V.17 nº 34 / 2019 (set-dez) ISSN: 1808-799 X
Universidade Federal Fluminense Faculdade de Educação
NEDDATE - NÚCLEO DE ESTUDOS, DOCUMENTAÇÃO E DADOS SOBRE TRABALHO E EDUCAÇÃO
REVISTA TRABALHO NECESSÁRIO: http://periodicos.uff.br/trabalhonecessario
Redação: R. Professor Waldemar Freitas Reis, s/n°, bloco D, sala 525, Gragoatá - São Domingos, Niterói - RJ, CEP 24210-201 - revistatrabalhonecessario@gmail.com
EDITORES
Lia Tiriba, Maria Cristina Paulo Rodrigues e José Luiz Cordeiro Antunes
CONSELHO EDITORIAL
Caridad Perez García (UCPEJV – Cuba), Celso Ferretti (UNISO - Brasil), Gaudêncio Frigotto (UFF/UERJ - Brasil), José Claudinei Lombardi (UNICAMP – Brasil), Maria Ciavatta (UFF - Brasil), Roberto Leher (UFRJ - Brasil), Tomás Rodrigues Villasante (UCM – Espanha), Sonia Maria Rummert (UFF - Brasil) e Virgínia Fontes (UFF/EPJV / Fiocruz - Brasil).
COMITÊ CIENTÍFICO
Alexandre Maia do Bomfim (IFRJ), Ana Margarida Campello (EPSJV/FIOCRUZ), Ana Motta (UFF), André Feitosa (EPSJV/FIOCRUZ), André Martins (UFJF), Andrea Araújo Vale (UFF), Anita Handfas (UFRJ), Angela Siqueira (UFF), Angela Tamberlini (UFF), Claudio Fernandes da Costa (UFF), Célia Regina Vendramini (UFSC), Daniela Motta (UFJF), Dante Moura (IFRN), Deise Mancebo (UERJ), Domingos Leite Lima Filho (UTFPR), Dora Henrique da Costa (UFF), Edison Oyama (UFRR), Edson Caetano (UFMT), Eneida Oto Shiroma (UFSC), Eraldo Leme Batista (UNIVAS-MG), Eunice Trein (UFF), Eveline Algebaile (UERJ), Filippina Chinelli (EPSJV/FIOCRUZ), Flávio Anício (UFRRJ), Francisco José Lobo Neto (FIOCRUZ), Guadelupe Teresinha Bertussi (UNAM e UFSC), Hajime Nozaki (UFMS e UFJF), Henrique Tahan Novaes (UNESP), Ivo Tonet (UFAL), Jacqueline Botelho (UFF), Jaqueline Ventura (UFF), João dos Reis da Silva Jr. (UFSCar), José dos Santos Souza (UFRRJ), Júlio Cesar França Lima (FIOCRUZ), Justino de Souza Junior (UFC), Kátia Lima (UFF), Laura Souza Fonseca (UFRGS), Lea Calvão (UFF), Lia Tiriba (UFF), Lígia Klein (UFPR), Luciana Requião (UFF), Marcelo Lima (UFES), Maria Clara Bueno Fischer (UFRGS), Maria Inês do Rego Monteiro Bomfim (UFF), Maria de Fátima Félix Rosar (UNICAMP), Marcia Alvarenga (UERJ), Mariléia Maria da Silva (UDESC), Marisa Brandão (CEFET-RJ), Marise Ramos (UERJ,FIOCRUZ), Marlene Ribeiro (UFRGS), Myriam Feldfeber (UBA - Argentina), Ney Luiz Teixeira Almeida (UERJ), Olinda Evangelista (UFSC), Ramon de Oliveira (UFPE), Raquel Varela (Universidade Nova de Lisboa - Portugal), Roberto Leher (UFRJ), Ronaldo Lima (UFPA), Rosilda Benacchio (UFF), Rui Canário (Universidade de Lisboa – Portugal), Sandra Maria Siqueira (UFBA), Sandra Morais (UNIRIO), Sérgio Lessa (UFAL),, Susana Vasconcellos Jimenez (UFC), Tatiana Dahmer (UFF), Valdemar Sguissardi (UFSCar), Vania Motta (UFRJ) e Zuleide Silveira (UFF)
ORGANIZAÇÃO DA TN 34 (2019)
Profas. Maria Clara Bueno Fischer – Tramse (UFRGS) e Célia Regina Vendramini – TMT(UFSC)
ASSISTENTES DE EDIÇÃO
Daniel Tiriba, Lândhor Borges Camello (UFF), Olivia Morais de Medeiros Neta (IFRN) e William Kennedy do Amaral Souza (IFRO)
BOLSISTAS DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA
Ana Clara da Silva Souza (Serviço Social), João Marcoyves Carvalho da Silva (Serviço Social) e Roberta Carmem de Oliveira Malvão (Ciências Sociais)
FOTO DA CAPA
Carvoeiros - Foto de João Roberto Ripper
MONTAGEM DA CAPA
Daniel Tiriba
V.17 nº 34 / 2019 (set-dez) ISSN: 1808-799 X
Indexado por / Indexed by
Apoio:
Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoatá/SDC/UFF Bibliotecária: Mahira de Souza Prado CRB-7/6146
v.17, nº 34, set-dez (2019) ISSN: 1808-799 X
Editorial
ENTRE A BALBÚRDIA E A BARBÁRIE DO SISTEMA CAPITAL: VAMOS À LUTA! 1
Eu acredito é na rapaziada Que segue em frente E segura o rojão
Eu ponho fé no pé da moçada
Que não foge da fera E enfrenta o leão
Eu vou à luta com essa juventude
Que não corre da raia À troco de nada Eu vou no bloco Dessa mocidade
Que não tá na saudade E constrói a manhã desejada
E vamos à luta. Gonzaguinha, 1980.
Entre a última publicação da Revista Trabalho Necessário, em julho/2019 e a atual, também sobre Trabalho, movimentos sociais e educação, a conjuntura se complexificou no Brasil e no mundo. Fica claro a existência de dois grandes projetos societários: um projeto de acordo com os ditames do capital globalizado, do Deus Mercado, da competição e do individualismo, representado pela burguesia supranacional, tecido em um longo período histórico, que volta e meia, encontra-se em crise, pelas contradições por ele próprio gerado. Um sistema perverso e desumano, em que todos são tidos como mercadoria para alimentar a produção de bens materiais e imateriais, o consumo exacerbado e o lucro descomunal.
Como nos alerta Marx e Engels (1982, p.96), no Manifesto Comunista de 1848, “a burguesia [e seus representantes] não pode existir sem revolucionar constantemente os meios de produção e, por conseguinte, as relações de produção e, com elas, todas as relações sociais”. O trabalho, em sentido histórico-ontológico, torna-se subsumido, pois “a burguesia despojou de sua
1Publicado em 27/09/2019. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.17i34.p38039
auréola toda a ocupação até então considerada honrada e encarada com respeito. Converteu o médico, o jurista, o padre, o poeta, o homem de ciência em trabalhadores assalariados”.
Contrahegemonicamente, no processo de disputa das classes sociais, temos outro projeto de construção societário, outra forma de encarar a formação humana, a humanidade, a vida, enfim, outra forma de conceber as relações sociais. Nesse processo de disputa, busca-se a transformação radical das relações sociais para a construção da democracia econômica, política e social, que possa garantir a formação e o convívio humanos de forma plena, em suas várias dimensões. Um projeto de sociedade baseado no respeito, na igualdade, na fraternidade, na liberdade, na solidariedade, onde os bens materiais e imateriais sejam comuns para todos os seres humanos. Que em sua relação com a natureza, não necessariamente a dominem, mas estabeleçam uma relação saudável e sustentável, entendendo-se como parte integrante dessa natureza.
E por que todo esse preâmbulo nesse editorial?
Porque, no plano ético-político, queremos deixar claro que, embora estejamos vivendo uma conjuntura extremamente adversa, o conjunto dos atores da universidade e dos setores da sociedade civil, principalmente os movimentos sociais comprometidos com a construção de uma sociedade justa, igualitária e fraterna, tem lutado, combatido e resistido, insistindo em dizer que um novo mundo é possível e necessário.
Neste cenário, onde a desesperança sangra corpos e mentes, queremos explicitar, antes de tudo, que possuímos projetos alternativos, sim, gestados coletivamente no seio da sociedade civil. Este é o compromisso que vem sendo firmado historicamente, em diferentes circunstâncias, pelos atores progressistas da sociedade, e que representa luta, discussão, vontade política, tensão, novas alternativas para os problemas de nossa sociedade, e porque não dizer, elementos potencializadores da construção de uma contra hegemonia.
Não pertencemos à liga dos sem esperanças e sem projetos alternativos ou, como nos diz Chico Buarque, “apesar de você, amanhã há de ser um outro dia...”. Aqui, nos referimos à figura do atual ornitorrinco – um ser sem forma definida, mistura de Nero, Hitler, Profeta e Troglodita, que assumiu o poder executivo de nosso Estado-Nação em 2019, fazendo estragos em diferentes setores, a serviço do capital, em especial, dos EUA.
Entre os estragos, estão os ataques às universidades e institutos de pesquisa, nos quais se produz conhecimento crítico, são socializados os saberes dos diferentes campos do conhecimento científico, acumulados pela humanidade e são formados quadros importantes para a sociedade. A política de cortes para funcionamento e manutenção de seus serviços, a saída em massa dos trabalhadores terceirizados, os cortes das bolsas de estudantes e pesquisadores e a proposta do Programa Future-se, do MEC (17 de julho de 2019) são ações concretas de desmonte da ciência no país.
Este Programa pode ser lido como fature-se, vire-se, fracione-se, na medida que busca fazer da universidade uma instituição que dependerá das necessidades do mercado, ferindo sua autonomia administrativa, financeira e acadêmica, garantida pela Constituição Federal de 1988. A saída proposta pelo Future-se é a iniciativa privada, por meio da captação de recursos. Tal medida fere o princípio da gratuidade e desresponsabiliza o Estado com a educação pública, tornando-a refém da iniciativa privada, sob a gestão das Organizações Sociais (OS), como destaca o documento do MEC:
O Future-se será operacionalizado por meio de contratos de gestão, firmados pela união e pelas ifes, com uma organização social, cujas atividades sejam dirigidas ao ensino, à pesquisa científica, à cultura e estejam relacionadas às finalidades do Programa. Os contratos de gestão poderão ser celebrados com organizações sociais já qualificadas pelos Ministério da Educação ou por outros ministérios, sem a necessidade de chamamento público, desde o escopo do trabalho esteja no âmbito do contrato de gestão já existente (Brasil, Ministério da Educação, 2019).
Segundo a ADUFF-SSind (2019) há uma lógica no Programa que atende aos interesses de grupos corporativos do campo da educação e do setor produtivo, na medida em que a educação superior passa a ser um negócio lucrativo. Assim, a proposta aponta para o fim do tripé ensino-pesquisa-extensão e corrói a diversidade e o caráter social e crítico das Ifes, tendo em vista que as pesquisas ditas como “não lucrativas” serão enfraquecidas ou terão sua continuidade interrompida. Ainda aponta a ADUFF,
O Future-se acaba com a Dedicação Exclusiva (DE), uma vez que apoiado no Novo Marco Legal de Ciência, Tecnologia e Inovação, prevê a possibilidade de docentes
DE atuarem em projetos privados; essa medida abrirá caminho para o rebaixamento salarial das carreiras docentes, já em estudos pelo governo [ ] O Programa também aponta para o desmonte das carreiras do magistério superior, do ensino básico técnico e tecnológico (EBTT) e dos técnicos-administrativos, ao sinalizar para a cessão de atuais servidores para as organizações sociais e, ainda não mais através de concursos públicos, vinculado ao Regime Jurídico Único.
Não é somente a educação que vem sendo bombardeada, com vários projetos e reformas, mas todos os setores da sociedade, atingindo de forma cruel a classe trabalhadora e seus filhos. Para o bom entendedor é importante lembrar que as peças estão postas, mas não dadas definitivamente. A história não tem fim e os diferentes movimentos sociais populares e as mídias alternativas sabem disso. É com esse sentimento que têm sido elaboradas cartas públicas e abaixo- assinados, dentre os quais destacamos a Carta de Salvador, construída no XVI Encontro Nacional da Associação Brasileira de Estudos do Trabalho – ABET e a Carta de Natal, construída no V Colóquio Nacional e II Colóquio Internacional A Produção do Conhecimento em Educação Profissional, ambas de 06/09/19, que publicizam, denunciam e anunciam os desafios postos no contexto social.
O Comunicado Popular das Centrais Sindicais, Movimentos Populares e Ambientais também fez um chamamento para a Greve Global pelo Clima, em 20/09/19. Ali estão sinalizadas paralisações, atos, ocupação das ruas, pela “defesa do meio ambiente, dos direitos sociais, trabalhistas e da soberania nacional, contra a destruição do Brasil, contra as queimadas e o desmatamento da Amazônia, pelo direito à aposentadoria digna, por geração de emprego e renda com todos os direitos garantidos e contra as privatizações de 17 estatais”. Ainda podem ser agregados a luta contra a censura das manifestações artísticas e culturais; contra o anti-intelectualismo que menospreza o papel da ciência; a defesa da terra e do território dos indígenas e quilombolas contra posseiros, grilheiros, garimpeiros e militares, além das manifestações contra a violência no campo dos costumes e das sexualidades.
Em síntese, a balbúrdia e a barbárie do sistema capital fazem parte de uma mesma moeda, que visa atingir um contingente enorme da classe trabalhadora e de seus filhos/as. Contra esta balbúrdia, a nossa não significa desordem barulhenta, vozeria, algazarra, tumulto, trapalhada, complicação,
situação confusa; como se apresenta na descrição do léxico na língua portuguesa. Significa sim, formação, disposição política e produção de conhecimento crítico, com a perspectiva de intervir com propriedade nos problemas concretos da sociedade, disponibilizando soluções reais para ela. A nossa balbúrdia é pelo enfrentamento da barbárie, da condição ou estado de bárbaro; barbarismo, selvageria. Significa, para nós, a luta contra a ausência de civilidade, de democracia e do respeito ao que é e deve ser comum para todos/as.
Esperamos que a TN 34 – Trabalho, movimentos sociais, educação II, seja inspiração para a luta cotidiana e necessária. Aqui, gostaríamos de fazer um agradecimento especial para todos aqueles e aquelas que construíram coletivamente este número, em especial a João Roberto Ripper, que nos cedeu a foto da capa, a qual retrata o comprometimento do fotógrafo com a vida e com a classe trabalhadora.
Voltamos a afirmar que o atual momento histórico precisa ser analisado com lucidez e com as “lentes necessárias” - da teoria, da filosofia, da política e da arte. Nosso instrumento de luta nas universidades e nos institutos de pesquisas é a construção do conhecimento crítico. Com as lentes das artes, como nos convoca Gonzaguinha, “vamos à luta!”
Boa leitura para tod@s!
Maria Cristina Paulo Rodrigues, Lia Tiriba, José Luiz Cordeiro Antunes Editores da Revista TN
Associação Docente da UFF-SSind. Com o Future-se e ‘reformas’, Bolsonaro quer destruir previdência, universidade pública e direitos. Niterói: Jornal da ADUFF-SSind, Julho de 2019.
BRASIL, Ministério da Educação. Programa Future-se. www.portal.mec.gov.br. Acessado em 17/09/2019.
MARX, K. Engels, F. O Manifesto Comunista de Marx e Engels. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1982.
v.17, nº 34, set-dez (2019) ISSN: 1808-799 X
Apresentação
QUEM EDUCA O EDUCADOR? A FORMAÇÃO HUMANA TECENDO-SE NAS RELAÇÕES ENTRE TRABALHO, MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO¹
Maria Clara Bueno Fischer2 Célia Regina Vendramini3
Apresentamos aos leitores e leitoras o segundo volume do número temático da Revista Trabalho Necessário intitulado Trabalho, Movimentos Sociais e Educação. A resposta à chamada da TN 33 superou nossas expectativas. Assim, organizamos este volume com a mesma temática visando acolher outras relevantes contribuições para ampliar a visibilidade de práticas e estratégias político-educativas de lutas, sindicatos e movimentos sociais organizados na atualidade, bem como outras ações coletivas de caráter emancipatório.
Neste segundo volume, as contribuições dos e das autores/as nos remetem para a temática da formação humana que se dá na experiência histórica. Como convite à interlocução com o/as autores/as e com os/as leitores/as retomamos aqui a Tese III de Marx sobre Feurbach:
A teoria materialista sobre a modificação das circunstâncias e da educação esquece que as circunstâncias são modificadas precisamente pelos homens e que o próprio educador precisa ser educado. Ela tem, por isso, de dividir a sociedade em duas partes, a primeira das quais está colocada acima da sociedade. A coincidência entre a alter [ação] das circunstâncias e a atividade ou automodificação humanas só pode ser apreendida e racionalmente entendida como prática revolucionária (MARX, 2007, p. 533-4).
1Publicado em 27/09/2019. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.17i34.p38041
2Doutora em Educação pela Universidade de Nottingham, Inglaterra. Professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, na linha de pesquisa Trabalho, Movimentos Sociais e Educação. Bolsista PQ CNPq. Email:mariaclara180211@gmail.com Orcid: https://orcid.org/0000-0003-2289-5282.
3Doutora em Educação pela Universidade Federal de São Carlos. Professora da Universidade Federal de Santa Catarina, na linha de pesquisa Trabalho, Educação e Política. Bolsista PQ CNPq. E-mail: celia.vendramini@ufsc.br Orcid: https://orcid.org/0000-0001-9600-2868.
O ser, o estar e o agir humanos são condicionados pelas circunstâncias históricas, mas não as determinam. Ao mesmo tempo que são por elas formados, as (trans) formam. É disso que se trata quando buscamos apreender relações entre trabalho, movimentos sociais e educação. Somos instigados a compreender os processos sociais nos quais diversos coletivos, na luta organizada estão se aprendendo como sujeitos sociais, éticos, culturais e políticos. Muitas interrogações emanam daí: como a experiência de trabalho e dos movimentos sociais - da luta pela terra; da luta contra processos escravizadores; da luta pela emancipação do trabalho explorado, das lutas identitárias étnicas, raciais e de gênero - estão formando sujeitos que, ao mesmo tempo em que denunciam os desumanos modos de vida do capitalismo, anunciam, em suas práticas de luta e educativas, outros modos com cariz emancipatório?3 Como tais processos estão tecendo tramas de experiências de classe na nossa latino américa? Frente à expropriação e exploração capitalista da natureza que outras práticas contrárias a esta lógica estão sendo gestadas pelos movimentos e lutas sociais? Que experiências de educação emancipatórias estão acontecendo nestes contextos?
Presenciamos na experiência latino-americana, algumas das quais são analisadas neste número temático, práticas educativas radicais que, vinculadas às lutas sociais, se erguem contra todas as formas de opressão econômico-culturais. De natureza anticapitalista, formam sujeitos capazes de compreender as raízes das relações sociais capitalistas com o concomitante desenvolvimento de ações individuais e coletivas orientadas para aboli-las. É preciso entender a realidade como uma totalidade histórica criada pelos seres humanos e que, portanto, demanda a superação de práticas que reproduzem e recriam as próprias condições que os oprimem como seres humanos. Ricas reflexões sobre a experiência de educação do MST, presentes neste número temático, contribuem para ampliarmos nosso entendimento de uma educação “para além do capital”.
Paulo Freire nos legou importante contribuição ao afirmar que é preciso estar com o mundo, e não simplesmente no mundo. Estar no mundo significa
4As reflexões de Roseli Caldart - Pedagogia do Movimento Sem Terra: escola é mais do que escola (2000) e de Miguel Arroyo - Outros Sujeitos, Outras Pedagogias (2014) buscam responder estas perguntas.
umas práxis limitada e não crítica, porque não estabelecemos espontaneamente, relações que explicam a constituição dos fenômenos. É a práxis crítica, através da luta coletiva e de concomitantes processos educativos emancipatórios que possibilitam a experiência refletida, a qual contribui estrategicamente para a superação das relações sociais de exploração e opressão capitalistas. Neste sentido, muito temos nos interrogado e, ao mesmo tempo, aprendido sobre objetivos, formas de organização e de educação de diversos movimentos sociais e lutas coletivas atuais. Há, no entanto, muito ainda a se interrogar acerca da estratégica necessidade da unidade na diversidade com vistas à emancipação de todas as formas de opressão. Nesta direção, somos instigados a refletir, neste volume, sobre o racismo e as lutas antirracistas no Brasil e sobre questões teóricas acerca da diversidade e unidade na análise implicadas na categoria classe social.
Reinventar a escola também tem sido uma tarefa dos movimentos sociais em aliança com intelectuais-educadores orgânicos à classe trabalhadora. Além dos movimentos camponeses que, no caso do Brasil, tem feito uma longa luta por instituir um projeto de Educação do Campo, o movimento indígena tem dado lições de luta contra hegemônica no campo da educação. Suas ações na luta por um Ensino Superior que lhes faça sentido, respeitando suas epistemologias, problematizam visões eurocêntricas e colonizadoras do pensamento dos povos indígenas. Um dos artigos traz instigantes reflexões sobre este tema. Em que medida tais reflexões e proposições podem contribuir com uma reflexão mais ampla acerca da colonização do pensamento latino-americano?
Outro desafio colocado pelas atuais práticas político-educativas dos movimentos sociais diz respeito ao princípio educativo presente em práticas produtivas que se pautam pela apropriação coletiva dos meios de produção e por relações de autogestão no contexto do capitalismo. Qual o seu alcance em termos de prefigurações de um futuro de autogestão da economia e da vida em sociedade? Quais suas contradições? Como se fazem presentes mediações de primeira e segunda ordem (Mészáros, 2011)? Como seus protagonistas as têm enfrentado? Algumas pistas podem ser inferidas a partir da análise de experiências históricas de autogestão. A trajetória de Paul Singer, pensador e militante da economia solidária no Brasil, particularmente
sua contribuição para pensar a economia solidária como uma experiência pedagógica na perspectiva da autogestão, toma um lugar neste número da Trabalho Necessário evidenciando mais uma faceta da complexidade das formas de trabalho em que estão envolvidos os trabalhadores e trabalhadoras e de como seus intelectuais orgânicos as concebem.
Retomando a Tese III de Marx, “coincidência entre a alter [ação] das circunstâncias e a atividade ou automodificação humanas só pode ser apreendida e racionalmente entendida como prática revolucionária”, e finalizando as problematizações desta apresentação, podemos pensar que a prática revolucionária, como a ocorrida com a Revolução Cubana, foi um marco histórico de automodificação humana radical. No entanto, como discutem nossos colegas cubanos em artigo sobre organização e participação popular, é uma tarefa permanente. A pergunta que se pode fazer é: como manter viva, permanente e criativa uma revolução socialista?
Tais problematizações acima indicadas têm o objetivo de contribuir com o desenvolvimento de interlocuções ativas entre autores/as e leitores/as, bem como convidar a todos para a leitura, reflexão e debate. A seguir apresentamos, de forma breve, os diferentes artigos que compõem este número da revista.
A seção de Artigos do Número Temático é composta de nove artigos, sendo um internacional.
O primeiro artigo, de Caridad Pérez García, Royana Paredes Díaz e Jesús Jorge Pérez García, analisa uma experiência de organização e participação popular que vem ocorrendo em Cuba. O texto, intitulado Organización y participación popular en Cuba: aportes desde el grupo comunitario de educación ambiental, nos auxilia a pensar sobre os lugares e formas da educação popular para e na organização e participação popular na busca de solução de problemas sociais e ambientais vividos pelo povo num país socialista. Chama a atenção nas ações coletivas de uma cooperativa agrícola, objeto de análise, a incorporação de ação educativa ambiental dirigida para o conjunto da sociedade,
O artigo de Sandra Luciana Dalmagro e Caroline Bahniuk, intitulado A classe trabalhadora e suas lutas no capitalismo contemporâneo: sínteses do debate marxista, contribui para enfrentar os desafios históricos e atuais de
organização da classe trabalhadora. Com base nas categorias classe e trabalho, dentro do aporte marxista, as autoras se debruçam sobre as mobilizações e movimentos sociais nas últimas décadas no contexto do capitalismo contemporâneo e as profundas transformações nos processos produtivos. Analisam a classe nos seus aspectos objetivos e subjetivos e apreendem a totalidade que a constitui, mesmo diante do reconhecimento de sua diversidade. Segundo as autoras, “o que confere unidade à diversidade é a condição de trabalhadores explorados e oprimidos”.
Ivonei Andrioni e Edson Caetano, no artigo Feiras agroecológicas como contraponto ao projeto do capital, analisam a experiência da feira Canteiros de Comercialização Sociossolidária e Agroecológica (CANTASOL), de trabalhadores de um assentamento de reforma agrária no estado do Mato Grosso. O objetivo é contrapor as feiras agroecológicas, as quais buscam, segundo os autores, a reprodução ampliada da vida, às feiras livres, cujo objetivo é a reprodução ampliada do capital. O estudo evidencia que, além da estratégia de sobrevivência, a iniciativa se constitui como uma forma de contestação às relações de trabalho conformadas no modo de produção capitalista, ao ser resultado de uma produção a partir de técnicas de reduzido impacto ao meio ambiente, sem exploração da força de trabalho alheia e com eliminação do atravessador. A feira também é vista como um meio de organizar o enfrentamento político e a luta por direitos.
A experiência de formação política da Escola Nacional Florestan Fernandes - ENFF, de iniciativa do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, é abordada no artigo de Alessandro Santos Mariano e José Claudinei Lombardi, intitulado: O trabalho na práxis formativa da Escola Nacional Florestan Fernandes: uma escola construída pela e para a classe trabalhadora. O foco está na concepção e método formativo da Escola dirigido para a formação de militantes, quadros e dirigentes de movimentos e organizações populares do Brasil e outros países. O texto está organizado em cinco partes: contexto que deu origem à ENFF; a escolha de seu patrono – Florestan Fernandes; fundamentos e concepção de formação de quadros; método pedagógico a partir da matriz do trabalho; currículo e cursos de formação ofertados. Segundo seus autores, a Escola “é fruto da solidariedade de classe
e, na atual conjuntura, tem o desafio da resistência ativa em conjunto com as demais organizações”.
As crianças sem-terrinha ganham atenção no artigo de Vanessa Gonçalves Dias, Dynara Martinez Silveira e Daniel do Nascimento. O texto aborda o Brincar, sorrir, lutar por reforma agrária popular: a experiência de auto-organização das crianças sem-terrinha do MST/RS. A partir de uma reflexão sobre as concepções de infância, os autores focam na infância no MST e, particularmente, na experiência de auto-organização das crianças no Encontro Regional das Crianças Sem-Terrinha no Rio Grande do Sul. As reflexões elaboradas pelos autores indicam que a auto-organização e participação das crianças têm provocado novas estratégias educativas do MST, ao articular a experiência do brincar com as lutas pela reforma agrária. Observam que as crianças reivindicam transporte seguro, estrutura escolar, autonomia pedagógica nas escolas, denunciam o fechamento de escolas e exercitam a auto-organização e cooperação.
Povos indígenas e seu movimento de luta pela efetivação do direito coletivo à educação superior no território latino-americano, de autoria de Soledad Bech Gaivizzo, trata da luta do movimento indígena na América Latina pelo seu direito coletivo à educação superior no final da década do século XX. Discute sobre a constituição do marco jurídico-legal internacional, considerada uma conquista histórica pelos indígenas. Tal marco possibilitou a criação de outros modelos de Ensino Superior em que a interculturalidade emerge como um projeto ético-político e epistêmico. Segunda a autora, “a análise da demanda dos povos permitiu, nesse contexto, observar que o cerne da luta de seus povos busca garantir um modelo de ensino específico e diferenciado, situado geograficamente próximo à comunidade, voltado essencialmente para o seu projeto de desenvolvimento, de modo a atender os sujeitos representantes destas comunidades”.
O movimento de economia solidária tem entre seus principais intelectuais militantes Paul Singer, falecido em 2018. Cláudio Nascimento e Aline Mendonça, no artigo Paul Singer e a pedagogia da autogestão na economia solidária apresentam os esforços teóricos, políticos e práticos que Paul Singer desenvolveu em sua trajetória pessoal e profissional, no Brasil e no mundo, para contribuir no avanço da autogestão e da economia solidária,
entendida como ato pedagógico e como estratégia de desenvolvimento, tendo no horizonte o socialismo. Trazem, portanto, uma análise da contribuição de Singer para a reflexão e elaboração dos princípios pedagógicos orientadores do movimento da economia solidária.
Jacqueline Botelho em seu texto Racismo e luta antirracista no brasil: uma análise necessária para o avanço da estratégia anticapitalista analisa a contribuição do antirracismo para a luta anticapitalista no Brasil. Apoiando-se na historiografia crítica, denuncia o mito da democracia racial e desenvolve um argumento central ao longo do texto: “a luta antirracista não assume uma posição secundária em relação à luta de classes, mas a qualifica e informa, sendo o açoite do negro pela exploração do trabalho, e o racismo autorizado, elementos que impõem novos limites à consciência de classe e ao movimento negro organizado“.
O objetivo do artigo Educação profissional rural versus educação profissional do campo: uma análise gramsciana da atuação do SENAR e dos movimentos sociais camponeses é analisar a disputa ideológica entre as concepções de Educação Profissional Rural e a Educação do Campo. Os autores Pedro Clei Sanches Macedo e Ramofly Bicalho analisam a utilização desses conceitos pelo Sistema Nacional de Aprendizagem Rural na política de formação voltada para o agronegócio e na atuação dos movimentos sociais na defesa do PRONERA. Gramsci é o referencial teórico e metodológico que orienta a pesquisa da qual originou-se o artigo. Os autores defendem que a análise dos fundamentos de tais concepções é central para a construção do projeto alternativo de formação profissional dos movimentos camponeses.
A Revista Trabalho Necessário traz uma Entrevista com Fabiana Batista, historiadora e militante do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST). Na Luta por moradia e contra a precarização da vida, Fabiana atua na área de comunicação, em âmbito nacional, faz trabalhos de base em Niterói e ajuda na organização de uma cozinha comunitária em São Gonçalo. A entrevista foi realizada por Luiz Augusto de Oliveira Gomes, em julho de 2019. O número que ora apresentamos conta ainda com três Artigos de Demanda Contínua. O artigo de Amanda Moreira da Silva, intitulado A uberização do trabalho docente no Brasil: uma tendência de precarização no séc. XX, traz uma densa reflexão sobre as condições do trabalho docente na
atualidade, a partir de casos concretos de uma rede estadual e uma municipal de São Paulo. A autora aponta que, em função do desemprego crescente e da massificação do discurso de empreendedorismo, cada vez mais trabalhadores se submetem a contratos precários e flexíveis, num processo que se aprofunda ainda mais com a implantação da contrarreforma trabalhista, constituindo o que se pode chamar de “uberização” do trabalho docente, expressa pelo crescimento do número de trabalhadores eventuais, e que já atinge a Educação Básica como um todo. Mas, se este quadro apresenta-se tão grave, Amanda destaca, em suas considerações finais, que muitas destas iniciativas de precarização do trabalho docente só não foram concretizadas graças à organização dos trabalhadores da educação junto aos seus sindicatos. Isto, a nosso ver, confirma e reforça a relevância de trabalhos como este serem publicados pela revista Trabalho Necessário.
O artigo Reformas do ensino médio e trabalhista: possíveisimplicações para educação profissional técnica de nível médio, das pesquisadoras Tatiane Cimara dos Santos Medeiros e Daniela Oliveira Ramos dos Passos, analisa como as reformas influenciam nesta modalidade de ensino – a Educação Profissional Técnica de Nível Médio. Trata-se de uma pesquisa exploratória que apresenta ainda resultados parciais, pois se encontra em andamento. A riqueza do texto está na compilação, em que apresenta uma boa síntese e no diálogo que estabelece com a rica bibliografia sobre o tema, estimulando o debate. Em seus resultados sinaliza o processo de flexibilização dos direitos da classe trabalhadora, em que o currículo não só reduz os gastos públicos, mas acaba, pela composição que apresenta, prejudicando a formação dos trabalhadores, na medida em que atende às necessidades do sistema capital, para responder a crise construída por ele e pelas políticas neoliberais que buscam engendrar na educação brasileira.
Os pesquisadores Leonardo Dorneles Gonçalves e Simone Gonçalves da Silva nos brindam com o artigo Trabalho e Educação: debates em tornodo princípio educativo e das políticas educacionais para o ensino médio de jovens e adultos. Valendo-se de pesquisas no campo do materialismo histórico, indicam que as formas de oferta da EJA em nível médio, as políticas educacionais para a área, seus mecanismos de certificação, formação aligeirada e diminuição do acesso aos conteúdos representativos dos
conhecimentos científicos e culturais representam acentuado retrocesso em termos civilizatórios, sobretudo para os jovens da classe trabalhadora.
Na seção Teses e Dissertações, apresentamos dois trabalhos. A tese de Joana D’Arc Vaz, intitulada A Educação Profissional no contexto das relações de cooperação entre Brasil-Moçambique: o protagonismo de empresas brasileiras traz como questão central a cooperação Sul-Sul e o protagonismo dos empresários brasileiros em Moçambique, como parte da política externa dos governos Lula e Dilma Rousseff, tendo como recortes os períodos de 2003-2015 e a Educação Profissional no contexto desta cooperação. A autora buscou refletir sobre os interesses que estavam em disputa, por parte dos diferentes atores envolvidos na política da educação, e especificamente na Educação Profissional; porque a Educação Profissional compõe as estratégias do capital em Moçambique, transformando- se em instrumento de combate à pobreza na lógica do desenvolvimento do país. Em síntese, que papel joga o Brasil (o Estado Brasileiro) nessa cooperação, não estando desarticulada do contexto sócio-político-econômico contemporâneos, de desenvolvimento do sistema capital e qual o lugar do trabalho, como categoria ontológica, no processo de formação humana.
A dissertação de Janaina Gulart Oliveira Queiroz, intitulada As condições de vida, de trabalho e de escolarização dos migrantes nordestinos da construção civil na UFSC, reflete sobre a vida de trabalhadores migrantes nordestinos da construção civil que trabalham no Campus central da Universidade Federal de Santa Catarina. Baseada no estudo de autores clássicos e contemporâneos que analisam as contradições entre capital, trabalho e escolarização, e sustentada numa pesquisa de campo cuidadosa, a autora identifica que “o trabalho ou a ausência dele tem sido fator principal no deslocamento para a produção da vida social e busca pela superação da condição de pobreza da classe trabalhadora”, e é a partir desta condição que se pode entender o seu processo de escolarização – paradoxalmente, a presença na universidade não é o bastante para garantir-lhes o acesso a uma educação de qualidade: cerca de 78% deles têm o ensino fundamental incompleto e deixaram a escola para trabalhar – em condições precárias, o que reatualiza uma condição histórica da classe trabalhadora no Brasil.
A seção Memória e Documentos traz, neste número temático, um pouco da história/experiência do Arquivo Geral dos Trabalhadores, apresentado por Maria Cláudia Pereira da Silva. Iniciado nos anos 1990, como Arquivo do SINTTEL-Rio (Sindicato dos Trabalhadores em Telecomunicações do Rio de Janeiro) reuniu, desde então, inúmeros documentos que recuperam a história de organização sindical da categoria, como elemento vivo e importante da luta dos trabalhadores. Nos últimos anos ampliou-se para receber outras coleções relacionadas às lutas da classe trabalhadora brasileira. O que encontraremos aqui é uma pequena mostra deste acervo que, como bem disse a autora, citando Le Goff (1990), faz parte de um passado que deve ser salvo para servir o presente e o futuro. Que saibamos sorvê-lo!
Referências
ARROYO, M. Outros sujeitos, outras pedagogias. Rio de Janeiro: Vozes, 2014.
CALDART, R. Pedagogia do Movimento Sem Terra: escola é mais do que escola Rio de Janeiro: Vozes, 2000
MARX, K. Ad Feuerbach. IN: MARX, K, ENGELS, F. A ideologia alemã: crítica da mais recente filosofia alemã Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão em seus diferentes profetas 1845-1846. São Paulo: Boitempo Editorial, 2007, p.533-535.
MÉSZÁROS, I. Para além do capital. São Paulo: Boitempo, 2011.
v.17, nº 34, set-dez (2019) ISSN: 1808-799 X
Caridad Pérez García2 Royana Paredes Díaz3 Jesús Jorge Pérez García4
Con el triunfo de la Revolución Cubana, la organización y participación popular se constituyeron la clave para solucionar los problemas de educación, salud, vivienda y otras necesidades sentidas de la población. Con aportes de la educación popular comunitaria y con perspectivas de transformación ‘desde abajo’, el trabajo comunitario ocurre en las cuadras, barrios, municipios y provincias. La experiencia de una cooperativa agrícola en la creación de un Grupo Comunitario de Educación Ambiental evidencia los procesos de participación hacia la identificación y construcción de nuevos saberes y prácticas sociales.
Com o triunfo da Revolução Cubana, a organização e participação popular se constituíram como a chave para resolver problemas de educação, saúde, habitação e outras necessidades da população. Com aportes da educação popular comunitária e com perspectivas de transformação “desde abaixo”, o trabalho comunitário acontece nos quarteirões, bairros, municípios e províncias. A experiência de uma cooperativa agrícola na criação de um Grupo Comunitário de Educação Ambiental evidencia os processos de participação na identificação e construção de novos saberes e de práticas sociais.
With the triumph of the Cuban Revolution, popular organization and participation became the key to solve the problems of education, health, housing and other needs felt by the population. With contributions from community popular education and transformation prospects 'from below',
1Artigo recebido em 24/04/2019. Primeira avaliação em 06/05/2019. Segunda Avaliação em 14/05/2019. Aprovado em 11/08/2019. Publicado em 27/09/2019. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.17i34.p38134.
3Máster en Gestión Ambiental Mención: Gestión de la Educación Ambiental Comunitaria. Especialista de la Unidad de Ciencia y Técnica. CITMA. Provincia de Pinar del Río - Cuba. E-mail. rparedes@citma.vega.inf.cu
community work takes place in the blocks, neighborhoods, municipalities and provinces. The experience of an agricultural cooperative in the creation of an Environmental Education Community Group points to the processes of participation towards the identification and construction of new knowledges and social practices.
"Educar es depositar en cada hombre toda la obra humana que le antecedió: es hacer a cada hombre resultado del mundo viviente, hasta el día en que el vive: es ponerlo a nivel de su tiempo, para que flote sobre él, y no dejarlo debajo de su tiempo, con lo que no podría salir a flote; es preparar al hombre para la vida” JOSÉ MARTÍ5
A partir del año de 1959, con el triunfo de la Revolución Cubana, la organización y participación popular han sido fundamentales para solucionar los problemas de educación, salud, vivienda y otras necesidades sentidas de la población. El bloqueo económico de los Estados Unidos es, sin duda, una de las barreras que dificultan el desarrollo pleno de Cuba, y que exige mucha lucha y participación activa del pueblo, en articulación con el Estado, para garantizar y ampliar las conquistas de la revolución.
Para plantear soluciones a las necesidades sentidas de la población, es fundamental considerar algunos aportes de Paulo Freire (1978) respecto a la educación popular, cuando plantea que los problemas de la educación no se limitan a los problemas pedagógicos, pues son también problemas éticos, políticos, sociales y económicos. De manera que el proceso desarrollado en Cuba estuvo impregnado de esta máxima de Freire y desde el inicio los problemas fueron atendidos por un paquete de medidas revolucionarias, que precisamente respetaban estos aspectos y con un sustento económico dado por la naciente revolución que declaró la igualdad de derechos de las personas independientemente de su raza, color, sexo, religión u orientación política. Entre otras medidas, subrayamos la Campaña Nacional de Alfabetización en el año 1961, las sucesivas batallas por el 6to, 9no y 12mo grados y
5 José Martí Pérez, revolucionario, escritor, pedagogo, poeta y abogado cubano que lucho en las guerras de independencia de Cuba contra el colonialismo español. Se destacó por su prosa revolucionaria en defensa de Cuba y Latinoamérica y por los cuentos dedicados a los niños de nuestra América: “La edad de Oro”. Fue en su época uno de los primeros hombres que consideró necesario organizar un partido para hacer una guerra y en consecuencia fundó, el Partido Revolucionario Cubano en Panamá - Montecristo, en 18 de abril de 1985, para organizar "la guerra necesaria" contra los españoles. Murió peleando por la independencia de Cuba en 19 de mayo de 1895 en contra de las fuerzas españolas.
la conversión de todos los cuarteles militares en escuelas y universidades. En el año 1961 la educación se torna obligatoria y gratuita para todos los cubanos/ cubanas, lo que exigió la formación integral de maestros para que cada niño, joven y adulto tuvieran sus maestros y escuelas de calidad, con toda la base material de estudio necesaria. En esta misma dirección, otro gran educador de nuestra América, José Martí expresó en relación a la educación del pueblo: (Martí, 2015 p. 81), "Saber leer es saber andar, saber escribir es saber subir”. Y precisamente esta fue la primera prioridad del gobierno: educar a las personas para que pudieran conocer y dominar las artes, las técnicas y las ciencias. Precisamente sobre la educación científica José Martí expresó "Divorciar el hombre de la tierra, es un atentado mostruoso. (...) A las aves, alas; a los peces, aletas; los hombres que viven en la Naturaleza, el conocimiento de la Naturaleza: esas son sus alas". (Martí, 2015 p.110). Y estas han sido las armas con que ha contado la revolución para elaborar y realizar un proyecto educativo que considerara las prácticas de las personas como punto de partida del aprendizaje para preparar a las personas para la vida, con criterio colectivo y de comportamiento solidario.
Además de las prácticas educativas de identificación y solución de los problemas que profesores, maestros y estudiantes suelen aportar desde las universidades, institutos de investigación y aun desde la educación politécnica y laboral, vale subrayar la importancia del trabajo comunitario que, con aportes de la educación popular comunitaria, que desarrolla acciones transformadoras que ocurren ‘desde abajo’, en las cuadras, barrios, municipios y provincias.
Esta filosofía, exige que los fenómenos no se interpreten, estudien y analicen unilateralmente, sino de forma objetiva, íntegra y multilateral, en tanto los fenómenos están concatenados universalmente. Asumir estos principios en el proceso de capacitación, requiere tomar en cuenta los contextos donde este tiene lugar y sus particularidades, a su vez responderá a las características de los campesinos, las que influyen en la retroalimentación y modificación sistemática de este proceso. De igual forma tendrá su base en procesos generales, como el educativo y el productivo.
En este artículo analizamos la experiencia de la Cooperativa de Producción Agropecuaria “Jesús Suárez Soca”, en Pinar del Rio, en la creación de un Grupo Comunitario de Educación Ambiental compuesto por trabajadores, trabajadoras de esta cooperativa y con las personas de la comunidad. Considerando sus
experiencias, conocimientos, intereses y propuestas como condición motivante y necesaria para garantizar su continuidad hasta los días actuales.
Destacamos que los procedimientos metodológicos utilizados son abordados y amplían más adelante, en cuanto a la relación organización grupal en talleres, barrios debates, análisis colectivos de las fuentes documentales y de las áreas de cultivos de la cooperativa que permitió conocer sus problemas, formar nuevos conocimientos y expectativas y expectativas para el trabajo, basados en el principio de la organización y participación popular, que acrecentó nuevos saberes y nuevas prácticas sociales respecto a los problemas y retos de las relaciones entre los seres humanos y la naturaleza, de manera de cuidar a la comunidad, al país, al planeta y, a la vez mejorar las condiciones la vida de la gente.
En primer lugar, presentamos los objetivos de algunas organizaciones populares en Cuba, destacando sus dimensiones políticas y educativas en la construcción del socialismo, en articulación con las estructuras del gobierno y el Estado desde el nivel local, municipal, provincial, hasta la nación. En un segundo momento, teniendo en cuenta la crítica a los despilfarros producidos por el sistema capitalista, se aborda los objetivos de la educación popular comunitaria en la creación y organización de un Grupo Comunitario de Educación Ambiental, indicando sus etapas y desafíos.
En un tercer momento analizamos con ejemplos concretos las formas y vías para hacer el trabajo comunitario hacia la elaboración colectiva de un Programa de Educación Ambiental que propicie un trabajo que contribuya a resolver o mitigar los problemas socio-ambientales de la comunidad y, a la vez, promueva la mejoría de las condiciones de vida de las personas.
Finalmente, en las conclusiones del artículo se muestran algunos de los resultados alcanzados a partir del trabajo colectivo, considerado como premisa básica una educación del pueblo que da prioridad a los valores solidarios y ubica al ser humano en el centro de las relaciones sociales, preservando al medio ambiente y las tradiciones del trabajo acumulado por generaciones anteriores.
Las situaciones comentadas anteriormente expresan las condiciones existentes en el país y las necesidades sentidas de la población después de un largo proceso de explotación y expropiación de los recursos de la nación, los nuevos desafíos para enfrentar las transformaciones necesarias, lo que justifica el proceso
realizado para revertirlo, por supuesto; considerando las contradicciones y destrucción que tenía el país después de una larga guerra y las propias miserias humanas legadas del régimen anterior en cuanto preconceptos raciales y a la mujer, a las capacidades y posibilidades de los pobres, a la poca preparación de las fuerzas productivas, muchas de las cuales eran analfabetas y el gran reto de organizar una nueva forma de gobierno sin antecedentes, ni experiencias de otros procesos acontecidos en el mundo en lo social, cultural, económico y político.
Para entender la organización popular en Cuba hace falta considerar los procesos históricos de lucha en contra de imperios que trataron de apoderarse del país. Primero tuvimos la guerra por la independencia contra el imperio español (1492-1898), después contra los ingleses en el período que tomaron La Habana (1762-1763) y hoy en contra el imperio norte-americano, el cual mantiene un bloqueo económico, social y político que dura más de 57 años para tratar de aislar y asfixiar económicamente a la nación. Estas luchas permitieron el desarrollo de una conciencia política de independencia expresada con mucha claridad por José Martí, nuestro héroe nacional, cuando en el momento de la guerra en contra los españoles dijo: "ser culto es el único modo de ser libre" (Martí, 2015, p. 90). Así que la práctica de educar a las personas fue una de las tareas realizadas durante el proceso revolucionario desde sus inicios, en 1959, y se mantiene hasta hoy.
El término “movimientos sociales” no es comun en Cuba. Tal vez el vínculo más directo esté en “organizaciones sociales” y aun en “organizaciones populares”, ambos con la perspectiva de impulsar el “trabajo comunitario", desde abajo, es decir con intensa "participación popular". Es importante señalar que, en nuestro país, todas las organizaciones sociales son, de hecho, populares. Nos parece que, en el caso de los países capitalistas, los movimientos sociales no siempre defienden y luchan por los intereses y derechos sociales del pueblo, quiere decir de todas las clases sociales.
No por casualidad, con la crisis del Estado del bien-estar se ha creado en esos países, el llamado “tercer sector” que tiene como objetivo sensibilizar los gobiernos, los empresarios y la sociedad civil para amenizar la pobreza y los
conflictos sociales. El nuevo sector de la economía se justificaría una vez que permitiría a la gente huir de la burocracia del Estado (primer sector) y, a la vez, de la ganancia del mercado (segundo sector). El objetivo es la interferencia de organizaciones no estatales y, por lo tanto, privadas para que desarrollen actividades sociales de interés público y "sin fines lucrativos". Son asociaciones civiles, cooperativas e instituciones creadas por los empresarios que imparten acciones asistenciales e, incluso estimulan la creación de “movimientos sociales”, en general en contra de los intereses de la clase trabajadora.
En el caso de Cuba, hoy por hoy, podemos comentar algunas organizaciones populares en defensa de las conquistas sociales de la revolución, como por ejemplo los Comites de Defensa de la Revolución (CDR). Surgieron el 28 de setiembre de 1960, es decir, imediatamente después del triunfo de la revolución y, ha pedido de Fidel Castro, fueron creados en cada una de las cuadras de todos los barrios. La intención fue, y todavía es, defender las conquistas del pueblo, agrupando a todas las personas a partir de los 14 anos de edad, femeninos o masculinos que lo desearon, sin importar su nivel cultural, social, posición política o raza.
Es la organización de pueblo más grande de Cuba y participa activamente en tareas de cuidado y seguridad de la población, en la defensa de la patria, en la organización de los colegios electorales para las elecciones, en campañas de vacunación, de higiene, de limpieza, en la recogida de materia prima, en la protección de la población y sus bienes en momentos de desastres naturales como ciclones o intensas lluvias, y además en el acompañamiento de la educación de los niños y niñas, jóvenes y adultos de cada barrio.
Como forma de organización popular, merece la pena considerar la Federación de Mujeres Cubanas (FMC), creada el 23 de agosto de 1960, que agrupa a las mujeres y jóvenes mayores de edad con el objetivo de defender las conquistas de la revolución, pero también para defender, divulgar y exigir los derechos de las mujeres en igualdad de condiciones de los hombres y otros derechos maternales.
Las mujeres cubanas han discutido sus reivindicaciones en sus congresos a nivel de base, municipio, provincia y nación, muchas de las cuales se han convertido en leyes que las protegen. Lo cierto es que el país tiene en las mujeres una cantera mayoritaria en la formación, en el trabajo y la ocupación de cargos directivos en
educación, salud, biotecnología, la universidad, investigaciones, cargos administrativos y con una presencia significativa en cargos de gobierno, políticos y en la defensa de la patria. Cómo decía Martí, “toda la patria está en la mujer: si ella falla morimos: si ella nos es leal, somos”6.
Es importante consignar el papel de la Asociación Nacional de Agricultores Pequeños (ANAP), surgida el 26 de enero de 1961 para la atención de los campesinos respecto a sus demandas y necesidades para desarrollar una agricultura productiva y agroecológica que contribuya a la alimentación de nuestro pueblo. Se trata de una organización popular y participativa que, desde sus reuniones de base, en los municipios, provincias y a nivel de estados discuten y proponen sus necesidades. Los campesinos valoraran y las aprueban en las asambleas nacionales, que es su órgano superior, cuyo presidente y algunos miembros son integrantes del gobierno y del Estado. Lo que posibilita que después sean aprobadas como políticas públicas.
Repecto a la educación, hay dos organizaciones muy populares en Cuba y a la que todos respetan por su consagración al trabajo, la dedicación y la calidad con que forman las nuevas generaciones de cubanos. La primera es la Asociación de Pedagogos de Cuba (APC), creada en los años 1980, que agrupa a maestros (as) y profesores (as) de todas las enseñanzas, desde la educación infantil hasta la universidad, estimulando prácticas educativas participativas que han contribuido para el desarrollo de la educación científica, politécnica y laboral en el país. La segunda es la Asociación de Educadores de Latinoamérica y el Caribe (AELAC), con sede en La Habana, creada en el Congreso de Pedagogía de 1990, y que actúa a nivel internacional. Sus objetivos son contribuir a la integración de los países latinoamericanos a partir de la educación y la cultura, defender sistemas pedagógicos autóctonos, que contribuyan a preservar nuestra identidad. Para lo cual, estimula el intercambio de investigaciones y experiencias pedagógicas7
¿Cómo se dan en Cuba las relaciones entre las organizaciones populares y el Estado? Las dimensiones políticas, educativas-sociales y participativas de estas organizaciones están en cadencia con las estructuras del gobierno y el Estado
6 José Martí, en https://cubalagrannacion.wordpress.com/2010/06/10/frases-de-fidel-y-citas-de-marti- sobre-la-mujer/
7 En Brasil, la AELAC-Brasil fue creada en 1990, siendo su coordinadora la Prof. Dra. Maria Ciavatta, de la Universidad Federal Fluminense. En noviembre de 2014 se creó la AELAC-Rio cuya sede está en la Facultad de Educación de la Universidad Federal del Estado de Rio de Janeiro, (UFRJ).
desde el nivel local, municipal, provincial, hasta la nación. Diferentemente de los objetivos del que se suele llamar “tercer sector” en los países capitalistas (Montaño, 2003). Existen en nuestro sistema sinergias de trabajo, pues se discuten las necesidades de cada momento y se toman decisiones para resolver los problemas que nos afectan como, por ejemplo, el cambio climático, los resultados insatisfactorios de un área de la agricultura y todos los daños que provocan el bloqueo económico de los Estados Unidos a nuestro país.
La articulación del pueblo y el Estado es la única manera de poder enfrentar el bloqueo que se inició en 1962 y fue institucionalizado de forma extraterritorial por su congreso yanqui a partir de la aprobación de las leyes Torricelli, en 1992 y Helms Burton, en 1996, que prohíben, condenan y punen a países, grupos económicos y bancos que negocian con Cuba. No obstante, desde José Martí hasta Fidel Castro, Raul Castro y Miguel Dias-Canel, seguimos en el enfrentamiento a todos los imperios.8
Para explicar la importancia de la organización popular en la construcción del socialismo en el país, nada mejor que el concepto de “revolución” elaborado por el Comandante Fidel después de años de experiencia, de organización, de creación y de construcción participativa popular con el pueblo.
Revolución es sentido del momento histórico; es cambiar todo lo que debe ser cambiado; es igualdad y libertad plenas; ser tratado y tratar a los demás como seres humanos; es emanciparnos por nosotros mismos y con nuestros propios esfuerzos; es desafiar poderosas fuerzas dominantes dentro y fuera del ámbito social y nacional; es defender valores en los que se cree al precio de cualquier sacrificio; es modestia, desinterés, altruismo, solidaridad y heroísmo; es luchar con audacia, inteligencia y realismo; es no mentir jamás ni violar principios éticos; es convicción profunda de que no existe fuerza en el mundo capaz de aplastar la fuerza de la verdad y las ideas. Revolución es unidad, es independencia, es luchar por nuestros sueños de justicia para Cuba y para el mundo, que es la base de nuestro patriotismo, nuestro socialismo y nuestro internacionalismo. (CASTRO, 2000, p. 77).
8 De Martí a Dias-Canel, pasando por luchadores en diferentes épocas y contextos como el Cacique Hatuey en contra de la llegada y ocupación de Cuba por los españoles, las guerras por la independencia de Cuba (la guerra de los diez años, guerra chiquita y la guerra necesaria) en contra de España, representada por algunos de los más excelsos patriotas cubanos como José Martí, Antonio Maceo, Máximo Gómez, Flor Crombert, Mariana Grajales y José Maceo. Y en la última etapa, la lucha por la liberación nacional de la patria en contra de la dictadura pronorteamericana de Batista, encabezada por Fidel Castro, Camilo Cienfuegos, Celia Sanches, Frank País, Che Guevara y otros muchos valientes luchadores que entregaron su vida por lo que tenemos hoy.
Aun hoy seguimos en el proceso revolucionario iniciado en 1959. El socialismo en Cuba sería imposible sin la participación popular que se realiza no sólo en las “organizaciones populares”, sino también en lo cotidiano de vida y trabajo. La construcción permanente del socialismo exige la participación del pueblo en las diferentes tareas del país y, además, en la formación de un Estado que se nutre de hombres y mujeres del pueblo. En este sentido mantiene vigencia lo dicho por José Martí: "Que cada hombre, aprenda a hacer algo de lo que necesitan los demás" (Martí, 2015, p. 76). Desde luego, la educación es la clave para ello y, en especial, la educación comunitaria y popular. ¿Pero, en concreto, cómo se realiza la participación popular? ¿Cómo la gente contribuye y participa en las decisiones respecto a los caminos del proceso revolucionario? ¿Cómo solucionar los problemas de trabajo, salud, vivienda y otras necesidades sentidas de la población?
Un ejemplo de cómo se dan estas relaciones, en cuanto las condiciones socio-ambientales, la construcción colectiva del Programa Comunitario de Educación Ambiental, en una comunidad en el período de 2014-2015, los procesos de organización y participación popular. En este sentido, vale destacar la historia de la creación del Grupo Comunitario de Educación Ambiental, el cual se constituyó como herramienta para la producción colectiva de nuevos saberes y nuevas prácticas en las relaciones entre seres humanos/naturaleza, para cuidar el Planeta y a la vez promover mejores condiciones de vida de la población.
En el discurso pronunciado ante la cumbre de Naciones Unidas sobre ecología y desarrollo, realizada en Rio de Janeiro (Rio - 92). Fidel Castro dijo:
“Los bosques desaparecen, los desiertos se extienden, miles de millones de toneladas de tierra fértil van a parar cada año al mar. Numerosas especies se extinguen. La presión poblacional y la pobreza conducen a esfuerzos desesperados para sobrevivir aun a costa de la naturaleza. No es posible culpar de esto a los países del Tercer Mundo, colonias ayer, naciones explotadas y saqueadas hoy por un orden económico mundial injusto”. (CASTRO, 1992).
Subrayó que los estilos de vida y hábitos de consumo impuestos por los países del Norte (es decir, por los países del capitalismo central), posibilitan que una importante especie biológica esté en riego de desaparecer: el ser humano. Por
supuesto, la “salvación de la humanidad de esa autodestrucción” no dependerá de la buena voluntad del pueblo cubano, sino más bien de la mejor distribución de “las riquezas y tecnologías disponibles en el planeta. Menos lujo y menos despilfarro en unos pocos países para que haya menos pobreza y menos hambre en gran parte de la Tierra”. En resumen, “aplíquese un nuevo orden económico internacional justo. Utilícese toda la ciencia necesaria para un desarrollo sostenido sin contaminación. Páguese la deuda ecológica y no la deuda externa”. Luego entonces, que “desaparezca el hambre y no el hombre” (CASTRO, 1992).
No sólo los cubanos, sino también la población planetaria tardó en darse cuenta de los despilfarros producidos por los proyectos capitalistas de desarrollo económico y (des) humano. Además del cambio climático y de otros problemas que resultan de las contradicciones entre capital y trabajo, y que afectan a todos los países del mundo. Cuba vive los efectos perversos del bloqueo económico impuesto por el imperio norte-americano. Así que, el tema es ¿cómo enfrentar los problemas y mejorar las condiciones de vida del pueblo cubano?
Como Moacir Gadotti (2001, p. 11) entendemos que “la educación comunitaria es una expresión de la educación popular”, y puede ser impulsada en la educación escolar y no escolar, en las cooperativas, en las organizaciones populares, etc. Siguiendo al autor, en Cuba, puede ser considerada como una “gran fuerza”, es decir cómo fuerza social, fuerza política y fuerza económica. Sin embargo, en Cuba, al contrario de lo que ocurre en los países capitalistas, no se trata de una educación para los excluidos del sistema económico, sino una práctica pedagógica cuyo objetivo es contribuir para la participación activa de todos los ciudadanos en el proceso de construcción colectiva del socialismo. Dicho de otra manera, la educación popular comunitaria es un importante eslabón del trabajo comunitario, con perspectivas de promover propuestas por las personas de las comunidades.
En el año de 2014, teniendo en cuenta las prácticas de trabajo comunitario desarrolladas a partir del triunfo de la Revolución Cubana, empezamos la construcción de un Programa Comunitario de Educación Ambiental. Aquí, en este artículo, explicamos cómo fue este proceso para comprender los paradigmas de la educación ambiental basada en la organización y participación popular, en la experiencia de la Cooperativa de Producción Agropecuaria “Jesús Suárez Soca”, del municipio Consolación del Sur, en la Llanura Sur de la provincia de Pinar del Río.
En toda la Isla, las cooperativas de producción agropecuaria surgieron como una necesidad de unir esfuerzos colectivos para encontrar soluciones y resultados productivos en la agricultura, promovidas e impulsadas por la revolución. Inicialmente se educaron a los campesinos, se elevó su nivel escolar, cultural, de la ciencia y las técnicas de trabajo, para entender mejor las actividades que realizaban y obtener mejores condiciones de vida. Y confirmando el artículo 18 de la Constitución de la República de Cuba respecto a los fundamentos económicos del socialismo, la mayoría de los campesinos cubanos se organizaron en cooperativas agrícolas donde las tierras, los medios de producción y los resultados productivos son de propiedad colectiva, con una junta de campesinos elegidos por ellos mismos que se encarga de socializar y proponer el trabajo a realizar en cada etapa. Los resultados y las ganancias se dividen entre todos los miembros.
Además de garantizar la socialización de los medios de producción, fue y aún hoy es necesario cuidar de la vida en todos los sentidos, considerando los seres humanos y los no humanos. Así que, tuvimos en cuenta los aportes realizados por los estudiosos de la educación ambiental crítica y otras pedagogías de dimensiones populares que plantean la necesidad de construcción colectiva del trabajo, de preservación de los valores y de la memoria histórica de los pueblos y comunidades respecto al aprovechamiento y utilización del espacio-territorio. En otras palabras, consideramos los elementos socio-ambientales en las prácticas cotidianas de las comunidades y de otros grupos organizados, que fueron considerados en los estudios realizados por Antonio Blanco (1997), Orestes Valdés (2008), Federico Loureiro (2012) y Porto-Gonçalves (2012), entre otros investigadores.
Para la formación del Grupo Comunitario de Educación Ambiental, entre 2014 y 2015 se trabajó con los campesinos y campesinas de la cooperativa, con los miembros de la junta directiva, elegida de forma democrática en la comunidad y que se encarga de organizar el trabajo de los socios de la cooperativa, la producción, ventas, la vida cultural y social de las personas, con los miembros de las brigadas de trabajo organizadas para desarrollar las diferentes actividades agrícolas, así como con el resto de la población formada por hijos, personas mayores de edad, maestros, enfermera y el médico de la familia.
Señalamos que, a partir de los intercambios, revisión de documentos, entrevistas con los recorridos por las áreas de cultivos, nuestra investigación-acción
(Peréz García, 2016) constató que los campesinos no tenían una percepción clara de la cuestión socio ambiental. Todavía este tema no era abordado en las actividades, reuniones de la junta y de socios de la cooperativa. Aun cuando, conocían algunos de los principales problemas que les afectaban, por lo que de este análisis surge la propuesta de crear el Grupo Comunitario de Educación Ambiental precisamente para atenderlos de manera intencionada y sistemática. A partir de este diagnóstico inicial, se profundiza en esta problemática más adelante.
Señaló Gadotti (2001, p15) que “no se puede separar educación comunitaria de educación escolar, pues los sectores populares de la comunidad luchan por la escuela pública de calidad”. Claro que, para pensar en la creación de un grupo comunitario en una comunidad rural, primero ocurrió desde el nivel nacional un proceso de educación escolar que propició la eliminación de los analfabetos y se crearon escuelas, se formaron maestros, posibilitando que en las comunidades sea comun encontrar personas muy preparadas como geógrafos, ingenieros, médicos, técnicos, maestros etc. Una vez más repetimos la idea de Martí, muy popular entre nosotros los cubanos, y que señalamos en el epígrafe de este artículo: “Educar es depositar en cada hombre toda la obra humana que le ha antecedió.”
Las enseñanzas de Martí fueron y son importantes para que nosotros entendiéramos los desafíos de la Cooperativa Jesús Suárez Soca. Aun cuando había una estructura de dirección que respondía a los intereses de la comunidad, los campesinos consideraron importante hacer, de forma participativa, la selección de las personas con más condiciones y disposición para el trabajo comunitario. Esta perspectiva fue muy importante y permitió constatar si los responsables de la cooperativa mantenían un nivel de liderazgo ante la mayoría, cuestión esta que era vital para el acompañamiento, credibilidad y compromiso entre las personas.
Esto presuponía aprovechar sus conocimientos y socializarlos, pero también la apertura a nuevos saberes de formación de grupo y respeto de los criterios de los demás y la necesidad de incorporar a sus prácticas nuevos conocimientos agroecológicos y ambientales. Fue muy significativo que la inmensa mayoría seleccionara a los directivos de la cooperativa como sus representantes, señal que indica su liderazgo, a lo que se sumaban otras propuestas de líderes naturales de la comunidad y representantes de organizaciones, que dio representatividad a los actores de la comunidad.
Para organizar el Grupo Comunitario de Educación Ambiental se consideró importante realizar encuentros de socialización y constitución del grupo de trabajo, de manera que se conocieran, debatieran sobre sus problemas, expectativas y aspiraciones a partir de los propios problemas de la comunidad y como ellos podrían ser parte de esas trasformaciones necesarias. En un segundo momento se le presentaron otras experiencias de comunidades de la provincia y en específico se analizó y asumió el proyecto Para la gente, por la gente y con la gente del Parque Nacional Viñales con comunidades del municipio Viñales, provincia de Pinar del Rio (Cuba), con financiación de la Asociación Fundescan (España). De esta propuesta algunas fueron asumidas, otras se adecuaron o reformaron según las percepciones y condiciones objetivas de la comunidad. Por otro lado, la gente levantó y construyó nuevas visiones a partir de sus vivencias, considerando las propias condiciones sociales, sus problemas locales para dar respuesta a las necesidades sentidas.
Para el desarrollo y el fortalecimiento orgánico del grupo, se organizaron talleres en los cuales se presentaron a los participantes diferentes preguntas para que, según su experiencia y conocimientos, trabajaran en equipos de trabajo y durante una o dos horas, o el tiempo que precisaren analizaran colectivamente, las respondieran y se prepararan para presentarlas ante el colectivo, debatirlas y socializarlas. Acá, destacamos las preguntas elaboradas y, a la vez, reelaboradas por el Grupo Comunitario de Educación Ambiental:
¿Cuáles son los problemas de calidad de vida que afectan a la comunidad.?, ¿Qué actividades prácticas desarrollar con el grupo.?,
¿ Cómo comunicarnos para las reuniones y otras situaciones.?, ¿ Cómo usar y controlar el inventario de los recursos entregados por el proyecto?, ¿ Cómo organizar actividades en las comunidades cada vez que se complete una acción del proyecto?, ¿Cómo trasmitir a las comunidades las informaciones y demás aspectos que se trabajan con los grupos.?, ¿ Cómo incorporar a los grupos, los organismos y las comunidades en el cuidado de los valores naturales.?, ¿ Cómo activar la participación de los Grupos Comunitarios de Educación Ambiental, organismos y comunidades en el trabajo? ¿Cuáles son los aspectos que se deben abordar en las reuniones? ¿Cuáles son las funciones de los Grupos Comunitarios de Educación Ambiental?,
¿Con qué frecuencia deben reunirse? (PEREZ GARCÍA, 2018, p. 57).
Organizados en equipos de trabajo, las personas de la comunidad analizaron la situación concreta y las necesidades sentidas de la comunidad. Percibieron que, aunque no tenían una formación ambiental para nombrar a los problemas, fueron
capaces de identificar con claridad el mal manejo de los desechos de cosecha, baja producción en las cosechas y deforestación. Y, además el poco trabajo de equipo para enfrentar esa situación.
Las cuestiones anteriores y los de formación del grupo de trabajo fueron analizados en la presentación de cada uno de los 5 equipos de trabajo. Se realizó un resumen con técnicas participativas, identificándose los aspectos que la mayoría consideraba adecuadas a los problemas y retos de la comunidad. El Grupo Comunitario de Educación Ambiental llegó a un consenso y los resultados fueron presentados a los socios de la cooperativa en sus reuniones de trabajo. Asimismo, durante seis meses se realizaron “barrios debates”, es decir, debates públicos con los barrios de la comunidad. Con toda la información recogida en estas acciones de participación colectiva y se organizaron talleres para sistematizar los análisis y propuestas de la gente respecto a cuál debería ser, de hecho, la metodología de trabajo del Grupo Comunitario de Educación Ambiental.
Ahora bien, el principal objetivo del grupo era analizar los problemas que afectan el medio ambiente y la calidad de vida de los vecinos, coordinando las acciones de trabajo con los organismos responsables y la comunidad. Esta perspectiva posibilitó conocer, participar en los proyectos y acciones que se desarrollan en la comunidad. Le correspondió al grupo definir sus miembros y los invitados a las reuniones, según las necesidades de cada momento y propiciar el desarrollo de concursos educativos sobre temas ambientales necesarios en la comunidad, talleres, exposiciones e investigaciones. De igual manera se consideró necesario hacer un reglamento para el uso, cuidado y protección de los medios entregados a la comunidad.
La composición del grupo quedó integrada por coordinador, vice-coordinador, secretario y entre los miembros de la comunidad podemos mencionar: maestro, médico de la familia, jubilados, jóvenes, mujeres, estudiantes, representantes de organizaciones como la Asociación Nacional de Agricultores Pequeños, Federación de Mujeres Cubanas, Comité de Defensa de la Revolución, miembros del grupo musical campesino, delegado del gobierno y directivos de la cooperativa. El objetivo fundamental del grupo fue estimular el trabajo colectivo de las personas de la comunidad considerando sus necesidades en temas de educación ambiental, manejo sostenible de tierras y su impacto económico, social y ambiental.
El Grupo Comunitario de Educación Ambiental Comunitario se reúne con una frecuencia mensual, con fecha colegiada con el colectivo. En relación a los aspectos a tratar en las reuniones hubo un amplio debate y finalmente se consideraron la actualización sistemática del banco de problemas de la comunidad, el estudio y chequeo del cumplimiento de las acciones del proyecto, el análisis del cumplimiento de las funciones del grupo y su estructura, la rendición de cuentas ante la comunidad. Por otro lado, se consideró importante la estimulación a la población para la participación en concursos de educación ambiental, la organización de actividades del grupo, la preparación y proposición de temas de capacitación y preparación de informaciones para el grupo gestor municipal. Asimismo, entre las actividades a realizar por el grupo y la comunidad se consideraron las reuniones, talleres, excursiones, participación en eventos, encuentros con otros grupos, barrio debates, concursos, desarrollo de acciones comunitarias en el cierre de cada acción del proyecto y realización de videos/fotos del proyecto.
Otro aspecto de interés fue sobre el uso y control de los recursos entregados a la comunidad por el proyecto, tales como arados, cercas, motores, sistemas de regadío, herramientas de trabajo como machetas y guatacas. Por consenso se consideró que el coordinador tendría archivada la relación de todos los recursos del proyecto y su responsable, con un reglamento para su cuidado, la selección de un local y una persona como responsable. Esta estructura ayudó a organizar el trabajo de las personas, a registrar sus problemas y soluciones. Todo este proceso de construcción y formación creó las condiciones para la organización del programa de educación ambiental comunitaria.
El trabajo comunitario que se realiza en las comunidades parte de las premisas y necesidades de la gente, con la gente y para la gente, y tiene un carácter marcadamente educativo. Es imposible hacer trabajo en la comunidad sin un proceso educativo que propicie la interacción entre las personas. En este sentido, el tema forma parte de la misma visión popular expresada por Moacir Gadotti (2011, p.13) al referir que "numa perspectiva progresista, a educação comunitária é aquela que associa o produtivo, o organizativo e o educativo”.
El trabajo comunitario a que nos referimos, no está basado en la ganancia, sino en la formación de nuevos valores, en comunicación, cooperación, solidaridad, participación, autogestión, creatividad y necesidades culturales y de vida en grupo, para la construcción de otras maneras de pensar y hacer. Luego, es evidente que son procesos complejos y de concientización de las personas para poder asumir nuevas responsabilidades y formas de compartir el espacio-territorio, donde priman los intereses colectivos. En esta dimensión es de destacar lo planteado por Pérez García en su artículo sobre las memorias de la Revolución Cubana.
Las relaciones que se producen en la comunidad están impregnadas del proceso histórico que se ha desarrollado en Cuba, el estableció nuevos roles y tipos de relaciones que se producen en lo individual y colectivo, en los modos de producción y la distribución de las riquezas en una nueva organización del trabajo. La sociedad forma parte de las mediaciones; un poder social que participa en la construcción colectiva libertaria en lo político, económico, social y cultural. (PÉREZ GARCÍA, 2018, p. 245.)
Para desarrollar el trabajo en la Cooperativa Jesús Suárez Soca se partió de la caracterización de la comunidad, la cual está formada por 66 trabajadores, de los cuales 12 son mujeres y 54 son hombres que se dedican a la producción de tabaco, cultivos varios, cítricos y frutales. Durante el proceso de la investigación se seleccionó una muestra de 34 miembros, considerando 10 socios, 3 directivos, 10 pobladores de la comunidad, 11 personas entre estudiantes y maestros de la escuela. En el proceso inicial de indagación de la situación socio-ambiental de la comunidad, se utilizaron los indicadores que responden a las diversas dimensiones, propuestas por el sociólogo Blanco (1997): geográficas, históricas, culturales, económicas, sociales, demográficas, religiosas, políticas, de salud y espirituales. También se consideró la información de otras experiencias de trabajo comunitario.
En un segundo momento del trabajo desarrollado en la cooperativa, se utilizaron diferentes técnicas para procurar la información como las: guía de observación documental, guía de observación a las reuniones de la junta directiva, guía de observación a las reuniones de los socios de la cooperativa y la guía de observación de las áreas agrícolas, permitieron de conjunto con los resultados integrados de las entrevistas grupales e individuales y encuestas aplicadas que se diagnosticaran los 8 problemas socio-ambientales de mayor incidencia en la misma.
De los problemas anteriores cinco de ellos fueron declarados como necesidades sentidas, de mayor incidencia en la cooperativa según criterios de la mayoría, ellos son: poco conocimiento del personal en temas de sistemas agrícolas sostenibles y medio ambientales, baja reforestación (áreas deforestadas de especies autóctonas), baja fertilidad del suelo, insuficientes sistemas de regadio y amplias áreas cubiertas de especies exóticas invasoras (marabú). De estos problemas el de mayor incidencia fue la baja reforestación (áreas deforestadas de especies autóctonas), por ser consenso de la mayoría, señalando el mismo como una necesidad para el cuidado de la biodiversidad, la protección del suelo, la eliminación de especies exóticas y a la contribución a un mejor intercambio que favorezca la ocurrencia de lluvias.
A partir de la situación anterior se hizo necesario potenciar las acciones de los actores sociales de la comunidad para el desarrollo de procesos de participación y educación popular, con el liderazgo del Grupo Comunitario de Educación Ambiental. Desde los referentes del nuevo saber ambiental, procesos estos que propiciaron la transformación de los problemas identificados, permitieron mejorar la realidad socio económica y ambiental del entorno, los modos de actuación y fomentar un desarrollo de respeto a la naturaleza, de manera de mejorar el cuidado de la biodiversidad, la protección del suelo y con ello los niveles de productividad y satisfacción de la población.
Para desarrollar el trabajo se tuvieron en cuenta regulaciones relacionadas con la temática, como el artículo 3 de la Ley 85 Forestal:
El patrimonio forestal lo integran los bosques naturales o artificiales, los terrenos destinados a esta actividad, las áreas deforestadas con condiciones para la actividad forestal, así como los árboles de especies forestales que se desarrollen en forma aisladas o en grupos cualquiera que sea su ubicación y tenencia (LEY FLORESTAL, 1999, p. 123)
Teniendo en cuenta las prerrogativas de las legislaciones anteriores se consideró importante tenerlas como referentes en las prácticas educativas. En este sentido se acogió lo que la Estrategia Nacional de Educación Ambiental plantea entre sus objetivos: “(…) Incluir y desarrollar la temática ambiental, y en particular, los aspectos relacionados con la actividad productiva o de los servicios sobre el medio ambiente, en los programas de superación y capacitación del personal
dirigente, técnico, obreros y trabajadores en general que laboren en las mismas” (ENEA CITMA, 2010, p. 86).
Esta declaración articulada con las acciones de capacitación tuvo en consideración los niveles de conocimiento de los campesinos y las actividades desarrolladas consideraron además las “regulaciones básicas que establece la Ley Forestal en relación al patrimonio forestal, los bosques y sobre todo al tipo de plantas a reforestar en áreas que lo necesiten” (Ley Forestal, 1999, p. 71-72). Una vía importante para atender esta situación es el Manejo Sostenible de Tierras (MST), expresión cada vez más empleada en el mundo, cuyo propósito es dar tratamiento a las tierras agrícolas para obtener productos abundantes y de calidad sin comprometer el estado de los recursos naturales. Es decir:
“(…) grupo de acciones para el uso sostenible de los bienes y servicios proveniente de los recursos naturales, sociales y materiales. Considerando el suelo, la topografía, los depósitos superficiales, los recursos de agua y clima, las comunidades humanas, animales y vegetales que interactúan de manera integral” (LEGISLACION AMBIENTAL, MST, 2009, p. 61).
Considerando las estrategias y leyes anteriores y la necesidad de procurar caminos que articulen los mismos con los saberes locales y las experiencias aplicadas, se asumió lo señalado por Pérez García en su tesis de doctorado:
“(…) es importante tener presente los puntos de contacto que tiene la educación ambiental con el paradigma humanista en el sentido de partir de las potencialidades y necesidades del individuo, creando un clima social fundamental para lograr la comunicación de la información, fomentando el autoaprendizaje, la auto dirección y la creatividad de las personas como estilos y formas de conductas que posibiliten un aprendizaje vivencial y de cooperación donde la educación esté unida a la práctica social, con una relación de respeto que facilite la comunicación emocional” (PÉREZ GARCÍA, P, J, 2016, p. 39).
La expresión anterior fue una práctica medular en el trabajo con los campesinos de manera de conseguir un clima, ambiente de trabajo y de construcción colectiva a partir de sus vivencias y experiencias personales, lo que enriqueció este proceso y permitió un cambio y cooperación para atender los problemas identificados, mudarlos o mitigarlos. Y, sobre todo que los autores se sintieran parte del cambio a partir de sus propias propuestas, iniciativas y compromisos colectivos formados en el trabajo de estudio en grupo.
Dentro de este contexto resulta importante la atención a la reforestación porque aporta una serie de beneficios y servicios ambientales muy necesarios para la creación de una conciencia ambiental, lo que permitiría restablecer o incrementar la cobertura arbórea, que aumentaría la fertilidad del suelo y la mejora de la retención de humedad, estructura y contenido de nutrientes (reduciendo la lixiviación, proporcionando abono verde y agregando nitrógeno). La siembra de árboles estabiliza los suelos, reduciendo la erosión hidráulica y eólica de las laderas, y de los campos agrícolas cercanos.
En este contexto, es importante el planteamiento de Enrique Leef (2001, p.
87) respecto a que “el nuevo saber ambiental surge como un cambio de episteme en el dominio conceptual de las relaciones sociedad-naturaleza”. El autor defiende, por encima de las habituales determinaciones socioambientales, las intenciones del sujeto, su cultura, su ética, y como motor de los cambios del saber ambiental el profundo deseo de saber y la infinita capacidad de cambiar de puntos de vista. Esta dimensión se encuentra elocuentemente expresada en el arte, los mitos, las prácticas económicas y culturales de las personas en las comunidades.
Por lo que se impone como expresa Leff, la necesidad de buscar otras racionalidades ante la globalización, otra racionalidad ambiental, desde la cultura y la autonomía de los pueblos. Esta perspectiva requiere de atención y conocer las experiencias acumuladas por nuestros pueblos y comunidades. En este caso de estudio las necesitamos para construir de conjunto nuestros propios caminos a partir de organizar el proceso de trabajo y crear el Grupo Comunitario que organizó el Programa de Educación Ambiental.
Este programa da tratamiento a los contenidos ambientales, legislativos, de manejo sostenible de tierra, a los problemas ambientales identificados, los medios y recursos necesarios para desarrollar las acciones, a partir de diferentes formas de organizativas del proceso como por ejemplo: los talleres, intercambio de experiencias, concursos educativos y barrio debates cuyos énfasis están básicamente en métodos de participación y construcción colectiva de los contenidos y las acciones de trabajo; de manera que los participantes sean parte de las transformaciones que se proponen y se sientan motivados a acompañar el proceso de cambios que se requieren.
A modo de ejemplo breve de las formas organizativas referidas anteriormente, en el caso de los talleres participativos, se diseñan de manera que se puedan realizar los que demande la comunidad en tres etapas: a) inicial, de diagnóstico para caracterizar la situación existente en relación a los problemas socio-ambientales y de calidad de vida de la comunidad; b) una segunda etapa de ejecución de talleres para dar tratamiento a los problemas identificados y c) la tercera etapa de evaluación de los resultados obtenidos, las transformaciones logradas y el rediseño de nuevas acciones para dar continuidad al trabajo.
En el proceso de organización del diseño de los talleres se consideran generalmente 2 ó 3 temas que incluye la propuesta de los participantes, para conocer sus puntos de vista y expectativas. En la estructura organizativa del taller se tiene en cuenta: el tema, objetivos, contenidos, métodos y técnicas, medios de trabajo, sugerencias metodológicas, evaluación y bibliografía. A continuación, reproducimos parte de la tesis de Pérez García (2016, p.154) que muestra, de manera sucinta, dos ejemplos de acciones de implementación del Programa Comunitario de Educación Ambiental.
Plan | Taller de intercambio sobre el tema: ¿Cómo enfrentar la solución de los problemas ambientales en la Cooperativa Jesús Suárez Soca? |
Objetivo | Reflexionar en torno a las limitaciones de los campesinos de la Cooperativa Jesús Suárez Soca en relación al conocimiento sobre el medio ambiente y a las alternativas para mitigar los problemas identificados. |
Contenido | Problemas actuales que afectan el medio ambiente y el manejo sostenible de tierras en el contexto de la Cooperativa Jesús Suárez Soca. |
Métodos y técnicas | Exposición, intercambio y técnica de discusión. |
Medios | Láminas, fotos, materiales de temas de medio ambiente y manejo sostenible de tierra y la realidad circundante. |
Sugerencias metodológicas | Se recomienda la consulta de los materiales orientados y con los que se fue trabajando durante la etapa investigativa. En un primer momento se trabaja en sesión plenaria partiendo del objetivo del taller y con una breve exposición de la concepción de manejo sostenible de tierra, los problemas que se identificaron en el diagnóstico y las propuestas que realizan los equipos de trabajo. |
En un segundo momento se realizan visitas a áreas agrícolas de la Cooperativa donde cada equipo expone las ideas principales de las propuestas realizadas a partir de las condiciones objetivas observadas en la visita. Al final de este proceso se socializan las respuestas y se llega a consenso sobre las propuestas que se realizan en cada caso, las cuales se compartirán en las reuniones de la junta y de los socios de la cooperativa y en la comunidad para dar lugar a los debates y soluciones colectivas. | |
Tiempo | 8 horas de trabajo. |
Evaluación | Se realizará de forma participativa considerando cuales son los principales problemas que les afectan, sus causas y las propuestas de soluciones. |
Bibliografía | Documentos normativos y de consulta. Ley 81 de Medio Ambiente, Estrategia Ambiental y de Educación Ambiental Nacional y Territorial, Programa de Asociación de País de Lucha contra la desertificación y la Sequía (CPP), Programa de mejoramiento y conservación de suelos. |
Plan | Taller de medidas prácticas para contribuir a resolver los problemas ambientales de la Cooperativa Jesús Suárez Soca |
Objetivo | Aplicar un conjunto de medidas prácticas con la junta de campesinos y miembros de la comunidad para contribuir a resolver los problemas ambientales identificados en la Cooperativa Jesús Suárez Soca. |
Contenido | La creación de viveros con especies de la vegetación autóctona, la utilización del compost para el mejoramiento de los suelos y el restablecimiento del sistema de regadío en las áreas de la Cooperativa sobre la base de la experiencia práctica y los conocimientos adquiridos en la capacitación. |
Métodos y técnicas | Visita dirigida a las áreas de la cooperativa, observación en el terreno. |
Medios | Bolsas con plantas autóctonas, sistema de regadío, materia orgánica y distintos instrumentos para trabajar en la tierra. |
Sugerencias metodológicas | Se desarrolló de forma participativa, cada equipo hará una valoración crítica de las principales ventajas que se obtienen con |
las medidas aplicadas para contribuir a resolver los problemas ambientales que se presentan en la comunidad y/o proponer otras alternativas. | |
Evaluación | Se desarrolló de forma participativa, cada equipo hará una valoración crítica de las principales ventajas que se obtienen con las medidas aplicadas para contribuir a resolver los problemas ambientales que se presentan en la comunidad y/o proponer otras alternativas. |
Bibliografía | Manual de Técnicas Agroecológicas, Documentos de Manejo Sostenible de Tierras. |
Cesen los egoísmos, cesen los hegemonismos, cesen la insensibilidad, la irresponsabilidad y el engaño. Mañana será demasiado tarde para hacer lo que debimos haber hecho hace mucho tiempo. (CASTRO, 1992).
Estas palabras proféticas de Fidel, marcan las posibilidades reales para mudar y conseguir un nuevo orden económico mundial más justo y solidario, aún más si consideramos que las grandes potencias de hoy se desarrollaron y consiguieron su opulencia basada en la explotación de los recursos de nuestros países, colonias y neo colonias ayer, y sometidas a un comercio desigual y desleal hoy; Infelizmente estas palabras están en el olvido y no han sido llevadas a la práctica por los capitalistas. En consecuencia, es cada vez mayor el abismo entre los países “ricos” y "pobres" o tercermundistas, a lo que se suma toda la problemática del cambio climático generado en gran medida por las prácticas del gran capital, que procuran la ganancia a cualquier precio, aun de la naturaleza.
