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V.18 nº 37 / set-dez (2020) ISSN: 1808-799 X


Universidade Federal Fluminense Faculdade de Educação

NEDDATE - NÚCLEO DE ESTUDOS, DOCUMENTAÇÃO E DADOS SOBRE TRABALHO E EDUCAÇÃO

REVISTA TRABALHO NECESSÁRIO: http://periodicos.uff.br/trabalhonecessario

Redação: R. Professor Waldemar Freitas Reis, s/n°, bloco D, sala 525, Gragoatá - São Domingos, Niterói - RJ, CEP 24210-201 - revistatrabalhonecessario@gmail.com


EDITORES

Lia Tiriba, Maria Cristina Paulo Rodrigues e José Luiz Cordeiro Antunes


CONSELHO EDITORIAL

Caridad Perez García (UCPEJV – Cuba), Celso Ferretti (UNISO - Brasil), Gaudêncio Frigotto (UFF / UERJ- Brasil), José Claudinei Lombardi (UNICAMP – Brasil), Maria Ciavatta (UFF - Brasil), Roberto Leher (UFRJ - Brasil), Tomás Rodrigues Villasante (UCM – Espanha), Sonia Maria Rummert (UFF - Brasil) e Virgínia Fontes (UFF / EPJV / Fiocruz - Brasil).


COMITÊ CIENTÍFICO

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Alexandre Maia do Bomfim (IFRJ), Ana Margarida Campello (EPSJV/FIOCRUZ), Ana Motta (UFF), André Feitosa (EPSJV/FIOCRUZ), André Martins (UFJF), Andrea Araújo Vale (UFF), Anita Handfas (UFRJ), Angela Siqueira (UFF), Angela Tamberlini (UFF), Claudio Fernandes da Costa (UFF), Célia Regina Vendramini (UFSC), Daniela Motta (UFJF), Dante Moura (IFRN), Deise Mancebo (UERJ), Domingos Leite Lima Filho (UTFPR), Dora Henrique da Costa (UFF), Doriedson do Socorro Rodrigues (UFPA), Edison Oyama (UFRR), Edson Caetano (UFMT), Eneida Oto Shiroma (UFSC), Eraldo Leme Batista (UNIVAS-MG), Eveline Algebaile (UERJ), Filippina Chinelli (EPSJV/FIOCRUZ), Flávio Anício (UFRRJ), Francisco José Lobo Neto (FIOCRUZ), Guadelupe Teresinha Bertussi (UNAM e UFSC), Hajime Nozaki (UFMS e UFJF), Henrique Tahan Novaes (UNESP), Ivo Tonet (UFAL), Jacqueline Botelho (UFF), Jaqueline Ventura (UFF), João dos Reis da Silva Jr. (UFSCar), José dos Santos Souza (UFRRJ), Júlio Cesar França Lima (FIOCRUZ), Justino de Souza Junior (UFC), Kátia Lima (UFF), Laura Souza Fonseca (UFRGS), Lea Calvão (UFF), Lígia Klein (UFPR), Luciana Requião (UFF), Marcelo Lima (UFES), Maria Clara Bueno Fischer (UFRGS), Maria Inês do Rego Monteiro Bomfim (UFF), Maria de Fátima Félix Rosar (UNICAMP), Marcia Alvarenga (UERJ), Mariléia Maria da Silva (UDESC), Marisa Brandão (CEFET-RJ), Marise Ramos (UERJ,FIOCRUZ), Marlene Ribeiro (UFRGS), Myriam Feldfeber (UBA - Argentina), Ney Luiz Teixeira Almeida (UERJ), Olinda Evangelista (UFSC), Ramon de Oliveira (UFPE), Raquel Varela

(Universidade Nova de Lisboa - Portugal), Roberto imageLeher (UFRJ), Ronaldo Lima (UFPA), Rosilda Benacchio (UFF), Rui Canário (Universidade de Lisboa – Portugal), imageSandra Maria Siqueira (UFBA), Sandra Morais (UNIRIO), Sérgio Lessa (UFAL),, Susana Vasconcellos Jimenez (UFC), Tatiana Dahmer (UFF),

Valdemar Sguissardi (UFSCar), Vania Motta (UFRJ) e Zuleide Silveira (UFF)


ORGANIZAÇÃO DA TN 37 (2020)

Professores/ras Doriedson do Socorro Rodrigues (GEPET/UFPA), Arminda Botelho Mourão (UFAM) e Odete da Cruz Mendes (GEPEGEAT/UFPA)


ASSISTENTES DE EDIÇÃO

Daniel Tiriba, Lândhor Borges Camello (UFF), Luiz Augusto de Oliveira Gomes (Doutorando em Educação/UFF) e William Kennedy do Amaral Souza (IFRO),


BOLSISTAS DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA

Ana Clara da Silva Souza (Serviço Social), João Marcoyves Carvalho da Silva (Serviço Social) e Maria Clara Victorino (Serviço Social)


FOTO DA CAPA

Homem, rio e barco na Amazônia- unidade trabalho e natureza, 2019 – Hugo do Carmo Sanches


MONTAGEM DA CAPA

Daniel Tiriba

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V.18 nº 37 / set-dez (2020) ISSN: 1808-799 X


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Apoio:



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Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoatá/SDC/UFF Bibliotecária:

Mahira de Souza Prado CRB-7/6146



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V.18, nº 37, set-dez (2020) ISSN: 1808-799 X


Editorial


PANDEMIAS, PANDEMÔNIOS E LUTAS ENTRE CAPITAL E TRABALHO NA AMAZÔNIA1


Diz a lenda que há muitos e muitos anos, existiam dois noivos apaixonados que viviam no meio da floresta. Ela se chamava Lua e se vestia de prata. Ele se vestia de ouro, e tinha o nome de Sol. Preocupada, a Pachamama (do quíchua Pacha, "universo", e Mama, "mãe", "Mãe Terra") advertia que os dois não deveriam jamais se casar, pois o sentimento ardente e irradiante do Sol poderia queimar a Terra. E, sendo assim, o mundo poderia, enfim, se acabar! Com a separação dos namorados, a Lua resignada, chorou durante um dia inteiro.... Desconsolada, chorou a noite inteira... Sofrendo de saudades e de amor ausente, as lágrimas derramadas formaram um vale imenso! Também deram à luz um enorme rio, cercado de flora e fauna por todos os lados. Hoje, esse rio se chama Rio Amazonas – rio de alegrias, amarguras, esperanças e lutas.

Na escola, decoramos que o Rio Amazonas é o segundo maior rio do mundo, só perdendo para o Rio Nilo, que nos conta um pouco da história das economias e culturas milenares dos povos do Egito. Depois de atravessar a cordilheira dos Andes, as águas do Amazonas invadem o Brasil, percorrendo 3.165 quilômetros para, então, desaguar na imensidão do Oceano Atlântico. Saber “de cor e salteado” os afluentes da margem esquerda e da margem direita do Rio Amazonas era um dos indicativos de “boa memória” e, também, da necessária disciplina para que, qualquer um de nós, “independente de classe/cor/raça/gênero/etnia pudéssemos requerer o título de “bom aluno” (e se possível, tornar-se o “melhor aluno” da sala. E por que não, da escola?)

Além de não contar histórias que conformam a nossa cultura, os livros didáticos escondiam, diziam e ainda dizem muito pouco sobre o fato de que, por possuir a maior


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1Editorial submetido em 17/09/2020. Aprovado em 18/09/2020. Publicado em 25/09/2020. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v18i37.46226.

biodiversidade do planeta, a floresta tropical é mundialmente considerada como “pulmão do mundo”. Talvez para nós, que buscamos compreender a cultura na perspectiva da concepção materialista da história, ainda esteja pouco claro que, na Região Amazônica (e em outros cantos da América Latina) vivem povos e comunidades tradicionais cujas economias e culturas se distinguem do modo capitalista de produção da existência humana. São indígenas (resistentes ou isolados), quilombolas, castanheiros, seringueiros, babaçueiros, ribeirinhos e outros grupos sociais que repartem o território para garantir sua sobrevivência nas terras da floresta, banhadas por afluentes de muitos rios, riachos e suas fontes de água e de vida. Na acepção de Fals Borda, as culturas de homens e mulheres amazônidas poderiam ser consideradas como “culturas anfíbias”. De acordo com a concepção materialista da história e da cultura, trata-se de homens e mulheres que insistem em preservar práticas sociais não capitalistas.

Historicamente, para preservar seus modos de vida, essas populações têm resistido bravamente à expansão capitalista no campo. No cenário da exploração da força de trabalho e de todas as forças da mãe-natureza estão os atuais projetos de devastação acelerada da Amazônia, o que culminou com um grande incêndio na floresta, em agosto de 2019. São programas de cunho público e/ou privado que requerem tratores, motosserras para derrubar a floresta, agrotóxicos para contaminação do solo e dos rios, além de invasões de terras demarcadas dos indígenas e remanescentes quilombolas.

Em tempos de pandemia e de pandemônio, para “passar a boiada” de Ricardo Salles (Ministro do Meio Ambiente), as frentes de garimpo ilegal caminham a todo vapor, repercutindo no aumento do contágio do vírus. Entre junho e setembro, aproximadamente, foi possível observar diversas “campanhas” virtuais nas redes sociais, nas quais lideranças de comunidades tradicionais exigiam o respeito aos seus modos de vida. Por entender que a Covid-19 é a filha mais nova do capitalismo, as lideranças do povo Yanomami gritam: “Fora garimpo. Fora Covid”. Por terem sido esquecidos pelos governantes, os povos indígenas do Alto Xingu perderam 5 caciques em 20 dias; pediam a contribuição de R$ 1,00 por pessoa para a construção de um hospital. Os Hayô Pataxó organizaram uma rifa para concorrer a um cocar, uma gamela e uma lança, pelo valor de 30 reais. A Rede de Apoio Guarany fez campanha para atingir a meta de comprar 101 cestas, mensalmente, para que as famílias não

necessitassem sair da aldeia, protegendo-se da pandemia. Em síntese, conforme os dados da “Plataforma de monitoramento da situação indígena na pandemia do novo coronavírus”, até o dia 17 de setembro de 2020, o saldo era de 32.017 casos confirmados, 807 mortes e 158 povos afetados (https://covid19.socioambiental.org/).

Com o agravamento das violências aos povos indígenas durante a pandemia, as mulheres indígenas de todo o Brasil realizaram nos dias 07 e 08 de agosto uma assembleia online com o tema O sagrado da existência e a cura da terra. Para elas, nós também somos terra, pois a terra se faz em nós.

Na verdade, estamos chegando ao final de 2020, carregando muitos desafios, não apenas na Amazônia, mas no Brasil. Um deles é decorrente da pandemia do Coronavirus, que insiste em ceifar vidas e deixar sequelas em um contingente enorme de seres humanos, ameaçando a fauna, flora e o próprio planeta. Em um contexto político e ideológico de negacionismo da ciência, outro grande desafio diz respeito ao pandemônio estabelecido pelo poder executivo inconsequente, na figura de um presidente que, como representante da extrema direita, tem absoluto descaso com a preservação da vida. As consequências do racismo estrutural e da necropolítica não poderiam ser outras: desemprego, violência física e simbólica, queimadas naturais e criadas pela ganância exacerbada, assassinatos, instituições militarizadas e miliciadas, abuso de poder, letalidade de jovens negros e negras por policiais, trabalho remoto em detrimento da saúde física e mental de trabalhadores/as. Vidas improdutivas ou pouco produtivas não fazem o menor sentido para o sistema destrutivo do capital.

Espectros do “novo” normal? Quando analisarmos as históricas contradições entre capital e trabalho, entendendo-as como contradições entre capital e vida, não é difícil reconhecer que diversas têm sido as pandemias e pandemônios que, cotidianamente, atormentam homens e mulheres de diferentes rincões do Brasil e do mundo.

Desde a chegada dos europeus e, ao longo da expansão capitalista na América, é possível observar movimentos de resistências e lutas de trabalhadores de diferentes matizes e lugares de pertencimentos, que se contrapõem às relações capitalistas de produção da vida. Assim, Inspirada em uma lenda sobre a paixão e o impossível casamento da Lua com o Sol, que gerou o Rio Amazonas, o número 37 da Revista Trabalho Necessário traz à superfície algumas dimensões da

sociobiodiversidade da imensa região amazônica. Organizado por Doriedson do Socorro Rodrigues (GEPTE/UFPA), Odete da Cruz Mendes (GEPEAGEAT/UFPA) e Arminda Rachel Mourão (UFAM), este número destina-se à publicação de estudos e pesquisas voltadas à análise de aspectos ambientais, socioculturais e educacionais, além das formas de trabalho que se constituem na Amazônia, problematizando as desigualdades regionais existentes no Brasil, na historicidade dos processos de reprodução ampliada do capital. Focalizando, ainda, múltiplas dimensões das políticas públicas de educação para crianças, jovens e adultos trabalhadores/as e, em particular, para indígenas, quilombolas, ribeirinhos e extrativistas da região.

Apreender a materialidade das relações entre trabalho, cultura e políticas educacionais na Amazônia é o desafio deste número. Experiências de outras regiões poderiam ser contempladas, mas privilegiamos a Amazônia por tudo que ela apresenta de diverso e, também, pelos sérios riscos que correm a flora, a fauna e os seres humanos que lá habitam.

Não podemos deixar de registrar que as diferentes seções que compõem o número temático Trabalho, cultura e políticas educacionais na Amazônia são o resultado do trabalho desenvolvido no Programa de Cooperação Acadêmica (PROCAD), envolvendo a Universidade Federal do Pará (UFPA), Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e Universidade Federal do Amazonas (UFAM), em articulação com outras universidades públicas e institutos federais.

Outro importante registro é a singela homenagem que a Revista Trabalho Necessário faz ao querido Paolo Nosella, nosso grande mestre!


Um abraço dos editores,


Lia Tiriba, Maria Cristina Paulo Rodrigues e José Luiz Cordeiro Antunes

Setembro de 2020.


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V.18, nº 37, set-dez (2020) ISSN: 1808-799 X


Apresentação


MODOS DE PRODUZIR A EXISTÊNCIA NA AMAZÔNIA: LUTAS, CONQUISTAS E DESAFIOS1


Arminda Rachel Mourão2 Doriedson do Socorro Rodrigues3 Odete da Cruz Mendes4


Nas disputas entre capital e trabalho, manifestam-se, nos diversos territórios amazônicos, processos intensos de exploração de recursos minero-energéticos, invasão de terras para o agronegócio, monocultivo e criação de animais com o objetivo de atender os interesses do mercado. A fim de o capital se expandir, acumular e concentrar cada vez mais, as ações predatórias visam homogeneização de identidades culturais e, para tentar impedir as lutas de resistência, buscam o silêncio dos povos e comunidades tradicionais.

Entretanto, o movimento de trabalhadores e trabalhadoras nos coloca também as lutas, conquistas e os desafios de homens e mulheres da Amazônia para preservação de suas identidades sociopolíticas, manifestas nos seus modos de produzir a existência, no campo da cultura e da educação, por exemplo. Contestam


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1Artigo recebido em 21/09/2020. Avaliado e aprovado pelos editores em 22/09/2020. Publicado em 25/09/2020. DOI: http://doi.org/10.22409/tn.v18i37.46257.

2 Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) - Brasil. Professora Titular da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) - Brasil. E- mail:armindaufam@gmail.com. ORCID: 0000-0002-1940-9477.

Lattes: http://lattes.cnpq.br/3864748731992379

3 Doutor em Educação pela Universidade Federal do Pará (UFPA) - Brasil. Docente da Universidade Federal do Pará, Campus Universitário do Tocantins/Cametá - Pará, Brasil. Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Trabalho e Educação (GEPTE/UFPA). Membro do Grupo de Pesquisa História, Educação e Linguagem na Região Amazônica (GPHELRA/UFPA). E-mail: doriedson@ufpa.br ORCID: 0000-0002-5120-2484. Lattes: http://lattes.cnpq.br/1127076028303549.

4 Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) - Brasil. Mestre em Educação pela Universidade Federal do Pará (UFPA) - Brasil. Professora Associada da Universidade Federal do Pará (UFPA). É credenciada no Programa de Pós-Graduação em Educação e Cultura (PPGEDUC/UFPA), onde orienta pesquisas em temas de política educacional. E-mail: ocm@ufpa.br; ORCID: 0000-0002-1475-3922. Lattes: http://lattes.cnpq.br/3058470629162300

sociabilidades do capital como forma de resistir à negação da vida imposta pelo modo de produção hegemônico: o capitalismo.

É nessa perspectiva que as produções que compõem o número temático Trabalho, Cultura e Políticas Educacionais na Amazônia analisam lutas e conquistas no campo educacional, com suas contradições, tensões, consensos e dissensos. Enfatizam os contextos socioculturais das experiências vividas por homens, mulheres, crianças, jovens, adultos que vivem e se identificam como ribeirinhos, indígenas, extrativistas, quilombolas, campesinos, dentre outras identidades, nas relações que estabelecem entre si e com a natureza, em unidade dialética.

É bastante emblemática a foto que ilustra a capa da TN 37 – Homem, rio e barco na Amazônia – unidade trabalho e natureza –, do fotógrafo e historiador cametaense Hugo do Carmo Sanches, do Estado do Pará, a quem agradecemos. Sintetiza a unidade do diverso que constitui a Amazônia, em que mulheres e homens, com seus produtos do trabalho, encontram-se integrados ao/pelo rio que lhes movimenta a vida. A embarcação carrega subjetividades construídas nos espaços/tempos das águas, possibilitando à população das comunidades ribeirinhas- extrativistas-agricultoras-quilombolas o acesso à escola. Também carrega lutas contra as investidas do capital, como a Hidrovia Araguaia-Tocantins5, a Hidrelétrica de Tucuruí6 e a de Belo Monte7, no Pará, assim como a de Santo Antônio e a de Jirau,


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5 Segundo o site Amazônia Real, com texto Fábio Zuker, publicado em 17 de julho de 2019, às 19h15min, “No sudeste do Pará a ampliação de uma via navegável no rio Tocantins, entre os municípios de Marabá e Baião, vem gerando grande apreensão entre as comunidades ribeirinhas, quilombolas e indígenas da região. Já afetadas pela construção da Hidrelétrica de Tucuruí, inaugurada em 1984, populações que dependem da pesca para a sobrevivência temem que o pouco peixe que sobrou no rio venha a desaparecer com as obras necessárias para aumentar os trechos navegáveis do rio Tocantins. As construções podem também ser danosas à flora e fauna, além de poder aumentar a incidência de malária na região, segundo o Relatório de Impacto Ambiental da obra”. E no mesmo texto, destaca-se a fala de Ademar Ribeiro de Souza, presidente da Associação das Populações Organizadas Vítimas das Obras no Rio Tocantins e Adjacências (APOVO), composta por populações ribeirinhas, quilombolas e indígenas: “O rio Tocantins era um rio nosso, de caminhar e pescar. Fecharam a barragem, agora querem tirar o rio de nós”. In: https://amazoniareal.com.br/ampliacao-da-hidrovia- araguaia-tocantins-ameaca-ribeirinhos. Acesso em 06 de setembro de 2020.

6 Rodrigues (2012) analisa a questão de saberes sociais e luta de classes, a partir do território de pescadores artesanais, focando também os impactos da Hidrelétrica de Tucuruí sobre as experiências de vida desses trabalhadores, dados os impactos socioambientais advindos com a construção desse empreendimento na região.

7 Padinha (2017, p. 09), estudando os impactos “[...] socioespaciais às escalas da vida das pessoas atingidas, por um “grande projeto”, a UHE Belo Monte, construída no rio Xingu, Amazônia brasileira [...]”, destaca a ação desse projeto como promotor da “[...] re(des)estruturação dos territórios onde são implantados, causando fortes impactos às espacialidades existentes e historicamente constituídas de ribeirinhos, camponeses, indígenas, bem como de moradores da periferia da cidade de Altamira – Pará

– Amazônia”.

em Rondônia, no Vale do Rio Madeira8, que destroem diferentes sociabilidades de povos de comunidades tradicionais desta mesma Amazônia, lhes impondo a luta.

É nesse contexto de unidade homens-mulheres-rio-natureza, pois, que sujeitos históricos lutam por processos educacionais que lhes integrem a existência, com seus modos de produzir a vida. E que, com suas experiências de trabalho e cultura, mediadas pela educação, possam lhes permitir a formação por inteiro, como advoga o homenageado na TN 37, presente na seção Homenagem: o professor Paolo Nosella. A partir do texto O princípio educativo do trabalho na formação humana: una spaccatura storica, o professor ressalta a necessidade de se continuar pautando e lutando por processos educacionais que promovam o acesso à cultura extrema, intensa, plena. Isto significa, na Amazônia, opor-se a processos formativos que intentem formar os trabalhadores e as trabalhadoras pela metade, com a negação de conhecimentos escolares em sua totalidade, sem escolas com infraestrutura adequada, sem a garantia de merenda e transporte escolar, sem bibliotecas, acesso à internet, sem laboratórios, que permitam redescobrir os processos de construção de conhecimentos, a partir do trabalho como princípio educativo, em reflexão no seu texto.

A singela e merecida homenagem da Revista Trabalho Necessário se materializa por meio de texto intitulado Paulo Nosella: um herege no campo Trabalho e Educação?, de Ronaldo Marcos de Lima Araujo e Luciane Teixeira da Silva, no qual os autores refletem sobre a trajetória desse filósofo no campo de estudos e pesquisa sobre Trabalho-Educação. Para o contexto Amazônico, são considerações que nos convidam para a luta em prol dos interesses da classe trabalhadora, opondo- se a toda necropolítica que, nos últimos meses, no contexto da pandemia por coronavírus, tem provocado a morte de um conjunto de homens e mulheres de comunidades e povos tradicionais. Trata-se de assumir, como Paolo Nosella, o fascismo e o socialismo como opostos que nos mobilizem a produção e movimentação política, como bem expressam Ronaldo e Luciane sobre o homenageado: “Assim,


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8 Souza (2020, p. 19-20), em seu estudo sobre modos de vida de povos e comunidades tradicionais como formas de resistência ao capital, a partir das categorias trabalho-educação, economia e cultura, salienta que, em Rondônia, “No vale do rio Madeira, a construção das hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio comprometeu sobremaneira a vida de povos e comunidades tradicionais. Muitas comunidades foram alagadas e deixaram de existir, sendo seus moradores transferidos para outros lugares”. E destaca: “Em situação de constante alerta com essa situação, os povos e comunidades tradicionais discutem as suas ações na luta”.

fascismo e socialismo foram os opostos que mobilizaram a sua produção e a liberdade foi assumida como o objetivo fundamental da formação humana. Para ele [Nosella], na tese gramsciana do trabalho como princípio pedagógico, o trabalho deve ser entendido como momento educativo da própria liberdade humana, concreta e universal”.

E essa perspectiva política de estudos e pesquisas, como a que se manifesta nos trabalhos aqui reunidos, parte da materialidade histórica vivida nestes últimos anos, com a ascensão de um governo de cunho fascista, destruidor de direitos de povos e comunidades tradicionais, que impõe à comunidade científica progressista posicionamentos contra-hegemônicos, quer na definição de seus objetos de estudos, ligados ao humano e suas necessidades, analisando-os no interior das contradições capital e trabalho, quer na militância a favor da vida, o que pressupõe a luta pela educação por inteiro em diferentes territórios das diversas Amazônias que constituem a Amazônia, principalmente quando consideramos que o Brasil enfrenta um dos piores momentos de sua história.

Assim, além da Pandemia que levou a sociedade a processos de isolamento social, estamos vivendo o ultraliberalismo perverso, o qual submete homens e mulheres à barbárie, cotidianamente. A natureza tem sido devastada, a Amazônia está em chamas, o Mato Grosso enfrenta o maior incêndio de sua história. Há intenso esforço para conter as queimadas. Milhões de trabalhadores e trabalhadores estão desempregados.

Em nome do combate à corrupção, inúmeros atos ilegais são cometidos; além das mentiras (Fake News) vinculadas às redes, temos a proteção imoral à família do presidente. Lideranças são eliminadas – Marielle no Rio de Janeiro, Cacique Francisco de Souza Pereira em Manaus, Emyra Waiãpi em Pedra Branca do Amapari, Carlos Alberto Oliveira de Souza Mackpak em Manaus, Paulo Paulino Guajajara em Bom Jesus das Selvas, Firmino Praxedes Guajajara em Jenipapo dos Vieiras (Todos e todas presentes em nossas lembranças).

O Governo serve aos interesses dos ruralistas, o capital avança com leis que acabam com os direitos dos trabalhadores, ameaçam a educação e a saúde pública. Há perplexidade frente a atos insanos, porém, há esperança e muita luta para a construção de uma sociedade mais justa.

É o que mostra a TN 37, pois mesmo com todas as dificuldades que a pesquisa científica atravessa em todo o país e mais especificamente na Amazônia, pesquisamos, produzimos e construímos a resistência científica, como expressam os Artigos do número temático, a seguir.

Com Solidariedade econômica e descolonialidade do poder: um diálogo com as visões “indígenas”, marxistas e feministas, de Boris Marañón-Pimentel, temos outra visão da economia, denominando-a de solidariedade econômica, que propugna por novas formas de pensar como responder de maneira não eurocêntrica às necessidades da manutenção da vida. Para tanto, o autor apresenta algumas categorias que contribuem para entender esta nova visão. Chama atenção para a relação sociedade natureza, visto que existe um perigo real da destruição das bases materiais da vida planetária. Apresenta a esperança de construção/desconstrução das estruturas do poder colonial.

O texto A terra em pandemia: povos indígenas brasileiros e suas (derradeiras?) infâncias, de Léa Tiriba, Christiana C. Profice e Miguel T. Schlesinger, traz uma reflexão sobre a relação entre os seres humanos e a natureza na perspectiva da ecologia política, a partir de atores principais, os indígenas do Mato Grosso, mostrando que a Pandemia deixou bem visível como os direitos destes povos estão sendo violados. Evidenciam que a realidade cotidiana das crianças indígenas, a forma como são educadas, demonstra respeito para com os infantes e com o planeta terra. A materialidade do trabalho e a sua organização na comunidade de Nogueira/Alvarães/Amazonas é a temática abordada no texto A materialidade do trabalho em territórios das águas, terras e florestas da Amazônia. O campo amazônico são as terras firmes, as águas e as florestas, no qual a força de trabalho relaciona-se com os ciclos da natureza. E a partir dessa realidade, Arminda Rachel Botelho Mourão, Iraci Carvalho Uchôa e Heloísa da Silva Borges constatam a(s) ausência/insuficiências de políticas públicas de Estado, o que faz com que os trabalhadores e trabalhadoras enfrentem constantemente desafios, muito presentes também no setor educacional, o que lhes mobiliza um conjunto de lutas pela manutenção da vida, advogando-se a necessidade de a escola vincular os conhecimentos construídos nessas lutas com o vivido nos processos de ensino e

aprendizagem formais, o que ainda não se verifica.

Benedita Celeste de Moraes Pinto, Vilma Aparecida de Pinho e Beleni Salete Grando, ao apresentarem o artigo, História, memória e educação dos remanescentes quilombolas de Boa Esperança – Pará concluem que, apesar da riqueza cultural dos quilombolas, não há um trabalho efetivo no cotidiano da escola com as experiências culturais das comunidades. Assim, ao resgatar por meio da história oral as reminiscências contidas nas memórias, há a indicação de que a prática escolar tem que ser revista. No texto, o debate sobre processo de integração entre escola e a vida da comunidade, com suas experiências, é tema presente.

Com o artigo Política de formação dos professores do campo: prática de resistência na Amazônia, Hellen do Socorro de Araújo Silva, Carlos Nazareno Ferreira Borges e Maria do Socorro Dias Pinheiro focam suas análises na política de formação de educadores do campo, no contexto amazônico, buscando compreender a inter-relação com a vida dos sujeitos do campo em prol de processos de transformação da própria escola do campo como prática de resistência. Para as autoras e o autor, “O contexto de reconstrução da escola do campo requer [...] maior resistência por uma formação de professores inclusiva e com seu pilar na diversidade e nas políticas afirmativas”.

O trabalho Tecnologias digitais, trabalho docente e tempos/espaços de aprendizagem na Amazônia Paraense, de autoria de Maria Sueli Corrêa dos Prazeres e Ilda Gonçalves Batista, aponta que as mudanças na compreensão espaço/tempo na Amazônia, devido ao uso das tecnologias digitais, são contraditórias, posto que ao mesmo tempo que favorecem os processos de ensino/aprendizagem também desfavorecem o trabalho docente, sendo necessário aprofundar os estudos sobre a questão. No contexto Amazônico, as autoras apontam a necessidade de serem consideradas, nos processos de definição e uso de tecnologias, as realidades vividas pela classe trabalhadora no campo de suas relações de trabalho, no interior dos processos socioeducativos na escola.

Tendo em conta uma escola de ensino médio – a Escola Crescendo na Prática

–, criada no Assentamento Palmares II, Estado do Pará, a partir de lutas do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), Larissa de Nazaré Carvalho de Aviz analisa o sentido do ensino médio para os jovens trabalhadores, buscando compreender o processo de integração/fragmentação entre os saberes sociais produzidos pelas experiências vividas no assentamento, a partir da categoria trabalho, e os

conhecimentos escolares na formação dessa juventude. Movimento social e a educação: o Ensino Médio na Escola Crescendo na Prática é texto que nos coloca para a discussão educacional na Amazônia a necessidade de integração entre escola e vida, a partir do que fazem os movimentos sociais enquanto intelectuais orgânicos dos interesses dos trabalhadores e a cultura humana presente no universo escolar por meio também dos conhecimentos escolares.

Eleuza de Souza, Maria Edilene Ribeiro e Odete Cruz Mendes, com o artigo A participação da mulher trabalhadora como associada no STTR/CAMETÁ e a sua constituição como ser político, apresentam importante reflexão sobre o processo formativo de mulheres associadas ao Sindicato de Trabalhadores Rurais, Agricultores e Agricultoras Familiares de Cametá – STTR/Cametá, no estado do Pará, como lideranças na organização da entidade, pautando demandas e posições políticas, diante de uma sociedade de patriarcado estrutural, ligado a interesses do capital. Trata-se de texto, no dizer das autoras, que traz “[...] discussões referentes ao modo como essas mulheres se inserem na entidade, pelo modo de sobrevivência no trabalho e nas lutas do próprio sindicato, pautando suas demandas, no intuito de que sejam visibilizadas enquanto agente que como ser, no/pelo trabalho, também, produz sua existência”.

Ao analisar as comunidades tradicionais no estado de Mato Grosso, sob o enfoque materialista histórico e dialético, o texto Pesquisas sobre comunidades tradicionais em Mato Grosso: a unidade do diverso, de Ana Paula Bistaffa de Monlevade, Janaina Santana da Costa e Cristiano Apolucena Cabral, nos traz elementos que nos permitem reconhecê-las como tal. São as histórias, os costumes e as tradições, guardados na memória, que são passados de geração em geração, relacionados com as experiências vividas que permitem constituir a comunidade e lutar por uma outra forma de produzir, sendo uma resistência ao capitalismo que tudo destrói.

Por meio de imagens, Osvaldo Luís Martins de Castro e Doriedson do Socorro Rodrigues desenvolvem reflexões sobre o trabalho artesanal de pescadores/pescadoras. As imagens revelam o ser social pescador produzindo os saberes construídos no cotidiano, relacionando-os com a natureza e com outros homens e mulheres. Na seção Ensaio, com o título Tecnologias de produção da vida em imagens: saberes do trabalho da pesca em comunidades ribeirinhas, os autores

destacam as tecnologias criadas, tais como: O Paredão: uma forma de captura de pescado; O Matapí: a captura de camarões; O Paneiro: instrumento de transporte de produção; O Casco e o Remo: possibilidade de locomoção; Bloqueio ou Borqueio na pesca do mapará: um trabalho colaborativo; O trato do pescado em colaboração no cotidiano da casa; Muquém ou Moquém: a técnica do assado do Mapará. São formas que expressam o modo de vida dos pescadores e pescadoras, a partir de seus processos formativos.

Na seção Entrevista, Océlio Muniz, Membro da Coordenação Estadual do Movimento dos Atingidos por Barragens - MAB (RO), com informações concedidas a William Kennedy do Amaral Souza e Mahalia Gomes de Carvalho Aquino, chama a atenção que o governo Bolsonaro, ao procurar soluções para a economia estagnada, ameaça o bem estar da população em prol da produtividade capitalista. Na entrevista, a liderança do MAB afirma que há ascensão da extrema direita que se pauta em ideias fascistas, racistas e machistas, que ataca os direitos e territórios historicamente conquistados pela classe que vive do trabalho e pelas populações tradicionais. Na entrevista, é evidenciado que a luta é de resistência; a luta é pela vida. Na seção Teses e Dissertações, dois resumos são apresentados ao leitor, tomando como foco processos formativo-educacionais experienciados na Amazônia. Ana Maria Raiol da Costa com a tese de doutorado A experiência educativa da Casa Familiar Rural de Gurupá/PA, apresenta-nos importante análise sobre o desenvolvimento do ensino médio integrado à educação profissional do campo, a partir das mediações da Pedagogia da Alternância. Para a autora, a perspectiva formativa analisada, com base nessa Pedagogia, mostrou-se como “experiência educativa de resistência em contraposição ao modelo hegemônico [...], posto que concebe a educação a partir da realidade local, destacando-se a integração de saberes da família, da comunidade e da escola, como “[...] uma experiência de

educação integral no Campo”.

José Rivaldo Arnaud Lisboa, por sua vez, com a dissertação de mestrado Atuação da Igreja Católica na Prelazia de Cametá: o contexto da Educação Popular no período de 1980 a 1999, apresenta-nos discussão sobre o processo formativo de trabalhadores e trabalhadoras a partir de educação de cunho popular oportunizada pela Igreja Católica de perspectiva progressista, com base nas orientações da Teologia da Libertação, no contexto político da ditadura e a abertura democrática no

país. Para o autor, as materialidades produtivas desenvolvidas pelos trabalhadores e pelas trabalhadoras rurais foram tomadas como elementos importantes para nortear os processos formativos, proporcionando uma “[...] Educação Popular como denúncia da ausência do Estado; a Educação Popular como militância; a Educação Popular com foco na formação e trabalho associados a fatores econômicos; a Educação Popular na perspectiva de atividade ético-política transformadora; a Educação Popular como integração”.

Na seção Memória e Documentos, o professor e pesquisador Francisco José da Silveira Lobo Neto, com o texto Projeto Rondon: relações entre universidade e sociedade, analisa, a partir de Decretos e Leis, a trajetória do Projeto Rondon, observando a relação entre universidade e sociedade, a partir de atividades extensionistas que criavam oportunidades para que um “[...] maior número de estudantes circulasse em campi avançados de suas próprias universidades e de outras universidades”. Essas reflexões, contudo, para além de uma descrição historicista, apontam para se continuar o exercício de atividades extensionistas no país, sendo importante, para tanto, “[...] resgatar critérios como participação das populações locais na formulação e controle das ações; como uma educação da cidadania como aperfeiçoamento de direitos individuais e sociais, e nenhuma submissão às realidades perversas da desigualdade; como uma segurança nacional que integre e desenvolva sustentavelmente a todos; como igualdade de condições de educação e saúde para todos”.

Isto posto, destacamos que os resultados das pesquisas aqui reunidas, a partir de processos de investigação que tomam as contradições decorrentes de uma sociedade de classes, com interesses antagônicos, colocam-se também, no campo das discussões sobre educação e cultura, mediadas pelo trabalho de homens e mulheres, como ações contra hegemônicas a um tipo de sociedade anticulturalista e anti-intelectualista, que intenta uma realidade naturalizadora e silenciadora de desigualdades sociais, em prol do fortalecimento de ethos de vida sob orientações mercadológicas. Trata-se de pesquisas que nos apresentam, na Amazônia – ou Amazônias, com suas amplas diversidades –, a luta de homens e mulheres em proveito de processos formativos de cultura extrema, integrais, que coloquem o humano como sujeito emancipado, pleno de direitos e detentor dos resultados do trabalho, em amplas dimensões da vida.

Por último, apresentamos a seção Artigos - Outras Temáticas contendo cinco artigos, que não deixam de se articular com a tema central da TN 37 - Trabalho, cultura e políticas educacionais na Amazônia. Isto porque, os referidos textos generalizam a importância da reprodução ampliada da vida para além do espaço da Amazônia, como direito inalienável dos seres humanos.

O artigo de George Amaral e Anderson Deo, A relação entre trabalho e educação a partir da ontologia marxiana: apontamentos aos seus fundamentos, propõe a reflexão entre as categorias Trabalho e Educação. Parte da análise produzida por Karl Marx e na abordagem de György Lukács, buscando elucidar a função social que se constituem essas relações para a formação humana, uma imbricada na outra, como elementos constitutivos – nexos constitutivos - no processo de formação humana.

O artigo de Catherine Guillaumin, La formation professionnelle en france: aspects historiques, choix politiques, traductions juridiques et methodologiques põe em evidência as transformações políticas da França e seus aspectos históricos, analisando a legislação sobre a educação no país, especialmente sobre a formação profissional. Como conclui a autora, é “um assunto sempre atual nos debates educacionais e que é necessário atenção para o trabalho realizado nos Centros de Formação”. O texto é rico pela descrição que apresenta, por isso interessante para nós brasileiros, pois pouco sabemos sobre a oferta profissional atual na França voltada para jovens e adultos. Representa um excelente material para estudos comparados em Trabalho-Educação.

O texto de Ecléa Vanessa Canei Baccin e Eneida Oto Shiroma, Contexto histórico de criação do reconhecimento de saberes e competências e suas repercussões sobre o trabalho e a carreira docentes, analisa o que representa para a categoria profissional do magistério do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico – EBTT, o Reconhecimento de Saberes e Competências (RSC) para a concessão de equivalência à retribuição por titulação para fins de remuneração. Resgata o processo histórico, as resistências, as contradições, os conflitos entre governos-sindicatos, na medida que representa um mecanismo / dispositivo político de certificação de “uma certa” prática docente. As autoras, com suas análises, clarificam a contradição de fundo que o RSC acaba por significar no auto reconhecimento, remuneração e coesão da categorial profissional docente e suas lutas.

Em Reformismo e educação: a escalada liberal brasileira e suas repercussões educativas, Victor Leandro Silva analisa o cenário recente da política brasileira, sinalizando o forte impacto do reformismo ultraliberal trazidos pela mudança do mundo do trabalho e pela Reforma Trabalhista, o que leva ou alcança também o campo educativo, explicitamente com a Reforma do Ensino Médio, para possibilitar os objetivos visados pelas diretrizes da reforma trabalhista. Denuncia o processo de precarização do trabalho, a supressão dos direitos dos trabalhadores, o retorno do neotecnicismo, ampliando o processo de exploração e expropriação do trabalho criativo que estão sujeitos (precariado e uberização), por parte do capital e a consequente fragilização dos trabalhadores da educação e suas lutas.

O texto de Eraldo Souza do Carmo, intitulado Financiamento da educação e as implicações à garantia do direito e qualidade da educação, trata de temática atual e relevante no momento em que se problematiza a política dos fundos, principalmente o FUNDEB. Dialogando com alguns pesquisadores da área da educação e contando com a análise da legislação educacional, o autor, ao problematizar a política de fundos, conclui que o financiamento não representou / apresentou recursos adicionais ou novas fontes de recursos à educação, gerando limites para a sua oferta com qualidade em diferentes municípios brasileiros, além de salientar a não superação das desigualdades educacionais de recursos.

Para finalizar a apresentação da TN 37, gostaríamos de enfatizar que as reflexões que deram corpo a este número temático, cuja centralidade são as relações de trabalho vinculadas às terras, águas e florestas, tendo em vista o trabalho como princípio educativo, sugestivamente tendem a responder questões-problema que afetam as comunidades nos seus diferentes territórios amazônicos. Estas comunidades, ao produzirem suas existências no/pelo trabalho, oferecem inúmeros elementos de investigação que podem abarcar as riquezas culturais, as linguagens e os seus modos de vida, contribuindo assim para as áreas científicas e sociais.

Por meio do Programa de Cooperação Acadêmica – PROCAD(UFPA/UFMT/UFAM) que oportunizou a presente publicação, trazemos um conjunto de estudos sobre os aspectos das riquezas culturais, as linguagens e os modos de vida mediatizados pelas relações seres humanos/natureza. O fato de o PROCAD ter contemplado três universidades públicas federais situadas nos Estados do Pará, Mato Grosso e Amazonas permitiu que, a partir de uma visão plural, se

trouxesse à tona a diversidade e as singularidades da vasta região amazônica. As três universidades, em articulação com pesquisadores e pesquisadoras da Universidade Autônoma do México (UNAM) e de outros institutos federais e universidades brasileiras tomaram por base os saberes e visões cosmológicas ímpares e plurais construídas nos diferentes espaços/tempos existenciais das populações, assim como as determinações do capital e as múltiplas dimensões das políticas públicas de educação para crianças, jovens e adultos trabalhadores/as e, em particular, para indígenas, quilombolas, ribeirinhos e extrativistas da região amazônica.

Pelas reflexões produzidas na composição do presente número temático se pode depreender das realidades analisadas nesse contexto, ao mesmo tempo plural e singular, uma Amazônia que se expressa no trabalho e na cultura dos diferentes sujeitos, entendendo-se o trabalho e a cultura como categorias histórico-ontológicas onde homens e mulheres produzem as suas existências e constroem resistências em favor da vida através das relações estabelecidas no/pelo trabalho, sendo este o ato fundante do ser social. Conceber o trabalho, dessa forma, é reconhecê-lo como práxis social humana, que implica reflexão e ação, tomada de decisão e execução, ou seja, atividade intelectual e, também, atividade manual.

Convidamos o leitor/a leitora a adentrar na proposta que trazemos, que é a construção de uma nova forma de produzir, rompendo com estereótipos e evidenciando que a Amazônia é um espaço ocupado com seres humanos que vivem e pensam o mundo de outras formas, sendo necessário entender que a Amazônia precisa ser preservada.


