ir actualizando y cambiando según son los movimientos, pero respetando a la gente y no interpretando por nuestra cuenta para “concienciar” según los estilos de arriba a abajo.

En esto de la “concienciación” hay grupos izquierdistas, feministas, ecologistas, animalistas, y también marxistas, que se pasan. Y acaban por aburrir a la gente. En esto puede haber un punto de acuerdo en criticar esas prácticas de élites militantes, que aprovechan desde la “derechona” (no solo Bolsonaro, sino toda la derecha y lo social-liberal) para denigrar a todos los movimientos. Pero no se trata de oponer discursos, una concienciación cultural u otra, sin tener los medios adecuados. Llevamos las de perder siempre en una época como la nuestra, los medios organizados por el “Gran Hermano” (Sampedro, 2018) interiorizado en los “móviles” que nos delatan, donde se controlan las polémicas más brutas (sin análisis, casi insultos), y casi nunca son reflexivas sobre lo que supone los grandes medios y sus dominios sobre la “actualidad”. Pero hay otros medios a usar para construir con la gente desde la base democracias participativas. E ya hay experiencias que podrían hacerse en los “círculos de base” si tuvieran vida, en las agrupaciones de base, en movimientos o cooperativas, pues la cultura alternativa se puede basar en otra forma de hacer las estrategias y la política, que no sea “escuchar al jefe” y posicionarse. Sino más bien se trata de escuchar a la gente y construir co-productivamente. Eso, que se dice tan pronto y fácil, es lo que necesita de mucha práctica y un sentido auto-crítico mayor del que tenemos casi todos.

La escucha activa no es algo fácil porque hay que salirse de los círculos próximos y recuperar lo que dicen los diferentes y los ajenos a la opinión que uno tiene. Esos sentires y sentidos comunes, y más que concienciar, es dejarse impregnar por las variables que cuentan para la gente. Lo solemos hacer con 4 variables, aunque hay muchos otros métodos de metodologías participativas.

En primer lugar la posición de clase social respecto al modo de producción, pues esto nos da unos intereses de fondo, aunque no completen toda la conciencia más que en una parte (como se viene demostrando en las fluctuaciones de la gente). En según lugar, además de la “clase en sí” está la “clase para sí”, que se muestra en las expresiones verbales y culturales, pero también muestra variaciones complejas según el tipo de tema que estemos enfocando. Esta segunda variable se puede analizar mejor si se concreta sobre un tema determinado. Por ejemplo, en los

“mapeos estratégicos” no es lo mismo hacer el análisis de los actores en presencia respecto del aborto, de una huelga, o del nacionalismo. Un mismo grupo que para un tema está muy cercano, para otro parece incompatible. La componente ideológica cultural no parece obedecer a los intereses de clase de forma automática, como sabemos, pero cabe construir estos “mapeos estratégicos” para acercarnos a cada caso en concreto, y solemos hacerlo participadamente con actores locales.

Más aún, hay otras dos variables (de la “clase así”) que podemos incluir, y que resultan muy interesantes en cada coyuntura concreta.

En tercero lugar, así incluimos el grado de organización y capacidad simbólica de los actores que se relacionan para un tema considerado. En una encuesta clásica no salen los principales puntos calientes por donde circula la información clave de una región, de un conflicto, de un movimiento, de una cooperativa, de un barrio, etc. Y la escucha activa de estos nodos es clave para entender la posición de los actores dentro de las estrategias, sus contradicciones, sus diversidades, y sus confluencias.

Y también, por último, la cuarta variable son las relaciones emotivas y operativas entre unos grupos y sectores y otros. Sin duda esta variable es la más fluida, y la radiografía de la situación ha de hacerse cada poco. No se trata de hacer psicoanálisis, sino “análisis institucional”. En la práctica es la que mejor explica las coyunturas, y cómo se mueven las contradicciones del sentido común y las alianzas estratégicas, y se puede hacer desde la base.

Construir una estrategia de construcción colectiva con los movimientos sociales no es entonces lanzar un programa concienciador, desde un istmo que a cada cual le parece el mejor, sino acertar un método de construcción colaborativa, donde cada istmo sabe escuchar activamente cuál es la correlación de fuerzas, y qué aportan los demás. Y lo que más une es la conciencia de la fuerza que tienen los que se oponen a las transformaciones necesarias. En un “mapa estratégico” con estas 4 variables deben quedar claras cuáles son las fuerzas que dominan y se oponen a la estrategia transformadora. Y cuáles son sus contradicciones. No es tanto cuál es el carácter interno del populismo o del reformismo, sino cuáles son sus contradicciones, por ejemplo. Qué es lo que dicen y qué es lo que hacen. Y lo mismo con las demás fuerzas sociales y políticas, con los sindicatos, patronales, pensionistas, feministas, ecologistas, vecinales, deportivas, religiosas, étnicas, culturales, etc. Son las relaciones entre actores lo que permite pensar en una estrategia que aísle a los

opuestos, son las relaciones operativas, en la praxis, las que ayudan a transformar: “hechos y no buenas razones” es lo que la gente entiende en su mejor sentido común.


Participación y estrategias con los “conjuntos de acción”


Aprendimos el “mapeo estratégico” con Paulo Freire, pero le damos una aplicación mucho más operativa con nuestras prácticas en todo tipo de procesos participativos. Es una forma de reconocer a los grupos sociales dentro de las clases, fracciones de clase y su pertenencia ideológica, organizativa y emotiva. Se consideran las ideologías, pero no como un todo coherente en cada sector o grupo sino como elementos contradictorios que muestran varias caras según las “relaciones operativas” donde se construyen. Como se podrá ver las relaciones marcan más que los conceptos, más que ideologías que justifican las prácticas. Se trata de relaciones muy complejas no deterministas, que pueden estar cambiando más que los pre-conceptos en que cada cual haya sido educado, como vamos a poder ver en los siguientes apartados. El gráfico que vamos a presentar debería estar surcado por relaciones enmarañadas, aparentemente caóticas, como si fuera un manglar o un rizoma, donde los “entramados” de relaciones obedecen a varias variables y no solo a la de clases sociales deterministas. Para simplificar, los “conjuntos de acción” los enmarcamos solo entre un eje izquierda/movilización y derecha/inmovilizaciones, y otro eje vertical entre los activistas y los pasivos, por el lugar de la comunicación que ocupan. (Red CIMAS, 2015).

Con estos “mapeos estratégicos” proponemos un gráfico sobre lo que nos está pasando, y cómo se puede enfocar y desbordar. Por encima de todas las personas y grupos están los “Equivalentes de Valor” dominantes, que se transmiten sobre todo por los medios (TV, miedo a la gente con muertes y catástrofes, preocúpese del sexo y el fútbol, vean pelearse a los tertulianos), y todo eso puede que lo comenten en sus “móviles” como una votación permanente y controlada. En la columna de la derecha de la imagen, está el campo en donde las preguntas llegan marcadas, las agendas manejadas y las posibilidades de debatir con alguien que te insulta casi nulas. Por la izquierda del esquema se pueden ver los porcentajes de “activistas”, “seguidores”, y “nodos retransmisores”, hasta llegar a la gran “mayoría silenciosa” (y su apéndice más pasiva). Estos porcentajes los pueden comprobar en las grandes movilizaciones, en las votaciones, etc. de igual manera que en su barrio, su trabajo o entre amistades.

Todas las personas estamos en varios de estos “entramados” y son estos los que nos constituyen como actores sociales.


Esquema de los “conjuntos de acción”


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Fuente: autoria propia


Dentro del gráfico aparece un “mapeo estratégico”, a título de ejemplo, donde las líneas están delimitando los “conjuntos de acción” más habituales. Ahí podemos reconocer los grupos activistas de crítica-crítica (marxistas, feministas, ecologistas, etc.) más o menos peleados entre sí, cada cual con su manifiesto y su programa diferencial. Solo en algunos casos (de implicación y escucha) conectan con algunos movimientos “cuidadanistas” (es decir, aquellos que cuentan con porcentajes de “seguidores” y “retransmisores”). “Seguidores” son los que van una o dos veces al año a una reunión amplia (100 personas en una población de 10.000 por ejemplo, donde los activistas son 10 como mucho). Pero la clave de que la gente se movilice está incluso en los “retransmisores” que no acuden a reuniones, pero que sí hacen la tarea de comentar en sus entramados de vida cotidiana, los contenidos de lo que se quiere. La escucha activa es la que se preocupa de estar atenta a todo esto, y aprende de lo que sube desde estas bases.

Hay otros “conjuntos de acción” en el gráfico. Podemos reconocer los grupos y partidos de corte mediador, “gestionistas” porque tratan de gestionar para la gente, pero sin implicarla en las tareas o movilizaciones, pues son sus representantes. Eso lleva a que puedan recoger de todas partes según las coyunturas, pero también tiene por debajo una masa de posiciones fluctuantes, que se van desencantando con unos y otras. Fluctuantes que a veces están en movimientos sociales, otras veces votan con los populistas de diversos signos, y otras no apoyan nada. Depende de las 4 variables que ya veíamos antes, cómo se articulan en cada momento. Pero también están los conjuntos de acción de tipo “populista”, que se pueden apoyar en lo que se repite por los medios y por los móviles, sobre lo que más se polariza. Mucha gente no quiere aventuras, sino que “le den” alguna seguridad (puede ser de cambio o de mantener las tradiciones). Las “postverdades” muy repetidas pueden ser una realidad para muchos “retransmisores”, y esto es lo decisivo en el sentido común construido.

Para transformar el mundo (el nuestro, el general) está bien tener una ideología y un programa, pero mucho más decisivo es tener las fuerzas necesarias para hacerlo. Pues nos podemos quedar aislados repitiendo nuestras verdades, pero solos. Las fuerzas se pueden agrupar escuchando y articulando acciones con los conjuntos de acción más próximos, dividiendo los conjuntos opuestos por sus contradicciones, construyendo la seguridad de un programa con la gente de base (las quejas de los desencantados). Por eso la ideología ha de estar abierta a escuchar la diversidad (de acciones y de sentido común) y poder construir cooperativamente movilizaciones y organizaciones capaces de transformar las explotaciones, opresiones, y los “equivalente generales de valor”. No solo votar un día un programa, sino construir los grupos motores de movimientos (agrupaciones, círculos) que cada día apliquen estrategias inclusivas.

No parece que se pueda cambiar de posición ideológica por estos comentarios, ni parece lógico pretenderlo. Lo que se pretende es poder actuar con coordinación, si se quiere superar las fuerzas que nos explotan y nos oprimen. Para eso hay que acordar una estrategia apropiada desde la diversidad. Los métodos democrático- participativos pueden ayudar a superar sectarismos. Por ejemplo, para las elecciones municipales en España se pusieron en marcha variados procesos desde abajo que sí construyeron esas candidaturas que tuvieron éxito, pero para estas elecciones de 2019 ya algunos partidos y liderazgos están organizándose desde arriba, lo que va a generar muchas divisiones y mucho menos entusiasmo por abajo. Así que parece que

no sabemos aprender ni de nuestros errores ni de nuestros éxitos. En España no es necesario conocer al dirigente o líder de los pensionistas o de las feministas para participar en sus movilizaciones y sus exigencias al Estado. Se han venido realizando fuertes movilizaciones, pero nadie conoce a las o los líderes, ni parece que haga mucha falta. ¿Podemos aprender de sus formas de organización, que nos enseñan la democracia de base, la democracia participativa?


Cómo crecemos, desde los “esquemas conceptuales referenciales operativos”


Félix Guattari usa la metáfora del “rizoma” para indicar la complejidad de las conexiones vinculares en que nos educamos y crecemos. Otras autoras, como Cristina Carrasco, usa la metáfora del “iceberg” para indicar todo lo que se queda por debajo de la economía convencional. Después de vivir en Latinoamérica prefiero la metáfora del “manglar”, porque aúna ambos aspectos (complejidad de relaciones y el hecho de que no se vea la realidad subyacente). Además el manglar puede hacer referencia a las “estructuras vinculares” (Pichón-Rivière) más que a los “intereses” (de una clase, de género, etc.) como unas “esencias objetivas” que pudieran tener los asalariados o las mujeres de por si. No estamos aquí buscando las esencias de nada, sino más bien las relaciones que nos están construyendo, más las “cartografías” que nos puedan ser operativas, que las “arqueologías” del ser o alguna ontología filosófica. Si queremos acercarnos a cómo se construye la realidad de nuestra comprensión y de nuestras conductas, podemos empezar por el subsuelo, por la tierra en donde se enraízan los manglares. Es decir, en nuestro caso por el cuerpo biológico con sus mecanismos relacionales celulares (aquellos de los que no somos conscientes y actúan sin saberlo nosotros). Por ejemplo, las relaciones de las bacterias activas que portamos con la alimentación diaria en el aparato digestivo, o el funcionamiento de nuestro sistema inmunológico que nos está defendiendo durante las 24 horas, etc. O las conexiones que se producen en el cerebro, entre las neuronas de la parte más “reptiliana” y del “neocortex”, o con el resto de terminales nerviosas en todo el cuerpo. Hay una gran creatividad celular por su cuenta, heredera de los procesos evolutivos, de la que no tenemos conciencia (salvo por los estudios neurológicos), y que está en la labor de mantener y ser creativa ante los avatares de

la vida.

De estos impulsos no conscientes para mantener nuestra vida, podemos pasar a los inconscientes, que se reflejan por ejemplo en los sueños, y que desde Freud podemos intentar entender algo de sus lenguajes cifrados. Es como bucear por el agua entre los manglares, no es el lodo que solo vemos en su superficie (como nuestro cuerpo), sino la belleza de los troncos retorcidos y los peces variados que allí habitan. Emergen ahí los deseos inconscientes, influidos por las relaciones familiares y sociales en las que vivimos y fuimos educados. Hay unas pulsiones sin control, de afectos y deseos, más allá de las creencias de cada cual (que lo que nos suelen hacer es más bien reprimir aquellas maquinaciones). Estamos en la “intra-estructura” como la denominó Paul Virilio y lo retoma A. Lans (2018). Aunque el psicoanálisis ha tratado de reencauzar estas pulsiones, no hay acuerdo sobre cómo hacerlo, y solo sabemos que emergen creativas y nadan por su cuenta. Nuestra mente sigue siendo una gran desconocida.

Si salimos del agua hacia el aire, con los manglares, podemos establecernos en los pre-conscientes mentales. Es decir, en una serie de conductas rutinarias que apenas pensamos y que nos constituyen en lo que hacemos e influyen en la conciencia. Practicamos una serie de ritos y costumbres sociales, que al convertirlas en hábitos rutinarios nos van construyendo lo que somos, nos configuran los intereses comunes que defendemos. Los intereses de género, edad, clase, cultura, no los elabora cada persona aisladamente, sino lo que vivimos en nuestras prácticas, en nuestras relaciones cotidianas. Confianzas y miedos que brotan de estos “instintos” pre-conscientes, tanto para luchar por nuestra clase social o por nuestro país, por ejemplo. Al menos, en este aire mental (de tormentas o de mar en calma) podemos intentar nombrar todos estos procesos, como una “infra-estructura” de intereses en juego.

La parte consciente de los manglares es lo que ilumina el sol o la luna, lo que se puede ver y conocer a vuelo de pájaro, por encima de los entramados complejos que ya hemos señalado. Religiones e ideologías tratan de poner orden en esta realidad tan emergente de deseos e intereses tan compleja. Es lo “consciente discursivo”, o sea son los “esquemas conceptuales” que Pichón-Rivière analiza con lo que denomina el E.C.R.O. Todos tenemos y usamos “esquemas conceptuales referenciales operativos”. Y ni siquiera somos conscientes de que tenemos estos pre- conceptos, muchas veces, con los que juzgamos aquello que debemos hacer. Estas son las justificaciones que argumentamos para nuestro hacer social, ético y político.

Aún así no es que estemos absolutamente condicionados, pues podemos ser del sol o de la luna, aprovechar una tormenta o danzar con los pájaros, reprimir los deseos o liberarlos, defender nuestros intereses u ocultarlos, pues hay muchas formas en que podemos elegir de acuerdo con nuestro entorno (que puede estar constituido por “conjuntos de acción” muy variables y articulables entre sí).

Hay una gran variedad de justificaciones posibles, pensamos que las adoptamos de forma libre, pero desde abajo estamos influenciados por la biología y la ecología de donde vivimos tanto como por la infra-estructura (intereses) y la intra- estructura (deseos) de los que partimos, aunque no seamos conscientes. Y además desde arriba nos está pesando el clima (sol, nubes, luna, vientos) de la familia y los medios de comunicación donde nos hemos educado y vivimos. Lo llamamos los “Equivalentes Generales de Valor”, es decir esos valores que son como el “super-yo” que nos está juzgando y que sentimos al actuar (desde el padre, al maestro o al jefe). Un mandato cultural para ser “el ganador”, el triunfador sobre el perdedor, el orgullo de la familia y de la comunidad, frente a los demás, como si estuviéramos en la lucha a muerte por la sobre-vivencia. Dentro de lo que cabe tenemos que elegir.

Algunas feministas han acuñado las siglas del BBVA como crítica al modelo de Burgués, Blanco, Varón, Adulto, que critican como referente de lo que oprime tanto a trabajadores, otras etnias y colores, mujeres, niños/as y viejos/as. Habría que añadir también CB (Caixa Bank) como “Consumista y Borde”, por ejemplo. Porque lo que se está criticando es el estilo a lo James Bond, Berlusconi, Trump, Bolsonaro, etc. y otros tantos BBVA y CB que hay por el mundo que se presentan como Equivalentes Generales de Valor, y tienen muchos seguidores. Este modelo se basa en la familia de tipo patriarcal, triangular y normativa (aunque muy cínica e hipócrita en la realidad), en la que se ha educado desde hace siglos a niños y niñas, donde apenas se cuidan las diferencias, donde se norman los deseos y los intereses, se reprimen las diferencias y diversidades. Quien se aparta del modelo es un “perdedor” o una “perdedora”, no tiene posibilidades de triunfar, de tener éxito en la vida.


Construir “relaciones operativas para conceptos eficientes”


Partimos al nacer como humanos de una gran vulnerabilidad y de las necesidades de inter-dependencia, en comparación con otros mamíferos cuyas criaturas adquieren antes la capacidad de valerse por sí mismas. Nuestro cerebro tarda en desarrollarse, y lo hace en relación con la madre, con los juegos y con el

ambiente nutricional y social en que nos toque vivir. Por eso desde la infancia estamos en continuos retos, y ritos de paso, para ir superando pruebas y en esa medida nos construimos con lo que hacemos. No tomamos las decisiones cada cual por su cuenta sino en ambientes y relaciones determinadas, pero con una margen de maniobra que va acompañándonos, no determinista, aunque por fuera y por dentro tengamos muchos condicionantes.

No estamos condenados ni por los “Equivalentes Generales de Valor” que nos están dominando, ni por los intereses y los deseos que nos constituyen desde lo más íntimo. Hay varios momentos en nuestras vidas en que debemos tomar decisiones, teniendo en cuenta los condicionantes cartografiados por arriba y por abajo. Siempre estamos en alguna red, familia, trabajo, pueblo o barrio, cultura, etc. pero también cambiamos en diversos momentos de la vida. Hemos aprendido que los “esquemas conceptuales” se pueden ir cambiando según las “relaciones operativas” y no al revés. Que lo que se hace deja mucha más huella que lo que se dice. Los conceptos son más eficientes en la medida en que responden a relaciones vividas. Y por eso podemos ver, en el cuadro que sigue, como a lo largo de una vida hay “Relaciones Operativas” (desde los deseos e intereses) en donde cabe tomar posturas diversas (en los “conjuntos de acción”), y desde ahí justificar mejores “Conceptos eficientes”:


Esquema de Ciclos Vitales y Ritos de Paso


Ciclos vitales

Ritos de paso

Cambios biológicos

Relaciones

operativas

Conceptos

eficientes

Infancia

Teta-cara y

movimientos

Mamar y jugar

Padres e Escuelas

Seguridades

Miedo/obediencia

Adolescencia y juventud

Crecimiento

Hormonas y Mayor fuerza

Ritos de paso

Pandillas Aventuras

Repúdios e

Identificaciones (cerradas/abiertas)

Procreación y

profesiones

Capacidad laboral

Tener hijos/as

Trabajar, alimentar

Educar, etc.

Responsabilidad ante

los demás

Madurez

Primeros

Achaques

Rutinas/conflictos

Mandar/juzgar

Autoridad

escepticismo

Vejez

Sin fuerza, pero

Con experiencia

Reconocimiento

Mediación

Mezclas y asuntos

pendientes


Fuente: autoria propia


Por ejemplo, la infancia en la familia marca para toda la vida. Pero la familia puede ser de muchas maneras distintas, al igual que la escuela, o las relaciones de vecindad. Según sean las relaciones (más que los conceptos) se producirá una cierta seguridad o situaciones de miedos e inseguridades, una disponibilidad a la creatividad desde los juegos, o temores a los mayores. La obediencia puede tener bastante sentido en los primeros años por nacer las criaturas humanas en sí mismas muy desvalidas. Pero esta relación se puede construir desde el temor o desde la responsabilidad y con la experimentación compartida. No vamos a insistir aquí en los muchos análisis desde Piaget, Vigotsky o Freire, de sobra conocidos.

Pero sí viene a cuento insistir en la etapa de la adolescencia, que es donde se suele producir los repudios a lo familiar cercano, y la construcción de las “identificaciones” que pueden marcar las etapas posteriores de la vida. En sectores progresistas no se suele tener claro qué políticas son las convenientes en estas edades. En los programas muy racionalistas se desconfía de la emergencia de los deseos que se suelen producir de forma alterada y contradictoria, y los ritos de paso suelen ser mucho más atendidos por los sectores más reaccionarios (lo militar y machista, deportes muy antagónicos, la pornografía, las aventuras con estimulantes al límite, etc.). Pero también podría haber aventuras que puedan ser para la solidaridad, desde las pandillas, desde huelgas de institutos por causas justas, deportes con mayor colaboración entre semejantes, uso del sexo más responsable, gozar de fiestas con diversidad de conductas, etc.

Las identificaciones suelen ser provisionales, como los ritos de paso, pero suelen dejar huellas. En todos los países podemos reconocer algunas generaciones que se las identifican por algunos acontecimientos que se han vivido desde los deseos y prácticas creativas colaborativas. No es porque haya habido unas teorías especiales que hayan producido esos acontecimientos, sino más bien al revés. A partir de que se dieron los acontecimientos de 1968, o de los años 90, o de 2011, etc. se puede reconocer que esos ritos de paso han marcado otra forma de entender la vida, y sus consecuencias socio-políticas. Hay identificaciones muy cerradas por ejemplo con ideologías o con religiones que se adscriben a una iglesia o un partido, donde la jerarquía está de ante mano establecida, y eso da para estar a favor o en contra, de los propios o los ajenos. Pero también pueden darse otros acontecimientos que sirvan

para rituales de paso a posiciones más abiertas y creativas, no tan jerarquizadas, no tan patriarcales.

No todo debe ser “matar al padre” y desgarrarse como Edipo, contra otros y uno mismo. Hay otras posibilidades como Telémaco (esperar a que llegue Ulises, según argumenta Recalcati), o incluso pasar de la familia (como la formación de Leonardo en un taller artesano). Superar la familia de sangre y de origen supone todo un reto, y es algo, en la formación pedagógica, que aún no está construido cabalmente para las edades adolescentes. El que ahora estemos pasando a una nueva situación de muchas familias variables, diferentes y “deseadas”, puede ser una ocasión para democratizar las relaciones desde la edad y desde el género. El patriarcado ha sido denunciado por las mujeres, pero también debe ser replanteado por los adolescentes (varones tanto como mujeres) por ser unas prácticas represivas de las diversidades, de las grandes posibilidades de creatividad social en esa etapa de emergencia de los deseos.

En las etapas de procreación-profesiones, madurez, y vejez, también se pueden producir nuevas experiencias como “ritos de paso” (tipos de trabajo cooperativos o jerarquizados, luchas por mejoras sociales, vanguardismos elitistas, etc.) Como se puede comprobar no estamos haciendo tanto énfasis en los contenidos (más o menos de cambio o revolucionarios) como en las formas de articular los vínculos y las relaciones operativas. Porque lo que hemos comprobado es que poder cambiar las “relaciones operativas” en la práctica es mucho más transformador que los debates de “esquemas conceptuales”. Si en un proceso práctico y vivencial podemos cooperar, por ejemplo, los nociones comunes son más fáciles de encontrar.

¿Nos dividen cuestiones conceptuales, ideológicas, o de protagonismos? Pero como está mal visto sacar estos “egos” a pelear, los disfrazamos de justificaciones teóricas. Pero si se superan las rivalidades personales, y se puede cooperar para un objetivo concreto, es más factible construir deliberativamente.

Lo/as mayores, abuela/os, que ya no somos padres, antes nos moríamos pronto al acabar nuestras tareas laborales, pero ahora podemos ser nuevos activos potenciales. Ya no se ejerce la fuerza, pero se puede reconocer la experiencia acumulada en los cuerpos y la mente. Como pensionistas, más que como asalariados, ya no tenemos jefes (salvo el estado) y eso nos socio-politiza más. Nos podemos dedicar a asuntos que teníamos pendientes, más artesanos, más creativos, a nuevas amistades más abiertas y menos dogmáticas, lo que nos puede dar un papel de

mediación en los conflictos familiares o sociales. Son nuevos ritos de paso mucho menos patriarcales que podemos abordar, ya que tenemos poco que perder y mucho que aportar, en la medida en que aumenta la esperanza de vida en nuestra sociedad.


Algunas (in)conclusiones con “grupos motores cuidadanistas”


En el esquema de los “conjuntos de acción” que hemos presentado al principio, le poníamos a unos movimientos sociales el adjetivo de “cuidadanistas”, y es porque aunque muchos pueden ser de ciudadanos, no todos lo hacen con “cuidados”. Es un adjetivo con el que algunas feministas tratan de mostrar diferencias para hacer estilos socio-políticos menos patriarcales, menos jerarquizados y competitivos. Otras lo denominan como “feminizar la política”, evitando competencias de “machos alfa” o de “egos” excesivos. En los casos que hemos seguido hay mujeres, jóvenes, mayores, etc. pero lo más notable suele ser la existencia de “grupos motores”, es decir de unos colectivos informales que se juntan para alguna tarea concreta, durante un tiempo que varía, más que por afinidades ideológicas o con voluntad de organización cerrada.

Así como en los partidos políticos vemos una competición interna permanente por ser los líderes, y competiciones externas por ser más representativos, en estos “grupos motores” hay unos estilos más de “retaguardia”. Forman parte más de lo que se ha dado en llamar movimientos sociales o democracias participativas, que democracias representativas. Hay un estilo más coral, donde una puede ser la más conocida o la que habla mejor, pero otra persona puede ser quien cuida de las buenas relaciones y el ambiente interno, así como otra puede encargarse de llevar cuenta de los acuerdos y de recordar las tareas, u otra de actividades que sabe hacer mejor que los otros, etc. Y además no es para siempre, sino que tratan de crear un buen ambiente durante el tiempo que dure el proceso, porque si no es así, se van a disgusto y decae todo.

Algunos ejemplos de métodos que hemos visto poner en práctica nos indican que hay otras formas de ser “cuidadanistas” y construir democracias participativas. Por ejemplo, cuando se inicia un proceso de implicación mucha gente se adelanta a poner sus propuestas, que cree las más justas. Pero primero habría que tener en cuenta los “criterios” comunes que permiten que tal proceso tenga una cierta unidad de fondo, que se detecten cuáles son las carencias principales, los dolores a superar, ydespués se puede ver si cada propuesta corresponde a las necesidades colectivas.

Nos parece de bastante lógica pero se suele hacer poco. Queremos cuidar más los procesos democráticos pero enseguida nos echamos a pelear porque “mi solución es la mejor”, casi sin haber escuchado las otras razones, o los criterios comunes que permitirían valorar cada una de las soluciones propuestas, en función de acuerdos previamente tomados.

En una isla donde había que gastar un dinero, para un proceso participativo por el gobierno, nos preguntaron cómo hacerlo. Les dijimos que reunieran a la gente que estaba interesada, que acordaran unos criterios comunes, a partir de las experiencias que tenían previas, y que se hicieran públicos con la convocatoria para presentar los proyectos. La gente fue muy solidaria a la hora de aportar los criterios. Cuando se presentaron los proyectos cada cual defendía, en cambio, lo suyo. Eran las mismas asociaciones y personas, pero en un espacio de diagnóstico y criterios les salía lo más solidario, y en un ambiente de competir por proyectos les salía la vena de rivalidad. No es que la gente sea buena o mala, sino que los procedimientos nos hacen parecer más competitivos si nos echan a ello, o más solidarios si se dan las circunstancias.

Se suelen plantear los debates y las decisiones en forma de dilemas, nos provocan a tomar partido a favor de una u otra solución, entre las más aplaudidas en las redes sociales o entre los tertulianos de una televisión. Pero detrás de cada dilema suele haber una pregunta tramposa, que nos obliga a decidir entre 2 cosas que no nos tienen porqué gustar. Y que suele ocultar otras posiciones posibles que no se nombran o que se dan por no viables. Por ejemplo, el trabajo para los migrantes o para los autóctonos de cada lugar. Pero depende de qué trabajos hacen mejor unas y otras personas, al margen de su origen, tal vez por ser jóvenes o mayores, tener habilidades o no, tener experiencia o no tenerla, etc. Solemos devolver la información a la gente para que se pueda tomar una buena decisión. Pero solo cuando hemos escuchado más de 5 o 6 posturas diferentes, entre la cuales puede haber varias “inclusivas”, no excluyentes. Es lo que nombramos como “multi-lemas” que superan los dilemas.

Alguna gente se dice asamblearia y defiende que es el mejor método democrático, pero hay que tener “cuidado” con lo que se hace. Hay un tipo de asambleas donde la información solo la manejan algunos, y se suelen convertir en “plebiscitos” en donde no caben más posiciones que las que nos dicen. Está bien que una o dos veces al año se consulte con toda la población que quiera asistir libremente a una convocatoria, pero la información debe ser previamente elaborada por grupos

que sepan de lo que se está tratando, y con diversidad de posiciones posibles, no solo dilemas, o si se va a respaldar a un dirigente u otro. Para que una asamblea sea participativa debería poder opinar toda la gente, y eso solo es posible si se divide en grupos pequeños, durante un tiempo, o previamente a la reunión. Solemos hacer talleres y reuniones a lo largo del año, con informaciones diversas y de contraste, y cuando toca la asamblea, también puede haber grupos pequeños que durante un tiempo puedan debatir aleatoriamente.

Y tampoco hay porqué votar por una solución frente a otras. Se pueden distribuir los puntos, como si fueran monedas o garbanzos, y que cada cual pueda distribuirlos entre las varias alternativas que se presenten. A una le puede dar 5 puntos y a otra le da 3 y a otra ninguno, por ejemplo. O hacer otras distribuciones, de forma que cada cual además de ver y defender la propia solución vea y se entere de las otras posibles que se han presentado, que no tienen por qué ser incompatibles con la propia. Y que incluso pueden sumarse o acoplarse luego de la votación ponderada. De hecho lo que solemos hacer, tras estas ponderaciones con puntos de la gente, es tratar de que se puedan sumar y articular las más respaldadas en un diálogo abierto. Ya la gente ha visto que algunas propuestas han sacado pocos puntos y otros muchos apoyos, por lo que es más fácil el consenso a partir de estas valoraciones previas.

Hasta aquí no hemos necesitado “representantes”, pues se pueden construir los auto-diagnósticos y las ponderaciones solo con “grupos motores”, y alguien que haga de facilitador/a o cuidador/a. Como en estos procesos con democracias participativas la gente se va conociendo se ve quien tiene interés y sabe de tal o cual cosa, quién es más cuidador/a, quien puede tener mejor relación para los medios, quién habla con soltura en público, quien media y facilita en las reuniones, quien es sistemático/a en tomar notas de los acuerdos, quién está preocupado/a en recordar tareas, etc. De tal forma que puede haber una distribución de funciones, incluido el papel de portavoz para unas u otras cosas (que no tiene porqué ser la misma persona para todo). El que se distribuyan las tareas y lo papeles, y que además puedan ser rotativos según lo que se va experimentando, puede ser una gran escuela democrática. En cambio se suele hacer primero la elección de quién es el responsable, y luego el para qué. Es decir, la casa empezando por el tejado desde nuestro punto de vista.

Un papel muy importante es poder tener un “observatorio”, y hacer sesiones cada cierto tiempo, previamente a que se detecten desvíos de los criterios iniciales o

de los estilos de cuidar el proceso. Hay quien dice que la democracia participativa consiste en controlar el poder, pero eso supone que ya hay un poder distante al que hay que controlar y que esto se hace luego de que ya ejerció su poder. No parece malo que se controlen los poderes existentes, pero es mucho mejor que se pueda prever lo que no nos gusta que pase. Un observador o un observatorio nos permiten tener un estilo de “coherenciometro” antes que tener que controlar los poderes propios o ajenos. Es decir, por ejemplo, un cuadro de doble entrada donde ir colocando los criterios o los objetivos enunciados en conjunto al principio, y cruzarlos con las actividades que de hecho se va a hacer o se han realizado, para ver prioridades o desviaciones.

No es tan complicado formarnos en estas prácticas de democracias participativas y usar estas pedagogías transformadoras, estos ritos de paso para la construcción un poco más colaborativa. No estamos “concienciando” a nadie sobre nuestra ideología o nuestra religión. Más bien estamos respetando que cada cual parta de sus principios siempre que no se los quiera imponer a los demás. Y por la práctica de construcción colaborativa vamos dándonos cuenta lo que tiene de interesante cada posición de las que vamos conociendo. Es desde la diversidad desde donde se puede ejercer este tipo de creatividades, no desde la uniformidad de posiciones en que nos quieran adoctrinar unos u otras. En la medida en que podamos hacer “habituales” este tipo de prácticas y de procesos, que van construyendo una cultura de “cuidadanismo”, de no delegar en los “listos”, los “mejores”, etc. sino confiar en las propias fuerzas colaborativas, en las capacidades en que nos vamos entrenando, es como podemos ir superando los desánimos en que nos han ido metiendo aquellos que nos hacían tantas promesas, nos concienciaban...

Hay gente que se adhiere a la servidumbre voluntaria cuando le hemos fallado por el estómago y por las fantasías, que se apunta a otras fantasías a ver si aquellas otras personas no nos fallan. Tal vez alguien prometió el socialismo y luego se quedó en lo poco que le dejó hacer la “globalización neoliberal”, o incluso algunos compañeros de ruta se dejaron tentar por la codicia o por el clientelismo. No es la primera vez que sucede, y la gente prueba con otras personas a ver si estos “sí nos representan” y nos dan más “seguridades”. Pero el problema que tratamos de plantear es que solo con las experiencias que construyen más allá de unas personas- responsables, que construyen desde otras prácticas colectivas no tan delegadas, se puede evitar las tentaciones del poder. Todos somos humanos y si nos ponen en la

carrera a ver quién es más listo y con quién debo competir, pues nos sale lo peor. Mientras que si nos ejercitamos en otros tipos de procesos más colaborativos de base pues nos saldrán los aspectos más solidarios y más creativos. Al menos entre los sectores populares, es lo que parece que necesitamos.


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v.17, nº 33, mai-ago (2019) ISSN: 1808-799 X


MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA (MST) NO BRASIL E AS PERSPECTIVAS DE LUTA PÓS-GOLPE 20161

Rose Márcia da Silva2

Resumo


Trata-se de um estudo sobre a organização, dinâmica, estratégias de luta e perspectivas do MST na conjuntura pós Golpe 2016 até o processo eleitoral 2018, tendo como referência com base em autores materialistas histórico-dialético e levantamento de dados, documentos, reportagens e declarações de líderes. Diante do atual contexto sócio-histórico-político, as contradições e a luta de classes encontram-se acirradas e o MST tem se destacado como um dos principais movimentos de luta anticapitalista nas mobilizações pós golpe no país, pela reforma agrária popular, pela liberdade e pela democracia.

Palavras-chave: Movimentos Sociais; MST; Golpe; Resistência; Democracia.


MOVIMIENTO DE LOS TRABAJADORES RURALES SIN TIERRA EN BRASIL Y LAS PERSPECTIVAS DE LUCHA POST-GOLPE 2016


Resumem


Se trata de un estudio sobre la organización, dinámica, estrategias de lucha y perspectivas del MST en la coyuntura post Golpe 2016 hasta el proceso electoral 2018, teniendo como referencia con base en autores materialistas histórico-dialéctico y levantamiento de datos, documentos, reportajes y reportajes declaraciones de líderes. Ante el actual contexto socio-histórico-político, las contradicciones y la lucha de clases se acentúan y el MST se ha destacado como uno de los principales movimientos de lucha anticapitalista en las movilizaciones post golpe en el país, por la reforma agraria popular, por la libertad y por la democracia.

Palabras clave: Movimientos Sociales; MST; Golpe; Resistencia; Democracia.


MOVEMENT OF RURAL WORKERS WITHOUT LAND AND THE PERSPECTIVES OF POST-COUP STRUGGLE 2016


Abstract


It is a study about the organization, dynamics, policies and perspectives of the MST in the conjuncture post-Coup 2016 until the electoral process 2018, having as reference in historical-dialectical materialist authors and on the collection of data, documents, reports and statements of leaders. Given the current socio-historical-political context, the contradictions and class struggle are fierce and the has stood out as one of the main movements of anti-capitalist struggle in post-cup mobilizations in the country, popular agrarian reform, freedom and democracy.

Keywords: Social Movements; MST; Coup; Resistance; Democracy.


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1 Artigo recebido em 23/03/19. Primeira Avaliação em 17/04/19. Segunda avaliação em 06/05/19. Aprovado em 06/06/19. Publicado em 04/07/2019. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.17i33.p29366

2 Doutoranda do Programa de Políticas Públicas e Formação Humana/ Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) - Brasil. Técnica em Assuntos Educacionais do Instituto Federal de Educação de Mato Grosso (IFMT). Bolsista da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ). Email: rose.marcia@oi.com.br. ORCID: http://orcid.org/0000-0002-8562- 5223.


Introdução


A expropriação primária, original dos povos do campo expulsos de suas terras ou atraídos para a cidade em busca de condições de sobrevivência e incapacitados de manter sua reprodução plena, iniciada com a divisão cidade-campo e, consequentemente, do trabalho manual - trabalho intelectual, nunca foi interrompida, permanece e se aprofunda no capitalismo atual (Fontes, 2010). Vivemos tempos de expansão capitalista, de intensificação da exploração da força de trabalho, de expropriação da terra e dos recursos sociais de produção e reprodução da existência, de expropriação de direitos, violação dos direitos humanos e de ataques à democracia.

O Brasil é um dos países com maior concentração de terras do mundo, com os maiores latifúndios. Ao longo de cinco séculos de latifúndio foram travadas lutas e resistências populares contra a exploração, o cativeiro da terra, a expropriação, a expulsão e a exclusão. O MST tem se constituído como um importante movimento de resistência, que organiza um dos setores mais excluídos e atacados da sociedade capitalista brasileira, levantando sua bandeira e organizando sua luta em torno da reforma agrária popular, por um novo modelo de produção e reprodução da vida e em defesa da liberdade e da democracia.

A partir de autores de perspectiva materialista histórico-dialética e do levantamento de dados, site do MST, documentos, reportagens e declarações de lideranças do MST, busca-se neste artigo compreender a organização, dinâmica, estratégias de luta e perspectivas do movimento na conjuntura pós Golpe 2016 até o processo eleitoral 2018.


As lutas: movimentos de resistência econômica, política e ideológica


A constituição de um movimento social aglutina pessoas com interesses comuns, uma identificação e aproximação em torno de uma causa, pensamento, espaço, raça, gênero, condições de trabalho, idade, seja pela luta por necessidade ou por liberdade, movimentos reativos ou criativos, sistêmicos ou antissistêmicos.O reconhecimento enquanto classe “acontece quando alguns homens, como resultado de experiências comuns (herdadas ou partilhadas), sentem e articulam a identidade

de seus interesses entre si, e contra outros homens cujos interesses diferem (e geralmente se opõem) dos seus” (Thompson, 1987, apud Mattos, 2007, p. 45), mas não expressa seu conteúdo crítico separadamente da luta, pois segundo Marx e Engels, (1998, p. 84) “os indivíduos isolados só formam uma classe na medida em que têm que manter uma luta contra outra classe”. A força da resistência está na luta coletiva pelo fim de toda a forma de dominação, pela satisfação das necessidades mais básicas às condições de realização mais profundas.

Nesse ponto retomo Marx e Engels (1998. p. 39), em a Ideologia Alemã, onde afirmam que


[...] o primeiro pressuposto de toda a existência humana e, portanto, de toda a história, é que os homens devem estar em condições de viver para poder ‘fazer história’. Mas, para viver, é preciso antes de tudo comer, beber, ter habitação, vestir-se e algumas coisas mais. O primeiro ato histórico é, portanto, a produção dos meios que permitam a satisfação destas necessidades, a produção da própria vida material, e de fato este é um ato histórico, uma condição fundamental de toda a história, que ainda hoje, como há milhares de anos, deve ser cumprido todos os dias e todas as horas, simplesmente para manter os homens vivos.


O Estado, produto e força que impõe o poder sobre a sociedade, se materializa na divisão social do trabalho: divisão, organização, regulação e controle de classes e fragmentação da classe. A individualização mascara e oculta as relações conflituosas entre classes, contribui para as divisão e isolamento das massas populares e divide as pautas dos movimentos sociais (Poulantzas,1982). Do mesmo modo que forja a individualização, unifica e homogeniza, desterritorializando, apagando a história, dissipando a tradição, como forma de apagar as diferenças.

Com a queda do socialismo, segundo Tischler (2005), houve um abandono, uma profunda descaracterização dos movimentos sociais enquanto luta de classe. A consciência de classe e consciência dos interesses de classe, para Mattos (2007), são retomadas em situações de extrema dominação ou expropriação da terra, do trabalho, da cultura, das condições de sobrevivência.

Para Rosset (2009), pouco a pouco as organizações estão assumindo a luta contra o neoliberalismo e a globalização, retomando o debate sobre o socialismo. O perigo é que a classe dominante tem conseguido uma unidade de pensamento, de interesses e pautas aparelhadas pelo poder do Estado, enquanto que, nas esquerdas e movimentos emancipatórios (sejam os relacionados às condições de

produção e reprodução da vida, sejam os relacionados às ações coletivas ligadas à subjetividade), continua-se discutindo a real necessidade ou não de aliança com os Partidos Políticos.

O grande desafio


[...] está em fugirmos também das armadilhas da ideologia dominante, que levam muitos dos que se alinham ao nosso lado a negar a existência social concreta, material do sujeito coletivo da transformação - a classe trabalhadora – permanecendo, por isso, prisioneiros de um ceticismo estéril diante de um mundo com o qual não concordam (MATTOS, 2007, p. 74).


A saída, segundo Mattos (2007, p. 72), é a unicidade dos movimentos em torno de um programa comum, como possibilidade de construção de uma proposta de mudança profunda, que contemple as diversas pautas. Para isso


[...] não bastam os movimentos e frentes desses. Continua sendo necessário o partido. [...] organização(ões) que nasce(m) da própria classe, que está(ão) imersa(s) em todas as suas lutas, para dali construir(em) o projeto, dialogar(em) com o senso comum moldado pela ideologia dominante, construir(em) daí o senso crítico transformador e aglutinar(em) forças para a emancipação social.


Nesse sentido ressalto as palavras de Marx (2010), de que “toda luta de classes é uma luta política” contra o estado de coisas, e uma arma poderosa para a tomada do poder e transformação da realidade de dominação e exploração de um ser sobre o outro, de uma classe sobre a outra.

Desse modo,


[...] o tema da revolução não pode ser apresentado apenas em termos empíricos ou pragmáticos; ao contrário, é uma atualização da reflexão teórica como momento da prática. Não uma reflexão que se ‘separa’ da prática imediata para produzir conceitos sobre o que deve ser a revolução, mas uma reflexão que é parte da luta como crítica real, em movimento (TISCHLER, 2005, p. 123).


Para o entendimento do significado de uma sociedade opressora e seus efeitos, é necessário que quem vive a opressão, a exploração e a dominação, se reconheça enquanto oprimido, explorado e dominado. Reconheça em outros indivíduos os interesses comuns e compreenda a necessidade da luta coletiva pela transformação dessa realidade.

As lutas sociais têm papel fundamental, pois se contrapõem, limitam ou até

mesmo sobrepõem aos interesses capitalistas, e podem possibilitar o desenvolvimento de estratégias políticas de transformação e tomada do poder do Estado pela classe trabalhadora. Movimentos sociais do campo, da cidade, da floresta, como: Movimento dos Trabalhos sem Terra, Movimentos dos Trabalhadores sem Teto, Movimento Indígena, Ribeirinhos e Quilombolas, têm se organizado e reivindicado a inclusão de pautas essenciais para a sobrevivência da classe trabalhadora no campo das políticas públicas, redistribuição de terra e renda, demarcação de terras dos povos tradicionais


Movimentos Sociais: alternativas de produção e reprodução da existência


O que há em comum entre movimentos rurais: Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) em Chapas, Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Associação Nacional dos Pequenos Produtores (ANAP) em Cuba, Movimento Campesino no Paraguai, Fundação Sindical dos Campesinos na Indonésia (FSCI), e movimentos urbanos: Movimento dos piqueteros do Movimentos dos Trabalhadores Desempregados (MTD) na Argentina, as Assembleias de bairros no México, Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST)?

São, como nós, “herdeiros de quatro sombras que pesam sobre nós e que originaram e originam a violência”. São: o nosso passado colonial violento, o genocídio indígena, a escravidão, “a mais nefasta de todas”, e a Lei de Terras que excluiu os pobres e afrodescendentes do acesso à terra, e os entregou “ao arbítrio do grande latifúndio, submetidos a trabalhos sem garantias sociais” (BOFF, apud MST, 2017).

Tais movimentos têm se mostrado em luta constante e permanente, com pautas iniciadas como reação imediata a processos de expropriações, exploração e dominação, mas que vêm sendo, também, construídas na luta, como alternativas anticapitalistas.

Para sua ampliação, o capital expropria do camponês a terra, o trabalho, a cultura, a história, o território. E para uma nova reestruturação territorial, a terra ocupada por povos tradicionais, segundo Rosset (2009), é declarada como reserva biológica, comunidades são acusadas de invasores e de destruidores do meio ambiente, descaracteriza-se os movimentos sociais enquanto classe e criminaliza- os, expulsa-os da terra para um processo de expansão da plantação monocultiva e

implantação de megaprojetos agroindustriais. Assim, a restruturação do território ocorre a partir dos interesses do capital, adequando-o ao novo ciclo de acumulação, convertendo a terra em mercadoria, tornando inviável a agricultura campesina.

Os capitalistas e seus agentes se envolveram na produção de uma segunda natureza, a produção ativa de sua geografia, da mesma maneira como produzem todo o resto: como um empreendimento especulativo, muitas vezes com a conivência e a cumplicidade, se não ativa colaboração, do aparelho do Estado (HARVEY, 2011, 154). O Estado, comparando, ao estado de exceção, de Agambem (2015), suspende a validade da lei e “assinala o ponto de indistinção entre violência e direito, a operação da polícia não tem, portanto, nada de tranquilizadora”. Todavia, “são as lutas, campo primeiro das relações de poder, que sempre detêm a primazia sobre o Estado” (POULANTZAS, 1980, p.52) sejam elas econômicas, políticas ou ideológicas.

No entanto, essa reestruturação territorial não ocorre sem resistência e luta pelo território. O uso ou a propriedade da terra sempre foi o centro dos conflitos e protestos no meio rural, mesmo quando os trabalhadores eram obrigados a migrar para as cidades, como forma de resistência às condições de exploração do trabalho no campo. A ânsia pela terra passou a vir acompanhada do sonho de independência, pois “A terra carrega sempre outras conotações – de status, segurança e direitos – mais profundas do que o simples valor da colheita” (THOMPSON, 2012, p. 78-79).

Desde a colonização até a atualidade, todas as transformações políticas e econômicas, ocorridas no Brasil, não foram capazes de afrontar a perversa concentração fundiária. Também não foram capazes de conter lutas e resistências populares camponesas. A Lei de Terras, de 1850, consolidou a perversa concentração de terras e riquezas, a grilagem de terras e a apropriação de terras devolutas, formalizando a desigualdade social e territorial.

A expropriação da terra e dos recursos naturais, sócio produtivos e culturais transformaram o trabalhador rural em força de trabalho intensamente explorada. Conforme dados do Ministério do Trabalho, em 2017 foram autuados 131 empregadores por submeter trabalhadores a condições análogas a escravos, sendo os estados com maior incidência: Minas Gerais, Pará e Mato Grosso. As atividades rurais são as mais recorrentes, com 31% dos casos na agricultura e 25% na criação

de animais. De acordo com dados do MST, em 2017 os assassinatos no campo chegaram a 70 execuções, com crescimento de 15% em relação a 2016, mais 10 mortes de indígenas, ainda não confirmadas pelo Ministério Público Federal, e o retorno dos massacres (6 contabilizados), sendo os estados com maior ocorrência: Pará, Rondônia, Bahia e Mato Grosso. Entre os mortos computados pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) estão trabalhadores rurais sem-terra, indígenas, quilombolas, posseiros, pescadores e assentados da reforma agrária.

O aumento dos assassinatos é avaliado pela CPT como uma ofensiva empresarial por terras no Brasil, como uma nova expansão do capital, em busca de garantia de reserva de valor, como madeira, água, minério e possibilidades de agronegócio. Esse aumento é atribuído à ausência do Estado, pois desde 1985 apenas 8% dos casos de conflito no campo foram julgados e nenhum mandante foi preso até o momento.

A luta para esses povos significa “una resistencia de vida o muerte entre todos estos sectores, y se presencia el nacimiento o renacimiento de toda una nueva generación de movimientos rurales de nuevo estilo” (ROSSET, 2009)3.


A luta pela terra e a constituição do MST


Os movimentos sociais populares do campo marcaram e marcam a formação social brasileira, a exemplo da Cabanagem, da Balaiada, do Bloco Operário e Camponês, do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, do Movimento do Contestado e da Liga Camponesa da Galileia.

Nas décadas de 1970 e 1980, período marcado pela efervescência e fortalecimento de movimentos sociais, segundo Sader (1995), novas bandeiras reivindicatórias são levantadas: questões subjetivas da vida coletiva, questão salarial e defesa dos direitos humanos e da democracia, com forte presença da sociedade civil organizada. Nesse contexto, houve a intensificação dos movimentos de resistência, com o surgimento do Movimento dos Agricultores Sem Terra (Master), que posteriormente inspirou a criação do MST, com três objetivos principais: lutar pela terra, lutar pela reforma agrária e lutar por mudanças sociais no país, com a união de posseiros, atingidos por barragens, migrantes, meeiros, parceiros,


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3 “uma resistência de vida ou morte entre todos esses setores, e se presencia o nascimento e renascimento de toda uma nova geração de movimentos rurais de novo estilo” (Rosset, 2009, p. 5 – tradução minha).

pequenos agricultores e trabalhadores desprovidos do seu direito de produzir alimentos.

O MST, fundado em 1984, a partir dos movimentos de ocupação do final da década de 1970 e início da década de 1980, está organizado em 24 estados, nas cinco regiões do país, com cerca de 350 mil famílias assentadas. Tem um histórico de luta anticapitalista, pela reforma agrária popular, por um novo modelo de produção e reprodução da vida, e vem ocupando papel preponderante nas mobilizações pós-golpe que destituiu a Presidenta do Brasil, Dilma Rouseff, eleita de forma legítima, causando grave instabilidade política no país e pela liberdade do ex- presidente Luiz Inácio Lula da Silva, preso político, num processo arbitrário e sem provas genuínas e em manifesta parcialidade.

Sua bandeira de luta une pessoas e famílias sem condições mínimas de subsistência em torno da luta pela terra, na construção alternativas de vida, de produção coletiva e agroecológica, como instrumento de saúde e de uma economia solidária, contra a agricultura industrializada e a problemática do uso de agrotóxicos e sementes transgênicas.


A organização e dinâmicas de luta do MST


A organização do movimento, segundo Rosset (2009), tem se fortalecido com as alianças: campo-cidade - em que apresenta uma nova forma de trabalho, livremente associado, cooperado, num modelo econômico alternativo; campo- campo, com a criação e fortalecimento da via campesina e formação de quadros e militantes, sendo a educação instrumento chave de contra ideologia; com sindicatos e movimentos urbanos; e também tem buscado intercâmbio internacional - com o Movimento dos Povos Sem Terra (LPM) da África do Sul e com outras experiências campesinas. Na guerra uns aprendem em relação com os outros, na luta local, nacional e internacional e na construção conjunta de alternativas de enfrentamento.

As decisões são tomadas com formação de núcleos de discussão das necessidades de cada área, com eleição de dois coordenadores, um homem e uma mulher, e essa estrutura se repete nos assentamentos e acampamentos, em nível regional, estadual e nacional. E os principais eixos de luta que pautam as mobilizações e reivindicações são: Reforma Agrária Popular, Liberdade e Democracia.

O elemento mais comum no repertório de estratégias do movimento, como apontam Wickham-Crowley e Eckstein (2017, p. 57), sempre foi a ocupação de terras, estabelecendo demandas de concessão de direitos de propriedade ao Estado, “pero también ha empleado bloqueos de carreteras, ha organizado manifestaciones multitudinarias y marchas, ha resguardado asentamientos comunitarios, ha establecido una fuerte presencia en Internet e, incluso, colocado a sus propios cuadros en puestos clave en las organizaciones estatales”4.

O MST compreendeu, ao longo do tempo, que a luta e a conquista da terra não são suficientes, pois


Se a terra representava a possibilidade de trabalhar, produzir e viver dignamente, faltava-lhes um instrumento fundamental para a comunidade de luta. A continuidade da luta exigia conhecimentos tanto para lidar com assuntos práticos, como para entender a conjuntura política econômica e social. Arma de duplo alcance para os Sem Terra, a educação tornou-se prioridade do Movimento (MST).


Sob a concepção de que “só o conhecimento liberta verdadeiramente as pessoas”, o movimento investe na formação de um novo tipo de intelectuais orgânicos, na concepção da Gramsci (1982), engajados ativamente na vida prática, como construtores, organizadores, ‘persuasores permanente’, elevando a técnica do trabalho à técnica da ciência e à concepção humanista histórica.

O diálogo sobre direitos acontece desde a infância. A exemplo do Encontro das Crianças “Sem terrinha”, em que o lema é “Sem Terrinha em Movimento: Brincar, Sorrir, Lutar por Reforma Agrária Popular!”. Atividade de caráter político, pedagógico e lúdico- cultural, em que crianças entre 8 e 12 anos debatem seus direitos, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a luta por escolas do campo, por alimentação saudável, a Reforma Agrária Popular e participando de atividades culturais, educativas, brincadeiras, oficinas de arte e cultura. O evento, sob a pedagogia construída pelo MST, que visa a emancipação humana, da criança e do adulto, estimula a auto-organização, partindo do princípio de que as crianças são sujeitos de direitos, podem e devem opinar sobre sua realidade e participar das decisões.

São mais de 2 mil escolas públicas em funcionamento em acampamentos e


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4 “mas também usou bloqueios de estradas, organizou manifestações e marchas em massa, abrigou assentamentos comunitários, estabeleceu uma forte presença na Internet e até mesmo colocou seus próprios quadros em cargos-chave em organizações estatais” (WICKHAM-CROWLEY E ECKSTEIN, 2017, p. 57 - tradução minha).

assentamentos, 200 mil crianças, adolescentes, jovens e adultos com acesso à educação, 50 mil adultos alfabetizados, 2 mil estudantes em cursos técnicos e superiores e mais de 100 cursos de graduação em parceria com universidades públicas por todo o país e em convênios no exterior, como em Cuba e Venezuela. Os espaços dos acampamentos e assentamentos são tomados por debate político, econômico e contra ideológico, em assembleias, em grupos de militantes mulheres, juventude e mistos, onde é traçada a organização do movimento. A Escola Nacional Florestan Fernandes, construída em mutirão pelos próprios militantes, com recursos levantados com a venda do livro e disco “Terra”, com fotos de Sebastião Salgado, texto de José Saramago e músicas de Chico Buarque, é referência na formação política do MST e de movimentos sociais do Brasil e de todo o mundo, com mais de 19 países e 63 organizações participantes.


O Golpe de 2016: ataques neoliberais, perspectivas e resistência


Uma grande expectativa dos sem-terra por todo o país de que aconteceria a reforma agrária, foi gerada com a eleição do presidente Lula, em 2002. No período 2002-2015, como afirma Campello e Gentili (2017, p. 10), o Brasil vivenciou “uma inédita e sistemática queda da desigualdade”, com redução do percentual de pobres crônicos, de 9,3% em 2002 para 1% em 2015. Na população do campo a pobreza crônica atingia quase um terço dos moradores e caiu para 5% em 2015, tendo elementos significativos, segundo Campello (2017): políticas de compras públicas e do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) e Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar para redes públicas de educação e de saúde; Bolsa Família; Programa Luz para Todos, que levou luz elétrica a regiões de difícil acesso; Programa Mais Médicos, com acesso a atenção primária à saúde da população em situação de pobreza, atingindo elevada cobertura em comunidades indígenas, quilombolas e assentamentos; Programa de cisternas, transformado em política pública com o objetivo de universalizar o acesso à agua para consumo no semiárido brasileiro; Programas de acesso à educação, com crescimento de 242% no número de pais e mães que completaram o ensino fundamental entre os 20% mais pobres, aumento em 4 vezes mais jovens pobres no ensino médio na idade certa, aumento em 23 vezes dá chance de ingresso dos 20% mais pobres na universidade e fortalecimento dos propostas pedagógicas de

educação do campo, das quais o MST é referência.

Mesmo tendo realizado progressos relativos nas condições de vida, com melhora dos indicativos sociais de crescimento da economia, ampliação do gasto social, recuperação do mercado de trabalho, potencialização da redistribuição da seguridade social e combate à pobreza; não foram vencidas as fragilidades da baixa intensidade da mudança do conflito na distribuição de renda e quase inexistência na redistribuição da propriedade privada, ou seja, “a inclusão social não foi acompanhada por reformas estruturais requeridas pela pretendida ‘ruptura necessária’ com a doutrina liberal” (CALIXTRE; FAGNANI, 2017, p.1).

Os governos do PT (Lula e Dilma) cometeram erros sim. Um dos principais foi de não processar as reformas estruturais, “Erro este que foi de tentar fundar uma nação e alargar a democracia seguindo junto a uma minoria prepotente com uma maioria desvalida” (FERNANDES, apud FRIGOTTO, 2016)5.

A crise se instalou devido a “ofensiva política restauradora da direita neoliberal” e a adoção de uma “política de recuo passivo diante de tal ofensiva” pelo governo de Dilma Rousseff (BOITO JR., 2016, p. 1). Quanto mais recuava para garantir a governabilidade, mais se afastava dos movimentos sociais que davam base ao governo. Tal decisão resultou nas manifestações de 2013 e 2016, e posteriormente no Golpe e dificultou a definição de estratégias de defesa dos movimentos sociais.

Os protestos massivos, coloridos e difusos, iniciados em 2013, mobilizaram uma multidão em causas distintas, em âmbito federal, estadual, municipal, perpassando desde demandas por transporte, por igualdade, direitos humanos, trabalho e política. Esses protestos foram moldados pela mídia e pela direita fascista, chegando em 2016 com manifestações claramente divididas e definidas: o verde e amarelo, em prol do “impeachment”, como solução anticorrupção e para todos os problemas da crise.


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5 Editorial disponível em: https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/O-DNA- golpista-da-minoria-prepotente-e-o-renascer- da-politica-nas-massas-populares-no-Brasil/4/35931

Foto 1: Protestos coloridos realizados em 2013


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Fonte: Foto de Yasyyoshi Chiba (AFP)6.


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Fonte: Foto Sebastiao Moreira (efe)7.

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E a multidão vermelha, com o grito de “não vai ter golpe, vai ter luta”,

demonstrando resistência organizada ao golpe contra a democracia. Mas as ruas têm dois lados, assim como a luta de classes, e a luta das classes populares pela democracia, reformas estruturais e contra o golpe não cessa. Entre os protestos contra o “impeachment” destacam-se duas frentes populares que articularam a luta pela defesa dos direitos no final de 2015:


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6 Manifestações realizadas em 21/06/2013 em 14 capitais e dezenas de municípios, por mais de 1 milhão de pessoas, com reivindicações diversas. Disponível em: https://elpais.com/internacional/2013/06/21/actualidad/1371776714_544930.html.

7 Manifestação ocorrida em 14/04/2016, pro-impeachment da presidenta Dilma Rousseff, na Av. Paulista Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2016/03/13/politica/1457906776_440577.html.


[...] el Frente Brasil Popular, constituido por casi setenta colectivos, sindicatos y movimientos populares (entre ellos el Movimiento de los Sin Tierra - MST), aines o de apoyo crítico al PT; y el Frente Pueblo Sin Miedo, impulsado por el Movimiento de los Trabajadores Sin Techo (MTST) y una treintena de movimientos sociales y organizaciones que, si bien confluyen com el anterior en algunas convocatorias, hacen una crítica más radical al PT y al Estado, buscando la construcción de un nuevo espacio de referencia para los trabajadores y trabajadoras (BRINGEL, 2017, p. 152).8


O MST, assim como outros movimentos sociais, se mobilizou em marcha até Brasília contra o golpe.


Foto 3: Manifestações de resistência da “multidão de vermelho”


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Fonte: Fotos e Comunique 139.


O apelo da multidão de vermelho não foi suficiente. A história se repete como nos sinaliza Marx (2011, p. 25): “a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa”, e o Golpe se fez, dessa vez não sob o poder militar, como em 1964, mas por via parlamentar e midiática, balizado juridicamente, num processo com frágil alegação das ditas pedaladas fiscais, realizadas por quase todos os governantes do país. Tudo ocorreu “com a demonização e ódio ao PT, no embalo de raivosas e orquestradas manifestações nas ruas contra o governo” (FRIGOTTO, 2016).



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8 [...] a Frente Popular Brasileira, constituída por quase setenta coletivos, sindicatos e movimentos populares (incluindo o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra-MST), relacionado ou de apoio crítico ao PT; e Frente Povo Sem Medo, impulsionada por Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) e cerca de trinta movimentos e organizações sociais que, embora convirjam com a anterior em algumas pautas, fazem uma crítica mais radical ao PT e ao Estado, buscando a construção de um novo espaço de referência para os trabalhadores (BRINGEL, 2017, p. 152 – tradução minha).

9 Marcha do MST contra o Golpe, realizada em 16/12/2015, em Salvador. Disponível em: http://www.mst.org.br/2015/12/17/contra-o-golpe-milhares-de-pessoas-saem-as-ruas-na-bahia.html.

No Congresso o julgamento ocorreu sob a égide da família e da religião e não de provas reais, por centenas de parlamentares citados e em processo de corrupção, e foi comemorado como final de copa do mundo.


Foto 4: Destituição da Presidenta eleita, Dilma Rousseff


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Fonte: Foto de Sergio Lima – Época10.


Desse modo,


Karl Marx analiza de manera brillante en su 18 Brumario de Luis Bonaparte (Marx, 2009) la coyuntura política que desencadena tal golpe, delineando elementos centrales que aparecerían desde entonces de manera recurrente en buena parte de las descripciones y teorizaciones sobre los golpes de Estado: la sorpresa societaria, la descomposición del partido del orden y su coalición, la profusión de la lógica conspirativa, la utilización de medios excepcionales para conquistar el poder político, el carácter repentino de la ruptura del marco político precedente, la polarización de los sujetos involucrados en el conflicto y, finalmente, el discurso “salvacionista”, evocado siempre contra los problemas de los gobiernos prévios (BRINGEL, 2017, p. 143)11.


O Golpe não foi contra o governo, mas contra aqueles que saíram da extrema


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10 Deputados comemorando a vitória do SIM para o processo de Impeachment da Presidenta Dilma Rousseff, no Plenário da Câmara, dia 17/04/2012. Disponível em: https://epoca.globo.com/tempo/noticia/2016/04/os-votos-no-impeachment.html

11 Karl Marx analisa brilhantemente em seu 18 Brumário de Luís Bonaparte (Marx, 2009) a conjuntura política que desencadeia tal golpe, delineando elementos centrais que apareceriam de então recorrentemente em boa parte das descrições e teorizações sobre golpes: a surpresa corporativa, a decomposição do partido de ordem e sua coalizão, a profusão de lógica conspiratória, o uso de meios excepcionais para conquistar poder político, a natureza repentina da quebra do quadro precedente, a polarização dos sujeitos envolvidos no conflito e, finalmente, o discurso "salvacionista", sempre evocado contra os problemas dos governos anteriores (BRINGEL, 2017, p. 143 - tradução minha).

pobreza, contra aqueles que ascenderam economicamente, que passaram a ocupar espaços, antes reservados apenas à elite, dos bancos de avião aos bancos das universidades. A destituição da presidenta Dilma Rousseff representou apenas parte do Golpe, que logo após se materializou com a sórdida aprovação de um pacote de medidas antissociais/ antipovo, de ataques e retrocessos, que ameaçam direitos conquistados com a Constituição Federal de 1988, terceirizando ou financeirizando direitos trabalhistas12, sindicais, da previdência e assistência social13, da saúde e da educação14, impondo o modelo capitalista de controle social e acarretando perdas de direitos imediatas à população mais pobre e vulnerável e o desmonte da rede de proteção social.

A atual conjuntura é marcada por um estado de exceção autoritário e antidemocrático, que para Campelo (2017) “o Brasil volta a transitar o caminho do atraso, da impunidade e da reprodução dos privilégios. O resultado será o de sempre: mais pobreza, mais desigualdade, mais injustiça social” (p. 15).

Para o MST o governo Dilma entrou para a história devido ao golpe político das classes conservadoras, que retroagem de forma intensa a um passado que se julgava superado. E mesmo que não tenha efetivado as transformações vitais que o Brasil precisava, foi eleita pela vontade soberana do povo e representava a esperança, às vésperas do golpe, de um “resgate dos compromissos com o programa de reforma agrária, pois, “dos 21 Decretos de desapropriação para fins sociais no ano de 2016, 20 foram de sua iniciativa” (TEIXEIRA, 2017).

No conjunto de contrarreformas golpistas, claro ataque aos povos do campo e sem-terra são: criminalização dos movimentos sociais; extinção do Ministério do Desenvolvimento Agrário; concessão aos ruralista de alterações feitas na Lei Agrária Nacional, de compra e venda de terras dos latifundiários; atendimento à especulação imobiliária; orçamento praticamente zerado para o programa de


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12 Denominado Reforma Trabalhista, o Projeto de Lei da Câmara nº 38, de 2017, aprovada no Congresso Nacional e transformada em Lei nº 13.467- Lei de modernização trabalhista, altera a Consolidação das Leis de Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei (nº 5.452), de 1º de maio de 1943, publicada na edição de 14.07.17 do Diário Oficial da União.

13 Proposta de Emenda à Constituição n.º 287-A/2016, em tramitação no Congresso Nacional. Altera os arts. 37, 40, 109, 149, 167, 195, 201 e 203 da Constituição, para dispor sobre a seguridade social, estabelece regras de transição e dá outras providências. Aumenta o tempo de contribuição e idade mínima para aposentadoria dos trabalhadores.

14 Emenda Constitucional nº 95/2016, que reduz o investimento público nas áreas de saúde, educação e assistência social por 20 anos; Lei nº 13.415/2017 – de Reforma do Ensino Médio; Nova Base Nacional Comum Curricular (BNCC); e Projeto de Lei do Senado nº 193/2016, denominado “Escola sem Partido”.

reforma agrária; destinação de 25% dos recursos disponibilizados ao Incra para desapropriação de grandes propriedades improdutivas; e Portaria Ministerial, que dificulta a fiscalização para a erradicação do trabalho em condições análogas à escravidão.

Diante das adversidades, a prisão política do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, representou o estopim da luta de classes travada no Brasil e reascendeu nos movimentos sociais, como na efervescência do pós-ditadura militar, uma nova força de contraposição ao Golpe e pela reconquista da ordem democrática, emergindo a necessidade de reinvenção e diversificação das estratégias de luta. Para além da campanha por demanda de terra, a nova conjuntura política de crise do capitalismo e mudanças governamentais em políticas públicas tem tido um papel fundamental na revitalização do movimento.


Quebra da democracia e reinvenção das estratégias de luta


A prisão do ex-presidente Lula mobilizou e aproximou movimentos populares, declarando-a "arbitrária, política e sem provas”, num processo viciado (Guilherme Boulos/MTST) e conclamando a sociedade para se engajar nas "novas e longas batalhas nos próximos meses e anos", porque "movimentos sociais, militantes, temos de nos insurgir para provocar uma indignação popular", pois este “É mais um capítulo do golpe geral, que é contra todo o povo" (João Pedro Stédile/MST)15, com um "plano econômico, político e social que joga todo o peso da crise sobre a classe trabalhadora"16.

Estratégias de luta e mobilizações em defesa da liberdade de Lula e da democracia foram construídas em conjunto pelas Frentes Brasil Popular e Povo sem Medo, entre as quais destacam-se:


O apoio após a prisão


Após ter a prisão decretada, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) se recolheu na sede do Sindicato dos Metalúrgicos em São Bernardo do Campo, na


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15 Disponível em: https://www.redebrasilatual.com.br/politica/2018/04/apoiadores-de-lula-iniciam- vigilia-agora-a-noite-do-sindicato-dos-metalurgicos.