La experiencia del trabajo comunitario en Cuba, promovida a partir de 1959, ha propiciado que las personas en las comunidades se organizaran, analizaran sus problemas socio-ambientales y procuraran soluciones. Esto ha sido en coordinación con los líderes naturales y con la participación de los gobiernos locales. En el caso de los campesinos y comunidades, aun cuando no tenían una percepción ambiental clara de los mismos, ellos fueron capaces de identificarlos a partir de su propia experiencia empírica y pensar en alternativas que enriquecieron las propuestas,
influenciado por la vocación de cuidado, preservación de su entorno de trabajo y los saberes de las prácticas agrícolas transmitidas de generación en generación.
Esta forma de participación y construcción colectiva intentó garantizar un empoderamiento de la gente, al ser parte de la solución del problema y la garantía de continuidad del proceso. Claro, esto fue posible porque la Revolución Cubana, desde sus inicios, apostó por educar a las personas, para elevar su nivel cultural, para que conocieran de la ciencia y las técnicas de trabajo, para entender mejor las actividades que realizaban y obtener mejores condiciones de vida, procuraron soluciones endógenas con el esfuerzo y recursos propios.
La organización y participación popular de que estamos hablando se manifiestan en la manera de hacer de los organismos del Estado Socialista, trabajando articuladamente con las organizaciones populares para construir colectivamente las acciones de transformación requeridas en las comunidades y de la población en general. Claro que esto propició una constante consulta entre la población y el Estado Socialista, que permitió el intercambio, el análisis, la reorientación y la rectificación sistemática del trabajo a realizar.
Esta práctica ha sido uno de los elementos más importantes para estar integrado con la sociedad y para que la misma sea protagonista de los cambios, al hacer las propuestas y participar en las mudanzas. Al mismo tiempo, esta práctica se ha constituido en un elemento clave de autocrítica colectiva, dónde cada persona e institución rinda cuentas de los resultados de su trabajo antes la comunidad. En síntesis, a partir de la educación popular comunitaria, las personas se organizan, elevan su consciencia de clase y se preparan para defender y desarrollar las conquistas producidas colectivamente, ante enemigos internos y externos.
En concreto, la aplicación del Programa de Educación Ambiental en la Cooperativa Jesús Suárez Soca posibilitó la capacitación de los miembros de la junta, socios de la cooperativa y personas de la comunidad en las temáticas ambientales, lo que permitió elevar el nivel de conocimientos y compromiso en el trabajo, la conciencia y educación para asumir de forma participativa las responsabilidades en la realización de las acciones transformadoras necesarias.
Se creó un área para la producción de composto, humus de lombriz, lo que unido al material extraído de las lagunas sirvió como relleno para la conservación y mejoramiento de los suelos y con ello mejoras en la producción. También se creó un
vivero de árboles forestales y frutales; así como un organopónico para la producción de hortalizas que mejoró el balance de la alimentación con verduras.
Se talaron las plantas de marabú y se plantaron especies autóctonas; así como se sembraron los bordes del terraplén y caminos de acceso a la comunidad, con frutales alternando con forestales: marañón, coco, aguacate, mango. Ello mejoró la reforestación, al igual que la instalación de un molino de viento para el bombeo del agua para el riego.
Además, se creó una mini - biblioteca con bibliografías especializadas y actualizadas sobre temas ambientales, metodologías, conceptos y legislaciones. El área divulgativa y científica se fortaleció con el desarrollo de los concursos. Además, los resultados del trabajo se presentaron en diferentes eventos a nivel de provincia y de país, así como la publicación de artículos científicos.
Esta forma de integrar los problemas cotidianos, los saberes locales y la construcción participativa comunitaria permiten un acercamiento de la academia con la sabiduría popular, se complementan, enriquecen y se producen procesos de aprendizajes, formación de valores ambientales-educativos, que contribuyen a una actuación más consciente y comprometida con los problemas que afectan a la comunidad.
Con aportes de la educación popular, el trabajo comunitario basado en la organización y participación ha sido clave para los procesos de transformación social “desde abajo”. De hecho, cómo está escrito en un cartel en La Habana, el embargo económico de los Estados Unidos representa una forma de genocidio. Sin embargo (o con embargo), seguiremos, como nos enseñará el Che, “hasta la victoria siempre”. Hoy por hoy sigue actual la pregunta que hizo Fidel en la cumbre Rio-92:
Cuando las supuestas amenazas del comunismo han desaparecido y no quedan ya pretextos para guerras frías, carreras armamentistas y gastos militares, ¿qué es lo que impide dedicar de inmediato esos recursos a promover el desarrollo del Tercer Mundo y combatir la amenaza de destrucción ecológica del planeta? (CASTRO, 1992).
BLANCO, P. A. Introducción a la Sociología de la Educación, Facultad de Ciencias de la Educación Ciudad Habana.1997.
CASTRO, F. R. Resumen Mesa Redonda Informativa. CUBADEBATE. TV Cubana. Disponible en https://www.google.com/search?q=cubadebate+hoy&oq=cubadebate&aqs=chrome.1
.69i57j0l5.17707j0j7&sourceid=chrome&ie=UTF-8. Acceso en 04/01/2019.
CASTRO, F. R. Discurso Pronunciado en Rio de Janeiro por el Comandante en Jefe en la Conferencia de Naciones Unidas sobre Medio Ambiente y Desarrollo, 12 de junio de 1992. Disponible en: http://www.cubadebate.cu/opinion/1992/06/12/discurso-de-fidel-castro-en- conferencia-onu-sobre-medio-ambiente-y-desarrollo-1992/#.XK5S2JhKjIU. Acceso en: 04/01/2019.
CITMA. Estrategia Nacional de Educación Ambiental 2010-2015. Centro de Información, Gestión y Educación Ambiental, La Habana, 2010, Disponible en: http://www.pnuma.org/educamb/reunion_ptosfocales_CostaRica/Cuestionarios_Politi cas/Politicas/CUBA.pdf. Acceso en 04/03/2019.
FREIRE, P. Pedagogía del Oprimido. 6. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1978. LEFF, E. Ecología, Capital e Cultura. Rio de Janeiro: Vozes, 2009.
LEY FORESTAL. Ministerio de la Agricultura de Cuba, 1999. Disponible en: https://www.ecolex.org/es/details/legislation/ley-no-85-ley-forestal-lex-faoc014922/. Acceso en 04/03/2019.
LEGISLACION AMBIENTAL. Manejo Sostenible de Tierras. Ley 81 del Medio Ambiente. Programa de Desarrollo de las Naciones Unidas – PNUD, 2009. Disponible en: http://www.sld.cu/galerias/pdf/sitios/insat/ley-81-citma.pdf. Acceso en 17/03/2019.
LOUREIRO, C. F. B. (Org.) Sustentabilidade e Educação um olhar da ecología política. São Paulo: Cortez, 2012.
MARTÍ, J. Ideário Pedagógico. La Habana: Centro de Estudios Martianos, 2015.
GADOTTI, M. "Educação Comunitária e Educação Popular". Brasil: Editora Cortez. 3ª Edição, 2001.
MONTAÑO, C. Terceiro setor e questão social: crítica ao padrão emergente de intervenção social. São Paulo: Cortez, 2002.
PÉREZ GARCÍA, J.J. Memorias de la Revolución Cubana. "Campesino a campesino, como experiencia de participación popular". Edición Navegando Publicaciones. MG. Brasil. 2018.
PÉREZ GARGÍA, J.J. Estrategia de Capacitación en Educación Ambiental para los dirigentes de la Empresa Transporte Agropecuario de Pinar del Río. Tesis de Doctorado. Instituto de Ciencias Pedagógicas. La Habana, 2016.
PORTO-GONÇALVES, C. W. A Globalização da Natureza e a Natureza da Globalização. Civilização Brasileira. Rio de Janeiro. 2012.
VALDÉS, V. O. Escuela y comunidad adulta. Educación ambiental y previsión de desastres. Cuba, 2008.
v.17, nº 34, set-dez (2019) ISSN: 1808-799 X
A CLASSE TRABALHADORA E SUAS LUTAS NO CAPITALISMO CONTEMPORÂNEO: SÍNTESES DO DEBATE MARXISTA1
Sandra Luciana Dalmagro2
Caroline Bahniuk3
O artigo apresenta contribuições para a análise da classe trabalhadora e suas lutas na atualidade, considerando as relações sociais contraditórias no capitalismo. Entende a classe, as lutas e movimentos sociais que a compõe como produtos históricos em permanente refazer. A análise coloca em relevo duas dimensões: uma objetiva, referente à condição material da classe e seu lugar na produção, e outra subjetiva, que diz respeito à sua consciência e ação política, ambas intrinsecamente articuladas. Aponta para a emergência de diversas lutas e organizações que revelam as contradições do capitalismo contemporâneo e o fazer-se da classe. Conclui afirmando a centralidade das categorias classe e trabalho para a compreensão da sociedade na atualidade, reconhecendo a diversidade e a unidade na composição atual da classe trabalhadora.
El artículo presenta contribuciones para el análisis de la clase trabajadora y sus luchas actuales considerando las relaciones sociales contradictorias de la sociedad capitalista. Entiende la clase y las luchas y movimientos sociales que la componen como producto histórico que se renueva permanentemente. El análisis pone relevancia a dos dimensiones: una objetiva, referente su condición material de clase y su lugar en la producción, y otra subjetiva que hace alusión a su conciencia y acción política, ambas intrínsecamente articuladas. Sugiere la emergencia de diversas luchas y organizaciones que revelan las contradicciones del capitalismo contemporáneo y la realización de la clase. Concluye afirmando la centralidad de las categorías clase y trabajo para la comprensión de la sociedad en la actualidad, reconociendo la diversidad y la unidad en la composición actual de la clase trabajadora.
1Artigo recebido em 02/08/19. Primeira avaliação em 21/08/19. Segunda avaliação em 22/08/19. Aprovado em 04/09/19. Publicado em 27/09/2019. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.17i34.p38135.
2 Doutora em Educação. Professora do Departamento de Estudos Especializados em Educação e do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Catarina. sandradalmagro@yahoo.com.br ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9639-7070
The article brings contributions to the analysis of the working class and its movements nowadays, regarding capitalist society’s contradictory relationship. It understands the class, the conflicts and the social movements that constitutes it as historical products permanently making themselves anew. It analyses the category highlighting two dimensions: an objective one, referring to its material condition and its place in production, and another subjective one, concerning its awareness and political action, both articulated to one another. It bespeaks the rise of several conflicts and organizations revealing contemporary capitalism’s contradictions, and how it constitutes working class's own making. It concludes claiming the central importance of the categories: class and labour to the comprehension of bourgeois society in current times, acknowledging the diversity and unity in the composition of nowadays working class.
O texto se propõe a refletir sobre a classe trabalhadora e a luta de classes nos dias atuais, considerando a composição da classe em seus aspectos econômicos, políticos e culturais, intrinsecamente articulados entre si. As mobilizações e movimentos sociais das últimas décadas são abordados considerando-os como expressão da classe e das lutas desta. Partindo de formulações marxistas, recuperamos a categoria classe social para compreender o trabalho no contexto do capitalismo contemporâneo. O debate proposto no artigo se justifica devido às profundas transformações nos processos produtivos e suas implicações na organização da classe trabalhadora nos últimos anos.
Para a análise da categoria classe social tomamos como referência de partida duas de suas dimensões: i) uma objetiva, que diz respeito a como os seres humanos produzem a sua existência nesse momento, ou seja, o trabalho na atualidade; e outra subjetiva, referente à dialética entre as relações de produção e à consciência de classe, ambas articuladas no processo de fazer-se da classe nas lutas. Admitimos como pressuposto o reconhecimento da diversidade da classe trabalhadora, sem perder de vista seus nexos e relações com a totalidade, a partir da qual é possível identificar a sua unidade.
Para tanto, organizamos o texto em três partes. Inicialmente realizamos um debate conceitual acerca da classe trabalhadora para, em seguida, recuperarmos a
reflexão sobre as especificidades do trabalho no capitalismo contemporâneo e suas repercussões na organização dos trabalhadores. Em seguida, refletimos acerca das lutas e movimentos sociais e os desafios para uma análise de classes na atualidade.
Para a tradição marxista, as categorias são históricas, expressam as relações sociais de seu tempo. Marx (1982, p. 551) aponta que elas são “abstrações de relações sociais” e que, portanto, encontram-se em movimento junto com as relações sociais que a constituem. Em relação à classe social, Marx e Engels ao longo de suas obras, demostraram o antagonismo entre as duas classes fundamentais do capitalismo: trabalhadora e burguesa. Na perspectiva marxiana elas possuem uma dupla dimensão: objetiva – sua condição material e seu local na produção material, e subjetiva - sua consciência e ação política.
Vendramini e Tiriba (2014) afirmam que as classes sociais, a luta de classes e a consciência precisam ser compreendidas de forma articulada entre si. As dimensões objetiva e subjetiva também não podem ser trabalhadas como dualidades separadas, quando se trata de entender a luta social. As classes possuem um caráter relacional, ou seja, se estabelecem em relação ao seu antagonista, no processo de luta. Para Thompson:
a classe acontece quando alguns homens, como resultado de experiências comuns (herdadas ou partilhadas), sentem e articulam a identidade de seus interesses entre si, e contra outros homens cujos interesses diferem (e geralmente se opõem) dos seus. A experiência de classe é determinada, em grande medida, pelas relações de produção em que os homens nascem – ou entram involuntariamente. A consciência de classe é a maneira como essas experiências são tratadas em termos culturais: encarnadas em tradições, sistemas de valores, ideias e formas institucionais (THOMPSON, 1987, p. 10).
Por ter uma dimensão histórica, as classes alteram sua composição ao longo do tempo, inclusive no próprio capitalismo. Mattos (2019), ao se debruçar sobre as obras de Marx e Engels, se interroga sobre a validade da categoria classe social na intenção de explicar a particularidade da classe trabalhadora e da luta de classes nos dias atuais e responde esse questionamento de forma afirmativa. Para o autor, com base em Marx, a classe trabalhadora é definida de forma ampla: todos que vivem da
venda de sua força de trabalho, principalmente na forma de assalariamento. Deste modo,
tendo referência em Marx, não é apenas no operariado fabril que devemos procurar a classe trabalhadora e, portanto, o sujeito potencial da transformação revolucionária da sociedade. O proletariado é muito mais amplo e envolve os trabalhadores produtivos, improdutivos, empregados e desempregados, formais e informais, mais ou menos precários (embora a proletarização envolva sempre precarização em algum grau), assalariados regulares ou não (MATTOS, 2019, p.90).
Para Miliband (1999) nenhuma classe social é homogênea. Considerando a historicidade do pensamento marxiano, compreende os trabalhadores como “uma classe extremamente variada, diversa, dividida com base na ocupação, habilidade, gênero, raça, etnicidade, religião, ideologia, etc.” (1999, p. 481). Entretanto, tal diversidade não anula o fato de que compõe uma classe, isto é, tem em comum a exploração da força de trabalho. As formas como as pessoas vivem a exploração, a exclusão e suas identidades particulares são moldadas não apenas pelas diferenças, mas também pela posição social que ocupam no mundo do trabalho, pela classe à qual pertencem (MILIBAND, 1999).
As lutas sociais possuem íntima relação com a experiência de classe e com as formas de consciência, evidenciam a dimensão subjetiva da classe trabalhadora, as quais não decorrem, na perspectiva marxiana, de forma imediata das condições objetivas da produção da existência. De forma que as classes não se definem somente por seu lugar na produção, mas sim, ao mesmo tempo, por sua consciência e ação política no processo de fazer-se classe e reconhecer-se como tal em luta. Compreendemos que a consciência é a expressão das relações humanas, portanto, se encontra entrelaçada com a base material que a gera. Para Marx & Engels (2009), a consciência social alienada é produto de relações de produção invertidas, onde o produto do trabalho, sob o comando do capital, domina os homens, este é reificado, reduzindo seu lugar de sujeito produtor da história. A tradição marxista nos ensina que a consciência possui base material e que a transformação das ideias corresponde à transformação das relações que lhe dão suporte. Mas também ensina que a consciência não é mero reflexo da base material, ela é constituída pela complexidade das relações e encontra-se em movimento.
Ao discutir a formação da classe operária inglesa, Thompson (1981 e 1987) demonstra que esta não nasce automaticamente do trabalho, antes se produz na luta
para enfrentar a exploração e a opressão, mesmo processo que produz a consciência de classe. Deste modo, a classe, suas formas de organização, luta e formação, são produtos históricos enraizados nas estruturas sociais – também históricas e em movimento, produto da ação dos homens sob condições determinadas -, tanto quanto nas experiências de luta criadas para fazer frente à exploração. Afinal, a classe, a consciência e suas lutas são produtos de circunstâncias históricas objetivas; são destruídas e reconstruídas pelos homens na produção de sua existência.
Marx e Engels reconhecem a diversidade e a heterogeneidade da classe trabalhadora, sem perder de vista a totalidade das contradições sob o capitalismo. Essa condição diversa advém da multiplicidade das condições objetivas de exploração, bem como de distintas formas de consciência, desde as reificadas até as de caráter classista. Por exemplo, as questões de gênero e raça colocam em evidência esse caráter diverso, pois são duas dimensões que atravessam o conceito de classe social e ao mesmo tempo mostram as especificidades das opressões no interior de uma mesma classe. Ao tratar da opressão de gênero sob o capitalismo, os precursores do marxismo denunciararam a opressão da mulher na família patriarcal e a intensificação do trabalho industrial feminino. Um século à frente, feministas marxistas recuperam a relação entre essa forma de opressão e a acumulação capitalista e revelam a centralidade do trabalho reprodutivo, realizado principalmente pelas mulheres da classe trabalhadora e sua relevância para a reprodução biológica e social, como também para o rebaixamento do preço da força de trabalho. Em síntese, a classe trabalhadora – em sua heterogeneidade, se encontra inserida na totalidade dinâmica e contraditória da vida social, o que impõe sua unidade enquanto classe social, (MATTOS, 2019).
Como os seres humanos produzem a sua existência ou a materialidade do trabalho sob o capitalismo contemporâneo é o cerne da nossa reflexão nesse momento. O capitalismo contemporâneo, segundo Netto e Braz (2008, p. 214, grifos do autor) assenta-se numa “estratégia articulada sobre um tripé: a reestruturação produtiva, a financeirização e a ideologia neoliberal”. Nesse período efetiva-se uma grande ofensiva do capital sobre o trabalho, uma expropriação sem precedentes dos
direitos trabalhistas, o aumento do desemprego, da precarização e da intensificação do trabalho. Essas transformações refletem de forma significativa na composição da classe trabalhadora, bem como em suas lutas e formas de consciência ampliando sua heterogenização e a fragmentação, lançando novos desafios para sua compreensão. A reestruturação da produção, denominada por Harvey (1992) de acumulação flexível, desde as últimas décadas do século XX se realizou por meio de um grande impulso tecnológico, com a introdução da automação, da robótica, da microeletrônica e da microbiologia aplicadas ao universo fabril (Antunes, 1999). Tais mudanças anunciam um novo modo de acumulação e organização do capital sustentado em profundas transformações das forças produtivas. A superacumulação de capitais provocada pelo excesso de mercadorias, força de trabalho e capital-dinheiro, somadas às crescentes inovações científicas e tecnológicas, foram os principais fatores para a eclosão da crise da década de setenta, com epicentro nos países do capitalismo central (Harvey, 1992). O declínio nos padrões de acumulação taylorista/fordista, exigiu a reorganização da produção e estabeleceu novas relações
de trabalho.
O elevado e constante uso da ciência e da tecnologia, sob o capitalismo, permite dispensar grandes contingentes de trabalhadores que veem sua função assumida por máquinas. A produção da riqueza cada vez mais se associa ao trabalho morto e menos ao trabalho vivo. Paralelamente à essa redução, ocorre uma crescente qualificação e intelectualização do trabalho social4. Em outras palavras:
a criação da riqueza efetiva torna-se menos dependente do tempo de trabalho e da qualidade de trabalho empregados, do que dos agentes postos em movimento durante o tempo de trabalho, que por sua vez não guarda relação alguma com o tempo de trabalho imediato que custa sua produção, mas que depende mais do estado geral da ciência e do progresso da tecnologia ou da aplicação desta ciência à produção (ANTUNES, 1999, p. 48).
4Trabalho social entendido como desenvolvimento das forças produtivas. A afirmação acima não significa que o trabalho esteja se tornando mais qualificado / especializado para o trabalhador. Isso se confirma para uma parcela pequena de trabalhadores que tende a diminuir. Para a grande maioria, o trabalho vem sendo simplificado, tornando-se ainda mais repetitivo e cansativo. Há um movimento contraditório de qualificação do trabalho que se caracteriza pela polarização das qualificações (FREYSSENET apud ANTUNES, 1999), ainda que para amplas massas de trabalhadores cada vez mais esteja destituído de sentido, sem requerer qualificação alguma. Para outros, o problema é o acesso ao trabalho, seja ele qual for.
Essas metamorfoses exigem a polivalência do trabalhador, capaz de operar várias máquinas ou tarefas, eficiente e ágil, apto ao trabalho em equipe e participativo na gestão mais horizontalizada da produção, bem como para maior solicitude às constantes mudanças no trabalho. Essas novas formas de gerenciamento da produção, aparentemente participativas e horizontalizadas, ocultam a apropriação da subjetividade do trabalhador pelo capital. Os adjetivos “associado” e “colaborador” são utilizados ideologicamente para denominar os trabalhadores. Diversos métodos e técnicas buscam estimular maior adesão à empresa, bem como estabelecer maior controle entre os trabalhadores em favor da produtividade do capital (GOUNET, 1999; ANTUNES 1999 & 2018).
Ao mesmo tempo vivemos um processo de profunda fragmentação do trabalho perceptível nas formas de subproletarização, terceirização e desemprego. Nos setores de trabalho formal também há grande disparidade nas condições de trabalho. Harvey (1992) caracteriza vários grupos entre os trabalhadores empregados, com uma diversidade de condições que vai desde os trabalhadores com emprego fixo, bons salários e estabilidade funcional - grupo pequeno se comparado aos demais e em constante redução - até os subcontratados, ou seja, com tempo parcial ou mesmo empregados casuais, com baixos salários e nenhuma estabilidade. Estes últimos estão sujeitos às formas mais intensificadas de exploração. Somam-se a esses, os trabalhadores desempregados, grupo que vem crescendo substancialmente.
Os dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT, 2018) demonstram um aumento da terceirização e do emprego instável e parcial na última década, perfazendo atualmente em torno de 42% dos trabalhadores em âmbito mundial. Em alguns países esse índice supera 70% dos trabalhadores. Para Antunes (2018), a terceirização passa a ser regra do trabalho atual e, de forma geral, os trabalhadores terceirizados recebem menores salários e têm menos diretos. As recentes modificações no campo jurídico – formal no Brasil, como a lei da Terceirização (n° 13.429/2017), a Reforma Trabalhista (n° 13.467/2017) e a Reforma da Previdência (PEC 06/2019) são emblemáticas para evidenciar a precarização do trabalho. Estas modificações manifestam um momento síntese das estratégias de recomposição do capitalismo contemporâneo no Brasil e o papel pró ativo do Estado na destruição dos direitos sociais. O panorama descrito até aqui assinala a precarização e a
intensificação como as formas contemporâneas do trabalho abstrato, alienado e assalariado, marcas constitutivas do trabalho no modo de produção capitalista.
Acerca de como as formas produtivas e políticas atuais no bojo do capitalismo contemporâneo têm dado novos contornos à classe trabalhadora, esclarece-nos Miliband:
A noção atualmente em voga de que a “classe trabalhadora” está diminuindo repousa sobre um equívoco quanto ao significado do termo. O componente industrial, manufatureiro, da classe operária está de fato diminuindo, mas a classe operária como um todo, as pessoas cuja fonte de renda exclusiva é a venda da sua força de trabalho (...) essa classe de pessoas tem aumentado, e não diminuído com o passar dos anos (MILIBAND, 1999, p. 481).
Nesse contexto de transformações nas forças produtivas e nas relações de produção, fez muitos autores decretarem o fim do trabalho e a diminuição da classe trabalhadora. Os dados e as formulações teóricas nas quais nos alinhamos questionam esta leitura e demostram que ela se pauta por uma visão reducionista e parcial das transformações no trabalho e na constituição da classe social5.
Apesar de em diversos países do capitalismo central observarmos a diminuição da classe operária industrial tradicional, há um crescente assalariamento em setores como o de serviços, concomitante ao aumento da industrialização e do assalariamento em outros países (como China e Índia, por exemplo). Mattos (2019), ao considerar os dados em nível mundial, afirma não haver um processo de desindustrialização e nem uma diminuição da classe trabalhadora, pelo contrário, esta vem sendo ampliada nas últimas décadas, no entanto, sob o fardo da precarização.
Diante dessa complexificação da classe trabalhadora, as organizações tradicionais trabalhistas, tais como os sindicatos e partidos, desde os anos 1980, sofrem um descenso em suas lutas. Em que pese seu crescimento em um ou outro país para onde o capital tem se expandido em maior volume, conforme apontado por Silver (2005), as análises em termos globais indicam uma fragilização dessas organizações. Esse enfraquecimento deve ser atribuído a um rearranjo no sistema produtivo, bem como pela ofensiva neoliberal sobre a forma de operar dos sindicatos na fase avançada do capitalismo.
5 Para uma crítica às perspectivas do fim do trabalho, ver Antunes (1999).
A expansão do capital pelo mundo, nas diversas respostas/soluções que este busca, carrega consigo os conflitos, impactando na organização dos trabalhadores. O capital migra geograficamente, deslocando a produção para países com força de trabalho sobrante ou em maior número, insere tecnologia na produção para diminuir o número de trabalhadores reunidos num mesmo local ou, ainda, desloca-se para novos nichos de mercado, setores de produção e para o mundo das finanças. Concomitantemente migram as possibilidades de resistências e a criação de novas organizações (Silver, 2005). Dessa forma, a reespacialização do capital adia a resolução das crises e do conflito, porém não necessariamente os diminui e, sim, o transfere para outro lugar ou outro setor.
Na década de 1980, pelas terras brasileiras eclodiram intensas mobilizações trabalhistas, verificadas pelo aumento significativo do número de greves e pela criação de instrumentos de organização da classe trabalhadora, em sua origem de abrangência nacional e de cunho classista, dentre os quais o Partido dos Trabalhadores (PT) fundado em 1981 e a Central Única dos Trabalhadores (CUT), criada em 1983. A força do sindicalismo se expressou em fortes greves e movimentos massivos, apesar de nos países centrais, no referido período, a classe trabalhadora estar em menor agitação – sobre a qual pesou maior impacto da reestruturação produtiva e da derrocada do socialismo real. O Brasil começou a sentir mais profundamente os impactos dessa recomposição capitalista sobre a organização da classe trabalhadora e seus instrumentos na década de 1990. A partir daí, parte significativa dos sindicatos vai perdendo sua autonomia e combatividade, permanecendo, todavia como importantes espaços de enfrentamento das lutas trabalhistas.
Para Antunes (2018) o período do PT no governo federal consolidou a transfiguração das principais centrais sindicais, dentre as quais a CUT, de um sindicalismo de confronto para um sindicalismo negocial, por meio da composição de postos no governo, dos fóruns tripartite, das regras de financiamento das centrais, entre outros mecanismos. Assim, efetiva-se uma complexificação e fragmentação com a criação de outras centrais sindicais, com forte impacto nas lutas sociais. Porém no decorrer desses governos, houve diversas greves, muitas das quais à revelia de gestões sindicais burocratizadas, de forma mais ampliada a partir do início dessa década. O sindicalismo do Brasil e no mundo padece devido à sua regulação pelo
Estado e por suas limitações corporativas e burocráticas, restritos, em grande maioria, aos trabalhadores formais. Com as reformas neoliberais em curso e as restrições legais que têm sido impostas às organizações dos trabalhadores como forma de os calar, poderão de um lado perder espaço, de outro radicalizar sua atuação.
Deste modo, a abordagem das lutas trabalhistas num largo espaço e tempo, como faz Silver (2005), é muito importante para evitar conclusões apressadas como o fim do sindicalismo ou das lutas de classe. A conclusão da autora, segundo a qual para onde vai o capital o conflito vai atrás, é inspiradora ao evidenciar o surgimento das lutas trabalhistas em novas regiões e setores da economia. Silver menciona ainda as dificuldades e caminhos para os trabalhadores encontrarem formas de luta eficazes em face a cada nova situação aberta pela migração do capital para novas regiões e setores da economia. Pensamos, portanto, que em face da profundidade das transformações produtivas em curso, a classe trabalhadora, imersa nas dificuldades que temos mencionado, busca renovar e também ensaia novas formas de organização e luta.
Nas últimas décadas ampliou-se a mundialização do capital, a riqueza e o poder se encontram concentradas em cada vez menor número de pessoas ou corporações, enquanto a população de todos os continentes e países vai sendo submetida a esta lógica. 1% da população mundial concentra tanta riqueza quanto os 99% restantes. Para Harvey (2014), a espoliação dos recursos naturais de nações e povos torna-se imprescindível para continuar a acumulação de capital, impondo aos países e às suas populações suas regras e leis, as quais cada vez mais se colocam em direção contrária aos interesses soberanos das nações e às necessidades de sobrevivência digna de sua população. Para o referido autor, no “novo imperialismo” não há compromisso com a democracia burguesa, as leis são impostas ou refeitas e mesmo governos são eleitos ou depostos de acordo com os interesses de poderosos grupos econômicos. Não faltam exemplos recentes nesta direção.
A recomposição do capital induzida pela crise o oxigena e garante a permanência do seu domínio sobre o trabalho, via de regra intensificando a taxa de exploração. Frente às crises, o maior ônus acaba por recair sobre a condição de vida dos trabalhadores por meio do rebaixamento dos salários, da retração dos direitos sociais e da ampliação do desemprego. Essa situação repercute no poder de enfrentamento dos trabalhadores e realiza, em certos casos, a diminuição de sua
capacidade de enfrentamento e de suas organizações tradicionais, em particular dos sindicatos e partidos combativos dos países do capitalismo central, a partir da década de 1980. Nos anos 2000, sobretudo, evidenciamos a emergência de centenas de mobilizações massivas e uma diversidade de organizações e movimentos sociais que, a nosso ver, expressam não apenas a fragmentação da classe, mas também as contradições do capitalismo e as novas de formas de luta ensaiadas para fazer frente à atual fase do capitalismo. Sobre isso versamos no item a seguir.
Outros processos organizativos da classe trabalhadora referem-se às inúmeras mobilizações, coletivos e organizações, os quais atuam nos mais variados temas e lugares. Mattos (2017a, s/p) define movimento social como organização da classe contra o capital, considerando possuírem dupla dimensão:
como movimentos/organizações que atuam para buscar a resolução de problemas específicos que atingem a classe (nas relações de trabalho, nos locais de moradia, no cotidiano da vida de uma forma geral); e com o sentido mais amplo das mobilizações e ações coletivas, ou seja, das lutas sociais de uma época.
Na discussão do autor, os movimentos sociais incluem as formas mais tradicionais de organização da classe trabalhadora, a partir da esfera produtiva, como os sindicatos, por exemplo. Mas contemplam também organizações de luta pelos e nos territórios em que a força de trabalho se reproduz (moradia, alimentação, lazer, etc.), e ainda as questões identitárias que atravessam e constituem a classe (gênero e orientação sexual, étnica, entre outras). Desta forma, pensamos que os movimentos sociais expressam as contradições da sociedade, suas necessidades de mudança e podem dar pistas do futuro.
Segundo Harvey (2012) e Maricato (2013), presenciamos na últimas décadas uma explosão de lutas e movimentos sociais nas mais variadas temáticas e formas de organização: movimentos ambientais e alimentares, por moradia e transporte, na comunicação e jornalismo, nas artes e na cultura, sem terra e sem teto, por creche, escola e saúde pública, de mulheres, negros e de orientação sexual, na música e na internet, de estudantes e operários.
Para Zizek (2013), manifestações como o Occupy, a Primavera Árabe, e Junho de 2013 no Brasil, apesar de cada uma ter motivos específicos ligados ao contexto de cada país, elas têm em comum a reação contra as múltiplas facetas da globalização capitalista, um sentimento de desconforto e descontentamento generalizado com o sistema como um todo e não apenas com um ou outro de seus aspectos. Para Alves (2012) trata-se de uma “globalização dos de baixo”, cuja enorme diversidade exprime a universalização da condição de proletarização.
As jornadas de junho de 2013 que tomaram as ruas do Brasil foram permeadas por profundas contradições. Iniciaram-se pela luta por transporte em São Paulo, rapidamente se espalharam por diversas cidades, expressando um profundo descontentamento da população com a precarização da vida. Essas mobilizações para Maricato (2013) e Harvey (2013) repuseram na pauta a questão urbana e o direito à cidade, à moradia, ao transporte e aos serviços públicos. Estas lutas, com maior ou menor consciência de seus atores, opuseram-se à mercadorização dos direitos e serviços públicos, logo a preponderância do lucro, que torna as cidades espaço de segregação social, mas também de lutas por melhores condições de vida.
Ao mesmo tempo, neste contexto, há crescimento significativo da extrema direita, fenômeno mundial, mas que em terras brasileiras tem tomado contornos dramáticos. Desde 2015, acontecem de forma permanente mobilizações financiadas e articuladas pela direita, com a validação e a participação, principalmente de parte da “classe média” brasileira.6 A partir da bandeira do combate à corrupção, seletiva e propulsora de uma histeria antipetista e anticomunista, assumidas tragicamente como sinônimos, espalham ódio assentados no racismo, homofobia, machismo e fundamentalismo religioso. O golpe jurídico - midiático -parlamentar de 2016, e a legitimação pelo voto de um governo de extrema direita no ano passado, são fatos resultantes desse processo. A criminalização das lutas e dos movimentos sociais combativos têm se intensificado nesse contexto, de modo articulado a um conjunto de reformas que atingem frontalmente os direitos sociais de forma mais dramática, os trabalhistas e previdenciários, o que tem colocado um novo grau de complexidade sobre a compreensão da ofensiva ao trabalho, em tempos de profunda crise social e
6 Para a compreensão do ostensivo processo da reorganização neoconservadora no Brasil atual, sugere-se o livro: GALLENO, Esther Solano (org.). O ódio como política e a reinvenção das direitas no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2018.
ascensão da extrema direita, como também se complexificam a construção de enfrentamentos à essa condição.
Outro aspecto a considerar refere-se às formas de organização destes movimentos sociais combativos, as quais se ligam com a natureza das questões que os movem, criando formas novas de luta, formação política e organização ou renovando velhas formas. Buscam por gestão coletiva e democracia direta, suas lutas em geral recusam os espaços institucionais tradicionais, e acabam por produzir novos canais de reconhecimento e protesto. As mobilizações de massa e a criação de alguns coletivos na atualidade indicam, em certo sentido, os limites da luta institucional e uma enorme crise de representação política no Estado e mesmo nas organizações de esquerda (HARVEY et al, 2012; MARICATO el al, 2013; CAROS AMIGOS, 2016).
Outra característica das mobilizações atuais refere-se à ampliação das lutas por reconhecimento identidário e contra as mais diversas formas de opressões (de gênero, sexual, étnica, entre outras). Movimentos como os feministas, negros e LGBTs crescem e se pulverizam, assinalando, de um lado, maior inserção social e organização destes setores e, de outro, denunciando as formas velhas e renovadas de discriminação e desigualdade. Grandes mobilizações têm sido realizadas a partir dessas temáticas, citamos o 8M – greve internacional de mulheres, como um exemplo elucidativo, que tem colocado nas ruas número expressivo de pessoas. Para Mattos (2019), a particularidade das opressões foi, por vezes, secundarizada pelas análises marxistas e organizações socialistas. O que explica, em nossa compreensão, a dominância do referencial pós-moderno nas pesquisas sobre estas temáticas. O autor demonstra como as opressões atravessam a classe trabalhadora e a impossibilidade das mesmas serem resolvidas sob o capitalismo; estas integram de forma complexa e não linear a exploração do trabalho. O autor indica, ainda, a necessidade de estabelecer mediações para incluir as opressões nas pesquisas e nas pautas direcionadas à emancipação da classe trabalhadora, refutando as análises restritas às fronteiras identitárias, como também as situadas numa unidade absoluta e abstrata da classe trabalhadora. Ambas interpretações desconsideram a heterogeinização e complexificação do trabalho na atualidade.
No campo das ciências humanas, existem algumas tendências que nomeiam ou tomam esses movimentos como “novos movimentos sociais”7, alegando não serem as categorias de classe e trabalho centrais para a compreensão dos mesmos. Parte dessas tendências alinham-se ao pensamento pós-moderno, enfatizam a especificidade de cada um desses movimentos, ao mesmo tempo em que se baseaim na impossibilidade de transformações profundas, além de modificações locais.
O marxismo, na articulação metodológica entre singularidade – particularidade e universalidade, recusa essa conceituação e mostra a incongrugência dessas análises, ou seja, considera que as especificidades do trabalho e da classe social no capitalismo contemporâneo, apenas aparentemente podem ser confundidas com o fim de sua centralidade, conforme discutimos anteriormente. Articular a dimensão cultural e identitária com a estrutura econômica e de classes da sociedade capitalista é um desafio para os estudos acerca dos movimentos sociais.
Sobre a inconcrugência do conceito “novos movimentos sociais” e a apologia à diversidade presente nas perspectivas pós-modernas, Vendramini (2007) indica:
a necessidade de contextualização dos movimentos sociais atuais, de não tomá-los como experiências em si, desconectadas do conjunto social, de apreender seu sentido, tendo em vista as tradições passadas, de identificar suas origens sociais e históricas, para não incorrermos no duplo erro de subestimá-los ou supervalorizá-los (VENDRAMINI, 2007 p. 1400).
Neste sentido, entendemos que as lutas e movimentos sociais são profundamente educativos pois colocam as pessoas em movimento, possibilitam por sua atuação questionar concepções antes consolidadas, agem alterando mais ou menos profundamente as relações, e, neste processo educam (Dalmagro, 2016). As lutas que empreendem e a organização coletiva que promovem são essenciais nos processos de formação da consciência e, quando suas pautas específicas são articuladas às questões estruturais que as geram, emerge a possibilidade da construção da consciência de classe. Os movimentos sociais são expressão da classe
7 Como Offe (1989) e Gorz (1982). No Brasil, Sherer- Warren (1989) e Gohn (2010), dentre outros. Para Montaño e Duriguetto (2011), a produção teórica brasileira a respeito dos novos movimentos sociais foi influenciada principalmente por autores europeus, em suas três grandes vertentes: a dos acionalistas (particularemnte de Touraine e Evers); as vinculadas às premissas teóricas pós-modernas (especialmente a obra de Boaventura Santos, nos anos 1990-2000) e a marxista franco espanhola (de Castells e Lojkine, predominantemente nos anos 1970-1980). Atualmente há uma confluência, em especial das duas primeiras vertentes, em um rearranjo culturalista. Grande parte dessas formulações associa-se ao questionamento da centralidade do trabalho na sociedade atual. A esse respeito indicamos a crítica feita por Antunes (2000).
trabalhadora em seu fazer-se, uma reação mais ou menos consciente, em face da exploração e opressão capitalista na atualidade.
Nesse texto, ao refletirmos sobre a classe trabalhadora e a luta de classes nos dias atuais, recuperando a discussão da tradição marxista sobre trabalho e classe, buscamos, a partir das relações sociais atuais, afirmar a centralidade do trabalho e da classe trabalhadora no capitalismo contemporâneo, considerando-as como relações sociais datadas historicamente. De forma que, mais ou menos diretamente, com maior ou menor ênfase, as lutas e movimentos sociais possuem articulação com a posição de classe, com o lugar ocupado no processo de produção e com a experiência subjetiva da luta dos trabalhadores.
Nas últimas décadas, fruto da reestruturação produtiva, da ideologia neoliberal e da financeirização, vivenciamos uma crise nas organizações tradicionais da classe como os sindicatos e partidos, com graves consequências na organização e conquistas da classe. No entanto, reconhecemos o papel histórico que estes desempenham e pensamos que os sindicatos e partidos precisam ser renovados quanto à base que os compõe, suas formas de luta e organização. A crise sindical e partidária deve ser vista com cautela em face da capacidade de renovação das lutas trabalhistas, como o estudo de Silver (2005) indica. Em contrapartida, emergiram lutas sociais nas mais variadas temáticas da vida na atualidade, colocando em cena novas ou renovadas formas de luta e organização, num contexto de ofensiva do capital sobre o trabalho. Argumentamos que, para apreender estes movimentos para além das aparências, são imprescindíveis as categorias totalidade, dialética, contradição e historicidade.
se detemos a história num determinado ponto, não há classes, mas simplesmente uma multidão de indivíduos com um amontoado de experiências”. Se “a classe é definida pelos homens enquanto vivem sua própria história” (Ibid), cabe-nos examinar as formas pelas quais homens e mulheres transitam e se (re)posicionam frente às contradições do capital, “observando padrões em suas relações, suas ideias e instituições” (Ibid). Por não se tratar de um conceito estático, a análise da classe trabalhadora hoje, na sua complexidade, pressupõe a análise de seu (re)fazer-se no processo histórico. Que elementos de ordem econômica, política e cultural podem contribuir no entendimento do modo de ser dos trabalhadores e trabalhadoras? (THOMPSON,1987, apud VENDRAMINI E TIRIBA, 2014, p. 67).
Para Vendramini (2007), a dialética passado, presente e futuro é essencial para entender a sociedade, logo, também, as lutas sociais. Ainda, segundo a autora, não é possível escrever a história isolando aspectos do todo, é necessário “articular as singularidades ou as particularidades estudadas numa totalidade conceitual” (Vendramini, 2007, p. 1409). Tendo por base esta compreensão, afirmamos que as lutas de classe expressam as explosivas contradições, a luta pelo acesso às condições elementares de sobrevivência e dignidade e, ao mesmo tempo, demonstram a impossibilidade dessas condições se realizarem por completo nas relações sociais capitalistas. O que indica outras necessidades mais amplas: a superação do modo de produção capitalista e a socialização da riqueza - material e cultural aos seus produtores.
Pensamos que há algo em comum na diversidade e heterogeneidade em que se apresentam a classe trabalhadora e suas lutas. Os indivíduos da classe são homens e mulheres, brancos e negros, hétero ou homossexuais, trabalham na fábrica ou na escola, nas mídias ou no campo, enfim, são diversos. Mas o que confere unidade à diversidade é a condição de trabalhadores explorados e oprimidos, ainda que esta exploração e opressão seja diferenciada a depender destas particularidades. É esta condição comum que pode conferir unidade ao que na aparência é disperso e sem conexão. Sustentamos ainda que estas pautas específicas, como as de gênero e raça, ainda que não se esgotem em uma análise de classe, não podem desta prescindir, pois guardam relação com uma mesma estrutura social que as produz ou redefine, portanto com a sociedade capitalista em sua fase imperialista.
A classe trabalhadora é feita e refeita continuamente. As lutas sociais expressam a classe em sua complexidade, variedade e heterogeneidade, trazendo à tona velhas e novas questões. Trazem à tona os bastidores do social, o escondido ou que se invisibilizou. Desta forma revolvem a sociedade, expõe o problema, são termômetros do social. A formação, politização ou conscientização ocorre no processo de organização e luta. Novas contradições são produzidas pela ação da classe trabalhadora, inclusive pelo alcance de seus objetivos mais imediatos. O novo e o velho emergem misturados, imbricados, confundidos e criam-se mutuamente. Distingui-los exige tempo, rigor teórico e experiência.
ALVES, G. Ocupar Wall Street... e depois? In: HARVEY, D. et al. Occupy: movimentos de protestos que tomaram as ruas. São Paulo: Boitempo Editorial e Carta Maior, 2012.
ANTUNES, R. Adeus ao trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho. 6ª ed. São Paulo: Cortez, 1999.
. Os sentidos do trabalho: ensaios sobre a afirmação e a negação do trabalho. 2ª ed. São Paulo: Boitempo Editorial, 2000.
. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo: Boitempo Editorial, 2018.
CARNEIRO, H. S. Rebeliões e Ocupações de 2011. In: HARVEY, D. et all. Occupy: movimentos de protestos que tomaram as ruas. São Paulo: Boitempo Editorial e Carta Maior, 2012.
CAROS AMIGOS ESPECIAL. Novas Esquerdas. Ano XIX, n. 80, São Paulo, 2016.
DALMAGRO, S. L. Movimentos Sociais e educação: uma relação fecunda. Trabalho Necessário, Rio de Janeiro, ano 14, n. 25, 2016.
GOHN, M. da G. Novas Teorias dos Movimentos Sociais. 3ª. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2010.
GORZ, A. Adeus ao proletariado: para além do socialismo. Rio de Janeiro, Forense, 1982.
GOUNET, T. Fordismo e Toyotismo na civilização do automóvel. São Paulo: Boitempo Editorial, 1999.
HARVEY, D. A condição pós-moderna. 9ª ed. São Paulo: Loyola, 1992.
.A liberdade da cidade. In: MARICATO, E. et al. Cidades Rebeldes: passe livre e as manifestações que tomaram o Brasil. São Paulo: Boitempo e Carta Maior, 2013.
. O novo imperialismo, 8ª ed. São Paulo: Loyola, 2014.
et al. Occupy: movimentos de protestos que tomaram as ruas. São Paulo: Boitempo Editorial e Carta Maior, 2012.
MARICATO, E. É a questão urbana, estúpido! In: MARICATO, E. et al. Cidades Rebeldes: passe livre e as manifestações que tomaram o Brasil. São Paulo: Boitempo Editorial e Carta Maior, 2013.
et al. Cidades Rebeldes: passe livre e as manifestações que tomaram o Brasil. São Paulo: Boitempo Editorial e Carta Maior, 2013.
MARX, K. Carta a Annenkov. In: Obras escolhidas, Tomo I. Lisboa: Edições Avante!, 1982.
& ENGELS, F. A ideologia alemã. São Paulo: Expressão Popular, 2009.
MATTOS, M. B. Movimento, mobilização e ação coletiva. Disponível em: https://blog.esquerdaonline.com/?p=8055. Acesso em 09 de março de 2019.
. A classe trabalhadora: de Marx ao nosso tempo. 1 ed. São Paulo: Boitempo Editorial, 2019.
MILIBAND, R. Análise de classes. In: GIDDENS, A. e TURNER, J. Teoria social hoje. São Paulo: Editora UNESP, 1999.
MONTAÑO, C. & DURIGUETTO, M. L. Estado, classe e movimento social. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2011. (Biblioteca básica do Serviço Social).
NETTO, J. P. & BRAZ, M. Economia Política: uma introdução crítica. 4. ed- São Paulo: Cortez, 2008. (Biblioteca básica do Serviço Social).
OFFE, C. Trabalho: a categoria sociológica chave? In: OFFE, C. Capitalismo desorganizado. São Paulo: Brasiliense, 1989.
Organização Internacional do Trabalho. Perspectivas sociales y del empleo en el mundo – Resumen Ejecutivo, 2018. Disponível em: https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---dgreports/---dcomm/--- publ/documents/publication/wcms_615674.pdf. Acesso em 10 de março de 2019.
SHERER-WARREN, I. Movimentos Sociais. 3ª ed. Florianópolis: Editora da UFSC, 1989.
SILVER, B. Forças do trabalho: movimentos de trabalhadores e globalização desde 1870. São Paulo: Boitempo Editorial, 2005.
THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. 3 v.
. A miséria da teoria: ou um planetário de erros. Rio de Janeiro: Zahar, 1981. p. 47-62.
VENDRAMINI, C. R. Pesquisa e Movimentos Sociais. Educação e Sociedade, Campinas, vol. 28, n. 101, p. 1395-1409, set./dez. 2007.
e TIRIBA, L. Classe, cultura e experiência na obra de E. P. Thompson: contribuições para a pesquisa em educação. HISTEDBR On-line, Campinas, nº 55, p. 54- 72, 2014.
ZIZEK, S. Problemas no Paraíso. In: MARICATO, E. et al. Cidades Rebeldes: passe livre e as manifestações que tomaram o Brasil. São Paulo: Boitempo Editorial e Carta Maior, 2013.
v.17, nº 34, set-dez (2019) ISSN: 1808-799 X
Ivonei Andrioni2 Edson Caetano3
Tendo como referência o materialismo histórico dialético, este texto tem como objetivo analisar a feira Canteiros de Comercialização Sociossolidária e Agroecológica (CANTASOL), no Assentamento Doze de Outubro, município de Claudia/MT, como alternativa questionadora e de resistência aos ditames da sociedade capitalista, podendo assim, contribuir para a construção de uma sociedade ancorada nos produtores livremente associados. Buscamos evidenciar as contradições e entender as perspectivas que o projeto das feiras agroecológicas traz para os trabalhadores e trabalhadoras que dele fazem parte.
Teniendo como referencia el materialismo histórico dialéctico, el texto tiene como objetivo analizar la feria Cantariros de Comercialización Sociosolidaria y Agroecológica (CANTASOL), en el Asentamiento Doce de Octubre, en el municipio de Claudia, en el Estado de Mato Grosso, como instrumento cuestionador y de resistencia a los problemas los dictámenes de la sociedad capitalista, pudiendo así contribuir a la construcción de otro modelo societario anclado en la sociedad de los productores libremente asociados.
With reference to dialectical historical materialism, this text has the objective to analyze the Canteiros de Comercialização Sociossolidária e Agroecológica fair, in the Doze de Outubro settlement, in Cláudia, State of Mato Grosso, as an questioning and resistance alternative to the dictates of capitalist society, thus contributing to the construction of a society anchored in freely associates producers. We seek to highlight the contradictions and understand the perspectives that the project of agroecological fairs brings to the workers who are part of it.
1 Recebido em 03/04/2019. Primeira avaliação: 09/05/2019. Segunda avaliação: 08/07/2019. Aprovado em 02/08/2019. Publicado em 27/09/2019. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.17i34.p38130.
2 Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Educação/ Universidade do Estado de Mato Grosso (UFMT). Professor de Sociologia da rede estadual de educação de Mato Grosso. Email: ivoneiandrioni@yahoo.com.br. ORCID: http://orcid.org/0000-0001-5399-2750.
3 Doutor em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (2001). Professor Associado II da Universidade Federal de Mato Grosso; Instituto de Educação, Departamento de Teoria e Fundamentos da Educação. Atua no curso de Graduação em Pedagogia e no Programa de Pós-Graduação em Educação. Email: caetanoedson@hotmail.com. ORCID: http://orcid.org/0000-0001-9906-0692.
O presente texto é resultado de uma pesquisa realizada junto a trabalhadoras e trabalhadores do Assentamento Doze de Outubro, no município de Cláudia, no estado de Mato Grosso, entre o mês de maio de 2017 e o mês de maio de 2019, com o objetivo de analisar um grupo de assentados da reforma agrária que optou por produzir a existência tendo como referência o modelo de produção agroecológica e a comercialização sociossolidária.
O presente trabalho pretende conhecer e dar visibilidade à feira CANTASOL por ser um projeto que coaduna com o GEPTE4, que caminha na esteira de questionar as premissas do modo de produção capitalista, bem como de dar visibilidade às formas de produção da existência dos povos e comunidades tradicionais e de outras populações consideradas minoritárias que “vivem a vida a partir de uma perspectiva diversa da lógica capitalista” (CAETANO, 2011, p. 11).
Com o propósito de se evidenciar as contradições existentes entre as feiras livres – cujo objetivo é a reprodução ampliada do capital –, e as feiras agroecológicas
– que buscam a reprodução ampliada da vida –, foi escolhido como objeto de pesquisa a feira CANTASOL, uma vez que esta consiste em uma experiência de materialidade de um projeto de transição agroecológica e sociossolidária.
Com fins didáticos, optou-se por dividir a pesquisa em três momentos. Inicialmente, abordar-se-á a gênese das feiras livres como espaço aberto de comercialização na perspectiva do capital. Em um segundo momento, discorrer-se-á acerca das feiras agroecológicas enquanto espaço de comercialização de produtos limpos e sem ágio, onde se evidencia um modelo de produção em que trabalhadoras e trabalhadores, de posse de saberes tradicionais, buscam o controle dos processos produtivos, como parte de suas estratégias de enfrentamento e luta contra o modo capitalista. Já no terceiro momento, apresentar-se-á como efetivamente se materializa o projeto feira CANTASOL, protagonizado por trabalhadoras e trabalhadores do Assentamento Doze de Outubro, no município de Cláudia, no Estado de Mato Grosso.
4 Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Trabalho e Educação (GEPTE), do Programa de Pós- Graduação em Educação (PPGE) da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), criado em 2010, vinculado à Linha de Pesquisa “Movimentos sociais, política e educação popular” do Programa de Pós- Graduação em Educação (PPGE) da UFMT. Coordenado pelo professor Dr. Edson Caetano, com o objetivo de “[...] analisam as relações entre trabalho e educação presentes nos processos de produzir a vida associativamente, em especial nas chamadas ‘comunidades tradicionais’ da baixada Cuiabana (Mato Grosso)” (CAETANO, 2011).
É complexo afirmar com precisão a origem das feiras livres, pois as mesmas “sempre fizeram parte das práticas humanas” (Porto, 2005, p. 24), “existem desde a época da Mesopotâmia, no Egito Antigo, na Grécia Antiga e na Roma Antiga” (Silva, 2016, p. 53) e são compostas “de uma caoticidade de traços, cores, sons, sotaques, roupas, cheiros, volumes, enfim uma representação fiel dos signos da cidade antiga e moderna, todos dispostos em seu território articulado” (MENEZES, 2005, p. 41).
Tem-se, ainda, que a feira livre “É o lugar onde se dá uma grande diversidade de atividades paralelas, onde se dão uma série de encontros e reencontros, de conversas, de manifestações populares e da sociabilidade em todas as suas dimensões” (DANTAS, 2008, p. 99).
Para Dantas (2008, p. 88), “o principal elemento para o desenvolvimento das feiras, enquanto instituição destinada à troca de produtos, ocorreu justamente quando da expansão dos excedentes agrícolas produzidos no contexto de uma economia de caráter feudal”. O desenvolvimento do comércio europeu, no período de transição entre o feudalismo e o capitalismo, tem “sido um dos elementos principais para o desenvolvimento dos mercados periódicos e das grandes feiras” (Dantas, 2008, p. 89). Huberman afirma que as feiras
[...] eram imensas, e negociavam mercadorias por atacado, que provinham de todos os pontos do mundo conhecido. A feira era o centro distribuidor onde os grandes mercadores, que se diferenciavam dos pequenos revendedores errantes e artesãos locais, compravam e vendiam as mercadorias estrangeiras procedentes do Oriente e Ocidente, Norte e Sul (1936, p. 32).
Para Oliveira e Lima (2017, p. 2) “à medida que a população foi aumentando, os primeiros núcleos urbanos foram surgindo; com a evolução dos meios de transporte, as distâncias entre as nações foram diminuindo e o comércio expandindo”, possibilitando assim que as feiras livres crescessem paralelas aos aglomerados urbanos.
Outrossim, no Brasil, as feiras tiveram sua gênese ainda no período de colonização como um espaço importante para o desenvolvimento da economia interna e atualmente acontecem semanalmente na maioria das cidades brasileiras. Quanto a sua origem, não se sabe precisar ao certo a data da primeira feira livre. O que se pode afirmar é que, em 1548, o rei Dom João III ordenou ao Governador Geral “que nas
ditas vilas e povoados se faça em um dia de cada semana, ou mais, se vos parecerem necessários, feira [...]” (Mott, 1975, apud Santos, 2013, p. 43). Menezes afirma que:
[...] os índios desconheciam completamente esse tipo de troca comercial, eles tinham uma vida muito simples baseada apenas na sobrevivência, não produziam excedentes e desconheciam formas de comercializar. Com o processo de colonização português no Brasil totalmente sedimentado, deram-se as primeiras trocas com os índios sempre no intuito comercial. As primeiras notícias da existência de feiras-livres no Brasil remontam ao ano de 1548, quando o rei de Portugal (D. João III) preocupado em evitar o êxodo rural na colônia instituiu um dia de feira nas cidades, para que os colonos pudessem comercializar seus excedentes e ao mesmo tempo adquirir as mercadorias que necessitassem (2005, p. 9).
Pinto e Moraes (2011, p. 2) afirmam que, no Brasil, as feiras “foram uma herança do colonizador português. As primeiras surgiram por volta do Século XVII sempre pela necessidade de abastecimento alimentar e da comercialização do excedente produzido no campo”. Neste país, o registro mais antigo que se tem de feira livre data de 1732, no sítio Capoame, no estado da Bahia, seguida da feira “da freguesia da Mata de São João, da Vila de Nazareth, de Feira de Santana e da Vila do Conde na capitania da Bahia; de Goiana e Itabaiana, na capitania de Pernambuco e, em muitas cidades de Sergipe” (DANTAS, 2008, p. 91).
As feiras de gado tiveram papel importante como originárias das feiras livres, inicialmente no Nordeste e posteriormente nas demais regiões. Como o gado era conduzido a pé, do sertão para cidades do interior e daí para centros maiores, ao longo do caminho, mais especificamente nos lugares de pousada dos boiadeiros “inúmeros outros comerciantes estabeleceram-se para comercializar sua produção e, desta forma, a grande praça comercial que é a feira torna-se o dia de maior movimento da cidade, onde se dá o verdadeiro encontro entre a vida rural e urbana” (DANTAS, 2008, p. 98).
As feiras a que se aplicam as informações anteriores foram e são as que, ainda que sendo espaços em que transitam burgueses e trabalhadores, objetivam a reprodução ampliada do capital, daí ser comum a competividade, a concorrência, a barganha, a venda, a compra e o consumo de produtos sem que, necessariamente, seja conhecida a origem dos produtos e o modelo de produção utilizado.
Por sua vez, as feiras agroecológicas objetivam, para além da comercialização de alimentos, proporcionar espaço de trocas de experiências e de comercialização do excedente da produção. Além do que consistem, também, em espaço de roda de conversas, de socialização de saberes, de apresentações culturais e de troca de sementes, na eminência de outro projeto de sociedade que se contraponha ao projeto do capital5, esse objetivado no agronegócio6.
No que concerne ao projeto do capital, pode-se afirmar que coaduna latifúndio, monocultura, exploração de força de trabalho e produção para atender aos países de economia avançada. Em oposição, o que os feirantes agroecológicos protagonizam é um projeto que tem como princípio a não exploração da força de trabalho alheia, a produção de alimentos livres de veneno, o uso de técnicas de baixo impacto ao meio ambiente e a construção de uma relação entre produtores e consumidores que incorpora “princípios ecológicos e valores culturais às práticas agrícolas que, com o tempo, foram descolonizadas e desculturalizadas pela capitalização e tecnificação da agricultura” (LEFF, 2002. apud GUBUR; TONÁ, 2012, p. 57).
Os feirantes agroecológicos e sociossolidários protagonizam um projeto que vai ao encontro da reprodução ampliada da vida7, que além de valorizar as relações entre as pessoas e o respeito às comunidades, garante alimento saudável e faz dos povos e comunidades verdadeiras trincheiras de combate e de denúncia ao projeto de “patenteamento dos organismos vivos, a tecnologia dos organismos transgênicos
5 A ordem existente destina uma divisão do trabalho particularmente objeta aos povos privados de sua interdependência, sobretudo aos povos sujeitados ao domínio e ao saqueio colonial. Nas colônias – observa Marx no verão de 1853 referindo-se à Índia -, o capitalismo arrasta ‘povos inteiros no sangue e na sujeira, na miséria e no embrutecimento’ (LOSURDO, 2015, p. 28).
6 A primeira formulação do conceito de agronegócio (agribusness) é de Davis e Goldberg, 1957. Para os autores, agribusness é um complexo de sistemas que compreende agricultura, indústria, mercado e finanças. O movimento desse complexo e suas políticas formam o modelo de desenvolvimento econômico controlado por corporações transnacionais, que trabalham com um ou mais commodities e atuam em diversos setores da economia. Compreendemos que essa condição confere às transnacionais do agronegócio um poder extraordinário que possibilita a manipulação e a dominação dos processos em todos os setores do complexo (FERNANDES, B.; WELCH, 2008, p. 48).
7 [...] a reprodução ampliada da vida, no seu sentido pleno, tem como requisitos a propriedade coletiva dos meios de produção, o controle coletivo do processo de trabalho e a distribuição equitativa dos frutos do trabalho. Em outras palavras, pressupõe culturas do trabalho associado entremeadas por singularidades de gênero, raça e etnia que vão se entrelaçando, tendo a criação da sociedade de produtores livremente associados como horizonte. Nesse processo, novas relações entre seres humanos e natureza e entre os próprios seres humanos se ampliam em todas as esferas da vida biológica e social. Suas bases materiais e simbólicas estão fundadas no respeito à natureza externa e ao ser humano, na produção associada e na autogestão do trabalho e da vida social que permita a homens e mulheres a produção de sociabilidades fraternas e solidárias (TIRIBA, 2018, p. 84).
e, mais recentemente, a monotecnologia” (Gubur; Toná, 2012, p. 58) e que objetiva retirar dos povos do campo o controle sobre as sementes crioulas e submetê-los às determinações de corporações transnacionais.
Cabe, ainda, aos referidos feirantes a preocupação com a reprodução material e também com a reprodução e a recuperação de saberes8 indispensáveis à permanência dos povos e comunidades tradicionais no campo que estão vivendo sob a ameaça do modelo tecnológico hegemônico do capital “que é, em nível mundial, a base de sustentação do agronegócio” (GUBUR; TONÁ, 2012, p. 58).
Ao se elaborar uma comparação entre os produtos vendidos nos dois tipos de feira mencionados tem-se, de um lado, as feiras convencionais que comercializam produtos cultivados a partir de técnicas que incluem “adubos químicos, inseticidas, fungicidas e outros insumos” (Godoy, 2005, p. 102). Neste tipo de feira não existe restrição quanto à venda de produtos cultivados a partir das técnicas modernas onde predomina o uso de adubos sintéticos, “cultivo intensivo do solo, monocultura, irrigação, aplicação de fertilizantes inorgânicos, controle químico de pragas e manipulação genética de plantas cultivadas” (GLIESSMAN, 2001, p.34).
De outro lado, tem-se as feiras agroecológicas em que são comercializados “produtos oriundos do sistema agrícola de base ecológica” (Godoy, 2005, p.16), ou seja, produtos obtidos por meio de técnicas de “reciclagem de resíduos sólidos, o uso de adubos verdes, manejo e controle biológico de insetos, e a exclusão do uso de compostos sintéticos” (Gliessman, 2001, p.34). Portanto,
[...] as duas feiras são completamente distintas. Enquanto a feira ecológica surgiu fruto de um movimento organizado, comprometido com a construção de um espaço de viabilização da agricultura familiar e da agroecologia, a feira convencional surgiu de um ato administrativo do poder público, não possuindo qualquer estrutura corporativa. Em contrapartida, enquanto a maioria dos agricultores ecológicos afirma receber assistência técnica regularmente, pequena parte dos feirantes produtores convencionais acha-se nessa condição. Além do pequeno percentual, a assistência técnica difere nos objetivos, pois enquanto a assistência ao feirante ecológico se desenvolve no afã de fortalecer um sistema de produção, a assistência a que os feirantes convencionais se referem diz respeito, muitas das vezes, à visita realizada por vendedores de insumos que prestam informações na medida em que comercializam seus artigos (GODOY, 2005, p. 223).
8 [...] a agroecologia orienta práticas de: aproveitamento de energia solar através da fotossíntese; manejo do solo como um organismo vivo; manejo de processos ecológicos – como sucessão vegetal, ciclos minerais e relação predador-praga; cultivos múltiplos e sua associação com espécie silvestre, de modo a elevar a biodiversidade dos agro ecossistemas; e ciclagem da biomassa – incluindo os resíduos urbanos (GUBUR; TONÁ, 2012, p. 58).
Nora e Dutra (2015) afirmam que a feira agroecológica é vista como espaço de “troca de conhecimentos recíprocos dos trabalhadores feirantes e das suas experiências, fato esse que dificilmente poderia ocorrer se fossem utilizados outros canais de comercialização mais individualizados” (Nora; Dutra, 2015, p. 52). Isso pelo fato de que estas populações do campo são as legítimas possuidoras “de um saber legítimo, construído por meio de processos de tentativa e erro, de seleção e aprendizagem cultural, que lhes permitiram captar o potencial dos agroecossistemas com os quais convivem a gerações” (Gubur; Toná, 2012, p. 62). Para Godoy (2005),
[...] este canal de comercialização tem uma característica muito particular de aglutinação, proporcionando a aproximação e a troca de saberes, não apenas entre o rural-urbano, mas, sobretudo, do próprio rural. O “espaço-feira” aprofunda o conhecimento recíproco dos agricultores e das experiências por eles vividas, fato este, que dificilmente poderia ocorrer se fossem utilizados outros canais de comercialização, onde o produtor pode comercializar individualmente a sua produção (p. 184).
Ana Maria Reis9 (2017), tesoureira da feira Sistema Canteiros de Comercialização Sociossolidária Agroecológica (CANTASOL), afirma que,
[...] a feira agroecológica se diferencia da feira convencional por ser um espaço de reciprocidade, comprometimento e cooperação, bem como uma das formas que trabalhadoras e trabalhadores assentados da Reforma Agrária encontraram para comercializar o excedente da produção. Diferente da feira livre convencional, que existe em função do mercado e do lucro, nem que para isso tenha que comercializar produtos contaminados por agrotóxicos. Nós, do CANTASOL, estamos abertos e fazemos questão de receber visita de consumidores e mostrar para eles os processos desenvolvidos desde o plantio até a colheita, como forma de dar visibilidade ao nosso projeto, que objetiva mostrar para a sociedade que é possível sim produzir alimentos limpos, bem como produzir sem exploração da força de trabalho alheia. E isso fez com que muitos consumidores e consumidoras sejam nossos parceiros nas campanhas de esclarecimento da população local acerca dos benefícios que a produção e comercialização direta oferecem para a economia e o meio ambiente.
Assim, o espaço da feira agroecológica, além de servir como meio de comercialização, é também instrumento pedagógico de denúncia de um projeto que as feiras livres convencionais ignoram e a ciência agrária, a serviço do agronegócio,
9 Entrevista concedida aos autores em 15/05/2017. Ana Maria Reis é uma das coordenadoras do coletivo de produção Mulheres Livres da Amazônia.
não dá conta de resolver. A declaração acima também ajuda a compreender porque os protagonistas da feira CANTASOL asseguram que estão desenvolvendo outro projeto de produção e comercialização incompatível com o sistema capitalista. Marciano Silva10 (2017), ao referir-se a feira CANTASOL, afirma que:
Ali é um espaço oportuno de apresentação para a sociedade, que diferente do agronegócio. Nós do MST produzimos alimentos livres de veneno, produzidos com reduzido impacto ao meio ambiente e o que é melhor: sem exploração da força de trabalho alheia, coisa que o capital não consegue fazer.
Nesta mesma esteira, Girardi (2016, p. 5) assevera que se faz necessário que o trabalhador saiba que
[...] o que chega ao seu prato (o que, quanto e com qual qualidade) não é exatamente fruto de sua própria escolha e muito menos da escolha dos agricultores, mas sim determinado por projetos muito mais amplos que submetem países, povos, agricultores e consumidores às necessidades do processo incansável de acumulação do capital. Como esperança para o drama dos agricultores camponeses empobrecidos, daqueles seres humanos que não comem e dos que comem comida não saudável, estão as propostas da Soberania Alimentar11 capitaneadas pelos movimentos sociais e cuja agricultura camponesa de base agroecológica se apresenta como mais apta a fornecer resultado social e ambientalmente mais sustentáveis (GIRARDI, 2016, p. 5).
Destarte, é possível evidenciar a existência de projetos em andamento e que se contrapõem. Por um lado, o projeto do agronegócio cuja tendência é controlar áreas cada vez mais extensas, bem como a produção, o armazenamento, o beneficiamento e a venda de insumos. Projeto esse, também, responsabilizado por elevar as formas degradantes de trabalho, de modo particular em áreas de fronteira agrícola, bem como pela “subalternização da agricultura camponesa ao capital que agora se dão predominantemente pelo intenso processo de artificialização da produção agropecuária e florestal” (Carvalho; Assis Costa, 2012, p. 31). Já do outro lado, tem- se um projeto protagonizado pelos povos e comunidades tradicionais, que não só se
10 Assentado da Reforma Agrária no Assentamento Doze de Outubro, no município de Cláudia, no Estado de Mato Grosso. Intelectual orgânico, membro e um dos idealizadores do projeto CANTASOL e COOPERVIA. Entrevista concedida aos autores em 15/05/2017.
11 Soberania alimentar é o conjunto de políticas públicas e sociais que deve ser adotado por todas as nações, em seus povoados, municípios, regiões e países, a fim de se garantir que sejam produzidos os alimentos necessários para a sobrevivência da população de dada local. Esse conceito [...] parte do princípio de que, para ser soberano e protagonista do seu próprio destino, o povo deve ter condições, recursos e apoio necessário para produzir seus próprios alimentos (STÉDILE; CARVALHO, 2012, p. 715).
reconhecem como legítimos detentores de um saber que lhes permite produzir a partir do potencial dos agroecossistemas12, mas que também buscam construir uma sociedade de produtores livremente associados cujo objetivo não é o lucro e sim a emancipação “como busca de uma humanização que se assenta na solidariedade, na justiça e na dignidade para todos” (RIBEIRO, 2012, p. 299).
Criada por trabalhadoras e trabalhadores do assentamento de Reforma Agrária Doze de Outubro, no município de Cláudia, no estado de Mato Grosso, simboliza a materialização de um projeto de produção, de resistência e de esperança para quem foi vítima do trabalho “standartizado, parcelar, fetichizado, coisificado, maquinal, massificado, sofrendo até mesmo o controle de sua sexualidade pela empreitada taylorista e fordista” (Antunes, 2010, p. 12). Sistema esse em que o trabalhador produz não para a reprodução ampliada da vida e sim para a reprodução ampliada do capital e em que,
[...] Só é produtivo o trabalhador que produz mais-valor para o capitalista ou serve a autovalorização do capital. Se nos for permitido escolher um exemplo fora da esfera da produção material, diremos que um mestre escola é um trabalhador produtivo se não se limita trabalhar a cabeça das crianças, mas exige o trabalho de si mesmo até o esgotamento, a fim de enriquecer o patrão. Que este último tenha investido seu capital numa fábrica de ensino, em vez de numa fábrica se salsichas, é algo que não altera em nada a relação. Assim, o conceito de trabalhador produtivo não implica de modo nenhum apenas uma relação entre atividade e efeito útil, entre trabalhador e produto do trabalho, mas também uma relação de produção especificamente social, surgida historicamente e que cola no trabalhador o rótulo de meio direto de valorização do capital. Ser trabalhador produtivo não é, portanto, uma sorte, mas um azar (MARX, 2013, p. 578).
A feira CANTASOL está em construção. Segundo seus protagonistas, camponeses assentados da Reforma Agrária, existe um projeto para o mundo, para o Brasil e para o Mato Grosso, que é produzir com fim exclusivo para o lucro, sem
12 Agroecossistemas camponeses, desenhados os princípios da agroecologia, buscam relações de maior autonomia com o ambiente econômico externo, seja garantindo diversidade de produção para autoconsumo – e, portanto, gerando renda não monetária - , seja evitando ou minimizando o consumo de insumos e equipamentos industriais – tratores, equipamentos de irrigação, fertilizantes, sementes comerciais e agrotóxicos -, seja diversificando os mercados para os produtos agrícolas gerados nos agro ecossistemas, priorizando os mercados locais e evitando, sempre que possível, relações de subordinação aos mercados capitalistas (MONTEIRO, 2012, p. 69).
considerar os seus impactos para o meio ambiente e para os seres humanos. Para eles, o projeto do campo e o projeto do agronegócio não se coadunam, uma vez que são projetos com características e formas opostas e conflitantes de conceber a natureza, os seres humanos e o trabalho. Tais afirmações coadunam com Fernandes (1999, p. 40- 41), o qual enfatiza que
[...] os territórios do campesinato e os territórios do agronegócio são organizados de formas distintas, a partir de diferentes relações sociais. Um exemplo importante é que enquanto o agronegócio organiza seu território para produção de mercadorias, o grupo de camponeses organiza seu território, primeiro para sua existência, precisando desenvolver todas as dimensões da vida. [...] A paisagem do território do agronegócio é homogênea, enquanto a paisagem do território do camponês é heterogênea. A composição uniforme e geométrica da monocultura se caracteriza pela pouca presença de pessoas no território, porque sua área está ocupada por mercadoria, que predomina na paisagem. A diversidade dos elementos que compõem a paisagem do território camponês é caracterizada pela grande presença de pessoas no território, porque é nesse e desse espaço que constroem suas existências, produzindo alimentos. Homens, mulheres, jovens, meninos e meninas, moradias, produção de mercadorias, culturas e infraestrutura social, entre outros, são os componentes da paisagem dos territórios camponeses.
São trabalhadoras e trabalhadores, em sua maioria, herdeiras (os) “das velhas relações de trabalho agrícola, pastoril e extrativo originadas da crise das duas escravidões que tivemos” (Martins, 2003, p. 12). São, ainda, trabalhadoras e trabalhadores camponeses, operários urbanos, meeiros, assalariados do agronegócio desprovidos do direito à saúde, educação, habitação e que tem em comum um passado de “descartes sociais e de alternativas de vida não realizadas, de destinos não cumpridos, histórias pessoais truncadas por bloqueios de diferentes tipos oriundos de diferentes causas” (Martins, 2003, p. 17). Mas que aprenderam com a vida e com a luta que, no sistema do capital
[...] o trabalhador torna-se tanto mais pobre quanto mais riqueza ele produz, quanto mais a sua produção aumenta em poder e extensão. O trabalhador torna-se uma mercadoria, tanto mais barata, quanto maior número de bens produz. Com a valorização do mundo das coisas aumenta em proporção direta a desvalorização do mundo dos homens. O trabalho não produz apenas mercadorias; produz-se também a si mesmo e ao trabalhador como uma mercadoria, e justamente na mesma proporção com que produz bens. (MARX, 2004, p. 59).
São trabalhadoras e trabalhadores, (ex) agricultores e parte deles (ex) assalariados que frente a uma conjuntura extremamente desfavorável carregam as marcas do desemprego e do subemprego em uma região tomada por “práticas agrícolas de modo extensivo, utilização de agrotóxicos em níveis altamente condenáveis, dando conta de que consumimos quase seis vezes a quantidade média de veneno consumido em território nacional”13. E que vêm no modelo de produção de base agroecológica14 e no trabalho associado formas de organizar e produzir a existência em uma perspectiva em que se materializa a “apropriação do elemento natural para a satisfação de necessidades humanas” (Marx, 2013, p. 261), e não para satisfação do mercado. O mais impactante é que está em curso um projeto que se afirma como contraponto ao projeto do capital no coração de um estado que, em sua porta de entrada, recebe os visitantes com outdoor com os dizeres “Bem-vindos à capital do agronegócio e do Pantanal”.
Os produtores e os fornecedores do projeto CANTASOL não só se opõem ao projeto do agronegócio, como também convivem com contradições internas no assentamento que impactam diretamente na produção agroecológica e na comercialização sociossolidária, por ser um espaço de matrizes ideológicas diversas e divergentes. Observou-se famílias produzindo na perspectiva agroecológica, utilizando-se dos saberes campesinos para a seleção de sementes e a preparação de caldas fertilizantes e de controle de insetos invasores, convivendo lado a lado com famílias que produzem a existência fazendo uso dos métodos convencionais. Em outras palavras, no Assentamento Doze de Outubro convivem migrantes,
[...] ex-acampados de diversos municípios oriundos de diversas organizações; “compradores de lotes” (uma categoria em ascensão) com histórico de vida camponesa e, outros, sem nenhum vínculo com o esse trabalho (empresários, servidores públicos, etc.); profissionais públicos e liberais (da educação e religiosos) que não aspiram viver ali “para sempre”; etc. [...] há quem faz um esforço transformador, das práticas e de si, para produzir com base na agroecológica, seguindo as orientações do CANTASOL (proposta que vem sendo construída
13 Definição presente na página da feira “CANTASOL”. Disponível em: http://cantasol.org.br/portal/?pg=s_cantasol. Acesso em: 10 mai. 2019.
14 [...] manejo ecológico dos recursos naturais mediante formas de ação social coletiva que apresentam alternativas à atual crise civilizatória. E isso por meio de propostas participativas, desde o âmbito da produção e da circulação alternativa de seus produtos, pretendendo estabelecer formas de produção e consumo que contribuam para fazer frente à atual deterioração ecológica e social gerada pelo neoliberalismo (SEVILLA-GUZMÁN, 2001, apud GUBUR, Dominique Michéle Perioto; TONÁ, Nilciney, 2012, p. 61).
entre a EEFF15, COOPERVIA16 e o Projeto Canteiros/Novos Talentos/CAPES-UNEMAT), da escola e do Movimento, e, ainda, quem esteja totalmente inviabilizado de viver da produção camponesa (SOUZA, 2014, p. 151 - 153).
Os produtores e fornecedores da feira CANTASOL são assentados da Reforma Agrária que produzem sua existência em lotes de tamanhos que variam entre 10 hectares e 12 hectares. O assentamento está localizado às margens da BR 163, entre os municípios de Cláudia e Sinop, no município de Cláudia, no estado de Mato Grosso. Na sede do assentamento, que fica a uma distância de 2 km da rodovia, é possível observar, ainda hoje,
[...] algumas casas da antiga fazenda: em quatro delas moram os professores; em outra está o Posto de Saúde; outra é uma “venda” (espécie de mercearia-boteco); também há casas de “lona-preta-e- palha”, onde se abrigam alguns assentados que possuem lotes mais distantes, como forma de terem acesso à água (na época da seca) e energia (só há energia elétrica para as moradias próximas à sede-BR, as demais, quando têm, é produzida via motor a diesel que resulta num custo bastante elevado); pequenas igrejas o “barracão da cooperativa” que é uma adaptação do antigo estábulo; o “barracão do assentamento” cuja estrutura ameaça cair e, por fim, a escola, uma mescla de casas da antiga sede, salas de compensado e salas de tábuas, estas últimas, construídas em 2013. Este território é denominado internamente como: “área do MST/ o pessoal do MST”, ou “vou lá no 12”, “estou na sede” (SOUZA, 2014, p. 154).
Foram encontradas, na feira CANTASOL, algumas especificidades que a diferenciam das feiras convencionais, entre as quais destacamos: a parceria com estudantes e professores da Universidade Estadual de Mato Grosso (UNEMAT) via projetos de extensão, bem como a parceria com “professores da Escola Estadual do Campo Florestan Fernandes (EEFF), militantes dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra e parceiros do Sistema de Comercialização Solidária (SISCOS17)” (Carvalho Camera Filho; Brito, 2016, p. 1534); a produção dos alimentos utilizando-se dos saberes agroecológicos e sem exploração da força do trabalho alheio; e “a comercialização da produção das famílias assentadas por meio da formação de redes de solidariedade
15 Escola Estadual do Campo Florestan Fernandes (EEFF), situada no Assentamento 12 de Outubro, em Cláudia/MT.
16 Coletivo de produção “Cooperativa de Produtores Agropecuários da Região Norte do Mato Grosso” (COOPERVIA), localizado no Assentamento 12 de Outubro, em Cláudia/MT.
17 O Siscos, em atividade desde 2006, é uma iniciativa do Instituto Ouro Verde (IOV), organização não- governamental instalada no município de Alta Floresta/MT. Consiste num sistema de vendas online de produtos agroecológicos, das famílias camponesas da região, baseados nas propostas da Economia Solidária.
entre os diversos atores desse processo: Escola, cooperativa, movimentos sociais, universidade, consumidores” (CARVALHO CAMERA FILHO; BRITO, 2016, p. 1534).
Pesquisadores da UNEMAT afirmam que a feira CANTASOL, além de ser fruto de projeto que abarca vários parceiros,
[...] consiste na comercialização direta de produtos do campo, isentos de ágio e de agrotóxicos, através de um site: www.cantasol.org.br. Pelo fato de termos eliminado a figura do atravessador, o resultado prático observado foi que os produtores puderam vender a preços superiores aos que eram praticados pelo mercado convencional, e os consumidores puderam comprar a preços inferiores em relação a esse mesmo mercado: produtos mais baratos e mais saudáveis. Isso só foi possível devido à atividade extensionista da universidade, na medida em que alunos se organizaram para cumprir a parte dedicada à cidade, quando a comunidade, através de uma cooperativa de assentados e da escola, organizou os produtores (PEREIRA; SOUZA, 2016, p. 110- 111).
O Assentamento Doze de Outubro, onde são produzidos os alimentos disponibilizados na feira CANTASOL, é formado por 140 lotes, ocupados por 140 famílias, sendo que 18 famílias optaram em produzir a existência na perspectiva de transição agroecológica. Foi identificado, também, no assentamento, um grupo de mulheres que trabalha de forma associada e se identifica como coletivo de “Mulheres Livres da Amazônia” que, além de produzir na perspectiva agroecológica em seus quintais, possui um espaço comunitário, anexo à Cooperativa Via Campesina, em que produz conservas, doces e massas para o consumo das próprias famílias.
Para Calixto Crispim dos Reis18 (2017), assentado da Reforma Agrária, líder comunitário, associado da COOPERVIA e fornecedor do projeto CANTASOL:
O CANTASOL é a materialidade de todo um processo de luta dos assentados do Doze de Outubro e que hoje tem a parceria do coletivo “Mulheres Livres da Amazônia”19, a COOPERVIA, por meio da qual pretendemos ser visibilizados pelas políticas públicas e colocar nossos produtos nas escolas públicas via Programa Nacional de Alimentação Escolar, os professores e pesquisadores da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) de Sinop e técnicos e agrônomos da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA). Pretendemos, além de garantir o direito de uso da terra, que é uma luta do movimento pela reforma agrária, garantir a soberania alimentar, a recuperação do solo degradado pelo uso intensivo de insumos sintéticos e monocultura,
18 Entrevista concedida aos autores em 15/05/2017.
19 Coletivo de mulheres do Assentamento de Doze de Outubro, no Município de Cláudia, no Estado de Mato Grosso que produzem massas, doces, conservas para o consumo próprio e da família e o excedente é comercializado na feira CANTASOL.
garantir alimentação livre de veneno às famílias do movimento e o excedente disponibilizar para ser vendido no CANTASOL.
A partir do contato com as trabalhadoras e trabalhadores feirantes agroecológicos, percebeu-se a materialização de um projeto de recriação da produção da existência que não só vai na contramão da concentração fundiária e das políticas de fomento do agronegócio, como também protagoniza um projeto que vai muito além da venda direta de produtos frescos e limpos de venenos. Além disso, o referido projeto materializa uma luta em favor da redistribuição de terras, pela recuperação do solo agrícola, por políticas públicas de apoio aos produtores agroecológicos, pela preservação e respeito ao meio ambiente e pelo acesso a uma alimentação de qualidade e por condições de vida mais digna aos povos do campo.
Marciano da Silva20, assentado da Reforma Agrária, associado da COOPERVIA, produtor agroecológico e fornecedor do CANTASOL, ao ser interrogado sobre o que significa o CANTASOL para ele e para o grupo protagonista do mesmo, responde:
O CANTASOL é parte de um projeto maior, não pode ser visto como um projeto isolado da COOPERVIA, da Escola Estadual Florestan Fernandes, do MST, do MAB e de outros parceiros nossos. O objetivo vai para além de produzir, consumir e comercializar alimentos sem ágio, sem veneno e colocar esses produtos direto na mesa do consumidor. A feira é também, espaços para socialização e de denúncia e também de apresentações culturais, trocas de saberes, trocas de mudas e também de sementes. É um espaço democrático em que estão presentes os jovens, as mulheres, os fornecedores e os consumidores. É um meio que o movimento tem para apresentar para a sociedade que nós protagonizamos outro projeto de produzir a existência que é diferente do projeto do agronegócio. O nosso projeto é agroecológico. E esse projeto só se mantem porque é um projeto associado, autogestionário e sem exploração da força de trabalho alheia.
Atualmente a feira tem 180 famílias, consideradas como potenciais consumidoras, cadastradas no site “cantasol.org.br” e que adquirem produtos conforme disponibilidade dos mesmos, uma vez que a produção ocorre em conformidade com os ciclos da natureza. Ao acessar a página web do CANTASOL, são apresentados produtos como: pães, doces, conservas, açúcar mascavo, urucum, taioba, milho, cenoura, beterraba, mandioca, cana, limão, abacaxi, leite, ovos caipiras, queijo, couve, abóbora, cajamanga, manteiga, requeijão, doce de leite, batata doce,
20 Entrevista concedida aos autores em 15/05/2019.
ponkan, laranja, vagem, feijão de corda, pepino, alface, rúcula, almeirão, mamão, cebola, cebolinha, banana, tomate, castanha do Brasil, coco, sucos, amora, gengibre, erva doce, quiabo, maracujá, caju, acerola, pimenta doce, pimenta malagueta, pimentão etc.
