V.18,N"37-2<120(set-dei) ISSN,1808·799X
V.18 nº 37 / set-dez (2020) ISSN: 1808-799 X
Universidade Federal Fluminense Faculdade de Educação
NEDDATE - NÚCLEO DE ESTUDOS, DOCUMENTAÇÃO E DADOS SOBRE TRABALHO E EDUCAÇÃO
REVISTA TRABALHO NECESSÁRIO: http://periodicos.uff.br/trabalhonecessario
Redação: R. Professor Waldemar Freitas Reis, s/n°, bloco D, sala 525, Gragoatá - São Domingos, Niterói - RJ, CEP 24210-201 - revistatrabalhonecessario@gmail.com
EDITORES
Lia Tiriba, Maria Cristina Paulo Rodrigues e José Luiz Cordeiro Antunes
CONSELHO EDITORIAL
Caridad Perez García (UCPEJV – Cuba), Celso Ferretti (UNISO - Brasil), Gaudêncio Frigotto (UFF / UERJ- Brasil), José Claudinei Lombardi (UNICAMP – Brasil), Maria Ciavatta (UFF - Brasil), Roberto Leher (UFRJ - Brasil), Tomás Rodrigues Villasante (UCM – Espanha), Sonia Maria Rummert (UFF - Brasil) e Virgínia Fontes (UFF / EPJV / Fiocruz - Brasil).
COMITÊ CIENTÍFICO
Alexandre Maia do Bomfim (IFRJ), Ana Margarida Campello (EPSJV/FIOCRUZ), Ana Motta (UFF), André Feitosa (EPSJV/FIOCRUZ), André Martins (UFJF), Andrea Araújo Vale (UFF), Anita Handfas (UFRJ), Angela Siqueira (UFF), Angela Tamberlini (UFF), Claudio Fernandes da Costa (UFF), Célia Regina Vendramini (UFSC), Daniela Motta (UFJF), Dante Moura (IFRN), Deise Mancebo (UERJ), Domingos Leite Lima Filho (UTFPR), Dora Henrique da Costa (UFF), Doriedson do Socorro Rodrigues (UFPA), Edison Oyama (UFRR), Edson Caetano (UFMT), Eneida Oto Shiroma (UFSC), Eraldo Leme Batista (UNIVAS-MG), Eveline Algebaile (UERJ), Filippina Chinelli (EPSJV/FIOCRUZ), Flávio Anício (UFRRJ), Francisco José Lobo Neto (FIOCRUZ), Guadelupe Teresinha Bertussi (UNAM e UFSC), Hajime Nozaki (UFMS e UFJF), Henrique Tahan Novaes (UNESP), Ivo Tonet (UFAL), Jacqueline Botelho (UFF), Jaqueline Ventura (UFF), João dos Reis da Silva Jr. (UFSCar), José dos Santos Souza (UFRRJ), Júlio Cesar França Lima (FIOCRUZ), Justino de Souza Junior (UFC), Kátia Lima (UFF), Laura Souza Fonseca (UFRGS), Lea Calvão (UFF), Lígia Klein (UFPR), Luciana Requião (UFF), Marcelo Lima (UFES), Maria Clara Bueno Fischer (UFRGS), Maria Inês do Rego Monteiro Bomfim (UFF), Maria de Fátima Félix Rosar (UNICAMP), Marcia Alvarenga (UERJ), Mariléia Maria da Silva (UDESC), Marisa Brandão (CEFET-RJ), Marise Ramos (UERJ,FIOCRUZ), Marlene Ribeiro (UFRGS), Myriam Feldfeber (UBA - Argentina), Ney Luiz Teixeira Almeida (UERJ), Olinda Evangelista (UFSC), Ramon de Oliveira (UFPE), Raquel Varela
(Universidade Nova de Lisboa - Portugal), Roberto Leher (UFRJ), Ronaldo Lima (UFPA), Rosilda Benacchio (UFF), Rui Canário (Universidade de Lisboa – Portugal), Sandra Maria Siqueira (UFBA), Sandra Morais (UNIRIO), Sérgio Lessa (UFAL),, Susana Vasconcellos Jimenez (UFC), Tatiana Dahmer (UFF),
Valdemar Sguissardi (UFSCar), Vania Motta (UFRJ) e Zuleide Silveira (UFF)
ORGANIZAÇÃO DA TN 37 (2020)
Professores/ras Doriedson do Socorro Rodrigues (GEPET/UFPA), Arminda Botelho Mourão (UFAM) e Odete da Cruz Mendes (GEPEGEAT/UFPA)
ASSISTENTES DE EDIÇÃO
Daniel Tiriba, Lândhor Borges Camello (UFF), Luiz Augusto de Oliveira Gomes (Doutorando em Educação/UFF) e William Kennedy do Amaral Souza (IFRO),
BOLSISTAS DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA
Ana Clara da Silva Souza (Serviço Social), João Marcoyves Carvalho da Silva (Serviço Social) e Maria Clara Victorino (Serviço Social)
FOTO DA CAPA
Homem, rio e barco na Amazônia- unidade trabalho e natureza, 2019 – Hugo do Carmo Sanches
MONTAGEM DA CAPA
Daniel Tiriba
V.18 nº 37 / set-dez (2020) ISSN: 1808-799 X
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Apoio:
Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoatá/SDC/UFF Bibliotecária:
Mahira de Souza Prado CRB-7/6146
V.18, nº 37, set-dez (2020) ISSN: 1808-799 X
Diz a lenda que há muitos e muitos anos, existiam dois noivos apaixonados que viviam no meio da floresta. Ela se chamava Lua e se vestia de prata. Ele se vestia de ouro, e tinha o nome de Sol. Preocupada, a Pachamama (do quíchua Pacha, "universo", e Mama, "mãe", "Mãe Terra") advertia que os dois não deveriam jamais se casar, pois o sentimento ardente e irradiante do Sol poderia queimar a Terra. E, sendo assim, o mundo poderia, enfim, se acabar! Com a separação dos namorados, a Lua resignada, chorou durante um dia inteiro.... Desconsolada, chorou a noite inteira... Sofrendo de saudades e de amor ausente, as lágrimas derramadas formaram um vale imenso! Também deram à luz um enorme rio, cercado de flora e fauna por todos os lados. Hoje, esse rio se chama Rio Amazonas – rio de alegrias, amarguras, esperanças e lutas.
Na escola, decoramos que o Rio Amazonas é o segundo maior rio do mundo, só perdendo para o Rio Nilo, que nos conta um pouco da história das economias e culturas milenares dos povos do Egito. Depois de atravessar a cordilheira dos Andes, as águas do Amazonas invadem o Brasil, percorrendo 3.165 quilômetros para, então, desaguar na imensidão do Oceano Atlântico. Saber “de cor e salteado” os afluentes da margem esquerda e da margem direita do Rio Amazonas era um dos indicativos de “boa memória” e, também, da necessária disciplina para que, qualquer um de nós, “independente de classe/cor/raça/gênero/etnia pudéssemos requerer o título de “bom aluno” (e se possível, tornar-se o “melhor aluno” da sala. E por que não, da escola?)
Além de não contar histórias que conformam a nossa cultura, os livros didáticos escondiam, diziam e ainda dizem muito pouco sobre o fato de que, por possuir a maior
1Editorial submetido em 17/09/2020. Aprovado em 18/09/2020. Publicado em 25/09/2020. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v18i37.46226.
biodiversidade do planeta, a floresta tropical é mundialmente considerada como “pulmão do mundo”. Talvez para nós, que buscamos compreender a cultura na perspectiva da concepção materialista da história, ainda esteja pouco claro que, na Região Amazônica (e em outros cantos da América Latina) vivem povos e comunidades tradicionais cujas economias e culturas se distinguem do modo capitalista de produção da existência humana. São indígenas (resistentes ou isolados), quilombolas, castanheiros, seringueiros, babaçueiros, ribeirinhos e outros grupos sociais que repartem o território para garantir sua sobrevivência nas terras da floresta, banhadas por afluentes de muitos rios, riachos e suas fontes de água e de vida. Na acepção de Fals Borda, as culturas de homens e mulheres amazônidas poderiam ser consideradas como “culturas anfíbias”. De acordo com a concepção materialista da história e da cultura, trata-se de homens e mulheres que insistem em preservar práticas sociais não capitalistas.
Historicamente, para preservar seus modos de vida, essas populações têm resistido bravamente à expansão capitalista no campo. No cenário da exploração da força de trabalho e de todas as forças da mãe-natureza estão os atuais projetos de devastação acelerada da Amazônia, o que culminou com um grande incêndio na floresta, em agosto de 2019. São programas de cunho público e/ou privado que requerem tratores, motosserras para derrubar a floresta, agrotóxicos para contaminação do solo e dos rios, além de invasões de terras demarcadas dos indígenas e remanescentes quilombolas.