16 Reportagem disponível em: https://www.redebrasilatual.com.br/politica/2018/04/apoiadores- de-lula-iniciam-vigilia-agora-a-noite-do-sindicato-dos-metalurgicos.

região metropolitana de São Paulo, sindicato que o projetou durante a ditadura militar, e que se transformou novamente em símbolo de resistência. Milhares de pessoas, militantes de partidos de esquerda e movimentos sociais cercaram o sindicato, gritando palavras de ordem, como "Não tenho medo/ Avisa lá pro Moro que aqui não tem arrego", onde permaneceram em vigília democrática de resistência e apoio à Lula até o momento que o ex-presidente se entregou. A decisão de se entregar frustrou o movimento de resistência que tinha como determinação não aceitar passivamente a prisão de Lula e permanecer na concentração por tempo indeterminado.

Foto 5: Vigília de apoio a Lula no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC

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Fonte: Foto de Adriano Vizoni/ Folhapress17.


Foto 6: Lula nos braços do povo antes de se entregar à Polícia Federal

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Fonte: Foto de Francisco Proner/ Farpa Fotocoletivo18.


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17 Manifestação contra a prisão do ex-presidente Lula em frente ao sindicato dos metalúrgicos do ABC, em 07/04/2018. Disponível em: https://www.acidadeon.com/onclick/GFOT,0,3,28867,em+apoio+a+lula+manifestantes+se+reunem+e m+frente+ao+sindicato+dos+metalurgicos+do+abc.aspx.aspx

18 O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva carregado nos braços do povo, após anunciar que se


O ex-presidente declarou à multidão em vigília que sua prisão não o impediria de andar pelo país, com a frase épica “Não pararei porque não sou mais um ser humano. Eu sou uma ideia, uma ideia misturada com a ideia de vocês [...] A morte de um combatente não para a revolução”. A fotografia acima se tornou a imagem antológica desse momento.


A Vigília Lula Livre


Na sede da Polícia Federal em Curitiba, o acampamento e o ex-presidente receberam visitas de importantes lideranças políticas, intelectuais e artísticas do Brasil e do mundo, como: ex-presidente uruguaio José 'Pepe' Mujica, Frei Beto, ex- presidente do Parlamento Europeu e ex-líder do Partido Socialdemocrata (SPD) alemão Martin Schulz, monge Marcelo Barros, teólogo Leonardo Boff, Comissão de Direitos Humanos do Senado. E ainda foram impedidos de realizar a visita: o ativista argentino e prêmio Nobel da Paz Adolfo Pérez Esquivel e Juan Grabois, consultor do Pontifício Conselho Justiça e Paz no Vaticano. A prisão do ex-presidente Lula mobilizou e aproximou movimentos populares e em sua defesa. Líderes se manifestaram: Manuela D’Ávila (PCdoB), Guilherme Boulos (MTST/PSOL), Vagner Freitas (CUT); e João Pedro Stédile (MST).

Foto 7: Acampamento Lula Livre


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Fonte: Foto de Ricardo Stuckert19.



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entregaria à Polícia Federal, em 07/04/2018. Disponível em http://www.diariodomeiodomundo.com.br/2018/04/foto-antologica-lula-nos-bracos-do-povo.html

19 Acampamento Lula Livre, dia 01/05/2018, na Superintendência da Polícia Federal (PF/PR). Disponível em https://www.destakjornal.com.br/brasil/politica/detalhe/acampamento-pro-lula-faz-ato- para-comemorar-dia-do-trabalhador

Algumas mobilizações foram programadas:


Festival Lula Livre


O festival com arte, música e poesia reuniu 80 mil participantes, nos arcos da Lapa, Rio de Janeiro, para pedir a libertação do ex-presidente Lula. Foi o assunto mais comentado no Brasil, e o 3º no mundo no Twitter.

Foto 8: Imagem aérea - Festival Lula Livre


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Fonte: Foto de Ricardo Stuckert20.


Greve de Fome por Justiça


Inspirada na revolucionária “Resistência Ativa”, durou 26 dias, com sete representantes de movimentos sociais, em frente ao Supremo Tribunal Federal (STF) e logrou a determinação do Comitê dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) de que fossem asseguradas medidas para que Lula desfrutasse e exercesse seus direitos políticos, o que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) ignorou quando indeferiu sua candidatura nas eleições presidenciais de 2018 e impediu-o de exercer o direito de expressar e conceder entrevista.



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20 Festival Lula Livre, realizado em 29/07/2018, nos Arcos da Lapa, no Rio de Janeiro. Disponível em https://porem.net/2018/07/29/festival-lula-livre-reune-80-mil-no-rio-de-janeiro/


Foto 9: Greve de Fome por Justiça em frente ao STF


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Fonte: Foto de Lula Marques/PT21.


Marcha Nacional Lula Livre


Organizada pelo MST, com mais de 50 mil trabalhadores de diversos movimentos populares, sindicatos e partidos, em três colunas: Coluna Tereza de Benguela - das regiões Centro Oeste e Amazônica: inspirada na Líder do Quilombo do Quariterê, que comandou a maior comunidade de libertação de negros e indígenas da capitania de Mato Grosso na luta quilombola contra o capital no campo; Coluna Prestes - das regiões Sul e Sudeste: Inspirados na “Coluna Prestes”, comandada por Luiz Carlos Prestes, cavaleiro da esperança, nos anos de 1924 e 1927; e a Coluna Ligas Camponesas - da região Nordeste: simbolizada pelas primeiras Ligas Camponesas de Pernambuco em 1954, na luta pela reforma agrária radical e democratização da terra, que se difundiu por 13 estados e foram aniquiladas no golpe militar de 196422. As colunas percorreram cerca de 50 km cada, tornando-se uma só no centro de Brasília, para realizar o registro coletivo da candidatura do ex-presidente Lula no TSE e entregar no STF, TSE e Superior Tribunal de Justiça (STJ) o Abaixo Assinado “Eleições Sem Lula é Crime”.


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21 Militantes em greve de fome em prol da libertação de Lula e contra os retrocessos emplacados pelo governo de Michel Temer, em frente ao STF, dia 08/08/2018. Disponível em https://ptnacamara.org.br/portal/2018/08/07/mais-uma-vez-barrados-no-stf-militantes-em-greve-de-fo me-pedem-audiencia-com-ministros/

22 Disponível em http://www.mst.org.br/marcha-nacional-lula-livre/


Foto 10: Marcha Lula Livre - Esplanada dos Ministérios


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Fonte: Foto da Polícia Militar do DF23.


Apesar de não cumprir seu objetivo na defesa da liberdade e da candidatura do ex-presidente Lula, esses atos revelaram um forte trabalho de base e de mobilização da sociedade, de diálogo, de ouvir o povo, com realização de diversas atividades, culturais, doação de alimentos e atos políticos culturais.


Perspectivas


Stédile (2018a), fundador e líder nacional do MST, em Plenária da Frente Brasil Popular no Sindieletro-MG, realizada em 12 de julho de 2018, destacou que o momento deveria ser de congregação de dirigentes e militantes de vários movimentos e diversas formas de organização do povo, para construir juntos o caminho de resistência.

Toda a análise de conjuntura, segundo Stédile, precisa ser coletiva, para entender que a luta de classes tem dois lados: o lado da burguesia soma 1% da população e 8 a 10% da classe média, zeladora da ideologia da burguesia; e do outro lado, a imensa parcela da população, a classe trabalhadora, que corresponde a mais de 85% da população. A luta deve ser levada para a esfera da luta pelo poder de controle do Estado, na leitura de Marx, incorporando-se a essa ideia o conceito de Estado ampliado de Gramsci, em que a luta pelo poder se revela em todos os



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23 Manifestantes em marcha no Distrito Federal, dia 15/08/2018, em apoio ao registro da candidatura de Lula à Presidência da República. Disponível em: https://g1.globo.com/df/distrito- federal/noticia/2018/08/15/manifestantes-pro-lula-marcham-em-brasilia-para-apoiar-registro-de- candidatura.ghtml.

espaços coletivos. Portanto, onde houver um coletivo social há luta de classes, há luta pelo poder político, que se revela maior do que o Estado disputado nas eleições. Segundo Stédile, é o que se aprendeu com o que foi o governo Lula e Dilma: que a classe trabalhadora tem que controlar os múltiplos espaços de poder político para não correr o risco de, quando se perder o governo, se perder tudo.

Stédile (2018a) apresenta três teses sobre a atual conjuntura, construídas em consenso, na Frente Brasil Popular, nas plenárias e nos diversos espaços de aglutinação dos movimentos e do povo em nível nacional: as crises, as contradições geradas pelas crises e os desafios para superação.

Sobre as crises diz que o Brasil vive uma grave crise econômica, histórica, resultante da própria forma do capitalismo internacional funcionar, gerando a crise social, com cortes de empregos, de salários e de direitos. Essa crise resultou na crise política, em que a classe dominante, para poder jogar o peso da crise econômica todo na classe trabalhadora, passou a controlar todos os poderes de poder político. Como já controlava a mídia, o judiciário, o congresso, faltava o controle do executivo, daí a necessidade do golpe, para se ter o controle absoluto e hegemônico dos quatro poderes que regem a república. O golpe virou um programa político por romper todas as regras da democracia, com aplicação de um conjunto de medidas e contrarreformas, ataques à classe trabalhadora e criminalização dos movimentos sociais.

Sobre as contradições diz que, só a aplicação do plano não resolveu o problema, pois toda medida gera contradições que podem inviabilizá-la se não for em benefício da maioria: a) crescimento da economia/ quebra de setores da burguesia; b) aumento na concentração de renda/pobreza; c) ditadura, neoliberalismo e controle social/ democracia e fortalecimento da simbologia da classe trabalhadora; d) 20 milhões de desempregados e 23 milhões de trabalhadores precarizados fora da política/ não mobilização da parcela que mais sofreu o golpe.

Sobre os desafios diz que a curto prazo, a liberdade e eleição de Lula, que não é mais a eleição do PT ou da esquerda, e sim a síntese da classe trabalhadora; “a palavra de ordem é ‘Eleição sem Lula é fraude’, porque Lula é parte da classe trabalhadora. Para Stédile (2018a), “estamos numa guerra, entregar um companheiro não vai fazer com que o inimigo pare de atirar”. Somente libertar Lula

não é o suficiente, é preciso que ele seja eleito. Essa campanha já vai ficar para a história como uma campanha da luta de classes. Já a longo prazo, colar nessas duas campanhas a necessidade de se discutir com o povo um projeto popular para o Brasil. Stédile (2018a) reforça que “Lula não é a panaceia de todos os problemas”. Ele é uma porta de saída, se o elegermos abrimos a porta, mas precisamos saber para onde queremos ir. A esquerda precisa reaprender a fazer trabalho de base, pois nos últimos 20 anos falamos muito e tapamos os ouvidos. A militância precisa reexercitar, ouvir o povo, “saber quais os problemas estão enfrentando, quem são os culpados e qual é a saída”, seja de forma individual, em grupos ou na forma de Assembleias Populares, nos assentamentos, nos bairros, nas cidades, nos estados e nacional; Congresso do povo; Assembleia Constituinte; Reforma Tributária com taxação sobre grandes fortunas; Plebiscito Popular para revogar as contrarreformas; Educação e Saúde Pública, e ir construindo alternativas.

Stédile (2018a) ainda argumenta que os governos Lula e Dilma foram governos bons, mas foram governos para o povo, com políticas compensatórias, mas não foram governos com o povo. A consciência é que agora um governo só vai fazer as mudanças que resolvam os problemas do povo se houver participação popular, se houver mobilização popular, colocando o povo como ator político. Ou se convoca o povo para fazer junto ou não haverá governo popular.

Quanto às perspectivas para os trabalhadores do campo, Stédile (2018b), em entrevista concedida ao programa Voz Ativa sobre a “Questão agrária e desenvolvimento”, em 16 de julho de 2018, sinalizou que a experiência do movimento levou a repensar as pautas de implementação de políticas para a agricultura, no sentido de que extrapolem a distribuição de terra. Combater o latifúndio é uma grande necessidade, mas é necessário ter políticas públicas que garantam uma vida digna para quem vive do campo, no sentido de garantir produzir respeitando o meio ambiente, sem agrotóxico, ampliação na produção da cesta básica e consumo dessa produção, produzir alimentos para o povo e gerar emprego, gerar vida no campo.

Menezes (2018)24, líder do MST em Mato Grosso, ratificou os pensamentos de Stédile, no sentido de que o Brasil atravessa atualmente, além de uma crise

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24 Conferência proferida por Antonio Carneiro de Menezes na abertura na Jornada Universitária em Defesa da Reforma Agrária (JURA), promovida pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), no Campus Universitário de Cuiabá em maio/2018, com o tema "Terra e Resistência - Análise de Conjuntura”.

econômica, uma crise política e democrática, com uma onda de ataques conservadores, sequestro do Estado e restrição democrática, em que, para manter a hegemonia do capital financeiro, o bloco no poder se utiliza de retirada de direitos conquistados pela classe trabalhadora, destruição da liberdade democrática, criminalização dos movimentos sociais, vigilância e controle, instabilidade e medo, investimento em armas, ou seja, vivemos uma guerra.

Ainda, segundo Menezes (2018), o golpe parlamentar no Brasil faz parte dessa onda fascista, capitaneada pelo capital financeiro, partidos fisiológicos de direita, aparato judiciário administrativo, sob a organização ideológica midiática. Mas desencadeou uma série de contradições, pois a direita não tem um projeto, não tem unidade, atua no limite da democracia, causando um desequilíbrio dos poderes, e sem o apoio da população, aprofunda a crise com a judicialização da política e a justiça politizada, e não sabem o que fazer com o ex-presidente Lula, pois solto se torna presidente e preso desencadeia um processo de eleição de um governo mais conflitivo da história do país.

No entanto, Menezes (2018) afirma que para a esquerda não é muito diferente. A esquerda vive também uma crise, falta um projeto de nação, uma unidade, falta identificar o “inimigo”, pois quando se perde o foco do inimigo central, acaba-se atacando o companheiro do lado. O inimigo é o império, o capitalismo. A unidade, no momento, se apresentava como Lula. Mas revolução não é feita com eleição, é preciso que o povo tome o poder.

O grande desafio, para Menezes (2018), é ouvir, atender à vontade popular, sem conciliação com o inimigo, buscando a unidade interna, na construção conjunta de um projeto popular, de modo que as ideias do povo se tornem hegemônicas, internacionalizando e globalizando as grandes lutas, a partir da retomada do trabalho de base. Para isso, há que se superar o fechamento dos movimentos em sindicatos, investir na produção/ divulgação cultural, não se alimentar da cultura burguesa/ hegemônica, e ter a eleição de 2018 como um marco da luta de classes.


Considerações finais


O Brasil vive um momento extremo de ataques, retiradas de direitos, dominação, intensificação das condições de trabalho, expropriação de todas

condições de produção e reprodução da existência, de genocídio de povos inteiros, com seu trabalho, sua cultura, sua língua e sua história. Se, por um lado o capitalismo fragmenta a classe trabalhadora para, assim domesticá-la, por outro, a luta de classes acirra as contradições e carrega o germe da transformação, pois traz consigo a marca das classes subordinadas, sua atividade e sua resistência.

O MST é um dos movimentos mais fortes no Brasil, na América Latina e no mundo. Reconfigura-se na atualidade regressiva, neoliberal e fascista, mesclando aspectos dos movimentos tradicionais, como a luta de classes, redistribuição de terra e de renda e a questão econômica, com demandas, dinâmicas e estratégias dos novos movimentos sociais, de modo que se fortalece e se torna símbolo de luta pela democracia e pela liberdade.

O processo eleitoral instaurou a luta por dois projetos antagônicos: um de uma minoria golpista e prepotente, como afirma Frigotto (2016), para quem é insuportável “que haja movimentos sociais organizados e politizados que lutem pelos direitos elementares”; e outro defendido pelas classes populares, “que prima pelo desenvolvimento nacional, fundado na democracia, na soberania e na valorização do trabalho” (MST, 2018).

Os ataques têm se intensificado com o ultraconservadorismo, com medidas em andamento, ainda mais violentas, como: ampliação do direito de armas, redução da idade penal, pacote anticrime que dá permissão de matar por “surpresa, medo e violenta emoção”, lei contra o aborto e liberação de agrotóxicos altamente tóxicos, proibidos em vários outros países. O momento é de unicidade e organização dos movimentos sociais para constituir uma forte resistência, mas resistir não basta, é preciso avançar na luta consciente, organizada e estrategicamente. O MST com sua experiência e forte influência pode ser um elo imprescindível nas batalhas que estão por vir.


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v.17, nº 33, mai-ago (2019) ISSN: 1808-799 X


MULHER, TERRA E LUTA – A MISTURA DA RADICALIDADE QUE EDUCA1


Kelli Cristine de Oliveira Mafort2


Resumo


O ponto de partida deste trabalho é a jornada nacional de lutas das mulheres do campo, que integra as mobilizações do dia internacional das mulheres. Tal jornada se caracteriza pela pauta histórica das trabalhadoras – contra o patriarcado e a divisão sexual do trabalho, igualdade nas relações sociais de gênero, combate à violência, políticas para as mulheres e a visibilidade sobre o vínculo entre classe, gênero, raça e diversidade. E para compreender a especificidade da luta das mulheres do campo, analiso a temática de gênero, articulada à trajetória de luta por reforma agrária.

Palavras chave: gênero; questão agrária; reforma agrária.


MUJER, TIERRA E LUCHA – LA MEZCLA DE LA RADICALIDAD QUE EDUCA


Resumen


El punto de partida de este trabajo es la jornada nacional de luchas de las mujeres del campo, que integra las movilizaciones del día internacional de las mujeres. Esta jornada se caracteriza por la pauta histórica de las trabajadoras - contra el patriarcado y la división sexual del trabajo, igualdad en las relaciones sociales de género, combate a la violencia, políticas para las mujeres y la visibilidad sobre el vínculo entre clase, género, raza y diversidad. Y para comprender la especificidad de la lucha de las mujeres del campo, analizo la temática de género, articulada a la trayectoria de lucha por reforma agraria.

Palabras clave: género; cuestión agraria; reforma agraria.


WOMAN, EARTH AND FIGHT – BLENDING RADICALITY EDUCATING


Abstract


The starting point for this work is the national day of women's struggles in the countryside, which is part of the mobilizations of the international women's day. This journey is characterized by the historical agenda of women workers – against patriarchy and the sexual division of labor, equality in gender social relations, combating violence, policies for women and visibility on the link between class, gender, race and diversity. And to understand the specificity of the struggle of women in the countryside, I analyze the theme of gender, articulated to the trajectory of struggle for agrarian reform.

Keywords: gender; agrarianquestion; landreform


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1Artigo recebido em 26/03/19. Primeira Avaliação em 11/04/19. Segunda avaliação em 02/05/19. Terceira avaliação em 24/05/19. Aprovado em 10/06/19. Publicado em 04/07/2019 DOI: https://doi.org/10.22409/tn.17i33.p29367

2Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da Faculdade de Ciências e Letras, da UNESP, campus Araraquara/SP, Brasil. Mestre em Ciências Sociais pela UNESP e graduada em Pedagogia pela UNESP. E-mail: kmafort@yahoo.com.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4698- 3113.

Introdução


O objetivo do presente artigo é analisar a participação das mulheres na luta por reforma agrária, destacando a metodologia na qual estas lutas se desenvolvem. O conteúdo das ações políticas destas mulheres tem trazido uma interessante mistura entre os elementos constitutivos do ser mulher, da terra e da própria luta em si, que podem fornecer pistas sobre a trajetória a ser seguida para impulsionar um processo educativo quanto à consciência de classe. Ao mesmo tempo, a forma metodológica da ação direta, da construção coletiva e da conspiração necessária, remete ao debate sobre a natureza e o caráter necessário às lutas da atualidade.

Trabalho com a questão agrária, tendo um foco nas mulheres organizadas em acampamentos e assentamentos, integrantes do MST (Movimento de Trabalhadores Rurais Sem Terra). Para compreender a especificidade da luta das mulheres do campo, analiso a temática de gênero, articulada à trajetória de luta por reforma agrária, marcada historicamente por ações ofensivas de caráter radical, influenciadas pela própria natureza conservadora e violenta do latifúndio e de defesa da propriedade privada. Mas apesar desta trajetória ofensiva, analiso que a subjetividade dos sujeitos sociais protagonistas desta luta está sob permanente disputa e tal questão deve ser entendida sob o contexto da reestruturação produtiva do capital (Firmiano, 2014) e seus impactos sobre as formas organizativas e políticas dos trabalhadores e das trabalhadoras.

Neste artigo, tomo como ponto de partida a ocupação de terras no estado de Goiás, na fazenda de propriedade do médium João de Deus, onde discuto o sentido desta ação dentro do contexto de agravamento da violência contra as mulheres e os trabalhadores do campo em geral. A seguir, analiso o sentido pedagógico desta e como isso se opõe à perspectiva de assimilação e conciliação de classes. Por fim, trago alguns elementos sobre os condicionantes da vida cotidiana das mulheres, seus elementos de resistência e como eles podem ajudar na retomada da luta ofensiva tão necessária em tempos de crise estrutural do capital (MÉSZÁROS, 2010).

Sobre a atualidade do “quebrar das correntes”


Na madrugada do dia 13 de março de 2019, cerca de 800 mulheres do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) e do MCP (Movimento Camponês Popular) fizeram a primeira ocupação de terras sob o governo Bolsonaro. A ocupação fez parte da jornada nacional de lutas que ocorre em torno do dia internacional das mulheres, o 8 de março, mas que neste ano em especial, ao rememorar um ano do assassinato da vereadora Marielle Franco, do PSOL (Partido Socialismo e Liberdade), estendeu-se até o 14 de março. Sob o lema “Pela vida das mulheres, somos todas Marielles”, as trabalhadoras do campo organizaram diversas atividades em todo o país, tais como feiras, distribuição de alimentos, rodas de conversas, debates, caminhadas, protestos, ocupação de terra e ações simbólicas como o “trancamento” dos trilhos de trem no município de Sarzedo – MG, por onde empresas mineradoras, como a Vale, trafegam livremente, mesmo depois do dramático rompimento da barragem de rejeitos no município de Brumadinho, no estado de Minas Gerais (MST, 2019a).

Segundo o MST (id, ibid), a ocupação da fazenda Agropastoril Dom Inácio, em Anápolis, de João de Deus, localizada entre os distritos de Interlândia e Sousânia, estado de Goiás, reivindica que todos os imóveis rurais do proprietário sejam destinados para reforma agrária, a fim de produzir alimentos saudáveis, e que as vítimas dos 506 casos denunciados de abusos sexuais cometidos pelo médium, sejam indenizadas. Essa ação teve o apoio da organização social COAME – Combate ao Abuso no Meio Espiritual, entidade a qual pertencia a jornalista Sabrina Bittencourt, que cometeu suicídio no dia 02 de fevereiro deste ano, alegando em carta deixada por ela, fortes pressões decorrentes das denúncias que ela ajudou a difundir.


A ocupação do latifúndio por essas mulheres desses movimentos são, portanto, um direito garantido em Constituição, e não poderia ser um destinamento mais justo e simbólico para essas terras. A História e a vivência estão aí para nos mostrar que: onde há exploração da terra, há exploração da mulher. Onde o homem abusa da terra, encontraremos também abuso da mulher. É hora deste tempo acabar. Toda nossa solidariedade à Jornada Nacional de Lutas das Mulheres Sem Terra. (COAME, 2019).

A ocupação de terras tem sido uma forma de luta histórica dos movimentos populares do campo, que conseguiram impor legitimidade a uma ação política que superficialmente poderia ser considerada como ilegal, mas que ao contrário, tem sido o principal mecanismo de arrecadação de terras para a política de reforma agrária e cumprimento constitucional da função social da terra.

O fato da ocupação de terras não ser nenhuma novidade, não tira dela o caráter de radicalidade do processo organizativo para adentrar numa propriedade privada e questionar suas mazelas e a necessidade social de sua arrecadação, no entanto, tal característica de luta radical é explicitada com mais contundência quando os contornos de classe da luta diária estão latentes, como é o caso do momento atual.

O governo Bolsonaro tem tentado criar uma “proibição” à luta política e a processos organizativos e populares, seja através de ataques verbais, incentivo à perseguição e assassinatos de defensores dos direitos humanos, mas também por meio da consolidação de um discurso que tipifica movimentos sociais como terroristas (o que contribui para alterações legislativas por parte do congresso nacional). Sob tal contexto, a ocupação nas terras de João de Deus se torna histórica, não somente por ser a primeira do governo Bolsonaro, mas também por dar novo sentido a uma forma de luta que já estava assimilada pela sociedade brasileira e em certa medida, pelas instituições de Estado. Portanto, ocupar latifúndios, prédios públicos, casas e terrenos abandonados, no espaço urbano ou rural, é um ato político com um sentido ressignificado, dado o nível de ameaça que existe sobre tal ação e seu potencial exemplo pedagógico para uma massa de trabalhadores na sociedade, cada vez mais expropriados e privados de acesso a condições básicas de sobrevivência.

Ainda segundo o MST (MST, 2019b) a ocupação na fazenda agropastoril Dom Inácio, teve como motivação questionar a que serve o latifúndio, explicitando a sua vinculação com expressões de poder e domínio, utilizadas para cometer crimes de abusos sexuais contra mulheres em condição de extrema fragilidade, numa ardilosa trama de exploração da fé e da crença individual.

Ao se defrontarem com essa mistura entre latifúndio e abusos sexuais, as mulheres são levadas a refletir sobre a própria realidade em que vivem e as condições a que estão submetidas numa sociedade patriarcal e misógina. O trecho

da crônica a seguir, elaborada no contexto da referida luta, nos dá pistas para compreender o sentido pedagógico da participação das mulheres nestes processos.


Naquele momento já não se ouvia mais a respiração, porque havia outros sons mais fortes, o som da quebra das correntes nos arrepiava, nos provocava gritos emocionados, como se aquelas correntes que identificavam o latifúndio não fossem só isso, e de fato não eram. É nessa concentração, nesse poder que se apresentam o tráfico, a exploração, a violência, e a apropriação de nossos corpos, de nossas vidas, de nosso trabalho e do poder de dominação. Aquelas correntes, de fato tão fortes, tão grossas, malditas, pesadas e cruéis tinham que ser quebradas, rompidas, estraçalhadas. O “tililim” do impacto do machado e da marreta na quebra das correntes que nos aprisionam, soava como uma música clássica aos nossos ouvidos tão desacostumados a escutar. Com as trocas de olhares, de abraços, de emoções o grupo foi tomando seus lugares, pegando as ferramentas para a construção dos espaços coletivos para dormir, alimentar, cuidar da saúde, da segurança e muito rapidamente aquele latifúndio de estuprador de mulheres virou um jardim de histórias, de “causos”, de esperança da conquista da terra, de justiça e de desejos de poder desejar. Eram as chitas que circulavam, que se cruzavam e conspiravam. (WITCEL, 2019, não paginado).


Neste “quebrar das correntes do latifúndio”, as potencialidades de repensar as situações de violência e privações presentes no cotidiano de muitas mulheres trabalhadoras do campo, confere um sentido pedagógico aos processos de luta. E em se tratando de uma luta com caráter radical, como é a ocupação de terras, a tática da ruptura diante das estruturas de dominação, vai se apresentando como a única forma possível de alterar tal situação.

No caso específico da luta por reforma agrária, as tentativas de enquadramento político deste segmento na chamada “agricultura familiar”, são prova inequívoca de como a consciência do que se é tem implicações políticas no que se faz e nas definições para onde se vai.


O sentido pedagógico da ofensividade na luta por reforma agrária


A histórica luta por reforma agrária no Brasil é marcada por uma trajetória de ações ofensivas de caráter radical, pela natureza conservadora e violenta do latifúndio, mas também pela concentração de poder em torno da defesa da propriedade privada. Isso está presente nos históricos processos de luta pela terra até os movimentos populares da atualidade, no entanto a subjetividade dos sujeitos sociais protagonistas desta luta está sob permanente disputa e tal questão deve ser

entendida do ponto de vista da reestruturação produtiva do capital e seus impactos sobre as formas organizativas e políticas dos trabalhadores e das trabalhadoras.

No campo brasileiro, a reestruturação produtiva foi sentida já no final da década de 1980, com as reformas no comércio exterior, que produziram como efeito a liberalização do mercado agrícola e a redução da tarifa média, nos primeiros anos de 1990, para determinados grupos de produtos agrícolas, insumos e equipamentos (FIRMIANO, 2016). Mas no final da década de 1990, os agronegócios ganharam importância decisiva no conjunto da economia brasileira, com forte investimento em infraestrutura territorial e pesquisa agropecuária, mudando a regulação do mercado de terras e na política cambial, eliminando a sobrevalorização, o que tornou o agronegócio competitivo no comércio internacional.

Neste período, o agronegócio passa a se reorganizar, criando a ABAG– Associação Brasileira do agronegócio em 1993, aglutinando os participantes das diferentes cadeias produtivas do agronegócio, orientando as profundas mudanças que ocorreriam no campo em favor do capital. Mas a reestruturação produtiva também operou em processos de seletividade entre os trabalhadores do campo, promovendo a ascensão da agricultura familiar integrada à lógica do agronegócio, seguindo as orientações políticas do Banco Mundial (FIRMIANO, 2016).

Os governos neodesenvolvimentistas de Lula da Silva e Dilma Rousseff criaram um ambiente político-institucional que possibilitou a consolidação e a expansão do agronegócio e da agricultura familiar, como sua completude subordinada, mas ao mesmo tempo, desenvolveram políticas públicas que foram ao encontro das necessidades dos trabalhadores do campo. No entanto, a contradição fundamental desse processo é que a ascensão e consolidação da agricultura familiar ocorreram em detrimento da política estruturante de reforma agrária, disputando a consciência dos trabalhadores e dos movimentos populares.

Inúmeras políticas públicas e programas sociais foram criados ou ampliados durante os governos de Lula da Silva e mais tarde, nos governos de Dilma Rousseff, mas destaco aqui aquelas que mais tiveram incidência nos assentamentos: a) financiamento: PRONAF (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar) e custeio; b) crédito: apoio inicial, fomento e fomento mulher; c) Mercado institucional - PAA (Programa de Aquisição de Alimentos): por meio deste programa criado em 2003, as famílias assentadas poderiam comercializar através de suas

organizações, cooperativas ou associações, até R$ 8 mil por ano, destinando os alimentos produzidos às populações que se encontravam em situação de insegurança alimentar; ou através de formação de estoque; PNAE (Programa Nacional de Alimentação Escolar), criado em 2009 por força de lei, determina às prefeituras a obrigatoriedade de compra da agricultura familiar de 30% dos alimentos destinados às escolas; neste caso, cada família pode entregar até R$ 20 mil por ano/por prefeitura, em um total de até R$ 360 mil por ano; d) ATER (Assistência Técnica e Extensão Rural); e) PRONERA (Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária), curso de ensino médio, pós médio, superior e pós graduação, através de parcerias com universidades públicas; f) titularidade em nome preferencial da mulher (desde 2003, tornou-se obrigatória a titularidade conjunta dos lotes de reforma agrária, ou seja, quando a família conquista a terra, a concessão de uso é em nome da mulher e do homem, e preferencialmente da mulher, independente do estado civil, assegurando o direito da mulher à terra em caso de divórcio, desde que ela detenha a guarda dos filhos, propiciando que ela comprove a atividade rural para fins de acesso aos benefícios previdenciários, como salário- maternidade e aposentadoria. (SEAD, 2018).

Tais políticas, mesmo que não atingindo a totalidade dos assentamentos de norte a sul do país, conferiram uma melhoria nas condições de vida das famílias assentadas. Elas também serviram como uma proteção, ainda que precária, contra os efeitos destrutivos do agronegócio, pois, apesar de haver uma completude da agricultura familiar em relação ao agronegócio, ela se dá de forma bastante subordinada, arrasando bens naturais e intensificando a exploração do trabalho. A percepção dos assentados e das assentadas acerca dos efeitos destrutivos e predatórios do agronegócio foram sentidas de forma mais acentuada nas relações produtivas e comerciais, devido à concorrência extremamente desigual. Tudo isso fez com que os assentados buscassem na agricultura familiar e suas políticas públicas, um leque não só de proteção, mas também uma arma política contra os imperativos do agronegócio, e ao trilhar esse caminho, foram abrindo mão da reforma agrária mesmo que de forma inconsciente.

Com isso, foi sendo criada uma subjetividade entre os assentados de apartação à luta da reforma agrária, fortalecendo a convicção de que as relações criadas no âmbito da agricultura familiar seriam suas novas ferramentas de luta

contra o privilégio do agronegócio, e não contra as forças estruturais do capital que o constituem, como podemos ver na crônica de Mafort, 2018, p. 167:


Reforma agrária já era! Simão e Zé pularam da cama bem cedo e quando o sol estava soltando seus primeiros raios, lá estavam os dois na sede da cooperativa, junto com outros companheiros e companheiras, fazendo o carregamento da produção para mais uma entrega da merenda escolar. O cheiro de terra molhada se misturava ao aroma agradável das verduras fresquinhas, colhidas há pouco pelos assentados.

Com o caminhão carregado, foi só tomar um gole de café e pegar a estrada. No caminho até o asfalto, Simão e Zé seguiram em silêncio, embalados pela programação da rádio Tapera, ali mesmo da comunidade. As modas de viola eram intercaladas por notícias do movimento: "Em mais uma jornada nacional de lutas, o MST mobiliza cerca de 40 mil pessoas em todo o Brasil. Estamos em abril, e essa já é a quarta jornada que o MST realiza somente esse ano. Sabemos que nada vem fácil nessa vida, mas tá difícil arrancar conquistas, mesmo no governo da Dilma, que está pressionada pelo agronegócio. Mas não podemos desistir! Seguimos firmes seja nos barracos de lona ou na resistência nos assentamentos, com nossa produção saudável, farta e diversa, da nossa reforma agrária popular. Segue a música!", dizia o locutor.

Quando o caminhão alcançou a pista, a chiadeira tomou conta do rádio e o melhor a fazer era desligar e prosear um pouco pra gastar o tempo. Simão foi quem puxou conversa: "Ei Zé lembra aquela vez que a gente ficou 10 dias no Incra em SP? Foi bom demais ver aquele povo que tava acampado na pista, saber que a terra tinha saído. Comemoramos a noite toda." E Zé em silêncio. Simão tentou mais uma vez: "E aquela outra vez que a gente fechou a pista? A gente já era assentado e tava lutando pela renegociação das dívidas. Bons tempos, e a gente conseguia tudo na luta." "Bons tempos", foi a deixa para Zé se animar e entrar na conversa, arrebatando logo de cara: "Para de bestagem Simão! Bons tempos é agora que o governo olha por nós e tem as políticas públicas. Antes era um sacrifício danado e a gente precisava ficar debaixo do mando dos militantes. Hoje não, pois é nós e o governo, direto, sem intermediário. E o duro é que o movimento insiste nessa coisa de reforma agrária, e o que a gente tem que entender, é que reforma agrária já era. Assentamento é bom, muito bom, e não sou de cuspir no prato que eu comi, mas é só olhar pro lado e perceber que não tem mais como sair terra pra ninguém. Veja Simão, aqui é soja, soja por todo lado, e até no assentamento tem, feita por aqueles que andaram se enricando por aí. No nosso tempo, as terras tavam paradas, improdutivas, tinha um ou outro gado perdido, e aí, quando a gente pulava prá dentro das terras, o povo da cidade assustava, mas acabava entendendo. Hoje não. Não tá tendo mais terra parada. E as que tão parada, tá no aguardo de alguma coisa; tão assim, como no banco de reserva na partida de futebol. E olha, hoje pra nós assentado, não tá ruim não. Não tá assim uma beleza, como tá prô agronegócio, mas em vista do passado, melhorou foi muito. Você pode tirar por esse caminhão aqui, que conseguimos naquele projetinho feito pelos técnicos do território e não ocupando Incra. Aquele tempo das lutas radical já

passou Simão, a luta agora é se organizar, formar cooperativa, ir pro território disputar recurso, produzir e aproveitar as leis, como essa da merenda."

Simão ligou o rádio de novo, sintonizou numa estação que tava tocando música do estrangeiro, aumentou o volume e encostou sua cabeça no vidro. E assim, seguiram viagem.


Com a crise de 2014, a agricultura familiar também foi impactada e vários programas sociais e políticas tiveram cortes drásticos ainda sob o governo de Dilma Rousseff. Somado a isso, houve uma intensificação da judicialização da questão agrária, e várias áreas que poderiam ser destinadas a assentamentos, permanecem por anos em tramitação no sistema de justiça. No caso das desapropriações, o decreto presidencial de criação de um determinado assentamento é um aceno importante para concretizar o atendimento da reivindicação dos trabalhadores, no entanto, ele somente vai se materializar com a imissão de posse feita pelo judiciário; nesse intervalo de tempo, há uma verdadeira batalha judicial entre as partes do processo, o que pode durar anos e o decreto perder a validade, caducando. Segundo o INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, somente em 2015, 170 imóveis, correspondentes a 300 mil hectares, estariam parados na justiça e caso tramitassem, poderiam assentar cerca de 10 mil famílias (FOLHA DE SÃO PAULO, 2017).

Importante ressaltar que o argumento da judicialização da reforma agrária era habilmente utilizado pelo INCRA para escamotear o desmonte orçamentário do governo Dilma, se isentando da responsabilidade por sua execução. Por outro lado, a mesma morosidade judicial não era verificada em processos de reintegração de posse, que eram (são) deferidos com grande agilidade, muitas vezes algumas horas após as ocupações de terra.

O impeachment de Dilma Rousseff teve início em dezembro de 2015 com a aceitação da denúncia de crime de responsabilidade fiscal e improbidade pelo então presidente da Câmara, Eduardo Cunha, a constituição de uma comissão investigativa, a aprovação do relatório da comissão, o afastamento da presidenta em maio de 2016 e o encerramento do processo em agosto de 2016. Em 05 de maio de 2016, Michel Temer assume a presidência de forma interina e deflagra uma série de medidas que avassalaram os direitos dos trabalhadores. A partir daí, as medidas da contra reforma agrária se intensificaram, não somente inviabilizando novas conquistas, mas também promovendo graves retrocessos.

Em relação à agricultura familiar e à reforma agrária foram muitas as medidas tomadas, mas o governo golpista não se limitou à velha tática de corte no orçamento, pois, além disso, lançou mão de processos de reordenamento fundiário a serviço do capital e de desestruturação dos assentamentos, chegando ao limite de desenvolver uma política massiva de titulação/emancipação com vistas à privatização das áreas por meio da lei 13.465/17. As famílias acampadas também foram ferozmente combatidas na sua legitimidade de beneficiárias da conquista que elas próprias demandaram através das lutas, das ocupações e dos acampamentos.

Importante notar que para o governo de Michel Temer, a agricultura familiar continuava sendo uma completude funcional ao agronegócio, pela subsunção do trabalho, cujo mais valor é apropriado pelas transnacionais, como força auxiliar na produção de commodities e também como consumidora das mercadorias do capital (insumos). No entanto, as margens para investimento do Estado neste setor diminuíram drasticamente, ao ponto de desvelar a fragilidade da chamada agricultura familiar. Ou seja, os sujeitos sociais protagonistas da luta pela terra e reforma agrária, que tiveram sua subjetividade capturada pela identidade de agricultores e agricultoras familiares, se viram desnudos diante do capital, como força de trabalho disponível, acentuando processos de proletarização mesmo entre aqueles que detêm parte dos meios de produção e pretendiam se projetar como empreendedores autônomos.

As principais medidas do governo de Michel Temer, de combate à reforma agrária e neutralização da agricultura familiar, foram: 1) Extinção do MDA – Ministério do Desenvolvimento Agrário, através da Medida Provisória - MP 726/2016, fundindo o MDS – Ministério do Desenvolvimento Social e o MDA, dando origem ao Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário; 2) cortes no orçamento do PAA; 3) cortes no orçamento de obtenção de terras: Em 2015, foram destinados R$ 800 milhões para desapropriações. Em 2018, somente R$ 34,2 milhões, o que representou um corte de 86,7%. (BRASIL DE FATO, 2018); 4) Em 2017 não houve nenhuma família assentada na reforma agrária (FOLHA/UOL, 2018).

A lei 13465/17 sancionada por Michel Temer é bem ampla e trata da regularização fundiária no rural e no urbano, explicitamente a serviço dos interesses do agronegócio e da especulação imobiliária. No tocante aos assentamentos, a lei retoma os processos de emancipação/titulação, previstos no Estatuto da Terra de

1964, mas relativizando as obrigações do Estado quanto às políticas públicas que devem ser desenvolvidas até que um assentamento seja considerado apto à emancipação. Antes da lei 13465/17, somente poderiam ser titulados em definitivo, assentamentos consolidados que tivessem mais de 15 anos de existência, mas com a referida lei, as novas famílias assentadas (que praticamente inexistem, como vimos acima) podem ser assentadas e imediatamente tituladas, sem a necessidade de um tempo de carência ou de terem os seus assentamentos consolidados pelo Estado em termos das políticas públicas necessárias. No caso das mulheres assentadas, isso pode aumentar a pressão sobre elas para venda ou negociação sobre os lotes, já que são elas as titulares, na maioria dos casos.

Em relação às famílias acampadas, a lei 13465/17 criou a obrigatoriedade de editais municipais para a seleção de famílias candidatas à reforma agrária, e colocou o critério de vulnerabilidade social como o mais relevante para garantia de acesso ao assentamento, ou seja, não necessariamente uma família que se organizou, ocupou terra e resistiu por anos num acampamento, será selecionada para o futuro assentamento, mesmo que ela preencha todos os quesitos necessários para ingressar na política de reforma agrária. Isso tende a desestimular as famílias a se engajarem na luta por terra e reforma agrária e muito provavelmente o próprio assentamento jamais existirá, se não for a pressão e a resistência das famílias acampadas.

Com a ascensão de Jair Bolsonaro à presidência em 2019, a pauta da reforma agrária e da agricultura familiar passa a enfrentar um ataque ainda maior, tal como o tratamento agressivo dado aos indígenas, quilombolas e demais povos do campo. O governo criou a Secretaria Especial da Regulação Fundiária do Ministério da Agricultura e nomeou para o comando da pasta, o ruralista, tradicional membro da UDR – União Democrática Ruralista, Luiz Antônio Nabhan Garcia. Uma das primeiras medidas do governo Bolsonaro na área foi suspender, no terceiro dia do seu mandato, a política de reforma agrária, e alguns dia depois, voltou atrás devido à pressão de vários setores da sociedade que denunciaram a inconstitucionalidade de tal medida. No entanto, em fins de março deste ano, o governo voltou a suspender vistorias, processos de desapropriação em curso e todo o rito das desapropriações, alegando falta de recursos (REPÓRTER BRASIL, 2019).

Para chefiar o Ministério da Agricultura, escolheu Tereza Cristina, conhecida como a “musa do veneno”, que já tinha autorizado até 01 de março deste ano, 86 novos produtos de agrotóxicos. De 2010 a 2016, os registros foram sempre abaixo de 20 por ano. Nos dois últimos anos o número subiu para 47 (2017) e 60 (2018), recorde batido em apenas 60 dias, com as 86 novas liberações. (BRASIL DE FATO, 2019).

No comando da pasta do meio ambiente, questão implicada à temática agrária, o presidente Jair Bolsonaro nomeou Ricardo Salles, que foi condenado recentemente pela Justiça do estado de São Paulo por improbidade administrativa, ao manipular mapas e informações quando era Secretário Estadual do Meio Ambiente, favorecendo mineradoras. (GLOBO, 2018). E como presidente nacional do INCRA, o governo escolheu o general Jesus Corrêa, reforçando o time de militares em pastas importantes do primeiro e do segundo escalão (CONGRESSO EM FOCO, 2019).

Além destas nomeações avessas ao diálogo com movimentos populares, o discurso de ódio contra o MST e defensores dos direitos humanos, ambientalistas e indígenas, traduz-se num incentivo direto à violência aberta contra a luta por reforma agrária e as ocupações de terra. Algumas medidas do governo instigam o conflito na sociedade em geral, e no campo, institucionalizando a tese de que a propriedade privada deve estar acima da vida, num evidente descumprimento do que está previsto na Constituição brasileira - o decreto presidencial 9797/19 (que alterou o decreto 9785/19), flexibiliza o Estatuto do Desarmamento e impõe novas regras mais permissivas para a posse, o porte, e a comercialização de armas de fogo e munições (Brasil, 2019); durante a abertura da feira do agronegócio, a Agrishow, em Ribeirão Preto – SP, o presidente Jair Bolsonaro anunciou que enviará ao congresso nacional um projeto de lei que propõe a aplicação do entendimento do “excludente de ilicitude” presente no Código Penal Brasileiro, aos proprietários rurais em toda a extensão de suas fazendas e empresas (GLOBO/G1, 2019), ou seja, uma espécie de licença para matar quem adentrar a “sagrada” propriedade privada.

A luta por terra e por reforma agrária historicamente tem enfrentado um padrão de violência que se mantém até os dias atuais, assegurando o pacto entre capital/estado e latifúndio, combinando várias formas de repressão contra os trabalhadores e as trabalhadoras. Os indicadores de violência no campo apontam

que o aumento nos casos de violência estão intrinsecamente ligados ao modelo do moderno agronegócio, da mineração e do hidronegócio, que tem gerado um rastro de conflitos em todo país. Certamente, o discurso de ódio do presidente da república e a incitação para que movimentos populares sejam enquadrados como terroristas provocam um aumento da violência aberta e direta contra os trabalhadores e as trabalhadoras.

Importante destacar que dado o protagonismo que as mulheres têm assumido no campo, à frente das lutas e dos processos organizativos (se tornaram dirigentes, presidentes de cooperativas, lideranças comunitárias, agitadoras populares, comunicadoras etc), também ficaram mais expostas à violência de caráter político, que somadas às agressões misóginas, pioram muito a vulnerabilidade deste grupo social, incluindo mulheres trans. Segundo relatório da CPT - Comissão Pastoral da Terra, em 2018 a violência no campo contra as mulheres aumentou 377% em relação a 2017 (DE OLHO NOS RURALISTAS, 2019).

Porém, mesmo com todas essas adversidades, a luta pela reforma agrária segue, por se tratar de uma questão social e a agudização dos problemas urbanos da atualidade provoca um repensar sobre a questão agrária e suas implicações de forma mais ampla, abarcando o conjunto da sociedade. Em outras palavras, a consolidação e a expansão dos agronegócios colocam novas implicações sobre a questão agrária brasileira, pois a ação destrutiva do capital passa a afetar de forma ainda mais direta a reprodução da sociedade e questões como escassez de água, explosão dos casos de intoxicações por consumo de alimentos envenenados etc., podem indicar o sentido e a atualidade da reforma agrária, isso, se formos capazes de compreender tais temas, sob o seu escopo.

Por tudo isso, a jornada de lutas das mulheres trabalhadoras rurais é tão importante e o fato da primeira ocupação de terras do governo Bolsonaro ter sido feita por elas, numa fazenda de abusador sexual, traz uma simbologia muito forte sobre o significado que a luta por reforma agrária assume na atualidade.

Ao marcar o março com uma ferramenta de radicalidade histórica da luta sem terra, as mulheres estão sinalizando que é preciso seguir com o processo organizativo e com a contundência da ação política. Mas, para entender o que move as mulheres do campo é preciso se aproximar um pouco mais do seu cotidiano, compreendendo que as lutas são expressões de uma síntese e também são

respostas à uma explosiva combinação entre dominação de classe, racismo, exploração de gênero e lgbtfobia.


Os condicionantes da vida das mulheres do campo, a construção da resistência e a retomada da luta ofensiva


As forças do trabalho mobilizadas em torno da luta por reforma agrária no Brasil foram capazes de garantir conquistas mesmo na fase de estreitamento significativo das margens possíveis, ainda na década de 1980. Parte destas conquistas está materializada nos assentamentos, nas diferentes frentes da educação, produção de alimentos, cooperação, cultura etc. Mas, ao garantirem conquistas, as forças do trabalho foram adquirindo também ferramentas de organização e luta que talvez se constituam como o maior legado dos movimentos populares, principalmente do MST. Na atualidade, tanto os assentamentos conquistados, como os acampamentos que persistem, estão sob intensa pressão das forças do capital, mas não somente no sentido de confrontá-los, mas também de sujeitá-los.

As trabalhadoras do campo, organizadas, foram construindo uma trajetória na qual os elementos - mulher, terra e luta se misturam e se constituem como sinônimos de uma radicalidade que educa. No campo, elas estão entre as mais precarizadas, num universo de trabalhadores historicamente precarizados e empobrecidos. A divisão sexual do trabalho invisibiliza o trabalho das mulheres, e ao mesmo tempo se favorece dele; as principais ocupações das mulheres rurais estão relacionadas aos cuidados com a família, a casa, o quintal, e o autoconsumo, atividades reprodutivas sem remuneração, mas de fundamental importância econômica, sendo condição fundamental para a reprodução do capital. As mulheres também se ocupam de outras atividades tais como artesanato, pesca, extrativismo, produção de alimentos, produção de queijos, doces e compotas, criação de animais, apicultura, cultivo e manipulação de ervas medicinais e condimentares, comercialização (feiras, cestas, vendas pela internet), para citar algumas atividades, mas, em geral, sua participação é considerada como mera ajuda e seus rendimentos são os menores.


A população com os maiores rendimentos vive na zona urbana, onde os homens recebem em média R$ 2.060,70 e as mulheres R$

1.486,80 ao mês, enquanto na zona rural os homens recebem em média R$ 977,50 e as mulheres R$ 614,80 ao mês. Os homens brancos urbanos apresentam o maior índice de rendimento mensal, no valor de R$ 2653,70, e as mulheres negras rurais apresentam o menor índice, no valor de R$ 536,20. [...] as mulheres rurais, brancas e negras, são as que possuem os piores rendimentos médios mensais. (PNAD/IBGE, 2018).


A situação das mulheres negras do campo é ainda mais desigual, como podemos analisar nos dados citados sobre os rendimentos por ocupação, o que explicita os elementos resultantes de uma sociedade patriarcal, machista e racista, elementos centrais para compreender a dinâmica da classe trabalhadora na atualidade e como os sujeitos da classe são atingidos pelo capital de forma generalizada, mas com particularidades a serem levadas em consideração numa formulação estratégica de superação deste sistema, pois no caso delas,


[…] o capital ajuda a liberar as mulheres para melhor poder explorá- las como membros de uma força de trabalho muito mais variada e convenientemente “flexível”. Ao mesmo tempo, precisa manter a subordinação em outro plano – para a reprodução sem problemas da força de trabalho e a perpetuação da estrutura familiar predominante […] (MÉSZÁROS, 2010, p. 83).


O racismo nas relações de trabalho no campo fica evidente ao analisar os dados entre os assalariados mais precarizados (informais) quanto à cor/raça,


[…] os assalariados rurais são, na maioria, pretos ou pardos, representando 68,7% do total. Os brancos são 30,8% e os indígenas e amarelos representam 0,2% cada. Considerando apenas os sem carteira, o percentual de pretos e pardos sobe para 72,5% do total de empregados nessa condição, enquanto o de brancos diminui a participação para 26,8% do total. Existem mais pretos e pardos na informalidade do que no emprego formal como um todo. (DIEESE, 2014, p.21).


Em relação à juventude do campo, esta representa cerca de oito milhões entre 15 a 29 anos e, dentre estes, mais de 58% estão em situação de pobreza e extrema pobreza (IBGE, 2010). Também são os jovens os que mais sofrem com as expropriações do trabalho e consequente migração forçada – entre o censo de 2000 e o de 2010, a população rural reduziu 2 milhões, e destes, 1 milhão eram jovens, com forte crescimento de mulheres (IBGE, 2010). Neste aspecto, é possível compreender como o capital opera de forma contínua nos espaços de representação do urbano e do rural, afirmando sua completude e unidade, e a situação da migração

forçada das mulheres é um exemplo deste movimento, pois ao migrarem para as cidades, as mulheres jovens do campo se lançam num mercado de trabalho cada vez mais precarizado e feminino.


Muitos estudos têm apontado que, na nova divisão sexual do trabalho, as atividades de concepção ou aquelas de capital intensivo são realizadas predominantemente pelos homens, ao passo que aquelas de maior trabalho intensivo, frequentemente com menores níveis de qualificação, são preferencialmente destinadas às mulheres trabalhadoras (e também a trabalhadores(as) imigrantes, negros(as), indígenas etc.). (HIRATA, 2002, apud ANTUNES e ALVES, 2004, p. 338).


Das medidas impostas pela reestruturação produtiva, a partir dos anos de 1990, especialmente aos setores urbanos, a terceirização tem lugar de destaque, com vínculos empregatícios fragilizados e fundamentados na flexibilização das leis trabalhistas, retirando a responsabilidade das empresas sobre os trabalhadores, e repassando-a para empresas terceiras, contratadas para prestação de serviços. A terceirização na década de 1990 autorizava a contratação de empresas para a realização das chamadas atividade-meio, e era vedada a contratação para atividades-fim. Esses e outros pontos foram alterados pela lei 13.429/2017 e posteriormente pela contrarreforma trabalhista, aprofundando a precarização nas relações de trabalho no campo.

Outra evidência deste processo de precarização, diz respeito à questão da saúde do trabalhador e da trabalhadora. Como exemplo, pode-se citar a situação alarmante de intoxicação humana por agrotóxicos. “Segundo a Fiocruz (Sinitox/Fiocruz/Sinan), em média, há cerca de seis mil casos registrados por ano de intoxicação humana por esse tipo de produtos”. (DIEESE, 2014, p. 27). Com o aumento crescente da utilização do pacote agroquímico do agronegócio, as intoxicações dos trabalhadores tendem a aumentar.

Além destes fatores, os casos de violência contra a mulher no campo, também se constituem como elemento central e os dados sobre o tema ainda são incipientes.


Os frágeis instrumentos de combate à violência contra mulher que conquistamos não alcançam as mulheres do campo e das florestas. Distantes dos centros urbanos, marcadas pela pobreza e pela ausência de educação formal, essas mulheres não acessam informações sobre as políticas públicas e tão pouco, estas chegam até elas. Isso fica evidente quando buscamos os dados sobre a

violência contra a mulher do meio rural: não dispomos do diagnóstico e menos ainda de instrumentos de combate. (MST, 2019c).


E por fim, a proposta da contrarreforma da previdência por parte do executivo recai com força sobre as mulheres do campo, principalmente pelo aumento da idade para se aposentar, ignorando que as mulheres trabalham mais do que os homens, devido às imposições da divisão sexual do trabalho. No caso das mulheres do campo, em geral, as mulheres começam a trabalhar muito jovens, ainda adolescentes, principalmente na esfera dos cuidados. Além disso, está proposto um aumento no tempo de contribuição de 15 para 20 anos, lembrando que 20 anos representam 240 meses e que a maioria dos trabalhadores sequer consegue comprovar o tempo exigido atualmente, pois em geral, os contratos são precários, inexistentes e existem situações nas quais o trabalhador ou a trabalhadora não dispõem de documentos civis.


O que todos precisam saber é que 42% dos trabalhadores segurados no Brasil conseguem comprovar, em média, somente 4,9 meses de contribuição por ano . [...] Com isso, os 5 anos de contribuição a mais que serão exigidos significam, para quase metade dos trabalhadores, 12 anos a mais de trabalho. Dada as características dramáticas do mercado de trabalho, é provável que a maior parte desses trabalhadores não consigam ter proteção na velhice. Quem conseguir, terá direito a somente 60% da média aritmética de todas as suas contribuições previdenciárias. [...] Ou seja, a grande maioria dos brasileiros morre antes de se aposentar ou, se sobreviver, terá seus rendimentos rebaixados. (MOREIRA, 2019, pag. 03).


Sempre importante destacar que a previdência dos trabalhadores e trabalhadoras rurais, assegurada na Constituição de 1988, faz justiça a um direito que até este período vinha sendo negado. Os direitos previdenciários no campo chegaram somente nos anos de 1990, com aplicação muito incipiente, o que expôs grandes contingentes humanos a situações extremas de precarização ou mesmo de trabalho análogo à escravidão. Somado a isso, no campo estão concentradas as maiores taxas de pobreza, falta de acesso à educação, alimentação, água potável e saneamento básico, aumentando a exposição às doenças.

Todos esses elementos estão na base da realidade vivenciada pela maioria das mulheres no campo. Mas o que fazer para alterar e enfrentar tal situação?

Durante muito tempo, o campo da luta de esquerda considerou como legado estratégico, os movimentos históricos dos trabalhadores como classe, sem explicitar

de forma mais detida, as determinações sociais que constituem essa classe e suas especificidades quanto a gênero, orientação sexual, raça/etnia e sentido geracional. Mas as e os sujeitos sociais da classe trabalhadora foram ocupando espaços, através da luta feminista, do protagonismo da juventude, do reconhecimento da diversidade sexual, na explicitação dos preconceitos e discriminações, no combate ao machismo, à lgbtfobia e ao racismo.

Foi assim, “de pé na porta”, e sem concessões, que surgiu um feminismo popular e revolucionário, uma cunha de classe dentro do debate LGBT, uma perspectiva revolucionária no movimento de resistência negra, um questionamento estrutural dos indígenas sobre o agronegócio etc.

As tarefas dessa construção ainda são muitas e cheias de limites, mas como esse tipo de luta mexe com elementos estruturantes da sociedade de classe, como o patriarcado, tendem a trazer uma radicalidade, possível de ser encontrada naquelas que buscam uma igualdade de fato substantiva.

Neste sentido, mais do que reconhecer a importância da luta específica das mulheres, o desafio atual para a luta de classes é perceber as mediações na qual a luta se desenrola nesses setores. Isso pode trazer alguns indicadores de que não é o conjunto das classes que precisa reconhecer as diferenças e criar espaços de participação somente, pois o desafio atual pode estar para além disso. Em tempos de crise estrutural do capital, ampliação da precarização do trabalho, desemprego, naturalização da violência, encarceramentos em massa, migrações forçadas, mercantilização acentuada dos bens naturais, nosso maior desafio é retomar a luta ofensiva e para tal, é fundamental levar a cabo o posicionamento político de quem não teve direito à trégua, mesmo em tempos de aparente calmaria.


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v.17, nº 33, mai-ago (2019) ISSN: 1808-799 X


PROCESSOS FORMATIVOS DO MST: DESAFIOS E LIMITES HISTÓRICOS1


Ademar Bogo2 Maria Nalva Rodrigues de Araújo Bogo3

Resumo


Este artigo tem como objetivo avaliar os elementos constitutivos do MST como movimento social no bojo das contradições capitalistas, focando especialmente as estratégias de luta pela terra e, consequentemente, a luta pela educação e sua relação com as alternativas de organização do trabalho, experimentadas pelo Movimento. Focaliza os desafios frente a proposição do Movimento quando este assume em sua plataforma a agroecologia como modelo produtivo alternativo em contraposição à agricultura capitalista/agronegócio. Questiona em que medida este modelo contribui para construção do projeto histórico socialista. Ao final, apresenta alguns desafios ao Movimento para o avanço de um projeto histórico emancipador.

Palavras-chave: MST; luta social; trabalho; Educação; Agroecologia


PROCESOS FORMATIVOS DEL MST: DESAFÍOS Y LIMITES HISTORICOS


Resumen


Este trabajo tiene como objetivo evaluar los elementos constitutivos del MST como movimiento social en el centro de las contradicciones capitalistas, focando en especial las estrategias de lucha por la tierra y, consecuentemente, la lucha por la educación y su relación con las alternativas de organización del trabajo, experimentadas por el movimiento . Se enfoca los desafíos del Movimiento cuando éste asume en su plataforma la agroecología como modelo productivo alternativo en contraposición a la agricultura capitalista / agronegocio. Cuestiona en qué medida este modelo contribuye a la construcción del proyecto histórico socialista. Al final, presenta algunos desafíos al movimiento para el avance de un proyecto histórico emancipador.

Palabras clave: Ciencia y Tecnología; lucha social; trabajo; la educación; Agroecología


MST AND ITS FORMATION PROCESSES: CHALLENGES AND HISTORICAL LIMITS


Abstract


This article aims to evaluate the constituent elements of MST as a social movement in the midst of capitalist contradictions, focusing specially on the strategies on fighting for land and consequently on the fight for education and its relations with the alternatives of work organization experienced by the movement. It Also focus on the challenges It faces when it proposes agroecology as an alternative production model on its plataform instead of capitalist agriculture/Agribusiness. It asks whether to what extent this model contributes to the socialist historic project. At the end it presents some challenges of the movement for the advancement of a historic emancipatory project.

Keywords: MST; social struggles; Education; Agroecology.


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1Artigo recebido em 01/03/19. Primeira Avaliação em 07/04/19. Segunda avaliação em 22/05/19. Aprovado em 13/06/19. Publicado em 04/07/2019. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.17i33.p29368.

2Doutorado em Filosofia; Prof. da Faculdade Sul Bahia-FASB; e-mail: abogo@oi.com.br; https://orcid.org/0000-0002-6864-7113.

3Doutorado em Educação; profª titular da Universidade do Estado da Bahia-UNEB; e-mail: mnaraujo@uneb.br; https://orcid.org/0000-0002-9020-2217

Introdução


Buscamos, neste artigo, tecer algumas reflexões sobre a constituição e o desenvolvimento político e histórico do MST como movimento social, no bojo das contradições capitalistas e das suas próprias contradições, a partir da década de 1980, tendo como referência a questão da luta pela terra e pela reforma agrária, a formulação de uma proposta de produção e a construção de um programa de educação emancipatória.

Partimos do pressuposto de que a análise histórica do Movimento, somente pode ser entendida em meio às contradições econômicas, políticas e sociais, bem como os processos de desenvolvimento científico e tecnológico que permeiam a modernização constante das forças produtivas e influem diretamente sobre as relações sociais e de produção. Diante disso, nos propomos analisar as proposições do MST no percurso de seu surgimento, implantação e afirmação social, principalmente quando assume em sua plataforma a agroecologia como forma de produção e organização produtiva em contraposição à agricultura capitalista promovida pelo agronegócio.

Trata-se de um artigo que tem como base a pesquisa bibliográfica e documental, cuja coleta dos dados foi realizada em documentos e publicações do próprio Movimento. Quanto à estrutura do trabalho, está organizado em quatro partes: numa primeira, apresentamos reflexões sócio-históricas acerca do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra-MST. Na segunda parte abordamos as tentativas do MST para organizar o trabalho e a produção, bem como discutir os dilemas enfrentados por ele na conjuntura socioeconômica e política brasileira no período de sua existência. Na terceira parte, por meio da pesquisa documental, buscamos mostrar as sistematizações do MST em busca de uma pedagogia do trabalho por meio das escolas dos assentamentos. Nas considerações finais elencamos alguns desafios que se colocam para o movimento no que toca à agroecologia como modelo de produção e trabalho para a construção do projeto político histórico.


O processo de desenvolvimento sócio-histórico do MST


No início da década de 1980, ainda sob forte vigilância da ditadura militar, o

processo de organização política, sindical e popular era imenso, fazendo com que as lutas pelos direitos e, dentre eles, o acesso à terra e ao trabalho demandasse novas formas de organização. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, organizado ainda por dentro do movimento sindical rural, destacou-se pela sua capacidade de enfrentamento e conquistas frente aos latifúndios.

A presença desse novo “sujeito coletivo” na História da luta pela terra, no cenário nacional, chamou a atenção pelas suas características e métodos de organização, forjados sobre a tradição da terra como mercadoria, a luta de resistência dos posseiros, a repressão policial e o conservadorismo das diretorias dos sindicatos rurais. Por isso, o processo de organização do MST, apesar de espelhar-se em diversas experiências locais e internacionais, teve que ser a referência de si mesmo, pois, ao mesmo tempo em que formava a sua força ativa, formava-se como estrutura inovadora de organização.

Esse fazer e fazer-se com características diferenciadas, próprias ou ressignificadas dos processos anteriores, seguiu oportunamente realizando três combinações nas práticas inovadoras na luta de classes, a saber: a) a cobrança das dívidas sociais, b) a ocupação de lugar e c) a mística transformativa.

Em relação à cobrança das dívidas sociais, consideramos que a concentração da terra no longo período da colonização brasileira fizera com que não apenas o direito ao trabalho fosse vilipendiado, mas, junto a ele, o direito à escolarização, a formação profissional, o desejo dos jovens de constituir família ao alcançarem a maioridade e, não menos importante, o desejo de ter acesso e o reconhecimento da propriedade individual da terra para dela extrair a própria subsistência.

O processo de transformação do indivíduo como sujeito da ação, na interação com a coletividade, permitia formar o movimento organicamente e, por meio da divisão social das tarefas e dos cursos de formação, avançou-se rapidamente para a formação de novas lideranças, convictas de que era necessário, junto com a conquista da terra, realizar a transformação da sociedade capitalista.

A unidade de ideias e de ações em busca das mudanças estruturais da propriedade da terra e da sociedade, fazia superar as disputas menores e as possíveis desavenças surgidas naquela trajetória, um pouco semelhante ao que disse Walter Benjamin quando extraiu de Lotze a emblemática consideração, a qual

declara que: “Entre os atributos mais surpreendentes da alma humana... está, ao lado de tanto egoísmo individual, uma ausência geral de inveja de cada presente com relação a seu futuro”.(1994, p. 222). Portanto, não se tratava dos Sem Terra não serem sujeitos egoístas, temporariamente organizados coletivamente, mas de indivíduos despidos de inveja competitiva, confiantes na promessa de que, “se permanecessem organizados”, todos os envolvidos seriam proprietários de terra.

As dívidas históricas acumuladas pelo Estado contra as populações pobres do campo não se referem às relações de compra e venda, são dívidas criadas e não pagas, pela não efetivação das promessas feitas, primeiro pelo Império, depois pela República. Logo, na década de 1980, os pobres do campo poderiam ter dito: “somos tocados por um sopro de ar que foi respirado antes” (BENJAMIN, 1994, p.223). Ar respirado por quem? Pelos índios massacrados como se fossem inimigos do mundo civilizado; pelos negros escravizados que, ao receberem a notícia da assinatura da lei Áurea, ao mesmo tempo foram informados que a terra agricultável já não os queria como habitantes; e também os descendentes de imigrantes europeus que viram os seus pais e avós constituírem famílias com numerosos filhos, serem impedidos de reproduzirem a mesma trajetória familiar por “falta” de terra.

O ar respirado na década de 1980 já havia sido respirado por diversas gerações que cobravam o atendimento às suas necessidades, mas aquele ar que exalava o cheiro de inúmeras decepções, também aproximava os antepassados dos seus descendentes, que passaram a se denominar como herdeiros, não de coisas, mas de bravura, revolta e resistência. Desse modo, sujeitos maltrapilhos evocavam com gritos de denúncia todas as dívidas anotadas nas paredes daquelas consciências sofredoras e exaltavam os heroicos cobradores dos quilombos destruídos; de Canudos incendiado; do Contestado bombardeado pelos aviões do capital transnacional; das Ligas Camponesas perseguidas e proibidas e, junto, todos os direitos e valores dos líderes, como Zumbi dos Palmares, Antônio Conselheiro, José Maria, João Pedro Teixeira e outros, impedidos de serem universalizados pela truculência do poder dominante.

O mesmo ar da dominação diversas vezes respirado, a partir de 1980 nos mostra na sequência que pouco de transformação e qualidade de vida alcançou-se após três décadas de tanta luta. Em relação a isto, dados de 2010 do Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM) revelam-nos que, apesar do avanço do

agronegócio, o campo está abaixo da cidade em diversos pontos – de 0,586 contra o outro, que é de 0,750. Uma comparação comprovadora disso se dá quando se observa a renda das famílias urbanas e rurais. Enquanto na cidade ela chega a quase um salário mínimo por família, na agricultura é ainda mais baixa e o valor alcançado é de R$ 312,74 (trezentos e doze reais e setenta e quatro centavos). É disso que nos falam os números da pesquisa do IBGE que apresenta os dados de 2018, mostrando que, em 2017, 54,8 milhões de pessoas viviam abaixo da linha da pobreza.

Em relação ao controle do território e a posse da terra no Brasil, tivemos dois eventos criadores da dívida e o impedimento ao acesso à terra, que foi a divisão do país em capitanias hereditárias seguido da doação de donatarias, como também a aprovação da Lei número 601 de 1850, que ficou conhecida como a “Lei de terras”, quando, por ocasião da sua aprovação, a terra juridicamente ficou inacessível a quem não pudesse comprá-la. Assim sendo, “A Lei nº 601, de 1850, foi então o batistério do latifúndio no Brasil” (STÉDILE, 2011, p. 23).

O Censo Agropecuário de 2017 revelou com maior precisão no que consiste a concentração da propriedade da terra na atualidade. Dos 5.072.152 de estabelecimentos, 4,1 milhões ocupam 12,8% da área total produtiva, ao passo que 2,4 mil fazendas detêm 51,8 milhões de hectares.

Essa brutal dívida de negação dos direitos, também encontramos na educação. Os dados da escolaridade no campo são gritantes quando mostram o analfabetismo e o baixo desempenho escolar: 25,8% da população rural adulta (de 15 anos ou mais) é analfabeta, enquanto na zona urbana essa taxa é de 8,7%. (MEC/PRONACAMPO, 2012)

Quanto à formação de professores, do total de 342.845 professores no campo, 160.317 possuem educação superior; 156.190 possuem apenas o ensino médio e 4.127 ensinam tendo somente cursado o ensino fundamental. No que diz respeito ao Ensino Médio, entre os jovens de 15 a 17 anos, pouco mais de um quinto nessa faixa etária (22,1%) estão frequentando esse nível de ensino contra 49,4% na zona urbana (MEC/PRONACAMPO, 2012).