A feira acontece nas quartas-feiras, no período vespertino, no pátio da UNEMAT, Campus de Sinop. O itinerário da feira CANTASOL ocorre da seguinte maneira: os produtores feirantes por meio da coordenação do site “cantasol.org.br”, inserem no sistema os produtos que estão em oferta; b) De quarta-feira à noite até segunda feira às 07 horas, o sistema fica liberado para compra; c) Na segunda feira os produtores ficam sabendo o que efetivamente foi encomendado; d) Na terça-feira, até 15 horas, os produtores colhem e preparam os produtos para a entrega; e) Ainda, na terça-feira, a partir das 15 horas, membros do CANTASOL apanham os produtos nos pontos de coleta; f) Já na quarta-feira, a partir das 15 horas, os produtos são entregues aos compradores no pátio da UNEMAT, Campus de Sinop. No local, também é disponibilizado o que os fornecedores chamam de excedente, de modo que quem não encomendou via site possa ter acesso aos produtos.
Os feirantes produtores e fornecedores da feira CANTASOL, de posse de saberes tradicionais, buscam o controle dos processos produtivos, como parte de suas estratégias de luta e enfrentamento do modo capitalista de fazer agricultura em uma região em que se avilta “a concentração das terras como resultado do privilegiamento da produção em escala, que requer grande extensão contínua de área para a prática de monocultura e tecnologia com uso intensivo de insumos químicos” (Carvalho; Assis Costa, 2012, p. 27-28). Além disso, partem do princípio de que o alimento “é um direito humano, e a produção e distribuição dos alimentos é uma questão de sobrevivência dos seres humanos, sendo, portanto, uma questão de soberania popular e nacional” (STEDILE; CARVALHO, 2012, p. 720).
Destarte, o projeto CANTASOL “luta pela soberania alimentar e energética, pela defesa e recuperação de territórios, pelas reformas agrária e urbana, e pela cooperação e aliança entre os povos do campo e da cidade” (Gubur; Toná, 2012, p. 64). Ou seja, é um projeto que busca, além de garantir o direito de cada país produzir seus produtos, também garantir o direito das populações de consumi-los.
Outrossim, na perspectiva da produção agroecológica, a feira CANTASOL se sustenta a partir de um projeto maior que é o trabalho associado. Esse trabalho foi construído a partir das experiências de trabalhadoras e trabalhadores que estavam na
liderança, em 2002, das famílias acampadas ao longo da Rodovia BR 163, entre o município de Sinop e o município de Cláudia, em Mato Grosso. Essas famílias, hoje, estão no assentamento Doze de Outubro, local onde se realiza o Cantasol.
As referidas lideranças, assim como muitas trabalhadoras e trabalhadores, sabem que além de organizar a escola, o posto de saúde, a igreja, a quadra de esportes, também se faz necessário organizar a produção da existência material, como forma de garantir a permanência das trabalhadoras e trabalhadores no assentamento.
O assentamento Doze de Outubro está localizado, em média, a 70 Km das áreas urbanas de Sinop e Cláudia, cercado por lavouras do agronegócio que têm como um dos princípios o uso de insumos sintéticos e agrotóxicos, bem como o alargamento de fronteiras. Além disso, os trabalhadores e trabalhadoras do assentamento estão fragilizados devido à escassez de recursos para custeio e às potenciais ameaças para que vendam seus sítios e se mudem para a cidade. A estratégia de enfrentamento a essa realidade é a união, a organização em coletivos de produção. É nesse contexto que nasce o CANTASOL como um dos espaços de produção coletiva e que objetiva, além de servir como espaço de comercialização do excedente da produção, também apresentar para a sociedade um projeto de que se contrapõe ao projeto do capital.
Por meio de entrevistas, com questões semiestruturadas, e dos dados coletados na observação direta das práticas cotidianas das trabalhadoras e trabalhadores que fazem uso dos princípios da agroecologia e da comercialização sociossolidária, foi possível observar que esses princípios orientam as perspectivas do grupo de assentados no Doze de Outubro que os veem como forma de viver dignamente na terra que escolheram para viver. Acompanhando o dia a dia de trabalho e de convivência, foi possível observar que, além de estratégia de sobrevivência material, as iniciativas são uma forma de contestação às relações de trabalho impostas pelo capital.
Observou-se, ainda, nas relações de produção que culminam no CANTASOL, bem como na maneira de se organizar para os enfrentamentos políticos e a luta por direitos e justiça social, a presença de saberes que só trabalhadoras e trabalhadores
camponeses e agroecológicos são detentores. Em outras palavras, a prática diária dessas trabalhadoras e trabalhadores gera saberes sobre o meio, sobre o mundo do trabalho e de como a sociedade pode se organizar de maneira a produzir a vida em outra via, que não a via dos princípios do agronegócio.
Apreendeu-se, nesta pesquisa, que as feiras agroecológicas recebem essa denominação, entre outras razões, porque produzem a partir de técnicas de reduzido impacto ao meio ambiente, sem exploração da força de trabalho alheia e que o excedente da produção é comercializado diretamente ao consumidor, eliminando o atravessador. Nesta perspectiva, observou-se que o CANTASOL materializa dois grandes objetivos, o de eliminar o uso de insumos sintéticos que impactam na saúde dos seres humanos e do meio ambiente e o de eliminar a figura do atravessador, que impacta na elevação do preço do produto.
Conclui-se que a feira CANTASOL é uma das iniciativas de trabalhadoras e trabalhadores que não concordam com o processo de produção imposto pelo capital e que, potencializados por saberes da experiência, tomaram para si os meios de produção e se organizaram para se manterem e produzirem a vida social, a partir de técnicas de base agroecológica, trabalho cooperado e sem exploração da força de trabalho alheia, como estratégia de sobrevivência e ruptura, criando e recriando uma nova forma de organizar a produção da existência humana no interior da sociedade do capital.
ANTUNES, R. A Nova Morfologia do Trabalho, suas Principais Metamorfoses e Significados: um balanço preliminar. In: ANTUNES, Ricardo; LEHER, Roberto; BAHIA, Ligia Bahia. Trabalho, Educação e Saúde: 25 anos de formação politécnica no SUS. Organizado por Cátia Guimarães, Isabel Brasil e Márcia Valéria Morosini. Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio: Rio de Janeiro, 2010.
CAETANO, E. Considerações sobre o binômio trabalho e educação: um olhar pantaneiro. Trabalho Necessário, ano 9, n. 13, edição especial, p. 1-17, 2011.
CARVALHO CAMERA FILHO, M. M. de; BRITO, A. A. de. Pesquisa- ação por intermédio de projetos de aprendizagem: diretrizes teórico-metodológicas do projeto canteiros de sabores e saberes como alternativas para a educação do campo. REPs - Revista Eventos Pedagógicos. Número Regular: Experiências em Educação do Campo: perspectivas e práticas pedagógicas Sinop, v. 7, n. 3 (20. ed.), p. 1530-
1556, ago./dez. 2016. Disponível em: http://sinop.unemat.br/projetos/revista/index.php/eventos/article/view/2372. Aceso em: 14 jun. 2019.
CARVALHO, H. M. de; ASSIS COSTA, F. de. Agricultura Camponesa. In: CALDART,
R. S.; PEREIRA, I. B.; ALENTEJANO, P.; FRIGOTTO G. (Orgs.). Dicionário da Educação do Campo. Rio de Janeiro, São Paulo: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Expressão Popular, 2012.
DANTAS, G. P. G. Feiras no Nordeste. Mercator – Revista de geografia da UFC, ano 07, número 13, 2008. Disponível em:
http://www.redalyc.org/toc.oa?id=2736&numero=20629. Aceso em: 14 jun. 2019.
FERNANDES, B. M.; WELCH, C. A. Campesinato e Agronegócio da Laranja nos EUA e Brasil. In: FERNANDES, Bernardo M. (Org.) Campesinato e Agronegócio na América Latina: A questão agrária atual. São Paulo: Expressão Popular, 2008.
. Contribuições ao Estudo do Campesinato Brasileiro. Formação e Territorialização do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST. 1979-1999. Tese (Doutorado em Geografia). Universidade de São Paulo, 1999.
GIRARDI, E. P. Prefácio à educação brasileira. In: MCMICHAEL, P. Regimes Alimentares e Questões Agrárias: Estudos Camponeses e Mudança Agrária. São Paulo; Porto Alegre: Editora Unesp; Editora UFRGS, 2016.
GLIESSMAN. S. R. Agroecologia: Processos ecológicos em agricultura sustentável. Ed. Universidade/UFRGS: Porto Alegre, 2001.
GODOY, W. I. As feiras livres de Pelotas, RS: Estudo sobre a dimensão sócio- econômica de um sistema local de comercialização. Tese (Doutorado em Produção Vegetal), Universidade Federal de Pelotas: Pelotas, RS. 2005.
GUBUR, D. M. P.; TONÁ, N. Agroecologia. In: CALDART, R. S.; PEREIRA, I. B.;
ALENTEJANO, P.; FRIGOTTO G. (Orgs.). Dicionário da Educação do Campo. Rio de Janeiro, São Paulo: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Expressão Popular, 2012.
HUBERMAN, L. História da Riqueza do homem. Tradução de Waltensir Dutra. 16 ed. Zahar Editora: Nova York, julho de 1936. Disponível em: http://resistir.info/livros/historia_da_riqueza_do_homem.pdf. Aceso em: 14 jun. 2019.
LOSURDO, D. A luta de classes: Uma história política e filosófica. São Paulo: Boitempo, 2015.
MARTINS, J. de S. Travessias: estudo de caso sobre a vivência da reforma agrária nos assentamentos. Coordenado por José de Souza Martins et al.
– Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2003.
MARX, K. Manuscritos econômicos filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004.
. O Capital: Crítica da Economia Política: Livro: O Processo de Produção do Capital. São Paulo: Boitempo, 2013.
MENEZES, V. P. L. As Feiras Livres em Fortaleza – retrato da polissemia urbana. Dissertação (Mestrado em Geografia) Universidade Estadual do Ceará: Fortaleza, 2005.
MONTEIRO, D.. Agroecossistemas. In: CALDART, R. S.; PEREIRA, I. B.;
ALENTEJANO, P.; FRIGOTTO G. (Orgs.). Dicionário da Educação do Campo. Rio de Janeiro, São Paulo: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Expressão Popular, 2012.
MOOT, L. R. de B. A feira de Brejo Grande: Estudo de uma instituição econômica num Município sergipano no Baixo São Francisco. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) Universidade Estadual de Campinas, 1975.
NORA, F. D.; DUTRA, M. R. P.. Etnografando feiras livres em praças de Santa Maria
– RS: As feiras ecológicas da Praça Saturnino de Brito e da Praça Saldanha Marinho. In: OLIVEIRA, S. S. de; DUTRA, M. R. P.; ZANINI, M. C. C. (Orgs.). Somos todas mulheres iguais! Estudo antropológico sobre feira, gênero e campesinato. Oikos: São Leopoldo, 2015.
OLIVEIRA, M. S. de; LIMA, J. R. O. Feiras Livres: Uma Manifestação Natural e Espontânea de Economia Popular e Solidária. In: XV SEMANA DE ECONOMIA E I ENCONTRO DE EGRESSOS DE ECONOMIA, UESB,
2017, Vitória da Conquista, Bahia. Anais eletrônicos. Disponível em: http://www.uesb.br/eventos/semana_economia/2016/anais/GT1%20-
%20uma%20manifesta%C3%A7%C3%A3o%20natural%20e%20espont%C3%A2ne a%20de%20economia%20popular%20e%20solid%C3%A1ria.pdf. Acesso em: 25 mar. 2018.
PEREIRA, D.; SOUZA, M. I. de. A extensão universitária em foco. Revista Cultura & Extensão Unemat. v. 1, n. 1, p. 102-117, jan./jun. 2016.
PINTO, M. A. T.; MORAES, A. de O. Espaço e Economia: Crise e perspectiva no abastecimento em Manaus, Amazonas, Brasil. Revista Geográfica de América Central. Número Especial EGAL, Ano 2011. Disponível em: www.crevistas.una.acr/index.php/geografica/article/view/2672/2554. Acesso em: 25 mar. 2018.
PORTO, G. C. S.. Configuração sócio-espacial e inserção das feiras livres de Itapetinga-BA e arredores no circuito inferior da economia. Dissertação (Mestrado em Geografia). Universidade Federal da Bahia, 2005.
RIBEIRO, M. Emancipação versus cidadania. In.: CALDART, R. S.; PEREIRA, I. B.; ALENTEJANO, P.; FRIGOTTO G. (Orgs.). Dicionário da Educação do Campo.
Rio de Janeiro, São Paulo: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Expressão Popular, 2012.
SANTOS, J. E. dos. Feiras Livres: (Re) apropriação do território na/da cidade, neste período técnico-científico-informacional. Geografia Ensino & Pesquisa, v. 17,
n. 2, Mai/Ago, 2013. Acesso em: 13 jul. 2018.
SILVA, A. da. Sustentabilidade em empreendimentos da feira livre. Tese, Centro Universitário UNIVATES, Lajeado, 2016.
SOUZA, M. I. de. Do desbravar ao cuidar: interdependência trabalho- educação no/do campo e a Amazônia Mato-Grossense. Tese (Doutorado em Educação) Faculdade de Educação - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, BR-RS, 2014.
STEDILE, J. P.; CARVALHO, H. M. de. Soberania Alimentar. In.: CALDART, R. S.;
PEREIRA, I. B.; ALENTEJANO, P.; FRIGOTTO G. (Orgs.). Dicionário da Educação do Campo. Rio de Janeiro, São Paulo: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Expressão Popular, 2012.
TIRIBA, L. Reprodução Ampliada da vida: o que ela não é, parece ser e pode vir a ser. Otra Economía, v. 11, n. 20, p.74-87, julho a dezembro, 2018.
v.17, nº 34, set-dez (2019) ISSN: 1808-799 X
Alessandro Santos Mariano2 José Claudinei Lombardi3
O objetivo deste artigo é refletir sobre o método formativo da Escola Nacional Florestan Fernandes - ENFF, uma escola coordenada pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra - MST, e que tem como principal papel a formação de militantes, quadros e dirigentes de movimentos e organizações populares do Brasil e outros países. A ENFF assume a concepção marxista de construção e socialização do conhecimento e o trabalho como principal sustentáculo (MARX, 1987) que, por sua vez, encontra-se orientado pela Pedagogia Socialista (PISTRAK, 2009), na Educação Popular (FREIRE, 2005) e na Pedagogia do Movimento (CALDART, 2004).
El objetivo de este artículo es reflexionar sobre el método formativo de la Escuela Nacional Florestan Fernandes - ENFF, una escuela coordinada por el Movimiento de Trabajadores Rurales sin Tierra - MST, cuyo papel principal es desarrollar la formación del militantes, cuadros y líderes de movimientos y organizaciones populares de Brasil y otros países. La ENFF asume la concepción marxista de la construcción y la socialización del conocimiento y el trabajo como el eje principal (MARX, 1987) que, está guiado por la Pedagogía Socialista (PISTRAK, 2009), en Educación Popular (FREIRE, 2005). y en la Pedagogía del Movimiento (CALDART, 2004).
The objective of this article is to reflect on the formative method of the Florestan Fernandes National School (ENFF), a school coordinated by the Landless Workers Movement, and which has a principal role of training militants, cadre and leaders of popular movements and organizations from Brazil and other countries. ENFF uses a Marxist approach to the construction and socialization of knowledge (MARX, 1987) and the pedagogical concepts of Socialist Pedagogy (PISTRAK, 2009), Popular Education (FREIRE, 2005) and Movement Pedagogy (CALDART, 2004).
1Artigo recebido em 01/03/2019. Primeira Avaliação em 04/04/2019, Segunda Avaliação em 22/04/2019. Aprovado em 11/09/2019. Publicado em 27/09/2019. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.17i34.p38136
2Doutorando em Educação PPGE Unicamp. E-mail: alesandromstpr@gmail.com. ORCID: http://orcid.org/0000-0003-3779-1056.
3 Professor Livre Docente da Universidade Estadual de Campinas. E-mail: jcl.zezo@gmail.com. ORCID: http://orcid.org/0000-0001-6392-0697
Neste artigo o objetivo é refletir sobre a concepção e método de formação política da Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF), um centro de educação e formação autônomo, coordenado pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), e que se constitui em importante espaço para a socialização de conhecimentos e experiências, na perspectiva de articulação entre teoria e prática, visando fortalecer a luta e a organização da classe trabalhadora, numa dimensão internacionalista3.
A ENFF está localizada no município de Guararema/SP, a 60 quilômetros da cidade de São Paulo. Foi inaugurada em janeiro de 2005, sendo resultado da união dos trabalhadores (as) que, durante cinco anos (2000 a 2005), se mobilizaram para a construção de um projeto que ultrapassando a estrutura física (Pizetta, 2007a, p.2), se constitui em um projeto político de formação de militantes, dirigentes, formadores dos movimentos e organizações sociais populares, do campo e da cidade, da América Latina e de outros continentes; enfim, uma escola comprometida com a luta, organização e mobilização que a luta de classes coloca na atualidade.
No atual contexto político brasileiro, conforme analisa Kelli Mafort (MST, 2018), a eleição do atual presidente significa o avanço da extrema direita, num cenário de recrudescimento das forças conservadoras, de uma direita com característica neofascista que adota medidas políticas contra a classe trabalhadora, como é o caso da reforma trabalhista, aprovada pelo Congresso Nacional em 2017, e a reforma da previdência, em tramitação neste ano. Juntamente com essas medidas, ampliou-se o discurso conservador contra os pobres, negros, mulheres e LGBTs.
É notório o aumento da criminalização dos movimentos e organizações populares, através do Estado e seus aparelhos jurídicos e repressivos, que buscam classificar os movimentos de luta social como grupos terroristas, particularmente os movimentos que lutam pela terra. Através do controle do Estado a burguesia tem ampliado a incitação à violência contra o MST, disseminando discursos de ódio, declarando o MST e suas escolas como inimigas, inclusive fazendo ameaças de fechamento das escolas do movimento.
3 Internacionalismo é a união internacional da classe trabalhadora para derrubar a ordem burguesa (Capitalismo) e construir uma nova forma societária (socialismo) e que foi alicerçado no Manifesto do Partido Comunista, obra de 1848, escrita por Marx e Engels. (ENFF, 2017)
Essas políticas somam-se às medidas que atingem o direito à educação pública e se pautam pela retomada de medidas conservadoras, como a adoção da Escola Militar como modelo pedagógico eficaz e o retorno das disciplinas de educação moral e cívica, criadas na ditadura militar, além do cerceamento do ensino de história, de filosofia e sociologia, consideradas disciplinas “ideológicas”, condenando o que chamam de “marxismo cultural” e atacando o ensino de todo tipo de conhecimentos que possibilitam desnaturalizar as opressões de classe, gênero e raça, como os de gênero e sexualidade.
É neste contexto de expansão neoliberal e de perseguição ideológica que vem aumentando a perseguição às experiências educativas que desenvolvem processos formativos que se fundamentam nas teorias e práticas pedagógicas sistematizadas na longa história de luta da classe trabalhadora, a saber: a Pedagogia Socialista (Pistrak, 2009), a Educação Popular (Freire, 2005) e a Pedagogia do Movimento (Caldart, 2004) e que são as teorias e práticas que sustentam o trabalho como princípio educativo, fornecendo as balizas necessárias à formação crítica e ampla dos trabalhadores (as).
Entendemos que a Pedagogia Socialista (Pistrak, 2009) é o conjunto histórico dos esforços teóricos e práticos de educação dos trabalhadores (as) na direção de transformar a sociedade capitalista e construir uma nova ordem social hegemonizada pelos trabalhadores. Nessa pedagogia, o trabalho é a matriz formativa principal, derivando desta a auto-organização e o estudo das contradições da realidade como elementos centrais na formação da classe trabalhadora. A Educação Popular foi forjada nas experiências educativas populares do Brasil e América Latina, tendo como base a Pedagogia do Oprimido (Freire, 2005). A Pedagogia do Movimento (Caldart, 2004) constitui uma síntese que o MST sistematizou ao longo do processo de organização popular dos Sem Terra, de luta pela reforma agrária e sua relação com a formação da consciência de classe desses trabalhadores (as).
Com fundamento nessas teorias pedagógicas, a ENFF busca socializar os principais conhecimentos necessários à luta pela emancipação humana e que tem como base o saber clássico da filosofia, da história e da economia política, considerando a pluralidade da tradição marxista nos diversos continentes, bem como as especificidades e desafios da luta de classes. No processo de formação da consciência, “a passagem do senso comum à consciência filosófica é condição
necessária para situar a educação numa perspectiva revolucionária” (SAVIANI, 1983, p. 13).
Por seu posicionamento de classe a ENFF tem sofrido, ao longo do tempo, ataques que buscam criminalizá-la e deslegitimá-la como espaço de formação. Além de sofrer ataques dos meios de comunicação convencionais, no sentido de afirmá-la como escola de formação de guerrilheiros, em 4 de novembro de 2016 a ENFF foi invadida por policiais que, atirando com armas letais para o alto e para o chão, ameaçaram os militantes que ali estavam estudando, inclusive prendendo dois militantes, liberados no mesmo dia. Esta ação foi considerada ilegal, por não apresentar mandado judicial e foi condenada amplamente por organizações de direitos humanos.
O presente artigo, resultado de uma incursão investigativa documental e bibliográfica realizada entre os anos de 2016 e 2017, tece uma análise sobre o conjunto dessa experiência de escola vinculada à luta dos trabalhadores (as) Sem Terra, e teve como premissa as seguintes problemáticas de pesquisa: Qual a concepção de formação e trabalho que fundamenta a proposta pedagógica da ENFF? Como se organiza o processo pedagógico a partir da matriz do trabalho? Que conhecimentos são requeridos para formação política dos militantes e quadros? Quais os desafios da ENFF no contexto atual?
Com relação à revisão bibliográfica, ao ter como objeto de pesquisa a proposta pedagógica da ENFF, elegemos como uma das categorias de mediação a luta de classes, para compreender a luta do MST por Reforma Agrária no Brasil, extraindo elementos para compreensão da materialidade e historicidade que fez emergir a ENFF. Os autores aportados nesse estudo foram principalmente: FERNANDES (1984), FERNANDES (2000), PIZZETA (2007), CALDART (2004), BASTOS (2017),
PISTRAK (2009), MINTO (2015).
Na análise documental reunimos os materiais relativos à ENFF, produzidos pelo próprio MST, em especial os que abordam a política de formação de militantes. Os principais documentos analisados foram: Caderno da campanha de construção da ENFF (MST, 1998); Memória da Construção da ENFF (2005); Projeto Político Pedagógico da ENFF (2005) e (2017).
Os resultados aqui apresentados partem da compreensão que os processos formativos não são neutros, portanto, definidos a partir de determinantes sociais,
políticos, econômicos, religiosos, culturais e outros e, ao serem realizados no contexto da sociedade capitalista, carregam a marca de classe de quem os engendra, sendo necessário explicitar cada vez mais as experiências contra-hegemônicas de educação.
O texto foi organizado em cinco partes. Na primeira, apresentamos o contexto e trajetória histórica que deu origem, bem como o processo de criação e construção da ENFF; a seguir, apresentamos as motivações que levaram o MST a definir o intelectual Florestan Fernandes como patrono de sua escola. Na terceira parte, explicitamos os fundamentos e a concepção de formação de quadros, que sustenta a proposta pedagógica. Na quarta parte, apresentamos o método pedagógico que tem a matriz do trabalho como fundante e a forma como organiza o processo formativo. E por fim, analisamos o currículo e os cursos de formação que são ofertados para o conjunto de militantes, dirigentes dos diversos movimentos populares que se vinculam à escola.
Desde a sua origem em 1984, o MST tem se defrontado com a necessidade de garantir um amplo processo de formação política das famílias que integram a luta pela terra, desde a base acampada e assentada até seus dirigentes nacionais, visando possibilitar a unidade política e ideológica, o desenvolvimento da consciência política- organizativa e a superação dos desafios impostos pela realidade.
De acordo com Bastos (2017), o processo de construção da ENFF possui relação direta com a evolução da pedagogia, da formação política e do Setor de Educação do MST. O início da ENFF remete ao final da década de 1980 e começo da década de 1990, quando foram criados vários espaços de formação e socialização política, como as escolas sindicais e cursos periódicos de formação política desenvolvidos com o movimento sindical, vinculado à Central Única dos Trabalhadores (CUT).
No início da sua trajetória, quando ainda não possuía formadores para o desenvolvimento da formação política e ideológica de sua militância, o MST desenvolvia atividades formativas em parceria com o movimento sindical, a Igreja progressista e entidades do campo popular. No início, as atividades de formação
tinham principalmente o caráter de agitação e propaganda, para mobilizar as massas contra a violência ao trabalhador rural e para motivar as bases para as ocupações (FERNANDES, 2000, p.40).
Uma primeira Escola Nacional foi constituída em 1990 na cidade de Caçador- SC, a partir de uma estrutura da Igreja Católica, denominada Centro de Formação Contestado (CEPATEC), considerada a primeira Escola Nacional do MST, gérmen da ENFF (Fernandes, 2000, p.44). O processo de formação foi dimensionado para atender principalmente às necessidades de qualificação das lideranças do MST dos estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Mato Grosso do Sul e Espírito Santo.
Em 1995 foi fundado o Instituto Técnico de Estudos e Pesquisas da Reforma Agrária (ITERRA), na cidade de Veranópolis-RS, com foco em ensino técnico e profissionalizante (Técnico em Administração de Cooperativas e Magistério), combinando a formação teórica e política em conformidade com a pedagogia do MST. Em 2001, a escola passou a se chamar Instituto de Educação Josué de Castro (IEJC). Bastos (2017) afirma que, desde 1996, o MST começou a refletir sobre a necessidade de construção de uma escola nacional geograficamente central. De acordo com o autor, os militantes mais antigos contam que era muito frio nas escolas do sul do país, além de ser muito difícil o deslocamento de militantes das regiões Norte e Nordeste.
A definição de criação da Escola Nacional do MST ocorreu no VIII Encontro Nacional do MST, realizado em Salvador, Bahia, em janeiro de 1996. Neste encontro participaram 180 delegados, de 20 Estados, que deliberaram, entre outras questões, pela construção da Escola. Em 1998, foi lançado o Caderno de Formação nº 29 com o título “Campanha de Construção da Escola Nacional do MST”.
Para viabilizar financeiramente a construção, foram realizadas duas grandes campanhas: a primeira foi interna, com o objetivo de conscientizar e organizar a militância para o trabalho e a arrecadação de recursos. Conforme documento do MST (1998), foram apresentados cinco grandes objetivos para a construção da ENFF:
buscar a prática intelectual e científica para a transformação da sociedade; 2) estimular a organização social, política e econômica para superar os desafios internos da reforma agrária; 3) formar lideranças que contribuam para a construção de uma sociedade justa;
4) capacitar tecnicamente os militantes da luta pela reforma agrária; 5) proporcionar o intercâmbio de conhecimentos e experiências com
outras organizações de trabalhadores, rurais e urbanos (MST, 1998, p.15).
A outra grande campanha foi externa, a partir da exposição do “Projeto Terra”, com as fotografias de Sebastião Salgado, do CD produzido por Chico Buarque e do “Livro Terra”, que contou com a contribuição do escritor português José Saramago. O “Projeto Terra” se tornou o maior símbolo da “Campanha de Construção da Escola Nacional Florestan Fernandes”, sendo o principal elemento comunicativo da campanha nacional e internacional que projetou mundialmente o MST e trouxe recursos de organizações, inclusive internacionais, para a construção da Escola. (PIZZETA, 2007)
O processo de construção durou cinco anos, de 22 de março de 2000 a 23 de janeiro de 2005, data da inauguração. O método utilizado na construção foi o solo- cimento, no qual se mistura o cimento com a terra para a produção de tijolos em uma máquina manual. Para isso contou com o trabalho voluntário – segundo os registros da ENFF (2005), foram aproximadamente 1 mil trabalhadores (as) Sem Terra de 23 estados, nos quais o MST está organizado, contabilizando 927 homens e 63 mulheres, representando 112 assentamentos e 230 acampamentos.
Durante o processo de construção, essas brigadas de trabalhadores (as), aprendiam a técnica de produção dos tijolos e construção, bem como participavam de cursos de formação política. Também eram oferecidas aulas de alfabetização para os (as) trabalhadores (as) analfabetos (as) (cerca de 30% entre os (as) voluntários (as)). Nos registros do processo de construção, afirma-se que os integrantes dessas brigadas “assim como construíram fisicamente a escola, reconstruíram a si próprios enquanto seres humanos, desde a prática coletiva de construção, estudo e formação” (ESCOLA NACIONAL FLORESTAN FERNANDES, 2005).
Ana Pizzeta (2007a, p. 30) afirma que a construção da ENFF criou possibilidades objetivas para o amadurecimento político dos (as) trabalhadores (as) voluntários (as) nela envolvidos (as) e, também, para formar uma “nova consciência” baseada no princípio de união entre estudo e trabalho. As decisões coletivas foram adotadas desde as mais simples tarefas no canteiro de obras ao planejamento das atividades, fazendo com que essa experiência se “transformasse em um espaço de criação de novas relações sociais e humanas entre as trabalhadoras e os trabalhadores voluntários”, que foram “construindo a si mesmos como cidadãos”.
Não é exagero afirmar que a ENFF iniciou seu processo formativo no canteiro de obras, com uma estrutura de organização coletiva horizontal e com divisão de tarefas entre todos(as) os(as) trabalhadores (as). Para isso, contou com uma equipe de profissionais: engenheiros, arquitetos e mestres de obras que compreendiam desde o seu planejamento arquitetônico até a construção; compreendiam também que ali se erguia uma escola dos(as) e para os(as) trabalhadores(as). Por isso, o processo de construção se constituiu por relações sociais e trabalho coletivo, baseados na cooperação, diálogo e participação que primaram pelo cuidado com a terra, a natureza, as trocas de saberes e a solidariedade (ESCOLA NACIONAL FLORESTAN FERNANDES, 2005).
A estrutura construída da ENFF teve como base um terreno de 12 hectares de terra. Além das construções físicas de salas de aulas, auditórios, alojamentos, lavanderia, biblioteca, centro de informática, refeitório, Ciranda Infantil, Casa das Artes, a escola também possui espaços para a prática de esportes (uma quadra coberta e um campo de futebol). Alguns desses espaços recebem os nomes de intelectuais ou lideranças de organizações que deixaram um legado de coerência e dedicação às causas populares. Na ENFF a relação de respeito com a natureza se constitui numa prática que adota a produção agroecológica nas hortas, pomares e no bosque (para este último, adotou-se a prática de plantio de mudas de árvores para recordação de intelectuais, educadores, lutadores e autoridades políticas de referência que visitam a Escola pela primeira vez).
O MST homenageia, com o nome da sua Escola Nacional, o brasileiro intelectual marxista Florestan Fernandes, que foi um lutador dedicado à educação pública no Brasil, mas também um grande sociólogo e profundo conhecedor da sociedade brasileira. A escolha do nome se deu no segundo semestre de 1997, no Centro de Formação da EMBRAPA (CALIR), em Vitória/ES, em um curso de formação de dirigentes, quando foi oficializado o nome da Escola Nacional de formação de quadros, conforme discurso redigido e lido na ocasião:
O capitalismo e o imperialismo, em todos os tempos, roubaram a força de trabalho, os direitos dos trabalhadores, mas jamais conseguiram roubar nossos sonhos. Se a luta de classes é o motor da história, o
conhecimento é o combustível que faz este motor funcionar permanentemente. Nos reunimos hoje não para falar, mas para contemplar este sonho que ao longo do tempo construímos: a fundação de nossa Escola Nacional de Formação Política. Esta escola não tem lugar e nem paredes, como tantas outras que se perdem na burocracia. Nossa escola é igual a nós: ambulante, humana, feita não de pedras, mas de gente, de jovens que, com dificuldades constroem o futuro. Fazemos isto porque somos iguais a todos os povos do mundo que, junto com seus líderes, decidiram ser livres. Somos iguais aos bolcheviques que criaram a primeira Escola de Formação Política em 1911, em Paris, porque a repressão na Rússia não deixava sequer que se reunissem. Somos como o Fidel e o Che que fizeram de Cuba uma grande Escola de Formação Política de todo o povo. Aprendemos com os revolucionários do marxismo, como Lênin, que desenvolveu a teoria da formação de quadros baseada em três aspectos que não podemos esquecer: a) ter uma organização sólida, b) uma definição estratégica clara, c) distribuir corretamente as tarefas. Entendemos a formação como: 1) Estudo – Aprender a entender e a interpretar a realidade; 2) Lutas – Transformar a realidade; 3) Trabalho – Construir o que queremos; 4) Convivência – ser o que sonhamos. O nome de nossa escola é de um grande lutador brasileiro, desbravador do pensamento sociológico, defensor da luta de classes e do socialismo. É nosso grande companheiro Florestan Fernandes. (ESCOLA NACIONAL FLORESTAN FERNANDES, 2012)
Florestan nasceu, em 22 de julho de 1920, em São Paulo, no seio de uma família de poucos recursos. Filho de uma lavadeira portuguesa, analfabeta, aos seis anos de idade teve que lutar pelo seu sustento, trabalhando como engraxate. Pela sua origem de classe, nasceu como nascem os sem-terra, “predestinados” a enfrentar as causas da exclusão social. (MST, 1998)
Florestan não completou o curso primário: “Fez o curso de madureza, como alternativa do secundário” (Ianni, 2004, p.16). Ao entrar, em 1941, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (USP), Florestan teve que continuar trabalhando, vendendo produtos para fazer dentaduras. Assim, ultrapassando obstáculos de classe, compreendeu que tais limites não poderiam levá- lo à acomodação, focando nos estudos universitários. E, ao concluir os estudos em 1945, iniciou sua carreira como professor assistente. A partir deste momento fez da Sociologia a sua arma de combate contra a classe dominante, com mais de 50 livros escritos, nos quais se debruçou sobre o folclore, a vida dos índios, a questão racial e os problemas sociais, a revolução como meio e a construção do socialismo como sequência de uma história de justiça e igualdade. Florestan produziu conhecimento e o colocou à disposição de todos(as), sem nunca esquecer a preparação de outros pesquisadores na busca de compreender a especificidade da luta de classes no Brasil.
Florestan compreendeu que o processo de luta pelo socialismo se relaciona com as causas imediatas, perspectivadas como necessárias para o fortalecimento da luta de classes e para a construção de alternativas. Em 1986, foi eleito deputado federal, sob o lema: “Contra as ideias da força, a força das ideias” e, como constituinte participou da elaboração da Constituição do Brasil aprovada em 1988, sendo reeleito em 1990. A conjuntura da época era muito delicada, decorrência da queda do Muro de Berlim e, logo em seguida, a desintegração da União Soviética. Enquanto muitos renegavam o marxismo e as ideias revolucionárias, Florestan não titubeou e disputou a eleição sob o lema “Sem medo de ser socialista!”.
Como intelectual, nos legou uma obra prima sobre a história do Brasil, escrita na década de 1960, “A Revolução Burguesa no Brasil”, na qual procura analisar a origem e o desenvolvimento da burguesia em nosso país. Para ele, nessa obra, “contamos com os dois tipos tidos como “clássicos” de burguês: o que combina poupança e avidez de lucro à propensão de converter a acumulação de riqueza em fonte de independência e de poder; e o que encarna a “capacidade de inovação”, o “gênio empresarial” e o “talento organizador”, requeridos pelos grandes investimentos modernos...”(FERNANDES, 1987, p.19).
Isto o levou a indagar se existiu “ou não uma “Revolução Burguesa” no Brasil”. A esta pergunta, respondeu que não queria “explicar o presente pelo passado”, mas sim indagar: “Quais foram e como se manifestaram as condições e os fatores histórico- sociais que explicam como e por que se rompeu, no Brasil, com o imobilismo da ordem tradicionalista e se organizou a modernização como processo social?” (FERNANDES, 1987, p.20). Para, então, concluir que, no Brasil, a burguesia não teve condições de manter a sua revolução: “Por ser muito conservadora, reacionária e opressiva, a burguesia não se interessou pela revolução urbana nacional”. A revolução burguesa no Brasil foi, por esta razão, uma revolução interrompida, ao contrário do que aconteceu na Europa.
A intransigente defesa da revolução e do socialismo conduziram-no a escrever, em 1984, outro ensaio para definir e simplificar o entendimento da revolução, diante da confusão ideológica causada pela ditadura militar no Brasil e que definia o golpe como a “revolução de 1964”. Para tanto publicou o opúsculo O Que é Revolução, com a preocupação de recuperar o sentido dessa categoria, de forma que tivesse
significado e serventia para a classe trabalhadora. Resgatando Marx e Engels, Florestan definiu, então, o significado de revolução para a luta de classes:
Uma revolução que, em sua primeira etapa, substituirá a dominação da minoria pela dominação da maioria; e, em seguida, numa mais avançada etapa eliminará a sociedade civil e o Estado, tornando-se instrumental para o aparecimento do comunismo e de um novo padrão de civilização. (FERNANDES, 1984, p. 14)
Alertou, no entanto, para o fato destas etapas serem tarefas complexas e que para concretizá-las “o proletariado precisa, antes de qualquer coisa, conquistar o poder” (FERNANDES, 1987, p.20).
Por sua biografia e luta, o MST definiu Florestan Fernandes como patrono de sua Escola Nacional, como registram os documentos históricos do movimento (MST, 1998): um homem de princípios inabaláveis, pois mesmo no parlamento, nunca se deixou corromper e nem cooptar pela burguesia instalada no governo brasileiro. Avesso a qualquer tipo de privilégio, procurou sempre manter a simplicidade, a coerência política e os princípios que defendia. A sua identidade com a classe trabalhadora o tornou um intelectual respeitado na vida acadêmica e na política parlamentar, que nunca deixou de se posicionar a favor das causas libertárias e socialistas, colocando sempre o conhecimento a serviço da luta de classes.
O MST compreende a formação como um processo contínuo, amplo, infindável e sistemático de reflexão sobre a prática dos homens, como um processo de busca pelos conhecimentos social e historicamente produzidos pela humanidade. É um processo ao mesmo tempo de reprodução dos conhecimentos acumulados e de produção e socialização de novos conhecimentos, a partir das realidades concretas vividas pelos homens (MST, 2001).
Com tal entendimento, para o MST a política de formação compreende um conjunto de ações formativas, organizativas e de lutas que abrangem diferentes metodologias e conteúdos, no intuito de elevar o nível de consciência e de conhecimento de sua base (as famílias que integram o MST), dos militantes e dos dirigentes e quadros. Por quadro o movimento tem o seguinte entendimento:
Um quadro é um indivíduo que alcançou o suficiente desenvolvimento político para poder interpretar as grandes diretivas emanadas do poder central, incorporá-las e transmiti-las como orientação às massas, percebendo, além disso, as manifestações que estas façam dos seus desejos e suas motivações mais íntimas. É um indivíduo de disciplina ideológica, que conhece e pratica o centralismo democrático... o princípio da direção coletiva, decisão e responsabilidade únicas... Além disso, é um indivíduo com capacidade de análise própria, o que lhe permite tomar as decisões necessárias e praticar a iniciativa criadora de modo a não chocar com a disciplina. O quadro é, pois, um criador, um dirigente de elevada estatura... O quadro é a peça mestra do motor ideológico, um parafuso dinâmico desse motor....
(GUEVARA, 2009, p.45)
Geraldo Gasparin, conforme registro de entrevista de Princeswal (2007, p. 135- 6), recordou-se da importância de um seminário realizado antes mesmo da inauguração oficial da escola, em que os objetivos e as linhas gerais do processo formativo foram definidos:
Evidentemente que no início se tinha essa dimensão: vamos fazer uma escola para os Sem Terra, vamos fazer uma universidade para os Sem Terra! Mas o seminário deu um outro caráter para a Escola e as intervenções que foram feitas naquele seminário apontavam neste sentido: olha, temos que ter um espaço onde efetivamente a gente consiga avançar do ponto de vista teórico, político, organizativo no conjunto da classe trabalhadora! Não é uma estrutura física que se projeta ser uma universidade, poderá sê-lo! Mas, ela tem a preocupação fundamental de preparar os nossos militantes, os nossos dirigentes da classe trabalhadora que pensem um projeto de transformação de país e de sociedade. (GERALDO GASPARIN, 2007 apud PRINCESWAL, 2007, p. 136).
Desta forma, percebe-se que a Escola Nacional foi se constituindo como um espaço de formação vinculado a um projeto político de classe, articulado às tarefas fundamentais do processo de luta e organização dos trabalhadores (as), contribuindo para a formação teórica, política e ideológica e para a formulação das estratégias e táticas das lutas dos (as) trabalhadores (as) rurais Sem Terra, o que está de acordo com os objetivos do Movimento (ESCOLA NACIONAL FLORESTAN FERNANDES, 2012).
Para o MST a formação deve sempre levar em conta o futuro que se pretende construir, buscando vislumbrar soluções para os problemas, deficiências e necessidades da luta de classes, preparando os militantes para os desafios colocados pela e para a luta. Trata-se de possibilitar aos militantes a passagem da consciência de “classe em si” em “classe para si” que, de acordo com Marx & Engels (1989), é
quando os trabalhadores (as) compreendem a sua condição de exploração e passam a atuar na luta contra os seus exploradores. Desta forma, o processo formativo compreende a luta de classes, não como uma preocupação teórica e prática apenas dos dirigentes, mas também da militância e de todos os membros da organização, buscando superar o corporativismo e o “economicismo” que, por vezes, afeta as organizações, reafirmando a importância da formação de sujeitos críticos da realidade, da prática política e organizativa, assim como sujeitos criativos capazes de forjar novos métodos de trabalho, de direção e de lutas de massa (MST, 2001).
Para Pizzeta (2007b, p. 244), “os processos formativos da ENFF devem estar profundamente vinculados e ser parte da organicidade do Movimento”. Deve contribuir para a formulação de métodos de trabalho, de direção, de planejamento e implementação dos princípios de forma participativa. Deve contribuir para que os Sem Terra, por intermédio da práxis, possam ser um sujeito coletivo capaz de impulsionar as mudanças que a realidade e a organização exigem, refletindo sobre a realidade, as contradições e possibilidades dos assentamentos e da luta por uma Reforma Agrária Popular4.
Na compreensão do movimento, a formação deve primar sempre, e em primeiro lugar, pela autonomia política e ideológica do MST com relação ao Estado, considerando que o Estado, como instrumento dos interesses da classe dominante, não permite a superação das contradições de classe. É o entendimento da necessidade de acirramento das contradições, na luta política de enfrentamento com o capital, com a burguesia e com o Estado que é instrumento a serviço dessa classe. (ESCOLA NACIONAL FLORESTAN FERNANDES, 2012)
Também considera importante compreender as diferentes formas de opressões, como as de raça e gênero, como relacionadas com a luta de classes, avançando em ações concretas para garantir a participação das mulheres, lésbicas, gays, travestis e transexuais dentro da organicidade e instâncias do MST, de forma que supere o racismo, machismo e LGBTfobia no interior do Movimento.
4 A proposta de Reforma Agrária Popular é uma formulação do MST, sistematizada no documento intitulado Programa Agrário, que expressa como ideia central a democratização da terra, para garantir acesso à terra a todos os trabalhadores (as) brasileiros (as) para morar ou trabalhar, provendo a produção de alimentos saudáveis com a matriz tecnológica da agroecologia, aperfeiçoando a maneira de produzir e distribuir a riqueza na agricultura entre outras medidas, objetivando a construção de uma sociedade socialista. (MARIANO, 2016).
A formação deve aprofundar as diferentes metodologias de forma a desenvolver uma ampla formação de sujeitos críticos e vigilantes em todos os espaços e níveis. A organização de uma Escola Nacional do MST, portanto, objetiva a formação de intelectuais orgânicos da classe trabalhadora, capazes de contribuir no processo de elaboração e condução da revolução brasileira. O objetivo é formar revolucionários, tal como concebeu Mao Tse Tung:
Ser um revolucionário que serve de todo o coração à esmagadora maioria dos povos [...] Ser um político do proletariado; capaz de unir- se e trabalhar juntamente com a esmagadora maioria [...] Ele deve dar o exemplo na aplicação do centralismo democrático, deve dominar o método de dirigir que se baseia no princípio dito ‘das massas para as massas’ e cultivar um estilo democrático que lhe permita escutar as opiniões das massas [...] Ele deve ser modesto e prudente, guardar- se da arrogância e da precipitação; deve estar penetrado do espírito de autocrítica e ter a coragem de corrigir as falhas e os erros no trabalho. Ele nunca deve encobrir os erros que tiver cometido, nem atribuir-se todos os méritos e lançar todas as culpas sobre os outros [...] Eles devem ser quadros e dirigentes com uma visão política ampla, competentes no trabalho, penetrados de espírito de sacrifício, capazes de, por si próprios, solucionarem os problemas, inabaláveis diante das dificuldades [...] Devem ser destituídos de todo o egoísmo, de todo heroísmo individualista, da ostentação, da indolência, da passividade e do sectarismo arrogante [...] No fundo, ser dirigente envolve duas responsabilidades principais: formular ideias e colocar os quadros. Traçar planos, tomar decisões, dar ordens, estabelecer diretivas etc., tudo isso entra na categoria de ‘formular ideias’. Para pormos as ideias em prática, devemos unir os quadros e motivá-los à ação. A isso se chama ‘colocar os quadros’. (TUNG, 2002, p.195).
Foi com esse propósito que a ENFF surgiu: formar esse revolucionário, no sentido de pensar, programar, planejar, organizar e desenvolver a formação política e ideológica dos militantes e dirigentes do conjunto dos movimentos. A Escola Nacional é um dos espaços de articulação das inúmeras iniciativas e experiências que estão em curso no movimento e que são articuladas pelos diferentes setores de atividades no MST e outras organizações populares, no sentido de buscar uma maior unidade e qualificação para a práxis. (PIZZETA, 2007b, p. 246).
A Escola Nacional assume o papel de impulsionar a elevação da consciência política e organizativa dos trabalhadores, contribuindo para o avanço organizativo do conjunto do MST e dos demais movimentos populares, por meio de atividades de formação, estudo, reflexão, análises e debates sobre temas conjunturais e estratégicos, através de cursos nacionais e internacionais, sejam para a escolarização ou para a formação teórico-prática e político-ideológica de seus participantes.
Uma das principais atividades que a escola realiza são os cursos centrados no estudo das bases e fundamentos metodológicos do Materialismo Histórico Dialético, mantendo o rigor científico e a linha política estratégica e buscando fortalecer as organizações populares a partir da apropriação do conhecimento científico historicamente construído pela humanidade, contribuindo na busca de soluções para os desafios que as organizações enfrentam. (ESCOLA NACIONAL FLORESTAN FERNANDES, 2017).
O método formativo da ENFF é organizado com base nas conexões fundamentais da constituição histórica do ser humano: a vida produtiva (o trabalho para a produção das condições materiais de existência), a luta social pela organização coletiva, cultural e histórica. Ao assumir a concepção marxista, busca articular quatro dimensões para a formação humana e que sustentam e orientam a práxis pedagógica da ENFF: o trabalho, o estudo, a organização, a cultura e a arte. (ESCOLA NACIONAL FLORESTAN FERNANDES, 2017).
A dimensão formativa através do trabalho é considerada como um dos pilares do projeto educativo da ENFF. O trabalho se identifica com a própria vida, como afirma Marx (1987): o que é a vida, senão atividade? O trabalho é compreendido, portanto, em sentido alargado, como atividade humana criadora e produtora do mundo e do próprio ser humano. Nesse sentido, entende-se o trabalho não apenas como trabalho produtivo, indicando ainda que não se pode confundi-lo com a condição do trabalho assalariado e explorado do modo de produção capitalista. A concepção é do trabalho no seu sentido ontológico, como característica fundamental do homem, e da luta para converter todos os seres humanos em trabalhadores (as) livres, superando todas as formas alienadas de trabalho.
Na ENFF a matriz principal do projeto educativo é o vínculo dos conhecimentos ao mundo do trabalho e da cultura que o trabalho produz. Mas, também, o trabalho como ato criador, que está na associação de produtores livres. Desta forma, na escola, os estudantes desenvolvem o trabalho educativo juntamente com o trabalho prático (trabalho doméstico, agrícola...) de forma cooperada. Para isso, a Escola não dispõe de funcionários, sendo todo o processo de gestão, de organização e de atividades
meios e fins coletivos e auto-organizados pelos estudantes e militantes que vivem na ENFF. A atividade que se realiza é o “trabalho socialmente útil” (Pistrak, 2009), sendo todo o processo de produção e a apropriação dos resultados feitos de forma coletiva, contrapondo-se à apropriação privada que é a lógica do sistema capitalista.
Buscando dar conta da organização dos estudos e da vida, a escola organiza a gestão do trabalho a partir de Setores e Unidades de Trabalho. Por exemplo: o Setor de Produção engloba horta, viveiro, animais, pomar e outras unidades; o Setor Pedagógico compreende a ciranda infantil, a cultura, a memória etc.; o Setor de Serviços é dividido em restaurante, limpeza geral, manutenção e outras. Trata-se de um processo de trabalho que envolve planejamento e avaliação permanente. O trabalho é realizado de forma coletiva e cada estudante compõe uma unidade de trabalho durante ao menos 1h30 de trabalho, diariamente. Todo o planejamento é feito pelos participantes, com o acompanhamento de um militante responsável pela unidade de trabalho (ESCOLA NACIONAL FLORESTAN FERNANDES, 2017).
Com relação à dimensão do Estudo, a ENFF objetiva um conjunto de práticas e espaços formativos, desde aulas com aporte de educadores (as), momentos de leituras, seminários e grupos de estudos, entre outros, a fim de proporcionar aos militantes um amplo espaço de reflexão dos problemas da existência, em conexão com conhecimentos de filosofia, história, economia política e outros, intencionando a apropriação dialética desses conhecimentos como ferramenta do processo de transformação histórica.
Referencia-se no método materialista-dialético de construção do conhecimento: a compreensão dos fenômenos e contradições (apreensão empírica e sincrética) da realidade como ponto de partida, as mediações abstratas do pensamento como possibilidade para a superação dessa condição, tendo em vista a apreensão concreta da realidade como síntese de múltiplas determinações ou como “rica totalidade das determinações e de relações numerosas” (Marx, 1973). Compreende-se, de acordo com Saviani (1984), que o estudo organizado deve partir da visão sincrética da realidade (senso comum) e, através de uma reflexão analítica, buscar identificar os vários fatores, as diversas facetas, os múltiplos problemas com que nos defrontamos na nossa realidade existencial, fazendo mediação-análise (apropriação de conhecimentos socialmente construídos na humanidade - ciência,
filosofia e artes), chegando a uma visão sintética da estrutura dialética da existência humana.
Nesse caminho, o método de estudo desenvolvido na ENFF se dá por meio de processos coletivos e individuais, com auxílio de educadores (as) que utilizam métodos expositivos de socialização do conteúdo, mas também com atividades auto- organizadas dos estudantes que dispõem de uma estrutura pedagógica, com uma biblioteca (com mais 40 mil exemplares), salas e espaços de estudos individuais e coletivos, também contando com acesso à internet para aprofundamento dos estudos e comunicação.
A organicidade do conjunto das atividades se dá no processo de participação permanente de todos na construção de espaços e momentos formativos, organizados em coletivos, forjando assim a comunidade da Escola Nacional. A ENFF tem uma estrutura organizativa em duas dimensões que se articulam: a Brigada Apolônio de Carvalho e os cursos.
A Brigada Apolônio de Carvalho (BAC) é o núcleo administrativo e pedagógico da ENFF e tem funções diversas, desde atuação nos setores de trabalho (horta, recepção, jardim, hospedagem...), sendo organizada em duas grandes frentes: a) os setores de trabalho - dedicados a atividades produtoras da vida na ENFF, articulando- se permanentemente na organização e desenvolvimento do trabalho junto aos cursos e turmas, o que exige: planejamento, divisão de tarefas, estudos e técnicas de desenvolver o trabalho; b) núcleos de base - que se constituem como o espaço do estudo e aprofundamento político dos processos organizativos da ENFF.
Na Brigada Apolônio de Carvalho (BAC) também se localiza a Coordenação Política e Pedagógica da ENFF, que é o coletivo de direção política da escola, cuja responsabilidade é coordenar a escola como um todo, acompanhando os cursos, bem como fazer a relação da ENFF com o conjunto do MST e as organizações e movimentos sociais do Brasil e de outros países.
Também integra a brigada o Coletivo de Acompanhamento Político e Pedagógico, com responsáveis por cada curso e tendo as seguintes funções: a) planejar e organizar as aulas, temas de estudos; b) fazer o processo de acompanhamento da organicidade, trabalho da turma, no sentido de trazer a dimensão educativa e formativa do processo; c) fazer diálogos com educadores a fim de contribuir nas definições de metodologia e foco das aulas; d) atuar como espécie
de educadores no cotidiano dos processos de formação em cada turma (ESCOLA NACIONAL FLORESTAN FERNANDES, 2017).
Os cursos são concretizados por núcleos de estudos e por turmas, geralmente uma turma por ano de cada curso. Em toda turma, os estudantes são organizados em Núcleos de Bases (NB’s) no sentido da construção de um espaço orgânico de estudo, debate e reflexões em torno do processo do curso e da ENFF. O número de participantes varia de acordo com a turma. Cada núcleo deve eleger um coordenador
(a) e um relator (a). O (a) coordenador (a) tem a função de conduzir os processos de estudos, bem como representar o núcleo de base na coordenação da turma, que é constituída por um (a) representante de cada NB e tem a finalidade de ajudar a conduzir o curso junto com o CPP (Coletivo Político e Pedagógico). O (a) relator (a) tem a tarefa de garantir a memória (escrita) das atividades realizadas no núcleo de base.
Outro aspecto importante do núcleo de base é a escolha do nome (identidade) do núcleo, geralmente prestando homenagem a um lutador ou lutadora da revolução proletária, a um processo histórico de luta ou ainda a dimensões da vida humana expressas no campo da literatura crítica.
A Cultura e arte é uma das dimensões da formação política, entendida como instrumento para a ação contra-hegemônica da classe trabalhadora, em função de fornecer condições (políticas, éticas e estéticas) para que os trabalhadores (as) possam compreender criticamente o que lhes parece natural – desnaturalizar o olhar, os sentidos e os sentimentos para que elucidem que a visão de mundo naturalizada é na verdade a visão de mundo da classe dominante (ESCOLA NACIONAL FLORESTAN FERNANDES, 2017).
De acordo com Duarte (2016), as artes educam a subjetividade, tornando o ser humano capaz de se posicionar perante os fenômenos humanos de uma forma que ultrapasse o pragmatismo cotidiano. As artes trazem para a vida de cada pessoa a riqueza resultante da história de muitas gerações de seres humanos, em formas condensadas, possibilitando que o indivíduo vivencie, de forma artística, aquilo que não seria possível viver com tal riqueza na sua cotidianidade individual.
Na ENFF, os conhecimentos das artes são socializados através de oficinas específicas para aprender a tocar algum instrumento, desenvolver habilidades das diversas linguagens artísticas (teatro, dança, poesia...), mas também a realização de
atividades como noites culturais, saraus de poesias, priorizando a valorização de músicas produzidas nos processos revolucionários ou de crítica à sociedade burguesa.
Na escola também são realizadas atividades chamadas de mística, que são como performances artísticas que utilizam as diversas linguagens das artes, para refletir sobre o projeto de humanidade que queremos construir, traduzindo em diversas expressões artísticas a denúncia do estado de coisas produzido pela sociedade burguesa, vislumbrando a construção coletiva de uma sociedade socialista aproximando, por meio do sonho humano coletivo, o presente do futuro, rememorando as lutas e histórias da classe trabalhadora e projetando a unidade da classe trabalhadora e o processo revolucionário (ESCOLA NACIONAL FLORESTAN FERNANDES, 2017).
A ENFF organiza um conjunto de cursos de acordo com as estratégias das organizações e movimentos populares do Brasil e do mundo, anualmente. No final de cada ano, realiza-se uma reunião com representantes de organizações mundiais para definirem possíveis ajustes ou criação de novos cursos.
A Escola organiza os cursos em Núcleos de Estudos (NEs): Teoria Política Nacional; Teoria Política Internacional; Cursos Formais e Sindical Popular. O tempo de cada curso varia de uma semana, para cursos de várias etapas, ou etapa única de 45 a 90 dias, mas um dos princípios fundamentais do método é que o curso seja concentrado e também por alternância de tempo, ora na ENFF ora nos movimentos e comunidades de origem. Os núcleos de estudos e seus respectivos cursos são:
Núcleo de Teoria Política Nacional, composto pelos seguintes cursos: a) Introdução Sistemática à obra de Marx; b) Legado Teórico Político de Florestan Fernandes; c) O pensamento de Lênin; d) Curso Nacional Questão Agrária; e) Curso Formação de Dirigentes do MST; f) Curso de Formação de Dirigentes dos Movimentos Sociais; g) Feminismo e Marxismo; h) Formação Política para LGBT; Núcleo Teoria Política Internacional: a) Formação de Brigadas Internacionalistas (Venezuela, Palestina, África do Sul, Haiti, Guatemala; b) Curso de Formação de Formadores
Latino-americanos; c) Curso de Conjuntura Internacional; d) Curso de Formação de Formadores em Idioma Inglês); e) Curso de Teoria Política Latino-americana.
Núcleo Sindical popular: a) Formação de Jovens do Sindicato dos Metalúrgicos;
b) Formação de Professores da Rede de Ensino Público; c) Curso de Formação dos Sindicatos dos Petroleiros; d) Formação de Formadores do MTD (Movimento dos trabalhadores desempregados); e) Formação de Formadores do MAM (Movimento de Soberania Popular na Mineração).
Núcleo dos cursos formais: a) Mestrado em Desenvolvimento Territorial na América Latina, parceria com a Universidade Estadual de São Paulo (UNESP); b) Mestrado em Saúde, Trabalho, Ambiente e Movimentos Sociais, parceria com a FIOCRUZ; c) Especialização em Estudos Latino-americanos, parceria com UFJF/ENFF.
A ENFF, até o presente, não é uma instituição de nível superior. Mas isso não significa que ela não articula atividades desse nível de ensino. Minto (2015) registra que a formação de graduação é realizada pela ENFF em parceria com instituições públicas e privadas, com cursos voltados para a pedagogia (incluindo a licenciatura em educação do campo), geografia, serviço social, direito, veterinária, ciências agrárias, ciências sociais e história. Também conta com projetos de extensão, cursos de curta duração e, mais recentemente, têm crescido os cursos de especialização (pós-graduação lato sensu). Atualmente, há dois cursos de pós-graduação em funcionamento: o Mestrado em Desenvolvimento Territorial na América Latina e Caribe, em parceria com a Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” e a Cátedra UNESCO de Educação do Campo, e o curso de Especialização em Estudos Latino-Americanos em parceria com a Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).
O currículo dos cursos tem como núcleo duro as disciplinas de filosofia, história e economia política, sendo ajustados seus focos, conforme a abrangência do curso: nacional, latino-americano ou mundial, buscando uma compreensão dialética da realidade e construindo conexões com as lutas e os processos históricos revolucionários. Também são estudadas as teorias e métodos de organização popular, bem como os temas recortes de classe, gênero, raça e diversidade sexual, temáticas que são vinculadas com os problemas orgânicos da luta de classes, assim como o momento histórico, no qual a teoria e a práxis se aliam para que sejam permanentes a ação e a reflexão sobre a ação.
Também se indica, como parte da metodologia, que os cursistas aprendam a formular questões, expor seus pontos de vista, apresentar suas sínteses, de forma a garantir a participação ativa de todos (as) no processo de apreensão de conhecimento. Para isso, a tarefa do formador (a) é de apresentar os conceitos, as bases de sua formulação e historicidade, desvelando e questionando as visões de senso comum, buscando a desconstrução dos conteúdos e argumentos que estruturam o sistema capitalista, objetivando a construção de um novo sujeito e uma nova realidade social de caráter social e coletivo. O materialismo dialético constitui o formulador das categorias básicas para a lógica da organização do pensamento e da produção do conhecimento.
Nesse caminho, a ENFF, em sua proposta política e pedagógica apresenta um conjunto de indicações detalhadas de orientações metodológicas para o trabalho nos cursos da escola: a) aulas expositivas, situando e explicando o tema em questão; após as aulas expositivas, contemplar leitura individual com textos complementares e orientação de uma bibliografia básica; b) leituras que poderão ser retomadas em sala de aula com o levantamento de questões, debates, dúvidas, acréscimos, complementos dos educadores; c) como o tempo em sala de aula é insuficiente para a compreensão dos temas, reserva-se um tempo para leitura individual (no mínimo 2 horas por dia) e, quando possível, busca-se garantir o debate nos núcleos deestudo;
d) ao final de cada disciplina/conteúdo é previsto um tempo para a elaboração de uma síntese individual que pode ser seguida de debate coletivo nos núcleos de base ou mesmo socialização/debate com as (os) educadoras (es); e) no início de cada etapa é feito um inventário dos conhecimentos da etapa anterior, em três momentos: individual, coletivo (nos núcleos) e com toda a turma com acompanhamento dos educadores; f) é prevista, ainda, como trabalho final, a elaboração individual de um plano de formação para a organização à qual o militante é inserido; g) sempre o curso é entremeado de atividades culturais, previstas para todo o decorrer do curso; h) entre cada etapa, são estabelecidas atividades de leitura, fichamento, sínteses e inserção orgânica (ESCOLA NACIONAL FLORESTAN FERNANDES, 2012).
Conforme analisa Minto (2015), no funcionamento efetivo da ENFF também estão presentes os elementos valorizados pelo MST e característicos da “sua” pedagogia, com momentos para aula, trabalho, estudos individuais e coletivos entre outros. A partir destas atividades, são planejados, organizados e executados os
cursos, eventos e outras atividades da escola. Os princípios de auto-organização, direção coletiva, gestão democrática, disciplina, também se aplicam aos cursos realizados em parcerias com outras instituições, como as universidades, sendo que “é possível haver adaptações de acordo com a realidade local”.
Nesse momento em que se fortalece no Brasil e em todo mundo a ofensiva neoliberal, tendo o conservadorismo como face, com forte articulação política da extrema direita, para fins da reestruturação econômica do capitalismo, condicionando a perda de direitos dos trabalhadores (as) e o aumento da exploração da força de trabalho, se faz necessário o fortalecimento da luta e organização da classe trabalhadora, por meio da formação da consciência e as formulações de estratégias e unidade política.
A ENFF tem exercido o papel de garantir acesso dos trabalhadores (as) ao conhecimento sistematizado, possibilitando a compreensão das contradições da sociedade capitalista e abrindo as possibilidades para aprofundamento da luta transformadora das estruturas da formação social burguesa e a construção de relações societárias socialistas. É uma escola de formação da e para a classe trabalhadora que não esconde sua posição política e assume a concepção marxista de socialização de conhecimento. Ao contrário da formação que a burguesia reserva aos (às) trabalhadores (as), a escola nacional prima pelos conhecimentos de filosofia, de história e de economia política, considerando esses campos do saber como base de seu currículo de formação. A escola tem como princípio educativo o trabalho, e derivatória desta, o estudo e a organização coletiva, sendo considerados como fundamentais para a formação de militantes dos movimentos sociais. Para tanto, a ENFF desenvolve a formação política e ideológica, entendida como apropriação dos conhecimentos clássicos, aqueles produzidos historicamente pela humanidade, aliada à prática e aos desafios das lutas concretas dos movimentos populares da América Latina e do mundo.
Para o desenvolvimento da formação utiliza métodos pedagógicos que visam a apropriação de conhecimentos com exercício prático de outras formas de relação social, com cooperação, divisão de tarefas, solidariedade, na perspectiva do
desenvolvimento da consciência de classe. Desenvolve a formação a partir do trabalho como força matriz formativa, para a construção de uma sociedade na qual a humanidade, como gênero humano, possa tornar efetivas todas suas potencialidades de desenvolvimento livre e universal e, ao mesmo tempo, onde a vida de todos os indivíduos se coloque no mesmo plano de universalidade e liberdade, ou seja, para que haja a necessária “superação do capitalismo e se avance em direção ao socialismo transição ao comunismo”, (DUARTE, 2016, p.102)
Nesta prática de escola, evidenciamos também limites: um deles é o não vínculo entre o trabalho prático com os conteúdos formativos das aulas, palestras, ou seja, o trabalho, por vezes, se restringe à necessidade imediata de reprodução da existência, não avançando, por exemplo, na dimensão do trabalho politécnico, requerido por Marx. Desta forma, o trabalho, algumas vezes, acaba sendo um artifício pedagógico no processo educativo, desconectado do todo. Também os cursos por serem concentrados, sendo suas cargas horárias e tempo de uma semana, ou mês, não conseguem proporcionar uma formação sistemática e dialética, aliada ao processo organizativo dos militantes em suas organizações – o plano de formação, que é um recurso pedagógico com essa intencionalidade, muitas vezes fica no plano ideal, necessitando de um acompanhamento na execução do mesmo ao término dos cursos.
Também há limites de recursos financeiros para a manutenção da ENFF, que se mantém por meio de uma associação de amigos (AAENFF), com mais de mil associados que contribuem mensalmente com um valor fixo, que somando às contribuições de uma rede cooperativa do movimento, sustentam a escola. Esses recursos não são suficientes, dependendo de trabalho voluntário de professores (as) e colaboradores (as), além de doação de organizações e movimentos parceiros.
Como já apresentado, a ENFF é fruto da solidariedade de classe e, na atual conjuntura, tem o desafio da resistência ativa em conjunto com as demais organizações, em pelo menos três sentidos: o primeiro é da defesa da democracia, contra os ataques e a criminalização do seu projeto educativo e das lutas dos movimentos sociais populares; o segundo se refere a reafirmar o pluralismo pedagógico, desestruturando os discursos de ódio, de discriminação e de criminalização dos movimentos sociais populares. Finalmente, é desmontar as críticas
infundadas contra as práticas educativas e as lutas da classe trabalhadora, reafirmando um projeto de desenvolvimento integral de ser humano.
CALDART, R. S. Pedagogia do Movimento Sem Terra. São Paulo: Expressão Popular, 2004.
BASTOS, P. N. MST e Escola Nacional Florestan Fernandes: formação, comunicação e socialização política. Revista Brasileira de Ciências da Comunicação, São Paulo, v.40, n.2, p.129-142, maio/agosto de 2017.
DUARTE, N. Educação Escolar e Formação Humana omnilateral na Perspectiva da Pedagogia Histórico-Crítica. In: LOMBARDI, J.C. (org.). Crise capitalista e educação brasileira. Uberlândia, MG: Navegando Publicações, 2016.
ESCOLA NACIONAL FLORESTAN FERNANDES. Memória do Processo de Construção da ENFF. Guararema/SP, 2005.
. Projeto Político Pedagógico da ENFF. Guararema/SP, 2012.
. Projeto Político Pedagógico da ENFF. Guararema/SP, 2017.
FERNANDES, F. A Revolução Burguesa no Brasil: Ensaio de interpretação Sociológica. Rio de Janeiro: Editora Guanabara. 3a edição, 1987.
. O que é a Revolução. São Paulo: Brasiliense, 1984.
FERNANDES, B. M. A formação do MST no Brasil. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000. FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. 49ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005.
GUEVARA, C. Textos Revolucionários de Che Guevara. São Paulo: Editora Global, 2009.
MARX, K. Contribuição para a crítica da economia política. Lisboa: Estampa, 1973.
. O capital: Crítica da economia política. 11.ed. São Paulo: DIFEL, 1987. Livro Primeiro volume I.
; ENGELS, F. Ideologia Alemã. São Paulo: Martins Fontes, 1989.
MINTO, L. W. A Escola Nacional Florestan Fernandes: origens históricas e concepções teórico-práticas. Revista HISTEDBR On-line, Campinas, nº 65, p.310-327, out 2015.
MST. Campanha de Construção da Escola Nacional do MST. Caderno de Formação n.29. São Paulo: Secretaria Nacional do MST, 1998.
. Construindo o caminho. São Paulo: Secretaria Nacional do MST, 2001
. Dossiê MST Escola: documentos e estudos 1990-2001. Ed. especial. Caderno de educação, n.13, Veranópolis/RS: Iterra, 2005.
OCTÁVIO, I. (Org) Florestan Fernandes: Sociologia Crítica Militante. São Paulo: Expressão Popular, 2004.
PIZETTA, A. M. J. A construção da Escola Nacional Florestan Fernandes: um processo de formação efetivo e emancipatório. Revista Libertas, Juiz de Fora, MG, ed. especial, p. 24- 47, fev. 2007a.
. A formação política no MST: um processo em construção. Buenos Aires: Clacso, 2007b.
PRINCESWAL, M. MST e a proposta de formação humana da Escola Nacional Florestan Fernandes: uma síntese histórica. 2007, 215f. Dissertação (Mestrado em Educação). Rio de Janeiro: UERJ, 2007.
SAVIANI, D. Escola e democracia. São Paulo: Cortez; Campinas: Autores Associados, 1984. SILVA, M. 2019 será sinônimo de luta e resistência. 30 de dezembro de 2018. Disponível em: <http://www.mst.org.br/2018/12/30/2019-sera-ser-sinonimo-de-luta-e-resistencia.html>.
TSE, M. T. O Livro Vermelho. São Paulo: Martin Claret, 2002.
v.17, nº 34, set-dez (2019) ISSN: 1808-799 X
Vanessa Gonçalves Dias2 Dynara Martinez Silveira3 Daniel do Nascimento4
O presente artigo apresenta a experiência realizada com crianças de 03 a 12 anos de idade do Movimento dos Trabalhadores Rurais (MST) no Rio Grande do Sul (RS), investigando as formas de participação e de auto-organização das crianças Sem-Terra no Encontro Regional das Crianças Sem- Terrinha, na Região Metropolitana de Porto Alegre no ano de 2017. O estudo fundamentou-se no materialismo histórico dialético (TRIVIÑOS, 1987; VÁZQUEZ, 2007). Como resultados apontamos que a auto-organização e a participação das crianças têm protagonizado novas estratégias educativas do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, quando articula a experiência do brincar com as lutas sociais em defesa da Reforma Agrária Popular e da Educação do Campo.
JUGAR, SONREÍR, PELEAR POR LA REFORMA AGRARIA POPULAR: LA EXPERIENCIA DE AUTOORGANIZACIÓN DE LOS NIÑOS SIN TIERRA DE MST/RS
El presente artículo presenta a experiencia realizadas con niños de 03 a 12 años de edad del Movimiento de los Trabajadores Rurales (MST) en Rio Grande do Sul (RS), investigando las formas de participación y de autoorganización de los niños sin tierra en el Encuentro Estadual de los Niños Sin Terrinha, en la Región Metropolitana de Porto Alegre, en el año de 2017. El estudio se fundamentó en el materialismo histórico dialéctico (TRIVIÑOS, 1987; VÁZQUEZ, 2007). Como resultados apuntamos que la autoorganización y la participación de los niños han protagonizado nuevas estrategias educativas del Movimiento de los Trabajadores Rurales Sin Tierra, cuando articula la experiencia del juego con las luchas sociales en defensa de la Reforma Agraria Popular y de la Educación Rurales.
1Recebido em 01/04/2019. Primeira avaliação: 08/04/2019. Segunda avaliação: 18/04/2019. Aprovado em 19/08/2019. Publicado em 27/09/2019.DOI: https://doi.org/10.22409/tn.17i34.p38046
2 Pedagoga. Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Educação - PPGEDU na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Integrante dos Grupos de Pesquisa: Trabalho, Movimentos Sociais e Educação (TRAMSE/UFRGS). Bolsista CAPES. vanygd@yahoo.com.br. https://orcid.org/0000-0001- 8419-9376
3 Pedagoga. Professora de Educação Infantil. Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Educação - PPGEDU na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Integrante dos Grupos de Pesquisa: Trabalho, Movimentos Sociais e Educação (TRAMSE/UFRGS). dynara.silveira@gmail.com. https://orcid.org/0000-0002-2771-7920
4 Bacharel em Serviço Social. Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural
TO PLAY, TO SMILE, TO FIGHT FOR THE POPULAR AGRARIAN REFORM: THE SELF- ORGANIZATION EXPERIENCE OF LANDLESS CHILDREN FROM MST/RS.
Abstract
This article presents the experience of children from 03 to 12 years old of the Rural Workers Movement (MST) in Rio Grande do Sul (RS), which investigated the ways of participation and self-organization of Landless Children in the Landless Children Regional Meeting in the Porto Alegre Metropolitan Region in 2017. The study was based on dialectical historical materialism (TRIVIÑOS, 1987; VÁZQUEZ, 2007). In terms of results, we point out that the self-organization and the participation of children have been leading new educational strategies of the Landless Rural Workers Movement, when it articulates the experience of playing with the social struggles in defense of the Popular Agrarian Reform and the Rural Education.
Keywords: Childhood; MST; Self-organization; Landless Children; Social movements.
Na América Latina, crianças e adolescentes somam quase a metade da população total. Metade dessa metade vive na miséria.
Sobreviventes: na América Latina, a cada hora, cem crianças morrem de fome ou de doenças curáveis, mas há cada vez mais crianças pobres em ruas e campos dessa região que fabricam pobres e proíbe a pobreza. Crianças são, em sua maioria, os pobres; e pobres são, em sua maioria, as crianças. E entre todos os reféns do sistema, são elas que vivem em pior condição. A sociedade as espreme, vigia, castiga e às vezes mata; quase nunca escuta, jamais a compreende. [...] Dia após dia nega-se às crianças o direito de ser crianças. Os fatos, que zombam desse direito, ostentam seus ensinamentos na vida cotidiana.
(Eduardo Galeano, 2011).
Os estudos sobre a infância vêm mostrando os desdobramentos da sociedade capitalista na limitação dos direitos à infância e do empobrecimento das crianças, que afetam principalmente as crianças da classe trabalhadora, reafirmando espaços de “não participação” das crianças na esfera política e no distanciamento com o mundo do trabalho. Nesse sentido, ao não aceitar a exclusão e a imposição fatalista de ocupar a margem menos favorecida da sociedade, os movimentos sociais, por meio de suas lutas, vem produzindo novos sujeitos sociais, os quais acabam questionando e contestando a forma hegemônica produzida pelo capitalismo. Conforme ressalta Caldart.
[...] ser Sem-Terra é também mais do que lutar pela terra; sem Terra é uma identidade historicamente construída, primeiro como afirmação de uma condição social: sem-terra, e aos poucos não mais comouma
circunstância de vida a ser superada, mas como uma identidade de cultivo: Sem-Terra do MST! (CALDART, 2001, p.211).
Assim, as crianças do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), podem dar uma grande contribuição aos estudos da infância. As crianças nos assentamentos e acampamentos do MST têm um papel ativo fundamental na organização e na luta pela terra e pela educação no Brasil. As discussões em torno da educação infantil e da infância no MST emergiram da necessidade de compartilhar com as famílias sem-terra os cuidados da educação dos filhos. No começo as necessidades deram início às primeiras experiências de atendimento organizando crianças em assentamentos a partir da participação das mulheres nas cooperativas de produção e do avanço da participação das mulheres na militância (cursos, formações, reuniões). Experiência de creches permanentes nas cooperativas e creches itinerantes nos acampamentos impulsionaram as primeiras discussões sobre a educação das crianças pequenas. Posteriormente surgiram os “círculos infantis” que se tornaram as “cirandas infantis”, conforme afirma a pesquisadora Ramos.
Com a desapropriação da terra, fase importante para a formação do assentamento, o MST precisa dar resposta organizativa à luta inicial na organização desses espaços. Nesse caminho, luta por formas alternativas de produção da vida coletiva, luta por escolas nos seus territórios e outras práticas educativas, consideradas alternativas como a organização da Ciranda Infantil e Jornada dos Sem Terrinha, vivências que os coletivos do MST foram socializando e desenvolvendo práticas de formação, educação e produção na base do Movimento em todo Brasil. (RAMOS, 2016, p. 60).
O primeiro Congresso Infantil do MST, no ano de 1994, com o slogan “Com a luta infantil mudaremos o Brasil” em Porto Alegre, foi a primeira atividade de mobilização infanto-juvenil organizada pelo setor de educação do MST. As mobilizações logo se expandiram para outros estados e passaram a ser chamadas de “Encontros Sem- Terrinha”. Percebe-se que ao longo dos anos, os Encontros Estaduais das Crianças Sem-Terrinha no estado do Rio Grande do Sul têm contribuído para a mobilização e organização das crianças e de seus familiares como espaço de denúncias contra as condições que as crianças enfrentam nos assentamentos/acampamentos e nas escolas.
Assim, o próprio movimento da luta é responsável por educar seus sujeitos. Caldart (2001, p. 220), afirma que, “deve-se ter presente que a pedagogia que forma novos sujeitos sociais, e que educa seres humanos não cabe numa escola. Ela é muito
maior e envolve a vida como um todo”. O que não significa que o movimento não reivindique o direito a escolas, o que se quer é que essa educação aconteça de forma ampla, não dentro de uma educação tradicional, em que, constantemente, prevalece a hegemonia burguesa. Desse modo, objetivamos investigar as formas de participação e de auto-organização das crianças sem terra no Encontro Regional das Crianças Sem-Terrinha, na Região Metropolitana de Porto Alegre.
O presente trabalho foi fundamentado na perspectiva do Materialismo Histórico Dialético, que é um método que visa não apenas interpretar a realidade, mas fornecer as bases teóricas para sua superação. “O materialismo histórico dialético, como método e como filosofia, serve por sua vinculação consciente como uma práxis revolucionária à transformação do mundo”. (VÁZQUEZ, 2007).
Nessa perspectiva direcionamos nosso percurso metodológico em dois eixos, sendo eles: a) fontes bibliográficas sobre a concepção de infância e auto-organização nos documentos do MST; b) a realização de observações participantes e entrevistas com crianças e educadores/as do MST. Ao longo do texto são discutidos três aspectos; em primeiro lugar, situamos a discussão sobre as concepções de infância ao longo da história da humanidade; em seguida, tratamos sobre o MST, a infância e a Educação do Campo e por fim, apresentamos a experiência do Encontro das Crianças Sem-Terrinha Regional ocorrido em Nova Santa Rita no Rio Grande do Sul- RS no ano de 2017.
Para que possamos vislumbrar ao horizonte a perspectiva de uma emancipação humana, é preciso que haja um movimento da sociedade em busca de uma transformação social, e na perspectiva de Mészáros (2008), esse caminho passa pela educação que não se limita às paredes, pelo contrário transcorre por toda a vida, a fim de superar a opressão, a exploração entre os seres humanos. E se tal movimento perpassa toda vida, o faz também pela infância, pela vida da criança.
Ao pesquisar e escrever sobre “infância” fica claro o papel de Philippe Ariès (1981), importante historiador francês do séc. XX, nessa história e campo de investigação. O estudioso foi o pioneiro no resgate das fontes até então desconsideradas pela história tradicional, no sentido de considerar a infância como
categoria social. Sendo assim, os estudos internacionais sobre a infância influenciaram muitos dos conhecimentos e das discussões acerca do tema no Brasil, trazendo, segundo Gouvêa (2007, p. 17), “em seu bojo a discussão sobre a multiplicidade de vivências das crianças definidas pelos diferentes pertencimentos sociais, étnicos, religiosos, familiares, de gênero, etc.”. Contudo, não pretendemos delinear a infância, tal qual o modelo que norteia às políticas públicas, que não considera a diversidade cultural e econômica, nem mesmo asdesigualdades sociais. Essas transformações sociais emolduraram, ao longo dos séculos, distintas imagens por vezes desbotadas, por vezes coloridas da infância. Melhor dizendo, das infâncias: medieval, europeia, americana, pobre, rica, branca, negra, etc. Devemos considerar, segundo Charlot (2013, p. 349), que “toda criança apresenta uma personalidade social e desenvolve comportamentos que refletem seu pertencimento de classe”. Já entre o século XV e XVI a infância foi laicizada, e mesmo retratada, mas foi efetivamente em meados do séc. XVII que a ideia de infância foi associada à natureza humana e à cultura. Nesse período surge também a ideia de amor maternal, atrelado ao sentimento de dependência e proteção. Aos poucos os caminhos se
abriram para que a infância passasse a ser estudada por cientistas educadores.
Tais conceitos acerca do interesse pelos infantes na modernidade são resultados das observações de historiadores, por vezes na esfera cultural, outras na esfera econômica. Esse foi um período de transformações, como já foi assinalado anteriormente. Deste modo, a infância não é algo que resultou da “natureza”, mas da modernidade, responsável pela construção histórica do sentimento de infância. De acordo com Freitas (2009, p. 12), essas proposições “revelam um século vazado pela ideia de que o desenvolvimento econômico é uma política preventiva global contra o desamparo da infância”. A infância, para Kuhlmann Jr. (1998, p.16), “[...] tem um significado genérico e, como qualquer outra fase da vida, esse significado é função das transformações sociais: toda sociedade tem seus sistemas de classes de idade e a cada uma delas é associado um sistema de status e de papel”. (KUHLMANN JR., 1998, p. 16).
De acordo com os escritos de Heywood (2004), a idade adulta continuou sendo a fase fundamental da vida, ainda no século XX, enquanto a infância era um período de preparação, cujos estudos davam ênfase à evolução e à socialização com objetivo claro de transformar em um adulto maduro, completo, aquele que outrora foi uma
criança imatura, irracional, incompetente, associal e acultural, ou seja, fazer da criança um sujeito civilizado segundo costumes socialmente validados. Dessa forma, cada discurso vai trazer sua forma de representação de si mesmo e dos outros. Independente desta representação a criança cresce, sua personalidade sofre transformações, está inserida em um espaço social adulto, ao qual ainda está se adaptando.
Gouvêa (2007) destaca que há uma diferença entre a história da infância e a da criança. A primeira resulta da relação cultural e social dos adultos com certo período etário; já a segunda surge a partir da própria criança em interação com o outro (adulto) e entre si, com a sociedade e a cultura. Para Leite (2009), a infância não consiste em uma fase biológica do ser humano, mas sim em uma construção cultural e histórica. Assim os termos “criança” e “infância” devem ser compreendidos de formas distintas, até porque “a infância deve ser compreendida como uma construção social” (HEYWOOD, 2004, p.12).
Consideramos que há uma distância entre o que realmente é ser criança e o que os adultos percebem ser, especialistas as veem como uma “possibilidade”, o que pode ou deve vir a ser. Sendo assim, o estudo da infância é comparativo, já que ocorre historicamente na sua inexistência/existência, e mesmo na relação a outras classes etárias. A própria infância é classificada, já que em seu interior há distribuições sociais, sejam elas classes sociais, etárias, culturais, de gênero, raça, em diferentes situações ambientais, sociais, educacionais. Inseridas nessas especificidades é que as infâncias se ajustam refletindo diferentes sentimentos, direitos e valores. A infância deixa de ser um período vazio para se tornar um período de maturação, afinal,
[...] ela não é mais ausência de humanidade e simples promessa de humanidade, mas presença de humanidade e risco de desumanização. Não é mais um período maldito e oco, marca da natureza humana perfectível. A infância não é mais julgada com referência a uma norma ideal de humanidade projetada no futuro, mas tendo em vista o dinamismo de seu desenvolvimento, que encontra sua fonte na verdadeira humanidade. A infância é humanidade e simboliza o que há de melhor na natureza humana: a inocência, a confiança, a liberdade, a criatividade, a perfectibilidade. (CHARLOT, 2013, p. 182-3).
Para Câmara (2007) a modernização e o progresso que perpassavam o início do séc. XX vieram acompanhados da preocupação de instituir o lugar que sujeitos sociais diferentes ocupariam com isso, o poder estatal cada vez mais interveio na esfera privada das famílias. Principalmente, através de políticas de proteção e
assistência às crianças pobres que se efetivavam por meio de ações jurídicas associadas à medicina e à educação. Aspectos como a pobreza, o trabalho infantil e até mesmo as relações entre a família e a escola contribuíram para que a infância fosse produzida e permanecesse como problema de governo. Podemos dizer que, de certa forma, a infância no Brasil foi “criada” após a Proclamação da República.
Na mira de intelectuais, políticos e reformadores estava a criança pobre que, segundo Câmara (2007, p. 266), “adquiriu uma multiplicidade de identidades, passando a configurar-se como abandonada, delinquente, desvalida, menor, deserdada da sorte, desamparada, infeliz, desprotegida”. Com isso, a produção da infância passa a ser um problema do Estado, afinal se defrontam o público e o privado, e neste contexto a escola surge como uma instituição civilizatória, capaz de produzir novas atitudes e valores.