Referências


PADINHA, M. R. Grandes objetos na Amazônia: das velhas lógicas hegemônicas às novas centralidades insurgentes, os impactos da Hidrelétrica de Belo Monte às escalas da vida. 2017. 444f. 2017. Tese (Doutorado em Geografia) - Programa de Pós-Graduação em Geografia. Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Tecnologia, Presidente Prudente.


RODRIGUES, D. do S. Saberes sociais e luta de classes: um estudo a partir da colônia de pescadores artesanais Z-16 Cametá/ Pará. 2012. 337f. Tese (Doutorado em Educação)



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  1. JUSTIÇA GLOBAL. Vale de lama: Relatório de inspeção em Mariana após o rompimento da barragem de rejeitos do Fundão, 2016. Disponível em: <http://conflitosambientaismg.lcc.ufmg.br/wp- content/uploads/2016/01/Vale-de-Lama-Justic%CC%A7a-Global.pdf>. Acesso em: 29 jun. de 2020.

    construção do MAB no estado, com a tarefa de organização do movimento nas comunidades. A conversa foi realizada no dia 25 de maio de 2020, por meio digital7 e conta com a apresentação de fotografias que evidenciam os processos de luta e mobilização popular do MAB nos territórios atingidos pela construção de grandes empreendimentos, como desvio de rios, barragens minerárias e hidroelétricas. Também há fotos do cotidiano de comunidades ribeirinhas e exemplos da grandeza dos rios amazônicos.

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    O barco na imensidão do rio Madeira.

    Fonte: Foto de William Kennedy do Amaral Souza (2019).


    Trabalho Necessário: No campo, os povos tradicionais e a classe trabalhadora vêm sofrendo com os crimes socioambientais em seus territórios e também com a crescente perda de direitos que foram conquistados historicamente. Como a questão ambiental se insere neste momento nas pautas de luta, mobilização e participação do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB)?


    Océlio Muniz: Historicamente o MAB teve em suas pautas de luta a defesa do meio ambiente. Entendemos que a luta contra as barragens é a luta contra a destruição da natureza dos rios e das florestas, e temos isto como central. Na conjuntura atual, o Movimento tem debatido que defender a Amazônia é defender a vida. Em um


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  2. Em cumprimento às medidas de isolamento social da pandemia do COVID-19 no período da realização da entrevista.

momento em que as políticas ambientais estão sendo desmontadas pelo atual modelo econômico, o MAB vem somando forças com outras organizações para que as ações em defesa do meio ambiente sejam fortalecidas.


Trabalho Necessário: Diante do movimento predatório do capitalismo sobre os territórios das comunidades tradicionais, de que forma as mobilizações sociais são capazes de conter os avanços e os danos ambientais nesses espaços de interesses à exploração?


Océlio Muniz: Na nossa compreensão, há diversas lutas que podemos fazer! As lutas populares com consciência política em locais como comunidades indignas, comunidades ribeirinhas, pequenos produtores rurais, criando resistências locais, podem ser um elo central com a sociedade em defesa do território. Outras ações serão via mídias sociais e apoio da sociedade, com o povo urbano fazendo uma relação da importância de preservação da vida.


Trabalho Necessário: Qual a importância de trazer os grupos urbanos para a luta no campo? De que forma essa estratégia de luta amplia a participação e chama para uma luta coletiva?


Océlio Muniz: O MAB, historicamente, é um o movimento camponês de famílias atingidas por barragens de maioria ribeirinha. Mas no mesmo período, a maioria das barragens construídas no Brasil atinge também habitantes da área urbana, não só em Rondônia (que temos famílias atingidas na área urbana de Porto Velho RO e outros distritos que são que possuem famílias deslocadas). Então a estratégia do MAB também é a organização do público urbano. Para fortalecer a luta do MAB, entendemos que os atingidos por barragens não estão só nas zonas rurais. Na cidade temos dois perfis: um perfil composto por atingidos pelas hidrelétricas (que atingem o público urbano deslocado [reassentado]) e o outro perfil são famílias da periferia que pagam uma tarifa de luz que se configura como a 5ª tarifa mais cara do Brasil. Então movimento tem construído articulações urbanas no sentido de fazer a luta para que o setor elétrico brasileiro melhore o acesso à energia elétrica nas áreas urbanas e que a população urbana tem acesso à energia com tarifa social. Essa é

uma das ações que o Movimento trabalha nas áreas urbanas. Com isso temos feito uma terceira análise de que a importância do público urbano na luta, na compreensão de que os atingidos por barragens, não estão sós, de que somos todos atingidos, porque a construção da barragem ela impacta os atingidos por barragens diretamente e os atingidos urbanos com a conta de luz, com o discurso de que a construção das hidrelétricas diminui a conta de luz da população em geral... E nos últimos anos o MAB tem se deparado com essa contradição que as famílias urbanas não diminuíram a conta de luz, pelo contrário, só tem aumentado. Então os debates que temos feito na área urbana é travar uma luta para que o acesso à luz e barata para todos e todas.


Trabalho Necessário: Qual a relação existente entre a mercantilização dos recursos naturais e o aumento na violência socioambiental?


Océlio Muniz: Quando o mercado e as empresas em geral visam à produção das commodities em primeiro lugar, sem pensar na vida das pessoas e no meio ambiente, essa relação se torna mercadoria e tudo em seu entorno vira comércio para geração de lucro. Com essa relação, se tornam inevitáveis os conflitos socioambientais com as comunidades e povos que defende a vida. Exemplo disso foram os grandes crimes de Mariana e Brumadinho, ambos em Minas Gerais. Onde o lucro está acima da vida. No Norte temos os exemplos dos complexos hidroelétricos de Belo Monte (localizada a 40 km acima da cidade de Altamira - PA) e Madeira (Porto Velho – RO), que seguiram a mesma cartilha do lucro acima de tudo e todas. Não termos conciliação! Os conflitos são inevitáveis.


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Paracatu de Baixo (Mariana – MG), segundo distrito atingido pelo rejeito minerário oriundo do rompimento da Barragem de Fundão, em 05 de novembro de 2015. Na memória da autora da foto, ainda estão presentes o cheiro forte ferroso do ar e a certeza de que nada pode ser mais destrutivo e devastador do que a ação do capital sobre a natureza.

Fonte: Mahalia Aquino (arquivo pessoal), registro realizado em 06 de novembro de 2016.


Trabalho Necessário: Usando o exemplo de Santo Antônio Energia, fale um pouco mais sobre a violência e os impasses com as empresas. As disputas e conflitos. De que forma a violência impacta diretamente nas comunidades? Como ela se manifesta localmente?


Océlio Muniz: Na luta do MAB na região de Santo Antônio, a barragem que fica mais perto de Porto Velho, teve grandes impasses enfrentamento contra Santo Antônio Energia em três questões:

  1. a empresa não queria garantir o direito dos atingidos dizendo que não havia atingidos, que eram uma minoria. Então MAB foi para cima organizando as famílias no coletivo demonstrando para empresa que tinham atingidos. Então soltou de 200 famílias atingidas para quase três mil famílias e é um número que está crescendo porque empresa faz cálculos errados e tem famílias que hoje ainda, em 2020, estão sendo remanejadas. Por exemplo, o distrito em Jaci Paraná, é um conflito e uma disputa constante com a empresa, pois ela fez cálculos equivocados que o lago [da represa] subiu e mais famílias foram atingidas. Então as famílias têm esses constantes conflitos para que empresa garanta esse direito. O MAB entra nesse processo de organização social no coletivo para lutar por esse direito, que entra na segunda questão.

  2. Santo Antônio Energia sempre atuou para que o movimento não se fixasse nas comunidades impedindo a luta coletiva;

  3. Quando fazemos a luta coletiva, garantimos um direito mais ampliado. Tem-se o direito e, assim, amplia o acesso a mais famílias. Esse direito dá as famílias mais firmeza quando essas passam pelo processo de luta coletiva. Os conflitos com a empresa sempre estão presentes, essas disputas, porque a empresa quer garantir suas propostas e as propostas da empresa sempre foram menos. O MAB busca no processo de luta e organização social no coletivo para obrigar que a empresa atenda a demanda integral das famílias atingidas por barragens.


Trabalho Necessário: O mercado global das commodities exerce fortes pressões sobre os territórios dos trabalhadores e trabalhadoras do campo. Quais são os impactos no trabalho e, em especial, no modo de vida das comunidades tradicionais?


Océlio Muniz: Nos últimos anos estamos enfrentando o avanço das commodities na região amazônica, tendo como consequência o aumento dos desmatamentos, exploração das terras indígenas e unidade de conservações. Com isso os povos são expulsos das suas terras e comunidades devido ao grande uso dos agrotóxicos usados pelas empresas e também invasões das terras por grileiros. Comunidades são destruídas, povos são forçados a fazer migrações internas e na maioria vão pra os centros urbanos e ficam sem teto e sem-terra.

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Balsa com contêineres de grãos descendo o rio Madeira

Fonte: Movimento dos Atingidos por Barragens.


Trabalho Necessário: Como o MAB vê as ações do Estado frente o cenário do avanço das commodities?


Océlio Muniz: O MAB tem feito avaliação que a energia é uma commodity. O Estado sempre garantiu a construção de hidrelétricas e sempre garantiu a venda dessa energia para as grandes empresas - onde há o consumo de uma grande quantidade de energia e energia barata, enquanto a população paga mais caro. Uma das commodities que temos discutido é a energia elétrica, porque a partir dela outras commodities começam a se fixar espaço. Em Rondônia a construção das hidrelétricas do Madeira, abriu espaço para o avanço das commodities de monocultura no interior do estado, porque o aumento em infraestrutura atende o objetivo de ter mais energia para essas empresas. Há ainda um plano para a construção de mais duas hidrelétricas em Rondônia (Brasil-Bolívia binacional) para garantir a infraestrutura de exportação das commodities, como a carne do boi que tem muita produção para exportação e a soja, que vem avançando do sul do estado para Porto Velho, que se dá depois da construção das usinas e com grande apoio do Governo Estadual e Federal nesse fortalecimento dessas empresas de produção de commodities.


Trabalho Necessário: Quais são as críticas que devemos fazer ao projeto de desenvolvimento em curso? Qual é projeto de sociedade que o MAB defende?


Océlio Muniz: No Brasil a economia já estava indo mal antes da pandemia do vírus COVID-19. O crescimento econômico de 2019 foi o pior dos últimos anos e até aquele momento todas as medidas tomadas pelo governo não indicavam qualquer condição de retomada do crescimento econômico. Além do baixo crescimento econômico, houve uma imensa retirada de direitos que certamente agrava as condições de vida e de trabalho da maioria do povo. Estava, em grande medida, avançando muito nas privatizações de tudo (saúde, energia, petróleo, educação). Está em curso o aprofundamento do programa neoliberal, que não deu certo em nenhum país.

O MAB defende um modelo de sociedade onde todos possam ter os mesmos direitos e sermos solidários. Defendemos que a água e energia não são mercadoria,

sejam bens públicos a serviço dos brasileiros. Defendemos uma cultura da solidariedade, na necessidade de divisão das riquezas, na necessidade de colocar a vida acima do lucro, e na articulação do país com países mais avançados com este pensamento na humanidade.


Trabalho Necessário: De que forma as populações atingidas por megaempreendimentos respondem às pressões do capital? Como as pessoas se organizam para romper com a lógica que lhes é imposta?


Océlio Muniz: Nossa luta sempre foi à luta contra as barragens. Entendemos que as barragens não servem ao povo e as comunidades. Nossa ação sempre foi coletiva buscando a compreensão política dos interesses por trás das empresas (lucro). Nossas ações começam nas comunidades: organizações de base e comunitárias, negociações coletivas e pressão popular.


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Ato mobilizado pelo MAB – RO, em 14 de março de 2015, na rodovia BR 364, em Candeia do Jamari. Parte da luta, em defesa da soberania popular energética.

Fonte: Océlio Muniz (arquivos do MAB),


Trabalho Necessário: Sabemos que em muitos casos os atingidos por barragens não aderem à luta do MAB. Estes realizam acordos individuais e acabam recebendo compensações financeiras abaixo do que busca o coletivo. Mas, para muitos, ao compreenderem que essa compensação financeira não é compatível aos seus bens (materiais,

mas, sobretudo aos imateriais), procuram na luta coletiva uma forma de exigir o que lhes é de direito. O que fazer com essas contradições que ocorrem dentro do movimento?


Océlio Muniz: As contradições são resolvidas no processo de formação política e no enfrentamento às empresas pela luta popular. Nossa ação se fortalece com os grupos coletivos para o processo de negociação com as empresas e o Estado. A de luta coletiva faz os atingidos percebem que as pautas são atendidas com amplitude. Na maioria das vezes, o distanciamento dos atingidos da luta coletiva se dá via trabalho de cooptação das empresas, que usa o seu poder econômico e político pra colocar os atingidos contra o MAB.


Trabalho Necessário: Sobre a atuação do MAB nos reassentamentos consequentes da construção das usinas de Jirau e Santo Antônio e de acordo com relatos dos moradores, a situação dessas comunidades realocadas ainda não foram resolvidas. Quais são os principais conflitos que ocorrem? Como é a vida nos reassentamentos? Os ribeirinhos conseguem manter-se nesses novos territórios?

Océlio Muniz: A nossa luta no Madeira foi pra que as comunidades tivessem suas vidas reconstruídas em novas comunidades (reassentamentos). A proposta das empresas seria unicamente as indenizações. Nossa luta obrigou as empresas adotar três modelos de compensações:

  1. Reassentamentos (realocação das famílias);

  2. Indenizações justas e carta de crédito;

  3. Com condições estruturantes visando à melhoria da qualidade de vida e geração de renda para as famílias atingidas.

    Esse processo foi de muita luta, pois as empresas não queriam entender as demandas do MAB. Avançamos uns 70% da nossa pauta. Por não atender nossa demanda, os atingidos ainda sofrem com problemas estruturantes nas áreas atingidas. Por exemplo:


Trabalho Necessário: Em agosto de 2019, estivemos em um reassentamento nas proximidades de Porto Velho (RO) e, entre muitas conversas e entrevistas, uma senhora reassentada relatou que era “uma ribeirinha sem água”. Atualmente, ela reside em um reassentamento que possui o lençol freático contaminado com água imprópria ao consumo. Essa senhora tem por volta de 60 anos de idade e viveu até os 52 anos na beira de um rio, possuía relações de vida e trabalho com a água, mas hoje precisa comprar água para consumir. De que forma esse afastamento forçado do território de origem impacta a saúde mental e física dos atingidos e das atingidas? Como o MAB auxilia psicologicamente essas pessoas?

Océlio Muniz: Um dos grandes problemas das famílias foi essa distância do rio. Sempre acontece e não tem retorno. As empresas privatizam o rio e distanciam o povo de sua origem. Nossa luta sempre foi contra esse processo de remoção das famílias. As empresas têm, por obrigação, restabelecer as condições de vida dos atingidos, mas as mesmas não têm garantido esse processo. Como já relatei, tem muito a ser feito nas comunidades, desde garantir água as famílias dos acompanhamentos sociais. O MAB tem buscando parceria com universidades (como o departamento de Psicologia para tentar buscar uma solução coletiva). Também tem pressionado as autoridades e as empresas para solucionar os problemas. Os grandes responsáveis são eles, no que se refere aos empreendimentos de Santo Antônio Energia e Jirau.


Trabalho Necessário: Você falou do “Departamento de Psicologia”. De qual instituição? Quais instituições, sobretudo as educacionais, são parceiras na luta do MAB? Qual o intuito de envolver a questão psicológica nas pautas dos reassentamentos?


Océlio Muniz: Refiro-me ao Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Rondônia, que o MAB, preocupado com a questão do impacto a saúde dos atingidos (principalmente as mulheres), construiu uma parceria com a instituição para fazer um trabalho junto às companheiras do movimento, para identificar e realizar um processo em conjunto com as lutas do MAB, no qual há encontros com as mulheres atingidas, onde professores e estudantes de psicologia estão acompanhando. A ideia é conseguir mapear nas comunidades atingidas, reassentamentos e comunidades urbanas, quais ações podem ser trabalhadas com a psicologia. O trabalho com a Universidade é para construir o espaço, para dentro da Universidade, que tenha necessidade de acompanhar essas questões pensando que a usina, no seu momento de construção, trabalhou. Ela contratou psicólogos para o processo de remanejamento das famílias e a nossa análise enquanto movimento de atingidos por barragens, que socializamos com a universidade que, a maioria dos psicológicos contratados, fizeram um processo de cooptação com as famílias e de convencimento de que essa ideia é mais viável para as outras comunidades. Não foi para trabalhar com o processo de reconstrução social, foi mais um processo de pressão para aceitar o projeto e não fazer questionamentos. Essa aproximação com a Universidade é para

fazer o outro lado: questionar esse projeto feito pela usina e criar um novo e mais participativo juntamente com a psicologia rural.


Trabalho Necessário: Sobre o tema “saúde física e mental”, qual o impacto ao atingido (a) quando as famílias são realocadas para regiões que nada se assemelham ao seu antigo território e seus modos de vida locais?


Océlio Muniz: O MAB, em seus mais de 30 anos de luta, vem identificando que o grupo que mais sofre mais com a construção das hidrelétricas é o das mulheres. Elas são as mais impactadas. Isso se dá porque é a mulher que tem o cuidado da casa, que tem a preocupação com a família e como vão reconstruir suas vidas, entre outros fatores. O movimento identificou que essa mulher quando é remanejada - sai da sua comunidade de origem passa para outro território desconhecido -, ela passa a sofrer um grande impacto social, tanto pela questão de saúde física quanto mental que, por vezes, se agravam. Há casos em que essas mulheres, ao serem remanejadas para outras comunidades, passam a sofrer de depressão e tem situações de chegarem a óbito, sem explicações ou por doenças. Com o aumento nos casos, o coletivo de mulheres do MAB tem feito um grande trabalho para essa identificação. Em Rondônia não foi diferente, tem muitas situações das comunidades atingidas reassentadas que, com a maioria das mulheres, acontece separação entre os casais, deixam o reassentamento e vão para outros territórios, porque elas não conseguem se adaptar à realidade imposta pela empresa construtora da barragem.


Trabalho Necessário: Na atual conjuntura, os movimentos sociais enfrentam um recrudescimento das ações que visam criminalizar as suas lutas. Tendo em conta sua experiência como atingido, militante e membro do MAB, de que maneira os ataques políticos do atual governo e as perseguições às lideranças populares, podem enfraquecer a luta coletiva? O que é preciso fazer para resistir e avançar na luta?

Océlio Muniz: Nossa militância tem consciência do desafio na atual conjuntura, estamos na linha de fogo da luta em defesa da vida e dos direitos humanos. O atual governo tem um plano claro de aniquilar os movimentos em todos os sentidos. Nosso desafio é continuar na defesa da vida e dos povos construindo unidade da luta povo. Só a luta popular pode derrotar o fascismo.


Trabalho Necessário: Como tem se dado o diálogo com outros movimentos sociais? Quem são os maiores parceiros do MAB?


Océlio Muniz: Nessa conjuntura estamos construindo uma unidade. No campo construímos a Via Campesina uma organização dos camponeses. Na cidade construímos a Frente Brasil Popular em defesa dos nossos diretos e pela democracia. No debate para um novo modelo energético construímos com os setores da energia e da água com a chamada Plataforma Camponesa, que tem como tema central a defesa de projeto energético popular pra o Brasil.

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Pássaros descansam no Lago Cuniã

Fonte: Foto de William Kennedy do Amaral Souza (2019).


Trabalho Necessário: Como é o projeto energético popular para o Brasil que o MAB defende?

Océlio Muniz: O MAB passou a discutir isso nos últimos anos. Nós passamos a discutir o modelo energético brasileiro fazendo questionamentos: energia para o quê e para quem? Barragem para o quê e para quem? Uma das respostas que estamos em processo de construção coletiva, é o “Projeto Energético Popular para o Brasil”, que temos discutindo juntamente com o público urbano e do campo, com os bairros, com os sindicatos na área do setor elétrico, com os setores e agências de águas, com os setores urbanos, com Via Campesina e MST, movimentos ligados às mulheres camponesas e pequenos agricultores. A ideia é construir esse projeto popular como uma tarefa do MAB (por se um movimento ligado à questão energética), que o Brasil tenha um sistema elétrico voltado para o povo. Que a construção de hidroelétricas seja feita se o povo decidir. Que possamos apostar em outras fontes energias alternativas e que, ao mesmo tempo, questiona que nesse modelo que sociedade capitalista, qualquer projeto energético desenvolvido pelas empresas é para geração de lucro. Então queremos discutir esse lucro. Para quê e para quem esse lucro? As comunidades atingidas terão retorno? Se for necessário construir as hidrelétricas, e se for necessário: para quê para quem? O “Projeto Energético Popular” não é um projeto pronto, tem os seus eixos de energia popular, a riqueza gerada pelos empreendimentos energéticos (para onde vai?) e que as pessoas decidam e que tenham o direito de dizer não, seja pela construção da barragem ou outro tipo de projeto enérgico. O povo tem que ter o direito de dizer “não” aos empreendimentos.


Trabalho Necessário: Quais os significados da educação para organização e participação social na luta contra os crimes ambientais? Como a formação de base política se torna um importante elemento na luta e na mobilização? O que um atingido por barragem aprende quando se insere na luta?


Océlio Muniz: A educação sempre foi um elo de libertação da classe trabalhadora. Acreditamos que continua sendo um grande processo de luta contra as opressões. Quando essa educação torna-se educação política, rompemos com as secas das opressões e construímos lutas libertadoras. O atingido quando faz a luta contra as barragens, faz a luta contra o modelo capitalista de exploração da natureza.


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A manutenção dos espaços formativos das populações locais atingidas por barragens é parte das ações desenvolvidas pelo MAB, promovendo debates visando à unidade popular na construção de uma nova consciência ambiental crítica e na luta por direitos. No registro fotográfico, a antiga escola de Bento Rodrigues (Mariana – MG), primeiro distrito destruído pelos rejeitos de Fundão em nov./2015, com 19 mortos. Além do ensino formal, o espaço servia de encontros e atividades coletivas da comunidade.

Fonte: Mahalia Aquino (arquivo pessoal), em 06 de abril de 2019.


Trabalho Necessário: Existe um momento específico em que os(as) atingidos(as) começam a ter uma compreensão crítica de sua condição de subalternizado, de atingido ambiental e se mobilizam na luta? Em um sentido romântico, quando acontece o despertar da consciência?


Océlio Muniz: Há três momentos: o primeiro momento é quando as comunidades, antes das construções das hidrelétricas, elas se organizam ou auto se organizam, e fazem o processo de luta de não deixar construir. Esse primeiro momento é mais difícil e é mais conflituoso, porque as comunidades passam por um momento de cooptação - cooptados pelo governo, por autoridades locais (vereadores, prefeitos) e também pelas empresas. Nesse ponto é mais difícil despertar da consciência, mas tem muitos casos no Brasil em que as famílias se organizam antes e não deixam fazer em nenhum empreendimento. Em Rondônia foi mais difícil, porque a maioria das comunidades atingidas ribeirinhas no Rio Madeira, não tinham acesso a políticas públicas. O primeiro acesso a programas governamentais veio com a construção das hidrelétricas, sendo um embate grande esse processo da consciência antes da

construção da barragem. O segundo momento, no processo de construção da hidroelétrica (‘não conseguimos barrar, vai sair o empreendimento’), e as famílias passam a ter consciência de que a construção vai tirar a sua vida e o seu sustento. O despertar acontece pela perda, pelo sentimento da perda e esse processo começa a intensificar o processo de luta e organização no MAB, na necessidade de se organizar no coletivo e fazer luta para garantir um direito. O terceiro momento é o depois da construção da hidrelétrica, porque depois da sua construção nem tudo foi garantido, nem todo direito foi garantido. Depois do empreendimento pronto, tem muito despertar ainda - de continuar na luta, na organização do movimento e coletiva, os grupos de base -, em um processo de pressão constante. Porque o empreendimento, por exemplo, a usina de Santo Antônio Energia, elas terão uma concessão da hidrelétrica por 30 anos. Então fazemos um processo de organização em longo prazo, de que a luta vai ser permanente. Quem já despertou a consciência está nas fileiras de luta e organização do MAB, quem falta despertar em um desses três momentos vai acontecer. Mas o momento chave para essa construção crítica, mais firme e constante é no segundo momento, quando se dá a construção da hidrelétrica, onde os sentimentos da perda e da impotência de fazer a luta aparecem e ficam mais visíveis.

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Em agosto de 2019, ruralistas convocaram o “dia do fogo”. Ao fundo, o sol vermelho por conta de fumaça das queimadas. Em primeiro plano a Usina Hidrelétrica de Santo Antônio.

Fonte: Foto de William Kennedy do Amaral Souza (2019).


Trabalho Necessário: Grande parte dos atingidos por barragens vivem (ou viveram) em comunidades tradicionais, lugares onde os

saberes são construídos na vida cotidiana, na relação com a natureza e entre si. Qual a importância desses saberes tradicionais na luta do MAB por uma sociedade melhor?


Océlio Muniz: A vida em comunidade historicamente foi coletiva: os saberes de cuidar da terra, dos rios e das florestas, como uma produção pra alimentar a vida... Esses saberes contribuem na preservação da luta e construção coletiva das pautas. Uma das grandes experiências que levamos nas nossas frentes de lutas são os grupos de famílias, onde buscamos fazer as reflexões das nossas ações. Sempre construímos mutirões de trabalhos comunitários e solidários. Os seres solidários são marcantes no processo da luta das comunidades, um valor imensurável.

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Em 2014 uma enchente colossal trouxe uma série de consequências negativas para a cidade de Porto Velho e para as comunidades ribeirinhas. Bairros e comunidades ficaram debaixo d’água por conta das inundações. E muitos especialistas afirmaram que tais inundações são impactos causados pelas usinas. Na foto, o Distrito de São Carlos do Jamari totalmente inundado pela cheia do rio Madeira. Os moradores reconstruíram a comunidade. Fonte: http://rondoniadigital.com


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Distrito de São Carlos do Jamari reconstruído pelos moradores

Fonte: Fotos de William Kennedy do Amaral Souza (2019).


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V.18, nº 37 - 2020 (set-dez) ISSN: 1808-799 X


TESE DE DOUTORADO1



COSTA, Ana Maria Raiol da2. A experiência educativa da casa familiar rural de Gurupá. 2019. 141 p. Tese (Doutorado) - Universidade Federal do Pará, Instituto de Ciência da Educação. Programa de Pós Graduação em Educação, Belém - PA.3


Resumo Expandido


A Casa Familiar Rural (CFR) de Gurupá fica localizada na Amazônia paraense, município de Gurupá, Ilha de Marajó. Desenvolveu o ensino médio integrado à educação profissional do Campo, mediado pela Pedagogia da Alternância; uma experiência educativa de resistência em contraposição ao modelo hegemônico, que pensa a educação voltada para a realidade local. A experiência é entendida como categoria material, social e histórica, estabelecida por homens e mulheres em seu modo de produzir a vida material, nas relações de produção e forças produtivas que condicionam a vida social, produzindo o mundo real e sua própria história (THOMPSON, 1981). A hipótese emergiu diante do fato que a CFR realiza a Educação do Campo, um processo formativo mediado pela Pedagogia da Alternância, que alterna tempos e espaços, integrando saberes da família, da comunidade e da escola. A questão central foi descobrir, se a experiência educativa da CFR de Gurupá/PA com


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1 Resumo recebido em 01/04/2020. Aprovado pelos editores em 06/04/2020. Publicado em 25/09/2020. DOI: https://doi.org/10.22409/tyn.v18i37.41267.

2 Doutora em Educação pela Universidade Federal do Pará - Belém / Brasil. Professora na Educação Básica da Secretaria Estadual de Educação do Estado do Pará (SEDUC/PA) - Brasil. Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Trabalho e Educação (GEPTE/UFPA). E-mail: anaraioldavi@gmail.com ORCID: 0000-0003-2588-9507.

Lattes: http://lattes.cnpq.br/2574829928192680.

3 Tese orientada pelo professor Dr. Gilmar Pereira da Silva. Universidade Federal do Pará - Brasil.

a Pedagogia da Alternância pode ser configurada como uma experiência de educação integral no Campo. O objetivo geral foi analisar dialeticamente a experiência educativa da Casa Familiar Rural de Gurupá/PA. Os objetivos específicos buscaram: apreender experiências educativas de Trabalhadores do Campo no Brasil, na perspectiva da formação integral; verificar os princípios que norteiam a formação integral na Educação do Campo; desvelar o projeto educativo da CFR em suas potencialidades e limites.

Quanto aos aspectos teóricos e metodológicos, pauta-se no Método Histórico- Dialético, buscando o objeto em sua essência, para além da aparência, verificar a experiência educativa em sua realidade concreta (KOSIK, 1976), onde a educação da CFR é uma totalidade histórica que expressa os movimentos contraditórios de lutas entre as classes sociais. Essa estrutura estabelece uma forma dual de produzir a vida social, e sob ela se assentam as demais relações sociais, onde a educação é uma delas. Fundamenta-se em estudos clássicos marxianos e marxistas que se opõem à concepção pragmática de ciência e possibilitam a retomada da inclusão da categoria trabalho como princípio educativo, na definição de políticas educacionais para os trabalhadores. Também contou com referenciais da educação do Campo no Brasil. A pesquisa de campo foi realizada na CFR Gurupá, com levantamento documental e entrevista semiestruturada junto à equipe de dirigentes, monitores e estudantes/alternantes da CFR.

No plano de exposição, os resultados são revelados em três capítulos. O primeiro é constituído de introdução, apresenta aspectos gerais do problema, objetivos e caminho teórico-metodológico. Ainda como subseção é apresentada o locus da pesquisa em seus aspectos relevantes como o processo histórico de formação do município de Gurupá. Também aborda aspectos que impulsionaram a criação da Associação das Famílias da Casa Familiar Rural/ACFAG, entidade responsável em dirigir técnico-pedagógico e administrativamente a CFR que é uma entidade Pública, não estatal, filantrópica.

O segundo capítulo apresenta o resultado do mapeamento das teses e dissertações sobre experiências de educação do campo no Brasil. Identifica categorias conceituais definidoras do objeto de pesquisa, como “Educação do Campo” e “Formação humana Integral”, reconhecendo-as como instrumento de análise, ao fazer a interlocução com a contextualização histórico-social de formação da CFR de

Gurupá/PA. Composto em duas subseções. A primeira seção evidencia o significado histórico de “Educação do Campo”, em suas determinações gerais no movimento das contradições expressas nos processos sociais, econômico e político brasileiro. Recupera a trajetória histórica da Educação Rural à emergência da Educação do Campo e desvela no plano concreto, a presença de uma disputa de classes com interesses educativos antagônicos. De um lado, há a prevalência da “Educação Rural” (desde o Brasil colônia), entendida como a velha proposta educativa hegemônica liberal burguesa; do outro, emerge a “Educação do Campo” (mais recente) protagonizada pelos trabalhadores camponeses, na tentativa de estabelecer um novo paradigma na educação brasileira4. Em sua forma, é considerada uma conquista do movimento social do campo, instituída como política pública, por meio do marco regulatório, leis, decretos e um conjunto de programas e projetos educacionais. Enquanto conteúdo é norteado pela ideia do trabalho como princípio educativo e readquire a perspectiva da formação humana ampla, pautado na “Formação Omnilateral” e “Politécnica” de Marx, como também na “Escola Unitária” de Gramsci. As produções acadêmicas revelam que a formação integral, por meio do compartilhamento dos saberes e da interdisciplinaridade, já vem sendo adotada nas diferentes experiências de Educação do Campo, mediada pela Pedagogia da Alternância, nos Centros Familiares de Formação em Alternância -CEFFA’S no Brasil. O terceiro capítulo é constituído em duas subseções; na primeira subseção, a origem da Pedagogia da Alternância é contextualizada em seu movimento histórico, desde o surgimento da primeira “Maison” francesa a sua manifestação na Casa Familiar Rural de Gurupá/PA. Destaca-se que o processo formativo da CFR é pautado em quatro pilares básicos. Dois correspondem ao campo das Finalidades da educação sendo a Formação Integral visando o Desenvolvimento do Meio. Os outros dois correspondem ao método da Pedagogia da Alternância e Associação das Famílias da CFR. Esses pilares apresentaram potencialidades na integração dos saberes (da comunidade e da escola), favoreceu a formação interdisciplinar, com os conteúdos de maneira diversa, global. Na segunda subseção, foi elucidado que o pilar, finalidade educativa da CFR Gurupá, é a formação humana integral, visando o desenvolvimento do meio social. Sua materialidade é permeada de contradições,


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4A tese apresenta na forma de quadros como a Educação Rural e a Educação do Campo emergem no âmbito das políticas públicas educacionais, em seus marcos regulatórios e particularidades que se manifestam na educação brasileira.

evidenciando os limites e desafios na experiência educativa da CFR. Pondera-se que a concretude de proposta educativa com essa magnitude, não dependerá única e exclusivamente da Casa, está para além de sua ação e função educativa, dadas as contradições estruturais da sociedade de classes capitalista, na qual a CFR de Gurupá/PA está inserida. Logo, a concretude dessa finalidade fica em suspenso, pelo fato de entrarem em confronto com a própria lógica da estrutura desigual da sociedade de classes, que estabelece uma disputa de projetos societários, dificultando a materialidade da finalidade educacional na perspectiva da formação humana ampla e total, que só pode ser atingida mediante a recuperação total do homem, pois a “libertação” é um ato histórico, não um ato de pensamento (MARX, 2009, p. 35). Mas, é reconhecido que a ideia de formação humana integral atende aos interesses dos associados da CFR, e mesmo que haja múltiplas dificuldades, não pode ser descartada. Propostas educativas, que se coloquem em contraposição à lógica escolar capitalista, poderão emergir da educação protagonizada pela organização social, advinda da força coletiva dos trabalhadores (e não do capital) com poder soberano, de decisão da política social e econômica. Só desse modo, a classe trabalhadora terá potencial em direção ao sentido concreto da cidadania radical plena, para além do capital (MÉSZÁROS, 2009). As conclusões reafirmam a tese que a CFR desenvolveu o seu processo formativo mediado pela Pedagogia da Alternância, que no Brasil adquiriu o significado de metodologia educativa, a qual busca a articulação permanente do conhecimento escolar com a realidade prática e social do sujeito alternante, mediante uma prática que alterna o tempo de estudo, entre a Casa Familiar Rural e a comunidade, na perspectiva da formação humana ampla. A adoção da Pedagogia da Alternância por meio de seus instrumentos didáticos pedagógicos se revelou com essa potencialidade. Porém, há limites a superar, a exemplo os de ordem pedagógica, mas, sobretudo os financeiros, de modo a assegurar as condições materiais para formação integral dos alunos. A captação de recursos financeiros é primordial para a continuidade do funcionamento da Casa. Por fim, mesmo diante de um cenário político-econômico tão adverso, experiências educativas como a CFR Gurupá/PA precisam ser fortalecidas, pois percebe-se que a Casa apresentou potencialidade na integração do ensino médio e técnico, no que tange a organização, ao planejamento e execução. Mas somente isso não materializa sua finalidade educativa, pelo fato que a concretude da formação humana integral, não depende

única e exclusivamente da questão pedagógica, depende, sobretudo de mudanças na estrutura política de nossa sociedade. Esse é o grande desafio.


Referências


MARX, K. O 18 de Brumário de Luiz Bonaparte, tradução e notas de Nélio Schneider; prólogo de Herbert Marcuse. São Paulo: Boitempo, 2011. (Coleção Marx e Engels).


MÉSZAROS, I. A Crise Estrutural do Capital. São Paulo: Boitempo Editorial, 2009.


KOSIK, K. Dialética do concreto, tradução de Célia Neves e Alderico Toríbio. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.


THOMPSON, E. P. A Miséria da Teoria. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.


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V.18, nº 37, set-dez (2020) ISSN: 1808-799 X


DISSERTAÇÃO DE MESTRADO1



LISBOA, José Rivaldo Arnaud2. Atuação da Igreja Católica na prelazia de Cametá: o contexto da educação popular no período de 1980 a 1999. 2019. 206p. Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-Graduação em Educação e Cultura. Universidade Federal do Pará – Campus CUNTINS/Cametá, 2019.3


Resumo Expandido


A pesquisa, em termos gerais, busca compreender como se efetivou a educação de cunho popular oportunizada pela Prelazia de Cametá às suas bases4 .e Em termos específicos, analisar a formação e informação das bases pela Prelazia, se está direcionou essa formação para a luta política, bem como observar quais resultados dessa educação tornaram-se visíveis. Desta forma, o objeto de estudo partiu da hipótese que a formação propagada na Prelazia durante a administração de Dom José Elias (1980 a 1999) desenvolveu-se sob viés político, formando com isso


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1 Resumo recebido em 30/04/2020. Aprovado pelos editores em 29/05/2020. Publicado em 25/09/2020. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v18i37.46292.

2Mestre em Educação e Cultura pelo Programa de Pós-graduação em Educação e Cultura – PPGEDUC

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(Cametá – Pará – Brasil), da Universidade Federal do Pará (UFPA). Professor de História das redes estadual e municipal de ensino de Cametá – Pará – Brasil. E-mail:rivaldo_lisboa@hotmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2577-3053. Lattes: http://lattes.cnpq.br/3901758252699435.

3Dissertação de Mestrado defendida em 26 de abril de 2019, sob orientação da Prof.ª Drª Benedita Celeste M. Pinto, no Programa de Pós-Graduação em Educação e Cultura da Universidade Federal do Pará – Campus CUNTINS/Cametá, Pará - Brasil.

  1. Entenda-se “bases prelatícias”, no referir-se aos membros das comunidades cristãs, aos

    trabalhadores rurais, camponeses, pequenos agricultores, ribeirinhos, sindicalizados, não sindicalizados, filiados e não-filiados politicamente, ou seja, àqueles que estavam dentro do contexto para e por onde fluiu a educação popular a partir da Instituição Prelazia.

    lideranças nos municípios de Cametá, Igarapé-Miri e Oeiras do Pará, que assumiram o Legislativo, Secretarias de Governo, Conselhos Municipais, etc., Logo, encaminharam-se análises sobre a atuação da Igreja Católica de Cametá com a educação popular, partindo do pressuposto de que a Prelazia de Cametá, nas décadas de 1980 e 1990, viabilizou educação de cunho popular às suas bases. Ressalta-se que esse modelo de educação seria aos moldes da pedagogia freireana, fundamentada em sua obra Pedagogia do Oprimido.

    Em termos metodológicos, o processo de investigação constituiu-se por levantamento e análise literária e documental, considerando ainda entrevistas com sujeitos ligados aos movimentos sociais da região e com o processo formativo. Desse modo, os principais dispositivos teóricos compreenderam determinadas categorias, como as reflexões freireanas, que atravessaram temáticas como a Educação Popular; Sujeitos e Comunidades Eclesiais de Base (Comunidades Cristãs); Formação e Conscientização da Construção Cidadã, dentre outras. Com isso, foi possível embasar todo o contexto empírico das entrevistas realizadas.

    Ressalte-se que, dada a configuração em que estas formações ocorreram, isto é, ao período ditatorial brasileiro, precisou-se também de análise de bibliografia específica e sua conexão com a Amazônia, bem como com estudos já produzidos a respeito da Prelazia de Cametá, em que mereceram destaque os impressos do Jornal Comunidade Cristã, os quais possibilitaram a análise profunda das atividades desenvolvidas pela mesma, permitindo retroceder até a fundação deste jornal (1969), coincidentemente ano de criação das Comunidades Cristãs na Prelazia de Cametá.

    A partir da memória dos que vivenciaram esse período histórico da Prelazia e que muito contribuíram com o estudo analisado, constatou-se que estes sujeitos foram transformados em protagonistas e narradores de suas próprias histórias. “Na opinião de Paul Thompson, a história ganha nova dimensão quando se utiliza a experiência de vida das pessoas de todo tipo como matéria-prima” (PINTO, 2010, p. 34).

    Aos nove narradores escolhidos de forma criteriosa, levou-se em conta o papel que tiveram ou desempenharam no contexto do processo prelatício com a educação popular, sendo pois: membros do clero local, da equipe central e da equipe de formação, motorista da Prelazia e particular do bispo, agente da pastoral de educação, animadores de comunidades e membro da pastoral da juventude (PJ), o que tornou um grupo bem heterogêneo e com condições de proporcionar uma visão bem mais

    ampla da temática estudada e da realidade vivenciada pela Prelazia. Assim, teve-se uma pesquisa qualitativa porque seus sujeitos apresentaram experiências realizadas no campo da educação popular produzida pela Prelazia de Cametá.

    Domingues & Carrozza (2013) aferem que a técnica da “História Oral tem sido uma das grandes contribuições no estudo das experiências de homens e mulheres em diversos e diferentes setores da sociedade”, como forma de valorizar grupos sociais que, de certa forma, estiveram/estão invisíveis nos registros científicos e/ou escritos (DOMINGUES & CARROZZA, 2013, p. 147).

    A educação popular pensada e oportunizada pela Prelazia caracterizou-se pela “educação de base, alfabetização de adultos, organização popular, apoio e integração”5.

    Para consecução desse processo, a Prelazia contou com o trabalho de vários agentes ligados à Pastoral de Educação, mas também com a colaboração de monitores e animadores de comunidades. Além destes, foram firmadas parcerias com o Partido dos Trabalhadores e com os Sindicatos dos Trabalhadores, dos Pescadores e dos Professores, entidades que se tornaram parceiras da Prelazia, principalmente na realização dos encontros “Anilzinho”, nos Acampamentos dos atingidos pela “Barragem de Tucuruí” e outros, por onde também fluiu educação popular às bases prelatícias.