O segundo aspecto, que se refere a “ocupação de lugar”, diz respeito a uma simplificada forma, quando os trabalhadores Sem Terra organizados no MST inseriram-se como sujeitos sociais e políticos sem desagradar as forças já

existentes, como igrejas, sindicatos, partidos políticos, Organizações não governamentais etc., atuantes ou burocratizadas, formadas antes ou durante a década de 1980. A clareza dos objetivos a serem alcançados pelo MST, partindo dos referenciais de que “a terra esteja nas mãos de quem nela trabalha”; lutar por uma sociedade sem exploradores nem explorados; ser um movimento autônomo dentro do movimento sindical; organizar os trabalhadores na base; estimular a participação dos trabalhadores no sindicato e no partido político; formar lideranças e articular-se com os trabalhadores da cidade e da América Latina; (MST, 1986b), demonstrava que o movimento não surgia para disputar espaço com outras forças aliadas, mas para preencher um lugar para o qual ele fora escalado pelo espaço aberto pela História.

Se a história da luta pela redemocratização do Brasil havia “guardado o lugar” para uma nova construção com aqueles que desejavam profundamente a posse da terra, o MST surgiu para ocupá-lo e o fez segurando nas mãos das Igrejas que atuavam por meio da Pastoral da Terra - CPT, das Comunidades Eclesiais de Base - CEBs; dos Sindicatos e oposições sindicais rurais - STR e em estreita sintonia com o Partido dos Trabalhadores - PT e da Central Única dos Trabalhadores - CUT.

A inovação metodológica do fazer da luta social, a humildade da militância e a generosidade dos apoios de entidades e dirigentes sindicais, conscientes da necessidade de um novo tipo de organização, abriram as portas para que essa nova força se estruturasse sob o comando da solidariedade política.

A maneira simples, mas solidamente organizada de se fazer uma ocupação de terra que, no escuro silencioso da noite fazia nascer uma verdadeira ordem de luta e, antes do raiar do primeiro dia, já estava organicamente estruturada; a coordenação, toda ela formada por comissões como segurança, saúde, educação, trabalho, comunicação, formação, e outras; tudo isso cativava, não apenas consciências envolvidas nas responsabilidades, mas também aquelas que à distância esperavam pelo pior.

Praticar um ato de desobediência, afrontar a lei e a “moral” do direito sagrado da propriedade privada da terra, e ir, com representantes, muitas vezes maltrapilhos, até o palácio do governo estadual exigir providências, com uma pauta de reivindicação bem organizada, demonstrava que aquele lugar, antes ocupado somente por autoridades, tinha que abrir espaço para a chegada desse novo sujeito

coletivo.

Na mesa de negociação encurtava-se a distância entre governantes e governados e as formas de tratamento, em linguagem coloquial, simplificavam os títulos e os cargos para identificarem-se com tarefas a serem executadas. Ao governador cabia suspender o despejo, não enviando a polícia para realizá-lo; aos secretários de estado, a assistência; ao INCRA, a vistoria da área para desapropriá- la e aos trabalhadores, a garantia da organização interna do acampamento. E, na saída, aqueles que sempre haviam sido rejeitados e esquecidos eram procurados nas portas das repartições pelos jornalistas para contarem o que haviam acertado.

Naquelas situações realizava-se aquilo que Marx e Engels haviam descoberto em 1845, que “os homens são produtores de suas representações...” (2009, p.94). As representações nos dois sentidos: aquelas de que o esquecido e humilhado, ao respirar o ar de antepassados derrotados, não se intimidava e representava a si e a todos os que o aguardavam para saberem “das notícias”. No segundo sentido, as representações das próprias ideias e imaginações de como seria a sensação de ser uma autoridade, liderança e defensor de uma organização, como eram os líderes partidários perseguidos pela classe dominante.

Era o lugar da disputa que propiciava todas essas sensações ao mesmo tempo, engrandecendo por fora aqueles que se faziam notar e deixando a dúvida por dentro, se havia preparo suficiente para enfrentar as plateias, para expor teorias e contestar acusações. O que despertava, então, o interesse pelo estudo, pelo curso de oratória e pelos livros nunca lidos.

O terceiro aspecto refere-se à mística4 transformativa - Era a ocupação da terra o lugar social que despertava a mística de fazer-se sujeito da ação e também eticamente bom. Entregar-se por inteiro e estar a serviço da luta era uma decisão instantânea. Aceitar os sacrifícios e transformá-los em aprendizado de


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4 Mística significa, o conjunto de convicções profundas, as visões grandiosas e as paixões fortes que mobilizam pessoas e movimentos na vontade de mudanças, inspiram práticas capazes de afrontar quaisquer dificuldades ou sustentam a esperança face aos fracassos históricos. (BOFF, 1999, p.24). Ainda de acordo com Boff a mística político-social está vinculada a uma utopia “capacidade de projetar, a partir das potencialidades do real, novos sonhos, modelos alternativos e projetos diferentes de história [...] desfatalizam a história, não reconhecem como ditado da história a situação injusta imposta e mantida pelas forças opressoras” (p.24). Para Caldart (2001) a Mística é a força, a energia cotidiana que tem animado a família Sem Terra a continuar na luta, ajudando cada pessoa a enxergar e a manter a utopia coletiva. A mística é aquele sentimento materializado em símbolos, que nos faz sentir que não estamos sozinhos e são os laços que nos unem a outros lutadores que nos dão mais força para prosseguir na construção de um projeto coletivo (CALDART, 2001. p.29).

resistência tornava-se um princípio orientador da conduta. Aprender a confiar em pessoas que antes eram todas “estranhas”, e juntas formarem a comissão de segurança para zelar pela vida e pelo sono de grandes massas que descansavam no intervalo de alguma batalha, elevava a autoestima pessoal como se uma promoção tivesse acontecido.

A mística de ir buscar pessoalmente a resposta por meio de uma longa marcha, transformando as rodovias em lugares de protestos, passou a ser fortalecida. As marchas longas e desgastantes criavam pelo caminho novas amizades com pessoas solidárias que ofereciam água, acenos, abraços e desejavam sucesso.

No processo formativo individual e coletivo cabia a preocupação com a produção de alimentos na terra conquistada. A necessidade de trabalhar e produzir o próprio alimento na nova terra, mesmo antes de ser desacorrentada da posse do latifundiário, convidava ao plantio. Era o tempo de trabalho, luta social e aprendizado coletivo. De refletir valores. Ser cordiais com a terra e com ascompanhias humanas. Tempo de abandonar as queimadas e não fazer uso de venenos. E a terra respondia assegurando o ciclo de cada cultura de dias, meses e anos. O fazer-se humano também passou pela convivência, por novas formas de trabalho, produção e educação.


Dilemas, contradições e possibilidades


Ao tratarmos do trabalho e das formas de produção vem-nos logo à mente os primeiros escritos de Marx e Engels, ainda em A ideologia alemã (1845) quando falaram de Feuerbach e a história, e ali esclareceram que os “sábios filósofos” não haviam feito a libertação do homem avançar nenhum passo por terem esclarecido as “fraseologias” da dominação. Sentenciaram que só é possível conquistar a libertação real no mundo real pelo emprego de meios reais e que a escravidão não podia ser superada sem a máquina a vapor, nem a servidão sem a melhora da agricultura. “A “libertação” é um ato histórico e não um ato de pensamento e é ocasionada por condições históricas, pelas condições da indústria, do comércio, da agricultura, do intercâmbio...” (MARX/ENGELS 2009, p. 29).

Para o MST, as necessidades materiais de sua formação exigiram a

implementação de atos “históricos” (no sentido marxiano) contra o latifúndio, que, na época, ainda não estava tomado pelo agronegócio, embora a sua base tecnológica de agribusiness originada na matriz norte-americana da “revolução verde”, já estivesse se disseminando em algumas regiões do país.

Ainda sem a força do agronegócio, dois estorvos associados ao latifúndio ofendiam aos setores conservadores da sociedade: a improdutividade e o uso da violência. Devido à perseguição e a repressão policial em algumas regiões do país, parte das conquistas se deram também em áreas de florestas que serviam de proteção. Mesmo nas regiões mais devastadas, os acampamentos sempre foram estruturados em manchas de reservas de mata ou capoeiras.

As práticas produtivas culturalmente assimiladas, após a terra conquistada, subdividiam-se ancorando-se em dois ramais de um mesmo processo: artesanal e semiconvencional, combinados com a força de trabalho familiar, como também em “grupos coletivos” e, por outro lado, empregavam-se alguns dos componentes da “revolução verde” como, tratores, adubos, sementes híbridas e agrotóxicos. Não havia ainda a preocupação com a preservação das florestas e a consciência do uso de técnicas agroindustriais, embora, espontaneamente, no Norte e Nordeste do Brasil, essas práticas fossem comuns.

No início da década de 1990, quando o agronegócio dava os primeiros sinais de sua pujança, as análises apontavam para a tendência da modernização rápida da agricultura, conforme se pode ver no “Documento básico” do MST que contém as diretrizes básicas para o período de 1989-1993, publicado em março de 1991. Destaca o documento que o processo de modernização, além da concentração das terras, intensificou a mecanização agrícola; ampliou a utilização de adubos químicos e venenos; expandiu o crédito rural para investimentos e custeios para produzir produtos destinados à exportação. Apontou também para o avanço da agroindústria, com o oferecimento de produtos para o mercado interno e a influência sobre os pequenos produtores por meio da produção de sementes, mudas melhoradas e matrizes animais, bem como a expansão dos plantios de florestas homogêneas, como eucaliptos e o uso irracional dos solos, dos recursos naturais, desequilibrando o meio ambiente. Isso tudo representava a inovação tecnológica com o emprego da informática e de outras áreas da ciência.

Se olharmos para a progressão posterior da agricultura, aquilo que estava

sendo vislumbrado, nem de longe chegaria a ser o que hoje presenciamos. Podemos ter uma ideia da evolução da agricultura capitalista, se observarmos o crescimento da produção de grãos efetivada no Brasil, a partir de 1980. O quadro abaixo nos revela o ano e os milhões de toneladas de grãos produzidas.


Quadro 01- Milhões de toneladas produzidas por ano


1980

1990

2000

2005

2010

2015

2017

50,8

58,2

83,0

144,7

149,2

207,7

238,0

Fonte: Quadro construído pelos autores com base em dados expostos nos boletins da CONAB.


Pelo quadro acima podemos ver que, entre a década de 1980 e 1990, período em que nasceu e se desenvolveu o MST por todo o país, o volume de produção na agricultura cresceu apenas 7,4 milhões de toneladas. Na década seguinte, conforme revela a análise acima, a modernização tecnológica fez com que de 1990-2000 a produtividade crescesse 24,8 milhões de toneladas de grãos. Foi quando a luta pela terra elevou o seu patamar de disputa e passou a ser uma verdadeira luta pela reforma agrária. Assim passou a ser visto o processo futuro. “Portanto, a realização de uma ampla reforma agrária está vinculada à mudança do atual sistema econômico e terá necessariamente, um caráter socialista” (MST, Documento Básico, 1991, p.20).

O percurso entre o nascimento e o amadurecimento do MST foi muito rápido. Nasceu em 1984 com a determinação de democratizar a posse da terra, tendo como orientação a palavra de ordem formulada para o primeiro congresso realizado em janeiro de 1985, em Curitiba, no Paraná: “Sem terra não há democracia”. Revelaria essa intencionalidade que, praticamente nos 5 anos restantes da década, sob um governo de transição, o empenho da militância voltar-se-ia para estruturar o movimento em todas as regiões do Brasil, por meio da luta contra o latifúndio e, obrigatoriamente, inserir-se nas lutas mais amplas como a eleição da Assembleia Nacional Constituinte nas eleições parlamentares de 1986.

As mudanças de estratégias vieram nas primeiras tentativas de implantação do modelo neoliberal, por meio do governo de Fernando Collor de Melo, juntamente com a tendência de modernização da agricultura, apontada pela presença do agronegócio. Estes fatos levaram à realização do Segundo Congresso Nacional, em

1990, no qual foi afirmada uma nova posição de luta. A palavra de ordem expressava que, para enfrentar aquele momento, era preciso “Ocupar, resistir e produzir”.

Naquela ocasião, a discussão sobre o trabalho e a produção nos assentamentos, constantes no “Documento básico do MST”, apontou como linhas políticas, dentre outras, que para alcançar o desenvolvimento rural era preciso: “Desenvolver a produção, em maior escala, de produtos agropecuários e agroindustrializados que viabilizem os assentamentos, com mercado e preços compensadores” (MST, 1991, p. 54). Também apontava para a necessidade da mecanização agrícola; a centralização dos negócios de compra e venda e estimulava a formação de agrovilas.

Relacionado ao desenvolvimento do trabalho cooperativo, o documento liberava para a organização de todas as formas de cooperação, sendo “rígido na aplicação dos princípios e flexível em relação às formas” (1991, p. 55). Não aparece ainda, nesse plano “quinquenal” (1989-1993) a preocupação com a agroecologia e a preservação permanente da terra e da natureza.

Vinculada à estratégia de luta e resistência crescia a articulação internacional das organizações camponesas que, já em 1993, davam os primeiros passos para a criação da Via Campesina5. Esta sim, por meio de seus encontros, passou a definir uma pauta internacional comum de luta contra os agrotóxicos e pela defesa da agroecologia.

Foi nesse período da segunda metade da década de 1990 que aconteceram os massacres de Corumbiara (1995)6 e Carajás (1996)7. O Terceiro Congresso,


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5 La Vía Campesina é um movimento internacional que articula 150 organizações em 70 países e se considera como um “movimento autônomo, pluralista e multicultural, sem nenhuma filiação política, econômica ou de qualquer outro tipo.” O objetivo da Via Campesina é de estabelecer uma articulação, comunicação e uma coordenação de atividades em comum a nível mundial e regional. (VIA CAMPESINA, 2011).

6 Conflito ocorrido no dia 09/08/1995, às duas horas da madrugada entre 300 policiais do COE (tropa de elite) e trabalhadores acampados na Fazenda Santa Elina, em Corumbiara (RO). Neste conflito, houve aproximadamente 20 trabalhadores desaparecidos, 350 ficaram gravemente feridos, 200 presos e 8 mortos, incluindo uma criança.

7 O conflito conhecido como Massacre de Eldorado do Carajás consistiu no assassinato de dezenove trabalhadores rurais sem-terra, mais de 60 trabalhadores feridos e ocorreu em 17 de abril de 1996 na curva do S, no município de Eldorado do Carajás, no sudeste do estado do Pará, decorrente da ação violenta da polícia Militar do citado estado. Os trabalhadores do Movimento dos Sem Terra faziam uma caminhada até a cidade de Belém, quando foram impedidos pela polícia de prosseguir. Mais de

150 policiais – armados de fuzis, com munições reais e sem identificação nas fardas – foram destacados para interromper a caminhada, o que levou a uma ação repressiva extremamente violenta e na morte dos trabalhadores. Vinte anos depois, apenas dois comandantes da operação foram condenados – Coronel Mario Colares Pantoja, condenado a 258 anos, e Major Oliveira, condenado a 158 anos – e estão presos desde 2012. Nenhum policial ou autoridade política foi responsabilizado.

realizado em 1995, apontava para isso e a sensibilidade política havia detectado que a tentativa de isolamento dos movimentos do campo, sob o governo neoliberal de Fernando Henrique Cardoso, era evidente. Por isso, a palavra de ordem orientadora foi: “Reforma agrária, uma luta de todos”. O objetivo era envolver todas as forças sociais para o enfrentamento com o neoliberalismo.

Nesse contexto de luta e resistência é que o MST decidiu deslocar o desfecho das suas disputas para as questões do campo para o território urbano e afirmou-se pela realização de grandes marchas em direção às capitais dos Estados e do País, chegando em 17 de abril de 1997 com 100 mil marchantes na capital federal8.

No entanto, aquilo que parecia ser um avanço político para o Movimento, esbarrou se no modelo neoliberal implementado com vigor pelo governo de Fernando Henrique Cardoso, limitando os resultados esperados pelo citado movimento. Somando-se a isso, as demais forças de esquerdas como as centrais sindicais, enfraquecidas pela remodelação do mundo do trabalho, cuidavam das suas demandas; o Partido dos Trabalhadores teimava em disputar a presidência da República, flexibilizando os seus princípios e via a radicalização dos movimentos do campo com certo incômodo e pouco se envolvia nos plebiscitos populares convocados contra o pagamento da dívida externa e a implementação da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA), contra a privatização da Companhia Vale do Rio Doce, dentre outros.

Com a chegada do Partido dos trabalhadores ao governo, foram adotadas medidas de valorização da grande produção em vistas a exportação de produtos


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No local onde o massacre ocorreu, hoje está estabelecido o Assentamento 17 de Abril. A maioria dos moradores são sobreviventes da chacina e familiares das vítimas. A data do massacre acabou sendo escolhida pela Via Campesina, organização internacional de camponeses, como o Dia Internacional de Luta pela Terra. Desde então, abril também é marcado como o mês em que são intensificadas as lutas por terras pelo Movimento Sem Terra. É, ainda, uma forma de camponeses e camponesas se unirem para lembrar a data e homenagear as vítimas do massacre. Fonte: http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/588453-17-de-abril-as-marcas-de-um-massacre.

8 Diante da expressão pública adquirida pelo MST com o sucesso da marcha de 1997, a queda do bloco socialista no Leste da Europa e o esvaziamento da luta pelo socialismo pelas forças de esquerda em todo o continente, o movimento se propôs a convocar o conjunto das forças populares, sindicais e políticas para uma “consulta”, mas a intenção era elaborar um “Projeto Popular para o Brasil”. O resultado rendeu um consenso rebaixado, principalmente porque cada força assumia o seu modo de ver a conjuntura e, na sua grande maioria seguiram a estratégia petista de disputar as eleições do ano de 2002. A consulta entre as forças de 1997, no entanto, afirmou a criação de uma articulação política denominada de “Consulta Popular” que, por repetir os mesmos rituais das demais organizações reformistas não se afirmou como uma novidade política. Essa suposta divisão de funções enfraqueceu o MST e o fez também relegar as discussões socialistas para um segundo plano. Aos poucos, foi também se acomodando internamente na estratégia petista para as disputas eleitorais vindouras.

agrícolas e com isso desferiu-se o golpe mortal no processo de reforma agrária. O novo governo, confiante no potencial produtivo do campo brasileiro, intuindo que poderia abrir novos mercados para os produtos agrícolas, ofereceu aos capitalistas as condições básicas para que, em dois ou três anos de governo, a produtividade de grãos dobrasse a quantidade. Do outro lado, o MST, em 2005, tendo até então sido atendido apenas nos aspectos auxiliares por meio das políticas públicas (escolas, convênios para alfabetização de adultos, programas como Pronera) e desatendido no seu eixo estrutural de renovação da força, pela não desapropriação de terras, tentou reverter a política pela pressão por meio da sensibilização social, com uma marcha de quase 20 dias, saindo de Goiânia a Brasília, com 12 mil caminhantes. Mas o efeito foi completamente diferente daquele atingido em 1997(durante o governo FHC). Do contrário, ao chegar em Brasília, não havia ninguém esperando e o governo, após intensas negociações, atendeu verbalmente algumas demandas que serviram como estímulo momentâneo e de satisfação aos que haviam caminhado para voltarem para os seus estados, sem que vissem qualquer ofensiva contra o capital, pois as terras agricultáveis do país estavam reservadas para o agronegócio.

Tendo em vista a afirmação de um rumo sustentável, no ano de 2006, a militância foi convocada a fazer um mutirão de discussão em todos os assentamentos e acampamentos com um documento síntese dos debates feitos entre 2001-2006, “A reforma agrária necessária: por um projeto popular para a agricultura brasileira”. Nesse debate apareceram os limites e as contribuições de experiências agroecológicas já desenvolvidas e apontou-se para as tarefas a serem desenvolvidas.

Diante de uma conjuntura desfavorável, o MST se volta prioritariamente para as formas de produção, como aparece no documento: “Romper com a monocultura e promover uma agricultura diversificada, sustentável em bases agroecológicas, sem agrotóxicos, gerando alimentos saudáveis...” (2006, p. 26). A isso se soma também as orientações para o “novo modelo tecnológico” que se volta para “desenvolver programas massivos de formação em agroecologia, em todos os níveis, desde o ensino fundamental até a universidade, para atender a juventude do campo...” (2006,

p. 28). Esse processo considera que a educação deve estar voltada para a pesquisa participativa, o intercâmbio entre agricultores/as; o programa popular de

agrobiodiversidade; o programa florestal e para criar um organismo público de certificação, controle e fiscalização de todos os produtos alimentícios agroecológicos.

Por outro lado, o governo não demonstrou sinais de inclinar-se para frear os avanços do agronegócio e a demonstração do modelo econômico adotado para favorecer o grande capital. Foi nos governos de Lula e Dilma que se deu basicamente o oferecimento mais expressivo de créditos subsidiados para o agronegócio. Os valores passaram de 27,6 bilhões de reais no final do governo de FHC, em 2002, para 156,1 bilhões de reais em 2014, conforme destaca o Instituto Lula9, no final do primeiro governo de Dilma. Para a agricultura familiar a evolução dos créditos também fora generosa, pois saltou de 2,9 bilhões de reais em 2002 para 24,1 bilhões em 2014.

Para além disso, o agronegócio não fora beneficiado somente com os créditos, mas tinha à sua frente um governo que abria mercados para os seus produtos, nos continentes asiático e africano, como também favorecia as práticas biocidas contra a natureza, encaminhado ao congresso leis, dentre elas a lei 11.105/05, conhecida como “Lei da biossegurança”, assinada em 2005 e que liberou a produção de Organismos Geneticamente Modificados ou organismos transgênicos que favoreceu ao setor.

Em 2007, o MST convocou o seu 5º Congresso com a palavra de ordem “Reforma agrária por justiça social e soberania popular”. Na verdade, desaparece a decisão do enfrentamento político com o governo, pois acreditava-se que ele “estava em disputa com os setores conservadores”.

Apesar das posições “ofensivas” não se constituiu em uma oposição frontal e completa ao agronegócio, pois a matriz produtiva utilizada, em geral ainda era a mesma originada na revolução verde: mecanização, insumos, venenos e, em muitos casos, também usavam-se as sementes geneticamente modificadas nos plantios dos assentamentos. Em outubro de 2013, após as mobilizações de protestos contra o governo, a presidente Dilma, na busca de manter os movimentos do campo a seu lado e não conflitar com os proprietários de terra, lançou o Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica, com um valor pífio de créditos, de 8,8 bilhões de reais para três anos, quase nada comparando com os créditos dados para o



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9 www.brasildamudança.com.br/agronegocio/agronegocio/acesso em 23/02/2019

agronegócio.

Em 2014, no final do governo Dilma, com as desapropriações de terra praticamente encerradas, houve a convocação do 6º Congresso nacional. O MST formulou uma palavra de ordem controvertida: “Lutar, construir a reforma agrária popular”. No interior do Movimento prosseguem iniciativas razoáveis de produção agroecológica localizadas no Rio Grande dos Sul e no Paraná, mas ainda permanecem sem um projeto político, de modo que essas iniciativas tendem a se inserir no mundo do mercado capitalista.

Nesse contexto, o MST, com a força política reduzida para contestar um projeto ainda em expansão do grande capital na agricultura, passou definitivamente a buscar na alternativa da produção agroecológica, mostrar um contraponto alertando para os perigos do uso abusivo de agrotóxicos e o consumo de alimentos transgênicos. Tem consciência porém, de todo o potencial que o agronegócio ainda guarda consigo e, por isso, defende que o momento exige novas posturas:


Os enfrentamentos com o capital, e seu modelo de agricultura, partem das disputas das terras e do território. Mas se ampliam para as disputas sobre o controle das sementes, da agroindústria, da tecnologia, dos bens da natureza, da biodiversidade, das águas e das florestas.( MST, 2013, p. 32).


É sensível a intenção da busca de alternativas de lutas e enfrentamentos com o agronegócio, mas elas esbarram nas dificuldades reais do acúmulo de forças, por isso as saídas tendem para a organização coletiva do trabalho, bem como da educação voltada para a qualificação técnica.


A educação no MST: em busca de uma pedagogia do trabalho


O MST se define como uma organização que luta pela democratização da terra e faz disso uma luta também pelo trabalho. De modo que o Movimento tem buscado, ao longo de sua história, relacionar a luta pelo acesso a terra, o trabalho e a educação.

A Educação escolar constitui uma dimensão incorporada à luta pela terra no MST – em todos os acampamentos e assentamentos há escolas. As experiências educativas do MST constituem-se de: Educação escolar em todos os níveis; Educação de Jovens e Adultos; Formação dos Educadores; Encontro dos sem

terrinha; Cirandas infantis; mobilizações por escolas; Escolas itinerantes; cursos formais.

Como demonstrado nos dados anteriores sobre a educação dos povos do campo, a base social que integra o MST vem de uma população expropriada de basicamente todos os bens materiais e simbólicos, não apenas do direito à terra, mas também à educação, saúde, lazer, descanso, crédito, trabalho e outros. Portanto, a conquista da terra é o primeiro passo em direção à construção de um novo ser humano em todas as dimensões.

Assim, ao lado da luta pela socialização da terra contra a propriedade privada, o MST prioriza também a formação da consciência e esta perpassa o acesso à educação e ao conhecimento, indo ao encontro da argumentação de Lênin (1986), quando ele afirma que a revolução não se constrói com ignorantes, ou melhor, para construir outra sociedade é preciso que os trabalhadores tenham conhecimento para além do senso comum e o domínio do conhecimento científico.

Legitimando esta posição, o MST, no 6º Encontro nacional, realizado em Piracicaba (1991), aprovou as linhas políticas gerais da educação e, entre elas, constam também as orientações para a educação nas escolas do MST. As linhas políticas afirmam, entre outras questões, que é preciso desenvolver uma educação com base na realidade, nas experiências acumuladas e preparar crítica e criativamente para a participação nos processos de mudanças da sociedade. De forma coletiva, construir conhecimentos científicos mínimos para o avanço da produção, ampliando e fortalecendo a relação entre escola e assentamento.

Dos princípios elencados, o primeiro é Ter o trabalho e a organização coletiva como valores educativos fundamentais. (MST, documento básico, 1991). Na atualidade, o MST possui uma proposta de educação consolidada, que foi construída historicamente e se encontra sistematizada em vários documentos.

Nesse percurso histórico, o MST tem defendido uma nova concepção de escola pública, gratuita e mantida pelo Estado, mas orientada, de acordo com os interesses dos trabalhadores Sem Terra, conforme defendeu Marx (1992), ainda no século XIX ao falar sobre educação e ensino na Associação Internacional dos Trabalhadores: ela deve ser uma escola pública, gratuita, porém sem o controle ou a intervenção do Estado, a não ser no seu financiamento.

Ao examinarmos os documentos publicados pelo MST no tocante à relação

entre educação e trabalho, verificamos que, desde o início, há uma preocupação permanente em definir que tipo de educação e de trabalho estavam sendo almejados. Nos escritos iniciais sobre a educação, constata-se a preocupação com a dimensão formativa do trabalho. No Caderno de Formação número 18, publicado em julho de 1991, com o título “O que queremos com as escolas dos assentamentosé possível constatar a dimensão educativa do trabalho proposta pelo MST.

Os objetivos traçados para as escolas dos assentamentos vinculados ao Movimento são descritos de maneira resumida: Ensinar a ler, escrever e calcular a realidade; Ensinar a fazer fazendo, isto é pela prática; Construir o novo; Preparar igualmente para o trabalho manual e intelectual; Ensinar a realidade local e geral; Gerar sujeitos da história e preocupar-se com a pessoa integral.

Os princípios pedagógicos são enumerados como orientações e conclamando a todos e todas sem terra às atividades educativas misturadas ao trabalho e à organização coletiva: 1) Todos ao trabalho; 2) Todos se organizando; 3)Todos participando; 4) Todo o assentamento na escola e toda a escola no assentamento; 5) Todo o ensino partindo da prática; 6) Todo professor é um militante; e 7) Todos se educando para o novo (MST, 2005, p.37).

Observa-se, ainda, que os princípios traçados pelo MST para as escolas de assentamentos, além de vincular a escola com o trabalho, enfatiza outros aspectos formativos como: a organização coletiva, a participação, a vinculação com a realidade, a prática, além de convocar os educadores à militância, vislumbrando a educação de todos para o novo. Tais preocupações podem ser também constatadas no Boletim da Educação n° 01, publicado em 1992; o documento deixa clara a função da escola de assentamento e a preparação para o trabalho quando afirma que


A escola de assentamento deve preparar as crianças para o trabalho no meio rural; a escola deve preparar para a cooperação, ser coletiva e democrática, qualificar as experiências de trabalho produtivo das crianças no assentamento. O ensino deve partir da prática e levar ao conhecimento científico da realidade. (MST, 2005, p. 39).


A preocupação do MST com a vinculação da escola ao trabalho aparece conectada à realidade, à coletividade, à cooperação e aos valores humanistas. Para o MST, o grande papel da escola é “ajudar no processo de educação do coletivo, criando condições objetivas para que as crianças se capacitem para a organização

coletiva, para a cooperação” (MST, 2005, p. 41).

Para orientar as escolas na elaboração dos currículos foi publicado o Caderno de Educação n° 01, com o título: “Como fazer a escola que queremos”. Neste caderno o MST deixa clara a sua compreensão de currículo e propõe romper com a forma de currículo apenas centrada em lista de conteúdos. Destaca a importância do planejamento e, neste processo, reafirma a importância da vinculação entre estudo e trabalho, propondo que as crianças aprendam, estudem, se eduquem através do trabalho.

A dimensão educativa do trabalho tem destaque especial no Boletim da Educação nº. 4, intitulado “Escola, Trabalho e Cooperação”, publicado em maio de 1994. Este documento traz uma reflexão sobre o trabalho enquanto princípio educativo, argumentando que o que mais educa as pessoas é a sua ação, a sua prática do dia-a-dia, ou seja, “aprender fazer fazendo”; alerta que não há aí a exclusão da teoria, pelo contrário, a proposta é que exista sim uma teoria, mas que a mesma seja construída a partir de uma prática e visando retornar a ela. É a relação prática-teoria-prática, ou pedagogia da práxis. Outro argumento apresentado no documento é que o trabalho educa porque mexe com as várias dimensões importantes da formação humana, destacando como fundamentais as seguintes dimensões formativas do trabalho: A formação da consciência; produção de novos conhecimentos e habilidades; provocando necessidades humanas superiores (MST, 1994, p.5- 6). No tocante à relação escola e trabalho, o referido Boletim traz algumas indagações ao mesmo tempo que propõe reflexões acerca do trabalho e seu potencial pedagógico, questionando o porquê do trabalho na escola e já apresentando algumas respostas: pela potencialidade pedagógica do trabalho; porque a escola pode ajudar a tornar o trabalho dos alunos mais plenamente educativo, unindo teoria e prática. (MST, 1994)

O MST justifica ainda a relação da escola com o trabalho por duas razões: por ser um elemento formador da consciência e, em segundo lugar, porque ele ajuda a consolidar uma escola na perspectiva do movimento de luta social a serviço da luta da classe trabalhadora. Em síntese, o Movimento Sem Terra, ao propor uma escola do trabalho quer, de acordo com o Boletim nº 04:


Chamar atenção e dar ênfase para o sentido social da escola num acampamento ou assentamento; Educar para a cooperação agrícola; Preparar para o trabalho no meio rural; Desenvolver o

amor pelo trabalho e pelo meio rural; Provocar a necessidade de aprender e de criar; Preparar novas gerações para as mudanças sociais – para lutar pela sociedade sem explorados nem exploradores, e para viver esta nova sociedade. (MST, 2005, p. 95- 96).


O que se verifica expresso nos documentos acerca da relação trabalho e educação no MST é que a luta social motiva a necessidade da organização coletiva. Os documentos vislumbram desenvolver o trabalho, mas não de forma alienada, mediante a cooperação em diversas frentes, para que os objetivos da luta social sejam alcançados.

Desta forma, observa-se que há uma tentativa de evidenciar o aspecto formativo do trabalho e a necessidade de cooperação e organização coletiva, frutos dos aprendizados da luta e organização política desde as primeiras reuniões nos grupos de famílias, nas comunidades rurais para ocupação da terra e, posteriormente, na organização dos núcleos de base, encontros e cursos. Neste contexto é que o Movimento apreende o trabalho coletivo como indispensável à organização como um todo e em especial as escolas. Para o MST, a realidade objetiva requer “planejar coletivamente a produção; trabalhar, dividindo tarefas e responsabilidades; pensar no avanço do conjunto e não só da família de cada um; lutar juntos por escola, saúde, estrada, superar divergências, etc.” (MST, 1992, p. 3- 4). Nesta perspectiva, Vendramini realiza uma crítica à proposta educativa do MST, pois para ela, na educação do MST o trabalho enquanto princípio educativo é visto apenas na sua positividade:


Aparece como elemento educador e formador. É considerado um valor moral, no sentido de que o trabalho educa o ser humano, e todo Sem Terra deve por ele primar, compreendendo-o como dignificante, educativo, enobrecedor. (VENDRAMINI, 2002, p. 137).


Em pesquisas anteriores, Araújo constata (2007, 2010), sobre a educação no MST e seu vínculo com o trabalho, que há atividades laborais planejadas e desenvolvidas nas escolas do MST, no entanto, não se percebe uma discussão sobre a dimensão ontológica do trabalho, sobre a organização do trabalho na sociedade capitalista, ficando tais atividades apenas no âmbito do cumprimento de tarefas para reforçar a organização. Serve de ajuda e colaboração onde acontece a prática, buscando apenas cumprir um princípio pedagógico que está na proposta

educativa do Movimento, sem estabelecer uma relação direta entre o trabalho manual e o intelectual. Logo, a essência do trabalho esteve presente no modo de organizar as práticas educativas, mas, a nosso ver, faltam reflexões e debates acerca da sua função social e das contradições sobre o que é o trabalho na sociedade capitalista.

Constata-se também que, na maioria das escolas públicas que estão situadas nos assentamentos, a organização do tempo escolar é de apenas quatro horas, sendo que após este tempo cada estudante retorna para a sua casa e, quase sempre, trabalha na propriedade sob a orientação familiar. Desse modo, a organização do trabalho pedagógico se limita a cumprir tarefas nas escolas, muitas vezes de forma mecânica.

Na atualidade, o fato de o Movimento ter assumido a plataforma da agroecologia, esta vem se implantando nas escolas dos assentamentos, inclusive inserida no currículo escolar em alguns municípios brasileiros. Essas ações podem vir a se constituírem em avanços, dependendo da forma como se dará a vinculação entre a dimensão política e a dimensão agroecológica. Ou seja, as iniciativas são emancipadoras, mas as ações práticas, sem o condutor político ofensivo, não terão o vigor suficiente para fazer e manter a contestação ao agronegócio.

Para a concepção marxista de educação, a união trabalho e ensino não pode se reduzir a uma metodologia didático-pedagógica em sala de aula, ela deve identificar-se com a própria essência do ser humano. Neste sentido, uma educação que se pretenda emancipatória deve estar vinculada às transformações das condições de vida do grupo em que ela está inserida. Para isto, é preciso buscar incessantemente a universalização da educação e do trabalho como atividade humana auto-realizada, oposta à negação dos requisitos mínimos para a satisfação humana e a destruição produtiva. (MÈSZÁROS, 2005).

Ao desenvolver sua proposta educativa numa sociedade contraditória, o Movimento esbarra numa série de condicionantes advindas do modo de organização da produção da sociedade onde está inserido. Tonet mostra este dilema quando nos diz que


Certamente, podem-se estabelecer políticas educacionais mais ou menos progressistas e, por isso, a luta nessa esfera não deve ser menosprezada. Porém, o conjunto da educação só poderá adquirir um caráter predominantemente emancipador na medida em que a

matriz da sociabilidade emancipada – o trabalho associado – fizer pender a balança para o lado da efetiva superação da sociabilidade do capital [...] Propor, hoje, uma “educação emancipadora” não pode passar da simples projeção de um desejo, de um discurso humanista abstrato. O que é possível fazer, hoje, a nosso ver, são atividades educativas que apontem no sentido da emancipação. (TONET, s/d, p. 11) .


As tendências progressistas da educação contribuem para que na luta reivindicatória sejam negociados alguns direitos, no entanto, a função das organizações de classe é permanecer na luta de classes e fazer das conquistas reivindicadas mediações para o fortalecimento da luta pela superação do capitalismo.


Considerações finais


Diante do exposto, é importante ressaltarmos os limites das ideias geradas pelo contexto das contradições históricas, em parte impedidas de serem fortalecidas pela incapacidade de elaboração e implementação de um projeto político coordenado pelo MST e, em geral, pelos movimentos camponeses. Isso se deve também, em grande parte, pela submissão à estratégia das disputas eleitorais assumidas pelo Partido dos Trabalhadores. A expressão dessa referência partidária, moldada conjuntamente, barrou o caminho para qualquer iniciativa diferenciada desde o início da década de 1990 e continua a dificultar a passagem de novas iniciativas até os dias de hoje.

É importante reconhecer que as escolhas políticas nem sempre são facilitadas pelas contradições que se apresentam. O modo de produção capitalista tem por natureza a necessidade de promover superações constantes e avançar por meio das tendências que o constituem. O processo de acumulação de capital na agricultura, em detrimento dos programas de reforma agrária que perturbaram os governos civis, desde 1985 até 2018, se deu por intermédio de diferentes fatores integrados como: a concentração da propriedade da terra, o emprego da tecnologia a serviço do capital, a abertura do mercado externo e a participação ativa da legislação conservadora.

A pequena agricultura, apesar de suas grandes virtudes, para os capitalistas presentes no campo brasileiro ou fora dele, sempre cumpriu um papel marginal, isto porque, embora tendo as condições de produzir todos os tipos de alimentos o Brasil

sempre importou trigo, milho, algodão, mostrando que o cumprimento da função social da terra nunca foi levado totalmente a sério pelos governos, desde a fundação da república. Para além disso, embora o modo de produção capitalista seja composto por um sistema complexo de relações, a exploração da terra e da natureza sempre esteve embalada pelos interesses mercantis, nesse caso, absorvendo todas as formas de produção.

As formas de produção capitalistas, comandadas nas últimas décadas pelo agronegócio, tornaram-se hegemônicas. Elas determinam os rumos do desenvolvimento das forças produtivas cada vez menos acessíveis e inviáveis para os pequenos agricultores. Evidentemente, as formas de produção capitalista não estão desvinculadas das tendências do próprio capitalismo, apontadas por Marx (1982) como sendo a exploração, a reprodução, a concentração e a expansão do capital; tudo isto acompanhado por uma legislação sanguinária, conforme relatou Marx quando se referiu à expropriação ocorrida na Inglaterra no século XV. Em nossos dias, a natureza “sanguinária” da legislação está em liberalizar as atividades de ataque contra a natureza; o uso indiscriminado de agrotóxicos; a redução dos direitos dos trabalhadores, elevando o teto da idade para a aposentadoria; a redução do valor das pensões.

De outro lado, a agroecologia proposta pelas forças populares do campo, com suas formas de produção diferenciadas, não consegue se vincular às tendências não capitalistas que possam servir como fortalecimento do modo de produção oposto ao capitalismo. É um esforço venerável, mas sem força para impedir o avanço do modelo econômico dominante. Por esta demonstração, os desafios do MST e dos movimentos camponeses deveriam voltar-se para inverter o princípio estabelecido pelo capital, de que “o econômico comanda o processo político”, para fazer com que a “política comande a economia”. Não esquecendo que política se faz com ideias e ações desintegradoras das forças inimigas, caso contrário, a agroecologia e a educação tendem a desandar para um discurso puramente moralista, que não chegará sequer a imitar a experiência dos primeiros cristãos que resistiram por quase três séculos à perseguição romana, praticando as suas formas de vida religiosa, articuladas com as práticas políticas e conspirativas, voltadas contra o império decadente.

Esse comparativo entre épocas pode servir como demonstrativo para os

movimentos avaliarem a profundidade da aceitação e vinculação das suas práticas ecológicas ao conteúdo da Encíclica “Laudato ´si, mi´ signore” (Louvado seja meu senhor) publicada em julho de 2015 pelo Papa Francisco, como se fosse o seu próprio programa político. O documento, tomado como referência programática, expõe criticas e recomendações sobre o meio ambiente, mas não expressa as diretrizes estratégicas para a afirmação da transição socialista. E propor-se a amenizar os impactos destrutivos das ações do capital significa dar conselhos a um perverso que não tem intenção nenhuma em deixar de sê-lo.

Na atualidade, a agroecologia poderá contribuir para a implementação de formas de produção diferenciadas e influenciar a mudança de comportamentos por meio das práticas de valores morais, mas ela não pode ser o eixo condutor das mudanças estruturais, como não fora o cristianismo nos primeiros quatro séculos. Embora as contestações morais daquela época fossem pertinentes, os cristãos foram agraciados pelas formas de produção e as demais relações feudais que puseram em crise o modo de produção escravista. A presença dos cristãos na desintegração do império, com discurso e ações moralizadoras, contribuíram para que a nobreza legitimasse a ordem feudal por toda a Idade Média. Sem as mudanças estruturais, as pregações ficariam reduzidas às práticas de resistência.

Os desafios extraídos das contradições do capitalismo atual em crise não se materializam atacando as relações marginais e os comportamentos morais. Marx na “Crítica da economia política” afirma que

Uma formação social nunca perece antes que estejam desenvolvidas todas as forças produtivas para as quais ela é suficientemente desenvolvida, e novas relações de produção mais adiantadas jamais tomarão o lugar, antes que suas condições materiais de existência tenham sido geradas no seio mesmo da velha sociedade (MARX, 1982, p.26).


Desse modo, devemos buscar saber qual é o potencial político que a agroecologia tem para se sobrepor às formas de produção do agronegócio. Seria a própria agroecologia a criadora “das condições materiais geradas no interior da velha sociedade” que efetivaria a transição para a sociedade vindoura?

Tudo isso é importante compreender para evitar que as ilusões ocupem o lugar das formulações conscientes. Insistir em aspectos secundários como se fossem principais contribui apenas para a satisfação reducionista das intenções

corporativas.

Uma alavanca, por maior que seja, não poderá mover o mais ínfimo corpo se não houver uma base de apoio onde possa ser calçada. Nessa época de esgotamento de processos, o desafio primeiro deve ser o de compreender-se enquanto sujeitos portadores de limites e cada vez mais cerceados na liberdade de gerar condições para a afirmação de uma nova alternativa concebida.

Considerando que parte das limitações rurais e urbanas sejam revertidas nos próximos anos, qual seria o ponto de apoio para calçar a alavanca para o avanço do capital no campo? O processo eleitoral? A mudança em algumas leis?

Está evidente que os desafios não podem ser extraídos das intenções, das vontades e nem dos sentimentos do período passado, mas, fundamentalmente, das contradições que esta época nos apresenta. Por outro lado, os desafios não podem apenas ser extraídos das escolhas já feitas. Se escolho as formas de produção do agronegócio, tenho certos desafios pela frente; se escolho as formas de produção agroecológicas terei outros. Mas o mundo não se divide entre aqueles que defendem a agroecologia e o agronegócio. Por isso esses desafios para o perecimento da sociedade em que vivemos podem ser pouco decisivos.

É certo que, tanto na economia quanto na política, as dificuldades são difíceis de serem superadas quando as opções feitas criaram as próprias armadilhas do enfraquecimento. Nesse caso, a opção feita pelos movimentos do campo, por se colocarem como força eleitoral dos governos passados e a confiança na expressão das leis, como alavancas para moverem o peso inimigo, não encontram mais a base de apoio nem governamental e nem social para qualquer tipo de sustentação. Insistir nisso é optar pelo fracasso.

A agroecologia pode ser vista como forma de trabalho e de produção diferenciada, que no conjunto das disputas estratégicas pode se colocar como alternativa de educação e conscientização, mas, por si só, ela não tem força suficiente para o enfrentamento e a construção de outro projeto histórico. De modo que é importante manter os focos de resistência, mas articulando-os com o projeto político de superação da sociedade do capital.

Em síntese, o fechamento do período da institucionalidade com a “participação popular” esgotou as perspectivas das conquistas negociadas. Há que recolocar as perspectivas para um novo acúmulo de forças, sobre novos

fundamentos, que não sejam implodidos por uma simples derrota eleitoral.


Referências


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v.17, nº 33, mai-ago (2019) ISSN: 1808-799 X


O ANDES-SN E A DEFESA DA EDUCAÇÃO PÚBLICA: O ENCONTRO NACIONAL DE EDUCAÇÃO COMO ESPAÇO DE RESISTÊNCIA1


Laura Souza Fonseca2 Raquel Dias Araújo3 Elizabeth Carla Vasconcelos4

Resumo


Analisamos a luta em defesa da escola pública, particularizando o papel do Andes-SN, articulado com outras entidades desde a construção do Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública nos anos 1980. O Fórum contribuiu na elaboração de propostas à legislação educacional, sendo o Plano Nacional da Educação da Sociedade Brasileira (1997) uma síntese dessas contribuições. Os Encontros Nacionais de Educação reivindicam esse legado e implementam a reorganização do campo da educação numa perspectiva crítica opondo-se, entre outras questões, à transferência do fundo público para o setor privado.

Palavras-chave: ANDES-SN. Educação Pública. Encontro Nacional de Educação.


EL ANDES-SN Y LA DEFENSA DE LA ESCUELA PÚBLICA: EL ENCUENTRO NACIONAL DE EDUCACIÓN COMO ESPACIO DE RESISTÊNCIA


Resumen


Se analizó la lucha en defensa de la escuela pública, en particular el papel del Andes-SN, articulado con otras entidades desde la construcción del Foro Nacional en Defensa de la Escuela Pública en los años 1980. El Foro contribuyó en la elaboración de propuestas a la legislación educativa, siendo el Plan (1997) una síntesis de esas contribuciones. Los Encuentros Nacionales de Educación reivindican ese legado e implementan la reorganización del campo de la educación desde una perspectiva crítica oponiéndose, entre otras cuestiones, a la transferencia del fondo público al sector privado.

Palabras clave: ANDES-SN. Educación Pública. Encuentro Nacional de Educación.


THE ANDES-SN AND THE DEFENSE OF PUBLIC EDUCATION: THE NACIONAL MEETING EDUCATION AS SPACE OF RESISTANCE


Abstract


We analyzed the struggle in defense of public education, particularizing the role of ANDES-SN, articulated with others social entities, since of the National Forum in Defense of Public Education, in the 1980’s. The Forum contributed in the preparation of educational legislation proposals. The National Education Plan of the Brazilian Society (1997) is a synthesis of these contributions. The National Meetings of Education reclaim this bequest. The National Meetings of Education implement


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1Artigo recebido em 16/03/2019. Primeira avaliação em 14/04/2019. Segunda Avaliação em 09/05/2019. Aprovado em 03/06/2019. Publicado em 04/07/2019. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.17i33.p29371.

2Doutora em Educação, Professora Associada da área de Educação de Jovens e Adultos, Curso de Pedagogia, Departamento de Estudos Especializados. FACED/UFRGS. lsfonseca.lsf@gmail.com https://orcid.org/0000-0001-7706-5636

3Doutora em Educação, Professora Adjunta, do Curso de Pedagogia, Área de Política e Planejamento Educacional. Centro de Educação/UECE. raquel.dias69@gmail.com https://orcid.org/0000-0002-6880-2419

4Doutora em Enfermagem, Professora Associada da área da Política, Planejamento e Gestão em Saúde, Departamento Interdisciplinar. Campus Rio das Ostras/UFF. bethcarlavb@gmail.com https://orcid.org/0000-0001-6838-8062

the reorganization of the education field in a critical perspective and are against to the transfer of the public fund to the private sector.

Keywords: ANDES-SN. Public Education. National Meeting Education.


Introdução


Marcando a conjuntura iniciada nos anos pós-ditadura empresarial-militar e que se estende aos dias atuais, nossa reflexão está assentada num tempo de luta por elaboração e ampliação de direitos, garantia das conquistas e retomada de direitos espoliados.

Neste contexto, analisamos a experiência da luta em defesa da escola pública, tomando a temporalidade da construção do Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública (FNDEP), no período pré-Constituinte, em 1987, sua forte intervenção nos debates em torno da elaboração do texto da Constituição Federal, para compor as diretrizes e bases da educação nacional e elaborar o Plano Nacional de Educação (PNE), nos anos 1990; particularizando o papel do Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições do Ensino Superior (Andes-SN), por sua intervenção neste processo. Problematizamos a pauta em defesa da escola pública tendo como referência o Plano Nacional de Educação – Proposta da Sociedade Brasileira (1997), as cartas aprovadas nos Encontros Nacionais de Educação (2014, 2016 e 2019) e o documento orientador do III ENE (2018).

Além desta introdução, o trabalho está organizado em três seções onde descrevemos e analisamos primeiro o processo de construção, a representatividade como entidade articuladora das lutas pela escola pública e a dissolução do FNDEP; a seguir, os movimentos que se sucederam com o esgarçamento do Fórum representados na crítica ao PNE 2014-2024; por fim, o fortalecimento de um campo crítico à mercantilização da educação pública. À guisa de conclusões, defendemos a correção do processo e a necessidade de sua radicalidade.


O Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública: antecedentes históricos, construção, esgarçamento e dissolução


Saímos da ditadura empresarial-militar (1964-1985) com uma sociedade civil potente, organizando fóruns para avançarmos na perspectiva de conquista de algum bem-estar-social, depois de 20 anos de retirada de direitos, cerceamento da

liberdade, prisões, tortura, desaparecimentos e execuções até hoje não julgadas e, portanto, nem punidas. O campo da Educação organizou-se por meio de entidades sindicais, populares, científicas e estudantis de modo a interferir na elaboração do texto constitucional, nas diretrizes e bases da educação nacional e do PNE (Lei 10.172, de 09/01/2001). A construção do FNDEP, em 1987, foi exemplar na disputa pelo caráter público e universal da escola pública, como direito de todas e todos, e dever do Estado.

Fizemos bonitas lutas, mas não conseguimos reverter a eleição indireta para o primeiro presidente civil, nem compor um Congresso Constituinte (1987-1988) que avançasse estruturalmente na garantia de direitos à classe trabalhadora brasileira, ainda que a década fosse vigorosa para as lutas e organização da classe. São dessa época as históricas greves do ABC Paulista que possibilitaram importantes conquistas no texto constitucional, ainda que insuficientes porque se inscrevem no marco de uma cidadania liberal-burguesa num país de capitalismo periférico.

No escopo das contradições, inscreveu-se na legislação educacional à época a garantia da educação como direito de todos e dever do Estado; ingresso de trabalhadoras e trabalhadores por concurso público na rede pública de ensino, existência de planos de cargos e salário que configuram uma carreira para o magistério; a possibilidade de eleger diretoras e diretores; e um percentual dos orçamentos federal, estadual, municipal e do Distrito Federal vinculado à educação. Na concretude da política a história vem sendo outra.

Sintetizamos a década de 1980, nas palavras de Baldijão (1991, p. 6), à época, presidente do Andes-SN:


É neste período que nasce um movimento sindical renovado e com novas perspectivas em direção a um sindicalismo livre e autônomo. Organiza-se a luta por democracia política e econômica, cresce o movimento por anistia ampla, geral e irrestrita. O movimento docente nasce no mesmo período e participa ativamente de todas essas lutas [...].


Antecedendo a construção do FNDEP, nesse contexto de efervescência, realizaram-se as Conferências Brasileiras de Educação5 no período de 1980 e 1991, dirigidas por entidades da educação, científicas e sindicais; vivíamos um processo


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5Na década de 1980 foram realizadas seis Conferências Brasileiras de Educação (CBE): I CBE, 1980, São Paulo (SP); II CBE, 1982, Belo Horizonte (MG); III CBE, 1984, Niterói (RJ); IV CBE, 1986,

Goiânia (GO); V CBE, 1988, Brasília (DF); VI CBE, 1991, São Paulo (SP).

de crise na educação, resultado de acordos internacionais, entre os quais o acordo MEC-USAID, herança da ditadura empresarial-militar.

A I e a II CBE foram organizadas pela Associação Nacional dos Docentes das Instituições do Ensino Superior (Andes), a Associação Nacional de Educação (Ande), a Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação (Anped), o Centro de Estudos e Cultura Contemporânea (Cedec) e o Centro de Estudos Educação e Sociedade (Cedes).

Na I CBE, Pinheiro e Del Ri (s/d), enfatizam seu papel de diagnosticar a situação educacional brasileira, contrapor-se ao modelo de escola forjada no período ditatorial elaborando uma proposta que articulasse escola e sociedade. Na II CBE, SILVA, 1982 destaca a concepção da escola pública como um sistema, particularizando a descentralização dos serviços educacionais e a reestruturação da universidade; e avanço no olhar sobre dos problemas populares, elaborando estratégias que estabelecessem vínculo entre o saber e as experiências práticas.

O mesmo autor, ressalta ainda a II CBE, como um espaço potente de reflexão e debates, na qual mais de dois mil trabalhadores discutiram a questão educacional e em cujo Manifesto lemos que o direito de acesso à educação, constituía-se em uma reivindicação enraizada na consciência e mobilização cada vez mais ampla das camadas exploradas da população (SILVA, 1982, p.100).

A III CBE aconteceu em Niterói, em 1984, avançou na particularidade da política educacional, tendo como temática geral “Das críticas às propostas de ação”, subdividida em três temas geradores: Política educacional e crise brasileira; A questão pedagógica e os desafios das questões sociais; A gestão pública dos negócios da educação. Em manifesto, os participantes expressaram a necessidade/expectativa de que a proposta para a educação pública, em construção, tivesse efetivo encaminhamento considerando as reformas educacionais advindas dos governos estaduais recém-eleitos, e da ampla mobilização por Diretas já!

Em 1986, a IV CBE reuniu mais de cinco mil participantes representando todos os estados do país. A Carta de Goiânia (1986, p.1) sintetiza a situação educacional por seus problemas crônicos em relação à universalização e qualidade do ensino, à gratuidade escolar, às condições de trabalho do magistério e à escassez e má distribuição das verbas públicas.

A IV Conferência reivindicou que a Carta Constitucional assegurasse o direito de todos os brasileiros à educação, em todos os graus de ensino, e o dever do Estado na sua garantia. As entidades organizaram a luta pressionando candidatos às constituintes quer federal quer nos estados, cobrando o cumprimento das medidas propostas para a democratização da educação e propondo, dentre outros pontos, as seguintes reivindicações: o dever do Estado na garantia do direito de todos à educação pública, gratuita, laica, em todos os níveis de ensino, independente de sexo, cor, idade, confissão religiosa, filiação política, classe social ou de riqueza regional, estadual ou local; a garantia de uma carreira nacional do Magistério, abrangendo todos os níveis, provimento de cargos por concurso, salário digno e condições satisfatórias de trabalho, aposentadoria com proventos integrais aos 25 anos de serviço no magistério e direito à sindicalização.

Em se tratando da educação superior, a Carta de Goiânia (1986, p. 2 -3) apontou que as universidades públicas deveriam ser “[...] integrante do processo de elaboração da política de cultura, ciência e tecnologia do país, e agentes primordiais na execução dessa política [...]” e propunha que o Estado deveria assegurar


[...] formas democráticas de participação e mecanismos que garantam o cumprimento e o controle social efetivo de suas obrigações referentes à educação pública, gratuita e de boa qualidade, em todos os níveis de ensino.


Em 1987, por iniciativa da Andes, é criado o Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública6, articulando-se inicialmente com entidades que compunham as CBE, funcionando por consenso na formulação de propostas. Entre seus objetivos, estava a coordenação das lutas em defesa da escola pública, particularizando o processo de elaboração da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB). Lançado como Fórum da Educação na Constituinte em Defesa do Ensino Público e Gratuito, fez propostas para o capítulo sobre a educação na Assembleia Constituinte e


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6Entidades do Fórum: Associação Nacional dos Docentes das Instituições do Ensino Superior (Andes), Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação (Anped), Associação Nacional de Educação (Ande), Associação Nacional de Profissionais de Administração da Educação (Anpae), Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Sociedade de Estudos e Atividades Filosóficas (Seaf), Confederação de Professores do Brasil (CPB), Centro de Estudos Educação e Sociedade (CEDES), Confederação Geral de Trabalhadores (CGT), Central Única de Trabalhadores (CUT), Federação Nacional dos Orientadores Educacionais (FENOE), Federação das Associações dos Servidores das Universidades Brasileiras (Fasubra), Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), União Brasileira de Estudantes Secundaristas (UBES ), União Nacional dos Estudantes (UNE).

orientações para elaboração de uma Lei de Diretrizes e Bases e para um Plano Nacional de Educação a partir de um diagnóstico da educação nacional. Ainda no ano de seu lançamento, o FNDEP lança a Campanha Nacional pela Escola Pública e Gratuita. Nessa trajetória, contribuiu com a organização das duas últimas CBE (a V CBE e a VI CBE), respectivamente nos anos de 1988 e 1991, sobre essas não conseguimos acessar documentos ou artigos.

Na década de 1990, no contexto da crise estrutural do capital, das reestruturações produtivas e das contrarreformas do Estado, inicia-se o processo de desestruturação do pacto social estabelecido na década anterior, que se expressa na retirada de direitos, nas privatizações das estatais, na transformação dos direitos sociais em serviços e da educação em mercadoria. São tempos neoliberais, e também no Brasil anuncia-se a constituição de um Estado mínimo para o social e máximo para o capital como síntese da agenda socioeconômica em curso.

Fernandes (1991, p. 30) chama atenção para o empenho do governo Collor em transferir fundo público para o setor privado e até de subvencionar a capacitação tecnológica da iniciativa privada, com subsídios e bolsas de estudos. Complementa em outro momento, afirmando que “[...] ou o Brasil empreende sua revolução educacional, através da escola pública, ou ele permanecerá como um gigante de pés de barro! [...]” (FERNANDES, 1991, p. 31).

Mesmo diante de uma conjuntura tão adversa, o FNDEP continuou defendendo a garantia de direitos sociais pela expansão da esfera pública com qualidade referenciada nas necessidades da classe trabalhadora e se articulando para aportar contribuições aos textos da LDB e do PNE, por meio da realização de Congressos Nacionais de Educação (Coned) que sintetizaram as referidas contribuições no PNE-SB (1997), tendo eixo central a defesa do caráter púbico e gratuito da educação e da destinação exclusiva de recursos públicos para a educação pública referenciada no Produto Interno Bruto (PIB).

Com a posse de FHC, em 1995, o governo ignora as propostas construídas pelas entidades componentes do Fórum e apresenta um projeto de LDB à revelia dos debates em andamento. O FNDEP se reorganiza para os enfrentamentos e se amplia, articulando quinze entidades nacionais de caráter científico, sindical, popular

e estudantil, apontando para a realização dos Coned7, cujo desafio, expresso em suas temáticas, era a construção de um PNE que refletisse as reivindicações da sociedade brasileira.

O I Coned aprova os eixos que deveriam orientar a elaboração da proposta de PNE, o II Coned dando continuidade aos debates iniciados no anterior, aprova a Proposta de Plano Nacional da Educação da Sociedade Brasileira, sistematizada a partir das propostas oriundas dos diferentes fóruns estaduais, que discutiram os eixos temáticos propostos, e cujo arcabouço associava a qualidade da escola pública à destinação de 10% do PIB para a educação pública. Este PNE foi encaminhado ao Congresso Nacional, que o ignorou e passou a analisar a proposta do MEC do governo FHC, aprovando a Lei nº 10.172/2001, instituindo o PNE 2001- 2010. A conjuntura da época está assim sintetizada no item sobre financiamento da educação,


No contexto da nova ordem econômica mundial, de internacionalização do capital e globalização econômica, setores crescentes da população, não só do Brasil, mas de muitas outras nações, estão sendo colocados à margem do chamado progresso e condenados à exclusão social. (PNE-SB, 1997, p.39)


Baseado em diagnóstico da educação nacional, o documento do PNE-SB aponta a necessidade de 10% do PIB, para a implementação do Plano, buscando uma política que “combata a sonegação, o crime organizado e a outras práticas anti- sociais, além da adoção de práticas que privilegiem os impostos diretos, a redução da evasão consentida e da renúncia fiscal”. (PNE-SB, 1997, p.46)

Paralelamente à tramitação e aprovação do PNE, foi realizado o III CONED, com a temática, “O Plano Nacional da Educação da Sociedade Brasileira: Reafirmando a Educação como Direito de Todos e Dever do Estado”.

Em 2002, ocorreu o IV Coned, tendo como tema: “Educação, Democracia e Qualidade Social, Garantir Direitos, Verbas Públicas e Vida Digna, Educação: Uma outra educação é possível!”, e, em 2004, foi realizado o V e último Coned, “Democracia e Qualidade Social: Educação não é mercadoria”.


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7Entre as décadas de 1990 e 2000, realizaram-se cinco Congressos Nacionais de Educação: I Coned, Belo Horizonte (MG), 1996; II Coned, Belo Horizonte (MG), 1997; III Coned, Porto Alegre (RS), 1999; IV Coned, São Paulo (SP), 2002; V Coned, Recife (PE), 2004.

O governo Fernando Henrique Cardoso (FHC) nas suas duas gestões (1995- 2003) ignorou as propostas do FNDEP seja para compor as diretrizes e bases da educação, seja para o PNE, apresentando propostas que se opunham aos eixos referidos, assentadas na captura do fundo público para assegurar superávit primário e na instituição da Desvinculação de Receitas da União (DRU). Movido por essa lógica, FHC vetou o percentual de 7% do PIB proposto no PNE 2001-2010, resultando num baixo investimento em educação durante o seu governo.

Mesmo com derrotas objetivas na implementação das propostas, forjou-se um grupo experiente em defesa da escola pública, gratuita e de qualidade referenciada no interesse da classe trabalhadora. Um ciclo potente que entra em crise a partir de 2002 com a eleição de Lula/PT, inviabilizando a metodologia de tomada de decisões por consenso do FNDEP. São elementos dessa crise: o superávit primário, a DRU, o repasse do fundo público para o empresariado da educação, o percentual do PIB a ser investido na escola pública, as políticas compensatórias fortalecendo o Sistema S, o boom da educação à distância... corroem a capacidade de acordo.

O Andes-SN, que havia sido um dos principais articuladores do Fórum, discordava dessa leitura do governo Lula e tecia fortes críticas ao governo, caracterizando-o como um governo de conciliação de classes.

Entendemos que o Fórum foi perdendo o seu significado histórico porque, na origem, havia sido criado com o objetivo de disputar, no campo da legislação educacional, a partir das elaborações e contribuições das entidades representativas da classe trabalhadora, uma concepção de escola pública, gratuita, laica, e fundo público destinado exclusivamente para a educação pública.

Uma das principais divergências que opôs o Andes-SN e várias entidades do movimento sindical com desdobramentos sobre o Fórum foi a contrarreforma da previdência do governo Lula, em 2003.

Entretanto, uma boa parte das entidades que compunha o FNDEP foi se adequando aos novos espaços e fóruns criados pelo próprio governo e, portanto, forjavam-se sem autonomia frente ao governo e ao Estado, um dos princípios que está na concepção de sindicato defendida pelo Andes-SN. Dentre esses espaços, destaca-se a I Conae, convocada pelo governo Lula para discutir e elaborar uma proposta de PNE a ser apresentada ao fim da vigência do PNE de 2001.

Diferentemente do processo de elaboração do PNE anterior, que iniciou por inciativa da sociedade civil, os primeiros movimentos para construção do novo PNE se deram no âmbito do executivo federal, em 2008, quando o MEC elaborou e apresentou o Documento Referência Conferência Nacional de Educação (Conae), o qual deveria ser adotado como guia para as discussões nas Conferências Municipais, Estaduais e do Distrito Federal.

Em abril de 2008, aconteceu a Conferência Nacional de Educação Básica, que apontou a realização da I Conae, realizada de 28 de março a 01 de abril de 2010, da qual resultou a proposta de PL do novo PNE (PL nº 8.035/2010). A I Conae jogou uma pá de cal na unidade que havia sido construída, ao longo de duas décadas no interior das CBE e dos Coned, em defesa da escola pública.

No próximo tópico, veremos as principais disputas que envolveram a construção dos Encontros Nacionais de Educação e o significado mais profundo desse debate, do qual o Andes-SN tem sido sujeito atuante.


O ENE como um espaço de resistência e luta contra as políticas privatistas: síntese das principais polêmicas em torno da elaboração do PNE


A construção dos ENE inicia com debates em torno da elaboração do PNE (2014-2024), em especial da questão do financiamento público para a escola pública; também buscando fomentar um espaço alternativo em oposição à Conae e, ao mesmo tempo, e preencher a lacuna deixada com a dissolução do FNDEP.


O I ENE e a defesa da aplicação de 10% do PIB na educação já!


O I ENE ocorreu em agosto após a homologação do PNE (2014-2024) em junho de 2014.

O Plano tramitou em meio a diversas polêmicas, com destaque para o financiamento da educação (meta 20). As disputas referiam ao percentual do PIB a ser investido, ao prazo para sua aplicação e ao destinatário do recurso. Em torno da percentagem, as propostas variavam entre 7 a 10% do PIB. No que referia a aplicação, se imediata e de todo o percentual, se parcelada com prazos intermediários e, no limite, até o fim da vigência do Plano. Um terceiro aspecto

tratava do essencial, ou seja, se o fundo público deveria ou não ser transferido para o setor privado.

Iniciamos pela primeira e principal polêmica, que antecede as anunciadas acima, e diz respeito à participação do Andes-SN na Conae. De início, o Andes-SN integrou a comissão organizadora, mas, após um balanço dessa participação e do caráter da Conferência, o 29º Congresso do Andes-SN (2010) deliberou que o Sindicato não participaria da Conae. Além disso, decidiu também que o Andes-SN deveria


denunciar o processo de instauração da CONAE e sua metodologia pseudodemocrática, que visa à elaboração de um novo PNE alinhado às diretrizes do MEC/Capital explicitadas no documento- base da referida conferência (ANDES-SN, 2018a, p. 8).


A divergência relativa ao percentual ocorria também entre a Conae, que deliberou pela aplicação de 10%, e o governo Dilma que defendia a aplicação de 7%, tensionando as entidades que eram base de sustentação do governo; também o movimento de massas pressionava o governo a adotar o percentual defendido pelas entidades. Quanto ao prazo para a aplicação do valor, as diferenças apareciam de forma sutil delimitadas pela presença ou ausência da expressão “já” na frase “em defesa da aplicação de 10% do PIB na educação pública”. Como a proposta do governo era a aplicação gradual alcançando o percentual máximo estabelecido apenas ao final da vigência do Plano, o acréscimo da palavra “já” continha um forte significado político. Por último, para nós a questão essencial – a possibilidade de transferência do fundo público para instituições de ensino privadas. Controvérsia expressa dentro e fora da Conae, entre entidades e governo que a compunham e as entidades que integravam o Comitê em Defesa de 10% do PIB para a Educação Pública, Já!, especialmente, o Andes-SN, histórico defensor, a partir de suas resoluções congressuais, da exclusividade de destinação do fundo público para as instituições públicas.

Como consequência desses embates, foi criado em outubro de 2011 o Comitê Nacional em Defesa de 10% do PIB para a Educação Pública, Já, que organizou o Plebiscito Nacional perguntando à população: “Você concorda com o investimento de 10% do PIB na Educação Pública, já?”. Realizado entre novembro e dezembro

de 2011, com a participação de 360 mil pessoas, das quais 352 mil responderam sim, segundo informa o Andes-SN (2018a p. 8).

Para dar maior concretude ao resultado do plebiscito, o Andes-SN apontou a necessidade de o Comitê organizar o I ENE, com o objetivo de “avançar na reorganização das entidades não atreladas ao governo federal”, bem como “avançar na construção de um projeto de educação legitimado por espaços democráticos e pelo viés da classe trabalhadora” (ANDES-SN, 2018a, p. 9) e dar sequência aos Coned, realizados entre os anos de 1996 e 2004, como relatamos no item anterior.

A construção do I ENE iniciou em 2012, reunindo várias entidades sindicais e do movimento estudantil, como, Andes-SN, Assembleia Nacional dos Estudantes Livre, CSP-Conlutas, Oposição de Esquerda da Une, Federação Nacional dos Estudantes do Ensino Técnico, Executiva Nacional dos Estudantes de Educação Física, Sindicato Nacional dos Servidores Federais da Educação Básica, Profissional e Tecnológica, Conselho Federal de Serviço Social seguiu em 2013 e, em 2014, concretizamos o Encontro. Após intenso processo preparatório envolvendo regiões, estados e/ou municípios, mais de duas mil pessoas representando movimento estudantil, popular e sindical realizaram o encontro comprometido exclusivamente com o princípio da escola pública e gratuita, laica, de qualidade socialmente referenciada, em todos os níveis e de acesso universal.