Em 1990 entrou em vigor uma lei que tratava da proteção de crianças e adolescentes de forma integral, a Lei nº 8.069, de 13 de julho, o Estatuto da Criança e do Adolescente. A referida lei considera como criança a pessoa até doze anos de idade incompletos, tendo garantidos os mesmos direitos de toda pessoa humana e de viver em um ambiente que permita o seu desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade. Mais recentemente outro documento - as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil - conceitua criança como:
[...] sujeito histórico e de direitos que, nas interações, relações e práticas cotidianas que vivencia, constrói sua identidade pessoal e coletiva, brinca, imagina, fantasia, deseja, aprende, observa, experimenta, narra, questiona e constrói sentidos sobre a natureza e a sociedade, produzindo cultura. (BRASIL, 2010, p. 12).
A pedagogia construiu a infância como um campo de conhecimento. É sobre o corpo infantil que a educação escolar deposita seu agir, e é na instituição escolar que a infância é encerrada. A pedagogia, e não poderíamos deixar de fora a psicologia infantil e a pediatria, foram responsáveis por operar e fornecer sentidos sobre a infância na modernidade. Ainda nos primórdios do século XX, ligada à ideia de infância produzida pela Modernidade, a escola se afirmou como agência de socialização/formação. Articulada à escolarização está o conjunto de tempos-espaços de “produção dos sujeitos” que estão ligadas às representações e práticas do que é ser e viver a infância no mundo do trabalho e na família.
Como foi retratado ao longo deste texto, o século XX, precisamente no Brasil, foi permeado por transformações que atingiram o cerne das relações sociais, políticas, culturais, econômicas e, por extensão, educacionais. Assim, deve ficar claro em que sociedade estamos inseridos, ou seja, em um capitalismo dependente que acentua as desigualdades e cuja classe dominante, “acresce à violência da expropriação da classe trabalhadora, especificamente capitalista, o estigma e os métodos da herança dos quase quatro séculos de escravidão” (FRIGOTTO, 2010, p 20).
Contudo, é fato que nenhuma transformação se dá na inércia, na estagnação de um ou mais grupos sociais, muito pelo contrário, é no seio dos Movimentos Sociais que as pessoas se unem para reivindicar, através da luta, seus direitos, muitos já dispostos na legislação nacional, mas esquecidos ou destituídos de concretude. Nessa perspectiva, os Movimentos Sociais podem ser compreendidos como,
[...] sujeitos organizados que se colocam na sociedade como expressão política de si mesmos, sem intermediações, que tem nas condições de reprodução da vida, que se relaciona com o trabalho e possibilidades de vida digna, o mote da sua existência. Neste sentido são portadores de reivindicações que apontam para a real universalização dos direitos. Aspectos que caracterizam estes Movimentos, apesar das especificidades, são a explicitação das contradições sociais, a construção de sujeitos, certa organização, capacidade de articulação, de mobilização, de luta coletiva, de construção de alternativas cotidianas e, dependendo do nível de politização, de articulação das lutas imediatas com as estruturais, das locais com as nacionais e internacionais, colocando-se na perspectiva de acúmulo de poder e de transformação social. (PALUDO, 2011, p. 02).
Os sujeitos e objetos em espaços relacionais constituem um território, em que rural e urbano, são perpassados por conflitos de interesse expressos em relações de poder que se inserem dentro de uma sociedade capitalista, como um campo de disputa (Cruz, 2008). Assim, Aued e Vendramini (2009, p.35) destacam que “[...] as últimas décadas têm sido marcadas, não apenas pela diversidade, mas, sobretudo, pela adversidade contraditória em relação às condições de existência social”.
Com isso, podemos dizer que existem territórios distintos dentro do campo: um camponês, heterogêneo, cujo objetivo da organização é o da subsistência e da existência através da produção de alimentos; e outro do agronegócio, homogêneo, que se organiza em torno da produção de mercadorias. Esse último vem se territorializando rapidamente, destituindo os espaços antes pertencentes à agricultura
camponesa, e assim, aumentando as desigualdades sociais e econômicas entre ambos. Dessa forma,
[...] o campesinato é uma classe que, além das relações sociais em que está envolvido, tem o trunfo do território. A cada ocupação de terra, ampliam-se as possibilidades de luta contra o modo capitalista de produção. E pode se fortalecer cada vez mais se conseguir enfrentar e superar as ideologias e as estratégias do agronegócio, se conseguir construir seus próprios espaços políticos de enfrentamento com o agronegócio e manter sua identidade sócio-territorial. (SANTOS, 2008, p.50-51).
Com isso, para Ribeiro (2010, p. 188), é indispensável, “focalizar a produção camponesa como a que envolve o trabalho familiar, trabalho esse que assume uma dimensão educativa, daí porque a importância de articular ensino e trabalho”. Esses sujeitos não reivindicam apenas terra, também trabalho e escola para seus filhos. A partir dos anos 1980, famílias inteiras começam a participar do Movimento para ocupação de terras improdutivas, principalmente organizadas e orientadas pelo MST de forma ativa, em diferentes frentes, provocando e sendo provocado pelas disparidades em que vivem os povos do campo. Esse movimento que tem conseguido despertar e aumentar o nível de consciência destes sujeitos, em relação aos seus direitos e do acesso ao conhecimento para que o meio rural se desenvolva. Desse modo, o MST tem por princípio educativo o trabalho. Frigotto entende que,
[...] a mais orgânica e ampla e, por isso, a mais combatida pela classe burguesa brasileira, é a do projeto societário e educativo do Movimento dos Sem Terra. Por articular a educação a mudanças radicais no projeto societário, é ali que vislumbramos os elementos mais avançados de uma educação que busca ir além do capital e, portanto, é contra-hegemônica ao projeto social e educacional de capitalismo dependente no Brasil. (FRIGOTTO, 2010, p. 34).
O MST a fim de construir um novo sujeito principia pela conquista da terra e, concomitantemente, estende sua luta rumo ao direito à educação. De acordo com Caldart (2001), a articulação do MST deu-se entre o período de 1979 e 1984, nesse ano, ocorreu o 1° Encontro Nacional dos Sem-Terra reunião que se tornou o ponto de partida do conhecido, e por que não dizer polêmico MST, inaugurando uma nova fase de luta pela terra no país. Para o MST (2005, p. 12), “ocupar e acampar são as formas encontradas pelos Sem-Terra para pressionar o governo a resolver o problema agrário, a cada dia mais profundo”.
As lutas do Movimento refletiram positivamente na construção da Constituição Federal de 1988, com o artigo 184, sobre a desapropriação de imóveis rurais que não
estejam cumprindo sua função social, e o artigo 186, sobre o cumprimento da função social. Tais fatos elevam o MST a um segundo nível de sua luta, fazer com que essas medidas sejam efetivadas, bem como a construção de novas relações sociais e um novo projeto de desenvolvimento para o campo e para o país. Para Frigotto (2010, p. 38),
[...] na educação e pedagogia do campo, parte-se da particularidade e singularidade dadas pela realidade de homens e mulheres que produzem suas vidas no campo. Todavia, não se postula o localismo e nem o particularismo, mediante os quais se nega o acesso e a construção do conhecimento e de uma universalidade histórica rica, porque é a síntese do diálogo e da construção de todos os espaços onde os seres humanos produzem sua vida. Educação e conhecimento apontam para uma sociedade sem classes, fundamento da superação da dominação e da alienação econômica, cultural, política e intelectual.
Para Caldart (2001) dentro do MST ocorre um movimento pedagógico de formação desses sujeitos, que adquirem uma nova maneira de ser humano capaz de pensar e, assim, tomar uma posição frente aos acontecimentos que se desenvolvem em seu tempo. Na luta, os Sem-Terra se politizam ao compreender seu problema num contexto mais amplo, constroem novas formas de conviver e viver nos assentamentos, em comunidades no campo, onde o que predomina é o interesse e o bem-estar de todos, do coletivo contrariando a forma dominante capitalista. Para Vendramini (2007,
p. 132), isso se dá porque há uma organização, articulação “com outras esferas da vida e outros sujeitos sociais tem permitido a reflexão sobre o sentido da escola. Além disso, tem-se constituído num confronto à educação mercantilista que caracteriza os sistemas de ensino na atualidade”.
A Pedagogia do movimento inspira-se na Pedagogia Socialista5, pois busca nos processos de luta pela terra e nas formas de resistência o resgate do trabalho como principio educativo, trazendo a dimensão pedagógica do trabalho e da organização coletiva. E na pedagogia da alternância6 que possibilita uma educação que conta com o processo de integração, socialização das experiências vividas nos diferentes tempos e espaços formativos. A caracterização da identidade cultural e histórica da luta pela terra e as formas de resistência são trabalhadas através da pedagogia da
5 Aprofundar em Fundamentos da Escola do Trabalho, Pistrak (2000); Rumo ao politecnismo, Shulgin (2013); A Construção da pedagogia Socialista, Krupskaya (2017).
6 Ver em Dicionário da Educação do Campo (2012).
cultura-histórica, que resgatam memórias e simbologias construídas ao longo da trajetória sem terra.
Essa metodologia educativa permite a auto-organização das crianças, amplia a capacidade formativa de integração da teoria com a prática estabelecendo vínculos educativos, históricos, culturais com a sua realidade social fomentando a emancipação humana através das dimensões da formação humana e produção de novo conhecimentos. Dessa forma,
[...] aprendemos que o processo de formação humana vivenciado pela coletividade Sem Terra em luta, é a grande matriz para pensar uma educação centrada no desenvolvimento do ser humano, e preocupada com a formação de sujeitos da transformação social e da luta permanente por dignidade, justiça, felicidade. Buscamos refletir sobre o conjunto de práticas que fazem o dia-a-dia dos Sem Terra, e extrair delas lições de pedagogia, que permitam qualificar nossa intencionalidade educativa junto a um número cada vez maior de pessoas. A isso temos chamado de Pedagogia do Movimento. (MST, 2005, p. 233).
Como podemos ver até aqui, fica claro que os processos educativos do MST foram moldados, juntamente com a luta pela terra, por garantia de políticas públicas, pelos Movimentos e pelas organizações sociais do campo, principalmente, o MST que, desde o início de sua história, reivindica o direito de ter escola pública em seus acampamentos e assentamentos. Foi na década de 1990 que este movimento ganhou mais força, com a participação da Via Campesina e de outros Movimentos, que erguiam entre suas reivindicações específicas também, a bandeira da educação escolar.
No entanto, a adequação da Educação Básica para a população rural surge nas proposições da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional n° 9.394/96 que, em seu artigo 28, deixa claro que devem ser promovidas “adaptações necessárias à sua adequação às peculiaridades da vida rural e de cada região”. Apesar disso, as Diretrizes representam uma vitória e abarcam proposições do Movimento de Educação do Campo. Contudo, somente em 2002 é que as “Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo” abordam a necessidade de uma educação diferenciada para os que vivem e trabalham no campo.
Nesse sentido, muitas conquistas educacionais para a população do campo, em específico e para educação dos trabalhadores de modo geral, foram conseguidas pelas reivindicações e lutas dos movimentos sociais, sendo o MST aquele que se destaca no cenário nacional, sem, é claro, esquecer que há outros movimentos que
lutam. A Educação do Campo foi um desses direitos adquiridos pelas reivindicações, lutas e marchas dos Sem-Terra e de seus “Sem-Terrinhas”.
“Sou Sem-Terrinha do MST, acordo todo dia pra Lutar, você vai ver! Sou sem-terrinha do MST acordo todo dia pra lutar você vai ver lutar por terra, escola, saúde, educação
desse meu direito eu não abro mão!”
(Sem-Terrinha).
“O ânimo rebelde tem estado presente nadignidade dos que se recusam a se deixar assimilar por hordas e manadas; tem se manifestado na dignidade dos que repelem os processos que parecem tender a militarização da vida. Essa certa chama de rebeldia eleva o teor das
formas de existência coletiva”.
(Leandro Konder)
Os Encontros dos Sem-Terrinha são considerados atividades organizativas e políticas realizadas pelo MST, geralmente ocorrem no mês de outubro, correspondendo à Semana da Criança. Essa atividade faz parte do processo de organização das crianças dos acampamentos e assentamentos do MST e é realizado nos estados de todo o país em que o MST está organizado. Tendo uma abrangência regional ou estadual, dependendo das condições de cada Estado, a duração dos encontros é de um até três dias. Nesse espaço as crianças reúnem-se para socializar experiências de suas escolas assentamentos e acampamentos, fazendo oficinas, brincando e estudando sobre diversas temáticas, a cada nova edição uma nova temática é escolhida.
Para o MST a auto-organização é um elemento central, onde são construídos espaços de diálogos junto às crianças para se tornarem ativas no compromisso com a classe trabalhadora. O MST incentiva a participação e apropriação do conhecimento, através da cultura, da arte, do estudo, da socialização, da solidariedade e do direito de ter qualidade de vida no campo, com educação, saúde e alimentação de qualidade.
Entendemos a auto-organização o direito dos educandos se organizarem em coletivos, com tempo e espaço próprio, para analisar e discutir as suas questões, elaborar propostas e tomar suas decisões em vista de participar como sujeitos da gestão democrática do processo educativo, e da escola como um todo. Este é um espaço de aprendizado e como tal deve ser acompanhado por um/a educador/a
que respeite a autonomia dos estudantes. (Caderno de Educação, nº 09, p. 14, 1999).
Os Encontros das Crianças Sem-Terrinha no Rio Grande do Sul ocorrem nas formas regionais ou estaduais. No período analisado aconteceram seis grandes encontros regionais com os temas “Alimentação Saudável: um direito de todos” e “Reforma Agrária Popular e Agroecologia”, envolvendo cerca de 1.500 crianças. Cabe frisar que o MST no estado do RS se organiza em 10 grandes regiões7, porém, devido ao período de fortes chuvas e sem condições de acessibilidade, quatro regiões não conseguiram realizar o encontro. Ambas as edições contaram em sua programação com a preparação para o 1º Encontro Nacional das Crianças Sem-Terrinha, que ocorreu em maio de 2018 em Brasília/DF.
Assim, o objetivo do encontro regional, nessa edição, foi o de construir uma pauta coletiva das crianças com a sociedade em geral sobre os benefícios da alimentação saudável, com vistas a ampliar o consumo e a produção de alimentos sem venenos, conhecer também os malefícios do uso indiscriminado de agrotóxicos através de estudo, práticas e oficinas envolvendo jogos, culinária e atividades culturais.
Na região metropolitana o evento acorreu no Assentamento Capela de Santana localizado no município de Nova Santa Rita/RS, no ginásio da cooperativa COOPAN (Cooperativa de Produção Agropecuária Nova Santa Rita) que tem a produção de arroz, frigorífico, panificação e produção leiteira. A cooperativa abrange, aproximadamente, 48 famílias. A organização do encontro deu-se com uma grande equipe de articulação política e pedagógica dentro de um planejamento ampliado com
7 Conforme informações disponibilizadas pelo setor de Educação do MST/RS e do Jornal Sem Terra: Na Região da Campanha aconteceram as caravanas das escolas, trabalho temático “Sem Terrinha na agroecologia e as sementes” e montagem do “Varal dos Sem Terrinha”. Na Região das Missões tiveram atividades práticas de biofertilizantes com profissionais técnicos e estudos sobre alimentação saudável. Na Fronteira Oeste — São Gabriel ocorreu uma marcha até o Ministério Público e a prefeitura para entrega das pautas de reivindicações e a tarde palestras sobre alimentação saudável e sessão de cinema. Na região da Fronteira Oeste — Santana do Livramento tiveram atividades de formação, com oficinas e brincadeiras e entrega de pauta de reivindicações à Secretaria Municipal de Educação e 19ª Coordenadoria Regional de Educação. Na fronteira Oeste — Manoel Viana, foi realizada uma recepção aos Sem Terrinha e debatidas as demandas da escola e do Assentamento Santa Maria do Ibicuí e o trabalho com a revista Sem Terrinha, debate em preparação ao 1º Encontro Nacional dos Sem Terrinha e estudo sobre a alimentação saudável e agroecologia. E por fim, na região Sul as crianças caminharam pelas ruas da cidade de Canguçu em defesa da saúde, por educação de qualidade e melhorias das condições para viver no campo. Ocorreu também entrega de carta às autoridades locais, com as principais pautas dos Sem Terrinha.
a participação e protagonismo das crianças, por meio de dez reuniões de organização e encaminhamentos, que antecederam o evento.
A ideia inicial foi de articular as crianças do campo e da cidade. Foram realizadas inúmeras reuniões com lideranças das ocupações urbanas de Porto Alegre e da Região Metropolitana, para que as crianças pudessem construir uma pauta única tanto do direito à cidade, quanto às reinvindicações camponesas, no entanto, pela dificuldade em arrecadar verbas as crianças urbanas não conseguiram participar integralmente do encontro. Nossa inserção enquanto pesquisadores se deu de forma a acompanhar e apoiar a organização do evento, em seus dois dias, além de realizar o registro de 12 observações participantes8 e 05 entrevistas (em forma de conversas grupais) semiestruturadas9 com as crianças e educadores vinculados ao MST. O critério de escolha foi o de observar, escutar, conversar e compreender os diferentes pontos de vista pelos diferentes sujeitos no evento (crianças e educadores).
Os temas para as conversas grupais foram desde o resgate histórico dos encontros dos sem-terrinha até a atual importância da mobilização das crianças, além de identificar as formas de participação e auto-organização das crianças durante todo o evento. A organização coletiva nos encontros implicou em repensar necessariamente a participação de todos, o que significa que a direção dos processos foi realizada por muitos sujeitos e que todos puderam participar de todas as suas esferas, desde as ações politicas, ações de autosserviço, bem como dos espaços culturais.
Para isso, os tempos educativos do encontro incluíram: 1) organização política (construção da carta, espaço de construção de escritas coletivas, jornal sem terrinha; 2) momentos culturais; 3) momentos da alimentação e saída de campo. Quanto à organicidade desse encontro, as delegações10 foram divididas nas tarefas de auto-
8“Definimos observação participante como um processo pelo qual um pesquisador se coloca como observador de uma situação social com a finalidade de realizar uma investigação científica. O observador, no caso, fica em relação direta com seus interlocutores no espaço social da pesquisa, na medida do possível, participando da vida social deles, no seu cenário cultural, mas com a finalidade de compreender o contexto da pesquisa.”. (MINAYO, 2013, p. 70).
9Para Triviños (1987) a entrevista semiestruturada tem como característica questionamentos básicos que são apoiados em teorias e hipóteses que se relacionam ao tema da pesquisa. A entrevista semiestruturada “[...] favorece não só a descrição dos fenômenos sociais, mas também sua explicação e a compreensão de sua totalidade [...]” (TRIVIÑOS, 1987, p. 152).
10 Conforme o setor de Educação do MST: “As delegações são as organizações de cada localidade e/ou acampamentos e assentamento de onde vêm às crianças, para cada delegação há duas crianças que são responsáveis pela sua organização e tarefas anteriores e posteriores ao evento” (2016; 2017).
organização em grupos: de estudo; mística; oficinas e construção de documentos. O autosserviço constava em limpeza do espaço; limpeza da louça; horários de banho; almoço e lanches. Em todas as tarefas havia rodízio das crianças conforme as localidades e assentamentos/acampamentos. Pois, de acordo com Caldart,
A expressão organização coletiva traz certa redundância: não há coletivo sem organização, e o processo coletivo visa geralmente à constituição de um coletivo. Mas aqui o seu uso visa chamar a atenção para um duplo sentido através do qual é possível compreender a sua dimensão educativa. Organização remete ao ato ou processo de organizar-se em vista de realizar coletivamente uma determinada ação; mas também se refere à coletividade produzida através das ações organizadas (CALDART, 2004, p. 342).
Complementando o debate sobre a importância o autosserviço. Pistrak afirma:
A educação para o trabalho deve começar com o trabalho cotidiano, de autosserviço. Para que o estudante seja conduzido às mais altas formas de trabalho industrial, é preciso passar ele mesmo por um determinado período de acumulação de grande variedade de habilidades de trabalho; é preciso começar a partir daqueles com os quais ele se encontra na vida cotidiana. (PISTRAK, 2015, p.172).
Para a realização das ações do encontro o autosserviço abrangeu as práticas de trabalho articuladas com os objetivos do encontro, o trabalho para si e para os outros como a organização dos tempos e dos espaços de alimentação, a limpeza do espaço e das louças. Conforme Pistrak (2002, p. 207) “esse tipo de atividades podem ser realizadas por comissões e grupos temporários, etc., que são dissolvidos quando termina a tarefa”. Como disse uma das crianças sobre as tarefas e a divisão de grupos,
[...] A gente espera o ano todo para ir participar do encontro sem- terrinha, é muito bom a gente se prepara antes com musicas e brincadeiras. Lá nós temos tarefas e nos divididos por grupos, onde cada grupo tem uma tarefa, mas como todo mundo ajuda é bem rápido e divertido”. (DIÁRIO DE CAMPO, Conversa com crianças Sem Terrinha, 2017).
No primeiro dia do encontro houve a recepção das crianças sem-terrinha no assentamento com místicas, canções criadas pelas próprias crianças e algumas brincadeiras. Conforme imagem abaixo:
Para crianças bem pequenas havia um espaço de ciranda com canções, brincadeiras camponesas e atividades de pinturas com elementos do assentamento (folhas, galhos, sementes etc). Segundo documentos do movimento:
A Ciranda Infantil é um espaço educativo, organizado com o objetivo de trabalhar as várias dimensões do ser criança Sem Terrinha, como sujeito de direito, como valores, imaginação, fantasia e personalidade em formação, vincular as vivências com a criatividade, a autonomia, o trabalho educativo, a saúde e a luta pela dignidade de concretizar a conquista da terra, a reforma agrária, as mudanças sociais (MST, 2004, p. 37).
Logo após, para as crianças de sete anos em diante ocorreu o debate em grupos sobre as orientações para o 1º Encontro Nacional dos Sem-Terrinha, onde ficaram definidas as tarefas que cada participante na construção do encontro nacional, bem como quem seriam as representações do estado, uma vez que teria vaga para apenas 80 crianças do estado. Além de educar para os acordos e decisões coletivas, as discussões desenvolveram o sentimento de pertencimento de que as crianças podem se conhecer e desenvolver maior confiança e organização coletiva. Conforme imagem abaixo:
Conforme explicita uma das crianças:
[...] É importante pra nós conhecer as outras crianças, o trabalho que elas fazem no assentamento, a gente aprende bastante e é tudo bem organizado, todos tem tarefa de limpeza e organização do espaço, de cultura e mística, de coordenação do dia e também nós podemos avaliar no final e dizer o que mais gostamos e o que queremos para o próximo encontro. Quando a gente chega de volta no nosso assentamento temos muitas coisas pra contar pra nossa família e para os amigos que não foram. (DIÁRIO DE CAMPO, Conversa com crianças Sem Terrinha, 2017).
Uma das educadoras complementa sobre a importância da auto-organização das crianças como pauta no interior do MST e nos encontros:
[...] Um dos maiores objetivos do encontro dos Sem terrinha é de fortalecer a organicidade das Crianças Sem Terrinha em seus locais (comunidade, escola, assentamento e acampamento), mas também colocar na pauta do MST, enquanto organização, o debate, o trabalho e a organização com nossas crianças; o outro é de estimular espaços de auto-organização e autonomia das crianças Sem Terrinha, a construção dos encontros é uma das formas mais fortes e potenciais para que se potencialize espaços e processos de vivencias organizativas; e por fim, o processo indicação coletivo (nas escolas e por parte das crianças) de participação das crianças nos Encontros são sempre resultados deste trabalho nas bases e na vivencia da identidade das crianças, neste caso a criança vai representando a organização, as demais crianças. (DIÁRIO DE CAMPO, Conversa com Educadores do MST,2017).
A coletividade ocorre articulada à capacidade das crianças de trabalharem coletivamente; e a auto-organização compreende responsabilidade, obrigações e, principalmente, compromisso com a coletividade. Apontam para esse debate Pereira e Ramos quando anunciam que,
[...] o espaço de coletividade das crianças do campo se constitui na participação no trabalho, nas atividades políticas, culturais e religiosas, na criação de espaços lúdicos, na luta pelos direitos que têm significação para a comunidade e para as crianças, intervindo do jeito delas e com suas presenças nas atividades que compartilham com os adultos. Do coletivo em que as crianças estão inseridas e das relações que esse coletivo estabelece socialmente, resultam aprendizagens que fortalecem a consciência do direito à vida, ao trabalho, à escola, à participação política e do direito de viver plena e dignamente o tempo da infância. (SILVA, PEREIRA e RAMOS et al., 2012, p. 420).
No período da tarde as crianças participaram da audiência com a Casa Civil em Porto Alegre. Nessa ocasião apresentaram demandas de todas as unidades regionais do MST. A reportagem sobre a audiência na Casa Civil enfatiza que:
Contra a reforma do ensino médio e a Lei da Mordaça. Denunciaram que a política de fechamento de escolas do campo, adotada pelo governo, também reivindicaram ao governo estadual mais segurança e qualidade nos transportes escolares, além da garantia de fiscalização dos veículos e melhoria das estradas. Outra pauta importante foi a alimentação escolar, que em muitas situações é a principal refeição dos educandos. As crianças solicitaram que 80% dos alimentos adquiridos para a merenda venham da agricultura familiar. Os Sem-Terrinha exigiram ainda medidas do governo para assentar famílias acampadas e para proibir a pulverização aérea e combater o uso abusivo de agrotóxicos, especialmente em áreas próximas às escolas. (MST, Jornal Sem Terra, 2017).
O momento de luta é de extrema importância para as crianças, pois elas que pautam e reivindicam as ações junto ao poder público, embora “o esperado encontro” com o governador do Rio Grande do Sul não tenha acontecido, a respeito dessa ocasião, posiciona-se uma das crianças: “[...] a gente gostou de ir lá e ler nossa carta, mas ele não apareceu, demoram um tempão para nos receber e falamos com outro moço”. (DIÁRIO DE CAMPO, Conversa com crianças Sem Terrinha, 2017).
No segundo dia do encontro as crianças puderam participar e organizar as oficinas pedagógicas de maracatu, agroecologia, jogos, teatro, etc. Esse momento foi bastante importante, pois participaram do encontro crianças quilombolas de outro território fora dos assentamentos do MST, que além de fazer apresentações artísticas, puderam trocar experiências sobre os diferentes modos de vida das crianças quilombolas e crianças assentadas, desde brincadeiras, modos de trabalho escola e alimentação.
A alimentação do encontro contou com doações de alimentos produzidos nos assentamentos, divulgando a diversidade produtiva dos assentamentos para o conjunto da sociedade. Através do cardápio e do debate da “Alimentação Saudável e da Agroecologia” foi possível perceber o quanto é importante e saboroso ter o conhecimento de outro tipo de alimentação, das variedades orgânicas de grãos que não sejam baseados em artificialidade e na exploração do trabalho e na degradação do meio ambiente. A respeito dessa temática, houve uma palestra sobre alimentação
saudável e cuidados com a terra, e uma visita junto às unidades de produção da Cooperativa COOPAN, ambas elaboradas e executadas por crianças e educadores.
Ao final do encontro foram retomadas todas as combinações para o Encontro Nacional dos Sem-Terrinha; foram realizadas algumas místicas e a avaliação das crianças sobre o encontro além de uma pequena confraternização do Dia das Crianças.
Conforme o relato de uma das educadoras:
Os encontros dos Sem Terrinha não só acontecem para comemorar o Dia das Crianças, mas também para que eles se mobilizem e reivindiquem seus direitos. As crianças querem que o governo cumpra sua responsabilidade com a educação do campo, que garanta o direito de ter uma escola com qualidade e vinculada às suas realidades. Elas estão em luta pela alimentação saudável, agroecologia e continuidade da política de Reforma Agrária no estado. (MST, Jornal Sem Terra, 2017).
Dessa forma, ratificamos a necessidade de construir cotidianamente novas formas, radicalmente opostas ao que encontramos hoje nas experiências de participação das crianças nos espaços formais e informais. Além disso, a partir da experiência das crianças sem-terra apontamos a importância das crianças tornarem- se protagonistas ativas de sua própria história. Para que, vivenciem e assumam os mais novos mecanismos de controle dos processos de educação, participação, trabalho e cultura, daí uma das pistas e potencialidades importantes das experiências de auto-organização das crianças sem- terra que podem ser desenvolvidas com vistas a transcender seus papeis de subserviência dentro e fora dos espaços escolares.
Este artigo abordou a discussão sobre o protagonismo, a mobilização e a auto- organização das crianças na organização do Encontro Regional das Crianças Sem- Terra, em Nova Santa Rita, no Rio Grande do Sul, à luz do materialismo histórico dialético. A discussão realizada pautou-se num estudo sobre a experiência dessas crianças na organização do encontro no ano de 2017 que preparou os debates para o encontro nacional das crianças sem terra no ano de 2018. Deste modo, as reflexões indicaram que a auto-organização e participação das crianças sem-terra tem protagonizado novas estratégias educativas do MST, ao articular a experiência do brincar com as lutas sociais e a defesa da Reforma Agrária Popular.
As crianças se tornam protagonistas nesse processo na medida em que, rompem com a “pedagogia da obediência”, reivindicando melhorias e qualidade nas escolas do campo, qual sejam, transporte seguro e de qualidade, estrutura escolar e autonomia pedagógica nas escolas, denúncias do fechamento de escolas, que entendem a escola do campo como seu espaço de acolhida e integração camponesa. Além da auto-organização na organização das tarefas políticas se percebe a forma
cooperada como as crianças organizam os tempos, os espaços e a operacionalidade dos encontros.
Outra estratégia extraordinária é a forma criativa e não fantasiosa que as crianças têm do processo da produção de alimentos e da importância da alimentação saudável para a sociedade. Os sem-terrinha rompem na prática com a repetição da visão fatalista de que a monocultura e o agronegócio são a fonte da riqueza do campo, as crianças de forma criativa e disciplinada demonstram durante todo o encontro que alimentação saudável de matriz agroecológica é possível e necessária para transformações nas formas de produção e consumo no campo e na cidade.
Assim, as relações estabelecidas evidenciam um processo de construção de consciência crítica da realidade. Quando retornam às suas bases (assentamentos, acampamentos e escolas) as crianças despertam esse sentimento nos seus círculos formativos, consolidando concepções de formação humana que contrapõem a concepção hegemônica do capital, que impõe às crianças desde a mais tenra idade a forma mercadoria nas relações sociais.
ARIÈS, P. História Social da Criança e da Família. 2ed. Rio de Janeiro: LTC, 1981.
AUED, B; VENDRAMINI, C. R. (Org.). Educação do campo: desafios teóricos e práticos. Florianópolis: Insular, 2009.
BRASIL. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. CNE/CEB nº. Resolução CNE/CEB nº 1/2002. Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo. Brasília, DF: MEC, 2002.
. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Resolução CNE/CEB Nº 2/2008. Estabelece diretrizes complementares, normas e princípios para o desenvolvimento de políticas públicas de atendimento da Educação Básica do Campo. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/arquivos/pdf/resolucao_2.pdf Acesso em: 14 mar 2014.
. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Parecer CNE/CEB nº 3/2008a. Reexame do Parecer CNE/CEB nº 23/2007, que trata da consulta referente às orientações para o atendimento da Educação do Campo.
CALDART, R. S. O MST e a formação dos Sem Terra: o movimento social como princípio educativo. Estudos Avançados. [Online]. 2001, vol. 15, n. 43, p. 207-224.
. Pedagogia do Movimento Sem-Terra – Escola é mais do que escola. São Paulo: Expressão Popular, 2004.
. Educação do campo: notas para uma análise de percurso. Trab. educ. saúde, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, Jun 2009.
CHARLOT, B. A Mistificação Pedagógica: realidades sociais e processos ideológicos na teoria da Educação. Ed. rev. e ampl. São Paulo: Cortez, 2013.
COHN, C. Antropologia da Criança. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.
FREITAS, M. C. de. Para uma sociologia histórica da infância no Brasil. In. FREITAS, M.
C. De. (Org.) História Social da Infância no Brasil. 7 ed. São Paulo: Cortez, 2009.
FRIGOTTO, G.A produtividade da escola improdutiva: um (re) exame das relações entre educação e estrutura econômico-social capitalista. 6ªed. São Paulo: Cortez, 2001.
, G. Projeto societário contra-hegemônico e educação do campo: desafios de conteúdo, método e forma. MUNARIM, A; BELTRAME, S; CONTE, S. F.; PEIXER, Z. I. (Orgs.). Educação do Campo: reflexões e perspectivas. Florianópolis: Insular, 2010.
GALEANO, E. De pernas pro ar: a escola do mundo ao avesso. Porto Alegre: L & PM, 2011.
HEYWOOD, C. Uma história da infância: da Idade Média à época contemporânea no Ocidente. Porto Alegre: Artmed, 2004.
KONDER. L. A derrota da Dialética: a recepção das ideias de Marx no Brasil até o começo dos anos 30. 2 ed. São Paulo, Expressão Popular, 2009.
KUHLMANN JR., M. Infância e Educação Infantil: uma abordagem histórica. Porto Alegre: Mediação, 1998.
. Educando a infância brasileira. In: LOPES, E. M. T; FARIA FILHO,
L. M.; VEIGA, C. G. (orgs.). 500 anos de educação no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. P. 469-496.
LAJOLO, M. Infância de papel e tinta. In: FREITAS, M. C. (Org.). História Social da Infância no Brasil. São Paulo: Cortez, 2009.
MINAYO, M. C. S. (Org.). Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 33. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.
MÉSZÁROS, I; A Educação Para Além Do Capital. São Paulo: Boitempo, 2008.
MOVIMENTO TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. Como fazemos a escola de educação fundamental. Caderno de Educação. MST, s.l., n. 9, 1999.
Educação Infantil: Movimento da vida, Dança do Aprender. Caderno de Educação, São Paulo: MST, n°. 12, novembro 2004.
Dossiê MST Escola: documentos e estudos 1990-2001 Caderno de Educação n° 13. Edição Especial, 2005.
Caderno de Educação: Educação no MST Memória documentos 1987-2015. Secretaria Nacional do MST, São Paulo- SP, 2017.
Encontro Regional Sem Terrinha. Jornal Sem Terra. http://www.mst.org.br/2017/10/11/sem-terrinha-participam- de-audiencia-com-a-casa-civil-nesta-quarta-feira-11.html acessado em 12 de março de 2019.
MUNARIM, A. Educação do campo: desafios teóricos e práticos. In: MUNARIM, A; BELTRAME, S.; CONTE, S. F.; e PEIXER, Z. I. (Orgs.). Educação do Campo: reflexões e perspectivas. Florianópolis: Insular, 2010.
NARODOWSKI, M. Adeus à infância e à escola que a educava. In: SILVA, L. H. da (Org.). A escola cidadã no contexto de globalização. Petrópolis: Vozes, 1998. p. 172- 177.
PALUDO, C. Educação Popular e Movimentos Sociais na Atualidade. ALAI, América Latina em Movimento. Disponível em: <http://alainet.org/active/38665>. Acesso em: 08 março. 2019.
PASUCH, J; SANTOS, T. M. D. dos. A importância da Educação Infantil na constituição da identidade das crianças como sujeitos do campo. In.: BARBOSA, M. C. S. et al. (Org.). Oferta e demanda de educação infantil no campo. Porto Alegre: Evangraf, 2012.
PISTRAK, M. Fundamentos da Escola do Trabalho. 1 ed. São Paulo: Expressão Popular, 2000.
. Ensaio sobre a escola politécnica. 1 ed. São Paulo: Expressão Popular, 2015.
RAMOS. M. Educação, trabalho e Infância: contradições, limites e possibilidades no Movimento dos Trabalhadores Sem Terra. Dissertação (mestrado) Universidade Estadual de Campinas, SP. [s.n], 2016.
RIBEIRO, M. Movimento Camponês, Trabalho e Educação: Liberdade, autonomia, emancipação: princípios/fins da formação humana. São Paulo: Expressão Popular, 2010.
ROSEMBERG, F; ARTES, A. O rural e o urbano na oferta de educação para crianças de até 6 anos. In.: BARBOSA, M. C. S. et al. (Org.). Oferta e demanda de educação infantil no campo. Porto Alegre: Evangraf, 2012.
ROSSETO, E. R. A. Essa ciranda não é minha só, ela é de todos nós: a educação das crianças sem terrinha no MST. 2009. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas.
SANTOS, C. A. (Org.). Por uma Educação do Campo: Campo – Políticas Públicas – Educação. Brasília, DF: INCRA; MDA, 2008. v. 7. (Coleção por uma Educação do Campo).
SILVA, A. S.; FELIPE, Eliana da S.; RAMOS, M. Infância no Campo. In: CALDART, Roseli et al. (Orgs.). Dicionário da educação do campo. Rio de Janeiro: Expressão Popular, 2012, p. 417-423.
TRIVIÑOS, A. Introdução à pesquisa em ciências sociais: a pesquisa qualitativa em educação. São Paulo: Atlas, 1987.
VÁZQUEZ, A. Filosofia da práxis. Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales – CLACSO; São Paulo: Expressão Popular, 2007.
VENDRAMINI, C. R. Educação e trabalho: reflexões em torno dos movimentos sociais do campo. Cad. CEDES [online]. 2007, vol.27, n. 72, pp. 121-135.
v.17, nº 34, set-dez (2019) ISSN: 1808-799 X
Soledad Bech Gaivizzo2
No final da década de XX, na região da América Latina, o movimento indígena impulsionou uma intensa campanha pela efetivação do direito coletivo dos povos indígenas à educação superior. A constituição do marco jurídico-legal internacional foi considerada uma conquista histórica pelos indígenas, possibilitando a criação de outros modelos de Ensino Superior. Neste contexto, a interculturalidade emerge como um projeto ético-político e epistêmico.
En el final de la década de xx, en la región de América Latina, el movimiento indígena impulsó una intensa campaña por la efectividad del derecho colectivo de los pueblos indígenas a la educación superior. La constitución del marco jurídico-legal internacional fue considerada una conquista histórica por los indígenas, posibilitando la creación de otros modelos de enseñanza superior. En este contexto la interculturalidad emerge como un proyecto ético-político y epistémico.
At the end of the xx century, in the region of Latin America, the indigenous movement promoted an intense campaign for the realization of the collective right of indigenous peoples to higher education. The constitution of the international juridical legal framework was considered a historic conquest by the indigenous, making possible the creation of other models of higher education. In this context interculturality emerges as an ethical-political and epistemic project.
1 Recebido em 23/04/2019. Primeira avaliação: 12/05/2019. Segunda avaliação: 17/05/2019. Aprovado em 14/08/2019. Publicado em 27/09/2019. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.17i34.p38131.
Na América Latina vivem aproximadamente 50 milhões de indígenas3 representados por 665 povos (UNICEF-FUNDOPROIB ANDES, 2009), sobre os quais incide uma extensa história de colonização de mais de cinco séculos, marcada pela expropriação de suas terras, pela exploração de sua força de trabalho, pela captura de sua subjetividade, pela subalternização de sua existência e pela deslegitimacão de suas formas ancestrais de produzir e de circular conhecimento (LÓPEZ, 2011).
Pesquisas sobre a situação educacional dos povos indígenas revelam que os mesmos estão entre o grupo social que menos se beneficiou com a política educacional de cunho universal na América Latina (López, 2011). Desenhada na primeira metade do século XX, essa política garantiu a educação como um direito para todos os cidadãos brasileiros, sem levar em consideração os marcadores sociais de raça, de gênero, de identidade e de classe social. O sistema educacional ocidental foi imposto aos povos autóctones sem considerar as particularidades e as especificidades históricas, culturais e sociais dessas comunidades.
Na segunda metade do século XX, o movimento e as organizações indígenas
– junto a outros movimentos étnicos-raciais – demandaram dos Estados Nacionais a necessidade de implementarem políticas educacionais que levassem em consideração as desigualdades educacionais, que afetam os segmentos populacionais historicamente alijados do acesso à política educacional universalista (Gomes, 2001). Dentre as muitas consequências desse processo, foram implantadas políticas de ações afirmativas em diversas Instituições Públicas de Ensino Superior.
No final século XX, o movimento e as organizações indígenas avançam em suas reivindicações e se mobilizam em relação a elaboração de um sistema de ensino superior mais pertinente a sua realidade sociocultural4. A pauta é a de que o Estado proporcione as condições materiais necessárias para implantar outros modelos de ensino superior, que estejam vinculados as necessidades dos territórios e as formas tradicionais de organização sociocultural. Alguns pensadores indígenas argumentam
3 Neste artigo, usa-se o termo povos indígenas de maneira genérica; mas se reconhece que, dentro do segmento indígena, há diversidade de grupos étnicos, pois cada um tem uma história particular de contato, de nível de interação com a sociedade e de projetos societários próprios.
4 Tal proposição nasce no ceio do movimento indígena andino – especialmente do movimento indígena boliviano e equatoriano ‒ e, posteriormente, estende-se para outros pontos geográficos da América Latina (WALSH, 2010).
que o sistema de ensino deve estar constituído pela lógica ancestral de produção e de circulação de saberes (Baniwa,2012). Para tanto, as organizações indígenas pressionam e demandam o Estado e a sociedade envolvente a abrirem um espaço na agenda política, na esfera pública latino-americana, para inserção e discussão dessa pauta, que é considerada uma demanda prioritária para os povos indígenas, de modo a ampliar e até renovar a concepção instituída sobre o direito étnico à educação superior.
O propósito deste artigo, assim, é a de analisar o processo histórico de mobilização e de luta dos povos indígenas pelo seu Direito ao Ensino Superior na América Latina. Para isso faz-se necessário examinar o conceito de interculturalidade por ser uma categoria central na proposta de educação universitária desenhada pelos povos indígenas e suas implicações no âmbito do direito étnico.
As mobilizações e as bandeiras de luta dos povos indígenas pelo acesso a um sistema de ensino superior pertinente emergem, no cenário público latino americano, da tensão que decorre do exercício do direito individual e do direito coletivo no âmbito da educação. Ambos os direitos foram instituídos no marco jurídico internacional e expressam visões de mundo distintas. O direito individual permite aos indígenas gozarem do direito à educação da mesma maneira que todas as pessoas na sociedade e a terem acesso diferenciado ao sistema educacional – por meio de medidas de ações afirmativas. Já o direito coletivo parte do pressuposto de que o sujeito de direito é o coletivo indígena e não o indígena; ou seja, são os povos e/ou as nações indígenas que são os titulares de direitos. Decorrente deste pressuposto, o coletivo indígena pode e tem o direito a exercer ou a opção de autodeterminar quais e como serão os seus processos educacionais (MACAS, 2014; LÓPEZ, 2011).
A conquista do direito coletivo no marco jurídico internacional, assim, contribuiu para adensar o desejo dos povos indígenas de criarem e implantarem, em algumas regiões da América Latina, suas próprias instituições de Ensino Superior e modelos educacionais inovadores e singulares (Macas, 2010; 2014). A materialização desse desejo tem gerado conflitos com os setores conservadores da sociedade civil, que advogam pela hegemonia da ciência moderna e por uma formação universitária exclusivamente voltado para atender as necessidades da sociedade de mercado.
Na contracorrente, os povos indígenas pleiteiam a criação de instituições voltadas para atender prioritariamente os interesses de suas comunidades, de seus territórios, de suas organizações sociais, sem desconsiderar a lógica da sociedade envolvente. Para isso, os povos apostam na construção e na implantação de diversas proposta de formação universitária, estruturadas a partir da legitimação, da validação e da institucionalização do conhecimento científico produzido a partir de uma base epistêmica não ocidental, própria e ameríndia.
Além disso, os representantes dos movimentos indígenas têm manifestado na esfera pública o seu anseio em compartilhar com a sociedade envolvente, mediante as instituições de ensino superior, seus saberes, seus valores, suas cosmologias, suas visões de mundo por meio da estruturação de uma proposta de formação pautada no diálogo interepistêmico (Baniwa, 2012), conforme afirma a líder indígena quéchua, Tarcila Rivera Zea:
Como indígenas, aspiramos a una educación que nos devuelva la dignidad, y ello no se va a lograr con programas educativos “para” indígenas, los cuales en la práctica muchas veces se reducen a trasladar al idioma originario los contenidos educativos laborados desde la perspectiva, la lógica, los contenidos y la tradición occidental. Nuestros saberes, en cambio, en sus múltiples manifestaciones y planos de formulación, deben ser equiparados en importancia y espacio junto a los saberes occidentales para formar un modelo educativo de alcance nacional, es decir, que nos permita encontrarnos a nosotros con los otros. (ZEA, 2011, p. 224).
É possível compreender, sob essa perspectiva, que, a medida que é garantido o direito dos grupos étnicos ao ensino superior, aponta-se, igualmente, a possibilidade de afirmar e de compartilhar seus conhecimentos gerados a partir de suas epistemologias. Essa perspectiva tem sofrido pressões contrárias e até boicotes de determinados segmentos da sociedade. Tal situação suscita problematizar com mais precisão “as razões” que fundamentaram – e ainda fundamentam – a negação e a violação do direito epistêmico dos povos indígenas na atualidade.
A possibilidade do exercício do direito epistêmico, para os povos autóctones, está associado a efetivação do direito dos povos à uma educação superior própria e específica. Diante do contexto atual que assola a América Latina, o exercício livre e pleno do direito epistêmico é considerado uma importante estratégia para o enfrentamento da situação de pobreza e de abandono que afeta os indígenas. Produzir conhecimento próprio, que subsidie os projetos de desenvolvimento territoriais é central para garantir a sobrevivência digna desses povos, entretanto, a
reivindicação do exercício do direito epistêmico associado ao direito coletivo à educação dos povos indígenas forja a construção de uma arena política permeada por conflitos e tensões entre o Estado e representantes da sociedade envolvente, que se posicionam, na maioria das vezes, de maneira contrária à efetivação desses direitos.
O direito étnico tem proporcionado a formulação e a implantação de propostas educacionais. Trata-se de um conjunto diversificado de propostas que vão desde aquelas desenhadas pelas políticas de acesso diferenciado aos cursos de graduação de diversas instituições de educação superior (Lima; Paladino, 2012) até a criação de instituições específicas, comumente denominadas de universidades indígenas e interculturais (Mato, 2008). Ocorre que as propostas em curso são expressão da representação dos atores sociais, que participam do debate no cenário público latino- americano sobre como garantir o direito dos povos indígenas à educação superior.
Desde a década de 1990, na América Latina, busca-se articular os direitos coletivos dos povos indígenas à educação superior. Para além das políticas de inclusão, os indígenas pleiteiam um modelo educacional que leve em consideração a vitalidade de seu patrimônio cultural: as chamadas Instituições de Ensino Superior interculturais, indígenas, entre outras.
Para um melhor entendimento dos direitos individuais e coletivos, a seguir, são brevemente analisadas as principais características que agrupam esses direitos no âmbito da educação superior e sua relação com o direito epistêmico.
Uma das formas de compreender os direitos é tratá-los por geração. Os de primeira geração, constituídos ao longo do século XVIII e XIX, são os direitos civis e políticos, que são exercidos pelo homem individualmente e têm por princípio a não interferência do Estado. Os de segunda geração, constituídos no século XIX e XX, são aqueles exercidos pelos homens de forma individual e têm por princípio a intermediação do Estado, pois é este quem precisa provê-los. Os direitos de terceira geração, são os que têm como centralidade os direitos à autodeterminação dos povos indígenas. Eles foram elaborados por meio de pactos entre os povos e as Organizações das Nações Unidas, por exemplo.
Destaca-se ainda que os direitos de segunda geração, vinculados à ótica liberal, são baseados na teoria dos direitos humanos, cujo marco histórico é a Revolução Francesa, datada de 1789. Nascem das necessidades e das demandas da classe trabalhadora, embora exercidos por meio do Estado. Apesar de serem demandas que advêm de um coletivo, como a classe operária, elas são exercidas de maneira individual, ancorando-se na ideia de que o sujeito de direito é individual (COUTO, 2008).
Há uma tênue relação entre os direitos de segunda e terceira geração, a exemplo do direito social dos povos indígenas à educação e dos direitos coletivos dos povos originários ao Ensino Superior. O primeiro foi extremamente importante, uma vez que permitiu a garantia do indivíduo indígena acessar os seus direitos à educação superior. Diante das desigualdades de acesso a este nível educacional entre os segmentos populacionais de um determinado país, a proposta foi a de tratar “com especificidade o sujeito de direitos, que passa a ser visto em sua particularidade e especificidade” (Piovesan, 2008, p. 888). Partindo dessa ótica, determinados grupos étnico-raciais, distintos do grupo dominante, passaram a exigir uma proteção especial do Estado, de modo que “as demandas de grupos devem ser vistas nas especificidades e particularidade de sua condição social. Ao lado do direito à igualdade, surge, também como direito fundamental, o direito à diferença” (PIOVESAN, 2008, p. 888).
O direito coletivo dos povos indígenas à educação superior tem relação com o direito à autodeterminação e com o projeto de desenvolvimento sustentável de suas comunidades. É do direito à autodeterminação que derivam os demais direitos coletivos, como, por exemplo, o direito à educação superior. Mais do que a preocupação desses povos com as desigualdades de acesso entre os segmentos indígenas e não indígenas à universidade, o centro de atenção recai sobre o tipo de educação que cada comunidade almeja em função de seu projeto societário. Assim, ao lado do direito coletivo à educação superior é necessário ter como ponto de partida o direito epistêmico dos povos e sua relação com outras epistemologias não ocidentais.
Daí que pensadores indígenas5 (Macas, 2013), insistem na importância da criação das universidades indígenas por serem estas as que mais se aproximam das
5 Prof. Dr. Luis Fernando Sarango Macas. Universidade Amawtay Wasi. Equador.
epistemologias indígenas, sem desconsiderar a importância das epistemologias ocidentais. Essas instituições surgem com a pretensão não só de promover o diálogo interepistêmico, mas de produzir um outro tipo de conhecimento.
Críticos ao modelo de ingresso de indígenas às universidades tradicionais argumentam, ainda, que esse modelo de ensino, em maior ou menor medida, pode ser considerado com uma das formas exercida pelo Estado para manter o controle e estimular a homogeneização dos povos indígenas (Mato, 2008). Contudo, reconhecem que as comunidades indígenas necessitam acessar o sistema de Ensino Superior como uma estratégia de enfrentamento a situação de empobrecimento e de abandono social que assola grande parte dos grupos étnicos que habitam o território ameríndio.
No sistema de ensino superior, o modelo de inclusão de estudantes indígenas
– ancorado no direito individual – segue a lógica que fundamenta a política de ações afirmativas. Ou seja, tem como pressuposto o de enfrentar as desigualdades e as iniquidades educacionais entre o segmento estudantil indígena e o não indígena, promovida por grande parte dos Estados latino-americanos. Guia-se pelo princípio da igualdade de oportunidades e de resultados e corrobora com a concepção hegemônica de como inserir o indígena na sociedade de mercado, o multiculturalismo liberal. Tese que é defendida por vários acadêmicos, representantes de partidos políticos de centro-direita e de centro-esquerda, gestores e pelas agências multilaterais: a Organização das Nações Unidas, pelo Banco Mundial, entre outros (WASH, 2009a).
O exercício do direito individual encontra como base de sustentação o pensamento liberal, que no campo das relações étnico-raciais advoga pela inclusão dos indígenas à sociedade envolvente – com as suas formas próprias de ser e de viver nessa sociedade. Essa vertente tem como meta diminuir as desigualdades sociais/étnico-raciais especialmente no campo da educação e atenuar os conflitos sociais que são decorrentes dessas desigualdades. A concretização dessa perspectiva ocorre por meio do ingresso de estudantes indígenas às universidades que, de outra forma, não teriam chance de ingressar no sistema formal de ensino superior.
Desde outra perspectiva, o exercício do direito coletivo dos povos indígenas à educação superior encontra apoio na vertente da interculturalidade (WALSH,2009a) e no projeto ético-político-epistêmico de interculturalidade proposto pelo movimento
indígena latino-americano (Wash, 2009a; Macas, 2014). Apoiados nessas vertentes, têm surgido inúmeras propostas de criação e de gestão de Instituições de Ensino Superior localizados próximos ou dentro dos territórios indígenas; como por exemplo, a Universidad Autónoma Indígena Intercultural (UAII), localizada na região do Cauca, na Colômbia. Tratam-se de Instituições que são concebidas desde uma base epistêmica contra hegemônica – não só, mas de forma preponderante – instituída pelo e desde o ceio do pensamento indígena. Vale ressaltar que nem todas as experiências de universidades indígenas trabalham sob a mesma perspectiva ou na mesma direção; até porque existe uma variedade de grupos étnicos no território americano em que os grupos possuem cosmovisão e realidades territoriais diferentes. Por isso, é impossível tratar o tema pelo viés da homogeneização cultural, ou seja, pelo viés de um modelo único de universidade indígena.
A produção de conhecimento sob lógica do pensamento indígena não tem a pretensão de ficar encerrado em si mesma, como ocorre na lógica ocidental. Pelo contrário, ela reconhece a diversidade e contextos culturais de produção de saberes gerados pelos distintos grupos étnicos e sustenta a necessidade de compartilhar esses saberes entre os grupos étnicos, incluindo o de matriz ocidental. Por isso, a diversidade cognitiva e a pluridiversidade epistemológica são fundamentais para nutrir as bases de produção de saberes subversivos, contra hegemônicos; indicando de alguma maneira, que existem outras possibilidades de fazer ciência, de produzir conhecimento por caminhos que estão fora dos muros da ciência moderna e que escapam a vigilância epistemológica ocidental.
Desta forma, observa-se uma tensão que decorre da busca pela efetivação do direito individual e o direito coletivo dos povos indígenas de exercer o seu direito à educação superior. O movimento indígena latino-americano tem caminhado na direção de efetivar esse direito em ambas perspectivas, ainda que reconheça que a sua bandeira de luta na esfera educacional seja: o de desafiar as estruturas e os modelos hegemônicos de ensino na sociedade ocidental, propondo uma educação para além da lógica do capital.
Várias organizações indígenas - o Consejo Regional del CAUCA (Colômbia), a Pluriversidad Amawtay Wasi (Equador), a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Brasil) - têm procurado ampliar o processo de politização dos direitos coletivos para pleitear o direito de gerir suas próprias instituições de ensino.
Na tradição liberal, o direito à educação deve ser garantido e, ainda o é, por meio de geração de políticas educacionais inclusivas. Esta perspectiva ajusta-se à ideia de que os sujeitos, ainda que tenham natureza coletiva, somente podem usufruir do direito de maneira individual.
Dessa forma, a compreensão acerca dos direitos dos povos indígenas à educação superior centra-se na recusa das desigualdades educacionais, que ainda persistem – em termos de acesso às Instituições de Ensino Superior – entre indígenas e não indígenas. Essa iniquidade é comum e pode ser observada em todo o sistema formal de Ensino Superior (Lima; Paladino, 2012), por exemplo, no Brasil.
No marco do direito coletivo, os povos indígenas, de forma geral, advogam a favor de outro tipo de modelo de ensino, que continua ainda sob a supervisão do Estado, e considera as seguintes problematizações: a qual modelo de Ensino Superior os povos indígenas têm tido acesso e a qual tipo de desenvolvimento ele se propõe? (Muñoz, 2006); esse modelo atende às necessidades e ao projeto de desenvolvimento de suas comunidades de origem? Sob essa perspectiva, poder-se-ia inferir que o acesso à educação seria – em última instância – um processo educacional de homogeneização cultural proposta pela sociedade envolvente?
Entretanto o que se almeja com os direitos coletivos é justamente o contrário, isto é, pretende-se dar mais ênfase a um sistema jurídico-legal que negue, em certa medida, toda e qualquer ação que venha a limitar, para os povos indígenas, o patrimônio cultural, as formas próprias de ser, de saber, de se organizar e de se relacionar com a natureza. É importante destacar ainda que a construção de modelos outros de Ensino Superior, elaborados pelos e com os líderes indígenas, deveriam ter como parâmetro os mesmos indicadores educacionais utilizados pelas Instituições de Ensino Superior indígena, uma vez que tal modelo educacional visa a articular o direito ao diálogo interepistêmico em condições de igualdade entre os saberes indígenas e os de matriz euro-americana.
Qualquer que seja a discussão doutrinária sobre os direitos coletivos dos povos indígenas, o certo é que se trata de uma discussão em aberto, mas que tende a ouvir a perspectiva dos indígenas. Cabe destacar que os povos indígenas vêm liderando esse debate, uma vez que têm questionado os parâmetros de definição, inclusive, quanto ao que se entende por “povos indígenas”. As demandas e as reivindicações por eles pleiteadas, contudo, na esfera pública, visam a garantir o direito ao seu
patrimônio cultural, pois foi ele que lhes permitiu e, ainda lhes permite, serem grupos
étnicos desde a chegada ibérica nas Américas – e além de todas as formas e tentativas sistemáticas do Estado de absorvê-los a uma ordem social diferente.
Frente a tais perspectivas sobre o direito dos povos indígenas à educação superior, qual seria a melhor maneira para pensar na efetivação desse direito na perspectiva do movimento indígena: a interculturalidade poderia ser uma proposta de projeto de Ensino Superior? Com o intuito de refletir sobre essa questão, a seguir, será apresentada a análise sobre a interculturalidade.
A interculturalidade é uma das expressões que se faz presente, de forma regular, nos discursos e nos debates sobre a educação e a diversidade cultural no contexto latino-americano. Nesse cenário, existe uma diversidade de conceituações produzidas sobre o termo interculturalidade, entretanto seu uso é empregado, comumente, para criticar os discursos vinculados ao multiculturalismo (Walsh, 2009a) e, pelos atores sociais indígenas, para defender o uso de epistemologias próprias (MACAS, 2014).
A interculturalidade tem como fundamento não só valorizar e respeitar as diferenças culturais, mas promover a interação e o intercâmbio da diversidade étnico- cultural no sentido de possibilitar a construção, por meio de um processo de interação e negociação com as várias visões sociais de mundo existentes na sociedade multiétnica e pluricultural, de outro entendimento social sobre o homem, sobre a sociedade e sobre a natureza (MACAS, 2008).
Na sociedade moderna, coexiste uma variedade de perspectivas associadas à matriz de pensamento indígena, denominada de ancestral. Por exemplo, uma dessas vertentes, a do Abya Yala, proposta pelos povos indígenas quéchuas e aymara, sustenta a ideia de que existem múltiplos paradigmas civilizatórios6, além do ocidental (MACAS, 2011).
Nesse contexto, a interculturalidade pode ser entendida como uma proposta que utiliza o diálogo
[...] para la co-construcción teórica, reflexiva, práctica y compleja que facilite la comprensión del entorno global, nacional y local, articulando las diversas racionalidades y cosmovisiones presentes en las
6 Quatro paradigmas civilizatórios: o ocidental, o oriental, o africano e o Abya Ayala (MACAS, 2014).
diferentes culturas. Se trata de crear espacios de diálogo, reflexión, debate y co-construcción, que permitan una nueva condición social del saber, del saber hacer y del saber ser, sin que se repliquen las relaciones de poder asimétricas que han primado hasta hoy. (MACAS, 2002, p. 04).
Assim, além das perspectivas associadas à matriz de pensamento ocidental, haveria outras perspectivas associadas a matrizes de pensamento ancestral. Logo, a interculturalidade seria uma ferramenta que oportunizaria produzir novas formas de entender a realidade, a partir da conjugação de pensamento oriunda de matrizes culturais distintas.
Os autores dedicados ao estudo do pensamento indígena e à interculturalidade argumentam que “no se trata de simplemente reconocer, descubrir o tolerar al otro o la diferencia en si” (Walsh, 2009a, p. 45). Pelo contrário, trata-se de proporcionar as condições necessárias para que as pessoas e os grupos oriundos de matrizes culturais distintas possam interatuar entre si, por meio do
[...] diálogo, articulación y asociación entre seres y saberes, sentidos y prácticas, lógicas y racionalidades distintas [...] la interculturalidad es distinta encuanto se refiere a complejas negociaciones e intercambio culturales, y busca desarrollar una interacción entre las personas, conocimientos, prácticas y lógicas, racionalidades y principios de vida culturalmente diferente". (WALSH, 2009a, p. 45)
A interculturalidade, considerada sob a perspectiva indígena, proporciona um processo de “creación y recreación de los conocimientos y saberes adquiridos desde las raíces culturales, desde el corazón de los pueblos y es a la vez una estrategia para acceder y generar nuevos conocimientos” (Cric, 2013). Ainda, é uma proposta, na qual “la sabiduría de los pueblos tiene cabida y igual que el reconocimiento universal donde la sociedad concede el derecho a resinificar el papel de los indios” (Cric, 2013). Ainda, considerando-se essas vozes, a interculturalidade, em sua figuração ideal-típica, está fundamentada em certas asserções que estruturam um sistema de pensamento:
a sociedade é multilíngue e pluricultural, isto é: vivem e convivem, desde a chegada dos movimentos de invasão e de colonização das Américas, grupos de pessoas que pertencem a diferentes matrizes culturais;
a sociedade, o homem e a natureza podem, portanto, ser estudados e compreendidos a partir do diálogo de saberes entre matrizes de pensamentos distintas, neste caso: a ocidental e a ancestral;
no âmbito da produção do conhecimento, implica estabelecer relações horizontais com condições de igualdade, em que a diferença se entenda como virtude,
respeito e compreensão entre culturas (MACAS, 2008; WALSH, 2009a; BANIWA, 2012).
Ademais, é um conceito que está relacionado aos povos indígenas. Ele surgiu no contexto de mobilizações étnicas no cenário público latino-americano, que denunciavam (e denunciam!) as formas históricas de controle, de dominação e de subalternização de seres e de saberes que sofreram racialização por parte do Estado e de setores dominantes da sociedade (WALSH, 2009a; 2010).
Originariamente, a interculturalidade foi elaborada a partir da perspectiva geocultural dos povos indígenas e, portanto, “no es un concepto concebido por la academia” (Walsh, 2009a, p. 14), como alguns acadêmicos ou intelectuais costumam enunciar; pelo contrário, “é uma construção de e a partir das pessoas que sofreram uma histórica submissão e subalternização” (Walsh, 2009b, p. 22). Por isso tem um sentido subversivo, ou seja, atenta subverter a lógica dominante de produção de conhecimento que emerge da academia ocidental; cria possibilidades de inovação de categorias e de outros entendimentos de como ler, de como viver e de como produzir sentido no mundo; oportuniza a possibilidade de desenhar uma outra configuração de futuro (MACAS,2010).
Desde o seu início, a interculturalidade tem significado, antes de qualquer coisa, uma bandeira de luta política que esteve em permanente disputa na arena pública com os setores dominantes da sociedade latino-americana. Essa bandeira esteve relacionada com o desejo dos povos de garantirem o seu direito à educação, enquanto um direito coletivo. Por isso,
[...] no es extraño que uno de los espacios centrales de lucha se la educación, como institución política, social y cultural: el espacio de construcción y reproducción de valores, actitudes e identidades y del histórico-hegemónico del Estado. Por eso mismo, el planteamiento de la interculturalidad sea el eje y deber educativo es substancial. Sin embargo, la genealogía de su uso en el campo de la educación está marcada por una serie de motivos, tensiones y disputas. (WALSH, 2010, p. 79)
Essa genealogia tem início, principalmente, no âmbito das discussões sobre educação escolar indígena, denominada de educação intercultural e bilíngue, na década de 1980. Posteriormente, o sentido e o significado atribuído à interculturalidade ganham novos contornos com a geração de políticas de Ensino Superior delineadas a garantir o direito dos povos indígenas à educação superior, no final da década de 1990 e início de 2000; e à geração e implantação de sistema de
Ensino Superior próprio7, comumente denominados de Universidade Interculturais ou Indígenas, a exemplo da Universidade Autônoma Indígena Intercultural (UAII), na Colômbia, e da Universidade Comunitária Intercultural das Nacionalidades e Povos Indígenas – Amawtay Wasi, no Equador (MATO, 2008).
A interculturalidade começa a constituir-se enquanto uma proposta política liderada pelo movimento e pelas organizações étnicas na esfera educacional latino- americana, mais especificamente em torno das discussões sobre as escolas indígenas e o modelo educacional intercultural (específico e diferenciado). Esses debates inserem-se em um contexto educacional mais amplo na região caracterizada pelo questionamento das políticas sociais universalistas.
Na década de 1980, as organizações passaram, por um lado, a contestar o modelo escolar assimilacionista8 ou integracionista9 adotado pela maioria dos Estados latino-americanos; por outro, a desenhar e a propor outros modelos de educação. Apesar do sentido atribuído pelos atores indígenas, a interculturalidade no âmbito da educação foi assumida pelas instâncias estatais como uma política educacional específica, diferenciada, comunitária e respeitosa dos usos linguísticos dos povos indígenas10. Assim, definindo-se como um espaço educativo intercultural orientado a “trabalhar os valores, os saberes tradicionais e práticas de cada comunidade e garantir o acesso a conhecimentos e as tecnologias da sociedade nacional relevantes para o processo de interação e participação cidadã” (PALADINO; ALMEIDA, 2012, p. 18).
A forma como o Estado assumiu a interculturalidade é amplamente criticada pelas vozes indígenas “no como deber de toda sociedad sino como un reflejo de la condición cultural indígena” (Walsh, 2009a, p. 49). Em outras palavras, ela é encarada como uma proposta que diz respeito somente aos povos indígenas, atribuindo-lhes a
7 “La educación propia busca potenciar la sabiduría ancestral que nace del corazón, de lo más profundo de cada pueblo en su lucha por persistir, del esfuerzo por hilar los saberes y conocimientos comunitarios y elaborar día a día el tejido de una vida mejor. Es así como se han ido creando escuelas para atender a niños y niñas, desde el Aprestamiento (grado 0), la básica, la media, la formación docente y ahora la dinámica de nivel superior (...) en territorios indígenas” (CRIC, 2013).
8 O modelo assimilacionista foi adotado, principalmente, pelos Estados Unidos no final do século XIX e início do XX. Este modelo está voltado não aos indivíduos, mas aos grupos e segmentos das minorias, procurando fazer com que eles adotassem, de forma coletiva, os valores nacionais. A ideia era impor a ideologia e as línguas nacionais para que as minorias perdessem as suas especificidades culturais e passassem a fazer parte de um povo concebido de forma homogênea (PALADINO; ALMEIDA, 2012). 9 O modelo integracionista foi mais usado pelos países colonizadores. A ideia era que os indivíduos se integrassem gradualmente à cultura nacional, incorporando a língua oficial (PALADINO; ALMEIDA, 2012).
10 Considera que todos os processos de aprendizagem escolar sejam feitos nas línguas maternas dos educandos (PALADINO; ALMEIDA, 2012).
responsabilidade de apreender os valores, princípios, saberes e formas de ser das pessoas e dos grupos que pertencem à cultura de matriz ocidental. Além disso, os demais segmentos populacionais da sociedade ficam desobrigados de realizar os seus estudos em instituições escolares orientados pelo modelo denominado de intercultural, para estudarem nas instituições escolares tradicionais regidas pelo modelo educacional universal.
Dessa maneira, estabelece-se “una de las primeras políticas educativas sobre la interculturalidad, una política con sentido singular y unidireccional de indígenas hacia la sociedad blanco-mestiza y no vice-versa” (Walsh, 2009a, p. 49). A partir desse momento, a interculturalidade começa a assumir, no campo educacional, um duplo sentido: por um lado, “un sentido político-reivindicativo, por estar concebido desde la lucha indígena y con designas para enfrentar la exclusión e impulsar una educación lingüísticamente propia” (Walsh, 2010, p. 80) e, por outro lado,
[…] fue asumiendo un sentido socio-estatal de burocratización. Al legalizar la EIB como derecho étnico y colectivo y como programa educativo para indígenas - algo que sucedió en la mayoría de países con las poblaciones indígenas en los años 80 y 90 (WALSH, 2009a, p. 80-81).
O sentido social-estatal de burocratização é o que tem prevalecido no contexto educacional latino-americano e é a partir dele que foram gerados modelos educacionais para serem aplicados, preferencialmente, a crianças e adolescentes indígenas (Walsh, 2009a; 2010). Em contrapartida, alguns estudos revelam que a interculturalidade foi uma proposta delineada pelas organizações indígenas para ser aplicada a toda a sociedade (CUJI LLUGNA, 2012).
Nos documentos de registro produzidos pela organização indígena – La Confederación de Nacionalidades Indígenas del Ecuador (CONAIE)11 – está explícito que “las propuestas de los movimientos indígenas fueron pensadas tanto para las nacionalidades y pueblos indígenas en un sentido reivindicativo como para la sociedad ecuatoriana en general” (CUJI LLUGNA, 2012, p. 29).
Essa abordagem refere-se às concepções em que a interculturalidade é assumida como um projeto ético, político e epistêmico – de saberes e conhecimentos
11 Confederação das Nacionalidades Indígenas do Equador (CONAIE) foi consolidada em 1986. Entre suas propostas está presente a criação de um sistema educacional que responda às expectativas dos povos indígenas. Ela conseguiu pressionar o governo a criar, em 1988, a Direção Nacional de Educação bilíngue, que constitui a reivindicação mais importante da organização indígena, não só pelo valor positivo dado pelo reconhecimento do Estado, mas por essa instância ser regida e controlada pela própria organização.
pautados originalmente pelas organizações indígenas latino-americanas (Walsh, 2009a). Posteriormente, outros grupos e organizações sociais de apoio à luta indígena passaram a desenvolver estudos e pesquisas sobre a interculturalidade na região e a subsidiar as ações indígenas, a exemplo do Grupo de Estudos da Colonialidade/Modernidade (MIGNOLO, 2005).
Relacionado com a geopolítica do conhecimento e com a modernidade/colonialidade, tal proposta busca estabelecer conexões entre a interculturalidade e a colonialidade. Portanto, as principais categorias que definem as identidades coletivas, seus projetos políticos e as relações étnico-raciais, são: a diferença étnico/racial, por estar nas fronteiras da modernidade, e a referência teórico- liberal e neoliberal, o lugar “outro” onde poderiam aparecer projetos “outros” de poder, saber e ser (MIGNOLO, 2005; WALSH, 2009a, 2009b, 2010).
A interculturalidade, a partir da perspectiva desses atores sociais, é: a) uma forma de estabelecer diálogo entre saberes diferentes (Walsh, 2009a); b) um projeto político que questiona os lugares de poder desde o quais se produzem representações “mismas acerca de lo que es, y lo que no, reconocido como conocimiento” (Rojas, 2005, p. 09). Dessa maneira, ela se constituiu como uma perspectiva que aponta para outras formas de produção de conhecimento descolonizado (Mignolo, 2005), que sustenta que descolonizar a produção de conhecimento exige, de alguma maneira, subverter a lógica do sistema educacional em todos os seus níveis de ensino. Assim,
[...] subvertir la colonialidad del sistema educativo, no es posible solo incluyendo ahora los saberes indígenas [...] como complemento a los saberes universales en un supuesto dialogo de saberes que cuestiona las lógicas de representación en que se inscribe a unos y otros, reproduciendo las políticas de representación dominantes. (ROJAS, 2005, p. 9)
A interculturalidade no campo da educação e, especialmente, no do Ensino Superior, só é possível de ser realizada na sociedade ocidental se houver uma subversão na lógica dominante que fundamenta o modelo de oferta do último na atualidade. Para isso, considera-se como fundamental discutir com todas as tradições epistêmicas da humanidade a produção de saberes que possibilitem promover o bem comum de todos seres e a preservação da natureza.
Algumas noções e características especificam a interculturalidade enquanto projeto ético-político e epistêmico. Como projeto político, a interculturalidade delata a situação das comunidades autóctones e propõe estratégias para modificar e transformar essa situação nas várias áreas de domínio do Estado. É nesse contexto que as comunidades denunciam a persistência do eurocentrismo e da política educacional integracionista e assimilacionista e propõem a criação de modelos educacionais estruturados com base na matriz de pensamento de suas comunidades. O projeto intercultural, assim, posiciona os coletivos étnicos frente a outros projetos de sociedade orientados por uma visão de mundo conservadora conforme a ordem existente, segundo a qual o mercado é central. Dessa maneira, esses projetos não estão dirigidos para o atendimento das necessidades e de demandas dos povos indígenas, mas sim para os interesses do grande capital (CFESS, 2013) e, portanto,
para a manutenção do sistema-mundo (QUIJANO, 2000).
Até o século XV, predominava na região a pluralidade de formas de pensar de matriz ancestral. Com a chegada dos colonizadores, impulsionados pelo desenvolvimento do mercantilismo, estes impuseram suas formas de pensar, de viver, de existir e de se relacionar com a natureza. Essa imposição esteve associada à desqualificação do conhecimento, das línguas e das formas e dos modos de vida ancestrais dos povos. São os traços gerais de uma cultura que compõe a ofensiva do pensamento europeu associada a estratégias e práticas (MIGNOLO, 2005).
A partir desse momento, os povos indígenas sofreram influência das várias escolas de pensamento de matriz euro-americana (Walsh, 2010). Diante dessa situação, eles tiveram como tarefa construir uma perspectiva que articulasse duas formas de pensamento: a ancestral e a ocidental. Tal articulação exigiu produzir uma perspectiva pautada no diálogo entre culturas, ou seja, entre os diferentes tipos de saberes que os grupos humanos produzem, criam e recriam nas suas experiências históricas e em cada contexto social.
Essa proposta, portanto, aposta na perda de legitimidade do eurocentrismo e do universalismo no campo epistêmico e na supressão das formas históricas de dominação, de opressão e de subalternização sobre os sujeitos indígenas e de seus coletivos. Trata-se de uma proposta que aposta na transformação da sociedade, das relações e das condições de outros modos de vida que não se referem simplesmente
às relações econômicas, políticas e sociais, mas à possibilidade de produzir outras circunstâncias de existência, nas quais seja possível atribuir novos sentidos e significados à própria vida humana, aos saberes, à memória ancestral, à espiritualidade e à natureza (Mignolo, 2005; Walsh, 2009a; 2009b). Outra característica desse projeto refere-se ao ponto de vista do segmento social que o produz e sua relação com a luta social. Nesse sentido, a interculturalidade nasce do debate propositivo dos grupos e segmentos étnicos que foram vítimas da racialização na sociedade latina (WALSH, 2008ac).
A interculturalidade é princípio ideológico e político, pensado não só para o segmento indígena, mas para o conjunto da sociedade latino-americana, ao ressaltar “o seu sentido contra hegemônico e sua orientação com relação ao problema estrutural-colonial-capitalista” (WALSH, 2009b, p. 22).
En esta tradición, la interculturalidad aparece como discurso político y reivindicativo de poblaciones afectadas por el desarrollo del capitalismo vía despojo de tierra, por la ocupación de sus territorios por colonos portadores de otras tradiciones y valores culturales, por el desplazamiento de sus lugares de origen hacia otro territorios, particularmente las grandes ciudades, en donde se configuran complejos culturales multiétnicos de la democracia transformista que caracteriza nuestro régimen social y político. Ha sido la ubicación de estas luchas – emancipatorias y de resistencia de los pueblos indígenas y afro en América Latina- y de su desarrollo en los nuevos contextos nacionales e internacionales que actualiza la discusión y nos obliga a precisar sus contenidos. (FLAPE COLOMBIA, 2005, apud WALSH, 2009b, p. 89).
Por isso, o projeto intercultural é necessariamente um projeto decolonial, pois tem como pretensão desvendar e enfrentar “a histórica articulação entre a ideia de raça como instrumento de classificação e controle social e o desenvolvimento do capitalismo mundial (moderno, colonial, eurocêntrico)” (Walsh, 2009b, p. 14), que afirma o lugar central da raça como elemento constitutivo das relações de exploração e de dominação social e de subalternização de saberes.
Entender la interculturalidad como proceso y proyecto político dirigido hacia la construcción de modos otros de poder, de saber, ser y de vivir, permite ir mucho más allá de los supuestos y manifestaciones actuales de la educación intercultural (funcional). Es argumentar no por la simples relación entre los grupos, prácticas o pensamientos culturales, por la incorporación de los tradicionalmente excluidos dentro de las estructuras (educativas, disciplinares o de pensamiento) existentes, o solamente por creación de programas especiales que permitan que la educación normal y universal siga perpetuando prácticas y pensamientos racializados y excluyentes. (WALSH, 2009a, p. 91).
Compreender a interculturalidade é, portanto, sinalizar a possibilidade de que existem outras formas e maneiras de produzir conhecimento válido e científico. Com isso, o projeto intercultural coloca, no centro do debate, a necessidade de pensar e de considerar outras lógicas de produção que partem de outras matrizes de tradição não ocidental.
São essas proposições que fazem a interculturalidade ser uma vertente em oposição ao multiculturalismo. Esta parte da ideia de que é necessário reformar o sistema educacional para incluir os estudantes indígenas nas atuais estruturas educacionais vigentes que, historicamente, foram concebidas a partir da lógica da colonialidade do saber.
Em contraposição, a interculturalidade aposta na refundação do sistema educacional, pois acredita que as políticas inclusivas não são capazes de transformar as estruturas, apenas de modificá-las para adequar seu ambiente à nova demanda. Dessa maneira, a perspectiva crítica fornece as bases para “um sistema educacional distinto – desde a escola até a universidade, que poderia desafiar e pluralizar a atual geopolítica dominante do conhecimento com suas orientações ocidentais e euro-usa- cêntricas” (Walsh, 2008a, p. 144). As políticas educacionais inclusivas são criticadas, principalmente, no nível de Ensino Superior, entre as quais, aquelas que fazem referência simplesmente à política de acesso diferenciado às universidades. Essa crítica, que não desconsidera a importância dos avanços na inclusão social no campo das políticas públicas, destacadamente as orientadas pelo princípio da igualdade de oportunidades de acesso ao Ensino Superior, lembra que os povos indígenas
[...] desejam uma formação superior em seus termos, ou seja, para atender suas demandas, realidades, projetos e filosofia de vida. Aqui reside o maior desafio da formação superior de indígenas nos contextos atuais IES, fundamentadas na organização, produção e reprodução de saber único, exclusivo, individualista e a serviço de mercado. (BANIWA, 2012).
Nesse contexto, o autor propõe uma reflexão sobre os limites e as possibilidades de o atual modelo de formação universitária atender às aspirações dos povos indígenas, tendo em vista que está orientado para o atendimento das demandas da sociedade de mercado.
Os povos indígenas, por exemplo, não gostariam de serem enquadrados pelas lógicas academicizas que alimentam e sustentam os processos de produção do capitalismo individualista, que tem gerado uma sociedade cada vez mais em retorno da barbárie e da selvageria, por meio da violência, exploração econômica desumana,
do império da lei do rico e dos que tem poder político à base de democracias das elites econômicas e políticas. Os povos indígenas gostariam de compartilhar com o mundo, a partir da universidade, seus saberes, seus valores comunitários, suas cosmologias, suas visões de mundo e seus modos de ser, de viver e de estar no mundo, onde o viver é um bem coletivo. (BANIWA, 2012).
É na crítica às políticas educacionais inclusivas que a interculturalidade tem fundamentado a geração e a implantação de outros modelos de formação universitária dirigidos a satisfazer as necessidades dos povos indígenas (MATO, 2008).
A interculturalidade centra-se na discussão no enfrentamento do racismo epistêmico, tendo como substrato os direitos coletivos dos povos indígenas à educação superior. Sob esta nova lógica, têm surgido propostas de criação e de gestão de sistemas de Ensino Superior localizados próximos ou dentro dos territórios indígenas. Trata-se de uma proposta que foi construída pelo pensamento indígena, especialmente o andino, na América Latina. Vale ressaltar que nem todas as universidades indígenas trabalham sob a mesma perspectiva ou na mesma direção; até porque existe uma variedade de grupos étnicos no território americano.
Na América Latina, a interculturalidade consolidou-se após a onda de mobilizações étnico-culturais no final da primeira década do século XX. Sua origem esteve vinculada às organizações indígenas e aos movimentos de apoio à luta desses povos pela efetivação do direito coletivo dos povos originários ao Ensino Superior. A análise da demanda dos povos permitiu, nesse contexto, observar que o cerne da luta de seus povos busca garantir um modelo de ensino específico e diferenciado, situado geograficamente próximo à comunidade, voltado essencialmente para o seu projeto de desenvolvimento, de modo a atender os sujeitos representantes destas comunidades. Trata-se, por conseguinte, de uma proposta de Ensino Superior voltado para os projetos indígenas, que esteja culturalmente desenhado para receber diferentes segmentos estudantis oriundos de outras tradições culturais, que, ao estudarem neste modelo de ensino, tenham a possibilidade de apreender e praticar o diálogo intercultural epistêmico.
De um lado, apresenta-se o direito individual dos povos, que tem como expectativa aumentar a probabilidade de ingresso de estudantes indígenas no Ensino
Superior, tendo como perspectiva teórica o multiculturalismo liberal. Entretanto, esta perspectiva não se opõe ao modelo de educação tradicional voltado para atender os ditames de globalização do conhecimento e os valores éticos e estéticos que sustentam a sociedade de mercado. Como consequência, promove a desautorização epistemológica dos povos indígenas – e de qualquer outro grupo sociocultural de matriz não ocidental e eurocêntrica.
Por outro lado, encontra-se o direito coletivo dos povos indígenas à educação superior, que luta pela valorização epistêmica e pela heterogeneidade dos grupos étnicos, da perspectiva intercultural. Proposta que é liderada essencialmente pelas nações indígenas e que reivindica o direito legítimo dessas nações de desenharem processos e modelos educacionais vinculados a projetos societários autodeterminados por eles - projetos próprios, em sintonia com os saberes das pessoas e suas práticas comunitárias. Projetos que aspiram subverter a lógica dominante do neoliberalismo. Dito isso, em tal perspectiva, as discussões sobre o acesso são deslocadas para o âmbito do “tipo” de Ensino Superior que desejam esses povos.
Ademais, foi possível constatar que a discussão sobre a maneira de inserir os povos no sistema de Ensino Superior está presente na agenda política do movimento indígena. Embora não neguem a importância dessa luta, os grupos étnicos preocupam-se mais sobre como criar e controlar as instituições de Ensino Superior específicas e próprias das comunidades indígenas do que como incluir seus estudantes nas Instituições de Ensino Superior.
A interculturalidade revela-se como a vertente do pensamento que nasce do movimento e das organizações indígenas e que conta com as contribuições da vertente da decolonialidade. Trata-se, assim, de outra forma de pensar o mundo, que advém de outra epistemologia, de outras tradições epistêmicas. Ela tem como um de seus fundamentos valorizar a produção ancestral do conhecimento, com isso, pondo em xeque a epistemologia de conhecimento imposta pelos euro-americanos, tida – até então ‒ como universal e eurocêntrica, o que remete novamente à questão da necessidade apontada pelos próprios indígenas de oferta de um Ensino Superior específico e diferenciado.
AULETE, C. Novíssimo Aulete - dicionário contemporâneo da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Lexikon, 2011.
BANIWA, G. L. da S. Lei das cotas e os povos indígenas: mais um desafio para a diversidade. Rio de Janeiro: Laboratório de Pesquisas em Etnicidade, Cultura e Desenvolvimento - LACED/ Museu Nacional, 2012. Disponível em: http://laced.etc.br/site/2012/11/26/a-lei-das-cotas-e-os-povos-indigenas-mais-um- desafio-para-a-diversidade/. Acesso em: 10 jul. 2014.
. O índio brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil de hoje. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade; LACED/Museu Nacional,2006.
CHAUÍ, M. Escritos sobre a universidade. São Paulo: UNESP, 2001.
CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL (CFESS). As Assistentes Sociais
CONSELHO REGIONAL INDÍGENA DE CAUCA (CRIC). La Universidad Autónoma, Indígena e Intercultural – UAII: un proceso para consolidar y cualificar la educación indígena y comunitaria en el marco de la interculturalidad. Disponível em: http://www.cric-colombia.org/portal/universidad-autonoma-indigena- intercultural-uaii. Acesso em: 23 nov. 2013.
COUTO, B. O direito social e a assistência social na sociedade brasileira: uma equação possível? 3.ed. São Paulo: Cortez, 2008.
CUJI LLUGNA, L. Una paradoja de la interculturalidad como descolonización de la educación superior. Méjico: Diversidad, 2012.
GOMES, J. B. B. Ação afirmativa e princípio constitucional da igualdade: o direito como instrumento de transformação social: a experiência dos EUA. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.
LIMA, A. C. de S.; PALADINO, M. Caminos hacia la educación superior: los Programas Pathways de la Fundación Ford para los pueblos indígenas en México, Perú, Brasil y Chile. Rio de Janeiro: E-paper/LACED, 2012.
LÓPEZ, N. Informe de Tendências Sociales y Educativas de América Latina de 2011: la educación de los pueblos indígenas y afrodescendientes. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Instituto Internacional de Planeamiento de la educación IIPE-Unesco, 2011.
MACAS, L. F. S. Conferência das Jornadas Bolivarianas – 13. Em busca da interculturalização da Educação Superior na América Latina. Cidade: Pluriversidad Amawtay Wasy, maio 2014.