Em tempos de pandemia e de pandemônio, para “passar a boiada” de Ricardo Salles (Ministro do Meio Ambiente), as frentes de garimpo ilegal caminham a todo vapor, repercutindo no aumento do contágio do vírus. Entre junho e setembro, aproximadamente, foi possível observar diversas “campanhas” virtuais nas redes sociais, nas quais lideranças de comunidades tradicionais exigiam o respeito aos seus modos de vida. Por entender que a Covid-19 é a filha mais nova do capitalismo, as lideranças do povo Yanomami gritam: “Fora garimpo. Fora Covid”. Por terem sido esquecidos pelos governantes, os povos indígenas do Alto Xingu perderam 5 caciques em 20 dias; pediam a contribuição de R$ 1,00 por pessoa para a construção de um hospital. Os Hayô Pataxó organizaram uma rifa para concorrer a um cocar, uma gamela e uma lança, pelo valor de 30 reais. A Rede de Apoio Guarany fez campanha para atingir a meta de comprar 101 cestas, mensalmente, para que as famílias não
necessitassem sair da aldeia, protegendo-se da pandemia. Em síntese, conforme os dados da “Plataforma de monitoramento da situação indígena na pandemia do novo coronavírus”, até o dia 17 de setembro de 2020, o saldo era de 32.017 casos confirmados, 807 mortes e 158 povos afetados (https://covid19.socioambiental.org/).
Com o agravamento das violências aos povos indígenas durante a pandemia, as mulheres indígenas de todo o Brasil realizaram nos dias 07 e 08 de agosto uma assembleia online com o tema O sagrado da existência e a cura da terra. Para elas, nós também somos terra, pois a terra se faz em nós.
Na verdade, estamos chegando ao final de 2020, carregando muitos desafios, não apenas na Amazônia, mas no Brasil. Um deles é decorrente da pandemia do Coronavirus, que insiste em ceifar vidas e deixar sequelas em um contingente enorme de seres humanos, ameaçando a fauna, flora e o próprio planeta. Em um contexto político e ideológico de negacionismo da ciência, outro grande desafio diz respeito ao pandemônio estabelecido pelo poder executivo inconsequente, na figura de um presidente que, como representante da extrema direita, tem absoluto descaso com a preservação da vida. As consequências do racismo estrutural e da necropolítica não poderiam ser outras: desemprego, violência física e simbólica, queimadas naturais e criadas pela ganância exacerbada, assassinatos, instituições militarizadas e miliciadas, abuso de poder, letalidade de jovens negros e negras por policiais, trabalho remoto em detrimento da saúde física e mental de trabalhadores/as. Vidas improdutivas ou pouco produtivas não fazem o menor sentido para o sistema destrutivo do capital.
Espectros do “novo” normal? Quando analisarmos as históricas contradições entre capital e trabalho, entendendo-as como contradições entre capital e vida, não é difícil reconhecer que diversas têm sido as pandemias e pandemônios que, cotidianamente, atormentam homens e mulheres de diferentes rincões do Brasil e do mundo.
Desde a chegada dos europeus e, ao longo da expansão capitalista na América, é possível observar movimentos de resistências e lutas de trabalhadores de diferentes matizes e lugares de pertencimentos, que se contrapõem às relações capitalistas de produção da vida. Assim, Inspirada em uma lenda sobre a paixão e o impossível casamento da Lua com o Sol, que gerou o Rio Amazonas, o número 37 da Revista Trabalho Necessário traz à superfície algumas dimensões da
sociobiodiversidade da imensa região amazônica. Organizado por Doriedson do Socorro Rodrigues (GEPTE/UFPA), Odete da Cruz Mendes (GEPEAGEAT/UFPA) e Arminda Rachel Mourão (UFAM), este número destina-se à publicação de estudos e pesquisas voltadas à análise de aspectos ambientais, socioculturais e educacionais, além das formas de trabalho que se constituem na Amazônia, problematizando as desigualdades regionais existentes no Brasil, na historicidade dos processos de reprodução ampliada do capital. Focalizando, ainda, múltiplas dimensões das políticas públicas de educação para crianças, jovens e adultos trabalhadores/as e, em particular, para indígenas, quilombolas, ribeirinhos e extrativistas da região.
Apreender a materialidade das relações entre trabalho, cultura e políticas educacionais na Amazônia é o desafio deste número. Experiências de outras regiões poderiam ser contempladas, mas privilegiamos a Amazônia por tudo que ela apresenta de diverso e, também, pelos sérios riscos que correm a flora, a fauna e os seres humanos que lá habitam.
Não podemos deixar de registrar que as diferentes seções que compõem o número temático Trabalho, cultura e políticas educacionais na Amazônia são o resultado do trabalho desenvolvido no Programa de Cooperação Acadêmica (PROCAD), envolvendo a Universidade Federal do Pará (UFPA), Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e Universidade Federal do Amazonas (UFAM), em articulação com outras universidades públicas e institutos federais.
Outro importante registro é a singela homenagem que a Revista Trabalho Necessário faz ao querido Paolo Nosella, nosso grande mestre!
Um abraço dos editores,
Lia Tiriba, Maria Cristina Paulo Rodrigues e José Luiz Cordeiro Antunes
Setembro de 2020.