Vale ressaltar que nos anos de 2012 e 2013 houve uma intensificação das lutas sociais, como a greve dos servidores públicos federais em 2012, destacando a educação federal, que trouxe à tona a disposição das categorias de enfrentar os projetos neoliberais, que sucateavam cada vez mais as escolas, os institutos e as universidades. Destacam-se também as Jornadas de Junho de 2013, quando milhares de manifestantes ocuparam as ruas para, dentre outras pautas, lutar contra a mercantilização da educação pública, somando-se a um dos maiores períodos de greves educacionais (municipais e estaduais), colocando a educação pública na pauta das negociações, a exemplo da greve da educação no Rio de Janeiro, amplamente apoiada pela sociedade, e com a realização de manifestações com mais de 100 mil pessoas em solidariedade à luta das trabalhadoras em educação do estado e dos municípios.

O ano de 2014 iniciou com várias categorias mobilizadas na busca de melhores condições de trabalho e vida. Em maio, vivemos a maior greve da história nas universidades estaduais paulistas, completando quase 4 meses; em junho, às vésperas da Copa, os metroviários de São Paulo entraram em greve; durante a

Copa, diversas manifestações espalharam-se pelo país e foram duramente reprimidas pelas forças policiais e militares, instituindo um Estado de exceção que não se via desde a ditadura empresarial-militar.

Nessa esteira, ocorreu o I ENE, em 2014, dando um salto político e organizativo desse campo que já vinha elaborando uma análise crítica da política do MEC caracterizada, especialmente, pela transferência do fundo público para o setor privado. O Encontro acontece num contexto de aprovação do PNE “que consolida e aprofunda a precarização e a privatização da educação pública” (ANDES, 2014, p. 6). O I ENE apresentou-se “como um espaço de aglutinação para a construção de um projeto alternativo de educação” (Idem, ibidem) e apontou a necessidade de fortalecer os espaços independentes e classistas como uma condição da defesa do caráter público e gratuito da educação e garantia da destinação do investimento público exclusivamente para a escola pública.

Dessa forma, o I ENE iniciou com uma grande marcha em defesa da educação pública pelas ruas do Rio de Janeiro e finalizou sob os “gritos uníssonos de ‘10% do PIB para a Educação Pública, Já!’” (grifos nossos) (ANDES-SN, 2014,

p. 1). Contou também com a participação de representantes de entidades da educação de outros países, mostrando que a unidade deve ocorrer no marco internacional para resistir à mercantilização da educação pública.

A metodologia utilizada na construção do ENE nos estados e municípios por meio de encontros preparatórios, e o próprio encontro nacional, foi de construção de propostas a partir da base. Foram recomendados sete eixos para serem tratados nos encontros preparatórios, ficando a critério de cada pré-ENE utilizar aqueles que mais se aproximassem da realidade local. Os eixos que centraram as discussões nos encontros preparatórios e no I ENE foram: 1- Acesso e Permanência; 2- Avaliação; 3- Democratização; 4- Privatização e Mercantilização da Educação; 5- Financiamento da Educação; 6- Passe Livre; 7- Precarização (Cartilha I ENE, 2015, p.20).

Os encaminhamentos do I ENE, como a criação de comitês nos estados e a realização do II ENE em 2016, precedido por pré-encontros, apontavam para fortalecermos a unidade da classe trabalhadora, chamando setores que não estiveram presentes a se juntarem. (Cartilha I ENE, 2015, p.26).

O I ENE reafirmou, enfaticamente,

[...] a luta sem tréguas contra a mercantilização da educação, em defesa do financiamento pelo Estado (...) que possibilitasse condições democráticas de acesso e permanência em todos os níveis de ensino; repudiou todas as formas de precarização das condições de trabalho (...), bem como a lógica da avaliação meritocrática e produtivista do ensino e do trabalho docente; posicionou-se contra todas as formas de desrespeito à autonomia universitária e todas as tentativas de submeter à educação a parâmetros autoritários, impondo o individualismo e a competição, no lugar da elaboração solidária e coletiva, fundamentos necessários para a construção de uma sociedade realmente democrática. (Cartilha I ENE, 2015, p. 26).


O I ENE, ainda,


[...] repudiou o Plano Nacional de Educação (PNE) 2014-2024, sancionado pelo governo, pois é uma legislação que atende aos interesses privatistas do empresariado da educação; aprofunda a precarização dos trabalhadores em educação; e promove uma expansão sem adequadas condições, que preservem a qualidade do ensino público, desde a creche até a pós-graduação (Cartilha do I ENE, 2015, p. 26).


Apesar da garantia do investimento equivalente a 10% do PIB ao final de vigência do PNE no texto aprovado (Lei nº 13.005/2014), revelando as contradições advindas dos embates políticos dentro e fora da Conae, mas, principalmente, das pressões do movimento de massas, Araújo, Rocha e Amâncio (2017, p. 198) ressaltam que


[...] o dispositivo presente no artigo 5º parágrafo 4º, ao contabilizar os recursos das parcerias público-privadas, como Fies (Fundo de Financiamento Estudantil), Prouni (Programa Universidade para Todos) e Pronatec (Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego), como investimento público em educação, acaba por legitimar a transferência de dinheiro público para a iniciativa privada (grifos nossos).


Para dar consequência às deliberações do I ENE, o Comitê Nacional em Defesa dos 10% do PIB a Educação Pública, Já! organizou o II ENE, em 2016, elaborou uma cartilha com os resultados das discussões e resoluções do I ENE. A cartilha “Em defesa da educação pública, gratuita e dos 10% do PIB para a educação pública já” foi lançada em março de 2015, de acordo com o site do Andes- SN (2015a) durante ato realizado em frente ao MEC, ocasião em que foi entregue à representante da pasta naquele momento.

O II ENE e a defesa do caráter público e gratuito da educação em oposição ao PNE privatista


Construímos o II ENE precedido por encontros preparatórios em âmbito regional, estadual e/ou municipal avançando na organização pela base do encontro nacional. Num período é marcado pelo aprofundamento dos ataques à educação e pelos ventos reacionários que levaram ao impeachment da presidenta Dilma, em agosto de 2016, mas também pelas grandes manifestações estudantis que sacudiram o país com ocupações de escolas.

No primeiro dia de 2015, a então presidenta Dilma anunciou, sob o lema da Pátria Educadora, o maior corte já feito na pasta na educação dentre os diversos contingenciamentos anunciados para aquele ano; 2015 terminou com menos 11 bilhões de reais e quatro ministros que se revezaram na pasta. Os impactos dos cortes levaram os docentes das universidades federais a maior greve da sua história, que durou 125 dias. Segundo informou Paulo Rizzo, então presidente do Andes-SN (2014-2016),


As IFE já estavam passando por dificuldades, por conta do bloqueio dos repasses no início do ano e, em abril, com o anúncio feito pelo governo de novos cortes devido à política de ajuste fiscal a situação ficou ainda pior (ANDES, 2015b).


No mesmo ano, de forma inédita, os estudantes secundaristas ocuparam em efeito cascata as escolas da rede estadual de São Paulo, contra o projeto de reorganização da rede pelo governo, que previa o fechamento de quase 100 escolas e atingiria cerca de 300 mil estudantes com a redefinição dos ciclos. As ocupações tomaram as principais ruas da capital paulista, bloquearam avenidas e vias, radicalizando as ações contra a truculência da PM. As ocupações duraram mais de 40 dias e alcançaram mais de 200 escolas.

Nesse contexto, ocorre o II ENE, entre os dias 16 e 18 de junho de 2016, em Brasília, na UnB, com o tema “Por um projeto classista e democrático de educação”. Os eixos que nortearam os encontros preparatórios e o II ENE foram: 1. Avaliação;

  1. Trabalho e formação de trabalhadores da educação; 3. Acesso e permanência; 4. Gestão; 5. Gênero, sexualidade, orientação sexual e questões étnico-raciais; 6. Financiamento (CONEDEP, 2018, p. 6-8). O Encontro reuniu cerca de 2.000 participantes, representantes de todas as regiões do país e dos diferentes setores

    da educação, como do ensino fundamental e médio, e universitário. Com apresenta de professores, estudantes, técnico-administrativos, assistentes sociais e movimentos populares.

    Vale ressaltar que o II ENE, realizado após dois anos de aprovação do PNE, ocorre sob o governo interino de Temer, sob as lutas contra a PEC 241/16, que resultou na EC 95/16 que congela por 20 anos o orçamento da União.

    Assim, os desafios postos para o II ENE foram muito maiores e reafirmaram o projeto democrático e classista para a educação. Nesse horizonte, a Declaração Política do II ENE reafirma posição contrária à terceirização, à contrarreforma da previdência, chama a construção de uma greve geral da educação, e também uma greve geral contra o ajuste fiscal. Ainda reafirma o repúdio ao PNE 2014-2024, de caráter privatista (ANDES, 2016a, p. 13).

    Além dessas tarefas, a plenária final decidiu, alterar o nome do Comitê Nacional em Defesa dos 10% do PIB para a Educação Pública, Já! para Coordenação Nacional das Entidades em Defesa da Educação Pública e Gratuita (CONEDEP) (ANDES, 2018a, p. 9), responsável pela realização do III ENE, previsto para acontecer em 2018, e realizado em abril de 2019.

    E, apesar de uma realidade difícil, conseguiu apresentar propostas de ação e caminhos para a unidade de todas e todos que atuam na defesa da educação pública e na defesa dos direitos da classe trabalhadora.


    O III ENE e o contexto de retrocessos dos direitos sociais e das liberdades democráticas


    O III ENE ocorreu nos dias 12 a 14 de abril de 2019, na UnB, com o tema central “Por um projeto classista e democrático de educação”, contando com a participação de mais de 1200 pessoas, dentre as quais docentes da educação básica e superior, trabalhadores técnico-administrativos da educação básica e superior, estudantes de todos os níveis e profissionais de diversas categorias.

    O contexto que marca a preparação e realização do Encontro é muito mais adverso do que aquele dos encontros anteriores, porque aprofundando o ajuste fiscal, foram aprovadas a contrarreforma trabalhista, que destruiu direitos históricos da classe trabalhadora, e a lei geral das terceirizações. As liberdades democráticas também sofreram retrocessos, expressos na prisão do ex-presidente Lula, na

    intervenção militar no Rio de Janeiro, na execução de Marielle e Anderson, dentre outros elementos que revelam recrudescimento do regime.

    Na área da educação, um cenário tenebroso se delineia com a aprovação da contrarreforma do ensino médio combinada à aprovação da BNCC, o avanço do discurso reacionário sob o signo de “uma Escola sem Partido” e de uma guerra aos debates sobre as questões de gênero, sexualidade, étnico-raciais, dentre outros temas identificados com pautas da esquerda. Importante registrar, também, nos ataques à educação, a política de ajuste nos estados e municípios que atrasam e/ou parcelam salários das trabalhadoras da escola básica.

    Em 2018, os ataques à educação se aprofundaram e o avanço do campo conservador se revelou nas diversas tentativas de aprovação do PL 7180/2014 (Escola sem Partido) na Comissão Especial da Câmara dos Deputados, nas invasões da polícia e justiça eleitoral aos campi das universidades por ocasião das eleições gerais para impedir realização de palestras, aulas públicas, seminários, bem como retirar faixas etc. sob a alegação de suposta propaganda eleitoral indevida, a qual não se comprovou posteriormente. A educação pública e a categoria docente tornaram-se alvo dos discursos de ódio da direita e da extrema direita.

    O ano de 2018 termina com a vitória eleitoral apoiada em fake news de um presidente de extrema direita com amplo apoio dos setores ligados à bancada evangélica, à bancada da bala e ao movimento Escola sem Partido; discurso e o programa de governo sinalizam para um ataque feroz à educação e aos docentes. A forte presença de militares no governo e, especialmente, na pasta da educação é um indício do caráter reacionário das medidas em curso e futuras na área da educação, a exemplo da militarização das escolas, da defesa da cobrança de mensalidades nas universidades públicas, da reedição do projeto Escola sem Partido (PL 246/19) e do desarquivamento do PL 7180/14, da defesa do homeschooling, apesar da decisão do STF de não permitir a prática de educar alunos em casa, sem a frequência à escola.

    No entanto, vale registrar que esses ataques não se fizeram sem contradições ou de forma linear. Houve resistência. Brasília se tornou o palco de muitas manifestações entre 2016 e 2017, com destaque para os atos denominados de Ocupa Brasília. O primeiro grande ato ocorreu em 29 de novembro de 2016

    contra a PEC 55 (antiga 241), que foi votada nesse dia, em primeiro turno, no Senado. Segundo informou nota publicada pelo ANDE-SN no dia 07 de dezembro de 2016,


    A marcha foi o maior ato na capital federal, em unidade entre trabalhadores e estudantes, desde a aprovação da Reforma da Previdência, em 2003. Mais de 40 mil pessoas, entre estudantes, docentes, técnico-administrativos, servidores públicos de outras categorias, diversas das quais estão em greve nesse momento, trabalhadores do setor privado e representantes de diversos movimentos sociais e populares que protestavam contra a votação da PEC e outros ataques que estão em curso, como a Medida Provisória (MP) 746/16, Contrarreforma do Ensino Médio, foram duramente reprimidas pela PM, em conjunto com a Polícia Legislativa. Centenas de bombas e balas de borracha foram disparadas contra dezenas de jovens, adultos e idosos (ANDES-SN, 2016b).


    No dia 24 de maio de 2017, ocorreu a segunda edição do Ocupa Brasília, dessa vez, contra as reformas da previdência e trabalhista, que contou com a participação de mais de 100 mil manifestantes de todo o país. Antecedendo essa ação, no dia 28 de abril do mesmo ano, ocorreu uma greve geral, considerada uma das maiores da história do movimento sindical.

    Em 2018, a Frente Nacional Escola sem Mordaça foi reativada e enfrentou, juntamente com outras entidades, movimentos e partidos de oposição, às várias tentativas de aprovação do Projeto Escola sem Partido, tendo obtido uma vitória parcial, mas importante, com o arquivamento do PL.

    Ainda se tratando das decisões relativas à educação e que tem relação com o tema do PNE, vale registrar que, em abril de 2017, Temer publicou um Decreto convocando a III Conae para 2018, sem definição de data exata, em substituição ao Decreto publicado pelo governo anterior, que previa sua realização no primeiro semestre de 2018. Combinada a essa ação, modificou também a composição do Fórum Nacional de Educação (FNE), por meio da Portaria 577, de abril de 2017, excluindo da sua composição a ANPEd, a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino, dentre outras, e incluindo a representação do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), além de representações do setor empresarial.

    Essas duas ações geraram várias críticas ao governo por parte das entidades que compunham o Fórum e a Conae expressas na nota publicada em maio de 2017

    e assinada por onze entidades, na qual afirmam que o ministro da educação, Mendonça Filho, “[...] de forma autoritária e centralizada [...]”, assume “[...] para si a responsabilidade de ‘arbitrar’ quem entra e quem sai do FNE [...]” (ANPED et al, 2017).

    Essas medidas justificaram a criação do Fórum Nacional Popular de Educação (FNPE), e a convocação por este da Conferência Nacional Popular de Educação (Conape), por meio do “Manifesto em prol da democracia e da educação transformadora”, lançado em junho de 2017. Para tanto, o referido Fórum teria como tarefa “[...] pressionar o governo federal e fazer valer a implementação dos planos nacional, estaduais, distrital e municipais de educação e viabilizar a organização da Conferência Nacional Popular de Educação (CONAPE 2018)” (FNPE, 2019).

    A partir da constituição do Fórum e da convocação da Conape, o Andes-SN sofreu pressões externas de outras entidades e também da sua base para se incorporar ao Fórum e participar da Conferência. Uma das críticas que o Andes-SN dirigia ao Fórum e à Conferência diziam respeito às suas limitações por sua origem, o Sindicato já tinha resolução de não participar, e por sua tarefa central – fazer valer a implementação do PNE, sobre o qual o ANDES-SN também tem resolução contrária.

    No entanto, reconhecendo a gravidade da situação que se instalou no país desde 2016 e que as decisões arbitrárias do governo acerca do FNE e da Conae são parte de um processo de destituição de legitimidade das entidades representativas da classe trabalhadora num contexto de criminalização das lutas, o Andes-SN, em seu 37º Congresso, realizado em janeiro de 2018, na cidade de Salvador/Bahia, aprovou a seguinte deliberação:


    1. Participar, defendendo os princípios e posições do ANDES-SN, organizando intervenção política, via seções sindicais e secretarias regionais e em articulação com demais entidades da CONEDEP, das etapas municipais, estaduais, regionais e da Conferência Nacional Popular de Educação (CONAPE), que acontecerá em 2018. Durante essas participações e intervenções, divulgar os materiais do ANDES- SN; distribuir nota da CONEDEP expondo o projeto de educação pública defendido por essas entidades; divulgar e convocar os presentes a participarem de todas as etapas do III ENE.

      1. Produção de nota política com críticas aos objetivos da CONAPE, orientando a intervenção do(a)s filiado(a)s do ANDES/SN, reforçando as principais deliberações do II Encontro Nacional de Educação em direção à construção do projeto de educação da classe trabalhadora. (ANDES-SN, 2018b, p. 153).


Cumprindo as resoluções congressuais, o Andes-SN participou com uma representação na Conape que aconteceu em maio de 2018, em Belo Horizonte/MG; e dentre as atividades autogestionadas, organizou a mesa “Políticas educacionais no contexto do PNE” com a participação de professoras do ensino básico e das seções sindicais. No estande montado pelo Andes-SN, foram distribuídos materiais diversos que tratavam da política educacional em curso nos últimos governos. (ANDES-SN, 2018c, p. 55).

Após a participação na Conape, o Andes-SN avaliou que a conferência não teria assumido “posicionamento crítico em relação ao PNE, inclusive sobre a destinação de recursos públicos para instituições privadas”. Além desses aspectos, a avaliação apontou que, sem deixar de reconhecer a legitimidade da mobilização em defesa do ex-presidente Lula, “a alteração do nome da conferência na plenária final acrescentando o termo ‘Lula Livre’ evidencia sua priorização, desde suas etapas municipais, para a campanha eleitoral presidencial” (ANDES-SN, 2018c, p. 55).

Assim, o 38º Congresso do Andes-SN rejeitou a proposta de incorporação do Sindicato ao FNPE e de sua participação na Conape, e, ao mesmo tempo, reafirmou o ENE como um espaço de resistência em defesa de um projeto classista e democrático de educação e indicou a intensificação dos esforços para organizar e ampliar o espectro de entidades e movimentos que participam do Encontro (ANDES- SN, 2019).

O objetivo do III ENE era, de acordo com o Documento Orientador, (CONEDEP, 2018, p. 12),


Aprofundar o diagnóstico do projeto do capital para a educação tendo como perspectiva a construção de um Plano Nacional de Educação da classe trabalhadora, tomando como base a análise crítica e atualização do PNE da Sociedade Brasileira,


Os encontros preparatórios e o Encontro Nacional tiveram como eixos de discussão os seguintes temas: 1. Conhecimento, currículo e avaliação; 2. Formação de trabalhadores da educação; 3.Trabalho na educação e condições de estudo; 4. Universalização da educação, acesso e permanência; 5. Gestão/organização do trabalho escolar; 6. Gênero, sexualidade, orientação sexual e questões étnico- raciais; 7. Financiamento da educação; 8. Organização da classe trabalhadora

(CONEDEP, 2018, pp. 12-16), aos quais foi acrescido o eixo 9. Democracia e autonomia no espaço educacional e liberdade de ensinar/cátedra (CONEDEP, 2019a).

Perseguindo o objetivo traçado para o III ENE, foram realizados debates sobre as conjunturas internacional e nacional, acerca dos ataques à educação sob o contexto do avanço do conservadorismo, bem como foram apontadas as formas de resistência ao projeto de capital para a educação.

Nesse sentido, a Carta do III ENE, construída consensualmente pelas entidades que compõem a Conedep, inicia constatando que o referido Encontro foi “[...] marcado pelo reconhecimento de uma dupla tarefa para lutadoras e lutadores que atuam em defesa da educação pública e gratuita: avançar no debate de um projeto classista e democrático de educação e, ao mesmo tempo, resistir contra o programa da extrema-direita a serviço do capital” (CONEDEP, 2019b).

Além disso, a Carta apontou um plano de lutas que indica, entre outras ações, a necessidade de unificação de um calendário nacional de lutas que acumule forças para a construção da greve geral para barrar a contrarreforma da previdência, somando-se à convocação da semana nacional de paralisação da educação em defesa da educação pública, com destaque para o dia 15 de maio de 2019. A Carta definiu, ainda, a necessidade de fortalecimento da Frente Nacional Escola sem Mordaça e outros espaços de unidade para


Defender o direito irrestrito de organização de lutas e movimentos sociais, manifestações e greves e lutar contra a criminalização de lutadoras e lutadores sociais;

Manter a luta pela revogação da contrarreforma trabalhista, Emenda Constitucional 95/2016 e outros ataques que retiraram direitos da classe trabalhadora e resultaram na precarização dos serviços públicos;

Aprofundar os esforços de luta contra o Projeto Escola sem Partido e em defesa da liberdade de cátedra e ensino;

Combater e denunciar a educação domiciliar reafirmando o projeto de educação como direito social básico que deve ser de responsabilidade pública;

Combater o processo de militarização da educação;

Defender eleições democráticas para escolha de dirigentes e combater todas as tentativas de eliminar a gestão democrática e a autonomia das instituições públicas de educação;

Defender as escolas e a educação no campo, assim como o projeto de educação construído nos movimentos populares (CONEDEP, 2019b).

Nesse contexto adverso, quando o governo investe contra o movimento sindical por meio da edição da MP 873/19, corta verba das universidades, desqualifica os cursos da área de humanas, criminaliza docentes, dentre outros ataques, a realização do III ENE pode ser considerada uma vitória no que diz respeito à construção de resistências e da unidade necessária para enfrentar o governo de extrema-direita e seu projeto de destruição da educação pública.


Desafios para a construção de um projeto classista e democrático de educação


Demonstramos o papel reflexivo, propositivo e articulador do Andes-SN na história da educação brasileira pós-ditadura empresarial-militar, na perspectiva de uma escola pública, classista e democrática – da educação infantil à pós-graduação. O distanciamento desta concepção de educação tem feito emergir o fracasso da escola pública. O avanço conquistado no marco legal com a universalização, sem que os sucessivos governos acolhessem as condicionalidades expressas na pauta de reivindicações defendida também pelo Andes-SN nos seus 40 anos de lutas, imprescindíveis para a qualidade social, vem produzindo inclusões excludentes, analfabetismo funcional, adoecimento das trabalhadoras da educação e mais recentemente suicídio.

O Andes-SN surgiu no início dos anos 1980, no dia 19 de fevereiro de 1981, primeiro, como Associação Nacional dos Docentes do Ensino Superior (a Andes), depois, transformada em sindicato, em 26 de novembro de 1988, após a promulgação da atual Constituição Federal, no contexto da efervescência do sindicalismo combativo.

A Andes surgiu e é parte constitutiva de num contexto marcado por “significativas transformações no sindicalismo brasileiro” (ANTUNES, 1995, p. 11. Antunes (idem, ibidem) aponta as inúmeras transformações que ocorreram no movimento sindical entre o final da década de 1970 até o final dos anos 1980, a saber:


A retomada das ações grevistas, a explosão do sindicalismo dos assalariados médios e do setor de serviços, o avanço do sindicalismo rural, o nascimento das centrais sindicais, as tentativas de consolidação da organização dos trabalhadores nas fábricas, os aumentos de índices de sindicalização, as mudanças e as

conservações no âmbito da estrutura sindical pós-Constituição de 1988 etc.


O autor (1995, p. 21) situa o surgimento da Andes / do Andes-SN nesse quadro, ao afirmar que


Foi, neste plano, uma década de avanço orgânico sindical, para um conjunto expressivo de assalariados, de que a Andes – Associação Nacional dos Docentes do Ensino Superior (que, posteriormente, denominou-se Andes – Sindicato Nacional) – é, entre muitos outros, um exemplo significativo [referindo-se à realização das greves nacionais], na medida que aglutina, a nível nacional, a categoria docente [...].


Um sindicalismo de perfil classista e combativo que se caracterizava por adotar uma estratégia de confronto com o modelo econômico brasileiro, que, nas palavras de Antunes (1995, p. 28), mesmo “[...] atuando por dentro da estrutura sindical, pouco a pouco, foi iniciando um lento processo de mudança e transformação desta mesma estrutura sindical atrelada”, constituindo-se num sindicalismo mais autônomo com relação à estrutura do Estado e independente com relação ao patronato e aos governos.

Em sintonia com essa concepção sindical, o Andes-SN, desde a sua origem, organiza-se sob os princípios da autonomia e independência, assim expressos no Art. 4º. de seu Estatuto “é uma entidade democrática, sem caráter religioso nem político-partidário, independente em relação ao Estado, às mantenedoras e às administrações universitárias” (ANDES-SN, 2019, p. 1).

Destacamos, dentre seus objetivos precípuos, no Art. 5º, o inciso IX:


[...] defender a Educação como um direito social inalienável da população brasileira e uma política educacional que atenda às suas necessidades e ao direito ao ensino público, gratuito, democrático, laico e de qualidade para todos (ANDES-SN, 2019, p. 2).


Esses elementos da história do Andes-SN e da concepção sindical que o orienta permitem-nos situar melhor as divergências na elaboração do PNE, como aquelas relacionadas às formas organizativas construídas desde a década de 1980 pelo movimento docente, à destinação e disputa do fundo público, aos percentuais, dentre outras, no quadro mais geral das diferenças de concepção sindical que divide o movimento sindical brasileiro.

Um quadro de disputas em torno das concepções e estratégias sindicais, que marcam passagem do novo sindicalismo para um sindicalismo de resultados, situam- se ainda nos anos 1990 e vai se aprofundando nas décadas seguintes. Antunes (1995, p. 51) explica como vai se dando essa mudança a partir da década de 1990:


Centrando ao longo dos anos 80 sua atuação através do confronto e da resistência [...] o movimento sindical, que tem a CUT como referência, está presenciando uma fase de negociação e participação que, embora tenha uma aparência de um avanço – uma vez que lhe permite “participar”, junto com o capital, de decisões de politicas setoriais – está, em verdade, vivenciando um grande retrocesso. Tanto por distanciar-se do seu passado mais ousado, quanto por que esta ação negociada, por estar atada a um acordo e a um projeto do capital, o impede de oferecer uma alternativa duradoura e inspirada em elementos estratégicos, que efetivamente represente o conjunto dos trabalhadores (grifos do autor).


Complementa ressaltando que vai ganhando cada vez mais força “[...] a postura de abandono de concepções socialistas e anticapitalistas, em nome de uma acomodação dentro da ordem [...]” (ANTUNES, 1995, p. 53).

Esse processo de acomodação, em nossa opinião, aprofunda-se com a vitória de Lula da Silva no pleito de 2002 e, com isso, o avanço da institucionalização movimento sindical. A postura conciliatória da maioria das organizações sindicais expressou-se, por exemplo, no apoio, muitas vezes, irrestrito e incondicional ao governo e às suas reformas de matizes neoliberais, como a contrarreforma da previdência, em 2003, que atingiu, principalmente, os servidores públicos federais, os quais reagiram por meio de uma greve nacional.

Essa compreensão de parte do movimento sindical, de que Lula era um governo em disputa, acabava privilegiando a negociação em detrimento do confronto. Práticas envolvendo os fundos de pensão, dentre outras táticas que predominavam no movimento sindical, resvalam no FNDEP, levando ao seu esgarçamento e sua dissolução. Como já demonstramos anteriormente, reflete-se também nos debates acerca da participação ou não em espaços governamentais, como a Conae e, estabelecem distinções mais específicas sobre exclusividade ou não do fundo público para a educação pública, sobre o percentual a ser aplicado, acerca da emergência ou não dessa aplicação etc.

As controvérsias que envolveram o Andes-SN e as entidades que constituíam o FNDEP no início dos anos 2000, e as entidades que passaram a congregar a Conae e, posteriormente, a Conape não se limitam à defesa da educação pública, gratuita, laica, socialmente referenciada e da exclusividade de recursos públicos exclusivamente para a escola pública, embora, estas polêmicas já sejam bastante expressivas quanto à concepção de educação, mas, sobretudo, dizem respeito a concepção e estratégia sindicais. O Andes-SN manteve-se no campo do sindicalismo combativo, classista, autônomo e independente e, consequentemente, isso tem impacto nas mais diversas posições politicas assumidas ao longo da sua história.

Vale destacar, ainda, que, no momento atual, em meio a esses retrocessos, a tarefa mais importante e urgente para o conjunto do movimento sindical e dos movimentos sociais, é unificar todos e todas mesmo que se organizem sob a base de concepções sindicais diferentes, resguardadas as suas diferenças, para defender os direitos historicamente conquistados e as liberdades democráticas por mais limitadas que sejam sob a égide do capital. Por outro lado, é necessária a rearticulação de todos os setores que defenderam e defendem historicamente a escola pública, gratuita, laica, de qualidade social, classista e democrática, e se contrapor à hegemonia dos setores mercantis e privatistas da educação.

Para tanto, o III ENE constituiu-se num momento importante nesse processo por estabelecer um espaço plural, democrático, independente, e que partiu da síntese das elaborações do FNDEP, dos I e II ENE e, ao mesmo tempo, avançou na elaboração do projeto classista e democrático de educação atualizado à luz da conjuntura e dos desafios atuais.

Para seguirmos avançando nessa perspectiva, importa retomarmos a chamada da carta da II CBE (a partir de SILVA, 1982, p.100) que o direito de acesso à educação se constitua em uma reivindicação enraizada na consciência e mobilize, cada vez mais, amplas camadas exploradas da população.


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v.17, nº 33, mai-ago (2019) ISSN: 1808-799 X


OCUPAÇÃO E CONTRA OCUPAÇÃO DE ESCOLAS PÚBLICAS: O CARÁTER POLÍTICO-EDUCATIVO DA MOBILIZAÇÃO COLETIVA1


Sérgio Paulo Morais2 Denise Nunes De Sordi3 Douglas Gonsalves Fávero4


Resumo


Este artigo analisa a dimensão formativa de caráter político-educativo que emergiu a partir da experiência de estudantes que ocuparam escolas públicas em Uberlândia (MG), no ano de 2016. Evidenciamos, a partir da história oral, as formas como a organização individual e coletiva foram interpretadas no contexto da totalidade social. Em virtude do momento da produção das entrevistas e da não completude da própria pesquisa, focaremos, com mais precisão, em consciências reveladas durantes os atos de protestos e as relações com as instituições de ensino. Desse modo, apresentamos como ocorreu o movimento de ocupação e contra ocupação das escolas e o processo educativo vivido pelos ocupantes, que a partir da ação direta promoveram um processo de penetração e compreensão das estruturas sociais.

Palavras-chave: Ocupações de escolas; Organização coletiva; Organização escolar; Estudantes secundaristas.


OCUPACIÓN Y CONTRA OCUPACIÓN DE LAS ESCUELAS PÚBLICAS: EL CARÁCTER POLÍTICO-EDUCATIVO DE LA MOVILIZACIÓN COLECTIVA


Resumen


Este artículo analiza la dimensión formativa de carácter político educativo que emergió a partir de la experiencia de estudiantes que ocuparon escuelas públicas en Uberlândia (MG), en el año 2016. Evidenciamos, a partir de la historia oral, las formas como la organización individual y colectiva se interpretaron a partir de la totalidad social. En virtud del momento de la producción de las entrevistas y de la no completitud de la propia investigación, enfocaremos, con más precisión, en conciencias y consciencias reveladas durante los actos de protestas y las relaciones con las instituciones de enseñanza. Así, presentamos como ocurrió el movimiento de


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1Artigo recebido em 21/02/19. Primeira avaliação em 19/04/19. Segunda Avaliação em 20/05/19. Aprovado em 25/06/19. Publicado em 04/07/2019. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.17i33.p29372.

2Doutor em História Social pela PUC/SP. Professor da graduação e pós-graduação em História (PPGH/INHIS) e dos programas de pós-graduação em Educação (PPGED) e em História (UFU), coordenador do Grupo de Pesquisa Experiências e Processos Sociais (GPEPS/CNPq). ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7827-3373. E-mail: sergio.paulo@ufu.br.

3Doutora em História Social pelo PPGHI/UFU. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Experiências e Processos Sociais (GPEPS/CNPq), associada do Grupo de Investigação História Global do Trabalho e dos Conflitos Sociais (IHC/UNL). E-mail: denisends@me.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0003- 0536-2863.

4Doutorando e mestre em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Uberlândia. Pesquisador do Grupo de Pesquisa Experiências e Processos Sociais (GPEPS/CNPq) e do Grupo de Pesquisa Trabalho, Sociedade e Educação (GPTES/ CNPq). E-mail: faverodg@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1170- 3727.

ocupación y contra la ocupación de las escuelas y el proceso educativo vivido por los ocupantes, que a partir de la acción directa promovieron un proceso de penetración y comprensión de las estructuras sociales.

Palabras clave: Ocupaciones escolares; Organización colectiva; Organización escolar; Estudiantes secundarios.


OCCUPATION AND COUNTER-OCCUPATION OF PUBLIC SCHOOLS: THE POLITICAL EDUCATIONAL CHARACTER OF COLLECTIVE MOBILIZATION


Abstract


This article analyzes the formative dimension of educational political character that emerged from the experience of students who occupied public schools in Uberlândia (MG), in the year 2016. We highlight, from the oral history, the ways in which individual and collective organizational processes were interpreted from the social totality. Due to the moment that we did the interviews, and the development of the research, we focus, more precisely, in revealed conscious during the acts of protests and their relationship with the education institutions. Thus, we show how the movement of occupation and counteracting schools and the educational process lived by the occupants, who from the direct action promoted a process of penetration and understanding of social structures.

Keywords: School occupations; Collective organization; School organization; Secondary students.


Introdução


O presente artigo refere-se a uma ação vinculada a pesquisas que estão sendo desenvolvidas sobre experiências sociais de trabalhadores no Triângulo Mineiro, Minas Gerais, durante os primeiros anos do Século XXI.5 As resistências e conformações às bruscas transformações históricas, advindas da implementação do neoliberalismo no Brasil, desde a década de 1990 e as utilizações de entrevistas gravadas, a partir de roteiro semiestruturado com os sujeitos sociais, são os principais pontos de interligação entre esses estudos.

As formas de tratamento de tais entrevistas seguem discussões a respeito da “história oral” enquanto procedimento teórico-metodológico (PORTELLI, 2016) de pesquisa. Para tal movimento, o exercício de produção e interpretação de narrativas faz-se mediado por referenciais teóricos de base materialista e dialética. 6 Nesse


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5 A pesquisa está sendo realizada por integrantes do Grupo de Pesquisa Experiências e Processos Sociais (GPEPS) é constituída pela junção dos seguintes projetos: “História Social e História oral: pesquisas sobre trabalho e trabalhadores no Triângulo Mineiro (2000-2016)”, com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado Minas Gerais (FAPEMIG/APQ – 02063-17); “Ensino Formal e Programa Bolsa Escola Federal: experiências, vivências e interpretações de assistidos na cidade de Uberlândia MG”, com financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), (Cnpq/409878/2018-9) e Edital Fundação de Apoio Universitário (FAU) da Universidade Federal de Uberlândia, (FAU/UFU – Edital 002/2018).

6 Em “A Ideologia Alemã”, Marx e Engels, partem de um pressuposto o qual tentamos retomar em nossas pesquisa. A saber: “Os pressupostos de que partimos não são pressupostos arbitrários, dogmas, mas pressupostos reais, de que só se pode abstrair na imaginação. São os indivíduos reais, sua ação e suas condições materiais de vida, tanto aquelas por eles já encontradas como as produzidas por sua própria ação. Esses pressupostos são, portanto, constatáveis por via puramente

sentido, consideramos como ponto de partida os “significados da experiência pessoal, por um lado, e ao impacto pessoal das questões históricas, por outro” (PORTELLI, 2016, p. 16).

Nesse sentido, a produção de fontes orais permite a apreensão das relações sociais que denotam as estruturas de formas políticas que estão determinadas por contextos sociais específicos. Tais contextos são apropriados pelos sentidos e interpretações de uma história privada que localiza em seu interior a formação de uma história pública, ou socialmente partilhada sobre eventos específicos.

Na relação entre as dinâmicas privadas e públicas, as quais os sujeitos se colocam pelos movimentos das relações sociais vividas, dentro de um modo de produção historicamente determinante, “a história oral [...] diz respeito não só ao evento”, no caso coletivo dos sujeitos de nossas pesquisas; “diz respeito ao lugar e ao significado do evento dentro da vida dos narradores” (PORTELLI, 2016, p. 12).

Assim, o que oferecemos por meio deste artigo, que trata de uma perspectiva ainda em desenvolvimento nas pesquisas as quais participamos, não é, portanto, a experiência vivida em dimensão absoluta e totalmente controlável “cientificamente”. Porém, certamente, “temos em mãos algo que carrega no mínimo alguma relação com a experiência do sujeito” (PORTELLI, 2010, p. 160).

A experiência, dessa forma, consiste em uma resposta mental e emocional, resultando em ação, de indivíduos e grupos sociais a acontecimentos específicos, abarcando duas dimensões: a experiência vivenciada e a experiência sentida e pensada (THOMPSON, 1981). Nesse sentido, os indivíduos não são tomados como autônomos e livres, mas vivem:

[...] como pessoas que experimentam suas situações e relações produtivas determinadas como necessidades e interesses e como antagonismos, e em seguida “tratam” essa experiência em sua consciência e sua cultura [...] das mais complexas maneiras (sim, “relativamente autônomas”) e em seguida [...] agem, por sua vez, sobre sua situação determinada. (THOMPSON, 1981, p. 182, grifos do autor).


As considerações sobre experiências e a relação concreta com as dinâmicas condicionadas do viver, ocorre em perspectiva a uma concepção materialista sobre



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empírica. O primeiro pressuposto de toda a história humana é, naturalmente, a existência de indivíduos humanamente vivos.” (MARX, ENGELS, 2007, p. 86-87).

a história, por meio da negação “da moderna fragmentação do eu”, de modo que “traçar a unidade do eu torna-se, então, um dos impulsos mais poderosos para a narração de uma história de vida” (PORTELLI, 2010, p. 173).

Na concepção liberal, o indivíduo torna-se um ser independente, a-histórico, atomístico. Para Marx (2011, p. 39-40), a economia política “robinsonou” (representado na imagem de Robinson Crusoé em sua ilha, do romance de Daniel Defoe, de 1719) o indivíduo, que se tornou isolado, atomizado e sem determinações sociais.

Partimos teoricamente, então, da percepção de indivíduos vivos (“de carne e osso”) cuja ações estão assentadas em crises, mudanças e permanências na sociedade capitalista e, ao mesmo tempo, em contraposições à tais dinâmicas. Essas relações dialéticas criam, no contexto presente, antagonismos diversos, os quais sintetizam disputas de gênero, etnia, por reconhecimento de condições sexuais e de classes.

Esse é um importante eixo para a produção e interpretação de entrevistas no campo histórico. Pois o ser social (indivíduo humano), concreto, síntese “de uma rica totalidade de muitas determinações e relações" (MARX, 2011, p. 54), produz história ao mesmo tempo em que vive um processo histórico determinado.

A discussão em tela analisa a experiência de jovens secundaristas que ocuparam escolas públicas estaduais em diferentes regiões da cidade de Uberlândia

– MG, durante os meses de outubro e novembro de 2016. Nesse sentido, as entrevistas e a metodologia de interpretação das mesmas se particularizam, pois, foram realizadas durante o período de ocupação, em meio as ações de protestos e tensões postas pelo Ministério Público, pelos movimentos de desocupação, entre outros (MORAIS, 2018).

A pesquisa sobre tal temática desenvolverá, ainda, um desdobramento do que ora apresentamos. O intuito será o de refazer entrevistas com ocupantes, que atualmente cursam graduações distintas, para então, fazer o exercício de avaliação, por meio de memórias, entre duas distintas conjunturas (Governo de Jair Bolsonaro e a consolidação dos cortes nos recursos públicos frente a possibilidade de que isso

não ocorresse em 2016, durante o curto e, também, avassalador governo de Michel Temer).7

O desdobramento desse tema buscará lidar com as consciências surgidas e reelaboradas por meio dos episódios de ocupações de escolas, os quais, abordados nas ocorrências imediatas das ações, ainda não foram suficientemente reveladas e nem interpretadas, diante o contexto das totalidades sociais.

Desse modo, ainda sem as mais recentes entrevistas produzidas, nos limitaremos ao plano das consciências produzidas no decorrer das manifestações, elaboradas por meio de informações, tomadas de atitudes, experimentos de ação direta contra, a princípio, sinais de contenção de gastos sociais com a educação. Essas, entretanto, proporcionaram-nos a revelação de “normas surdas”8, provenientes de relações não democráticas sedimentadas nas instituições de ensino providas e geridas pelo Estado (WELLER, 2014).


“A gente pensou que ocupar era a melhor forma”


O fenômeno das ocupações de escola se iniciou no Brasil no ano de 2015 (De Sordi; Morais, 2016), sobretudo, por conta de modificações nas estruturas organizatórias das instituições de ensino nos governos de São Paulo e de Goiás. Os governos “psdbistas”9, em nome do enxugamento dos recursos e da “melhoria” do padrão de ensino por meio da modificação dos modos de gestão, propuseram medidas neoliberais que não condiziam com os interesses de discentes e de suas famílias.

O governo de São Paulo argumentava que o número de salas ociosas havia aumentado nos últimos anos e era preciso um remanejamento para otimizar os espaços. Assim, em setembro de 2015, a Secretaria de Educação apresentou uma reorganização que fecharia 92 escolas e obrigaria a adequação as novas condições de


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7 Nos referimos à Jair Messias Bolsonaro, filiado ao Partido Social Liberal (PSL), presidente eleito em 2018 e a Michel Temer, Movimento Democrático Brasileiro (MDB), tornado presidente após o impeachment da Presidente Dilma Rousseff, Partido dos Trabalhadores (PT), em 2016.

8 “Geralmente, um modo de descobrir normas surdas é examinar um episódio ou uma situação atípicos. Um motim ilumina as normas dos anos de tranquilidade, e uma repentina quebra de deferência nos permite entender melhor os hábitos de consideração que foram quebrados. Isso pode valer tanto para a conduta pública e social quanto para atitudes mais intimas e domésticas”. (THOMPSON, 2001, p. 235).

9 Nos referimos aos governadores Geraldo Alkmin (São Paulo) e Marconi Perillo (Goiás), vinculados ao Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB).

aproximadamente 300.000 estudantes. Após uma luta iniciada com abaixo-assinados, protestos nas ruas e tentativas, sem sucesso, de conversa com dirigentes de ensino do estado, os estudantes passaram às ocupações. Em São Paulo, foram aproximadamente

200 escolas ocupadas naquele período em protesto contra a reorganização. [...] No estado de Goiás as ocupações ocorreram em protesto ao projeto apresentado pela Secretaria de Estado de Educação, Cultura e Esporte (Seduce) que previa já para o início do próximo ano, 2016, a militarização de mais 20 escolas, o estado de Goiás é o que tem o maior índice de escolas militarizadas no Brasil, 26, seguido por Minas Gerais com 22 e a Bahia com 13, e a gestão compartilhada de 25% das unidades educacionais do estado, cerca de 250 escolas, com Organizações Sociais (OSs), ou seja organizações privadas gerindo as unidades educacionais com dinheiro público (PREVITALI et al., 2019, p. 269).


Nas ocupações de 2016 as pautas relacionaram-se diretamente contra ações do Governo Federal, sob a gestão de Michel Temer em função do contingenciamento orçamentário e com o controle ideológico das escolas (Reforma do Ensino Médio, PEC 241 e programa Escola Sem Partido). A PEC n˚ 241, aprovada no dia 13/12/2016 e que congelou os gastos do governo pelos próximos vinte anos também ficou conhecida como “PEC do fim do mundo”, “PEC da morte” ou “PEC do teto” entre a situação (MORAIS, 2018).

A Medida Provisória n˚ 746, popularmente conhecida como Reforma do Ensino Médio, refere-se ao projeto – já aprovado – de recomposição dos principais eixos do atual modelo de ensino formal. O Projeto de Lei n˚193/2016, conhecido também por ‘Lei da Mordaça’, inclui o programa Escola sem Partido entre as diretrizes da educação formal nacional e declara ter por objetivo combater a doutrinação política e ideológica em sala de aula e garantir o ensino moral e religioso (MORAIS, 2018).

Mais de 1000 escolas de ensino médio foram ocupadas por todo o pais e desta vez, também os estudantes do ensino superior adensaram o movimento, ocupando universidades federais e estaduais em Brasília (DF), Rio Grande do Sul, Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro, Espirito Santo, Minas Gerais, Mato Grosso, Goiás, Alagoas, Rio Grande do Norte e Pernambuco. No Paraná, as ocupações tiveram início no dia 3 de outubro de 2016 e, segundo nota da Secretaria de Estado da Educação atingiram 31% das escolas da rede, equivalente a 750 unidades de ensino e cinco universidades. Já nos números divulgados pelos estudantes do movimento Ocupa Paraná, no dia 01 de novembro de 2016 havia 836 unidades de ensino, 14 universidades e 3 núcleos ocupados. No estado de São Paulo, [...] foram ocupados, incluindo-se o ensino

médio e superior, 407 unidades escolares [...] (PREVITALI et al., 2019, p. 271).


Em Minas Gerais “foram 38 escolas de ensino médio sendo 2010 delas localizadas na cidade de Uberlândia, região do Triangulo Mineiro. Ou seja, 53% do total das ocupações do estado” (PREVITALI et al., 2019, p. 271). O ato inicial do movimento de ocupações na cidade ocorreu no dia 5 de outubro de 2016. Reunidos no grêmio da Escola Estadual (E. E.) Prof. José Ignácio de Sousa e no “Movimento Vozes do Futuro”11, discentes realizaram uma audiência pública na Câmara Municipal colocando em debate a PEC n˚ 241, a Reforma do Ensino Médio e o Projeto de Lei Escola Sem Partido (Movimento..., 2016), onde fizeram uma ocupação simbólica do plenário. Como informou um dos estudantes entrevistados pelo jornal Brasil de Fato, foi a partir desse ato que a ideia da ocupação das escolas começou a tomar forma:

Fizemos uma primeira manifestação, mas vimos que não ia render muito, então como já tem um movimento chamado Primavera Secundarista, a gente pensou que ocupar era a melhor forma de divulgar o movimento e assim conseguimos quebrar esse bloqueio. Antes da gente não tinha quase nada na mídia nacional sobre o Triângulo Mineiro, a gente foi, deu a cara, falou pra todas, deu entrevistas (LEÃO et al., 2016).


No dia 18 de outubro de 2016 foram ocupadas as seguintes instituições de ensino: E. E. Prof. José Ignácio de Sousa (Machado, 2016), E. E. Américo René Gianetti (CÉLIO; MACHADO, 2016; PEREIRA; BRANDANI, 2016) e E. E. Messias

Pedreiro (PEREIRA, 2016). No dia 20 de outubro as escolas estaduais Prof. Juvenília Ferreira dos Santos, Teotônio Vilela e Prof. Ederlindo Lannes Bernardes foram ocupadas (Romario, 2016a). No dia 21 já se contabilizavam treze escolas ocupadas (HENRIQUES, 2016). No período de maior mobilização esse número chegou a 29, dentre as 34 existentes na cidade (SOUZA, 2016).


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10As publicações da imprensa, nas redes sociais e, posteriormente, em periódicos acadêmicos trazem divergência quanto ao número de escolas ocupadas. Previtalli, et al. (2019) apresenta o número de

20 escolas, enquanto a página do Facebook Ocupa Tudo – Uberlândia, em publicação de 23/10/2016, divulga um número de 28 (OCUPA..., 2016) e, Souza (2016) o número de 29 escolas ocupadas.

11 O “Movimento Vozes do Futuro”, na prática, dava-se quase como uma extensão do grêmio da E. E. Prof. José Ignácio de Sousa, só que com uma maior capacidade de mobilização e alcance. O movimento foi criado pela primeira escola a ser ocupada e foi o responsável pela criação de uma página de divulgação das ocupações. Conforme as outras escolas ocupadas criaram seus mecanismos próprios de divulgação a página voltou a sua ocupação de origem.

Durante as ocupações, os estudantes se organizaram para manter as escolas em pleno funcionamento. Prepararam suas refeições, cuidaram da limpeza dos prédios, consertaram equipamentos e geriram espaços de deliberação:


[...] Um exemplo, a gente tem limpado a escola todo dia, a gente tem acordado cedo, a gente tem um horário de acordar, a gente tá limpando a escola, lavando o banheiro, até coisa que a escola não faz no dia a dia a gente faz aqui. A gente rastela a grama, hoje nós..., a gente rastelou (LAURA, 2016).


Essas formas de mobilização e organização evidenciaram um profundo processo pedagógico em que as situações exigiam tomadas de decisões e criavam necessidade de participação coletiva (GOHN, 2011, p. 333). O procedimento de construção de autonomia e de descobertas – forjadas nas ocupações – permitiu que ocorresse, então, uma ampla experiência de formação integral (ARROYO, 2013), mesmo que dentro da ordem capitalista de ensino.

Os estudantes se apropriaram não somente do espaço físico das escolas, mas de seus currículos e propiciaram outras formas de aprendizagem. Agiram individual e coletivamente para lidarem com os componentes culturais, éticos e políticos, de modo que, pela prática, ampliaram as possibilidades de construção de solidariedade social, organização da produção intelectual e de novas visões sobre como deveria ser o ordenamento do contexto educacional.

Felipe articulou os significados dessa dimensão formativa ao relatar, dessa forma, sua experiência na ocupação:


[...] aqui na ocupação, aqui temos palestras, temos assembleias, que a gente conversa um com o outro, conversa em roda, ao ar livre, troca experiências né, conteúdos [...] e isso é interessante é uma visão que eu não tinha antes, antes eu vinha pra escola assim planejando o futuro mas agora aqui com o movimento eu tô entendendo que é um movimento social por completo, e através desse movimento social eu tô entendendo que é a cultura então, pelo menos pra mim, como um secundarista, então me acrescentou muito e eu tenho certeza que eu vou levar isso aqui pra toda a minha vida, mas não só né, sobre cultura e o movimento mas também o respeito, a paciência, porque aqui a todo momento testa sua paciência e seu psicológico [...] (FELIPE, 2016).


Considerando que a maioria das escolas não possuía grupos previamente organizados, a adesão dos estudantes não ocorreu diretamente a partir da ação de grêmios e/ou de coletivos. Pois, como relataram os estudantes, os grêmios nas

escolas – principalmente nas consideradas periféricas – cumpriam apenas funções determinadas pelas direções, o que se colocava como dissonante das ideias sobre a existência de gestão democrática escolar:


Denise: E vocês têm algum grêmio, representante de sala? Alguma coisa assim?

Alice: Tem representante de sala só que a gente não escolhe os representantes de sala, é tipo o aluno melhor sabe? Aquele que ninguém gosta, pior pessoa! [...] (ALICE, 2016).


Denise: Você tem, vocês têm grêmio, representante de sala aqui? Lucas: Tem representante de sala.

Denise: Mas não vira nada?

Lucas: A... eles desce lá só pra assinar seu nome na pastinha porque, que é o seguinte, cê assina seu nome na pastinha, três vez, cinco vezes, é suspensão, convocação que chama seu pai, mais três é suspensão [...] (LUCAS, 2016).


Denise: [...] não sei se vocês aqui têm algum tipo de representatividade, se vocês já têm um grêmio na escola, ou... [...] Melina: [...] A nossa escola na parte da manhã é bem ditatorial, extremamente, então... o grêmio, ele não tem espaço, eu comecei, no começo do ano, querendo criar um grêmio pra escola, querendo propor roda de conversa, até que eu descobri que já tinha um

grêmio, existente, que queria fazer tudo isso, mas era barrado, era proibido de agir, sabe? Grêmio, morto!

Denise: E vocês tem algum tipo de representatividade além do grêmio? Junto à administração da escola?

Melina: Tem o, o colegiado, mas num... Augusto: Não funciona.

Melina: ... não funciona tanto (AUGUSTO; MELINA, 2016).


A perspectiva: “Grêmio, morto” é bastante significativa e propõe indícios sobre a forma particular desses eventos. De certo modo, admitimos que tais ações fazem parte do que se tem considerado como Movimento Social (PREVITALI et al., 2019). Porém, as ocupações, mesmo em rede de apoio com outros movimentos e sindicatos, se diferenciam de outros modos de organização por democracia e por questões de direitos coletivos palpáveis (transportes, moradias, contra a carestia), ocorridos no Brasil, durante os anos 1970/80.

Pois, de modo diferente, esses movimentos não dialogam diretamente com sindicatos e entidades religiosas, mesmo recebendo apoio direto dos mesmos. Além disso, não respondiam diretamente as entidades de representação, no caso a União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBES, s/d). Nesse sentido, será importante, no desenvolvimento da pesquisa, buscar compreender o porquê de o

repertório “Ocupar Escolas” (Alonso, 2012) não mais ter ocorrido após o ano de 2016.12

Além disso, sem a pretensão de desconsiderar as condições de classe dos estudantes, as ocupações de escola não se relacionam com o empobrecimento nacional, ampliado e presente em 2016. Sobre tais movimentos, BLIKSTAD (2017) observa serem “vias possíveis para a solução de seus problemas de subsistência e sobrevivência, o que, nos casos destes movimentos, significa a demanda por um bem material que é individualmente usufruído” (BLIKSTAD, 2017, p. 28). Contrário a isso, as narrativas visam o futuro em carreiras e em ocupações características de classes médias. O que não contradiz com demandas de escolas mais democráticas e até mesmo mais produtivas (em termos de cultura, arte e ampliação das sociabilidades).

De acordo com DANOSO (2014), as dimensões representativas nas escolas compõem o lugar onde se pode observar como antigas práticas não democráticas subsistem, de modo que geram pontos de conflito e tensão permanentes. Frente a tal cenário, a mobilização foi impulsionada pela iniciativa de grupos de estudantes, que se orientaram por diversas redes e fontes de informação:

Tá, eu faço parte do grêmio estudantil, aí, quando tava começando as ocupações lá no Paraná́ , uma semana antes da gente ocupar aqui a gente foi revendo como que tava lá a gente pesquisou sobre as ocupações [...] nos preparamos primeiro, conseguimos apoio, tudo que a gente precisava para acontecer a ocupação com sucesso aí

deu tudo certo (LAURA, 2016).


Em tais dinâmicas, os estudantes projetaram aquilo que esperavam das escolas ocupadas:


[...] sair do padrão, de sala de aula [...] todos os alunos olhando pra nuca um do outro [...] que todo mundo olha no rosto um do outro, no olho um do outro, olhar no olho, e o professor comentando né, assuntos que estão em alta [...] estimulando a pessoa, estimulando a curiosidade dela, a tá, pesquisando, estudando, tá procurando saber, [...] hoje você pesquisa, amanhã você tem uma dúvida, isso aí vai poder entrar num debate vai uma coisa que você tendo alguém que te explica, você pesquisa e o professor aprende com você, você aprende com ele [...] porque a única forma de uma pessoa de classe



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12 Em relação a isso, vale, também notar o paradismo dos estudantes em 2019 (dias 15 e 30 de maio de 2019), quando a UBES e a UNE (União Nacional dos Estudantes) retomam o protagonismo nacional de tais ações.

baixa igual a gente se ela não tem amigo, é pelo estudo, é pela parte da educação [...] umas pinturas, aprofundar mais na parte da arte, uma aula de teatro, coisa que não costuma ter no ensino médio, a parte do, da literatura também, igual mesmo nessa escola esse ano mesmo tipo acho que a gente foi pra biblioteca pegar livro uma vez só, tipo essa parte tá tentando chamar o aluno a tá sentindo o prazer de estudar, não aquela coisa opaca assim, que você não sente “nossa a gente tá aprendendo, ganhando conhecimento”. Na minha escola ideal tinha que ser assim, porque do jeito que tá agora... (FELIPE, 2016).


A narrativa de Felipe demonstra uma dimensão importante do processo educativo vivido pelos secundaristas, em que a mobilização e a organização coletiva colocaram novas questões sobre a percepção que os jovens tinham sobre as relações sociais experimentadas, ampliando o feixe de compreensão do contexto e das estruturas sociais vigentes. Da mesma forma, possibilitou uma maior compreensão sobre as relações existentes na própria escola, que geralmente eram despercebidas ou naturalizadas pelo cotidiano, abrindo novas possibilidades e perspectivas, como continua Felipe:


Eu, eu vinha na escola, na instituição que eu estudo, e vou embora, e agora não, eu sei o que é tá, o que é valorizar, desde a tiazinha que tá ali fazendo a comida, até o diretor que tá lá dentro da sala dele, a tesoureira que tá ali fazendo uma, movimentando o financeiro da escola, então eu tô sabendo [...] Respeitar todos sabe? E querer quebrar o tabu que é o professor que manda na sala e o que ele fala a gente ouve e se tiver ruim pergunta... eles, né, vindo aqui na escola, eles aprendem conosco, né? Eles viram que o movimento é organizado e que não é só o que é, nós não somos só o que eles veem no dia a dia dentro da sala de aula, somos capazes sim! De merecer o respeito deles! [...] Mesmo que, se não ganhamos né, a guerra contra a PEC, pelo menos eu sei que o meu modo de ver e de socializar com todos mudou! [...]. agora eu tô muito mais que antes eu tô ansioso pra poder tá na faculdade, e aí eu tenho certeza que o movimento mudou minha vida pra sempre [...] E quero né, tá sempre, é.. explorando, de tudo um pouco, usando né, de certa forma, de um jeito bom a curiosidade (FELIPE, 2016).


De acordo com WILLIS (1991), posições ou pontos de vista individuais estão referenciados em formas culturais presentes na totalidade social e são transformados mediante vivências coletivas. Isto é, a articulação se faz a partir de grupos e em trocas que ocorrem em seu interior. Trata-se de uma experiência formativa que permite insights, visões globais do papel dos indivíduos nas formas estruturantes de determinada sociedade de um tempo específico. Com a experiência

da ocupação os estudantes se apropriaram das formas estruturantes da organização escolar, passaram a questioná-las e, assim, pautaram seu próprio projeto para as escolas.

As mediações entre o presente e os projetos futuros se colocaram de forma ampliada. A partir da relação com agentes do Estado, redes de solidariedade e com a imprensa, os estudantes forjaram respostas e estratégias em sua ação política: “É o futuro existente no presente que funde liberdade e desigualdade na realidade do capitalismo contemporâneo” (WILLIS, 1991, p. 152).

Como notou Donoso (2014), as questões pautadas pelo movimento estudantil chileno são significativas da relação com as próprias dinâmicas de representatividade social e com as relações de produção capitalistas. No contexto das ocupações de 2015 e em 2016, notamos que os questionamentos realizados pelos estudantes compuseram uma gama heterogênea de percepções sobre a democracia, os direitos e o acesso à serviços públicos de qualidade.

A demanda por uma gestão participativa e democrática nas escolas emergiu nas falas como um fator que poderia – se aplicado – proporcionar outro modelo de aprendizagem e convivência:

É, reduzir a gente a uma nota... uma simples nota também, cada aluno tem o seu jeito de aprender, a gente tá enxergando isso bastante, eu acho que tudo isso tinha que ser mudado, essa coisa de, de dever de casa, muitos alunos têm que trabalhar e, eles chegam cansados em casa, e eles não vão lembrar de fazer e, tirando que, o dever, dever de casa entre aspas, quando é feito na sala, com outras pessoas, você consegue absorver muito mais, porque você tem a ajuda dos seus colegas também. [...] Sabe? Se tivesse é, aulas mais dinâmicas, em que os alunos pudessem participar de verdade, que os alunos pudessem propor temas, que os alunos pudessem propor é, rodas de conversa, uma escola em que os alunos tivessem presentes e vivos! (MELINA, 2016).


A, eu acho assim que para começar os alunos eles deveriam colocar mais os alunos para fazer as coisas, sabe? E deveriam ouvir também porque eu não acho que nós somos ouvidos né? Pela direção, as nossas ideias não são ouvidas, eu acho que isso é algo que deveria ter no cotidiano da escola, ouvir os alunos [...] (JULIANA, 2016).


[...] uma escola que aceite a opinião de alunos, sabe? Aceite críticas construtivas, sabe? Uma escola onde possamos né impor né, ideias, falar “diretora vamos fazer tipo uma oficina hoje” pra poder tá... colocando alguns enfeites nessa, na escola, pra poder sair dessa cor, desse padrão, né? Um azul, branco, vermelho, um azul também, um

verde, sabe? Eu acho que, né? Impondo bem, sabe, algumas coisas aqui eu acho que a escola poderia ter há muito tempo sabe? É esse diálogo com os alunos, saber ouvir né, também pra poder tá pondo algumas ideias pra todos (TIAGO, 2016).


Mesmo não ocorrendo nos tempos de normalidade, os debates e atividades educativas promovidos durante as ocupações voltaram-se para a gestão escolar e para a reflexão sobre o processo de ensino e aprendizagem. Deste modo, os estudantes elaboraram novas formas e conteúdos para a educação, ainda que não completamente estruturada, pautaram reflexões sobre possibilidades de democratização da gestão escolar e sobre sua inserção nas formas de avaliação do processo de ensino e aprendizagem.

Segundo ORTELLADO (2016, p. 13), a ocupação de escolas associa-se a uma “política pré-figurativa”, pois tem a “capacidade de forjar, no próprio processo de luta, as formas sociais que se aspira, fazendo convergir meios e fins”. Assim, projetos e valores colocados pelos ocupantes apresentaram-se como “performativos daquilo que se busca” (ORTELLADO, 2016, p. 13), ou seja: uma “nova” escola forjada no interior de um panorama político distinto daquele se produzia em 2016.

Os conteúdos de ensino pré-figurados durante as ocupações foram desde palestras sobre “[...] educação sexual [...], de democracia” (MELINA, 2016) a aulas “[...] de astronomia, de circo” (LARISSA, 2016), “[...] de matemática, de física, de redação, com possíveis temas que pode[m] cair no ENEM [Exame Nacional do Ensino Médio]” (LAURA, 2016) à momentos de estudo coletivo e debates sobre a conjuntura que propiciaram formas de “ver mais as coisas”, de modo que: “[...] agora eu tenho uma visão melhor, mais ampla sobre as coisas. Era meio que alienada antes, agora eu estou abrindo mais meus olhos, pra poder ler mais sobre as coisas, vê tudo que tá acontecendo” (CARLA, 2016).

Os debates relativos às pautas das ocupações mobilizaram espaços de socialização e de participação política: “sempre quis participar porque eu acho muito importante eu sou muito ligada nisso, sério! [...] eu não consigo ficar bem com a opressão da outra pessoa. Nunca!” (ALICE, 2016); “Eu me interesso, mas eu não sabia quase nada, eu estou aprendendo muita coisa aqui nessa ocupação! [...]” (CARLA, 2016).

Neste ínterim, as relações familiares mostraram-se importantes para os ocupantes. Durante as entrevistas os estudantes informaram que ospais geralmente

apoiavam suas decisões de ocupar. De fato, muitas vezes quando chegamos nas escolas para realizar as entrevistas, encontramos pais ajudando a realizar a manutenção em algumas escolas ou mesmo participando dos debates e reuniões promovidos pelos estudantes.

Além disso, os ocupantes construíram redes de solidariedade que, extrapolando as relações familiares, abarcavam movimentos sociais, sindicatos, advogados e partidos políticos, objetivando apoio estrutural, de manutenção e de visibilidade de suas próprias estratégias políticas. De acordo com algumas das narrativas:

Os sindicatos de fora estão ajudando bastante, muitos aparecem aqui que a gente não sabia que ajudaria, ontem mesmo apareceu um novo. E trazem alimentos, trazem materiais de limpeza, [...]. Então pra gente é muito bom, a gente sempre recebe todos com muito carinho e muita gratidão (VITÓRIA, 2016).


A gestão dessa rede pelos estudantes conectou as escolas ocupadas com a distribuição de alimentos e das atividades que lhes eram ofertadas:


Todas as escolas que estão participando do movimento, elas não estão restritas somente a elas mesmo. Tá tendo compartilhamento de informação, como também tá tendo a questão de solidariedade, onde um tem e doa para o outro que não tem, entende. Então tá acontecendo isso. A gente não está restrito somente ao pessoal aqui da escola, a gente tá compartilhando isso com outras pessoas. [...] no início, se a gente não tivesse tido apoio de outra escola a gente ia ficar meio perdido, a gente não ia ter muito... por exemplo, a questão de alimentação, a gente recebeu ajuda a princípio, e isso foi superimportante. Tudo que a gente teve de ajuda foi superimportante e eu acredito que o movimento talvez não chegaria onde está se a gente não tivesse tido essa ajuda do pessoal e de outras escolas (CARLA, 2016).


Diversos voluntários, sobretudo da comunidade acadêmica universitária, passaram a oferecer aulas e atividades como forma de apoio à mobilização dos estudantes, o que gerou os “aulões” e as oficinas.

O apoio externo às ocupações e a organização em rede de solidariedade entre as escolas contribuíram para o equilíbrio das relações quando a polarização social se materializou a partir do movimento sistemático de desmobilização e repressão. Frente a ampliação sistemática de práticas pelo fim das ocupações, a

conexão entre as escolas foi fundamental para a articulação de estratégias de resistências.


“E que é muito maior [...] passou a ser um movimento gigantesco, sabe?”


No início das ocupações o Estado e a imprensa adotaram, o que parecia ser, uma postura neutra e tutelar: “Governo orienta diretores a manterem diálogo nas escolas ocupadas”, com recomendações como a de “acompanhamento das superintendências e das diretorias buscando mediar a solução para os processos de ocupação” (ROMARIO, 2016b).

Entretanto, a linguagem jurídica característica do Ministério Público Estadual (MPE) passou a dar o tom das notícias: “Promotor garante reinício de aulas na segunda-feira em escolas ocupadas” (ROMARIO, 2016c). Esta linguagem colocou- se como articuladora da busca pelas desocupações, expressa na entrevista coletiva concedida pelo promotor, esperando que: “[...] todos tenham a compreensão que o recado do movimento já está dado. Não quero ser obrigado a judicializar as desocupações e fazer com que elas ocorram com o uso da força policial” (R omario, 2016c). Nesse mesmo sentido, afirma o promotor:

Nós requisitamos aos diretores de escolas, à superintendência e solicitamos o apoio do Conselho Tutelar, apoio da Polícia Militar, apoio dos pais, para que o retorno das escolas na próxima segunda- feira pela manhã, dia sete de novembro, seja pacífico. Evidentemente que nós vamos tomar todas as cautelas para proteger todas as crianças que chegam como aquelas que estão nas escolas. Eu queria aproveitar o momento e pedir aos pais, o pai e a mãe daquele aluno que está ocupando a escola, que ele, a partir de agora, ele está ciente que aquilo que acontecer de mau, de ruim com seu filho, ele será responsabilizado, porque esses jovens estão dormindo nas escolas sem a presença dos pais, sem a presença de autoridade da educação. [...] A partir de agora, nós requisitamos o retorno dos alunos à escola e se não voltarem, eu vou entrar com ações civis para que os alunos desocupem as escolas à força (ALMEIDA, 2016b).


Essa forma polarizada de diálogo mobilizou a imagem de descaracterização da legitimidade e da autonomia do movimento de estudantes:


Vamos requerer ao Juiz Comissário da Infância e Juventude para que ele compareça às escolas para garantir o direito de quem quer

estudar. É inadmissível que se permaneça em curso um movimento que não tem nada de estudantil e viola todos os preceitos da Constituição Federal. Levem seus filhos nas escolas. Elas são de vocês não de um grupo político (ALMEIDA, 2016a, grifo nosso).


Mesmo sob coação, os estudantes não aceitaram o ultimato dado pelo MPE para que retornassem às aulas formais. Em resposta, enviaram ao promotor um documento com denúncias sobre as condições estruturais das escolas que foram acolhidas pela promotoria (ALMEIDA, 2016a).

A pressão pela desmobilização incorreu na tentativa de caracterização da rede de apoio e solidariedade às ocupações como “um grupo político” que estaria conduzindo as ações dos estudantes. Essa linguagem, em um contexto de polarização política nacional, acionou a atuação de pais e de grupos organizados contrários às ocupações.

Passaram então a ser frequentes as agressões aos estudantes por parte de pais de alunos, funcionários públicos e grupos contrários às ocupações. As ações destes foram designadas pelos estudantes, e até mesmo pelos que agiam de forma contrária aos que protestavam, por suas ações sistemáticas de pressão e repressão, como movimento “Desocupa”. Suas ações caracterizaram-se pela pressão e agressão psicológica e pela tentativa de depredação das escolas:

Ai, bastante difícil, eles vêm aqui as vezes, xingam a gente de idiota, falam que a gente é burro, que a gente tá atrapalhando aqueles lá fora que querem estudar, mas a maioria daquelas pessoas que querem estudar agora são aqueles que ficam aqui dentro da sala de aula e só colando da gente e não quer estudar. A maioria do povo que tá ocupando, tem nota boa, tem essas coisas. [...] A direção da escola também não apoia, fica meio que fazendo uma pressão psicológica pra gente desocupar, falando mal, falando que isso não vai dar certo. Quando os pais ligam aqui pra mandar os alunos pra escola eles falam assim que aqui só tá tendo bagunça, só tá tendo baderna, tipo meio que acaba com o nosso movimento, que vai vindo poucos alunos e aí a gente vai perdendo a força (CARLA, 2016).