    Foram vários os caminhos e vieses utilizados pela Prelazia para oferecer educação de cunho popular às suas bases. De uma forma mais direta podemos ressaltar as turmas de alfabetização de adultos, as quais eram criadas e formadas dentro de uma pedagogia freireana; os Encontros de Formação (de Liderança, de Catequese, de Agricultura, de Saúde e outros) que usavam a temática “Fé e Política”, para formar os comunitários da base; os Círculos Bíblicos que reuniam semanalmente os comunitários e discutiam temas de relevância nacional, regional e/ou local, dentro de uma perspectiva do método Ver, Julgar e Agir; as edições do Jornalzinho Comunidade Cristã que buscavam informar e formar ao mesmo tempo dentro de uma perspectiva mais ampla.

    O texto final da pesquisa foi estruturado em quatro capítulos. No primeiro, fez- se uma discussão teórica acerca da educação popular e a ação de Paulo Freire, no


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  2. Relatório “Memória do Setor Educação da Prelazia de Cametá do Tocantins – 1º semestre de 1991”. Fonte: Acervo da Diocese de Cametá-Pará.

Brasil, América Latina e África, intitulado “A educação como práxis que liberta”; o segundo, compreendeu o “Histórico da Diocese de Cametá”; o terceiro e quarto capítulos apresentaram a estruturação da Prelazia e o agir e interagir com o processo de viabilização da educação popular, denominados, respectivamente, “O sentido da educação popular na Prelazia de Cametá” e “Ver, julgar, agir e resistir”.

Assim, na perspectiva de promover as gentes de sua base, a Igreja prelatícia de Cametá - dentro de uma linha libertadora com a educação popular aos moldes freireanos e sob inspiração da Teologia da Libertação a qual embeveceu os padres lazaristas da Congregação da Missão, bem como comunitários e agentes de pastoral

-, viabilizou educação de cunho popular, evidenciada pela pesquisa.

Resultado do agir e interagir dos vários atores sociais no contexto da Prelazia e suas ações com a educação popular, evidenciamos vários “achados” com esse processo, sendo eles: a Educação Popular como denúncia da ausência do Estado; a Educação Popular como militância; a Educação Popular com foco na formação e trabalho associados a fatores econômicos; a Educação Popular na perspectiva de atividade ético-política transformadora; a Educação Popular como integração. E ratificamos: a Prelazia viabilizou educação de cunho popular aos moldes freireanos às suas bases, promoveu um processo de alfabetização às mesmas, bem como proporcionou formação cidadã com viés político.

Quanto ao questionamento que permeou todo o estudo, se “houve contribuição ou não da Prelazia para uma formação cidadã das gentes da base?”, a resposta se encontra ao longo dos capítulos terceiro e quarto: O povo prelatício protagonizou sua história, recebeu formação e orientação para melhor viver e produzir, trilhou os caminhos da conscientização a partir dos cursos e informações recebidas e buscou e lutou por seus direitos (seja com os encontros Anilzinho, seja com os Acampamentos do Movimento dos atingidos pela Barragem de Tucuruí).

Assim, percebe-se que a educação de cunho popular recebida pelas bases prelatícias contribuiu, de forma significativa, para sua formação, informação e conscientização. “A iniciativa própria tornara-se o motor de vitalidade das comunidades, incluindo cada vez mais pessoas, valorizando os dons diversos e a boa vontade” (FRENCKEN, 2010, p. 472).

Ao final, conclui-se: A Igreja Católica de Cametá se voltou às suas bases com uma proposta de educação que foi bem acolhida. Em contrapartida, a resposta destas

se reverteu em mais qualidade de vida, de cultivar, de cuidar da saúde, de se organizar, de lutar por seus direitos, de se informar, de celebrar a vida. A Teologia da Libertação, além dos padres lazaristas, acabou por contagiar comunitários e demais pessoas da base, dando à Igreja Católica local um rosto cada vez mais progressista.


Referências


DOMÍNGUEZ, A. S.; CARROZZA, N.G.V. História Oral, Discurso e Memória. In:

Tempos Históricos, Vol. 17, 2º Semestre de 2013. p. 141 – 161.


FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. 64ª edição. Rio de Janeiro/São Paulo. Paz e Terra, 2017.


FRENCKEN, G. Em Missão: Padres da Congregação da Missão (Lazaristas), no Nordeste e Norte do Brasil. Fortaleza: Edições UFC, 2010.


GADOTTI, M. Caminhos e significados da educação popular em diferentes contextos.

Cadernos de EJA V 06. São Paulo: IPF, 1999.


PINTO, F. Capitolina. Edição 24, Ano 2, 2016. (Disponível em: file:///C:/Users/rival/Desktop/Hist%20Oral%20-%20Textos/O%20que%20%C3%A9% 20hist%C3%B3ria%20oral Capitolina.html. > Acesso em: 26/03/2019, às 20:35h.)


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V.18, nº 37, set-dez (2020) ISSN: 1808-799 X


Memória e Documentos


PROJETO RONDON: RELAÇÕES ENTRE UNIVERSIDADE E SOCIEDADE1


Francisco José da Silveira Lobo Neto2


  1. Breve contextualização histórica dos documentos (1966-2019)


    Há três fases no Projeto Rondon. A primeira da origem, em 1966, até 1985 com a extinção da Fundação Projeto Rondon. Assim o Projeto permaneceu em hibernação até 2003, quando a União Nacional dos Estudantes faz ao Presidente Lula o pedido de retomada das operações do Projeto. A formação de um grupo de trabalho em 2004 e o Decreto de 14 de janeiro de 2005 que cria o Comitê de Orientação e Supervisão do Projeto Rondon, representa bem uma segunda fase.

    A grande questão é se o Decreto n. 9.848, de 25 de junho de 2019, cria uma nova fase, a terceira, ou não. Creio que ainda não temos elementos concretos para responder a esta questão, porque as operações deflagradas em 2019, foram orientadas e planejadas em 2018.

    O I Seminário sobre Educação e Segurança Nacional, aberto na Escola de Estado-Maior do Exército - ECEME no Rio de Janeiro, em 17 de outubro de 1966, foi o berço da ideia que, posteriormente, se concretizou como o Projeto Rondon. (cfr. Correio da Manhã, edição de 22 de outubro de 1966, p. 2).


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    1Texto recebido em 25/07/2020. Aprovado pelos editores em 16/08/2020. Publicado em 25/09/2020. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v18i37.44596

    2 Doutor em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense - UFF, Niterói

    (RJ), Professor Aposentado de História da Educação da UFF, Professor-Pesquisador do Laboratório de Trabalho e Educação Profissional em Saúde (LATEPS) da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV) da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) – Rio de Janeiro, Brasil. E- mail::sloboneto@gmail.com ORCID: 0000-0002-9292-3069.

    Lattes: http://lattes.cnpq.br/2774154084956899

    Neste Seminário é que o Professor Wilson Choeri, diretor do Departamento Cultural e Vice-Reitor da Universidade do Estado da Guanabara - UEG (hoje Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ), apresenta a ideia do que seria futuramente o Projeto Rondon, inspirado na experiência da Universidade Volante do Paraná “de onde retirou conhecimentos operacionais fundamentais” (GURGEL ROCHA, 1986, p. 116).

    A Comissão Diretora foi formada pelo Diretor do Departamento Nacional de Educação; Reitores das Universidades; representantes do Estado Maior das Forças Armadas - EMFA; do Conselho de Segurança Nacional - CSN; do Ministério das Relações Exteriores - MRE; e o comandante da ECEME, Coronel Mattos Júnior, que a presidia. (cfr. CORREIO DA MANHÃ, idem).

    Formaram-se cinco Comissões Temáticas:

    1. Principais setores e formas da contribuição da Universidade à Segurança Nacional;

    2. Intercâmbio entre as faculdades e as academias militares;

    3. Intercâmbio de órgãos civis e militares de ensino secundário;

    4. Visualização da contribuição das Forças Armadas na Educação para a cidadania;

    5. Exequibilidade da criação de um órgão de coleta de dados e informações de natureza cultural.

      Estas Comissões entregaram seus relatórios conclusivos nas plenárias de 7 e 11 de novembro seguintes. Participaram do Seminário, representantes de entidades da Presidência da República; do Ministério da Educação e Cultura (MEC); da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ; da Pontifícia Universidade Católica - PUC-Rio; da Universidade do Estado da Guanabara - UEG; do Colégio de aplicação da Faculdade Nacional de Filosofia - FNFi; de várias Associações; dos Ministérios da Aeronáutica, da Marinha e do Exército. Este Seminário preocupava-se com uma aproximação entre civis e militares, depois do fato que partes deles se uniram para perpetrar a ruptura da Constituição de 1946 em um golpe, auto definido como ‘Revolução’. Ele - como o próprio nome “Educação e Segurança Nacional” e o tema da primeira Comissão indicam - preocupa-se com a doutrina fundamental da Escola Superior de Guerra, isto é a Doutrina da Segurança Nacional. Todas as áreas

      abrangidas pelas Comissões submetem-se ao sistema conceitual e estratégico desta doutrina, sempre relacionada ao desenvolvimento nacional.

      Quanto ao pensamento político dos militares brasileiros, segundo afirma Rodrigo Lentz (2019, p. 44), ele foi constituído com fundamentos das doutrinas positivistas e nacionalistas “com postulados segurança e desenvolvimento aliados ao anticomunismo”. Desenvolveu-se na doutrina de segurança nacional do Estado Novo. E depois foi adaptada, no pós-guerra (Guerra Fria), pela ESG (criada em 1949). O mesmo Lentz (idem, p. 68-69) sintetiza “a ideologia nacional dos militares brasileiros” nos seguintes termos:


      • Crença 1 - atributos brasileiros - Individualismo, Adaptabilidade, Improvisação, Pacifismo, Cordialidade, Emotividade; •Crença 2


    E considera “que ter clareza da herança autoritária no pensamento político dos militares brasileiros é uma chave de interpretação fundamental do presente” (ibidem, p.69).

    Nada mais previsto do que se originar neste Seminário, no contexto das Comissões, uma proposta síntese de enviar universitários às comunidades mais carentes, para exercitar nelas as profissões em que se estavam formando. Neste sentido, as Universidades e Faculdades estariam colaborando com a segurança nacional pela integração dos jovens às realidades longínquas; havia uma

    aproximação entre civis e militares, além de fortalecer o intercâmbio das instituições militares e civis.

    Oito meses depois do encerramento do Seminário, a denominada “Operação Zero” se deflagrou. Trinta estudantes e dois professores de universidades do Estado da Guanabara (o professor da UEG, Omar Fontoura, coordenava o grupo), partiram para Rondônia, à época território federal. Lá ficaram, por 28 dias, conhecendo “de perto a realidade amazônica”, através de levantamentos e pesquisa, bem como promover cuidados de saúde e auxiliar o desenvolvimento de projetos para a população local.


    Imagem 1- 1967 - “Operação Zero”


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    Fonte: Ministério da Defesa/Projeto Rondon/Histórico


    Os próprios estudantes, ao regressarem de Rondônia, “propuseram a criação de um movimento universitário que desse prosseguimento ao trabalho iniciado no território visitado” (cfr. PROJETO RONDON, s/d). E os voluntários da chamada “Operação Zero” denominaram seu movimento de Projeto Rondon, em homenagem ao Marechal Cândido Mariano da Silva Rondon3, que construiu “mais de 4,5 mil



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    3Cândido Mariano da Silva Rondon (1865-1958) entrou na Escola Militar do Rio de Janeiro aos 16 anos, tendo se destacado como militar do Exército Brasileiro, não só pela integração por linhas telegráficas, mas como desbravador do sertão e pacificador dos índios. Em 1910 foi o primeiro Diretor do Serviço

    quilômetros de linhas telegráficas” na Amazônia, unindo na comunicação a Região Norte a Centro-Oeste, “ajudando a ocupar a região do atual Estado de Rondônia ... fez contatos com várias tribos indígenas, tratando-as pacificamente” (GONÇALVES, 2017, p.7-8).

    Segundo o Correio da Manhã de 10 de janeiro de 1968, os vinte um sextanista da Faculdade de Medicina da UEG (pertencentes ao Grupo Marinhan-1) já estavam percorrendo na Região Amazônica “as populações ribeirinhas” nas corvetas Mearim e Solimões, providenciando “atendimento médico”, assim como “cursos rápidos de higiene, primeiros socorros e educação sanitária”. Cinquenta e oito estudantes do Sul estavam sendo esperados, no dia 15 de janeiro, para o Estado do Amazonas e ainda iriam os integrantes do Grupo Roraima. O “movimento universitário”, com apoio do Ministério do Interior, Ministério da Educação e Cultura e Forças Armadas, cinco meses antes de formalizado o Decreto presidencial 62.927, de 28 de junho de 1968, foi a campo interagir com as populações carentes da Amazônia.

    Este Decreto cria, “em caráter permanente, um Grupo de Trabalho (GT), denominado ‘Projeto Rondon’ diretamente subordinado ao Ministério do Interior” com o objetivo de promover estágios para estudantes universitários conduzindo “a juventude a participar do processo de integração nacional” (BRASIL, 1968).

    Esse GT converte-se em Fundação Projeto Rondon pela Lei n. 6.310, de 15 de dezembro de 19754. Continua vinculada ao Ministério do Interior e terá a finalidade de “motivar a participação voluntária da juventude estudantil no processo do Desenvolvimento, da Integração Nacional e da Valorização do Homem, em cooperação com o Ministério da Educação e Cultura”. (BRASIL, 1975, Art. 1º, § 1º).

    Em janeiro de 1989, através da Medida Provisória n. 28/1989, que o Congresso Nacional converte na Lei n. 7.732, de 14 de fevereiro de 1989 (BRASIL,1989), José Sarney resolve extinguir autarquias federais e fundações públicas, entre elas, a Fundação Projeto Rondon. A Associação Nacional dos Rondonistas criada como Organização Não Governamental em 1990, depois reconhecida como Organização


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    de Proteção aos Índios. Ao pacificar tribos antropófagas, ordenava aos seus subordinados que seguissem o lema “Morrer, se preciso for, matar nunca”. Em 1952, viu aprovado seu projeto do “Parque Nacional do Xingu”. A Câmara dos Deputados, em 1955, concedeu-lhe as insígnias de Marechal. Em 1956, o território de Guaporé, recebeu em sua homenagem o nome de Rondônia. Faleceu em 1958. 4Neste mesmo ano, a Universidade Federal Fluminense - UFF, que vinha desenvolvendo ações no Estado do Pará desde 1972, transfere definitivamente seu Campus para Oriximiná.

    (cfr. http://www.uff.br/?q=cidade/oriximina-pa Acesso em julho de 2020).

    da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP) pelo Ministério da Justiça, manteve “vivo o idealismo de seus pioneiros”. No rastro da Associação Nacional, criaram-se similares, independentes, nas Unidades Federadas (cfr. GONÇALVES, 2017, p. 17).

    Em novembro de 2003, a União Nacional dos Estudantes encaminhou ao Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, a retomada oficial do Projeto Rondon. Criou-se um grupo de trabalho interministerial, em março de 2004, cujos membros eram representantes do Ministério da Defesa (que devia coordenar o GT e a segunda fase do Projeto Rondon), do Ministério da Educação, do Ministério da Integração Nacional, do Ministério da Saúde, do Ministério do Desenvolvimento Agrário, do Ministério do Desenvolvimento Social, do Ministério do Esporte, do Ministério do Meio Ambiente e da Secretaria Geral da Presidência da República.

    Em 14 de janeiro de 2005, um Decreto Presidencial “cria o Comitê de Orientação e Supervisão do Projeto Rondon”, sendo seu Presidente o representante do Ministério da Defesa5, a quem cabe “prover o apoio administrativo e os meios necessários à execução dos trabalhos do Comitê”. O Decreto tem um Anexo em que são elencadas as “Diretrizes Básicas para a Execução das Ações do Projeto Rondon” (cfr. BRASIL, 2005).

    Na cidade de Tabatinga (AM), o Presidente Lula, no dia 19 de janeiro de 2005, lançou a primeira operação da nova fase do Projeto Rondon afirmando ser o momento de "unir brasileiros de todas as origens e de todas as regiões" na retomada de uma “política de integração e desenvolvimento regional” (UOL NOTÍCIAS, 2005).

    O I Congresso Nacional do Projeto Rondon, realizou-se somente em 2013, em Ribeirão Preto (SP). Paralelamente ao I Congresso, reuniu-se o I Fórum Nacional dos Estudantes Rondonistas e VII Reunião dos Professores. Fruto do Congresso foi a Carta de São Paulo, reivindicando que o Projeto Rondon, seja um Programa de Estado e solicitando aos políticos uma lei que o torne permanente (cfr. AZEVEDO et al., 2014). Talvez tenham esquecido da Lei da criação da Fundação Projeto Rondon, que foi revogada pela Medida Provisória n.28/1985, extinguindo-a, e o Projeto também.

    O Decreto de 14 de janeiro de 2005 foi revogado pelo Presidente Jair Messias Bolsonaro, em nova reformulação do Comitê de Orientação e Supervisão do Projeto Rondon, dada pelo Decreto n. 9.848, de 25 de junho de 2019.


    image

    5O Vice-Presidente, José Alencar Gomes da Silva, acumulava as funções de Ministro da Defesa.

    Na atual configuração, o Comitê passa a ser definido como “órgão de assessoramento” - o que diminui concretamente sua força de decisão - e as diretrizes passam para o Art. 3º do corpo do Decreto, excetuando a de “assegurar a participação da população na formulação e no controle das ações”. O que significa esta eliminação? Certamente, a não explicitação da população “na formulação e controle das ações” pode significar a exclusão da população local, em dizer o que espera e em exercer um controle sobre as ações. Assim, de nove diretrizes no Anexo do Decreto anterior, passam a ser oito diretrizes.


  2. Os Documentos: Decretos, Leis sobre a trajetória do Projeto Rondon


1- Decreto n. 62.927 de 28 de junho de 1968.

Institui, em caráter permanente, o Grupo de Trabalho "Projeto Rondon", e dá outras providências.


O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, no uso das atribuições que lhe confere o Art. 83, item II da Constituição,


DECRETA:


Art. 1º. Fica instituído em caráter permanente, um Grupo de Trabalho, denominado "Projeto Rondon" com sede na cidade do Rio de Janeiro, diretamente subordinado ao Ministério do Interior, com a finalidade de promover estágios de serviço para estudantes universitários, objetivando conduzir a juventude a participar do processo de integração nacional.


Parágrafo único. O Grupo de Trabalho poderá coordenar suas atividades com quaisquer outras da mesma natureza que se realizem no país.


Art. 2º. O Grupo de Trabalho, ao qual caberá a organização de planos e projetos específicos, será constituído por um representante dos seguintes órgãos:


a)

Ministério do Interior;


b)

Ministério da Educação e Cultura;


c)

Ministério da Marinha;


d)

Ministério do Exército;


e)

Ministério da Aeronáutica;


f)

Ministério dos Transportes;


g)

Ministério da Agricultura;


h)

Ministério do Planejamento e Coordenação Geral;


i)

Ministério da Saúde;


j)

Movimento Universitário de Desenvolvimento Econômico e Social - MUDES;


k)

Conselho de Reitores, representando as entidades de ensino superior.


Parágrafo único. Integrará, ainda, o Grupo de Trabalho um representante da Universidade do Estado da Guanabara - UEG, em face de sua participação pioneira no Projeto.


Art. 3º. Os trabalhos do Grupo ora criado serão desenvolvidos com apoio básico em um Núcleo Central, constituído pelos representantes do Ministério do Interior, do Ministério da Educação e Cultura, do Ministério da Marinha, do Ministério do Exército, do Ministério da Aeronáutica e do Conselho de Reitores.


Parágrafo único. Ao Núcleo Central compete orientar, coordenar e prover o apoio às atividades do "Projeto Rondon" e deliberar sobre conclusões, sugestões ou providências a serem adotadas.


Art. 4º. Os estágios de serviço a que se refere o artigo 1º, serão realizados durante o período de férias escolares, obedecendo aos objetivos e ao plano geral de trabalho constantes de instruções que serão baixadas pelo Núcleo Central.


Art. 5º. O Grupo de Trabalho e seu Núcleo Central serão presididos por um Coordenador Geral, de livre escolha do Ministro de Estado do Interior.


Parágrafo único. O Núcleo Central do Grupo de Trabalho reunir-se-á por convocação do Coordenador Geral, na sede do Ministério do Interior, ou em local diverso por ele indicado.


Art. 6º. O Coordenador Geral responsável direto perante o Ministério do Interior, promoverá, sempre que julgar necessário aos objetivos do "Projeto Rondon" e ocorrer motivação no meio universitário, a criação de Grupos ou Subgrupos Regionais, com atuação em um ou mais Estados ou Territórios.


Parágrafo único. Caberá ao Coordenador Geral a designação dos Coordenadores regionais.


Art. 7º. Os órgãos da Administração Federal, direta ou indireta existentes nas diferentes áreas, darão o necessário apoio aos grupos regionais.


Art. 8º. Continuam em vigor as atuais normas para funcionamento do Grupo de

Trabalho "Projeto Rondon" devendo, dentro de 90 (noventa) dias, ser elaborado seu Regimento Interno.


Art. 9º. As atividades do "Projeto Rondon" serão custeados com recursos proporcionados pelo Ministério do Interior ou por ele obtidos, e constituídos, de:


a)

créditos que lhe forem atribuídos;


b)

donativos, subvenções, auxílios contribuições e legados de particulares;


c)

contribuição proveniente de acordos e convênios com entidades públicas e

privadas;



d)

dotações que foram consignadas nos orçamentos da União, Estados, Municípios, Entidades Paraestatais, Autarquias e Sociedades de Economia

Mista;


e)

Rendas eventuais.


§ 1º Os recursos indicados neste artigo serão depositados em conta especial no Banco do Brasil S.A. e movimentados pelo Coordenador Geral do Grupo de Trabalho.


§ 2º A aplicação desses recursos será feita rigorosamente de acordo com o planejamento apresentado pelo Grupo de Trabalho e aprovado pelo Ministro de Estado do Interior, no qual serão discriminados os trabalhos a serem executados, a modalidade de financiamento e os respectivos orçamentos.


Art. 10. Aos participantes do "Projeto Rondon" serão conferidos certificados correspondentes aos serviços prestados; às instituições de Direito Privado e pessoas jurídicas que se destacarem no apoio às atividades do "Projeto Rondon" serão conferidos diplomas ou medalhas.


Art. 11. Poderá ser autorizada a dispensa de ponto, pelo prazo máximo de 30 dias por ano, para os servidores civis dos Ministérios, Autarquias e Sociedades de Economia Mista, aos participantes, universitários, técnicos e professores que integrarem as diferentes operações do "Projeto Rondon".


Art. 12. O presente decreto entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.


Brasília, 28 de junho de 1968; 147º da Independência e 80º da República.


A. COSTA E SILVA José Moreira Maia Aurélio de Lyra Tavares Mário David Andreazza Ivo Arzua Pereira

Tarso Dutra

Carlos Alberto Huet de Oliveira Sampaio

Leonel Miranda

João Paulo dos Reis Velloso Afonso A. Lima


Este texto não substitui o original publicado no Diário Oficial da União - Seção 1 de 01/07/1968.


  1. - Lei n. 6.310, de 15 de dezembro de 1975.


    Autoriza a instituição da Fundação Projeto Rondon, e dá outras providências.


    O PRESIDENTE DA REPÚBLICA:


    Faço saber que o CONGRESSO NACIONAL decreta e eu sanciono a seguinte Lei:


    Art. 1º Fica o Poder Executivo autorizado a instituir, com sede e foro na Capital Federal, uma Fundação, com patrimônio próprio e personalidade jurídica de direito privado, nos termos da lei civil, denominada Fundação Projeto Rondon.


    § 1º. A Fundação, vinculada ao Ministério do Interior, terá como finalidade motivar a participação voluntária da juventude estudantil no processo do Desenvolvimento, da Integração Nacional e da Valorização do Homem, em cooperação com o Ministério da Educação e Cultura.


    § 2º. Para o atendimento da finalidade estabelecida no parágrafo anterior, a Fundação terá como objetivo:


    1. - no campo do desenvolvimento e da integração nacional:

      a)

      colaborar com o Ministério da Educação e Cultura na organização, implantação

      e coordenação de estágios de estudantes, no interior do país;


      b)

      colaborar na execução da política de integração nacional, em consonância com

      os planos de desenvolvimento;


      c)

      promover ou participar de programas de desenvolvimento comunitário com as

      populações interioranas.


    2. - no campo do mercado de trabalho e mão-de-obra:


      a)

      promover, com os estágios de universitários, o conhecimento das condições

      do interior do país, abrindo perspectivas para a interiorização e fixação de técnicos de nível superior nas áreas em que atuarem;



      b)

      desenvolver, junto às populações carentes, o treinamento especializado de

      nível médio, incentivando o mercado de trabalho e o aprimoramento da mão- de-obra qualificada;


      c)

      promover, juntamente com os órgãos especializados, a abertura de novos

      mercados de trabalho;


      d)

      promover a interiorização de técnicos em áreas menos desenvolvidas do

      Território Nacional.


    3. - no campo da pesquisa e preparação de recursos humanos:

      a)

      contribuir para a promoção, coordenação e realização de pesquisas voltadas

      para o conhecimento da realidade nacional;


      b)

      contribuir para a preparação dos recursos humanos necessários ao

      desenvolvimento.


      § 3º. Na execução dos seus programas de desenvolvimento, a Fundação, para as atividades de extensão universitária, atuará em coordenação com o Ministério da Educação e Cultura, principalmente através dos "Campi" Avançados e de outros programas similares, compatibilizando seu funcionamento com as diretrizes básicas estabelecidas por aquele Ministério.


      Art. 2º No ato de constituição da Fundação Projeto Rondon, após a aprovação do respectivo Estatuto por decreto do Poder Executivo, o Governo Federal será representado pelo Ministro de Estado do Interior.


      Art. 3º A Fundação Projeto Rondon gozará de autonomia administrativa, financeira, didática e disciplinar e adquirirá personalidade jurídica a partir da inscrição, no Registro Civil das Pessoas Jurídicas, do seu ato constitutivo, com o qual será apresentado o respectivo Estatuto e o Decreto que o houver aprovado.

      Art.4º Constituirão o patrimônio da Fundação: I- dotações consignadas no Orçamento Geral da União;

      1. bens doados ou adquiridos pelo Projeto Rondon;

      2. doações, subvenções, auxílios, contribuições ou legados de pessoas físicas ou jurídicas, de direito público ou de direito privado; IV- contribuições provenientes de acordos com entidades públicas ou privadas, nacionais, estrangeiras e internacionais; V- rendas ou emolumentos provenientes de serviços prestados a pessoas jurídicas de direito público ou privado; VI- bens oriundos de entidade que, nos termos desta Lei, venham a ser incorporados à Fundação;

      VII - bens da União atualmente em poder do Projeto Rondon;

      VIII- outras rendas eventuais.


      Parágrafo único. O patrimônio, a renda e os serviços da Fundação gozarão da imunidade prevista na alínea " c ", item III, do artigo 19, da Constituição.


      Art. 5º O orçamento da União consignará, em exercício, recursos suficientes ao atendimento das despesas da Fundação.

      Art. 6º As despesas necessárias à implantação da Fundação correrão à conta dos recursos orçamentários e extraordinários destinados ao Projeto Rondon.


      Art. 7º Serão órgãos da Fundação, com a constituição e atribuições fixadas no respectivo Estatuto:


      a)

      Conselho Diretor;


      b)

      Conselho Curador;


      c)

      Presidência.


      Art. 8º Serão extensivos à Fundação os privilégios da Fazenda Pública quanto à impenhorabilidade de bens, rendas e serviços, prazos processuais, ações especiais e executivas juros e custas.


      Art. 9º A Tabela Provisória de Lotação de Pessoal do atual Projeto Rondon será considerada extinta, passando seus servidores, a critério da Fundação, a integrar o Quadro de Pessoal da entidade.


      § 1º. O regime de pessoal da Fundação será o da legislação trabalhista.


      § 2º. O Quadro e a remuneração de pessoal da Fundação, depois de aprovado por seu Presidente, serão submetidos a homologação do Ministério de Estado do Interior, devendo observar as condições do mercado de trabalho e as diretrizes da política de pessoal do Governo Federal.


      Art. 10. A Fundação promoverá, quando conveniente, a incorporação de entidades privadas congêneres, na forma da legislação em vigor, e, quando for o caso, a absorção de atividades cometidas a órgãos da Administração Federal Direta ou Indireta, desde que compatíveis com a finalidade estabelecida no § 1º, do artigo 1º, da presente Lei.


      Parágrafo único. A absorção de atividades atribuídas a órgãos da Administração Federal Direta ou Indireta far-se-á mediante decreto do Poder Executivo.


      Art. 11. No prazo de 90 (noventa) dias, a contar da publicação desta Lei, o Ministro de Estado do Interior submeterá à aprovação do Presidente da República o projeto do Estatuto da Fundação Projeto Rondon.


      Art. 12. Instituída a Fundação, será considerado extinto o Projeto Rondon.


      § 1º. As dotações orçamentárias consignadas à Coordenação do Projeto Rondon no Orçamento da União serão automaticamente transferidas a Fundação, na data de sua instituição.


      § 2º. Cumprido o disposto no caput deste artigo, ficará extinto o Fundo do Projeto Rondon (FUNRONDON) de que trata o artigo 13 do Decreto nº 67.505, de 6 de novembro de 1970, cujos recursos serão automaticamente transferidos à Fundação.

      Art. 13. Esta Lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.

      Brasília, 15 de dezembro de 1975; 154º da Independência e 87º da República. ERNESTO GEISEL

      Ney Braga

      João Paulo dos Reis Velloso Maurício Rangel Reis


      Este texto não substitui o original publicado no Diário Oficial da União - Seção 1 de 16/12/1975


  2. - Decreto de 14 de janeiro de 2005


    Cria o Comitê de Orientação e Supervisão do Projeto Rondon e dá outras providências


    O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, no uso da atribuição que lhe confere o art. 84, inciso VI, alínea "a", da Constituição,


    DECRETA:


    Art. 1º Fica criado o Comitê de Orientação e Supervisão do Projeto Rondon, que terá por objetivos:


    1. - executar as ações do Projeto Rondon de acordo com as diretrizes básicas constantes do Anexo a este Decreto;


    2. - orientar a política de atuação do Projeto Rondon; e


    3. - propor diretrizes para as atividades a serem desenvolvidas.


    Art. 2º O Comitê será integrado por um representante, titular e suplente, de cada órgão a seguir indicado:


    I - Ministério da Defesa, que o presidirá; II - Ministério da Educação;

    III - Ministério do Desenvolvimento Social e Combate àFome; IV - Ministério da Saúde;

    1. - Ministério do Meio Ambiente;

    2. - Ministério da Integração Nacional; VII - Ministério do Esporte;

    1. - Ministério do Desenvolvimento Agrário; e

    2. - Secretaria-Geral da Presidência da República.

    § 1º Os membros do Comitê serão indicados pelo titular do órgão representado e designados pelo Ministro de Estado da Defesa.


    § 2º Os membros do Comitê terão mandato de dois anos, podendo ser reconduzidos.


    § 3º O Comitê deliberará mediante resoluções, por maioria simples dos presentes, tendo seu Presidente o voto de qualidade no caso de empate.


    Art. 3º O Comitê contará com as seguintes Comissões:


    1. - de Coordenação-Geral, com natureza técnica e articuladora, voltada para a implementação das diretrizes emanadas do Comitê e para a direção das atividades desenvolvidas no âmbito do Projeto Rondon;


    2. - de Coordenação Operacional e Administrativa, com natureza executiva, voltada para a confecção do plano operacional anual e de sua execução; e


    3. - de Coordenação Regional, com natureza executiva, ativada conforme as necessidades e a dimensão dos trabalhos nas regiões de atuação.


    Parágrafo único. Poderão ser convidados a participar das Comissões personalidades e representantes de outros órgãos e de entidades públicas e privadas.


    Art. 4º São atribuições do Presidente do Comitê:


    1. - convocar e presidir as reuniões do colegiado;


    2. - solicitar a elaboração de estudos, informações e posicionamento sobre temas de relevante interesse público na área de sua atuação;


    3. - firmar atas das reuniões e homologar as resoluções; e IV - constituir e organizar as Comissões.

    Art. 5º O regimento interno do Comitê será submetido pelo seu Presidente à aprovação do colegiado e disporá sobre a organização, a forma de apreciação e a deliberação das matérias, bem como sobre o funcionamento das Comissões.


    Art. 6º Caberá ao Ministério da Defesa prover o apoio administrativo e os meios necessários à execução dos trabalhos do Comitê e das Comissões.


    Art. 7º As atividades dos integrantes dos membros do Comitê e das Comissões são consideradas serviço público relevante, não remuneradas.


    Art. 8º Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação.

    Brasília, 14 de janeiro de 2005; 184º da Independência e 117º da República. LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA

    José Alencar Gomes da Silva


    Este texto não substitui o publicado no D.O.U. de 17.1.2005


    A N E X O


    DIRETRIZES BÁSICAS PARA A EXECUÇÃO DAS AÇÕES DO PROJETO RONDON


    Viabilizar a participação do estudante universitário nos processos de desenvolvimento e de fortalecimento da cidadania.


    Contribuir para o desenvolvimento sustentável nas comunidades carentes, usando as habilidades universitárias.


    Estimular a busca de soluções para os problemas sociais da população, formulando políticas públicas locais, participativas e emancipadoras.


    Contribuir na formação acadêmica do estudante, proporcionando-lhe o conhecimento da realidade brasileira, o incentivo à sua responsabilidade social e o patriotismo.


    Manter articulações com as ações de órgãos e entidades governamentais e não- governamentais, em seus diferentes níveis, evitando a pulverização de recursos financeiros e a dispersão de esforços em ações paralelas ou conflitantes.

    Assegurar a participação da população na formulação e no controle das ações. Priorizar áreas que apresentem maiores índices de pobreza e exclusão social,

    bem como áreas isoladas do território nacional, que necessitem de maior aporte de

    bens e serviços.


    Democratizar o acesso às informações sobre benefícios, serviços, programas e projetos, bem como recursos oferecidos pelo poder público e iniciativa privada e seus critérios de concessão.


    Buscar garantir a continuidade das ações desenvolvidas.


  3. - Decreto n. 9.848, de 25 de junho de 2019.


Dispõe sobre o Comitê de Orientação e Supervisão do Projeto Rondon.


O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, no uso da atribuição que lhe confere o art.

84, caput, inciso VI, alínea “a”, da Constituição,

DECRETA:


Art. 1º Este Decreto dispõe sobre o Comitê de Orientação e Supervisão do Projeto Rondon.


Art. 2º O Comitê de Orientação e Supervisão é órgão de assessoramento destinado a:


  1. - propor diretrizes para as ações do Projeto Rondon;


  2. - detalhar os objetivos e as orientações relativos ao Projeto Rondon; e


  3. - executar as ações do Projeto Rondon de acordo com as diretrizes estabelecidas no art. 3º.


Art. 3º A execução das ações do Projeto Rondon observará as seguintes diretrizes:


  1. - viabilizar a participação do estudante universitário nos processos de desenvolvimento e de fortalecimento da cidadania;


  2. - contribuir para o desenvolvimento sustentável nas comunidades carentes, com o uso das habilidades universitárias;


  3. - estimular a busca de soluções para os problemas sociais da população, por meio da formulação e disseminação de políticas públicas locais, participativas e emancipadoras;


  4. - contribuir para a formação acadêmica do estudante, a fim de lhe proporcionar o conhecimento da realidade brasileira e incentivar a responsabilidade social e o patriotismo;


  5. - manter articulações com as ações de órgãos e entidades governamentais e não-governamentais, em seus diferentes níveis;


  6. - priorizar áreas que apresentem maiores índices de pobreza e exclusão social e áreas menos populosas e isoladas do território nacional, que necessitem de maior oferta de bens e serviços;


  7. - democratizar o acesso às informações sobre benefícios, serviços, programas e projetos, e os recursos oferecidos pelo Poder Público e pela iniciativa privada e seus critérios de concessão; e


  8. - promover a continuidade das ações desenvolvidas.


Art. 4º O Comitê de Orientação e Supervisão do Projeto Rondon é composto por representantes dos seguintes órgãos:


  1. - Ministério da Defesa, que o presidirá;

  2. - Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento;

  3. - Ministério da Educação; IV - Ministério da Cidadania; V - Ministério da Saúde;

  1. - Ministério do Meio Ambiente;

  2. - Ministério do Desenvolvimento Regional; e

  3. - Secretaria de Governo da Presidência da República.


§ 1º Cada membro do colegiado terá um suplente, que o substituirá em suas ausências e impedimentos.


§ 2º Os membros do Comitê de Orientação e Supervisão do Projeto Rondon e respectivos suplentes serão indicados pelos titulares dos órgãos que representam e designados pelo Ministro de Estado da Defesa.


§ 3º Poderão ser convidados a participar dos trabalhos do comitê, sem direito a voto, personalidades e representantes de outros órgãos e de entidades públicas e privadas.


Art. 5º O Comitê de Orientação e Supervisão do Projeto Rondon se reunirá em caráter ordinário duas vezes por semestre e em caráter extraordinário sempre que convocado por seu Presidente.


§ 1º O quórum de reunião do Comitê é de maioria absoluta e o quórum de aprovação é de maioria simples.


§ 2º Além do voto ordinário, o Presidente do Comitê de Orientação e Supervisão do Projeto Rondon terá o voto de qualidade em caso de empate.


§ 3º Os membros do Comitê de Orientação e Supervisão que se encontrarem no Distrito Federal se reunirão presencialmente e os membros que se encontrem em outros entes federativos participarão da reunião por meio de videoconferência.


Art. 6º O Comitê de Orientação e Supervisão poderá instituir subcolegiados com o objetivo de:


I - avaliar e selecionar as propostas de trabalho das ações do Projeto Rondon; II - analisar os relatórios das ações; e

III - providenciar os trabalhos técnicos necessários ao funcionamento do Comitê de Orientação e Supervisão do Projeto Rondon.


Art. 7º Os subcolegiados:


  1. - serão compostos na forma de ato do Comitê de Orientação e Supervisão do Projeto Rondon;


  2. - não poderão ter mais de trinta membros;


  3. - terão caráter temporário e duração não superior a um ano; e

  4. - estão limitados a três operando simultaneamente.


Art. 8º A Secretaria-Executiva do Comitê de Orientação e Supervisão será exercida pelo Ministério da Defesa.


Art. 9º O Comitê de Orientação e Supervisão elaborará e aprovará o seu regimento interno.


Art. 10. A participação no Comitê de Orientação e Supervisão e nos subcolegiados será considerada prestação de serviço público relevante, não remunerada.


Art. 11. Fica revogado o Decreto de 14 de janeiro de 2005, que cria o Comitê de Orientação e Supervisão do Projeto Rondon.


Art. 12. Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação.

Brasília, 25 de junho de 2019; 198º da Independência e 131º da República. JAIR MESSIAS BOLSONARO

Fernando Azevedo e Silva


Este texto não substitui o publicado no DOU de 26.6.2019


III- Considerações Finais


Ainda sobre o Projeto Rondon cabem questões que tocam campos interdisciplinares, que vão da História à Ciência Política e à Pedagogia. Neste sentido, selecionamos alguns trabalhos e alguns documentos que se encontram nas Referências.

No corpo da coluna ‘Memória e Documentos’, apenas os Decretos e Leis, que demonstram a trajetória do Projeto Rondon. Nem foi admitida neste elenco, a Medida Provisória do Presidente Sarney, convertida em Lei pelo Congresso Nacional, extinguindo a Fundação Projeto Rondon, por ser seca e burocrática, não fazendo jus a milhares de estudantes que se voluntariaram para ser rondonistas da primeira fase. Tanto as Universidades quanto as Faculdades estavam num movimento pré-

1964 de extensão. O uso da expressão “movimento” é proposital. Antes mesmo de 19116, o movimento estudantil empurrava as instituições a levar à sociedade, de forma


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6Ano em que o Decreto n. 8.659, de 5 de abril, aprovava a Lei orgânica do Ensino Superior e Fundamental da República.

pontual e esporádica, os frutos de seu Trabalho em pesquisa e ensino. E é Luciane Pinho de Almeida (2015, p. 6) que nos ensina:

No ano de 1937, com a criação da União Nacional dos Estudantes – UNE, intensificaram os protestos e ações do movimento estudantil, retornando com muita força a discussão da proposta da extensão universitária. Mas foi apenas em 1956, que o movimento estudantil passou a adotar postura mais ativa na vida da sociedade brasileira.


Assim, não há que se estranhar que a UNE tenha proposto, ao Presidente Lula, a retomada do Projeto Rondon depois de 15 anos. Na maturidade da extensão universitária, estas ações faziam mais sentido ainda, na medida de que criavam oportunidades de maior número de estudantes circulasse em campi avançados de suas próprias universidades e de outras universidades.

O importante é resgatar critérios essenciais para a democracia, como participação das populações locais na formulação e controle das ações; como uma educação da cidadania como aperfeiçoamento de direitos individuais e sociais, e nenhuma submissão às realidades perversas da desigualdade; como uma segurança nacional que integre e desenvolva sustentavelmente a todos; como igualdade de condições de educação e saúde para todos.


Referências


ALMEIDA, Luciane Pinho de. A extensão universitária no Brasil: processos de aprendizagem a partir experiência e do sentido. In: Dire, n. 7, 2015. Disponível em https://www.unilim.fr/dire/692. Acesso em julho de 2020.


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0sobre%20a%20extin%C3%A7%C3%A3o%20de,federais%20e%20d%C3%A1%20o utras%20provid%C3%AAncias. Acesso em julho de 2020.

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V.18, nº 37, set-dez (2020) ISSN: 1808-799 X


A RELAÇÃO ENTRE TRABALHO E EDUCAÇÃO A PARTIR DA ONTOLOGIA MARXIANA: APONTAMENTOS AOS SEUS FUNDAMENTOS1


George Amaral2 Anderson Deo3


Resumo

O artigo propõe uma reflexão sobre a relação entre as categorias Trabalho e Educação. A partir de uma análise exegética e imanente das categorias, buscaremos compreender a função social da Educação no processo de formação humana. A nossa hipótese busca dilucidar os nexos constitutivos entre o processo de formação da sociabilidade, sua ontogênese, fundada no Trabalho, e sua imbricação na Educação. A pesquisa se apoiou na análise produzida por Karl Marx, sobre a categoria Trabalho, e na abordagem de György Lukács, que se desdobra em complexos sociais, tais como a Educação.