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Arminda Rachel Mourão2 Doriedson do Socorro Rodrigues3 Odete da Cruz Mendes4
Nas disputas entre capital e trabalho, manifestam-se, nos diversos territórios amazônicos, processos intensos de exploração de recursos minero-energéticos, invasão de terras para o agronegócio, monocultivo e criação de animais com o objetivo de atender os interesses do mercado. A fim de o capital se expandir, acumular e concentrar cada vez mais, as ações predatórias visam homogeneização de identidades culturais e, para tentar impedir as lutas de resistência, buscam o silêncio dos povos e comunidades tradicionais.
Entretanto, o movimento de trabalhadores e trabalhadoras nos coloca também as lutas, conquistas e os desafios de homens e mulheres da Amazônia para preservação de suas identidades sociopolíticas, manifestas nos seus modos de produzir a existência, no campo da cultura e da educação, por exemplo. Contestam
1Artigo recebido em 21/09/2020. Avaliado e aprovado pelos editores em 22/09/2020. Publicado em 25/09/2020. DOI: http://doi.org/10.22409/tn.v18i37.46257.
2 Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) - Brasil. Professora Titular da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) - Brasil. E- mail:armindaufam@gmail.com. ORCID: 0000-0002-1940-9477.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/3864748731992379
3 Doutor em Educação pela Universidade Federal do Pará (UFPA) - Brasil. Docente da Universidade Federal do Pará, Campus Universitário do Tocantins/Cametá - Pará, Brasil. Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Trabalho e Educação (GEPTE/UFPA). Membro do Grupo de Pesquisa História, Educação e Linguagem na Região Amazônica (GPHELRA/UFPA). E-mail: doriedson@ufpa.br ORCID: 0000-0002-5120-2484. Lattes: http://lattes.cnpq.br/1127076028303549.
4 Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) - Brasil. Mestre em Educação pela Universidade Federal do Pará (UFPA) - Brasil. Professora Associada da Universidade Federal do Pará (UFPA). É credenciada no Programa de Pós-Graduação em Educação e Cultura (PPGEDUC/UFPA), onde orienta pesquisas em temas de política educacional. E-mail: ocm@ufpa.br; ORCID: 0000-0002-1475-3922. Lattes: http://lattes.cnpq.br/3058470629162300
sociabilidades do capital como forma de resistir à negação da vida imposta pelo modo de produção hegemônico: o capitalismo.
É nessa perspectiva que as produções que compõem o número temático Trabalho, Cultura e Políticas Educacionais na Amazônia analisam lutas e conquistas no campo educacional, com suas contradições, tensões, consensos e dissensos. Enfatizam os contextos socioculturais das experiências vividas por homens, mulheres, crianças, jovens, adultos que vivem e se identificam como ribeirinhos, indígenas, extrativistas, quilombolas, campesinos, dentre outras identidades, nas relações que estabelecem entre si e com a natureza, em unidade dialética.
É bastante emblemática a foto que ilustra a capa da TN 37 – Homem, rio e barco na Amazônia – unidade trabalho e natureza –, do fotógrafo e historiador cametaense Hugo do Carmo Sanches, do Estado do Pará, a quem agradecemos. Sintetiza a unidade do diverso que constitui a Amazônia, em que mulheres e homens, com seus produtos do trabalho, encontram-se integrados ao/pelo rio que lhes movimenta a vida. A embarcação carrega subjetividades construídas nos espaços/tempos das águas, possibilitando à população das comunidades ribeirinhas- extrativistas-agricultoras-quilombolas o acesso à escola. Também carrega lutas contra as investidas do capital, como a Hidrovia Araguaia-Tocantins5, a Hidrelétrica de Tucuruí6 e a de Belo Monte7, no Pará, assim como a de Santo Antônio e a de Jirau,
6 Rodrigues (2012) analisa a questão de saberes sociais e luta de classes, a partir do território de pescadores artesanais, focando também os impactos da Hidrelétrica de Tucuruí sobre as experiências de vida desses trabalhadores, dados os impactos socioambientais advindos com a construção desse empreendimento na região.
7 Padinha (2017, p. 09), estudando os impactos “[...] socioespaciais às escalas da vida das pessoas atingidas, por um “grande projeto”, a UHE Belo Monte, construída no rio Xingu, Amazônia brasileira [...]”, destaca a ação desse projeto como promotor da “[...] re(des)estruturação dos territórios onde são implantados, causando fortes impactos às espacialidades existentes e historicamente constituídas de ribeirinhos, camponeses, indígenas, bem como de moradores da periferia da cidade de Altamira – Pará
– Amazônia”.
em Rondônia, no Vale do Rio Madeira8, que destroem diferentes sociabilidades de povos de comunidades tradicionais desta mesma Amazônia, lhes impondo a luta.