É possível notar que o tipo de ação foi semelhante ao observado em outras regiões do país. Alice relatou-nos duas situações que ocorreram na escola em que estava e que coincidiram com atos registrados pela imprensa à época:


[...] no primeiro dia, é...entraram aqui dentro [...]. Tanto que rodou uns áudios na primeira noite que a gente foi dormir de gente que falou que ía entrar aqui e estuprar a gente... [...] O alarme disparou porque eles entraram aqui e tem sensor né. A gente ficou desesperado. E

tinha uma professora [...] aqui com a gente [...]. Aí... ela, ela ligou pra polícia tremendo, pediu pra fazer uma ronda aqui [...]. Sábado passado a gente tava aqui tendo reunião com os pais, a gente postou no grupo, na página do Facebook, que ia ter reunião com os pais, soltaram uma bomba aqui dentro, uma bombinha relativamente grande sabe? [...] (ALICE, 2016).


O aumento da pressão sobre os estudantes ocorreu com o anúncio do possível cancelamento da realização do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) pelo Ministério da Educação (MEC). Este ato foi interpretado pelos ocupantes como uma estratégia para a mudança da opinião pública favorável aos protestos, ao fazer uso da ideia de que as ocupações comprometeriam as atividades de ensino [ao invés de recriá-las ou pautar a necessidade de investimento do Estado na educação]:

Ele [ministro da Educação] quer apertar né, ele quer apertar a população para população se virar contra o movimento, então, porque, tipo assim, as escolas que estão ocupadas... é igual aqui que [...] tem o ENEM aqui, então... ele quer que a comunidade faça pressão, as pessoas façam pressão no movimento pra sair das escolas, e a gente não vai sair, porque o ENEM é um grande passo para a PEC não passar, entendeu? Porque eles vão ver que a gente não vai ceder e vão querer mexer, não é possível! (risos) (LARISSA, 2016).


Além de ser, também, compreendido como mais um ataque aos direitos sociais no âmbito da educação:

Eu acho que é pressão. Eles não pode cancelar o ENEM, o Brasil todo, ele depende também de um, de uma universidade pública, a gente precisa, eu mesma, meus pais, [não] têm condição de pagar uma rede de ensino particular e ter um bom futuro, é... pode ser pressão pra gente sair da ocupação, pra gente desistir, e se for acabar com o ENEM que acabe, e se for preciso a gente vai lutar contra isso também. Seja outra forma de manifestar, seja indo pra rua, seja ocupar a escola, a gente quer fazer o ENEM a gente quer lutar pelos nossos direitos (LAURA, 2016).


A maioria dos estudantes entrevistados adveio de famílias de trabalhadores do setor de serviços e da construção civil. Os que tinham irmãos mais novos ou mais velhos relataram que todos já tinham estudado ou estudavam na mesma escola, o que sugere uma permanência prolongada das famílias no mesmo bairro/região. Outro ponto que nos auxiliou a traçar o perfil desses estudantes foi o fato de que

muitos trabalhavam e/ou faziam cursos técnicos, assumindo, ainda, responsabilidades pelo cuidado doméstico e familiar junto aos pais.

O ensino superior se colocava, portanto, como uma possibilidade para se “ter um bom futuro”. A projeção de outra organização escolar não necessariamente intuía, como já frisamos, a demolição das estruturas das escolas, então, ocupadas. Os elementos de determinada forma cultural socialmente instituída mediaram vontade e ação que mesmo:

[...] não conscientemente dirigidas – [são] coletivas, no momento em que elas se sobrepõem e assumem elas próprias posições ‘criativas’, com relação às quais acabam reproduzindo o que chamamos de “determinações externas” (WILLIS, 1991, p. 153).


As pautas pela garantia de direitos sociais correspondiam (e ainda correspondem), em certa medida, às expectativas de condições de vida dos trabalhadores, e são evidenciadas pelas formas de mobilização praticadas pelos membros mais jovens de sua geração (WILLIS, 1991).

As ocupações propiciaram, assim, um processo formativo político-educativo – individual e coletivo – de dimensões éticas, políticas e culturais. A articulação entre pautas nacionais, relacionadas ao sistema de educação formal, e pautas locais, relativas à estrutura física e as relações hierarquizadas, fez com que os estudantes se apropriassem da cultura escolar vigente para propor mudanças nas estruturas de ensino e de poder no interior do sistema educacional vigente. Ao direcionarem suas ações para estratégias de ocupações de escolas, compreenderam, ainda que de forma não sistematizada, que se tratava de algo que:


É! E que é muito maior! Que abrange muito mais coisas! Já faz um tempo que, que deixou de ser é... a PEC 241 e passou a ser um movimento gigantesco sabe? Que depois só vai aumentar mais ainda! Então, é... a gente tá propondo um novo, um novo jeito de, uma nova escola, sabe? E eu acho que isso pode entrar na pauta de, do que fazer na pós ocupação, que que vai acontecer, porque, essa escola aqui nunca mais vai ser a mesma! As escolas que estão ocupadas, as pessoas que estão ocupando as escolas, nunca mais serão as mesmas! (MELINA, 2016).

Considerações finais: “Agora que eu tô tendo um olhar mais crítico pras coisas que acontecem ao meu redor”


As ocupações das escolas não conseguiram, no contexto nacional, barrar as pautas postas pela PEC n˚ 241 e a MP n˚ 746, que se transformaram em leis. Em relação à Escola sem Partido, após sucessivas derrotas em comissões parlamentares, hiberna no campo legal, porém, demonstra prática social em gravações de discentes e em constrangimentos postos em redes sociais (AGOSTINI, 2019; Escola..., s/d). Porém, as ações estudantis não podem ser avaliadas, no rol do desmonte geral de direitos, como um movimento derrotado. Pois, as manifestações estudantis, mesmo em outras formas de repertório, continuam presentes em oposição à cortes de verbas e na defesa da educação (que se quer) pública, em seus diversos níveis.

Além disso, as ocupações geraram situações de aprendizagem e produção de conhecimento político que mobilizaram estratégias de luta e de preservação de direitos sociais. Tais situações foram criadas na articulação de grupos para a organização de ações coletivas (WILLIS, 1991) que se caracterizaram por meio de diálogos horizontais (assembleias, organização de roteiros de estudos e de conteúdos de ensino) e foram explicitadas por meio de produção estética e textual (oficinas de cartazes, na criação de atos e ideias, na produção de documentos de denúncia). Nesse sentido:

Ao refletir sobre a formação humana, toma assento a palavra coletividade. Há diversas formas e espaços de vivenciar experiências, de aprender com elas e de lhes dar sentido, mas é indiscutível que o coletivo, pensado aqui como coletivo que reúne as pessoas em torno de objetivos comuns, em torno de algo que os identifica, permite a vivência de experiências que podem vir a se tornar emancipatórias (VENDRAMINI, 2004, p. 35).


Tratou-se de um processo de “penetração” que “design[ou] impulsos no interior de uma forma cultural dirigidos à compreensão das condições de existência de seus membros e de suas posições no interior do todo social” (WILLIS, 1991, p. 151). Esse processo não tinha em si o intuito de transformar as estruturas, mas pode ter potencializado os modos como os ativistas se entenderam enquanto sujeitos de transformação:

É, a gente não tá dando entrevista, mas a gente tem acompanhado o que tá passando na televisão, e... eles tipo, como é que fala? Eles contorcem tudo, da realidade que tá acontecendo na escola. Eles falam que tá tendo bagunça, eles falam que não tá tendo as coisas. Mas eu acho que dentro da escola, nenhuma tá dando entrevista, eles nem entram aqui pra falar coisa que o povo de fora fica falando mal, eles pegam e contorcem tudo. [...]. É, eu acho que isso é uma coisa nova, sei lá, agora que eu fui surpreendida por tudo isso que acontece, agora que eu tô tendo um olhar mais crítico pras coisas que acontecem ao meu redor (CARLA, 2016).


Durante a mobilização coletiva, os ocupantes modificaram as relações com a escola, revisitando e ressignificando-as, tais como a si próprios, no que tangia as preocupações com os cortes de gastos, com formas de desenvolvimento de solidariedade e com a ampliação ao apreço do que compreendiam ser democracia (dentro e fora das ambiências escolares).

As formas de produzir suas relações com a cultura escolar foram transmutadas, pelo menos no período das ocupações. Resta-nos averiguar se tais eventos efetivamente promoveram uma reviravolta na experiência e nos conceitos organizadores de suas visões de mundo (THOMPSON, 1998, p. 79). Para tanto, confiamos no desenvolvimento da pesquisa e nos desdobramentos dos acontecimentos políticos atuais.


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ENTREVISTAS


ALICE. Escola Estadual Jerônimo Arantes, Uberlândia (MG). 02 nov. 2016. Entrevista realizada por Denise Nunes De Sordi. Acervo de pesquisa.


AUGUSTO. Escola Estadual de Uberlândia (Museu), Uberlândia (MG). 31 out. 2016. Entrevista realizada por Denise Nunes De Sordi. Acervo de pesquisa.


CARLA. Escola Estadual Neuza Rezende, Uberlândia (MG). 02 Entrevista realizada por Denise Nunes De Sordi. Acervo de pesquisa.

nov.

2016.

FELIPE. Escola Estadual Teotônio Vilela, Uberlândia (MG). 31 Entrevista realizada por Denise Nunes De Sordi. Acervo de pesquisa.

out.

2016.

JULIANA. Escola Estadual Neuza Rezende, Uberlândia (MG). 02 Entrevista realizada por Denise Nunes De Sordi. Acervo de pesquisa.

nov.

2016.


LARISSA. Escola Estadual Prof. Juvenília Ferreira dos Santos, Uberlândia (MG). 29 out. 2016. Entrevista realizada por Denise Nunes De Sordi. Acervo de pesquisa.


LAURA. Escola Estadual Prof. Juvenília Ferreira dos Santos, Uberlândia (MG). 29 out. 2016. Entrevista realizada por Denise Nunes De Sordi. Acervo de pesquisa.


LUCAS, Escola Estadual Jerônimo Arantes, Uberlândia (MG). 02 nov. 2016. Entrevista realizada por Denise Nunes De Sordi. Acervo de pesquisa.


MELINA. Escola Estadual de Uberlândia (Museu), Uberlândia (MG). 31 out. 2016. Entrevista realizada por Denise Nunes De Sordi. Acervo de pesquisa.


TIAGO. Escola Estadual Teotônio Vilela, Uberlândia (MG). 31 out. 2016. Entrevista realizada por Denise Nunes De Sordi. Acervo de pesquisa.


VITÓRIA. Escola Estadual Sérgio de Freitas Pacheco, Uberlândia (MG). 30 out. 2016. Entrevista realizada por Denise Nunes De Sordi. Acervo de pesquisa.


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v.17, nº 33, mai-ago (2019) ISSN: 1808-799 X


JOVENS ATIVISTAS DAS PERIFERIAS: EXPERIÊNCIAS E ASPIRAÇÕES SOBRE O MUNDO DO TRABALHO1


Maria Carla Corrochano2

Raquel Souza3 Helena Abramo4


Resumo


O artigo evidencia como experiências de trabalho, formação e ação coletiva afetam as percepções e aspirações de jovens ativistas sobre o trabalho. Baseia-se em pesquisa qualitativa realizada com participantes de coletivos juvenis de quatro regiões metropolitanas do Brasil. Ainda que o trabalho não figure como eixo central de suas experiências de ação coletiva, está presente em seu universo de preocupações e demandas. Suas vivências possibilitam a crítica das ocupações disponíveis para as jovens gerações e a busca por percursos profissionais aliados à transformação da realidade em que vivem.

Palavras-chave: Jovens; Ação Coletiva; Trabalho; Educação.


JÓVENES ACTIVISTAS DE LAS PERIFERIAS: EXPERIENCIAS Y ASPIRACIONES SOBRE EL MUNDO DEL TRABAJO


Resumen


El artículo evidencia cómo las experiencias de trabajo, formación y acción colectiva afectan las percepciones y aspiraciones de jóvenes sobre el trabajo. Se basa en investigación realizada con participantes de colectivos juveniles de cuatro regiones metropolitanas de Brasil. Aunque el trabajo no figura como eje central de sus experiencias de acción colectiva, está presente en su universo de preocupaciones y demandas. Sus vivencias posibilitan la crítica de las ocupaciones disponibles para las jóvenes generaciones y la búsqueda por trabajos aliados a la transformación de la realidad.


Palabras clave: Jóvenes; Accion Colectiva; Trabajo; Educación.


YOUNG ACTIVISTS FROM THE PERIPHERIES: EXPERIENCES AND ASPIRATIONS CONCERNING THE WORK WORLD


Abstract


The article shows how work, education and collective action experiences affect the perceptions and aspirations of young concerning work. It is based on a qualitative research carried out with youth groups members from four Brazilian metropolitan regions. Although work does not figure as a central axis of


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1Recebido em 01/04/2019. Primeira avaliação: 15/04/2019. Segunda avaliação: 17/05/2019. Aprovado em 20/06/2019. Publicado em 04/07/2019. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.17i33.p29373.

2Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (2008), professora do Departamento de Ciências Humanas e Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) – Sorocaba (SP), Brasil. E-mail: carla.corrochano@gmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8030-6461

3Doutora em Educação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FE-USP) – São Paulo (SP), Brasil. E-mail: raqsou@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9588-6729 4Socióloga da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo. São Paulo, Brasil. E-mail: hwabramo@yahoo.com.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5669-5946

their collective action, it is present in their universe of concerns and demands. Their experiences make possible the criticism of the available occupations for young generations, as well as the search for professional paths allied to the transformation of the reality in which they live.

Keywords: Young people; Collective Action; Work; Education


Introdução


Este artigo é resultado de uma pesquisa qualitativa realizada com 21 jovens pertencentes às camadas populares e que participam de diferentes coletivos nas periferias de quatro regiões metropolitanas: São Paulo, Rio de Janeiro, Recife e Distrito Federal, integrando o projeto Juventude nas Cidades 5 . Trata-se de compreender em que medida suas experiências de escolarização e trabalho e sua participação em coletivos provocam alterações nos sentidos e aspirações que nutrem em relação ao mundo do trabalho.

A relação entre jovens e ações coletivas tem sido objeto de estudos nos campos da educação e das ciências sociais há pelo menos três décadas no Brasil. Ao longo desse período, intensificaram-se esforços de análise da capacidade de ação dos atores jovens, em confronto com as recorrentes leituras da juventude como hedonista, apática e desinteressada da vida social e política. Tratava-se de tornar evidente seus múltiplos engajamentos públicos, para além do movimento estudantil, contemplando tanto novas formas e locais de ativismo e práticas coletivas quanto a participação de jovens oriundos de diferentes estratos sociais (ABRAMO, 1994; SPOSITO, 2014).

Desde o conjunto heterogêneo de manifestações ocorridas em 2013, com intensa presença de jovens e coletivos juvenis, oriundos de diferentes lugares sociais, a compreensão das relações entre jovens e ações coletivas defronta-se com novas questões (BRINGEL; PLEYERS, 2013; GOHN, 2018). As várias formas de mobilização, ao lado de ocupações de espaços públicos (ruas, escolas, universidades), levaram à ampliação de pesquisas e a formulação de novas perguntas nesse campo, inclusive em função da diversidade de pautas, pertencimentos e orientações desses movimentos. Assim, ao lado de pautas e de demandas por ampliação de direitos sociais e civis e de reação à implementação de políticas públicas


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5O projeto “Juventude nas Cidades” foi implementado por uma rede de organizações (Ação Educativa, Criola, Fase, Ibase, Inesc, Instituto Polis) e coordenado pela Oxfam Brasil, com objetivo de fortalecer a capacidade de protagonismo, inserção e participação social de jovens engajados em ações coletivas. O projeto alcançou cerca de 150 jovens que atuavam nas periferias das regiões mencionadas.

marcadas por autoritarismo e arbitrariedades em diferentes setores (CORROCHANO; DOWBOR; JARDIM, 2018), também se observam movimentos conservadores, com pautas de liberalismo econômico, preferência por um Estado mínimo e bloqueio a direitos e políticas que reconheçam as especificidades de populações mais suscetíveis à discriminação e exclusão (MARTINS; GROPPO; BARBOSA, 2018, PLEYERS; BENAVIDES, 2018).

Apesar da importância de incluir a análise de ações coletivas marcadas pelo conservadorismo nas agendas de pesquisa sobre educação e juventude, o foco deste artigo recairá sobre jovens engajados em ações coletivas de caráter progressista. Entre esses coletivos observa-se uma pauta diversificada, dentre as quais sobressaem o combate ao racismo e ao machismo/sexismo, a luta pelo acesso e garantia de direitos, entre outras. Pouco se sabe, no entanto, das experiências e aspirações6 desses jovens em relação ao mundo do trabalho.

Esta não é uma questão trivial. A despeito das transformações recentes nos nexos entre educação e trabalho para as jovens gerações, com ampliação de sua presença na escola, há tempos reconhece-se que no Brasil o trabalho também faz parte da condição juvenil (SPOSITO, 2005). Soma-se a isso a interrupção de um processo de reestruturação do mercado de trabalho que vinha se configurando há pelo menos uma década (Leite e Salas, 2014). No atual contexto, o desemprego volta a alcançar índices elevados, amplia-se a precarização dos contratos e das condições de trabalho e diminui o valor real do salário mínimo, com implicações significativas para a redução das desigualdades. Os jovens são mais afetados, nesta realidade atravessada por assimetrias de classe, gênero e étnico/raciais (CORROCHANO; ABRAMO; ABRAMO, 2017).

Pontuar as relações específicas vividas pelos jovens no mercado de trabalho não significa, porém, reduzir o conceito de trabalho ao emprego – forma específica assumida pelo trabalho no capitalismo. O trabalho é compreendido como dimensão central da vida humana, “forma de o ser humano criar e recriar seus meios de vida” (Frigotto, 1994, p. 181).Também se consideram as contribuições dos estudos


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6 Optamos pelas expressões “aspirações” e “expectativas” para fazer menção às perspectivas de inserção laboral e profissionalização. A escolha parece adequar-se à tarefa de descrever os dados empíricos, compostos por narrativas de jovens que apresentam planos de futuro mais estruturados e outros com horizontes mais imprevisíveis. Evita-se a noção de “projeto de vida”, acionada em contextos heterogêneos e de forma polissêmica, mas reiterando a premissa de que competiria ao indivíduo encontrar alternativas para enfrentar desafios estruturais e responsabilizar-se pelo próprio sucesso frente a estes desafios (MARTUCCELLI, 2007).

feministas para o enriquecimento do conceito de trabalho: “de simples produção de objetos, de bens, o trabalho se transforma naquilo que alguns chamam de produção do viver em sociedade” (KERGOAT, 2016, p. 12), contemplando assim o trabalho doméstico, de produção de seres humanos, de cuidado, além do trabalho cooperativo e do militante. O trabalho produz e ao mesmo tempo é produto de uma sociedade, sendo perpassado por diferentes relações sociais, tais como as relações de classe, de raça, de etnia, de sexo/gênero e de idade (SOARES, 2011).

Quais as experiências de trabalho desses jovens ativistas? Em que medida a experiência de militância provoca alterações nas suas aspirações e percepções em relação ao trabalho? O trabalho se configura como pauta relevante para esses coletivos ou, pelo menos, para os indivíduos que os compõem? São indagações que permearam o diálogo com os jovens.


Interfaces entre educação, trabalho e ação coletiva


Nos últimos 15 anos, importantes transformações no campo da educação impactaram a vida dos jovens brasileiros, inclusive daqueles historicamente alijados do direito de acessar a escola e de nela permanecer por um período mais longevo. A despeito de persistentes indicadores de exclusão escolar e de desafios relacionados à qualidade do ensino, há relativo consenso de que nos deparamos com uma geração de jovens sensivelmente mais escolarizada, consequência direta de um progressivo (ainda que moroso) processo de expansão da oferta pública escolar, iniciado no final da década de 1980, que resultou na quase universalização do acesso ao ensino fundamental e na massificação do ensino médio. Nas duas últimas décadas, no entanto, foi o acesso ao ensino superior que experimentou um movimento substancial de expansão, ainda que com consequências tênues para o perfil educacional da população jovem.

Entre 2000 e 2017, as matrículas em cursos de graduação saltaram de 2,6 milhões para 6,5 milhões, crescimento de 142,4%. No mesmo período, a frequência líquida de jovens de 18 a 24 anos no ensino superior registrou aumento de 14 pontos percentuais, passando de 9,2% para 23,2% (BRASIL, 2018). Este fenômeno pode ser compreendido como tributário de pressões heterogêneas que induziram a conformação de iniciativas governamentais – bolsas, reserva de vagas, financiamento

estudantil – destinadas a assegurar maior inclusão e equidade no ensino superior; ao mesmo tempo, a proliferação de vagas e instituições educativas privadas que passaram a ofertar este nível de ensino7.

No que diz respeito à presença do trabalho no universo de vivências juvenis, as pesquisas reiteram que este é um domínio central na vida dos jovens, mobilizando expectativas ou requerendo intenso engajamento individual (PAIS, 2001;CORROCHANO, 2012; GUIMARÃES; MARTELETTO; BRITO, 2018). Assim,

por mais que a análise da inserção dos jovens no mercado de trabalho e seus impactos mobilizem respostas contrastantes, boa parte dos jovens está em busca de trabalho ou trabalha de maneira precária (SILVA, 2014; GUIMARÃES; MARTELETTO; BRITO, 2018). Isso não significa desprezar que o lugar e os sentidos do trabalho experimentaram importantes inflexões na experiência da atual geração de jovens (SPOSITO; SOUZA, 2014; SOUZA, 2018; NONATO, 2019).

Embora ainda se verifique a existência de jovens das camadas populares que começam a trabalhar antes da idade legal, as estatísticas nacionais têm apontado que alcançar os 18 anos significa chegar à idade em que os brasileiros iniciam suas primeiras experiências laborais. O fenômeno é tributário da própria ampliação do acesso à escola, da reconfiguração das relações entre jovens e adultos na família e, entre 2004 e 2013, da melhoria das condições de trabalho, renda e consumo das camadas populares (CABANAS; KOMATSU; MENEZES FILHO, 2015; SPOSITO;

SOUZA; SILVA, 2018). Sobre este último aspecto, é preciso dizer que o afastamento de moças e rapazes mais novos do mercado de trabalho parece persistir mesmo frente à recessão e ao recrudescimento do desemprego, como o experimentado neste momento no Brasil, o que certamente tem demandado esforços substantivos de famílias e indivíduos pertencentes às frações mais empobrecidas.

Dados da Pesquisa Nacional por Amostra Domiciliar Contínua (PNADC) indicam que 78,3% das moças e rapazes da faixa etária de 15 até 17 anos dedicavam- se, em 2017, apenas aos estudos, enquanto outros 10,3% conciliavam estudo e trabalho. Assim, entre jovens-adolescentes é predominante a presença de estudantes, sendo a escola, ainda que não exclusivamente, a principal instituição a cadenciar suas


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7 Não é intuito do artigo problematizar a natureza dessas iniciativas, questão abordada por pesquisas que mostram como elas atenuaram a sub-representação de determinados segmentos entre a população universitária, mas produziram novas facetas de desigualdade e assimetria, além de atender a interesses do mercado (MOEHLECKE, 2004; CARVALHO, 2011; ALMEIDA, 2014).

rotinas e experiências. Tal afirmação não se estende à realidade de jovens de 18 a 24 anos e, sobretudo, daqueles de 25 a 29 anos, faixas focalizadas neste artigo, para a maioria dos quais a experiência laboral é parte da condição juvenil. Nestes dois grupos etários, respectivamente, apenas 21,5% e 5,4% destinavam seu tempo somente aos estudos (BRASIL, 2018).

Neste quadro de mudanças, as pesquisas têm registrado a emergência de novas subjetividades e necessidades vocalizadas pela atual geração de jovens. Para além das mudanças de times nos processos de transição escola-trabalho, essa produção assinala como a maior permanência e acesso à escola vem produzindo no Brasil aquilo que Bourdieu, em seu famoso texto Juventude é apenas uma palavra, reconhece como uma das funções fundamentais da instituição: a “manipulação das aspirações”.

Bourdieu (2003) explicita que a escola não é simplesmente um lugar em que são aprendidas certas coisas, saberes e técnicas, mas uma instituição capaz de “conferir aos que passam por ela títulos, ou seja, direitos e, nesse ato, também um conjunto de anseios e pretensões” (p.155-6). Entre as expectativas, destaca-se aquela partilhada por jovens e famílias populares, de que o sistema escolar assegure o que outrora promoveu a uma população que se beneficiava do privilégio de uma escolarização mais longeva.

De fato, a emergência de políticas de inclusão e equidade no acesso ao ensino superior – como reserva de vagas em instituições públicas ou bolsas de estudos para estabelecimentos privados – tem sido assinalada como propulsora de mobilidade laboral e social entre jovens das camadas populares. Estudo de Tartuce (2010) mostra como o ingresso em um curso de graduação suscita o desejo de conquistar um posto de trabalho “na área”. Por trás do anseio em estabelecer uma correlação entre o curso frequentado e a inserção laboral em determinado setor expressa-se a vontade dos jovens de exercer controle sobre seus processos de integração social, ou seja, a expectativa de estruturar uma experiência no mundo do trabalho em que não percam de vista as especificidades de suas histórias e singularidades.

Considerando que as experiências escolares desses jovens podem produzir alterações em suas aspirações no campo do trabalho, o que dizer de suas experiências de ação coletiva? Como será visto, os jovens investigados não estavam engajados em formas mais tradicionais de agregação coletiva, como sindicatos ou

partidos (SPOSITO, 2014) ou movimentos mais consolidados e institucionalizados, como o movimento estudantil, mas em coletivos – reunidos em torno de um projeto ou atividade que compartilhavam ou consideravam relevantes (REGUILLO, 2003).

Os coletivos juvenis considerados eram grupos em busca de estratégias cotidianas para enfrentar discriminações e dificuldades econômicas e sociais. Vários desses jovens também se engajaram em manifestações, mobilizações e ocupações de escolas, universidades e prédios públicos que aconteceram entre 2015 e 2016. Optamos pelo conceito de ação coletiva para caracterizar as suas práticas e experiências, decisão que se ancora no debate teórico que argumenta pela necessária distinção entre diferentes formas de ação coletiva e movimentos sociais enquanto categorias de análise.

Sobre esse aspecto, importa considerar as reflexões de Melucci (2001, p. 35- 8), para quem as condutas de resistência e luta podem não conter elementos que as caracterizem como movimentos sociais. Para o autor, os elementos constitutivos de um movimento social seriam: a capacidade de estabelecer um conflito, de identificar um “nós” a partir desse conflito, e a totalidade, ou seja, a capacidade de acenar para uma ruptura e uma nova maneira de constituição das relações sociais. Ademais, as dificuldades em caracterizar suas ações como movimento social residem nos próprios limites do conceito, diante da emergência de um conjunto amplo e variado de ações e “insurreições” que irromperam na cena pública no século XXI, no Brasil e em outras partes do mundo. Como afirma Reguillo (2017, p. 3):


Movimentos em rede, insurgências de novo cunho, novíssimos movimentos sociais, expressões de mal-estar contemporâneo, são e serão formulações inacabadas, titubeantes, imperfeitas para nomear e compreender mais profundamente o que se move por baixo das camadas visíveis de #OccupyWallStreet, #YoSoy 132, #15M, #NuitDebout, #PasseLivre e outras expressões que de norte a sul, de sul a norte têm reclamado seu lugar na história.


As perguntas formuladas para os jovens também ancoraram-se em uma perspectiva analítica que considera a importância do olhar para as ações coletivas e para os movimentos sociais não apenas em seus impactos na política institucional. Sem ignorar a relevância das ações dirigidas ao Estado, trata-se de contemplar “as transformações nas subjetividades e comportamentos na vida cotidiana, na esfera profissional e no espaço público” (PLEYERS; BENAVIDES, 2018, p. 3).

Cabe considerar que, embora o trabalho persista como dimensão relevante e objeto de preocupação das jovens gerações, a demanda por trabalho ou por outro trabalho não emerge com força no espaço público no Brasil, mesmo considerando as mobilizações recentes, diversamente do que ocorre em outros países (FERREIRA, 2017). Pode-se tentar explicar essa ausência em função do acirramento do neoliberalismo, que gera nos sujeitos a percepção de que são responsáveis individualmente e a partir de suas próprias decisões por seus sucessos e fracassos, especialmente quanto ao trabalho (REGUILLO, 2017; DUBET, 2002). No Brasil, esse processo parece mais intenso e a tônica do “se virar” para ganhar a vida, atualmente nomeada como “empreender”, ganha força (TOMMASI; VELAZCO, 2013).


Breve descrição da pesquisa e dos jovens interlocutores


A pesquisa, de caráter qualitativo e fazendo uso de entrevistas compreensivas (KAUFFMAN, 1996), foi realizada entre 2017 e 2018. Foram entrevistados 21 jovens moradores de quatro regiões metropolitanas: São Paulo, Rio de Janeiro, Recife e Distrito Federal. Todos participavam de heterogêneos coletivos juvenis – 18 no total – e, na época do trabalho de campo, integravam uma rede tecida em torno do projeto “Juventude nas Cidades”. Dados os limites deste artigo, não serão apresentadas as diferenças em relação à atuação dos jovens em cada uma das regiões, tampouco nos ateremos aos objetivos e resultados alcançados pelo projeto de que faziam parte. Trata-se aqui de concentrar esforços em torno dos imbricamentos entre as experiências de escolarização, trabalho e militância em que estavam engajados.

A escolha dos entrevistados foi realizada com o apoio das organizações que participavam do projeto, que também cederam espaço para os diálogos em cada uma das cidades. Na perspectiva de abarcar a diversidade juvenil, foram entrevistadas pessoas com ou sem filhos e com diferenças quanto a gênero e orientação sexual, raça e etnia, escolaridade, idade no tempo da juventude e situação no mercado de trabalho.

As entrevistas contaram com intensa participação e engajamento dos jovens. As conversas duraram em média duas a três horas e foram marcadas por muita emoção. Por vezes, foi preciso interromper a gravação para dar tempo ao silêncio, às lágrimas, às palavras entrecortadas. Em outros momentos, a necessidade de não

apenas falar, de responder a perguntas, mas de também ouvir e discutir com as entrevistadoras temas relevantes de suas trajetórias e do País, ganhou força. Também aconteceu de demandarem um tempo maior para explanarem sobre sua visão de mundo e o tema de atuação dos coletivos. A análise dos resultados considerou o procedimento indutivo, aproximando-se da perspectiva de Demazière e Dubar (1997). Ainda que não tenha sido realizada uma análise discursiva, o trabalho analítico realizado deu especial atenção para os conteúdos, as maneiras de falar e o contexto da enunciação.

Os relatos deixam entrever que as motivações para organização em coletivos, bem como os temas de atuação desses jovens eram diversos: passaram a se organizar a partir de ações no bairro ou na escola, na perspectiva de mudança da realidade local – neste caso, as ocupações de escolas e universidades tiveram papel relevante; ouse reuniam em lutas por reconhecimento (HONNET, 2003), realizando ações e debates em torno de temas como combate ao racismo, valorização da negritude, denúncia do machismo e sexismo, demandas e direitos da população LGBTQ+. Havia também coletivos organizados em torno da cultura, da saúde, da sexualidade adolescente e jovem, além dos temas da comunicação, moradia e meio ambiente. No total de coletivos dos quais os entrevistados faziam parte (18), apenas dois estavam estruturados em torno da busca de geração de renda. As formas de organização dos coletivos também eram variadas, mas, à semelhança do que vários estudos têm observado entre grupos e movimentos juvenis, a valorização da ação direta, da horizontalidade, das rodas de conversa e diálogo entre pares, bem como o rechaço à constituição de lideranças, estavam presentes (GOHN; BRINGEL, 2012; CORTI; CORROCHANO, SILVA, 2016; SILVA, 2018).

O perfil etário dos entrevistados corresponde à categoria juventude, entre 15 e 29 anos, conforme estabelecido pelo Estatuto da Juventude. Cabe ressaltar que todos tinham mais de 18 anos, momento da vida juvenil em que o trabalho se torna muito presente, como revelam as estatísticas nacionais. Dialogamos com 12 mulheres, uma mulher transexual, e oito homens, sendo 18 jovens autodeclarados pretos, dois indígenas e uma jovem que se declarou mestiça.

Em termos de condição socioeconômica, todos pertenciam às camadas populares, categoria mobilizada neste artigo para referirmo-nos tanto a indivíduos pertencentes a famílias pobres quanto àqueles que, dadas as situações contingentes

de moradia, acesso à educação, integração ao mundo do trabalho e aos mercados de consumo, conformam gradações situacionais no interior de uma mesma posição social (Souza, 2018). Muitos desses jovens apresentavam-se no momento da entrevista como “preto/a e periférico/a”. Segundo Nascimento (2014), muito embora o modelo dicotômico centro-periferia seja objeto de críticas no âmbito acadêmico, em função da heterogeneidade de situações observáveis nesses espaços, é relevante destacar a pertinência do termo periferia para referir-se a determinadas realidades que concentram populações marginalizadas econômica, racial e socialmente.

Pode-se dizer que os sujeitos da pesquisa se beneficiaram das políticas públicas voltadas para ampliação da escolarização no Brasil, como apontado. Apenas dois jovens ainda cursavam o ensino médio e quatro completaram esse nível de ensino, embora não tenham prosseguido os estudos. A grande maioria alcançou o ensino superior: cinco já haviam concluído seus cursos (Direito, Arquitetura, Artes Visuais, Enfermagem, Pedagogia), cinco eram estudantes de graduação (Serviço Social e Psicologia) e cinco haviam interrompido os estudos por razões financeiras. Cabe destacar que dois estudantes no Rio de Janeiro e dois no Recife frequentavam universidades públicas, tendo participado do processo de ocupação desses espaços em 2016.

Com exceção de um único jovem, que se dedicava exclusivamente à conclusão do ensino médio, o trabalho e a busca por trabalho é parte da realidade dessas moças e rapazes. Uma parcela encontrava-se desempregada (sete jovens), mas o cotidiano era marcado por muita atividade: não apenas em torno da busca por trabalho, mas por “bicos” ou “freelas”, ou múltiplas tentativas de emplacar um “corre” ou gerar renda a partir das atividades de seus coletivos. Esses dados corroboram pesquisa de Guimarães, Hirata e Sugita (2009): diversamente do que se observa em países que construíram mecanismos mais sólidos de seguridade social, a relação com o desemprego no Brasil é construída em torno do trabalho, mais do que da privação do emprego. Apenas dois jovens tinham um emprego formal no momento da pesquisa: uma jovem trabalhava em uma ONG e um jovem em uma corretora de seguros. Os demais trabalhavam com diferentes tipos de vínculo: estágio, iniciação científica, trabalho autônomo ou negócio próprio (tatuagem, massoterapia, serigrafia, grafite). Apenas um se reconhecia como “empreendedor social”, ressaltando sua diferença em relação aos empreendedores individuais.

No geral, a situação dos entrevistados é expressiva da condição juvenil das camadas populares no Brasil: revela um cotidiano marcado por muitas atividades, com os períodos do dia preenchidos por tarefas em múltiplas dimensões: estudo, trabalho, cuidados com a casa e a família, especialmente entre as jovens mulheres; no caso dos jovens aqui considerados, somava-se sua atuação nos coletivos juvenis.


Experiências de trabalho


Ainda que nenhum dos jovens declare experiência de trabalho ilegal na infância ou início da adolescência, boa parte começou a trabalhar cedo, por volta dos 16 anos, cursando o ensino médio ou logo depois de finalizá-lo. As motivações iniciais para a busca por trabalho são múltiplas: para além da necessidade de apoio à família, a busca por independência e autonomia, a obtenção de renda para estudo e lazer, a conquista de prestígio na família. Reconhecendo-se como jovens moradores de regiões periféricas e filhos de trabalhadores, a entrada no mundo do trabalho é relatada como algo “normal”. Seus relatos aproximam-se do observado em várias pesquisas sobre a inserção no trabalho entre jovens de camadas populares (Frigotto, 2004; Guimarães, 2005; Tartuce, 2010; Corrochano, 2012). Ao mesmo tempo, revelam novos marcos, a determinar os modos e as condições para a entrada no mundo laboral: a idade mínima, ficando evidente o esforço de algumas famílias para que a inserção se efetive depois da conclusão do ensino médio, priorizando-se os estudos, e a busca por inserções mais protegidas. Mesmo quando não é possível esperar a conclusão do ensino médio para trabalhar, trata-se de não aceitar “qualquer trabalho”.

Ao relatarem suas primeiras experiências de trabalho, quase todos enfatizaram que inicialmente percebiam o trabalho como positivo, com possibilidades de geração de renda, aprendizados e novas amizades. Essa percepção logo se dissipa, em função da experimentação de situações negativas no trabalho, o cansaço e as dificuldades geradas pela extensão da jornada e dos deslocamentos, impondo prejuízos para a continuidade ou qualidade dos estudos e da vida familiar e social.

Nesse sentido, especialmente as ocupações com jornadas de trabalho mais longas, incluindo o trabalho nos finais de semana, são avaliadas de maneira muito negativa. Para além da jornada, atividades estressantes e sujeitas a assédio moral,

como o trabalho no setor de comércio e serviços, em shoppings e no setor de telemarketing são vistas com muita negatividade, comprometendo a saúde, a possibilidade de estudar, a fruição e o lazer. De fato, o trabalho no setor de serviços, especialmente no telemarketing, é expressão máxima das formas contemporâneas de exploração da força de trabalho e da lógica desumanizadora do capital (BONO; LEITE, 2016; MÉSZÁROS, 2002). O telemarketing também tem se configurado como porta de entrada para jovens, em especial aqueles cujos corpos são comumente excluídos

–homossexuais, negros/as, mulheres, gordos/as (BENEVIDES, 2010).

Mesmo quando regidas por vínculos formais, as primeiras ocupações não deixaram de ser problematizadas. Sabe-se que a precariedade no trabalho não pode ser associada apenas à ausência de contratos ou direitos sociais, relacionando-se também com a intensificação de controles, metas e exigências, inclusive de engajamento subjetivo no trabalho (LIMA, 2013); também está relacionada à vivência de discriminação, preconceito e assédios, relacionados às suas características e identidades. A questão do racismo é muito presente, expressa em relação às características do cabelo ou do modo como é penteado, que revela não só as características raciais, mas a identidade assumidamente negra: o cabelo afro, o dreadlock, as tranças. Ser mulher também traz muitas situações de violência e discriminação, principalmente de assédio.

Os elementos negativos do trabalho não são percebidos apenas pelos assalariados, mas também no âmbito dos “corres” e dos empreendimentos. Se por um lado há uma ênfase inicial nos aspectos positivos do trabalho como empreendedor

– “trabalhar para si próprio”, “não ter patrão”, “não se entregar para o mercado”, “fazer seu próprio horário” –, as dificuldades ficam evidentes, contemplando seus reflexos nas demais dimensões da vida. A relação com a atividade “por conta própria” é marcada por ambiguidades, como evidenciado por Tommasi e Velazco (2013) em estudo sobre jovens produtores culturais nas favelas.

Não apenas os obstáculos para gerir e sustentar o negócio aparecem com força, como também os limites de tempo para continuidade dos estudos e a vivência de situações de discriminação e humilhação. Alguns buscavam diminuir a insegurança por meio da formalização, na constituição de microempreendimentos individuais (MEI), e outros, especialmente envolvidos no campo da cultura, apontavam como saída a participação em editais públicos, ao mesmo tempo em que denunciavam a

escassez dessas fontes de financiamento. Para muitos era preciso combinar o trabalho autônomo a “bicos” e “freelas”.

As experiências de desemprego e de rotatividade também participam das percepções sobre o trabalho. Alguns jovens decidiram deixar seus empregos porque não suportavam mais as condições, as dificuldades de conciliação com outras dimensões da vida, os baixos salários, as discriminações. A este respeito, sabe-se que a rotatividade é uma característica estrutural do mercado de trabalho brasileiro. Sabe-se também que ela é maior entre os jovens e que, como regra, a circulação por diferentes trabalhos não está relacionada à “irresponsabilidade” ou “imaturidade” juvenil. Em geral os trabalhadores jovens circulam mais no mercado de trabalho por que estão sujeitos a taxas mais elevadas de desemprego (CORSEUIL, 2014). Nesse sentido, é emblemática a lucidez de uma jovem entrevistada sobre a dinâmica das contratações dos jovens nas “empresas de shopping”:


Eles mandavam bastante embora e a galera também pedia muito pra sair, só quem queria trabalhar mesmo que tinha que ter o sangue muito frio, porque era muito trabalho, recebia muito pouco, era muita pressão, porque lá as metas são altíssimas, de sessenta mil, setenta mil (...) é emprego de shopping...Todo mundo no shopping tem que bater as metas, senão tá fora, é aquela pressão o tempo todo. E quem trabalha nisso são jovens, pode pesquisar. Eles precisam de mais funcionários e jovem é barato, a gente é barato pra trabalhar. Primeiro emprego, a gente não sabe, lá exige muito e eles podem exigir da gente porque a gente não sabe. (...) E não existe isso (sindicato) nesse lugar, “não tá satisfeito vai embora”. Pede demissão ou é demitido (mulher, 22 anos, preta, ensino superior incompleto, Distrito Federal).


As trajetórias laborais vão se desenhando em função das contingências e possibilidades existentes, mas também de uma busca de sentido para si e suas expectativas de realização e aspirações: mesmo os primeiros empregos, às vezes aceitos sem muita reflexão, são avaliados e confirmados, ou abandonados, em função do sentido que encontram na sua realização. Isso é mais ou menos possível em função do maior ou menor suporte familiar que possuem: as chances de sair de um trabalho marcado por maior precariedade é maior para aqueles que têm apoio familiar. Ao mesmo tempo, em todas as cidades os relatos também deixaram entrever o papel da conjuntura nas chances de escolha: o cenário econômico mais favorável, com taxas de desemprego menores no momento em que se inseriram, possibilitou alguma margem de escolha sobre sua situação de atividade, o que já aparecia diferente no momento atual em que se encontravam.

O maior enfrentamento e a problematização das situações vividas nos espaços de trabalho, entretanto, tornam-se mais intensos a partir de suas próprias experiências no trabalho, mas também da ampliação de sua escolarização, sobretudo para aqueles que ingressam no ensino superior, e de suas experiências de militância. Esses elementos contribuem para aprofundar a percepção sobre os direitos e introduzem um olhar ainda mais crítico sobre o trabalho realizado, seu conteúdo e as relações envolvidas: o que antes aparecia como natural revela-se como experiência de opressão e discriminação, levando a reavaliações de estratégias de inserção laboral e a constituição de situações de conflito com empregadores, às vezes resultando em pedidos de demissão, mesmo quando a experiência do trabalho era inicialmente avaliada como positiva:


Era uma delícia trabalhar, eu gostava de trabalhar como aprendiz, de estar fazendo coisas, de... de estar sendo útil, assim... e receber, né? [...]. Mas agora... eu acho completamente errado essa... essa maneira de colocar alguém no mercado e de... porque eu trabalhava por trabalhar, nem sabia o quê que eu estava fazendo, sabe? Eu era uma reprodutora de conteúdo, então só repetia o que me pediam pra eu fazer, não pensava, não... [...] então era um trabalho que não era feito pra você pensar, era feito pra você só reproduzir o que estavam mandando (mulher, 26 anos, preta, ensino superior completo, Recife).


Durante 7 anos foi tudo OK, cabeça alienada, eu era colaboradora, estava ali trabalhando, tudo bonitinho, era uma empresa na qual o colaborador entrava sem bater na porta, me chamava pelo apelido, era uma empresa muito família, era muito tranquilo. Só que, quando eu comecei a fazer a faculdade, isso foi começando a me pesar, com a participação no coletivo também, eu comecei a me incomodar com muitas coisas que estavam acontecendo, com o que eu estava querendo ser para mim mesma [...] porque eu estava muito no automático [...] a felicidade só começava quando eu ia para a faculdade, ou, no fim de semana, quando ia atuar com o coletivo (mulher, preta, 25 anos, ensino superior incompleto, São Paulo).


A ampliação da escolarização, sobretudo a inserção no ensino superior e o engajamento em ações coletivas modificam os olhares para as experiências de trabalho passadas, mas também vão contribuindo para delinear novos sentidos e aspirações para o trabalho do presente e do futuro.

Experiências múltiplas na fabricação de sentidos e aspirações de trabalho


Os jovens ativistas assinalam uma diversidade de sonhos de trabalho, com a coexistência de novas aspirações. Entre jovens pertencentes a coletivos culturais, observa-se o desejo de “viver da arte”, de se sustentar fazendo o que sabem fazer no campo da expressão artística. Há também o horizonte de estruturar seus próprios empreendimentos, desde que estes lhes permitam, de alguma forma, estabelecer relações entre atividades laborais e o que realizam no âmbito da ação política ou de sua formação. Existe ainda a perspectiva de trabalhar em órgãos governamentais ou organizações não governamentais (ONGs), fazendo atividades que possam melhorar a vida das pessoas e/ou promover transformação social, na condição de servidores públicos ou de assalariados, à semelhança dos resultados encontrados no estudo de Silva (2018).

Apesar da heterogeneidade, seus depoimentos revelam princípios e referências comuns. Em primeiro lugar, todos compartilham a esperança de escapar de atividades laborais carentes de sentido e reconhecimento. Faz parte das expectativas o acesso ao trabalho ou a formas de geração de renda em que se percebam engajados em atividades que “gostam”, que “escolheram” e onde podem obter “algo mais”. Assim, os jovens explicitam significações que transcendem um sentido instrumental acordado ao trabalho, o que não significa negligenciá-lo enquanto atividade importante, produtora de recursos necessários para a subsistência deles próprios e de suas famílias.

Todos querem um trabalho que lhes garanta uma vida digna, sem privações e em condições que não sejam de exploração ou expropriação de seus talentos, ideias e universo de preocupações. Entretanto, reivindicam que a atividade laboral desenvolvida – no presente e no futuro –, ao lado do dinheiro, assegure recompensas de caráter existencial, isto é, que a atividade se conecte aos seus estilos de vida, visões de mundo e projetos políticos e sociais.


Que a gente consiga, entre aspas, milhões de aspas, da palavra trabalho, a gente viva realmente daquilo que a gente quer, ou seja, a gente trabalhe naquilo que a gente escolheu trabalhar. Não porque a gente é obrigado e precisa do maldito dinheiro, mas que o dinheiro só seja a vírgula do texto, que o texto seja mais importante do que a vírgula. Porque há textos maravilhosos sem um monte de vírgula, ou sem vírgula totalmente, e às vezes tem textos que são ruins demais,

com vírgula, ponto, e com o português muito correto, mas são horríveis (homem, 29 anos, preto, cursando o ensino superior, São Paulo).


Esses testemunhos assemelham-se aos coletados pelo sociólogo português Vitor Ferreira, que tem investigado o anseio de moças e rapazes por estabelecerem, no domínio do trabalho, uma combinação de valores intrínsecos e extrínsecos à atividade profissional, além da perspectiva de converter seus modos de vida e práticas de sociabilidade, expressão, lazer e fruição cultural em formas de ganhar a vida. É com essa perspectiva que argumenta sobre a urgência de “olhar para as práticas desenvolvidas no âmbito das culturas juvenis não apenas como atividades de lazer, de consumo ou de resistência ideológica”, mas igualmente como se processa a apropriação realizada pelos indivíduos dessas como “práticas de produção, com potencial de vir a constituir um meio de vida no futuro” (FERREIRA, 2017, p. 489-90). Para além de uma significação mais “individualizada”, há uma perspectiva bastante comum de construção de um itinerário laboral em que possam construir sua própria “incidência na sociedade”. Seus testemunhos ressaltam, de maneira contundente, a finalidade do trabalho que gostariam de realizar: produzir incidência positiva sobre a realidade e, mais precisamente, assegurar a melhoria das condições

de vida e experiências de grupos com os quais se identificam.

A perspectiva de atuação profissional “implicada”, afinada com aquilo que se realiza no âmbito da ação coletiva, se expressa no horizonte dos jovens de atuarem no desenvolvimento de políticas públicas, de se tornarem professores de escolas públicas, de trabalharem como assistentes sociais em abrigos ou programas de acolhimento de crianças, em organizações de defesa dos direitos humanos, especialmente para negros e LGBTQ+, de trabalhar em órgãos públicos de planejamento urbano e produção de moradias populares.

Mas essa implicação se expressa igualmente entre jovens que, atuando no campo da cultura, da expressão e da difusão artística, tomam a possibilidade de autossuficiência individual e de seus coletivos como uma forma de resistência e ruptura das fronteiras presentes no universo da produção artística. Existir no campo das artes enquanto indivíduo ou grupo figuraria, nesse sentido, como uma ação política e de incidência sobre a realidade de determinado domínio.

O desejo de trabalhar em políticas públicas muitas vezes é formulado como uma ação que cumpre a finalidade de “ocupar” espaços de poder e de decisão que, em sua percepção, contam com uma sub-representação de indivíduos com

identidades similares: negros, mulheres, periféricos, LGBTQ+ etc. Com essa perspectiva, mais de um entrevistado diz querer ser secretário de Cultura, coordenador municipal de juventude e até mesmo juiz, além de vislumbrar exercer algum cargo legislativo, na condição de vereador ou deputado.


Quem sabe?! Eu pretendo ser (juiz), vou tentar. A gente precisa intervir diretamente nesse judiciário, a gente precisa ter as pessoas do movimento social em todos os âmbitos. Faz-se necessário, porque acho que é uma visão totalmente diferente da outra galera, então se a gente não lutar é complicadíssimo. É uma luta desleal, mas é importante a gente juntar as forças. Porque a galera não quer saber da gente não, quem tá lá em cima não quer saber, então a gente tem que lutar pra ocupar esses espaços que por direito é nosso também, não é um favor (homem, 25 anos, preto, ensino superior completo, Recife).


Como compreender tais aspirações? Nossa hipótese é de que elas parecem ser tributárias de uma articulação sui-generis de suas experiências de escolarização, participação e inserção laboral. No caso desses jovens ativistas da periferia o que modula seus sonhos é uma combinação de experiências e referências obtidas pela participação no próprio mundo do trabalho, na inserção escolar, principalmente universitária, e na militância. Suas aspirações, expressas no momento da pesquisa, são frutos desses percursos e esferas de circulação combinados. Nas trajetórias vividas no mundo do trabalho vão se construindo as referências do positivo e do negativo, o que orienta as buscas do trabalho satisfatório e possível. As aspirações formadas a partir do alargamento de sua escolaridade também reconfiguram os sonhos, abrindo horizontes antes não visualizados, em termos das áreas de especialização, ou nos empregos em instituições que antes não pareciam acessíveis. O próprio ativismo, que toma parte significativa de suas vidas, e a participação em espaços coletivos de debate e reflexão, vão produzindo modulações em suas percepções sobre o trabalho e dando novas formas às suas aspirações nesse campo. A área de formação técnica e o ativismo estão bastante imbricados na formatação das suas aspirações de trabalho. Um alimenta o outro e ajuda a reorientar ou ajustar os sonhos profissionais. Sabemos que as escolhas dos cursos universitários ou de especializações técnicas são fruto de uma complexa e às vezes fortuita equação entre sonhos de profissionalização e universo de alternativas (Almeida, 2014; Santos, 2018). Nossos entrevistados relatam como vão definindo e redefinindo os cursos a partir de seus desejos, da oferta de cursos públicos em seu

território ou território acessível, das condições pessoais e familiares de manutenção de uma mensalidade em uma escola particular, das possibilidades de obtenção de uma bolsa ou apoio para manter um curso privado, das chances de entrar em determinados cursos em universidades públicas a partir dos pontos obtidos no ENEM, do tempo e dinheiro que dispõem para fazer cursinhos pré-vestibulares. Mas também as informações e referências obtidas em seus espaços de militância atuam nessas definições.

Mais de um jovem relata o redirecionamento dos planos de fazer um determinado curso para outros cursos, quer porque estes são/foram realizados por pessoas de referência em seus espaços de participação e ação coletiva, quer porque esperam encontrar fundamentos teóricos e práticos que fortaleçam tanto as atividades desenvolvidas por seus coletivos quanto as possibilidades de convertê-las em saber e fazer profissional. Neste sentido, os relatos de nossos jovens reforçam o que já foi demonstrado em outros estudos: os conhecimentos adquiridos na universidade despertam e por outras vezes formatam novas aspirações de trabalho (TARTUCE, 2010; TARABOLA, 2017). Não só a formação escolar, mas os trabalhos nos quais se inserem a partir da universidade (estágios, projetos de extensão, grupos de pesquisa, entidades acadêmicas) contribuem para despertar ou intensificar a dimensão militante e incidir sobre as formas de atuação profissional, no desejo de unir militância e especialização acadêmica. Não por acaso, vários jovens entrevistados expressam intenção de estruturar uma carreira acadêmica, como pesquisador ou professor universitário.

Além de incidir sobre a escolha de uma carreira universitária, a participação em ações coletivas e militância reverberam uma percepção crítica em torno da exploração capitalista. Poucos consideram a alternativa de trabalho assalariado em uma empresa privada que, com frequência, associam a fazer um trabalho sem sentido, tomar posição na “engrenagem do sistema”, dar “a sua própria carne” à voracidade capitalista, tornar-se alienado e formatado. Como assinala este jovem autodeclarado preto, de 28 anos, integrante de um coletivo de Recife: “Costumo falar que é o sistema porque é uma engrenagem muito grande. Porque quem trabalha muito tempo chega cansado, e quem chega cansado não pensa, só reproduz”. Trabalhar com políticas públicas, em programas de ONGs, nessa perspectiva, representa para estes jovens a

possibilidade de ascender a ocupações e espaços de trabalho menos marcados por finalidades mercantis e, talvez, por relações mais humanizadas de trabalho.

Parcela significativa dessas moças e rapazes vislumbra outras formas de trabalho, contrapondo-se à lógica do sistema capitalista. A busca por iniciativas em torno dos campos da economia solidária, do cooperativismo e da autogestão é muito presente. Tais horizontes também se assentam sobre uma crítica às condições de atividade laboral encontradas pelos jovens na forma de trabalho assalariado, seja porque dificilmente articulam-se ao conjunto de práticas e de saber-fazer que esperam desenvolver neste domínio, seja porque tais experiências são caracterizadas por eles a partir de suas dimensões de exploração e expropriação.

A alternativa de geração de renda por meio de empreendimentos individuais ou de negócio próprio também esteve presente, mas para uma parcela menor de jovens. Sobre este aspecto, como vem problematizando Tommasi e Velazco (2013), não se deve desprezar o fato de que estes indivíduos estão inseridos em contextos nos quais dispositivos de intervenção social têm sido acionados pelos setores público e privado, que difundem e alimentam o indivíduo empreendedor como ideal de sujeito capaz de lidar com as exigências do capitalismo contemporâneo. Faz parte desses dispositivos tanto a exaltação do que passa a ser apreendido como uma espécie de “essência” das camadas populares, cuja principal riqueza seria sua capacidade criativa, ao lado de incentivos ao empreendedorismo em diferentes âmbitos da vida econômica, social e cultural (TOMMASI; VELAZCO, 2013).

De fato, alguns jovens mantinham relações com organizações não governamentais e com fundações empresariais que, de alguma maneira, incentivavam a organização dos jovens em torno de empreendimentos individuais e, principalmente, coletivos, inclusive como alternativa para enfrentar as dificuldades encontradas para inserirem-se em um mercado laboral cada vez mais restrito e excludente. De toda forma, mesmo entre os que apostavam na via do empreendimento individual, também havia uma visão crítica sobre as condições de trabalho assalariado, o que se desdobrava em uma visão negadora desta forma de engajamento laboral.

Nesse quadro, em vez de investirem em ações sobre as condições e os direitos do trabalho, promove-se a busca por alternativas ao emprego e ao trabalho assalariado, na forma do trabalho autônomo, empreendimento social ou economia

solidária. Essa faceta não deve ser generalizada a ponto de supor a predominância de um perfil de jovens “empreendedores”, ávidos por construir alternativas em que sejam seus próprios patrões ou do predomínio da busca por outras formas de trabalho pela via do cooperativismo ou da economia solidária. Parte expressiva das moças e dos rapazes entrevistados nutre, na verdade, a expectativa de inserir-se na condição de empregados em ONGs e/ou de tornarem-se servidores públicos. Ademais, entre os jovens que partilham a perspectiva de estruturar seu próprio empreendimento, o que parece estar em jogo é a recusa em realizar um trabalho anódino e anônimo, como aqueles mais comumente disponíveis para indivíduos como eles, além de menos suscetível a diferentes formas de exploração percebidas no âmbito do trabalho em instituições privadas.


Considerações finais


As aspirações e os sentidos atribuídos ao trabalho pelos e pelas jovens ativistas desta pesquisa resultam de uma combinação bastante singular de suas experiências de escolarização, participação e inserção laboral. A possibilidade de alcançar um trabalho digno e com sentido, por meio do qual alcancem uma incidência social e política, reconhecimento e a defesa de suas causas foi sendo construída ao longo de seus percursos de trabalho, educação e militância. A busca por um trabalho em condições que não fossem de exploração e expropriação (de seus talentos, ideias e pautas) estava no horizonte de todos eles. Essas aspirações foram construídas em uma conjuntura específica do país – de ampliação dos níveis de escolarização da população outrora alijada da escola, de diminuição das desigualdades, de reconfiguração do mercado de trabalho.

Se, neste contexto, a realização de suas expectativas já era desafiadora e evidenciava os limites e as contradições que foram se acumulando na sociedade brasileira, no momento de realização da pesquisa o conjunto de moças e rapazes já reconhecia o quanto o contexto presente, de restrições de direitos, poderia impor obstáculos concretos de satisfação de suas perspectivas de trabalho. As reformas da legislação trabalhista e da Previdência Social foram mencionadas quase que espontaneamente como motivos de preocupação, porque representavam indícios da maior dificuldade a ser enfrentada por eles para acessar postos/ocupações

promotores de uma vida digna e de um conjunto de direitos até agora assegurados aos trabalhadores. O cenário econômico e principalmente político inquietava os indivíduos, embora, ao menos no momento da pesquisa, não fosse capaz de asfixiar seus sonhos e iniciativas.

Tendo como referência a realidade europeia, José Machado Pais (2012) redigiu um artigo em que refletia sobre o fenômeno de gerações em situação de descrença ou de temor em relação ao futuro. Caracterizou como “disritmia” a descoincidência entre expectativas e percursos de vida, entre futuros imaginados e uma realidade que denega essas aspirações. É nesta tensão que interpreta a emergência de movimentos de indignação observados naquele período, especialmente protagonizados por jovens, que explicitavam descontentamento com o desemprego e a precariedade. Mas também a emergência de patologias e mal-estares suscitados pela frustração e pelo penoso sentimento de fracasso.

Podemos intuir que, após um período em que uma série de experiências sociais e biográficas permitiram a estes jovens vislumbrar futuros de realização pessoal e profissional, as mudanças recentes observadas no cenário econômico e político brasileiro projetem esses indivíduos para um presente em que o futuro não se deixa antecipar, em que a possessão do presente passa a representar a única alternativa a um pretenso tempo de espera e/ou de experimentação para um porvir. Talvez, tempos de incerteza, descrença e desilusão. Mas, como bem avalia Pais (2012):


enquanto para alguns jovens a posse do presente é pura fonte de prazeres imediatos, para outros é um tempo de fabricação de utopias, embora a natureza destas varie entre os que alimentam a esperança de as realizar e os que pensam que o importante não é realizar sonhos, mas ter sonhos por realizar (p. 277).


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v.17, nº 33, mai-ago (2019) SN: 1808-799 X


PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO NAS TELECOMUNICAÇÕES: AUTOALIENAÇÃO E RESISTÊNCIA DOS TRABALHADORES1


Maria Cristina Paulo Rodrigues2


Resumo


A precarização pode ser tomada como a face generalizada do trabalho no capitalismo global. Garantida através da flexibilização das relações de trabalho, traz consequências catastróficas para o campo do trabalho, com altas taxas de desemprego, cortes dos direitos, aumento do adoecimento e exacerbação da desigualdade. Num cenário deste, de extrema precarização, nos perguntamos se há lugar para a resistência e luta da classe trabalhadora. A análise dos documentos e entrevistas com trabalhadores e dirigentes sindicais das telecomunicações do Rio de Janeiro nos indicam que sim.

Palavras-chave: Precarização; Trabalhador; Resistência; Sindicato.


PRECARIZACIÓN DEL TRABAJO EN LAS TELECOMUNICACIONES: AUTO ALIENACION Y RESISTENCIA DE LOS TRABAJADORES


Resumen


La precarización puede ser tomada como la cara generalizada del trabajo en el capitalismo global. Garantizada a través de la flexibilización de las relaciones de trabajo, trae consecuencias catastróficas para el campo del trabajo, con altas tasas de desempleo, recortes de los derechos, aumento de la enfermedad y exacerbación de la desigualdad. En un escenario como este, de extrema precarización, nos preguntamos si hay lugar para la resistencia y lucha de la clase trabajadora. El análisis de los documentos y entrevistas con trabajadores y dirigentes sindicales de las telecomunicaciones de Río de Janeiro nos indican que sí.

Palabras clave: Precarización; Trabajador; Resistencia; Sindicato.


PRECARIOUSNESS OF THE WORK IN THE TELECOMMUNICATIONS: SELF ALIENATION AND RESISTENCE OF THE WORKERS


Abstract


The precariousness can be taken as the generalized face of the work in the global capitalism. Guarant eed through the flexibilization of the relations of the work,it brings catastrophic consequences to the fie ld of the work, with highrates of unemployement.In this scenario, of extreme precariousness,we ask if t here is place to the resistence and fight of the worker class.The analysis of the documents and intervie ws with workers and sindical directors in the telecommunications of Rio de Janeiro indicate us that yes. Key-words: Precariousness; Worker; Resistence; Sindicate.


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1Artigo recebido em 08/04/19. Primeira Avaliação em 26/04/19. Segunda avaliação em 02/05/19. Aprovado em 06/06/19. Publicado em 04/07/2019. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.17i33.p29374.

2Assistente Social, doutora em Políticas Públicas e Formação Humana (PPFH/UERJ), é professora adjunta da Escola de Serviço Social (ESS)/UFF e estudiosa da área do trabalho e movimentos sociais, especialmente o sindical. E-mail: rodriguesmcris@globo.com; ORCID 0000-0003-0545-2260.

Introdução


A temática da precarização do trabalho tem ocupado, especialmente a partir do final dos anos 1990 e início dos anos 2000, o centro de uma série de estudos na área das ciências sociais e humanas, preocupados em compreender o que Alves (2013, p. 31) denomina de “nova temporalidade histórica do capital – o capitalismo global – no interior do qual o ciclo de crises capitalistas assumiria nova feição”. E na qual a precarização do trabalho, garantida através da flexibilização das relações de trabalho (novas modalidades de contratação salarial, desregulação da jornada de trabalho, remuneração flexível, dentre outras) tem sido um dos elementos principais para a lógica da acumulação do capital.

Se concordamos que a precarização do trabalho assume, assim, tanto no plano da práxis quanto no plano teórico, um papel importante para a análise da relação capital/trabalho no contexto do capitalismo contemporâneo, em que – a despeito das teses do fim do trabalho, tão em voga no final dos anos 1980 e na década de 1990 – o trabalho permanece como uma categoria central para se pensar a existência humana e a organização social, é impossível não concordar, também, a partir dos resultados das inúmeras pesquisas3 realizadas no Brasil e no mundo – junto a trabalhadores das indústrias e do setor terciário; junto aos desempregados e aos trabalhadores “informais” – que as mudanças no mundo do trabalho foram de tal monta, que é preciso investigar se não estamos diante da “conformação” (nos termos gramscianos4) de um novo tipo humano, que, se por um lado, não seria bem representado pela ideia do “gorila domesticado” pensado por Taylor nos áureos tempos do Fordismo5, por outro, poderia incorporar, como salienta Antunes (1999),


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3 Várias destas pesquisas/autores nelas envolvidos são citados ao longo deste artigo e, apenas por uma questão de exposição, não foram incluídas neste trecho da redação.

4 Em seu Americanismo e fordismo, Gramsci (1984, p. 396) vai detalhar, no item Racionalização da Produção e do Trabalho”, os métodos (coercitivos, disciplinares) da indústria americana para adaptar os costumes às necessidades do trabalho. O autor italiano destaca que “os novos métodos de trabalho estão indissoluvelmente ligados a um determinado modo de viver, de pensar e sentir a vida; não é possível obter êxito num campo sem obter resultados tangíveis no outro.” Daí, continua ele, “os inquéritos dos industriais sobre a vida íntima dos operários, os serviços de inspeção criados por algumas empresas para controlar a ‘moralidade’ dos operários”. Assim, trabalho e vida estão intimamente articulados. (GRAMSCI, 1984, p. 397)

5 É bom que se destaque, como o próprio Gramsci faz no texto já citado, que essa possibilidade de não pensar, de realizar apenas maquinalmente as atividades do trabalho não é possível para nenhum trabalhador, pois ele sempre manterá a capacidade intelectual e espiritual de se colocar subjetivamente naquela ação.

um perfil de “patrão de si mesmo” e, muitas vezes, também dos colegas de trabalho, ou seja, o trabalhador assumiria como seus, os valores da empresa flexível.

Se nos dois casos, da empresa fordista e da empresa flexível, não devemos tratar de maneira definitiva o controle do trabalho pelo capital, é preciso identificar as relações de forças aí colocadas, e como estas forças se movimentam “no campo de batalha perpétua” de que nos fala Harvey (2011), para denominar o que caracteriza o processo de trabalho sob o capitalismo.

Quando me propus a pesquisar as transformações ocorridas nas telecomunicações brasileiras após a privatização, em 1998, e como essas transformações afetaram a vida dos trabalhadores nas empresas do Rio de Janeiro, bem como suas formas de resistência, me preocupava que a experiência dos trabalhadores se tornasse visível para além da aparência, porque pensava que nessa experiência poderia estar presente uma “resistência invisível”.

A “pressuposição” advinha, na verdade, de um longo contato com aquela categoria profissional, através das atividades de formação – primeiro, as atividades de formação “política” (cursos, encontros, seminários, para militantes e diretores do sindicato); mais tarde, as que incluíam também a educação, de modo geral e a qualificação profissional, onde pude ouvir de outras formas, a avaliação que os trabalhadores “da base” faziam sobre o seu processo de trabalho. Esta segunda experiência, que tem início no começo dos anos 2000, abre meu olhar para a temática da resistência cotidiana, silenciosa, que muitas vezes é o que “segura” o trabalhador no seu local de trabalho e nem o patrão, nem mesmo o sindicato podem chegar a conhecer (os jeitinhos, as trocas solidárias que são feitas entre os colegas).

Mas como seria pesquisar a resistência num cenário de transformações em que, passados quase 20 anos da privatização, ainda se tem um modelo em implantação? Talvez seja essa mesma, a lógica que predomine – de instabilidade – especialmente para os trabalhadores. O longo contato com os trabalhadores permitiu perceber como as demissões, que se tornaram frequentes no pós-privatização, vêm cumprindo o papel de controle do trabalho. Por isso, a escolha do Setor de Homologação do SINTTEL-Rio como eixo central a partir do qual se organiza os demais passos da pesquisa pareceu-me à época – e se confirmou, no percurso – como o mais acertado. Ter mais de 70 mil demitidos num período de 4 anos é bastante significativo deste processo de precarização do trabalho. A análise das fichas de homologação das rescisões, no período entre 2012-2015, mais a aplicação de 520

questionários junto aos trabalhadores demitidos, além de 8 entrevistas com dirigentes do SINTTEL-Rio e a leitura de mais de 3 mil e-mails de denúncia dos trabalhadores, seguida ainda da análise dos Acordos e Convenções Coletivas assinados pelo sindicato nos anos 2000, todos estes passos foram delineando a condição precária do trabalho nas telecomunicações.

As reflexões e os principais dados da pesquisa é que trazemos a debate no presente artigo.


Autoalienação do Trabalho e Capitalismo Global


Quando tomamos a noção de precarização como uma categoria de análise do trabalho na atualidade, pensamos que é importante recuperar também o conceito de alienação em Marx, uma vez que este autor o faz articulado aos conceitos de homem e de trabalho, fundamentais para o debate e a análise a que me dedico quando analiso as transformações do trabalho nas telecomunicações e os impactos de tais mudanças na vida dos trabalhadores nele envolvidos.

Como sob o capitalismo, prevalecem as mediações de segunda ordem, ou seja, a atividade produtiva sofre a interposição da propriedade privada, do intercâmbio, da divisão do trabalho, que impedem o homem de se realizar em seu trabalho, no exercício de suas capacidades produtivas e na apropriação humana dos produtos de sua atividade (Mészáros, 2006, p. 78), o trabalho torna-se a base de toda a alienação. Ou poderíamos dizer: “a consciência alienada é o reflexo da atividade alienada ou da alienação da atividade, da auto-alienação” (MÉSZÁROS, 2006, p. 80).

Daí que torna-se fundamental recuperar as questões em torno da autoalienação, na atualidade da sociedade capitalista, tanto no sentido de perscrutá- la em seus novos e complexos aspectos, quanto na perspectiva de superação desta condição. Alves (2010) em diálogo com a ontologia lukácsiana vai apontar que a crítica da manipulação capitalista é a crítica da vida cotidiana como crítica do ser social burguês, que é, na sua leitura, a “verdadeira inflexão ontológica lukácsiana”, ou seja, o problema da alienação ou estranhamento entendido como o problema da vida cotidiana (Alves, 2010, p. 17). Nesse sentido, ao invés da vida cotidiana aparecer como um obstáculo à consciência de classe do proletariado, aparece como sendo “uma esfera que representa o ponto inicial e o final de toda atividade humana, na medida em que dela derivam as capacidades e exigências com relação às

objetivações, que encontram sua aplicação última na vida cotidiana.”6 (ALVES, 2010, p. 27).