. Entrevista realizada pela Rádio da Universidade Intercultural do Estado de Puebla, México. Publicada em 19 de novembro de 2012 (a). (13min58seg). Parte I. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=2HSZy3GCcAY. Acesso em: 23 dez. 2013.
. Entrevista: Luis Fernando Sarango. Parte I. Publicada em 03 de outubro de 2011. Disponível em: ttp://www.youtube.com/watch?v=_CJ_eQWfJ1U. Acesso em: 14 dez. 2013.
. La experiencia de la Universidad Intercultural de las Nacionalidades y Pueblos Indígenas “Amawaty Wasi”. In: MATO, D. (Coord.). Diversidad cultural e interculturalidad en educación superior: experiências en América Latina. Caracas: IESALC-UNESCO, 2008.
. Apresentación. In: UNIVERSIDAD INTERCULTURAL DE LAS NACIONALIDADES Y PUEBLOS DEL ECUADOR – UINPI/CONAIE. "AMAWTAY
WASI": Casa de la Sabiduría. Propuesta de camino sin camino. Documento de trabajo. Quito: UINPI/CONAIE, 2002.
MATO, D. (Org.). Diversidad cultural e interculturalidad en la Educación Superior: experiências en América Latina. Caracas: UNESCO-ISEALC, 2008.
MIGNOLO, W. La idea de América Latina: la herida colonial y la opción decolonial. Espanha: Gedisa, 2005.
MUÑOZ, M. R. Educación Superior y Pueblos Indígenas em América Latina y el Caribe. In: INSTITUTO INTERNACIONAL DE LA UNESCO PARA LA EDUCACIÓN
SUPERIOR EM AMÉRICA LATINA Y EL CARIBE. Informe sobre la Educación Superior em América Latina y el Caribe 2000-2005: la metamorfosis de la educación superior. Caracas: Instituto Internacional de la UNESCO para la Educación Superior en América Latina y el Caribe (IESALC)2006.
PALADINO, M.; ALMEIDA, N. P. Entre a diversidade e a desigualdade: uma análise das políticas públicas para a educação escolar indígena no Brasil dos governos Lula. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria/LACED/Museu Nacional/UFRJ, 2012.
PIOVESAN, F. Ações afirmativas no Brasil: desafios e perspectivas. Estudos Feministas, v. 16, n. 3, dec. 2008. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104- 026X2008000300010&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 10 jul.2014.
QUIJANO, A. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, Edgardo (Org.). La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciencias sociales.
ROJAS, A. Inclusión social, interculturalidad y educación: ¿Una relación imposible?. In: FÓRUM LATINO-AMERICANO DE POLÍTICAS EDUCATIVAS (FLAPE). Culturas
interculturalidad.html. Acesso em: 23 ago. 2013.
SILVA, D. V. C. da. A educação das relações étnico-raciais no ensino de Ciências: diálogos possíveis entre Brasil e Estados. São Carlos: UFSCar, 2009.
SILVÉRIO, V. Ação afirmativa e combate do racismo institucional no Brasil. In: III CONCURSO NEGRO DE EDUCAÇÃO (04/04/2003). Anais... Disponível em:
http://www.acaoeducativa.Org.br/fdh/?tag=valter-silverio. Acesso em: 23 abr. 2014.
UNICEF-FUNDOPROIB ANDES. Atlas Sociolinguístico de los pueblos indígenas en América Latina. Cochabamba, Bolivia: UNICEF-FUNDOPROIB ANDES, 2009.
WALSH, C. Interculturalidad crítica y educación intercultural. In: VIAÑA, J.; TAPIA, L.; WALSH, C. Construyendo interculturalidad crítica. III – CAB, 2010. Bolívia:
Instituto Internacional de Integración del Convênio Andrés Bello, 2010. Disponível em: http://www.flacsoandes.edu.ec/interculturalidad/wp-
content/uploads/2012/01/Interculturalidad-Cr%C3%ADtica-y-Educaci%C3%B3n- Intercultural1.pd>. Acesso em: 10 jul. 2014.
. Interculturalidad, Estado, Sociedad: luchas (des)coloniales de nuestra época. Quito: Universidad Andina de Simon Bolívar, 2009a.
. Interculturalidad crítica e pedagogia Decolonial: in-surgir, re-existir e re- viver. In: CANDU, V. (Org.). Educação intercultural na América Latina: entre concepções, tensões e propostas. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2009b.
v.17, nº 34, set-dez (2019) ISSN: 1808-799 X
Cláudio Nascimento2 Aline Mendonça dos Santos3
A economia solidária como estratégia político-pedagógica em prol da democracia e de outro projeto societário esteve presente na agenda do movimento de economia solidária. Não por acaso, sempre foi compreendida como uma perspectiva real de transformação da realidade social por aquele que foi a maior referência de economia solidária no Brasil: Paul Singer. Este artigo propõe traçar os esforços teóricos, políticos e práticos que Paul Singer desenvolveu ao longo de sua trajetória pessoal e profissional para contribuir no avanço da autogestão e da economia solidária, entendida como ato pedagógico e como estratégia de desenvolvimento.
Palavras-chave: Paul Singer; Economia Solidária; Autogestão; Democracia; Pedagogia.
La economía solidaria como estrategia político pedagógica hacia la democracia y de un otro proyecto societario siempre estuvo presente en la agenda del movimiento de economía solidaria. No por casualidad, la economía solidaria siempre fue comprendida como una perspectiva real de transformación de la realidad social por aquel que fue la mayor referencia de la economía solidaria en Brasil: Paul Singer. Este artículo propone trazar los esfuerzos teóricos, políticos y prácticos que Paul Singer desarrolló al largo de su trayectoria personal y profesional para avanzar la autogestión y la economía solidaria como acto pedagógico y como estrategia de desarrollo.
Palabras clave: Paul Singer; Economía Solidaria; Autogestión; Democracia; Pedagogía.
Solidarity popular economy as a political-pedagogical strategy in favor of a democracy concerning a societary project has always been on the agenda of its movement. Not coincidentally, solidarity economy has always been considered as a concrete perspective for transforming the social reality by the one who is considered the biggest reference in solidarity economy in Brazil: Paul Singer. This article has the objective of outlining the practical, theoretical and political efforts that Paul Singer has developed throughout his personal and professional trajectory, in order to promote self-management and solidarity economy as a pedagogical act and as a development strategy.
Keywords: Paul Singer, Solidarity Economy, Self-Management, Democracy, Pedagogy
1 Recebido em 01/06/2019. Primeira avaliação: 15/06/2019. Segunda avaliação: 17/07/2019. Aprovado em 02/08/2019. Publicado em 27/09/2019. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.17i34.p38048.
2 Educador popular. Coordenador geral de educação na Secretaria Nacional de Economia Solidária – SENAES, entre 2003 e 2007. Autor de ensaios e livros sobre autogestão e educação popular, como “O Movimento pela Autogestão na Polônia”, “Rosa Luxemburgo e Solidarnosc”, “Autogestão e economia solidaria”, “O beco dos sapos” e “Pedagogia da Autogestão”. E-mail: claudan@terra.com.br 3 Doutora pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2010), com pós-doutorado na Universidade de Coimbra (CES - UC). Pesquisadora do CES – Universidade de Coimbra. Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Política Social e Direitos Humanos da Universidade Católica de Pelotas. E-mail: ppgps@ucpel.edu.br. https://orcid.org/0000-0002-1902-0293
Nas últimas décadas temos presenciado a legitimidade do processo da economia solidária (ECOSOL) no Brasil. Tal dinamização se deu através da ação política da economia popular solidária desdobrada em ações do movimento social e ação do Estado. Apesar destas duas frentes de atuação, tratou-se de um processo muito articulado, uma vez que a criação do Fórum Brasileiro da Economia Solidária (FBES), a elaboração de uma Carta de Princípios e de uma Plataforma da Economia Solidária3 se concretizou na terceira Plenária Nacional da Economia Solidária (PNES) em junho de 2003, mesma época de implantação oficial da Secretaria Nacional de Economia Solidária (SENAES) no Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). Desta forma, instâncias da economia solidária no plano nacional, tanto da sociedade como do Estado, se deram num mesmo momento histórico através de processos interligados (CUNHA & SANTOS, 2010).
Desde a criação dessas instâncias políticas, presenciou-se uma relação bastante estreita entre Estado e sociedade para a gestão da política de economia solidária. Foram muitos os questionamentos sobre o papel do FBES frente ao Estado ou quanto à sua composição e estrutura de gestão (objetos de grande disputa quando da quarta Plenária Nacional em 2008), mas é difícil negar que, na ocasião, tenha obtido a posição de principal rede nacional da economia solidária no Brasil. Mais tarde, buscou-se institucionalizar espaços de diálogo entre Estado e sociedade, como a Conferência Nacional e o Conselho Nacional. São espaços que apontam para possíveis conteúdos e formatos diferenciados na relação com a sociedade, sobretudo no que se refere às características históricas do Estado brasileiro, mas ainda apresentam muitos limites para a participação e o controle social na definição de ações e alocação de recursos públicos.
Dentre as questões que estiveram na agenda de diálogo entre Estado (SENAES) e sociedade (FBES) para a elaboração da política de economia solidária está a questão da educação (formação e assessoria técnica) para a economia solidária. Assim, a educação está entre as bandeiras de luta do movimento da economia solidária deste a criação da primeira plataforma de luta criada pelo FBES.
3 Ver FBES (2005, 2006) e SENAES/MTE (2004a, 2006b).
Em estudo anterior (Adams & Santos, 2013) fez-se uma revisão histórica da importância desta temática para o movimento.
No contexto do Estado, mais especificamente na SENAES, tivemos sujeitos políticos, companheiros de movimento, comprometidos com a educação como estratégia para a economia solidária. Mas, dentre esses, destacamos a importância de Paul Singer, aquele que esteve à frente da SENAES de 2003 a 2016 e que sempre acreditou na economia solidária como um ato pedagógico.
A proposta deste artigo é, justamente, refletir sobre a importância e a influência de Paul Singer na construção dos processos educativos da economia solidária ou economia solidária que, mais adiante, se constituíram no que chamamos de pedagogia da autogestão, compreendendo que:
a partir da prática autogestionária potencializada pela economia solidária, os trabalhadores compõem uma condição de sujeito econômico, social e político que considera a reprodução social da vida frente às regras das relações capitalistas de produção. Percebe- se aí um processo pedagógico que produz novas representações de mundo que precisa ser compreendido e reconhecido, tendo em vista o potencial emancipatório do trabalho associado e autogestionário. Diante desta premissa, o movimento de economia solidária no Brasil, estimulado pelo Fórum Brasileiro de Economia Solidária (FBES), vem provocando uma série de questionamentos em torno das dimensões educativas do trabalho associado compreendendo a necessidade de articular os saberes que a organização capitalista do trabalho fragmentou. Para tanto, há um exercício de reconhecer e estimular uma pedagogia da autogestão – que significa o processo pedagógico no âmbito do trabalho associado e autogestionário – e reconhecer e estimular uma autogestão da pedagogia – que significa ter a experiência da autogestão como referência de processos pedagógicos e formativos sobre economia solidária que possuem a educação popular como base. (ADAMS & SANTOS, 2013, p 260- 261).
É importante destacar que a discussão desenvolvida neste texto é resultado de um trabalho de pesquisa militante, ou seja, de pesquisadores que participam e partilham do projeto social e político de seus campos de estudo (Cunha & Santos, 2010) – uma vez que os autores deste trabalho se reconhecem como sujeitos políticos do movimento da economia solidária, participaram da gestão de políticas públicas da SENAES, fizeram parte dos processos de constituição dos Centros de Formação em Economia Solidária (CFES) do país, onde, como educadores, uniram esforços para legitimar um processo metodológico que visava autogestão da pedagogia e a pedagogia da autogestão e, além disso, ambos tiveram espaços de diálogo e partilha muito próximos do professor Paul Singer e sua obra.
À luz desta concepção, trabalhamos este texto dividido em cinco momentos: primeiramente apontamos algumas considerações sobre a importância da educação para o movimento da economia solidária; logo fazemos uma reflexão sobre as experiências de Paul Singer frente uma dinâmica pedagógica de produção da democracia; na sequência construímos uma linha de reflexão de Singer sobre a construção da autogestão como estratégia política; no quarto momento traçamos os esforços de constituir um processo de educação em economia solidária por dentro da política da SENAES; e, por fim, pontuamos algumas reflexões finais sobre a perspectiva de Singer na compreensão da economia solidária como atopedagógico.
Após alguns anos acompanhando o processo de formação de formadores com os educadores dos Centros de Formação em Economia Solidária (CFES), fizemos algumas sistematizações sobre o que chamamos de ‘pedagogia da autogestão / autogestão da pedagogia’: um processo duplo de autogestão do ato educativo em si, enquanto construção coletiva do conhecimento, e também da dinâmica desse processo4.
No presente artigo, buscamos centrar o tema em torno das ideias de Paul Singer, apenas citado como inspiração nos trabalhos anteriores. Esta proposta de refletir uma pedagogia da autogestão a partir obra de Singer, ocorreu a partir de 2018, quando em decorrência da morte do professor Singer, resolvemos homenageá-lo em um livro intitulado “Paul Singer. Economia, Democracia, Autogestão” (Santos; Nascimento, 2018), onde nos dedicamos a expor sua trajetória de vida e luta pela democracia, bem como analisar a construção da visão de mundo de Singer sobre socialismo/autogestão. No esforço de elaboração deste livro, já no início, ao analisarmos a primeira parte da trajetória de Singer, nos defrontamos com elementos fundamentais para a construção de sua ação educativa.
O ensaio intitulado “Experimentação autogestionária: pedagogia da autogestão e autogestão da pedagógica” foi publicado em 2011 e 2013. A primeira vez, pelo “Intercâmbio, Informações, Estudos e Pesquisas” (IIEP), em uma Coletânea de ensaios (NASCIMENTO, 2011). A segunda publicação, na obra coletiva “Trabalho, Educação e Reprodução Social” organizado por Eraldo Batista e Henrique Novaes. Neste ensaio, as principais fontes foram europeias: Jef Ulburghs da Bélgica, Daniel Mothé, Pierre Naville, G. Canguilhem e Yves Schwartz da França, Kardejl da Yugoslavia, Raymond Williams e Edward Thompson da Inglaterra, mas sempre com aportes de Antônio Gramsci e Paulo Freire.
A construção de uma pedagogia da autogestão buscava sistematizar o processo educativo de construção da política pública de educação da economia solidaria na SENAES, a articulação do Estado com os movimentos sociais na construção a economia solidária como ato pedagógico, a experiência concreta dos empreendimentos econômicos solidários no processo de reconhecer seu processo de trabalho e de envolvimento com o movimento como processos educativos.
O conjunto destas sistematizações foi refletido no texto “Economia Solidaria: um espaço peculiar de educação popular” (Adams & Santos, 2013). A primeira referência de esforços de um projeto de educação no âmbito da economia solidária foi a realização, em 2005 e 2007, de duas oficinas metodológicas nacionais, agrupando as entidades, empreendimentos econômicos solidários e movimentos que desenvolviam práticas educativas neste campo, na busca da construção dos elementos dessa política. A partir destas oficinas, passamos a refletir a estrutura educativa para economia solidaria, que resultou na ideia da rede CFES, como segundo passo estratégico5.
Este processo foi sendo finalizado com a Oficina Temática “Educação e Autogestão”, em 2016, no final do governo Dilma, obstruído pelo processo de impeachment da presidente. O Golpe de Estado que o Brasil sofreu naquele ano resultou em mudanças qualitativas na SENAES, sobretudo, pela saída de Paul Singer como secretário. A partir desse momento, a economia solidaria iniciou um processo de resistência política e, no campo educativo, foi o final da Rede CFES e de conjunto significativo de projetos e programas da política de economia solidária no Brasil. Desde então, a política pública da SENAES se resumiu a um Projeto, o de Construção de Redes Solidarias, tendo à sua frente a Agência de Desenvolvimento
O CFES nacional ainda teve condições de articular seus quatro núcleos temáticos nacionais e publicar o Caderno Referencias Metodológicos de Formação e Assessoria Técnica em economia Solidaria” organizado pela Cáritas Nacional e que teve “A educação em economia Solidaria” de Telmo Adams e José Ignácio Neutzling como primeiro capítulo. Nessa mesma perspectiva, Henrique Novaes e Mariana Castro, apresentaram um ensaio, em 2011 intitulado “Em busca de uma pedagogia da produção associada”; e, posteriormente, Novaes (2018) fez uma primeira tentativa tendo o CFES como objeto de análise “Os CFES: as contradições da educação autogestionária do movimento da economia solidaria”. No início da SENAES, foi muito importante a obra coletiva organizada por Lia Tiriba e Iracy Picanço, “Trabalho e educação, Arquitetos, abelhas e outros tecelões da economia popular e solidaria” (2004) e, por fim, o ensaio de Lia Tiriba e Maria Clara Bueno Fischer, “Saberes do Trabalho Associado”, no Dicionário Internacional da Outra economia (2009). Enfim, não temos por objetivo apontar o conjunto das produções teóricas nesse campo educação e economia solidária, mas apenas assinalar alguns trabalhos que são fundamentais.
Solidário (ADS/CUT) em parceria com outras 23 Instituições desse campo, bem como os projetos financiados pelo PRONINC - Programa Nacional de Incubadoras de Cooperativa.
A questão do processo educativo está presente em Singer muito antes da SENAES, pois está indissoluvelmente associada à sua construção da ideia de Socialismo e de sua trajetória em busca da democracia. No livro “Paul Singer. Economia, Democracia, Autogestão” (Santos; Nascimento, 2018), apenas assinalamos alguns elementos educativos presentes na obra de Singer. No presente ensaio, pretendemos mostrar de forma mais articulada seus elementos teóricos para uma pedagogia da autogestão.
Um ponto que não conhecíamos de sua trajetória, é que Singer já se ocupava da questão pedagógica, da formação política, desde sua adolescência, a partir do início de suas experiências no DROR (em hebraico significa 'construtores da liberdade'), um movimento juvenil socialista sionista brasileiro kibutziano do estado de São Paulo. Nos anos 1950, ele tratava da questão pedagógica, pois era o responsável pelo trabalho de formação do movimento. O DROR dedicava atenção especial à formação de seus militantes. Neste período, realizou-se um congresso nacional para traçar as linhas pedagógicas da formação do DROR, e Paul Singer foi o responsável do documento final, que serviu de orientação à formação política do Movimento.
Em sua longa trajetória, Singer passou por várias experiências, de forma direta ou indireta, e de todas foi construindo sua visão de mundo socialista e formulando sua visão do processo educativo. Ao mesmo tempo em que avançava na experiência do DROR, Singer militava no Partido Socialista de São Paulo onde, de forma autodidata, tomou conhecimento das obras de Karl Marx, Rosa Luxemburgo e de outras referências socialistas.
De certa forma, poderíamos dizer que a ideia de Singer sobre socialismo e sobre educação é uma combinação de ideias de Rosa Luxemburgo (sobre a Revolução Russa e as comunidades pré-capitalistas) e as ideias pedagógicas de Paulo Freire (com quem conviveu no Governo municipal do Partido dos
Trabalhadores, período que a prefeitura de São Paulo tinha como prefeita Luiza Erundina - 1988-1991). A estas fontes teóricas acrescemos as experiências políticas práticas. No campo dos movimentos sociais, destacamos os Kibutz no âmbito do DROR e, a experiência da Iugoslávia6, Solidarnosc/autogestão na Polônia7, o 1968 francês8 e nos EUA9. No campo do cooperativismo, Singer se referencia da experiência histórica de Rochdale na Inglaterra10, a cooperativa Mondragon11 no país Basco; No campo acadêmico, as experiência da Unitrabalho12 e da Rede Universitária de Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas Populares ITCPs13 e, por fim, no campo de políticas públicas, o período do governo petista de São Paulo e as experiências da SENAES.
Na trajetória de Singer, algumas experiências foram decisivas, mas analisando o conjunto da obra, há dois pontos de partida, conforme indicado anteriormente: a obra de Rosa Luxemburgo e a experiência no DROR.
Em 1950, o DROR realizou seu primeiro congresso educacional e um dos resultados foi o documento “Fundamentos de nossa Educação”, aprovado com
6 Em 1950 o partido comunista iugoslavo (renomeado Liga dos Comunistas da Iugoslávia, LCI) legislou (fazendo parte da constituição de 1963) o novo modelo econômico baseado num socialismo autogestionário, no caso, na formalização de conselhos proletários responsáveis pela gestão tanto de unidades produtivas como de territórios.
7 Uma federação sindical polaca fundada em 1980. Tratou-se de um amplo movimento social antiburocrático que utiliza os métodos de resistência civil não-violenta para fazer avançar a causa dos direitos dos trabalhadores e da mudança social.
8 Onda de protestos que teve início com manifestações estudantis para pedir reformas no setor educacional. O movimento cresceu tanto que evoluiu para uma greve de trabalhadores que balançou o governo do então presidente da França, Charles De Gaulle.
9 A rebelião estudantil de 1968 nos Estados Unidos contestou a estabilidade econômica e social do país.
10 Criada em 1844 por 28 operários – 27 homens e 1 mulher , em sua maioria tecelões, no bairro de Rochdale-Manchester, na Inglaterra, e reconhecida como a primeira cooperativa moderna, a “Sociedade dos Probos Pioneiros de Rochdale” (Rochdale Quitable Pioneers Society Limited) forneceu ao mundo os princípios morais e de conduta que são considerados, até hoje, a base do cooperativismo autêntico.
11 O Complexo Cooperativas de Mondragon é um exemplo mundialmente famoso por sua capacidade de reunir 120 empresas sob forma de Cooperativas, sendo 87 industriais, 1 de crédito (Caja Laboral), 1 de consumo (Eroski), 4 agrícolas, 13 cooperativas de pesquisa, 6 de serviços em consultoria e 8 cooperativas de educação. São associados das Cooperativas apenas seus trabalhadores que atualmente somam 93 mil pessoas. Na essência todas as cooperativas de Mondragón são Cooperativas de Trabalho que possuem produtos e serviços diferentes entre si.
12 Rede Interuniversitária de 5 Estudos e Pesquisas sobre o Trabalho (UNITRABALHO) é uma Rede Nacional de Universidades, fundada em 1996, que reúne em torno de 93 instituições de ensino superior, públicas e comunitárias, de todo o Brasil.
13 A Rede Universitária de Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas Populares (Rede de ITCPs) nasceu em 1998 e é formada, atualmente, por 41 incubadoras cujo objetivo é apoiar a formação e consolidação de empreendimentos de economia solidária, bem como prestar assessoria e formação a grupos já consolidados.
entusiasmo, cuja redação final ficou a cargo de Paul Singer (PINSKY, 2000). Dessa ação educativa, Singer recordava:
Eu sei que inspirei para burro o Movimento na parte educacional. Eu me guiava muito pelas minhas leituras pessoais. Havia um traço socialista, necessário, e nesse a gente tinha toda a liberdade, então, a gente avançou muito (PINSKY, 2000, p.146).
Em entrevista de 2008, Singer falou sobre a influência de Rosa Luxemburgo:
É, acho que há um legado luxemburguiano do qual eu não estava consciente antes desse momento. E o legado me parece ser este: para Rosa Luxemburgo, quem dirige a revolução é o que ela chama de ‘as massas’; são os próprios trabalhadores, homens, mulheres, os jovens, enfim. (...) De qualquer forma, na crítica de Rosa à Revolução Russa, essa visão das massas como carregando o ímpeto da mudança é uma coisa que calou fundo em mim. Eu a reencontrei na economia solidaria. (...) em sintonia com esta visão, a economia solidaria foi uma criação das pessoas em situações difíceis, mas recorrendo às forças comunitárias que são socialistas, em última análise...Agora, o que me encanta na economia solidaria é que ela vem de baixo” (SINGER, 2000, p. 24 -25).
Na sequência, vamos focalizar alguns elementos de aprendizagem de Singer nestas experimentações de autogestão.
As violências ditadoras que Singer viveu na sua história, com destaque para a experiência da infância que o refugiou no Brasil - o nazismo - e os 21 anos da ditadura militar lhe ensinaram a valorizar a liberdade e a democracia como princípio central de organização da vida. Não por acaso, sua perspectiva de desenvolvimento estava estreitamente relacionada à democracia na economia e a autogestão.
Nesta perspectiva, Singer compreendia que a transformação da realidade social se daria por um processo democrático e autogestionário que corresponderia a uma revolução social, contrapondo à revolução política. A revolução política direciona a energia para a conquista do poder governamental e estatal; a revolução social é um processo lento que duraria muito tempo para superar o capitalismo como sistema econômico, tal como custou para o capitalismo superar as estruturas feudais (Singer, 1998). Assim, a lógica de desenvolvimento que vislumbrava passava por um processo endógeno, de dentro para fora, de baixo para cima, onde as experiências de base e de comunidade teriam um acento absoluto. Para Singer, “esse
desenvolvimento tem que se dar por um processo de livre aprendizado, em que cada autogestor tenha a possibilidade de abandonar a experiência e se inserir em outro modo de produção” (PINSKY, 2000, p.160).
O Kibutz, que almejava no movimento de sua juventude, foi sua primeira experiência de autogestão de base comunitária. Como já sinalizado, na hora de migrar para Israel e viver em um Kibutz, Singer optou em ficar no Brasil. Mas, em 1985, visitou por 15 dias um Kibutz em Israel e o compara as ‘aldeias comunistas” do socialista utópico Robert Owen. Dentre as questões que destacava na experiência era a liberdade do movimento.
A qualquer hora você pode pedir o desligamento do Kibutz, receber uma certa quantidade de dinheiro e tentar sua vida no mundo capitalista. (...) O fato da porta estar sempre aberta dá ao Kibutz uma qualidade essencial. Se quisermos, um dia, chegar ao socialismo, terá de ser por profunda convicção, e essa convicção terá de ser livre, ou não é convicção: é coação (SINGER, 2018, p.161).
Ainda refletindo sobre os feitos das experiências autogestionária, Singer chamava a atenção para vivência da Iugoslávia, com um olhar luxemburguiano. Tratou-se de uma experiência longa, que começou em 1950, aproximadamente, e foi até a década de noventa. Segundo Singer, a experiência Iugoslava foi prejudicada pelo fato de não haver democracia no país, corroborando com a sua perspectiva de que não é viável tomar o poder primeiro e só depois criar, de cima para baixo, uma economia autogestionária livre (Singer, 2018). Segundo Lowy, esta experiência contribui para a reflexão sobre a revolução social.
Dessa lição aprofundou sua visão da diferença entre ‘revolução política’ e ‘revolução social’. Isto é, na visão luxemburguiana: “A construção de uma nova sociedade é um terreno virgem que põe ‘mil problemas” imprevistos; ora, só a experiência permite as correções e a abertura de novas vias. O socialismo é um produto histórico que nasce da própria escola da experiência: o conjunto das massas deve participar desta experiência, senão o socialismo é decretado, doado por uma dezena de intelectuais reunidos em torno de um tapete verde (LOWY, 2018, p. 74-75).
A experiência polaca do Solidarnosc, 1980-1981, também ganhou espaço na reflexão de Singer. Avesso a qualquer forma de violência e opressão para garantia de direitos dos trabalhadores (aliás esta era uma de suas principais criticas à ditatura do proletariado comunista de Marx), Singer percebia no Solidarnosc uma estratégia vinda de baixo pelas massas, mas sem imposição, que num processo
político organizativo abandonou sua postura de sindicato e exigiu uma “república autogerida” (LOWY, 2018).
Em outro momento, Singer defendeu a ideia de um “Parlamento Econômico”, que se assemelha a proposta do Solidarnosc de uma “Câmara de produtores associados, eleita exclusivamente por produtores associados”. Destas experiências de lutas pela autogestão, Singer destaca o caráter de experimentação.
A importância dessas experiências é o aprendizado que proporcionam a segmentos da classe trabalhadora de como assumir coletivamente a gestão de empreendimentos produtivos e a operá- los, segundo princípios democráticos e igualitários (SINGER, 2000, p. 44).
Aqui mais uma vez ressoa a voz de Rosa Luxemburgo quando afirmou no Congresso de Fundação do Partido Comunista de Alemanha (KPD), com base nos princípios da “Liga Spartacus”: as massas devem aprender a usar o poder exercendo o poder, não há outro modo, (Lowy, 2018, p.79). Como disse Singer, “para uma ampla faixa da população, construir uma economia solidária depende primordialmente dela mesma, de sua disposição de aprender e experimentar” (SINGER, 2002, p.112).
A partir da reflexão de Singer, destacam-se também as experiências cooperativistas de Rochdale (1844, na Inglaterra) e Mondragon (1956, na Espanha). Essas duas experiências tinham um lugar privilegiado na compreensão de Singer sobre a democratização da economia como estratégia de contraponto ao sistema dominante. Além de expressarem uma dinâmica de escala, ou seja, de avançarem da proposta micro para macro, estas duas experiências traçam uma linha do tempo, uma história sobre a prática continua da autogestão. Singer apontava estas duas experiências como exemplos positivos de cooperativismo, apesar das crises.
Esses exemplos, que se limitam ao pouco que consegui levantar até agora, dão uma ideia de que há uma prática contínua de autogestão desde há pelo menos um século e meio, no mínimo(...). Muitos datam seu início a contar da famosa cooperativa de Rochdale, que é de 1844, mas é perfeitamente possível começar a contar antes, com as cooperativas formadas na Inglaterra por inspiração de Robert Owen, na década de vinte do século passado. (SINGER, 2018, p.157).
Sobre Mondragon, Singer dizia “vejam que há experiência de longo período. Essa de Mondragon tem 42 anos e tem tido muito êxito econômico” (SINGER, 2018, p. 157).
Singer as conhecia, sobretudo, através da obra “A Acumulação do Capital” de Rosa Luxemburgo (1984). A experiência da SENAES também levou Singer a uma visão aprofundada do papel das comunidades no processo de democratização da economia. Singer ressalta o tema das comunidades e dizia que o fermento da economia solidaria está nas comunidades, nos territórios e que a economia solidaria vem de baixo. Singer estava convencido que no Brasil, foram as forças das circunstâncias que levaram as pessoas se organizarem em iniciativas de economia solidaria. Assim, chamava a atenção para a importância dos sujeitos:
O grande impulso para a economia solidaria vem das comunidades pobres; é lá que está o fermento social que se viabiliza – portanto nos quilombolas, nas comunidades indígenas e, sobretudo, no campesinato e no artesanato. Para essa gente, compartilhar é fazer autogestão e uma certa democracia de base. É uma coisa natural. Eles se inclinam a isso (SINGER, 2008, p.25).
Essa visão sobre as Comunidades se estende ao tema do desenvolvimento solidário, experimentado em programas territoriais enquanto Singer estava à frente da SENAES. “Eu tenho dito várias vezes – nunca escrevi, não tive tempo de escrever- que o campesinato hoje é vanguarda porque é só entre os camponeses que você pode fazer agricultura ecológica” (Singer, 2008, p.28).
Na SENAES, Singer extrai elementos fundamentais para reflexão sobre pedagogia da autogestão, inclusive com uma perspectiva gramsciana:
(...) uma grande parte da construção do socialismo tem de ser realizada ainda sob hegemonia capitalista. O conjunto da economia solidária assim constituída deve ser considerado como uma vasta escola de capacitação socialista” (SINGER, 2018, p.159).
E, mais especificamente, dizia:
Para que o modo de produção socialista algum dia se torne hegemônico, a instituição de uma superestrutura política, jurídica e
14 Este não é o espaço para uma avaliação da experiência educativa da SENAES, o que demanda um trabalho coletivo, o qual ainda não foi totalmente feito. Todavia, podemos adiantar afirmando que os diversos limites da política pública de Ecosol nos Governos Lula/Dilma, não permitiram a existência de condições estruturais em que as ideias de Singer no campo educativo pudessem se desenvolver plenamente, tanto no Programa de Agentes de Desenvolvimento Solidário, quanto a estratégia da Rede CFES, deixaram a desejar em seus objetivos principias.
cultural socialista terá de ser precedida da conquista de competência gerencial e domínio da tecnologia por parte de numerosos trabalhadores socialistas (SINGER, 2018, p.159).
Isto é, parte significativa da construção do socialismo tem de ser realizada ainda sob a hegemonia capitalista, construindo uma contra hegemonia numa perspectiva socialista autogestionária. Desta forma, podemos sintetizar a política da SENAES, no campo educacional, pode ser expressa em dois princípios singerianos, a ECOSOL como ato pedagógico e também como uma escola de capacitação socialista. Destes princípios, temos dois campos de projetos de política pública, ou seja, dois caminhos de experimentação autogestionária: projetos territoriais de Agentes de Desenvolvimento Solidário e Projeto de Rede-CFES de Educadores,
A estratégia dos Agentes de Desenvolvimento Solidário implica em compreender o desenvolvimento como totalidade, significa envolver a comunidade. Para Singer (2018) este processo de desenvolvimento requeria um relacionamento simbiótico entre comunidade os agentes de desenvolvimento da SENAES, profissionais destacados para articular as diferentes políticas no território. Estes representavam bancos públicos, serviços públicos (como Sebrae ou Sescoop), agências de fomento da economia solidaria, ligadas a Igreja, sindicatos ou universidades ou então movimentos sociais. No decorrer de uma articulação no território, criam-se as condições de organização democrática do mesmo. Instituições surgem por meio de espaços dos quais a comunidade se organiza para promover o seu desenvolvimento: assembleias de cidadãos, comissões para diferentes tarefas, empresas individuais, familiares, cooperativas e associações de diferentes naturezas, comitês mistos público-privados (SINGER, 2018, p. 210 -211).
Por esta estratégia passava a necessidade de a comunidade desenvolver a consciência de que o desenvolvimento é possível pelo esforço conjunto da comunidade, amparado por credito assistido e acompanhamento sistemático (incubação).
Quanto ao aspecto pedagógico, a comunidade deve desencadear um processo educativo, de educação política, econômica e financeira de todos os
sujeitos. Trata-se de capacitação adquirida no enfrentamento dos problemas reais, a medida que os mesmos vão se apresentando (SINGER, 2018, p. 211).
O relacionamento entre a comunidade e os agentes deve se tornar crescentemente igualitário, mediante a continua troca de saberes. Nesta troca, os membros da comunidade recebem ensinamentos e os oferecem aos agentes, num processo de educação política mútua. (...) O ideal é que a preparação se faça em equipe...Também aqui a pedagogia da capacitação será possivelmente a mais adequada: treinamento teórico entremeado por idas à comunidade, onde a luta com os problemas reais levantará novos temas a serem destrinchados depois, no estudo teórico. (SINGER, 2018, p. 211).
Singer destacava a importância de esta proposta garantir a diversidade das experiências. “Os métodos de promoção não podem ter a pretensão de oferecer um caminho único ou a melhor prática, pois, cada comunidade é única em suas potencialidades” (Singer, 2018, p.211). Continua:
O pequeno tamanho da comunidade pobre e o seu relativo isolamento fragilizam suas possibilidades de se desenvolver por meio próprio (com apoio público). Um Centro nacional de preparação de agentes de desenvolvimento poderia promover entrosamento das comunidades...UMA FEDERAÇÃO DE COMUNIDADES com a mesma especialização, seja ela agricultura, artesanato, turismo ou o que for, configura o que hoje se conhece como ARRANJO PRODUTIVO LOCAL (...). O centro nacional poderia colocar as comunidades, com possibilidades de se federar, em contato e os agentes de desenvolvimento as assistiriam na construção de APLs”. Para Singer, a Internet facilitaria a articulação de comunidades com proximidade geográfica(...) “Comunidades com especializações complementares –tecidos, confecções, produtora de rações e criadoras de animais etc.- terem boas razões para se federar…O Centro nacional de preparação poderia criar espaço de negociação (SINGER, 2018, p. 212).
Na SENAES houve duas experiências nesse sentido: o Programa de Desenvolvimento Local, com base em agentes, foi uma experiência nesse sentido, e depois o Projeto “Brasil Local”.
Os CFES foram implantados, a partir de 2009, em cinco grandes regiões do país (Norte, Nordeste, Sudeste, Centro-Oeste e Sul em 2010) e um Centro de âmbito nacional (Brasília). Sua finalidade era de articulação do todo, como um projeto de política pública da SENAES. Pretendia realizar a formação de educadores
/ formadores, a sistematização das experiências educativas e a disseminação de
metodologias de educação popular, a experimentação da autogestão pedagógica e organização de uma rede nacional de educadores. Ou seja, as atividades desenvolvidas pelos CFESs deveriam contribuir na preparação de educadores capazes de atuar em empreendimentos solidários e assim fortalecer o movimento como um todo, para assegurar formação, capacitação e assistência técnica adequada às características organizacionais dos empreendimentos e práticas de economia solidária.
Na perspectiva estratégica, a formação realizada no CFES corresponde a uma “construção social”, na medida em que seus princípios, métodos e aprendizados sugerem um novo desenvolvimento através de trabalhos autogestionários, da busca pela sustentabilidade, vivência da democracia no local de trabalho e participação cidadã fora do empreendimento.
Nesse sentido, a educação em economia solidária centra-se tanto no conhecimento ético-político quanto técnico-produtivo. Este segundo aspecto é reconhecido, em geral, como assessoria ou formação técnica voltada para o aperfeiçoamento do processo de organização legal, produção de bens ou prestação de serviços. Entre os conteúdos sugeridos cada CFES buscou repensá-los considerando as diversidades culturais e os contextos locais e regionais das práticas, as vivencias e experiências de cada grupo social no qual a economia solidária local se insere.
Mas, sem dúvidas, a obra principal de Singer sobre o tema da pedagogia da autogestão ou da economia solidaria, é o ensaio “A economia solidaria como ato pedagógico”, que fez para uma coletânea do INEP (2005): “Economia solidaria e EJA”, organizada por Sonia M. P. Kruppa, então secretaria-adjunta da SENAES. Tratou-se das primeiras formulações para política de educação da ECOSOL.
Vimos que, em 2004, Singer elaborou o ensaio sobre desenvolvimento solidário em que propôs a fundação de um centro nacional de capacitação. O termo referência para formação em economia solidaria, definido no campo do Plano Nacional de Qualificação (PNQ), data deste período. A primeira oficina nacional de formação da SENAES/FBES foi realizada em 2005.
No conjunto de sua obra, Singer pensa a ECOSOL “como modo de produção ideado para superar o capitalismo” (Singer, 2004, p.13). Na sequência desta reflexão, Singer faz a distinção entre “empresa solidaria e empresa capitalista e indica os desafios pedagógicos” como questão central para consolidação de outras formas de produzir e viver.
Fica claro que a prática da economia solidaria exige que as pessoas que foram formadas no capitalismo sejam reeducadas (...). Essa reeducação tem de ser coletiva(...). Essa visão não pode ser formulada e transmitida em termos teóricos, apenas em linhas gerais e abstratas. o verdadeiro aprendizado dá-se com a prática, pois, o comportamento econômico solidário só existe quando é recíproco. Trata-se de grande variedade de práticas de ajuda mútua e de tomadas coletivas de decisão. (SINGER, 2004, p.16).
Singer gostava de afirmar que, na ECOSOL, os princípios são o horizonte, e a pratica o critério de verdade.
O sentido da experimentação, e o par razão/emoção são ressaltados por Singer: A pedagogia da economia solidaria requer a criação de situações em que a reciprocidade surge espontaneamente, como o fazem os jogos cooperativos...A economia solidaria é produzida tanto por convicção intelectual como por afeto pelo próximo, com o qual se coopera. (SINGER, 2004, p.16)
Nesta perspectiva, Singer apresenta um contraponto daqueles que formam seu imaginário de vida e de sociedade a partir capitalismo, em situação de competição, aos que se formam no meio da economia solidaria, que vivem situações definidas por comportamentos recíprocos de ajuda mútua. No entanto, a economia solidária torna-se uma alternativa de inserção dos trabalhadores no mercado de trabalho frente ao desemprego e à exclusão social, ou seja, trata-se de uma adesão por força das circunstâncias. A adesão ao processo da ECOSOL como estratégia política só acontece mais tarde, a partir da vivência dos valores e princípios da autogestão, até então os trabalhadores mal sabiam do que tratava a ECOSOL (Santos, 2010). Afirma a autogestão como processo pedagógico para os trabalhadores:.
na realidade, a educação que a luta de classes proporciona aos operários está embebida em valores solidários e igualitários, que estão na base do socialismo, enquanto projeto e utopia” (…) por isso, os trabalhadores, assim como os pequenos produtores de mercadorias e os pobres em geral, inclinam-se espontaneamente para ECOSOL.... a partir dessa inclinação espontânea, a tarefa pedagógica impõe-se. (...) e que: por terem sido subalternos e alienados da gestão do empreendimento, que agora lhes incumbe não só operar, mas dirigir, os trabalhadores não estão preparados
para a tarefa. eles têm que ser ensinados e eles sabem disso (SINGER, 2004, p.17).
Singer aborda um dos dilemas da política de educação da ECOSOL, a divisão entre formação política e formação técnica. Assim, inicia pela divisão de campos na educação. O ensino da autogestão dividido em duas partes: uma, a cargo de teóricos, investigadores ou veteranos da ECOSOL; outra, a cargo de especialistas, investigadores ou veteranos da economia capitalista. Essa divisão acabaria por levar os empreendimentos solidários a adotarem procedimentos incompatíveis com seus princípios. Exemplifica essa divisão com o caso da contabilidade e finanças, em que se separa o ensino das finanças do ensino da autogestão (SINGER, 2004, p 18).
Assim, Singer vai definindo o que pode ser elemento para uma pedagogia da autogestão:
em outras palavras, o ensino da autogestão não tem por que ser dividido em uma parte própria, interna aos empreendimentos, e outra externa aos mesmos, porque o meio ambiente em que atuam os empreendimentos solidários pode ser composto inteiramente por outros empreendimentos solidarios (SINGER, 2004, p 19).
Tendo em vista o amplo campo da ECOSOL no Brasil (empresas recuperadas, cooperativas em assentamentos da reforma agraria, cooperativas de recicladores, de agricultores familiares e muitos outros), Singer compreendia que a formação na ECOSOL passava pelo um princípio metodológico da educação popular e afirmava que a efetividade desse ensino decorre da estreita conexão entre seus fundamentos teóricos e sua aplicação pratica (Singer, 2004). Dizia:
devemos a Paulo Freire esta formulação lapidar, ninguém ensina nada a ninguém; aprendemos juntos. Isso se aplica inteiramente à ECOSOL, enquanto ato pedagógico. Nessa interação, produz-se um auto aprendizado mutuo. Somos todos autodidatas, pois não há aprendizado verdadeiro em que a curiosidade do aprendiz não tenha papel crucial. (SINGER, 2004, p 19).
Para concluir, voltamos ao eixo central de sua ideia:
A ECOSOL é um ato pedagógico em si mesmo... por isso, a solidariedade é ensinada aos fracos e subalternos pela vida e pelas empreitadas em que se engajam... é a vida que ensina aos mais fracos, aos socialmente e economicamente debilitados, o valor, na verdade, a imprescindibilidade da solidariedade...”Contudo, “A ECOSOL é um passo decisivo ‘para além’ desse aprendizado pela vivencia, pois ela propõe a solidariedade não só como imposição da necessidade, mas como opção por outro modo de produção. (SINGER, 2004, p.20).
ADAMS, T. SANTOS, A. M. Economia Solidária: um espaço peculiar de educação popular. In: STREC, D. ESTEBAN, M (orgs). Educação Popular. Lugar de construção social coletiva. São Paulo: Vozes, 2013.
CUNHA, G. SANTOS, A, M. Economia solidária e pesquisa em ciências sociais: Desafios epistemológicos e metodológicos. In: HESPANHA, P. SANTOS, A. M (orgs.), Economia Solidária: Questões Teóricas e Epistemológicas. Coimbra: Almedina, 2010.
FÓRUM BRASILEIRO DE ECONOMIA SOLIDÁRIA. Histórico – Do Fórum Social Mundial ao Fórum Brasileiro de Economia Solidária. Disponível em http://www.fbes.org.br, 2005.
. A experiência de gestão e organização do Movimento de Economia Solidária no Brasil. Brasília: FBES, Secretaria Executiva, 2006.
LOWY, M. Rosa Luxembourg, l”etincelle incendiaire. essais. le temps des Cerises. Paris, 2018.
LUXEMBURGO, R.. A acumulação do Capital. São Paulo: Abril Cultural, 1984.
MANTEGA, G; REGO, J. M. Conversas com economistas brasileiros. São Paulo: Editora 34, v. 2, 1999.
NOVAES, H. Mundo do trabalho associado e embriões de educação para além do Capital. Marilia: Editora Lutas anticapital, 2018.
NASCIMENTO, C. Rosa Luxemburgo e Solidarnosc. Rio de Janeiro: Loyola, 1986.
. Autogestão na Pedagogia. Ensaios. IEEP. SP, 2011.
. Experimentação autogestionária: autogestão de pedagogia e
pedagogia da autogestão. In: Trabalho, educação e reprodução social. Bauru: Práxis, 2013.
. A educação em economia solidária (pedagogia e autogestão). Texto para debate em Oficina do Projeto Redes de Cooperação solidária. ADS-CUT/SENAES. Disponível em: www.claudioautogestao.com.br, 2014.
. Referenciais metodológicos de formação e assessoria técnica em economia solidária. Brasília: REDE CFES, 2016.
PINSKY, C. Pássaros da Liberdade: jovens, judeus e revolucionários no Brasil. São Paulo: Contexto/Fapesp, 2000.
SANTOS, A.M. NASCIMENTO, C. Paul Singer: Democracia, Economia e Autogestão.
Marilia: Lutas Anticapital, 2018.
. O movimento de economia solidária no Brasil e os dilemas da organização popular. Rio de Janeiro: Tese de doutorado UERJ, 2010.
SECRETARIA NACIONAL DE ECONOMIA SOLIDÁRIA/MTE. Plano de Ação 2004.
Brasília: MTE, SENAES, 2004a.
. Termo de Referência do Sistema Nacional de Informações em Economia Solidária. Brasília: MTE, SENAES, 2004b.
. Atlas da Economia Solidária no Brasil 2005. Brasília: MTE, SENAES, 2006a.
. Anais da I Conferência Nacional de Economia Solidária. Brasília: MTE-MDA- MDS, 2006b.
. Documento final da Conferência Temática de economia solidaria e autogestão.
Brasília: MTE, SENAES, 2014.
. Projeto de promoção de desenvolvimento local e economia solidaria. Brasília: MTE/SENAES, 2006c.
SINGER, P. O que é o Socialismo hoje? Petrópolis: Vozes, 1980.
. Uma utopia militante. Repensando o socialismo. Petrópolis: Vozes, 1998.
. Oito hipóteses sobre a implantação do socialismo via autogestão. Revista Temporales. FFLCH/UFSP, 1999.
. Introdução à Economia Solidária. São Paulo: Perseu Abramo, 2002.
. Economia Solidária. In: CATTANI, Antonio David (Org.). A outra economia. Porto Alegre: Veraz, 2003.
. A economia solidaria como ato pedagógico. In: KRUPPA, Sonia (org). Economia Solidaria e educação de jovens e adultos. INEP, Brasília, 2004.
. Entrevista com Paul Singer. In: LOUREIRO, I (org.). Socialismo ou Barbarie. Rosa Luxemburgo no Brasil. Instituto Rosa-Luxemburg-Stifung. São Paulo, 2008.
. É possível levar o desenvolvimento a comunidades pobres. In: Ensaios sobre Economia Solidária. Coimbra: ALMEDINA, 2018.
SINGER, P; MACHADO, J. Economia Socialista. São Paulo: Perseu Abramo, 2000.
; SCHIOCHET, V. La construcción de La economia solidária como alternativa ao capitalismo. In: CORAGGIO, J.Luiz (org.). Economia social y solidaria em movimento. Buenos Ayres: Clacso/IAEN, 2016.
TIRIBA, L. FISCHER M. C. Saberes do Trabalho Associado. In Cattani, A.; Laville, J.L.; Gaiger, L. I.; Hespanha, P. (orgs.), Dicionário Internacional da Outra Economia. Coimbra: Almedina, 2009.
; PICANÇO, I. Trabalho e educação: arquitetos, abelhas e outros tecelões da economia popular solidaria”. Aparecida/São Paulo: Ideias e Letra, 2004.
v.17, nº 34, set-dez (2019) ISSN: 1808-799 X
Jacqueline Botelho2
Este artigo pretende demonstrar a contribuição do antirracismo para a luta anticapitalista no Brasil, um país de passado escravista recente, último a abolir a escravidão, e que imprime historicamente, com o apoio do Estado, relações sociais de subordinação do negro, justificadas por uma ideologia racista que associa sua cultura e existência à condição de atraso. A luta antirracista não assume uma posição secundária em relação à luta de classes, mas à qualifica e informa, sendo o açoite do negro pela exploração do trabalho e o racismo autorizado, elementos que impõem novos limites à consciência de classe e ao movimento negro organizado.
Este artículo pretende demostrar la contribución del antirracismo a la lucha anticapitalista en Brasil, un país con un pasado esclavista reciente, el último en abolir la esclavitud, y que históricamente imprime, con el apoyo del Estado, relaciones sociales de subordinación de los negros, justificadas por una ideología. racista que asocia su cultura y existencia a la condición de atraso. La lucha antirracista no toma una posición secundaria en relación con la lucha de clases, sino que califica e informa, el azote de los negros para la explotación del trabajo y el racismo autorizado, elementos que imponen nuevos límites a la conciencia de clase y al movimiento negro organizado.
This article aims to demonstrate the contribution of anti-racism to the anti-capitalist struggle in Brazil, a country with a recent slavery past, the last to abolish slavery, and which historically prints, with the support of the State, social relations of subordination of black people, justified by an ideology racist that associates its culture and existence to the condition of backwardness. The anti-racist struggle does not take a secondary position in relation to the class struggle, but rather qualifies and informs, the whipping of the black for the exploitation of work and authorized racism, elements that impose new limits on class consciousness and the organized black movement.
1Artigo recebido em 01/08/19. Primeira avaliação em 16/08/19. Segunda Avaliação em 06/08/19. Aprovado em 30/08/19. Publicado em 27/09/2019. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.17i34.p38049.
2 Professora Adjunta da Escola de Serviço Social da UFF. Doutora em Serviço Social (PPGSS/UERJ). Mestre em Políticas Públicas e Formação Humana (PPFH/UERJ). Assistente Social, graduada pela UERJ. Coordenação do NEPEQ/ESS-UFF. E-mail: jbotelho@id.uff.br ORCID: https://orcid.org/0000- 0003-1989-5089
No resgate de uma historiografia crítica do negro brasileiro, pretende-se destacar seu protagonismo na luta abolicionista radical no passado escravista, na construção dos movimentos grevistas no Rio de Janeiro, no século XIX, na organização da luta quilombola, contribuindo fortemente para experiências de consolidação da classe trabalhadora, e em processos de resistência no campo da luta pela terra, trabalho e escola, durante a escravização negra, e mesmo após a proibição do tráfico de escravos internacional.
Os negros representaram o contingente populacional massivo segregado na sociedade capitalista no pós-abolição, cujo desafio torna-se, para além de demonstrar objetivamente esta segregação - como política de classe operacionalizada pelo Estado desde então -, denunciar permanentemente o mito da democracia racial, uma estratégia de apagamento dessa articulação racista, como forma de dominação burguesa, especialmente no Brasil, um país de capitalismo dependente, cujo processo de urbanização, independência e modernização é operado pela mediação do atraso e de relações sociais de produção que remontam o passado escravista e se alimentam do latifúndio, do analfabetismo, da instrução precária destinada aos trabalhadores, ampliando o número de negros descartados pelo mercado.
Para além de identificarmos que o discurso da falta de empregabilidade está revestido da velha inadequação racista para o trabalho, é desafio ao movimento negro interpretar que a busca da empregabilidade alimenta relações sociais que nutrem o racismo na sociedade, nas mais diversas dimensões da vida social, e não apenas no trabalho. Ou seja, a empregabilidade é uma estratégia capitalista para que a crise seja diagnosticada como de responsabilidade do trabalhador, em maioria negros e negras, que passam a ser o motivo da sua própria condição. Nesta direção, para saída da crise estrutural, busca-se o perfil empregável, adequado, supostamente aliado do progresso. Este perfil é branco, o que tornou o embranquecimento um ideal perseguido por grande parte da população negra, que buscará afastar-se de qualquer marca da escravização. Quando falamos da população negra, sua existência é a própria marca da submissão, sua cor de pele, especialmente, e todos os demais fenótipos negros recuperam a associação histórica entre trabalho braçal, manual subordinado e o próprio escravo.
No pós-abolição, a experiência vivida do negro está fundamentada na alienação de si mesmo como elemento que não somente advém de sua experiência com o trabalho, mas que, inclusive, lhe fornece barreiras para a aproximação com a experiência assalariada, para a qual a sua inadequação justificaria a importação e, até certo ponto, financiamento da mão de obra imigrante pelo Estado brasileiro.
A opinião de Peixoto, bastante interessante, foi emitida durante um debate público provocado pela possível chegada de negros vindos dos Estados Unidos para o estado de Mato Grosso. O presidente daquele estado, em 1921, fez concessões de terras a colonos e pioneiros. No entanto, quando a empresa ventilou a possibilidade de que entre os colonos esperados estivesse um grupo de negros norte-americanos, o presidente de Mato Grosso rapidamente revogou as concessões que tinha feito, e imediatamente comunicou o fato ao ministro das relações exteriores. Foi quando Afrânio Peixoto, em face da perigosa ameaça daquele potencial influxo de quinze milhões de negros vindos do norte, interrogou desesperado: ‘Teremos albumina bastante para refinar toda essa escória? Deus nos acuda, se é brasileiro!’ (NASCIMENTO, 2017, p.88).
Curiosamente, numa sociedade que caminha na atual conjuntura para o rechaço à democracia, a elite passa a despir-se da negação do racismo, e passa a se sustentar não apenas pela afirmação de uma sociedade multirracial, miscigenada e de convivência harmônica entre a casa grande e a senzala. Na atual conjuntura, de recrudescimento do racismo, o que se afirma é a ideologia da inferioridade do negro e o direito do branco, como metáfora de poder (Fannon, 2008), em manifestar o pensamento racista e difundi-lo amplamente em sociedade, na tentativa de despolitizar o lugar social do negro na sociedade capitalista, conferindo-lhe uma conotação biologizante e estereotipada, organizada institucionalmente e no cotidiano, anunciando a atualidade do eugenismo como estratégia de setores dominantes no Brasil, que aglutina forças “díspares”, capazes de reunir ultra liberais e setores conservadores para o “bem da nação” (uma ficção criada por uma elite reacionária, que, através de pactos pelo alto, autoriza mudanças sociais sem a participação real da população e sua diversidade na definição das políticas implementadas pelo Estado).
É absurda a tentativa de atenuação das evidências da condição desigual entre negros e brancos na transição para o trabalho assalariado, abrindo possibilidades para interpretações de aproximação entre a casa grande e a senzala, que permitiriam a continuidade do trabalho pelo negro como suposta oportunidade conferida pelo branco, a partir da impossibilidade de disputa do negro no mercado de trabalho pela pouca qualificação. Nessas análises são subtraídas as determinações do racismo
estrutural - que afastou o negro do acesso à terra, ao trabalho e à escola - e se fortalece o mito do “bom senhor”.
Também nos causa danos – em substituição ao movimento de explanação da situação precária do negro na sociedade escravista – imputar, pelo viés culturalista (desassociado da análise do modo de produção escravista e capitalista), uma condição de extrema resistência ao estudo do escravismo e suas contribuições para a compreensão da questão étnico-racial no Brasil, em nome da difusão desenfreada das experiências de cultura negra, que não devem apenas disputar o espaço de entretenimento na sociedade capitalista, mas possibilitar à classe trabalhadora condições de resgate da ancestralidade africana, capazes de conferir ao negro a consciência da sua realidade social e econômica, como produto da estratégia de dominação capitalista no cenário mundial.
No ano de 1700, o quantitativo de escravos somava aproximadamente 330.000, chegando a quase três milhões no ano de 1800. O mercado de carne humana para o trabalho, no tráfico negreiro, contribuiu de forma decisiva para o crescimento do poder absoluto do homem sobre o homem no mundo liberal. A escravidão não permaneceu ao largo do sucesso das três revoluções liberais, visto que, ao contrário, ela conheceu o ápice de seu desenvolvimento em virtude desse sucesso. Nos anos 50 do século XIX, a população escrava nas Américas alcançava o pico de mais de 6 milhões de escravos (LOSURDO, 2006).
Na metade do século XVIII, a Grã-Bretanha possuía o maior número de escravos (878.000). A Espanha, embora com império mais extenso, a seguia a muita distância. Portugal ocupava o segundo lugar, com 700.000 escravos, atuando como uma espécie de semi-colônia da Grã-Bretanha, em que boa parte do ouro extraído pelos escravos brasileiros acabava em Londres (Ibid.).
Em ordem cronológica, os diferentes momentos da acumulação primitiva repartem-se pela Espanha, Portugal, Holanda, França e Inglaterra. Em fins do século XVII, na Inglaterra, estes momentos são resumidos sistematicamente no sistema colonial, no sistema da dívida pública, no moderno sistema tributário e no sistema protecionista. Estes métodos estiveram baseados sobre a mais brutal violência
concentrada e organizada da sociedade. No entanto, não há dúvidas de que quem ocupa destaque nesse campo, a partir da sua “posição absolutamente eminente é o país que está no mesmo tempo na frente do movimento liberal, e que conquistou o seu primado no comércio e na posse dos escravos negros exatamente a partir da Revolução Gloriosa” (LOSURDO, 2006, p.48).
No Brasil, o cativeiro da terra foi a matriz estrutural e histórica de nossa sociedade, que condenou a modernidade e entrada no mundo capitalista no Brasil a uma modalidade de coerção do trabalho, que nos assegurou um modelo de economia concentracionista e extremamente desigual. Antes da abolição da escravidão, a Lei de Terras de 1850 já instituía um novo modelo de propriedade, em que a condição de proprietário não dependia somente da condição de homem livre, mas de pecúlio para a compra da terra, ainda que ao próprio Estado. Desta forma, de modo diferente do Brasil Colônia, a terra não seria mais concessão da Coroa Portuguesa ao sesmeiro, que recebera a terra para cultivo, e também não seria de domínio do Estado.3
O domínio sobre a terra seria uma concessão junto ao título de propriedade, que garantia ao proprietário o direito de fazer das terras um uso indiscriminado, o que trouxe graves limitações à regulação pública do seu uso. Estes elementos históricos formam evidências comprovadoras de que o desenvolvimento capitalista brasileiro não seguiu o modelo clássico, e fora definido por determinações de origem que não devem ser ignoradas pelos pesquisadores que pretendem entender as contradições do capitalismo no campo brasileiro.
Reconhecemos que a escravidão moderna no Brasil esteve diretamente ligada às relações comerciais, o que imprimiu diferenças entre a escravização negra e indígena, sendo o escravo negro a marca do escravo mercadoria, em substituição ao escravo indígena. O desenvolvimento da extração do ouro no final do Seiscentismo deixava nítida tal relação, quando se estabeleceu que a mineração do ouro e das pedras preciosas seria realizada não mais por índios cativos, mas mediante o emprego de escravos africanos, atendendo às exigências de inserção no mercado lucrativo de carne negra, e a particularidade do domínio de técnicas de trabalho mais avançadas, apresentadas por esse contingente arrancado da África.
3 Ver em MARTINS, José de Souza. O cativeiro da terra. São Paulo: Editora Contexto, 2010
As opressões justificadas ideologicamente por critérios raciais surgem com o capitalismo, diretamente associadas à legitimação ideológica da escravidão moderna, sobretudo a partir do momento em que o capitalismo começa a atingir a etapa industrial, e os movimentos abolicionistas, em escala internacional, começam a pôr em xeque a continuidade das instituições escravistas (MATTOS, 2019, p.63).
A escravização negra demonstra a perversidade da lógica de acumulação instituinte do capitalismo no Brasil, visto que além de tornar o homem mercadoria cria ideologicamente a lógica do merecimento do castigo do trabalho a quem o realiza, ajudando a tornar ainda mais degradada a imagem social do trabalho braçal e do negro em nossa sociedade, pois quem trabalha é majoritariamente o escravo, e o escravo é o negro.
Entre o final do século XVIII e princípio do século XIX, mudanças importantes ocorreram na Europa. Na tentativa de derrotar uma ordem baseada em privilégios corporativos tradicionais, os iconoclastas do Antigo Regime recorreram à filosofia dos direitos naturais. Num investimento contra o que definiam como instituições corruptas e considerando sua sociedade como fonte de todos os males, eles idealizaram os povos e as sociedades primitivas. Uma nova filosofia e nova crítica social lançaram as sementes do abolicionismo, que abalariam as antigas afirmações de que os negros seriam selvagens e primitivos, pondo em xeque a escravidão, agora pensada como uma “aberração no mundo do liberalismo” (MARTINS, 2010).
O escravo, no período Colonial, funcionava como dinheiro em sentido estrito, como meio de troca ou meio de circulação4 e, na condição em que o escravo representa o investimento de uma determinada soma de recursos, pode realizar a função do capital-dinheiro emprestado a juros. O aluguel de escravo foi prática comum no Brasil, onde vivia um bom contingente de indivíduos a partir da aplicação do seu dinheiro na compra de escravos (destinados a render sob locação ou como negros de ganho) (Ibid.).
Para o escravo, a liberdade não era o resultado imediato do seu trabalho, mas a negação do trabalho, visto que na sociedade escravista só é representado realmente como livre quem não precisa trabalhar para viver. Na medida em que o trabalho escravo se baseava na vontade do senhor, o trabalho livre baseava-se na vontade do trabalhador, na “aceitação” da legitimidade da exploração do trabalho pelo capital. Por
4 Segundo Marx, no entendimento do processo de circulação do dinheiro e na possibilidade de sua relativa autonomia, temos o capital usurário (pré-capitalista) e o capital bancário, que é capitalista na acepção típica. (GORENDER, 2010).
estes motivos, a questão abolicionista foi conduzida para garantia da substituição do trabalhador escravo pelo trabalhador livre, em que, no caso das fazendas paulistas, se traduzia na substituição física do negro pelo imigrante.
Convencidos de que a escravidão estava destinada a desaparecer, da mesma maneira que os americanos da época estavam convencidos da inevitabilidade da democracia, uma convicção que nunca fora compartilhada pelos brasileiros, os latifundiários do Brasil decidiram preparar-se para o inevitável. Já na década de 1850, os fazendeiros das áreas cafeeiras, dentre os mais necessitados de mão- de-obra, mostraram-se interessados em promover a imigração e em substituir os escravos por imigrantes. Com o fracasso das primeiras experiências, os fazendeiros de café recorreram ao tráfico de escravos interno. Posteriormente, com o aumento das pressões abolicionistas e da promulgação de leis contra o tráfico entre as províncias, os fazendeiros das áreas pioneiras buscaram na Itália os trabalhadores de que necessitavam (COSTA, 2010).
Os fazendeiros reagiram de forma diferente nas distintas áreas, mas em 1880 grande parte deles já estava convencida de que a escravidão representava uma causa perdida. Com isto, novos investimentos tinham se aberto a eles, tais como estradas de ferro, bancos e indústrias. Com a expansão do sistema de créditos, que ampliava a possibilidade de financiamento de trabalhador livre, criavam-se oportunidades de diversificar o investimento de capital, o que tornava irracional o sistema escravagista que gerava uma imobilização do capital (Ibid.)
Diferentes recursos foram utilizados pelos negreiros para prosseguirem no comércio ilícito. Bandeiras de outras nações eram hasteadas a fim de confundir os perseguidores britânicos. Os estabelecimentos ingleses da Cata Branca, Morro Velho e Congo Seco, na região das Minas Gerais, mantinham escravos. Contra os ingleses havia ainda a acusação de que africanos eram retirados dos navios negreiros e levados para Serra Leoa, onde viviam sob uma escravidão extremamente perversa. Em São João Del-Rei (MG), a Companhia Inglesa de Mineração mantinha no ano de 1856, cerca de oitocentos negros escravizados, e alugava mais de mil, situação que se estende até 1879, quando a Saint João Del Rey Gold Mining Co. foi condenada a alforriar 385 escravos. Esses fatos, que eram explorados pela opinião pública, denunciavam a incoerência da filantropia liberal britânica (COSTA, 1998, p.80).
As relações de produção que emergiam pós-abolição estavam baseadas no trabalho livre e dependeriam de outros instrumentos coercitivos capazes de difundir uma legitimidade na exploração da força de trabalho, quando “tornava-se fundamental a figura de um trabalhador que considerasse o trabalho como uma virtude da liberdade”. Estava claro que este trabalhador não emergiria de uma sociedade cujas relações essenciais de produção foram relações de extrema coerção entre senhor e escravo. “Foi estrategicamente necessário encontrar este trabalhador em outras terras que tivessem dado outro sentido à condição de homem livre.” (COSTA, 1998, p.80).
Esta formação não-clássica do capitalismo no Brasil agia sobre as consciências dos trabalhadores, informando para o imigrante que a sociedade que o recebera apresentava-se como a “boa sociedade”, visto que aqueles que os expulsaram da terra, servindo-lhes como algozes, não estavam em terras brasileiras para serem enfrentados.
A sociedade brasileira pretendia tornar-se capitalista sem garantir as condições mínimas de reprodução do trabalhador. Doze anos após a Lei de Terras brasileira (1850), o capitalismo norte-americano, através do governo de Abraham Lincoln, opta pela livre ocupação de suas terras para esvaziar o escravismo americano e permitir que os ex-escravos pudessem se tornar proprietários de terras para o avanço do capitalismo, o oposto da opção brasileira (MARTINS, 2010).
Nos termos de um eminente representante dos fazendeiros no Brasil, os imigrantes deveriam ser morigerados, sóbrios e laboriosos, devendo possuir as principais virtudes consagradas na ética capitalista. Desta forma, a pequena propriedade seria conquistada após o trabalho árduo, sofrimentos e privações dos primeiros tempos. Tais ideias estiveram na base da política de seleção de imigrantes no Brasil. Famílias preferiram imigrantes solteiros, sendo os italianos preferidos em relação aos trabalhadores de outras nações, visto que, a exemplo, os trabalhadores alemães predominantemente preferiam de imediato o trabalho autônomo (Ibid.).
Predominaram os italianos nas correntes migratórias vindas para o Brasil. O italiano proveniente de áreas em que a economia ainda estava baseada em relações pré-capitalistas, preenchia uma condição essencial à reprodução social numa economia como a cafeeira, que mantinha características escravocratas apesar da abolição legal da escravidão. É uma crença de muitos pesquisadores a identificação da principal corrente de imigrantes italianos com regiões industrializadas da Itália,
visto que o principal contingente de operários nas origens da industrialização brasileira era italiano (MARTINS, 2010).
Esses autores fazem tal inferência a partir da insuficiente constatação de que tais imigrantes procediam do Norte. Logo, concluía-se que, como o Norte era a região italiana mais industrializada, os imigrantes que vieram para o Brasil teriam experimentado antes uma militante existência nas regiões fabris de seu país. Tal suposição, entretanto não é correta, pois os dados estatísticos demonstram que, do Norte, o Vêneto5 era a região de onde procedia a maioria, portanto, não vinham do Norte industrializado (MARTINS, 2010).
Não se concebe a riqueza, o capital acumulado, como produto do trabalho de outros, como produto do trabalho do operário, desprovido dos meios de produção, do confronto e do antagonismo entre o capital e o trabalho, identificados no antagonismo entre capitalistas e operários. De forma contrária, o capital é percebido como o produto do trabalho do próprio capitalista, concepção que está na raiz do mais importante mito da ideologia do trabalho no Brasil. A biografia popular de Conde Matarazzo, contava ser ele um milionário de grande sucesso, proveniente da Itália no século XIX e que morreu em 1937. As pessoas acreditam, ainda que, sem provas para tal, que ele chegara no Brasil sem recursos, e que teria enriquecido pelo seu próprio trabalho que fora muito pesado e sofrido (MARTINS, 2010, p.204)
Quando, após a Abolição, o imigrante foi introduzido no Sudeste e Sul do Brasil, essa explicação justificou porque não se aproveitava o negro como trabalhador assalariado. Com isso, ele era colocado como um ser de pura natureza, ser rítmico, dionisíaco, sexual, em comunhão apenas com as forças elementares do mundo, enquanto o branco era o racionalismo, o progresso, a civilização. Daí a tendência cultural do negro para ser jogador de futebol, sambista, malandro e a multada símbolo do sexo extraconjugal. Tudo isso aconteceu não pelo fato dele ter sido marginalizado, por terem obstruído todos os outros espaços sociais nos quais ele podia circular, mas por uma continuidade cultural, por uma tendência particular de o negro ser apenas emoção. ‘A emoção é negra como a razão é helena,” dizia L.S.Senghor, um dos fundadores do movimento de negritude (MOURA, 1988, p.12).
Tais elementos faziam fortalecer a crença de que os escravizados e sua condição como cativos eram produtos da sua própria estrutura psíquica, ocultando as determinações concretas da dinâmica social. No entanto, como demonstra Fernandes (2017), existem para o negro barreiras sociais associadas a barreiras raciais na luta por ‘um lugar ao sol’ e da ‘condição de gente’.
5 O Vêneto era tão pobre e subdesenvolvido como o Sul.
Tal leitura punha a qualidade e a diferença entre os trabalhadores no lugar da desigualdade das relações de produção, trazendo a concepção de que as pessoas que trabalham estão naturalmente unidas entre si, o que fortalece a concepção de que o trabalho é potencialidade, possibilidade humana e virtude dos homens de boa índole, independente das relações sociais de produção. Esta concepção traz sérias distorções na atualidade à compreensão do trabalho na realidade brasileira, à identificação dos trabalhadores como sujeitos explorados e à própria identificação do trabalhador com outros trabalhadores que identificam-se muitas vezes com o empresário, com o patrão, devido à forte presença do paternalismo patronal, do populismo, dos princípios da paz social e do corporativismo que balizaram as relações de classe no Brasil (MARTINS, 2010).
A libertação do trabalho seria concebida como resultado do esforço no trabalho penoso, fortalecendo a concepção de que só o trabalho redime, provocando, em torno da atividade produtiva o ideário da ascensão social e a honra do trabalho como sua condição. Para além da lógica do trabalho pelo trabalho, que traria para as relações de produção uma conotação patronal, na visão do trabalhador o trabalho é meio de libertação e de superação da dependência. Isto é, o homem se tornaria livre quando trabalhasse para si.
A história nos diz que mais de 12,5 milhões de seres humanos foram sequestrados de suas terras, e traficados como mercadoria para as Américas, quase 6 milhões deles por navios de bandeira portuguesa ou brasileira (MATTOS, 2019). Foram quase quatro séculos de trabalho compulsório negro, como parte do processo de acumulação primitiva experimentado por países como Inglaterra, França, Espanha e Portugal, garantindo a partir da criação da unidade escravo-mercadoria, relações sociais permanentes de estratificação, com forte hierarquia, subordinação e pouca mobilidade social entre senhores e escravos. A escravização no Brasil para o negro representou, portanto, algo sem precedentes do que foi experimentado no continente africano, agora transformado em mercadoria (MOURA, 1988).
O negro escravizado possuía uma média de vida muito baixa, devido as condições precárias na relação com o trabalho. Sobre a mortalidade de escravos, podemos dizer, a partir da média de idade de falecimento obtida por meio dos registros de óbitos, que a expectativa de vida de um escravo, segundo pesquisas de historiadores, gira em torno de 19 a 25 anos, sendo gritante a mortalidade infantil.
Tal processo de abreviamento da vida do negro, demonstra que o proprietário de escravos promoveu as condições objetivas para a aceleração da absorção da condição de escravo entre os escravos, que viviam a proibição do acesso à instrução, à qualquer organização coletiva, e à manifestação religiosa. Estes processos objetivos de violência deram lugar na história oficial ao discurso da acomodação do negro à sua condição de cativo, e, com Gilberto Freyre, difunde-se a caracterização do negro como dócil, dotado de uma força bruta, cuja convivência com a Casa Grande lhe emprestara uma certa civilidade, e, aos brancos, o exercício de uma certa benevolência.
No pós-abolição, setores conservadores se ocuparam na produção de uma historiografia racista do negro brasileiro, fundamentada no eugenismo, e produtora de um apagamento da história da resistência negra à escravização. O racismo estrutural é capaz de organizar formas expressivas de exclusão do negro do acesso ao trabalho e a escola. Em nossa formação sócio histórica, o negro foi tratado como besta selvagem, e, na sociedade capitalista, se aproxima da figura racialista do “matuto”, que nada é capaz de produzir e criar sobre a terra, restando-lhe a condição de retirante. Nesta sociedade miscigenada, o racismo é atual e se manifesta explicitamente pela discriminação, mas está organizado e permanece vivo pela perpetuação material da desigualdade, que aparece naturalizando a condição de subordinação da população negra.
Nesta direção, uma pauta antirracista é essencialmente aquela que está ancorada na defesa da educação pública, que garanta o acesso de todos e todas, sem discriminação de raça, etnia, religião, contra uma política de criminalização da pobreza e da população moradora de favelas e do campo, pela defesa dos territórios das comunidades quilombolas, sem-terra, indígena, pela saúde da população negra e especialmente da mulher negra, entre outras demandas. Estes elementos confrontam a principal estratégia de dominação burguesa na atualidade, ancorada no ataque frontal à democracia.
No período escravista, a resistência negra, quando não fora perseguida diretamente, fora constrangida e controlada dentro dos marcos, em regra, eurocentrados no catolicismo, como no caso das Irmandades, que somavam ao todo cerca de 110, entre os anos de 1830 e 1890. Apesar da condição majoritária, narrada pela exigência de adesão ao catolicismo e da condição de indivíduo livre, havia experiências de irmandades no Rio de Janeiro que reuniam escravizados a partir da
experiência em ofícios, partilhada com outros indivíduos livres, agregando trabalhadores africanos, escravizados e livres, que também utilizaram-se da greve como recurso de resistência à exploração, à exemplo do movimento dos ganhadores de Salvador, no ano de 1857 (MATTOS, 2008).
As fábricas no Rio de Janeiro, não somente representavam espaços de trabalho que nos permitiam localizar a formação da classe trabalhadora assalariada, típica do capitalismo, mas também funcionavam no século XIX, como lócus da “diversidade na exploração do trabalhador escravizado” (MATTOS, 2004). “Em relação ao emprego do trabalho escravo nas fábricas, Eulália Lobo localizou nos registros da Junta do Comércio, entre 1809 e 1849, 101 empresas. Dessas, encontrou dados sobre a mão-de-obra em 36 fábricas, das quais apenas 11 não declararam possuir escravos empregados.” (MATTOS, 2004, p.236).
Concordamos com Moura (1988,1984), quando reivindica a capacidade de resistência e protagonismo negro - inclusive durante a escravização, e fundamentalmente para a explosão da abolição -, e também zela contra possíveis argumentos culturalistas, psicanalistas e biotipológicos para justificar a condição de subordinação do negro. Desta forma, “o negro brasileiro, para muitos cientistas sociais das décadas de 30 e 40, era dionisíaco, daí a sua extroversão permanente, o seu comportamento expansivo e ao mesmo tempo passivo” (MOURA, 1988, p.13).
Neste sentido, o modo de produção escravista, que suscitava essas contradições, passa a ser substituído por uma leitura harmônica dessa estrutura, e, a partir disto, “os movimentos aculturativos representavam apenas uma rejeição por parte dos negros dos padrões culturais do senhor e não uma decorrência da sua situação de escravo” e da posição de homem desumanizado, “transformado em simples coisa” (Id., p. 10).
O conflito social passava a ser substituído por choques culturais, definindo a escravização negra como um mero pano de fundo estático. A partir de Nina Rodrigues, estiveram nessa posição quase todos aqueles que escreveram sobre a escravização moderna, incluindo espaços como os três Congressos afro-brasileiros ocorridos em 1935, 1937 e 1954, tomando como fio condutor a polarização de duas culturas, seus níveis de convergência e divergência, e “as posições antagônicas do seu mundo religioso, da sua culinária, dos seus gostos musicais, indumentária, linguagem etc.” (MOURA, 1988, p.10-11).
Esta reflexão de Moura (ibid.) sobre os riscos de uma leitura culturalista do período escravista, nos auxilia a pensarmos os mesmos riscos para a leitura da exploração do trabalho na sociedade capitalista.
Quando, inclusive, estudava-se o tráfico negreiro e a sua importância numérica tinha-se mais preocupação de saber-se a procedência regional desses escravos para aferir-se o seu nível de importância cultural no conjunto da sociedade brasileira. O mesmo fenômeno se repetia quando se estudava a família negra, os seus ajustes e desajustes dentro dos padrões normativos da sociedade escravista, ou, posteriormente da sociedade competitiva que a substituiu. (MOURA, 1988, p. 11).
É nosso desafio recuperarmos a relevância das manifestações da cultura negra, associadas a análise do modo de produção, sem a qual caminhamos na busca de uma “natureza negra orientadora”, que pode ser resgatada superficialmente, sem mediações com a realidade social do negro na sociedade capitalista, e sem causar incômodo aos setores dominantes, uma vez que foram eles que inventaram palavras como tolerância e diferença, tomando o padrão branco como referência. Nestas condições, o movimento negro pode perder sua força, reduzindo suas pautas exclusivamente a luta contra a intolerância, na defesa da diversidade, dentro dos marcos legais de uma luta contra o racismo, sem o questionamento da sua estrutura, também organizada pelas relações de classes. Para uma luta pujante é preciso ir além, não bastando ser contra o racismo, sendo necessário imprimir uma luta antirracista, como analisa Davis (2016).
Desta forma, concordamos com Moura (1988) que a história do negro brasileiro não pode ser compreendida sem a história da escravização negra. Nas palavras do autor, esta escolha nos permite um compromisso com a verdade histórica, a partir da qual denunciamos o brutal processo de violência contra o negro e sua cultura, sequestrados do continente Africano e inseridos numa outra sociedade como “coisas”, revelando a produção organizada de sua desumanização. Na mesma proporção, precisam ser difundidos na sociedade, e especialmente nas escolas públicas, o ensino sobre a resistência e luta do povo negro, na demonstração da experiência quilombola, da capoeira, como estratégia de garantia do sentido público da escola, que deve ser financiada pelo Estado, mas organizada pelo povo.
Estamos situando elementos que contribuíram inclusive para o apagamento da história de resistência negra, pois o apagamento do conflito escravista, em nome do choque cultural, fortalece um viés naturalista da cultura. Desta maneira, as organizações negras, e sua articulação ou desarticulação, eram interpretados a partir
da existência de “tendências culturais do negro, da sua estrutura psíquica mais emotiva do que racional, e com isso justificava-se a sua marginalização”. O negro era aquele sem aptidões políticas, que deveria ser representado em suas causas pelo branco (MOURA, 1988).
A relevância numérica, tempo de duração e forma como foi abolida a escravização negra no Brasil foram os determinantes para a emergência do modelo de capitalismo dependente, em que estamos mergulhados na atualidade. A possibilidade de formação de uma burguesia nacional, nos moldes clássicos, fora estrangulada. Foi permitida a penetração do capital monopolista nos ramos mais dinâmicos e relevantes de nossa economia e “reelaboraram uma ideologia reflexa das relações de produção escravistas: o racismo.” (MOURA, 1988, p.16).
Desta forma, o primeiro passo para a compreensão da unidade entre luta antirracista e anticapitalista no Brasil é a compreensão da construção da raça, em sentido biológico para dominação das Américas, seguido pela apreensão da materialidade do trabalho escravo, sua historicidade e a diversidade de escravos e seus ofícios no campo e na cidade, que os definem como cruciais para o processo de urbanização do país, quando muitos escravizados exerciam o ofício de barbeiros, médicos, vendedores ambulantes, escravas prostitutas de ganho. Na mineração havia os escravos ourives, ferreiros, pedreiros, mestres de oficinas, carpinteiros, parteiras, correios, elementos fundamentais que mostram o seu protagonismo na constituição da sociedade capitalista e o seu lugar social historicamente subordinado.
Nesse sentido, passamos a reconhecer o conteúdo estrutural do racismo, que não precisa de intenção para manifestar-se em sociedade, sendo fundamental que o combate ao racismo não se faça apenas com o seu repúdio moral e denúncias (extremamente necessários), mas fundamentalmente através de ações antirracistas concretas (ALMEIDA, 2019).
O racismo estrutural no Brasil educa, na perspectiva dominante, o próprio negro, cumprindo a função de mantê-lo em um lugar social determinado, produzindo um processo de convencimento de que sua condição é natural - não explicitando as conexões com a sociedade de classes e com o Estado-, cabendo, como caminho para
sua superação, não apenas o que se coloca ideologicamente a todos os trabalhadores (buscar a realização de escolhas educativas corretas, qualificação para inserção no mercado de trabalho), que são responsabilizados pela sua condição de pobreza, com forte apelo moral ao bom comportamento e civilidade, mas também, para o negro, a promoção do embranquecimento na negação de si mesmo.
O negro aparece como o diferente a ser discriminado e incapaz de atingir as características necessárias ao desenvolvimento. Para ele, o embranquecimento aparece também como exigência para o ingresso e permanência no mercado de trabalho. Tudo o que nele reside como cultura é discriminado, sua religião, o jongo, a capoeira. Todos esses elementos são satanizados, sendo a cultura negra excluída dos currículos escolares. Na escola, a ausência desse conteúdo educa a sociedade, informando, pela ausência, que essas experiências não são relevantes, e que não contribuem para a vida em sociedade. O passado escravista é reduzido assim à narrativa do negro escravizado, amarrado ao tronco e açoitado, completamente subordinado, sem que haja menção às experiências quilombolas, sua organicidade, contribuição à economia e processos de resistência para negros e não-negros naquela sociedade.
A luta antirracista exige uma educação antirracista, uma historiografia do negro que aborde o seu protagonismo, apoio às lutas quilombolas e à cultura negra resistentes no jongo, na capoeira e nas religiões de matrizes africanas (que são atacadas pelo racismo religioso). É nesse terreno que se fortalecem as experiências e a consciência de classe e racial, a partir de lutas que agregam a classe trabalhadora, composta majoritariamente por negros e mestiços. No entanto, cabe um processo de resistência para além da afirmação superficial da cultura negra, já captura pelo empresariado através da lógica do “empreendedorismo negro”. O negro precisa estar organizado nos locais de trabalho, nos sindicatos, nos partidos, levando para o interior destes espaços a pauta antirracista, possibilitando o diálogo com as comunidades, com a periferia das cidades e do campo, denunciando o genocídio negro promovido pelo Estado.
De acordo com dados do Instituto de Segurança Pública (ISP), são 434 casos de autos de resistência só nos primeiros quatro meses deste ano no Rio de Janeiro. São os piores números dos últimos 20 anos. O estado do Rio vive um aumento da militarização da vida legitimado pelos próprios governantes. Exemplo disso é a fala de Wilson Witzel, governador do Rio, que em 2018, antes de tomar posse, em entrevista ao jornal O Estado de São Paulo, afirmou que: "O correto é matar o bandido que está de fuzil. A polícia vai fazer o
correto: vai mirar na cabecinha e… fogo! Para não ter erro” (MARTINS, 2019, s/p.).
Concordamos com a definição de movimento negro no sentido amplo adotado por Santos (1997), para quem as rebeliões de escravos, a formação de quilombos e as irmandades representaram experiências importantes da organização e solidariedade entre negros escravizados e negros libertos. Assim, a luta pela liberdade e por melhores condições de vida nascem no Brasil com a chegada do negro escravizado (PEREIRA, 2010).
Considerando o movimento social em sentido estrito nascendo em 1931, com a Frente Negra Brasileira (FNB), conseguimos identificar que em seus dois nascimentos, o movimento negro enfrenta diretamente contextos de repressão brutal. Nos anos 30 no Brasil, sob a ditadura varguista, ele denuncia a segregação racial, a falsa abolição, ainda buscando a integração do negro na sociedade. Nesse período da história do país, vivíamos sob um Estado de orientação fascista com estímulo à imigração europeia com vistas ao desenvolvimento da nação (DOMINGUES, 2007).
Com a extinção da FNB, sob a ditadura do Estado Novo, em 1944, sob a liderança de Abdias Nascimento, é criado, no Rio de Janeiro, o Teatro Experimental do Negro, que publicava o jornal Quilombo e oferecia curso de alfabetização, corte e costura, além de fundar o Instituto Nacional do Negro, o Museu do Negro e organizar o I Congresso do Negro Brasileiro. A atuação do TEN buscava a adesão dos partidos de esquerda na denúncia da existência de discriminação racial no país, negada pelo Estado (Id.).