Palavras-chave: Trabalho; Educação; Metabolismo social.


A RELACIÓN ENTRE EL TRABAJO Y LA EDUCACIÓN DE LA ONTOLOGÍA MARXIANA: NOTAS A SUS FUNDAMENTOS

Resumen

El artículo propone una reflexión sobre la relación entre las categorías Trabajo y Educación. A partir de un análisis exegético e inmanente de las categorías, buscaremos comprender la función social de la Educación en el proceso de formación humana. Nuestra hipótesis busca aclarar los vínculos constitutivos entre el proceso de formación de la sociabilidad y su ontogénesis basada en el trabajo, y su imbricación en la educación. La investigación se basó en el análisis de Karl Marx de la categoría Trabajo y el enfoque de György Lukács que se desarrolla en complejos sociales como la Educación. Palabras clave: Trabajo; Educación; Metabolismo social.


THE RELATIONSHIP BETWEEN WORK AND EDUCATION FROM MARXIAN ONTOLOGY: NOTES TO THEIR GROUNDS

Abstract

The article proposes a reflection on the relationship between the categories Work and Education. From na exegetical and etaboli analysis of the categories, we will seek to understand the social function of education in the etabolism human formation. The hypothesis seeks to clarify the constitutive links between the etabolism sociability formation and its ontogenesis based on work, and its imbrication in education. The research relied on Karl Marx’s analysis of the Work category and György Lukács’s approach that unfolds into social complexes such as Education.

Keywords: Work; Education; Social etabolism.



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1Recebido em 06/12/2019. Primeira avaliação em 18/05/2020. Segunda avaliação em 16/06/2020 Terceira avaliação em 26/06/2020. Aprovado em 14/08/2020. Publicado: 25/09/2020.

DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v18i37.38896.

2Doutor em Educação pela Universidade Estadual Paulista - UNESP/Marília - São Paulo / Brasil., Professor de história da rede de educação básica do Ceará - Brasil. Bolsista pela Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico - FUNCAP-CE. E-mail: georgeamaralp@gmail.com ORCID:0000- 0002-5685-0579. Lattes: http://lattes.cnpq.br/5700823644219229.

3 Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista - UNESP/Marília - São Paulo / Brasil onde

também é professor no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais - PPGCS. Pesquisador/colaborador no Instituto Caio Prado Júnior – São Paulo (ICP - SP). E-mail: deoanderson@hotmail.com ORCID: 0000-0001- 6081-3159. Lattes: http://lattes.cnpq.br/3488579869641105.


Introdução


O presente artigo é o resultado de um esforço de leitura e sistematização introdutórios ao pensamento de Karl Max4, a partir da ontologia do ser social. Em específico abordamos as reflexões que o autor elaborou sobre a Categoria Trabalho5 e o caráter que tal reflexão ocupa no conjunto de sua obra. Sendo assim, resgatar o caráter ontológico do Trabalho, como fez Lukács, na constituição do ser social, faz-se mister como pressuposto teórico-filosófico de nossa exposição. Uma vez exposta a categoria Trabalho em seus nexos constitutivos, sobretudo de caráter fundante da sociabilidade, apontaremos seu desenvolvimento histórico e assim buscaremos elucidar a relação que se reproduz entre o Trabalho e o complexo da educação enquanto complexos societais de formações históricas.

A análise produzida por Marx sobre a categoria Trabalho aponta para seu caráter ontológico na constituição do ser social, como assinalou György Lukács. Segundo esse autor, a partir do Trabalho complexo fundante se desdobram outros complexos sociais, tais como a Educação. Nessa leitura metodológica, compreender a totalidade de um determinado fenômeno social pressupõe a apreensão da realidade como síntese de múltiplas determinações, como um complexo de complexos. A partir de uma análise exegética e imanente das categorias mencionadas acima, buscaremos compreender as determinações que a Educação reproduz no metabolismo social.

Como o ponto de partida é a centralidade do Trabalho, analisada por Marx, apoiamos nossas reflexões nos Manuscritos econômico-filosóficos (2010) e no Livro I do Capital (2013). Nessas obras, Marx revela os pressupostos essenciais e universais do Trabalho, apreendendo a esfera de constituição do ser social e seu desdobramento histórico em meio ao modo de produção vigente em cada época. Na esteira,


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4Essa pesquisa foi desenvolvida através do intercâmbio entre o Grupo de Pesquisa Trabalho, Educação, Estética e Sociedade (GPTREES), da Faculdade de Ciências e Letras do Sertão Central (FECLESC-UECE) e o Grupo de Pesquisa Núcleo de Estudos de Ontologia Marxiana – Trabalho, Sociabilidade e Emancipação Humana (NEOM).

5 Optamos pela grafia Trabalho, com a inicial maiúscula, para indicar seu conteúdo categorial. Em Marx, uma categoria expressa uma forma de ser do real. Assim, utilizamos Trabalho para definir uma característica própria da forma de ser do Homem, diferentemente das formas históricas de reprodução da mão de obra, para a qual utilizaremos a grafia trabalho, com a inicial minúscula. Adotaremos esse procedimento com a palavra Educação.

ressaltamos a relevância da análise de György Lukács, responsável pelo desenvolvimento do caráter ontológico da obra de Karl Marx. Por isso, recorremos a sua obra Para uma ontologia do ser social (2012; 2013).

Seguindo esse roteiro de análise, consideramos a Educação um complexo essencial à existência do ser social6, à reprodução de sua estruturação, bem como sua contribuição na transformação das relações sociais vigentes. Na obra Para uma ontologia do ser social, Lukács aponta o complexo social como um aspecto da totalidade social constituído pelo conjunto das relações que os seres humanos estabelecem para atender a determinadas necessidades.

A Educação possui um vínculo ontológico com o Trabalho, é determinada em última instância por ele, pois como sustenta Lukács (2013), a partir de Marx, é o trabalho o complexo base sobre o qual a práxis social se move, processual e historicamente, na singularidade, particularidade e universalidade. Esses processos são contínuos e não se esgotam jamais as possibilidades da criação de algo novo na realidade humana, pois é o trabalho a mediação ineliminável entre homem (sociedade) e natureza. Assim, o papel da Educação no processo de reprodução social tem um vínculo com o Trabalho, porém sem se limitar a ele. Na medida em que avança e interage com outros complexos que se movem na práxis social a educação se enriquece.

Nessa perspectiva, consideramos o trabalho fundamento do ser social e categoria central na análise da sociedade capitalista. Ao apontar a superação do trabalho alienado e estranhado, Marx apontou à superação da sociedade do capital. Isso porque o trabalho participa da reprodução do homem, enquanto ser social, desenvolvendo atividades que o fazem pertencer a um gênero. A partir dele, a Educação assume a função de acessarmos o patrimônio histórico-cultural da humanidade, abrindo a possibilidade da transformação das relações sociais.

Na tentativa de compreendermos a função social do trabalho e da educação, para além do que é estabelecido pela ideologia capitalista, dialogamos com Tonet (2005, 2011; 2012), Lessa (2012a, 2012b), Jimenez e Lima (2011), Santos e Costa (2012), autores que se debruçam sobre seus estudos no esforço de compreender os pressupostos ontológico-históricos marxianos. Para enriquecer o debate em torno do


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6 Importante apontar que o complexo social da Educação, numa leitura marxiana, não se restringe às formas histórico-institucionais reproduzidas pela humanidade. Aprofundaremos essa questão ao longo do artigo.

nosso objeto apoiamos nossa reflexão em Harvey (2011), Braverman (1987), Infranca (2014), vislumbrando suas interpretações sobre o trabalho em Marx.


O trabalho e os elementos de sua legalidade ontológica: apontamentos centrais


Ao analisar as obras de Marx, podemos compreender, que não existe ser social sem o trabalho; sua centralidade é a base fundadora da sociabilidade humana, resultante da interação com a natureza e as inter-relações dos sujeitos entre si na produção da existência. Ao converter a natureza em meios de subsistência ou de produção, o homem atua de forma consciente e intencional, controlando e executando sua ação através de seus membros corpóreos, num contínuo intercâmbio e interação com os elementos da natureza, externos ao próprio homem. Vejamos.


Primeiramente o trabalho, a atividade vital, a vida produtiva mesma aparece ao homem apenas como meio para a satisfação de uma carência, a necessidade de manutenção da existência física. A vida produtiva é, porém, a vida genérica. É a vida engendradora de vida. No modo da atividade vital encontra-se o caráter inteiro de um species, seu caráter genérico, e a atividade consciente livre é o caráter genérico do homem. (MARX, 2010, p.84).


O trabalho como atividade vital é base para constituição do ser social. De forma primária, a existência humana é prioridade mediante o conjunto das atividades do meio natural. Para isso, o trabalho atua como mediador entre o ser humano e o meio que possibilitou a produção da existência para além das fronteiras do meio natural. O Trabalho proporcionou um salto ontológico (quantitativo e qualitativo) do ser dominado pela natureza para o ser que pensa e a transforma para garantir sua existência. Delineando a apreensão entre espírito e matéria, sujeito e objeto, homem e natureza, Marx põe no trabalho o acento fundante da existência humana enquanto ser social, a vida produtiva como vida genérica, o autor refere-se ao trabalho como elemento central. O sentido aqui atribuído ao trabalho é o sentido concreto, como meio de atender suas necessidades, produtor de valores de uso. Em um processo de constante absorção/síntese/superação vinculado à relação entre homem e natureza, estabelece-se a reprodução do homem como um ser histórico e partícipe de um gênero. Um ser que, pelo trabalho, saltou ontologicamente para outra dimensão, a societal, capaz de criar sempre e produzir incessantemente um patrimônio histórico- cultural resultante de sua práxis.

Esse processo pressupõe a atuação do ser humano que rompe com a esfera orgânica, pois projeta, ao nível da subjetividade, suas ações concretas, atribuindo- lhes um novo sentido, transformando a natureza. Essa transformação pelo próprio processo de objetivação do trabalho retroage sobre o homem como uma nova realidade. O desenvolvimento desse salto abriu uma nova possibilidade para essa relação, o que impulsionou o surgimento de relações sociais mediadas, isto é, para além das imediatas, mesmo que em níveis e escalas diferenciadas em cada contexto histórico. Conforme Marx (2013, p. 255), “o trabalho é, antes de tudo, um processo entre homem e natureza, processo este em que o homem, por sua própria ação, medeia, regula e controla seu metabolismo com a natureza”.

Em uma passagem clássica na obra O Capital, Marx pondera.


Pressupomos o trabalho numa forma em que ele diz respeito unicamente ao homem. Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e uma abelha envergonha muitos arquitetos com a estrutura de sua colmeia. Porém, o que desde o início distingue o pior arquiteto da melhor abelha é o fato de que o primeiro tem a colmeia em sua mente antes de construí-la com a cera. No final do processo de trabalho, chega-se a um resultado que já estava presente na representação do trabalhador no início do processo, portanto, um resultado que já existia idealmente. (MARX, 2013, p. 255-256).


A centralidade assumida pelo trabalho ocorre pela necessidade humana de produzir sua existência através da transformação da natureza, diferentemente do que ocorre com os outros entes naturais, visto que estes atuam a partir do que está “impresso” em seu código genético. Essa nova forma de atuação diferencia o ser humano, pois o ato de projetar idealmente sua ação sobre o meio, no plano da subjetividade, efetiva, na natureza, os desejos que se quer alcançar, um processo que possibilita ao homem fazer escolhas entre alternativas, pôr fim às suas ações, e operar sobre uma materialidade, uma objetividade. Surge, assim, a interação ininterrupta entre natureza e ser social. Ancorado em Marx, Lukács explica que


a estrutura ontológica básica do trabalho – pôr teleológico com base no conhecimento de um segmento da realidade com o propósito de modificá-la (conservar é um simples momento da categoria modificar), efeito causal continuado que se tornou independente do sujeito pelo ser que foi posto em movimento pelo pôr realizado, retroação das experiências obtidas de todos esses processos sobre o sujeito, efeitos dessas experiências sobre pores teleológicos subsequentes – compõe, de certo modo, o modelo para toda atividade humana. (LUKÁCS, 2013, p. 287).


A necessidade objetiva de existência determina sobre o ser humano uma ação que passa pela consciência e retorna ao meio como produto concreto dessa interação e da necessidade humana. O metabolismo, a ação humana, que age e retroage sobre a natureza, estabelece uma relação que potencializa sempre novas alternativas, novas relações, novas combinações. O importante é notar que ao despertar um conjunto de novas relações, o trabalho projeta outras necessidades sociais e se torna modelo para outras práxis. Com o Trabalho, trata-se de pôr a consciência humana em movimento, cujas consequências, de acordo com Lukács (2013, p. 291), “consistem no fato de que o trabalho e seus produtos confrontam todo homem com novas tarefas, cuja execução, desperta nele novas capacidades”, resultando em “necessidades sempre novas e, até aquele momento, desconhecidas e, com elas, novos modos de satisfazê-las”.

Apenas o ser humano orienta, regula e intervém na natureza de modo que escolhe entre alternativas. O Trabalho é “em primeiro lugar, atividade orientada a um fim, ou ao trabalho propriamente dito; em segundo lugar, seu objeto e, em terceiro, seus meios” (Marx, 2013, p. 256). Certamente, esse aspecto não libera o homem de suas necessidades efetivas, biológicas, mas a latente capacidade de planejar e interferir no meio de forma teleológica requer um ser que pensa e imprime sentido a tudo que faz. Ao escolher entre alternativas, analisando as possibilidades, os meios, testando variadas formas e combinações dos objetos em si para atingir o fim posto é a atividade vital e consciente da humanidade.

Nestes termos é que Lukács (2013, p. 53) identifica o pôr teleológico, ou teleologia, prévia ideação: “um projeto ideal alcança a realização material, o pôr pensado de um fim transforma a realidade material, insere na realidade algo de material que, no confronto com a natureza, representa algo qualitativamente e radicalmente novo”. Essa questão expõe o duplo caráter da transformação. “Por um lado, o próprio ser humano que trabalha é transformado por seu trabalho; ele atua sobre a natureza exterior e modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza, desenvolve as ‘potências que nela se encontram latentes’ e sujeita as forças da natureza a ‘seu próprio domínio” (LUKÁCS, 2012, p. 286). Desse modo, o trabalho é o fundamento essencial do ser social. Nesse processo estão atuando, de forma interdependente e indissociável, o pôr do fim e seus meios, portanto, dois atos, em um processo de síntese, a práxis humana, ressaltando que somente aí, “nessa nova

vinculação ontológica constitui-se o complexo autenticamente existente do trabalho,” por assim afirmar, que “perfazem o fundamento ontológico da práxis social e até do ser social em seu conjunto” (LUKÁCS, 2013, p. 64).

Em outras palavras, o legado onto-histórico de Marx assinala que é no e a partir do trabalho que o homem – tomado em sua dimensão de gênero – produz na materialidade sua existência, sobrevivência. Através dele o ser humano produz um constante processo de distanciamento das barreiras naturais, porém sempre vinculado à sua natureza físico-biológica (BRAVERMAN, 1987). Os seres humanos são sujeitos ativos em relação ao mundo que os rodeia.

A compreensão do duplo caráter do processo de trabalho leva-nos à diferenciação entre sujeito (homem) e objeto (objetivação do Trabalho), o que possibilita ao homem o domínio de si mesmo e do ambiente a sua volta. Essa diferenciação, de acordo com Lukács (2013, p.65), é “produto necessário do trabalho e, ao mesmo tempo, a base para o modo de existência especificamente humano”. Decerto, a tese de Lukács (2012, p. 286) adverte que não se pode considerar “o ser social como independente do ser da natureza, como antítese”, o ser social pressupõe, em seu conjunto e em cada um dos seus processos singulares, o ser da natureza inorgânica e da natureza orgânica”.

O processo de trabalho exige que o homem desenvolva uma certa apreensão da realidade, própria da relação sujeito-objeto. Ao final do processo de trabalho o produto foi objetivado e existe, a partir daí, independente de quem o produziu, portanto, uma causalidade (INFRANCA, 2014). De acordo com Lukács (2013), a teleologia implica a existência de ação previamente concebida no plano da subjetividade, conduzindo o homem a fazer escolhas entre alternativas, orientando a ação a ser efetivada a alcançar um fim estabelecido, enquanto a causalidade (dada ou posta), segundo Lukács, é o princípio do movimento autofundado e que existe objetivamente, independente do agir humano ou, mesmo que seja fundado por um ato da consciência, ao ser exteriorizado, torna-se também causalidade.

Podemos mencionar, por exemplo, o fato de se utilizar uma pedra para a caça, ou um pedaço de madeira que aumente a extensão do braço humano para a coleta de frutas nas copas mais altas, sem alterar com isso a matéria natural da madeira. Apenas o indivíduo atribuiu um significado diferente ao objeto, transformando-o em um ser distinto de sua natureza, desde que atenda a uma necessidade. É ela que

impulsiona a teleologia, inserindo um novo momento na realidade, uma causalidade posta, pois o meio foi modificado em função de uma ação planejada. A tarefa de conversão da matéria natural em outro objeto, que pode ser mais elaborado, polido ou afiado, depende dos meios e da habilidade humana requisitada pelo fim posto, se a realidade foi apreendida corretamente. Ao experimentar e combinar os elementos naturais, convertendo-os em um novo objeto é atividade especificamente humana.

O trabalho possibilita produzir essa nova objetividade, que a consciência toma como base para refletir e efetivar, na prática humana, uma ação sempre nova (LESSA, 2012a). Certamente, esse aspecto não libera o homem de suas necessidades efetivas e biológicas, porém o torna capaz de planejar e interferir no meio de forma racional, isto é, um ser que pensa e imprime sentido a tudo que faz. Sendo assim, capacidades mentais e físicas são desenvolvidas na elaboração de uma nova materialidade onde “a natureza aparece como sua obra e a sua efetividade” (MARX, 2010, p. 85).

Essas características aparecem como referências dos elementos essenciais e universais do trabalho. De sua natureza essencial emerge, pois, o postulado marxiano de que o trabalho é “protoforma” do ser social. No processo de produzir algo novo, como já enfatizamos, articulam-se teleologia e causalidade cuja práxis é cada vez mais social. Na medida em que as barreiras naturais são afastadas, o ser humano torna-se cada vez mais um ser histórico, ao produzir a sua existência, não somente vive, mas existe enquanto ser histórico que avança e depende cada vez mais do metabolismo social para se reproduzir enquanto ser social. Difere-se, portanto, dos animais, visto que produz a existência e a si mesmo,


A primeira premissa de toda a existência humana, e, portanto, também de toda a história, é premissa de que os homens, para “fazer história”, se achem em condições de poder viver. Para viver, todavia, fazem falta antes de tudo comida, bebida, moradia, vestimenta e algumas coisas mais. O primeiro ato histórico é, pois, a geração dos meios para a satisfação dessas necessidades, a produção da vida material em si, e isso é, sem dúvida, um ato histórico, uma condição fundamental de toda a história (MARX; ENGELS, 2007, p. 40-41).


O desenvolvimento societal e a produção da existência estão balizados pelo Trabalho e, por sua vez, a prévia-ideação que projeta a finalidade desejada tem um caráter ineliminável para a existência humana. Quanto mais os homens se desenvolvem objetiva e subjetivamente, quanto maior o desenvolvimento dos meios de produção da existência, menos ele é limitado pelas amarras da natureza, tornando

assim mais complexo o mundo fundado por ele. Esse afastamento das barreiras naturais pressupõe uma correlação de forças entre objetividade e subjetividade, na qual a segunda não pode ser deslocada da primeira. Precisamos, é claro, da subjetividade, pois o intercâmbio entre ser humano e natureza é mediado pela consciência uma vez que ele reflete, subjetivamente, para fazer escolhas no plano da objetividade. Todavia, o ponto de partida é a objetividade já que, primeiro, os indivíduos precisam existir para depois pensar: a prioridade recai sobre a objetividade. Fundamentalmente ele existe quando satisfaz suas necessidades, produzindo alimento, vestuário e abrigo.

A partir da síntese entre objetividade e subjetividade, surge um mundo fundamentalmente social, o mundo dos homens. Ao inserir nele novos objetos, desperta também “novas capacidades e necessidades cujas consequências trazem ao mundo novas capacidades e necessidades para satisfazê-las” (LUKÁCS, 2013, p. 303). Conforme esse autor, o trabalho põe em movimento, em sua dialética e dinâmica concretas, o afastamento da barreira natural. A criação do novo levanta novas perguntas, não mais a partir do entorno imediato, mas sobre o que já está posto. O novo, além de atender uma necessidade, possibilita uma realidade diferente do momento anterior. Cozinhar o alimento mudou a digestão, potencializou o melhor aproveitamento da digestão e preveniu doenças que antes eram mais letais à saúde humana, por exemplo. Esse processo é o movimento do ser social.

A sociabilidade, como uma realidade fundada pelo trabalho, funciona como uma causalidade posta, “desdobrando o trabalho como modelo da práxis, como um processo que se dinamiza por contradições, envolvendo teleologia e causalidade, cuja superação o conduz a patamares cada vez mais crescentes de complexidade, nos quais novas contradições impulsionam a outras superações” (NETTO e BRAZ, 2012,

p. 31). Essa maior complexidade, salienta Lessa (2012b), é propiciada pelo desenvolvimento crescente das forças produtivas resultando na diminuição do tempo de trabalho socialmente necessário à sua reprodução material. Ao mesmo tempo, consegue-se o afastamento das barreiras naturais, pois uma proporção menor da força de trabalho total da humanidade está envolvida nesse intercâmbio entre homem e natureza.

O que o homem fez para sobreviver não estava escrito no código genético, ele precisou do trabalho para produzir a existência cuja ação permitiu o salto da esfera

orgânica para a esfera social. Nestes termos, o intercâmbio entre homem e natureza, mediado pelo trabalho, efetuou novas objetivações que, por sua vez, são potencializadores do desenvolvimento social. Abre-se, portanto, um campo de possibilidades, exigindo o domínio de conhecimentos corretos da realidade, habilidades para manipular objetos e transformá-los em ferramentas. Desdobra-se desse processo a criação de uma codificação para representar os conhecimentos adquiridos, a linguagem, e um conjunto de formas de apropriações e transmissão para novas gerações do patrimônio historicamente acumulado a fim de perpetuar o ser social.

O “mundo dos homens” se torna cada vez mais um complexo de coisas, a que se refere Lukács (2012) como complexos de complexos, onde os homens criaram as condições históricas cada vez mais possibilitadas pelos seus atos, na correlação de forças entre a objetividade e a subjetividade. O autor assegura o pressuposto marxiano para intrincadas relações entre os complexos sociais, de complementariedade e autodeterminação, que podem ser sintetizadas no plano categorial pela autodeterminação entre universal/particular/singular (LUKÁCS, 2013), mesmo que, em Marx, tal como indica Lukács, a base material se constitui, em última instância, como momento predominante7. Trata-se de considerar que estruturas complexas como a ciência, o direito, a linguagem, a Educação, situem-se com relativa autonomia, porém sempre fundadas ontologicamente pelo complexo do Trabalho, que as determina como complexo particular da totalidade. Por sua vez, a dependência ontológica em relação ao trabalho não significa um limite para o avanço e o surgimento de novas relações. Balizado nessa assertiva marxiana, Tonet (2005) demonstra que o trabalho em sua


[…] dimensão fundante do ser social, não se esgota. Que a partir dele e, às vezes como desdobramento de germes já existentes no seu interior (caso da linguagem, da educação, da ciência, etc.), surgem inúmeras outras dimensões, de modo que o ser social é sempre um complexo articulado que inclui a dimensão fundante e um conjunto de outros campos da atividade humana. Dessa forma, reafirmamos o trabalho como modelo de toda a práxis social. Ele é base sobre a qual a práxis social se move processual e historicamente sem esgotar jamais as possibilidades da criação de algo novo na realidade humana (p.232).


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7 Para que se produzam e reproduzam relações sociais é preciso, inicialmente, que os seres humanos existam.

Procuramos até o momento estabelecer os elementos fundamentais da categoria Trabalho como base do mundo dos homens. Através dele o homem “salta” de sua condição natural e inicia um processo histórico, enquanto transforma a natureza, modifica sua própria existência, reproduzindo, para além da esfera biológica, o fenômeno da sociabilidade. Por isso, traçamos um panorama que indica o percurso originário e processual do ser social, constituído de complexos, entre os quais, o da Educação.

Compreender a gênese e processualidade histórica do Trabalho nos permite refletir sobre a função social, o papel do complexo da Educação e no complexo da reprodução social, pois mantém com aquele uma relação de dependência ontológica, autonomia relativa e determinação recíproca (TONET, 2011). A Educação é um instrumento poderoso para a formação dos indivíduos, contudo, precisamos entender o contexto em que está inserida a sua função social, a serviço de quais interesses e se esses interesses atendem às reais necessidades humanas.


Apontamentos sobre a gênese e função social da educação


Nesse momento trataremos de expor a conexão da Educação8 como prática social das atividades humanas individual e universalmente. Primeiramente, situamos o contexto categorial que envolve as atividades educativas no processo de reprodução social, refletindo a intricada relação da educação com a totalidade social. Nesse caso, traçamos o desenvolvimento da formação dos indivíduos articulado às atividades produtivas, inseridos em práxis sociais, demonstrando algumas particularidades históricas do complexo educativo onde a Educação conserva o seu caráter mais geral no quadro da reprodução social.

Não oneroso é lembrar que a Educação enquanto complexo social abrange um conjunto de relações que os seres humanos estabelecem tendo por base a teleologia de sujeito para sujeito. Seu vínculo ontológico primário é o trabalho, mas ela transita e absorve, influencia e é influenciada, avança e recua conforme o movimento do complexo de complexos, ou seja, conforme o movimento da sociedade. Ao mesmo tempo, em que a história dos processos educativos se desenvolve mediante a práxis social, é com divisão social do trabalho e a sociedade de classes, a propriedade


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8 Anotamos aqui a Educação no sentido geral do conceito que não se limita às práticas institucionais.

privada e a exploração do homem pelo homem que se institui a forma stricta da educação.

Na medida em que o trabalho e as forças produtivas se desenvolvem ocorre o recuo das barreiras naturais expressando não só a alteração da natureza, mas também modificações nas condições sociais e humanas. A Educação dentro da complexidade própria e da totalidade social pôde desenvolver no ser humano ações que orientaram para possibilidades sempre novas, desde as primeiras formações sociais até as sociedades mais evoluídas. Nesse sentido, para que os indivíduos se integrem ao gênero humano é imprescindível o processo de educação. A formação da individualidade atende à linguagem, aos hábitos alimentares, ao comportamento desejado pelo grupo social, sua cultura de modo geral. Assim o indivíduo se integra ao meio social, universalizando-se. Na categoria trabalho esse processo de universalização passa pelo intercâmbio entre natureza e homem, “protoforma” da sociabilidade. O complexo da educação, por sua vez, é acionado a fim de assegurar a transmissão dos conhecimentos, habilidades e valores necessários para que o ser humano se torne um sujeito apto a refletir sobre a sociabilidade, para pensar em algo novo sem ter que repetir todo o processo. A Educação preserva, e ao mesmo tempo possibilita, avançar sobre determinados problemas e, ao transmitir conquistas que a humanidade já realizou, projetar a superação das condições que a afligem em sua história.


Todo povo que atinge um certo grau de desenvolvimento sente-se naturalmente inclinado à prática da educação. Ela é o princípio por meio do qual a comunidade humana conserva e transmite a sua peculiaridade física e espiritual [...]. Só o Homem, porém, consegue conservar e propagar sua forma de existência social e espiritual por meio das forças pelas quais a criou, quer dizer, por meio da vontade consciente e da razão. (JAEGER, 1995, p. 3).


Começamos, portanto, pelo plano da generidade onde o trabalho desencadeou um conjunto de ações complexas, cada uma com sua função social específica, compondo nesta perspectiva a práxis social. O processo de complexificação ocorre por meio da criação de algo sempre novo, que tende a organizar outro algo novo, “alargando o horizonte da reprodução humana, criando necessidades e ampliando as formas de satisfazê-las” (LIMA e JIMENEZ, 2011, p. 74).

O processo de reprodução social na sua totalidade “se dá num complexo – composto de complexos - que só pode ser compreendido adequadamente em sua

totalidade dinâmica e complexa” (LUKÁCS, 2013, 170-172). A educação é o complexo que faz parte da vida humana em sociedade, não se limitando a transmitir comportamentos inscritos na base orgânica, mas em promover o desenvolvimento do indivíduo como parte do gênero humano. O processo educativo tanto ocorre no plano da individualidade quanto se articula com a universalidade do ser social. Pressupomos, com base em Lukács (idem), a educação como um pôr teleológico secundário, isto é, a prévia ideação de um sujeito para sujeito que tem como meta influenciar seu comportamento frente a uma práxis social. A Educação9 que influencia o comportamento de um sujeito educa-o, por exemplo, a atravessar uma rua preservando sua integridade, sob determinadas condições de trânsito, conhecendo o modus operandi do tráfego daquele local. Pode também induzir a buscarmos respostas para questões que afligem nossa sociedade, encontrar a cura para determinadas doenças e, tantos outros exemplos, que de fato garantem à humanidade não precisar inventar a roda todos os dias.

Enfaticamente anotamos que os desdobramentos da articulação entre homem e natureza, objetividade e subjetividade, trabalho e teleologia no real, promovem uma complexificação intensa da vida em sociedade. Com efeito, a educação é o complexo da formação humana que se relaciona com a atividade produtiva da existência, com o universo da sociabilidade da produção e transmissão do saber.

Com essas considerações em tela, Tonet (2011), sublinha a primazia ontológica do trabalho sobre os demais complexos.


É, portanto, a partir do trabalho que surgem todos esses outros momentos da realidade social. Cada um com uma natureza e uma função próprias na reprodução do ser social. Deste modo, podemos dizer que entre o trabalho e as outras atividades existe uma relação de dependência ontológica, de autonomia relativa e de determinação recíproca. Dependência ontológica de todas elas em relação ao trabalho, pois este constitui o seu fundamento. Autonomia relativa, pois cada uma delas cumpre uma função que não resulta mecanicamente de sua relação com o trabalho. Determinação recíproca, pois todas elas, inclusive o trabalho, se relacionam entre si e se constituem mutuamente nesse processo (p. 139).


Embasados em tais pressupostos, consideramos os complexos como partes integrantes da totalidade, Lima e Jimenez (2011) embasadas em Lukács, defendem a


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9 Exemplos como este revelam a necessidade de uma educação sistematizada, porém ela não passa pela educação escolar em si, propriamente.

tese de que a educação situa-se como um dos complexos sociais surgidos das necessidades e possibilidades produzidas pelo trabalho que mantêm uma dependência ontológica e uma autonomia relativa a essa atividade consciente, devido a sua especificidade. As autoras definem educação como um complexo universal necessário à reprodução do homem como ser social (idem).

Se o ser social é um ser que se constrói, a educação faz parte desse existir inerente à formação humana. Como não nascemos humanos, mas nos constituímos para atender às necessidades de sobrevivência, o complexo da educação deve propiciar a todos os indivíduos a formação que os possibilite ser partícipe do gênero humano, situando-os em uma totalidade societária. Através dela uma série de objetivações pode ser concretizada por meio das atividades realizadas, cotidianamente, retroagindo sempre a novas aprendizagens, habilidades, conhecimentos e valores.

A essência da educação “consiste em influenciar os homens no sentido de reagirem a novas alternativas da vida de modo socialmente intencionado” (LUKÁCS, 2013, p. 178). Na perspectiva do ser social, a formação social do comportamento centra-se na “práxis educativa que intenta produzir individualidades de acordo com as exigências de um determinado tipo de sociedade, o que ocorre pela sua influência sobre o campo das decisões individuais” (SANTOS e COSTA, 2012, p. 99). Essas decisões são assentadas no âmbito teleológico e a partir de uma realidade social, que orienta a ação objetiva e ao mesmo tempo impulsiona, coordena e determina o agir da consciência sobre o que “está-posto”, uma dada realidade. Como o pôr teleológico secundário se dá de sujeito para sujeito, a decisão alternativa de cumprir uma tarefa dada por outro sujeito torna-se uma possibilidade abstrata que depende do sujeito que recebeu a tarefa.


A vivência imediata de tal condição sem dúvida suscita na maioria dos homens a imagem de que o homem está vivendo em um entorno social que o confronta com as mais distintas demandas, às quais ele passa a reagir de modo extremamente diversificado, das quais ele toma conhecimento, a elas se submete, afirma-as ou as nega etc. (LUKÁCS, 2013, p. 292).


Nestes termos, precisamos da educação, como afirma Tonet (2008), porque de modo primário, o trabalho implica em uma teleologia, ou seja, em uma atividade intencional prévia e na existência de alternativas e isto não é biologicamente pré- determinado. Para tanto, o pôr teleológico da educação se difere do pôr do trabalho

em sua forma produtora de valores de uso que é desenvolver/influenciar/formar novos comportamentos perante as necessidades sociais, o que implica compreender o processo de mediação do agir entre sujeitos no plano da sociabilidade; desse modo o pôr teleológico da educação, tendo por base Lukács, é um por teleológico secundário (LUKÁCS, 2013). Tal como se apresenta, a teleologia secundária estabelece uma relação que é de sujeito para sujeito, portanto, no pôr teleológico secundário a subjetividade adquire o caráter social: possíveis decisões alternativas de pessoas onde são preponderantes as relações sociais não dependem apenas de um sujeito. Não se pode prever a reação dos indivíduos diante das alternativas possíveis, mesmo com a práxis educacional induzindo determinadas decisões, pois mesmo com as contradições, o processo educativo não cessa.

Para a continuidade do ser social, de sua forma historicamente produzida, é necessária uma educação que possibilite apreender o modo de vida do grupo, assimilando a linguagem, os costumes, as atitudes, as formas de pensar e as formas de produção que garantem a subsistência. Essas e outras objetivações da esfera do ser social são, direta ou indiretamente, originadas da relação homem e natureza ou das atividades dos sujeitos no plano da sociedade. A continuidade do gênero como ser social e a totalidade no movimento de reprodução do ser social mobilizam o complexo educacional para se apropriar das objetivações de outros complexos da práxis social: linguagem, arte, política, religião, ciência, alimentação, direito, dentre outros.

A educação, enquanto complexo da totalidade social, apropria-se das objetivações de outros complexos da práxis social, de modo que tais objetivações se tornem universais, pertencentes ao gênero humano. Ao mesmo tempo em que se afastam as barreiras naturais, elas enriquecem o ser social. No processo de reprodução social, no plano da totalidade, os indivíduos se apropriam desse patrimônio historicamente acumulado, assim como de suas contradições, para se humanizarem e possibilitarem sua participação nas conquistas alcançadas. É uma possibilidade, porque nem todas as conquistas da humanidade estão acessíveis ao coletivo social. A propriedade privada, a divisão e exploração do trabalho em benefícios de alguns indivíduos, a sociedade de classes, expõem as contradições desse processo. Nesse caso, a necessidade individual de apropriar-se do patrimônio histórico e superar as dificuldades sociais é efetuada tanto pelo processo social

quanto de aprendizagem-ensino-aprendizagem perante um conjunto de relações sociais. Isso pressupõe também um processo educacional que requer uma ação intencional e dirigida pela atividade de sujeito para sujeito, mediante a apresentação e explicitação de conhecimentos já apropriados, do estímulo à elaboração de perguntas e do pensar.

As mediações desse processo integram a práxis educacional possibilitando alargar o horizonte de reflexão dos sujeitos, possibilitando a criação de algo sempre novo frente aos desafios atuais e projetando um maior refinamento das faculdades humanas. Através da práxis social pode surgir uma série de objetivações concretas das atividades realizadas pela humanidade cotidianamente, que produzem sempre novas aprendizagens, habilidades, conhecimentos e valores. Lembrando que nem sempre esse processo ocorre de maneira contínua e satisfatória, pois envolve um conjunto de relações sociais articuladas a outros complexos sociais. Isso porque a educação é um pôr teleológico que se realiza de sujeito para sujeito, mediada por uma série de relações humanas.

Nesse sentido, o complexo da educação, determinado pela dinâmica do metabolismo social, fundado pelo Trabalho, avança se autorrealizando no cotidiano da humanidade, pois a aprendizagem do ser humano é constante, contínua e se vincula a outros complexos da práxis social, intimamente “ligados ao devir do homem socialmente efetuado do homem singular” (LUKÁCS, 2013, p. 295). Isso configura a educação no sentido lato de que as atividades, sejam elas produtivas ou ideológicas, possibilitam situações espontâneas de aprendizagem compondo o conjunto de conhecimentos, habilidades, valores inerentes ao gênero humano. Tomando por base as análises de Lukács (idem), elas assinalam o caráter universal da educação imanente ao processo de reprodução social, pois a educação no sentido lato jamais é totalmente concluída.


A educação do homem é direcionada para formar nele uma prontidão para decisões alternativas de determinado feitio; ao dizer isso, não temos em mente a educação no sentido mais estrito, conscientemente ativo, mas como totalidade de todas as influências exercidas sobre o novo homem em processo de formação. Por outro lado, a menor das crianças já reage à sua educação, tomada em sentido bem amplo, por seu turno igualmente com decisões alternativas, e a sua educação, a formação de seu caráter, é processo continuado das interações que se dão entre esses dois complexos (ibdem, p. 295).

Esse aspecto do complexo educativo revela sua função no processo sociorreprodutivo, evidencia que a educação é um processo continuado e de “formação dos cinco sentidos”, ao longo da vida, diria o jovem Marx (2010). A educação possibilita o refinamento e aprofunda as faculdades humanas, ainda que nela se desenvolvam desigualdades e contradições.

O desenvolvimento histórico das formações sociais está marcado pelo processo de produção dos meios de vida e, com efeito, produz a cultura no intercâmbio com a natureza e os indivíduos na sociedade. Esse desenvolvimento culminou na divisão social do trabalho, no aparecimento da propriedade privada, ocorrendo variadas contradições, na distinção entre homens que estavam livres do labor material e aqueles que eram forçados ao trabalho manual.

A separação em atividades manuais e intelectuais forneceu o caráter classista nas relações sociais, configurando o domínio do conhecimento mais sistemático e refinado às classes proprietárias em cada época histórica. A educação escolar vai se desenvolver como símbolo da classe dominante e, a partir dessas relações, se apoiará no saber sistematizado, na medida do tempo livre de trabalho laboral, articulado à domesticação de animais, à agricultura, à complexificação da produção e desenvolvimento das forças produtivas baseadas no trabalho, primeiramente no escravo, servil e, por fim, no trabalho assalariado, tornando-se determinantes na função social da escola (idem).

Através desse processo de complexificação e diferenciação nas relações sociais, simultaneamente, a Educação no sentido lato se tornara insuficiente aos interesses das classes dominantes, na medida em que o conhecimento stricto, sistemático, dos objetos e forças naturais passou a exercer um papel social para mediar e controlar o processo produtivo. A divisão do trabalho em profissões, por exemplo, apoiada no conhecimento stricto, faz com que as práticas educacionais se tornem mais sistemáticas. O conhecimento historicamente acumulado pela humanidade passa a ser transmitido pela escola. Nessa perspectiva, a educação stricta surge por força da divisão de classes e institui a escola como a esfera responsável pela transmissão do saber sistematizado (LIMA e JIMENEZ, 2011). Esse primeiro rompimento no complexo da educação é verificado quando o trabalho coletivo de caça e coleta nas sociedades primitivas é substituído pelo trabalho escravo, entre outros fatores.

A sociedade de classes, calcada na apropriação do trabalho e dos meios de produção, na exploração do homem pelo homem, promove também a distinção entre os saberes destinados à classe dominante e a instrução das classes exploradas. Isto é, para manter-se no controle da hierarquia social, a classe livre das atividades laborais apoia-se numa educação sistematizada a partir da evolução das técnicas, dos conhecimentos do meio, da elaboração de formas de controle e poder. Desse modo, as classes dominantes determinam uma educação rudimentar que assegure apenas o suficiente para a realização de alguns ofícios e a subordinação da classe ligada às atividades manuais.

A instituição escolar surgiu e se desenvolveu ligada ao modo de reprodução social em cada época histórica. A escola como símbolo da dominação e privilégio de uma parcela pequena de indivíduos realçou a função do conhecimento stricto aos destinados a governar. A origem da escola se relaciona com saber restrito a uma classe, ligada à propriedade privada e dispondo de tempo livre proporcionado pela exploração do trabalho alheio, conforme Saviani (2008), uma evidência histórica daqueles que se libertaram das atividades laborais e se tornaram dominantes na sociedade. Lembramos, contudo, que a escola não é a única esfera de transmissão do saber, uma vez que o conhecimento lato é formado mediante a constante interação dos indivíduos entre si e seus contatos com o meio natural e social ao longo da vida.

Nesse aspecto, a escola já nasce portadora de um dualismo educacional, como nos esclarece Santos (2005).


A escola passa a ser então o local ocupado por quem não precisa trabalhar para sobreviver, ou seja, pelos cidadãos ociosos que não se ocupam com a produção do trabalho. A educação escolar era oferecida aos senhores, por estes disporem de tempo livre para o exercício acadêmico do aprendizado. Para o trabalhador restava o trabalho e através deste o aprendizado na prática do dia a dia que rendia os conhecimentos necessários para melhorá-lo e aprimorá-lo p. 26).


Para o autor, a função social e trajetória da escola é instituída, inicialmente pelas classes dominantes, com finalidade de atender aos seus interesses. O contexto que envolve a escola, suas contradições, possibilidades revolucionárias e conservadoras, como instituição encarregada da transmissão do saber sistematizado, reflete os processos sociais dos quais ela faz parte.