Ao responder às necessidades, ou “carecimentos” que a natureza provoca, fabricando produtos, o homem que trabalha tem a capacidade de generalizar e fazer novas perguntas, transformando suas necessidades e sua capacidade e possibilidade de satisfazê-las. Isso por que, segundo Lukács, a consciência tem, “desde o início e dentro do processo de trabalho, um papel ativo e decisivo.” (LUKÁCS, 1968 apud ALVES, 2010, p. 45). Assim, o trabalho deixa de ser entendido apenas como fabricação de produtos e passa a ser um “complexo problemático” onde está posta a relação dialética entre teleologia (consciência) e causalidade (natureza); ou liberdade e necessidade. Há, portanto, sempre um grau de liberdade e escolha, pois como diz Lukács, toda práxis é uma decisão entre alternativas, mas essa decisão é sempre pressionada, por outro lado, pela “necessidade social” que atua sobre os indivíduos, na maioria das vezes, anonimamente, para que essa decisão assuma determinada orientação.

No contexto do capitalismo global, ou do capitalismo manipulatório – nos termos de Lukács – a questão que se coloca é que existem, hoje, objetivamente, condições materiais para uma “vida plena de sentido” que, no entanto, não se realiza, por conta da manipulação social que impregna a vida burguesa (ALVES, 2010, p. 68). Ao contrário, amplia-se a esfera da alienação social, passando do trabalho estranhado também para o consumo estranhado, ocupando todas as esferas da vida e instaurando a crise da pessoa humana em sua dimensão radical (ALVES, 2013, p. 27).

No campo do trabalho, as estatísticas sobre adoecimentos, inclusive mentais, por conta das pressões por cumprimento de metas (cada vez mais desumanas e impossíveis de serem cumpridas) atestam que o trabalho tem destruído a vida, mais do que atuado para o desenvolvimento humano. Filgueiras (2017) aponta relatório da ONU (PNUD, 2015), em que o Brasil aparece como o 3º país do mundo com mais registros de mortes por acidentes de trabalho – 3 mil mortes registradas pelo INSS a


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6 Vale destacar a proximidade deste pensamento de Lukács com as reflexões gramscianas sobre senso comum, o que permite, também, uma articulação bastante rica com o conceito de experiência em Thompson (1978) para a análise das ações dos trabalhadores em Telecomunicações, no que elas podem representar de aceitação ou de resistência às transformações no trabalho e nas suas condições de vida. Sobre esta aproximação entre o senso comum de Gramsci e a ideia de experiência em Thompson, ver Thompson (2013, p.20), em Costumes em Comum.

cada ano – e contabiliza mais de 700 mil acidentes por ano, desde 2008 (entre acidentes típicos, de trajeto e doenças ocupacionais), considerando que há ainda uma intensa subnotificação. Assim, compreender e desvelar o processo de autoalienação no capitalismo global é fazer um profundo inventário da precarização do trabalho nas suas várias dimensões – tanto de exploração da força de trabalho (mercadoria), quanto de dominação (ou dessubjetivação / desefetivação do ser genérico do homem), uma vez que estas determinações encontram-se quase sempre implicadas umas com as outras.

Estudo de Capelas, Neto e Marques (2010) indica que a flexibilização da jornada de trabalho por meio do banco de horas coloca o operário ou o empregado como “homem inteiro” à disposição da dinâmica laboral do capital: “O trabalhador passou a confundir o interesse da firma com o seu, o que permitiu que sua força de trabalho sofresse maior exploração.” (CAPELAS; NETO; MARQUES, 2010 apud ALVES, 2013, p. 92)

Por isso, penso ser oportuna e instigante a proposição de Alves (2013) de tratar a precarização salarial, enquanto objeto de investigação, na perspectiva do metabolismo social do trabalho, uma vez que sob tal perspectiva


significa expor os impactos das mutações laborais na vida cotidiana das individualidades pessoais de classe e nas relações sociais e humanas do trabalhador assalariado, tratando, desse modo, da dimensão da saúde do homem-que-trabalha (ALVES, 2013, p. 172).


Para o autor, este novo metabolismo social explicita as contradições do capital, em especial aquela entre uma produção de mercadorias cada vez mais social (exemplo da constituição da “empresa em rede”7, enquanto dimensão socializada da produção capitalista), e uma sociedade cada vez mais dessocializada pelo precário mundo do trabalho. (ALVES, 2011, p. 23). Alves articula, inclusive, o conceito de sociometabolismo da barbárie àquele cunhado por Harvey – “acumulação por espoliação” – para caracterizar a cena capitalista da virada para o século XXI e “que seria a reposição das práticas predatórias da acumulação primitiva ou originária, não



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7 Braga (2012, p. 185) também lança mão deste termo – Empresa Neoliberal em Rede – a partir de um estudo do autor francês, Thomas Coutrot, que distingue 3 grandes níveis organizacionais, discordantes, mas combinados (desde um grupo mais inovador, até o último, terceirizado e neotaylorista) com dominância do capital financeiro. Para mais detalhes desta caracterização, ver Quadro 14 da obra citada.

mais como uma forma ‘exterior’ ao capitalismo, mas como uma característica fundamental da sua atual dinâmica global.” (ALVES, 2011, p. 26)

A cultura do medo – sustentada, concretamente na transformação do trabalho vivo, numa proporção cada vez maior, em força de trabalho supérflua do ponto de vista do capital (MÉSZÁROS, 2002 apud ALVES, 2011, p. 24) – é um dos mecanismos para o maior controle do trabalho pelo capital, na atualidade. Mas, para além disso, há uma expansão dessa “nova” cultura para fora do local de trabalho, ocupando todo o tempo da vida do trabalhador (especialmente viabilizado pelas tecnologias da comunicação e informação), dominando as esferas do lazer e da vida pessoal, inclusive. É o que Alves (2011, p. 93) vai chamar de “presença totalizadora do trabalho abstrato”, com consequências profundamente significativas para a saúde física e mental.


Autoalienação e Resistência: questões sobre o trabalho nas Telecomunicações do Rio de Janeiro


Todo esse processo de precarização do trabalho que passa a ser predominante a partir da década de 1980 tem como efeito a disseminação da insegurança, o que, no nível individual é responsável por uma possível “despersonalização” dos sujeitos (a crise pessoal, de que fala Alves, 2013, p. 111), mas também dilacera os laços que constituem a sociabilidade humano-genérica (crise do homem com os outros homens), dificultando o desenvolvimento de espaços sociais, como o trabalho, enquanto lugares de partilha de experiências coletivas emancipadoras. Nesse sentido, o exemplo que Antunes (1999) apresenta sobre o trabalhador como “patrão de si mesmo” é um dos inúmeros dentre outros que podem ser citados para expor a condição de alienação/precarização do homem-que-trabalha sob o capitalismo global. Mais uma vez, algumas pesquisas (BRAGA, 2012; DIEESE, 2018) têm apontado que as questões geracionais têm se colocado como um problema prático e teórico de muita densidade e tensão e que tem demandado novos estudos na área do trabalho. Primeiro, porque os jovens constituem um dos segmentos mais penalizados, em todo o mundo, com uma taxa de desemprego muito elevada, ao mesmo tempo que também ocupam os postos de trabalho mais precarizados e instáveis; mas também, porque, associado a essa “condição” e à experiência de formação escolar, geralmente mais elevada que os trabalhadores “estáveis”, mais antigos; apresentam pouca participação sindical e/ou política partidária, o que contribui para que seja criado

um fosso entre os trabalhadores mais antigos e os mais jovens – às vezes, também traduzido por militantes sindicais e jovens trabalhadores – o que dificulta qualquer possibilidade de ação coletiva que não seja aquela coordenada pelo empregador.

Beaud e Pialoux, em seu livro Retorno à Condição Operária (2009), apontam como nos anos 1990 criou-se um clima “jovens” contra “velhos” na oficina da Peugeot em Sochaux (França), com a “renovação” do quadro de funcionários que a reestruturação produtiva implantava:


Com a suspensão das contratações em 1979 e a renovação muito tardia e parcial da mão de obra a partir do fim dos anos 1980, a média de idade dos operários aumentou de maneira contínua no período (47 anos em 1995). No início dos anos 1990, a questão da diminuição da média de idade da mão de obra em Sochaux torna-se uma questão crucial. Nesse período de dois a três anos em que velhos e jovens temporários trabalharam lado a lado nas cadeias de produção, para muitos OE [operários especializados], os temporários simbolizaram o rebaixamento, a desqualificação de suas habilidades. De certo modo, eram a prova viva de que os velhos OE podiam ser substituídos de uma hora para outra por assalariados sem formação, cuja única vantagem era a juventude e o “frescor” físico. A presença dessa força de trabalho jovem e disponível ao lado deles tornava seu envelhecimento ainda mais visível e inelutável para eles mesmos. (BEAUD; PIALOUX, 2009, p. 40).


Tensão que era sustentada ainda com mudanças concretas no processo de trabalho, no qual, por exemplo, o sistema de bônus estabelecia dentro da equipe uma lógica de concorrência entre os trabalhadores; onde a “responsabilidade” de cada operário em relação à equipe e desta em relação ao produto acabado e a obsessão pelo “defeito zero” tendia a reduzir as antigas formas de estratégias para fugir à vigilância dos chefes. Tudo isso, mais as iniciativas das gerências para isolar os representantes sindicais e antigos militantes, contribuíram para um “processo de desestruturação, de enfraquecimento simbólico do grupo operário, um questionamento radical dos esquemas e das práticas que durante muito tempo permitiram sua existência, dando-lhe coerência e coesão”. (BEAUD; PIALOUX, 2009, p. 73)

Comparando com a realidade dos trabalhadores em telecomunicações do Rio de Janeiro, também é possível perceber essa tensão associada ao processo de renovação nas empresas reestruturadas. Nas várias ocasiões em que participei diretamente de reuniões com representantes de RH das empresas prestadoras de serviço à operadora Oi (terceirizadas), por conta da coordenação do curso de

Elevação de Escolaridade e Qualificação Profissional8, ouvia os gerentes dessas empresas se pronunciarem claramente em defesa de uma renovação progressiva e sistemática do quadro de funcionários, para “acabar com os vícios dos antigos trabalhadores”. Entenda-se, com isso, segundo os trabalhadores antigos e os dirigentes do sindicato, tanto um determinado jeito de trabalhar (que começa a ser modificado, um pouco pela introdução de novas tecnologias, como a fibra óptica; outro tanto, pela pressão pelo cumprimento das metas de instalação dos telefones e outros serviços aos clientes), como também uma forma de enfrentar o que Beaud e Pialoux (2009) chamaram de “cultura de oficina”, que reunia uma série de práticas solidárias e coletivas para burlar a vigilância das chefias sobre o trabalho, mas que se estendia para outros espaços de sociabilidade, tais como o campeonato de futebol (seja aquele organizado pelo sindicato, ou o que surgia no próprio local de trabalho), e que funcionavam como um amálgama de uma determinada identidade e elemento de coesão daquele grupo, e que terminava por sustentar também um determinado comportamento político-organizativo que, nos períodos de campanha salarial ou lutas pontuais por algum direito, permitia situar nos trabalhadores da rede um elemento mobilizador imediato. Tudo isso era preciso (des)estruturar. E, nesse sentido, mais que as mudanças tecnológicas, as novas formas de gestão do trabalho contribuíram para dificultar o encontro dos trabalhadores – entre si, e entre eles e o sindicato, uma vez que a partir da reestruturação, não existia mais “local de trabalho”: a ordem de serviço agora é passada pelo celular (através do serviço de trunking) e o trabalhador, que, em sua grande maioria, trabalha com o seu próprio carro agregado, nem encontra, assim, a maior parte de seus companheiros de trabalho. Assim, a prática cotidiana de todos os trabalhadores se concentrarem num determinado local de trabalho, para pegarem seu ferramental e o carro da empresa para de lá saírem para o trabalho externo, isso modificou-se completamente. E afetou, também, uma prática sindical de realização de atos, paralisações e assembleias – sempre organizadas de acordo com essa dinâmica, no início ou no final do dia de trabalho.

Também as questões de gênero tornam-se relevantes nessa análise, como já advertira Harvey, especialmente quando consideramos o segmento do


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8 Refiro-me ao Programa Vivendo e Aprendendo, que aconteceu no período de 2004 a 2007, e atendeu mais de 600 trabalhadores das empresas prestadoras de serviço de rede à Oi, para elevação de escolaridade a nível do Ensino Médio. Esse programa foi financiado pela referida operadora, a partir de uma cláusula de Acordo Coletivo, de Incentivo à Educação.

Teleatendimento, que cresce justamente no período pós privatização. Nesse caso, este segmento associa a questão geracional e de gênero, pois é o setor que reúne mais jovens e mulheres, geralmente em seu primeiro emprego (BRAGA, 2012; NOGUEIRA, 2006; 2009; VENCO, 2009).

Braga (2012, p. 182) vai identificar estes trabalhadores como os representantes principais do que ele denomina como precariado: trabalhadores jovens não qualificados ou semi-qualificados, precarizados, sub-remunerados (recebendo, em média, 1,5 salário mínimo) e inseridos em relações trabalhistas que bloqueiam sua organização coletiva.

A partir de tais reflexões ganha maior sentido retomar as questões colocadas para a pesquisa junto aos trabalhadores de telecomunicações do Rio de Janeiro, reafirmando-as tanto na perspectiva de perscrutar as minúcias do controle do trabalho implantado nas empresas do setor a partir da privatização, em 1998, quanto as respostas dadas pelos trabalhadores a esse controle enquanto formas de resistência que surgem nos locais de trabalho e no sindicato.

É neste contraditório espaço da ação, ou da experiência, tomando Thompson como referência, que ganha sentido o debate sobre classe e consciência de classe, não como uma realidade “estática”, como disse Lefebvre (1966), mas, como acentua Thompson (1987, p. 10), um “processo ativo que se deve tanto à ação humana como aos condicionamentos”.

Em seu texto “Algumas observações sobre classe e ‘falsa consciência’”, Thompson (2012, p. 271) faz uma aguda crítica aos marxistas e não marxistas que acabam por fazer um uso estático da categoria classe: “tantas pessoas nesta ou naquela determinada relação com os meios de produção, ou, em termos mais grosseiro, ‘x’ ou ‘y’, tantos assalariados, tantos ‘colarinhos brancos’ e por aí vai.” E reforça o seu caráter histórico e o fato de que, no sentido heurístico, o conceito de luta de classes deveria ser o conceito prioritário.

Isso não quer dizer, por outro lado, que possamos pensar a formação da classe independente das determinações objetivas. Para Thompson, pelo contrário, é necessário um exame criterioso dessas determinações; no entanto, nenhum exame das determinações objetivas e nenhum modelo teorizado podem levar à equação de uma classe com consciência de classe, porque a classe se define de acordo com “o modo como homens e mulheres vivem suas relações de produção e segundo a experiência de suas situações determinadas, no interior do “conjunto de suas relações

sociais”, com a cultura e as expectativas a eles transmitidas e com base no modo pelo qual se valeram dessas experiências em nível cultural.” (THOMPSON, 2012, p. 277). Como interessa analisar, neste trabalho, o movimento contraditório entre a determinação e a agência humana na ação dos trabalhadores em Telecomunicações do Rio de Janeiro frente às transformações do trabalho implementadas no período pós privatização, alguns outros conceitos foram incorporados, de autores que também vêm se dedicando ao estudo do trabalho, ou ao estudo dos movimentos sociais/formas de resistência à opressão dos grupos subalternos, numa perspectiva que dialogue com o que vimos explicitando até aqui, mas que também permita

avançar na reflexão sobre a ação dos trabalhadores.

Assim, a leitura de James Scott (2013) e seus conceitos de “discurso oculto” em contraposição a um “discurso público” que os subalternos empreendem na sua “resistência cotidiana” contra a dominação foi importantíssimo ao me deparar com os cerca de 18.000 e-mails de denúncias, reunidos desde o ano de 2010, pelo SINTTEL- Rio, quando criou uma Central de Atendimento (e um e-mail exclusivo) para receber esse tipo de mensagem da categoria.9 Em primeiro lugar, pela opção do autor, na obra citada, de privilegiar os temas da dignidade e da autonomia – “que têm sido normalmente considerados secundários face à exploração material”, segundo suas próprias palavras (Scott, 2013, p. 18). E que a leitura das mensagens enviadas pelos trabalhadores ao sindicato também tornou necessária no plano prático e teórico. Esse era o grito principal que aparecia nas mensagens, a exigência da dignidade. Mesma perspectiva que encontrei nas falas das trabalhadoras e trabalhadores que ouvi discursando nas portas das empresas nas duas greves que aconteceram no teleatendimento.

Além disso, seus conceitos permitem dialogar, ainda, com a noção de experiência em Thompson, na perspectiva da ação humana com um determinado nível de escolha, mesmo sob determinadas condições.

Assim também, a própria ação sindical, especialmente com a representação dos trabalhadores terceirizados e com o processo de negociação empreendido com as empresas/sindicatos patronais desses segmentos – criando as comissões de


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9 Para efeito de análise, optei por trabalhar com a leitura da totalidade dos e-mails nos anos de 2010 (949) e no ano de 2015 (2.719), em primeiro lugar, porque gostaria de perceber se do 1º ano para cá havia tido alguma mudança significativa no tipo de denúncia e/ou na forma de se relacionar com o sindicato. O ano de 2015, como último, se deu em função do tempo para a análise e também porque os demais instrumentos utilizados também tinham esse ano como seu prazo final.

negociação com a participação de trabalhadores da base e levando grande parte das reuniões bilaterais a acontecerem na sede do sindicato, com a ampla participação deste grupo – poderia ser compreendida dentro desse espectro e significar, como Tilly (2009) propôs, um novo repertório no enfrentamento da luta de classe que se mostra em tamanha desvantagem, na atualidade, para a classe trabalhadora.


A experiência da precarização e da resistência nas Telecomunicações do Rio de Janeiro


Em primeiro lugar, os números das demissões nas empresas de Telecomunicações do Rio de Janeiro apontam-nos alguns elementos importantes. Já de início, é possível compreender que tal processo não se expressa de maneira homogênea sobre o conjunto dos trabalhadores: há uma diferença, e mais, uma certa desigualdade entre a realidade vivenciada pelos trabalhadores das operadoras (Oi, Vivo/GVT, Claro/EBT/NET, TIM,) e aqueles das empresas prestadoras de serviço (Contax, Atento, Serede, Telemont, só para citar as maiores), como mostra a Tabela a seguir:


Tabela 1 Distribuição por Empresas Prestadoras de Serviços e Operadoras


EMPRESAS PRESTADORAS DE SERVIÇOS



%

ATENTO

140

26,9

SEREDE

30

5,8

TELEMONT

35

6,7

CONTAX

136

26,2

OUTRAS

109

21

TOTAL PRESTADORAS DE SERVIÇOS

450

86,6

OPERADORAS



OI

49

9,4

VIVO/GVT

10

1,9

EBT/CLARO/NET

11

2,1

TOTAL OPERADORAS

70

13,4

TOTAL GERAL

520

100,0

Fonte: Pesquisa Homologação/SINTTEL-Rio 2015.

Elaboração: da autora, com Ana Caillaux.


Ao delinearmos o perfil dos trabalhadores demitidos, percebemos que a diferença entre aqueles das operadoras e os das empresas prestadoras de serviço não é apenas numérica. Os dados que as fichas da homologação nos apresentam, mais aqueles que os questionários respondidos também nos permitem analisar, vão constituindo um perfil que tem um corte de gênero, raça e geração muito claros. Por

exemplo, além de se constituírem na maioria dos trabalhadores das empresas de telecomunicações do Rio e, talvez por isso mesmo – assim como, por ocupar os cargos de mais baixa qualificação – as mulheres são também demitidas em maior número que os homens, confirmando os estudos que indicam que junto com os jovens, os negros e aqueles com mais baixa escolaridade/especialização, as mulheres formam um dos grupos mais atingidos pela flexibilização e precarização das relações de trabalho na contemporaneidade.

Além disso, se articularmos este aspecto com outros elementos tais como idade, faixa salarial e tempo de empresa, já é possível perceber como vai se formando uma experiência/vivência de trabalho na qual a própria demissão se constitui de modo diverso para trabalhadores das operadoras e prestadoras e, em cada empresa, como estes dados citados influenciam, também de forma variada, os grupos atingidos pela demissão.

Em primeiro lugar, pode-se dizer que especialmente no caso das empresas de teleatendimento e das empresas de rede10, as demissões mantêm o mesmo padrão da composição do seu quadro de trabalhadores: são demitidas cerca de 70% de mulheres e 30% de homens no teleatendimento, enquanto na Rede os homens demitidos representam mais que 80%. No que se refere às faixas salariais, encontramos as mesmas diferenças entre as condições dos trabalhadores dos determinados segmentos: entre as prestadoras, tem-se a Atento (Teleatendimento), na 1ª faixa, de 1 Salário Mínimo, com 62,6%; e das outras cinco empresas (de rede e teleatendimento), quatro delas estão na 2ª faixa, de 1 a 1 e ½ Salário – Contax: 50,1%; Brasilcenter: 56,8%; Telemont: 64,5%; Serede: 61,5%. Vale dizer que nelas, a faixa de 3 Salários ou Mais é residual, não ultrapassando mais que 5%, enquanto nas operadoras variou na margem dos 30%.

A mesma diferença desigual se expressa quando se pensa no aspecto da cor/raça: há uma predominância de Negros e Pardos nas empresas prestadoras de serviço (teleatendimento e Rede), enquanto nas operadoras o que prevalece é o inverso, como pode ser visto na tabela a seguir.


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10 Cabe aqui fazer uma breve explicação sobre o que vem a ser as empresas de rede: no caso das Telecomunicações nos referimos às empresas responsáveis por todo o trabalho de instalação e reparo de linhas e cabos que sustentam a rede de telecomunicações – isso inclui desde o telefone fixo e móvel, até os serviços de dados e TV, prestados tanto para os clientes individuais quanto para as grandes corporações, como bancos, comércio, televisão, dentre outros. No período pós privatização, estes serviços, que se complexificaram bastante, passaram a ser realizados por empresas terceirizadas, contratadas pelas operadoras. Daí o nome “prestadoras de serviço” para caracterizá-las.


Tabela 2 – Distribuição das Empresas por Cor



COR

EMPRESAS

NEGROS E PARDOS

NÃO NEGROS

Total


87

52

139

ATENTO

62,6%

37,4%

100,0%


2

9

11

EBT/CLARO/NET

18,2%

81,8%

100,0%


18

12

30

SEREDE

60,0%

40,0%

100,0%


19

30

49

OI

38,8%

61,2%

100,0%


4

6

10

VIVO/GVT

40,0%

60,0%

100,0%


94

41

135

CONTAX

69,6%

30,4%

100,0%


25

10

35

TELEMONT

71,4%

28,6%

100,0%


66

42

108

OUTRAS

61,1%

38,9%

100,0%


315

202

517

Total

60,9%

39,1%

100,0%

Fonte: Pesquisa Homologação/SINTTEL-Rio, 2015.

Elaboração: da autora, com Ana Caillaux.


O mesmo pode ser apontado no que diz respeito à escolaridade: foi nas Operadoras onde encontrou-se os maiores índices de trabalhadores com nível superior completo ou pós-graduação: Oi (75,5%); EBT/Claro (54,5%); Vivo/GVT (40%); enquanto nas prestadoras de serviço o nível de escolaridade predominante é o Ensino Médio: Telemont (71,4%); Serede (60%); Atento (57,2%) e Contax (55,9%), muito embora nessas empresas já seja também crescente o percentual de trabalhadores que chegaram ou chegam ao curso superior, como indicam os números do item Superior Incompleto: Atento (32,6%); Contax (30,1%); Serede (26,7%).


A Experiência e a Percepção sobre o Trabalho Vivenciado


A diferença desigual entre “precários” e “estáveis”, ou trabalhadores das prestadoras de serviço e das operadoras, leva a que as experiências de trabalho e a percepção sobre as mesmas também se deem de modo diferenciado entre os trabalhadores.

Ouvir os trabalhadores, direta ou indiretamente, tornou-se fundamental para compreender melhor sua experiência com o trabalho, e, nessa perspectiva, os e-mails de denúncia, a que tivemos acesso em março de 2016, foram a fonte principal dessa “escuta” no primeiro momento. Por conta do espaço limitado, optamos por apresentar as mensagens sem o cabeçalho original, próprio do e-mail, mas mantivemos a mesma grafia com que as mensagens chegaram ao sindicato.

Boa tarde !

Desde já agradeço pela atenção. Meu nome é XXXXXXXXX e sou operadora de telemarketing receptivo na empresa SPCOM.

O motivo do meu contato com vocês é que gostaria de fazer uma denúncia e queria pedir que por favor vocês me ajudassem porque já não sei mais a quem recorrer.

No dia 30/08/10 recebi um feedback da minha supervisora avisando que eu fui zerada na monitoria por falha gravíssima, não ter registrado o atendimento mesmo com a queda da ligação. Informei que eu sempre registro todas as ligações e que se não registrei é porque não ouvi o número, nem o CNPJ, porque sempre registro meu atendimento e perguntei se eu poderia ouvir a ligação.

Ela disse que não porque a monitoria foi online e quando é assim não é feita a gravação. Ela perguntou se me recordo do atendimento, eu informei que não. Com isso fomos a minha PA porque guardo o nome e nº de todos os clientes no meu bloco e não tinha nada desta ligação.

Ela enviou um e-mail de contestação para monitoria pedindo o horário da ligação, o numero do cliente ou CNPJ e mais detalhes e eles não informaram nada.

Quando foi hoje dia 01/09/2010 o monitor que ouviu minha ligação me chamou para dar feedback, disse que eu não registrei o atendimento mesmo com a queda. Eu perguntei se poderia ouvir a ligação, ele disse que não porque a monitoria foi online, então eles ainda não gravam a ligação. A monitoria de todos os operadores é assim.

Eu peguei o folheto da Sinttel e mostrei o item 5.12, falei que além de me avisar ele precisava pelo menos me deixar ouvir a ligação, porque esta é minha defesa, meu respaldo. Ele disse que a empresa não trabalha assim, e que nenhuma empresa trabalha assim. Que minha nota não pode mais ser alterada. Eu informei que eu não sou uma pessoa de brigar, questionar, mas a partir do momento que eu trabalho corretamente e estou na minha razão eu vou correr atrás dos meus direitos.

Com isso gostaria que vocês Por Favor me ajudassem.


Para além da escuta dos trabalhadores, a leitura dos e-mails nos ajuda a (re)construir a história dessa condição de precarização do trabalho, mas também permite investigar, por outro lado, uma gama de novos aspectos envolvidos na experiência da resistência à dominação.

Comecemos pela própria força do discurso. O que transparece na “fala” da trabalhadora não é a submissão ou a resignação com essa condição, pelo contrário,

é uma indignação, e um pedido de informação/orientação (política?) ao sindicato para responder a essa situação.

Scott, em seu livro A dominação e a arte da resistência, afirma que


todos os grupos subordinados criam, a partir da sua experiência de sofrimento, um “discurso oculto” que representa uma crítica do poder expressa nas costas dos dominadores. [...] Mesmo no caso da classe trabalhadora contemporânea, dir-se-ia que as afrontas à dignidade pessoal e o controle apertado do trabalho assumem, nos testemunhos de situações de exploração, uma importância equivalente a outras preocupações mais específicas relacionadas com o trabalho e a remuneração. (SCOTT, 2013, p. 18-19).


Tomando os trabalhadores contemporâneos, numa condição de exploração que assume na atualidade uma face cada vez mais precarizada, e que quase nunca podem ou conseguem responder direta ou abertamente, no próprio local de trabalho, às agressões e arbitrariedades próprias do controle do processo de trabalho, desvelar esse “discurso oculto” – que para Scott está para além do discurso em si, mas pode incluir também algumas práticas de dissimulação, tratadas pelo autor como “infrapolítica dos oprimidos” (SCOTT, 2013, p. 273) – é fundamental para analisar em que medida ele será capaz de romper o silêncio e se fazer público, partilhado entre mais subordinados e com capacidade de mobilização.

Essa ideia do “discurso oculto” / infrapolítica vai dialogar, ainda, com o conceito de “economia moral” de Thompson, e permitir que vejamos como ganha força, especialmente entre os trabalhadores das empresas prestadoras de serviço e teleatendimento, a defesa de um respeito à dignidade do trabalhador. Muito mais que o salário, o que foi destacado pelos trabalhadores era o ataque, a afronta dos gestores à humanidade de cada trabalhador, à sua dignidade, que eles queriam ver respeitada e queriam que o sindicato defendesse. Mesmo que, muitas vezes não seja dito quais são os valores que estão defendendo – como os trabalhadores da Inglaterra do séc. XVIII o fizeram nos motins da fome – mesmo assim, fica claro que há, para esses trabalhadores, limites a serem cumpridos pelas empresas no tratamento dos empregados.

Ao ter contato com os e-mails de denúncias, na sua complexidade e diversidade, com os discursos que eram verbalizados de maneira clara e indignada, pensamos que essa seria uma maneira de ter acesso, de certa forma, a uma parte

desse “discurso oculto” dos trabalhadores em telecomunicações do Rio de Janeiro.


Olá

Venho por meio desta fazer uma denúncia sobre a empresa que eu trabalho.

Acho que já passou dos limites e está sendo abusivo da parte deles. A pressão foi tanta que com cinco meses me vi com síndrome do pânico diagnosticada pelo psiquiatra.

Lembro-me que no começo do meu tratamento eu deitava a cabeça na P.A para descansar e eles não deixavam, ainda que eu estivesse atendendo.

Não podemos colocar pausas particulares, temos que pedir permissão para ir ao banheiro e se passar de três minutos é descontado do nosso salário.

Somos oprimidos a vender e quando vendemos fazem monitorias e nos zeram, tirando assim a maior parte da comissão, desmotivando totalmente o trabalhador.

E se contestamos o que está acontecendo, a equipe gestora nos diz que os últimos que tentaram fazer isso foram mandados embora.

Tenho crises de pânico sempre e por causa da pressão psicológica pioraram, ja faz alguns dias que não consigo nem sair de casa por causa disto.

Queria saber, como cidadã, que meios posso tomar. preciso do trabalho, mas também preciso da saúde para trabalhar.

Aguardo resposta Obrigado


A mensagem acima destaca o quanto o trabalho pode estar associado, na percepção do trabalhador, à perda de sua condição de saúde, ainda que tal crítica possa estar circunscrita à sua única e própria realidade. No entanto, seguindo a leitura também encontramos no seu final uma solicitação de que o sindicato lhe oriente sobre que “meios tomar” para enfrentar essa situação que ela considera que chegou num limite. Assim como essa, a maioria das mensagens analisadas no ano de 2015 assumem tal característica, dando maior densidade à resposta do questionário acerca do papel do sindicato – e que apontava como a primeira opção na Atento e Telemont, por exemplo, Dar Orientação Política às Lutas da Categoria.

Nesse sentido, também ganha maior materialidade a ideia de que os trabalhadores empreendem uma resistência cotidiana à dominação do capital. Resistência que pode ser percebida, na mensagem abaixo, através de uma preocupação com o conjunto dos colegas de trabalho (de lhes passar a informação, contrariando a orientação da chefia); de, de novo, ter no sindicato uma referência de informação e possível fonte de orientação, o que parece nos indicar que o campo de

batalha de que nos falou Harvey é, sim, um espaço de disputa no qual o trabalho também atua.


Boa noite, a cerca de um mês li a noticia no site de vcs para não assinarmos nenhum tipo de papel sobre mudança na jornada de trabalho, pois bem, esse papel chegou em Petrópolis hj dia 29/01/2015 e o supervisor passou para todos assinarem dizendo que foi acordado entre a oi, Telemont e Sinttel. Como li o assunto no site instruí os técnicos para não assinarem, mas já estamos trabalhando na nova escala de trabalho que eles criaram, só que tem um diferencial, quando o técnico é escalado para trabalhar no domingo ele não folga no sábado e nem no meio de semana, ele só folga no outro domingo, totalizando 13 dias de trabalhos consecutivos. Gostaria de saber qual posicionamento devemos tomar? aguardo uma resposta!! obrigado!


Os e-mails recebidos pelo sindicato indicaram, em sua leitura, uma série de ações ou respostas dos trabalhadores que, mediante as humilhações sofridas nos locais de trabalho, agiram no que Scott também denominou como uma “inobediência prática” (2013, p. 278), que ia desde o abandono da PA (Posição de Atendimento); à não assinatura de alguma advertência; à falta por não recebimento do Vale transporte ou do combustível, no caso da rede; à falta quando escalado para o trabalho em feriado ou domingo, sem o prazo definido no Acordo – todas ainda no campo do chamado discurso oculto, entendido também como práticas que dissimulassem e resistissem ao controle e à dominação.

Mas, às vezes, como as próprias mensagens vão nos confirmando, esta situação se torna insustentável e é preciso ir além, com ações que enfrentem mais drasticamente tal controle. É assim que compreendemos a participação desses trabalhadores nas greves do Teleatendimento, por exemplo. Da ocultação passa-se a uma sucessiva publicização, na qual os trabalhadores vão “treinando” seu discurso, de forma que no dia da greve aparece uma clara ruptura da fronteira que separava as formas ocultas de denúncia das precárias relações de trabalho, por um discurso público em que se experimenta a liberdade de dizê-las de uma vez, encontrando nos colegas a solidariedade de quem também vive a mesma situação e já não a suporta mais:


Comparecimento de horas? Não aceitam. A gente tem que desmaiar na PA. Minha amiga passou mal no trabalho, tremendo, e afirmaram que ela estava apta prá trabalhar. O que é isso? Escravidão. Escravidão é na Contax. A gente aqui ainda é gato pingado, entendeu, mas ainda pode fazer a diferença. (Palmas) (Trabalhador ao microfone, Greve- Contax Mauá).


Essa resistência cotidiana, percebida tanto nas empresas de teleatendimento quanto nas de rede, os coloca também em contato com o sindicato, que deve cumprir o papel de representá-los e defendê-los, publicamente, contra a precarização. Baseado no entendimento sobre esse papel é que se estabelece (ou não) a relação entre esses dois atores, e entre eles e seu principal “adversário”, as empresas, na negociação do que é direito dos trabalhadores.


A ação sindical frente à precarização do trabalho11


SANTANA E RAMALHO (2003), assim como outros autores (BEYNON, 2003; ANTUNES, 2003; BOITO JR, 2003) vão afirmar que, apesar das grandes dificuldades postas aos sindicatos nesse cenário de desregulamentação e flexibilização de todo o sistema social montado a partir do mundo do trabalho, não é razoável dizer que vivemos um declínio ou decadência do movimento sindical, como se chegou a afirmar nos anos 1990, inclusive no Brasil (RODRIGUES, 1999).

Mas se não podemos falar em declínio, não se pode também ignorar as dificuldades que se generalizaram a partir dos anos 1990, com a reestruturação produtiva que acarretou a perda de mais de um milhão de postos de trabalho na indústria, a disseminação de formas precárias e informais de ocupação e uma relativa expansão do emprego no setor de serviços, o que começou a debilitar as bases dos sindicatos mais fortes no Brasil. (OLIVEIRA, 2003, p. 277).

Ao analisar as tendências nas Negociações Coletivas no Brasil, a partir da metade dos anos 1990, Oliveira (2003, p. 280-281) vai apontar que a lei nº 8.880, de

27 de maio de 1994, ao estabelecer as bases do novo plano de estabilização econômica, proibiu reajustes automáticos de salários, o que fez com que deixasse de existir um patamar mínimo de correção salarial válido para todas as categorias profissionais, e que servia como ponto de partida para as negociações com os empresários e o próprio governo. A chamada PLR (Participação nos Lucros ou Resultados) passou a ocupar o lugar das normas de reajuste salarial, só que


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11 Não foi possível, no escopo deste artigo, apresentar de maneira detalhada a análise sobre a negociação coletiva e o estudo comparativo dos Acordos e Convenções Coletivas assinados entre SINTTEL-Rio e empresas/sindicatos patronais. O capítulo 4 da Tese “Reestruturação, precarização e resistência nas telecomunicações do Rio de Janeiro: o trabalho no “campo de batalha” (2016) trata detalhadamente desta temática.

parcialmente, já que estes valores recebidos não incidem sobre o cálculo das férias, 13º salário, FGTS, recolhimento previdenciário. E estas modificações abrem caminho para uma série de outras desregulamentações no campo dos direitos do trabalho.

Quando nos debruçamos sobre os Acordos Coletivos e as Convenções Coletivas de Trabalho, assinados entre o SINTTEL-Rio e as empresas e sindicatos patronais do setor de telecomunicações pudemos perceber, claramente, esse novo padrão ir ganhando espaço, no ano, no que parece ser mesmo uma batalha muito difícil para o campo do trabalho.

Ao mesmo tempo, há uma série de ações empreendidas pelo sindicato e que podemos identificar com o que Tilly (2009) denomina de novos repertórios. Dentre elas destaca-se a tentativa sistemática de estabelecimento de uma Convenção Nacional para o Teleatendimento, na perspectiva de evitar que as empresas “fujam” dos grandes centros e, portanto, da exigência do cumprimento de Acordos Coletivos melhores para os trabalhadores. Ao mesmo tempo, avançou-se bastante na articulação/organização internacional, o que faz com que as grandes empresas cumpram protocolos comuns em todos os países em que atuam. E traz para a agenda de negociação e de mobilização a questão da juventude, das mulheres, da diversidade sexual/de gênero como pontos permanentes que orientam as práticas e atividades desenvolvidas pelo sindicato.

É nesta perspectiva, ainda, que se pode compreender a renovação no quadro de dirigentes e representantes sindicais de base e uma crescente sindicalização – na Rede, a taxa está entre 55 e 60%; e no teleatendimento, entre 25 e 30%, com respostas positivas às campanhas permanentes realizadas nas empresas, embora ainda distante do índice de 90% de sindicalizados antes da privatização (SILVA, 2010, p. 173).

Todas essas estratégias de ação e pequenos avanços – especialmente quando comparados aos dados e aos relatos de sofrimento que os trabalhadores nos permitiram desvelar – nos apontam para a ideia de que o sindicato existe não como uma instituição estática, fechada, mas que é permeada pela interação conflituosa dos sujeitos que a constituem com os seus adversários, ou mesmo com outros “atores” com papéis de destaque em determinado contexto. No caso das telecomunicações pós privatização – em especial, no Rio de Janeiro, local estudado em nossa pesquisa

– a ação sindical priorizada pelo SINTTEL-Rio esteve centrada, basicamente, na negociação coletiva em busca de garantir Acordos e Convenções Coletivas de

Trabalho que, em primeiro lugar, trouxessem de volta à base de representação do sindicato aqueles trabalhadores “expulsos” com a privatização (trabalhadores da Rede e telefonistas - transformadas em teleatendentes); em segundo lugar, que possibilitassem um enfrentamento da condição de precariedade que a terceirização generalizada e maciça destes segmentos havia produzido.

Nesse sentido, talvez pudéssemos, precipitadamente, afirmar que nos anos 2000 o SINTTEL-Rio assume um perfil de sindicato que Hyman (2001 apud RAMALHO; RODRIGUES, 2013, p. 219) vai chamar de sindicato de negócio, focado apenas no mercado de trabalho, deixando de lado aquela marca de “sindicalismo de tipo movimento social”, que nos anos 1980, no Brasil, se ampliou bastante e foi caracterizado pela contestação política e o confronto com os patrões e o Estado.

No entanto, quando analiso a estratégia adotada pela direção do SINTTEL-Rio no pós privatização, explicitada nas entrevistas mas também através da documentação analisada e dos questionários aplicados junto aos trabalhadores demitidos, é possível perceber que permanece na ação sindical a ideia do conflito entre capital/trabalho, embora as práticas principais do sindicato tenham se restringido mais ao espaço da própria categoria. Não diria que tais práticas foram apenas de ordem defensiva, senão, como explicar as greves, tanto no Teleatendimento quanto na Rede – e, nesse segmento, com resultados bastante concretos para os trabalhadores? Ou mesmo o investimento na Comissão de Negociação dos Trabalhadores da Rede, como um espaço permanente de organização e formação de novas lideranças, com representação nos vários locais de trabalho?

Mas, ao mesmo tempo, tem-se ainda um vasto campo na comunicação com a categoria que precisa ser melhor conhecido e enfrentado pela direção sindical, na perspectiva do fortalecimento de práticas cada vez mais solidárias e coletivas.


Considerações Finais


A ideia do processo de trabalho como um campo de batalha perpétua – cunhado por Harvey para explicar o movimento do capital – expressa muito bem o que conseguimos reunir na análise acerca das transformações do trabalho nas telecomunicações do Rio de Janeiro, após a privatização do setor ocorrida em 1998. Pudemos perceber, a partir daquela realidade específica, como ganha materialidade o alerta que HARVEY (2011) faz, ao tratar desta “batalha” entre capital/trabalho no

atual estágio do capitalismo global. Para o autor, embora “o poder supremo da força de trabalho” (de se afastar de seu trabalho e fazer greve) esteja sempre presente, desde 1980, a combinação de repressões políticas, mudanças tecnológicas, capacidade de mobilidade dos capitais e enorme onda de acumulação primitiva e migração de zonas anteriormente periféricas têm pesado sobre os níveis da luta de classes, “com uma vantagem poderosa para o capital” (HARVEY, 2011, p. 59).

É esta “vantagem”, que se materializa numa profunda flexibilização e precarização das relações de trabalho em todo o globo, que justifica a ideia apresentada por Alves (2013) de dessubjetivação do trabalhador neste novo estágio do capitalismo: nele, o capital mantém a lógica de racionalização/controle do trabalho presentes no fordismo, mas imprime, sob o toyotismo, um caráter mais radical – e deletério para os trabalhadores – com consequências que tem na intensificação do adoecimento físico e mental de um contingente enorme de trabalhadores ao redor do mundo, uma de suas faces mais dramáticas.

Todos estes elementos podem ser percebidos ao analisarmos as condições de trabalho nas telecomunicações, em especial quando delineamos o perfil atual dos trabalhadores do setor, mas também quando, através da escuta dos trabalhadores (nas atividades/reuniões no sindicato, nas greves e através dos e-mails de denúncia), nos deparamos com um alto grau de sofrimento e adoecimento por parte dos trabalhadores. E se esta escuta nos permitiu comprovar a intensificação da precarização do trabalho, pela força dos relatos ali expressos, por outro lado, também nos possibilitou enxergar a tensão que Alves aponta existir neste movimento de dessubjetivação do trabalhador na empresa neoliberal: há luta, há resistência. Às vezes contingencial, muitas vezes no nível individual, mas que faz movimentar o campo de batalha não apenas em vantagem do capital.

Os trabalhadores têm o que falar sobre o seu trabalho e as condições nas quais o exercem, e quase sempre o fazem, de maneira crítica, mas precisam que haja espaços nos quais os seus “discursos ocultos” possam ser conhecidos. O sindicato será um desses espaços, na medida em que estiver aberto e disposto a se preparar, continuamente, para acolher as novas demandas e entender essa nova realidade do trabalho, na perspectiva de uma ação política mais efetiva. Assim como a academia, que como provocaram Beaud e Pialoux (2009), deve “voltar à fábrica” para ver que os trabalhadores permanecem na batalha.

É nesse sentido que a pesquisa realizada, na acepção de Gramsci (2000) coloca-se como interessada, à medida em que procura contribuir para uma crítica às relações sociais predominantes na sociedade atual, sustentadas numa exploração e desigualdade em escala absurda. Tal postura, a nosso ver, torna-se cada vez mais urgente, especialmente no cenário brasileiro pós golpe de 2016, que trouxe, por exemplo, a aprovação/implementação da Reforma Trabalhista, em 2017. A referida reforma modifica cerca de 200 dispositivos da CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), além de derrubar súmulas do TST (Tribunal Superior do Trabalho) favoráveis aos trabalhadores. Tem como fundamentos principais, segundo estudo de Teixeira et al (2017), a redução do poder de negociação e contratação coletiva dos sindicatos (especialmente através do instrumento dos acordos individuais – inclusive verbais – entre empregador e empregado); a prevalência do negociado sobre o legislado, que pode significar uma autorização para o rebaixamento de direitos previstos em lei; a ampliação da participação de contratos atípicos e do trabalho autônomo; a restrição à atuação e ao poder normativo da Justiça do Trabalho (criando condicionantes, limitando a gravidade e impondo penalidade ao demandante no caso de perda do processo). Acompanhada da Reforma da Previdência, proposta pelo governo Bolsonaro, tais decisões/ações agudizam ainda mais essa condição de precarização que explicitamos, o que exige dos sujeitos políticos como os movimentos sociais, os partidos políticos progressistas, a academia, respostas sustentadas em evidências empíricas das formas de resistência e de luta dos trabalhadores no cotidiano de trabalho e na sua organização como classe.


Referências


ALVES, G. Trabalho e Subjetividade: o espírito do toyotismo na era do capitalismo manipulatório. São Paulo: Boitempo, 2011.


. Dimensões da precarização do trabalho: Ensaios de sociologia do trabalho. Bauru: Canal 6, 2013.


. Lukács e o Século XXI: Trabalho, estranhamento e capitalismo manipulatório. Londrina: Praxis; Bauru: Canal 6, 2010.


ANTUNES, R. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. São Paulo: Boitempo Editorial, 1999.

(org). Riqueza e miséria do trabalho no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2006 (Coleção Mundo do Trabalho).


; BRAGA, R. (orgs.). Infoproletários: degradação real do trabalho virtual. São Paulo: Boitempo, 2009 (Coleção Mundo do Trabalho).


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v.17, nº 33, mai-ago (2019) ISSN: 1808-799 X


LUTAS SOCIAIS NO CAMPO: 13 PERGUNTAS PARA ANA MOTTA1


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Entrevista realizada por William Kennedy do Amaral Souza2


A conjuntura nacional traz indicadores nefastos de uma guerra travada no campo. A luta pela terra, pelo território e pelo direito a uma vida digna está, cada dia, mais acirrada. No ano passado, 28 pessoas perderam suas vidas em decorrência de luta pelo direito de ter acesso à terra num país com um dos maiores índices de concentração fundiária do mundo. Em 2019 as mortes continuam mostrando o acirramento e aumento da violência no campo promovido pelas elites agrárias contra qualquer forma de entrada de trabalhadores no mercado de terras, o que se deduz dos relatórios da CPT sobre Violência no Campo de 2017 e de 2018. E essa forma de extermínio não para. O caso mais recente apareceu com as mortes de quatro agricultores no município de Lábrea, no sul do Amazonas. E apenas no primeiro


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1 Entrevista recebida em 15/04/2019. Aprovada em 23/05/2019, pelos editores. Publicado em 04/07/2019. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.17i33.p29375.

2 Doutorando em Educação pela Universidade Federal Fluminense. Professor de Sociologia e Sociologia Rural no Instituto Federal de Educação de Rondônia. E-mail: william.souza@ifro.edu.br ORCID: http://orcid.org/0000-0001-6271-9422

trimestre de 2019 já se pode afirmar que as mortes provocadas representam 36% do total observado ao longo de todo o ano passado no país.

A violência recrudesce a partir de uma série de novas medidas adotadas ou planejadas pelo poder executivo brasileiro atual que afetam no sentido de enfraquecer os direitos das populações tradicionais e dos pequenos agricultores sobretudo na Amazônia onde os povos originários ocupam desde sempre uma territorialidade identitária que se constitui por uma relação integral com o meio ambiente, ou então a partir de formas de ocupação produtiva de segmentos subalternizados incluídos em projetos de colonização conduzidos nos anos 60 e 70 pelo Estado durante a Ditadura Militar, ou a partir de movimentos de ocupação organizada mais recentes dos auto identificados como “sem terra”, na expectativa de serem beneficiados por algum projeto de assentamento.

A região Amazônica - de grande importância internacional por sua floresta – é certamente o lugar que mais sente os efeitos de um avanço predatório que resulta da entrada do agronegócio estruturado em base de monocultura associada a agrotóxicos e enquanto modelo hegemônico que se estabelece irracionalmente em enormes extensões de terra. Desta forma o avanço do grande capital transnacional aparece neste cenário, articulando interesses econômicos nacionais e internacionais com respaldo político da bancada conservadora do Congresso Nacional. Uma elite que tem atuado através de formas de domínio e controle destrutivo da riqueza natural e hidro territorial, incluindo o subsolo onde se alojam os reservatórios aquíferos e minerais e avança ainda de modo opressivo e violento contra as formas de reprodução comunitárias da vida ali localizadas. Com uma grande volúpia procuram extrair terras, minérios, águas e tudo o que nela vive. Pouco importa se se trata de homens ou mulheres, animais ou peixes, árvores ou outras plantas. Por aí emerge a multiplicação de conflitos, os quais expressam os antagonismos entre os modelos de desenvolvimento impulsionados pelo capital e as formas de existência e resistência dos povos do campo, das florestas e das águas.

A Revista Trabalho Necessário traz uma longa entrevista com Ana Maria Motta Ribeiro, professora associada do Departamento de Sociologia e Metodologia das Ciências Sociais da Universidade Federal Fluminense. Ana Motta é do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito (UFF) e, envolvendo estudantes de graduação e pós-graduação em projetos de ensino, pesquisa e

extensão, coordena o Observatório Fundiário Fluminense (OBFF) e, neste espaço desenvolve o Projeto “Sociologia Viva”. Ali se articulam seus orientandos/as e grupos de pesquisadores/as de diversos núcleos de investigação e extensão do Brasil. Recentemente esse coletivo começou a se expandir numa dimensão latino- americana, envolvendo Argentina, Chile e México na recém-criada Rede Latino- Americana de Observatórios Hidro Territoriais.

A entrevista foi realizada no dia 31 de março de 2019. Como lembrou a professora, “um dia de memória triste”. Mas ao mesmo tempo é a própria Ana Motta quem nos alenta e nos alerta sobre a esperança rebelde e criativa que emerge do reconhecimento de formas do “Comum” que se constituem “desde abajo” nas experiências comunitárias populares latino-americana.


Trabalho Necessário: Como você analisa as lutas pela terra e territórios hoje?

Ana Motta: O avanço do capital em nível internacional tem se dado por meio de espoliação e esbulho. Em geral, o olhar do Primeiro Mundo sobre o Terceiro Mundo parece estar focado no esbulho da natureza e na subordinação da agricultura familiar e sua autonomia em diversas situações tradicional ou recente, definida por ocupação organizada através de movimento social de ocupação numa tentativa de democratização do agro. São desigualmente atingidas comunidades tradicionais e grupos étnicos originários, que de alguma maneira reproduzem uma relação com a natureza de modo a reproduzir em modo simples a sua própria vida: ao cuidarem de si, cuidam também do ambiente. Acho então que, hoje, as lutas pela terra têm significado uma tentativa de manutenção ou de defesa de territórios e territorialidades, considerando que água também é território, e emerge hoje como um dos elementos mais focados pelo capital considerando a abundância que temos por aqui no Terceiro Mundo e a escassez no Primeiro Mundo! Na América Latina existe um conjunto de situações comuns de esbulho do ambiente e de opressão sobre essas comunidades. Contra esse movimento destrutivo aparecem cada vez em maior proporção formas diversas de resistência. Respondendo à pergunta, então, acho que esse é o cenário que a gente vê hoje.

Trabalho Necessário: No campo, convivemos com uma enorme mistura de “identidades sociais”. Disputando espaço e tentando se defender do agronegócio, temos agricultores familiares beneficiários da reforma agrária, pescadores,

quilombolas, indígenas e ribeirinhos, por exemplo. São populações que são deslocadas de suas terras por motivos variados, como construção de barragens, mineração, construção de estradas, pela poluição de rios e mares. Todos podem ser consignados na mesma condição de “atingidos” e que estão subalternizados na luta contra o grande capital? Como articular a luta no campo?

Ana Motta: Bom, a diversidade de situações é dada pela forma como cada segmento social vai reproduzir a sua vida e demarcar a sua territorialidade. A humanidade é diversa, a unidade do humano é construída pela diversidade, é a unidade da diversidade e não a unidade do homogêneo. A homogeneização é um ato de violência contra a experiência humana de modo geral, onde ela venha a acontecer no campo ou na cidade, entre que segmento for. Então essa diversidade vai se apresentar, em cada conjuntura através de estratégias distintas. Posso dar exemplos. Nos anos 45 – 50 as lutas no campo usaram a identidade “camponês” importada da experiência vinda com a Revolução Francesa para identificar os trabalhadores rurais como agentes de luta, em resposta ao processo de expropriação provocado pelo movimento de entrada do capitalismo no campo. Assim CAMPONÊS era a categoria política que demonstrava a existência de uma resistência bem articulada e nada pacífica em especial das Ligas Camponesas e do sindicalismo nascente ainda desprovido de qualquer proteção legal, restrita apenas ao Código Civil. Uma lei contraditória, mas etiquetada como de Reforma Agrária. Durante a ditadura militar, portanto, a forma de identificação legal obtida dessa resistência conduziu a construção da categoria de TRABALHADOR RURAL como a nova identidade política estratégica da luta, e a CONTAG emerge e se constitui nesse processo como uma direção importante das lutas por direitos e por terra. Assim de novo aconteceu uma unificação de diferentes agendas e a diversidade de situações e demandas em uma única categoria representativa que habilitava uma unidade organizada dentro do novo enfrentamento. Foi assim, como desdobramento e memória das lutas camponesas que, se conseguiu o Estatuto do Trabalhador Rural direitos trabalhistas; a extensão da legislação trabalhista urbana para o campo; e até uma lei de Reforma Agrária fraca, cooptada, mas LEI; a definição de um Estatuto da Terra e um conjunto de indicações de marcos legais que permitiu o apoio, a sustentação e a defesa de direitos a essa diferenciada camada de trabalhadores e de situações de reprodução da vida verificadas no campo. Entretanto, antes que

acabasse a ditadura, houve uma implosão dessa categoria de ação que era uma categoria de unificação política. Assim como foi camponês nos anos 1960, unificando a luta pela reforma agrária. Nos anos 60, 70, 80 a unificação se dava na categoria “trabalhadores rurais”, ressaltando a dimensão dos direitos, dos herdeiros da proletarização e cercamento das terras camponesas. De fato, o processo de expropriação dos trabalhadores na expansão do capital no campo brasileiro andava a largos passos. O que vai acontecer a partir de então, é que mesmo durante a ditadura militar, uma série de situações de confronto com o capital levou à necessidade de desenho de pautas especificas. Emerge a luta dos seringueiros que acaba resultando em uma defesa da floresta amazônica. Emerge a luta dos ribeirinhos que caminha passo a passo com os seringueiros. Aparece a luta de posseiros e de trabalhadores rurais sem terra diferenciada dos trabalhadores assalariados. E acontece uma GREVE dentro da Lei de Greve, conduzida pela CONTAG, para espanto dos próprios redatores da lei feita para nunca ser cumprida. Assim, a agenda da luta dos trabalhadores do campo vai sendo definida e cada vez mais depurada pela especificidade de situações das experiências existentes no campo. Cada uma das identidades se estabelece numa dupla direção: por um lado pelo modo como se estabelece a reprodução da vida. Por exemplo, as quebradeiras de coco babaçu tem uma relação com o coco babaçu, com a palmeira do coco babaçu. E assim elas criaram e levaram uma luta, por exemplo, em direção à constituição de uma Lei, a chamada “Lei do babaçu livre”. Conseguiram uma legislação específica. Elas têm acesso ao babaçu. Como os seringueiros, elas não querem um pedaço de terra demarcado como uma propriedade privada individual. Elas querem uma terra coletiva, elas querem acesso as palmeiras de babaçu. Então a matança, a destruição dos babaçus, afeta diretamente a reprodução da vida dessas mulheres, que tem essa relação equilibrada, harmônica com a natureza. Por outro lado, os trabalhadores rurais assalariados querem seus direitos, querem uma carteira de trabalho assinada, e outros direitos como o fim do “roubo da balança” e do “roubo do metro” no cálculo manipulado de seus ganhos após trabalho sazonal no corte da cana de açúcar, querem também o fim do cativeiro do barracão que vende por preço alto o alimento que durante o corte não podem pagar e aumenta a dependência “domestificadora” a favor dos interesses das Usinas e Usineiros, enfim. Já os quilombolas vão querer a sua terra demarcada, e definida pelo legado

ancestral e pela dívida social e histórica do Estado Brasileiro que construiu sua riqueza econômica e política através do modelo escravocrata desumano e indigno, e vão conquistar esse direito junto a outros direitos de outros movimentos sociais presentes e ativos no Brasil dos anos 80, em forte mobilização e luta democráticas que levou o país à realização de uma Constituinte cujo resultado levou a designação de A Constituição Cidadã de 1988. Nela os agricultores familiares negros que viviam em comunidades étnicas ganharam finalmente o direito de serem identificados como “quilombolas”, que de fato sempre foram, e o direito de ocupação legal e legítima de suas “terras de preto”. Então repare que saem gradativamente de debaixo do guarda-chuva “trabalhador rural”, de acordo com pautas de lutas especificas, essas identidades que são identidades definidas na experiência de reprodução real e cotidiana da vida material e imaterial. A gente pode dizer, que todo este cenário vai formando e gerando novos sujeitos que decorrem do aprendizado de suas lutas, quer dizer, da definição constitutiva de novas experiências coletivas através das quais se descobrem como grupos de interesse comum, quando se organizam para lutar contra o espólio de sua própria condição de reprodução, e assim também se transformam em novos sujeitos diversos em sua condição mas iguais no interesse contra o esbulho: rebeldes com causa! Então a diversidade hoje, eu diria, ela é impossível de ser amarrada e de ser atada no bolo homogeneizador da opressão que pretende igualar todas as dores e defesas reais e sentidas em cada caso. Ela tem que correr solta de toda maneira porque essa luta se específica na sua diversidade, o que não quer dizer que não haja a possibilidade de uma unificação. Claro, a unificação vai ter que passar por questões gerais da luta maior contra o capital. O movimento de unificação mais significativo que eu vejo na América Latina, embora com problemas de atuação, hoje se organiza através de uma entidade coletiva identificada como a “Via Campesina”. Ela unifica não apenas essa diversidade de situações de trabalho e de reprodução da vida no Brasil, como também em toda a América Latina. Eu diria que é a coisa mais importante na agenda mundial hoje, de confronto direto contra o avanço do capital. E, portanto, essa unificação tem que se estabelecer de modo estratégico. Ela não pode ser apenas um desejo, apenas uma intenção. E depende das organizações que dentro dela se colocam. Então a Via Campesina é o âmbito, o lugar, dessa unificação, em minha opinião.

Trabalho Necessário: Muitas vezes os movimentos sociais do campo divergem em teoria e prática. Temos o exemplo do massacre de Corumbiara em Rondônia onde as divergências causaram uma ruptura do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) que culminou com a criação do Movimento Camponês Corumbiara (MCC) e da Liga dos Camponeses Pobres (LCP). Essa divisão repercutiu no enfraquecimento da luta pela Reforma Agrária? Como você analisa as divergências no interior dos movimentos sociais do campo? Qual é a pauta em comum?

Ana Motta: Se a divisão repercutiu no enfraquecimento da luta pela Reforma Agrária, eu diria que não, absolutamente. Quando a luta pela Reforma Agrária se traduz em uma diversidade de situações e de pautas, ela se fortalece porque ela ganha na magnitude da diversidade e não da homogeneização simplificadora como quer o capital subordinando a todos como meros trabalhadores livres e genéricos disponíveis para vender a sua força física e mental de trabalho e, para que abram mão de seu território, de sua identidade e de sua dignidade. Acho que as divergências no interior dos movimentos sociais no campo são inevitáveis, porque se você não tiver uma multiplicidade de tendências de opiniões, você vai ter que supor uma direção totalitária, sufocante sobre as formas de ver e de pensar. É claro que nessa divergência, na produção de tendências também existe a possibilidade dos segmentos de luta estarem sujeitos à formas de cooptação do capital, de reproduzirem as próprias relações de dominação. Isso é um fato e isso claro que diminui o movimento. Agora, não há como evitar. A não ser sobre o tacanho de uma unicidade de direção de um partido, de uma tendência que se coloca majoritária. Eu acho pessoalmente isso ruim. Eu acho que de rachas, de disputas, se pode chegar muito mais facilmente a uma direção comum e eficaz contra o capital do que de uma experiência simplificadora de cima para baixo. Se o movimento é sujeito a pressões da dominação e se diversifica, diria que isso é inerente à experiência da luta de classes. Você me pergunta qual é a pauta comum, respondo que depende da conjuntura. Mas eu acho que aqui temos a Via Campesina, temos o movimento das mulheres no mundo e na América Latina inteira, tem o movimento dos negros enfim, eu acho que se busca na verdade uma pauta orgânica que enfrente o capital na América Latina inteira. Acho que não apenas no Brasil, o capital sendo transnacional ele precisa encontrar um enfrentamento de classe igualmente internacional. Se você me perguntar hoje, qual seria o caminho da unificação, seria um caminho

internacional. E eu começaria pela integração das lutas na América Latina, do ponto de vista do pensamento pela integração da reflexão que desenvolvemos na universidade, colocando-a na dimensão latino-americana e não ficando restritos à dimensão do Brasil. Isso significa buscar compreender empiricamente melhor as contradições do capital e do trabalho na dimensão do território maior, no âmbito da América Latina, sem esquecer ou perder a dimensão das singularidades reais provocadas pelo processo de colonização; pela expressão objetiva e subjetiva da opressão machista, patriarcal e racista - sobretudo no caso do Brasil - que se traduzem em experiências de sofrimento que devem ser tomadas e reconhecidas em cada caso.

Trabalho Necessário: No desenho ministerial do presidente Jair Bolsonaro foi retirada do Incra a titulação de terras quilombolas e indígenas, e se passou essa função ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), o qual tradicionalmente tem atuado sob a influência da bancada ruralista. Os quilombolas questionam a retirada da competência do Incra, destacando que o processo de regularização fundiária dessas comunidades inclui responsabilidades que fogem do escopo do MAPA, como é o caso de análise das questões socioculturais e antropológicas. Na prática, quais as intenções de Bolsonaro?

Ana Motta: Acho que a resposta é razoavelmente óbvia: colocar “galinhas junto com raposas”, define um destino pré-datado: serão cruelmente devoradas!!!! Claro que a intenção do desenho, do redesenho ministerial do Bolsonaro foi essa. Chama a atenção uma novidade nesse redesenho ministerial, que é a presença mais significativa do que nunca na história do Brasil, da bancada mato-grossense do Congresso e do representante do agronegócio de Mato Grosso e das elites agrárias do Mato Grosso. Uma bancada em geral conhecida como uma das mais violentas e agressivas em termos de ação contra os trabalhadores e seus interesses, em especial quando se organizam coletivamente. Aparecem formas de intervenção que se caracterizam por serem seletivas (na maioria das vezes se castiga e criminaliza, além de atingir diretamente de modo preferencial a lideranças e assessores dos movimentos emergentes) e com requintes de crueldade (aparecem na maioria das vezes formas de agressão diante da família, de crianças e na intimidade da casa da família ou na sede das entidades de apoio aos segmentos subalternizados). Então,

não por acaso, essa presença de violência com suporte do Estado/governo aparece hoje no desenho do ministério.

Trabalho Necessário: Depois da posse de Bolsonaro houve uma série de invasões promovidas pelos representantes do agronegócio e do neoextrativismo, a áreas demarcadas e/ou ocupadas por indígenas, quilombolas e outras populações camponesas. Isso se relaciona ao discurso do presidente que, enquanto candidato, defendeu abertamente a diminuição das terras destinadas a esses grupos sociais?

Ana Motta: Depois da posse do Bolsonaro, apareceu de modo claro e inequívoco em que medida as formas de violência passaram a ser desburocratizadas e até e ampliadas para além de formas de atuação no ritmo e tempo juridicamente definido. O novo desenho dos ministérios seria um exemplo disso (fim do Ministério do Trabalho; desligamento da FUNAI do lugar para um espaço até agora indefinido; colocação de policiais da PM na frente e na gestão do IBAMA e da defesa do patrimônio natural e ambiental, fim da fiscalização e criminalização do trabalho escravo contemporâneo (por dívida) enfim, uma ordem de controle repressivo que quase exclusivamente afeta aos grupos sociais em luta e contrários as concepções defendidas pelo governo que lutam por seus direitos e reagem a formas abusivas de opressão e exploração pelo capital. Dando ênfase inegável a um modelo de ação do Estado no âmbito nacional para permitir, providenciar e liberar os interesses do capital internacional como direção principal das formas de atuação publica, em especial dando abertura maior aos interesses econômicos definidos pelo Primeiro Mundo, quase como uma pauta de ação diretiva e dirigida fora do país, e que são definidas dentro da pressão voraz do neoextrativismo sobre o que as comunidades tradicionais, quilombolas, indígenas, ribeirinhos, quebradeiras de coco babaçu, seringueiros ou sem-terra vão chamar de “reprodução da vida”. E é a isso que o capital chama de recursos “naturais”, numa tentativa de transformação da natureza em mercadoria. É claro que a presença de um governo de extrema direita vai aliar a pauta não apenas do agronegócio, das elites agrárias, como também a do capital internacional. Então, não é de interesse ouvir demandas, nem respeitar a antecedência ancestral da presença das comunidades no território, muito menos a preservação do ambiente. Vamos lembrar que dias antes do desastre de Brumadinho, o presidente atual dizia nas redes sociais que “não dava para ficar atrás de xiitas preocupados com o meio ambiente, multando quem não deve,

multando quem quer fazer, produzir a economia, e fazer a economia avançar”, numa clara referência e defesa do agronegócio. Então com isso, o discurso torna claro que os interesses do capital estarão sempre à frente dos interesses dos trabalhadores e, sobretudo, dos brasileiros de modo geral e de seu território nacional.

Trabalho Necessário: A Comissão Pastoral da Terra (CPT), lançou no ano passado, como sempre costuma fazer anualmente, o relatório “Conflitos no campo Brasil 2017”3, indicando que nesse ano houve o maior número de assassinatos desde 2003, com assustador aumento de massacres. Pode comentar isso e comentar como os movimentos de resistência rurais têm reagido a violência no campo?

Ana Motta: Primeiro eu quero chamar a atenção para um fato que não foi noticiado muito amplamente. Esse documento da CPT sempre foi lançado na mesma data – 17 de julho- para simbolizar a importância da memória sobre o sinistro “Massacre de Carajás”, quando oficiais do Estado fardados atuaram no extermínio de lideranças rurais com autorização do governador “para matar”. Pela primeira vez na história de seu lançamento (estava na trigésima segunda edição) em 2017 foi divulgado com um significativo atraso. Soube-se depois pela mídia que aconteceu uma invasão via internet do relatório. Ele foi “hackeado”, não se sabe por quem. Houve uma desorganização dos dados, uma interferência nos computadores que teve que fazer a entrega do relatório se atrasar pela primeira vez. Os interesses pela não divulgação dessa violência ficaram então, claramente demarcados ali. Duas coisas eu quero chamar atenção: primeiro que o Estado brasileiro matou muito mais gente durante o curto período do Temer na presidência da república do que a última década em todo o país. É significativo isso. Então, a violência se tornou extremamente letal. Dirigida e novamente seletiva, porque é uma violência que mais uma vez mantém uma identificação, continua escolhendo lideranças, escolhendo porta-vozes, mediadores que dão assessorias, advogados, clérigos que estão na área, evangélicos, enfim, que estram naquela dimensão. Então esse relatório atrasou e isso deve ser sublinhado ideologicamente. E o documento de 2017 (o de 2018 ainda está por ser divulgado), trouxe a ampliação de um quadro de opressão horrível. A segunda questão que eu acho relevante demarcar refere-se a questão de se desenha de modo consolidado quanto ao papel do Estado (coisa pública) e sua representação legal da violência como PM’s, por exemplo cada vez mais

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3 Disponível em: https://www.cptnacional.org.br/

comprometido, com formas e modos de associação com representantes do interesse privado do capital agrário, e do agronegócio. Em muitos casos os massacres que vão acontecendo têm figuras civis, como seguranças particulares de fazendeiros, mas que atuam ao lado e apoiadas por elementos da PM, os quais entram em ocupações de trabalhadores rurais sem terra ainda que, todavia, em litígio, e saem atirando aleatoriamente e a revelia. Então, acho que isso reflete o segundo item que quero chamar atenção, que é o crescimento de armas na mão de proprietários privados rurais e seus seguranças privados armados com resultados nefastos. Gera preocupação quando hoje reivindicam a liberação generalizada pelo direito legal de uso de armas supostamente “em defesa de suas propriedades” sem qualquer contraponto em termos de qualquer intensão de esclarecimento jurídico sobre a própria condição legal e legítima dessas referidas posses quando definidas pelo domínio de grandes e imensas extensões de terra em território nacional. Então o cenário é complicado. Mas não pacífico, dado que a rebeldia quanto as concepções de direito á terra continuam se colocando ativamente em disputa apesar das baixas provocadas por essa violência anunciada!

Trabalho Necessário: Em muitos lugares, a juventude está fortemente presente nas lutas sociais do campo, como por exemplo, no MST. Um jovem em Rondônia nos disse que: “Os jovens hoje em dia é que tocam as tarefas do assentamento. Mas o que garante a minha militância é o coletivo, porque sei que posso sair e voltar e a horta não estará abandonada, ou o feijão que precisava colher foi colhido. Para nós é fácil arrumar um emprego em Rondônia, somos sempre assediados, para trabalhar em supermercados ou nos frigoríficos. Mas eu não preciso de emprego, já tenho o meu.” Você acredita que para os jovens a vida no campo é possível, e talvez melhor que em muitas periferias das cidades?