Considerando o acúmulo da luta do movimento negro organizado, em 1951 é aprovada a primeira lei antidiscriminatória do país, batizada como Afonso Arinos, após um escândalo de racismo no país, que envolveu a bailarina negra norte-americana Katherine Dunham, que fora impedida de se hospedar num hotel em São Paulo. “Com a instauração da ditadura militar em 1964, o TEN ficou moribundo, sendo praticamente extinto em 1968, quando seu principal dirigente, Abdias do Nascimento, partiu para o autoexílio nos Estados Unidos” (Id.).
No final dos anos 1970 acontece a reorganização política da bandeira antirracista, no contexto de recrudescimento dos movimentos populares, sindical e estudantil, quando em 1978 nasce o Movimento Negro Unificado (MNU), inspirando- se na luta a favor dos direitos civis dos negros nos EUA e referenciando-se em movimentos de libertação dos países africanos, sobretudo de língua portuguesa,
como Guiné Bissau, Moçambique e Angola. Com o objetivo de fortalecer o poder político do povo negro, o MNU toma como proposta a unificação das lutas antirracistas, assumindo como estratégia a disputa do Estado restrito. Em 1978, o Movimento Negro Unificado já elaborava a Carta de Princípios que trazia a reivindicação por uma autêntica democracia racial (PEREIRA, 2010). O movimento reconhece a necessidade de fazer a luta antirracista na sociedade brasileira, fortalecendo reivindicações por democratização, que devem estar ancoradas também em um projeto por uma outra sociedade, anticapitalista.
O movimento negro contemporâneo vive desafios: superar o reformismo, elevar a luta contra o racismo à luta antirracista pela denúncia do racismo estrutural, combater a leitura reducionista do “negro no poder” e o processo de cooptação que atinge parte dos dirigentes e militantes do movimento negro e outros movimentos sociais, engessando suas potencialidades como organizadores da luta classista. A aproximação orgânica com a luta de classes como estratégia de ação do Movimento Negro, abre possibilidades concretas para a luta antirracista no Brasil, resgatando a construção do poder popular como elo central para o sucesso dessas ações.
A luta do povo negro também é a luta pelo acesso à escola, não só na atualidade, mas desde o século XIX, quando mães de meninos pretos e pardos, no período de escravização, buscavam formas de garantir a instrução dos filhos como estratégia de resistência, acesso ao conhecimento para novas possibilidades de ofício, com a crise da escravização, e especialmente luta pela abolição. A escola de Pretextato da Silva Passos, autodeclarado preto e provavelmente liberto (como se deduz da ausência de registros históricos que narrem sua condição como cativo), funcionava na Rua da Alfândega no Rio de Janeiro como alternativa para meninos pretos e pardos estudarem “sem coação e com perfeição” (SILVA, 2000).
Tratou-se de uma escola primária particular, desvinculada do aprendizado de ofícios específicos e urbana (na freguesia de Sacramento), destinada a atender meninos “pretos e pardos” – cuja maioria dos pais não possuía sobrenome e nem assinatura própria –, criada em 1853 por um certo professor que se autodesignou “preto”. Ele requereu, em 1856, ao então inspetor geral da Instrução Primária e Secundária da Corte (Eusébio de Queirós), algumas concessões para a continuidade do funcionamento dessa escola (SILVA, 2002, p. 149).
Na atualidade, as reivindicações de acesso à educação são frutos das demandas históricas levantadas também pelo movimento negro contemporâneo. A Lei 10.639/03, que altera a Lei 9.394 de 1996, e que inclui no currículo oficial da Rede
de Ensino a Obrigatoriedade da Temática “História e Cultura Afro Brasileira”, ainda encontra limites diversos na sua implementação. Essa seria uma possibilidade de realizarmos um enfrentamento no campo das políticas sociais públicas de Educação para que a cultura da população negra possa fazer parte da formação da consciência da classe trabalhadora.
Desta forma, situamos a luta pelo direito à educação e à escola pública no Brasil a partir do protagonismo daqueles que foram primeiramente e massivamente alijados da escola em nosso país: os negros e negras. Ao explicitarem a negação do direito à escola, explicitam a negação do conteúdo público desta escola, que desumaniza negros e negras. Soma-se à exclusão da escola, a exclusão do mercado de trabalho.
Assim, o negro, assume uma posição de vanguarda na luta contra a exploração da força de trabalho na sociedade capitalista, devido sua condição de subordinação entre os oprimidos, que o torna capaz de denunciar com maior rigidez o conjunto de desigualdades da sociedade de classe.
A função principal para aqueles que pretendem empenhar-se na luta negra antirracista e anticapitalista, é apropriar-se das reflexões de Solano Trindade na definição de que nem todos os brancos são seus inimigos, assim como nem todos os negros são seus irmãos. Assim, não pretendemos nos limites deste artigo realizar um histórico do Movimento Negro no Brasil, com experiência extremamente larga, mas sublinhar como as experiências constitutivas do Movimento Negro estiveram diretamente conectadas com a dinâmica de classes e com a organização da sociedade capitalista dependente.
A luta antirracista, com a potencialidade de refutar o argumento da escravização e pobreza como incapacidade natural da raça, tem como desafio combater a alternativa meritocrática capitalista, e, sobretudo, a ideologia do embranquecimento como sinônimo de desenvolvimento.
Sob o argumento de que o racismo se expressa de forma estrutural e institucional em nossa sociedade, o movimento negro tem como desafio difundir, fortalecer e criar estratégias de engajamento do negro nas lutas sociais, considerando
seu protagonismo histórico como conteúdo necessário ao avanço do conjunto das lutas da classe trabalhadora.
Apesar da afirmação de muitos de que o preconceito de cor é um fenômeno de classe, e que no Brasil não existem barreiras raciais, estas barreiras são evidentes. Nesta direção, a promoção, o reconhecimento de valor e acesso a vários empregos são negados por causa da condição racial, ainda que os argumentos apresentados, mais sirvam como pretextos que escondam as razões verdadeiras (FERNANDES, 2017).
Refutando os argumentos de Silvio Romero, segundo o qual a vitória na luta pela vida pertencerá ao porvir branco, Nascimento (2017), demonstra como teorias científicas forneceram suporte para o racismo arianista, cuja finalidade era eliminar o negro. O genocídio negro mostra-se de forma atual, organizado e estruturado na sociedade, servindo-se do branqueamento e violência como estratégias de eliminação do negro, o que permite a aceitação de uma realidade desigual entre brancos e negros pertencentes a mesma classe social.
Na atualidade, cabe ao movimento negro o desafio de compreender a unidade classe, raça e também gênero, evidenciando a atualização do racismo na sociedade brasileira, na superação da negação do preconceito racial, pertencente ao ethos cristão nos anos 1950, substituído pelo cinismo da elite brasileira, e pela fascista reivindicação do direito às manifestações de ódio contra o “diverso”.
O fato é que “muitas pessoas passaram a exigir o direito de ser branco, o direito de não gostar de negros[...] querem seus empregos roubados pelos imigrantes, querem se sentir seguros em seu país”, criando um cenário de “pânico moral” que irá justificar medidas de exceção dentro e fora da legalidade (ALMEIDA, 2019, p.189).
Neste sentido, concordamos com Fernandes (2017) que, assim como no passado, cabe aos negros conquistar a sua autoemancipação coletiva, rompendo amarras contra uma situação desumana, “ultrajante e insustentável”, que prende o conjunto da sociedade ao passado e a padrões de dominação racial extremamente obsoletos.
A superação do racismo exige o combate à sua naturalização cotidiana (Almeida, 2019), contra a qual o negro precisa defender-se com organização política e acesso ao conhecimento. A luta pela permanência e ampliação do acesso da população negra à Universidade e escola pública é um dos passos concretos
imprescindíveis, onde o protagonismo negro, através de sua trajetória de subordinação e exclusão desses espaços, se faz urgente, hasteando a bandeira da democracia sobre a qual a classe trabalhadora se reconhece. Nessa direção, cabe à classe apropriar-se do debate antirracista, analisar criticamente a condição capitalista dependente brasileira, e qualificar a luta cotidiana na transformação da história.
ALMEIDA, S. Racismo Estrutural. SP: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.
COSTA, E.V. Da monarquia à República: momentos decisivos. 9.ed. São Paulo: UNESP, 2010.
. Da senzala à colônia. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1998. DAVIS, A. Mulheres, Raça e Classe. São Paulo: Boitempo, 2016.
DOMINGUES, P. Movimento Negro Brasileiro: alguns apontamentos históricos. Tempo vol.12 no.23 Niterói 2007. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-77042007000200007
FANNON, F. Pele negra, máscaras brancas. Bahia: Editora Edufba, 2008.
FERNANDES, F. Significado do protesto negro. São Paulo: Expressão popular, Perseu Abramo, 2017.
GORENDER, J. O escravismo colonial. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2010.
LOSURDO, Domenico. Contra-história do liberalismo. São Paulo: Ideias & Letras, 2006.
MARTINS, G. Movimento negro vai à CIDH denunciar governo do Rio e pacote "anticrime" de Moro. Brasil de Fato. São Paulo: maio de 2019. Acesso em 29/08/19. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2019/05/09/movimento-negro-vai-a- cidh-denunciar-governo-do-rio-e-pacote-anticrime-de-sergio-moro/
MARTINS, J de S. O cativeiro da terra. São Paulo: Editora Contexto, 2010.
MATTOS, M.B. A classe trabalhadora: de Marx ao nosso tempo. São Paulo: Boitempo, 2019.
. Escravizados e livres: experiências comuns na formação da classe trabalhadora carioca. Rio de Janeiro: Bom texto, 2008.
. Trabalhadores escravizados e livres na cidade do Rio de Janeiro na segunda metade do século XIX. Revista Rio de Janeiro n.12. jan-abril, 2004.
MOURA, C. Rebelião na senzala: quilombos, insurreições, guerrilhas. São Paulo: Ciências Humanas, 1988.
. Os quilombos e a rebelião negra. São Paulo: Editora Brasiliense,1984.
NASCIMENTO, A. O Genocídio do Negro Brasileiro: processo de um racismo mascarado. SP: Perspectiva, 2017.
PEREIRA, A. “O mundo negro”: a constituição do movimento negro contemporâneo no Brasil (1970-1995). 2010. 349f. Tese (Doutorado em História), Instituto de Ciências Humanas – UFF, Niterói, 2010.
SANTOS, J.R. Culturas Negras, Civilização Brasileira. Revista Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Negro Brasileiro. Brasília: DF, n.25, IPHAN, 1997.
SILVA, Adriana Maria P. A escola de Pretextato dos Passos e Silva: questões a respeito das práticas de escolarização no mundo escravista. Revista Brasileira de História da Educação. N.4. jul/dez/2002.
. Aprender com perfeição e sem coação. Uma escola para meninos pretos e pardos na corte. Brasília: Editora Plano, 2000.
v.17, nº 34, set-dez (2019) ISSN: 1808-799 X
Pedro Clei Sanches Macedo2
Ramofly Bicalho3
Este estudo tem como objetivo analisar a disputa ideológica entre as concepções de Educação Profissional Rural e a Educação do Campo. Trata-se de reflexões sobre a utilização desses conceitos na contemporaneidade: atuação do Sistema Nacional de Aprendizagem Rural na política de formação voltada para o agronegócio e a atuação dos movimentos sociais na defesa do PRONERA. A pesquisa utiliza Gramsci como referencial teórico e metodológico, com revisão de literatura e análise de documentos. Identificamos elementos que intensificaram a disputa pela hegemonia no contexto da educação do campo.
Este estudio tiene como objetivo analizar la disputa ideológica entre las concepciones de Educación Profesional Rural y la Educación del Campo. Se trata de reflexiones sobre la utilización de estos conceptos en la contemporaneidad: actuación del Sistema Nacional de Aprendizaje Rural en la política de formación orientada al agronegocio y la actuación de los movimientos sociales en la defensa del PRONERA. La investigación utiliza Gramsci como referencial teórico y metodológico, con revisión de literatura y análisis de documentos. Identificamos elementos que intensificaron la disputa por la hegemonía en el contexto de la educación del campo.
1 Recebido em 03/04/2019. Primeira avaliação: 09/05/2019. Segunda avaliação: 08/07/2019. Aprovado em 02/08/2019. Publicado em 27/09/2019. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.17i34.p38132.
2 Doutorando em Educação no Programa de Programa de Educação, Contextos Contemporâneos e Demandas Populares da UFRRJ; Mestre em Ciências no Programa de Pós-graduação em Educação Agrícola (PPGEA) da UFRRJ; membro do grupo de Pesquisa Educação do Campo, Movimentos Sociais e Pedagogia da Alternância da UFRRJ. Email: pedroclei@hotmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4873-7242
3 Doutor em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Pós-Doutorado em Educação pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Atua como Professor Associado II no Departamento de Educação do Campo, Movimentos Sociais e Diversidade, na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Integra o Corpo Docente da Licenciatura em Educação do Campo, o Programa de Pós-Graduação em Educação Agrícola (PPGEA) e o Programa de Pós-Graduação em Educação, Contextos Contemporâneos e Demandas Populares (PPGEduc). E-mail: ramofly@gmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0571-6481
This study aims to analyze the ideological dispute between the conceptions of Professional Rural Education and the Field Education. These are reflections on the use of these concepts in contemporary times: the National Rural Learning System's performance in the agribusiness training policy and the social movement's actions in defense of PRONERA. The research uses Gramsci as a theoretical and methodological reference, with literature review and document analysis. We identified elements that intensified the dispute for hegemony in the context of rural education.
O presente trabalho resulta das reflexões sobre a educação do campo e sua relação com as teorias educacionais, desenvolvidas nos estudos do Doutorado em Educação do Programa de Pós-Graduação de Educação, Contextos Contemporâneos e Demandas Populares da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), tendo como referencial teórico-metodológico as contribuições de Antônio Gramsci para compreender o processo de disputa hegemônica no campo da educação profissional no meio rural. O objetivo principal é demonstrar a diferença dos aspectos teóricos, políticos e ideológicos existentes entre os conceitos de Educação Profissional Rural e Educação Profissional do Campo, a partir das concepções de Educação Rural e Educação do Campo – a concepção rural pensada como instrumento do capital e a concepção de educação do campo construída como demanda histórica dos movimentos sociais populares.
As políticas de educação do campo, implementadas a partir da década de 1990, defendem o termo “educação do campo” e sua variante “educação profissional do campo”, não como um conceito em si mesmo, mas como uma concepção que marca o processo de conquista dos movimentos sociais na luta pela terra e, consequentemente, na garantia de direitos fundamentais, como educação, saúde, moradia e alimentação, (Molina, 2006, 2009; Esmeraldo, 2010). Em contrapartida, no mesmo cenário existem instituições, que, ao defenderem o termo “educação profissional rural”, firmam um “compromisso estratégico” na oferta de cursos e
programas de educação profissional a partir de “condicionamentos socioeconômicos relativos ao capital-trabalho”, como é o caso do SENAR. (SENAR, 2005, p.20).
Essas reflexões são necessárias para compreender melhor a arena de disputa de hegemonia de dois projetos societários para produção e difusão do conhecimento, operada através de seus intelectuais orgânicos. Neste sentido, é necessário compreender o conceito de “Estado Ampliado” e “intelectual orgânico”, a partir da teoria de Antônio Gramsci. Esta abordagem teórica é fundamental para entender a correlação de forças dos projetos hegemônicos em disputa no seio da sociedade civil, e o que cada um representa. Assim, de forma sintética, este artigo apresentará um breve estudo sobre a atuação dos intelectuais orgânicos na implementação de políticas de educação profissional do campo/rural, destacando as correlações de forças que são travadas no interior do Estado. Para tanto, analisaremos duas propostas de formação profissional: a atuação do Sistema Nacional de Aprendizagem Rural (SENAR) na implementação da política de formação profissional rural voltada para o Agronegócio e o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA) enquanto política pública específica de educação profissional do campo, construída com a participação dos movimentos sociais camponeses.
Para analisar o processo de disputa hegemônica no campo da educação profissional do meio rural no Brasil, é necessário compreender os conceitos de “Estado Ampliado” e “Intelectual Orgânico” e a articulação de posições políticas e ideológicas na correlação de forças antagônicas no seio da sociedade civil. Na sociedade moderna capitalista, a partir do pensamento de Gramsci, o Estado não pode ser tomado como sujeito, nem tampouco como objeto, numa visão reducionista de um “bloco monolítico de órgãos, vazios de atores sociais, portadores de interesses específicos e do qual emanam, de forma igualmente naturalizada, as inúmeras políticas públicas”, mas enquanto uma “condensação de relações sociais”, ou seja, atravessado pelo conjunto das relações de classe presentes na própria formação histórica, incorporando os conflitos vigentes na sociedade (MENDONÇA, 2007, p. 4).
Lamosa (2016, p. 40), ao aprofundar os aspectos teórico-metodológicos da relação entre Estado e Sociedade, aponta para a necessidade de analisar os nexos entre Estado, Classe Social e Educação. É inevitável, portanto, a análise sobre os processos de consolidação da hegemonia da classe dominante no Brasil, momento que consideramos importante para uma melhor compreensão sobre como se aplicam as políticas educacionais de formação profissional no contexto contemporâneo. Cabe destacar que nos últimos 30 anos a classe dominante foi defrontada com o desafio de exercer o poder em pleno período democrático. Esse processo altera consideravelmente a composição da sociedade civil, através de uma ampliação de partidos responsáveis pela formação de novos intelectuais que formulam e difundem a direção política de sua classe.
Para tanto, torna-se necessário compreender o significado de Estado Integral e sociedade civil, a partir das contribuições teóricas de Antônio Gramsci4, para explicar a forma como as classes se relacionam e exercem suas funções no interior do “bloco econômico”. (Simionatto, 2011, p. 47). Sua teoria define o Estado como sendo um dos dois grandes planos da superestrutura, sendo o outro a sociedade civil.
O Estado integral ou Estado ampliado5, indica a relação de unidade-distinção entre Estado e sociedade civil pra exprimir o que ele chama de “Estado em sentido orgânico e mais amplo (Estado propriamente dito e sociedade civil)”. Esses dois planos dialeticamente unidos no conceito de Estado Integral representam a contribuição de Gramsci à teoria do Estado, (GRAMSCI, 2007, p. 244).
Gramsci, no percurso de construção da sua teoria sobre o Estado, distingue dois conceitos de articulação do campo estatal: o Estado em sentido estreito (unilateral) e o Estado em sentido amplo (integral). Em sentido estreito, o Estado considera apenas a burocracia estatal, se identificando com o governo a partir de suas funções coercitivas e econômicas, como os órgãos governamentais,
4 Gramsci nasceu em 22 de janeiro de 1891, em Alles, uma pequena cidade agrícola da província de Cagliari, na região da Sardenha, ilha situada a oeste da península italiana. Seu pai era de origem albaneza e sua mãe de ascendência espanhola. Estudou nas escolas elementares de Ghilarza, onde freqüentavam também filhos de camponeses. Desde pequeno despertou o interesse pela leitura, se destacando nos estudos, que tiveram que ser interrompidos pela necessidade de trabalhar para ajudar sua família. Na juventude, desenvolve de rebelião e de indignação contra a classe burguesa e contra as injustiças sociais de seu tempo. A construção de seu pensamento se dá, na militância política e na luta das massas operárias e principalmente, durante o período em que esteve preso através da ação de Mussolini em 1926 (SIMIONATTO, 2011).
5 Expressão também utilizada por Buci-Glucksmann (1980) para definir Estado Integral.
secretarias, exército, polícia, administração. Em sua forma ampliada, o Estado pressupõe um equilíbrio entre a sociedade política e sociedade civil através de uma correlação de forças contraditórias (BUCI-GLUCKSMAN, 1980, p. 128).
No pensamento gramsciano, a sociedade política é formada pelo conjunto dos mecanismos através dos quais a classe dominante detém o monopólio legal da repressão e da violência e que se identifica com os aparelhos coercitivos ou repressivos de Estado, que são controlados pelas burocracias (Estado em sentido estrito, Estado-coerção). As classes exercem sempre uma dominação mediante coerção. A sociedade civil é formada pelas organizações responsáveis pela elaboração e/ou difusão das ideologias - igrejas, partidos políticos, escolas, sindicatos, organizações profissionais, mídia. (Estado ético). É por meio da sociedade civil que as classes buscam exercer sua hegemonia, (VIOLIN, 2006).
No Estado moderno, mais especificamente nas sociedades dominantes e hegemônicas em que o capitalismo de desenvolveu, a sociedade civil apresenta uma articulação mais complexa e o Estado torna-se cada vez mais amplo. O Estado tanto exerce suas funções coercitivas quanto desenvolve o plano ideológico e econômico. Segundo Gramsci (2007), o Estado não é sujeito, isto é, uma instituição que assume a responsabilidade sobre a sociedade e seus conflitos sociais, nem objeto, mas sim uma “condensação das relações sociais que estão presentes numa dada sociedade”, (BUCI-GLUCKSMAN, 1980; SIMIONATTO, 2011).
O conceito de hegemonia, a partir dos estudos de Gramsci será utilizado como importante ferramenta teórica para compreender o processo de construção das políticas de educação no campo no contexto histórico e político no Brasil, nos últimos anos. Este conceito será utilizado para entender que as classes sociais, neste caso, as classes que representam os sujeitos dos campos, como os movimentos sociais, organizações e populações camponesas, produzem e reproduzem ao longo da história as condições objetivas e subjetivas de sua existência, (LAMOSA, 2016. p. 20).
A ideologia começa como um sistema organizado de ideias produzidas pelas classes dominantes para que essa classe apareça como representante dos interesses de toda a sociedade, sendo que ao popularizar-se com a aceitação por parte dos dominados, chega-se ao que se Gramsci denomina de hegemonia, pois quando a classe em ascensão chega ao poder temos a aceitação, por parte de
todos os membros da sociedade, da ideologia dominante. É neste momento que as classes dominantes não dominam apenas os meios materiais da sociedade (meios de produção e o Estado), mas também suas ideias são aceitas por toda a sociedade.
A ideologia é, portanto, a imaterialidade da luta de classes. É sinônimo dos mecanismos utilizados pelas classes dominantes, que envolvem um conjunto de artifícios e práticas sociais, para manter a dominação e camuflar a existência do antagonismo de classes. A luta de classes não se manifesta apenas no confronto direto e material entre as classes sociais, mas por meio de um conjunto de procedimentos institucionais, jurídicos, políticos, policiais, pedagógicos etc. que são utilizados pela burguesia a fim de manter a sua dominação. (CAMACHO, 2014).
A ideologia da classe dominante é produzida/reproduzida pelos seus intelectuais orgânicos no seio da sociedade política (Estado) e da sociedade civil, ou a partir de ações governamentais ou através de propostas construídas no interior dos movimentos sociais reacionários. A classe dominante, que domina os meios materiais e imateriais da sociedade, exerce sua influência, maior do que as classes subalternas, sobre o Estado capitalista, sobre os meios de comunicação, sobre o setor produtivo, sobre a academia. A classe burguesa se utiliza de diversos meios, inclusive do Estado, para disseminar a sua ideologia que justifica a dominação das camadas subalternas, (CAMACHO, 2014).
Os intelectuais orgânicos atuam na sociedade civil, dadas as características gerais e as condições de formação, de vida e de desenvolvimento do grupo social dado, diretamente no campo político e filosófico, e não no campo da técnica produtiva, (GRAMSCI, 2001, p. 24).
Na sociedade moderna, o enorme desenvolvimento obtido pela atividade e pela organização escolar indica a importância assumida pelas categorias e funções intelectuais: assim como se buscou aprofundar e ampliar a “intelectualidade” de cada indivíduo, buscou-se igualmente multiplicar as especializações e aperfeiçoá- las. Isso resulta das instituições escolares de graus diversos, até os organismos que visam a promover a chamada “alta cultura”, em todos os campos da ciência e da técnica, (GRAMSCI, 2001).
Esta análise de Gramsci sobre o papel dos intelectuais orgânicos no seio das instituições de formação profissional torna-se necessária para uma melhor compreensão sobre o processo de disputa hegemônica entre as concepções de
Educação Profissional do Campo e Educação Profissional Rural, pois envolve diversos atores no processo de formação profissional de estudantes, trabalhadores e trabalhadoras do campo. Sobre a necessidade dessa análise, Gramsci faz a seguinte comparação:
Na esfera da técnica industrial: a industrialização de um país se mede pela sua capacidade de construir máquinas que construam máquinas e pela fabricação de instrumentos cada vez mais precisos para construir máquinas e instrumentos que construam máquinas, etc. O país que possuir a melhor capacitação para construir instrumentos destinados aos laboratórios dos cientistas e para construir instrumentos que verifiquem estes instrumentos, este país pode ser considerado o mais complexo no campo técnico-industrial, o mais civilizado, etc. O mesmo ocorre na preparação dos intelectuais e nas escolas destinadas a tal preparação: escolas e instituições de alta cultura são similares. (GRAMSCI, 2001, p. 19).
É importante reconhecer que as políticas públicas realizadas no “Estado estreito” são resultado da força política de determinadas frações de classe e que estas se organizam na sociedade civil em “aparelhos privados de hegemonia”. Antônio Gramsci denomina como aparelhos privados de hegemonia ou instituições culturais: a escola, a Igreja, os jornais e os meios de comunicação de maneira geral. Assim, ao abordar a hegemonia como direção intelectual e moral:
[...] afirma que essa direção deve exercer-se no campo das ideias e da cultura, manifestando a capacidade de conquistar o consenso e de formar uma base social. Isso porque não há direção política sem consenso. A hegemonia pode criar, também, a subalternidade de outros grupos sociais que não se refere apenas à submissão à força, mas também às ideias. Não se pode perder de vista que a classe dominante repassa a sua ideologia e realiza o controle do consenso através de uma rede articulada de instituições culturais. (SIMIONATTO, 2011, p. 49).
Gramsci (1999, p. 399), ao destacar que “toda relação de hegemonia é necessariamente uma relação pedagógica”, evidencia que o Estado Moderno cumpre uma função educativa que se traduz em ações concretas, tanto nas agências estatais, quanto na sociedade, resultado da disputa e dos embates entre interesses antagônicos de classe. Na esfera da sociedade civil, tal embate se traduz na disseminação e multiplicação de organismos que cumprem uma dupla e complexa tarefa: harmonizar os interesses das classes e frações de classe, como também, organizar e organicizar as proposições aos interesses particulares da classe dominante, (SIMIONATTO, 2011; LAMOSA, 2016).
No caso específico da educação profissional do campo/rural enquanto concepção em disputa, o estudo apresenta diferentes leituras constituídas a partir de diferentes paradigmas que incluem distinções de teoria, metodologia, método, perspectiva política, ideológica de intelectuais orgânicos que conceituam essa proposta. Estas concepções levam a construção de diferentes paradigmas que se contrapõem ou dialogam dialeticamente na produção do conhecimento científico sobre a questão agrária, (CAMACHO, 2014).
Compreende-se a Educação Profissional Rural versus Educação Profissional do Campo como um campo em disputa de projetos hegemônicos antagônicos6 – um voltado para o capital e o outro enquanto projeto de educação do trabalhador do campo como resistência ao modo de produção existente. Assim, temos uma concepção de agricultura voltada para o Agronegócio, tendo como lógica o trabalho para reprodução do capital, chamada de “agricultura capitalista” ou “agronegócio”, e no outro polo, uma agricultura voltada para a produção de alimentos como lógica do trabalho para a reprodução da vida, que no contraponto vem sendo identificada como “agricultura camponesa”, (CALDART, 2010; ABRAMOVAY, 2007; CAMACHO, 2014).
A proposta metodológica de educação profissional rural formulada pelo Serviço Nacional de Aprendizagem (SENAR) no interior da sociedade civil, assim como outras propostas de educação profissional destinadas às populações do campo, apresenta características específicas de concepção de educação, com elementos que sustentam a agricultura do Agronegócio. Esta concepção debate sobre “a metamorfose do campesinato7 em agricultor familiar”. Os camponeses, ao
6 Alguns estudos fazem uma análise mais detalhada a partir dos Paradigmas da Educação do Campo: Paradigma do Capitalismo Agrário - voltado para o capital e para a defesa do Agronegócio e o Paradigma da Questão Agrária, enquanto projeto de educação do trabalhador do campo como resistência ao modo de produção existente. Assim, temos no primeiro paradigma uma agricultura voltada para o negócio, hoje tendo como lógica o trabalho para reprodução do capital, chamada de “agricultura capitalista” ou “agronegócio”, e no outro, uma agricultura voltada para a produção de alimentos como lógica do trabalho para a reprodução da vida, que no contraponto vem sendo identificada como “agricultura camponesa” (CALDART, 2010; ABRAMOVAY, 2007; CAMACHO, 2014).
7 Campesinato é um conjunto de famílias camponesas existentes em um território. Assim, as famílias camponesas existem em territórios, isto é, no contexto de relações sociais que se expressam em
romperem com a questão agrária como movimento de luta e resistência, nem vão se proletarizar nem se transformar em capitalistas. Mas também não continuarão existindo como camponeses, pois as relações camponesas são incompatíveis com as relações de mercado capitalista. Assim, estes sujeitos sofrerão uma metamorfose a partir da sua integração plena ao capital, auxiliados pelas políticas públicas, e se tornarão os agricultores mais eficientes de nossa época. Portanto, ao se transformarem em ex-camponeses, passaram a ser denominados de agricultores familiares, por serem profissionais, modernos, integrados etc. Criando, assim, uma dicotomia na qual o arcaico, ineficiente, miserável e condenado a desaparecer é o camponês; e o moderno, eficiente, próspero e compatível com o mercado é o agricultor profissional, (CAMACHO, 2014; ABRAMOVAY, 2007).
A recomposição da hegemonia burguesa, sob a direção do setor financeiro nacional e internacional, possibilitou a integração subordinada do Brasil na nova divisão internacional do trabalho. Isso amplia a internacionalização da economia nacional em todos os setores de atividade, a partir da difusão de uma cultura de competitividade, racionalização e redução dos custos do Estado, redefinindo as relações entre aparelhagem estatal e sociedade civil, (NEVES, 2010).
Neste contexto, com o restabelecimento da hegemonia burguesa no país, ao longo do processo de redemocratização e progresso das forças produtivas do capitalismo,
novas e renovadas organizações sociais empresariais contribuíram para a difusão de uma visão da sociedade civil como "reino do bem", ou espaço democrático isento de conflitos e contradições entre as classes sociais, dirigindo o processo de conversão de intelectuais e projetos societários ligados aos interesses da classe trabalhadora na direção hegemônica do capital. (NEVES, 2010 p. 82).
A luta pela hegemonia em torno da Educação Profissional no meio rural no país é marcada por embates entre a classe dominante e a classe trabalhadora camponesa. Assim, a proposta de formação profissional pelo Sistema Nacional de Aprendizagem Rural (SENAR) defende a hegemonia do agronegócio, derrotando um modelo de assistência técnica e produção tecnológica voltada à agricultura familiar e ao pequeno produtor.
regras de uso (instituições) das disponibilidades naturais (biomas e ecossistemas) e culturais (capacidades difusas internalizadas nas pessoas e aparatos infraestruturais tangíveis e intengíveis) de um dado espaço geográfico politicamente delimitado. (CALDART, 2012, p. 113).
O Serviço Nacional de Aprendizagem Rural é uma instituição criada pela Lei Federal nº 8.315 de 23 de dezembro de 1991, e regulamentado pelo Decreto Federal nº 566/92, como entidade de direito privado, paraestatal, mantida pela classe patronal rural, vinculada à Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) e administrada por um Conselho Deliberativo tripartite. (LINHARES, 2017). O SENAR tem características semelhantes às demais instituições do Sistema S 8, mas com identidade própria e singular. Suas ações e atividades são voltadas ao trabalhador e produtor rural e às pessoas ligadas direta ou indiretamente aos processos produtivos agrossilvipastoris9, contribuindo para o desenvolvimento sócio- econômico do meio rural, (SENAR, 2016b).
Ao analisar as edições da Série Metodológica do SENAR, identificamos elementos teórico-metodológicos de extrema relação com a concepção de educação rural. Os princípios e diretrizes do processo de “Formação Profissional Rural (FPR)”, assim denominado pela instituição, apresentam conceituações próprias de vinculação direta ao desenvolvimento do modo de produção capitalista na agricultura. Nota-se uma intensa participação de intelectuais orgânicos constituída por profissionais de universidades e outras entidades nacionais que colaboraram através de consultoria e fornecendo apoio conceitual e metodológico para a formação profissional rural, (SENAR, 2016a; 2016b).
No aspecto conceitual, o SENAR defende a utilização do termo “Educação Profissional Rural” como sendo
[...] um processo educativo, sistematizado, que se integra aos diferentes níveis e modalidades da educação e às dimensões do trabalho, da ciência e da tecnologia, objetivando o desenvolvimento de conhecimentos, habilidades e atitudes para a vida produtiva e social, atendendo às necessidades de efetiva qualificação para o trabalho com perspectiva de elevação da condição sócio profissional do indivíduo. (SENAR, 2016a, p. 25).
8 O Sistema S é um conjunto de organizações das entidades corporativas voltadas para o treinamento profissional, assistência social, consultoria, pesquisa e assistência técnica, com características organizacionais similares, tais como: Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI); Serviço Social do Comércio (SESC); Serviço Social da Indústria (SESI); Serviço Nacional de Aprendizagem do Comércio (SENAC). Existem outras instituições com características similares: Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (SENAR); Serviço Nacional de Aprendizagem do Cooperativismo (Sescoop); e Serviço Social de Transporte (SEST).
9 Sistema Agrossilvipastoril é uma modalidade de integração que contempla os componentes agrícola, pecuário e florestal. Ver em http://www.sif.org.br/noticia/ilpf--o-que-e-integracao-lavoura- pecuaria-floresta. Acesso em 30 de junho de 2018.
De acordo com a metodologia educacional do SENAR, a FPR deve vislumbrar o aumento da renda do trabalhador, da capacidade de autogestão no trabalho, da autonomia, pró-atividade e empregabilidade, bem como promover o aumento da qualidade de produtos, processos e a produtividade do setor, de acordo com os princípios de sustentabilidade ambiental, social e econômica, (SENAR, 2016a, p. 25).
Os conceitos utilizados se relacionam diretamente com “setor produtivo rural” e as necessidades do “mercado de trabalho”, termos utilizados com frequência nas edições da Série Metodológica e cartilhas de divulgação da instituição. Como proposta de FPR, o SENAR oferta “cursos estruturados para atender a demanda de formação para os setores produtivos e de gestão da agropecuária, orientados por resultados de pesquisas de investigação das necessidades do mercado de trabalho”, (SENAR, 2016a).
A partir de 1995 o SENAR amplia suas ações e atividades de Formação Profissional Rural, por meio de convênios e ou parcerias nacionais e internacionais com diversas instituições10. Dentre elas, destacamos a parceria com o Ministério da Educação (MEC), a fim de desenvolver programa de educação à distância e implementar o programa de educação profissional para trabalhadores rurais sem escolaridade; e o Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec) 11, para promover cursos de nível técnico e de Formação Inicial e Continuada (FIC) para o meio rural, (SENAR, 2016b).
O SENAR atua nas 27 administrações regionais do Brasil, na oferta de cursos e formações técnicas específicas visando à profissionalização do meio rural. A partir de 2013 adere à Rede e-Tec Brasil, com o objetivo de ofertar educação profissional e tecnológica à distância, cumprindo com o propósito de ampliar e democratizar o acesso a cursos técnicos de nível médio, públicos e gratuitos, em regime de colaboração entre União, estados e Distrito Federal, (LINHARES, 2017).
10 Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), para produzir o vídeo institucional “O grito do SENAR” ; Universidade Federal de Viçosa (UFV), para disseminação de metodologias educativas e elaboração de conteúdos técnicos; Serviço Brasileiro de Apoio às Pequenas e Médias Empresas (SEBRAE), para implantar programas nas áreas de tecnologia, administração rural, cadeias industriais e formação de micro e pequenos empreendedores rurais; Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), para alfabetizar adultos nas áreas rurais do país; Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE) e o SEBRAE, na oferta de cursos de formação profissional aos trabalhadores sem escolaridade do Nordeste; Agência Brasileira de Cooperação (ABC), Ministério das Relações Exteriores (MRE) e o Instituto do Desenvolvimento Agrário (IDA) e o Governo Angolano, para levar a metodologia SENAR ao Continente Africano.
11 Programa criado pela Lei nº 12.513 de 26/10/2011, publicado no D.O.U. de 27/10/2011, p. 1.
De acordo com o relatório de atividades do SENAR, em 2014 a instituição teve 2 milhões e 700 mil brasileiros atendidos, com 53.000 matrículas em cursos do PRONATEC e um investimento de R$ 79 milhões nesses cursos distribuídos em 953 municípios do território nacional. Em 2016, houve uma ampliação nesse atendimento: 3 milhões e 400 mil brasileiros atendidos, com 115.000 matrículas de educação à distância e 5.400 matrículas de educação formal técnica de ensino médio, (SENAR, 2014; 2016c).
Linhares (2017), ao fazer um estudo sobre a investidura de entidades ligadas ao setor agrário, apresenta o SENAR enquanto instituição organizacional que está fortemente ligada a uma perspectiva de “desenvolvimento agrícola” vinculada ao agronegócio e à imposição de uma política econômica de submissão do campo ao latifúndio e uso de agrotóxicos e transgênicos. Seu projeto de educação profissional rural está fundamentado no reforço do empreendedorismo individual, a partir de metodologia de ensino própria: a Assistência Técnica Gerencial (ATeG) com Meritocracia. Esta proposta metodológica está fundamentada em quatro pilares específicos: a adequação tecnológica, a capacitação, a gestão e a meritocracia. A ATeG se organiza na produção de outros cinco projetos: o Assistência Técnica e Gerencial Projeto Rural Sustentável; o Assistência Técnica e Gerencial do Rural à Mesa; o Programa Especial SENAR em Campo; o SENAR em Campo – Histórias de Sucesso e o Assistência Técnica e Gerencial Mapa Leite. Neste sentido, o SENAR, enquanto instituição educacional viria a ser
um espaço de reprodução de uma ordem estabelecida por uma classe específica para conquista e manutenção de hegemonia ao promover, inclusive, parcerias com Institutos Federais de Educação reforçando sua entrada na formação de estudantes por todo o país. É neste sentido que a própria “missão” instituída pelo SENAR se apresenta em forma de mensagens motivacionais e justificativas através do discurso em prol da sustentabilidade e avanços sociais no campo, ao mesmo tempo em que avança na ideia de competitividade aos moldes empreendedores. Essas três diretrizes estariam intimamente ligadas a partir da realização de ações diretas visando a “formação profissional, assistência técnica e promoção social”, como podemos ver cristalizado nas maneiras de atuação da entidade. (LINHARES, 2017, p. 6).
O SENAR, enquanto visão hegemônica de liderança socioeconômica e política de setores empresariais, configura-se como
uma representação da classe proprietária dos meios de produção e, desse modo, promotora de determinada visão social e ideológica sobre educação e formação profissional, supostamente necessária
aos mecanismos de funcionamento da sociedade, produzindo políticas formativas capazes de atender aos seus interesses imediatos e, contraditoriamente, negar o atendimento coletivo das necessidades educativas e culturais para o conjunto da população. (DEITOS e LARA, 2016).
Neste sentido, a funcionalidade reivindicada pelos setores empresariais e pelas instituições orgânicas de gestão do capital evidencia a difusão de um diagnóstico da deficiência do próprio sistema educacional para atender aos requerimentos socioeconômicos modernizantes, ancorados no discurso do novo desenvolvimento. Assim, as políticas de educação profissional rural estão submissas aos ditames das orientações teórico-ideológicas hegemônicas, com fundamentos educacionais que resultam em um discurso propositivo e relativamente crítico, mas, na disputa das forças internas e externas aos ditames da política nacional, suplantado pelo discurso hegemônico, fechando o circuito de orientações das políticas socioeconômicas e educacionais adotadas, (DEITOS e LARA, 2016).
Na concepção de Educação Profissional Rural, a agricultura de base familiar moderna se diferencia da agricultura camponesa por apresentar as seguintes características: a natureza empresarial, o dinamismo técnico, a capacidade de inovação, a integração plena ao mercado e a capacidade de responder à intervenção do Estado. Nesse caso, a formação profissional e a inovação são requisitos que separaram a agricultura arcaica, camponesa, da moderna, familiar, (ABRAMOVAY, 2007; CAMACHO, 2014).
A análise da construção dos conceitos de “Educação Profissional do Campo” e “Educação do Campo” é formada por intelectuais orgânicos que defendem a “questão agrária” como um problema estrutural, logo, poderá ser resolvida a partir da luta contra o capitalismo. Nesta concepção, com o desenvolvimento do capitalismo no campo ocorre uma inevitável destruição do campesinato, mas a partir de um movimento desigual e contraditório. Assim, o campesinato é uma classe social e um modo de vida heterogêneo e complexo inerente à contradição do modo de produção capitalista e não um resíduo social em vias de extinção, na qual se recria por meio da luta pela terra na resistência ao capital, (CAMACHO, 2014).
A resistência é um conceito presente na concepção de Educação do Campo, na perspectiva do debate da permanência camponesa pela luta na/pela terra- território. Esse movimento se vincula às abordagens de destruição e recriação do campesinato e seus territórios, sendo a resistência “todo embate do campesinato frente às condições impostas pelo capital, quer seja desterritorializando/proletarizando ou monopolizando o território camponês”. Portanto, a característica marcante que delimita o processo de disputa hegemônica e antagonismo dialético entre a Educação Profissional Rural e Educação Profissional do Campo é a afirmação da luta de classe, e, consequentemente, o envolvimento dos movimentos sociais camponeses como parte inerente dessa luta, (CAMACHO, 2014; ABRAMOVAY, 2007).
Neste sentido, analisando o contexto das políticas públicas de educação profissional do campo no Brasil, cabe ressaltar as experiências educativas na educação profissional pautadas por outros movimentos que não sejam o da reprodução das desigualdades sociais. Isto é, uma educação profissional do campo que não seja pensada para o campo, mas sim com os povos do campo, sendo construída com a participação dos movimentos de trabalhadores no contexto das lutas pela Reforma Agrária, pela terra e pelos direitos sociais, políticos e culturais.
A concepção de educação empregada pela classe dominante e a barbárie provocada pela implantação violenta do modelo capitalista de agricultura provocam o aumento da desigualdade social das famílias trabalhadoras do campo. Assim, ao mesmo tempo em que se confirma a ausência de políticas públicas que garantam o direito à educação para os camponeses e trabalhadores do campo, por outro lado, ampliam-se a participação dos movimentos sociais no cenário das lutas e embates políticos, enquanto sujeitos coletivos que reagem a esta situação social. Torna-se urgente pensar em uma outra concepção de campo e de projeto de desenvolvimento que sustente a qualidade de vida da população que vive e trabalha no campo, (CALDART, 2004).
Para Caldart (2004), o desejo por uma nova concepção de educação com os sujeitos do campo se constitui a partir de uma contradição entre a agricultura capitalista e a educação do campo, uma vez que o modelo capitalista sobrevive da exclusão e morte dos camponeses. Com o processo de industrialização, as necessidades da população do campo foram deixadas em segundo plano,
prevalecendo a produção em larga escala para exportação e consumo, desvalorizando e inferiorizando o trabalho manual do camponês.
O modelo de escola rural proposto pelas políticas públicas vinculadas ao capitalismo se fundamenta na divisão entre campo e cidade, na expropriação da terra, dos meios de subsistência e da força de trabalho do camponês. Nesse modelo de desenvolvimento, que considera o Brasil apenas como mais um mercado emergente, camponeses e indígenas são vistos como espécies em extinção, não havendo necessidade de políticas públicas específicas para estas pessoas. Bastaria um tipo de política pública compensatória à sua própria condição de inferioridade e/ou diante das pressões sociais, (ARROYO, 2011, p.21).
As práticas de educação do campo são marcadas pelas contradições existentes no cenário das políticas públicas. Houve avanços e recuos no enfrentamento das políticas neoliberais para a educação e para a agricultura, na disputa do espaço público e da direção político-pedagógica de práticas e programas, assim como na atuação das diferentes organizações de trabalhadores, conforme o cenário das lutas mais amplas e da correlação de forças de cada momento, (CALDART, 2012 p. 262).
É neste contexto de exclusão dos povos do campo, e ao mesmo tempo um espaço de lutas e disputas, que nasce, ainda na década de 1990, o movimento “Por uma Educação do Campo”, com o objetivo de garantir os direitos educativos dos sujeitos do campo, sendo um ponto de partida para um conjunto de reflexões sociais.
A partir da realização do I Encontro Nacional de Educadores da Reforma Agrária (Enera), realizado em 1997, ocorre uma série de desdobramentos no campo das políticas públicas, como a criação do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera), oficializado em 16 de abril de 1998, o surgimento da Articulação Nacional por uma Educação do Campo e a elaboração pelo Conselho Nacional de Educação (CNE) das Diretrizes Operacionais para Educação Básica das Escolas do Campo.
A I Conferência Nacional “Por uma Educação do Campo”, ocorrida em 1998, em Luziânia - Goiânia, planejada durante o I Enera, é considerada um marco para o reconhecimento do campo enquanto espaço de vida e de sujeitos que reivindicam sua autonomia e emancipação. No processo de organização do documento de
subsídio para a I Conferência, e durante os debates ocorridos nos encontros estaduais que antecederam o evento nacional, estão os argumentos do batismo do conceito “Educação do Campo”:
Decidimos utilizar a expressão campo e não a mais usual meio rural, como o objetivo de incluir no processo da Conferência uma reflexão sobre o sentido atual do trabalho camponês e das lutas sociais e culturais dos grupos que hoje tentam garantir a sobrevivência deste trabalho. Mas quando discutimos a educação do campo estamos tratando da educação que se volta ao conjunto dos trabalhadores e das trabalhadoras do campo, sejam os camponeses, incluindo os quilombolas, sejam as nações indígenas, sejam os diversos tipos de assalariados vinculados à vida e ao trabalho no meio rural. (ARROYO, 2011, p. 25, grifos do autor).
Caldart (2012, p. 257), ao aprofundar o conceito de Educação do Campo, destaca o protagonismo dos movimentos sociais camponeses no batismo originário deste termo, ajudando a compreender o que essencialmente essa experiência é e na consciência de mudança que assinala e projeta para além dela mesma. Este novo conceito substitui, portanto, o que é denominado de educação rural. Diante deste contexto de luta e resistência camponesa, o Pronera12 foi fundamental para promover melhorias na vida dos sujeitos camponeses, na medida em que considerou as diversas práticas e experiências pedagógicas desenvolvidas pelas diversas organizações sociais e universidades.
O Pronera foi criado como estratégia política para incluir jovens e adultos assentados excluídos das políticas públicas de educação do governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), governo este que mais se ocupou em racionalizar gastos públicos e reformou o ensino a partir de uma visão economicista. A participação dos movimentos sociais na elaboração do Programa foi muito significativa na consolidação de políticas públicas para o Estado, que historicamente vinha menosprezando as demandas e as especificidades educacionais do campo. (MOLINA, 2009).
Pensando na ampliação do conceito de educação do campo enquanto espaço de luta e resistência dos movimentos sociais, outro desafio é proposto com o objetivo de firmar esse conceito também no contexto da educação profissional no Brasil. Na conjuntura de uma política de expansão da Educação Profissional a partir
12 Criado em 1998, por meio da Portaria nº 10/98, através do Ministério Extraordinário da Política Fundiária, foi incorporado ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), em 2001, por meio da Portaria nº 837/2001.
da Lei nº 11.892, de 29 de dezembro de 2008, com a criação dos Institutos Federais e da Rede de Educação Profissional e Tecnológica, em novembro de 2009, em Brasília, ocorre o I Fórum Mundial de Educação Profissional e Tecnológica (FMEPT). Durante a realização deste do I FMEPT, a conferencista Roseli Caldart (2010), na mesa de debate sobre “Educação Profissional do Campo” (com a Conferência “Educação, Ética, Inclusão e Diversidade”), apresenta uma síntese propositiva de conceitos e compreensões fundamentais de uma concepção de educação profissional que vise interpretar e orientar a construção de práticas e políticas voltadas para a formação de trabalhadores inseridos nos processos de produção agrícola. Sua proposta tem como base
[...] as experiências e reflexões feitas no âmbito da Educação do Campo, notadamente em torno de práticas dos Movimentos Sociais Camponeses em diálogo com o debate atual sobre educação profissional, nos seus vínculos necessários tanto com a educação básica quanto a educação superior. A perspectiva da abordagem é a de pensar a formação dos trabalhadores, considerados como classe e como sujeitos de um projeto histórico com objetivos de justiça, igualdade social e emancipação humana. (CALDART, 2010, p. 229).
O texto-síntese apresenta uma breve descrição do conceito de “Educação Profissional do Campo”, construído a partir de documentos e debates em seminários realizados no contexto de discussão das políticas e experiências do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera)13. Caldart apresenta a seguinte definição:
Compreendemos a “Educação Profissional do Campo”, expressão que está na chamada desta mesa, como indicadora aqui de uma reflexão sobre educação profissional feita desde os parâmetros político-pedagógicos da Educação do Campo. A ideia fundamental na compreensão da perspectiva desta proposição é de que não se trata de pensar uma educação profissional em separado do campo, específica para seus sujeitos e fragmentada do debate geral (isso seria desastroso em relação aos objetivos de transformação social e de emancipação humana que nos orientam), mas sim trazer para o debate geral de concepção e de políticas de educação profissional questões que têm sido formuladas desde a realidade, esta sim específica, do trabalho no campo, dos embates de projetos de
13 Caldart (2010), destaca três textos importantes que serviram de base para a elaboração da síntese: “Documento do Seminário sobre Educação Profissional para as Áreas de Reforma Ágrária da Região Sul: que educação profissional, para que trabalho e para que campo? Cadernos do Iterra, ano VII, nº 13, setembro de 2007, p. 179-2001”; “Educação do campo: notas para uma análise de percurso”. Revista Científica da EPSJV/FIOCRUZ, Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.7, n.1, p. 35- 64, mar./jun. 2009; e “Educação Profissional no contexto das áreas de reforma agrária”, documento elaborado para o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera), dezembro 2008.
desenvolvimento, de modos de fazer agricultura e das experiências de formação profissional dos seus sujeitos. (CALDART, 2010, p. 30).
O Pronera, como política de educação profissional do campo, tem como público-alvo jovens e adultos pertencentes às famílias beneficiárias de Projetos de Assentamentos da Reforma Agrária criados ou reconhecidos pelo INCRA e do Programa Nacional de Crédito Fundiário (PNCF), buscando assim, atender as especificidades das demandas educacionais das comunidades assentadas. Assim, como política pública focada no desenvolvimento dos assentamentos da reforma agrária, o Pronera proporcionou aos assentados acesso aos diversos níveis de escolaridade, através de parcerias com governos municipais e estaduais, instituições de ensino públicas e privadas sem fins lucrativos e movimentos sociais e sindicais de trabalhadores rurais. As características assumidas pelo Pronera se integram à política de educação do campo, no desenvolvimento de projetos de educação de jovens e adultos, de formação continuada de professores de áreas de reforma agrária e de formação profissional de nível técnico ou superior para jovens e adultos de áreas de reforma agrária, (GONÇALVES, 2016).
Para a implementação de políticas de educação profissional do campo é preciso romper com o projeto hegemônico de desenvolvimento do campo existente no Brasil. Este se apresenta como um projeto de expansão do capitalismo no campo, tendo como característica principal o controle da agricultura pelo capital financeiro internacionalizado14. Tem como traço fundamental de seu paradigma a crescente artificialização da agricultura, transformando-a num ramo da indústria e subordinando a natureza aos interesses de empresários capitalistas. (CALDART, 2010).
Cabe destacar que apesar dos avanços na implementação de políticas de educação agrária nos últimos anos, a educação profissional do campo ainda enfrenta muitos percalços, pois:
Não basta a formalização de diretrizes e de programas para a efetivação do direito à educação dos povos do campo. É necessário que haja um acompanhamento das organizações sociais no desenvolvimento dos programas, pois políticas públicas como o Pronera, por se tratarem de prestações devidas pelo Estado, exigem a liberação dos recursos. Assim, a cada exercício orçamentário as pressões devem ser retomadas, para garantir a execução dessas políticas. (GONÇALVES, 2008, p. 385).
14 Ver Caldart (2010, p. 231).
Nesse viés, os movimentos sociais continuam desempenhando um importante papel de atores político-sociais na representação de interesses sociais legítimos. As políticas públicas em educação do campo exigem um altíssimo grau de organização, conscientização dos sujeitos, coerência com os valores e princípios defendidos pelos movimentos sociais, devendo ser vistas como possibilidades de formação política e identitária, lutas e resistências. A multiplicação, cada vez mais acentuada, dos debates acerca da educação do campo nos encontros regionais, estaduais e nacionais, são fundamentais para os movimentos sociais enfrentarem as dificuldades de implementação das políticas públicas (Bicalho, 2018). A finalidade da educação profissional na perspectiva da educação do campo
é a formação do trabalhador e da trabalhadora rurais com competência para enfrentar os desafios da produção e da vida contemporânea. Esse aprendizado articula-se com o trabalho cooperativo e com uma produção em harmonia com os seres humanos e a terra, tendo como meta a constituição de relações sociais democráticas e solidárias. Os movimentos sociais populares rurais/do campo não querem hoje apenas uma escola das quatro séries iniciais, mas exigem educação infantil, educação básica, educação profissional e ensino superior direcionados à produção familiar e à cultura dos povos do campo. (RIBEIRO, 2013, p. 196).
No contexto contemporâneo, portanto, pensar a educação profissional do campo implica assumir a existência do contraponto de lógicas, preparando os trabalhadores para a análise da realidade e das contradições reais envolvidas. Portanto, “é do enfrentamento das questões centrais colocadas pelo contraponto de lógicas que se projetam novidades qualitativas para o debate da educação profissional e da educação dos trabalhadores como um todo”, (CALDART, 2010).
O movimento dialético no interior da sociedade moderna capitalista através dos aparelhos privados de hegemonia e a formação de seus intelectuais orgânicos, se materializou, neste trabalho, com o estudo conceitual dos termos “educação profissional rural” e “educação profissional do campo”. A luta de classes está presente em todas as ações e procedimentos dos dominantes e dominados para manter ou destruir a dominação. Logo, as ideologias educacionais apresentadas como “modernas” estão cada vez mais presentes nas propostas metodológicas de
formação profissional para as populações campesinas. A luta pela hegemonia no contexto da educação profissional do campo/rural está marcada por embates no interior da classe dominante.
Para Camacho (2014), estes embates nascem da busca de relacionarmos a teoria com a realidade. É esta busca constante que cria os paradigmas, com suas teorias, métodos, metodologias e ideologias, constituindo-se em formas distintas de explicação da realidade. Assim, as diferentes interpretações, como é o caso do conceito de “educação profissional do campo” e “educação profissional rural”, geram disputas na criação e destruição dos movimentos sociais, das políticas públicas, das pesquisas acadêmicas. Entretanto, a ausência da disputa entre concepções antagônicas não permite o avanço do conhecimento científico, que necessita do diálogo e da refutação entre diferentes grupos de intelectuais orgânicos.
O conceito de “educação profissional rural” a partir da proposta metodológica do SENAR, e o conceito de “educação profissional do campo” construído no interior dos movimentos sociais, apresentam-se como perspectiva para análise das sociedades contemporâneas e a correlação de forças inseridas no Estado brasileiro. Para tanto, torna-se necessário analisar a inserção de instituições de educação profissional e a consequente ampliação de vagas em cursos técnicos voltados para o agronegócio e a agroindústria15, propostas em ações governamentais, que na maioria das vezes, não são discutidas com a sociedade, tão menos com os movimentos sociais.
Na contramão dessa política, os programas educacionais de Reforma Agrária sofrem com a escassez e a redução de verbas para a formação profissional dos assentados. Nos últimos 20 anos, mais de 186 mil estudantes fizeram cursos de alfabetização e pós-graduação em 100 instituições de ensino distribuídas nos diversos municípios do Brasil por meio do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária. Em 2017, o número de estudantes novos do programa diminuiu consideravelmente. Os recursos orçamentários para a educação no campo
15 No estudo intitulado “Dinheiro Público, Oferta Privada: a dinâmica do financiamento e da oferta de educação profissional no Sistema S”, o autor destaca a ação estatal voltada ao mesmo tempo para o financiamento do setor privado e à desresponsabilização com a manutenção dos sistemas públicos. (PEREIRA e AMORIM 2015).
diminuíram de 70 milhões de reais em 2008 para menos de 12 milhões no ano de 2017.16
O Pronera representa uma das grandes conquistas da luta dos movimentos sociais, possibilitando que milhares de camponeses e assentados da Reforma Agrária tenham acesso à educação escolar e permitindo, ao mesmo tempo, a troca de experiência e aprendizados com as Universidades, Institutos Federais e instituições parceiras. Mas o grande desafio é garantir que o programa se torne uma política pública permanente e possa ser ampliado a todos os sujeitos do campo, garantindo, a partir da luta dos movimentos sociais, o respeito à realidade e às especificidades da luta pela terra e pela educação pública e gratuita.
A Educação Profissional do Campo não pode ser pautada nas políticas públicas apenas como uma “escola agrícola”, pois ela inclui a preparação para diferentes profissões que são necessárias ao desenvolvimento do território, onde a base do desenvolvimento está na agricultura, mas sem desconsiderar que a produção agrícola é a base da reprodução da vida. Por este motivo, esta educação deve centralizar-se na formação para o trabalho do campo, ou seja, fundamentalmente preparar trabalhadores para o enfrentamento do contraponto de paradigmas, o que inclui uma compreensão teórica rigorosa da realidade atual, especialmente das contradições reais envolvidas no embate de projetos. Que esta formação profissional contemple não apenas um preparo científico e tecnológico a partir de sua realidade, mas também, que leve os trabalhadores a compreender cientificamente os fundamentos da própria polarização, para que estes assumam o desafio da construção teórico-prática do projeto alternativo, (CALDART, 2010).
ABRAMOVAY, R. Paradigmas do Capitalismo Agrário em Questão. 3ª. edição
- São Paulo: Edusp, 2007.
ARROYO, M. G. et al. Por uma educação do campo. 5ª ed. Petrópolis: Vozes, 2011.
16 Informação divulgada pela Câmara dos Deputados – Brasília – DF, 2018. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/radio/materias/RADIOAGENCIA/559045-MEC-DIZ-QUE- REDUCAO-DE-INVESTIMENTOS-NO-CAMPO-SE-DEVE-A-CORTES-NO-ORCAMENTO.html
BICALHO, R. Interfaces da educação do campo e movimentos sociais: possiblidades de formação. Revista Pedagógica.V. 20, N. 43, Jan/Abri. 2018.
BUCI-GLUCKSMANN, C. Gramsci e o Estado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.
CALDART, R. S. (org.). Dicionário da Educação do Campo. 2 ed. Rio de Janeiro, São Paulo: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Expressão Popular, 2012.
. Elementos para construção do projeto político e pedagógico da educação do campo. In: MOLINA, M. C; JESUS, S. M. S. A. (org.). Por uma educação do campo: contribuições para a construção de um projeto de educação do campo. V. 5. Brasília: articulação nacional por uma educação do campo, 2004, p. 10 – 31.
. Educação Profissional na perspectiva da Educação do Campo. In: CALDART (org.) et al. Caminhos para a transformação da escola: reflexões desde práticas da licenciatura em educação do campo. 1 ed. São Paulo: Expressão Popular, 2010.
CAMACHO, R. S. Paradigmas em disputa na educação do campo. Tese (Doutorado em Geografia). FCT-UNESP, São Paulo, 2014.
DEITOS, R. A.; LARA, A. M. de B. Educação profissional no Brasil: motivos socioeconômicos e ideológicos da política educacional. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, v. 21 n. 64 jan-mar, 2016.
ESMERALDO G. G. S. L. et al. Políticas de Educação Profissional no campo. In: MOLINA, Mônica Castagna (org.) Educação do Campo e Pesquisa II: questões para reflexão. Brasília: MDA/MEC, 2010.
GONÇALVES. E. D. A contribuição dos movimentos sociais para a efetivação da educação do campo: a experiência do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária. Revista Educ. Soc., Campinas, v. 37, nº. 135, p.371-389, abr.-jun., 2016.
GRAMSCI. A. Cadernos do Cárcere. Vol. 1. Introdução ao estudo da filosofia. A filosofia de Benitto Croce. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.
. Cadernos do Cárcere. Vol. 2. Os intelectuais. O princípio educativo. Jornalismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
. Cadernos do Cárcere. Vol. 3. Maquiavel. Notas sobre o Estado e a Política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
LAMOSA, R de A. C. Educação e agronegócio: a nova ofensiva do capital nas escolas públicas. 1 ed. Curitiba: Appris, 2016.
LINHARES, I. Os avanços de uma educação empresarial para o campo brasileiro: uma proposta inicial de reflexão sobre a atuação do serviço nacional de aprendizagem rural. Anais do Colóquio Internacional Marx e o Marxismo 2017:
MENDONÇA, S. R de. Estado e políticas públicas: considerações político- conceituais. Revista Outros Tempos, Vol. 1 esp., 2007, p. 1-12.
MOLINA, M. C. Educação do Campo e Pesquisa: questões para reflexão. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Agrário, 2006.
_. (org.) Educação do Campo e formação profissional: a experiência do Programa Residência Agrária. Brasília: MDA, 2009.
NEVES, L.M.V. (org.) A direita para o social e a esquerda para o capital: intelectuais da nova pedagogia da hegemonia no Brasil. São Paulo: Xamã, 2010.
PEREIRA, J. V; AMORIM, R. de F. Dinheiro Público, Oferta Privada: a dinâmica do financiamento e da oferta de educação profissional no Sistema S. Fineduca – Revista de Financiamento da Educação, Porto Alegre, v. 5, n. 9, 2015.
RIBEIRO, Marlene. Movimento camponês, trabalho e educação: liberdade, autonomia, emancipação: princípios/fins da formação humana. 2 ed. São Paulo: Expressão Popular, 2013.
SENAR. Missão, princípios e diretrizes. Coleção SENAR – Recursos Instrucionais. Série Metodológica nº 1. 3. ed. atual. Brasília, DF: 2005.
. O processo a formação profissional rural. (Série Metodológica) Brasília, DF: SENAR, 2016a.
. Metodologia de Ensino do SENAR: formação profissional rural e promoção social (Série Metodológica) Brasília, DF: SENAR, 2016b.
. Relatório de Atividades 2016. Brasília, DF: 2016c
. Relatório de Atividades 2014. Brasília, DF: 2014.
SIMIONATTO, I. Gramsci: sua teoria, incidência no Brasil, influência e serviço social. Rio de Janeiro: Ed. Cortez, 2011.
VIOLIN, T. C. A sociedade civil e o Estado ampliado, por Antônio Gramsci.
v.17, nº 34, set-dez (2019) ISSN: 1808-799 X
Fonte: Fotos Públicas. Ocupação Zumbi dos Palmares, do MTST, em São Gonçalo, Rio de Janeiro, 6 de novembro de 2014. Disponível em: https://fotospublicas.com/ocupacao-zumbi-dos-palmares-mtst-em-sao-goncalo-rio-de- janeiro/. Acesso em: 04, agosto e 2019.
A falta de acesso à habitação é um dos grandes problemas enfrentados no Brasil. O país está entre os com maior déficit habitacional do mundo, concentrado principalmente na região sudeste (Rio de Janeiro e São Paulo). De acordo com a Fundação Getúlio Vargas (FGV)3, essa questão foi agravada entre os anos de 2015 e
1 Entrevista recebida em 01/08/2019. Aprovada em 08/08/2019, pelos editores. Publicada em 27/09/2019. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.17i34.p38052
2 Doutorando em Educação pela Universidade Federal Fluminense.
3 Fundação Getúlio Vargas. Análise das Necessidades Habitacionais e suas Tendências para os Próximos Dez Anos. Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias - ABRAINC - Relatório Técnico Final - 2ª Versão 17 de outubro de 2018. Disponível em: https://www.abrainc.org.br/wp- content/uploads/2018/10/ANEHAB-Estudo completo.pdf. Acesso em: 18 Jul. 2019.
2017, período marcado pela alta taxa de desemprego e redução dos créditos de financiamento de imóveis.
Isso revela uma sociedade extremamente cruel, onde é negado o mais básico dos direitos à fração mais explorada da classe trabalhadora. Se levarmos em consideração as habitações em condições precárias, a situação é ainda mais preocupante. Conforme assinala Regina Ferreira (2012, p.1)4, “a falta de moradia ou a falta de moradia em condições adequadas para se viver de maneira digna sempre representaram um grave problema social, poucas vezes tratado como um problema público prioritário a ser respondido pelo Estado”. Esse quadro de precariedade é acentuado no país principalmente com a implementação das políticas neoliberais no final da década de 1980, cortando drasticamente os investimentos sociais.
Essa conjuntura de precariedade potencializou a ação dos movimentos sociais que lutam pelo direito à moradia. Só na cidade de São Paulo são mais de 160 entidades, das quais podemos citar a União de Movimentos por Moradia (UMM), Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), Frente de Luta por Moradia (FLM), o Movimento de Moradia na Luta por Justiça (MMLJ) e a Movimento de Luta Social por Moradia (MLSM). Os movimentos sociais organizados ganham força no final da ditadura empresarial-militar, principalmente em “torno das lutas pela moradia, regularização fundiária, saúde e saneamento” (FERREIRA, 2012, p.2). Podemos destacar a ação de dois principais grupos do período, a União Nacional por Moradia Popular (UNMP) e o Movimento Nacional de Luta por Moradia (MNLM).
A luta por habitação, em especial no meio urbano, pressupõe também o direito à cidade. Essa concepção ganhou força no Brasil quando os movimentos de luta por moradia passaram a se articular com outros movimentos sociais.
Criado no ano de 1997, a partir da necessidade de organizar a luta dos trabalhadores em torno da moradia digna e da reforma urbana, um dos grupos de grande inserção na classe trabalhadora é o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST). Oriundo do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) e atuando nos centros urbanos, encontra-se, atualmente, em 14 estados brasileiros. O MSTS afirma que sua maior luta é contra o sistema capitalista e o Estado burguês, pois nesse
4 FERREIRA, Regina Fátima Cordeiro Fonseca. Movimentos de moradia, autogestão e política habitacional no Brasil: do acesso à moradia ao direito à cidade. 2º Fórum de Sociologia “Justiça Social e Democratização”, realizado em Buenos Aires, de 01 a 04 de agosto de 2012. p 1-18.
modelo de sociedade não há espaço para atender os interesses da classe trabalhadora. Entretanto, para combatê-los é necessário um acúmulo de forças.
A Revista Trabalho Necessário traz uma entrevista com Fabiana Batista, historiadora e militante do MTST. Fabiana atua na área de comunicação, em nível nacional, além de fazer trabalhos de base no município de Niterói e ajudar a organizar uma cozinha comunitária no município de São Gonçalo. A entrevista foi realizada em 16 de julho, em Niterói, também no estado do Rio de Janeiro:
Trabalho Necessário: Vivemos em uma sociedade onde a proteção da propriedade privada é mais importante que qualquer outro direito básico contido na Constituição brasileira. O reflexo disso é o imenso déficit habitacional no Brasil. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2015)5, o déficit é de cerca de 7,757 milhões de moradias. Esses dados revelam uma sociedade extremamente cruel, onde é negado o mais básico dos direitos à classe trabalhadora. Esses números são agravados se levarmos em consideração as habitações em condições precárias. Diante disso, como você compreende as ações dos movimentos sociais de luta por moradia em um país com uma desigualdade social tão absurda como o Brasil?
5 INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Domicílios e déficit
pessoas que encontram um espaço vazio e invadem, sem um projeto político mais amplo. Já uma ocupação construída a partir de um movimento social tem a ver com a negociação. Tem como objetivo negociar a melhoria do espaço, dar uma estrutura para as pessoas viverem com dignidade. Fazendo uma retrospectiva da história recente, eu acho que o governo Lula foi muito importante na conquista de direitos. As pessoas foram inseridas em espaço que normalmente elas não estariam, como uma universidade ou em um emprego melhor. Entretanto, essas pessoas ainda continuaram vivendo precariamente, continuaram pagando aluguel, contudo, levando uma vida financeira menos apertada e conquistando direitos que sempre foram negados. Contudo, nessa conjuntura maluca que vem se desdobrando de 2014/2015 até os dias de hoje, a situação do trabalhador mais necessitado piorou bastante. O aluguel aumentou absurdamente e as pessoas começaram a viver em condições ainda mais precárias. Nesse momento é extremamente necessário que os trabalhadores e trabalhadoras se organizem. Nosso movimento viu na ocupação uma saída para que as pessoas de fato tenham uma moradia e possam viver dignamente sem precisar pagar.
bastante medo. Se você é de movimento social você pode morrer em qualquer esquina. Eu sinto que a criminalização do movimento é impulsionada pelo governo. Se o governo diz que precisa combater por exemplo, o MST, como a gente sempre lê nos jornais, isso influencia muita gente, desde o fazendeiro que ganha aval para matar até os que se dizem “cidadãos de bem”. São essas pessoas que vão assassinar os nossos. A criminalização já existia em 2013/2014. Só lembrar das grandes manifestações. Mas acho que hoje em dia participar de movimentos sociais está ainda mais perigoso, principalmente com um governo que fala que tem que matar os militantes de esquerda. Eu por exemplo não saio mais com a camisa do MTST na rua. Por medo mesmo. Eu e os companheiros não saímos por medida de segurança. Não só pelos xingamentos. O risco agora de sofrermos um atentado é bem real. Em relação ao perfil das pessoas: A última vez que ocupamos aqui no Rio foi em 2017 e eu já notei uma grande diferença. Minha experiência de militância aqui no Rio de Janeiro me mostrou que a galera que procura as ocupações já é muito pobre. Quem vai ocupar é a galera que não tem condição nenhuma. Se for fazer um panorama nacional do MTST, as pessoas do Rio são as mais necessitadas. Em São Paulo por exemplo, tem uma galera que tem seu carro para trabalhar, consegue trabalhar, paga minimamente um aluguel. No Rio de Janeiro eu entendo que desde 2014 as pessoas que procuram as ocupações já são muito pobres. Além de muita gente sem casa, recebemos muitas pessoas que moram em terrenos de posse e na maioria das vezes em áreas de risco. Aqui é muito comum as pessoas morarem em posse. Que já é uma ocupação muito antiga, né? Isso tem muito sobre a história do Rio de Janeiro e as ocupações das favelas. Um problema que enfrentamos é a resistência de boa parte das pessoas que viveram um pouco melhor no governo PT. Essa galera que cursou ensino superior, ou ganha um pouquinho de dinheiro acaba não se associando a um sem teto. Não se identificam com uma necessidade de moradia. Por exemplo, eu mesma pago aluguel e tenho um bloqueio muito grande em me associar à luta por moradia para conseguir uma casa própria. Tem aquela velha lógica de quem fez ensino superior não é tão pobre. Só que isso não é real! Eu pago mais da metade do meu salário em aluguel. Definimos por sem teto aquelas pessoas que pagam mais de 70% do seu salário só em aluguel. Isso já define como sem teto. Eu vivo isso. A nossa geração, dos seus 25/30 anos vive isso. Tem um pouco a ver com a consciência de classe. A galera pensa que faz parte de uma classe mais abastada, mas continua
pobre. Aqui no Brasil entendendo classe de uma forma muito doida. O cara que ganha R$ 2.000,00 reais não entende que ele faz parte da mesma classe do cara que ganha R$ 300,00 reais por mês catando latinha. Tem muita gente pensando que é rico e isso dificulta a luta. O MTST tem um projeto bacana lá em São Gonçalo que é a cozinha comunitária. Desde o início do projeto até agora, o número de pessoas triplicou. Isso tem muito da nossa participação na região, mas também é efeito da crise econômica que o país passa. Antes eram por volta 80 pessoas e hoje já são mais de 200 que vão lá almoçar todo domingo [na cozinha comunitária]. Percebo que não é só uma mudança de perfil das pessoas que passaram a frequentar. Percebi também que quem já frequentava teve o seu perfil modificado. Pessoas que passaram a morar em lugares muito ruins, pessoas que viraram alcoólatras e que foram morar na rua. Desde 2014 que a gente acompanha as pessoas lá na cozinha. Tem alguns idosos que frequentam desde o início e hoje estão morando na rua ou moram em um cômodo que os meninos (tráfico de drogas) cedem para eles dormirem. Como assim, né? Percebo que o negócio começou a apertar mesmo a partir de 2017. Nossa tática antes de 2017 era que ninguém dormisse de primeira na ocupação. As pessoas conheciam primeiro, participavam das assembleias e dormiam as vezes. Entretanto, depois de 2017 tinha gente implorando para ficar na primeira vez por que não tinha onde dormir. Parava de pagar aluguel e já chegava com tudo o que tinha. A maioria das ocupações do MTST são de lona e bambu. Depois a galera coloca madeira e outras coisas. Imagina isso? É uma realidade muito dura. No primeiro momento, as pessoas lutam pela sobrevivência, por um teto, por trabalho e comida na mesa. Isso que a gente se depara em uma ocupação. Depois quando entendem que a luta é muito maior do que a sobrevivência elas passam a lutar por dignidade, justiça e uma vida decente para sua família e as pessoas que estão ao seu redor.
indígenas e da luta pela reforma agraria. Nessa conjuntura nefasta, como o movimento de luta pela moradia se organiza? Houve alguma mudança na forma de organização para combater esses avanços?
movimentos sociais. Se bem que já vivi vários problemas com impressa de esquerda, entretanto, isso não se comparar com a projeção que a mídia hegemônica tem. O William Bonner te dá boa noite todas as vezes, aí um certo dia ele dá uma opinião sobre as ocupações. Muita gente vai acreditar, né?! É o cara que te dá boa noite todo o santo dia. Tem um lado dessa grande imprensa que é muito importante. É uma faca de dois gumes. Uma coisa que é recorrente em todas as ocupações que o MTST faz é que muita gente chega lá para ver como é porque acaba escutando pela televisão. Mesmo que o jornal fale mal da ocupação as pessoas que realmente precisam vão aparecer. Essa é a parte menos ruim da grande mídia. Por outro lado, essa visibilidade quando ganham um caráter negativo e uma parte da população compra o discurso da imprensa, ficamos na mira de muitos malucos. Se a pessoa vai na ocupação obviamente ela percebe que não é aquilo que a imprensa falou, mas se ela não conhece, ela acaba ficando com a pior referência possível de como é uma ocupação. Essa questão do prédio é um bom exemplo. Lá de fato cobravam aluguel. Obviamente é errado cobrar aluguel. O MTST nunca fez isso. Se você está em uma ocupação é por que não tem condições de pagar. No período do acontecimento, a grande mídia associou a cobrança de aluguel e queda do prédio ao MTST e a sua principal figura, o Guilherme Boulos. Automaticamente, a opinião pública passou a crucificar o Guilherme e o MTST. Imagina só! Uma notícia, misturada com Fake News e opinião pública. O cenário que se criou foi o pior possível. Muitas pessoas que precisavam não procuraram mais o MTST por causa da cobrança dos alugueis. Como eu disse, é uma faca de dois gumes. É o papel da imprensa burguesa bater e assoprar. Existe grupos de jornalistas da grande impressa que cobrem dignamente uma ação que a gente faz, isso dá muita visibilidade para a luta por moradia. Em outros muitos casos, outros jornalistas que, às vezes, fazem parte da mesma imprensa distorcem o ocorrido e fazem uma cobertura sensacionalista como foi a do prédio. Vivemos nessa democracia esquisita, se é que a gente pode chamar o que a vivemos de democracia.
lideranças)? Podemos dizer que se trata de um de um processo autogestionário? Existe uma hierarquia? Como você avalia esse tipo de organização?
ocupações. Seria um sonho se todas as pessoas pudessem se reunir e decidir nacionalmente tudo, mas as nossas condições estruturais inviabilizam. Além disso existem as emergências locais que tornam impossível essa aglutinação a nível nacional. O MTST tem como proposta ser um movimento grande, e por ser grande existem algumas coisas que precisam acontecer na hora. Eu brinco que quanto mais projeção nacional você tem, mas tarefa você acumula. A gente tem um princípio básico no MTST: "Decide quem atua". É impossível alguém que não atua, não milita de verdade decidir alguma coisa do movimento. Outra instância muito importante são os espaços de assembleia. Lá é que surgem as demandas para tocar omovimento.
culturais (desde limpar o lugar, até teatro e formação política). É muito difícil ter que mediar. Já aconteceu comigo de um cara me encarar por causa de picuinhas. A gente não pode recuar, né?
v.17, nº 34, set-dez (2019) ISSN: 1808-799 X
Amanda Moreira da Silva2
Resultado de uma pesquisa recém-concluída, tendo como base o materialismo histórico dialético, o presente artigo identifica a uberização como uma tendência do trabalho no século XXI e busca analisar como isso se estende para os trabalhadores docentes do setor público. Destacou-se o impacto das condições contratuais de trabalho por tempo determinado, sob as quais os professores da educação básica estão inseridos, trazendo como protótipo uma forma de contratação existente na rede estadual de São Paulo e novas tentativas de uberização ocorridas em outras redes públicas brasileiras.
Resultado de una investigación recién completado, basado en el materialismo histórico dialéctico, el presente artículo identifica la uberización como una tendencia del trabajo en el siglo XXI y busca analizar cómo se extiende a los trabajadores docentes del sector público. Se destacó el impacto de las condiciones contractuales de trabajo por tiempo determinado, bajo las cuales los maestros de la educación básica están insertos, trayendo como prototipo una forma de contratación existente en la red estatal de São Paulo y nuevos intentos de uberización ocurridos en otras redes públicas brasileñas.
The result of a recently completed research, based on dialectical historical materialism, this article identifies uberization as a trend of work in the 21st century and seeks to analyze how this extends to public sector teaching workers. It was highlighted the impact of contractual conditions of fixed-term work, under which teachers of basic education are inserted, bringing as prototype a form of contracting existing in the state network of São Paulo and new attempts of uberization occurred in other brazilian public networks.
1 Artigo recebido em 02/07/2019. Primeira Avaliação em 22/07/2019, Segunda Avaliação em 21/07/2019. Aprovado em 11/09/2019. Publicado em 27/09/2019. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.17i34.p38053
2 Mestra e Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. E-mail: amandamoreira.uerj@gmail.com https://orcid.org/0000-0001-9416-0619
Em 2019, o desemprego no Brasil atingiu, em média, 12,7% no primeiro trimestre e o número de pessoas em busca de trabalho no país chegou a 13,4 milhões (IBGE, 2019). Diante do desemprego e da inserção crescente de novos conceitos relaxadores do vínculo de emprego, cada vez mais trabalhadores se submetem aos contratos precários, sem garantias trabalhistas e com longas jornadas de trabalho.
São diversos tipos de contratação enquadradas nesses moldes, dentre elas um tipo muito crescente e que tem se alastrado em algumas cidades do país: aquela vinculada ao aplicativo Uber2. Esta empresa tem atuação global, envolve milhões de trabalhadores e o seu formato tem a possibilidade de se generalizar pelas relações de trabalho em diversos setores, inclusive na educação (e na educação pública), conforme será abordado neste artigo que trata especificamente dotrabalho docente. O trabalho na Uber materializa a ideia de que o trabalhador tem que ir para o mercado de trabalho levando tudo, sendo responsável pela mercadoria que vai vender e pelo serviço que vai prestar. Trata-se de um novo passo na terceirização onde as empresas desenvolvem mecanismos de transferência de custos e riscos não mais para empresas terceirizadas, mas para uma multidão de trabalhadores autônomos disponíveis, retirando suas garantias mínimas e ao mesmo tempo consolidando a sua subordinação. Nesse tipo (ou ausência) de vínculo, as formas de controle são (aparentemente) pouco tangíveis, pois não há horário fixo de trabalho, o trabalhador
não é um empregado e a empresa não é sua contratante.
O artigo é composto por duas partes. Inicialmente identificou-se a uberização como uma tendência do trabalho no século XXI, e, posteriormente, buscou-se analisar como isso se estende para os trabalhadores docentes do setor público. Para isso considerou-se o impacto das condições contratuais de trabalho por tempo determinado, sem plenos direitos, sob as quais os docentes de algumas redes públicas municipais e estaduais estão inseridos, o que faz com que estes sejam impedidos de vivenciarem uma vida laboral dotada de algum sentido.
2 A empresa se apresenta como uma plataforma colaborativa entre motoristas e usuários. É vista pela população que faz uso do serviço como democrática porque barateia o custo do transporte, mas na prática, o que ocorre com a entrada da empresa é uma devastação das conquistas de transporte público e a piora da mobilidade urbana com um número excessivo de transportes individuais de passageiros nas cidades em que existe o serviço.
Tendo como método o materialismo histórico dialético, analisou-se um enorme campo de trabalho mal pago e com uma tendência de transformar o trabalho docente em trabalho intermitente, com professores sendo contratados de acordo com as necessidades eventuais do poder público e arcando com a transferência de custos e riscos. Assim, o presente artigo tratou de uma forma de contratação existente na rede pública estadual de São Paulo e de tentativas de uberização em outras redes públicas de educação básica pelo país, se mostrando como uma tendência para o trabalho docente no século XXI.
A esse contexto adensam-se as políticas governamentais em curso desde os anos 1990, as reformas educacionais e a privatização acentuada que vêm contribuindo para aumentar a flexibilização do trabalho docente por meio de formas de contratação precárias com benefícios e salários inferiores, que foram se infiltrando furtivamente nas redes públicas (SILVA, 2017, 2018), o que acabou ampliando o contingente de trabalhadores sem direitos, diferentemente do que caracteriza a relação salarial segura presente no setor público.
Tom Slee, economista britânico-canadense, autor de Uberização: a nova onda do trabalho tornou-se um dos principais estudiosos do problema gerado pelas corporações digitais. No livro, ele traz de forma ilustrativa, e apoiando-se numa sólida base empírica, as discussões relacionadas à “Economia do Compartilhamento3”, demonstrando de que forma isso se intensificou após o início das operações da Uber em diversos países, e gerando consequências sociais desastrosas. Além disso, o autor desmistifica a aura do uso parcimonioso dos recursos4 e a utopia cooperativista com que a Economia do Compartilhamento foi encarada em sua fase inicial,
3 A Economia do Compartilhamento, às vezes descrita com outros nomes como: consumo colaborativo, economia em rede, plataformas igual-para-igual, economia dos bicos, economia da viração, economia sob demanda etc., é uma onda de novos negócios que usam a internet para conectar consumidores com provedores de serviço para trocas no mundo físico, como aluguéis imobiliários de curta duração, viagens de carro, realização de tarefas domésticas, entre outras.
4 As promessas iniciais da Uber e da Economia do Compartilhamento como um todo era ser uma alternativa sustentável para o comércio de grande circulação, diminuindo os impactos ambientais no planeta. “Por que não usar a Uber em vez de comprar um carro? Podemos priorizar o acesso em detrimento da propriedade, e nos livrarmos de um consumismo ao qual muitos de nós nos sentimos presos” (SLEE, 2017, p.23). Obviamente, isso não se materializou, ao contrário, conforme bem demonstrou o autor “a economia do compartilhamento está propagando um livre mercado inóspito e desregulado” (SLEE, 2017, p.23).
apresentando que o suposto compartilhamento deu lugar à formação de gigantes corporativos5, acumulação de fortunas impressionantes, desregulamentação generalizada, perda de autonomia dos indivíduos, precarização do trabalho etc. Deste modo:
Muitas companhias da Economia do Compartilhamento estão dando fortuna a seus investidores e executivos e criando bons empregos para seus engenheiros de programação e marqueteiros, graças à remoção de proteções e garantias conquistadas após décadas de luta social, e graças à criação de formas de subemprego mais arriscadas e precárias para aqueles que de fato suam a camisa (SLEE, 2017, p.24).
O aplicativo Uber popularizou uma forma de contratação no mundo dos transportes individuais e tem se alastrado em alguns países, incluindo o Brasil, o que tem levado alguns pesquisadores brasileiros (POCHMANN, 2016; FONTES, 2017) à defesa de que a empresa Uber tornou-se uma chave para analisar as transformações contemporâneas do mundo do trabalho. “Seu enorme impacto já gerou novos termos, como a ‘uberização das relações de trabalho’ e um verbo, ‘uberizar’” (FONTES, 2017, p.54).
Pochmann (2016) refere-se à “uberização” como a emergência de um novo padrão de organização do trabalho – após o fordismo e o toyotismo – caracterizado pela autonomização dos contratos de trabalho e que, dependendo da resistência dos movimentos contestatórios, pode se generalizar. “É o trabalhador negociando individualmente com o empregador a sua remuneração, seu tempo de trabalho, arcando com os custos do seu trabalho” (POCHMANN, 2016, p.17).