Por sua vez, a sociedade de classes, da exploração do homem pelo homem,

promove também a distinção entre os saberes destinados à classe dominante e o que deve integrar a instrução das classes exploradas. Isto é, para manter-se no controle da hierarquia social, a classe que se apropriou privadamente dos meios de produção apoia-se numa educação sistematizada a partir da evolução das técnicas, dos conhecimentos do meio, da elaboração de formas de controle e poder. Desse modo, determina uma educação rudimentar voltada apenas o suficiente para a realização de alguns ofícios e à subordinação da classe ligada às atividades manuais às classes dominantes.

Através das reflexões desenvolvidas até o momento, percebemos que o dualismo marca a trajetória histórica da educação tendo a divisão do trabalho e sociedade de classes como alguns momentos determinantes. Para Saviani (2007),


a partir do escravismo antigo passaremos a ter duas modalidades distintas e separadas de educação: uma para a classe proprietária, identificada como a educação dos homens livres, e outra para a classe não proprietária, identificada como a educação dos escravos e serviçais. A primeira, centrada nas atividades intelectuais, na arte da palavra e nos exercícios físicos de caráter lúdico ou militar. E a segunda, assimilada ao próprio processo de trabalho (p. 155).


Nas comunidades primitivas, em que prevalecia o trabalho coletivo, não havia divisão de classes. Ao se tornarem mais complexas, tomando como exemplo as sociedades grega e romana, com nítida divisão entre trabalho manual e intelectual, desenvolveram uma educação dual, a partir do momento em que a aristocracia, proprietária de terras se apoiou no trabalho escravo para a produção da existência.

O interesse privado se sobrepôs ao coletivo provocando mudanças no que deveria ser ensinado a cada parcela da sociedade e em função dos interesses das classes dominantes. A educação escolar, apropriando-se do conhecimento elaborado sistematicamente, passou a organizar a transmissão desse saber desenvolvendo elementos próprios da forma escolar. Enquanto isso, a classe explorada, alijada da escola, apropriava-se do saber prático, ligado ao processo de trabalho e às situações cotidianas.

Com o aparecimento da sociedade de classes, a tônica do ideal educativo se voltava para os fins estabelecidos pela classe proprietária. Segundo indica Ponce (2010, p. 37), nesse contexto educativo prevalecia “a inculcação da ideia de que as classes dominantes só pretendem assegurar a vida das dominadas, e a vigilância atenta para extirpar e corrigir qualquer movimento de protesto da parte dos oprimidos”.

A separação das classes provocou uma fratura também no campo das ideias, a fim de preservar a hierarquia social dos privilegiados sobre os trabalhadores manuais. O conhecimento já não podia ser ensinado livremente a todos e ainda estava a serviço da manutenção das desigualdades sociais, explicando à massa trabalhadora que essa desigualdade educacional era natural, pertencente aos destinados a governar.

Com o trabalho dividido socialmente, surgem as diferenciações que germinam da práxis social, onde a função da propriedade privada se torna hegemônica. Esse processo também incide sobre o controle das técnicas produtivas envolvidas no processo de trabalho, diferenciadoras dos que deveriam atuar em atividades que exigiam maior esforço físico e daqueles que exerciam funções de planejamento, administração e controle, isto é, atividades intelectuais. É a propriedade privada a base de poder e controle de um grupo de indivíduos sobre outros, perfazendo a hierarquização social. Funções diferenciadas exigiam, da mesma forma, habilidades distintas e estas eram adquiridas através de processos educativos cada vez mais direcionados às atividades produtivas que cada indivíduo ou grupo deveria exercer.

A sociedade de classes, calcada na apropriação do trabalho e nos meios de produção, na exploração do homem pelo homem, promove também a distinção entre os saberes destinados à classe dominante e a instrução das classes exploradas. Isto é, para manter-se no controle da hierarquia social, a classe proprietária se apoia numa educação sistematizada a partir da evolução das técnicas, dos conhecimentos do meio, da elaboração de formas de controle e de poder. Desse modo, as classes proprietárias, economicamente dominantes, determinam uma educação institucionalizada, controlando a produção do saber que assegure seu status quo, por um lado, por outro, o acesso à escola para massas trabalhadoras é um fenômeno histórico recente em nossa história.

Após a revolução industrial, a dualidade educacional também é transformada em função das novas demandas produtivas. A divisão lato versus restrita, não atendiam as necessidades de formar o trabalhador para o manuseio do maquinário. Foi nessas condições que a educação restrita se divide numa dicotomia configurada pela separação e oposição entre um ensino propedêutico para a classe dominante e um ensino profissionalizante para a classe trabalhadora. O saber apenas para realização de alguns ofícios, subordinado à classe ligada às atividades manuais, tornou-se insuficiente para a classe burguesa em ascensão. Com isso, teríamos uma

dicotomia por dentro da dualidade. Uma primeira divisão entre trabalho manual e intelectual produziu uma dualidade cujo saber era destinado aos privilegiados, próprio de uma sociedade dividida em classes. Para atender às necessidades produtivas promovidas pela industrialização era preciso possibilitar que mais grupos sociais tivessem acesso a conhecimento, porém não o conhecimento que possibilitasse ao trabalhador exercer funções de governo tanto quanto um burguês.

Na sociedade capitalista, a esfera do trabalho passou por profundas transformações. A introdução de máquinas no processo produtivo, o mercado como fim último da produção e das relações que buscam o lucro, a ascensão burguesa como classe dominante e o surgimento do proletariado produziram novas demandas sociais. As lutas políticas entre as classes sociais e a separação entre trabalho manual e intelectual ganhou uma nova forma em meio a industrialização. Esse processo também alterou as relações sociais no meio educativo e a escola passou a assumir novas funções.

A dicotomia educativa, propedêutico versus profissionalizante, por dentro da esfera restricta veio reforçar a dualidade que opõe as classes sociais no âmbito da educação escolar. Uma educação propedêutica para a classe proprietária dominante e outra profissionalizante para os trabalhadores. Essa nova separação na esfera educacional ocorre no conjunto das transformações promovidas pela sociedade burguesa industrializada. Nesse processo, a escola assumiu o papel de educadora oficial do Estado, absorvendo demandas sociais das classes em luta, tendo a classe dominante exercido papel preponderante para encaminhar processos educativos atrelados às suas necessidades sociorreprodutivas.

A educação no horizonte do Movimento de Educação para Todos (UNESCO- ONU, FMI, Banco Mundial), coordenado por Jacques Delors, financiado pelo capital, na “Educação ao longo da vida”, reforça ainda mais o viés dicotômico, unilateral do processo educativo. Enquanto Marx se refere à educação dos cinco sentidos, isto é, uma educação omnilateral, a proposta adotada pelos organismos internacionais multilaterais está atrelada a uma dualidade educacional que reforça a unilateralidade, que se viabilizou nas instituições escolares a reboque das políticas neoliberais, e está assentada no paradigma da pós-modernidade. É uma educação para todos os pobres dos países pobres cujo teto educativo é o ensino básico, preferivelmente profissionalizante no nível médio da escolaridade. Isso condiz com a unilateralidade

do processo educativo, amparada pelo processo de divisão social do trabalho, manual versus intelectual, e seu antagonismo de classes. As instituições escolares que brotaram nele aprofundaram e avançaram no conhecimento stricto, mas também reforçaram ser ela voltada ao domínio de classe.


Considerações finais


Para encerramos nossas reflexões, sem esgotarmos o debate – resgatamos sinteticamente a necessidade de considerar a educação como complexo fundado e reproduzido através do Trabalho. Processo que é fundamental para que a humanidade continue seu processo de desenvolvimento mediante as necessidades que se impõem. Entretanto, ressaltamos também o vínculo ontológico que a educação mantém com o complexo do trabalho, cuja determinação dialética e reciprocidade influencia na produção e reprodução do saber.

Nesse processo de reflexão, procuramos demonstrar a relação entre trabalho e educação a partir dos pressupostos ontológicos da teoria de Marx, apoiada nas análises de Lukács. A esfera do ser social é consequência do salto ontológico dado pelo ser humano através do trabalho. Através do trabalho emergiu um novo metabolismo entre homem e natureza que se desdobra num processo constante e contínuo de sociabilidade, fundando novas relações, possibilitando o afastamento das barreiras naturais, sem, contudo, eliminá-las. Esse metabolismo permite ao ser humano social desenvolver novas esferas para garantir sua sobrevivência, a reprodução social de uma práxis social, combinando objetividade e subjetividade na criação de algo novo.

De forma geral, procuramos evidenciar importantes apontamentos, sobre o que cerca a categoria trabalho em Karl Marx, os elementos centrais do complexo que funda o ser social e a forma manifestada na sociedade capitalista. Percebemos o quanto difícil é abordar tal categoria em virtude dos pressupostos e interpretações polêmicas e controversas que ela desperta. O caminho seguido foi balizado pela leitura de autores mais experientes que esboçam maior envergadura nos vários embates já travados nos estudos da obra clássica de Marx. Por isso, longe de esgotar os debates, este trabalho nos ajudou a compreender melhor as nuances do objeto,

sua imprescindível importância, quando se nega que trabalho é uma categoria superada no atual quadro da análise societal.

O resgate ontológico do trabalho, como fio-condutor do processo de autoconstrução do homem, deve ser pautado por uma perspectiva crítica e radicalmente emancipada das concepções burguesas que em si garantem a reprodução do capital. É pela centralidade do trabalho, na perspectiva ontológica, que se situa a natureza e função social da educação. Cabe a ela, enquanto práxis, a tarefa de permitir aos indivíduos a apropriação dos conhecimentos, habilidades, práticas e valores necessários para se tornarem membros do gênero humano. Nesse sentido, a educação, assim como outros complexos, está inserida na realidade social, compondo o quadro da totalidade, para cumprir necessidades humanas estabelecidas.

Como complexo da formação humana que se relaciona com o complexo do trabalho, com a totalidade social e com a esfera do conhecimento, a educação é formadora da individualidade, entretanto, ela é cercada de uma trama social que envolve as mediações historicamente desenvolvidas pelo conjunto da humanidade. As mediações da práxis educacional caracterizam-se por alargar o horizonte de reflexão dos sujeitos, possibilitando a criação de algo sempre novo frente aos desafios atuais, projetando um maior refinamento das faculdades humanas.


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V.18, nº 37, set-dez (2020) ISSN: 1808-799 X


LA FORMATION PROFESSIONNELLE EN FRANCE: ASPECTS HISTORIQUES, CHOIX POLITIQUES, TRADUCTIONS JURIDIQUES ET METHODOLOGIQUES1


Catherine Guillaumin2


Résumé

Cet article porte sur la formation professionnelle en France et donne les informations nécessaires à la compréhension actuelle du système dans ses dimensions historiques et institutionnelles. Un ensemble de textes organise les parcours professionnels initiaux et continus dans un cadre national valorisant l’alternance et ayant pour finalité l’insertion professionnelle, le maintien en emploi, la réorientation professionnelle, l’autonomie des personnes. Cet outil majeur à la disposition de tous révèle des zones d’ombre et des insuffisances que tentent de pallier des réformes successives.

Mots clés: Enseignement professionnel; formation continue; programme de travail et d'études; alternance


FORMAÇÃO PROFISSIONAL NA FRANÇA: ASPECTOS HISTORICOS, ESCOLHAS POLITICAS, TRADUÇÕES JURIDICAS E METODOLOGICAS

Resumo

Este artigo trata da formação profissional na França e fornece as informações necessárias para uma compreensão atual do sistema em suas dimensões históricas e institucionais. Um conjunto de textos organiza as trajetórias de carreira inicial e contínua em uma estrutura nacional, promovendo o estudo do trabalho e com o objetivo de integração profissional, retenção de empregos, reorientação profissional, autonomia pessoal. Essa ferramenta importante, disponível para todos, revela áreas cinzentas e deficiências que as reformas sucessivas estão tentando superar.

Palavras-chave: Educação profissional; educação continuada; programa de trabalho e estudo; alternância


FORMACIÓN PROFESIONAL EN FRANCIA: ASPECTOS HISTÓRICOS, OPCIONES POLÍTICAS, TRADUCCIONES LEGALES Y METODOLÓGICAS

Resumen

Este artículo trata de la formación profesional en Francia y proporciona la información necesaria para una comprensión actual del sistema en sus dimensiones histórica e institucional. Un conjunto de textos organiza las trayectorias de las carreras iniciales y continuas en una estructura nacional, promoviendo el estudio del trabajo y con el objetivo de la integración profesional, la retención laboral, la reorientación profesional, la autonomía personal. Esta importante herramienta, al alcance de todos, revela áreas grises y debilidades que las sucesivas reformas están tratando de superar.

Palabras clave: Educación profesional; Educación contínua; programa de trabajo y estudio; alternancia


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1Recebido em 15/05/2020. Primeira avaliação em 13/06/2020. Segunda avaliação em 30/06/2020. Aprovado em 26/08/2020. Publicado em 25/09/2020. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v18i37.46296

2 Docteur en Sciences de l’Education. Collaboratrice bénévole de l’Equipe de Recherche Education

Ethique Santé Agir ensemble et prendre soin EA 7505 de l’Université de Tours. Maître de Conférences (retraitée) de l’Université de Tours.France E-mail: catherine.guillaumin@univ-tours.fr

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Introduction


La loi pour une École de la confiance a été promulguée au Journal Officiel le 28 juillet 2019 : elle abaisse, à l'âge de 3 ans, pour tous les enfants, français et étrangers, l'instruction obligatoire. L’article 15 (qui entrera en vigueur à la rentrée 2020) de la loi concrétise un engagement gouvernemental de stratégie de lutte contre la pauvreté. Il prolonge l’instruction obligatoire par une obligation de formation pour tous les jeunes de 16 à 18 ans. Les parents peuvent choisir de scolariser leur enfant dans un établissement scolaire (public ou privé) ou bien assurer eux-mêmes cette instruction.

En France, la formation professionnelle articule historiquement une formation initiale, préparant notamment l’entrée sur le marché du travail, et une formation professionnelle continue destinée aux personnes déjà engagées dans la vie active ou qui s’y engagent. La fin des études initiales correspond conventionnellement à une interruption des études de plus d’un an : la distinction entre études initiales et formation continue dépend du moment auquel la formation intervient dans le parcours de la personne, et non du type de formation suivie.

A l’issue de la classe de 3ème après 9 ans d’études environ en primaire puis au collège, lorsque le jeune a environ 16 ans, trois filières sont proposées, la filière générale, la filière technologique et la filière professionnelle. Ces deux dernières constituent la voie professionnelle et délivrent des diplômes allant du Certificat d’Aptitude Professionnelle (CAP, niveau V, équivalent Cadre Européen des Certifications - EQF European Qualification Framework- CEC1) au titre d’ingénieur (niveau I, CEC 8) en passant par le Brevet de Technicien Supérieur (BTS, CEC 5).

La formation professionnelle est un processus d'acquisition de connaissances et de compétences requises dans des métiers spécifiques ou plus largement sur le marché de l'emploi. Ce processus peut débuter lors de la formation initiale et/ou se poursuivre en formation continue. Aujourd’hui, en France, 4 voies d’accès aux certifications sont instituées : formation initiale sous statut scolaire ou formation initiale sous statut d’apprentissage, formation continue et validation des acquis de l’expérience (Pair, C. 2003) (Breton, 2018).

Ainsi, le champ de la formation professionnelle se compose de deux ensembles relativement autonomes l’un envers l’autre : la formation initiale qui concerne les jeunes sous statut scolaire à temps plein et les apprentis et la formation professionnelle

continue qui concerne tous les individus ayant quitté ou terminé leur formation initiale ainsi que les adultes sur le marché du travail. L’état actuel est le résultat de transformations incessantes. Cette voie professionnelle, qui se distingue par son objectif d’insertion dans l’emploi, est confrontée aux changements économiques accélérés. Elle est tendue entre plusieurs finalités : adéquation entre formations et emplois et développement de l’autonomie des personnes favorisant l’insertion et la mobilité sociales.


La scolarisation de la voie professionnelle


Traditionnellement, le métier est appris de manière informelle : l’apprenti acquiert les compétences demandées, par la pratique auprès du maître et des compagnons, en observant et en participant à des tâches de plus en plus complexes. L’industrialisation transforme au cours du XIXème siècle la formation à l’emploi. La division des tâches ne nécessite pas davantage de savoirs que d’être capable d’écrire, lire et compter. L’encadrement est formé par les contremaîtres (anciens ouvriers particulièrement compétents) et les ingénieurs (issus d’une autre classe sociale et ayant reçu une formation technique supérieure) (Pair, 2003, pp. 174-178). De très nombreux auteurs (Prost, 1992, Brucy and Troger 2000, Lelièvre, 2004) s’accordent pour dire que le modèle scolaire caractérise et domine la formation professionnelle en France pendant une longue période. Ils situent le début de cette scolarisation de la formation professionnelle en 1880 lorsqu’après avoir achevé la constitution de l’enseignement élémentaire et sa laïcisation, les républicains promulguent une loi considérée comme l’origine de l’enseignement technique.

La loi Astier en 1919 institue le Certificat d’Aptitude Professionnelle (CAP) et pose les fondements de la formation professionnelle conçue comme vecteur de la promotion sociale (Pigassou, 2004). Cette loi est très importante au sens où elle est la première pierre de la Formation Tout au Long de la Vie (FTLV). Elle permet de certifier la qualification acquise et de construire un début de standardisation des critères de qualification à l’échelle nationale. Les apprentis obtiennent un temps de formation en dehors de l’entreprise, pendant le temps de travail. Brucy & Troger (2000) montrent que les employeurs des industries mécaniques profitent de cette opportunité pour ouvrir des écoles d’entreprises mais constatent que dans les autres domaines, les

initiatives sont rares. Les débats se multiplient car les orientations s’affrontent et se confrontent, soulignant tout à la fois, l’insuffisance de l’initiative patronale, la misère, le chômage tout autant que la nécessité de disposer d’une main d’œuvre de plus en plus qualifiée.

Dès la fin de la seconde guerre mondiale, la période dite des Trente glorieuses (1945-1975) bouscule le modèle antérieur sur fond de profondes évolutions technologiques, de demande de consommation, d’échanges internationaux. La libération est le moment où l’organisation des formations professionnelles scolarisée est stabilisée. Les Centres d’Apprentissage deviennent des Lycées Professionnels (LP). Ils sont destinés à la formation des ouvriers et des employés qualifiés. Ils deviennent ainsi les concurrents directs de l’apprentissage et des cours professionnels (Brucy & Troger, 2000), les collèges techniques prennent en 1959 le nom de Lycées Techniques et visent exclusivement la formation des techniciens. Leur formation n’a pas de visée professionnelle directe. Les instructions de 1946 précisent les finalités de la formation dispensée pour l’ensemble du territoire national. Le terme apprentissage est alors strictement circonscrit et caractérise une formation professionnelle assurée en totalité ou en partie au sein d’une entreprise. Brucy & Troger (2000, p. 15) montrent qu’entre 1945 et 1985, l’enseignement professionnel a connu un accroissement ininterrompu jusqu’à scolariser à la fin de cette période plus du tiers des lycéens ; l’enseignement technique a progressé mais de manière moins importante ; les effectifs de l’apprentissage sont faibles et ne progressent pas.

L’enseignement et la formation technique ou professionnelle se déroulent dans les établissements scolaires sans contact avec l’entreprise. Il y a cependant des exceptions, l’apprentissage tel que défini plus haut, mais aussi les formations médicales, paramédicales, sociales, celles des ingénieurs au cours desquelles les périodes en milieu professionnel sont intégrées dans la formation mais ne font pas l’objet d’une attention pédagogique particulière.


Transformations profondes et émergence de nouveaux paradigmes


L’élévation du niveau de formation fait dans les années 70-80 l’objet d’une convergence rare dans l’histoire (Pair, C. 2003) : les durées de formation augmentent tandis qu’apparaît une perte de la correspondance entre niveau de formation et niveau d’emploi.

Les lois de 1971


Chronologiquement les trois lois adoptées le 16 juillet 1971 en même temps que la loi Delors portant organisation de la formation professionnelle continue dans le cadre de l’éducation permanente constituent un moment essentiel et fondateur des transformations de la formation professionnelle.

La première loi concerne l’apprentissage. Celui-ci se constitue dès lors comme une voie de formation à part entière, avec une formation en Centre de Formation d’Apprentis (CFA) qui doit totaliser au moins 360 heures par an. Cette disposition selon Moreau (2003) fait glisser l’apprentissage, au sens strict des termes, de la formation pratique à l’alternance et construit une institutionnalisation de la formation professionnelle (Combes, 1986).

La deuxième loi concerne l’enseignement technologique et professionnel. Elle est, pour de nombreux auteurs, particulièrement importante. Appay (1992, p. 257-265) soutient qu’un verrou idéologique vient de sauter lors de l’introduction des séquences éducatives en entreprise mises en place en septembre 1979 dans les lycées professionnels. Progressivement localement sont rédigés des contrats liant les lycées professionnels et les entreprises. Le mouvement s’accélère avec en 1986 avec la création des baccalauréats professionnels qui introduisent des périodes de formation en entreprise entre 12 et 24 semaines sur 2 ans, obligatoires et dont l’évaluation est prise en compte pour l’obtention du diplôme. Celui-ci ouvre la voie de l’enseignement supérieur aux élèves issus de l’enseignement professionnel. Enfin la loi d’Orientation sur l’Education de 1989 fixe comme objectif national d’amener en 10 ans, 80 % d’une classe d’âge au baccalauréat. Elle précise que « les périodes de formation en entreprise sont obligatoires dans les enseignements conduisant un diplôme technologique ou professionnel (Guillaumin, 1997, p. 43) ». Dès 1992, le mot alternance sous statut scolaire est clairement énoncé dans les textes officiels organisant toutes les formations préparant au CAP, BEP, Bac Pro, BTS ... dans les lycées professionnels et technologiques.

La troisième loi porte sur la participation des employeurs au financement des premières formations technologiques et professionnelles.


Organismes, diplômes et qualifications professionnelles


Les organismes gestionnaires des Centres de Formation d'Apprentis sont des organismes privés (associations, entreprises, etc.), des Chambres de Métiers ou de Commerce et d'Industrie et des organismes publics (lycées, ...). Les ressources d'un Centre de Formation d'Apprentis dépendent essentiellement du versement de la taxe d'apprentissage. C’est la ressource principale à laquelle s’ajoutent la participation de l'organisme gestionnaire, les subventions de l'État ou de la région si la convention de création prévoit un financement. Les Centres de Formation d'Apprentis sont soumis au contrôle pédagogique de l'État, au contrôle technique et financier de la région. Les Etablissements Publics Locaux d'Enseignement (EPLE), c'est-à-dire les lycées professionnels et technologiques accueillent à la fois des élèves en formation professionnelle par alternance sous statut scolaire qui sont sous la responsabilité du chef d’établissement et également des apprentis au sein des Unités de Formation d'Apprentis (UFA) situées dans chaque établissement et réunis en un Centre de Formation d'Apprentis Académique ; les Universités ont des Centre de Formation d’Apprentis Universitaire. Les ministères de l'Education Nationale, de l'Enseignement Supérieur et de la Recherche encouragent le développement de la voie professionnelle, notamment en valorisant la voie par apprentissage dans les EPLE et en favorisant des parcours intégrant alternance par voie d’apprentissage et sous statut scolaire ou universitaire, au lycée et à l’Université. L'apprentissage permet de préparer les diplômes professionnels et technologiques de l'Education Nationale et universitaires : certificat d'aptitude professionnelle (CAP), brevet d'études professionnelles (BEP), baccalauréat professionnel, Brevet de Technicien Supérieur (BTS), Diplôme Universitaire de technologie (DUT), licence professionnelle, master. Les apprentis ont un statut de jeune travailleur salarié en entreprise, sous la responsabilité d'un maître d'apprentissage. Ils ont conclu un contrat de travail. Ils peuvent être accueillis dans la fonction publique. Les deux formes de contrat sont le contrat d’apprentissage et le contrat de professionnalisation qui permettent de concilier travail en entreprise et formation théorique, c'est-à-dire l’alternance entre pratique et théorie.

Le contrat d’apprentissage a pour but d’obtenir un diplôme CAP, BAC Pro, BTS, DUT, Licence, Master, ou un titre à finalité professionnelle inscrit au Répertoire National des Certifications Professionnelles (RNCP), regroupant l’ensemble des titres

professionnels relevant du ministère du Travail. Le contrat d’apprentissage s’adresse aux jeunes entre 16 et 29 ans révolus voire au-delà de 30 ans, si l’apprenti est reconnu comme travailleur handicapé ou s’il a un projet de création ou de reprise d’entreprise nécessitant le diplôme préparé. Il doit être reconnu apte à l'exercice du métier lors de la visite médicale d'embauche. Les jeunes âgés d'au moins 15 ans peuvent souscrire un contrat d'apprentissage s'ils ont accompli la scolarité du collège (de la 6e jusqu'en fin de 3e).

L'apprentissage prépare, aux métiers de l'alimentation, du commerce de détail, du bâtiment et des travaux publics, à des métiers qui relèvent de tous les autres secteurs d'activité : hôtellerie-tourisme, services à la personne, secteur automobile, électronique, etc. Le temps de formation dans un Centre de Formation d'Apprentis (CFA) est d'au moins 400 heures par an, 800 heures pour le Certificat d’Aptitude Professionnelle en deux ans, 1 850 heures pour le baccalauréat professionnel en trois ans. Ce temps est plus court que celui des formations dispensées dans les lycées professionnels ou technologiques mais il ne faut pas oublier que le temps passé en entreprise est aussi un temps de formation. Le CFA dispense les enseignements nécessaires pour préparer le diplôme prévu au contrat d'apprentissage. Les programmes de formation et les épreuves d'examen sont identiques pour les élèves et les apprentis préparant les mêmes diplômes. Au CFA, l'apprenti garde son statut de salarié. La période au CFA est donc rémunérée comme temps de travail. Il suit les enseignements prévus dans les programmes et les règlements d'examen. La formation de l'apprenti s'effectue également au sein de l'entreprise pour laquelle il travaille. L'apprenti est placé sous la responsabilité d'un maître d'apprentissage choisi en fonction de ses connaissances professionnelles.

Le contrat de professionnalisation a pour but d’acquérir une qualification professionnelle reconnue : un diplôme ou un titre professionnel enregistré dans le Répertoire National des Certifications Professionnelles, un Certificat de Qualification Professionnelle (CQP), une qualification reconnue dans les classifications d’une convention collective nationale. Le contrat de professionnalisation est un contrat de travail en alternance entre un employeur du secteur privé et un salarié répondant à certains critères qui permet d'associer l'acquisition d'un savoir théorique en cours (enseignement général, professionnel ou technologique) et d'un savoir-faire pratique au sein d'une ou plusieurs entreprises. Le contrat doit être écrit et être un Contrat de

travail à Durée Déterminée (CDD) ou un Contrat de travail à Durée Indéterminée (CDI). Le salarié bénéficie du soutien d'un tuteur. Le contrat s’adresse aux personnes âgées de 16 à 25 ans, aux demandeurs d’emploi de 26 ans et plus, aux personnes bénéficiaires du Revenu de Solidarité Active (RSA), de l’Allocation Spécifique de Solidarité (ASS), l’Allocation Adulte Handicapé (AAH) ou ayant bénéficié d’un Contrat Unique d’Insertion (CUI).


La formation continue et les dispositifs associés


La formation professionnelle continue est un outil majeur à la disposition de tous les actifs : salariés, indépendants, chefs d’entreprise ou demandeurs d’emploi. Elle permet de se former tout au long de son parcours professionnel, pour développer ses compétences et accéder à l’emploi, se maintenir dans l’emploi ou encore changer d’emploi. Des dispositifs permettent la reconnaissance des acquis pédagogiques ou professionnels autorisant l’accès à une formation ou à certaines dispenses. Toutes ces formations relèvent de la pédagogie de l’alternance. Différentes catégories d’actions concourent au développement des compétences :

la légitimation de la voie de l’expérience, comme modalité d’accès à parité avec la formation formelle (Breton, 2018, p. 62) ». L’auteur (Breton, 2018) situe l’émergence du nouveau paradigme de l’Education et de la Formation tout au long de la vie au moment de la communication par la Commission des communautés européennes du 21 novembre 2001.


« (…) les publications successives des Lignes directrices européennes pour la validation des acquis non formels et informels par le Centre européen pour le développement de la formation professionnelle (CEDEFOP) ont ensuite contribué à traduire en dispositifs une politique fondée sur une logique de parité entre les formes d’apprentissage dits formel, informel et non formel. Au même moment est crée la Commission Nationale de Certification Professionnelle (CNCP) dont l’une des missions est de gérer le Registre National des Certifications Professionnelles (RNCP) (BRETON, 2018, p. 64)»


Les certifications professionnelles désignent les diplômes et titres à finalité professionnelle, certificats de qualification professionnelle (CQP), blocs de compétences, certificats ou habilitations, délivrés par une autorité compétente après vérification des compétences ou connaissances d'une personne, enregistrés au répertoire national des certifications professionnelles ou au répertoire spécifique. Elles ne doivent pas être confondues avec les notions de formations et de qualifications. Elles visent à sécuriser les parcours professionnels, en permettant une reconnaissance des compétences de la personne. Breton (2018, p. 63) reprenant Maillard (2016, p. 9) relève le paradoxe que constitue cette alternative où dans « un espace d’activités sociales foisonnant » à savoir le monde de la certification française, cette nouvelle voie d’accès crée des dispositifs visant à l’ordonner et le rendre lisible. La très grande originalité de cette voie nouvelle (Breton, 2018, p. 62) « est d’instituer dans la loi la possibilité de faire valider des savoirs non acquis en contexte formel (tels qu’écoles ou organismes de formation)». Il a donc fallu produire un énorme travail de définition « de ce que sont des acquis expérientiels, de leurs modes de manifestation dans un parcours et une pratique professionnelle, et des critères permettant de les évaluer (Breton, 2018, p. 64)». Au-delà de ce travail, la question pédagogique de l’alternance entre pratique et théorie reste centrale.

Et aujourd’hui où en sommes nous ?


Dresser un bilan du travail réglementaire accompli est particulièrement complexe. Il permet cependant de mettre en évidence les avancées autorisant des pédagogies novatrices et inventives concernant la formation professionnelle initiale et continue mais laisse apparaître des zones d’ombre, des insuffisances qui soulèvent des questions centrales portant sur le droit à la formation pour tous.


Un cadre législatif favorable et cohérent


Comme nous l’avons décrit précédemment, la formation professionnelle initiale et continue est instituée. Elle est reconnue comme un outil majeur à la disposition de tous jeunes et actifs : salariés, indépendants, chefs d’entreprise ou demandeurs d’emploi. Elle permet de se former tout au long de son parcours initial et professionnel, pour développer ses compétences et accéder à l’emploi, se maintenir dans l’emploi ou encore changer d’emploi. Les dispositifs sont pluriels et la loi sur la Validation des Acquis de l’Expérience a enrichi un ensemble de mesures favorisant le développement des compétences des individus. L’alternance et l’apprentissage sont reconnus et valorisés dans les différents parcours de formation.


Zones d’ombre et insuffisances


Cependant, les différentes statistiques montrent une insertion difficile des jeunes, un accès à la formation continue différencié selon les catégories socioprofessionnelles. Bernard, Minni, Testas (2018) montrent que « les poursuites d’études sont plus fréquentes mais que l’insertion professionnelle est toujours difficile pour les moins diplômés ». Les auteurs mettent en évidence qu’en 2015-2016, 46 % des jeunes âgés de 14 à 29 ans sont scolarisés (élèves, étudiants ou apprentis). La part de bacheliers dans une génération a progressé et les nombres d’inscrits et de diplômes délivrés dans l’enseignement supérieur se sont aussi tendanciellement accrus. Depuis 2008, les effectifs d’apprentis ont diminué dans l’enseignement secondaire, mais ont continué d’augmenter dans le supérieur ; l’apprentissage concerne aujourd’hui près de 5 % de l’ensemble des jeunes de 16 à 25 ans.

En 2016, 9 % des jeunes de 18 à 24 ans sont considérés comme sortants précoces du système scolaire: ils possèdent au plus le brevet des collèges et ne suivent pas de formation. L’insertion des jeunes sur le marché du travail s’étale entre 1 à 4 ans avec un fort taux de chômage (19,8 % des actifs en 2016). Les jeunes en emploi récemment sortis des études sont plus souvent en sous-emploi ou en emploi à durée limitée et, bien que plus diplômés, perçoivent des salaires moins élevés.


Une situation en fait paradoxale


La formation professionnelle continue est un moyen d’améliorer sa situation au regard de l’emploi. De plus en plus de diplômes sont délivrés dans le cadre de la formation continue. En 2016, deux personnes de 18 à 64 ans sorties de formation initiale sur cinq ont suivi dans l’année au moins une formation à but professionnel. Cependant, l’accès à la formation, professionnelle continue ou à la formation non formelle à but professionnel, demeure différencié. Ainsi, les cadres, les plus diplômés, les personnes d’âges intermédiaires et les salariés des grandes entreprises se forment davantage que les autres (Gaini, 2018).

Des lois récentes comme celle du 5 septembre 2018 Pour la liberté de choisir son avenir professionnel modifient en profondeur la gouvernance et le financement du système de formation professionnelle français avec la création de France compétences associée à une réforme du financement de la formation professionnelle et de l’apprentissage qui bouscule en profondeur le système antérieur. Ce mouvement se caractérise par la libéralisation du marché à l’ensemble des organismes de formation qui souhaitent dispenser des actions de formation par apprentissage et pour lesquelles un niveau de financement pour chaque contrat sera assuré. L’État reste le garant de la bonne utilisation des fonds publics et des fonds mutualisés dédiés à la formation professionnelle.

Conclusion


Ces réformes incessantes de la formation professionnelle sont à l’origine de nombreuses réflexions. L’appel à communication du Réseau des Universités préparant aux Métiers de la Formation (RUMEF colloque du 18-20 mars 2020) propose une synthèse actualisée des problématiques. Ainsi les coordonnateurs scientifiques de ce colloque rappellent que


« (…) depuis 2000, ce sont ainsi pas moins de quatre accords nationaux interprofessionnels entre 2003 et 2017 et cinq lois entre 2002 et 2018 qui ont vu le jour, proposant, peu ou prou, de rompre avec le passé, chacun de ces accords et lois étant opportunément précédé ou accompagné de rapports invitant à en finir avec ce « système à la dérive » et ses « réformes inabouties ». Ce mouvement de « réforme » s’est accompagné de la création régulière de dispositifs et de mesures tant pour les salariés que pour les demandeurs d’emploi et les moins de 26 ans. Accompagnées d’une sémantique de la liberté du choix, de l’autonomie, les mesures inscrites dans la dernière loi en date ne portent pas uniquement sur la formation continue, mais également l’apprentissage et l’assurance-chômage et redistribuent les activités entre les acteurs, dans une logique de compétences et moins de formation. (…) (RUMEF, 2020)».


Ainsi, au fil des années, des avancées considérables ont été construites permettant entre autres la reconnaissance des acquis formels et informels. Néanmoins de larges zones d’ombre subsistent telles celles propres à la formation, à l’insertion, à la reconversion des plus fragiles, à l’accompagnement au développement de l’autonomie des individus, largement sollicitée dans toutes les formes d’emploi. La réflexion associée à la pédagogie de l’alternance, à la formation des formateurs et pédagogues, constitue à ce titre une opportunité, non pas pour résoudre mais tout au moins pour inventer des réponses pédagogiques plurielles afin de mieux répondre aux besoins des laissés-pour-compte de la formation.


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V.18, nº 37, set-dez (2020) ISSN: 1808-799 X


RECONHECIMENTO DE SABERES E COMPETÊNCIAS: GÊNESE E REPERCUSSÕES SOBRE O TRABALHO E A CARREIRA DOCENTES1


Ecléa Vanessa Canei Baccin2 Eneida Oto Shiroma3


Resumo

O Reconhecimento de Saberes e Competências (RSC) visa à concessão de uma equivalência à Retribuição por Titulação para fins de remuneração dos docentes do magistério do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico. Com base no método materialista histórico, analisamos documentos e entrevistas para resgatar o processo histórico de criação do RSC, focando na resistência e nos conflitos entre governos e sindicatos. Mais que um mecanismo de certificação de práticas docentes, o RSC é um dispositivo político que tende a desmobilizar a categoria docente e a institucionalizar a quebra da isonomia salarial.

Palavras-chave: Trabalho e Educação; Lutas docentes; Carreira Docente; Reconhecimento de Saberes e Competências (RSC); Ensino Básico, Técnico e Tecnológico (EBTT).


RECONOCIMIENTO DE SABERES Y COMPETENCIAS: GÉNESIS

Y SUS REPERCUSIONES SOBRE EL TRABAJO Y LA CARRERA DOCENTES

Resumen

El Reconocimiento de Saberes y Competencias (RSC) pretende otorgar equivalencia a la Retribución por Grado para retribuir al profesorado en la docencia de Educación Básica, Técnica y Tecnológica. Con base en el método materialista histórico, analizamos documentos y entrevistas para rescatar el proceso histórico de creación de la RSC, enfocándonos en resistencias y conflictos entre gobiernos y sindicatos. Más que un mecanismo de certificación de prácticas, el RSC es un dispositivo político que tiende a desmovilizar la categoría docente e institucionalizar la quiebra de la isonomía salarial. Palabras clave: Trabajo y Educación; Luchas docentes; Carrera Docente; Reconocimiento de Saberes y Competencias (RSC); Enseñanza Básica Técnica y Tecnológica (EBTT).


RECOGNITION OF KNOWLEDGE AND SKILLS RECOGNITION: GENESIS AND ITS REPERCUSSIONS ON TEACHING WORK AND CAREER

Abstract

The Knowledge And Skills Recognition (RSC) aims to offer an equivalent of the Retribution by Qualification in order to define the EBTT´s teachers remuneration. Based on the historical materialist method, we used document analysis and interviews to retrieve the historical process of creation of the RSC, focusing on the resistance and conflicts between the government and teachers' unions. Beyond teachers´ practices certification, RSC is a political tool to demobilize teachers' ranks and break the wage isonomy.

Keywords: Work and Education; Teachers' struggles; Teaching career; Recognition of Knowledge and Competencies; Basic Technical and Technological Education.


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1Artigo recebido em 19/05/2020. Primeira avaliação em 04/06/2020. Segunda avaliação em 16/06/2020. Aprovado em 12/08/2020. Publicado em 25/09/2020. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v18i37.46297.

2Doutora em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professora de Educação Física

na rede municipal de ensino de Florianópolis/Santa Catarina - Brasil. E-mail: ecleavanessa@gmail.com; ORCID: 0000-0001-5142-8152; Lattes: http://lattes.cnpq.br/2778586906795861

3 Doutora em Educação pela UNICAMP. Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) - Brasil. E-mail: eneida.shiroma@ufsc.br;

ORCID: 0000-0002-0506-7058; Lattes: http://lattes.cnpq.br/8001069292975491.

Introdução


Reformas de corte gerencialista que objetivavam limitar e controlar os gastos públicos atingiram o campo educacional sobremaneira nos anos de 1990, ao implementar ações de racionalização nas áreas sociais. Neste contexto, um conjunto de diretrizes e programas coordenados foram lançados para gerar economia, pretendendo não apenas “fazer mais com menos”, mas disseminar — por meio da reforma do aparelho de Estado de meados desta década — conceitos como “serviços não exclusivos” do Estado e “público não estatal”, que viabilizaram, anos mais tarde, a gestão privada de instituições públicas e a prospecção da educação pública como espaço de valorização do valor. Visando saciar a voracidade do capital em se apropriar do fundo público, a economia de gastos com a força de trabalho docente assume um papel estratégico. Acompanhando o movimento global, no Brasil, os governos implantaram reformas contemplando ora mais, ora menos, as políticas sociais, mas promovendo ajustes norteados pelos interesses do capital financeiro em escala global, processo referido como “financeirização da economia” (CARCANHOLO, 2014; LUPATINI, 2012; MARX, 1991). Tal conceito, segundo Seki, tem como


principal marca distintiva a liberalização da circulação mundial de capitais, derrubando as barreiras internas ou nacionais para o livre trânsito de capitais, seja sob a forma monetária ou da mercadoria – entre as quais, a força de trabalho. “Portanto, parcelas crescentes de capitais passaram a se apresentar sob forma monetária, concentrando grandes operações de investimentos, marcadas por relativa autonomia no que diz respeito aos setores produtivos” (MANCEBO; JÚNIOR; SCHUGURENSKY, 2016 apud SEKI, 2017, p. 6).


Por certo, esses processos acirram as contradições entre capital e trabalho, aceleram as expropriações primárias e secundárias (FONTES, 2010), e produzem um crescimento exponencial do desemprego e difusas formas de precarização do trabalho (ANTUNES, 2018). É no bojo dessas transformações que situamos as reformas endereçadas aos servidores públicos, difamados pelo discurso oficial como trabalhadores privilegiados e, portanto, responsabilizados pelo crescimento da dívida pública e pela crise econômica.

O fato é que, desfrutando de aparelhos privados de hegemonia, a “nova direita” (CASIMIRO, 2018) difunde concepções como estas pela mídia e pelas redes sociais como forma de atribuir a dívida pública ao gasto com os servidores, ocultando a recorrente emissão de títulos feita pelo Estado brasileiro e alimentando o mercado financeiro. A intenção é clara: forjar a opinião pública contra os servidores públicos, induzindo a sociedade a acreditar que, retirando direitos desses trabalhadores, o gasto público será reduzido e a economia florescerá. Nesse ínterim, na batalha das narrativas, os governos e apoiadores valem-se de dados selecionados para produzir sentidos e inventar explicações que justifiquem as privatizações, a reforma da previdência, entre outras, como se fosse alternativa para a crise brasileira.

Interessadas por esses processos, nosso recorte, neste artigo, trata das suas implicações sobre os professores do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico (EBTT) da rede federal. A expansão dos campi dos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IFs) ocorrida nos governos Lula e Dilma demandou a contratação de um contingente maior de professores, o que acarretou um aumento da folha de pagamento. Na análise que fez sobre a eficiência do gasto público do Brasil, o Banco Mundial viu tal aumento como preocupante e sugeriu uma revisão das despesas e um “ajuste justo” (BANCO MUNDIAL, 2017).