É nesse contexto de unidade homens-mulheres-rio-natureza, pois, que sujeitos históricos lutam por processos educacionais que lhes integrem a existência, com seus modos de produzir a vida. E que, com suas experiências de trabalho e cultura, mediadas pela educação, possam lhes permitir a formação por inteiro, como advoga o homenageado na TN 37, presente na seção Homenagem: o professor Paolo Nosella. A partir do texto O princípio educativo do trabalho na formação humana: una spaccatura storica, o professor ressalta a necessidade de se continuar pautando e lutando por processos educacionais que promovam o acesso à cultura extrema, intensa, plena. Isto significa, na Amazônia, opor-se a processos formativos que intentem formar os trabalhadores e as trabalhadoras pela metade, com a negação de conhecimentos escolares em sua totalidade, sem escolas com infraestrutura adequada, sem a garantia de merenda e transporte escolar, sem bibliotecas, acesso à internet, sem laboratórios, que permitam redescobrir os processos de construção de conhecimentos, a partir do trabalho como princípio educativo, em reflexão no seu texto.
A singela e merecida homenagem da Revista Trabalho Necessário se materializa por meio de texto intitulado Paulo Nosella: um herege no campo Trabalho e Educação?, de Ronaldo Marcos de Lima Araujo e Luciane Teixeira da Silva, no qual os autores refletem sobre a trajetória desse filósofo no campo de estudos e pesquisa sobre Trabalho-Educação. Para o contexto Amazônico, são considerações que nos convidam para a luta em prol dos interesses da classe trabalhadora, opondo- se a toda necropolítica que, nos últimos meses, no contexto da pandemia por coronavírus, tem provocado a morte de um conjunto de homens e mulheres de comunidades e povos tradicionais. Trata-se de assumir, como Paolo Nosella, o fascismo e o socialismo como opostos que nos mobilizem a produção e movimentação política, como bem expressam Ronaldo e Luciane sobre o homenageado: “Assim,
8 Souza (2020, p. 19-20), em seu estudo sobre modos de vida de povos e comunidades tradicionais como formas de resistência ao capital, a partir das categorias trabalho-educação, economia e cultura, salienta que, em Rondônia, “No vale do rio Madeira, a construção das hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio comprometeu sobremaneira a vida de povos e comunidades tradicionais. Muitas comunidades foram alagadas e deixaram de existir, sendo seus moradores transferidos para outros lugares”. E destaca: “Em situação de constante alerta com essa situação, os povos e comunidades tradicionais discutem as suas ações na luta”.
fascismo e socialismo foram os opostos que mobilizaram a sua produção e a liberdade foi assumida como o objetivo fundamental da formação humana. Para ele [Nosella], na tese gramsciana do trabalho como princípio pedagógico, o trabalho deve ser entendido como momento educativo da própria liberdade humana, concreta e universal”.
E essa perspectiva política de estudos e pesquisas, como a que se manifesta nos trabalhos aqui reunidos, parte da materialidade histórica vivida nestes últimos anos, com a ascensão de um governo de cunho fascista, destruidor de direitos de povos e comunidades tradicionais, que impõe à comunidade científica progressista posicionamentos contra-hegemônicos, quer na definição de seus objetos de estudos, ligados ao humano e suas necessidades, analisando-os no interior das contradições capital e trabalho, quer na militância a favor da vida, o que pressupõe a luta pela educação por inteiro em diferentes territórios das diversas Amazônias que constituem a Amazônia, principalmente quando consideramos que o Brasil enfrenta um dos piores momentos de sua história.
Assim, além da Pandemia que levou a sociedade a processos de isolamento social, estamos vivendo o ultraliberalismo perverso, o qual submete homens e mulheres à barbárie, cotidianamente. A natureza tem sido devastada, a Amazônia está em chamas, o Mato Grosso enfrenta o maior incêndio de sua história. Há intenso esforço para conter as queimadas. Milhões de trabalhadores e trabalhadores estão desempregados.
Em nome do combate à corrupção, inúmeros atos ilegais são cometidos; além das mentiras (Fake News) vinculadas às redes, temos a proteção imoral à família do presidente. Lideranças são eliminadas – Marielle no Rio de Janeiro, Cacique Francisco de Souza Pereira em Manaus, Emyra Waiãpi em Pedra Branca do Amapari, Carlos Alberto Oliveira de Souza Mackpak em Manaus, Paulo Paulino Guajajara em Bom Jesus das Selvas, Firmino Praxedes Guajajara em Jenipapo dos Vieiras (Todos e todas presentes em nossas lembranças).
O Governo serve aos interesses dos ruralistas, o capital avança com leis que acabam com os direitos dos trabalhadores, ameaçam a educação e a saúde pública. Há perplexidade frente a atos insanos, porém, há esperança e muita luta para a construção de uma sociedade mais justa.
É o que mostra a TN 37, pois mesmo com todas as dificuldades que a pesquisa científica atravessa em todo o país e mais especificamente na Amazônia, pesquisamos, produzimos e construímos a resistência científica, como expressam os Artigos do número temático, a seguir.