Com a uberização, há a eliminação do conceito de contratação por jornada, o salário se torna custo variável, pois ele só existe se de fato houver a realização daquele trabalho e as jornadas levam frequentemente ao uso das horas vagas para aumentar a renda. Neste tipo de relação, qualquer tempo disponibilizado pelo trabalhador é tempo de lucro. Como destaca Fontes (2017, p.58):
Para além do credenciamento e do localizador, não há controle direto próximo aos trabalhadores: apenas a pura necessidade deve movê- los ao trabalho. Não há jornada de trabalho combinada ou obrigatória, nem limites para ela, tampouco dias de repouso remunerado. Estes se sabem trabalhadores, mas não se consideram como tal, mas como
5 O valor de mercado da Uber (mais de 64 bilhões de dólares em 2016, seis anos após a sua fundação) supera o da maior companhia de aluguel de veículos do planeta, além da Ford e General Motors; o do Airbnb iguala-se ao da maior cadeia internacional de hotéis (InternContinental) e, apesar de integrarem indústrias aparentemente prosaicas (táxis, aluguel de residências), os fundadores de cada uma são agora bilionários (SLEE, 2017; ABÍLIO, 2017).
prestadores de um serviço casual, mesmo se movidos pela mais dramática necessidade. De fato, eles não têm um emprego, mas uma conexão direta de entrega do mais-valor aos proprietários capazes de lhes impor um processo de produção de valor pré-estabelecido. Não são os poros do tempo livre que tais proprietários procuram obturar, como nos processos fabris, que realizam estrito controle do tempo de trabalho. Aqui, trata-se de lidar com novas escalas, ampliando o volume de valor, através de fornecedores massivos de mais-valor.
Ao tratar de algumas características da Uber, considerando que esta figura apenas como um exemplo, a autora afirma que a empresa detém, juntamente com outras grandes empresas ou proprietários: “a propriedade dos recursos sociais de produção”. Ou seja,
Uber não é proprietária direta das ferramentas e meios de produção (o automóvel, o celular), mas controla ferreamente a propriedade da capacidade de agenciar, de tornar viável a junção entre meios de produção, força de trabalho e mercado consumidor, sem intermediação de um “emprego” (FONTES, 2017, p.56).
Entusiastas da Uber atribuem o sucesso da empresa à sua tecnologia e eficiência em conectar passageiros e motoristas, mas essa visão ignora boa parte da história resgatada por Tom Slee:
O sucesso da Uber também se dá muito devido a evitar custos com seguro, impostos e inspeção veiculares, e em fornecer um serviço universalmente acessível. Sua habilidade em fornecer um serviço barato e eficiente para os consumidores vem da habilidade de operar em prejuízo enquanto persegue seu generosamente financiado caminho para o crescimento. O sucesso da Uber decorre de seu parasitismo nas cidades em que opera (SLEE, 2017, p.104).
Segundo Fontes (2017), trata-se de uma coligação íntima entre empresas de diversas áreas – a Google, os grandes bancos, montadoras de automóveis, numa das pontas mais concentradas da propriedade – que viabilizam o controle econômico do processo na parte que lhes interessa: o controle da extração, a captura do mais-valor em larga escala e de forma massiva no mundo inteiro. Assim,
[...] a defesa da propriedade intelectual da criação de um processo (a conexão) une-se estreitamente a investidores que, detentores de quantias de dinheiro monumentais, precisam transformá-las em capital, isto é, investi-las em processos de extração de valor. Tais investidores podem ser provenientes de setores variados: fundos de investimento de risco como Benchmark ou First Round Capital, grandes conglomerados financeiros, como Goldman Sachs ou empresas como Amazon ou Google, sem falar em acordos com operadoras de cartão de crédito, com montadoras ou empresas de aluguéis de automóveis (FONTES, 2017, p.56).
De acordo com a autora, somente a escala atingida pela “propriedade dos recursos sociais de produção” permite acoplar uma plataforma de busca a uma tecnologia móvel de cartão de crédito e a um localizador, que asseguram a estreita dependência do trabalhador. Afinal, do cartão – de onde são extraídos diretamente entre 20 e 25% do valor gerado pelo trabalho – depende sua própria remuneração e o localizador denuncia todos os percursos do trabalhador, uma vez acionado o celular (conexão principal). Assim “a taxa de extração de valor é férrea, assim como o regime de trabalho” (FONTES, 2017, p.56). Deste modo:
[...] há uma centralização absoluta e internacional do comando sobre os trabalhadores e redução dos custos do processo de valorização do valor. Aparentemente, há apenas um aplicativo de computador a conectar motoristas e usuários. Isso é falso, pois, entre eles, há um credenciamento (para os motoristas e usuários), um cartão de crédito e um rastreador do movimento do motorista, todos totalmente arbitrários e autocráticos. Somente envolvem direitos para os proprietários do capital, escassas garantias para os usuários e nenhum direito para o trabalhador, salvo o de receber parcela do que produziu. Redução de custos não quer dizer sua inexistência: a centralização a esse nível exige intensa coordenação internacional da administração e gestão, além da partilha do lucro entre os demais proprietários dos recursos sociais de produção (FONTES, 2017, p.57, grifos da autora).
A empresa Uber é um exemplo de precarização do trabalho, de retirada de direitos, e faz questão de ignorar as condições de vida dos trabalhadores, “assegurando-se um custo próximo de zero para maquinaria, matéria-prima (combustíveis, reparos, renovação da frota) e da própria força de trabalho” (FONTES, 2017, p.57). Todo o ônus é do trabalhador: os gastos ao comprar e utilizar um veículo (combustível, manutenção, depreciação, seguro), despesas adicionais como pedágios e estacionamentos, a taxa de cobrança da Uber; tudo isso leva a um expressivo número de trabalhadores miseravelmente pagos e com jornadas exaustivas. Ao retomar a discussão sobre a expropriação, Fontes (2017, p.57) afirma que:
[...] os proprietários dessas coisas (no caso, automóveis) são facilmente expropriáveis. O próprio desgaste dos automóveis – sem falar da saúde dos motoristas – fica inteiramente a cargo dos trabalhadores. Imaginando livrar-se desse custo, os motoristas passaram a alugar automóveis. Devem, portanto, pagar o aluguel a outro proprietário da ferramenta automóvel, entregando parcela do mais-valor que produzem e continuando a encaminhar ao Uber a
parcela pré-fixada como valorização do valor resultante de seu trabalho.
Desta maneira, todas as taxas e riscos são assumidos pelo próprio trabalhador. “A Uber sustenta que a segurança é – como nunca cansam de dizer – a maior prioridade, mas que os motoristas não são empregados da Uber e a Uber não é responsável pelo que acontece na viagem” (SLEE, 2017, p.121). “A classificação como contratante independente livra a companhia de ter de pagar por direitos trabalhistas e de ter de respeitar os padrões de emprego. O risco é inteiramente empurrado para o subcontratado” (SLEE, 2017, p.134).
Assim, as companhias exitosas de Economia do Compartilhamento, como a Uber, escapam das despesas em prover uma folha de pagamento ou manter qualquer custo com seus empregados (para eles, fornecedores de serviços), pois os classificam como autônomos. Da mesma maneira, “como parte desse artifício, evitam pagar direitos trabalhistas, custos de manutenção, tempo ocioso e tempo de deslocamento, acidentes de trabalho e qualquer obrigação de seguridade social” (SLEE, 2017, p.294).
Como se não bastasse, “a Uber obriga os motoristas a aceitarem 90% de todas as corridas que lhe cruzem o caminho, sob pena de serem banidos, o que significa que há um preço a ser pago quando se rejeita alguém” (SLEE, 2017, p.125). Isso, somado ao fato de que muitos motoristas destinam longas horas para pagar, inclusive, a compra do carro em que trabalha, torna a ameaça de ser retirado da plataforma algo ainda mais assustador.
A Economia do Compartilhamento – mais destacada no Brasil por meio da Uber
–, promete ajudar prioritariamente indivíduos vulneráveis a tomar controle de suas vidas, tornando-os microempresários que podem se auto-gerenciar, entrando e saindo deste novo modelo flexível de trabalho com a ideia de ganhar uma “graninha extra”, ou mesmo tendo-o como única renda num momento de desemprego. A Uber manifesta “a enganosa ladainha de que está ao mesmo tempo entregando viagens baratas aos usuários e oportunidades de trabalho bem remuneradas aos motoristas” (SLEE, 2017, p.27).
Além disso, a uberização acaba gerando uma competição ainda maior entre os trabalhadores, pois quem estabelece ou avalia a sua continuidade nesse tipo de trabalho é o cliente, quem paga pelo serviço. A realização do trabalho conta com a disposição do trabalhador em aceitar a tarefa oferecida – o que quer dizer um
permanente gerenciamento de sua própria produtividade, mas essa aceitação requer vencer a concorrência entre os motoristas disponíveis. A avaliação da multidão de consumidores fornece os elementos para o ranqueamento dos trabalhadores (ABÍLIO, 2017, p. 1).
Ou seja, ao invés de trazer confiança pessoal, triagem ou prover um sistema de reputação, conforme propagandeia a empresa; foi criada uma nova forma de fiscalização e vigilância em que os prestadores de serviços devem viver com o eterno medo e insegurança de serem deletados pelos clientes-usuários. Assim, a certificação sobre o trabalho vem agora da esfera do consumo, por meio de uma “espécie de gerente coletivo que fiscaliza permanentemente o trabalhador. A multidão vigilante [...] é então quem garante de forma dispersa a certificação sobre o trabalho” (ABÍLIO, 2017, p.1).
Assim, os acordos coletivos acabam sendo rebaixados ao plano individual em sua máxima e, obviamente, isso torna ainda mais fracos os trabalhadores diante daqueles que os contratam. Um rebaixamento que “não é só econômico, mas também moral e ético” (POCHMANN, 2016, p.18).
No entanto, não se pode deixar de ressaltar que há inúmeras contradições e importantes lutas contra esse tipo de prática, em especial, contra a empresa Uber, e existem movimentos que vêm denunciando o tipo (ou ausência) de vínculo empregatício. Já estão em ato novas formas de organização política, que envolvem a criação de sindicatos de aplicativos, greves e manifestações de trabalhadores uberizados. Conforme destacou Abílio (2017, p.1):
Em 2016 ocorreu uma série de manifestações, greves, processos judiciais, formação de sindicatos de trabalhadores de aplicativos pelo mundo. Motoristas Uber americanos (atualmente mais de 400 mil) juntaram-se a enfermeiras, trabalhadores do setor hoteleiro, entre outros, na campanha “Fight for US$15”, que demandava o pagamento mínimo de quinze dólares por hora de trabalho. Na Califórnia, a empresa Uber, optou por pagar US$100 milhões em acordo com dezenas de milhares de trabalhadores (não há dados claros sobre esse número) que acionaram coletivamente a justiça requerendo reconhecimento legal do vínculo empregatício com a empresa. [...]. No final do ano, a justiça inglesa determinou que a Uber reconhecesse o vínculo empregatício com seus motoristas: o processo ainda está em andamento.
Contudo, estes ainda são movimentos minoritários. A ampla maioria dos trabalhadores que “fornecem seus serviços” consente aos abusos trabalhistas a fim de se manter no posto. É a empresa quem define o modo da produção do serviço, o
valor cobrado dos clientes, o padrão de atendimento, a forma de pagamento e a modalidade de seu recebimento. É ainda ela quem recebe o pagamento e paga o motorista, além de centralizar o acionamento do trabalhador para sua atividade. Além disso, a Uber conta ainda com um sistema disciplinar que aplica penalidades aos trabalhadores que infringirem suas normas de serviço. Conforme destacou Slee (2017, p. 297):
[...] lobistas bem-remunerados estão argumentando, em Washington, que as novas companhias podem regular o comportamento de seus fornecedores de serviço melhor do que os governos, que os algoritmos exercerão seu trabalho de modo cada vez mais responsável e em benefício da sociedade.
No entanto,
[...] muitos motoristas estão convencidos de que o sistema [da plataforma Uber] os engana, por exemplo, mostrando viagens que desaparecem antes que possam aceitá-las, o que faz com que não consigam atingir os níveis de aceitação necessários para ganhar um bônus. Ou manipulando o tempo de espera por um passageiro que ao final cancela, negando o direito à taxa por desistência (SLEE, 2017, p.132).
Aquilo que Thompson (2011) tão magistralmente indicou que acontecia no final do século XVIII na transição para a sociedade industrial – quando os relógios das fábricas eram adiantados pela manhã e atrasados à noite como disfarces para encobrir a opressão e extrair mais tempo de trabalho –, toma novos ares no século XXI, inclusive, sendo realizada por aqueles que dizem ver os trabalhadores como “parceiros” e que se colocam como um campo avançado e inovador no mundo do trabalho. Nada de novo sob o sol. Apenas a forma de dominação ganha novos ares, com o uso das novas tecnologias a serviço dessa lógica, pois a expropriação segue em patamares semelhantes.
Em suma, conforme o exposto ao longo desta seção, a uberização é mais uma forma de extração de mais-valia através da exploração baseada em um controle político e ideológico de novo tipo sobre a força de trabalho. São reestruturações que se inserem na própria dinâmica do capitalismo do século XXI por meio da redução dos custos da força de trabalho, ampliação da precarização das profissões e intensificação do trabalho de forma perversa, e que se baseiam na dificuldade da condição de reprodução do trabalhador, fazendo com que se submeta a qualquer forma de ocupação que gere renda para sua subsistência.
Conforme determina a Constituição Federal (BRASIL, 1988), a contratação de professores deve ser feita por meio de concurso público ou processo seletivo simplificado para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público; porém, não é bem isso que vem acontecendo em muitos estados da federação. Fruto de uma política pública que tem privilegiado a contratação temporária como regra em detrimento do concurso público, surgem novos formatos de contrato (ou ausência de um), dentre os quais, destaca-se uma forma de trabalho docente já existente que é a docência eventual.
O professor eventual é aquele cujo vínculo empregatício está aquém da precarização situacional do professor temporário que é admitido por contrato, no qual a investidura no cargo se dá minimamente nos marcos constitucionais, garantindo aos professores ao menos o salário inicial da categoria.
Além da falta de garantia no emprego e da remuneração insegura, os docentes eventuais carecem de uma identidade baseada no trabalho. Quando estão empregados, ocupam empregos desprovidos de carreira e não sentem que pertencem a uma comunidade ocupacional imersa em práticas estáveis, códigos de ética e normas de comportamento.
O trabalho docente que se concretiza no ensino é expropriado brutalmente, afinal o papel desses professores é manter as turmas, realizando atividades previstas num plano de substituição para professores eventuais, configurando uma força de trabalho pronta para ser utilizada na exata medida pelo Estado, ou seja, um trabalho intermitente.
A socióloga Aparecida Neri de Souza afirma que “os professores eventuais não têm aulas e/ou classes atribuídas, mas sim uma vaga em uma escola, para substituírem faltas de professores” (SOUZA, 2012, p.7-8). Eles só são chamados quando tem trabalho e não sabem quanto vão ganhar no final do mês. Como recebem mediante as aulas dadas, não há garantias sequer que sua remuneração atingirá o piso salarial da categoria.
Há dois tipos de professores eventuais na rede pública paulista: os enquadrados na categoria “S” e os pertencentes à categoria “V”6. Estes docentes “não contam com atribuição de aulas, uma vez que é um professor que substitui um efetivo eventualmente” (Venco, 2019, p.4), configurando segundo a autora, a “pedagogia do improviso” na qual “a convocação feita, em algumas situações, com pouco tempo de antecedência à aula e o não acesso ao planejamento do colega ausente [professor efetivo] resultam em conseqüências tanto para os professores quanto para os alunos” (VENCO, 2019, p. 12).
Os professores eventuais dirigem-se diariamente às escolas, em geral próximas à sua residência, ficam na sala de professores ou na porta das escolas à espera que um ou mais professores faltem. Conforme destaca Aparecida Neri de Souza (2013, p.221):
Por vezes [esses docentes] passam os três turnos (manhã, tarde e noite) na escola para entrar em uma sala de aula e trabalhar. Se não houver falta de professor, não há trabalho. Eles recebem por aula dada, não há pagamento de descanso semanal, férias ou direitos garantidos por contrato de trabalho, mesmo que temporário. Torcem para que um professor peça licença superior a dez dias, porque assim podem ter um contrato temporário.
Diversos trabalhos buscam entender a situação dos docentes eventuais (ARANHA, 2007; BASÍLIO, 2010; GESQUI, 2009; SOUZA, 2012, 2013; SOUZA, 2012;
VENCO, 2018, 2019) e todos acolhem o diagnóstico de que a contratação e o exercício das atividades desses professores da rede paulista de ensino público atingem o auge em termos de precarização. Os professores eventuais não possuem vínculo empregatício com o Estado, recebem pagamento somente pelas “aulas efetivamente ministradas, correspondente ao [salário] inicial de sua habilitação, portanto, o valor hora-aula mais baixo pago a cada referência” (SOUZA, 2012, p.78). Eles transformam-se em “não professores”, que, devido às características de sua contratação, não podem nem mesmo ser considerados como uma categoria precarizada, pois não têm vínculo, não têm estabilidade, não recebem salário nem exercem uma profissão (SOUZA, 2012).
6 O governo de São Paulo considera as categorias “S” e “V” como professores eventuais. Ambos não contam com atribuição de aulas, uma vez que é um professor que substitui um efetivo eventualmente. A diferença é que a categoria “S” foi admitida em 2007 e pertence ao SPPREV – Regime Próprio de Previdência dos Servidores Públicos (RPPS), estabelecido pela Lei Complementar 1.010/2007 e a categoria “V” foi admitida após julho de 2009, nos termos da Lei Complementar 1.093/2009, com recolhimento ao INSS (VENCO, 2019).
Estes professores devem sempre estar atentos aos editais publicados no site da Diretoria de Ensino Regional (DER) de sua opção – que são colocados com 72 horas de antecedência –, e ao surgirem aulas, caso sua pontuação seja alcançada ao se atender a lista classificatória, ser-lhes-ão atribuídas aulas em alguma escola que lhes convém. Caso contrário, correm o risco de terem aulas atribuídas compulsoriamente, independente da localização da escola.
Aparecida Neri de Souza (2012, 2013) e Elisabeth Souza (2012) caracterizam a situação dos professores eventuais como de “total desprofissionalização”, pois, além de eles serem ignorados pelos sindicatos, o próprio governo paulista omite a sua existência nas estatísticas, visto que “não há dados disponíveis sobre a quantidade de professores eventuais” (SOUZA, 2012, p.8) já que não possuem vínculo de emprego. E isso se dá “ao mesmo tempo em que [o governo] publica legislações especificando sua forma de contratação, ou seja, não desconhece sua existência e nem tão pouco a presença constante deste professor nas escolas da rede” (SOUZA, 2012, p.63).
A resolução nº 97/2008 da Secretaria de Educação de São Paulo, permite “a atribuição de vagas para admissões em caráter eventual, sem vínculo empregatício, aos candidatos inscritos no processo [de distribuição de aulas anuais]” (SOUZA, 2013). Esses professores:
Candidatam-se anualmente [...] são classificados de acordo com sua experiência no magistério e com seus diplomas. Os de maior pontuação recebem aulas ou classes e são contratados em caráter temporário; aos demais resta o trabalho intermitente ou eventual. Os professores eventuais não têm aulas ou classes, mas sim uma vaga em uma escola para substituir professores. Eles são formados em diferentes campos disciplinares e alguns ainda são estudantes universitários, não sabem em que horários trabalharão nem quantas aulas ministrarão por semana ou por mês, muito menos em que disciplina trabalharão (SOUZA, p.221).
Em linhas gerais, os professores eventuais devem cobrir a falta de um professor responsável por qualquer disciplina (Matemática, Língua Portuguesa, História, Geografia, Educação Física, Artes, Ciências etc.). Ele não sabe previamente qual professor (e qual disciplina) terá que substituir.
Devido à sua condição de eventual (professor esporádico) ele dificilmente constrói vínculo relacional com os alunos, professores ou corpo administrativo das escolas onde atua, além de não construir uma identidade profissional ou se constituir
enquanto professor de uma disciplina. Ademais, conforme destacam os estudos de Aranha (2007, p.49):
Os professores eventuais atuam em mais de uma escola, migrando de uma escola para outra num intuito de pegar aulas provenientes da ausência de professores titulares de disciplina. Muitas vezes o professor eventual fica com o telefone celular ligado esperando que alguma escola o chame para substituir algum professor.
Deste modo, supõe-se que, o professor eventual, ao ser chamado para ministrar aulas de disciplinas aleatórias, alheias às de sua formação, vivencia uma constante impossibilidade de escolha. Ele está sempre disponível às necessidades do sistema de ensino, torna-se um simples “operacionalizador da aula”, “tampando buracos” com o objetivo de manter a máquina funcionando, ou seja, não deixar os alunos, de cujas turmas o docente se ausentou, sem um professor naquele horário.
Esses aspectos concernentes ao professor eventual remetem à necessidade da polivalência ou multifuncionalidade. Aranha (2007) ao referir-se a esses professores, relata situação similar:
[...] um professor eventual, quando não está substituindo um professor responsável por disciplina ausente, aplica seu tempo em fazer serviços bancários para a escola, uma espécie de office boy. Também, não raramente, o eventual se submete a fazer serviços diversos dentro da escola, tirar fotocópias, ajudar a olhar alunos no pátio, acompanhar alunos em passeios, organizar festas na escola ou torneios esportivos etc. (ARANHA, 2007, p.60-61).
Assim o autor detectou uma forma de o professor eventual “agregar atributos positivos para que seu status dentro de uma determinada escola evolua e ele, o eventual, possa aumentar gradativamente a quantidade de aulas ministradas” (ARANHA, 2007, p.60). Deste modo, observa-se que, desde o consentimento para atuar como eventual – muitas vezes com base em agregar atributos para o currículo e somar experiência para pleitear uma vaga no serviço público –, até a aceitação de trabalhos diversos no chão da escola como forma de demandar mais hora-aulas trabalhadas e consequentemente recebidas; são situações que evidenciam um trabalho docente não só precarizado e uberizado, mas despersonalizado e com ausência de sentido.
O professor eventual, conforme exposto, é um trabalhador docente atípico, que tem máxima expressão na rede pública do Estado de São Paulo e configura uma precarização já institucionalizada. Destacamos, a seguir, tendências que seguem uma
direção parecida (ou piorada) dessa forma de uberização do trabalho docente que surgiram em 2017, não por acaso, o ano em que os direitos trabalhistas foram dizimados no Brasil com a aprovação da Reforma Trabalhista. As iniciativas tratadas a seguir foram levadas pelo poder público e consistiram em inserir novos mecanismos de contratação de docentes na educação básica brasileira, excedendo as condições precárias e de expropriação do trabalho colocadas aos professores eventuais.
Ao tratar do tema da precarização do mundo do trabalho e relacioná-lo com a educação, Freitas (2016) aborda a “charterização e a uberização” como formas destruidoras de profissões, afirmando que é muito provável que a uberização avance pelas “charters online7: escolas que distribuem conteúdos e que usam “tutores” online para apoiar os estudantes em seu estudo, seja quando estão na plataforma de aprendizagem, seja fora dela, sob demanda. Assim,
[...] aos poucos, os processos de precarização vistos em outras profissões vão se aproximando dos professores – inclusive a conversão de seu trabalho vivo em trabalho morto, dentro de plataformas de aprendizagem online que, com ajuda de tecnologia interativa, procura copiar e eternizar a atuação dos profissionais da educação. Trata-se de congelar os processos destinados a apoiar o desenvolvimento das crianças, bem como destinados a regular seu ritmo e profundidade de aquisição de conhecimentos, e registrá-los em códigos informatizados e reprodutíveis sem a presença viva do professor (FREITAS, 2016).
Conforme o previsto na Lei 13.415/2017 (BRASIL, 2017) – que altera a LDB (Lei 9394/96) e institui a Reforma do Ensino Médio –, os sistemas de ensino poderão reconhecer, mediante regulamentação própria, conhecimentos, saberes, habilidades e competências, mediante diferentes formas de comprovação, dentre elas, a educação à distância ou educação presencial mediada por tecnologias. Assim, a LDB (BRASIL, 1996) passa a conter em seu artigo 36, parágrafo 11 que, para efeito de cumprimento das exigências curriculares do Ensino Médio, os sistemas de ensino
7 O autor, ao discutir as políticas educacionais norte-americanas e traçar alguns paralelos com o Brasil, refere-se às escolas Charters nos Estados Unidos, como um modelo de escola pública que adota a lógica da gestão privada, e que podem ser presenciais ou on-line. Para mais informações sobre o tema ver artigo no Blog do Freitas.
Disponível em: <https://avaliacaoeducacional.com/category/os-novos- reformadores/privatizacao/escolascharters/>. Acesso em: 27 jul. 2017.
poderão reconhecer competências e firmar convênios com instituições de educação à distância.
Isto, na visão de Freitas (2016), pode abrir caminho para as charters online
(empresas que fornecem conteúdo instrucional online). Deste modo, afirma:
A relação professor-aluno que numa sala convencional de aula pode ser de 40 alunos para um professor, pode chegar a 400 alunos para um professor, dez vezes mais, em uma escola online. Se esta forma de organização do trabalho, a uberização, prospera, um professor em sua casa, atende 400 alunos “online”. A própria plataforma monitora o tempo gasto pelo professor e gera a base de sua remuneração (FREITAS, 2016).
O autor afirma que, enquanto a “charterização” rompe com a noção de serviço público e o destrói junto com o magistério público, a “uberização” poderá atingir o profissional da educação e remodelar sua relação com a escola (FREITAS, 2016), num processo que, a nosso ver, vem para aumentar a alienação e a expropriação do trabalho do professor.
Além desta reflexão trazida por Freitas, destaca-se também, neste artigo, o processo por outro viés, pois assistimos, recentemente, a uberização tentando se inserir na escola pública por meio das relações contratuais. Em Ribeirão Preto8, município do interior de São Paulo, o prefeito da cidade, Duarte Nogueira (PSDB), intencionou implementar um Projeto de Lei de Contratação de Professores Substitutos que gerou ampla discussão e resistência entre os profissionais da educação daquele município.
Segundo notícia veiculada no site do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), em tom de propaganda, o projeto da prefeitura tucana criaria um sistema de trabalho cuja ideia seria:
Pagar por aulas avulsas aos docentes, sem ligação com o município, sempre que faltarem profissionais na rede municipal de ensino. Apelidado de “Uber da Educação” ou “Professor Delivery”, a proposta busca resolver o problema da falta de docentes nas escolas (PSDB, 2017, p.1).
Apesar de ter sido divulgado como uma grande ideia inovadora para a educação, no intuito de suprir a falta de professores efetivos, esse projeto se
8 A rede municipal de Ribeirão Preto tem 109 escolas da rede direta e outras 24 conveniadas. O sistema tem 3.159 professores, sendo 400 emergenciais, de acordo com dados da própria secretaria. São cerca de 48 mil estudantes matriculados (MOREIRA, 2017).
assemelha muito aos professores eventuais, tratado em seção anterior. As diferenças seriam apenas os meios e instrumentos utilizados para a convocação para o trabalho, que, neste caso, devido à proposta de utilização de novas tecnologias através de uma plataforma, apresenta ares de modernização. Conforme afirmaram:
De acordo com o projeto, o professor não teria vínculo empregatício com a prefeitura e o acionamento se daria por aplicativos, mensagens de celular ou redes sociais. Após receber a chamada, o professor teria 30 minutos para responder se aceita a tarefa e uma hora para chegar à escola. Caso contrário, outro seria acionado em seu lugar (PSDB, 2017, p.1).
Segundo a então Secretaria Municipal de Educação, Suely Vilela, ex-reitora da USP, um dos graves problemas presentes na Rede de ensino de Ribeirão Preto é o absenteísmo docente, ou seja, as faltas pontuais de professores. Buscando solucionar o problema, a secretaria defendeu a importância da medida e propôs o Projeto de Lei Complementar que dispõe sobre o credenciamento de “Professores Substitutos” para ministrarem aulas avulsas surgidas na Rede (CME, 2017, p.1). O projeto, segundo a secretária, foi submetido à consulta da comunidade escolar e estaria em fase de análise das sugestões enviadas à secretaria (MOREIRA, 2017).
De acordo com o Projeto (Art. 1º § 1º): “as aulas avulsas são as surgidas exclusivamente por faltas, afastamentos, aposentadorias, demissões, exonerações e serão atribuídas por prazo inferior a 30 dias”. Conforme a posição do Conselho Municipal de Educação (CME): “a substituição prevista no projeto de lei consiste para [...] caráter de urgência e de pagamento de acordo com a hora trabalhada, com vínculo ‘semilegal’” (CME, 2017, p.2).
Segundo o parecer nº 01/2017 (CME, 2017), aprovado em 26 de junho, “a alternativa terá lacunas do ponto de vista qualitativo e criará regime laboral precário”. O projeto, portanto, teve parecer contrário do órgão que afirmou que “a aprovação do Projeto de Lei Complementar proposto pela Secretaria Municipal de Educação é desnecessária e descabida. Para o Conselho, tal projeto contém um grave erro pedagógico na solução proposta” (CME, 2017, p.7). Conforme destacam:
A proposta apresenta-se pífia desde o ponto de vista do planejamento, pois não se fundamenta em dados concretos, publicamente apresentados e discutidos, de um problema complexo que requer solucionamento. No tocante à ciência pedagógica, ignora-se todo o acúmulo científico acerca das dificuldades próprias do exercício da
docência em substituição. Em relação à qualidade da educação, propõe-se solução simplesmente inaceitável do ponto de vista qualitativo, oferecendo, aos alunos, docentes eventuais que, embora se diga atenderão a requisitos mínimos de formação, serão sempre pessoas que a isto recorrerão em razão da situação de absoluto desemprego. Do ponto de vista laboral, cria-se a figura com vínculo extremamente precário no sistema, com potencial para ter seu uso ilicitamente expandido no futuro. Do ponto de vista jurídico- constitucional, eis que se cria função pública de caráter eventual para atender a necessidade não eventual da Administração (CME, 2017, p.9).
O parecer destaca ainda que “o papel da comissão, da administração municipal e do conselho é descortinar políticas públicas de médio e longo prazo que resolvam tais situações, que não podem ser tratadas como ordinárias” (CME, 2017, p.5). Com as devidas críticas postas, o CME não nega que há um problema a ser resolvido com a falta de professores, e recomenda estudos mais aprofundados antes do envio da matéria à Câmara, caracterizando o projeto em questão como “uma medida voluntarista que [...] não está fundada em dados suficientes e publicamente discutidos” (CME, 2017, p.5).
Apesar de o projeto não ter chegado oficialmente à Câmara da cidade, um grupo de professores distribuiu aos vereadores cópia da proposta preliminar e reivindicou que a ideia fosse barrada, afirmando que o projeto era inconstitucional (MOREIRA, 2017). E, assim, os profissionais da educação daquele município continuaram resistindo e promovendo debates sobre o tema, cuja repercussão tomou proporções nacionais.
Em suma, estas ideias caracterizadas, neste artigo, como tendências (ou ameaças) têm tomado diferentes configurações em diversas redes. São mecanismos escolhidos pelo poder público que garantem aos municípios e aos estados a ausência do vínculo empregatício ou mesmo de um contrato temporário. São maneiras de ficar à margem das regras, ao mesmo tempo em que reivindicam se tratar de grandes inovações para a educação.
São proposições manifestas em projetos de lei, editais e resoluções, que introduzem vínculos extremamente precários nas redes públicas. Destas formas, os docentes só são remunerados se e quando são convocados para atuação esporádica. No fim, são vagas destinadas a quem está desempregado e precisa trabalhar, o que os insere na superpopulação de professores instáveis, constituindo a uberização do trabalho docente.
Sem tempo de serviço estipulado por meio contratual, tais práticas colidem com o princípio da legalidade, dispostos nos artigos 5º e 37º da Constituição Federal (BRASIL, 1988), os quais obrigam a Administração Pública a fazer somente o que está previsto em lei. Portanto, há inconstitucionalidade nas referidas iniciativas. Além disso, contrariam os princípios legais regidos pela LDB 9394/1996 que diz em seu Art.
67 que os sistemas de ensino promoverão a valorização dos profissionais da educação, assegurando-lhes, inclusive nos termos dos estatutos e dos planos de carreira do magistério público:
I - ingresso exclusivamente por concurso público de provas e títulos; II - aperfeiçoamento profissional continuado, inclusive com licenciamento periódico remunerado para esse fim;
- piso salarial profissional;
- progressão funcional baseada na titulação ou habilitação, e na avaliação do desempenho;
- período reservado a estudos, planejamento e avaliação, incluído na carga de trabalho;
- condições adequadas de trabalho (BRASIL, 1996).
Portanto, os projetos propostos contrariam a LDB, não possuem previsão legal e ferem a isonomia estatutária prevista na Constituição Federal, todavia, surgem e se apresentam sem pudores. Apesar dos impedimentos momentâneos e da resistência efetivada contra todos eles, teme-se que, num contexto de liberação das terceirizações, privatizações e de um duro ajuste fiscal com austeridade, os concursos públicos sejam cada vez menos realizados e que os professores efetivos deem lugar aos prestadores de serviços.
O artigo 170 da Constituição Federal (BRASIL, 1988) explicita a valorização do trabalho humano com o fim de assegurar uma existência digna. Consta-se, no entanto, uma antípoda deste cenário. Os desdobramentos da alienação do trabalho docente, decorrente da reificação sob as relações apresentadas neste texto, têm levado os professores a perderem o controle sobre a própria atividade que desenvolvem, afastando-os precisamente do processo social através do qual se constitui o seu trabalho.
Além disso, é preciso atentar que a tendência latente de uberização do trabalho docente pode vir a aliar o trabalho intermitente com o monitoramento9 e o controle,
9 Hoje os docentes já são monitorados ideologicamente pelo Movimento Escola Sem Partido. As denúncias geralmente são feitas pela internet, onde alunos e pais atuam como chefes destemperados que presumem que podem denunciar um professor a qualquer momento, caso considerem que o conteúdo do ensino ministrado seja contrário às suas convicções políticas, morais e religiosas.
fazendo com que os sistemas de reputação se coloquem como um mecanismo de controle mais rígido para estilos disciplinares centralizados, visto que as formas de gerencialismo não são novidades dentro das escolas e das redes públicas de educação.
Na economia do compartilhamento há uma relação entre fornecedores de serviço e consumidores em que as regras de proteção do consumidor são substituídas por algorítimos e sistemas de classificação (reputação). Esta lógica pode se estender para as demais profissões, inclusive para o ranqueamento de professores que atuam nas redes públicas. Assim os próprios “consumidores do serviço” fiscalizariam as supostas “más condutas” dos professores, completando um quadro de uberização do trabalho docente.
Como no Uber, em que no coração do controle está o sistema de reputação do motorista, que permite aos passageiros classificar os condutores, o mesmo poderia ser atribuído ao trabalho docente. Assim, os professores também poderiam ser avaliados por estas plataformas e, dependendo do resultado de seu desempenho, permaneceria ou não como um candidato ao trabalho.
Desta maneira, a “responsabilização” dos docentes agora seria colocada como tarefa da população em geral por meio do monitoramento, o que coincide com os mecanismos de vigilância e fiscalização muito presentes na “uberização do trabalho”, destacada na primeira parte deste artigo. O “gerente coletivo”, a “multidão vigilante” (ABÍLIO, 2017) seriam agora os próprios alunos, os pais ou responsáveis e a comunidade em geral, que teriam a função de supervisionar os professores, regulando o absenteísmo e o desempenho docente.
A “Uberização” se apresenta como um caminho aparentemente rápido e fácil para conseguir algum tipo de remuneração, dizendo que há lugar para todos e que o trabalhador é gerenciador de si próprio (ele trabalha quando quer e da forma que ele quiser). No entanto, o fato de existir uma empresa que se coloca como mediadora do encontro entre aqueles que fornecem o serviço e aqueles que querem comprar, não muda as relações de trabalho. O gerenciamento permanece nas mãos da classe dominante e a subordinação continua cabendo aos trabalhadores, que neste caso se
inserem em jornadas extenuantes para terem algum rendimento, arcam com todos os custos advindos do próprio trabalho e no final do mês muitas vezes acabam ganhando menos que um salário mínimo.
Essa lógica que vem assolando o mundo do trabalho e atingindo fortemente um amplo contingente de trabalhadores desempregados tem se estendido para o setor público. A uberização do trabalho docente mostra-se como um futuro possível para as redes públicas em geral, utilizando-se do trabalho intermitente de seus professores de acordo com sua necessidade. Políticas educacionais que vem sendo implementadas como a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), a Reforma do Ensino Médio com seus itinerários formativos e o incentivo à educação à distância tentem a agravar a uberização e, consequentemente, a precarização do trabalho docente.
Em tempos em que os professores foram eleitos como inimigos da nação, sob acusação constante de “doutrinação ideológica” é necessário apontar as múltiplas formas e tendências de precarização do trabalho docente. Para tanto, destacou-se neste artigo uma forma que o trabalho docente tem assumido (uberização) que, além de tornar a realidade dos professores brasileiros algo bastante preocupante, nos coloca a tarefa de buscar compreendê-la.
Por certo, a tendência de uberização do trabalho docente não é a única forma de precarização (SILVA, 2017, 2018), no entanto, nos limites deste artigo, foi pertinente fazer esse recorte, pois a tendência de tornar o trabalho docente intermitente é algo que está no horizonte das redes públicas e tende a se alastrar nos próximos anos com o crescente corte de verbas e a limitação dos investimentos em educação.
A utilização de um aplicativo, como propôs a prefeitura de Ribeirão Preto se coloca como uma realidade próxima para as redes públicas. Sob a lógica do monitoramento ideológico, o incentivo de autoridades governamentais para que os professores sejam filmados por seus alunos tende a crescer. Assim, a tecnologia não ajudaria só a convocar docentes para o trabalho, mas também a vigiá-los e puni-los.
Por fim, cabe destacar que muitas das iniciativas tratadas aqui não foram materializadas devido aos impedimentos dos meios judiciais e por meio da organização dos trabalhadores da educação junto aos seus sindicatos. No entanto, elas se colocam como tendências muito possíveis de serem implementadas num futuro próximo, caso não haja a necessária contestação de tais medidas.
ABÍLIO, L. C. Uberização do trabalho: subsunção real da viração. Blog da Boitempo, 2017. Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2017/02/22/uberizacao- dotrabalho-subsuncao-real-da-viracao/. Acesso em: 06 jul. 2017.
ARANHA, W. L. A. Professores eventuais nas escolas estaduais paulistas: ajudantes de serviço geral da educação? 2007. 102f. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Araraquara, 2007.
BASÍLIO, J. R. Contratos de trabalho de professores e a construção da condição docente na escola pública paulista (1974-2009). 2010. 122f. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2010.
BRASIL. Lei nº 9394/1996, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, 1996.
. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988.
. Lei 13.415, de 16 de fevereiro de 2017, Altera as Leis nos 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, e 11.494, de 20 de junho 2007, que regulamenta o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação, a Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, aprovada pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1o de maio de 1943, e o Decreto-Lei no 236, de 28 de fevereiro de 1967; revoga a Lei no 11.161, de 5 de agosto de 2005; e institui a Política de Fomento à Implementação de Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral, 2017.
CONSELHO MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO. Parecer nº 01/2017. Projeto de Lei Complementar que dispõe sobre o credenciamento de professores substitutos para ministrarem aulas avulsas surgidas na rede municipal de ensino de Ribeirão Preto, 2017. Disponível em: https://www.ribeiraopreto.sp.gov.br/seducacao/conselho/i15ind- conselho.php. Acesso em: 18 jul. 2017.
FONTES, V. Formação dos trabalhadores e luta de classes. Trabalho Necessário.
Ano 14, n. 25, 2016.
. Capitalismo em tempos de uberização: do emprego ao trabalho. Marx e o Marxismo, v. 5, n. 8, jan./jun. 2017.
FREITAS, L. C. Charterização e Uberização: destruindo profissões. Blog do Freitas, 2016. Disponível em: https://avaliacaoeducacional.com/2016/12/18/charterizacao-e- uberizacaodestruindo- profissoes/. Acesso em: 05 abr. 2017.
GESQUI, L. C. Formação e condições de professores eventuais atuantes na rede pública estadual. 2009. Disponível em:
http://www.anped.org.br/reunioes/32ra/arquivos/trabalhos/GT08-5344--Int.pdf. Acesso em: 29 nov. 2011.
MOREIRA, R. Prefeitura de Ribeirão Preto planeja criar ‘Uber do Professor’. Estadão, 2017. Disponível em: https://www.acidadeon.com/cotidiano/NOT,2,6,1262086,Prefeitura+de+Ribeirao+Pret o+planeja+criar+Uber+do+Professor.aspx. Acesso em: 18 jun 2018.
MOURA, C. B. A precarização do trabalho docente nas escolas estaduais paulistas. 2013. 127f. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista, Marília, 2013.
PETROLINA/PE (Município). Credenciamento nº 006/2017. Processo administrativo nº 267/2017, 2017.
POCHMANN, M. Entrevista. Revista Poli: saúde, educação e trabalho. Ano IX, Nº 48, Rio de Janeiro. nov./dez. 2016a.
PARTIDO DA SOCIAL DEMOCRACIA BRASILEIRA. Prefeitura tucana cria “Uber da educação”. 2017. Disponível em: http://www.psdb.org.br/acompanhe/noticias/prefeituratucana-cria-uber-da-educacao/. Acesso em: 15 jul. 2017.
SALDAÑA, P. Ausência de professor da rede pública chega a 30 dias no ano no Estado de SP. São Paulo: Folha de São Paulo, 2017. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2017/07/1903769-ausencia-deprofessor-da- rede-publica-chega-a-30-dias-no-ano-no-estado-de-sp.shtml. Acesso em: 26 set.2017.
SILVA, A. M. Tempo e Docência: dilemas, valores e usos na realidade educacional. Jundiaí: Paco Editorial, 2017.
. Dimensões da precarização do trabalho docente no século XXI: o precariado professoral e o professorado estável-formal sob a lógica privatista empresarial nas redes públicas brasileiras. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018.
SLEE, Tom. Uberização: a nova onda do trabalho precarizado. São Paulo: Editora Elefante, 2017.
SOUZA, A. N. A modernização do trabalho de professores: processos de precarização e ataque ao trabalho. In: 36º ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS. 2012. Anais... Águas de Lindóia/SP, 2012. Disponível em: https://anpocs.com/index.php/papers-36- encontro/gt-2/gt08-2/7923-amodernizacao-do-trabalho-de-professores-processo-de- precarizacao-e-ataque-aotrabalho/file>. Acesso em: 23 set. 2017.
. Professores, modernização e precarização. In: ANTUNES, Ricardo (Org). Riqueza e Miséria do Trabalho no Brasil II. São Paulo; Boitempo, 2013. (p. 217-227).
SOUZA, E. P. O papel contraditório do professor eventual da rede pública de ensino do Estado de São Paulo na articulação das relações de trabalho e profissão docente: “lúmpen-professorado”?. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Humanidades e Direito, Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, 2012.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Pesquisa Nacional
THOMPSON. E. P. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das Letras. 2011.
VENCO, S. Situação de quasi-uberização dos docentes paulistas? Revista da ABET,
v. 17, n. 1, janeiro a junho de 2018.
. Uberização do trabalho: um fenômeno de tipo novo entre os docentes de São Paulo, Brasil? Caderno de Saúde Pública, 35, 2019.
v.17, nº 34, set-dez (2019) ISSN: 1808-799 X
Tatiane Cimara dos Santos Medeiros2 Daniela Oliveira Ramos dos Passos 3
Este trabalho tem por objetivo analisar as possíveis implicações das reformas do ensino médio e trabalhista para a Educação Profissional Técnica de Nível Médio. Trata-se de uma pesquisa em andamento, qualitativa e do tipo exploratória. Como resultado, a pesquisa demonstrou que tanto a Reforma Trabalhista, quanto a Reforma do Ensino médio mediante o discurso de flexibilização, tanto dos direitos trabalhistas, quanto do currículo do ensino médio buscam a redução dos gastos públicos para responder a crise capitalista e atender as demandas de setores neoliberais da política brasileira. Palavras-chave: Educação, Trabalho, Educação Profissional Técnica de Nível Médio.
Este documento tiene como objetivo analizar las posibles implicaciones de las reformas laborales y de la escuela secundaria para la educación técnica profesional de la escuela secundaria. Es una investigación exploratoria cualitativa. Como resultado, la investigación mostró que tanto la Reforma Laboral como la Reforma de la Escuela Secundaria a través del discurso de la flexibilidad, tanto los derechos laborales como el plan de estudios de la escuela secundaria buscan reducir el gasto público para responder a la crisis capitalista y satisfacer las demandas de sectores neoliberales de la política brasileña.
This paper aims to analyze the possible implications of high school and labor reforms for High School Technical Vocational Education. It is a qualitative exploratory research. As a result, the research showed that both the Labor Reform and the High School Reform through the discourse flexibility, both labor rights and the high school curriculum seek to reduce public spending to respond to the capitalist crisis and meet the demands of neoliberal sectors of Brazilian politics.
1 Artigo recebido em 22/05/19. Primeira avaliação em 22/07/19. Segunda avaliação em 01/08/19. Terceira avaliação em 20/08/19. Aprovado em 04/09/19. Publicado em 27/09/2019. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.17i34.p38054.
2 Pedagoga. Mestranda em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação e Formação Humana (PPGE) na Faculdade de Educação da Universidade do Estado de Minas Gerais (FaE-UEMG). E-mail: tcimara32@gmail.com. https://orcid.org/0000-0001-7070-0115
3 Doutora em Sociologia pela UFMG. Professora da Faculdade de Educação da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG). E-mail: ddanipassos@gmail.com https://orcid.org/0000-0002-3087-0694
Introdução
O final do século XX foi marcado por transformações no modelo de organização da produção taylorista/fordista4 que predominou nos países industrializados ao longo do século XX, para um modelo de acumulação flexível. Essas transformações foram causadas, principalmente, pela crise do capital que se agravou no início da década de 1970 e que levaram vários países a buscarem novas formas de organização da produção. O regime de acumulação flexível é caracterizado pela intensificação das inovações tecnológicas e por mudanças no mercado de trabalho, na produção e nos padrões de consumo (HARVEY, 2008).
Esse novo processo de organização da produção passou a exigir um trabalhador mais flexível, capaz de se adaptar as exigências do mercado de trabalho em constante mudança. Nesse contexto, a educação básica e, principalmente, a educação profissional técnica de nível médio (EPTNM) passa a ser valorizada como estratégia de formação de jovens para o mercado de trabalho no contexto da globalização e da produção flexível (FRIGOTTO, 2005).
A Educação Profissional, sobretudo a EPTNM – Educação Profissional Técnica de Nível Médio, tem sido fruto de debates entre grupos que apresentam diferentes concepções de formação. Por um lado, existem aqueles que defendem uma formação voltada para atender aos anseios do modelo de desenvolvimento econômico, por outro lado, existem aqueles que defendem uma educação voltada para uma formação humana e integral (FRIGOTTO; CIAVATTA; RAMOS, 2005).
No Brasil, desde o final do século XX, especialmente, após o governo de Fernando Collor de Mello (1990-1992) e Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), estão em ascensão as políticas neoliberais que tem como principais características fortalecer a liberdade de mercado e reduzir os gastos públicos com políticas sociais (Antunes, 2009). Nessa perspectiva, a recente aprovação da Reforma Trabalhista com a aprovação da Lei nº 13.467 de 13 de julho de 2017 e a Reforma do Ensino Médio
4 O modelo de organização da produção taylorista/fordista é caracterizado pelo trabalho fragmentado, pela decomposição das tarefas e pelo controle rígido dos tempos dentro da fábrica (ANTUNES, 2009). O fordismo se estruturou sob uma base tecnológica mecânica e eletromecânica caracterizada por uma maior rigidez e padronização de produção (FRIGOTTO, 2002). O taylorismo/fordismo começou a mostrar sinais de esgotamento devido a uma série de fatores, dentre eles, os problemas ligados à rigidez do modelo de organização fordista que dificultavam a realização de mudanças em um contexto de crise estrutural do capitalismo (ANTUNES, 2009).
com a Lei n. 13.415 de 16 de fevereiro de 2017 representou o compromisso do governo brasileiro com uma agenda de política neoliberal.
Tendo em vista que a educação profissional está inserida no contexto dessas reformas, este trabalho tem por objetivo analisar as possíveis implicações da aprovação da Lei n. 13.467/2017 e 13.415/2017 para a EPTNM. Trata-se de uma pesquisa qualitativa do tipo exploratório que utilizou como metodologia a revisão de literatura e a pesquisa documental. Além das legislações citadas acima, foram analisadas a Resolução do Conselho Nacional de Educação/Câmara de Educação Básica (CNE/CEB) n. 06 /2012, que institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Profissional Técnica de Nível Médio e o Parecer CNE/CEB n. 11/2012, que apresenta um relatório sobre a EPTNM.
Este artigo está dividido em três partes. Na primeira parte é apresentada uma breve reflexão sobre a relação entre trabalho e educação na sociedade capitalista. Em seguida apresentamos uma contextualização histórica e conceitual sobre a educação profissional para em seguida apresentar algumas características da Reforma Trabalhista e do Ensino Médio e discutir as possíveis implicações dessas reformas para EPTNM.
Trabalho e Educação
Pressupomos o trabalho como categoria central no processo de formação humana. Marx (2013), no Livro I de O Capital, toma o trabalho como a mediação necessária, indispensável e eterna envolvendo a natureza e os humanos. Pelo complexo categorial do trabalho, torna-se possível o desdobramento do processo de auto constituição do ser social. Portanto, em Marx:
O trabalho é um processo de que participam o homem [a mulher] e a natureza, processo em que o ser humano, com sua própria ação, impulsiona, regula e controla seu intercambio material com a natureza [...]. Atuando assim sobre a natureza externa e modificando-a, ao mesmo tempo modifica sua própria natureza [...]. Pressupomos o trabalho sob forma exclusivamente humana. Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e a abelha supera mais de um arquiteto ao construir sua colmeia. Mas o que distingue o pior arquiteto da melhor abelha é que ele figura na mente sua construção antes de transformá-la em realidade (MARX, 1867/2017, p.211-212).
Aqui não se trata ainda do trabalho na forma como o concebemos na realidade da história do tempo presente, o trabalho assalariado. Aqui, o trabalho é apresentado como a ontogênese humana, como a categoria fundante do desenvolvimento do ser social e, consequentemente, a construção do seu mundo, ou seja, da realidade social humana. Entendemos o trabalho tal qual como Marx (2013, p.255), “numa forma que ele diz respeito unicamente ao homem”. A célebre passagem da aranha e o tecelão ou da abelha e o arquiteto, conferem a dimensão exata que o complexo representa no processo de constituição e socialização da humanidade. O que Marx constata ao demonstrar e demarcar, com extremo rigor, a diferença entre o trabalho humano em relação à execução da atividade animal é: no primeiro caso, se realiza algo que já existia idealmente na mente do trabalhador (a), o trabalho enquanto pôr teleológico primário.
Esta realização se estabelece de forma consciente, com o uso de ferramentas adequadas à produção, matéria prima adequada ao processo de trabalho, tendo sempre a terra, a natureza, como meio universal para a execução do trabalho. “No processo de trabalho, portanto, a atividade do homem, com ajuda dos meios de trabalho, opera uma transformação do objeto do trabalho segundo uma finalidade concebida desde o início. O processo se extingue no produto” (MARX, 2013, p. 258). O trabalho, portanto, cumpre a finalidade de produzir valores de uso destinado à satisfação de necessidades humanas e, ao mesmo tempo, conduz o ser que se humaniza e socializa a um distanciamento contínuo das barreiras naturais. No segundo caso, o que ocorre é a realização de uma tarefa puramente fenomênica, um ato instintivo e repetitivo buscando alcançar o mesmo fim, porém não de forma consciente.
Portanto, segundo Marx (2017) o trabalho seria a ação do homem sobre a natureza com o objetivo de transformá-la para garantir sua própria sobrevivência. O trabalho, nesse caso, representaria tanto a dimensão biológica, pois é por meio deste que o homem produz o seu sustento, quanto à dimensão social e cultural dohomem.
Marx (2017) divide os componentes do trabalho em: atividade com o objetivo de produzir algo, ou seja, o trabalho em si; o objeto e os meios de trabalho. Segundo o autor, o que distingue diferentes épocas econômicas são os meios de trabalho, ou seja, as condições materiais que são necessárias à produção. Segundo Corrochano
(2014, p.206), “na perspectiva de Marx, a compreensão da sociedade passa pela compreensão de como os seres humanos produzem sua própria existência”.
O trabalho, portanto, é uma atividade histórica e por esse motivo assume diferentes formas no tempo e no espaço. Na sociedade capitalista, por exemplo, o trabalho é reduzido a uma mercadoria e perde seu caráter humanizador. Segundo Linden (2013), em uma perspectiva marxista, o indivíduo por não possuir outra mercadoria para colocar a venda, dispõe da sua força de trabalho no mercado. Todavia, é possível encontrar na sociedade uma classe de pessoas que, embora possuam os meios de produção, necessitam vender sua força de trabalho. Essa classe de pessoas é denominada pelo autor de “classe de trabalhadores subalternos” (LINDEN, 2013, p. 40).
As mudanças nos meios de produção têm consequências diretas nas relações de trabalho. No modelo de produção taylorista/fordista, por exemplo, prevalecia a racionalidade técnica. O homem era visto “como uma máquina a engatar corretamente com outras máquinas” (CANGUILHEN, 2001, p. 109). Segundo o autor5, na perspectiva taylorista o operário devia reagir, de forma mecânica, a todas as normas que lhes eram impostas. Procurava-se controlar racionalmente o tempo e os movimentos dos operários dentro das fábricas. Nesse modelo, o homem não é sujeito de suas normas, ou seja, ele fica submetido às normas que lhes são impostas por outros (CANGUILHEN, 2001, p. 120).
O trabalho em uma perspectiva tecnicista busca o cumprimento de normas prescritas com o objetivo de alcançar a eficiência. Todavia, o trabalho, nas suas diferentes formas, é uma “atividade humana nas condições histórica do momento” e não é “jamais pura execução, alienação”. Dessa forma, pensar o currículo de formação profissional não é apenas pensar em termos de “saberes antecipativos e transmissíveis” para atender à demanda do mercado de trabalho (SHWARTZ, 2008,
p. 45). É preciso pensar em uma formação que perceba o ser humano de forma integrada, em todas as suas dimensões.
5 Georges Canguilhem faz uma análise do livro Problème humains du machinisme industriel de Georges Friedmann, de 1946. Friedmann conduziu, durante vários anos pesquisas sobre as condições de trabalho nas “indústrias da América do Norte do ocidente europeu, durante a segunda revolução industrial caracterizada, do ponto de vista técnico, pelo uso da eletricidade” (CANGUILHEM, 2001, p. 109).
Educação Profissional Técnica de Nível Médio: aspectos históricos e conceituais.
Segundo Frigotto, Ciavatta e Ramos (2005) o ensino médio brasileiro é a maior expressão do dualismo na educação evidenciado nas contradições entre capital e trabalho, entre formação propedêutica e preparação para o trabalho. As principais reformas educacionais realizadas a partir da metade do século XX tinham como pano de fundo a preparação para o trabalho destinada a classe trabalhadora e uma educação geral para a elite.
Após 1940, a educação nacional passou a ser organizado por leis orgânicas6, estabelecidas pelo Ministro Gustavo Capanema, ainda na vigência do Estado Novo, que durou de 1937 a 1945, sob o governo de Getúlio Vargas. A Lei Orgânica do Ensino Secundário de 1942 regia o ensino secundário e um conjunto de leis orgânicas regulamentava o ensino profissional nos diversos ramos da economia e o ensino normal. Não havia, portanto, equivalência entre o ensino secundário e o ensino profissional. A proposta da Reforma Capanema se propunha a manter a dualidade presente na educação brasileira que definia uma educação propedêutica destinada à elite e uma educação profissional destinado à classe trabalhadora, educação essa que se fazia necessária para atender a demanda de mão-de-obra para a indústria nacional em expansão (GHIRALDELLI JÚNIOR, 2009).
A equivalência entre ensino técnico e ensino secundário só foi possível a partir de 1950, com as Leis de Equivalência7 e com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), Lei n. 4.024/1961, na qual permitiu que os estudantes do colegial técnico pudessem se candidatar ao ensino superior, o que não era permitido anteriormente (FRIGOTTO; CIAVATTA; RAMOS, 2005). Esse período foi marcado pelo aumento da urbanização e pela abertura da economia nacional ao capital estrangeiro com a entrada de multinacionais, principalmente a automobilística, ampliando a demanda por mão-de-obra qualificada (GHIRALDELLI JÚNIOR, 2009).
Durante a ditadura militar, acentuou-se o processo de vinculação da economia ao capital internacional. Na educação, destaca-se o acordo realizado entre Brasil e
6 Decreto-Lei n. 4.244 de 9 de abril de 1942, Lei Orgânica do Ensino Secundário; Decreto-Lei n. 4.073, de 30 de janeiro de 1942, Lei Orgânica do Ensino Industrial; Decreto-Lei n. 6.141, de 26 de dezembro de 1942, Lei Orgânica do Ensino Comercial; Decreto-Lei n. 8.530, de 2 de janeiro de 1942, Lei Orgânica do Ensino Normal. Os cursos profissionalizantes só davam acesso ao curso superior da mesma área (GHIRALDELLI, 2009).
7 As leis da equivalência são: Lei nº 1.076/1950; Lei nº 1.821/1953; Lei nº 3.552/1959.
Estados Unidos- MEC-USAID (Ministério da Educação e Cultura e United States Agency for International Development), pelo qual o Brasil recebeu ajuda técnica e cooperação financeira para implantação de reformas na educação. Essas reformas se assentavam, sobretudo, na articulação entre educação e desenvolvimento, com o objetivo de formar profissionais para atender a demanda por mão de obra especializada para o mercado em expansão (ARANHA, 2006).
Nesse contexto, a Lei n. 5692/1971 (LDBEN) instituiu a profissionalização compulsória no ensino secundário com o discurso de conter a pressão pelo ensino superior e suprir a demanda por técnicos de nível médio. Houve, porém, muita resistência, tanto por parte de pais e estudantes, quanto por parte dos estabelecimentos de ensino que preparavam os jovens para o ensino superior (FRIGOTTO; CIAVATTA; RAMOS, 2005, p. 34).
O ensino técnico, nesse momento, acabou por assumir duas funções: a primeira, a de formar técnicos; a segunda, a de formar candidatos para os cursos superiores. Diferentemente do período pré-industrial, nessa fase o projeto de ascensão da classe média não se dava mais pelas iniciativas individuais em pequenos negócios, mas deslocou-se para a hierarquia das burocracias públicas ou privadas. Portanto, se numa etapa de desenvolvimento incipiente o curso universitário significava o coroamento de uma trajetória social de condições socioeconômicas estáveis e consolidadas, na etapa de industrialização acelerada e de concentração de renda, esse curso passou a ser condição necessária para a possibilidade de ascensão social (FRIGOTTO; RAMOS, 2017).
A Lei no 5.692/71 carregou em si a função de conter essa demanda, mesmo que tal propósito não apareça claramente. Nesse período, as reformas educacionais fizeram parte do mito da economia planificada no interior de um sistema capitalista. Os I e II Planos Nacionais de Desenvolvimento espelham a determinação dos governos da ditadura empresarial militar em implementar o desenvolvimento acelerado com influência crescente da máquina estatal. As políticas se delinearam com a intenção de criar condições para o país enfrentar a competição econômica e tecnológica modernas. A entrada das multinacionais no país era significativa e as principais fontes de financiamento eram o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento, o BID (FRIGOTTO; RAMOS, 2017, p.31).
A promulgação da Constituição Federal de 1988 trouxe avanços para a educação. Destaca-se, entre outros, a gratuidade e obrigatoriedade do ensino
fundamental, a progressiva extensão para o ensino médio e a vinculação de recursos públicos para educação. Após a aprovação da Constituição de 1988, iniciou-se o processo para elaboração da nova LDBEN. O projeto original do relator Jorge Hage, mais comprometido com um projeto democrático de educação, resultou de um amplo debate com a Câmara e a Sociedade Civil. Todavia, o então senador Darcy Ribeiro apresentou outro projeto que foi aprovado em 1996. Esse novo projeto, mais alinhado com as políticas neoliberais, delegou ao setor privado parte de suas obrigações, sobretudo, com a educação profissional. Dessa forma, ampliaram-se as escolas técnicas privadas que tinham como foco atender as demandas do mercado de trabalho (ARANHA, 2006).
Nesse período, foi aprovado o Decreto 2.208 de 17 de abril de 1997 que regulamentou a LDBEN/1996 no que tange a educação profissional. Esse decreto definiu a separação entre ensino médio e ensino técnico, possibilitou a certificação por competência, além de impor a formação técnica apenas nas formas concomitantes e subsequentes (AFONSO; GONZALEZ, 2016).
Por volta da década de 1990, no Brasil, o neoliberalismo começou a ser mostrar forte, primeiro com Fernando Collor de Mello e posteriormente nos oito anos de governo de Fernando Henrique Cardoso. Esse contexto aprofundou o projeto de sociedade de capitalismo dependente, onde a filosofia que se implementaria, com o avanço da globalização, seria terceirização do ensino (universidades, por exemplo). Termos que, desenvolveu-se dentro do Conselho Nacional de Educação uma “renovação conservadora”, ou seja, disseminou-se o preceito da flexibilidade e do individualismo sobre a égide do neoliberalismo econômico e da cultura pós-moderna. Tal preceito, não tardou chegar para pensar também o então Ensino Médio (FRIGOTO; RAMOS, 2017).
No ano de 2004, no entanto, houve uma mudança nos rumos da EPTNM durante o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, com a aprovação do decreto
5.154 de 23/07/2004, que revogou o anterior 2.208/1997. Esse decreto abriu a possibilidade da formação técnica integrada ao ensino médio na perspectiva da politécnica, muito embora, as formas concomitantes e subsequentes fossem mantidas (BRASIL, 2004). Segundo o artigo 36-A da LDBE/1996 os cursos que correspondem a Educação Profissional e Tecnológica são: “formação inicial e continuada ou qualificação profissional; Educação Profissional Técnica de Nível Médio; Educação
Profissional Tecnológica, de graduação e de pós-graduação” (BRASIL, 2012a). Com relação à EPTNM, os artigos 36-B e 36-C prevê que esta poderá ser desenvolvida nas seguintes formas: articulada ao ensino médio e subsequente, para quem já tenha concluído o ensino médio. Quando articulada, a EPTNM poderá ser desenvolvida na forma de cursos integrados e concomitantes (BRASIL, 1996).
Uma educação politécnica, conforme se pretende alcançar com a proposta de ensino médio integrado, busca romper com a “dicotomia entre educação básica e técnica, resgatando o princípio da formação humana em sua totalidade” (Frigotto; Ciavatta; Ramos, 2005, pag. 35). Trata-se de uma educação que não se pauta apenas por objetivos do mercado e que busque “integrar ciência, humanismo, e tecnologia visando ao desenvolvimento de todas as potencialidades humanas” (FRIGOTTO; CIAVATTA; RAMOS, 2005, p. 36).
Politecnia diz respeito ao domínio dos fundamentos científicos das diferentes técnicas que caracterizam o processo de trabalho produtivo moderno. Está relacionada aos fundamentos das diferentes modalidades de trabalho e tem como base determinados princípios, determinados fundamentos, que devem ser garantidos pela formação politécnica. Por quê? Supõe-se que, dominando esses fundamentos, esses princípios, o trabalhador está em condições de desenvolver as diferentes modalidades de trabalho, com a compreensão do seu caráter, da sua essência. Não se trata de um trabalhador adestrado para executar com perfeição determinada tarefa e que se encaixe no mercado de trabalho para desenvolver aquele tipo de habilidade. Diferentemente, trata-se de propiciar-lhe um desenvolvimento multilateral, um desenvolvimento que abarca todos os ângulos da prática produtiva na medida em que ele domina aqueles princípios que estão na base da organização da produção moderna. (SAVIANI, 2003, p 140).
Com relação à integração entre ensino médio e ensino técnico, Frigotto, Ciavatta e Ramos (2005) destacam
A possibilidade de integrar a formação geral e formação técnica no ensino médio, visando a uma formação integral do ser humano é, por essas determinações concretas, condição necessária para a travessia em direção ao ensino politécnico e à superação da dualidade educacional pela superação da luta de classes. (FRIGOTTO; CIAVATTA; RAMOS, 2005, pag. 35).
A ideia passou a ser investir maciçamente na chamada “concomitância interna”, ou seja, na garantia de que todos os/as alunos/as que cursassem o Ensino Médio nessas instituições (Institutos Federais de Educação, Ciências e Tecnologia – IF ou
nas antigas escolas federais técnicas e agrotécnicas e CEFETS), tivessem o direito de também nelas cursar o Ensino Técnico. Tal medida gera um interesse por parte dos estudantes pela formação profissional de nível médio e também expressa a preocupação e a possibilidade de consolidar a função dos cursos técnicos como trajetória alternativa às universidades (FRIGOTO; RAMOS, 2017).
Para alcançar a integração entre formação geral e formação técnica é preciso pensar os desafios da organização do currículo nessa perspectiva. Segundo Ramos (2005), o currículo na perspectiva tecnicista é fragmentado e abstrato e considera os conteúdos de ensino de forma isolada da realidade concreta. Já na proposta da integração, a organização curricular busca romper com esse caráter tecnicista ao conceber o currículo tendo como base “[...] a compreensão do real como totalidade histórica e dialética” (RAMOS, 2005, p. 114). Nessa perspectiva, um determinado processo de produção, ao ser analisado como parte de uma realidade mais ampla, pode ser analisado nas suas múltiplas dimensões tais como: econômica, produtiva, social, política, cultural e técnica (RAMOS, 2005, p. 120).
Para entendermos a proposta nacional da educação profissional e tecnológica no país, em termos de organização e concepção de educação profissional, analisamos a Resolução do Conselho Nacional de Educação/Câmara de Educação Básica (CNE/CEB) n. 06 /2012. Essa resolução institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Profissional Técnica de Nível Médio de forma articulada com o Parecer CNE/CEB n. 11/2012, que apresenta um relatório sobre a EPTNM, visto que este último documento possibilita compreender os fundamentos da referida resolução.
O artigo 3º da Resolução CNE/CEB nº 06 /2012 apresenta a organização dos cursos da EPTNM. Estes devem ser organizados por eixos tecnológicos que compõe o Catálogo Nacional de Cursos Técnicos de Nível Médio. O eixo tecnológico garante mais coerência, pois identifica um conjunto de tecnologias que se encontram associadas e que dão sustentação à produção de um bem ou serviço. Essa forma de conceber e organizar a tecnologia estão de acordo com os princípios da politecnia, pois busca compreender os princípios gerais nos quais se fundamentam os processos de produção, além de resgatar a historicidade do processo de produção científica e tecnológica (BRASIL, 2012b, p.248).
Quanto aos princípios norteadores, o capítulo II da Resolução CNE/CEB nº
06/2012 apresenta 27 princípios da Educação Profissional Técnica de Nível Médio. Para análise, destacamos os seguintes:
– trabalho assumido como princípio educativo, tendo sua integração com a ciência, a tecnologia e a cultura como base da proposta político- pedagógica e do desenvolvimento curricular;
– articulação da Educação Básica com a Educação Profissional e Tecnológica, na perspectiva da integração entre saberes específicos para a produção do conhecimento e a intervenção social, assumindo a pesquisa como princípio pedagógico (BRASIL, 2012a).
O documento do Parecer CNE/CEB nº 11/2012 apresenta que as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Profissional Técnica de Nível Médio tem o “compromisso de ofertar uma Educação Profissional ampla e politécnica” e associa a isso as transformações ocorridas no mundo do trabalho (BRASIL, 2012b).
Essas transformações são decorrentes da substituição da base eletromecânica, presente no modelo de produção fordista, para a base microeletrônica. Segundo o documento, essas transformações influenciam diretamente a forma como a educação deve ser pensada, visto que a educação básica, principalmente o ensino médio, passa a ser reconhecida pelo seu importante papel na formação dos trabalhadores para atender as novas exigências do mercado de trabalho (BRASIL, 2012b).
Diante do exposto, é possível perceber que a concepção de educação profissional adotada no documento busca romper com a dualidade presente na sociedade brasileira, entre uma formação para a elite e uma formação para classe trabalhadora. Essa forma de conceber a educação profissional busca garantir uma formação integrada que articule trabalho, ciência, tecnologia e cultura (BRASIL, 2012b).
Com relação à formação integrada, o Parecer CNE/CEB nº 11/2012 evidencia a indissociabilidade entre a Educação Básica e a Educação Profissional e Tecnológica. Para tanto o documento destaca que uma educação integrada deve possibilitar o “acesso a conhecimentos científicos e tecnológicos” e promover a “reflexão crítica sobre os padrões culturais” e sociais (BRASIL, 2012b).
Reformas do Ensino Médio e trabalhista e as possíveis implicações para a EPTNM
A consolidação do modelo de produção taylorista/fordista se deu mediante a participação do Estado na regulação de políticas fiscais e monetárias e nos investimentos em políticas sociais com o objetivo de garantir o consumo de massa e o pleno emprego, necessários ao desenvolvimento da economia capitalista. A partir da década de 1960, entretanto, o modelo fordista, aliado às políticas keynesianas8, começou a dar sinais de esgotamento, e após a década de 1970 o capitalismo entrou em uma crise levando os vários países a reduzirem os gastos com políticas públicas sociais. Esse período é caracterizado pelo aumento do desemprego e pelo surgimento de formas de contratos de trabalho flexíveis, acompanhados de perdas dos direitos e proteções trabalhistas que foram adquiridas pelos trabalhadores (HARVEY, 2008).
O período após a década de 1980 foi marcado pela ascensão das políticas neoliberais e conservadoras em vários países do mundo, com destaque para experiência inglesa após a ascensão ao poder do Partido Conservador de Margareth Thatcher (1979 a 1997). No governo de Thatcher teve início a implantação de uma agenda de políticas que buscavam fortalecer a liberdade de mercado e previa, entre outros pontos, redução dos gastos públicos com políticas sociais, privatizações, redução da atividade sindical, desregulamentação das condições de trabalho e flexibilização dos direitos trabalhistas (ANTUNES, 2009).
No Brasil do tempo presente verifica-se, desde 2016, o acirramento do processo político/econômico iniciado na época do governo Collor, passando por Itamar, Fernando Henrique Cardoso, Lula e Dilma. O que caracteriza tais governos é a eliminação dos elementos sociais-democratas provindos da era taylorista/fordista à passagem ao sistema neoliberal, produto econômico/político da atual tecnologia de organização social do trabalho, o Toyotismo. Neste sentido, a partir do início do governo de Michel Temer, o país vem sofrendo um forte abalo em suas instituições políticas administrativas. Entre elas incluem-se as chamadas Reformas Trabalhista e do Ensino Médio.
8 Modalidade de intervenção do Estado na economia mediante a adoção das políticas propostas pelo sociólogo John Maynard Keynes. Tais políticas “[...] propunham solucionar o problema do desemprego pela intervenção estatal, desencorajando o entesouramento em proveito das despesas produtivas, por meio da redução da taxa de juros e do incremento dos investimentos públicos” (SANDRONI, 1999, p. 324).
A reforma trabalhista configura-se como o epicentro político/social/econômico que contempla a demanda posta pelo Toyotismo. Isso quer dizer que: um modelo de produção flexível baseado na utilização de tecnologia de ponta, que reduz a quantidade de força de trabalho necessita de regras de regulação igualmente flexíveis para a manutenção e ampliação das taxas de lucro através da intensificação e extensão da jornada de trabalho. Sendo assim, esta reforma aprovada e sancionada altera as relações de trabalho, mudando significativamente a CLT (Consolidação das Leis do Trabalho).
Entre as mudanças constam: a) os acordos coletivos de trabalho poderão se sobrepor (e até descumprir) a CLT em relação à jornada de trabalho e salário (negociado prevalece sobre a Lei), neste caso, o sindicato poderá ficar fora das negociações, desestruturando a ação coletiva; b) as férias poderão ser parceladas em até três vezes; c) a jornada de trabalho poderá chegar a até 220 horas mensais, 12 horas por dia (atualmente a jornada é de 8 horas diárias e 44 horas semanais); d) o intervalo para o almoço passa a ser de apenas 30 minutos (hoje é de no mínimo 1 hora e no máximo 2 horas); e) trabalho com jornada parcial, ou seja, a jornada passa das atuais 25 horas para 30 horas semanais, sem horas extras, ou para 26 horas semanais com até 6 horas extras; f) o tempo despendido até o local de trabalho e o retorno, por qualquer meio de transporte, não será mais computado na jornada de trabalho; g) a contribuição sindical passa a ser opcional, o que fragilizará os sindicatos;
h) cria-se a lei que permite a terceirização para atividades-fim; i) passa a ser permitido o trabalho de mulheres grávidas em ambientes considerados insalubres, desde que a empresa apresente atestado médico que garanta que não há risco ao bebê nem à mãe; j) mulheres demitidas têm até 30 dias para informar a empresa sobre a gravidez; entre outras alterações.
Entre as consequências dessa reforma estão, “a fragilização das instituições públicas e dos sindicados”, “esvaziamento da justiça do trabalho”, “redução da fiscalização” (KREIN, 2018). Além disso, Krein (2018) faz os seguintes apontamentos
[A Reforma trabalhista] busca ajustar o padrão de regulação do trabalho de acordo com as características do capitalismo contemporâneo, que fortalece a autorregulação do mercado ao submeter o trabalhador a uma maior insegurança e ao ampliar a liberdade do empregador em determinar as condições de contratação, o uso da mão de obra e a remuneração do trabalho (KREIN, 2018, p. 78).
No mesmo contexto da reforma trabalhista, temos também a Reforma do Ensino Médio9 aprovada a partir da Lei n. 13.415/2017, que teve como justificativa a baixa qualidade do ensino médio ofertado no país e o argumento de que o ensino médio não é atrativo aos estudantes o que leva a altas taxas de reprovação e evasão. De acordo com Marcelo Lima e Samanta Lopes Maciel no texto “A reforma do Ensino Médio do governo Temer: corrosão do direito à educação no contexto de crise do capital no Brasil”:
[...] os objetivos, conteúdos e funcionamento dessa etapa de ensino são objeto de grandes preocupações, que se desdobram em debates acerca de seu currículo e sua qualidade, quase sempre questionada com base nos dados do fluxo escolar disponíveis no Censo Escolar 2015, os quais dão conta de que mais de 80% das matrículas são ofertadas pelas redes estaduais de ensino, sendo a taxa líquida (sem distorção idade-série) inferior a 50% (INEP, s/d.). Com dados preocupantes nas avaliações e no fluxo escolar, não faltam aqueles governos que tentam [...] colocar em prática “reformas” do ensino médio que reinventam a roda. [Tais Reformas podem ser denominadas] de “administração em ziguezague”, que se caracterizam pelo eleitoralismo, o voluntarismo político e o experimentalismo pedagógico. É o que percebemos ao analisar a reforma do ensino médio em tela, na qual se observa “o entusiasmo com propostas curriculares elaboradas sem bases científicas [...] [que são] anunciadas como capazes de resolver os problemas educacionais”, as quais são “estendidas apressadamente para o conjunto da rede escolar, antes de ser[em] suficientemente testadas” (LIMA, MACIEL, 2018 p. 7-8).
Todavia, ao atribuir a baixa qualidade do ensino médio à sua organização curricular, os formuladores da reforma não levaram em consideração as condições precárias com as quais funciona a maioria das escolas brasileiras (Lima; Maciel, 2018). Além disso, as taxas de rendimento das escolas públicas regulares de Ensino Médio contemplam 13% de reprovação e 8% de abandono, sendo que as maiores taxas de reprovação (18%) e abandono (10%) ocorrem no primeiro ano. No que se refere à distorção idade série, a taxa é de 30% dos estudantes, podendo chegar a dois anos de atraso no percurso escolar (MEC/INEP, 2015). Cerca de 35% dos jovens entre 15 e 17 anos ainda se encontram no ensino fundamental e 17% encontram-se
9 No Brasil, o ensino médio, etapa final da educação básica, está consignado como direito da população de 15 a 17 anos, bem como para aqueles que não tiveram acesso a sua conclusão no tempo adequado. Atravessado por muitas questões desde sua configuração como colegial e educação de segundo grau, nos anos de 1960 e 1970, respectivamente, essa etapa de ensino é constantemente colocada em xeque em seu papel e funcionamento (LIMA; MACIEL, 2018).
fora da escola. Soma-se a essa realidade a elevada taxa de abandono escolar precoce, considerando que cerca de 32% dos jovens entre 18 a 24 anos de idade não concluíram o ensino médio e não estão estudando (FaE, UFMG, 2017).
Apesar da expansão do número de matriculas na educação básica, desde 1990, o que podemos observar, de acordo com os dados acima, é que ainda existem barreiras à garantia dos direitos dos jovens à educação pública e de qualidade, em especial, à universalização do Ensino Médio para a juventude, sendo esse um dos principais desafios das políticas educacionais. Assim, uma reforma do ensino médio precisa ter como foco a universalização dessa etapa, oferecendo condições físicas, materiais e de formação para o trabalho com qualidade.
Ao contrário, a Reforma do contexto tem como prioridade a “flexibilização” de conteúdos e métodos, o que amplia as desigualdades educacionais, não resolvendo as questões históricas e estruturais vivenciadas pela educação pública. Entre as mudanças propostas pela Reforma, destaca-se a ampliação da jornada em tempo integral, o currículo do ensino médio composto pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e por itinerários formativos. Com relação à flexibilização curricular, destaca- se que a lei não torna obrigatório a oferta de todos os itinerários formativos pelos entes federativos o que significa que a escolha por parte do estudante será condicionada pela oferta dos itinerários “sugeridos” pelo sistema de ensino. É importante destacar também que a ampliação da jornada em tempo integral esbarra na Emenda Constitucional n. 95 de 15 de dezembro de 2016, que limita os gastos públicos no futuro, e que implica na redução nos investimentos de infraestrutura das escolas e na formação dos professores (BRASIL, 2017).
Vale ressaltar, que ao longo da história política e econômica do Brasil, a cada mudança nas estruturas sociais entra em disputas também a necessidade de intervir no plano das ideias e da cultura, o que passa pela “transformação” dos processos educativos. A partir das modificações, com a Reforma do Ensino Médio, é perceptível uma possível “negação” da educação básica de qualidade, completa e de formação humana para os filhos/as da classe trabalhadora, onde a escolarização fica cada vez mais pragmática e restrita às ordens do mercado.
Em sentido oposto à proposta de uma formação integrada, a Reforma do Ensino Médio, Lei n. 13.415/2017, apresenta um retrocesso em relação ao direito da classe trabalhadora a uma educação básica de qualidade, sobretudo no que diz
respeito aos itinerários formativos, que retoma a dualidade no ensino médio ao definir que após cursar a formação básica o estudante será encaminhado para um dos itinerários formativos, que pode ser uma formação técnica profissional, a critério do sistema de ensino. É importante destacar que para ser docente nos cursos que compõem a formação profissional não há necessidade de uma formação especializada, bastando apenas obter o certificado de notório saber.
Dito isso, cabe afirmar que a Reforma do Ensino Médio tem características empresariais, ou seja, o processo formativo da educação profissional passa a ser definido em termos de uma formação instrumentalizada. Isso está presente na perspectiva que é posta para a formação profissional, assim como na ampla abertura para que essa formação se dê, inclusive, no âmbito da chamada qualificação profissional, no sentido negativo dela, que é uma qualificação de baixo nível. Além disso, a ênfase em disciplinas como português e matemática (e uma retirada do currículo das ciências humanas) significa não só um empobrecimento na área de formação profissional, mas também do ponto de vista econômico e do ponto de vista dos recursos do Estado, um favorecimento enorme ao setor privado em detrimento do setor público.
Assim como a reforma trabalhista visa à flexibilidade também a reforma do ensino médio segue essa lógica, onde uma formação técnica e profissional feita por meio de arranjos, sem qualquer preocupação com o acompanhamento e avaliação constante das experiências de formação para e/no trabalho, poderá contribuir para reproduzir trajetórias de trabalho precário entre a juventude.
Tecendo considerações
Das análises empreendidas até o momento, a partir da caracterização da proposta nacional da educação profissional e tecnológica presentes na proposta das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Profissional Técnica de Nível Médio (BRASIL, 2012a) e do Parecer CNE/CEB n. 11/2012, percebemos que esta está fundamentada na concepção do trabalho como princípio educativo, que considera o homem como produtor da sua realidade social e tem o trabalho como mediador nesse processo.
A organização curricular da EPTNM tem como base a integração, o que pressupõe a indissociabilidade entre as dimensões da formação humana: trabalho,
ciência, tecnologia e cultura, além de ter um compromisso com a superação da dicotomia historicamente presente no ensino médio entre trabalho manual e trabalho intelectual.
As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Profissional Técnica de Nível Médio, em consonância com a LDBE/1996, determinam que a EPTNM dever ser desenvolvida: articulada com o ensino médio ou subsequente. Quando articulada, poderá ser desenvolvida na forma integrada e concomitante sendo que a forma integrada é a melhor expressão de uma educação na perspectiva da politecnia, conforme apontado por Frigotto, Ciavatta e Ramos (2005).
Conforme mencionado anteriormente, o trabalho é uma atividade histórica e por esse motivo é determinado por diferentes relações que se estabelecem no tempo. O momento atual é de políticas de austeridade lideradas por grupos que estão no poder. A Reforma Trabalhista, Lei n. 13.467/2017 e a Reforma do Ensino Médio, Lei
n. 13.415/2017 buscam retirar os diretos adquiridos pelos trabalhadores e no campo da educação busca retomar a dualidade histórica no qual o ensino médio é sua maior expressão.
A reforma trabalhista, já aprovada, põe fim à proteção mínima do trabalhador e suas organizações sindicais, deixando-o a mercê do mercado. Tal reforma se conjuga ainda com a reforma da previdência, em pauta no Congresso Nacional. Aliado a essa mudança nas relações trabalhistas vem nesse contexto a reforma do ensino que cumpre a função de adestramento precoce dos/as filhos/as das classes trabalhadoras, além de lhes fechar o acesso à Universidade e ao mundo do trabalho mais dinâmico e complexo.
Depreende-se, portanto, que tanto a Reforma Trabalhista, quanto a Reforma do Ensino médio mediante o discurso de flexibilização, tanto dos direitos trabalhistas, quanto do currículo do ensino médio buscam a redução dos gastos públicos para responder a crise capitalista e atender as demandas de setores neoliberais da política brasileira, dentro do contexto da chamada “renovação conservadora”.
AFONSO, A.M.M. GONZALEZ. W.R.C. Educação Profissional e Tecnológica: análise e perspectivas da LDB/1996 À CONAE 2014.2016. Ensaio: Avaliação e Políticas Públicas em Educação. vol. 24, n.92, 2016.
ANTUNES, R. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. 2 ed. São Paulo: Boitempo, 2009.
ARANHA, M. L. A. História da Educação e da Pedagogia: Geral e Brasil. 3º ed. Moderna, 2006.
BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Parecer CNE/CEB nº 11, de 9 de maio de 2012. Trata das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Profissional Técnica de Nível Médio. Brasília: 2012b.
. Conselho Nacional de Educação. Resolução CNE/CEB nº 6, de 20 de setembro de 2012. Trata das Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio. Brasília: 2012a.
. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, 1988. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 25 jun. 2018.
. Decreto nº 2.208 de 17 de abril de 1997. Regulamenta o §2º do art. 36 e os artigos 39 a 42 da Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Diário Oficial da União, Brasília, 18 abril. 1997. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/seesp/arquivos/pdf/dec2208.pdf>. Acesso em: 25 jun. 2018.
. Decreto nº 5.154 de 23 de julho de 2004. Regulamenta o § 2º do art. 36 e os artigos 39 a 41 da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 26 jul. 2004.
. Lei nº 13.415 de 16 de fevereiro de 2017. Altera as Leis nos 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, e 11.494, de 20 de junho 2007, que regulamenta o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação, a Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, aprovada pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1o de maio de 1943, e o Decreto-Lei no 236, de 28 de fevereiro de 1967; revoga a Lei no 11.161, de 5 de agosto de 2005; e institui a Política de Fomento à Implementação de Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral. Diário Oficial da União, Brasília, 17 de fevereiro de 2017. Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2017/Lei/L13415.htm> Acesso em: 26 fev. 2019.
. Lei nº 13.467 de 13 de julho de 2017. Altera a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1o de maio de 1943, e as Leis nos 6.019, de 3 de janeiro de 1974, 8.036, de 11 de maio de 1990, e 8.212, de 24 de julho de 1991, a fim de adequar a legislação às novas relações de trabalho. Diário Oficial da União, Brasília, 14 de julho de 2017. Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2017/Lei/L13467.htm> Acesso em: 26 fev. 2019.