Em 2012, após longa greve do magistério federal, o governo propôs aos docentes do EBTT o Reconhecimento de Saberes e Competências (RSC), possibilitando que tivessem aumento salarial mesmo sem progressão na carreira. Essa medida gerou polêmicas, pois se de um lado, atende à demanda dos professores de melhoria salarial, de outro, contraditoriamente, cria segmentações na categoria docente que comprometem a estruturação da carreira e as suas lutas. Também não há garantias orçamentárias que assegurem o RSC de forma permanente, e não como uma medida efêmera. Sua continuidade inclusive fica comprometida pelos ajustes adotados pelo Estado brasileiro, como a Emenda Constitucional nº 95/2016 (BRASIL, 2016b), aprovada no governo Temer (2016 - 2018), que institui o novo regime fiscal com o congelamento do teto de gastos com saúde e educação por 20 anos.

Com o propósito de aprofundar essa discussão, o presente artigo tem o objetivo de pesquisar a gênese do RSC, suas repercussões sobre o trabalho e a

carreira docentes do EBTT, tendo em vista compreender os determinantes de sua implantação nessa conjuntura de finança mundializada. Essas análises decorrem de uma pesquisa fundamentada no Materialismo Histórico-Dialético, que sustenta uma visão política e social centrada no compromisso com a transformação das forças de exploração produzidas pela produção e reprodução ampliada do capital. Pretendemos alcançar as determinações do RSC, a fim de compreender os interesses que fundamentaram sua elaboração e, para tal, analisamos a conjuntura econômica e política na qual a reestruturação da carreira está inserida. Nessa perspectiva é que discutiremos o RSC concebido no bojo de um conjunto de reformas mais amplas que atingem o serviço público, como também parte da classe trabalhadora que tem seus direitos aviltados pelo capital.

No que tange aos procedimentos metodológicos, analisamos documentos governamentais da rede federal, planos de carreira do EBTT e entrevistas semiestruturadas realizadas com três dirigentes sindicais. Os entrevistados foram selecionados por meio de uma amostra intencional, tendo por critérios de escolha sindicalistas que exerceram cargos de direção no período que antecedeu a aprovação do RSC e que se encontravam atuantes em 2017, quando coletamos os dados. Tais procedimentos foram realizados com o intuito de conhecer a gênese do RSC, as disputas que marcaram o processo de formulação e implantação desse dispositivo e diagnosticar seus impactos na reestruturação da carreira e do trabalho dos docentes.

Neste artigo4, recuperamos, brevemente, a história da rede federal até a formação dos IFs, para contextualizar a (re) estruturação da carreira do magistério do EBTT. Tratamos da greve do magistério federal de 2012 e dos embates em torno do RSC, procurando relacionar essa pretensa política de valorização desta classe com a “grande política”, em sentido gramsciano, na tentativa de evidenciar suas contradições e o papel importante na produção do consentimento ativo dos docentes.


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4 Resulta da tese de doutorado intitulada Reconhecimento de Saberes e Competências no Ensino Básico Técnico e Tecnológico: impactos sobre a carreira e o trabalho docente, defendida em 2018 pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

Antecedentes do RSC na rede federal de ensino


A origem da Rede Federal de Educação Profissional remonta ao início do século passado, quando o governo de Nilo Peçanha criou, em 1909, as Escolas de Aprendizes Artífices como resposta aos desafios de ordem econômica e política. Somente no ano de 1959, as Escolas Industriais e Técnicas passaram à categoria de autarquias e foram denominadas Escolas Técnicas Federais e, em 1978, transformadas em Centros Federais de Educação Tecnológica (CEFETs). Ao longo desse processo, docentes passaram a atuar também no ensino superior e conquistaram um plano de carreira em 1970, que passou por atualizações em 1987 e 2008.

Nesse sentido, as pesquisas acerca da Educação Profissional e Tecnológica (EPT) apontam um reordenamento e uma expansão da rede federal em função das demandas do sistema produtivo, que visa preparar a força de trabalho requerida pelo mercado. Assim, com a aprovação da Lei nº 11.892, de 29 de dezembro de 2008 (BRASIL, 2008b), foram formados 38 IFs, criados pela agregação e reorganização de antigas instituições de educação profissional. Como consequência, neste contexto, foram gestadas políticas que visavam modificar a carreira e o trabalho docentes.

Ainda do ponto de vista das regulamentações, o dispositivo legal que promoveu melhorias no plano de carreira foi o Decreto nº 94.664, de 23 de julho de 1987. Tal regulamento instituiu o Plano Único de Classificação e Retribuição de Cargos e Empregos (PUCRCE) e


assegurava para os técnicos-administrativos e para os docentes a isonomia salarial e a uniformidade de critérios tanto para ingresso mediante concurso público de provas, ou de provas e títulos, quanto para a promoção e ascensão funcional, com valorização do desempenho e da titulação do servidor (DOMINIK, 2017, p. 59).


O decreto incluía as instituições de ensino superior e também os professores, à época, de 1° e 2° graus, da rede federal de ensino. Desse modo, na carreira de 1987, foi acrescida a dedicação exclusiva.

Com relação à carreira destes professores, a aprovação da Lei nº 11.344, de 8 de setembro de 2006, a estruturou em cinco classes, que compreendiam quatro níveis cada, com exceção da Classe Especial, que possuía apenas um nível. A

titulação mínima requerida para ingresso na carreira foi então elevada para Licenciatura Plena ou habilitação legal. A progressão ocorria com interstício de 24 (vinte e quatro) meses, mediante avaliação de desempenho do docente ou, por titulação, a qualquer momento.

Dois anos depois, foi sancionada a Lei nº 11.784, de 22 de setembro de 2008, instituindo a carreira do magistério do EBTT como uma substituição à carreira de 1º e 2º graus. Os professores foram a partir disso induzidos a optar pelo novo enquadramento, pois se permanecessem na “antiga” carreira, poderiam não receber reajuste de benefícios ou aumento salarial. Foi assim criada a Gratificação Específica de Atividade Docente do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico (GEDBT)5. A progressão passou a ter o interstício de 18 (dezoito) meses de efetivo exercício, pelo professor, no nível respectivo.

A carreira do EBTT foi instituída para acompanhar e regulamentar a ampliação das funções docentes que já ocorria em alguns CEFETs, configurando- se como uma decisão governamental de manter a cisão entre as carreiras do magistério federal do ensino superior e da educação básica. Contudo, no que tange à estrutura e ao salário, essa reorganização aproximou a carreira do EBTT à do magistério superior.

No governo Dilma Rousseff (2011-2016), foi aprovada a Lei nº 12.772, de 28 de setembro de 2012 (BRASIL, 2012a), que instituiu o RSC, regulamentado por meio da Resolução nº 1, de 20 de fevereiro de 2014. (BRASIL, 2014). Nela, foram estabelecidos os pressupostos, as diretrizes e os procedimentos para a sua concessão. A proposta, segundo esta resolução, constitui-se em um mecanismo de validação de experiências para os docentes em exercício, realizada por meio de um processo avaliativo. O Art. 18 da referida lei regulamenta a equivalência do RSC com a titulação acadêmica, exclusivamente para fins de percepção remuneratória, que ocorre da seguinte forma: I - diploma de graduação somado ao RSC-I equivalerá à titulação de especialização; II - certificado de pós-graduação lato sensu somado ao RSC-II equivalerá a mestrado; e III - titulação de mestre somada ao RSC-III equivalerá a doutorado (BRASIL, 2012a)6.



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5 A partir de 1o de março de 2012, o valor referente à GEDBT ficou incorporado à Tabela de Vencimento Básico (incluído pela Lei nº 12.702, de 2012).

6 Observe-se que o docente que já possua o título de doutor não está contemplado nesta lei.

Ao que tudo indica, ela seria benéfica para os docentes. Mas quais foram as motivações para a sua criação? Aparentemente, ela favorece o aumento salarial mesmo sem aquisição da titulação definida no plano de carreira7. E quais foram as implicações sobre a formação, a estruturação da carreira e a organização do trabalho docente nos IFs?

Para compreender a gênese do RSC na rede federal, abordamos alguns aspectos sobre a greve das Instituições Federais de Ensino Superior (IFES), ocorrida em 2012, assim como os processos de disputa entre a categoria docente e o governo federal na aprovação e na implantação desse dispositivo.


História da construção do RSC


A greve das IFES de 2012, que durou 124 dias, foi iniciada em 17 de maio, sob a liderança do Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes-SN)8. O Sindicato Nacional dos Servidores Federais da Educação Básica, Profissional e Tecnológica (Sinasefe)9 aderiu à paralisação em 13 de junho do mesmo ano e, em julho, o movimento atingia 60 IFES10.

O estopim foi o descumprimento do acordo 04/2011 (BRASIL, 2011), firmado entre o Andes-SN, a Federação de Sindicatos de Professores de Instituições Federais de Ensino Superior (Proifes)11 e os ministérios da Educação (MEC) e do Planejamento, Orçamento e Gestão (MPOG), que definira os termos do resultado das negociações – assinadas em agosto de 2011, entre o governo federal e as entidades representativas dos docentes do EBTT e do magistério superior – e previa


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7 Os servidores técnico-administrativos também reivindicam direito ao RSC. (CONIF, 2014).

8 Três sindicatos representam os trabalhadores do EBTT: Andes-SN; Sinasefe e Proifes. O Andes- SN representa os professores do magistério superior e do EBTT. É filiado à Central Sindical e Popular Conlutas (CSP-Conlutas) e conta com quase 70 mil sindicalizados de 121 seções sindicais.

9 O Sinasefe abarca todos os trabalhadores da Rede Federal da Educação Básica, Profissional, Científica e Tecnológica. É filiado à Central Sindical e Popular Conlutas (CSP-Conlutas) e à Confederação de Educadores Americanos (CEA).

10 A Federação de Sindicatos de Trabalhadores Técnico-administrativos em Instituições de Ensino Superior Públicas do Brasil (Fasubra) iniciou a greve em 11 de junho.

11 A criação do Proifes ocorreu em 2004 em meio a um contexto de ação judicial e de cassação da carta sindical do Andes-SN e da articulação política com o então ministro da educação, Tarso Genro (2004-2005), e na época, secretário-executivo do MEC, Fernando Haddad. O Proifes é legalmente representante dos docentes do magistério superior e do EBTT.

a revisão do plano de carreira para 2013, com um aumento de 4% a partir de março de 2012, além da incorporação de gratificações (GOULART, 2012).

A pauta das reivindicações centrava-se nestes dois pontos: a definição de uma nova carreira para o magistério federal e a melhoria das condições de trabalho. Apesar da greve ter congregado um número expressivo de instituições federais, somente 57 dias após seu início, o governo abriu negociação com o movimento grevista. Em 13 de julho de 2012, o secretário do MPOG reuniu-se pela primeira vez com o Andes-SN e com o Proifes, e apresentou uma proposta que reforçava a posição do governo de não unificar as carreiras do magistério superior e do EBTT, mantendo a fragmentação, sem recomposição das perdas salariais dos docentes (ANDES-SN, 2012b).

Algumas das proposições acarretavam prejuízos, tais como: aumento do tempo do interstício para progressão de 18 (dezoito) para 24 (vinte e quatro) meses; aumento da carga horária mínima de ensino para 12 (doze) horas semanais e 70% de pontos de aprovação em avaliação de desempenho individual. O MEC indicou que o nível para ingresso na carreira deveria ser o mesmo para todos, independentemente da titulação do docente ingressante.

O MPOG buscava, de todas as formas, reduzir os gastos com o magistério federal. Além de tentar impor critérios para a avaliação de desempenho docente, “o governo apenas cria as figuras na Lei, o Vencimento Básico-VB e a Retribuição por Titulação-RT, remetendo para a tabela anexa na qual apenas aparecem valores nominais” (ANDES-SN, 2012c), sem definir percentuais de diferença entre níveis e classes e indo de encontro à histórica reivindicação dos docentes de ter apenas uma linha no contracheque incorporando todos os benefícios como salário-base.

Nas negociações, o MEC tentou propor ao EBTT uma Certificação de Conhecimento Tecnológico (CCT), que indicaria “um reconhecimento da experiência docente nos diversos programas e modalidades de ensino na educação básica, técnica e tecnológica, na gestão institucional, na pesquisa aplicada e/ou em atividades de extensão” (BRASIL, 2012b). Por meio de critérios que seriam estabelecidos posteriormente por um conselho e regidos pelo MEC, quem possuísse o título de especialista e conseguisse a CCT I passaria a receber a RT equiparada à de mestre; e o mestre que alcançasse a CCT II, a RT equiparada à de doutor. Essa proposta estava ligada à “[...] gestão institucional e à capacidade de

produção tecnológica, artística, cultural, de material didático e de desenvolvimento de Programas e projetos sociais” (BRASIL, 2012b). Em outras palavras, o governo anunciava uma gratificação aos que participassem de projetos governamentais no âmbito da instituição. Além disso, a equivalência da CCT dava direito à promoção na carreira, resultando, dessa forma, em um desestímulo à formação continuada.

Assim sendo, a categoria debateu o assunto em assembleias, negou a proposta do governo e avaliou não haver quaisquer avanços na propositura em questão; ao contrário, para ela, tal certificação segmentava ainda mais as carreiras docentes, continha diretrizes para a elevação da produtividade e da meritocracia, coadunando-se com uma compreensão de trabalho contrária ao projeto de educação do Andes-SN12 e da proposta do Sinasefe13. Então, após a deliberação das categorias, nova reunião foi realizada, com algumas modificações pontuais apresentadas pelo secretário do MPOG. Dentre elas, foi retirada a equivalência da CCT aos títulos de mestre e doutor para efeitos de promoção na carreira do EBTT, passando a valer somente para fins de RT. Segundo a nova proposta do governo, a CCT passaria a ser categorizada em três níveis equivalentes à especialização, ao mestrado e ao doutorado. Também foram removidas as referências aos vínculos diretos aos programas de governo. Supondo-se que a proposta fosse aprovada com essa formatação de projeto, pontos importantes e estruturais para a carreira, como os que seguem, seriam encaminhados posteriormente para a discussão em Grupos de Trabalho do MEC e não seriam debatidos com o conjunto dos docentes: revisão dos critérios para a concessão de auxílio-transporte; diretrizes de avaliação de desempenho para fins de progressão; critérios para a promoção à classe de professor titular, assim como para a CCT e para a fixação do professor em locais de difícil lotação. (BRASIL, 2012d). Tal proposta evidenciava flagrante agressão à autonomia das instituições.

Com efeito, a adesão à greve aumentava e, em 27 de julho de 2012, alcançou 58 das 59 universidades federais. A segunda proposição do governo foi discutida nas assembleias e rejeitada pelos docentes da base do Sinasefe e do Andes-SN.


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12 Esta proposta foi elaborada por professores do ensino superior de todo o país, a partir de discussões sobre a reestruturação da universidade, realizadas desde 1981 em assembleias e congressos (ANDES-SN, 2013).

13 A proposta do Sinasefe parte de um princípio histórico do sindicato, que é a busca de uma Carreira Unificada dos Trabalhadores da Educação (Administrativos e Docentes). (SINASEFE, [2012a])

Por sua vez, a base do Proifes, que naquele ano possuía apenas cinco sindicatos filiados, foi consultada por meio eletrônico14 e, mesmo sem obter unanimidade em sua base, aceitou o acordo. Desse modo, em 1º de agosto, em reunião da qual participaram o Comando Nacional de Greve do Sinasefe, o Andes-SN, o Proifes e o MPOG, foram apresentadas as deliberações e, apesar da aceitação da proposta apenas por parte do Proifes, o ministro deu por encerradas as negociações.

Resumidamente, o desfecho dessa negociação, que ficou conhecido como “o golpe de 1º de agosto” (GOULART, 2012), resultou em aumentos salariais maiores para professores no topo da carreira (titulares), nível acessado por apenas cerca de 10% dos docentes, majoritariamente localizados em universidades do Sul e do Sudeste do Brasil, cujos pagamentos seriam escalonados de julho de 2012 até 2015. Além disso, o acordo firmado manteve a separação entre as duas carreiras, não estabeleceu percentuais fixos para a RT, transformando-a em gratificações, e não garantiu a isonomia entre ativos e aposentados. (MATTOS, 2013).

Assim sendo, o Termo de Acordo foi assinado entre o Proifes e o governo no dia 3 de agosto e utilizado como base para o Projeto de Lei nº 4368/12. (BRASIL, 2012c)15. Como não foi possível retirá-lo da pauta de votação, os representantes do Sinasefe e do Andes-SN acabaram discutindo o PL e defendendo a aprovação de algumas emendas, na tentativa de alterar o projeto já em tramitação. Por fim, apesar do empenho dos sindicatos, a Lei nº 12.772/2012 (BRASIL, 2012a) foi sancionada sem vetos pela presidente Dilma Rousseff em 28 de dezembro de 2012.


Certificação de Conhecimento Tecnológico proposta aos docentes do EBTT


Compreender a gênese do RSC requer retomar o projeto de CCT. Procedemos à análise da proposta apresentada pelo governo do PT à categoria docente em julho de 2012. A implantação da CCT, inicialmente, permitiria àqueles que a obtivessem melhorar sua percepção salarial por meio da equivalência da RT de mestre e de doutor. Desse modo, para acessar o primeiro nível, o professor


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14“Consulta Eletrônica Nacional indica aceitação da proposta”. Matéria disponível em:

<https://goo.gl/i3kg6S>. Acesso em: 20 nov. 2017.

15 Mesmo depois do acordo assinado, o movimento grevista continuou tentando pressionar e reabrir as negociações, porém não houve alteração na postura do governo. A greve foi oficialmente suspensa em 17 de setembro de 2012.

necessitava ter título de especialista, participar dos projetos do governo e atender às diretrizes e competências descritas no Quadro 1:


Quadro 1: Diretrizes e Competências da Certificação de Conhecimento Tecnológico 1 (CCT 1)



CCT


Diretrizes

Competências

(focadas na atuação finalística da Instituição)


Duração


Nível 1


  • Atuação em Cursos de Educação Profissional e Tecnológica;

  • Atuação na Gestão Institucional;

  • Capacidade de produção tecnológica, artística, cultural, de material didático e de desenvolvimento de Programas e projetos sociais.

  • Aula: FIC, Técnico e Tecnológico, Proeja, Mulheres Mil, Certific, Bolsa-formação, e-Tec e educação básica;

  • Atuação na Gestão Institucional;

  • Desenvolvimento de aulas práticas e de laboratório;

  • Construção de protótipos;

  • Prestação de serviços tecnológicos;

  • Produção de material didático de laboratório e de disciplinas de cursos integrados;

  • Organização de eventos científicos e tecnológicos, culturais e sociais;

  • Relacionamento entre a escola e instituições do mundo do trabalho;

  • Redação de patentes.


2 anos

Fonte: (BRASIL/MEC, 2012b, p. 1).


O segundo nível era dirigido aos docentes com título de mestre e, da mesma forma, era necessário atender aos critérios e participar dos projetos do governo, conforme pode ser observado, a seguir, no Quadro 2:


Quadro 2: Diretrizes e Competências da Certificação de Conhecimento Tecnológico 2 (CCT 2)



CCT


Diretrizes

Competências

(focadas na atuação finalística da Instituição)


Duração


Nível 2


  • Atuação em Cursos de Educação Profissional e Tecnológica;

  • Atuação na Gestão Institucional;

  • Capacidade de geração de conhecimento tecnológico.

  • Todas as competências estabelecidas para o CCT I, mais os quesitos abaixo relacionados:

  • Desenvolvimento de aulas práticas e de laboratório;

  • Transferência de tecnologias;

  • Publicação de artigos e propriedade intelectual (patentes);

  • Liderança de grupos de extensão e pesquisa tecnológica;

  • Capacidade de formação de pessoas com competências do nível CCT 2.


3 anos

Fonte: (BRASIL/MEC, 2012b, p. 2).

Segundo a proposta do governo, a CCT de nível 1 tinha como focos o reconhecimento de saberes nas áreas de docência em educação básica e tecnológica, a gestão institucional e a capacidade de produção tecnológica, artística, cultural, de material didático e de desenvolvimento de programas e projetos sociais. Já a CCT de nível 2, além de contemplar os requisitos da CCT 1, incorporava critérios relativos à capacidade de geração de conhecimento tecnológico. Essa certificação também seria adotada como critério para os dois formatos existentes na carreira, tanto para a progressão vertical, entre classes, como para a horizontal, entre níveis. Para a progressão vertical, a CCT seria aplicada conforme requisito apresentado no Quadro 3:


Quadro 3 – CCT e progressão vertical da carreira docente



Classe

VENCIMENTO BÁSICO

Requisito Padrão

Requisito com Especificidade

Titular

Doutorado

Doutorado

D4

Doutorado

Doutorado

D3

Doutorado

Mestrado + CCT2

D2

Mestrado

Especialização + CCT 1

D1

Graduação

Graduação

Fonte: (BRASIL/MEC, 2012b, p. 2).


Em uma segunda versão, a certificação passou a comportar três níveis, contemplando a RT de especialização. Como mencionado, a obtenção dessa certificação estava ligada à realização de atividades em programas técnicos vinculados ao governo federal, como, por exemplo, o Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec)16. Conforme a declaração de um dos entrevistados, integrante da direção do Sinasefe na gestão 2012-2014, foi realizada uma avaliação sobre essa certificação, e a proposta foi considerada inadequada por dois aspectos, quais sejam:


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16 Trata-se de uma política que chancela a educação profissional como um ensino mecanicista e dirigido, agora, para os “excluídos do consumismo”, de forma a assegurar-lhes uma determinada condição ao consumo da materialidade processada, um tipo de “inclusão social” que não lhes possibilita a superação da condição cultural na qual se encontram. (AZEVEDO; COAN, 2013, p. 8- 9).

Primeiro, como era um conhecimento apenas de caráter tecnológico, a nossa rede absorve hoje, muitos professores da formação geral, humanística, que não têm o perfil tecnológico, então, se a gente concordasse com a proposta do governo, ficaria de fora uma parte significativa dos docentes da carreira do EBTT; outra coisa de que nós discordamos desde o início é que a construção para qualificar o professor, na verdade, era uma imposição do governo para que nós trabalhássemos nos seus projetos paralelos – o que até hoje eles fazem –, como por exemplo, o Pronatec, EJA, etc. (DIRIGENTE DO SINASEFE-A).


Com relação a essas diretrizes da CCT, o governo declarou que seria criado um Conselho Permanente de Certificação, com função de elaborar os procedimentos necessários à sua obtenção, em colaboração com os órgãos de pesquisa e fomento ao desenvolvimento tecnológico, que também deveriam ser consultados. As competências do conselho, é necessário esclarecer, seriam estabelecidas por ato do MEC. Essa proposição acarretaria perda de autonomia por parte das universidades e dos IFs, haja vista que, além de os critérios para obtenção da certificação dependerem da criação do referido conselho, os órgãos de pesquisa e fomento teriam poder de ditar mais diretrizes condizentes aos interesses do MEC. Ciente disso, o Andes-SN (2012a) considerou que a CCT apresentada pelo governo favorecia tanto um desestímulo à capacitação docente quanto uma desvalorização da titulação acadêmica. Por isso, em razão dos critérios apresentados, a CCT foi igualmente rechaçada pela categoria da base do Sinasefe e do Andes-SN. Assim, o governo se viu obrigado a elaborar uma outra proposta, desta vez mais adequada aos interesses do conjunto dos docentes e que pudesse amenizar os conflitos com os sindicatos. Dessa forma, em uma contraproposta, a CCT reapareceu com nova roupagem como RSC.

De acordo com os entrevistados, ao serem questionados sobre a origem do RSC, os dois representantes do Sinasefe confirmaram o fato de que fora precedido pela proposta da CCT, que consistia em uma acumulação de pontos conforme o professor se envolvesse com os projetos do governo.

De fato, o RSC, que foi construído em atendimento a várias demandas, apresenta como partes interessadas o governo, o Proifes e o Conselho Nacional das Instituições da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica

(Conif)17. Nesse sentido, o dirigente do Sinasefe-B ressalta que, sem dúvida, o RSC intenta fragmentar a negociação com as categorias; em segundo lugar, que a rede federal tem muitas especificidades e diferenças nas carreiras, e por isso o governo negocia os reajustes de forma fragmentada.

O fato é que, quando ocorreu a transformação dos Cefets em IFs, passou-se a supervalorizar a titulação. Sendo assim, os professores novos, com seus títulos de mestrado e doutorado, ganharam aumentos superiores em relação aos professores antigos na rede que possuíam carga de ensino muito alta e, por consequência, não conseguiam fazer pós-graduação – portanto, permaneciam com salário rebaixado. Isso foi criando um descontentamento e uma diferenciação salarial grande entre os docentes. Nessa perspectiva, segundo o representante do Sinasefe-B,


com a CD [gratificação por cargo de direção], acabavam empatando com quem não tinha cargo de gestão e retribuição por titulação, porque a RT era muito grande. Os gestores começam a se incomodar de que, no fim das contas, eles não estão tendo a diferenciação salarial por ser gestores, porque não tinham a titulação. [...] Nesse meio, é bom dizer que o Conif começa a trabalhar bastante pelo RSC. Exatamente porque foi a forma de os gestores também terem uma equiparação salarial. Ele e o Proifes passaram a defender o RSC.


O dirigente do Andes-SN, salienta que o RSC foi uma medida para resolver o problema dos professores que não tiveram acesso à capacitação, pois


[...] nunca teve política que incentivasse a capacitação dos Professores dos institutos, das escolas técnicas, nem mesmo dos colégios de aplicação, do NDI [Núcleo de Desenvolvimento Infantil]. Nunca foi prioridade. [...] Então o RSC surge como uma compensação do não acesso ao mestrado ou doutorado.


Na sequência, apresentamos as diretrizes construídas para a institucionalização desse dispositivo de certificação das práticas docentes e alguns dos embates que dele decorreram.


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17 O Conif é uma instância de discussão, proposição e promoção de políticas de desenvolvimento da formação profissional e tecnológica, pesquisa e inovação. Criado em março de 2009, após a publicação da Lei n° 11.892, de 29 de dezembro de 2008, institui a Rede Federal de Educação Profissional e Tecnológica e cria os IFs. O Conif congrega 38 IFs, dois Centros Federais de Educação Tecnológica e o Colégio Pedro II.

Diretrizes e pressupostos do RSC


Iniciaremos pela análise do Art. 18 da Lei nº 12.772/2012 (BRASIL, 2012a), que apresenta o RSC para fins de percepção de RT. O RSC, se concedido, possibilita equiparar a remuneração do professor que a receber com a de outro, de titulação acadêmica superior.

Ao contrário do que propunha a CCT, esta lei, em seu Art. 19 (BRASIL, 2012a), dispõe que em nenhuma hipótese o RSC poderá ser utilizado para fins de equiparação de titulação como cumprimento de requisitos para a promoção na carreira, ou seja, ele reflete exclusivamente no valor financeiro recebido a título de RT. Para compreender melhor como se dá esse processo e quais são os critérios exigidos, buscamos analisar a Resolução nº 1, de 20 de fevereiro de 2014 (BRASIL, 2014). Em seu capítulo I – Dos Pressupostos, os perfis para a concessão do RSC são apresentados:


  1. RSC I - Reconhecimento das experiências individuais e profissionais, relativas às atividades de docência e/ou orientação, e/ou produção de ambientes de aprendizagem, e/ou gestão, e/ou formação complementar e deverão pontuar, preferencialmente, nas diretrizes relacionadas no inciso I, do art. 11, desta resolução.

  2. RSC II - Reconhecimento da participação em programas e projetos institucionais, participação em projetos de pesquisa, extensão e/ou inovação e deverão pontuar, preferencialmente, nas diretrizes relacionadas no inciso II, do art. 11, desta resolução.

  3. RSC III - Reconhecimento de destacada referência do professor, em programas e projetos institucionais e/ou de pesquisa, extensão e/ou inovação, na área de atuação e deverão pontuar, preferencialmente, nas diretrizes relacionadas no inciso III, do art. 11, desta resolução. (BRASIL, 2014, sem grifos no original).


Já o Art. 11 apresenta os itens passíveis de pontuação para fins de concessão de RSC (BRASIL, 2014). Destaca-se que, para obter o RSC I, pontua- se mais a docência, a orientação, a produção de ambientes de aprendizagem e a gestão. Para o RSC II, a participação em programas e projetos institucionais e em projetos de pesquisa, extensão e inovação. O RSC III, por seu turno, além dos itens citados nos níveis anteriores, destaca o desenvolvimento, a produção e a transferência de tecnologias.

Dessa maneira, compreendemos o RSC como um dispositivo que altera a correspondência salarial, porém estabelece um impeditivo, ao não permitir acesso do docente à classe de professor titular sem o título de doutor. Outra questão

importante é que essa certificação não habilita o professor a coordenar projetos, a solicitar recursos a órgãos de fomento, a ocupar determinados cargos ou a promover outras ações que tenham o título acadêmico como requisito. Portanto, a falta de incentivo à qualificação impõe barreiras ao desenvolvimento da carreira e ao próprio desenvolvimento da instituição.

Destacamos sobretudo que, apesar de não haver nenhuma medida restritiva para que os docentes da carreira do EBTT se afastem para a realização de pós- graduação, na Portaria n° 17, de 11 maio de 2016 (BRASIL, 2016a), a Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica (Setec) indica a possibilidade da instituição prever limites diferenciados de carga horária para docentes, mas não presume a liberação integral para cursar uma pós-graduação. Esse direito conquistado pela categoria está ameaçado. Se por um lado, o RSC é apresentado pelo governo como instrumento criado para a valorização do professor, visto que o discurso propalado é o de que veio corrigir distorções históricas na carreira do EBTT, por outro, promove a fragmentação e a precarização da carreira docente, a intensificação do trabalho e do controle sobre a categoria.

Contraditoriamente, infere-se que, além do aumento salarial, outros fatores que contribuíram para a ampla aceitação do RSC entre os docentes foram a possibilidade de estudar sem afastar-se do trabalho, de não despender recursos financeiros para realizar um curso de pós-graduação nem sofrer descontos relativos ao tempo de capacitação na contagem para sua aposentadoria, uma vez que o período em que o servidor fica afastado para estudo não é computado para fins de aposentadoria especial na carreira do EBTT.

Dessa maneira, constata-se que o RSC não valoriza a qualificação e a titulação do professor, mas sim o seu desempenho prático e os resultados, o seu impacto. Na medida em que há uma restrição ao conhecimento sistematizado e uma premiação para o trabalho prático para certificar determinadas competências, efetua-se uma reconfiguração do trabalho docente. Quer dizer, está em curso um processo de desvalorização e de “desintelectualização” de professores (SHIROMA, 2003), e de desmonte da carreira do EBTT, orientado pela diretriz da redução de gastos com os professores.

Nesse contexto de financeirização da economia, mecanismos que visam à certificação das práticas, como o RSC, funcionam como baliza para a conformação

do trabalho docente à lógica de uma formação pedagógica pautada em competências e habilidades (RAMOS, 2006; SILVA, 2008; MACHADO, 2002). Com a proposta do RSC, o professor é chamado a desenvolver determinadas competências que promovam as habilidades esperadas dos alunos. Nesse sentido, a lei direciona de forma tendenciosa algumas atividades docentes, interferindo inclusive na autonomia didático-pedagógica. Por consequência, tais medidas vão tolhendo a autonomia e reorientando prioridades do docente, ao atrelá-las a incentivos salariais.

Nessa perspectiva de análise, o RSC tende a configurar-se como mais um modelo de certificação calcado em um instrumento avaliativo que promove a lógica meritocrática na instituição. Tal lógica é fortalecida com a difusão da noção de competências nos projetos pedagógicos de curso nos IFs. Segundo Freitas (2004), as competências têm o intuito de conformar as subjetividades, de modo a inseri-las na lógica da competitividade, da individualidade dos processos educativos e do aprimoramento profissional. Dessa forma, acentuam-se as dificuldades de mobilização e o arrefecimento da identidade e da consciência de classe, uma vez que o êxito é alavancado considerando iniciativas individuais, e não coletivas.

Infere-se que é esse o interesse maior subjacente às recomendações das organizações multilaterais para a educação e, dentre elas, a reforma da carreira docente. Algumas dessas orientações colocam o professor no centro das reformas e afirmam que um dos mecanismos mais poderosos para o aumento do padrão dos professores são “os exames obrigatórios de certificação” (BRUNS; LUQUE, 2014,

p. 13). Em nome de uma etérea qualidade da educação, os governantes, com amplo apoio da mídia, tentam justificar um conjunto de reformas lesivas aos trabalhadores, em geral, e aos da educação, em particular.

Com essa perspectiva, compreendemos que a reestruturação da carreira docente do EBTT é, em síntese, expressão de um reordenamento do capitalismo, que atinge a forma com que o Estado remunera os docentes da rede federal e quebra a isonomia de forma consentida, sem enfrentar resistência por parte de toda a categoria. Nesse sentido, ao oferecer uma equivalência à RT, o RSC opera a individualização da carreira, induz o consentimento ativo (GRAMSCI, 1978) de boa parte dos docentes, minando a luta coletiva, o que gera um ganho político e econômico para o Estado. Quer dizer, difunde-se a ideia de que atingir padrões mais

dignos de remuneração decorre da competência ou da incompetência de cada professor, e não mais da capacidade de mobilização política de sua categoria.

Nesse aspecto, o dirigente do Sinasefe-B ressalta que o RSC faz aumentar o distanciamento com o magistério superior, impondo também uma diferenciação com os técnicos e “cria um vencimento cada vez mais cheio de penduricalhos que são bem mais frágeis em relação ao salário mesmo”. Diante de todos esses fatos e questionamentos, aos sindicatos da categoria impõe-se o desafio de manter a organização da classe, de travar lutas e de aprofundar as discussões com suas bases.


Posicionamento dos sindicatos e disputas em torno do RSC


Constatamos, por meio das entrevistas, que as disputas pela implementação do RSC situaram-se, de um lado, entre o Proifes e o Conif — formado pelos gestores, em defesa da proposta do governo — e, do outro, os sindicatos Sinasefe e Andes-SN, contrários, inicialmente, à inserção deste dispositivo de reconhecimento e competências.

No início desse processo, estes sindicatos se opuseram, por compreenderem que o RSC causaria um desestímulo à capacitação docente e por defenderem a proposta de carreira única, que não está baseada apenas em remuneração. O Proifes, por seu turno, assinou o acordo com o governo, e a proposta foi aprovada. Com o fato consumado, a categoria passou a reivindicar o RSC. Neste outro momento, o Sinasefe, que, inicialmente, direcionara suas críticas à criação do Conselho Permanente de Reconhecimento de Saberes e Competências (CPRSC)

— que legalizaria as diretrizes para o processo de concessão do RSC —, por considerar que poderia favorecer a quebra da autonomia das instituições na elaboração de suas regras, passou a disputar a participação no referido conselho e na escolha dos critérios, uma vez que não havia sido chamado para as discussões. Mesmo sendo papel do sindicato defender os ganhos para a categoria, a sua participação na viabilização da política favoreceu o processo de construção do consentimento ativo. Portanto, o Sinasefe, que, a princípio, manteve postura contrária, participou da definição de critérios de implantação do RSC com outras categorias e representações governamentais que faziam parte do conselho, de

acordo com o entendimento de que é função do sindicato defender as reivindicações de sua base e o aumento salarial.

Houve ainda desacordo entre governo, Proifes e Sinasefe quanto à criação de uma Comissão de Avaliação de Regulamento (CAR) que teria o papel de julgar os regulamentos construídos nas IFES. O Sinasefe propôs que todos os docentes que já estivessem na rede antes de 1998 deveriam receber o RSC automaticamente (Dirigente do Sinasefe-B), pois foi a partir deste mesmo ano que começou a haver maior diferenciação remuneratória. O Proifes tomou posição contrária à aprovação automática para aqueles casos, pois defendia critérios com base na meritocracia. O governo, por sua vez, insistiu que toda a comprovação de saberes e competências deveria se dar por meio de documentos, rejeitou a proposta inicial, mas aceitou que os professores mais antigos pudessem comprovar seu trabalho por meio de memorial assinado e corroborado por duas testemunhas.

Outro ponto importante sobre a construção dos critérios aconteceu quando a decisão foi remetida às instituições. Isso fez com que se ampliassem as possibilidades de concessão da gratificação, uma vez que aqueles que vão passar pelo processo avaliativo é que determinam os critérios. Como consequência, segundo a avalição do Dirigente do Sinasefe-A, “um número muito maior do que o governo esperava teve acesso”.

Em meio às contradições e aos conflitos, o RSC se configurou como um dispositivo político que, mesmo que venha acarretar à categoria problemas de médio e longo prazos, de imediato possibilitou maior remuneração aos docentes, fato que não pode ser ignorado pelos sindicatos em uma conjuntura de progressivas perdas de direitos trabalhistas.


Considerações finais


A reestruturação da carreira dos servidores públicos é uma expressão do reordenamento do Estado diante das novas configurações e demandas do capital. Particularmente nos IFs, altera-se a forma de ingresso na carreira do EBTT, criam- se mais classes e níveis, achatando o piso salarial, sem possibilitar o reposicionamento dos aposentados, elaborando-se leis e dispositivos que fazem com que em uma mesma instituição, em um mesmo departamento ou coordenação

existam docentes com carreiras e formas de aposentadoria diferentes. Tudo isso acaba atingindo o sentimento de pertencimento à categoria e a construção da consciência de classe.

Por certo, essas reformas que atingiram os docentes do EBTT estão alinhadas às recomendações de organismos multilaterais de que se rompa com o tripé que estrutura a carreira (qualificação, titulação e tempo de serviço). Essa recomendação pressupõe condições objetivas, mas também subjetivas, e dissemina uma outra lógica, calcada na gestão por resultados, no interior das instituições públicas. A tendência é que esse processo colabore para a segmentação dos trabalhadores e para o enfraquecimento das lutas sindicais.

O fato é que uma série de políticas vêm sendo implementadas na carreira docente com o intuito de restringir a liberação integral para a realização da pós- graduação, como, por exemplo, a falta de professores substitutos, a dificuldade de acesso para os professores que estão nos campi interiorizados dos IFs, que são fatores que corroboram para a sua permanência na instituição e para a opção pelo RSC. Por um lado, esse dispositivo político tende a desmobilizar a categoria em termos de sua consciência e solidariedade de classe, e de luta coletiva, na medida em que individualiza os salários e divide a categoria. Por outro, trouxe um ganho salarial imediato para os docentes que sofrem historicamente com as perdas salariais.

Em suma, compreendemos o RSC como um dispositivo político que, na aparência, valorizaria o magistério por meio da certificação de competências para fins de remuneração, mas, em essência, reorienta o currículo, a formação e o trabalho dos professores que passam a ser reconhecidos pelas atividades e pelos projetos realizados não só dentro dos IFs, mas também como executores de programas governamentais e prestadores de serviço para empresas e organizações externas. Desse modo, reestrutura a carreira desde o ingresso até a aposentadoria, coadunando-se com a reforma da previdência. Assim, concluímos que o RSC atua sobre a subjetividade e reorienta o trabalho docente, privilegiando práticas requeridas pelo capital no atual estágio de desenvolvimento das forças produtivas como as voltadas ao mercado de trabalho e à criação de patentes e inovações. Nesse contexto, a lógica de reconhecer as competências docentes tende a nortear

a organização do trabalho nos IFs e sobrepor-se à qualificação e ao tempo de serviço como critérios que estruturam a carreira docente.

Assim sendo, o RSC, ao anunciar a possibilidade de aumento salarial, apenas na aparência, representa uma medida de valorização do magistério. Porém, como se trata de uma avaliação, sem vinculação orçamentária, funciona como um prêmio contingencial, mas não como política salarial, uma vez que não pode ser aplicado a toda a categoria. Ao contrário, desatrela vencimento e carreira, e instaura a quebra da isonomia consentida pelos trabalhadores. A médio prazo, promove uma desvalorização e não uma valorização do magistério. Tal processo operacionaliza uma meta recomendada há tempos por organizações multilaterais, qual seja: desvincular o tempo de serviço e a qualificação como critérios de promoção no serviço público. Não se trata, portanto, de uma política de carreira, mas da tentativa de sua desestruturação.

Desse modo, desvela-se o intento do capital, no sentido mais amplo do sistema metabólico, não só pelo projeto formativo, de produzir nos jovens as competências exigidas pelo sistema produtivo, qualificando consumidores ávidos por produtos tecnológicos, ao docilizar os sobrantes como nano empreendedores de si mesmos, e moldando o sistema educacional, tornando-os mais atraentes aos investidores. Essa análise permite compreender a desvalorização docente não como um paradoxo, mas como necessária à valorização do valor no capitalismo contemporâneo.

Por fim, os resultados desta pesquisa possibilitaram compreender a questão da remuneração do magistério federal articulada às reformas mais amplas e aos ajustes impetrados pela finança mundializada (CHESNAIS, 2005), que refuncionaliza as instituições educacionais públicas de acordo com seus interesses. Na esteira de decretos e medidas provisórias, o MEC lança, nos períodos de recesso, propostas de supressão da eleição para diretores, das eleições paritárias nas IFs, de suspensão de contratações e processos seletivos, que, aparentemente, são paliativos para enfrentar momentaneamente a restrição orçamentária. Coadunam-se com a proposição do Future-se, lançado em julho de 2019, inicialmente como um programa de adesão voluntária, porém, foi reapresentado, meses depois, como projeto de lei. O programa pretende criar um fundo patrimonial com as universidades e os IFs, gerar negócios com a propriedade intelectual,

investir na produção da “pesquisa interessada”, no sentido gramsciano, explorando a criatividade e o conhecimento produzido nas IES como ativos intangíveis que viabilizam a valorização do valor. Recorrendo à tese do autor de que toda relação de “hegemonia” é necessariamente uma relação pedagógica” (GRAMSCI, 1999, p. 399), tais avanços do capital educador nos lembram o quão ampliados são os desafios da luta sindical, da organização da classe trabalhadora no tempo presente.