Ana Motta: Primeiro quero “limpar o terreno” dessa afirmação. Hoje o MST (Movimento dos Sem Terra) não é o único movimento social organizado de ocupação e resistência na terra. Citaria pelo menos outros movimentos com direção política autônoma, mas com grande presença em termos de resistência fundamental. O MPA (Movimentos dos Pequenos Agricultores); o LCP (Liga dos Camponeses Pobres); o MCC (Movimento Camponês Corumbiara), e outros atuando em diferentes regiões. Acho que isso é explicado pela organicidade. Quando você tem um projeto político comum, quando você tem uma coisa

comunitária, a juventude tem um projeto ideológico na cabeça. Lembrando a palavra de ordem das ocupações de sem-terra, seja do MST, seja do MPA ou do MCC, ou de todos esses movimentos, eles têm em comum, e como chancela, a ideia de “ocupar, produzir e resistir”. Então a juventude se mantém ali porque produzir é um ato político. E é uma dimensão da resistência. Por outro lado, “não basta ocupar”. Esse é o recado que eles dão, e a juventude em geral tem mais para dar. Quando você junta o movimento de ocupação organizado com a produção, você encontra na produção uma instância da própria direção orgânica do movimento. Então é mais do que estar produzindo, trabalhando na terra. Cada tomate que se planta – e em especial dependendo como se revela se foi plantado COM ou SEM VENENO, grita contra o modelo hegemônico e torna-se um verdadeiro panfleto, por consequência, o qual se joga diante da sociedade para abrir consciências, mostrando como aquilo é possível. A partir das pesquisas que desenvolvi, dá para ver que a juventude é cada vez mais alheia à permanência na terra. A tendência é de se deslocar para a cidade e, geralmente quando ela participa é quando ela está orgânica. Eu diria que a chave explicativa é a organicidade. A explicação dada pelo próprio assentado que está registrada na pergunta, acho que esclarece o que eu estou dizendo.

Trabalho Necessário: E falando sobre Rondônia, citando um caso específico, gostaria de destacar. As pesquisas sobre o assentamento Margarida Alves, do MST, no município de Nova União, revelam uma mudança no nível econômico dos assentados que pode relacionar-se com mudanças no padrão produtivo. Quando do surgimento do assentamento em meados dos anos 1990, havia uma gama de culturas agrícolas no assentamento. As pessoas plantavam milho, arroz, feijão, café, cacau, hortaliças, legumes, frutas, entre outras plantações. Compravam poucos itens nos supermercados da cidade. Mas o nível sócio econômico dos assentados era baixo, faltando itens essenciais para o bem-estar das famílias. Em 2007, em uma pesquisa do DURAMAZ (Universidade de Paris III) foram constatadas melhorias na qualidade de vida dos assentados e um incipiente abandono da pluriatividade e a opção pelo leite, processo que teve continuidade ratificada pelo professor Marcel Araújo em pesquisa realizada em 2013. Agora, em 2019, ele está fazendo outra pesquisa no mesmo assentamento e descobriu que o nível socioeconômico elevou- se consideravelmente. As famílias têm boas casas, carros, motos, itens domésticos que facilitam o dia a dia. Essa elevação do nível socioeconômico veio após os

assentados abandonarem a pluriatividade de outrora e dedicarem-se apenas a produção de leite de gado bovino por exigência do mercado capitalista da região. Como entender essa subsunção ao mercado mesmo com o MST à frente do assentamento?

Ana Motta: Acho que começaria dizendo que a realidade é dinâmica e complexa, e que há de ser observada em cada situação. Me aprece melhor afirmar de uma vez por todas, que é necessário separar a agricultura familiar já estabelecida no mercado e individualizada dos posseiros e pequenos proprietários, daquela “agricultura familiar organizada ou orgânica” que é produto de processo de luta de ocupação. A primeira aparece e se constitui em escassas situações regionais como uma condição precária em termos de mudanças na lógica dos interesses econômicos gerais que pode mudar a qualquer momento e ser de repente determinada de fora e sufocada. Para perder sua autonomia e ser reproduzida, mas em forma cada vez mais subordinada hierarquicamente pelo capital industrial por integração vertical (vinho; suco de tomate; suco de laranja; laticínios etc.), onde poderá se manter, mas não se diferenciar. Ou no limite sabendo dia a dia que poderá ser absorvida ou expropriada e desaparecer assistindo em que medida serão aqueles agricultores de antes que tiveram que vivenciar a contingência de se tornarem (assaltados pelo Banco) em assalariados sazonais de amanhã ou em pobreza urbana de guetos estigmatizada e criminalizada. A segunda é uma modalidade de existência que enfrenta a realidade aparente e se recusa a aceitar sua “naturalização”, compreendendo, não se sabe quando nem porque, que a realidade é histórica e pode ser transformada. Aparecem como uma forma de reprodução social que é portadora de sacrifícios, coragem e inseguranças – tudo ao mesmo tempo. E que se desenvolve durante a construção de padrões afirmativos de consciência que contemplam ativa e permanentemente desde o concreto da vida de cada um e a de todos juntos em desafio. Produzindo uma construção intelectual tensa e dinâmica e que pode fazer aparecer uma variedade criativa de estratégias experimentais de ação para garantir a permanência na terra ocupada, o que acontece sempre a partir de razões racionais e eticamente mapeadas por uma assessoria jurídica popular que irá pesquisar condições legais e assim encontrar a brecha socialmente justificadora da ocupação. Esse movimento poderá fazer emergir (estranhamente para os “de fora” e inclusive da academia) um novo

sentimento de “pertença” – que nestes casos é criado pela luta cotidiana para poder permanecer naquilo que foi conquistado. Isso resulta numa modalidade de pertencimento sociologicamente singular e que acompanha a labuta diária da permanência no território que irá prover a possibilidade de um futuro identitário que acontece desde que permite e torna real a possibilidade objetiva de chegar-se a ter um “futuro” neste mundo de desempregados e endividados semimortos e homogêneos na miséria alienada. Esse fato e sentimento que se assegura na abertura do acesso a ideia de uma reprodução com dignidade. Sem pressa por admitir a possível consolidação de um futuro e assim a existência de alguma história e trajetória pessoal e familiar onde “ninguém” poderá ter a chance de se transformar em “alguém” social. Eu penso que isso meio que explica porque algumas pessoas pobres acabam decidindo por encampar a luta de ocupação da terra, como condição de sua própria reprodução social no limite e se traduz numa forma de escolha que muitas vezes, mesmo quando derrotada não esgota a vontade de ter feito isso mesmo, e repetir outra vez e outra vez. Assim, a radicalidade da escolha é tão determinada pelo desenraizamento social desses “sem-terra” que querem se superar por escolha própria, quanto pela total falta de perspectivas e derrota dada no pessimismo intrínseco da submissão ao capital e ao patriarcalismo violento, agressivo e simultaneamente sedutor das elites proprietárias no Brasil. Mas vale afirmar que as duas formas estão sujeitas a serem desagregadas e subsumidas em conjunturas e a partir de perdas reais (assassinatos e massacres, despejo e remoção da terra ocupada ou da terra possuída por crise financeira) e que podem chegar a ser (e eu já vi isso) desagregados da família original tendo que se recompor em perfeito estado de anomia social na condição de miseráveis urbanos escondidos em guetos onde podem ser recolhidos por acolhimento religioso por pastores pentecostais que falam a sua língua ainda que abusem de sua condição de sujeito ativo. Para mim é nessas brechas de reconstrução rebelde ou de desenraizamento (José de Souza Martins revisto aqui por mim nas suas considerações do livro, O SUJEITO OCULTO) que se definem aqueles que pertencem a condição de agricultores familiares. Serão sempre os novos sujeitos no campo que podem ser simultaneamente submetidos e manipulados assim como podem também ressurgir e sobreviver heroicamente e romper com a força poderosa que os empurra em direção a homogeneidade. Mas na minha experiência de

trabalho de campo há mais de 40 anos ainda fico extasiada quando encontro segmentos que resistem de tal modo que quando falam parecem poetas do devir. Pode-se encontrar uma forma de luta que politiza a produção, por exemplo nas comunidades em que a agroecologia ataca a prática do envenenamento hegemônico e que começam a demonstrar na colheita que sua forma de produção desmistifica a lógica da produtividade. E nesta hora pode-se ver em que medida a agricultura familiar que estou tentando problematizar pode ser também em determinadas condições e situações, pensada como uma comunidade geradora de uma ação social na qual chegue ao limite de se fazer quando em luta, a classe. E, nesta medida, para mim também poderia ser pensada como formadora de modos anticapitalistas de reprodução da vida, tanto quanto as populações tradicionais e originárias tendem a ser. Eu não deduzi essa afirmação olhando para a maior parte desses casos mas acho que valorizei e valorizo até agora a importância de um reconhecimento de algumas formas interessantes ainda que minoritárias que tenham esse potencial quando percebidas em momentos cíclicos ou pontuais - para mim não importa isso, mas o fato incrível de que é possível sim encontrar comunidades onde a reprodução da vida subverte normas dominantes e ainda revela sujeitos raros e que fazem muita diferença! Então, agora que já problematizei e apresentei minhas premissas de raciocínio definidas a partir de minas investigações empíricas em diferentes regiões e conjunturas posso finalmente te responder e vamos lá. Na minha opinião, e tendo em vista tudo que disse até agora, de forma alguma o abandono da pluriatividade é a chave explicativa da melhoria das condições de vida. A pergunta a ser feita é: que agricultura está sendo praticada? Se é uma agricultura nos moldes da agricultura dominante baseada em grandes extensões de terra ou se é uma agricultura baseada em uma estrutura familiar, sem a presença de exploração do trabalho, sem a presença de um empregado. Primeiro há que se ver isso. Segundo, para acompanhar a pergunta, há que se ver que leite é esse? É um leite envenenado? Com hormônio? Se ele for, a gente está falando aqui de duas coisas importantes. Primeiro, que a agricultura familiar para entrar no mercado de venda de produtos, ela tem que se integrar ao grande capital porque ela não está em uma bolha, e a integração que se dá, é em geral através de um mecanismo de verticalidade onde as cooperativas de leite vão absorver esses pequenos produtores de leite, pequeninas quantidades que somadas representam

muito mais. O livro “Os colonos do vinho”4 por exemplo, é bastante esclarecedor: os produtores de uva se integram verticalmente aos produtores de vinho, passando a compor o chamado complexo agroindustrial. Então, trata-se de uma questão moral: porque é que podendo melhorar a qualidade de vida e a qualidade da renda, os trabalhadores vão se sujeitar a ficar em uma situação pior? Isso a gente não deseja nem para o nosso maior inimigo. Muito cômodo a gente estar sentado na Academia e ficar desejando que o agricultor familiar continue miserável, porém, dignamente situado na bandeira crítica e da esquerda. Segundo: o movimento dos sem-terra é um movimento popular, o que quer dizer que ele ocupa, estabelece o acampamento e depois essa comunidade assentada passa a ter visibilidade diante do Estado, passa a ter uma relação com o Estado mediada por políticas públicas. Então muda a configuração dessa comunidade. Se essa comunidade continua ainda vinculada ao movimento do LCP, MPA, MCC, MPA, ou seja, o movimento que for, para distribuir as suas mercadorias, para se integrar no mercado na via vertical, significa que ela está existindo e se inserindo na economia. E ela não pode deixar de se inserir. Se ela continua ideologicamente e politicamente vinculada a um movimento orgânico, ela vai defender essas bandeiras. Mas isso não quer dizer que o fato de ter melhorado de vida foi determinado pelo fim da pluriatividade, de jeito nenhum. As determinações passam por outros canais. Garanto que uma comunidade que melhora a qualidade de vida, que tem moto, que constrói uma casa melhor, ela consegue realizar a sua produção no mercado e ela pode ainda permanecer ligada ao movimento de classe que se contrapõe ao capital. Acho que esse é o desafio. E como sempre é um desafio de reprodução que está na marca do contraditório. A hegemonia do capital não pode ser subestimada. Como diz o Gramsci, “se o teu inimigo é tão pequenino e tão fraco, como é que ele lhe domina até hoje?”. Respondendo a sua pergunta: ela pode ser, portanto, uma agricultura bem realizada que entrou no mercado, mas continua vinculada ao movimento popular. Ou uma agricultura familiar, de base familiar, bem realizada que entrou no mercado, se subordinou e perdeu seu vínculo atávico, político e ideológico com o movimento popular. Essa é a pergunta que se deve fazer.


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4 TAVARES DOS SANTOS, José Vicente, Os Colonos do vinho: estudo sobre a subordinação do trabalho camponês ao capital. São Paulo, Hucitec, 1978.

Trabalho Necessário: O Dicionário da Educação do Campo publicado em 2012 pela Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio e Expressão Popular, traz uma diferenciação entre “agricultura camponesa” e “agricultura familiar” que nos parece muito salutar entendê-la. Professora, como você entende esses dois modos de se fazer agricultura?

Ana Motta: Considero que essa questão diz respeito a uma classificação que vai se estabelecer a partir de uma análise e da explicação que a gente pode oferecer a partir da Academia. Porque na verdade, a agricultura familiar pode se traduzir em agricultura camponesa quando ela está em seu momento de luta política. O fato dela ser camponesa e ser agricultura familiar, respeitando a diferenciação brilhante feita pelos autores do Dicionário, significa que quando ela é camponesa ela se reveste de uma autodenominação de segmento e luta. Quando ela se diz familiar, ela se reveste de um projeto político mercadológico de entrada no sistema da produção. O que interessa entre as duas, o que elas se igualam não importa como se designam, é que a agricultura familiar tem de comum e exceção o fato de que dentro dela não existe empregado, não existe trabalhador explorado. Por isso ela é diferente. Tanto a camponesa quanto a familiar, ambas são diferentes e diversas à agricultura empresarial. E assentadas em tamanhos de terra pequenos. E pode ser ou não articulado a um projeto político orgânico. Mas isso está em permanente movimento na realidade e ver e observar isso é o desafio da sociologia militante ou Sociologia Viva como chamo atualmente a partir de uma síntese de meu próprio investimento acumulado em pesquisa empírica ao longo de minha trajetória.

Trabalho Necessário: Em junho de 2018, durante o VIII Simpósio Sobre Reforma Agrária e Questões Rurais realizado em Araraquara, você dizia que há “uma espécie de apagamento sociológico” que visa reduzir a importância dos movimentos sociais do campo e a luta pela Reforma Agrária. Como se dá esse apagamento sociológico? Quem produz esse apagamento? Quais os interesses que estão em jogo?

Ana Motta: Eu teria alguns exemplos importantes para colocar. Primeiro o caso de Canudos, onde houve um grande conflito aqui no Brasil. Canudos foi afogado para a construção de uma barragem. A igreja de Canudos ficou sufocada e afogada pelas águas cercadas pela barragem e assim se produziu uma amnésia na memória da resistência popular quando qualquer marca e registro dessa história desapareceu como resultado de mais um dos projetos “desenvolvimentistas” empreendidos pela

Ditadura Militar e que custaram muito caro em termos de dívida externa e mal foram concluídos. O interessante dessa história, sociologicamente falando, é que parece que há uma resistência eterna e permanente que é bastante viva. Curiosamente parece que ninguém sabia, mas na época do governo Fernando Henrique Cardoso apareceu a torre da igreja quando as águas baixaram. Quando essa torre apareceu, no espaço de 24 horas, tinham mais de 500 pessoas naquele entorno. Em contato com essas pessoas, alguns pesquisadores descobriram que havia um grupo de vigilância desde que a torre foi afogada. Então eles permaneceram observando o dia em que ela voltaria, pois a lenda dizia que aquela torre voltaria e que a igreja iria aparecer novamente e que ninguém ia sumir com ela. Com este exemplo, estou tentando dizer que um grupo social reage a uma experiência de afogamento, ou seja, reage ao apagamento da experiência social. Outro caso é o de Serra Queimada, o projeto de barragem a ser construída no rio Guapiaçu que, não por acaso, atingiria um número pequeno de fazendas e, ao mesmo tempo, alagaria e afogaria cerca de 8 a 10 assentamentos de trabalhadores rurais. Entre eles São José da Boa Morte, a primeira grande luta pela terra no estado do Rio de Janeiro e uma das mais importantes de todo o país. A resistência contra a barragem, então acabou se traduzindo não apenas na resistência das populações vivas e que atualmente residem nesses assentamentos, como em uma resistência contra o apagamento dessa memória ou o apagamento de sua própria história, da sua existência. É isto o que estou chamando de “apagamento sociológico”. Esses dois exemplos dão uma ideia da qualificação que eu quero dar a essa categoria.

Trabalho Necessário: Ainda sobre o VIII Simpósio Sobre Reforma Agrária e Questões Rurais, você apresentou uma proposta de construção de uma Rede Latino-Americana de Observatórios Fundiários. Em que consiste e como anda essa proposta?

Ana Motta: Sim, apresentei uma proposta de elaboração de uma Rede Latino Americana de Observatórios Fundiários. Fizemos contatos e articulação com pesquisadores que trabalham com conflitos sociais. O objetivo seria juntar pesquisadores, registros, acervos focando situações de conflitos na América Latina. Esse passo aconteceu ali, naquele VIII simpósio, o que resultou em um artigo para a revista Retratos de Assentamentos. Depois fomos ao Chile, Argentina e México. No Brasil percorremos alguns núcleos de pesquisa, como por exemplo, o Geografar, da

Bahia ao lado da professora Guiomar Inez Germani. Pesquisamos também com a Profa. Cristina Alencar, da Universidade Católica em Salvador (UCSAL). Fizemos contato e articulamos com a discussão sobre estudos e uma substantiva pesquisa sobre os índios guaranis com a professora Gabriela Peixoto Coelho de Souza da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e apresentamos a proposta formalmente no encontro presencial da Rede de Estudos Rurais, tradicional fórum de debate e exposição de pesquisas no âmbito da realidade rural. Assim, tentamos reunir cabeças, pesquisas, núcleos, enfim projetos e programas de pós-graduação focados em situações de conflito no campo. E isso ainda está em curso e conta hoje com 20 núcleos articulados que aceitaram a proposta, tanto do ambiente acadêmico quanto de entidades ligadas aos movimentos de assessoria popular ou diretamente de movimentos sociais organizados do campo no âmbito latino americano, como por exemplo, grupos de gestão comunitária da água do México que envolvem organizações semelhantes na Colômbia, Peru e Bolívia.

Trabalho Necessário: Quais os desafios das Universidades Públicas e dos Institutos Federais na mediação e assessoria as lutas sociais das populações que vivem em situação de conflito socioambiental e agrário?

Ana Motta: Em primeiro lugar, a universidade pública, assim como os Institutos Federais públicos tem ensino, pesquisa e extensão. Portanto, a integração dessas três funções permite que, simultaneamente, quando se estuda uma realidade social através de pesquisa, também possamos produzir registros que qualifiquem melhor o ensino. Por outro lado, na medida em que você tem um ensino mais pautado pela realidade, articulado á pesquisas de e atividades de extensão, você pode também, ao mesmo tempo criar uma relação de troca através da qual seja possível oferecer apoios e consultorias a populações que passam por situações de conflito. Por que a universidade pública tem o papel de dar, de fazer esse tipo de consultoria, de assessoria? É claro que isso se traduz numa vocação e define objetivos públicos dado que a universidade e do mesmo modo que se constitui um acervo útil á população em geral, também existem setores que se voltam para assessorar empresas e empresários na produção de novos produtos e formas de fazer, de tecnologia etc. No caso específico das áreas humanas, há uma tendência muito grande de produção de laudos que vão garantir a permanência de quilombolas e indígenas na terra, de laudos antropológicos, laudos multidisciplinares etc. Também

é importante que se diga que, na medida em que a gente produz esse tipo de assessoria qualificada, a gente também modifica a universidade, traz para dentro dela um conhecimento que a gente vai chamar de “ativo” e bastante atualizado. Então, é esse caminho duplo e dialético entre conhecer e ensinar , entre pesquisador e pesquisado, entre assessor e assessorado que caracteriza, em minha opinião, essa extraordinária capacidade viva, e, no caso da sua pergunta, que permite a possibilidade de se oferecer consultoria e assessoria a grupos e comunidades despossuídas que passam por situações de vulnerabilidade ou em situações de conflito. Uma tarefa que a Universidade como ente público e agencia estatal que é precisa se comprometer em praticar e oferecer até como compensação social

Trabalho Necessário: Afinal o que é “Sociologia Viva”?


Ana Motta: Nos caminhos percorridos para construção da Rede Latino-americana de Observatórios Fundiários e Situação de Conflitos, acabei chegando no México, onde eu fiquei por quase 5 meses como professora visitante da Benemérita Universidade Autônoma de Puebla, em um grupo de pesquisa chamado “Entramados Comunitarios e Formas de lo Político”, coordenado pelas professoras Raquel Gutierrez, Mina Navarro e Lucia Linsalata. Elas trabalham a partir de referenciais teórico-metodológicos bastante instigantes. Considero que naquela ocasião, formulei o que eu chamo hoje de uma proposta de Sociologia Viva, que é vértice de minha trajetória acadêmico-militante na universidade pública no Brasil, depois de 42 anos. Para que eu possa dizer o que é Sociologia Viva, preciso explicitar seus pressupostos. O primeiro pressuposto da Sociologia Viva é que ela tem que estar determinada e baseada em experiencias empíricas, documentais e de preferência calcada em trabalho de campo. Trabalho de campo organizado com metodologias participativas do tipo pesquisa-ação, pesquisa-luta ou pesquisa participante. Ou seja, aquele tipo de pesquisa que entra na realidade para aprender com a realidade, para entender a gênese histórica dos processos que se vê, para contextualizar e interpretar os documentos e registros em suas diversas narrativas e formulações, populares ou cultas e instruídas de modo igual em termos de valor de memória social, para traduzir as experiências, para dar voz aos segmentos vulnerabilizados, apagados e silenciados na sociedade brasileira e que são parte do grupo de subalternizados de modos singulares pelo capitalismo latino-americano e

que está fortemente presente no campo. Para traduzir suas pautas de interesses e lutas no combate e no contraste com o capital e, de alguma maneira, ao dar visibilidade a experiência viva, à experiência real cotidiana, o pesquisador volta modificado. Por ter entrado na realidade, o pesquisador também modificou essa realidade. Então, como já havia dito, acontece uma relação dialética tensa e contraditória, nada pacífica ou linear entre sujeito-conhecimento-pesquisador e o objeto-conhecimento, que transforma o sujeito-conhecimento-pesquisador em objeto daqueles que ele está estudando, porque ele é questionado, é problematizado por esse objeto e transforma o seu objeto de estudo, os segmentos subalternizados. Na verdade, seria o seu objeto principal, na iminência de uma possibilidade que ele tenha um protagonismo tal, que ele devore o próprio pesquisador e transforme esse pesquisador também no seu objeto de perguntas, de demandas e de solicitação de espaço, de registro, de memória, etc. Então, é essa tensão estabelecida na qual o pesquisador não tem que pensar nos subalternizados como sempre corretos, sempre os que estariam certos e são bonzinhos, já que o pesquisador da Sociologia Viva é portador de uma teoria crítica, que serve também como uma ferramenta de luta e ele quer entender em que medida os segmentos subalternizados compreendem essa teoria crítica como ferramenta. Algumas vezes os segmentos subalternizados precisam ser chamados a atenção, por que não? Do contrário, aceitá-los a priori como donos da verdade seria uma atitude populista. Mas quando a gente pensa que eles também podem ser sabatinados e questionados, a gente entende quando eles nos sabatinam, nos questionam e nos problematizam. Então, é esse caminho de mão dupla, tensionado, contraditório que constitui a Sociologia Viva a partir de investigações empíricas sobre as experiências de homens e mulheres, velhos, crianças, enfim, de seres vivos e reais. A ida ao México me trouxe toda uma pauta e um caminho teórico-metodológico interessante, construídos no diálogo entre a minha produção teórica acumulada coletivamente no Observatório Fundiário Fluminense e a produção do Entramados, que também fez parte de nosso processo de articulação de pares para uma possível constituição da Rede Latino Americana. Descobrimos que deveríamos trabalhar com três dimensões epistêmicas essenciais. A primeira delas o capital; a segunda, o patriarcalismo e a terceira, a colonização: ou seja, C-P-C. Essa é a matriz da reflexão que a gente precisa fazer a contrapelo. Em segundo lugar, a ideia de que o estadocentrismo tem que ser

rompido porque ele corresponde à produção de um bloqueio epistemológico ao pensamento sobre o social. O social tem uma démarche própria e tem uma dinâmica que vai para além do capital. Que precisa ser demarcada como relação social historicamente determinada. A meu ver, o capital não apenas subordina e torna pacífico o segmento subalternizado. Mas a experiência do subalternizado vai além dele quanto entra em estado de resistência e se coletiviza e então produz formas anticapitalistas de reprodução da sua vida material e imaterial, uma forma de ação que hoje estamos chamando de “o Comum”. Esse Comum explica falas e agencias que podem acontecer apesar ou contra o Estado que em geral os rejeita ou os abandona. Muitas vezes, acontecem movimentos que apresentam a sociabilidade e a ação social ultrapassando a necessidade de um Estado, de um direito burguês, de um Estado burguês constituído. Acho que a ideia de olhar para perceber que ele foi colonizado, e que apesar de ser colonizado, não é apenas e univocamente isso, mas esse comunal é alguma coisa que tem uma historicidade, um modo próprio onde o social não se define exclusivamente pelo Estado. Uma experiência que em alguma medida se resolve e se constitui a contrapelo do “status quo”, mesmo apesar de estar subsumida ao sistema hegemônico. Uma forma de viver a vida social que vai além, que também sugere outros modos de vida, em momentos determinados expondo mais ou menos claramente sua contradição, maior ou menor. Um modo de reprodução que propõe outras formas de vida que são mais harmônicas e integradas ao ambiente natural e a natureza humana do homem. Formas dinâmicas, que chegam a ser mais solidárias, e estão em processo de acontecimento ao mesmo tempo em que são subordinadas e oprimidas, porque são mais do que isso, do que opressão! Quando lutam as comunidades em resistência tornam-se “classe”. Na minha opinião a experiência crítica deve ser mapeada em sua diversidade por uma sociologia sensível à dialética e que seja cada vez mais participativa e interativa. Acho que é isso o que o grupo do México com quem aprendi muito, está tentando mapear: esse “Comum”. Minha proposta foi a de chegar a um acordo de compreensão entre tradições de pesquisa em diálogo que penso ter conseguido encaminhar. Resultando numa espécie de divisão territorial do pensamento, no qual, o grupo brasileiro do OBFF poderia ser identificado como o intelectual coletivo que trabalha com o estudo de situações de conflito, cuja reflexão participativa se centraria na denúncia do “despojo”/esbulho provocado pelo capital e que em

contrapartida gera e formula estratégias e táticas de resistência. E o grupo ENTRAMADOS, do México, de uma maneira mais ampla já avança pelo mapeamento de formas anticapitalistas de produção da vida adotando ferramentas mais independentes de observação e de percepção focadas especificamente nas teorias críticas e marxistas que apenas reagem na mesma estrutura paradigmática onde o sistema tem domínio. O acumulo da produção do grupo Entramados me pareceu chamar a atenção do pesquisador no sentido de explorar outros processos não instituídos na modernidade burguesa, e para a importância de abrir o olhar o pensamento, começando por um forte exercício de descolonização acadêmica- inclusive do materialismo histórico dialético institucionalizado- para que se possa chegar á construção de novas e outras ferramentas de saber não necessariamente produzidas nas oficinas oficiais do ofício universitário para que se possa, voltando á Teoria Crítica em processo de produção nas “ruas” e através de diferentes e diversos saberes, seja possível reconhecer como concreto uma definição do mundo popular, de fato, “desde abajo” e como possibilidade real que já se constitui fora do modo de produção e reprodução do capital. A crise global do capital oferece as condições objetivas e subjetivas para a emergência desses processos de conhecimento e de acontecimento da vida social. Juntando as tradições a partir deste diálogo Brasil – México foi que consegui ampliar a proposta da SOCIOLOGIA VIVA. Afinal, se cotidianamente lutamos e resistimos como investigadores militantes e se a gente - sem negar pretensiosamente o sistema hegemônico- mas busca uma transformação contra hegemônica em gotas ou miúda de cada dia, então acho que é isso: como é que nós vamos modelar esse outro mundo? Ele já está sendo produzido e desenhado na categoria que chamamos hoje de “o Comum”. Para isso é necessário não apenas, olhar a contrapelo do capital pelas lutas e conflitos, mas também olhar o mundo com pressupostos epistemológicos dialéticos mais severos: através de uma epistemologia descolonizadora; feminista e anti-patriarcalista; antirracista e abolicionista. Enfim, acho que essas coisas constituíram o amálgama do que eu poderia chamar hoje, e me sinto muito bem situada e tranquila em relação a esses paradigmas e a essa maneira de construção do pensamento na sociologia crítica, o que eu poderia hoje chamar de SOCIOLOGIA VIVA, um lugar para onde eu trouxe e está chegando a minha própria trajetória. Agradeço o convite à entrevista.


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v.17, nº 33, mai-ago (2019) ISSN: 1808-799 X


FOTOGRAFIA E MOVIMENTO1


Javier Blank2


O registro fotográfico não consegue substituir a experiência de estar em uma passeata ou um ato. O calor, a profusão de informações sonoras e visuais, o cansaço depois de algumas horas em pé, a percepção da coexistência de um nós e um eu, tudo isso sentido no corpo. Mas o registro fotográfico não está simplesmente aquém da experiência. Ele também a constitui.

Que o registro fotográfico também constitui a experiência é evidente para quem não esteve no ato; relatos orais, escritos e registros audiovisuais serão a forma de acesso. Mas o olhar do fotógrafo, procurando pontos de vista não tão óbvios, pode também completar a experiência daqueles que estiveram presentes. É como se, ao deixarmos atrás o turbilhão de sensações corporais e pausarmos o tempo diante de uma imagem congelada, compreendêssemos pela primeira vez onde nós estávamos. Isso vale para imagens panorâmicas que mostram a extensão de uma passeata, claro. Mas também para imagens que capturam detalhes que tinham passado desapercebidos.

É que a fotografia não é uma mera representação mas participa na produção da realidade (como pode se observar ao comparar diferentes fotografias capturando o mesmo instante de maneiras diversas, por exemplo com diferentes enquadramentos).

No formato audiovisual, a produção de realidade passa também pelo diálogo entre imagem e som. Tomemos como exemplo o vídeo realizado pelo coletivo Poxavila sobre o ato da UFF em 8 de maio, em Niterói. A música que acompanha a primeira parte do vídeo ("Xique xique", de Tom Zé) ajuda a produzir um efeito de unidade das imagens, inseridas agora numa dança na qual participam braços,



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1A reportagem reúne fotografias dos atos dos dias 14/03 (ato um ano depois do assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes), 15/05 (ato em defesa da educação), 30/05 (segundo ato em defesa da educação) e 14/06 (Greve Geral), no Rio de Janeiro, no ano de 2019. Publicado em 04/07/2019. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.17i33.p29376.

2Doutor em Serviço Social (UFRJ). Professor da Escola de Serviço Social da UFF -Niterói, Brasil. E-mail: javier.blank@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9575-7553

cartazes, bandeiras. A música faz com que o vídeo não represente, mas produza a unidade do movimento (https://web.facebook.com/poxavila/videos/2694787173895871/); ela participa na produção da experiência, inclusive para os participantes.

Outras vezes, um som ou uma voz em off pode completar o sentido, mas produzindo uma distância crítica ou uma problematização da própria imagem. É o caso de alguns filmes de Alain Resnais, como por exemplo o genial "As estátuas também morrem".

Na fotografia, a produção de realidade passa também pelo diálogo entre imagem e título, quando ele vai além da mera descrição. Ora ressaltando algum detalhe como organizador do sentido da fotografia num todo, ora remetendo concisamente, quase poeticamente, a elementos que excedem a própria imagem. Com o passo do tempo, a memória direta da experiência corporal não se desfaz mas ganha novas formas, menos sólidas, por assim dizer. Está ali à espreita, despertando sensações e sentimentos incontrolados ao ouvirmos uma música ou escutarmos uma voz. Ou vermos uma imagem congelada, um registro fotográfico.


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Memória. 14/03/2019


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Eu, nós. 14/03/2019



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Nós passarinho. 15/05/2019


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Mulheres. 15/05/2019


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Palavras de ordem. 30/05/2019

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Secundaristas. 14/06/2019



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Indivíduo e sociedade. 30/05/2019

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Cansaço. 30/05/2019



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Frozen. 30/05/2019


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Futuro. 30/05/2019


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Camelô na greve. 14/06/2019

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Gravidade. 14/06/2019

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Estado de coisas. 30/05/2019



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Fogo. 14/06/2019


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v.17, nº 33, mai-ago (2019) ISSN: 1808-799 X


A SUPERAÇÃO DA CISÃO INDIVÍDUO/GÊNERO – NECESSIDADES, INTERESSES E VALORES SÓCIO, HUMANO-GENÉRICOS1


Iael de Souza2


Resumo


O esclarecimento das relações entre indivíduo e gênero humano torna-se essencial no mundo hodierno para enfrentar o individualismo e hedonismo que aprofundam o aviltamento e esvaziamento dos seres humanos. A ética como condição mediadora para a superação da reificação e estranhamento dos indivíduos. Essas são algumas das questões analisadas e refletidas nesse artigo, visando potencializar a tomada de consciência de nossa verdadeira condição e das possibilidades de superá-la.

Palavras chaves: indivíduo; gênero humano; ética; sociabilidade capitalista.


SUPERACIÓN DE LA CISURA INDIVÍDUO/GÉNERO - NECESIDADES, INTERESES Y VALORES SOCIO, HUMANO-GENÉRICOS


Resumen


La clarificación de las relaciones entre el individuo y la humanidad se convierte en esencial en el mundo de hoy para enfrentar el individualismo y el hedonismo que profundizan la degradación y vacía de seres humanos. Ética como una condición para superar la cosificación del mediador y extrañeza de las personas. Estas son algunas de las cuestiones analizadas y reflejadas en dicho artículo, con el fin de mejorar la conciencia de nuestra verdadera situación y las posibilidades de superación.

Palabras clave: individuo; humanidad; Ética; sociabilidad capitalista.


OVERCOMING THE SPLIT INDIVIDUAL / GENDER - NEEDS, INTERESTS AND SOCIAL VALUES, HUMAN-GENERIC


Abstract


The clarification of the relationship between the individual and mankind becomes essential in today's world to face the individualism and hedonism that deepen the debasement and emptying of human beings. Ethics as a mediator condition for overcoming reification and alienation of individuals. These are some of the issues discussed and reflected in this article, aiming to enhance the awareness of our true condition and the possibilities to overcome it.

Keywords: individual; mankind; ethics; capitalist sociability.


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1 Artigo recebido em 22/09/18. Primeira avaliação em 01/02/19. Segunda Avaliação em 05/02/19. Aprovado em 11/04/19. Publicado em 04/07/2019. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.17i33.p29378.

2 Doutoranda em Educação pela UNICAMP – SP. Mestre em Ciências Sociais pela UNESP – Marília. Professora Assistente da Universidade Federal do Piauí, curso de Licenciatura em Educação do Campo (LEDOC), campus Ministro Petrônio Portela. Membro do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Emancipação Humana (NESPAM), UFPI – PI. E-mail: iaeldeo@gmail.com, https://orcid.org/0000-0002- 5860-3352.

Introdução


No mundo hodierno, regido pela lógica da sociabilidade capitalista onde prevalece o ethos operandi do individualismo, da competição, da concorrência e do egoísmo como imanentes à condição humana, indivíduo e gênero humano encontram- se cindidos, pois o “cidadão” corresponde à igualdade jurídica, à emancipação política, que cinde o homem em duas dimensões: uma pública e outra privada, impossibilitando-o de se realizar enquanto um homem integral. Desde já, encontra-se fragmentado, preso à imediaticidade e as suas necessidades prático-utilitárias, voltado a si e para si mesmo, como uma monada, alimentando-se pela ilusória busca de uma felicidade individual.

Alienado de si, da consciência de como se faz ser social, fazendo-se a si mesmo, de sua consciência “em si”, de que “é autor e produto de si mesmo, o que indica a historicidade3 de sua existência” (BARROCO, 2010, p. 20), portanto, não é capaz de se autodeterminar e realizar escolhas conscientes acerca das necessidades, interesses e valores que devem guiar suas ações e relações no mundo e com os outros.

Apropriar-se desse conhecimento e saber torna-se, na atual conjuntura e período histórico-social, uma tarefa essencial para uma nova atitude (visão de mundo) e comportamento (modo de proceder e agir) que pode contribuir para a retomada do seu lugar como sujeito da história, potencializando o reconhecimento e compreensão da indissociabilidade reflexiva entre indivíduo/sociedade, singularidade/universalidade, resguardadas suas especificidades.

Demonstrar como o homem se faz homem e se constrói como ser social e, assim, a própria história; as razões da cisão entre vida pública e privada, entre indivíduo e sociedade, entre indivíduo e gênero humano e de que maneira a ética pode contribuir para a transcendência positiva de todas essas formas de cisão será nosso objetivo com esse artigo a fim de que possamos nos munir para enfrentar e denunciar as formas de alienação moral que inviabilizam e obstaculizam a compreensão da unitariedade do ser social e a necessidade de priorizar determinados valores humano-genéricos para parametrar as escolhas entre as alternativas


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3 Historicidade que resulta do processo de acumulação das ações individuais que conformam a totalidade das relações sociais e de produção que produzem as sociabilidades humanas no tempo e espaço histórico-social.

virtualmente postas – virtualidade que evidencia que as escolhas não estão ao alcance de todos, pois a verdadeira liberdade consiste na existência de alternativas e na possibilidade concreta de escolha entre elas, como ressalta Marx –, guiando os homens em suas ações e relações sociais e de produção.


Da constituição do ser social – um ser natural humano


Discorreremos sobre o surgimento do ser social a partir da fundamentação teórico-histórica-filosófica de Lukács (2013), embasado nas descobertas de Marx. Conforme o segundo, são as condições materiais que proporcionam a produção, desenvolvimento e reprodução da existência. O mesmo se aplica ao ser social. Sua existência pressupõe outros dois momentos distintos, porém, articulados entre si.

Trata-se da esfera orgânica-biológica (o repor o mesmo) e da esfera inorgânica (o tornar-se outro). O primeiro garante as condições para a produção/reprodução da vida, como exemplo o corpo biofísico humano, cujo metabolismo, além de suas propriedades e legalidades imanentes, necessita do segundo momento, que é a natureza externa, inorgânica, onde ocorre o processo de mudança, realizando as transformações dos objetos naturais pela ação/interação com os demais elementos que compõem o mundo físico-natural. De modo que uma montanha, pela ação pluvial, eólica e também pela decomposição de restos vegetais, minerais e animais, além de diminuir de tamanho e alterar sua geografia – de montanha para planície –, forma, após milhares de anos, as bacias sedimentares. É o tornar-se outro.

Esses dois momentos, embora específicos, criam as condições para o salto ontológico que dá surgimento ao terceiro e à terceira esfera: do social, mais precisamente, do ser social. Após milhares de anos, um ramo da espécie dos símios, pelas experiências de ensaios e erros, de tentativas, resultando no construto de instrumentos e ferramentas – ainda que inicialmente rudimentares, imitação dos objetos naturais encontrados e colhidos na natureza, porém, sendo, ao longo do tempo, aperfeiçoados e melhorados, imitando aqueles que na práxis (nas tarefas cotidianas) demonstravam maior eficiência para o fim perseguido –, conseguem fixar essas experiências acumuladas, produzindo a assimilação, memorização e associação, o que permite o desenvolvimento de um sistema de reflexos condicionados, assim como nos animais. Podemos chamar a isso de “pensamento

mecânico”, de causa e efeito. Porém, a fixação dos meios exige, concomitantemente, para seu desenvolvimento, um processo de generalização4 e abstração, que criam as condições para a prévia-ideação, para a antecipação da objetivação da ação na mente do seu criador, originando o ato teleológico e causal do trabalho, protoforma do ser social.

Como afirma Lessa (1996, p. 35), “a busca e seleção dos meios impulsionam a consciência para além de si própria: impulsionam a consciência para o conhecimento do mundo exterior a ela”. Ou então, como elucida Fischer (1973, p. 25), “os meios precederam o propósito; o propósito se revelou pelo uso dos meios”. Ocorreu um salto qualitativo do pensamento mecânico para o pensamento consciente, operando uma transformação estrutural do ser que então se faz social. Os meios não são mais apenas procurados pela decorrência da assimilação, memorização e associação, para além, diferenciando-se dos demais animais, o ser que então se funda como humano, justamente por esse ato teleológico consciente, sabe o que precisa fazer, como fazer e para que fazer (propósito e finalidade da ação, teleologia). Avalia seu entorno, as condições e circunstâncias que compõem a situação com que se defronta e realiza escolhas entre as alternativas conhecidas, postas conforme as necessidades impostas, agindo de uma forma e não de outra, criando diferentes modos e possibilidades de fazer, diversificando suas ações e atividades.

A mediação para o salto ontológico e estrutural do ser é a consciência, intercedida pela ação mediativa fundante, que é o trabalho, a interação homem/natureza, por isso um metabolismo mediatizado, colocando como premissa uma verdade objetiva inconteste: o ser social é um ser natural-social, um ser humano natural. Isto nos coloca uma questão extremamente vital e relevante: desde sua origem e fundação como homem, o ser social afirma e reafirma sua base natural como condição de sua humanização, ou seja, o desenvolvimento da “consciência de si” exige e impõe o reconhecimento da conexão ineliminável e inquebrantável, da interdependência e determinação reflexiva com as esferas orgânica e inorgânica, evidenciando que sua manutenção e reprodução deve ser compreendida enquanto



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4 A tendência à generalização é inerente ao trabalho, por isso ele é a categoria fundante do ser social. Conforme Lukács (apud LESSA, 1996, p. 37), a generalização ocorre “à medida que a experiência de um trabalho concreto é utilizado em outro trabalho, se produz gradualmente uma sua – relativa – autonomização, o que quer dizer que são generalizadas e fixadas determinadas observações que não mais referem de modo exclusivo e direto a um único procedimento, mas adquirem, ao invés, um certo caráter de generalidade como observações que dizem respeito a eventos de natureza em geral”.

produto de mediações entre distintos complexos, constituindo-o enquanto uma totalidade, uma unidade, sendo, em si mesmo, a síntese de múltiplas determinações. Prova disso é o seu próprio corpo biofísico, um organismo natural, que necessita do inorgânico para se manter e reproduzir.

Isto evidencia, de maneira radical, que sua constituição como indivíduo, como veremos no momento oportuno, e o desenvolvimento de sua individualidade depende, reflexivamente, das relações mantidas e estabelecidas com a totalidade social e com a sociabilidade formada como produto da rica diferenciação entre os indivíduos proporcionada pelo acúmulo do saber-fazer e conhecimentos sistematizados pelas várias gerações humanas, produzindo a consciência “para si” através da constituição e consubstancialização do patrimônio histórico-cultural acumulado por toda a humanidade até o presente.

Por isso mesmo jamais o ser humano pode se esquecer de sua base natural, o que objetivamente demonstra que não se basta a si mesmo, que depende de outro(s) ser(es) – orgânico, inorgânico e demais seres sociais. Como assevera Mészáros (1981):


o verdadeiro eu do ser humano é, necessariamente, um eu social, cuja ‘natureza está fora de si mesmo’, isto é, define-se em termos de relações interpessoais, sociais, imensamente complexas e específicas. Mesmo as potencialidades do indivíduo só podem ser definidas em termos de relações de que ele é apenas uma parte. Para que alguém seja ‘potencialmente um grande pianista’, é preciso não só a existência de um instrumento social – socialmente produzido – como também a atividade, altamente complexa, do gozo musical seletivo. (Logo), a natureza humana não é algo fixado pela natureza, mas, pelo contrário, uma ‘natureza’ que é feita pelo homem em seus atos de ‘autotranscendência’ como ser natural. Não é necessário dizer que os seres humanos – devido à sua constituição biológica natural – têm apetites e várias propensões naturais. Mas no ‘ato consciente, autotranscendente, de tornar-se’ eles se transformam em apetites e propensões humanos, modificando fundamentalmente o seu caráter, passando a ser algo inerentemente histórico (p. 152-153).


É assim que compreendemos que o ser social ao transformar a natureza pelo trabalho cria-se a si mesmo como um ser distinto dos demais seres naturais, se faz como homem, construindo uma segunda natureza pela transformação da primeira natureza, produzindo o mundo humano, a natureza artificial, isto é, modificada em forma e função, correspondendo às variadas e renovadas necessidades humanas.

O homem é, deste modo, demiurgo de si, o que elimina a ideia de um Deus ou criador. Ao se criar vai deixando sua marca no mundo através de seus feitos, de suas invenções e inovações, enfim, dos meios cujo desenvolvimento “fixa socialmente a acumulação realizada” (LESSA, 1996, p. 35), produzindo, assim, a história e a historicidade humanas pelos registros de sua passagem espaço-temporal, possibilitando que as gerações de homens do tempo presente enfrentem de maneira mais eficaz os problemas com que lidam, e pelo conhecimento e compreensão do passado possam agir de forma mais consciente e consequente como modo de delinear um futuro mais promissor ao desenvolvimento da humanidade e de sua realização na plenitude das condições e circunstâncias histórico-sociais, humano- genéricas possíveis.

Vemos, então, que a consciência “joga um papel fundamental, possibilitando que os homens respondam de maneira sempre nova às novas situações postas pela vida” (LESSA, 1996, p. 16). Como parte do processo que compõe a prévia-ideação, “só enquanto abstratividade pode ela ser o momento em que os homens confrontam passado, presente e futuro e projetam, idealmente, os resultados de sua práxis” (LESSA, 1996, p. 25). Ela é meio e órgão da continuidade do ser social, que por seu intermédio pode “se reconhecer em sua própria história e se elevar do seu ser “em si” para o seu ser “para si”, de sua consciência “em si”, para sua consciência “para si”. A produção e reprodução das relações genéricas têm por mediação ineliminável a consciência dos indivíduos, e essas relações determinam, reflexivamente, o desenvolvimento de consciências genéricas. “Tomamos cada vez mais consciência do que somos, das leis que regem o nosso desenvolvimento, reconhecemo-nos coletivamente na nossa própria história” (LESSA, 1996, p. 65). Podemos dizer, portanto, que “isso significa que o gênero humano, ao se desenvolver, desenvolve também a sua autoconsciência, o seu ‘ser-para-si’. Sem a fixação pela consciência dos resultados alcançados a cada momento pelo desenvolvimento da humanidade, esse desenvolvimento sequer poderia ser imaginado” (LESSA, 1996, p. 65).

Cabe-nos agora demonstrar como se dá a constituição do indivíduo, procurando estabelecer as condições e circunstâncias sócio materiais que possibilitam o processo de diferenciação entre os seres sociais, e já adiantamos que somente é concretizável pela formação e desenvolvimento das sociabilidades

humanas, demonstrando e evidenciando as complexas mediações existentes entre indivíduo e sociabilidade.


A formação humana: surgimento e desenvolvimento da noção de indivíduo e da individualidade


As primeiras formas de organização humana, superando os bandos e o nomadismo como princípio de produção/reprodução da vida (corpo biofísico), ocorreram, em geral, com o processo de sedentarização, originando as sociabilidades humanas, conceito que significa, segundo MÉSZÁROS (1981, p. 157), “a imediação sensível dos indivíduos”, ou seja, a interdependência entre eles como condição para o desenvolvimento de cada um, perfazendo a segunda natureza humana, que é a natureza historicizada do homem, criada por ele em seu processo de desenvolvimento e sistematização do patrimônio histórico-cultural acumulado. Ou ainda, segundo o autor, “o que não é um produto direto da natureza, mas criado através de um intermediário social, é natural na medida em que é idêntico à ‘segunda natureza’ do homem, isto é, a sua natureza tal como foi criada pelo funcionamento da socialidade”. É assim que “só podemos falar de ‘natureza humana’ num sentido: no sentido cujo centro de referência é a modificação histórica e sua base, a sociedade humana” (MÉSZÁROS, 1981, p. 153). Por sociedade devemos entender uma “abstração”, um conceito que faz referência a cada uma das particularidades individuais, generalizando-as. De modo que a sociedade é resultado das ações individuais (MÉSZÁROS, 1981, p. 1570).

Retomando nosso percurso, as primeiras sociabilidades humanas têm um modo de vida simples, pois as atividades produtivas desenvolvidas são também incipientes e rudimentares, já que dependem do processo de acúmulo de desenvolvimento dos meios (processos, procedimentos, técnicas, invenções, inovações, aprimoramentos, aperfeiçoamentos que buscam maior eficiência dos instrumentos, ferramentas e objetos em geral). Os seres humanos pouco se diferenciam entre si, havendo, nesse primeiro momento, uma certa homogeneidade nos modos de ser, sentir, agir e pensar, já que as principais diferenças consideradas entre os seres sociais é sua constituição biofísica e as limitações que, nesse momento processual do desenvolvimento humano, impõem uma determinada divisão das tarefas entre os sexos.

Todavia, essas limitações são históricas, o que significa que podem e serão superadas em grau e dimensão cada vez maior com o desenvolvimento das forças produtivas (técnicas, tecnologias e ciência), o que cria condições para que o ser social possa realizar-se de modo multidimensional e multifacetado no futuro (isso quando a pré-história da humanidade, o modo de produção capitalista, for superada e iniciar-se sua verdadeira história, a sociabilidade para além do capital, transcendendo-o positivamente, isto é, não negando nem negligenciando as conquistas que representou para o gênero humano em termos de forças produtivas criadas e geradas pelo desenvolvimento científico, técnico, tecnológico, mas incorporando-as por superação), o que nos permite compreender o significado da máxima protagoriana de que “o homem é o limite do próprio homem”, ou seja, o limite do homem atual – espaço e temporalmente delimitado e datado – são os conhecimentos acumulados, sistematizados e transmitidos até o presente momento por todas as gerações de homens que o precederam.

De modo que, nesse estágio do desenvolvimento das sociabilidades humanas, é a coletividade quem funda e fundamenta a diretriz e dinâmica da vida social. O bem comum é o princípio e a finalidade das ações e das atividades produzidas. Contudo, a partir do momento que novas necessidades vão surgindo como decorrência da satisfação das que as antecederam, as atividades produtivas humanas vão se multiplicando e complexificando, tornando, em consonância, mais complexas e mediatizadas as relações entre os homens. A riqueza dessa sociabilidade, da sua totalidade, produz, germinal e concomitantemente, as condições para o nascimento do indivíduo e da individualidade, dado que possibilita um processo de rica diferenciação entre os homens, pois ao gerar novas atividades antes inexistentes, novas necessidades, permite a descoberta de novas habilidades e o desenvolvimento dessas capacidades e potencialidades promove novas relações sociais e de produção entre os homens, ao mesmo tempo aumentando a interdependência entre eles, embora cada vez mais menos imediata e mais mediata, menos direta e mais indireta, constituindo-os, cada vez mais, enquanto totalidade social que se faz totalidade pela totalidade de suas relações sociais e de produção. A reprodução da vida humana torna-se, como diz Lessa (1996, p. 70), “crescentemente social”.

Assim, deixa de haver uma identificação direta com o coletivo. Desenvolve-se a noção de que cada um possui necessidades específicas, diferentes entre si, que

são indivíduos que se descobrem e reconhecem como individualidades, e tal descoberta deve-se à sociabilidade, à vida social, possibilitando uma diversificação cada vez maior e mais enriquecedora dos meios, que se aperfeiçoam e melhoram processualmente. Dessa forma, “quanto mais desenvolvida for a sociabilidade, mais numerosas e intensas serão as mediações sociais que articulam a vida dos indivíduos com a trajetória humano-genérica” (LESSA, 1996, p. 71).

E é nesse momento processual que surge a noção e reconhecimento do homem como membro do gênero humano, isto é, como parte de um todo que o transcende, que é “trans-histórico”, como afirma Barroco (2010, p. 75). Explicando: trata-se das necessárias mediações e nexos causais entre passado, presente e futuro, de descobertas humanas e de formas de enfrentamento das situações concretas vividas que transcendem o seu próprio tempo e permanecem como referencial que pode ser resgatado a qualquer tempo, por qualquer geração humana, conforme se faça necessário, correspondendo, assim, a necessidades, interesses e valores sócio, humano-genéricos, conquistas do gênero humano, portanto. Porém, ao mesmo tempo que o transcende também o contextualiza pelas determinações e situações que compõem o momento de sua história e historicidade espaço-temporalmente delimitada, particularizando e dando especificidade ao presente em relação ao passado e ao futuro, bem como particulariza e torna específicos também as histórias passadas em contraposição ao presente e às tendências que daí advém e permitem a virtualidade do futuro, do real.

Não por outra razão para Lukács apud Lessa (1996),


a unidade original, nitidamente perceptível nas sociedades primitivas, não é rompida pelo desenvolvimento social. Pelo contrário, esta unidade se enriquece e se complexifica, se realiza através de mediações sociais cada vez mais numerosas, diversificadas, complexas. O desenvolvimento do ser social não dá origem a uma crescente fragmentação do gênero, mas sim a um gênero cada vez mais socialmente articulado e, por isso mesmo, portador de uma unidade social cada vez mais rica e articulada. Por esse processo, o ser social se expressa, enquanto gênero, de forma cada vez mais complexa, rica e mediada – humana, enfim (p.71).


Quanto mais as sociabilidades humanas se desenvolvem e transformam em totalidades sociais complexas maior a necessidade de estabelecer os nexos e fundamentos causais – considerando também os casuais (acaso, espontâneo) – que perpassam as relações sociais e de produção. No entanto, de modo algum, em

nenhum momento pode ser colocada em dúvida a determinação reflexiva entre o social e a constituição e surgimento do indivíduo, que como se faz individualidade com, pelo e através do social é, em si, um indivíduo social e suas probabilidades de ação individual são delimitadas pelas condições e circunstâncias da sua historicidade presente, que podem ou não ser potencializadas conforme a potencialidade contida na trajetória percorrida e experiências acumuladas pela humanidade.

A partir desses fatos podemos dizer que “quanto mais desenvolvido o ser social, mais ele se unifica objetiva e subjetivamente enquanto gênero humano socialmente construído, enquanto generalidade humana” (LESSA, 1996, p. 80). Isto porque “o desenvolvimento de um gênero humano crescentemente unitário tem como mediação ineliminável o desenvolvimento dos momentos de diferenciação e aumento da autonomia relativa de suas partes constituintes” (LESSA, 1996, p. 80). Compreende- se, assim, que “as relações sócio genéricas aumentam em número e intensidade com o surgimento de formações sociais cada vez mais avançadas” (LESSA, 1996, p. 64- 65).


Nos dias de hoje, a integração em nível mundial da humanidade ocorre com tal intensidade e com tal frequência, que a existência concreta de cada indivíduo (em larga escala independente de ter ele ou não consciência) está indissociavelmente associada à trajetória de toda a humanidade. Nos dias de hoje, o que ocorre em cada parte do mundo diz respeito a todas as pessoas: nossas vidas individuais estão tão articuladas com a do gênero humano que a trajetória deste último determina, em larga escala, o destino de cada indivíduo (LESSA, 1996, p. 64-65).


É justamente esse processo de construção, do devir humano e de humanização dos homens através do acesso e usufruto às criações das várias gerações humanas que possibilita que cada um descubra e desenvolva suas habilidades, capacidades, como também confronte os valores, necessidades e interesses particulares com os valores, necessidades e interesses sócio, humano-genéricos, contribuindo para que os seres humanos se elevem do seu “em si” para o seu “para si” e se reconheçam como generalidade humana, como membros do gênero humano, como individualidades surgidas a partir da riqueza e complexidade geradas pelo desenvolvimento permanente das sociabilidades humanas em sua complexificação contínua devido às novas necessidades postas e exigidas pela articulação cada vez mais mediada e complexa entre os seres humanos.

Da cisão entre indivíduo/sociabilidade humana, entre indivíduo/gênero, entre público/privado


Embora a noção de indivíduo e a individualidade sejam momentos processuais do desenvolvimento e complexificação da organização das relações sociais e de produção das sociabilidades humanas, demonstrando que são produtos sociais, ao mesmo tempo também produzem transformações na estrutura da vida e dinâmica sociais através de suas ações individuais, trazendo repercussões na vida dos demais indivíduos sociais justamente pelas mediações que interligam e articulam as relações sociais e de produção no mundo dos homens. Todavia, uma mudança radical ocorre com o surgimento das formações socioeconômicas capitalistas e seu modo de produção correspondente. É nesse momento da processualidade histórico-social humana que ocorre a cisão entre público/privado, entre indivíduo/gênero, entre indivíduo/sociabilidade humana. Tracemos brevemente as principais causas desse fato.

De modo geral, como demonstram Mészáros (1981) e Tonet (2012), dentre outros autores, a necessidade de afirmação da igualdade entre os homens torna-se uma condição sine qua non para o fortalecimento do terceiro estado – liderado pelos burgueses, que nesse momento ainda não haviam se constituído como classe política, ainda que tivessem e concentrassem o poder eminentemente econômico – contra os privilégios mantidos pelo primeiro e segundo estados (estamentos, correspondente ao clero e à nobreza) durante o modo de produção feudal. Afirmar a igualdade natural e universal entre os homens, científica e filosoficamente, coloca em xeque a sustentação das desigualdades e privilégios entre os indivíduos.

Num primeiro momento, essa filosofia se transmuta em “filosofia de vida”, servindo como parâmetro para identidade, solidariedade, fraternidade entre os vários segmentos sociais que compunham o terceiro estado, cuja liderança estava nas mãos da burguesia. Porém, num segundo momento, marcado pela tomada do poder político-social pela burguesia, a igualdade perde seu caráter universal, comum a todos os homens, e é mantida apenas na esfera da igualdade jurídica, como bem defende a “filosofia de classe”, portanto, a concepção político-ideológica da classe capitalista- burguesa, restringindo-se à esfera pública-estatal.

Ainda que público e estatal não sejam sinônimos – uma vez que o primeiro corresponde às necessidades, interesses e valores sócio, humano-genéricos e o

segundo aos interesses, necessidades e valores de uma classe específica que se apropria privadamente da riqueza socialmente produzida e se arvora como representante da humanidade. Entretanto, na verdade, utiliza do que deveria ser público para defender, garantir, propagar e legitimar seus interesses, necessidades e valores particulares como se fossem sócio, humano-genéricos –, são transformados em similitude na e pela sociabilidade capitalista. O Estado, como bem elucida Sanfelice (2005, p. 89-95) embasado no pensamento de Marx e Engels, é um aparelho jurídico-político-administrativo que tem como fundamento e finalidade primordial assegurar e proteger, defendendo e legitimando, a propriedade privada dos meios de produção. Aqueles que ocupam seus órgãos e instituições por intermédio de determinados cargos, embora sejam “escolhidos” através de regime representativo e do voto são, em sua maioria, provenientes dos segmentos dos grupos e da classe capitalista, de maneira que defendem seus interesses, valores e necessidades dizendo defender os interesses, valores e necessidades da totalidade social. Aliás, como é sabido, esses grupos e essa classe detêm o controle sobre os meios de produção e influenciam na própria escolha entre alternativas dos indivíduos, pois fabricam e produzem a opinião pública através da mass media, além de também fabricarem, produzirem e programarem os comportamentos, os hábitos, os valores, as necessidades que influenciam o ethos social (modo de vida, as relações sociais e de produção).

Assiste-se, assim, a cisão do homem entre cidadão e burguês, entre público e privado, para sermos mais exatos. A igualdade se dá apenas mediante a mediação do direito, da lei, da formalidade jurídica, e não de modo real, pois ela não é comum entre todos os homens, até porque a realidade é a do trabalho assalariado que torna o homem e sua força de trabalho uma mercadoria como outra qualquer, já que se centra no valor de troca desse meio de produção. Por isso precisa garantir a legitimidade da apropriação dessa força de trabalho pelo capital e suas personas, os capitalistas. Daí a necessidade do contrato social, base para a constituição da sociabilidade capitalista, como tão bem retratado pelos filósofos contratualistas, dentre eles, John Locke, pai do liberalismo econômico.

Igualar os homens formalmente significa torna-los proprietários, livres e iguais entre si, pois só assim são dadas as condições essenciais para o estabelecimento de acordos entre as partes. Os ditames da lei contratual suspendem, e

momentaneamente fazem desaparecer, as desigualdades sociais reais entre os indivíduos sociais na esfera da produção social, correspondente à vida privada de cada um, remetida ao lugar ocupado por cada indivíduo na estrutura produtiva da divisão técnico-social-hierárquica do trabalho. Algo que, pela ótica e justificativa liberal, depende do pacote e banco de competências e habilidades adquiridas por cada um individualmente, descartando e desterrando as condições essenciais para isso, que deveriam ser públicas, ou seja, dadas e postas igualmente para todos, mas que não são e não estão, já que a produção da riqueza é social mas sua apropriação é privada.

Assim que cada vez mais as condições reais das relações sociais e de produção pressionam os homens a se voltar e fechar nos seus interesses, necessidades e valores particulares em detrimentos dos interesses, valores e necessidades sócio, humano-genéricos, contribuindo para que se alienem de si mesmos, não tendo conhecimento do que são, do seu “em si”, de que suas vidas estão articuladas – e mediativamente são dependentes – às esferas orgânica e inorgânica, como também à sociabilidade humana, já que se fazem como indivíduos e constroem sua individualidade por intermédio do acesso, usufruto e apropriação da riqueza socialmente produzida pelas várias gerações de homens que os antecederam e produziram o patrimônio histórico-cultural acumulado pela humanidade. Não se reconhecem como membros do gênero humano, não são capazes de compreender, devido às relações sociais e de produção alienadas que engendram o estranhamento em relação às funções da reprodução social de suas vidas, que


determinadas descobertas dos homens, por sua relevância para o enriquecimento da humanidade, não se perdem na história. São duradouras e trans-históricas, permanecendo como conquistas do gênero humano, sendo, por isso, valoradas positivamente como parte da riqueza humana historicamente produzida e podendo ser resgatadas pelos homens em momentos específicos como exigências éticas e políticas humano-genéricas (BARROCO, 2010, p. 75-76).


Num mundo onde os caminhos para a felicidade e a realização são entendidos como essencialmente individuais, privilegiando os desejos, as pulsões, as vontades egoísticas, individualistas e consumistas, já que perdeu-se o referencial e parâmetro do social, do coletivo e da vida boa e do bem comum como pressuposto para a humanização dos homens, cada vez mais,


no âmbito da vida cotidiana, a consciência do indivíduo singular exclusivamente para seu eu; não é dirigida para o nós, os outros, a

sociedade. No entanto, o eu é sempre social e a interação entre o indivíduo e a sociedade se faz, portanto, de modo social, referindo-se a valores e modos de ser sociais, como vimos. No entanto, por estar voltada prioritariamente para o eu, a dinâmica da vida cotidiana não permite que o indivíduo se dirija a exigências humano-genéricas. Para fazê-lo, ele terá que ‘sair’ dessa dimensão (BARROCO, 2010, p. 67).


A valorização e defesa da liberdade individual também é consequência da sociabilidade contratual capitalista, e o mais interessante é que a única liberdade do indivíduo é, na verdade, escolher a quem vai vender sua força de trabalho, para quem vai se subsumir em troca do assalariamento para manter a subsistência, porque em relação aos demais aspectos de sua vida, vive na ilusão de ter liberdade de escolha e de decidir, mas sem consciência de que lhe são negadas todas as condições, essencialmente sociais, para a realização de sua autonomia e desenvolvimento enquanto indivíduo. Conforme aponta Mészáros (1981),


a relativa liberação do homem em relação a sua dependência direta da natureza é realizada por meio de uma ação social. No entanto, devido à reificação (coisificação) das relações sociais de produção, tal realização surge numa forma alienada: não como uma independência relativa da necessidade natural, mas como uma liberdade para as limitações das relações sociais, como um culto cada vez mais intenso da ‘autonomia individual’. Esse tipo de alienação e reificação, produzindo uma aparência enganosa de independência para o indivíduo, uma aparência de auto-suficiência e autonomia, transforma o ‘mundo individual’ num valor absoluto, em abstração da relação desse mundo com a sociedade, com o ‘mundo exterior’. (...) A relação egoística é a camisa-de-força imposta ao homem pela evolução capitalista, e os valores da ‘autonomia individual’ representam a sua glorificação ética. (...) Mesmo que leve em conta os elos dos homens entre eles, essa ética só pode fazê-lo na forma de um simples ‘deve’. (...) Nessa ética, o conceito de ‘natureza humana’ serve para absolutizar, como inevitabilidade metafísica, uma ordem social que ‘mantém o homem em sua brutal solidão’, lançando os indivíduos uns contra os outros, subordinando-os aos seus ‘apetites artificiais’ e ao ‘domínio das coisas mortas sobre o homem’ (p.233).


O egoísmo, portanto, é fruto das relações sociais e de produção capitalistas, não é parte da natureza humana, até porque esta é construída historicamente, não é dada de maneira inata, sendo, ao contrário, um produto social, já que o modo de vida, os valores que são ou não valorados pelos homens em cada período e época históricas, são criados pelas várias gerações humanas. Por isso mesmo que alguns valores se perdem, outros aparecem e alguns outros podem ser resgatados devido sua relevância e condição pressuposta para a criação de uma vida boa em prol do bem comum e dos interesses, valores e necessidades da coletividade humana.

Porém, como a lógica da sociabilidade capitalista é a do contrato social, da igualdade, liberdade e propriedade jurídico-formal entre os homens, mantendo intacta a desigualdade social real existente entre eles em suas vidas privadas, a liberdade e a autonomia individual adquirem, como diz Mészáros (1981) a “santidade de um dogma, as referências sociais e políticas tendem a desaparecer e as circunstâncias, condicionadas sócio historicamente, da vida atomizada e privatizada do indivíduo são caracterizadas, a-historicamente, como a ‘condição humana’ (p.230)”. Os indivíduos se sentem cada vez mais impotentes e incapazes de fazer algo para mudar a realidade, pois não conseguem enxergar, reconhecer e compreender como são responsáveis pelas condições e circunstâncias que condicionam e determinam, reflexivamente, a vida de toda a totalidade social.

Em sua obra, Mészáros (1981) cita trechos do poeta Eliot, onde a heroína, Célia, “é tomada pelo medo de uma ‘consciência da solidão’ e ainda mais pela tentação de buscar explicações fora de si mesma, o que significaria atribuir a responsabilidade ao mundo em que vive” (p. 230), ou seja, tomar consciência de si, das limitações impostas à ação individual, porque a realidade é a síntese das relações complexas e mediadas entre a totalidade dos indivíduos sociais e deles com a humanidade através do patrimônio histórico-cultural acumulado e objetivamente posto e manifesto pelo nível de desenvolvimento das forças produtivas e que, portanto, não cabe ao indivíduo isolado resolver os problemas, males e mazelas sociais, pois eles são produto do modo como está organizada a estrutura das relações sociais e de produção que refletem e afetam a vida de cada um em particular. Logo, somente a articulação, organização e mobilização dos indivíduos em coletividades sociais poderia criar as condições para alterar e responder aos desafios e problemas que enfrentam.

Quando a heroína do poema de Eliot busca explicações para o que sente e se passa, não nela mesma mas sim no modo como as relações sociais e de produção estão articuladas, nas mediações políticas, econômicas, culturais e sociais presentes em cada fenômeno e fato cotidiano, buscando desvelar suas múltiplas determinações, seus nexos causais, compreende que o devir humano é feito e produzido pela totalidade de suas relações. Deste modo, ela denuncia a alienação humana, os constructos ideológicos e políticos criados para ludibriar e manipular os indivíduos, impedindo-os de compreender e enxergar a verdade: que foram alienados de si mesmos, de suas capacidades e potencialidades enquanto humanidade e são

cobrados individualmente a fazer e ser o que só é possível enquanto coletividade humana, de modo a sentirem-se cada vez mais impotentes e incompetentes, permitindo que outros ajam, façam, pensem e sejam por eles, levando-os cada vez mais a uma vida contemplativa e não mais ativa, anulando-se como sujeitos históricos e produtores de sua própria historicidade. Esse seria o remédio para reconciliarmo- nos com a nossa condição humana, ou seja, a alienação inerente à vida humana.

Essas considerações aparecem no diálogo entre dois personagens do poema de Eliot, citado por Mészáros (1981, p. 231), que vale a pena reproduzir.


Célia: O que aconteceu me tornou consciente

de que sempre estive só. De que se está sempre só.

... não que eu queira estar só,

mas todos estão sós – ou me parecem estar. Fazem barulho, e acham que estão conversando;

Fazem caretas, e acham que estão se compreendendo mutuamente. E eu tenho certeza de que não estão.

Dr. Reilly: Posso reconciliá-la com a condição humana,

a condição a que alguns, que foram tão longe quanto você, conseguiram voltar. Eles podem lembrar-se

da visão que tiveram, mas deixam de se lamentar, mantêm-se pela rotina comum,

aprendem a evitar as esperanças excessivas,

tornam-se tolerantes consigo mesmos e com os outros, dando e recebendo, nas ações habituais,

o que existe para dar e aceitar. Não se impacientam;

estão contentes com a manhã que separa e com a noite que une, dispostos a conversa casual ante a lareira;

duas pessoas que sabem que não se compreendem, criando filhos que não compreendem,

e que nunca os compreenderão. Célia: É isso o melhor da vida? Dr. Reilly: É uma vida boa.