Com Solidariedade econômica e descolonialidade do poder: um diálogo com as visões “indígenas”, marxistas e feministas, de Boris Marañón-Pimentel, temos outra visão da economia, denominando-a de solidariedade econômica, que propugna por novas formas de pensar como responder de maneira não eurocêntrica às necessidades da manutenção da vida. Para tanto, o autor apresenta algumas categorias que contribuem para entender esta nova visão. Chama atenção para a relação sociedade natureza, visto que existe um perigo real da destruição das bases materiais da vida planetária. Apresenta a esperança de construção/desconstrução das estruturas do poder colonial.
O texto A terra em pandemia: povos indígenas brasileiros e suas (derradeiras?) infâncias, de Léa Tiriba, Christiana C. Profice e Miguel T. Schlesinger, traz uma reflexão sobre a relação entre os seres humanos e a natureza na perspectiva da ecologia política, a partir de atores principais, os indígenas do Mato Grosso, mostrando que a Pandemia deixou bem visível como os direitos destes povos estão sendo violados. Evidenciam que a realidade cotidiana das crianças indígenas, a forma como são educadas, demonstra respeito para com os infantes e com o planeta terra. A materialidade do trabalho e a sua organização na comunidade de Nogueira/Alvarães/Amazonas é a temática abordada no texto A materialidade do trabalho em territórios das águas, terras e florestas da Amazônia. O campo amazônico são as terras firmes, as águas e as florestas, no qual a força de trabalho relaciona-se com os ciclos da natureza. E a partir dessa realidade, Arminda Rachel Botelho Mourão, Iraci Carvalho Uchôa e Heloísa da Silva Borges constatam a(s) ausência/insuficiências de políticas públicas de Estado, o que faz com que os trabalhadores e trabalhadoras enfrentem constantemente desafios, muito presentes também no setor educacional, o que lhes mobiliza um conjunto de lutas pela manutenção da vida, advogando-se a necessidade de a escola vincular os conhecimentos construídos nessas lutas com o vivido nos processos de ensino e
aprendizagem formais, o que ainda não se verifica.
Benedita Celeste de Moraes Pinto, Vilma Aparecida de Pinho e Beleni Salete Grando, ao apresentarem o artigo, História, memória e educação dos remanescentes quilombolas de Boa Esperança – Pará concluem que, apesar da riqueza cultural dos quilombolas, não há um trabalho efetivo no cotidiano da escola com as experiências culturais das comunidades. Assim, ao resgatar por meio da história oral as reminiscências contidas nas memórias, há a indicação de que a prática escolar tem que ser revista. No texto, o debate sobre processo de integração entre escola e a vida da comunidade, com suas experiências, é tema presente.
Com o artigo Política de formação dos professores do campo: prática de resistência na Amazônia, Hellen do Socorro de Araújo Silva, Carlos Nazareno Ferreira Borges e Maria do Socorro Dias Pinheiro focam suas análises na política de formação de educadores do campo, no contexto amazônico, buscando compreender a inter-relação com a vida dos sujeitos do campo em prol de processos de transformação da própria escola do campo como prática de resistência. Para as autoras e o autor, “O contexto de reconstrução da escola do campo requer [...] maior resistência por uma formação de professores inclusiva e com seu pilar na diversidade e nas políticas afirmativas”.
O trabalho Tecnologias digitais, trabalho docente e tempos/espaços de aprendizagem na Amazônia Paraense, de autoria de Maria Sueli Corrêa dos Prazeres e Ilda Gonçalves Batista, aponta que as mudanças na compreensão espaço/tempo na Amazônia, devido ao uso das tecnologias digitais, são contraditórias, posto que ao mesmo tempo que favorecem os processos de ensino/aprendizagem também desfavorecem o trabalho docente, sendo necessário aprofundar os estudos sobre a questão. No contexto Amazônico, as autoras apontam a necessidade de serem consideradas, nos processos de definição e uso de tecnologias, as realidades vividas pela classe trabalhadora no campo de suas relações de trabalho, no interior dos processos socioeducativos na escola.
Tendo em conta uma escola de ensino médio – a Escola Crescendo na Prática
–, criada no Assentamento Palmares II, Estado do Pará, a partir de lutas do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), Larissa de Nazaré Carvalho de Aviz analisa o sentido do ensino médio para os jovens trabalhadores, buscando compreender o processo de integração/fragmentação entre os saberes sociais produzidos pelas experiências vividas no assentamento, a partir da categoria trabalho, e os
conhecimentos escolares na formação dessa juventude. Movimento social e a educação: o Ensino Médio na Escola Crescendo na Prática é texto que nos coloca para a discussão educacional na Amazônia a necessidade de integração entre escola e vida, a partir do que fazem os movimentos sociais enquanto intelectuais orgânicos dos interesses dos trabalhadores e a cultura humana presente no universo escolar por meio também dos conhecimentos escolares.