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V.18, nº 37, set-dez (2020) ISSN: 1808-799 X


REFORMISMO E EDUCAÇÃO: A ESCALADA ULTRALIBERAL BRASILEIRA E SUAS REPERCUSSÕES EDUCATIVAS1


Victor Leandro da Silva2


Resumo

O cenário recente da política brasileira vem sendo marcado por um forte ímpeto reformista ultraliberal, cujas consequências podem ser percebidas na recentemente aprovada reforma trabalhista. No entanto, para que tal empreitada se efetivasse, foi necessário promover também mudanças no sistema educativo, com vistas a propiciar as condições ideais para o desenvolvimento de tais diretrizes. Dessa forma, o presente texto tem por objetivo discutir de que maneira a educação encontra-se historicamente ligada às transformações do mundo do trabalho, bem com debater os elos que vinculam no Brasil a reforma do ensino médio e as mudanças deletérias dos direitos dos trabalhadores.

Palavras-chave: educação; mundo do trabalho; precarização; reforma do ensino médio; reforma trabalhista.


REFORMISMO Y EDUCACIÓN: LA ESCALADA ULTRALIBERAL BRASILEÑA Y SUS REPERCUSIONES EDUCATIVAS

Resumen

El escenario reciente de la política brasileña ha estado marcado por un fuerte impulso reformista ultraliberal, cuyas consecuencias se pueden ver en la reforma laboral recientemente aprobada. Sin embargo, para que este esfuerzo fuera efectivo, también era necesario promover cambios en el sistema educativo, con el fin de proporcionar las condiciones ideales para el desarrollo de tales pautas. Por lo tanto, este texto tiene como objetivo discutir cómo la educación está históricamente vinculada a los cambios en el mundo del trabajo, así como debatir los enlaces que vinculan la reforma de la educación secundaria en Brasil y los cambios perjudiciales en los derechos de los trabajadores.

Palabras clave: educación; mundo de trabajo; precariedad; reforma de la escuela secundaria; reforma laboral.


REFORMISM AND EDUCATION: THE BRAZILIAN LIBERAL CLIMB AND ITS EDUCATIONAL REPERCUSSIONS

Abstract

The recent scenario of Brazilian politics has been marked by a strong ultraliberal reformist impetus, whose consequences can be perceived in the changes in the Brazilian labor legislation, which aim mainly to meet the interests of large economic groups. However, for such an quest to take place, it was also necessary to promote changes in the education system, in order to provide the ideal conditions for the development of such guidelines. Thus, the present text aims to discuss how education is historically linked to the transformations of the world of work, as well as to debate the links that bind in Brazil the reform of high school and the deleterious changes in labor rights.

Keywords: education; the world of work; precariousness; high school reform; labor reform.


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1Artigo recebido em 27/04/2020. Primeira Avaliação em 01/06/2020. Segunda Avaliação em 04/06/2020. Aprovado em 16/07/2020. Publicado em 25/09/2020.

DOI: https://Doi.org/10.22409/TN.V18I37.42365

2 Graduado em Filosofia pela Universidade Federal do Amazonas - UFAM / Brasil. Doutor em Sociedade e Cultura na Amazônia pela Universidade Federal do Amazonas - Brasil. Professor Adjunto da Universidade do Estado do Amazonas - Brasil. E-mail: viktorleandro@hotmail.com

ORCID: 0000-0002-9758-5249. Lattes: http://lattes.cnpq.br/960788003958929.

Introdução


É sabida, pelo menos desde A República de Platão, a relevância dos processos educativos para a constituição de um projeto sistemático de ordenamento social. É impossível construir qualquer proposta de organização em sentido amplo sem que a pedagogia em vigor participe de tais objetivos, razão pela qual esta se converte em um sistema integrado e também num agente profundo das mudanças ocorridas em cada bloco histórico.

As relações de trabalho, que na teoria marxista sedimentam a sociedade, por força dessa característica, atuam em forte relação com o que é preconizado nas práticas dos educadores. Desse modo, toda mudança estrutural trabalhista deve atravessar também as normas determinadas nas teorias pedagógicas.

No Brasil contemporâneo, a escalada ultraliberal tem se notabilizado pelo forte apelo na educação, colocando-a como uma peça-chave na imposição dessa nova ordem. Assim, a compreensão dos novos rumos do país não pode ser feita sem o debate acerca de suas implicações educativas, as quais, uma vez articuladas ao mundo do trabalho, permitem analisar profundamente o panorama das mudanças estruturais postas em curso.

Porém, antes de adentrar nessa problemática, e a fim de melhor situá-la no momento em que estamos, faz-se necessário discutir o percurso percorrido pelos vínculos entre trabalho e educação, o qual nos conduzirá, inevitavelmente, ao estudo a respeito da precarização proletária e seu mais recente movimento de uberização.


Trabalho e educação: uma relação necessária


Nas últimas décadas, a primazia do trabalho para a ordenação social vem sendo contestada fortemente, sob o argumento de se configurar numa teorização ultrapassada e anacrônica. No entanto, as configurações mais recentes e as tendências de desenvolvimento do mundo do trabalho e suas consequências apontam justamente para a direção oposta, em especial no Brasil, onde a retomada do projeto ultraliberal, após um átimo de iniciativas progressistas, vem trazendo sensíveis mudanças na cena trabalhista do país.

Nesse contexto, cabe mais uma vez retomar a tradição marxista e relembrar os pontos nela que centralizam o trabalho dentro do conjunto da práxis humana, e o remetem, como bem observam Braz e Netto (2012) ao campo fundamental de constituição do indivíduo no que tange ao seu ser social. Seguindo por esse percurso, ambos enfatizam que foi devido ao trabalho que,


Os membros dessa espécie [humana] se tornaram seres que, a partir de uma base natural (seu corpo, suas pulsões, seu metabolismo etc.), desenvolveram características e traços que os distinguem da natureza. Trata-se do processo no qual, mediante o trabalho, os homens produziram-se a si mesmos (isto é, se autoproduziram como resultado de sua própria atividade) tornando-se – para além de seres naturais – seres sociais. Numa palavra, este é o processo da história (grifo do autor): o processo pelo qual, sem perder sua base orgânico- social, uma espécie da natureza constituiu-se como espécie humana

– assim, a história aparece como a história do desenvolvimento do ser social, como processo da humanização, como processo da produção da humanidade através da sua autoatividade; o desenvolvimento histórico é o desenvolvimento do ser social (BRAZ e NETTO, 2012, p. 49/50).


Na concepção advinda do pensamento de Marx, não é possível pensar o surgimento do ser humano sem estabelecer o trabalho como seu elemento básico de formação. Daí que não se trata de dizer que a sociedade simplesmente se reúne pelo trabalho no momento presente, nem tampouco que este é um determinante que está sendo ultrapassado. O trabalho, na verdade, é a forma própria de toda realização dos sujeitos, que apenas podem também modificar-se mediante sua atuação. Logo, quaisquer que sejam as mutações ocorridas no tecido social, estas têm vazão apenas se encontrarem no trabalho o ponto de esteio e sustentação que permita perpetrar tais mudanças. Do contrário, não se pode falar nem mesmo de um paradigma modificação, uma vez que a principal força atuante do processo encontra-se inerte.

Logo, para se entender as condições presentes no plano social, a análise das novas configurações do trabalho é de uma relevância imprescindível. Obviamente, isso inclui também, como componente de articulação, os processos educativos, que, ao longo de seu desenvolvimento, sofreram forte influência das mudanças ocorridas no mundo produtivo.

É o que bem observa o sociólogo Ricardo Antunes, ao articular as relações entre educação e trabalho, as quais, dentro da sociedade capitalista, adquiriram um imbricamento que torna ambos os campos interdependentes e colaboradores entre si da ordem econômica dominante.

De acordo com sua análise, tais aproximações tiveram uma forte intensificação devido ao advento do modelo taylorista-fordista na produção, que passou a demandar um maior apuro quanto aos padrões formativos dos funcionários da fábrica. Com sua proposta de divisão rigorosa de tarefas e separação entre planejamento e execução, surgiu a necessidade de se gerar, no seio das camadas trabalhadoras, um conjunto de indivíduos aptos a atuar conforme essas designações. Obviamente, no que diz respeito às classes populares, caberia sobretudo torná-las capazes de executar funções especializadas e mecânicas, sem maior apuro teórico ou científico. Assim, dessa maneira, o


taylorismo-fordismo colocou como horizonte um projeto de educação baseado em escolas técnicas ditas “profissionalizantes”, cujo mote é formar os/as estudantes para o trabalho assalariado, ou melhor, formar a sua força de trabalho para o mercado, sendo que esse conhecimento deveria ser consumido pelas empresas como capital variável, como trabalho concreto urdido em trabalho abstrato. (ANTUNES, 2017, p. 2).


Trazendo, como consequência direta, uma nova configuração para os sistemas e tendências educativos:


Dentro dessa finalidade, o capitalismo concebido pelo desenho tayloriano-fordista colocou como horizonte à educação uma pragmática da especialização fragmentada. Uma educação moldada por uma concepção técnica que direciona a qualificação do trabalho nos limites da coisificação e da fragmentação impostas pelo processo de trabalho capitalista (ANTUNES, 2009a). A “escola ideal” para essa qualificação é a que promove o desmembramento entre conceito, teoria e reflexão (o trabalho intelectual), de um lado, e prática, aplicação e experimentação (o trabalho manual), de outro. (ANTUNES, 2017, p. 2).


Tal quadro posteriormente sofreu alterações, acompanhando o ritmo das mudanças que se foram instalando na esteira das inovações inseridas na ordem produtiva. Assim, com o advento da gestão toyotista, pautada nos princípios da acumulação flexível, que visava a atender uma lógica não mais de superprodução e sim de geração de mercadorias por demanda, houve a necessidade de se construir num novo modelo de trabalhador, muito mais afinado com as novidades científicas e com capacidades comportamentais destacadas como iniciativa, empreendedorismo, polivalência e potencial de liderança, o que, para além de um vocabulário atrativo,

significava apenas um novo nome para o aprofundamento das formas de exploração da mais-valia.

Mais uma vez, as repercussões educativas são evidentes. Propostas voltadas para o aprender a aprender, que colocam o aluno apto a enfrentar o ritmo acelerado das novidades da tecnologia, começam a se tornar a palavra de ordem. O contato com aparelhos eletrônicos e digitais é estimulado desde cedo, bem como despontam as aulas interativas e os cursos que visam desenvolver a capacidade de invenção e a competitividade, buscando tornar os sujeitos cada vez mais adequados e atender as necessidades ascendentes na fábrica.

Paralelamente a esses processos, e concorrendo para o estabelecimento de uma nova razão educativa, prolifera um movimento de expansão do mercado de serviços, que passa a ocupar um lugar cada vez mais importante no mundo econômico, de tal maneira que muitos autores começam a falar de uma sociedade pós-industrial, ou seja, em que a organização da fábrica possui um impacto secundário nas diversas transformações da sociedade, ficando estas subordinadas sobretudo ao que ocorre nesses novos ramos de atividade econômica, no que a educação também atua sob esse conjunto novo de diretrizes fundamentais.

Seguindo por esse percurso, surge aquilo que foi denominado por alguns como “sociedade do conhecimento”, produto de uma era pós-industrial, em que se valorizariam, sobretudo, os conhecimentos adquiridos e a criatividade, em detrimento da mecanização de tarefas. Nesse panorama, também o ambiente e as relações de trabalho deveriam ser modificados, a fim de não colocar limites nas práticas inventivas, promovendo um forte movimento de flexibilização de normas.

Mas, o que se anunciava o alvorecer de uma época de ouro revelou-se apenas mais um agravante na já combalida condição dos trabalhadores. Uma perda progressiva de direitos e garantias sociais instalou-se em larga escala, resultando em um processo global de dilapidação do estatuto econômico da classe proletária.

Surgem daí novas configurações que, segundo Guy Standing, culminam na formação do precariado, o qual, conforme sua leitura, pode ser definido da seguinte maneira:


o precariado poderia ser descrito como um neologismo que combina

o adjetivo “precário” e o substantivo relacionado “proletariado”. Neste livro, o termo é frequentemente usado nesse sentido, embora tenha limitações. Podemos afirmar que o precariado é uma classe-em-

formação, se não ainda uma classe-para-si, no sentido marxista do termo. (2014, p. 23).


Na visão de Standing, o precariado, que à época de seu texto ele constatou como ainda em formação, deveria ser assumido como uma classe nova e perigosa, posto ser menos organizada que o proletariado tradicional, e ser submetida a condições muito mais aviltantes que esta, no que a revolta se mostrava não só iminente, como também de consequências imprevisíveis.

No entanto, a visão de Standing está longe de ser unânime. Há questionamentos que apontam não apenas para determinadas fragilidades de sua construção conceitual, como também põem em dúvida a validade de se procurar uma nova definição para o fenômeno em voga, o qual, em visões dissonantes, é tido como já incorporado em definições consagradas da análise social.

Mais uma vez, recorremos a Ricardo Antunes, que, em O privilégio da servidão, apresenta suas oposições à categoria apresentada por Standing, a qual, segundo ele, advém de um erro de concepção, em que:


com esse desenho crítico - ainda que a descrição empírica de Standing seja ampla e com informações relevantes - sua análise confere estatuto de classe ao que de fato é uma parcela do proletariado, e a mais precarizada, geracionalmente jovem, que vive de trabalhos com maior grau de informalidade, muitas vezes realizando atividades parciais, por tempo determinado ou intermitente. A resultante desse equívoco analítico levou o autor, inclusive, a concebê-la como “uma classe perigosa”, “em si” e “para si” diferenciada da classe trabalhadora. (ANTUNES, 2018, p. 58).


A posição de Antunes é bastante incisiva. A classe intitulada precariado na verdade é apenas um recorte do antigo conjunto proletário, e que já poderia ser identificado em épocas anteriores, só que com a diferença de que agora se encontra em processo de franca expansão, ou seja, os movimentos de precarização do trabalho estão numa linha ascendente. Assim, dentro do conjunto dessas razões, segundo o sociólogo brasileiro, o entendimento acerca do precariado se forma de maneira bastante equivocada.

De qualquer forma, o que fica claro, tanto nas discussões de Standing quanto de Antunes, é que há, dentro do cenário mundial do mundo do trabalho, uma progressão contínua das iniciativas de supressão dos direitos dos trabalhadores, bem como o agravamento de suas condições de atuação e de oportunidades, gerando uma

condição cada vez mais aviltante e propensa a produzir um número cada vez maior de mazelas sociais.

Tais processos, já emergidos e consolidados no século XX, adquirem, com o desenvolvimento das teletecnologias, novos patamares que apontam para uma completa dissolução dos vínculos basilares que orientam as relações outrora constitutivas do trabalho, cujo resultado é o abandono das políticas de seguridade social que antes ofertavam garantias mínimas para os trabalhadores.

Agora, o que se encontra em evidência é o movimento intitulado uberização, cujo nome alude à famosa empresa ligada ao modelo de economia de compartilhamento, na qual se usa “a internet para conectar consumidores com provedores de serviço para trocas no mundo físico, como aluguéis imobiliários de curta duração, viagens de carro ou tarefas domésticas” (SLEE, 2017, p. 21). No caso da Uber, o serviço oferecido é o de intermediação entre motoristas e passageiros, que podem trafegar pela cidade a custos módicos, enquanto do outro lado tem-se um indivíduo com a opção de utilizar seu carro para adquirir renda. Um cenário bastante animador, não fosse pelo fato de que o que se esconde por trás dele é uma grande corporação cuja finalidade é aquela comum a todas as suas semelhantes, ou seja, a de obter o máximo de lucro para suas operações mediante a exploração dos trabalhadores.

A diferença, no caso, encontra-se nos meios empregados para atingir esse objetivo, que são, se não inéditos historicamente, ao menos articulados de maneira inovadora. A empresa consegue combinar de modo surpreendentemente novo a ausência de regulação e taxas pelos órgãos competentes e uma contínua exploração e controle via tecnologia do regime de trabalho, no que o motorista, colocado pretensamente na condição de autoempreendedor, vê-se obrigado a seguir normas extremamente rígidas quanto as suas atividades, sob pena de não ser mais admitido como membro da suposta comunidade livre. Tudo isso com a vantagem – para a empresa - de não ter de arcar com nenhuma das garantias trabalhistas, uma vez que “a classificação como contratante independente livra a companhia de ter de pagar por direitos trabalhistas e de ter de respeitar os padrões de emprego. O risco é inteiramente empurrado para o contratado” (SLEE, 2017, p. 134).

O que é importante observar no sistema envidado pela Uber é o quanto este modifica um item estrutural que irá ter consequências imensas para a organização do

mundo do trabalho. Em termos estritos, o que ela promove como grande mudança é a supressão - tanto em termos jurídicos, como também personalísticos - da figura dos patrões. Logo, cria-se um mecanismo no qual não só não há a quem recorrer para garantir determinados direitos inerentes às classes trabalhadoras, como também não aparece mais o responsável por obter ganhos a partir da exploração do trabalho. Sobre a tela dos telefones móveis, o que se tem é tão apenas um aplicativo e seus comandos, e não mais um chefe. Dessa forma, tudo o que resta ao motorista é conformar-se ao que é estabelecido por essa mão invisível, ao passo em que deve ele próprio estabelecer-se como o seu único provedor aceitável, a quem compete não apenas conceder sua força produtiva, mas também providenciar os meios para sua atividade - compra e manutenção de automóveis, combustíveis e outros.

Como resultado, o que se tem é a diminuição praticamente absoluta de toda e qualquer garantia de bem-estar para os que atuam como operários nesse negócio. Férias e licenças médicas sequer podem ser pensadas. Muito menos é possível exigir a adesão das empresas a um sistema de aposentadoria. Tudo vai por conta própria. E, uma vez estando incapacitado para o trabalho, muitas vezes devido a este, o que resta ao trabalhador é tão somente relegar-se ao mais completo abandono, enquanto os executivos de compartilhamento ampliam vertiginosamente suas finanças.

Obviamente, a expansão desse modelo, por força de suas vantagens para o capital, tem-se tornado endêmica e atingido setores cada vez maiores da economia, o que, para que ocorra de maneira mais eficiente, requer que sejam repensadas as condições legais e políticas das diversas sociedades. No Brasil, tais processos de ajustamento tiveram início em 2016, numa ação que envolveu e continua a envolver de maneira coordenada mudanças no campo da educação e das leis trabalhistas, as quais, quando postas em exame, revelam um projeto sólido de recrudescimento do trabalho precarizado, cujo expansionismo encontra amparo na ascensão em larga escala das crenças ideológicas ultraliberais.


Duas reformas, um objetivo


Tão logo assumiu a presidência da república, em 12 de maio de 2016, a gestão liderada por Michel Temer tratou de pôr em prática o projeto de instituir de forma contundente as políticas ultraliberais no Brasil, as quais estavam orientadas, como

não poderia deixar de ser, por uma forte redução dos investimentos públicos e por iniciativas que visavam desregular os diversos setores da economia, em especial no que dizia respeito à condição dos trabalhadores, num movimento que teve como fato principal a reforma trabalhista, assinada em julho de 2017.

Entretanto, meses antes desse evento crucial para a inserção do país nos rumos da uberização, um outro fato seria precursor desse cenário social precarizado. Trata-se da Medida Provisória 746, publicada em 23 de setembro de 2016, posteriormente convertida na Lei 13.415, e que promovia a chamada reforma do ensino médio, a qual, diferentemente da trabalhista, foi posta em curso de maneira completamente vertical, sem a menor abertura para o diálogo com os diversos segmentos da sociedade.

Qual o sentido de tal atitude? Se considerarmos o contexto geral das mudanças pretendidas, esta ruma para um caminho bem definido. A reforma do ensino médio é estratégica não somente para inserir as políticas educativas na ordem ultraliberal do trabalho, mas também para sedimentar o terreno a fim de criar as condições formativas e culturais para que o ideário político-econômico pretendido fosse posto em vigor, no que as posições expressas na MP servem como evidência.

É o que se mostra desde a exposição de motivos, em que são evocadas as razões pelas quais a MP está sendo implementada, e onde aparece a intenção clara de adequar o que está sendo ensinado nas escolas com as diretrizes do mundo do trabalho. Para tanto, usa-se como argumento a percepção do estudante, ou seja, daquele que é o mais interessado no processo:


Atualmente o ensino médio possui um currículo extenso, superficial e fragmentado, que não dialoga com a juventude, com o setor produtivo, tampouco com as demandas do século XXI. Uma pesquisa realizada pelo Centro Brasileiro de Análise e Planejamento – Cebrap, com o apoio da Fundação Victor Civita – FVC, evidenciou que os jovens de baixa renda não veem sentido no que a escola ensina. (EM 00084/2016/MEC).


Trata-se de uma estratégia bastante problemática, quando analisada mais de perto. É bastante óbvio concluir que ao aluno de baixa renda o ensino oferecido se revela desconectado com suas realidade e expectativa. Mas essa é uma consideração que deriva de diversos outros fatores, sendo que o principal deles é o estado de vulnerabilidade em que se encontra. Ao estudante que está em situação mais favorável, que tem meios para estudar visando ao ingresso no ensino superior e não

precisa se preocupar de pronto em obter renda, a impressão sobre os conteúdos ministrados pode ser bastante diferente, e rumar para uma aceitação bem mais pacífica do ensino oferecido. Contudo, para além dessa discussão, o que é preciso destacar aqui é que tais justificativas presentes no texto são indicadores inequívocos de fortes influências extraeducativas em sua redação.

Essas mesmas influências se alastram pelas determinações mais pragmáticas da nova lei, que estabelecem um forte enxugamento do currículo a ser percorrido, no qual apenas as disciplinas de matemática, língua portuguesa e língua inglesa permanecem como obrigatórias. Obviamente, a opção pelo idioma estrangeiro obedece ao princípio de inserção do aluno no mundo tecnológico e da cultura dominante, para os quais o inglês é a língua oficial. Seguindo essa linha, disciplinas de imersão crítica aos processos sociais foram negligenciadas, notadamente sociologia e filosofia, cuja presença passou a depender do esforço diretivo das gestões estaduais. Como se vê, o que persevera é a visão unívoca e inconteste de um modelo de escola plenamente direcionado à ordem vigente.

No lugar de uma educação pluralista e ampla, serão oferecidas ao aluno visões parciais, travestidas de escolhas por interesse. Além dos reduzidos conteúdos da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), o aluno poderá seguir por um dos chamados itinerários formativos - linguagens, matemática, ciências da natureza, ciências humanas e formação profissional. No entanto, o que não foi dito à sociedade nas propagandas governistas é que a oferta de tais itinerários dependerá das condições de cada sistema de ensino, que o fará mediante sua conveniência. Assim, dificilmente os estudantes poderão de fato optar livremente por qual percurso seguir, recebendo na verdade aquilo que tão só lhes é oferecido, de maneira assumidamente restrita.

No que tange à formação profissional, um fato chama a atenção. O texto considera que poderão ministrar aulas “profissionais com notório saber reconhecido pelos respectivos sistemas de ensino, para ministrar conteúdos de áreas afins à sua formação ou experiência profissional, atestados por titulação específica ou prática de ensino em unidades educacionais” (Art. 6º, Lei 13.415), o que abre caminho não só para que indivíduos sem a devida formação docente atuem nos sistemas de ensino, fato que em si já é um problema, mas também definindo as diretrizes a serem adotadas nos processos formativos daí por diante, e que irão ter como foco tão

somente o desenvolvimento da competência técnica, do saber fazer, em detrimento do debate sobre o significado social das práticas relativas às diversas profissões, as quais exigem uma muito maior imersão em problemas teóricos e aproximativos às questões sociais, o que, a considerar o perfil permitido dos professores ingressos, não será priorizado.

Eis aí um aspecto que se delineia como um ente totalizante do sentido da reforma que ora se implementa. A compreensão do processo educativo enquanto práxis humanizadora encontra-se obliterada pelo lema da aplicabilidade dos conhecimentos adquiridos, numa reedição ligeira e anacrônica do tecnicismo dos anos de chumbo, grande responsável por acentuar as desigualdades educativas até hoje vigentes.

Com isso, tem-se sedimentado o terreno ideológico em que irá avançar o projeto de repressão trazido pela nova legislação trabalhista, a qual não encontrará na população, devido ao cenário elaborado, focos significativos de resistência. Como bem nos lembra Bourdieu (2012), esse é um tipo de tarefa que se realiza sempre mediante a obtenção de anuência por parte dos oprimidos, que, no caso em questão, uma vez estando habituados à lógica exploratória no espaço da escola, naturalizam- na e não se afetam em reproduzi-la no âmbito do trabalho, razão por que as alterações nos dois âmbitos estão sendo trabalhadas em conjunto.

Nisso se identificam algumas relações, afora aquelas mais de fundo, diretas entre a organização do ensino médio proposto e as normas para o trabalho definidas na lei Nº 13.467, de 13 de julho de 2017, que também se encontra pautada no princípio de uma suposta flexibilização, que nada mais é que uma forma de fazer com que o trabalhador ofereça mais trabalho em condições menos favoráveis, tal como na escola os estudantes precisarão ter um aprendizado melhor sem as mesmas condições e conteúdos de ensino. De igual maneira, a qualificação deficitária obtida na escola se coaduna com o tipo de trabalhador que passa a ser exigido, cuja desvinculação àquele que o emprega faz com que este deva procurar estar apto a desempenhar suas funções por conta própria, uma vez que o frágil vínculo entre eles não abre espaço para o custeio de iniciativas de capacitação profissional.

Por outro lado, a oferta de ensino em EaD prevista nas diretrizes curriculares nacionais para o ensino médio, homologadas por meio da Resolução 03, de 21 de novembro de 2018, constitui um símile das regulamentações quanto ao teletrabalho e

à jornada intermitente, em que se é convocado ao posto tão somente quando houver necessidade, tal como o aluno em disciplinas a distância. Com isso, constroem-se indivíduos comportamentalmente adequados a conviver com uma oferta de condições favoráveis cada vez mais escassa e conforme interesses que lhes são alheios.

Já o afrouxamento das normas de ingresso na docência, que permite admitir professores com base no notório saber para aplicar determinadas formas de ensino técnico, relaciona-se bem às regras de terceirização, em que o trabalhador é convocado por uma empresa mediadora para cumprir uma determinada atividade, sem o mínimo de observância às suas aptidões por parte daqueles que recebem o serviço prestado, interessando tão somente o resultado final, que é o ganho econômico pretendido.

Todas essas alterações, todos esses movimentos de precarização da escola e do trabalho, rumam para o mesmo e único objetivo, traçado desde os primórdios da sociedade do capital: a manutenção da taxa de lucro por meio da produção de mais- valia absoluta e relativa, a qual vem se tornando uma tarefa cada vez mais difícil devido aos limites estruturais do capitalismo (NETTO e BRAZ, 2012), o que vem demandando medidas cada vez mais radicais e deletérias no que diz respeito à situação geral dos trabalhadores.

Se os professores, que também não escapam a essa lógica exploratória, irão ceder às pressões impostas por esse estado de forças, ainda não é possível prever. Contudo, certo é que estes se constituem como a última linha de resistência quanto a esses processos, no que a crítica e a organização de classe formam as armas mais incisivas e transformadoras.


Considerações finais


Ao tempo em que o presente texto era redigido inicialmente, tramitava em sua fase decisiva no senado federal a reforma da previdência, a qual teve sua promulgação efetivada em 12.11.2019. Com ela, não só o presente, mas principalmente o futuro dos trabalhadores será amplamente afetado pelo ciclo de reformas ultraliberais instituído no país nos últimos anos, o qual, além de prover uma trajetória degradante no mundo do trabalho, também comprometerá por completo os anos que restam aos indivíduos em suas aposentadorias.

Desse modo, fecha-se um círculo de precarização do trabalho, que agora terá destituído as elaborações do estado de bem-estar social, deixando em seu lugar tão somente um rastro de empobrecimento e de produção contínua de desigualdades entre a maioria esmagadora dos trabalhadores e a mínima classe dos donos do capital.

Contudo, ainda é cedo para afirmar que tal movimento encontra-se plenamente estabelecido. Em países onde tais reformas foram implantadas há mais tempo, têm ocorridos protestos cada vez mais incisivos contra elas. Assim, ainda existe um largo horizonte de disputa. Porém, quaisquer que sejam as perspectivas, a educação seguirá sendo o alicerce de seu advento, para o qual se procurará sempre, por meio de mudanças no sistema educativo, direcionar os rumos da nação. Nisso, tem-se comprovada de maneira inequívoca sua importância econômica e política, para a qual os educadores precisam estar atentos permanentemente.


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V.18, nº 37, set-dez (2020) ISSN: 1808-799 X


FINANCIAMENTO DA EDUCAÇÃO E AS IMPLICAÇÕES À GARANTIA DO DIREITO E QUALIDADE DA EDUCAÇÃO1


Eraldo Souza do Carmo2


Resumo

Este artigo tem a finalidade de analisar as implicações da estrutura de financiamento da educação à garantia do direito a educação. Problematizam-se as bases de cálculo para a distribuição de recursos da educação que ainda não são suficientes para superar as desigualdades educacionais regionais, principalmente dos municípios com pouca capacidade de arrecadação. As análises têm como base uma revisão teórica e a legislação educacional no que se refere às bases de financiamento da educação. Denota-se que as estratégias dos governos com a criação dos fundos para realizar a distribuição dos recursos da educação não contribuíram para elevar a qualidade da oferta educacional como tem sido propagado.

Palavras chaves: Direito a Educação. Financiamento da educação. Políticas educacionais.


LA FINANCIACIÓN DE LA EDUCACIÓN Y LAS IMPLICACIONES PARA GARANTIZAR EL DERECHO Y LA CALIDAD DE LA EDUCACIÓN

Resumen

Este artículo tiene como objetivo analizar las implicaciones de la estructura de financiamiento de la educación para garantizar el derecho a la educación. Se problematizan las bases de cálculo para la distribución de los recursos educativos, que aún no son suficientes para superar las desigualdades educativas regionales, especialmente en municipios con poca capacidad recaudatoria. Los análisis se basan en una revisión teórica y normativa educativa en cuanto a las bases para el financiamiento de la educación. Se observa que las estrategias de los gobiernos con la creación de fondos para llevar a cabo la distribución de los recursos educativos no contribuyeron a elevar la calidad de la oferta educativa como se ha propagado.

Palabras clave: Derecho a la educación. Financiamiento de la educación. Políticas educativas.


FINANCING EDUCATION AND THE IMPLICATIONS FOR GUARANTEING THE RIGHT AND QUALITY OF EDUCATION

Abstract:

This article aims to analyze the implications of the education financing structure in order to guarantee the right to education. The calculation bases for the distribution of education resources are problematized, which are still not enough to overcome regional educational inequalities, especially in municipalities with little tax collection capacity. The analyzes are based on a theoretical review and educational legislation with regard to the bases for financing the education. It is noted that the strategies of governments with the creation of funds to carry out the distribution of education resources did not contribute to raising the quality of educational offer as it has been propagated.

Keywords: Right to Education. Education financing. Educational policies.


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1Artigo recebido em 01/06/2020. Primeira avaliação em 14/06/2020. Segunda avaliação em 17/07/2020. Terceira avaliação em 10/08/2020. Aprovado em 03/09/2020. Publicado em 25/09/2020.

DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v18i37.42969.

2Doutor em Educação pela Universidade Federal do Pará. Professor da Universidade Federal do Pará (Campus de Cametá), Pará / Brasil. E-mail: eraldo@ufpa.br ORCID: 0000-0003-4824-8016. Lattes: http://lattes.cnpq.br/4280135157998138.

Introdução


O artigo busca problematizar a estrutura de financiamento da educação brasileira definida pela Constituição Federal (CF) de 1988 e, posteriormente, com a criação da política de Fundos enquanto estratégia do governo federal para corrigir as distorções nos recursos destinados à educação. Aspectos que não se tornaram tão eficazes, tendo em vista que essa política não representou recursos adicionas ou novas fontes de recursos à educação. Ainda que ocorra a complementação de recursos da União e as transferências complementares diretas aos municípios por meio de programas educacionais, esses não são, no entanto, recursos fixos nos caixas dos municípios.

Desta maneira, o financiamento da educação tem fomentado o debate das políticas educacionais nos últimos anos, tendo em vista assegurar o direito à educação, principalmente às populações em condições de vulnerabilidade social. Essas questões se refletiram na centralidade das discussões quando da aprovação do Plano Nacional de Educação (PNE), Lei nº 13.000/2014, quanto ao investimento de 10% do PIB até o final do período a que se refere o plano (BRASIL, 2014).

Entretanto, discutir os aspectos e a estrutura de financiamento da educação brasileira requer compreender as responsabilidades da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios com os processos educacionais. A LDB 9394/1996 assegura que cabe à União a coordenação da política nacional de educação, articulando os diferentes níveis e sistemas, além de ter função normativa, redistributiva e supletiva em relação às demais instâncias educacionais (§ 1º do Art. 8º) (BRASIL, 1996).

Dentre as funções da União é importante destacar que o art. 9º, inciso III, assegura que ela deve “prestar assistência técnica e financeira aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios para o desenvolvimento de seus sistemas de ensino e o atendimento prioritário à escolaridade obrigatória, exercendo sua função redistributiva e supletiva” (BRASIL, 1996).

Essa forma de distribuição das competências pelos sistemas de ensino, conforme preconizou a LDB 9.394/1996, se reflete também na distribuição dos recursos e nas responsabilidades que asseguram o direito à educação para as populações. Entretanto, esse processo, segundo estudiosos da educação, expressa contradições. Para Castro (2011), ele representou avanço ao deixar expressas as responsabilidades de cada ente federado com o ensino, cabendo ao município a

educação infantil, a educação básica, e a EJA. Esta responsabilidade municipal também é item de questionamento, ou seja, até que ponto os municípios conseguem responder de forma satisfatória às suas populações?


A centralidade das políticas educacionais nos municípios e os recursos educacionais


Discutir financiamento remete a pensar no conjunto de determinadas despesas, levando-se em conta a capacidade de poder financiá-las. Na educação, esse processo não é diferente e trata-se de uma política de direito social. Sendo assim, não se pode definir um beneficiário, já que todos o são.

É a partir dessa assertiva que situamos o debate do financiamento da educação, mecanismo principal de execução das políticas educacionais, que, em tese, devem garantir a efetivação do direito outorgado constitucionalmente. A educação, enquanto um direito de todos, deve ser assegurado pelo Estado e pela família, como define o artigo 205 da CF/1988. Neste aspecto, a colaboração da sociedade deve envidar esforços para que ela se efetive como direito, perpassando, inclusive, pelos aspectos financeiros. Esses esforços devem se dirigir ainda para o atendimento das condições de oferta da educação, descritas no artigo 206 da Constituição Federal de 1988, como expressam, a título de exemplo, os incisos I e VII: “igualdade de condições para o acesso e permanência na escola e garantia de padrão de qualidade”. (BRASIL, 1988).

Dessa forma, para a garantia do direito à educação, os responsáveis pela oferta devem atentar-se para os diversos aspectos que abarcam os interesses do Estado, dos alunos, da sociedade e dos profissionais da educação, buscando valorizar tanto o aspecto formativo quanto o salarial.

É importante reforçar que os gestores devem prover, em condições de igualdade, o acesso e a permanência dos alunos na escola, bem como a qualidade desse acesso e permanência baseados no princípio da qualidade, a fim de evitar as desigualdades, principalmente em um país como o Brasil, que possui dimensões continentais. A esse respeito, Sena (2014, p. 270) destaca que: “[...] a qualidade da educação integra o núcleo essencial do direito à educação, já que a garantia do padrão de qualidade é um princípio a partir do qual o ensino deve ser ministrado”. Depreende-se, com isso, que o direito à educação não se encerra na garantia do

acesso, mas estende-se à permanência, pois deve ser considerado o aspecto da qualidade enquanto obrigação constitucional, conforme está na CF/1988.

De forma legítima, o direito à educação, já inscrito na CF/1988, foi ratificado em outros termos jurídicos brasileiros, como no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) – Lei nº 8.069/1990 (BRASIL, 1990) e na LDB 9.394/1996 (BRASIL, 1996). No

entanto, a garantia dos direitos nos marcos jurídicos, por si só, não é sinônimo da melhoria da qualidade na educação; é preciso, sim, um conjunto de políticas educacionais para que esses direitos sejam efetivados. Nessa mesma perspectiva, Rezende Pinto (2014, p. 42) destaca que:


[...] a declaração dos direitos sociais na Lei Maior brasileira, embora louvável e de suma importância, não foi suficiente para garantir a sua efetivação e, por conseguinte, para a concretização de uma sociedade mais livre, justa e solidária, como preconiza nossa carta constitucional.


A efetivação do direito à educação, como destaca a autora, ainda é um processo que está em disputa na sociedade, a fim de garantir condições de igualdade a todos os cidadãos. É importante destacar que a LDB (9.394/1996) está em plena sintonia com a CF/1988, no que concerne à garantia do direito à educação.

Apesar da importância desses marcos jurídicos, segundo Cruz (2011, p. 82), ainda são frágeis essas garantias do direito à educação tendo em vista que não garantem que os governos o efetivem, já que “as condições materiais que poderiam viabilizar a implementação do direito à educação ainda são muito genericamente definidas, principalmente frente à insuficiência de recursos para universalizar e qualificar a oferta educacional pública”.

A referida LDB, em relação à educação pública, avança ao definir atribuições e responsabilidades aos entes federados com cada nível de ensino e ao promover a organização e a oferta da educação básica (BRASIL, 1996). Entretanto, segundo Cruz (2011), a distribuição das competências entre os entes federados pelo ensino teria um efeito inverso no regime de colaboração e compartilhamento das responsabilidades, dados os desníveis socioeconômicos regionais e intrarregionais. É compreensível a preocupação da autora, uma vez que, na divisão de competências dos níveis do ensino, coube aos municípios as maiores responsabilidades com a oferta, ou seja, são eles os responsáveis pela Educação Infantil e pelo Ensino Fundamental, além da Educação Especial e EJA, sendo o ente federado que mais garante essa oferta.

A título de exemplo, o Censo Escolar de 2018 para a Educação Básica registrou um total de 48.455,867 (quarenta e oito milhões quatrocentos e cinquenta e cinco mil oitocentos e sessenta e sete) matrículas. Desse total, 47,7%, estavam situadas nas redes municipais, 32,9% nas redes estaduais, 18,6% nas redes privadas e 1% na rede federal. (INEP, 2018).

Esses dados evidenciam o tamanho da responsabilidade que os municípios têm para com a oferta e a garantia do direito à educação. A propósito, eles têm atribuições obrigatórias, como a oferta de ensino para a população de 4 a 14 anos de idade, o que corresponde à Pré-Escola e ao Ensino Fundamental conforme art. 4º, inciso I da LDB 9394/1996 (BRASIL, 1996).

A concentração de matrículas nas redes municipais acarreta muito mais responsabilidades e custos financeiros para esses entes. Com efeito, o ensino em creche, embora seja facultativo, é solicitado fortemente que seja ofertado nos estabelecimentos públicos atendendo a forte cobrança social. E os municípios tentam suprir também, embora em menor escala, a essa demanda social.

Do ponto de vista das demandas da sociedade, a mesma não está interessada em saber de quem é a responsabilidade de atendimento de seus direitos nem de onde provêm os recursos para atendê-los, ela apenas exige seus direitos, pois “[...] cada sociedade incorpora o reconhecimento de determinadas necessidades educacionais e que o Estado deva assumir certa responsabilidade de resposta” (CASTRO, 2007, p. 860).

Nesse sentido, tem recaído sobre os municípios uma cobrança maior da sociedade para com a oferta de ensino, a fim de garantir o direito à educação. Essa é a forma que tem pautado as relações dialéticas entre as iniciativas governamentais e os interesses sociais pela ampliação das políticas educacionais, para garantir o acesso de todos à escola, independentemente de ser obrigatória ou facultativa. Entretanto, não se efetiva um direito sem os recursos financeiros necessários para custear as políticas de acesso. Assim, as municipalidades, principalmente as das regiões Norte e Nordeste do país, se encontram impedidas de prover uma educação de qualidade (CRUZ, 2011).

Portanto, o modelo de federalismo do Estado brasileiro tem atribuído maiores responsabilidades educacionais aos municípios, sobretudo a partir da LDB 9.394/1996. A justificativa do governo central seria a de que os governos locais seriam mais eficientes no gerenciamento das políticas educacionais, mas,

contraditoriamente, a descentralização se fez com base na centralização das definições das políticas educacionais e dos recursos financeiros (CRUZ, 2011).

Embora o repasse de recursos dos governos estaduais e da União para os municípios tenha sido crescente, a realidade demonstra que esse repasse não é suficiente. Isso, de certa forma, inviabilizou a autonomia dos munícipios para definirem suas políticas e cumprirem com as responsabilidades que lhes foram atribuídas.


A base constitucional do financiamento da educação brasileira para assegurar o direito a educação


O centro das discussões dos últimos anos está definido no que se refere a oferta de ensino, aliado à qualidade da educação. Esses são direitos assegurados pela CF/1988, expressos no artigo 206 (BRASIL, 1988), e também no artigo 4º da LDB 9394/1996 (BRASIL1996). Destaca-se ainda que o Novo PNE, Lei nº 13.005, definiu como sua sétima meta fomentar a qualidade da Educação Básica em todas as etapas e modalidades de ensino (BRASIL, 2014).

Entretanto, para se alcançar essa premissa, é preciso entender o quanto os governos estão dispostos a investir no custo-aluno em suas diversas realidades para que a qualidade do ensino seja materializada e saia do nível das intencionalidades e dos planos. É conveniente compreender a estrutura de financiamento da educação na legislação brasileira, uma vez que são esses instrumentos que asseguram as receitas para a União, Estados e Municípios implementarem as políticas educacionais.

Nessa perspectiva, o marco estrutural do financiamento da política educacional brasileira, segundo Castro (2011), está constituído pela CF/1988, pelo ECA (Lei nº 8.069/1990), pela LDB (Lei nº 9.394/1996), pela EC nº 14/1996, pela EC nº 53/2006 e a de nº 59/2009, e por um conjunto de normas infraconstitucionais e resoluções do Conselho Nacional de Educação. Esse arcabouço jurídico fixa, de acordo com o autor, a atual estrutura de responsabilidades e competências para a oferta da educação no Brasil.