A solidão, o “estar só no meio da multidão”, como também nos diz o poeta Drummond, é a tomada de consciência da alienação humana, de que os indivíduos sociais estão vivendo como se só houvesse presente, sem passado e perspectiva de futuro, sem nenhuma ciência ou compreensão de que são parte e membros do gênero humano e que o devir humano, concretizado na generalidade humana, é apenas uma frase oca, sem significado efetivo no cotidiano de suas vidas, cada vez mais fragmentada, regulada por hábitos que parecem ter existência própria e por normas, regras que já encontram prontas ao nascer e que têm que aprender para poder sobreviver no mundo, aprendendo a jogar o jogo da artificialidade da vida, também cada vez mais vazia, opaca, sem graça e sem sentido aparente. Como afirma

Mészáros (1981, p. 231), “em condições semelhantes, a alienação pode assumir a aparência de um remédio. ‘A condição humana’ parece ser conviver com a alienação inseparável da existência humana, reconciliar-se com ela”.

Na verdade, desaprendemos a con-viver, e só nos relacionamos quando colidimos com o outro, como é muito bem retratado pelo longa metragem Crash – No Limite. Todo nosso tempo é tempo produtivo ou de consumo, não há tempo para descobrirmos nossas habilidades, capacidades e nos realizar através dessas atividades, muito menos para estabelecermos relações verdadeiras, transparentes e sinceras, de verdadeira reciprocidade com os outros. O que realizamos através das relações que estabelecemos é a valorização das coisas e sua realização pela produção e consumo, repondo o ciclo, tornando-nos suportes materiais para realização dos produtos que fabricamos, de modo que nós nos tornamos coisas e os produtos os sujeitos a quem nos sujeitamos. Como diz a canção de Paulinho da Viola:


(...) Me perdoe a pressa. É a alma dos nossos negócios. Oh! Não tem de que. Eu também só ando a cem.

Quando é que você telefona? Precisamos nos ver por aí. Pra semana, prometo, talvez nos vejamos. Quem sabe? Quanto tempo ... pois é ... quanto tempo...

Tanta coisa que eu tinha a dizer, mas eu sumi na poeira das ruas. Eu também tenho algo a dizer, mas me foge a lembrança.

Por favor, telefone, eu preciso beber alguma coisa, rapidamente. Pra semana...

O sinal ...

Eu procuro você

Vai abrir... vai abrir...

Eu prometo, não esqueço, não esqueço...

Por favor, não esqueça, não esqueça... Adeus...


Estamos sempre apressados, estressados, correndo, indo em todas as direções sem chegar, realmente, a lugar algum. Cansados, nunca sobra tempo. Todo tempo é calculado. Não nos perguntamos o que realmente é importante, necessário e o que, de fato, interessa e em quais valores embasamos nossas vidas para justificá- las e plenifica-las de sentido. Além disso e junto a isso, como nos lembra Mészáros (1981),


(...) buscar o remédio na ‘autonomia’ é estar no caminho errado. Nossos problemas não resultam de uma falta de ‘autonomia’, e sim, ao contrário, de uma estrutura social – um modo de produção – que impõe ao homem um culto dela, isolando-o dos outros homens. A pergunta vital, que deve ser formulada sobre a autonomia, é: o que se

pode fazer com ela? Se apenas a ‘temos’, como uma ‘faculdade psicológica’, um aspecto da ‘estrutura do caráter’, como um direito oco limitado à esfera da ‘privacidade’, para todas as razões práticas isso equivale à mesma coisa que não tê-la.

Ser capaz de fazer alguma coisa por meio da ‘autonomia’ envolve necessariamente ‘o outro’. Em consequência, a única forma de ‘autonomia’ que vale a pena examinar é a ‘autonomia não-autônoma’. Em outras palavras: a ‘autonomia’ humanamente significativa não é, na realidade, diferente da reciprocidade social, no curso da qual as pessoas envolvidas umas com as outras se adaptam mutuamente às condições de intercâmbio e, ao mesmo tempo, conservam o poder de iniciativa. Se a reciprocidade existe ou não, depende do caráter da estrutura social.

É evidente que o culto do indivíduo (...) só pode ampliar o abismo que separa o homem, no capitalismo, de sua integração social (p. 240).


O problema é que a reciprocidade inexiste na sociabilidade capitalista, pois estamos alienados de nossos verdadeiros interesses, necessidades e valores sócio, humano-genéricos que necessitamos resgatar e tomar como referenciais e parâmetros para orientar nossas ações, refundando e reestruturando nosso ethos de vida, superando o ethos e a moral tornados hegemônicos, que são os da classe capitalista e do capital.


À guisa de conclusão: a superação da cisão indivíduo/gênero, indivíduo/sociabilidade humana


Como aponta Lukács e é reafirmado por Lessa (1996, p. 96) “a contraditoriedade entre o genérico e o particular é um elemento fundamental na elevação à consciência, em escala social, do ser genérico dos homens”. Por isso mesmo a moral, enquanto “um órgão de desenvolvimento da humanidade como um todo”, no dizer de Mészáros (1981, p. 250), pode contribuir para essa elevação caso os indivíduos compreendam que se trata de um imperativo categórico que dizendo o que “deve ser” pode auxiliá-los justamente a reconhecer suas limitações enquanto indivíduo para realizar determinadas tarefas e reconhecer o peso e importância da humanidade presente na coletividade para potencializar ações mais efetivas.


Embora a moral seja um órgão de desenvolvimento da humanidade como um todo, é claro que ela só pode funcionar através das ações, mais ou menos conscientes, dos indivíduos. É inevitável, portanto, que na consciência dos indivíduos as diferenças (entre indivíduo e humanidade) sejam diluídas, ou totalmente eliminadas. O indivíduo ‘assume’ o peso total de representar a capacidade da humanidade em determinada situação moral, seja ele individualmente capaz, ou não,

de corresponder às expectativas morais. Se assim não fosse, isto é, se a diferença objetiva entre sua capacidade muito limitada e os poderes praticamente ilimitados da humanidade não estivessem apagados na sua consciência através da linguagem categórica do discurso moral, o dever não poderia cumprir sua função: a consciência das limitações objetivas – que não pode ser divorciada de nossa avaliação, por mais inexata que seja, dessas mesmas limitações – tenderia a fortalecer as pretensões do ‘não pode ser feito’, e enfraqueceria as do ‘deve ser feito’. Em consequência, a moral tradicional só pode operar se o deve se impuser e apagar na autoconsciência do indivíduo todas essas diferenças objetivas que poderiam enfraquecer as pretensões categóricas dela. (...) Só o indivíduo abstrato da filosofia especulativa vive no reino das ‘possibilidades’ – o indivíduo real tem de satisfazer-se com o campo das ‘probabilidades’, dentro do qual precisa se mover, conscientemente ou não, satisfeito ou não. A oposição entre as categorias de dever e ser só pode ser resolvida se a elevarmos ao nível da humanidade. O que aparece como ‘Dever’, dirigido ao indivíduo nos termos específicos do discurso moral, expressa, na verdade, ‘projetos’ objetivos e as tarefas históricas reais que existem nas estruturas complexas da sociedade humana como necessidades e tendências de desenvolvimento (MÉSZÁROS, 1981, p. 250-252).


A moral, em termos de senso e consciência moral, faz com que os indivíduos reflitam em relação às ações e situações que enfrentam, obrigando os homens a pensar além de si mesmos, dos seus interesses, necessidades e valores particulares, eminentemente voltados às satisfações da própria singularidade, pois coloca em questão as normas e regras socialmente aceitas e legitimadas. Por isso mesmo muitas vezes, aparentemente, fica-se preso num impasse, sem resolução, porque, efetivamente, a superação dos problemas só pode ocorrer através de ações de vários indivíduos e não de um único isolado, já que trata-se de questões e problemas oriundos da forma como as gerações humanas e a geração atual, em particular, articulam, estruturam e medeiam as diversas instâncias da vida social.

É necessário inquirir sobre quais interesses, valores e necessidades a totalidade social se funda e fundamenta, pois só assim compreenderemos o tipo de relações estabelecidas e reproduzidas entre e pelos homens e poderemos dizer se elas contribuem para a realização e humanização de todos os homens ou para sua desrealização e alienação. Esse é o motivo pelo qual Lukács (apud LESSA, 1996, p. 98) aponta “uma diferença fundamental entre a ética e os outros complexos” sociais, como a moral, por exemplo, ou o direito, a tradição, etc. Para ele, “enquanto a moral, os costumes, a tradição, etc. se caracterizam por atuar no interior da tensão gênero/particular”, atuando no interior dessa contraditoriedade enquanto instâncias

mediadoras, mas incapazes de “encaminhar os conflitos e as alternativas no sentido de sua superação”, a ética, por outro lado, atua “no interior da contradição gênero/particular, tendo em vista a superação da relação dicotômica entre indivíduos e sociedade” (LUKÁCS apud LESSA, 1996, p. 98).

Apesar de a sociabilidade capitalista ter como fundamento, princípio e fim a propriedade privada, o trabalho assalariado e a desigualdade social, contraditoriamente o desenvolvimento das forças produtivas – que é imanente ao seu próprio desenvolvimento e reprodução – cria uma contradição incorrigível e insuperável ao capital e ao sistema capitalista, evidenciando e permitindo aos homens reconhecerem-se e identificarem-se enquanto gênero humano, pois “na sociedade burguesa, a práxis social5 requer e possibilita que se eleve à consciência, em escala social, o fato de os homens serem os construtores de sua história, ainda que em circunstâncias por eles não escolhidas” (LESSA, 1996, p. 98). Assim,


ao permitir ao gênero humano se reconhecer como demiurgo de sua própria história, ao possibilitar a consciência, sempre em escala social, de que indivíduos e sociedade são pólos de um mesmo ser e que, por isso, compartilham da mesma história, essa nova sociabilidade funda uma nova necessidade. Qual seja, a superação da dicotomia indivíduo/gênero, a superação da cisão, tipicamente burguesa, do ser humano em citoyen e bourgeois. Tal superação requer, por um lado, que a práxis construa complexos sociais mediadores que permitam a explicitação e o reconhecimento coletivo das necessidades postas pelo desenvolvimento humano-genérico. E, por outro lado, que, nos atos teleologicamente postos pelos indivíduos, predominem valores que encarnem as necessidades do desenvolvimento da generalidade humana. A superação da dicotomia bourgeois/citoyen apenas pode se dar, primeiro, pela compreensão por parte do gênero do seu em-si, do que de fato ele é, o que implica necessariamente, também, a compreensão pelas individualidades do que de fato elas são, do seu ineliminável caráter genérico-social. Em segundo lugar, pela objetivação de valores predominantemente genéricos. Ou seja, a superação desta dicotomia apenas é possível com a elevação do gênero e da individualidade ao seu para-si. (E é) função específica da ética conectar as necessidades postas pela generalidade humana em desenvolvimento, com a superação do antagonismo gênero/particular (LESSA, 1996, p. 98-99).


Vemos, portanto, que por atuar no interior da contradição indivíduo/sociedade, gênero/particular, a ética é o complexo social construído pela práxis para auxiliar os


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5 Atividade finalística consciente, consequente, transformadora, que realiza uma necessidade humana e produz coisas que vão além da vontade imediata que as criou, pondo-se para os outros e contribuindo e auxiliando-os para que descubram, através de um outro, do que também são capazes, realizando-se como seres humanos.

homens na tarefa histórico-social de superar a dicotomia indivíduo/generalidade humana, público/privado.

A questão é que numa sociedade de classes, como a sociabilidade capitalista, a moral dominante é a da classe dominante, que também impõe o seu ethos como dominante, o que contribui negativamente para que os valores, necessidades e interesses sócio, humano-genéricos não tenham condições objetivas de se concretizar. Isso significa, como afirma BARROCO (2010, p. 71),


que a moral está vinculada – contraditoriamente – ao desenvolvimento humano-genérico e à sua alienação, pois as formas de reprodução de valores ético-morais são orientadas por valores e princípios sociais e humano-genéricos, isto é, universalmente legitimados, mas que podem não ter condições de se universalizar em determinadas condições sociais. Neste caso permanecem como universais abstratos.


Tal contradição em relação à moral se explica porque, positivamente, ela


se estrutura através de princípios e valores universais abstratos apropriados pelos indivíduos em cada formação social concreta e situação histórica determinada de forma a ser materializados, de modo particular, em suas ações práticas. São princípios e valores ontologicamente objetivos, pois referem-se a valores genéricos que são produtos históricos de conquistas teórico-práticas do ser social, ao longo de seu desenvolvimento. Portanto, sua objetividade decorre do fato de pertencerem à história dos homens (BARROCO, 2010, p. 69).


Contudo, por outro lado, sua negatividade está na moral alienada decorrente da formação socioeconômica capitalista, pois “na sociedade de classes já não é possível uma unidade em torno de valores e necessidades comuns a todos os membros da sociedade” (BARROCO, 2010, p. 61), isso porque, como vimos, essa forma de sociabilidade valoriza o individualismo, a privacidade, o egoísmo, a concorrência e a competitividade, naturalizando-os, tornando o culto ao indivíduo e à liberdade individual (autonomia) um dogma sagrado, como demonstrado através de Mészáros, isolando cada vez mais os indivíduos, fazendo com que se sintam impotentes e incapazes, alienando-os de si mesmos e dos outros. É assim que determinados valores éticos, sócio, humano-genéricos deixam “de estar no cume da hierarquia dos valores por certos períodos históricos” (BARROCO, 2010, p. 70).

Na sociabilidade capitalista são os interesses privados em comum que aproximam os homens, permitindo que se agreguem enquanto for conveniente para cada um, utilizando dos outros como meio em benefício próprio. Tal atitude não é

recriminada, embora possa ser rejeitada por alguns. Afinal, a concepção do ethos de vida admite, e como diz a canção, “ainda mais quando a subida tem o céu como limite” (Clara Nunes).

Combater esse estado de alienação, de “consciência da solidão” exige uma luta interna, tendo como momento predominante a retomada consciente do conhecimento do nosso em-si, do que somos, pois “quanto mais o indivíduo é capaz de ‘reproduzir- se como indivíduo social’, menos intenso é o conflito entre o indivíduo e a sociedade, entre o indivíduo e a humanidade” (MÉSZÁROS, 1981, p. 256). Porém, a condição para isso é que o indivíduo “participe de maneira cada vez mais ativa na determinação de todos os aspectos de sua própria vida, desde as preocupações mais imediatas até as mais amplas questões gerais de política, de organização socioeconômica e de cultura” (MÉSZÁROS, 1981, p. 256).

Dizer que o indivíduo se reproduz como indivíduo social “equivale a dizer que a relação entre o indivíduo e a sociedade, entre o indivíduo e a humanidade, continua sempre uma relação mediada”. Portanto, “a questão prática em jogo é a da natureza específica dos instrumentos e processos efetivos de automediação humana” (Mészáros, 1981, p. 256), que na sociabilidade capitalista, devido à cisão do homem entre público e privado, impedindo-o de ser um ser natural-humano integral, caracteriza-se por relações alienadas, invertendo a relação entre meios e fins, que deveriam estar em adequação e reciprocidade, superando a lógica perversa onde os fins justificam os meios. Isto porque, “segundo Marx, as relações humanas não- alienadas caracterizam-se pela automediação, e não por uma identidade direta e fictícia com um Sujeito Coletivo genérico, ou com a dissolução do indivíduo nele” (MÉSZÁROS, 1981, p. 256). Daí decorre que “o problema (...) é a elaboração concreta e prática de intermediários adequados, que permitam ao indivíduo social ‘mediar-se a si mesmo’, em lugar de ser mediado através de” (Mészáros, 1981, p. 256) relações coisificadas e instituições que legitimam e perpetuam a alienação, como o Estado de Direito.

São os próprios homens, em associação, que devem organizar, planejar, controlar, decidir e estruturar os meios e as atividades produtivas e a reprodução social, tendo, efetivamente, as condições para a realização das escolhas, que devem estar e ser pressupostas a todos igualmente para que haja liberdade, de modo que existam, de fato, alternativas e haja a possibilidade concreta de escolha entre elas.

Destarte, a objetivação das alternativas para as escolhas só estará pressuposta quando a propriedade privada dos meios de produção for erradicada e superada, quando o trabalho assalariado também for superado e quando os homens retomarem o controle sobre suas próprias vidas destruindo o Estado.

À guisa de conclusão, portanto, podemos dizer que no momento atual da história humana, os indivíduos encontram-se apartados da própria consciência de si, do seu em-si, dificultando, e muito – pela intensificação do hedonismo, do individualismo, do narcisismo, das relações cada vez mais desumanizadas, calculistas e reificadas entre os homens, transformados em meios e coisas, produzindo a barbárie que assistimos ao ligar a TV –, que consigam transcender positiva e conscientemente para sua consciência para-si.

Porém, como faz questão de enfatizar Barroco (2010), embora alguns valores sócio, humano-genéricos tenham sido desvalorizados em determinadas épocas históricas, eles permanecem como referência e podem ser resgatados a qualquer momento por uma determinada geração de homens, restabelecendo, através da reflexão ética, os princípios e valores que primam pela vida boa e pelo bem comum como condição para a realização de cada um, segundo suas necessidades, conforme a plenitude possível pressuposta pelo patrimônio histórico-cultural acumulado pela humanidade até aquele preciso momento processual do seu desenvolvimento marcado por avanços e recuos, fazendo avançar ou recuar, concomitantemente, determinados valores que ora se concretizam, ora se tornam novamente abstratos, mas mesmo assim permanecem como conquistas do gênero humano, podendo servir para guiar uma determinada geração de homens para a transcendência positiva da sociabilidade capitalista e do capital.


Referências


BARROCO, Maria Lúcia S. Ética – fundamentos sócio históricos. 3ª ed. São Paulo: Cortez, 2010. (Biblioteca básica de serviço social; v.4)


FISCHER, Ernest. A necessidade da arte. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1973.


LESSA, Sérgio. A Ontologia de Lukács. Maceió: EDUFAL, 1996. (Série Didática – Edufal, 2)

LUKÁCS, Gyorgy. Para uma ontologia do ser social 2. Trad. Nélio Schneider, Ivo Tonet, Ronaldo Vielmi Fortes. 1 ed. São Paulo: Boitempo, 2013.


MÉSZÁROS, István. MARX: A Teoria da Alienação. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981.


SANFELICE, José Luis. Da escola estatal burguesa à escola democrática e popular: considerações historiográficas. In: LOMBARDI, José Claudinei; SAVIANI, Dermeval; NASCIMENTOS, Maria Isabel Moura (orgs). A Escola Pública no Brasil – História e Historiografia. Campinas, SP: Autores Associados: HISTEDBR, 2005. (Coleção Memória da Educação)


TONET, Ivo. Educação contra o capital. 2 ed. rev. ampl. São Paulo: Instituto Lukács, 2012.


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v.17, nº 33, mai-ago (2019) ISSN: 1808-799 X


CAPITALISMO DEPENDENTE, CONSERVADORISMO E EDUCAÇÃO: UMA ANÁLISE DOS ATAQUES REACIONÁRIOS À EDUCAÇÃO BRASILEIRA.1


Matheus Rufino Castro2


Resumo


Este estudo almeja investigar o processo de crescimento do conservadorismo no Brasil em sua relação com a crise do capitalismo, e os ataques promovidos contra a educação. A dinâmica da luta classes em uma sociedade dependente potencializa o autoritarismo sistêmico, que, no campo educacional, se materializa em projetos reacionários, que se amoldam aos interesses do capital, material e ideologicamente. Assim, por se tornar um campo central da disputa de classes, um dos maiores polos de resistência da classe trabalhadora, assim como campo de difusão dos interesses e valores da classe dominante, a educação é alvo de uma série de ataques reacionários.

Palavras-chave: capitalismo dependente, conservadorismo e educação.


CAPITALISMO DEPENDIENTE, CONSERVADURISMO Y EDUCACIÓN: UN ANÁLISIS DE LOS ATAQUES REACCIONARIOS A LA EDUCACIÓN BRASILEÑA


Resumen

Este estudio desea investigar el proceso de crecimiento del conservadurismo en Brasil en su relación con la crisis del capitalismo que vivimos, y los ataques promovidos contra la educación. La dinámica de la lucha de clases expande el autoritarismo sistémico que en el campo educativo se materializa en proyectos que se adaptan a los intereses del capital, de forma material e ideológica. Siendo así, por convertirse en un campo central de la disputa de clases, uno de los mayores polos de resistencia de la clase trabajadora, así como el campo de difusión de los intereses y valores de la clase dominante, la educación es objeto de una serie de ataques reaccionarios.

Palabras-clave: capitalismo dependiente, conservadurismo y educación.


DEPENDENT CAPITALISM, CONSERVATISM AND EDUCATION: AN ANALYSIS OF THE REACTIONARY ATTACKS TO BRAZILIAN EDUCATION


Abstract

This study aims to investigate the growth proccess of conservatism in Brazil and it relationship with the capitalismo crisis we are experiencing, and the attacks promoted against the education. This struggle class dynamics potentiate the systemic authoritarianism, that, in the educational field, materialize projects that fit together to the interests of the capital, material and ideologically. So, for becoming a central field of classes dispute, one of the greatest working class resistance poles, even as diffusion field of the interests and values from dominant class, the education becomes target of the reactionary attacks.

Key-words: Dependent capitalismo. Conservatism. Education.



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1Artigo recebido em 02/04/19. Primeira Avaliação em 17/04/19. Segunda avaliação em 02/05/19. Terceira avaliação em 30/05/19. Aprovado em 06/06/19. Publicado em 04/07/2019. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.17i33.p29379.

2 Professor de Educação Física do Colégio Pedro II. Mestre em Educação/UFF; Doutorando em Educação/UERJ. Email: matheusefufrj@hotmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1615-8289



Introdução


Desde os protestos de Junho e Julho de 2013, doravante denominados “Jornadas de Junho e Julho de 2013”, é possível observar um grande crescimento do conservadorismo no país e sua influência nos debates políticos, sociais e econômicos aumentando em grande escala. Nas “Jornadas de 2013”, apesar de ter elementos importantes do ponto de vista da classe trabalhadora, como a denúncia da mercadorização das cidades, em especial da mobilidade urbana, o estopim do processo e a crítica aos gastos com os megaeventos esportivos em detrimento dos serviços públicos, também houve uma captura das pautas e do sentimento de indignação dos sujeitos pela burguesia, ancorada pelos grandes conglomerados midiáticos, colocando como pauta central do movimento a denúncia da corrupção, associada à esquerda por conta do governo do Partido dos Trabalhadores, fomentando um sentimento de anticomunismo personificado no antipetismo.

Contudo, a situação que vivenciamos, com a ascensão política, inclusive no campo eleitoral, de Jair Bolsonaro, de perfil extremamente autoritário e assumidamente antipopular, contrário aos direitos sociais duramente conquistados pelos segmentos historicamente oprimidos: mulheres, população LGBT, população negra, articulado com o aumento do desemprego, da violência urbana, da desigualdade social, nos mostra que esse crescimento do pensamento conservador só pode ser compreendido mediante uma análise das mudanças na realidade que vivemos. Amparados no materialismo histórico e dialético, buscaremos justamente chegar à essência de nosso objetivo neste estudo, o avanço do conservadorismo na sociedade, e, por conseguinte, na educação, realizando uma crítica de sua relação com a nossa condição de capitalismo dependente, e o período de crise que vivemos.

Para tanto, organizamos este trabalho da seguinte maneira: a compreensão do que é o conservadorismo e a sua relação com a formação da subjetividade dos sujeitos no capitalismo; a dinâmica interna da luta de classes no Brasil, o desenvolvimento dependente e o crescimento do conservadorismo no momento de crise; o papel que a educação cumpre no capitalismo dependente, e os ataques reacionários, em especial o projeto Escola Sem Partido como a sua síntese.

A concepção de mundo conservadora e a formação da subjetividade


De acordo com a perspectiva de Lukács (2013), o ser humano é um ser social, que se forma a partir de sua relação com a realidade e com os demais sujeitos, sobretudo, a partir do trabalho. O ser social é um ser que responde à realidade concreta, ou seja, as decisões tomadas no plano subjetivo/individual são respostas que esses sujeitos dão aos problemas colocados pela realidade objetiva, o que faz com que essas respostas, ainda que ocorram subjetivamente, tenham uma base objetiva. “O processo social real, do qual emergem tanto o pôr do fim quanto a descoberta e a aplicação dos meios, é o que determina – delimitando-o concretamente

O movimento data de 2004, mas nunca obteve qualquer importância nos debates educacionais, só assumindo alguma relevância no período pós-crise, em especial a partir das Jornadas de 2013. Isso só se dá, quando de maneira oportuna/oportunista Miguel Nagib busca articular a sua luta contra a perspectiva de esquerda às questões de gênero e sexualidade, angariando para o seu movimento as

parcelas mais conservadoras da sociedade e assumindo uma crescente importância nos debates educacionais.


No momento em que a “ideologia de gênero” se sobrepõe à “doutrinação marxista”, o discurso do MESP dá outra guinada. A defesa de uma educação “neutra”, que era predominante até então, cede espaço à noção da primazia da família sobre a escola. A reivindicação é impedir que professoras e professores transmitam, em sala de aula, qualquer conteúdo que seja contrário aos valores prezados pelos pais. O foco principal é a “ideologia de gênero”, mas a regra contempla também as posições políticas sobre outras questões e mesmo a teoria da evolução das espécies ou o heliocentrismo. Se as escolas privadas poderiam incluir cláusulas contratuais que garantissem a possibilidade de apresentação de determinados temas em sala de aula, as públicas teriam que se curvar aos vetos de tantos pais de alunos quantos quisessem se aproveitar da prerrogativa (MIGUEL, 2016, p. 601).


O ESP se converte então numa verdadeira cruzada que incorre na culpabilização dos professores pelos insucessos da educação pública, ignorando completamente as questões atinentes às condições de estudo e trabalho, o alvo do ESP e de seu fundador são os professores, acusados de doutrinar os seus alunos. “A pretexto de transmitir aos alunos uma “visão crítica” da realidade, um exército organizado de militantes travestidos de professores prevalecesse da liberdade de cátedra e da cortina de segredo das salas de aula para impingir-lhes a sua própria visão de mundo” (NAGIB, s.d., s.p.).

Essa articulação logo se capilariza de maneira exponencial com grande apoio em segmentos religiosos e também no parlamento, sendo em 2014, a primeira apresentação de um Projeto de Lei com o teor do Escola Sem Partido, “pelo deputado estadual Flávio Bolsonaro (PSC) na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, a partir de modelo elaborado por Nagib. [...] No mesmo ano, no município do Rio de Janeiro, o vereador Carlos Bolsonaro (PSC) apresentou projeto de lei com o mesmo teor do seu irmão, o deputado” (CUNHA, s.d., p. 35).

Os segmentos de direita vislumbrando os ganhos políticos junto ao eleitorado conservador embarcam na onda do Escola Sem Partido, o que faz com que o Projeto assuma um grande vulto com grande apoio parlamentar, sendo apresentado em centenas de municípios, diversos estados e também no Senado e no Congresso. Isso se materializa no próprio site do Escola Sem Partido que possui uma aba específica para que se possa imprimir o Projeto de Lei base, elaborado por Nagib, preparado

para a apresentação nas mais diversas instâncias, demonstrando a grande organização e capilaridade do movimento.

Ignorando o seu próprio argumento de neutralidade política, vemos no site do ESP o apoio a vários candidatos nas eleições que se afinizam com as suas propostas. Atualmente, há um site de ampla divulgação do ideário do movimento, em que é possível encontrar até mesmo os candidatos às eleições que apoiam as posições do ESP, além de também possuir “espaço para relatar supostos casos de ‘doutrinação político-ideológica em sala de aula’, ter acesso a instrumentos de denúncia e materiais de divulgação do movimento” (SILVA, FERREIRA, VIEIRA, 2017, p. 52).

No PL preparado para apresentação em nível federal, há o seguinte texto:


Art. 2º - II: neutralidade política, ideológica e religiosa do Estado; VIII: direito dos pais sobre a educação religiosa e moral dos seus filhos, assegurado pela Convenção Americana sobre Direitos Humanos; Art. 3º. O Poder Público não se imiscuirá na orientação sexual dos estudantes nem permitirá qualquer prática capaz de comprometer o desenvolvimento de sua personalidade em harmonia com a respectiva identidade biológica de sexo, sendo vedada, especialmente, a aplicação dos postulados da teoria ou ideologia de gênero; Art. 4º. No exercício de suas funções, o professor: I -não se aproveitará da audiência cativa dos alunos, para promover os seus próprios interesses, opiniões, concepções ou preferências ideológicas, religiosas, morais, políticas e partidárias; II - não favorecerá nem prejudicará ou constrangerá os alunos em razão de suas convicções políticas, ideológicas, morais ou religiosas, ou da falta delas; III - não fará propaganda políticopartidária em sala de aula nem incitará seus alunos a participar de manifestações, atos públicos e passeatas; V - respeitará o direito dos pais dos alunos a que seus filhos recebam a educação religiosa e moral que esteja de acordo com as suas próprias convicções (ESP, s.d.a., s.p.).


Assim, a proposição do ESP articula em seu texto elementos nítidos de classe como a discussão de eventos políticos, o tratamento de atos e reivindicações relativos aos interesses dos sujeitos, com o combate ao que se denominou “ideologia de gênero”, que, na verdade, corresponde à luta pela igualdade de gênero e de respeito à diversidade sexual. O professor deve seguir o padrão heteronormativo, base da família nuclear burguesa, sob risco de punição, denúncia, processo, etc., caso, haja qualquer defesa em sentido contrário, inclusive em uma situação de agressão/constrangimento de alunos que não se enquadrem nesse perfil, se constituiria uma atividade doutrinária.

Há cerca de sete PLs relativos à doutrinação nas escolas tramitando no Congresso. “O PL 7180/2014 e o PL 7181/2014 são, ambos, de autoria do deputado baiano Erivelton Santana (hoje no PEN, mas filiado ao PSC quando apresentou o projeto). Ligado à Assembleia de Deus, ele é integrante da Frente Parlamentar Evangélica” (MIGUEL, 2016, p. 604). O teor dos PLs é o mesmo, soberania da família no que diz respeito à educação moral, ensino de valores, em que a escola só pode se imiscuir quando for para reafirmar os valores presentes nas famílias. É um veto aos termos gênero e orientação sexual, impedindo que uma série de estudos do campo da psicologia, sociologia, história, filosofia, consigam chegar aos sujeitos, buscando obstaculizar qualquer tipo de crítica à naturalização dos papeis sexuais, que, por sua vez, implicam em um impedimento do combate à violência de gênero, do feminicídio, da homofobia.

Além disso, o site do ESP também conta com um espaço para a realização de denúncias de professores que doutrinam os seus alunos, um espaço para denúncias anônimas que nem provas são exigidas para que as denúncias sejam acatadas, instaurando-se um verdadeiro clima de desconfiança nos sujeitos envolvidos no processo educativo. O doutrinador é definido a partir das seguintes características:


se desvia frequentemente da matéria objeto da disciplina para assuntos relacionados ao noticiário político ou internacional; adota ou indica livros, publicações e autores identificados com determinada corrente ideológica; alicia alunos para participar de manifestações, atos públicos, passeatas, etc.; não só não esconde, como divulga e faz propaganda de suas preferências e antipatias políticas e ideológicas; utiliza-se da função para propagar ideias e juízos de valor incompatíveis com os sentimentos morais e religiosos dos alunos, constrangendo-os por não partilharem das mesmas ideias e juízos (ESP, s.d.b).


O professor, então, que trabalha temáticas mais amplas, não esconde suas posições, aborda ideias contrárias às professadas no seio familiar e religioso do aluno se constituiria em um doutrinador de jovens e crianças.

Ao advogar a neutralidade, o projeto se contrapõe necessariamente aos valores associados à esquerda e àquilo que não é considerado tradicional ou natural de acordo com as diversas correntes religiosas, faz parte, do ataque ideológico que MÉSZÁROS (2012) nos mostra de atribuir negativamente o sentido de ideológico a tudo aquilo que for crítico à ordem em vigor e os seus valores. Isso faz ainda mais sentido em uma dinâmica de classes instável como a nossa, marcada pela agudização

dos problemas do capitalismo, em que mesmo as manifestações mais superficiais de crítica ao sistema, ainda mais durante uma crise como a que enfrentamos, se torna uma ameaça. O caráter de classe se encontra presente justamente por buscar evitar qualquer tipo de crítica possível, tendo em vista o protagonismo que a juventude vem tendo nas últimas lutas sociais, o movimento estudantil sobretudo, com as ocupações de escolas.

A promoção da despolitização do espaço escolar é uma tentativa de tentar evitar a qualquer custo que grande parte da classe trabalhadora que não tem acesso a conteúdos próprios de seu interesse de classe, apenas aos produtos ofertados pelos grandes conglomerados midiáticos, possam ter minimamente um espaço de reflexão e organização da classe. “Despolitização refere-se à impossibilidade de as grandes massas trabalhadoras participarem dos principais direcionamentos e definições dos rumos acerca da política, economia e direitos sociais no país” (GONÇALVES, PUCCINELLI, 2017, p. 77).

Assim, os movimentos reacionários na educação, especialmente o ESP, tem como objetivo fundamental a criminalização e cerceamento do trabalho docente, ou seja, é um projeto de classe muito bem definido, que tem como objetivo central a manutenção dos elementos ideológicos correspondentes à necessidade de acumulação do capital.


É aí que o fundamentalismo e o ultraliberalismo se encontram: de diferentes maneiras, ambos veem o Estado como o inimigo a ser combatido. E ele é esse inimigo exatamente porque, nele, vigoram – ainda que de maneira muito insuficiente – regras de igualdade que ameaçam as hierarquias que se reproduzem seja nas relações de mercado, seja na esfera doméstica. O slogan da educação “neutra” esconde a compreensão de que a escola precisa ser neutralizada, para que a autoridade que os pais exercem sobre os filhos possa ser absoluta (MIGUEL, 2016, p. 617).


À escola restaria apenas um papel de atuar em conformidade com os princípios e valores da ordem do capital. Qualquer mínima contradição de classes ou possibilidade crítica deve ser calada em virtude tanto da crise do capitalismo, o que, já implicaria em uma redução dos espaços possíveis de questionamento da ordem pelo capital, quanto da própria condição de dependência que faz com que a escola possua ainda mais limites para a sua atividade crítica.

Todo esse processo persecutório e de criminalização dos docentes busca engendrar um novo princípio da realidade em que, envoltos pelo medo do

constrangimento, da judicialização, inclusive da demissão que resultaria na impossibilidade de garantir a sua sobrevivência, se consolide um estado de passividade diante das problemáticas sociais e das opressões mais corriqueiras. Por mais que ainda não haja uma aprovação do PL relativo ao Escola Sem Partido, um de seus objetivos já foi alcançado que foi a construção de um clima de vigilância permanente e desconfiança entre alunos, professores, suas famílias, mas também entre professores entre si, que passam inclusive no âmbito escolar fiscalizar o trabalho de seus colegas.

Sendo assim, diante do risco inerente de sofrer qualquer tipo de constrangimento, muitos docentes acabam por consolidar um novo princípio de realidade em que as suas alternativas concretas se baseiam nos aspectos mais imediatos de sua sobrevivência material e espiritual, como o medo de denúncias, de difamações, perseguições, etc. Por outro lado, no que diz respeito ao conjunto da sociedade, há justamente o objetivo de desacreditar o Estado, a educação pública, assim como tudo aquilo que é público, fomentando as condições subjetivas para a promoção de um amplo processo de privatizações e abertura de novos espaços de acumulação de capital. Nos sujeitos, é a tentativa de formação de um princípio da realidade capturado por falsas promessas ideológicas de liberdade e respeito aos valores tradicionais, em que o desprazer seria ver seus filhos sendo “doutrinados”, tornando os professores seus inimigos, em especial os professores de “esquerda”.


Conclusão


O conjunto dos projetos educacionais do governo Temer, em especial o Projeto Escola Sem Partido, pode ser visto como a síntese da ofensiva liberal-conservadora do capital, pois, busca desarmar os trabalhadores docentes de sua condição de classe, desarticular as mínimas possibilidades de formação crítica, de negação da ordem do capital, mesmo que bastante superficialmente, assim como uma escalada conservadora que busca reafirmar os papeis de gênero e da família nuclear heteronormativo a despeito das necessidades de segmentos historicamente oprimidos da população. Isso é ainda mais evidente em um país como o nosso, com índices absurdos de feminicídio e de assassinatos da população LGBT.

O golpe que resultou no impedimento de Dilma Roussef fortaleceu ainda mais esses segmentos perante à sociedade abrindo a margem necessária para que um candidato assumidamente machista, homofóbico e racista se tornasse Presidente da República, podendo suscitar a abertura de um novo ciclo abertamente autoritário no país. A educação não passaria incólume nesse processo, já que Jair Bolsonaro aponta como caminhos a privatização dos serviços públicos e a militarização da educação como forma de combater quaisquer possibilidades críticas. É um ataque ao conjunto da classe trabalhadora, mas que, como sempre, com consequências ainda mais funestas para os grupos historicamente oprimidos.

Dessa forma, ocorre a reafirmação da condição de dependência do país em novas bases, inclusive no campo cultural mediante a promoção do obscurantismo e da negação de qualquer perspectiva progressista, ampliando ainda mais a nossa condição de heteronomia social, política, econômica e cultural e o atraso/retrocesso civilizatório. As mudanças educacionais teriam por consequência amplificar a situação de desigualdade da classe trabalhadora em relação à burguesia e suas camadas mais próximas, uma desigualdade não apenas financeira mas de acesso aos recursos materiais e simbólicos produzidos pela humanidade, possuindo como consequência um princípio de realidade que se choca ainda mais com a realidade objetiva, mas que deve ser contido mediante o aumento do autoritarismo e da escala repressiva, vide a defesa da truculência e do autoritarismo das forças armadas e do poder judiciário.


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TESE DE DOUTORADO1


SILVA, Amanda Moreira. A precarização do trabalho docente no século XXI: o precariado professoral e o professorado estável-formal sob a lógica privatista empresarial nas redes públicas brasileiras. 2018. 395p. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, 20182.


Resumo expandido


O tema da precarização do trabalho é de grande importância em nosso país, especialmente nos dias de hoje em que emerge uma nova realidade inserida na nova complexidade do capitalismo. Frente a um futuro incerto, que se constrói num cenário perverso, marcado por um golpe jurídico-parlamentar, o fortalecimento de forças sociais ultraconservadoras, um duro “ajuste fiscal” e a chegada da extrema-direita ao poder, não há como não pensarmos nas crescentes possibilidades de radicalização da exploração capitalista e da precarização das relações de trabalho.

A recente crise econômica, política e institucional que se abateu sobre o país nos últimos anos teve como alvo a intensificação das expropriações dos trabalhadores, disseminando práticas laborais totalmente desprovidas de direitos, haja vista a tramitação da Reforma da previdência, a aprovação da Reforma trabalhista e Lei da Terceirização, todas justificadas como inexoráveis, cujas mudanças apresentadas preveem desde o agravamento da flexibilização da jornada de trabalho, passando pela liberação irrestrita da terceirização, o trabalho intermitente e o incentivo à pejotização. Somam-se a isso novas formas de trabalho que também emergiram nesse período, em que os trabalhadores vendem sua força de trabalho desprovida de qualquer


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1 Resumo recebido em 14/05/2019. Aprovado em 01/06/2019, pelos editores. Publicado em 04/07/2019.

DOI: https://doi.org/10.22409/tn.17i33.p29380

2 Doutora em Educação pela UFRJ. Professora Adjunta da UERJ junto ao Instituto de Aplicação – CAp- UERJ. E-mail: amandamoreira.uerj@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9416-0619.

A tese foi orientada pela Profª Drª Vânia Cardoso da Motta, defendida em 12 de dezembro de 2018. Link da tese completa: https://ppge.educacao.ufrj.br/teses2018/tAmanda%20Moreira%20da%20Silva.pdf

contrato ou direito, a exemplo da denominada economia do compartilhamento materializada nos trabalhos vinculados aos aplicativos como o da empresa Uber.

Essas metamorfoses no mundo do trabalho marcam uma fase do capitalismo ainda mais agressiva, pautada pela desregulamentação das relações de trabalho que vem se expandindo seja na periferia do sistema seja nos países centrais, por meio de formas de precarização que têm se alastrado, inclusive, para o setor público, atentando contra a sociedade, contra os direitos sociais e trabalhistas. Por isso, ganham relevância central e evidenciam a urgência de pesquisas que tratem do trabalho docente de maneira a permitir o deciframento de suas múltiplas formas e tendências, pois as condições contemporâneas, nas quais ondas mais intensas e violentas de expropriação do trabalho surgem e se intensificam, nos colocam diante de uma situação histórica inédita também para o trabalhador docente.

Nesse contexto, este estudo se coloca com uma razão: o esforço de compreender o trabalho docente na realidade brasileira das últimas décadas do século XX e início deste novo milênio. Portanto, esta pesquisa é motivada pela necessidade de compreender os dilemas do trabalho docente vislumbrados na atual conjuntura brasileira – uma economia apartada das necessidades internas, marcada pela restrição sistemática aos trabalhadores no acesso a direitos sociais fundamentais e um poder de Estado impermeável às necessidades das amplas maiorias.

Partindo disso, compreendemos o fenômeno em questão como um movimento de desqualificação de um determinado modo de realizar o trabalho docente com vistas a sua requalificação em outra direção e sentido. Assim, a questão central de estudo nesta tese é: que elementos caracterizam as mudanças na precarização do trabalho docente nas redes públicas no século XXI?

O marco temporal adotado na pesquisa compreende o período que se estende do final dos anos de 1990 até a contemporaneidade. O recorte se justifica no interesse em mapear um processo que tem suas raízes no final do século passado, cujos efeitos atravessaram vários governos; se mantendo com a chegada do Partido dos Trabalhadores ao governo federal e encontrando desfecho nos anos pós-golpe de 2016. Cabe destacar que no âmbito da educação, consideramos que todo o processo gerado a partir das Reformas educacionais desde a década de 1990, leva a uma precarização que tem íntima relação com a crescente presença do empresariado na educação pública brasileira.

Interessam neste estudo, então, a presença das parcerias público-privadas, junto aos critérios empresariais de gestão da rede pública, e a indicação de que através desses novos mecanismos a classe dominante pretende aprofundar o controle sobre a gerência do processo de trabalho. Ou seja, importa entender de que forma as reformas na educação básica brasileira tratam de conformar o trabalho educativo à criação de um determinado tipo de trabalhador adequado a essa reestruturação e como esse processo implica no trabalho do professor, a fim de transformá-lo num profissional flexível.

Foram abordadas ainda as especificidades da questão educacional no Brasil, em face de sua posição historicamente subordinada nas relações capitalistas, e foram problematizadas as implicações dessas especificidades em termos do trabalho docente. Trata-se de estudo de natureza bibliográfica e empírica, em que buscamos compreender os vínculos e os nós que atam a relação entre trabalho e educação em nossa particularidade histórica, em que a superexploração do trabalho, a nosso ver, assume destacada e essencial centralidade.

A tese aqui defendida é que há uma precarização de novo tipo do trabalho docente nas redes públicas de educação básica (municipais e estaduais) em meio às metamorfoses do campo educacional que vêm constituindo o que denominamos de:

i) precariado professoral (um novo contingente do professorado, cujas relações de trabalho estão mais próximas do trabalho por tempo indeterminado e intermitente, modalidades que não param de se expandir); ii) professorado estável-formal (professores concursados que passam por diversas formas de precarização) e iii) a busca dos setores privatistas empresariais pela (con)formação de um professorado subjetivamente adaptado (professores concursados que atuam em escolas com parcerias público-privadas buscando melhorar suas condições de trabalho).

O objetivo geral desta pesquisa foi compreender a remodelagem das várias dimensões da precarização do trabalho docente a partir da apreensão das profundas transformações do mundo do trabalho no século XXI e a análise de suas particularidades na sociedade brasileira. Assim, investigamos três movimentos que, a nosso ver, compõem as múltiplas dimensões da precarização do trabalho docente em nossos tempos. São eles: i) o impacto das condições contratuais de trabalho por tempo determinado, sem plenos direitos, sob as quais os docentes das redes públicas municipais e estaduais estão inseridos, e também algumas tendências de

precarização (terceirização, pejotização e uberização) surgidas nos últimos anos (2016-2017); ii) as formas de precarização que atingem o trabalhador docente estável do setor público advindas da extensão e intensificação da jornada de trabalho, assim como da ausência de vínculos institucionais que geram uma lotação flexível e uma constante instabilidade em relação ao local de trabalho no qual os docentes atuam; e iii) a estratificação dos docentes da rede pública, com a formação de uma camada de professores que passa a atuar junto a programas privatistas empresariais buscando melhores condições de trabalho e remuneração.

Em relação ao segundo e terceiro movimento, utilizamos como campo empírico a rede pública estadual de ensino do Rio de Janeiro no processo privatista empresarial no curso de dez anos (2008 a 2017), verificando as condições de trabalho dos docentes que atuam no ensino regular e também dos que passaram a atuar junto aos programas educacionais com parcerias público-privadas. Chamou-nos a atenção para a necessidade de entender o interesse das empresas em desenvolver projetos em parcerias com as escolas públicas e como o professorado se insere em meio ao jogo de interesses dessas frações de classe.

Para isso foi resgatado o processo gerencialista existente nesta rede e também foi feito o levantamento dos projetos privatistas empresariais desenvolvidos neste mesmo período, buscando assim identificar as intervenções profundas no processo de trabalho docente. Assim, sob o olhar materialista histórico dialético, amparado no referencial teórico metodológico de Estado ampliado, de Antonio Gramsci, analisamos o trabalho flexível advindo da entrada do empresariado na área educacional, por meio de suas organizações sociais constituídas legalmente de caráter privado e de interesse público e das parcerias público-privadas, à luz da formação econômica social e política brasileira e seu desenvolvimento dependente.

Cabe destacar que este estudo é marcado por uma busca e por uma esperança de identificar e interpretar não somente os fatores de transformação no que tange ao mundo do trabalho e ao trabalho docente no século XXI – mecanismos pelos quais tornou-se mais fragmentado, precário e vem ganhando novas configurações –, mas também os fatores de resistência, pois, para poder dar razão da totalidade que os processos em apreço constituem, têm de incluir no seu seio as múltiplas determinações e as contradições que os permeiam. Portanto, ao apresentarmos os três movimentos anteriormente descritos, identificamos uma precarização de novo tipo

que hoje atinge os docentes brasileiros, conhecendo as estratégias de disseminação e cooptação, mas também de enfrentamento à produção de consensos na disputa pela educação básica brasileira.


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DISSERTAÇÃO DE MESTRADO1


XAVIER, Michelle Tinoco. Pescadoras: reflexões sobre trabalho e resistência feminina na pesca artesanal. 2019. 126p. Dissertação (Mestrado em Serviço Social e Desenvolvimento Regional) - Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, 2019. 2


Resumo expandido


A pesquisa de dissertação sobre a qual versa esse resumo foi realizada no curso de mestrado do PPGSSDR-UFF entre os anos de 2018 e 2019. Visa entender as transformações referentes às práticas profissionais, domésticas e relacionais das mulheres pesqueiras que moram na Comunidade do Jequiá (Colônia Z-10), na Ilha do Governador, bairro do Rio de Janeiro (RJ) assim como suas principais demandas e expectativas, tratando além de seu trabalho produtivo e reprodutivo, como elas percebem e usam o espaço que ocupam.

Tratamos aqui das transformações sociais sofridas por essa comunidade e modos de vida de pescadores(as) locais frente aos impasses impostos pelo “desenvolvimento” capitalista à pesca. Essas transformações decorrem tanto dos investimentos na modernização da pesca através de políticas públicas, como pelas relações desiguais de poder que o Estado e a indústria petrolífera exercem sobre o território, na apropriação dos recursos naturais.

Para traçar um “diagnóstico” dos conflitos, enfocamos as memórias dessas mulheres sobre a atividade pesqueira. Estudamos suas formas de existência e resistência na produção do espaço e reprodução da vida nesta comunidade, a partir de recorte temporal que se assenta sobre três eventos significativos para aqueles que vivenciaram seu momento anterior e posterior: a implementação da Área de Proteção Ambiental e Recuperação Urbana (APARU) do Jequiá em 1993, o controle


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1 Resumo recebido em 28/03/2019. Aprovado em 25/04/2019, pelos editores. Publicado em 04/07/2019.

DOI: https://doi.org/10.22409/tn.17i33.p29381.

2 Assistente Social. Mestre em Serviço Social e Desenvolvimento Regional pelo PPGSSDR/UFF. E-mail: michelle_tinocoo@hotmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4326-5028.

do local transferido da Marinha do Brasil para a Prefeitura em 1994, e mais tarde, o derramamento de óleo da Petróleo Brasileiro S/A (PETROBRAS) na Baía de Guanabara, no ano 2000, o que praticamente inviabilizou o pescado no local.

Com isso, evidenciamos a lógica que associa a dinâmica da acumulação capitalista à distribuição discriminatória dos riscos ambientais, como propõe Acselrad (2002), expondo que as injustiças ambientais são decorrentes da natureza inseparável das opressões de raça, gênero e classe.

Nossa hipótese considera que o trabalho dessas mulheres é fundamental para manutenção do modo de vida e memória pesqueira e configura uma forma de organizar o social, econômico, ecológico e cosmológico que está em tensão com a produção de conhecimento pautada na racionalidade moderna capitalista, racista e patriarcal (LUGONES, 2014).

Percebemos que essas mulheres vivenciam redirecionamentos de suas atividades e reconstruções do seu sentido. Essas refuncionalizações advêm das mudanças estruturais na acumulação capitalista e dos impactos predatórios sobre o ambiente e a vida relacionados à dinâmica endógena do capital (MÉSZAROS, 2009). Portanto, consideramos que a invisibilidade sobre os trabalhos e as formas de existência e de resistências dessas mulheres é produzida como violação nessa sociabilidade pelo próprio Estado – constituído na Modernidade como patriarcal, mercantil e racista.

Para problematizar as particularidades que o trabalho assume nessa sociabilidade para essas mulheres, que são pretas, indígenas e oriundas de povos tradicionais em geral, refletimos sobre o escravismo colonial como um elemento constitutivo da formação das classes no Brasil.

A leitura em torno das relações sociais de sexo e de raça expõe que o trabalho das mulheres pesqueiras não é reconhecido como tal e tratado de forma subsidiária ao trabalho dos pescadores. Para compreender a atividade em sua totalidade, é necessário então resgatar as especificidades da condição feminina no “setor”, frequentemente desconsideradas, desqualificadas e não contabilizadas em estudos e dados oficiais. Isso porque quando se faz referência à pesca, a principal atividade reconhecida como própria de sua categoria de trabalhadores é a pesca em alto mar, geralmente realizada por homens - construção que reitera a demonstração de Beauvoir (1960) sobre a alteridade realizar-se no feminino.

Ressaltamos que sociabilidade burguesa conta com o racismo e o patriarcado enquanto formas estruturais de dominação, invisibilizando os sujeitos na sua diversidade. Como indica Martins (2014), para organizar a dominação simultânea das oligarquias econômicas e dos colonizadores, dentro e fora da Europa, é fundamental a classificação do mundo em dualismos opostos e hierarquizados.

Nesse sentido, como primeira categoria social da modernidade, segundo Quijano (2006), é fundada a ideia de raça, naturalizando relações de poder que impõem aos povos que possuíam diversas autodeterminações, a identidade racializada de “índios” e “negros” enquanto inferiores ao “branco” que os subjuga. Assim como é forjado o patriarcado, um “projeto de dominação-exploração da categoria social homens” (SAFIOTTI, 2001, p.115) em relação às mulheres, auxiliado pela violência.

Na pesquisa, ao darmos enfoque à divisão social, sexual e racial do trabalho, trazendo um elemento importante para pensarmos o grau de exposição à exploração e opressão vivenciado pelas mulheres nessa sociabilidade, precisamos pôr em relevo a definição da categoria “trabalho” nas diferentes formas em que é compreendida e no seu deslocamento e centralidade que adquire na modernidade – e especificamente em um país periférico, de marcas escravistas. Consideramos importante entender como essa construção traz determinada concepção de mundo, de ser humano e de natureza, expressos a partir de um lugar – a Europa, e suas bases cristãs. É no século XIX que Marx vai rediscutir o sentido e a especificidade do trabalho no âmbito da sociedade burguesa.

Tratamos também dessa categoria pela perspectiva das diferentes contribuições feministas a respeito, que são fundamentais para complexificar sua compreensão.

Os movimentos feministas dos anos 1970, preocupados em analisar o trabalho doméstico não remunerado, majoritariamente realizado por mulheres, também questionam o conceito marxiano de trabalho, problematizando a dualidade entre trabalho produtivo/improdutivo e apontando a importância da reprodução da força de trabalho para a acumulação de capital. Dessa forma, indicam que a divisão sexual do trabalho, que sob a ação do patriarcado naturaliza que as tarefas domésticas sejam realizadas exclusivamente pelas mulheres, mantém sua invisibilidade para a sustentação do trabalho dito produtivo.

Porém, ao tratarmos do trabalho feminino nas Américas, é preciso nos atentarmos para a condição das mulheres “negras”, que o vivenciaram sob a forma da subjugação violenta da escravidão, destoando da imagem de mulher frágil, dócil e cuidadora do lar atribuída às mulheres brancas, como trata Davis (2013).

Historicizamos e debatemos a categoria trabalho expondo suas determinações violentas numa sociabilidade anunciada como “civilizatória”, especialmente na América Latina.

Ao tratarmos da pesca artesanal, trabalho que não está vinculado diretamente aos mecanismos da economia industrial, destacamos que as teorias da modernização e desenvolvimento que reafirmam a oposição entre atraso/progresso, campo/cidade desenvolvido/subdesenvolvido, tornam as atividades correspondentes a populações tradicionais sinônimo do atraso que deve ser superado pelo progresso, com base na Europa e na sociedade norte-americana fortemente idealizada, como modelo universal a ser seguido.

A despeito das invisibilidades, opressões e contradições do desenvolvimento predatório capitalista, entendemos que essas mulheres constituem formas de resistência no território em relação aos seus modos de vida específicos, de acordo com a perspectiva de Lugones (2014, p.939):


[...]em vez de pensar o sistema global capitalista colonial como exitoso em todos os sentidos na destruição dos povos, relações, saberes e economias, quero pensar o processo sendo continuamente resistido e resistindo até hoje. E, desta maneira, quero pensar o/a colonizado/a tampouco como simplesmente imaginado/a e construído/a pelo colonizador e a colonialidade, de acordo com a imaginação colonial e as restrições da empreitada capitalista colonial, mas sim como um ser que começa a habitar um lócus fraturado, construído duplamente, que percebe duplamente, relaciona-se duplamente, onde os "lados" do lócus estão em tensão, e o próprio conflito informa ativamente a subjetividade do ente colonizado em relação múltipla.


Com base na abordagem da autora, que entende a resistência como a tensão entre a sujeitificação e subjetividade ativa, não pretendemos pensar a resistência e as formas de existência como um fim em si mesmo, mas como uma possibilidade de luta política. Nesta linha, a interpretação de histórias, rituais, manifestações de anseios e da produção de conhecimento sobre a pescaria é nosso principal recurso para compreender as “brechas” criadas pelas mulheres da comunidade contra as

investidas de mercantilização da pesca - que assolam de distintas formas as comunidades pesqueiras.

Assim, percebemos que a luta pelo reconhecimento das demandas da pesca não é somente por políticas públicas que contemplem os/as pescadores/as, mas por uma cultura política que os reconheça como sujeitos.


Referências


ACSELRAD, Henri. Justiça Ambiental e Construção Social do Risco. Desenvolvimento e Meio Ambiente, Ed. UFPR, Curitiba, v. 5, p. 49-60, 2002.


BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: fatos e mitos. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1960.


DAVIS, Angela. Mulher, Raça e Classe. Tradução Livre. Plataforma Gueto. 2013.


LUGONES, María. Rumo a um feminismo descolonial. Rev. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 22, n. 3, p. 935-952, 2014.


MARTINS, Paulo H. O ensaio sobre o dom de Marcel Mauss: um texto pioneiro da crítica decolonial. Sociologias, Porto Alegre, v. 36, n. 16, p. 22-41, 2014.


MÉSZÁROS, István. A Crise Estrutural do Capital. Trad. Francisco Raul Cornejo. São Paulo: Boitempo Editorial, 2009.


QUIJANO, Alberto. Os fantasmas da América Latina. Em: NOVAES, Adauto (org).

Oito visões da América Latina. São Paulo: SENAC, 2006, p. 49-85.


SAFFIOTTI, Heleieth I.B. Contribuições Feministas para o estudo da violência de gênero. Cadernos Pagu (16) 2001: p.115-136.


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v.17, nº 33, mai-ago (2019) ISSN: 1808-799 X


A COLEÇÃO DE ASTROJILDO PEREIRA NO AMORJ - ARQUIVO DE MEMÓRIA OPERÁRIA DO RIO DE JANEIRO-UFRJ1


Elina Pessanha2 Rodrigo Guedes3


O Arquivo de Memória Operária do Rio de Janeiro-AMORJ, fundado em 1987, é um núcleo de pesquisa e documentação voltado para a recuperação, registro e preservação do patrimônio material e imaterial referente à história do trabalho, dos trabalhadores e suas organizações. Partindo de uma perspectiva bastante abrangente, o AMORJ tem tentado cobrir as características de constituição e trajetória de diversos segmentos da classe trabalhadora, sua experiência de trabalho em diferentes ambientes, seus esforços de reprodução, suas manifestações culturais, suas várias formas de resistência e atuação política, além da história das instituições relacionadas ao mundo do trabalho. O AMORJ é vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

A coleção ASTROJILDO PEREIRA é uma das mais importantes fontes sobre as primeiras organizações operárias no Brasil, já que ele pertenceu ao movimento anarquista do início do século XX e foi um dos fundadores do Partido Comunista Brasileiro, em 1922. Dela fazem parte, além de jornais e revistas operários e sindicais, uma farta documentação sobre conferências de base e sobre reuniões do Comitê Central do PCB até l930. Destacam-se as correspondências enviadas e recebidas por Astrojildo Pereira de militantes, de dirigentes políticos e de intelectuais, assim como o seu trabalho de crítico literário, principalmente os estudos sobre Machado de Assis.


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1 Texto recebido em 28/03/2019. Aprovado em 25/04/2019, pelos editores. Publicado em 04/07/2019.

DOI: https://doi.org/10.22409/tn.17i33.p29382

2 Doutora em Ciências Sociais (USP), professora do IFCS/UFRJ, no Rio de Janeiro/RJ, Brasil. É pesquisadora do CNPq e coordenadora do AMORJ. E-mail: elina.pessanha@terra.com.br. ORCID: http://orcid.org/0000-0001-8443-1534.

3 Graduação em História (UFRJ), técnico-administrativo do IFCS/UFRJ, no Rio de Janeiro/RJ, Brasil. É supervisor técnico do AMORJ.

Sobre Astrojildo


Astrojildo Pereira Duarte Silva nasceu em Rio Bonito (RJ), em 1890. Foi historiador, sindicalista, crítico literário e jornalista. Já em Niterói, então capital do Estado do Rio de Janeiro, abandonou a escola na terceira série ginasial, em 1908, para trabalhar e estudar por conta própria. A educação formal esteve longe de entusiasmar Astrojildo. Em lugar dos bancos escolares, dedicou-se ao “autodidatismo arquiatabalhoado”, como gostava de dizer.

Em 1911, iniciou atividades na imprensa anarquista, experimentando e amadurecendo vivências importantes ao universo da militância política e intelectual. Astrojildo dirigiu e colaborou em diferentes periódicos: ABC, Barricada, O Clarim, Crônica Subversiva, Germinal, Guerra Social, A Plebe, Voz do Padeiro, entre outros. Participou, em 1913, da promoção do II Congresso Operário Brasileiro, engajando-se em campanha contra o militarismo e a guerra. Em 1917, no calor das rebeliões operárias que começaram em São Paulo e logo se espalharam por outros estados, inclusive o Rio de Janeiro, assumiu a direção do jornal O Debate, para o qual também colaborou o escritor Lima Barreto. Em 1918, sob o pseudônimo de Alex Pavel, escreveu A Revolução Russa e a Imprensa, um panfleto que ajuda a contextualizar o início de uma virada ideológica. Da experiência revolucionária russa, derivou o contato com a literatura marxista, afastando gradativamente Astrojildo do anarcossindicalismo. Neste processo, dirigiu os jornais Spartacus e Voz do Povo.

Apesar da convicção crescente sobre a necessidade de fundação de um partido operário e do apoio militante à Revolução Russa, Astrojildo tentou agir com cautela para não agravar as cisões na base do movimento operário e nos grupos dirigentes. A assimilação do marxismo impôs novas estratégias de mobilização e luta política que, na prática, dificultou a costura de consensos em torno de uma agenda unificada de ação. Pelas páginas d’A Vanguarda, O Internacional e, posteriormente, da revista Movimento Comunista, Astrojildo debateu criticamente a atuação dos anarquistas na condução das greves de 1917 a 1920, ao mesmo tempo em que militou pela unidade do movimento numa conjuntura de derrota e refluxo.

Participou, em 1922, da fundação do Partido Comunista do Brasil (PCB) e foi eleito secretário-geral de organização. Quando o PCB iniciou a publicação do jornal A Classe Operária, tornou-se, ao lado de Otávio Brandão, um de seus principais

redatores. Olhando a realidade nacional, o PCB viu na aliança com setores rebeldes da juventude militar uma possibilidade de amadurecer o processo revolucionário, ainda nos limites da democracia burguesa. Mirava-se o desenvolvimento das forças produtivas em oposição às oligarquias rurais. Para tanto, Astrojildo fez contato com Luis Carlos Prestes, em 1927, então exilado na Bolívia. À ocasião, entregou ao líder tenentista livros e folhetos. Foram os primeiros contatos de Prestes com a literatura marxista.

A orientação política do Partido, no entanto, sofreu mudanças significativas. Depois de uma temporada em Moscou, Astrojildo regressou ao Brasil, em 1930, com a orientação de mudar o arco de alianças e de conferir às direções partidárias um rosto mais operário e menos intelectual. O próprio Astrojildo foi alvo desse processo de proletarização, sendo afastado da secretaria geral. No ano seguinte, após breve período de atuação junto ao Comitê Regional de São Paulo, desligou-se do PCB. Os esforços para continuar na militância partidária não foram suficientes. Juntamente com seu grupo político, Astrojildo foi responsabilizado pelos problemas enfrentados pelo Partido. Decide retornar a Rio Bonito, dedicando parte do tempo ao comércio de bananas herdado do pai. Em 1935, apesar das dificuldades com editoras, conseguiu publicar seu primeiro livro: URSS, Itália e Brasil, que reuniu textos escritos entre 1929 e 1934. Longe da vida partidária, escreveu críticas literárias para o Diário de Notícias e colaborou em Diretrizes. Publicou Interpretações, em 1944, com destaque para o artigo Machado de Assis, Romancista do Segundo Reinado.

Em 1945, foi delegado do Estado do Rio ao I Congresso Brasileiro de Escritores, realizado em São Paulo, e um dos redatores da declaração de princípios do encontro, marcada por críticas à ditadura de Vargas. Ainda em 1945, quando o PCB foi legalizado, retornou ao Partido de maneira intensa. Dirigiu as revistas Literatura e Problemas da Paz e do Socialismo. Colaborou, ainda, com os periódicos Imprensa Popular, Novos Rumos e Fundamentos. Mas foi na revista Estudos Sociais que Astrojildo reviveu a experiência de intelectual e organizador político. Diante de divergências teóricas e conjunturais entre antigos quadros do PCB, Astrojildo abriu espaço para jovens intelectuais que se formaram longe do stalinismo, como Leandro Konder e Carlos Nelson Coutinho. Em 1962, publicou A formação do PCB, por conta dos 40 anos de vida do Partido.

Em outubro de 1964, foi preso pelo regime militar, acusado de fundar o PCB e de ter recrutado Luis Carlos Prestes para a militância comunista. Com problemas cardíacos, ficou recolhido no Hospital da Polícia Militar, no Rio de Janeiro. Foi posto em liberdade após três meses de reclusão, por força de um habeas-corpus. Morreu no Rio de Janeiro, em novembro de 1965.

Em 1979, o arquivo particular de Astrojildo, de grande valor para o estudo do movimento operário e sindical, foi enviado para o Arquivo Histórico do Movimento Operário Brasileiro (ASMOB), em Milão, Itália. Em 1993, a UFRJ adquire o acervo microfilmado. São 133 rolos, com cerca de 100.000 fotogramas, custodiados pelo Arquivo de Memória Operária do Rio de Janeiro (AMORJ).


O longo percurso do arquivo de Astrojildo Pereira


Após o golpe militar de 1964, um dos endereços visitados pelos agentes do DOPS foi o de Astrojildo Pereira. Levaram, do acervo pessoal do velho comunista, uma quantidade significativa de material considerado subversivo, como se ainda fosse necessário provar, dentro do contexto político do golpe, de que lado Astrojildo estaria e construiria sua trincheira. Acusado de fundar o PCB, Astrojildo ficou preso por 83 dias. Foi solto em janeiro de 1965, mesmo ano de sua morte.

A partir de então, deu-se início a um longo caminho pela preservação do arquivo de Astrojildo. Além de representar uma preciosa fonte de pesquisa e estudo, os documentos ali reunidos fazem parte da biografia de um homem que dedicou boa parte de seus 75 anos de vida a uma intensa militância política e intelectual. A repressão cerceou a liberdade do velho comunista e agora ameaçava a sua memória.

Em 1977, brasileiros resistentes à ditadura decidiram enviar o acervo para fora do país. Os olhos da ditadura eram vigilantes. Manter o acervo no Brasil representava um risco para os responsáveis pela guarda do material e para a própria integridade da documentação. Na sequência, pôs-se a caminho um arriscado traslado. O recém- criado ASMOB (Archivio Storico Del Movimento Operario Brasiliano), na Fundação Feltrinelli, em Milão, Itália, seria o seu destino. Sobre essa corajosa ação são valiosos os depoimentos das professoras Zuleide Faria de Melo, Dora Henrique da Costa e Marly Vianna, protagonistas na bem-sucedida tarefa de salvaguardar um arquivo tão importante para a memória dos trabalhadores e dos movimentos sociais no Brasil. A

este respeito, foi publicado em 2015 o livro Luta e Memória: o resgate de pessoas e de documentos das garras da ditadura, coordenado por Maria Ciavatta (Ciavatta, 2015).

Antes do retorno do arquivo original ao Brasil, onde foi acolhido pelo CEDEM da Universidade Estadual de São Paulo/UNESP, cópias em microfilmes do acervo do ASMOB, incluindo as referente à documentação de Astrogildo, foram recebidas por centros de documentação no país. Foi o que ocorreu com o Arquivo Edgard Leuenroth, da Universidade de Campinas, e mais tarde com o AMORJ, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Em 1993, a UFRJ adquire grande parte do acervo do ASMOB, compreendendo133 rolos de microfilmes, com cerca de 100.000 fotogramas. Esse material precioso, hoje em grande parte digitalizado, é frequentemente consultado por pesquisadores nacionais e estrangeiros, e serviu de base a vários estudos, livros, dissertações e teses.


Patrimônio insubstituível


Seria difícil escrever a história do movimento operário brasileiro e do PCB sem os livros e documentos colecionados por Astrojildo Pereira. Astrojildo viveu os últimos anos de vida em um sobrado na rua do Bispo, com paredes repletas de livros até o teto e de outros tantos documentos, incluindo revistas e jornais, salvaguardados em caixas de papelão. Verdadeiras preciosidades reunidas ao longo de uma existência dedicada à militância política e ao gosto pelas letras. Com o golpe empresarial-militar de 1964, foi preso e teve sua casa várias vezes invadida e saqueada por policiais. Pelo arbítrio da ditadura, muitos documentos foram rasurados ou desapareceram. No entanto, ainda foi possível preservar parte significativa do seu acervo pessoal. De 1917 a 1922, por exemplo, existem importantes fontes de estudo que testemunham o caminho percorrido, por frações da classe trabalhadora e por intelectuais, do anarcossindicalismo à opção pela militância socialista. Entre essas fontes, selecionamos para a revista Trabalho Necessário os seguintes periódicos: O Debate, O ABC, Spartacus e Movimento Comunista.


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Referências


CIAVATTA, Maria (coord). Luta e Memória: o resgate de pessoas e de documentos das garras da ditadura. Rio de Janeiro: Revan. 2015.


DEL ROIO, Marcos. A trajetória de Astrojildo Pereira (1890-1965), fundador do PCB.

Revista Praia Vermelha, vol.22, n.2. 2013.


FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS. Dicionário Histórico Biográfico Brasileiro pós 1930. 2ª ed. Rio de Janeiro: Ed. FGV. 2001.


SEGATTO, José Antônio. Reforma e revolução: as vicissitudes políticas do PCB, 1954-1964. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1995.


SODRÉ, Nélson Werneck. Meu amigo Astrojildo Pereira. In: FEIJÓ, Martin Cezar. Formação Política de Astrojildo Pereira (1890-1920). 2ª ed. Belo Horizonte: Oficina de Livros, p. 07 -43. 1990.