Eleuza de Souza, Maria Edilene Ribeiro e Odete Cruz Mendes, com o artigo A participação da mulher trabalhadora como associada no STTR/CAMETÁ e a sua constituição como ser político, apresentam importante reflexão sobre o processo formativo de mulheres associadas ao Sindicato de Trabalhadores Rurais, Agricultores e Agricultoras Familiares de Cametá – STTR/Cametá, no estado do Pará, como lideranças na organização da entidade, pautando demandas e posições políticas, diante de uma sociedade de patriarcado estrutural, ligado a interesses do capital. Trata-se de texto, no dizer das autoras, que traz “[...] discussões referentes ao modo como essas mulheres se inserem na entidade, pelo modo de sobrevivência no trabalho e nas lutas do próprio sindicato, pautando suas demandas, no intuito de que sejam visibilizadas enquanto agente que como ser, no/pelo trabalho, também, produz sua existência”.
Ao analisar as comunidades tradicionais no estado de Mato Grosso, sob o enfoque materialista histórico e dialético, o texto Pesquisas sobre comunidades tradicionais em Mato Grosso: a unidade do diverso, de Ana Paula Bistaffa de Monlevade, Janaina Santana da Costa e Cristiano Apolucena Cabral, nos traz elementos que nos permitem reconhecê-las como tal. São as histórias, os costumes e as tradições, guardados na memória, que são passados de geração em geração, relacionados com as experiências vividas que permitem constituir a comunidade e lutar por uma outra forma de produzir, sendo uma resistência ao capitalismo que tudo destrói.
Por meio de imagens, Osvaldo Luís Martins de Castro e Doriedson do Socorro Rodrigues desenvolvem reflexões sobre o trabalho artesanal de pescadores/pescadoras. As imagens revelam o ser social pescador produzindo os saberes construídos no cotidiano, relacionando-os com a natureza e com outros homens e mulheres. Na seção Ensaio, com o título Tecnologias de produção da vida em imagens: saberes do trabalho da pesca em comunidades ribeirinhas, os autores
destacam as tecnologias criadas, tais como: O Paredão: uma forma de captura de pescado; O Matapí: a captura de camarões; O Paneiro: instrumento de transporte de produção; O Casco e o Remo: possibilidade de locomoção; Bloqueio ou Borqueio na pesca do mapará: um trabalho colaborativo; O trato do pescado em colaboração no cotidiano da casa; Muquém ou Moquém: a técnica do assado do Mapará. São formas que expressam o modo de vida dos pescadores e pescadoras, a partir de seus processos formativos.
Na seção Entrevista, Océlio Muniz, Membro da Coordenação Estadual do Movimento dos Atingidos por Barragens - MAB (RO), com informações concedidas a William Kennedy do Amaral Souza e Mahalia Gomes de Carvalho Aquino, chama a atenção que o governo Bolsonaro, ao procurar soluções para a economia estagnada, ameaça o bem estar da população em prol da produtividade capitalista. Na entrevista, a liderança do MAB afirma que há ascensão da extrema direita que se pauta em ideias fascistas, racistas e machistas, que ataca os direitos e territórios historicamente conquistados pela classe que vive do trabalho e pelas populações tradicionais. Na entrevista, é evidenciado que a luta é de resistência; a luta é pela vida. Na seção Teses e Dissertações, dois resumos são apresentados ao leitor, tomando como foco processos formativo-educacionais experienciados na Amazônia. Ana Maria Raiol da Costa com a tese de doutorado A experiência educativa da Casa Familiar Rural de Gurupá/PA, apresenta-nos importante análise sobre o desenvolvimento do ensino médio integrado à educação profissional do campo, a partir das mediações da Pedagogia da Alternância. Para a autora, a perspectiva formativa analisada, com base nessa Pedagogia, mostrou-se como “experiência educativa de resistência em contraposição ao modelo hegemônico [...], posto que concebe a educação a partir da realidade local, destacando-se a integração de saberes da família, da comunidade e da escola, como “[...] uma experiência de
educação integral no Campo”.
José Rivaldo Arnaud Lisboa, por sua vez, com a dissertação de mestrado Atuação da Igreja Católica na Prelazia de Cametá: o contexto da Educação Popular no período de 1980 a 1999, apresenta-nos discussão sobre o processo formativo de trabalhadores e trabalhadoras a partir de educação de cunho popular oportunizada pela Igreja Católica de perspectiva progressista, com base nas orientações da Teologia da Libertação, no contexto político da ditadura e a abertura democrática no
país. Para o autor, as materialidades produtivas desenvolvidas pelos trabalhadores e pelas trabalhadoras rurais foram tomadas como elementos importantes para nortear os processos formativos, proporcionando uma “[...] Educação Popular como denúncia da ausência do Estado; a Educação Popular como militância; a Educação Popular com foco na formação e trabalho associados a fatores econômicos; a Educação Popular na perspectiva de atividade ético-política transformadora; a Educação Popular como integração”.