. Lei nº 9.394 de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Diário Oficial da União, Brasília, 23, dez. 1996. Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9394.htm> Acesso em: 25 jun. 2018.
CANGUILHEN, G. Meios e normas do homem no trabalho. Revista Pro-posições, Universidade Estadual de Campinas, v. 12, nº 2, Campinas: UNICAMP, 2001.
CORROCHANO, M. C. Jovens no ensino médio: qual o lugar do trabalho? In: DAYRELL, J.; CARRANO, P.; MAIA, C. L. Juventude e ensino médio: sujeitos e currículos em diálogo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014. <Disponível em: http://observatoriodajuventude.ufmg.br/publication/juventude-e-ensino-medio- sujeitos-e-curriculos-em-dialogo>. Acesso em: 09 dez. 2018.
Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais. Texto para discussão - Reforma do Ensino Médio - MP 746/2016. Observatório da Juventude UFMG, Belo Horizonte, 9 fev. 2017. Disponível em: http://observatoriodajuventude.ufmg.br/texto-para-discussao-reforma-do-ensino- medio-mp-7462016/
FRIGOTTO, G. Concepções e mudanças no mundo do trabalho e o ensino médio. In: FRIGOTTO, G.; CIAVATTA, M.; RAMOS M. (orgs). Ensino Médio integrado: concepções e contradições. São Paulo: Cortez, 2005. Cap.2. p. 57-82.
; CIAVATTA, M.; RAMOS M. A gênese do Decreto n. 5.154/2004: um debate no contexto controverso da democracia restrita. In: FRIGOTTO, G.; CIAVATTA, M.; RAMOS M. (orgs). Ensino Médio integrado: concepções e contradições. São Paulo: Cortez, 2005. Cap.1 p. 106-127.
. Contexto e Sentido Ontológico, Epistemológico e Político da Inversão da Relação Educação e Trabalho para Trabalho e Educação. Revista Contemporânea de Educação, vol.10, n.20, 2015. Disponível em: < Acesso em: 10 dez. 2018.
. Educação e formação humana: ajuste neoconservador e alternativa democrática. In: GENTILI, P.; SILVA, T. T. da. Neoliberalismo, qualidade total e educação. 11º ed. Editora Vozes, Petrópolis, 2002.
; Ramos, M. Resistir é preciso, fazer não é preciso: as contrarreformas do ensino médio no Brasil Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 14, v. 19, n. 46, p. 26-47, jul./dez. 2017.
GHIRALDELLI JÚNIOR, P. Filosofia e história da educação brasileira. 2 ed. [Kindle] São Paulo: Manole, 2009.
HARVEY, D. As transformações político-econômicas do capitalismo do final do século XX In: HARVEY, D. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. 17º ed. Edições Loyola, São Paulo, 2008. Pag.115 a 177.
KREIN, J. D. O desmonte dos direitos, as novas configurações do trabalho e o esvaziamento da ação coletiva: consequência da reforma trabalhista. Tempo Social, USP, v. 30, n. 1, 2018. Disponível em: < https://www.revistas.usp.br/ts/article/view/138082 >. Acesso em: 26 fev. 2019.
LIMA, M; MACIEL, S. L. A reforma do Ensino Médio do Governo Temer: corrosão do direito à educação no contexto de crise do capital no Brasil. Revista Brasileira de Educação v. 23 e230058, 2018. Disponível em: < http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S141324782018000100245 &lng=pt&nrm=iso >Acesso em: 26 fev. 2019.
LINDEN, M. Van der. Trabalhadores do mundo: ensaios para uma história global do trabalho. Campinas: Editora Unicamp, 2013.
MARX, K. O processo de trabalho. In: O capital: crítica da economia política. 35 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017.
RAMOS M. Possibilidades e desafios na organização do currículo integrado. In: FRIGOTTO, G.; CIAVATTA, M.; RAMOS M. (orgs). Ensino Médio integrado: concepções e contradições. São Paulo: Cortez, 2005. Cap.4 p. 21-56.
SANDRONI, P. Novíssimo Dicionário de Economia. [Kindle]. São Paulo: Editora Best Seller, 1999.
SAVIANI, D. Trabalho e educação fundamentos ontológicos e históricos. Revista Brasileira de Educação. Rio de Janeiro, v. 12 n. 34, 2007. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/rbedu/v12n34/a12v1234.pdf >. Acessado em: 09 jul. 2017.
SCHWARTZ, Y. O trabalho numa perspectiva filosófica. In: NOZAKI, I. (Org). Educação e trabalho: trabalhar, aprender, saber. Campinas, SP: Mercados das Letras, 2008.
v.17, nº 34, set-dez (2019) ISSN: 1808-799 X
Leonardo Dorneles Gonçalves2 Simone Gonçalves da Silva3
Abordamos a relação de trabalho e educação no ensino médio da Educação de Jovens e Adultos (EJA) e como se expressa o princípio educativo neste nível e modalidade. Sendo um estudo teórico e bibliográfico, nos valemos do debate da educação e trabalho no campo marxista. Analisamos como o princípio educativo se manifesta no ensino médio da EJA. As políticas educacionais para o ensino médio da EJA são complexas, pois há distanciamento entre as bases conceituais e o discurso oficial. Sustentam um projeto baseado na acumulação flexível, exigindo um trabalhador polivalente e induzem a formação para o mercado. O texto foi produzido no âmbito das discussões sobre as aproximações das pesquisas realizadas pelos autores em suas dissertações e teses.
Abordamos la relación de trabajo y educación en la secundaria de EJA y cómo si expresa el principio educativo en este nivel y modalidad. Siendo un estudio teórico y bibliográfico, nos valemos del debate de la educación y trabajo en el campo marxista. Analizamos cómo el principio educativo si manifiesta en la secundaria de EJA. Las políticas educativas para la secundaria de EJA son complejas, pues hay distanciamiento entre las bases conceptuales y el discurso oficial. Apoyan un proyecto basado en la acumulación flexible, exigiendo un trabajador polivalente/multifuncional y induce la formación para el mercado.
We approach the relation of work and education in the high school of the EJA and how the educational principle is expressed in this level and modality. Being a theoretical and bibliographical study, we use
1 Recebido em 13/05/2019. Primeira avaliação: 21/05/2019. Segunda avaliação: 21/05/2019. Aprovado em 12/08/2019. Publicado em 27/09/2019. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.17i34.p38056.
2 Doutor em Educação (UFPel). Professor Adjunto de Políticas Educacionais – Departamento de Ensino, Faculdade de Educação da Universidade Federal de Pelotas. dorneles05@gmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8093-8493
3 Doutora em Educação (UFPel). Professora do Pós-Graduação em Educação da Universidade do Oeste de Santa Catarina. silva.simonegon@gmail.com ORCID:https://orcid.org/0000-0001-5159- 2454
the debate of education and work in the Marxist field. We analyze how the educational principle manifests itself in the high school of the EJA. The educational policies for high school of the EJA are complex, because there is a distance between the conceptual bases and the official discourse. They support a project based on flexible accumulation, requiring a multipurpose worker and inducing training for the market.
O mundo atual tem convivido com rápidas e radicais transformações no campo do trabalho. Durante os primeiros três terços do século XX, conservou-se a separação entre pensamento e ação, direcionando uma pedagogia tecnicista centrada ora em conhecimentos intelectuais, ora nas atividades mecanizadas e manuais, reproduzindo um modelo de formação educacional/escolar dicotômico que, em síntese, atendeu as necessidades do regime de acumulação taylorista/fordista. Por isso, nos deparamos com transformações no processo de produção que implicam em novas exigências à escolarização, cuja finalidade é a formação de trabalhadores de um novo tipo (NEVES, 2000), mais adequado à aquisição de competências e habilidades do aprender a aprender (SAVIANI, 2010). Esse novo tipo, por sua vez, demanda uma nova perspectiva educativa ancorada em novas práticas e ordenamentos pedagógicos que oportunizem resultados imediatamente aptos aos interesses do mercado. A atualidade da divisão social e técnica do trabalho, reforçada pela prática contraditória da competitividade, da eficiência e do individualismo, sustenta este ideário.
Neste sentido, o processo da formação escolar tem apresentado credenciais que possibilitam a entrada de jovens e adultos no mercado de trabalho, ainda que isso não seja o suficiente para garantir a permanência e/ou manutenção neste mesmo mercado. Prova disso são os recentes investimentos em capacitação técnica de curta duração4, que se apresentam através da promessa de empregabilidade e da possibilidade de ascensão social, mas que nem sempre se constituem como efetiva entrada ao mercado, configurando na certificação um simulacro formativo (RUMMERT; ALGEBAILE; VENTURA, 2013). Isso ocorre, justamente, porque a dinâmica que determina o aumento ou diminuição da contratação da força de trabalho está atrelada ao aumento das taxas de lucro, o que, em si, não apresenta uma relação direta com a escolaridade. Independentemente disso, inúmeras
4 O Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego – PRONATEC pode ser um exemplo.
políticas públicas foram criadas como forma de garantir a ampliação do acesso à educação enquanto um direito subjetivo, conforme preconiza a Constituição Federal de 1988. Além disso, possibilitou aos jovens e adultos trabalhadores a certificação do processo educacional e, em certa medida, a formação de competências que os torne minimamente aptos às ocupações e ao emprego.
Entretanto, ao mesmo tempo em que se pode interpretar a existência de políticas públicas destinadas à educação de jovens e adultos, em seu sentido amplo, como uma resposta na forma de atendimento à necessidade de escolarização desses grupos que não tiveram acesso à escola em tempo previsto na lei, também é possível ler tal ampliação da oferta, por meio destas políticas, como expressão da educação como condição para empregabilidade. De uma forma ou de outra, parece- nos que os vínculos da formação dos jovens e adultos, sobretudo em nível médio, no atual estágio de desenvolvimento, expressam os interesses do tipo de trabalhador que as formas do capital demandam, ainda que essas formas não sejam notadamente perceptíveis em um primeiro momento, justamente porque se transvestem do discurso confuso pela democratização do acesso.
Sendo assim, neste texto, debatemos as relações entre trabalho, entendido em suas diversas e contraditórias manifestações, e educação, apresentada a partir dos direcionamentos políticos, principalmente aqueles aspectos que incidem diretamente na formação de jovens e adultos trabalhadores em nível médio. Este texto, então, caracteriza-se como um estudo teórico e bibliográfico que quer compreender a relação de trabalho e educação no ensino médio de educação de jovens e adultos, e como se expressa o princípio educativo neste nível e nesta modalidade. Para tanto, vale-se inicialmente do debate em torno do tema a partir de alguns autores para, posteriormente, visualizar as formas como o princípio educativo5 se manifesta no processo histórico do ensino médio de jovens e adultos.
5 A discussão de Trabalho como princípio educativo no campo de estudos no cenário brasileiro foi e vem sendo apreciado por um considerável conjunto de autores, entre os quais poderíamos citar os mais conhecidos, como Saviani (1986 e 1984), Kuenzer (1998 a, 1989, 2004), Frigotto (2001a, 2011b,
2002), Franco (1989), Machado (1989), Nosella (1989), Ferreti e Madeira (1992). No espectro mundial, seguindo uma tradição entre os marxistas, provalmente Gramsci tenha sido o pensador que mais debateu o tema, sem contar, é claro, Makarenko (1985) e também Pistrak (1981). Manacorda (1997), por sua vez, procura dissecar o assunto em Gramsci e Enguita (1993) (TUMOLO, 2005, p.240).
A fim de ampliar nossa análise, apresentamos a ideia de Marx e Engels sobre a educação politécnica e tecnológica, como proposta de integrar o trabalho produtivo ao escolar:
[...] Por educação entendemos três coisas: Educação intelectual. Educação corporal, tal como a que se consegue com os exercícios de ginástica e militares. Educação tecnológica, que recolhe os princípios gerais e de caráter cientifico de todo o processo de produção e, ao mesmo tempo, inicia as crianças e os adolescentes no manejo de ferramentas elementares dos diversos ramos industriais (MARX; ENGELS, 1992, p.60).
É necessário compreender esse debate teórico elaborado por Marx, no sentido amplo de educação politécnica, para uma formação geral que vincule a relação entre educação e prática social e o trabalho como princípio educativo. Também cabe destacar que esse pensamento abrange toda a educação básica, desde a educação infantil até o ensino médio, mas neste texto enfatiza-se o Ensino Médio de Jovens e Adultos.
O trabalho como princípio educativo leva-nos, a partir deste fundamento, a discuti-lo como elemento constitutivo do próprio ser humano. Tal discussão sustenta- se em Engels (2004, p. 13), em que o trabalho é a “condição básica e fundamental de toda a vida humana”, ao mesmo tempo em que o “trabalho criou o próprio homem”. Sendo assim, a natureza do homem é o trabalho, sua ontologia6.
É pelo processo do trabalho que o ser humano produz sua essência, sua funcionalidade social e sua história. Nesse sentido, o trabalho no processo histórico integra profundamente a relação homem e natureza, sendo indispensável para sua sobrevivência, enquanto atividade e valor de uso. “Antes de tudo, o trabalho é um processo entre o homem e a natureza, um processo em que o homem, por sua própria ação, media, regula e controla seu metabolismo com a natureza” (MARX, 2004, p. 36).
A relação do homem com a natureza está relacionada à sua apropriação e transformação dessa natureza em objeto para sua subsistência, em meios de criação ou local de utilização como processo de trabalho:
6 A termologia foi aprofundada por Lukács, na escrita: “Para a ontologia do ser social o trabalho”. Tradução do Prof. Ivo Tonet (UFAL), a partir do texto II Lavoro, primeiro capítulo do segundo tomo de Per uma Ontologia dell’ Essere Sociale. Roma: Editori Riuniti, 1981.
No processo de trabalho a atividade do homem efetua, portanto, mediante o meio de trabalho, uma transformação do objeto, pretendida desde o princípio. O produto extingue-se no produto. Seu produto é um valor de uso; uma matéria natural adaptada às necessidades humanas mediante transformação da forma (MARX, 2004, p. 40-41).
Nesse momento, percebe-se o processo de trabalho como reprodução social, o que vem marcando o desenvolvimento da sociedade, e diferenciando os homens dos animais, pela objetivação do pensamento, resulta no próprio trabalho. Posteriormente, encontra-se o processo de valorização que tem estreitado sua dimensão, representando a forma histórica do modo de produção do capital. Marx (2004, p. 67) apresenta
Como unidade do processo de trabalho e processo de formação de valor, o processo de produção é processo de produção de mercadorias; como unidade de processo de produção capitalista, forma capitalista da produção de mercadorias.
Com a diferenciação do trabalho social da apropriação do trabalho, em que entram em cena as questões de salário, preço e lucro, que são a base do sistema capitalista, a força de trabalho torna-se uma mercadoria. Para Marx (2004, p.92):
Esse tipo de troca entre capital e o trabalho é que serve de base à produção capitalista, ou ao sistema de trabalho assalariado e tem de conduzir, sem cessar, a constante reprodução do operário como operário e do capitalista como capitalista.
Diante disso, infere-se que quanto mais o trabalho produz, mais geração de mais valia e capital para os capitalistas, tende-se a um distanciamento do objeto e da função social do trabalho transformando-o em ação coisificada e alienada. Essas relações de produção e de alienação do trabalho que estabelecem a sociedade capitalista, quanto mais o trabalhador produz, mais se priva dos meios de vida. Isto ocorre porque primeiro o mundo exterior sensível deixa de ser objeto pertencente ao seu trabalho e segundo porque deixa de ser o meio direto de sua subsistência (MARX, 2004, p. 178). A partir dessa relação de estranhamento, desenvolve-se a propriedade privada, acumulação de riquezas daquele que compra a força de trabalho, pois a força de trabalho, como mercadoria, passa a ser propriedade daquele que paga pela produção de outras mercadorias.
Esse modo de produção que trata o trabalho como mercadoria marca os diversos e contraditórios regimes de acumulação e o próprio desenvolvimento do
capitalismo. Nesse sentido, cabe destacar a necessidade de se reafirmar a centralidade do trabalho, ainda que, para muitos críticos, a contemporaneidade seja caracterizada pelo fim de sua centralidade7. O trabalho assalariado, como emprego da mercadoria “força de trabalho” faz do ser humano mera peça na cadeia produtiva do capitalismo.
Entretanto, dado a concepção do trabalho como a práxis humana, de desenvolver as condições necessárias à existência como produção histórica e das relações sociais, é impossível negar a centralidade do trabalho, mesmo com a premissa de outro sistema que não seja o capitalismo, ou que as transformações sociais exigem menos força de trabalho humano. Tais argumentos são findáveis, de acordo com Antunes (2005, p. 39):
[...] em vez da substituição do trabalho pela ciência, ou ainda da substituição da produção de valores de troca pela esfera comunicacional ou simbólica, da substituição da produção pela informação, o que vem ocorrendo no mundo contemporâneo é uma maior inter-relação, maior interpenetração entre as atividades produtivas e as improdutivas, entre as atividades fabris e de serviços, entre atividades laborativas e as atividades de concepção, entre produção e conhecimento científico, que se expandem fortemente no mundo contemporâneo.
Diante das transformações do trabalho e sua organização, a reconfiguração do capitalismo exige uma nova relação com a produção do conhecimento, demandando uma nova formação oferecida aos estudantes nas instituições escolares. Enfim, constitui-se em um projeto educacional que acompanha o desenvolvimento de uma sociedade estruturada nas formas contemporâneas do modo de produção capitalista.
Com exigências que marcam a imposição e expansão do capital, a reestruturação produtiva vem apontando para uma produção mais aligeirada, com
7 Mesmo com a globalização e introdução de novas tecnologias, que pode representar acentuada redução do valor de uso da força de trabalho, refletir em as altas taxas de desemprego, o fim da centralidade do trabalho implicaria no extermínio da mercadoria força de trabalho o que, por sua vez, seria o fim do capitalismo. Dessa forma, entendemos que as dinâmicas das relações sociais de produção podem levar a um maior desemprego e o incentivo para uma formação mais intelectual e complexa. Mesmo assim, esse movimento não poderá negar a categoria trabalho, discutida por Engels, Marx e Lukács como fundamento do ser social e do processo de valorização e alienação, embora isso seja defendido por alguns autores como Viera e Ouriques (2006, p.155), em seu texto “Elementos para uma crítica da centralidade do trabalho”, onde defendem o movimento do Neolafarguismo, que propõe que os trabalhadores se libertem do jugo do trabalho, no qual a vida deixe de girar em torno do trabalho e de acumulação de riqueza, sendo essa uma invenção do capitalismo. Entendemos que para romper com o capitalismo é superar a exploração da força de trabalho, o que não significa o fim da centralidade do trabalho.
menor custo salarial. Com tais desafios as bases taylorista/fordista, centradas no tecnicismo e de ações mecanizadas, que deram origem ao ciclo das economias capitalistas, entram em crise, e se veem aos poucos sendo substituídas pelo regime de acumulação flexível (HARVEY, 1998). Tais mudanças influem na divisão social e técnica de trabalho e, consequentemente, alteram as relações entre trabalho e educação, pois o regime de acumulação flexível exige um trabalhador polivalente, demandando, por sua vez, educação polivalente, que promova articulação das experiências e atitudes, competências, habilidades, flexibilização e adaptação aos diferentes contextos do trabalho produtivo.
Cabe-se ressaltar que existem contradições como trabalho produtivo, servindo à degradação do próprio homem, na qual demandas da acumulação capitalista se apropriam da força de trabalho melhor qualificada dentro dos moldes do desenvolvimento econômico, industrial e tecnológico. Configura-se também maior exigência de escolarização para ocupar os novos postos de trabalho e pela promessa da empregabilidade, como uma responsabilidade individual.
Para Tumolo (2005, p. 256), “o trabalho só poderia ser princípio balizador de uma proposta de educação que tenha uma perspectiva de emancipação humana numa sociedade baseada na propriedade social”. O entendimento de trabalho como princípio educativo é mais do que apropriação pela classe trabalhadora de conhecimentos científicos, tecnológicos e sócio-históricos. Faz-se necessário compreender as contradições entre capital e trabalho, que envolvem a percepção das relações de trabalho vivenciadas na sociedade capitalista e as diferenças do estar empregado e a natureza do trabalho que constituem o próprio homem.
Seguindo a esteira da discussão do trabalho como princípio educativo, Frigotto, Ciavatta e Ramos (2005. p. 2) argumentam que:
O trabalho como princípio educativo vincula-se, então, à própria forma de ser dos seres humanos. Somos parte da natureza e dependemos dela para reproduzir a nossa vida. E é pela ação vital do trabalho que os seres humanos transformam a natureza em meios de vida. Se essa é uma condição imperativa, socializar o princípio do trabalho como produtor de valores de uso, para manter e reproduzir a vida, é crucial e “educativo”. [...] É dentro desta perspectiva que Marx sinaliza a dimensão educativa do trabalho, mesmo quando o trabalho se dá sob a negatividade das relações de classe existentes no capitalismo. A própria forma de trabalho capitalista não é natural, mas produzida pelos seres humanos. A luta histórica é para superá- la.
A constituição de um projeto educativo que valorize a formação do trabalhador é um espaço de luta hegemônica do capital, no qual muitos trabalhadores ficam desigualmente incluídos no sistema. É imprescindível romper com essa barreira desumanizadora do trabalho, criando condições para educar na perspectiva emancipatória, objetivando o papel da escola pela formação integral nas proposições da conscientização, da criticidade e dos conhecimentos científicos, sociais e culturais que valorizem o ser e o fazer humano. Como menciona Franco:
[...] Com isso, estaria dando a sua contribuição para que o futuro trabalhador tivesse acesso às novas contribuições da ciência e da técnica que, por sua vez, deverão ser revolucionadas pelo coletivo dos trabalhadores (FRANCO, 1988, p. 86).
Com base nas contribuições de Franco (1988), reitera-se o papel da escola que sustente uma concepção de educação baseada nas relações histórico-sociais como o aporte para a construção, ressignificação e consolidação de conhecimentos ao serem considerados os saberes constituintes dos sujeitos participantes nos processos formativos de ensino e aprendizagem. Em resposta ao princípio educativo específico do ensino médio, seja ele integrado ou profissionalizante, não deve ser pautado na preparação para o mercado, mas no método de estudo, pesquisa e contradições da sociedade pelo próprio trabalho que constitui o ser humano, sobretudo para o Ensino Médio de Educação de Jovens e Adultos, o qual não pode ser mencionado sem estar articulada ao trabalho, que exige o pensar na sociedade na sua complexidade e totalidade:
Se não se pode ignorar a importância da educação como pressuposto para enfrentar o mundo do trabalho, não se pode reduzir o direito à educação – subjetivo e inalienável – à instrumentalidade da formação para o trabalho com um sentido economicista e fetichizado. É, portanto, um desafio para a política de Educação de Jovens e Adultos (EJA) reconhecer o trabalho como princípio educativo, primeiro por sua característica ontológica e, a partir disto, na sua especificidade histórica, o que inclui o enfrentamento das instabilidades do mundo contemporâneo (FRIGOTTO, CIAVATTA, RAMOS, 2005, p. 15).
Na base da compreensão sobre a importância do Ensino Médio, considerada a última etapa da Educação Básica, a qual deve ser estendida à Educação de Jovens e Adultos, possui em sua gênese o trabalho como princípio educativo. Isso
implica que, assumir o conceito de Politecnia enquanto a junção entre educação e trabalho, no sentido ontológico, proporciona uma formação que articule o estudo e o aprendizado da ciência, da tecnologia, da vida, da política, da história, da sociedade e das transformações no mundo do trabalho. Há, ainda, outro aspecto a considerar sobre as relações entre trabalho e educação, isto é, a compreensão do que vem sendo produzido historicamente como políticas educacionais no ensino médio, em especial, na modalidade de jovens e adultos.
Diante das discussões sobre a relação de trabalho e educação é que, nesse momento, procura-se compreender historicamente a trajetória do Ensino Médio na Educação de Jovens e Adultos, a partir dos escritos de Frigotto, Ciavatta e Ramos (2005), Haddad (1987, 2000, 2007), Di Pierro (1992, 2000, 2001, 2005), Barreto
(2005), MEC (2009) e Nosella (2011), para analisar a possibilidade do trabalho como princípio pedagógico.
As primeiras ações educativas envolvendo adultos se configuram no Período Colonial, realizada pelos jesuítas, que alfabetizavam o povo como forma de catequização e doutrinação nas perspectivas religiosas do catolicismo, sendo compreendida nos aspectos da educação formal. Segundo Haddad e Pierro (2000), no período imperial encontramos informações sobre ações educativas a partir dos direitos legais, sendo a primeira “garantia de uma instrução primária e gratuita para todos os cidadãos” (p.109). Assegurada pela primeira Constituição Federal de 1824, esta que priorizava mais especificamente as crianças, ocasionando na época um crescente índice de analfabetos, no entanto, essa garantia foi concebida somente no aparato jurídico.
Durante a Primeira República, a Constituição Federal de 1891 delega a responsabilidade do Ensino Básico para os estados e municípios. Porém, na prática, esta não se efetiva, por falta de investimentos para garantir as propostas legais. Os dados do Censo de 1920 apontam que 72% da população acima de cinco anos permaneceu analfabeta e excluída do voto pela mesma constituição (BARRETO, 2005, p. 44). Cabe analisar que nesse momento se configura uma educação escolarizada voltada para as elites em detrimento das camadas populares, onde a
legislação, que garante uma escola para todos, avança lentamente, não passando da intenção legal.
Com o fim da Primeira Guerra Mundial e, posteriormente, a Revolução de 30, os altos índices de analfabetismo tornam-se uma preocupação social, política e econômica. Presente nesse contexto a dualidade do ensino médio (secundário) no Brasil, com o advento da industrialização, já era organizado um ensino com duas vertentes: um ensino secundário regular voltado para a elite e outro voltado para as classes trabalhadoras. Somente entrava para a universidade alunos provenientes das escolas secundárias:
A dualidade estrutural, que mantém duas redes diferenciadas de ensino ao longo da história da educação brasileira, tem suas raízes na forma como a sociedade se organiza, como expressa as relações e contradições do capital e trabalho (NASCIMENTO, 2007, p. 87).
Desde as primeiras décadas do século XX, a educação tem operado a partir das disputas entre as classes sociais, o que tem se traduzido hegemonicamente na formação de força de trabalho para atender à exigência do modelo industrial em expansão, suprindo as necessidades de produção de cada momento histórico. Com o desdobramento da Constituição de 1937, a Lei Orgânica do Ensino Secundário de 1941, a "Reforma Capanema" apresenta o ensino profissional passado para o nível médio, as escolas industriais dependiam de exames de admissão e os cursos foram divididos em dois níveis tendo dois ciclos, um básico e outro técnico industrial.
No mesmo período, surge o Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (INEP), criado em 1938, que no âmbito de suas pesquisas institui o Fundo Nacional de Ensino Primário e destina 25% de recursos financeiros para o ensino supletivo de jovens e adultos analfabetos. Demonstra-se, então, uma preocupação mais significativa na extensão da Educação de Jovens e Adultos, área que começa a se afirmar no campo das políticas nacionais. Essas iniciativas são decorrentes do processo contraditório do sistema capitalista e da aceleração da urbanização no Brasil, após a Segunda Guerra Mundial. Não se pode desconsiderar ainda, a influência da Organização das Nações Unidas, que em novembro de 1945, declara a importância da educação, em especial, a educação de adultos, para o desenvolvimento capitalista dos países. Assim é que nessa conjuntura política o empreendimento dos esforços para diminuição dos índices elevados do
analfabetismo, das promoções de ações educativas e da expansão do ensino emerge no intuito da redefinição do Estado no âmbito mundial.
Com a primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, n. 4.024, em 1961, foi possível aos diplomados das escolas técnicas o ingresso no ensino superior, através de um projeto que passou despercebido pela Câmara, habilitando os diplomados dos cursos técnicos ao ingresso no ensino superior (NOSELLA, 2011, p. 1054).
Posteriormente, com a formulação da Lei n. 5.692/1971 que redefine as Diretrizes e Bases da Educação Nacional, regulamenta-se a formação de técnicos em regime de urgência a fim de atender o acelerado processo de expansão industrial e infraestrutura brasileira. Com a reforma educacional dos governos militares, a Lei n. 5692/1971 propôs uma escola média única para todos com três anos de ensino médio (2º grau) para os jovens de 15 a 17 anos, com profissionalização obrigatória. Ocorria, então, a integração verticalizada do ensino profissional com o secundário.
A Lei n. 5.692/71, com o intuito de universalizar uma escola de técnicos submissos, de operadores práticos, fracassa, havendo o corte da parte humanística e crítica do currículo assim como o esvaziamento do ensino técnico. Também garante o ensino supletivo, que pela primeira vez, sistematiza o acesso de jovens e adultos ao ensino público em capítulo especial, pode-se considerar como uma primeira conquista no campo dos direitos da escolarização de jovens e adultos; contudo cabe ressaltar, que essa legislação concebia o ensino como suplência da escolarização regular e com complementação de cursos de aprendizagem (1º grau) e qualificação profissional (2º grau).
Tais providências, legitimadas pela hegemonia da Teoria do Capital Humano (SCHULTZ, 1971), que postula o investimento em educação como variável para o aumento da produtividade e, por conseguinte, ascensão social, se configura, mais uma vez, para atender a necessidade de formação de mão de obra das indústrias em desenvolvimento e manutenção no sistema capitalista, o qual identifica a educação como prioridade para acompanhar ao modelo global de sociedade.
Em 1980 o governo militar foi pressionado pela população para expansão da escola pública, em resposta ofereceu cursos noturnos e supletivos. Em seguida, em 1982, pela Lei n. 7.044/1982, determina-se que a profissionalização não mais fosse
obrigatória, mas opcional de cada escola. A partir da criação da Constituição Federal de 1988, que assegura a educação como direito de todos e dever do Estado, emerge a terceira Lei Federal n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996 – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), que apresenta inovações principalmente na seção que se destina a jovens e adultos.
Na nova legislação, o ensino supletivo passa por uma reconceituação, sendo entendido como Educação de Jovens e Adultos, integrante da Educação Básica (Ensino Fundamental e Ensino Médio) a ser oferecido gratuitamente e que pode acontecer por meio de cursos ou exames supletivos. Outra mudança é o rebaixamento das idades sendo de 15 anos para o Ensino Fundamental e 18 anos para o Ensino Médio. A EJA, modalidade da Educação Básica, é direito subjetivo garantido para “aqueles que não tiveram acesso ou continuidade de estudos nos ensinos fundamental e médio na idade própria e constituirá instrumento para a educação e a aprendizagem ao longo da vida” (BRASIL, 1996, Art. 37).
Nessa nova configuração política de redemocratização do país, também temos em pauta a volta da discussão polarizada: de um lado os neoliberais (meritocracia, identidade própria do ensino médio, retirando disciplinas de formação geral) e do outro lado os defensores do modelo de educação politécnica, organizados pelos sujeitos sociais forjados em movimento pelo fortalecimento da escola/educação pública.
Cabe ressaltar que a LDBEN de 1996 expressa uma conciliação entre as forças progressistas em defesa da educação pública e gratuita e, de outro lado, as alianças constituídas pelas forças neoliberais que visam o vasto mercado educacional; também, as neoconservadoras - contrárias à laicidade da educação e preservação da moralidade cristã.
No ano de 1997, com Decreto n. 2.208/1997, o grupo político hegemônico do governo neoliberal do então presidente da república Fernando Henrique Cardoso aprovou a divisão entre ensino médio regular e técnico, liberando o ensino técnico de qualquer controle burocrático. Com a mudança de governo em 2003 é regulamentado o decreto n. 2.208/1997 propiciando mudanças que se conservam, e criando o Decreto n. 5.154 de 2004 como política de integração entre a educação básica e a educação profissional, sendo oferecida a educação profissional e técnica simultaneamente ao longo do ensino médio em caráter opcional.
No quadro da política educacional brasileira pós anos 2000, é fundamental destacar a consolidação das formas como que o empresariado vai passando a influenciar os rumos da educação em todos os níveis, etapas e modalidades. A constituição do movimento “Todos pela Educação” aglutinando diversas organizações empresariais é um marco na reorientação da política educacional no país, a qual passa ser induzida pelos interesses deste movimento desde as estruturas dos governos. Se antes os empresários influenciavam pontualmente na educação e escola pública, sua ação, pós 2003, afetará toda política educacional. Por isso, é possível dizer, conforme a interpretação de Leher (2014) que todas as políticas desenvolvidas no âmbito educacional têm relação com os interesses dos empresários organizados no “Todos pela Educação”, principalmente após a instituição do Plano de Desenvolvimento da Educação – PDE.
Neste sentido, o decreto n. 5.840 de 2006 institui o Programa de Integração da Educação Profissional com a Educação de Jovens e Adultos- PROEJA. Assim, pela primeira vez, aparece especificamente o ensino fundamental, médio e a educação indígena integrados ao profissional voltado para a Educação de Jovens e Adultos, possibilitando o direito à formação mínima. As palavras recorrentes são: integração, articulação, interdisciplinaridade e inovação. Os eixos orientadores do ensino médio devem ser: trabalho, ciência, tecnologia e cultura. Dessa forma, possui outro programa profissionalizante, a Escola de Fábrica (com políticas compensatórias de viés assistencialistas e o PROJOVEM- inserção profissional), mas que, infelizmente possui um caráter de política curricular com ênfase no individualismo e na formação por competências designadas estritamente para o mercado de trabalho8.
Outras políticas ratificam a materialidade de nosso argumento: o Exame Nacional do Ensino Médio - ENEM - deixou de ser um simples instrumento de avaliação desse nível, para tornar-se a principal porta de acesso para a universidade pública brasileira, bem como instituições privadas (por meio do Programa
8 Além destas pode-se destacar algumas ações que buscaram estabelecer a reforma do Ensino Médio. Como o Ensino Médio Inovador proposto pelo Ministério da Educação (MEC), integrado as ações do Plano de Desenvolvimento da Educação – PDE. Essa proposta do MEC tem cinco questões centrais a serem discutidas no currículo do ensino médio. A primeira é estudar a mudança da carga horária mínima do ensino médio para três mil horas – um aumento de 200 horas a cada ano. Outra mudança é oferecer ao aluno a possibilidade de escolher 20% de sua carga horária e grade curricular, dentro das atividades oferecidas pela escola. Faz parte ainda da proposta, associar teoria e prática, com grande ênfase a atividades práticas e experimentais, como aulas práticas, laboratórios e oficinas, em todos os campos do saber; valorizar a leitura em todas as áreas do conhecimento; e garantir formação cultural ao aluno.
Universidade para Todos – PROUNI). Além disso, até 2016, o ENEM assumiu o caráter supletivo, sendo retomado pelo Exame Nacional de Certificações e Competências e Habilidades de Jovens e Adultos (ENCCEJA)9, uma vez que qualquer pessoa com o Ensino Fundamental completo, ao prestar o exame e ser aprovado, teria concluído o nível médio sem a necessidade de assistir uma aula sequer. Caso, ainda, o estudante tenha atingido a média para algum curso em nível superior, ele poderá matricular-se na universidade e iniciar a graduação.
Atualmente, a certificação de jovens e adultos, por exames nacionais, é oferecida para conclusão do Ensino Fundamental e do Ensino Médio pelo ENCCEJA. Segundo a Resolução do Conselho Estadual de Educação (CEED/RS) n. 313, de 16 de março de 2011, que estabelece orientações à oferta da Educação de Jovens e Adultos – EJA, no Sistema Estadual de Ensino do Rio Grande do Sul, argumenta que os exames supletivos ofertados a nível nacional avaliam habilidades e competências das áreas do conhecimento, especialmente as de leitura, interpretação e elaboração textual, e capacidade de resolução de problemas, por meio de questões interdisciplinares contextualizadas. As orientações curriculares do documento devem ser readequadas não só aos programas preparatórios para os exames, mas também as propostas pedagógicas dos cursos de EJA, tanto presenciais como a distância.
As orientações sustentadas pela Resolução justificam-se, segundo o documento, pela possibilidade de contribuírem na contextualização curricular da modalidade de EJA. Destaca-se, ainda, a necessidade da organização do currículo por áreas do conhecimento, com o planejamento integrado dos professores de cada uma das disciplinas das áreas numa visão interdisciplinar.
A reestruturação do Ensino Médio10, também, procurou levantar o debate sobre a problemática encontrada por esse nível, sobretudo num período em que se
9 Conforme estabelecido pela Portaria Ministerial n. 2.270, de 14 de agosto de 2002, no governo de Fernando Henrique Cardoso, foi criado o ENCCEJA. Uma política de oferta rápida de certificação do Ensino Fundamental e Médio a jovens e adultos que também almejavam a avaliação e a comprovação da conclusão dos níveis de ensino da Educação Básica. Segundo o site do portal do Ministério da Educação (MEC24), o ENCCEJA foi apresentado como proposta do MEC ao INEP com os seguintes objetivos: avaliar as habilidades e competências básicas da EJA e assim construir uma referência nacional de EJA, que compreenda as competências, habilidades e saberes adquiridos na educação formal ou dentre os diversos contextos que possibilitam a constituição de aprendizagens, como a família, as relações sociais, o trabalho, a religião, a participação em sindicatos e movimentos sociais, entre outros. Todos estes conhecimentos procuram estar presente nas questões de múltipla escolha.
10 Reestruturação e Expansão do Ensino Médio no Brasil (GT Interministerial instituído pela Portaria n. 1189 de 05 de dezembro de 2007 e a Portaria n. 386 de 25 de março de 2008).
iniciavam as formulações do texto para o Plano Nacional de Educação (PNE) (2014
– 2024). Motivada pela quase estagnação do índice de matrículas ocorridas nesse nível na primeira década do século XX11, a proposta para a reestruturação do ensino médio, grosso modo, buscou:
A melhoria da qualidade do ensino médio nas escolas públicas estaduais, promovendo, ainda, os seguintes impactos e transformações: superação das desigualdades de oportunidades educacionais; universalização do acesso e permanência dos adolescentes de 15 a 17 anos no ensino médio; consolidação da identidade desta etapa educacional, considerando a diversidade de sujeitos; oferta de aprendizagem significativa para jovens e adultos, reconhecimento e priorização da interlocução com as culturas juvenis (BRASIL, 2009, p. 5).
Articulado a essa política, foi lançado, no final do ano de 2013, o Pacto Nacional para Fortalecimento do Ensino Médio no Brasil. O pacto, ainda com pouco tempo de vida, é uma política proposta pelo governo federal e de livre adesão das secretarias estaduais de educação, cujo objetivo é, entre outros, capacitar as práticas dos professores para a implantação das Diretrizes Nacionais do Ensino Médio – DCNEM (2012). Além de oferecer assessorias locais, a política propõe uma verdadeira reestruturação do Ensino Médio, a aqueles estados que aderirem. O Pacto de Fortalecimento do Ensino Médio ofereceu a única possibilidade de formação que se aproximava da organização curricular assumida pelo Ensino Médio Politécnico no RS.
Nesse contexto, o trânsito para a aprovação do PNE em paralelo ao PDE expõe questões de superfície e fundo sobre o tema. Após amplos debates nas conferências municipais, estaduais e nacional, o Plano Nacional é a síntese democrática das orientações construídas por entidades representativas dos estudantes, pais, professores e comunidade que, durante dois anos definiram os rumos da educação para o decênio (2011-2020). Entretanto, este plano permaneceu até 2014 em debate, pois não havia consenso, principalmente sobre o valor da porcentagem do Produto Interno Bruto (PIB) que seria destinado à educação e se esse recurso seria direcionado às instituições públicas ou à educação de modo
11 Segundo Kuenzer (2010), “se as matrículas no ensino médio cresceram 32,1% entre 1996 e 2001, passando de aproximadamente 5,7 milhões para 8,4 milhões, no quinquênio seguinte cresceram apenas 5,6%, passando a decrescer a partir de 2007, de modo a configurar crescimento negativo de - 8,4% de 2000 a 2008, segundo os dados do INEP. Esta retração se acentua entre 2008 e 2009, atingindo um percentual de
-3,2%, sendo que, em 2008, foram 8.369.389 matrículas contra 8.337.160 em 2009; ou seja, em apenas um ano, uma diferença de 32.229 matrículas” (p. 859).
geral, incluindo, inclusive, estabelecimentos privados e comunitários. Apesar das modificações e da lógica que permeia a construção do documento (alcance de metas), o plano foi aprovado para o período (2014-2024).
No início do ano de 2017, foi instituída a Lei n. 13.415, de 16 de fevereiro de 2017, como sendo a lei que estabelece a Reforma do “Novo Ensino Médio”, proposto no Governo Temer e pelo MEC. A legislação do Novo Ensino Médio teve origem na Medida Provisória n. 746, de 22 de setembro de 2016. A lei, medida provisória, trata das alterações na LDBEN/1996 com relação à organização curricular e a instituição da Política de Fomento à Implementação de Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral. Cabe ressaltar que a implementação da reforma depende da homologação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), documento que visa orientar o currículo em âmbito nacional, iniciado em 2015, o texto final referente à Educação Infantil e Ensino Fundamental foi homologado no dia 20 de dezembro de 2017 pelo presidente Michel Temer e pelo Ministro da Educação Mendonça Filho, e a parte do documento que trata do Ensino Médio foi entregue em abril de 2018 para análise no Conselho Nacional de Educação (CNE) em virtude das discussões sobre Reforma do Ensino Médio. A proposta do Novo Ensino Médio12 centra-se em três questões no âmbito de uma Reforma Curricular: Ensino Integral, Estrutura Curricular e Formação Técnica.
Com relação ao Ensino Integral está proposto a sua implementação de forma gradual, aumentando sua carga horária de 800 horas em 200 dias letivos para 1400 horas, sendo que em cinco anos deve chegar, pelo menos, à oferta de 1000 horas. A ampliação para ensino em tempo integral conta com a instituição da Política de Fomento à Implementação de Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral que prevê o repasse de recursos financeiros do MEC durante o período de 10 anos para os Estados e o Distrito Federal, conforme acordo entre a União e os Estados.
No que se refere à estruturação curricular do Novo Ensino Médio está proposta a organização entre os conteúdos definidos pela BNCC e os itinerários formativos escolhidos pelo estudante. A obrigatoriedade da BNCC, com as áreas de conhecimento, segue o modelo proposto pelo ENEM (linguagens e suas tecnologias, matemática e suas tecnologias, ciências da natureza e suas tecnologias e ciências humanas e sociais aplicadas que incluem arte, filosofia, sociologia e educação
12 Disponível em: http://portal.mec.gov.br/component/content/article?id=40361
física), não pode ser superior a 1800 horas nos três anos do Ensino Médio. O itinerário formativo escolhido pelo estudante é composto por ênfase em uma área de formação que pode ser em linguagens, matemática, ciências da natureza, ciências humanas e formação técnica e profissional. O ensino de português e matemática são obrigatórios durante os três anos do ensino médio. E com relação à Língua estrangeira tem-se a obrigatoriedade do ensino de Língua Inglesa e oferta de outras línguas estrangeiras de maneira facultativa.
A formação técnica e profissional, caso escolhida pelo estudante, poderá ser ofertada em parceria com outras instituições. Os professores da formação técnica poderão ser profissionais de notório saber em sua área de atuação ou com experiência profissional atestados por titulação específica ou prática de ensino, para ministrar conteúdos de áreas afins à sua formação ou experiência profissional, para atender à demanda da formação técnica e profissional no ensino médio, sem necessidade de formação pedagógica. Essa nova legislação prevê que essa formação ocorra inclusa na carga horária do ensino médio e, ao final, o estudante obterá o diploma do ensino médio regular e um certificado do ensino técnico.
A apresentação das políticas educacionais dirigidas ao Ensino Médio no Brasil possibilita o exame de alguns modos pelos quais vêm sendo produzido o currículo no Ensino Médio. Neste sentido, indaga-se sobre os sentidos que podem adquirir a proposição de uma relação entre trabalho e educação como princípio educativo para o ensino médio na modalidade EJA, tendo como escopo específico os cenários de disputa e tensões vivenciados no processo histórico do ensino médio.
Sobre o Ensino Médio, desafios permanecem. Para Kuenzer (2010):
Definir metas e indicadores claros para esta etapa, as responsabilidades pela sua execução e as formas de acompanhamento e controle que deverão ser realizadas no período de implementação do Plano, prevendo fóruns específicos periódicos, pelo menos a cada três anos, para revisão de rumos a partir de dados que explicitem claramente os percentuais atingidos em relação ao proposto para o decênio (KUENZER 2010, p. 857).
O desenvolvimento histórico do Ensino Médio brasileiro demonstra a sua relação com as demandas apresentadas pela sociedade capitalista que, por sua vez, estão inter-relacionadas com o movimento macroeconômico nacional e internacional que no Brasil, manifesta-se, desde sempre, pelas relações de dependência e a combinação de interesses da burguesia interna e externa (FERNANDES, 2009).
Nesse último período, quando presenciado o avanço do empresariado nas políticas públicas para o Ensino Médio, presencia-se que tais políticas buscam capacitar a juventude para adaptação à empregabilidade, denominando tal postura por “democratização do acesso” (Rummert; Algebaile; Ventura, 2013, p. 723). É inegável que houve avanços importantes, sobretudo pela criação de novas escolas, o que permitiu que mais pessoas ascendessem ao nível médio de ensino. Porém, a ampliação de vagas e escolas de Ensino Médio, em última instância, tem atendido a quais interesses? Quer, de fato, o Ensino Médio oferecer ferramentas aos jovens brasileiros para que somem esforços nas lutas da classe trabalhadora, sendo eles filhos dessa classe? Rummert, Algebaile e Ventura (2013) sintetizam os limites dessas políticas, justamente pela forma pulverizada como se apresentam:
Associando-se o paradigma econômico – definido pela posição do Brasil na condição de integração subalterna no capital-imperialismo, à demanda social, em parte gerada pela difusão midiática das teses do capital humano, é criada uma miríade de ofertas de elevação de escolaridade/formação profissional/certificação. A multiplicidade, desordenada, flácida e de difícil acompanhamento e controle, mergulha a totalidade social na fantasia de que a efetiva democracia chegou à educação escolar, como se fosse factível construí-la pelo alto e tão somente no âmbito educacional (RUMMERT; ALGEBAILE; VENTURA 2013, p.724).
A história tem demonstrado que um projeto de sociedade com base em um consentimento social passivo, sem resistências ativas, é fruto, dentre outras práticas, de uma construção ideológica das classes dominantes, as quais se manifestam nas políticas educacionais destinadas à classe trabalhadora. Segundo Rummert (2014,
p. 75), essas políticas contribuem como “uma forte polivalência funcional ao permanente processo de construção e manutenção de hegemonia”. Na medida em que o Ensino Médio brasileiro incorpora em suas orientações políticas e curriculares os objetivos de formação flexível, onde a finalidade é a constituição de um novo sujeito capaz de articular-se nos mais diversos ramos produtivos – portanto, em defesa da produtividade e competitividade nos limites do padrão de acumulação flexível – distancia-se de uma educação politécnica, nos termos que apresentamos ao final da primeira seção e, por isso, não oferece condições para a superação da dualidade histórica que marca esse nível de ensino.
Por isso, o Ensino Médio permanece um campo de disputas, as quais refletem nas políticas educacionais, assimetricamente, a dualidade histórica entre os
interesses da burguesia e dos trabalhadores, expressão aparente da contradição estrutural entre Trabalho e Capital, ainda que haja um esforço ideológico para subsumir tal contradição. Atualmente tal contradição não passa indiferente às políticas educacionais diante da reforma do Ensino Médio com a promulgação da Lei
n. 13.415/2017 e aprovação em dezembro de 2018 da parte destinada ao Ensino Médio na BNCC em que a proposta está centrada em competências que visam definir ‘direitos e objetivos de aprendizagem do ensino médio’, conforme expresso na legislação e no documento da base. As atuais reformas passam a controlar os conhecimentos como modo de atender as transformações do mercado de trabalho na perspectiva da flexibilidade de empreendedorismo, características necessárias exigidas ao trabalhado que se afasta da discussão de mundo de trabalho e nega o conhecimento construído historicamente para os jovens e adultos do Ensino Médio.
Percebe-se que, em se tratando das políticas educacionais para a EJA, colocam a ênfase na defesa de uma discussão curricular de formação para o mundo do trabalho. Em relação a essa discussão, Soares (2001) destaca a importância de se discutir as políticas educacionais de EJA, considerando que muitas vezes são reduzidas à dimensão do mercado de trabalho, sendo necessário superar esse pragmatismo de preparação para o trabalho e avançar na concepção mais ampla do processo de escolarização, compreendendo as dimensões humanas.
Percebe-se que, após vinte e três anos da LDBEN (1996), se mantem a ideia dessa modalidade de educação com a finalidade de integrar a participação dos jovens e adultos à vida política e produtiva, com vistas à manutenção do sistema societário vigente. Portanto, o trabalho como princípio educativo, legado do pensamento marxiano, diverge das políticas educacionais destinadas ao Ensino Médio de jovens e adultos. O “educativo” no projeto neoliberal é sinônimo de ‘aprender a aprender’ e de empreendedorismo.
A presente discussão procurou compreender as relações entre trabalho e educação na constituição do princípio educativo do EJA. Situou-se, primeiramente, a discussão conceitual sobre os pressupostos teórico-históricos entre trabalho e educação como possibilidade de prosseguir na análise específica sobre o processo
histórico na produção de políticas educacionais direcionadas ao Ensino Médio EJA em busca do trabalho como princípio educativo. Verifica-se, portanto, um distanciamento entre as bases conceituais da discussão de trabalho e educação do que é produzido e incorporado como discurso oficial das políticas educacionais que defendem uma formação de preparação para o mundo do trabalho.
Percebe-se, nos últimos tempos, que se prioriza a escolarização dos sujeitos pelo consequente avanço científico e tecnológico, processo esse que se por configura pressupostos constitutivos para a qualificação para o mercado em oposição ao mundo do trabalho. Sendo assim, a educação tem influências na vida das pessoas, interpelando como um elemento fundamental pela disputa de uma posição no mercado de trabalho, de melhores condições de consumo, novos e promissores cargos exigindo o investimento de formação gradual e contínua.
Esse projeto educacional de formação que vem sendo assumido na elaboração e execução de políticas públicas em educação se sustenta na lógica do desenvolvimento capitalista e da racionalidade econômica nos sistemas de ensino. Sendo um mecanismo ativo no processo de produção e de utilidade capitalista nas relações e ações, no qual o referido processo educacional constitui-se com uma nova estratégia de acumulação do capital, fundamentada no regime flexível e na formação do trabalhador polivalente e empreendedor, como estratégia de maior oferta da força de trabalho ativa no mercado e seu consequente rebaixamento em termos salariais e de direitos sociais.
Por outro lado, as formas de oferta da EJA em nível médio, as políticas educacionais para a área, seus mecanismos de certificação, formação aligeirada e diminuição do acesso aos conteúdos representativos dos conhecimentos científicos e culturais representam acentuado retrocesso em termos civilizatórios, sobretudo aos jovens que necessitam da formação para disputar uma posição social e do trabalho mais digna. Entendemos que as consequências desse modelo é a manutenção das desigualdades educacionais em nível médio, no Brasil, o que deverá refletir em uma alijada mobilidade social, principalmente pelo restrito acesso aos complexos conhecimentos exigidos pelo mundo do trabalho.
Espera-se que o debate aqui proposto se amplie e possibilite aos profissionais da educação, em especial, os que lecionam no EJA em nível médio, a compreensão
das práticas e discursos que orientam essas políticas educacionais contemporâneas.
ANTUNES, R. A crise da sociedade do trabalho: fim da centralidade ou desconstrução do trabalho? In: . O caracol e sua concha: ensaios sobre a nova morfologia do trabalho. São Paulo: Boitempo, 2005, Cap. I.
BRASIL. Constituição da República Federativa de 1988. 13. ed. Porto Alegre: CORAG, 2003.
. Lei nº 9394/1996. Institui Diretrizes e Bases da Educação Nacional. 1996. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm> Acesso em: 05 mai 2019
. Centenário da Rede Federal De Educação Profissional e Tecnológica. Brasília: SETEC/MEC, 2009. Disponível em:
<http://portal.mec.gov.br/setec/arquivos/centenario/historico_educacao_profissional>Ace sso em: 04 mai 2019.
. Lei nº 13.415, de 16 de fevereiro de 2017. Altera as Leis nos 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, e 11.494, de 20 de junho 2007, sobre o FUNDEB, a Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, aprovada pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1/05/43, e o Decreto-Lei no 236, de 28/02/67; revoga a Lei no 11.161, de 5/08/05; e institui a Política de Fomento à Implementação de Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/L13415.htm. Acesso em: 04 jun.2019.
. Portaria Ministerial n. 2.270, de 14 de agosto de 2002. Institui o Exame Nacional de Certificação de Competências de Jovens e Adultos – ENCCEJA. Brasília: MEC, 2002.
CONSELHO ESTADUAL DE EDUCAÇÃO - RS. Resolução 313/2011. Consolida
normas relativamente à oferta da Educação de Jovens e Adultos – EJA, no Sistema Estadual de Ensino, e dá outras providências, em consonância com as diretrizes nacionais fixadas nas Resoluções CNE/CEB nº. 3/2010 e nº. 7/2010.
DI PIERRO, M. C de. Educação de jovens e adultos no Brasil: questões face às políticas públicas recentes. Em Aberto, Brasília, ano 11, n. 56, out./dez. p. 22-30, 1992.
; JOIA, O.; RIBEIRO, V. M. Visões da Educação de Jovens e Adultos no Brasil. Cadernos Cedes, ano XXI, n. 55, nov, p.58-77, 2001.
. Notas sobre a redefinição da identidade e das políticas públicas de educação de jovens e adultos no Brasil. Educação e Sociedade, v.26, n.92, p.1115- 1139, 2005.
ENGELS, F. Sobre o Papel do Trabalho na Transformação do Macaco em Homem. In: ANTUNES, R. A dialética do Trabalho: escritos de Marx e Engels. São Paulo: Expressão Popular, 2004.
FERNANDES, F. Capitalismo dependente e classes sociais na América Latina. São Paulo: Global, 2009.
FRANCO, L. A. C. Trabalho da escola. In: . A escola do trabalho e o trabalho da escola. 2. ed. São Paulo: Cortez: Autores Associados, 1988.
FRIGOTO, G. CIAVATTA, M. RAMOS, M. A Política de Educação Profissional no Governo Lula: Um percurso histórico controvertido. Educação e Sociedade, Campinas, v. 26, n. 92, out, p. 1087-1113, 2005.
. O trabalho como princípio educativo no projeto de educação integral de trabalhadores. In: COSTA, H. da. CONCEIÇÃO, M. Educação Integral e Sistema de Reconhecimento e certificação educacional e profissional. São Paulo: Secretaria Nacional de Formação - CUT, 2005.
GOMES, C. A. CAPANEMA, C. de F; CAMARA, J. da S; CABANELAS, L. C. Educação
e trabalho: representações de professores e alunos do ensino médio. Ensaio: aval. pol. públ. Educ., Rio de Janeiro, v.14, n.50, jan./mar. p. 11-26, 2006.
HADDAD, S. A ação de governos locais na educação de jovens e adultos. Revista Brasileira de Educação, v. 12 n. 35 maio/ago. p. 197-211, 2007.
. DI PIERRO, M. C. Escolarização de jovens e adultos. Revista Brasileira de Educação, n. 14, maio/ago, p. 108-130, 2000.
. Ensino supletivo no Brasil: o estado da arte. Brasília: MEC/INEP/REDUC, 1987.
HARVEY, D. Condição Pós-Moderna. 7. ed. São Paulo: Edições Loyola, 1998.
KUENZER, A. Ensino Médio no Plano Nacional de Educação 2011-2020: Superando a década perdida? Educação e Sociedade. Campinas, v.31, n.112, jul/set. p.851-873, 2010.
MARX, K. ENGELS, F. Textos sobre Educação e Ensino. 2. ed. São Paulo: Moraes, 1992.
. Processo de trabalho e processo de valorização. In: ANTUNES, R. A dialética do Trabalho: escritos de Marx e Engels. São Paulo: Expressão Popular, 2004.
. Salário, preço e lucro. In: ANTUNES, R. A dialética do Trabalho: escritos de
. Trabalho estranhado e propriedade privada. In: ANTUNES, R. A dialética do Trabalho: escritos de Marx e Engels. São Paulo: Expressão Popular, 2004.
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Base Nacional Comum Curricular – Educação é a Base. Brasília, 2018. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/wp- content/uploads/2018/12/BNCC_19dez2018_site.pdf. Acesso em: 22. jan. 2019.
NASCIMENTO, M. N. M. Ensino médio no Brasil: determinações históricas. Publ. UEPG Ci. Hum., Ci. Soc. Apl., Ling., Letras e Artes, v. 15, n. 1, jun. p. 77-87, 2007.
NEVES, L. M. W. Brasil 2000: nova divisão do trabalho na educação. São Paulo: Xamã, 2000.
NOSELLA, P. Ensino Médio: em busca do Princípio Pedagógico. Educação & Sociedade, Campinas, v. 32, n. 117, out/dez. p. 1051- 1066, 2011.
RUMMERT, S. M. ALGEBAILE, E. VENTURA, J. Educação da classe trabalhadora brasileira: expressão do desenvolvimento desigual e combinado. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, v. 18 n. 54 jul/set., p. 717-738, 2013.
. Mundo do Trabalho e os desafios da educação dos trabalhadores urbanos. In: PALUDO, C. (Org.). Campo e Cidade em busca de caminhos comuns. Pelotas: UFPel, 2014, p. 65-76.
SAVIANI, D. História das ideias pedagógicas no Brasil. 3. ed. Campinas: Autores Associados, 2010.
SCHULTZ, T. W. O Capital Humano: Investimentos em Educação e Pesquisa. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1971.
SOARES, L. As políticas de EJA e as necessidades de aprendizagem dos jovens e adultos. In: RIBEIRO, V. M. (Org.). Educação de Jovens e Adultos: Novos leitores, novas leituras. Campinas, SP: Mercado das Letras, 2001, p. 201-224.
TUMOLO, P. S. O trabalho na forma social do capital e o trabalho como princípio educativo: uma articulação possível? Educação e Sociedade. v. 26, n. 90, jan/abr. p.239-265, 2005.
VIEIRA, P. A. OURIQUES, H. R. Elementos para crítica da centralidade do trabalho.
v.17, nº 34, set-dez (2019) ISSN: 1808-799 X
VAZ, JOANA D’ARC. A Educação Profissional no contexto das relações de cooperação entre Brasil-Moçambique: o protagonismo de empresas brasileiras. 2018. 337p. Tese (Doutorado) – Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Ciências da Educação, Programa de Pós-Graduação em Educação, Florianópolis, 2018. Disponível em: http://www.bu.ufsc.br/teses/PEED1327-T.pdf.2
O tema sobre a relação de cooperação Sul-Sul é de grande importância nas diversas áreas do conhecimento. Nesse caso, o objeto da tese foi o estudo sobre a Educação Profissional no contexto dessa cooperação, mais precisamente entre Brasil- Moçambique e o protagonismo dos setores empresariais brasileiros em Moçambique, no recorte temporal de 2003 a 2015. O recorte temporal corresponde aos dois mandatos presidenciais do Governo Lula (2003-2011), e aos mandatos de Dilma Rousseff (2011- 2016). No segundo mandato da presidente Dilma, optamos por limitar o nosso estudo até 2015. A política externa brasileira para a África foi intensificada nos governos Lula, dando prosseguimento na expansão das relações de cooperação nos governos de Dilma Rousseff.
O problema central da pesquisa partiu das seguintes questões: por que a Educação Profissional compõe as estratégias do capital em Moçambique, com participação direta do Estado e dos setores empresariais brasileiros? Que interesses estão em disputa? Como e por que a educação se transforma em instrumento de combate à pobreza na lógica do desenvolvimento do país? O que levou o governo de Moçambique a adotar políticas públicas implementadas no Brasil, como a educação profissional
1 Resumo recebido em 14/07/2019. Aprovado em 01/08/2019, pelos editores. Publicado em 27/09/2019. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.17i34.p38060.
2 Doutora em Educação pela UFSC. Professora Colaboradora da Universidade Estadual do Paraná (UNESPAR), campus de União da Vitória. E-mail: darcvaz.13@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6089-3857.
A tese foi orientada pela Profª Drª Adriana D’Agostini com coorientação das professoras, Drª Virgínia Fontes e Drª Luciana Marcassa, defendida no dia 27 de março de 2018.
oferecida pelo “Sistema S”, os cursos profissionalizantes de nível médio, o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PRONAE), a formação de professores via Educação a Distância (EaD), entre outros? O que caracteriza o Brasil com contornos de país capital- imperialista na cooperação Sul-Sul, mais precisamente com Moçambique, articulando seus interesses aos negócios do capital e seus representantes institucionais? Quais os planos para Moçambique e como se articulam com a inserção das empresas brasileiras associadas às políticas públicas naquele país?
Tais perguntas resultaram no objetivo geral de analisar o papel da Educação Profissional no contexto da expansão das relações capital-imperialistas e dos acordos de cooperação entre o Brasil e Moçambique.
Destacamos algumas de nossas hipóteses: o Estado brasileiro, na relação com Moçambique, assumiu um papel de negociador e representante dos setores empresariais junto ao Estado e burguesia moçambicana para a ampliação dos negócios brasileiros e a implementação das políticas públicas de educação, saúde e agricultura, principalmente, naquele país, tendo a Educação Profissional como uma estratégia no projeto do capital. Nessa cooperação, o Estado brasileiro tem uma atuação com contornos capital- imperialistas mesmo que de forma subalterna frente ao capital internacional.
Para apreender as relações que perpassam os acordos de cooperação entre o Brasil e Moçambique, principalmente no que se refere à política educacional e, no seu interior, a educação profissional, as articulações com as diretrizes do Banco Mundial e as questões econômicas, procuramos aprofundar a análise acerca da cooperação Brasil- Moçambique, sob o prisma das relações capital-trabalho.
A presente tese justificou-se pela necessidade de estudar no campo da Educação os projetos de educação profissional no contexto das relações de cooperação Brasil- Moçambique, que a nosso ver, insere-se conjuntamente com a emergência dos países BRICS, no auge da cooperação Sul-Sul e nas tensões e disputas interimperialistas dos países de capitalismo avançado. Independentemente do papel que o Brasil veio a ocupar no cenário internacional, de 2003 em diante, mais precisamente no período do governo Luiz Inácio Lula da Silva, procuramos apreender as nervuras, as características desse processo de cooperação em que a internacionalização não só do Estado, mas das empresas brasileiras se deu inerente às políticas públicas consideradas de apoio, educação, saúde e agricultura, em especial.
Entender que, a cooperação brasileira com Moçambique é assinalada por somar às várias formas de expropriações ali cometidas no arcabouço das cooperações, sejam elas de países imperialistas ou de países que mesmo sendo subordinados aos ditames
do capital-imperialismo, desempenham o papel de colaborador com o aprofundamento e a expansão das relações sociais capitalistas construindo condições para levar avante o conjunto de expropriações. Nessa cooperação chamamos atenção para um Brasil que faz alianças com grandes potências econômicas ou com países BRICS de forma interessada e lucrativa em Moçambique, especialmente com os programas que envolvem o projeto Corredor Logístico de Nacala, ligado diretamente ao setor da mineração e agricultura em larga escala, que desencadeia no processo profundo de expropriações dos trabalhadores/camponeses moçambicanos.
Outra justificativa refere-se à constituição da burguesia moçambicana que está se consolidando conjuntamente com a burguesia brasileira e a internacional. Esse formato consolida projetos educacionais, visando à difusão de suas ideologias e a formação de capital humano no âmbito da formação da força de trabalho precarizada, assim como para a empregabilidade e empreendedorismo, que expressam o aprofundamento de novas relações de dominação burguesa e superexploração da força de trabalho. Foi necessário compreender a expansão do capital internacional e os megaprojetos em Moçambique para obter a visão dos seus projetos educativos, especialmente da formação profissional. Do mesmo modo, a presença dos Aparelhos Privados de Hegemonia (APH) inseridos em Moçambique, transformando este país em um celeiro para os grandes investidores e proprietários do capital.
Verificamos que, os APH brasileiros, representantes dos setores dominantes, estão inseridos no país com projetos nas áreas da educação, agricultura, meio ambiente, comércio e indústria, dentre outros, podendo citar, a REVIVA – instituição brasileira sem fins lucrativos, o Instituto InterCement, o Grupo de Institutos, Fundações e Empresas (GIFE), o Instituto BRF (Brasil Foods), o Fundo Internacional Socioambiental (FICAS) – atuando com a formação do empresariado moçambicano e dos trabalhadores, mas também, inserindo-se no interior do aparelho de Estado com a finalidade de reorganizá- lo de acordo com seus interesses. A compreensão acerca da cooperação Sul-Sul faz-se necessária, pois está eivada de interesses privados.
Nossa análise foi com base na concepção do materialismo histórico dialético, prisma que permitiu compreender o papel do Brasil e de Moçambique, no contexto das relações capital-imperialistas. Adotamos os procedimentos metodológicos a partir da pesquisa qualitativa, marcados por dois momentos: análise documental e análise das entrevistas realizadas em campo. Selecionamos os documentos de Moçambique, do Banco Mundial e da cooperação Brasil-Moçambique, com a finalidade de entender o papel
da Educação Profissional no contexto moçambicano. No segundo momento, priorizamos a entrevista semiestruturada individual e/ou coletiva, com a realização de 22 entrevistas. Um dos elementos principais dos resultados da pesquisa foi a apreensão da própria dinâmica do capital-imperialismo que, em Moçambique, se utiliza estrategicamente do próprio Estado, que depende da ajuda e dos empréstimos externos, assim como da burguesia moçambicana, que se alia às burguesias internacionais, expropriando brutalmente as populações, para a implementação dos projetos de
expansão das relações sociais capitalistas.
A educação profissional na sociedade moçambicana, pautada na agenda do capital para a educação, cumpre a função ideológica no processo de expansão das relações sociais capital-imperialistas. O projeto de Educação Profissional em Moçambique faz o seguinte movimento: oferta uma educação-formação limitada a corrigir os estragos causados pelos interesses das classes dominantes e, por isso, tão incentivada para a formação de capital humano, uma educação voltada ao treinamento para o mercado de trabalho, à empregabilidade e ao empreendedorismo.
Por sua vez, esse movimento desencadeia condições de trabalho precárias, intensificadas, superexploradas, manobráveis, e em trabalhadores colocados no rol do exército de reserva. A pesquisa evidenciou as particularidades de Moçambique e sua relação não só com o Brasil, mas imerso nas relações capital-imperialistas, de modo que constatou os processos que vêm ocorrendo no país, tanto de expropriações primárias quanto secundárias, da população moçambicana.
Nesse sentido, refletimos que os movimentos são contraditórios e estão em disputa, porque em seu interior são travadas longas e duras lutas de classes. Por isso, a urgente necessidade da classe trabalhadora em “romper com a lógica do capital se quisermos contemplar a criação de uma alternativa educacional significativamente diferente” (MÉSZÁROS, 2008, p. 27)1, que forneça os elementos e as condições necessárias à emancipação humana e à formação do ser humano. Deste modo, a educação deixaria de ser encarada como formação de capital humano, como os intelectuais da burguesia e organismos internacionais fazem na elaboração e instituição de suas políticas (LEHER, 2003)2 para assumir uma postura de universalização do processo de humanização do humano.
1MÉSZÁROS, I. A educação para além do capital. Tradução Isa Tavares. 2.ed. São Paulo: Boitempo, 2008
2LEHER, R. O Governo Lula e os movimentos sociais. In: OSAL (Buenos Aires) n. 10, abril de 2003.
v.17, nº 34, set-dez (2019) ISSN: 1808-799 X
QUEIROZ, Janaina Gulart Oliveira. As condições de vida, de trabalho e de escolarização dos migrantes nordestinos da construção civil na UFSC. 2018. 227p. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Federal de Santa Catarina, (UFSC), Florianópolis, 2018.2
O presente estudo 3 tem como tema a produção e reprodução da vida de trabalhadores migrantes temporários nordestinos da construção civil que trabalham no Campus central da Universidade Federal de Santa Catarina — UFSC, em Florianópolis/SC. Seu objetivo principal é analisar as condições de vida, trabalho, moradia e escolarização dos trabalhadores diante do crescimento das migrações na atualidade. Na pesquisa empírica foi realizado um trabalho de campo nos canteiros de obras no campus, com o propósito de identificar as empresas que prestam serviço na universidade e também quais as empresas que empregavam maior número de trabalhadores migrantes temporários nordestinos. Na coleta de dados foram realizadas entrevistas semiestruturadas com os trabalhadores migrantes e com as empresas nos canteiros de obras da universidade. A pesquisa de campo envolveu ainda conversas informais com os trabalhadores migrantes, com as empresas e registros fotográficos. A pesquisa parte de observações que foram realizadas no interior da UFSC acerca dos trabalhadores migrantes temporários que são contratados por empresas da construção civil e terceirizadas, a partir de licitações
1 Resumo recebido em 14/06/2019. Aprovado em 01/07/2019, pelos editores. Publicado em 27/09/2019. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.17i34.p38061.
2 Licenciada em Educação do Campo com ênfase nas áreas de Ciências da Natureza, Matemática e Ciências Agrárias pela Universidade Federal de Santa Catarina — UFSC. Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Educação(PPGE) da Universidade Federal de Santa Catarina. Orientadora: Prof.ª Dra. Célia Regina Vendramini — Professora Titular da Universidade Federal de Santa Catarina. Integra o Núcleo de Estudos sobre as Transformações no Mundo do Trabalho-TMT, e-mail: janaamora@hotmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4057-2535 URL: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/198660
3 A presente pesquisa integra uma pesquisa maior, cujo título é: Migração e escolarização: a realidade de jovens estudantes e trabalhadores, sob a coordenação da Prof.ª Dra. Célia Regina Vendramini da Universidade Federal de Santa Catarina.
entre empresas e universidade. Os trabalhadores foram observados em plena atividade de trabalho, inclusive aos finais de semana, onde se identificou que o espaço em que trabalhavam também era usado como moradia e cujas instalações evidenciavam condições de precarização e degradação, com intensa exploração do trabalho.
Na pesquisa documental foram considerados os dados sobre migração do Censo Demográfico do IBGE; Conselho Nacional de Imigração — CNIg /TEM; Organização Internacional do Trabalho — OIT Brasil; Organização das Nações Unidas
— ONU; Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos - DIEESE; Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento — PNUD; Alto Comissariado das Nações Unidas — ACNUR; Organização Internacional de Migração — OIM; Prefeitura Municipal de Florianópolis — PMF, entre outros. Com base nos dados, observou-se que no mundo hoje são milhares as pessoas que se deslocam na condição de migrantes internacionais, nacionais ou como refugiados. Há um intenso fluxo das migrações entre diferentes países, cidades, para diferentes direções (inclusive pequenas e médias cidades), com dificuldade cada vez maior de fixação dos trabalhadores. O número de migrantes internacionais em 2017 atingiu um total de 258 milhões, segundo dados da ONU. No Brasil, o IBGE (2011) indica que há movimentação de migrantes internacionais e se mantêm os deslocamentos entre as regiões brasileiras. Os dados indicam também que há um aumento de fluxo migratório para a região sul do Brasil.
Com relação à base teórica da pesquisa, autores clássicos e contemporâneos subsidiaram a análise das contradições presentes na relação capital, trabalho e escolarização no contexto da sociedade capitalista e concretamente na vida dos trabalhadores. Buscou-se em Marx (2011) a compreensão de que a expropriação dos trabalhadores, necessária para a acumulação e expansão do capital, produz o deslocamento da classe trabalhadora e uma população excedente no processo de produção. A expropriação segue na atualidade, apresentando novas formas, as quais foram identificadas com base em Harvey (2008), Silver (2005) e Fontes (2010). O trabalho ou a ausência dele tem sido fator principal no deslocamento para a produção da vida social e busca pela superação da condição de pobreza da classe trabalhadora. Hobsbawm (2017) analisa que os trabalhadores vagueiam pelo mundo em busca de trabalho, se deslocam do campo para a cidade, do centro para a periferia e da periferia
para o centro. São trabalhadores que não têm lugar fixo, atravessam países, territórios, cidades e fronteiras em busca da sobrevivência. No que se refere à categoria migração, foi realizado um balanço da literatura, o qual identificou o debate de pesquisadores de diversas áreas do conhecimento sobre a temática migração, trabalho e escolarização de migrantes nordestinos, no período 2007-2017. Considerando que a categoria migração está em disputa, conclui-se pela necessidade de sua manutenção enquanto fenômeno histórico e conectado com o trabalho e a classe social. Com relação à educação, compreende-se que ela está subordinada aos interesses do capital. À classe trabalhadora é ofertada uma escola que se limita às exigências de mercado, o qual requer uma força de trabalho disciplinada, flexível e subordinada. A literatura educacional crítica de base marxista (MESZÁROS, 2008; FERNANDES, 1966; RUMMERT, 2011) indica forte relação entre as condições de vida, trabalho e escolarização.
A dissertação é composta por três capítulos. O primeiro analisa os processos migratórios diante das expropriações dos trabalhadores, seja na origem ou na atualidade da acumulação do capital. No capítulo dois é apresentada a situação da classe trabalhadora, particularmente no que diz respeito ao trabalho dos migrantes e suas condições de vida junto aos canteiros de obra. O foco do último capítulo está na escolarização dos migrantes diante do projeto de escola do capital para os trabalhadores. Os trabalhadores executam trabalhos simples, rotineiros, cansativos, pesados, com longas jornadas, baixos salários e péssimas condições de trabalho. Vivem em barracos insalubres (sem ventilação), com pouca ou nenhuma higiene, alimentação irregular e regime de confinamento. Deles não é exigida qualificação. Todos são migrantes (89% oriundos do estado da Bahia e 11% de Pernambuco), de origem pobre, com pouca ou nenhuma escolaridade. Constituem uma massa de trabalhadores que vagueia pelo país em busca de trabalho. São os migrantes permanentemente temporários, conforme Silva (1992).
No cotidiano dos trabalhadores migrantes da construção civil no interior da Universidade, paradoxalmente a escola está muito distante deles: 78% possuem baixa escolarização (ensino fundamental incompleto) e admitem ter dificuldade na leitura. Já 11% dos entrevistados possuem o fundamental completo e 11% o ensino médio completo. Também identificou-se que nenhum dos seus pais completou o ensino fundamental, alguns não sabem ler e tiveram pouca frequência à escola.
Os trabalhadores sujeitos desta pesquisa abandonaram a escola muito cedo, porque precisavam trabalhar e, deste modo, reproduzem a mesma condição de vida e trabalho de seus pais. A baixa escolaridade, a falta de acesso à escola e ao conhecimento e o conteúdo escolar alienado das necessidades da classe trabalhadora colocam como desafio a construção de um novo projeto educacional associado a um novo projeto de sociedade, que permita às pessoas migrarem de um lugar para outro livremente e não movidos (forçosamente) pela necessidade de sobrevivência, visando a reprodução social para os interesses do capital.
FERNANDES, F. Educação e Sociedade no Brasil. São Paulo: Dominus/Edusp, 1966.
FONTES, V. O Brasil e o capital-imperialismo. 2. ed. Rio de Janeiro: EPSJV/Editora UFRJ, 2010.
HARVEY, D. O neoliberalismo – história e implicações. São Paulo: Loyola, 2008. HOBSBAWM, E. A era do capital: 1848-1875. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2017.
IBGE. Censo Demográfico 2010: Características da população e dos domicílios. Resultados do universo. Rio de Janeiro (RJ): IBGE, 2011. 270 p.
MARX, K. O capital: crítica da economia política. Trad. de Reginaldo Sant`Anna. 25ª edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, livro 1, v. 2, 2011.
MÉSZÁROS, I. A educação para além o capital. Trad. de Isa Tavares. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2008.
SILVA, M. A. de M. Destinos e trajetórias de camponeses migrantes. Anais. VIII Encontro Nacional de Estudos Populacionais. 1992. 161-186 Disponível em:
<http://www.abep.nepo.unicamp.br/docs/anais/pdf/1992/T92V03A09.pdf>. Acesso em: 11 nov. 2015.
RUMMERT, S. M. Educação e formação humana no cenário de integração subalterna no capital-imperialismo. Anais. 34ª REUNIÃO ANUAL DA ANPED. Natal, RN, outubro de 2011.
SILVER, B. Forças do trabalho: movimentos de trabalhadores e globalização desde 1870. Trad. de Fabrizio Rigout. São Paulo: Boitempo, 2005.
161-186
v.17, nº 34, set-dez (2019) ISSN: 1808-799 X
Maria Claudia Pereira da Silva2
A memória, onde cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir o presente e o futuro. Devemos trabalhar de forma que a memória coletiva sirva para a libertação e não para a servidão dos homens3
O SINTTEL RJ, Sindicato dos Trabalhadores em Telecomunicações do Rio de Janeiro, de longa data investe, apoia e divulga iniciativas voltadas ao resgate e preservação da memória das lutas dos trabalhadores. Já na década de 1990 organizou seu próprio Arquivo, responsável pelo tratamento da produção documental da entidade e pelo desenvolvimento de projetos voltados ao resgate e registro da história da categoria, para, em seguida, constituir o Arquivo Geral dos Trabalhadores, espaço de custódia criado com propósito de receber, abrigar, reunir, tratar e preservar coleções individuais e de organizações, compondo um grande acervo coletivo organizado em fundos com a denominação do respectivo doador.
A partir da formação do Arquivo do Sindicato, além da instauração de uma política permanente de guarda e registro da trajetória de lutas da entidade, a história da organização sindical da categoria foi recuperada desde a sua origem com o acesso a documentos como os que retratam a fundação do Sindicato dos Trabalhadores em Empresas Telegráficas, Radiotelegráficas e Radiotelefônicas; o desmembramento do Centro Dos Operários e Empregados da Light e Companhias Associadas, a criação da Associação Profissional dos Trabalhadores em empresas Telefônicas e reconhecimento do Sindicato dos Trabalhadores em Empresas Telefônicas do Rio de Janeiro; as sucessivas alterações da base territorial que, inicialmente restrita ao então Distrito
1 Texto recebido em 28/03/2019. Aprovado em 25/04/2019, pelos Editores. Publicado em 27/09/2019.
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.17i34.p38062.
2 Pesquisadora do SINTTEL RJ, Coordenadora do Arquivo Geral dos Trabalhadores
3 LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas: Editora da UNICAMP, 1990. p. 477.
Federal (futuro estado da Guanabara), chegou a abranger os estados de Minas Gerais, Espírito Santo e Rio de Janeiro, todos posteriormente desligados, sendo este último excluído da base à revelia da vontade da categoria que, em plebiscito se manifestou contrária à divisão em dois sindicatos de trabalhadores em empresas telefônicas: o do estado do Rio de Janeiro e o do estado da Guanabara (que em 1975 passa a Município do Rio de Janeiro); a aquisição e inauguração da sede própria (Rua Morais e Silva, 94, Maracanã); o processo de fusão das entidades representativas dos empregados em empresas telefônicas e telegráficas que dá origem aos Sindicatos dos Trabalhadores em Empresas de Telecomunicações e Operadores de Mesas Telefônicas (telefonistas em geral), os SINTTEL’s; e a unificação dos sindicatos do município e do estado do Rio de Janeiro, formando o SINTTEL RJ que conhecemos hoje.
Já o Arquivo Geral dos Trabalhadores foi formado a partir da cessão do acervo documental e bibliográfico do dirigente Francisco Izidoro, que ao longo de mais de 40 anos de militância social e sindical, como testemunha e agente de vários momentos importantes da história do país, pode acumular grande parte do material que circulou neste período, especialmente na imprensa sindical/operária e alternativa. Além deste material, o Arquivo vem sendo alimentado e enriquecido por outras cedências, como a do Núcleo Piratininga de Comunicação, repassado por seu criador, o pesquisador e escritor Vito Giannotti, grande fomentador da comunicação sindical.
O Fundo Francisco Izidoro, além de fotografias, audiovisuais, bottons, adesivos, cartazes, cartilhas, impressos e outros milhares de documentos textuais emitidos por correntes e partidos políticos de esquerda, sindicatos, centrais sindicais, movimento comunitário e outros, reúne cerca de 10.000 livros e 100.000 exemplares de periódicos. Nele temos documentados momentos decisivos da nossa história recente, como o processo de criação da Central Única dos Trabalhadores.
A Biblioteca constitui ampla bibliografia na área de ciências humanas, com ênfase no movimento sindical, direito do trabalho brasileiro, esquerda no Brasil e marxismo. O acervo de periódicos, segmento em mais adiantado estágio de organização, que hoje (somado aos cerca de 500 novos títulos pertencentes ao fundo Vito Giannotti) perfaz o total de 3.310 títulos catalogados, guarda importantes conjuntos de publicações de direito trabalhista e previdenciário, grandes coleções de publicações de partidos políticos e organizações de esquerda, centenas de jornais e
revistas alternativos, e, destacadamente, muito bem representa a produção da imprensa sindical.
Dentre as publicações alternativas, contamos com diversos e raros títulos que no período da ditadura militar deram voz à resistência enfrentando a censura, como a “Pif Paf”, 1ª revista de humor crítica ao novo regime, lançada apenas 1 mês após o golpe, e que circulou de maio a agosto de 1964, quando foi apreendida; “O Pasquim” que, publicado por renomados jornalistas e chargistas (dentre eles Millôr Fernandes e Ziraldo, que também participaram da “Pif Paf”), sobreviveu à ditadura apesar de ter seus realizadores várias vezes presos, circulando de 1969 a 1991; o semanário “Opinião”, editado de outubro de 1972 a abril de 1977, reuniu diversos setores da oposição, com grande participação de intelectuais e colaboradores no Brasil e no exterior; o jornal “Ex”, lançado em novembro de 1973, circulou por dois anos, quando a primeira edição do seu 16º e último número, que denunciou o assassinato do jornalista Wladimir Herzog, esgotou nas bancas e teve a 2ª edição apreendida pela repressão; o “Movimento”, editado de 1975 a 1981, cobriu o período final da ditadura, em particular, até que os atentados às bancas de jornal inviabilizaram financeiramente sua circulação; o “Em Tempo:”, lançado em 1978, precursor do boletim da Democracia Socialista, corrente do Partido dos Trabalhadores; a “Voz da Unidade”, iniciada em 1980, último órgão do PCB a circular em banca de jornal; e o “Jornal do PT”, primeira publicação do partido no estado, estreada em abril de 1980 pelo Movimento Pró Partido dos Trabalhadores / RJ.
Da imprensa sindical dispomos de impressos de diferentes categorias, de todas as regiões do país, representando desde movimentos de oposição e entidades que não tiveram condições de ir além de publicações esporádicas, a sindicatos como os “Metalúrgicos do ABC” e “Bancários do Rio de Janeiro” que chegaram a ter publicação diária de seus jornais por um longo período.
Ainda que frente a uma conjuntura de ataque aos trabalhadores, onde o governo federal, desrespeitando frontalmente o princípio da autonomia sindical, edita medida provisória que, ao “regular a forma de cobrança das contribuições sindicais”, tenta inviabilizar a sustentação financeira das entidades, o SINTTEL RJ mantém o compromisso de sustentar e alimentar o Arquivo Geral dos Trabalhadores com captações e aquisições, oferecendo espaço e infraestrutura de tratamento para abrigar novos fundos, com vista à futura divulgação e disponibilização do acervo em
ambiente próprio para consulta e estudo. Apresentamos a seguir alguns documentos que exemplificam a coleção.
No que tange à história do nosso sindicato destacamos as atas de fundação do Sindicato dos Telegráficos em 1931 e da Associação dos Telefônicos em 1940, o primeiro Estatuto do Sindicato dos Telefônicos de 1941, a foto da fachada da sede própria quando adquirida, em 1961, e o Estatuto elaborado após a conquista da liberdade de organização na Constituição de 1988, aprovado na assembleia que unificou os SINTTEL’s do estado e do município do Rio de Janeiro em 1990.
No Arquivo Geral, demostramos a riqueza do acervo destacando o primeiro número da revista “Problemas”, de 1947, publicação do Partido Comunista Brasileiro dirigida por Carlos Mariguella; exemplares de periódicos da imprensa alternativa e da imprensa sindical; e documentos de 1983 que registram a divisão no momento de redefinição do movimento sindical brasileiro, quando a tentativa de unificação a partir de um único organismo de representação a nível nacional acaba por dar origem a duas entidades distintas: CUT – Central Única dos Trabalhadores, fundada 28 de agosto e CONCLAT - Coordenação Nacional da Classe Trabalhadora, criada em 6 de novembro. Concluímos afirmando nossa crença na importância da preservação da memória como instrumento de acesso a todo um conhecimento acumulado, para que nossa trajetória, com vitórias, conquistas e também derrotas, se perpetue, para nossa própria reflexão e para aqueles que virão.