Para Castro (2011), ao menos a partir dos aspectos constitucionais, o direito básico à educação está bem definido para o atendimento à população. Entretanto, para além do que está assegurado na legalidade do direito, é preciso avançar no campo do debate, para que o Estado implante políticas que considerem a diversidade

socioeconômica e a diversidade geográfica do Brasil, pois, assim, poderão ser reduzidas as desigualdades educacionais.

Em face disso, a CF/1988 estabeleceu responsabilidades dos entes federados para com o financiamento da educação, definindo os percentuais que devem aplicar na Manutenção e Desenvolvimento do Ensino (MDE). Dessa forma, o artigo 212 assegura que a União aplicará, anualmente, nunca menos de 18% (dezoito por cento), enquanto que os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, devem aplicar 25% (vinte e cinco por cento), no mínimo, da receita resultante de impostos (BRASIL, 1988).

Ademais, a CF/1988 assegurou o salário-educação, proveniente do recolhimento da contribuição social das empresas, que complementa o financiamento da educação brasileira (BRASIL, 1988, § 5º, Art. 212). A EC/53 no artigo 1º § 6º definiu que “as cotas estaduais e municipais da arrecadação da contribuição social do salário- educação serão distribuídas proporcionalmente ao número de alunos matriculados na educação básica nas respectivas redes públicas de ensino”. (BRASIL, 2006).

Essas prerrogativas asseguradas pela CF/1988 sobre o financiamento da educação foram, segundo Castro (2011), ratificadas pela LDB 9394/1996, em seu artigo 69, ao apontar a proveniência dos recursos para a manutenção e desenvolvimento do ensino público no país (BRASIL,1996). A fim de evidenciar a estrutura do financiamento da educação no Brasil e a proveniência das receitas dos entes federados, são apresentados dados no Quadro 1.

Observa-se nele, que a estrutura do financiamento da educação no país está, portanto, concentrada na captação de recursos por meio da vinculação de impostos de forma obrigatória da União, dos Estados e dos Municípios. Identificam-se, nesse mesmo quadro, os impostos vinculados à educação de cada ente federado, ou seja, os que geram receitas para a educação. Assim, há os federais, os estaduais e os municipais. Nessa estrutura tributária, os municípios saem em desvantagem, uma vez que o recolhimento de IPTU, ISS, ITBI vai oscilar muito de um município para outro, influenciando no quantitativo desequilibrado de recursos para a educação; assim como os impostos dos Estados também oscilam, refletindo em desigualdade no quantitativo de recursos de um estado para outro.

Quadro 1 – Impostos e contribuições sociais arrecadados pela União, Estados, Distrito Federal e Munícipios, que geram recursos da educação, conforme percentuais definidos a serem aplicados em MDE


União

Estados

Municípios

1 Orçamentários (Tesouro Nacional)

Orçamentários (Tesouro Nacional)

Orçamentários (Tesouro Nacional)

Ordinários do Tesouro

Vinculação de receita de impostos (25%) para MDE

Vinculação de receita de impostos (25%) para MDE

Vinculação da receita de impostos (18%) para

MDE


ICMS – FUNDEB (20%)=(5%)


IPTU

(I.R)

IPVA- FUNDEB (20%)=(5%)

ISS

(I.P.I)

ITCM - FUNDEB (20%)=(5%)

ITBI

(I.T.R)

IRRF - FUNDEB (20%)=(5%)

IRRF

Transferência

Transferência

(I.O.F

FPE - FUNDEB (20%)= (5%)

FPM - FUNDEB (20%)=(5%)

IPI – EXP - FUNDEB (20%)=(5%)

(I.I.)

IPI –EXP - FUNDEB (20%)= (5%)

ITR - FUNDEB (20%)=(5%)

IOF - FUNDEB (20%)=(5%)

(I.E)

Lei Kandir - FUNDEB (20%)= (5%)

ICMS - FUNDEB (20%)=(5%)

IPVA - FUNDEB (20%)=(5%)

(I.G.F)

Subvinculação do FUNDEB dos Estados

Subvinculação do FUNDEB

União

Estados

Municípios

2 Contribuições Sociais

2 Transferências

2 Transferências

Salário-educação/cota federal um terço

Salário-educação/cota federal

Salário-educação/cota estadual

Contribuição sobre o lucro líquido

Orçamentários da União

Salário-educação/cota federal

Contribuição para a seguridade social

Aplicação do salário educação/cota federal e outras fontes do FNDE

Salário-educação/cota municipal

Receitas brutas (prognósticos)

Orçamento do Estado

3 Mistos

3 Contribuições sociais

3 Orçamento da União

Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza

Salário educação/cota estadual- dois terços

Aplicação do salário-educação/cota federal e outras fontes FNDE

4 Outros

4 Outros

4 Outros

Operações de crédito


Diretamente arrecadados


Diretamente arrecadados

Renda líquida da loteria federal

Renda de órgãos autônomos


Operações de créditos


Operações de créditos

Aplicação do salário- educação/cota federal e outras fontes do FNDE

Diretamente arrecadados


Diversos


Diversos

Diversos

Fonte: Castro (2011), EC 14/2006. Material elaborado pelo autor.

Esses recursos que compõem o fundo da educação são arrecadados, de acordo com Castro (2007, p. 858), “[...] de forma impositiva ao cidadão pelo Estado”. O financiamento é misto e complexo, porém, a lógica da vinculação “é uma das medidas políticas mais importantes para garantir disponibilidade de recursos para o cumprimento do vasto rol de responsabilidades do poder público nesta área” (CASTRO, 2011, p. 32).

Ainda no quadro 01, observa-se que a partir das receitas dos impostos vinculados à educação são gerados os recursos que financiam as políticas educacionais dos entes federados. Cumpre esclarecer que os percentuais que se destinam aos financiamentos da educação atribuídos à União (18%) e aos Estados (25%) incidem sobre as receitas líquidas dos impostos, ou seja, é somente após realizarem as transferências aos demais entes que são aplicados os devidos percentuais.

Cumpre destacar também que os recursos para financiar a educação, assegurados em sua maioria na CF/1988, são provenientes do recolhimento dos impostos e complementados com as contribuições sociais das empresas, o salário- educação. Entretanto, essa forma de calcular os recursos para a educação causa instabilidade financeira para os entes federados, uma vez que as receitas têm como termômetro o desempenho da economia do país.

Gouveia e Polena (2015, p. 256) reforçam essa ideia de que o desenho de financiamento da educação pública no Brasil, com base na vinculação de receitas dos impostos de diferentes entes federados, tem garantido uma relativa estabilidade aos investimentos em educação, mas também compreendem, da mesma forma, que “[...] em tempos de crescimento econômico, o investimento em educação cresce de forma quase inercial, como reflexo do aumento da arrecadação. O oposto acontece em contextos de crise, quando há queda na arrecadação”.

Isso se reflete nos constantes cortes no orçamento para a área da educação, que vêm ocorrendo de forma exponencial em todos os governos nos momentos de crise econômica, sob o argumento de se fazer o ajuste fiscal. Para além desses aspectos, a partir do ano de 1996, teve início um novo processo de distribuição dos recursos da educação, o que não significou diminuição e nem tampouco acréscimo de novas receitas para a educação, pelos entes federados.

O marco regulatório, nesse contexto, foi a aprovação da EC nº 14/1996, que criou o FUNDEF, regulamentado pela Lei nº 9.424/1996. A partir desse marco jurídico,

15% (quinze por cento) dos recursos dos impostos vinculados à educação passaram a ser subvinculados ao referido fundo de cada Estado e do Distrito Federal. Assim, cada ente estadual e mais o Distrito Federal passaram a ter um fundo constituído com parte de seus próprios recursos e com recursos oriundos dos municípios – desses, apenas os de transferência, como pode ser verificado no quadro 01.

Como definiu a EC de nº 14/1996, o fundo era de natureza contábil (sem estrutura administrativa), por isso, não representou novos recursos para a educação, pois apenas subvinculou recursos que, por direito, eram dos estados e municípios. Para Gemaque (2011), o fundo caracterizou-se como de gerenciamento e não de captação de novos recursos à educação.

Importa destacar que o artigo 2º da Lei de nº 9.424/1996 deixou explícito que “os recursos do Fundo deveriam ser aplicados na manutenção e desenvolvimento do ensino fundamental público, e na valorização de seu Magistério”. Quanto à distribuição dos recursos entre o Estado e os municípios, ela deveria considerar a proporção do número de alunos matriculados anualmente nas escolas cadastradas, nas respectivas redes de ensino, por meio da realização do Censo Escolar, tomando como base de cálculo o valor aluno para as matrículas de ensino fundamental (BRASIL, 1996, § 1º do Art. 2º).

Entretanto, a Lei do FUNDEF assegurou a diferenciação do valor por aluno, segundo os níveis de ensino e tipos de estabelecimento (§ 2º do Art. 2º). Dessa forma, os cálculos para a distribuição dos recursos do fundo deveriam considerar as matrículas de: 1ª a 4ª séries; 5ª a 8ª séries; estabelecimentos de ensino especial e escolas rurais (BRASIL, 1996). De outra forma, a EC nº 14 assegurou no artigo 5º, § 3º, que a União complementaria os recursos dos fundos, em cada Estado e no Distrito Federal, caso o valor por aluno não alcançasse o mínimo definido nacionalmente (BRASIL/EC, 1996).

Assim, deu-se início à política de fundo na estrutura educacional brasileira, em que, a partir da subvinculação dos recursos dos impostos (15%), foram criadas novas estratégias de distribuição entre os estados, o distrito federal e municípios. Diante disso, a matrícula de cada rede de ensino passou a ser o indicador principal para mensurar os recursos que cada um dos Estados, municípios e o distrito federal receberiam do fundo. Gemaque (2011), ao refletir sobre a finalidade do FUNDEF destaca que esse fundo foi instituído com a perspectiva de que:

[...] revolucionaria a educação ao promover justiça social, equidade nos gastos aluno, descentralização do ensino, redução das disparidades regionais. Configurou-se como uma política focalizada visto que priorizou exclusivamente uma etapa da educação básica – o Ensino Fundamental. Ancorou-se na lógica de que o problema central do financiamento da educação residia no seu gerenciamento, decorrente da incompatibilidade entre o atendimento às matrículas e a capacidade fiscal dos entes federados. Caracterizou-se, portanto, como um Fundo de gerenciamento e não de captação de novos recursos para financiar “novos” programas implementados no Ensino Fundamental, pois era constituído da subvinculação dos recursos já vinculados à educação. (GEMAQUE, 2011, p. 92).


Portanto, são esclarecedoras as explicações de Gemaque (2011) sobre as condições e justificativas governamentais em que foi instituída a política de fundos no sistema educacional brasileiro. Destaca-se a intenção do Estado brasileiro de pretender fazer uma revolução educacional, mas sem acréscimo de novas fontes de recursos para a educação. Criou-se uma política de financiamento sem recursos, apenas sobre as mesmas bases de financiamento da educação em vigor. Para tanto, o principal argumento do Estado foi o de que o problema da educação não estaria no aporte de mais recursos, mas sim no gerenciamento das cifras disponíveis (SHIROMA, 2000).

Embora o fundo tenha sido constituído pelos Estados e pelo Distrito Federal, que subvincularam as receitas dos seus impostos, manteve-se a relação desigual entre estados e regiões do país, considerando o desnível financeiro que existe entre essas federações. Essas desigualdades, para Gemaque (2011), ao final do FUNDEF, ainda eram evidentes, sobretudo quando os estados permaneceram com os mesmos valores per capita de renda, no ano de 2006, em relação a 1998. Como exemplo de menor per capita, citou o caso do Maranhão, e o de maior, o Estado do Acre – ambos se mantiveram em condições iguais ao final de 10 (dez) anos do FUNDEF.

À luz desses dados, Gemaque (2011) pontuou a contradição no argumento justificador da implementação do FUNDEF, que reduziria as disparidades entre custo- aluno. Assim, enfatiza que se confirmou a previsão inicial de que esse fundo, nos moldes em que foi organizado, não diminuiria as disparidades regionais.

Por conseguinte, o FUNDEF, ao final de 2006, foi substituído por outro fundo, o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e Valorização do Magistério (FUNDEB), que foi regulamentado por meio da Lei nº 11.494/2007, com previsão de funcionar até 2020. Diferencia-se do antigo fundo por atender toda a

Educação Básica, porém, continua sendo de natureza contábil e constituído a partir da subvinculação dos impostos, mas ampliado em 20%, como expõe o quadro 1.

Com uma situação análoga a do FUNDEF, os municípios só contribuem para o fundo com os percentuais dos impostos recebidos das transferências da União e dos Estados, que são deduzidos diretamente para o fundo. Portanto, as contribuições das taxas como IPTU, ISS entre outros impostos municipais ,estão isentos do fundo, mas não de serem destinadas aos respectivos percentuais de 25% para a educação.

Conforme estabelecido no artigo 6º da Lei do FUNDEB, a União deve fazer complementação de 10% (dez por cento) do total dos recursos que constituem os fundos, sempre que, no âmbito de cada Estado e no Distrito Federal, o valor médio ponderado por aluno não alcançar o mínimo definido nacionalmente (BRASIL/FUNDEB, 2007).

Quanto à distribuição dos recursos do fundo, ela deve ser proporcional às matrículas efetivadas em cada rede educacional de responsabilidade obrigatória, considerando os resultados oficiais publicados pelo Censo Escolar de cada ano. Os cálculos devem ser realizados com base no valor/aluno, divulgado anualmente pelo FNDE, e devem considerar as diferenças entre etapas, modalidades e tipos de estabelecimento de ensino da Educação Básica, como define o artigo 10 da lei.3

Essa forma de realizar o cálculo para a distribuição dos recursos entre as redes de ensino representou um avanço em relação ao FUNDEF, uma vez que este considerava apenas os níveis de ensino e tipos de estabelecimento, urbano e rural. Logo, o FUNDEB, além de atender toda a Educação Básica, no cálculo valor aluno/ano passou a considerar não só a localização dos estabelecimentos de ensino (urbano e rural), mas também as etapas, as modalidades e os níveis de ensino atendidos com as respectivas matrículas. Essa equalização do valor gasto aluno/ano, tendo como referência o indicador de matrícula, foi considerada por Castro (2011) inovadora.


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3 I - creche em tempo integral; II - pré-escola em tempo integral; III - creche em tempo parcial; IV - pré- escola em tempo parcial; V - anos iniciais do ensino fundamental urbano; VI - anos iniciais do ensino fundamental no campo; VII - anos finais do ensino fundamental urbano; VIII - anos finais do ensino fundamental no campo; IX- ensino fundamental em tempo integral; X - ensino médio urbano; XI - ensino médio no campo; XII - ensino médio em tempo integral; XIII - ensino médio integrado à educação profissional; XIV - educação especial; XV - educação indígena e quilombola; XVI - educação de jovens e adultos com avaliação no processo; XVII - educação de jovens e adultos integrada à educação profissional de nível médio, com avaliação no processo. (BRASIL/FUNDEF, 2007).

Assim, atualmente, no FUNDEB, o valor aluno/ano é calculado com base em 17 (dezessete) variáveis, conforme observado no artigo 10, enquanto, no FUNDEF, eram apenas 4 (quatro). Contudo, para Bremaeker (2011, p. 60), esses coeficientes foram decididos de maneira arbitrária, uma vez que foram “acordados” por representantes do MEC, dos estados e dos municípios. Em seu entendimento, “o estabelecimento de coeficientes únicos para todo o país fez parecer que o custo das modalidades de ensino seria o mesmo nos diferentes rincões da Amazônia e na cidade de São Paulo, no Nordeste ou no Sul do país.”.

Os fatores de ponderação de custo-aluno assim definidos causaram, segundo Pinto (2007, p. 891), muitas controvérsias, tendo em vista que os critérios utilizados não abarcaram o custo real das etapas e modalidades de ensino. Com isso, reforçou- se a tese de Bremaeker, para quem esse cálculo foi uma decisão política, que teve como parâmetro a busca de um acordo mínimo entre estados e municípios. Ainda conforme Pinto:


A busca de um entendimento mínimo que garantisse a aprovação do fundo impediu, contudo, que fossem tomados como parâmetro, no seu primeiro ano de funcionamento, fatores de ponderação que explicitassem as diferenças reais de custo. Assim, não há justificativa, por exemplo, para que um aluno de EJA custe menos que um aluno do ensino fundamental, a não ser que se tenha como objetivo oferecer- lhe uma educação de baixa qualidade. (PINTO, 2007, p. 892).


Diante do exposto pelo autor, verifica-se que o Estado ainda não se dispôs a realizar estudo para se chegar a parâmetros mais coerentes com a realidade de cada região do país, a fim de estabelecer a distribuição dos recursos do fundo tendo em vista as assimetrias regionais. Por isso, apesar de se estabelecerem novos coeficientes que ampliaram a distribuição dos recursos em relação ao FUNDEF, ainda não foram suficientes para corrigir as distorções entre Norte e Sul do país. Nessa perspectiva, conforme os critérios de distribuição dos recursos do fundo, 1 (um) aluno do campo das séries iniciais em uma escola do Marajó tem o mesmo peso que 1 (um) aluno de uma escola na região Sul do país. Entretanto, as realidades geográficas e sociais são totalmente antagônicas.

Logo, apesar dos avanços, os critérios estabelecidos não representaram as condições ideais para a oferta de um ensino de qualidade, pois os procedimentos acordados, ao que se evidencia, interessavam à União, uma vez que a definição de critérios regionais poderia elevar sua contribuição aos fundos dos estados das regiões

Norte e Nordeste, que são as que mais dependem financeiramente das transferências da União. Além disso, segundo Pinto (2007), é nessas regiões que estão situados os quatro Estados (MA, CE, AL e PA) onde o investimento por aluno é mínimo.

Para se chegar a um custo de cada modalidade de ensino em cada um dos estados, era preciso que fosse realizada, no entendimento de Bremaeker (2011), uma extensa pesquisa no país, sobretudo porque as assimetrias ainda são bastante fortes entre as regiões brasileiras, bem como entre o campo e a cidade. Para que o direito à educação ocorra em condições de igualdade, o custo por aluno deve ser resultado das diferenças das assimetrias regionais. Desse modo, é preciso avançar em cálculos que sejam mais coerentes com as realidades socioeconômicas dos Estados, como bem pontuou Bremaeker (2011). Portanto, as políticas educacionais para atenderem a população em condições de igualdade vão sempre exigir maior aporte de recursos financeiros do Estado.

Retomando as discussões do FUNDEB, importa destacar a intencionalidade do governo em ampliar os recursos e abrangência desse fundo, que passou a contemplar a Educação Infantil, a Educação de Jovens e Adultos, a Educação Especial e o Ensino Médio. Em relação aos recursos, ampliou-se para 20% o percentual da subvinculação dos impostos, além de ter acrescentado mais três impostos (IPVA, ITCD, ITR) ao fundo. Também a União passou a contribuir com 10%, de forma efetiva, a partir do ano de 2010.

Entretanto, o incremento de recursos foi inferior ao de alunos incluídos, o que significa um valor aluno/ano menor. De acordo com Bremaeker (2011) e Pinto (2007), foram acrescentados 62,6% a mais de alunos em 2006 para serem contabilizados com os recursos do FUNDEB, porém, em termos de recursos para o fundo, os percentuais somaram apenas 37,3%. Essa realidade trouxe consequências negativas aos estados e municípios, uma vez que tiveram de arcar com mais recursos do tesouro para manterem o padrão do atendimento nos moldes do FUNDEF.

Outro aspecto negativo para os municípios,relacionado ao FUNDEB, ocorreu, segundo Bremaeker (2011, p. 60), no processo da distribuição dos recursos do fundo, considerando que “[...] antes recebiam recursos estaduais para a manutenção dos alunos do ensino fundamental e que passaram a repartir os recursos com o financiamento do ensino médio”. Essa situação ocorreu principalmente, em relação aos municípios de menor porte geográfico, tendo em vista que:

Como estes municípios recebem em valores per capita um repasse maior de FPM e também de ICMS, as deduções dessas receitas para a constituição do fundo estadual do FUNDEB é relativamente elevada. Como eles possuem um pequeno número de alunos, o repasse dos recursos provenientes do fundo estadual – crédito do FUNDEB – é menor que a dedução, provocando um déficit nas suas contas. (BREMAEKER, 2011, p. 62).


Essas contradições, evidenciadas por Bremaeker (2011), acerca da captação e distribuição dos recursos dos fundos, em que uns perdem e outros ganham, têm sido uma das principais características dessa política, sem que se tenham estabelecido critérios para corrigir essas distorções. Por conseguinte, em meio a essas divergências, a EC nº 53/2006 preconiza que “a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios deverão assegurar, no financiamento da Educação Básica, a melhoria da qualidade de ensino, de forma a garantir padrão mínimo definido nacionalmente” (BRASIL, 2006, Art. 60, § 1, ADCT).

A questão que se apresenta é que, mediante o anúncio da qualidade do ensino, existe um hiato denominado insuficiência de recursos financeiros. Isso não é garantido nem mesmo pela política de fundos para garantir o atendimento educacional a todos os cidadãos nas mesmas condições de igualdade. Para Amaral (2012, p. 29), “o Brasil está entre os países que possuem maiores dificuldades para resolver os grandes desafios educacionais de sua população [...]”, por causa da falta de recursos que correspondam às demandas educacionais.

Em detrimento desse aspecto, desde a elaboração do PNE, que vigorou entre 2001 e 2010 (Lei nº 10.172/2001), tem sido pautada a elevação dos gastos públicos em educação, referentes ao percentual do PIB. Mesmo tendo sido aprovado pelo Congresso Nacional um percentual de 7%, foi vetado pelo Presidente da República à época, o senhor Fernando Henrique Cardoso. O plano foi encerrado e o veto nunca mais voltou a ser discutido no congresso (CRUZ, 2011; AMARAL, 2012).

Amaral (2012) pontua que, ao final do PNE, a relação dos recursos da educação com o PIB voltou a ser discutida. Com isso, ganhou novos contornos, com a aprovação da EC nº 59/09 garantindo que na aprovação dos próximos planos de educação fosse obrigatório assegurar a relação de um percentual do PIB com a educação. Tal proposição foi garantida pela Lei 13.005/2014, que aprovou o novo PNE e assegurou, na meta 20: “ampliar o investimento público em educação pública de forma a atingir, no 5° ano de vigência dessa lei no mínimo, o patamar de 7% do PIB

do País e, no mínimo, o equivalente a 10% do PIB ao final do decênio” (BRASIL, 2014).

Há de se recordar que a base estrutural que garante o financiamento da educação no Brasil está assentada, em sua maior parte, no recolhimento dos impostos vinculados à educação e nas contribuições sociais das empresas, expressas no salário-educação. Por isso, o fato de que a política de fundos, apesar de sua importância, principalmente por assegurar que 60% dos recursos devem ser aplicados em MDE, não se configura como uma política de financiamento da educação. Até porque ela não agrega novas receitas à educação, apenas fazendo a distribuição de recursos ao subvincular receitas de impostos que, por lei, pertenciam aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios.

Diante do que se apresenta, verifica-se uma dicotomia entre o direito à educação, assegurado constitucionalmente com seus custos diferenciados em cada realidade dos municípios brasileiros, e o que se tem disponível para gastar, sempre inferior à demanda educacional, pois “[...] o limite em assegurar o direito à educação passa também pelo quantitativo de recursos disponibilizados” (GEMAQUE, 2011, p. 110). No entanto, a conta que se tem de fazer para garantir o direito à educação deve ser invertida, ou seja, não do que se tem disponível, mas do quanto se precisa.

Por fim, a atual estrutura de financiamento da educação, mesmo tendo ampliado os gastos, como destaca Castro (2014), dispõe de recursos insuficientes para financiar as políticas educacionais de interesse social com as melhorias substantivas, ou seja, que representem a ampliação do acesso aliado à qualidade social da educação.


O efeito perverso do financiamento da educação para a garantia do direito a educação nos municípios


Nos últimos anos, a sociedade obteve um conjunto de conquistas no que se refere ao direito à educação, mas, contraditoriamente, os investimentos ficaram sob a responsabilidade dos municípios. A exemplo, a ampliação do Ensino Fundamental para nove anos (dos 6 aos 14 anos), por meio da Lei nº 11.274/2006 (BRASIL, 2006), e em 2009, a obrigatoriedade da oferta de ensino a partir dos 4 anos de idade, com a aprovação da EC nº 59/2009 (BRASIL, 2009).

Com isso, foram atribuídas mais responsabilidades aos municípios, com implicações circunstanciais no campo do direito à educação. Cabe destacar que as municipalidades vinham assumindo matrículas de alunos de faixas etárias de 4 a 6 anos, porém, de forma facultativa; com a aprovação das legislações, a oferta passou a ser obrigatória. Diante do exposto, não cabe contestar a textualidade da lei, dada sua importância como conquista social que representou para a sociedade, principalmente para as camadas mais pobres da população. Com efeito, Alves e Pinto (2011) enfatizam:


[...] que a ampliação da obrigatoriedade é um importante avanço no que se refere ao direito à educação, sobretudo diante das evidências de que a obrigatoriedade tem promovido uma redução das desigualdades educacionais nos níveis de ensino obrigatórios – pelo menos no que se refere ao acesso – nos países que adotaram tal estratégia (ALVES; PINTO, 2011, p. 127).


Observa-se o mesmo entendimento e compreensão dos autores sobre os benefícios sociais que a ampliação do direito à educação, de forma obrigatória, representa para as populações menos favorecidas. Para Alves e Pinto (2011), apesar de o acesso à escola ter sido garantido, a qualidade tem ficado a desejar; assim sendo,


se esse critério não for considerado no processo de expansão, poderá causar uma ‘inclusão excludente’ ou apenas uma inclusão quantitativa, que não garantiria os resultados educacionais esperados para os indivíduos e, consequentemente, para o país (ALVES; PINTO, 2011, p. 148).


Todavia, apesar da importância dessa conquista social, esse processo não se fez acompanhar de novas fontes de recursos para a educação, não ampliando, por conseguinte, o valor aluno/ano que recebem da distribuição do FUNDEB e das demais receitas de impostos previstas constitucionalmente.

Contraditoriamente, o ente da federação que menos arrecada imposto na estrutura tributária do país é o que vem assumindo, nos últimos anos, mais responsabilidades com a oferta do ensino obrigatório (de 4 a 14 anos). Como pontuam Ednir e Bassi (2009), as regras constitucionais definem que o maior arrecadador seja o governo federal, seguido dos Estados e, por último, os municípios.

Por essa ótica, considerando também as inúmeras demandas sociais que cada município acumula sob sua responsabilidade, depreende-se que as regras do jogo

são desiguais. Tomando por base as regras constitucionais em vigor no país, Ednir e Bassi (2009) exemplificam os percentuais de tributos que as três esferas de governo arrecadaram no ano de 2005: a união arrecadou 68,4%, o conjunto dos estados 26% e o conjunto dos municípios 5,6%. Mesmo após a União realizar as transferências de parte dos tributos a Estados e Municípios, e os Estados, aos municípios, as desigualdades ainda persistem. Ao final, a União continua centralizando 57,6% dos recursos, os estados 25,2% e os municípios, 17,2%. (EDNIR; BASSI, 2009).

Observa-se, portanto, o nível de desigualdade que há entre as esferas de governo na arrecadação dos tributos, sendo a participação dos municípios (5,6%) inexpressiva diante do total. No entanto, é onde se efetivam as principias políticas na área da saúde, assistência social, educação, meio ambiente, saneamento básico, entre outras (EDNIR; BASSI, 2009). Contraditoriamente, apesar de terem a menor arrecadação, são os municípios que têm as maiores responsabilidades na garantia do direito à educação obrigatória.

Essa realidade desigual sobre a partilha dos impostos torna os municípios dependentes das receitas de transferência da União, como a do Fundo de Participação dos Munícipios (FPM). Além do mais, como destacaram Ednir e Bassi (2009), os gestores locais, em função disso, tornaram-se reféns dos governos estaduais e federal, na busca de mais recursos para complementar suas receitas, a fim de investirem em políticas públicas em favor da população.

As responsabilidades pelas políticas educacionais, a fim de assegurar o direito à educação para as populações locais, têm se apresentado, nesse cenário, como um dos maiores desafios aos municípios. Desde a aprovação da LDB (9.394/1996), a constituição da política de fundos (FUNDEF/FUNDEB) e a aprovação da EC nº 59, uma série de políticas têm-se concentrado sob a tutela municipal. Essas ações do governo federal, para Castro (2011), tiveram como função estabelecer novos mecanismos de gestão; critérios técnicos sobre a alocação dos recursos financeiros da educação, para induzir a descentralização institucional e financeira das ações, bem como para criar mecanismos de avaliação dos sistemas de ensino.

Esse conjunto de medidas, todas efetivas com maior ou menor intensidade, serviu para fortalecer o papel coordenador e articulador do governo federal no gerenciamento do ensino e, posteriormente, de toda a Educação Básica (CASTRO, 2011). Mas, as responsabilidades pela oferta educacional ficam a cargo dos municípios e vêm crescendo anualmente, desde as atribuições, conferidas pela LDB

9.394/1996, pela oferta do Ensino Fundamental e da Educação Infantil, e ainda se somam a isso a EJA e a Educação Especial. Os efeitos desse processo são expressos na evolução de matrícula nas redes municipais de ensino, no aumento do número de estabelecimentos, no transporte escolar, nos profissionais da educação, dentre outras responsabilidades.

No que diz respeito à evolução de matrículas, Pinto (2007) demonstra que, no ano de 1991, as redes municipais de ensino eram responsáveis por 37% das matrículas públicas, quando, em 2006, chegaram a 52%. Em contrapartida, em 1991, as redes estaduais concentravam 55% das matrículas desse nível de ensino, reduzindo para 40%, em 2006, redução de 15 pontos percentuais nesse período.

Outro dado que evidencia como as responsabilidades educacionais dos municípios tem crescido de forma circunstancial é a evolução do número de funções docentes nas redes municipais de ensino em relação às redes estaduais. De acordo com as informações do Censo Escolar de 2006, do total de funções docentes que atuavam nas redes públicas (federal, estadual e municipal), cerca de 50% pertenciam às redes estaduais de ensino e 34%, às redes municipais. Contudo, no ano de 2014, enquanto os Estados possuíam 36% do total de funções docentes atuando em suas redes de ensino, os municípios já contavam com um índice de 63%, ou seja, um acréscimo, em termos percentuais, de 29% para o período (MEC/INEP, 2006; 2014). Isso é mais uma evidência de que as mudanças das políticas educacionais do governo federal têm atribuído bem mais responsabilidades aos municípios.

Soma-se a isso o fato de a EC nº 53/2006 ter determinado a criação do piso salarial profissional nacional para os profissionais do magistério público da Educação Básica; com isso, alguns municípios, para se adequarem às determinações da lei, aumentaram suas receitas para fazer frente ao gasto de pessoal. (CASTRO, 2011). Observa-se, assim, que uma série de demandas educacionais tem sido incorporada aos municípios – todas justas, do ponto de vista do direito à educação, porém, todas demandando recursos. Ao que tudo indica, essas variáveis - salários dos professores, ampliação do ensino fundamental de oito para nove anos; obrigatoriedade da oferta da educação a partir dos quatro anos de idade - foram subestimadas no cálculo de quanto isso representaria em termos de investimentos educacionais.

Consequentemente, a premissa da política de fundo, como expressa na EC nº 53, de garantir a equalização de oportunidades educacionais e o padrão mínimo de qualidade da educação escolar, tem sido comprometida. Tal fato é resultado de uma

alta demanda educacional aos municípios com base em uma distribuição de recursos no valor aluno/ano sem as condições de promover o ensino de qualidade (PINTO, 2007).

Avalia-se, nesse contexto, que a instituição da política de fundo pela União, mesmo tendo ampliado sua participação com o FUNDEB, em termos de recursos aos Estados e Municípios, não foi suficiente para equalizar as oportunidades educacionais oferecidas às populações entre as regiões do país. Destaca-se, ainda, que a obrigatoriedade da pré-escola impôs novamente aos municípios uma readequação em suas redes de ensino para acolher essa nova clientela de estudantes, ou seja,


[...] além do investimento financeiro na melhoria da infraestrutura educacional das redes de ensino – o que passa pelo aumento da capacidade instalada para gerar novas vagas, pela melhora dos prédios, investimento em materiais e equipamentos, formação de professores e melhoria das condições de trabalho dos profissionais da educação –, o enfrentamento de questões sociais históricas, como a discriminação racial, o conflito urbano/rural, as disparidades do federalismo fiscal brasileiro e a superação dos problemas específicos da oferta de ensino em cada etapa de escolarização contemplada pela emenda. (ALVES; PINTO, 2011, p. 147-148).


Compartilha-se do mesmo entendimento desses autores de que a adoção dessas medidas é fundamental para que esse direito à escola se efetive de maneira satisfatória. São ações que demandariam recursos adicionais aos municípios, principalmente os que são dependentes de verbas de transferências da União.

Essa nova inclusão obrigatória se soma ao que Pinto (2007, p. 881) alertava no processo de implantação do FUNDEB, que o aumento da participação municipal nas matrículas da educação romperia “[...] o equilíbrio entre os alunos atendidos e a capacidade financeira dos municípios”, porque, explica o autor, as municipalidades ficariam com mais matrículas do que os Estados. Em contrapartida, as receitas líquidas de impostos dos municípios seriam cerca de três quartos inferiores à obtida pelos Estados. Essa condição desigual na participação dos tributos entre os entes da federação, nas palavras do autor, “demostra uma situação de grande fragilidade do atual sistema de financiamento” da educação (PINTO, 2007, p. 881).

Contraditoriamente, a União, ente com maior capacidade de captação de recursos e que concentra mais da metade dos impostos recolhidos, como apontaram os estudos de Ednir e Bassi (2009), tem contribuído de forma insuficiente com os municípios de baixa capacidade financeira para que estes ampliem seus

investimentos com educação, principalmente os que ficam nas regiões Norte e Nordeste. Por isso, o pacto federativo e o regime de colaboração têm que avançar em termos das responsabilidades financeiras, a fim de diminuir as assimetrias regionais.


Considerações finais


As análises aqui apresentadas evidenciaram que o avanço das conquistas sociais em relação ao direito à educação de forma obrigatória, foram extremamente importantes à sociedade. Entretanto, as atribuições em garantir essas conquistas ficaram sob a responsabilidade apenas dos municípios, de forma direta, apesar da justificativa de que, por meio dos fundos educacionais, a União esteja exercendo seu papel de colaboradora. Entretanto, são recursos insuficientes, que inviabilizam a educação de qualidade.

Portanto, as bases do financiamento da educação para assegurar o direito à educação nas municipalidades não correspondem às necessidades. Na ampliação da oferta da educação básica, os dados evidenciaram que os municípios têm assumido maiores responsabilidades em relação aos demais entes da federação. Outra questão analisada diz respeito à contradição existente entre os discursos que apregoaram a ampliação dos recursos para a educação e a não alteração da matriz do financiamento. Com isso, a ampliação dos recursos tem ocorrido, mas não na mesma proporção que a inclusão de matrículas nas redes educacionais públicas.

Apesar de apresentar pontos negativos, a política de fundo possui pontos positivos, entre eles o estabelecimento do valor aluno/ano, o fato de as matrículas serem referência para calcular quanto cada rede de ensino deve receber. Verificou- se, no entanto, que embora o acesso à educação tenha crescido, os recursos não cresceram na mesma proporção.

Por fim, é notório os limites e os efeitos do financiamento da educação para os municípios, tendo em vista que, nos últimos anos, tem sido atribuída a eles uma série de responsabilidades. Por outro lado, verificou-se que o ente da federação que menos arrecada impostos é o que menos recebe das transferências, por isso, os municípios, principalmente os mais pobres, têm sérios limites para financiar suas políticas educacionais e responder à população com políticas satisfatórias.

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SHIROMA, E. O. et al. (Orgs.). Política Educacional. Rio de Janeiro: DP&A, 2000.

LISTA DE PARECERISTAS DA REVISTA TRABALHO NECESSÁRIO - 2020


Pareceristas V.18, TN35, jan-abr (2020)

Ana Maria Motta Ribeiro (UFF) André Martins (UFFJ)

Andrea Araújo Vale (UFF) Angela Tamberlini (UFF)

Antonio Henrique Pinto (IFES) - Ad hoc Claudia Affonso (Colégio Pedro II) – Ad hoc

Cláudio Fernandes da Costa (UFF - Angra dos Reis) Elenilde Gomes Oliveira (IFCE) - Ad hoc

Elionaldo Fernandes Julião (UFF - Angra dos Reis) Ely Severiano Junior (IFRJ) - Ad hoc

Francinaide de Lima Silva Nascimento (IFRN) - Ad hoc Francisco das Chagas Silva Souza (IFRN) - Ad hoc Jaqueline Ventura (UFF)

José dos Santos Rodrigues (UFF) – Ad hoc José Luiz Cordeiro Antunes (UFF)

José Márcio Santos (Universidade Regional do Cariri) - Ad hoc Jose Moisés Nunes da Silva de Oliveira ((IFRN) - Ad hoc

Lea Calvão (UFF)

Leia Adriana da Silva Santiago (IFG) - Ad hoc Lenina Lopes Soares da Silva (IFRN) - Ad hoc Lia Tiriba (UFF)

Marcelo Lima (UFES)

Marcelo Russo Ferreira (UFBA) - Ad hoc

Maria Aparecida dos Santos Ferreira (IFRN) - Ad hoc Maria Augusta Martiarena de Oliveira (IFERS) - Ad hoc Maria de Fátima Félix Rosar (UNICAMP)

Maria Ciavatta (UFF)

Maria Cristina Paulo Rodrigues (UFF) Maria Inês do Rego Monteiro Bomfim (UFF) Marise Ramos (EPSJV/FIOCRUZ)

Mauro Titton (UFSC) - Ad hoc

Olívia Morais de Medeiros Neta (UFRN) - Ad doc Ramon de Oliveira (UFPE)

Rosangela Aquino Rosa Damasceno (IFRJ) - Ad hoc Renata Reis (EPSJV/FIOCRUZ) - Ad hoc

Sandra Morais (UNIRIO)

Sebastião Rodrigues Moura (IFPA) - Ad hoc Sonia Maria Rummert (UFF)

Tatiana Dahmer (UFF)

Vanessa Mariano Campos Ruckstadter (UEPR) - Ad hoc Zuleide Silveira (UFF)


Pareceristas V.18, TN36, maio-ago (2020)


Alexandre Maia do Bomfim (IFRJ) Ana Maria Motta Ribeiro (UFF) Andrea Araújo Vale (UFF)

Antonio Henrique Pinto (IFES) - Ad hoc

Camilla dos Santos Nogueira (TMD/UFES- Coletivo Anatália de Melo) – Ad hoc Cláudio Fernandes da Costa (UFF - Angra dos Reis)

Emmanuel Oguri Freitas (UEFS-Ba) - Ad hoc Érika Macedo Moreira (UFG) - Ad hoc

Flávio Chedid Henriques (UFRJ) – Ad hoc Jacqueline Botelho (UFF)

Janaína Tude Sevá (UFG) - Ad hoc Jaqueline Ventura (UFF)

Jesús Jorge Perez García (UNIRIO) – Ad hoc José dos Santos Souza (UFRRJ)

José Luiz Cordeiro Antunes (UFF) Kênia Miranda (UFF) – Ad hoc Lia Tiriba (UFF)

Marcelo Lima (UFES)

Maria Cristina Paulo Rodrigues (UFF)

Maria da Conceição Silva Freitas (UNB) - Ad hoc

Maurício Sarda de Faria (UFRPE) – Ad hoc Mauro Titton (UFSC) - Ad hoc

Marcos Barreto (UFF) - Ad hoc Paulino José Orso (UEOPR) – Ad hoc

Vanessa Mariano Campos Ruckstadter (UEPR) - Ad hoc María Verónica Secreto de Ferreras (UFF) – Ad hoc William Kennedy do Amaral Souza (IFRO) - Ad hoc Zuleide Silveira (UFF)


Pareceristas V.18, TN37, set-dez (2020)

Ana Elizabeth Santos Alves (UESB) – Ad hoc Ana Violeta Ribeiro Durão (FIOCRUZ) – Ad hoc Andrea Araújo Vale (UFF)

Angela Tamberlini (UFF)

Antonio Henrique Pinto (IFRN) – Ad hoc Célia Regina Vendramini (UFSC)

Claudia Affonso (Colégio Pedro II) – Ad hoc

Cláudio Fernandes da Costa (UFF - Angra dos Reis) Daisy Moreira Cunha (UFMG) – Ad hoc

Dora Henrique da Costa (UFF) Doriedson do Socorro Rodrigues (UFPA)

Eugênio Alvarenga Ferrari (UFV) – Ad hoc Haidée Rodrigues (UFF) – Ad hoc

Ivo Tonet (UFAL) Jacqueline Botelho (UFF)

Jailson Alves dos Santos (UFRJ) – Ad hoc José dos Santos Rodrigues (UFF) – Ad hoc José Luiz Cordeiro Antunes (UFF)

Justino de Souza Junior (UFC) Katia Lima (UFF)

Laura Souza Fonseca (UFRGS) Lia Tiriba (UFF)

Lívia Diana Rocha Magalhães (UESB) – Ad hoc

Marcelo Lima (UFES)

Maria Cristina Paulo Rodrigues (UFF)

Maria das Graças da Silva (UEPA) – Ad hoc Maria Tereza Esteban (UFF) – Ad hoc Ramofly Bicalho (UFRRJ) – Ad hoc

Regis Eduardo Coelho Arguelles da Costa (UFF) – Ad hoc Ronaldo Lima (UFPA)

Soraya Frazoni Conde (UFSC) – Ad hoc

William Kennedy do Amaral Souza (IFRO) - Ad hoc Zuleide Silveira (UFF)