Na seção Memória e Documentos, o professor e pesquisador Francisco José da Silveira Lobo Neto, com o texto Projeto Rondon: relações entre universidade e sociedade, analisa, a partir de Decretos e Leis, a trajetória do Projeto Rondon, observando a relação entre universidade e sociedade, a partir de atividades extensionistas que criavam oportunidades para que um “[...] maior número de estudantes circulasse em campi avançados de suas próprias universidades e de outras universidades”. Essas reflexões, contudo, para além de uma descrição historicista, apontam para se continuar o exercício de atividades extensionistas no país, sendo importante, para tanto, “[...] resgatar critérios como participação das populações locais na formulação e controle das ações; como uma educação da cidadania como aperfeiçoamento de direitos individuais e sociais, e nenhuma submissão às realidades perversas da desigualdade; como uma segurança nacional que integre e desenvolva sustentavelmente a todos; como igualdade de condições de educação e saúde para todos”.
Isto posto, destacamos que os resultados das pesquisas aqui reunidas, a partir de processos de investigação que tomam as contradições decorrentes de uma sociedade de classes, com interesses antagônicos, colocam-se também, no campo das discussões sobre educação e cultura, mediadas pelo trabalho de homens e mulheres, como ações contra hegemônicas a um tipo de sociedade anticulturalista e anti-intelectualista, que intenta uma realidade naturalizadora e silenciadora de desigualdades sociais, em prol do fortalecimento de ethos de vida sob orientações mercadológicas. Trata-se de pesquisas que nos apresentam, na Amazônia – ou Amazônias, com suas amplas diversidades –, a luta de homens e mulheres em proveito de processos formativos de cultura extrema, integrais, que coloquem o humano como sujeito emancipado, pleno de direitos e detentor dos resultados do trabalho, em amplas dimensões da vida.
Por último, apresentamos a seção Artigos - Outras Temáticas contendo cinco artigos, que não deixam de se articular com a tema central da TN 37 - Trabalho, cultura e políticas educacionais na Amazônia. Isto porque, os referidos textos generalizam a importância da reprodução ampliada da vida para além do espaço da Amazônia, como direito inalienável dos seres humanos.
O artigo de George Amaral e Anderson Deo, A relação entre trabalho e educação a partir da ontologia marxiana: apontamentos aos seus fundamentos, propõe a reflexão entre as categorias Trabalho e Educação. Parte da análise produzida por Karl Marx e na abordagem de György Lukács, buscando elucidar a função social que se constituem essas relações para a formação humana, uma imbricada na outra, como elementos constitutivos – nexos constitutivos - no processo de formação humana.
O artigo de Catherine Guillaumin, La formation professionnelle en france: aspects historiques, choix politiques, traductions juridiques et methodologiques põe em evidência as transformações políticas da França e seus aspectos históricos, analisando a legislação sobre a educação no país, especialmente sobre a formação profissional. Como conclui a autora, é “um assunto sempre atual nos debates educacionais e que é necessário atenção para o trabalho realizado nos Centros de Formação”. O texto é rico pela descrição que apresenta, por isso interessante para nós brasileiros, pois pouco sabemos sobre a oferta profissional atual na França voltada para jovens e adultos. Representa um excelente material para estudos comparados em Trabalho-Educação.
O texto de Ecléa Vanessa Canei Baccin e Eneida Oto Shiroma, Contexto histórico de criação do reconhecimento de saberes e competências e suas repercussões sobre o trabalho e a carreira docentes, analisa o que representa para a categoria profissional do magistério do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico – EBTT, o Reconhecimento de Saberes e Competências (RSC) para a concessão de equivalência à retribuição por titulação para fins de remuneração. Resgata o processo histórico, as resistências, as contradições, os conflitos entre governos-sindicatos, na medida que representa um mecanismo / dispositivo político de certificação de “uma certa” prática docente. As autoras, com suas análises, clarificam a contradição de fundo que o RSC acaba por significar no auto reconhecimento, remuneração e coesão da categorial profissional docente e suas lutas.
Em Reformismo e educação: a escalada liberal brasileira e suas repercussões educativas, Victor Leandro Silva analisa o cenário recente da política brasileira, sinalizando o forte impacto do reformismo ultraliberal trazidos pela mudança do mundo do trabalho e pela Reforma Trabalhista, o que leva ou alcança também o campo educativo, explicitamente com a Reforma do Ensino Médio, para possibilitar os objetivos visados pelas diretrizes da reforma trabalhista. Denuncia o processo de precarização do trabalho, a supressão dos direitos dos trabalhadores, o retorno do neotecnicismo, ampliando o processo de exploração e expropriação do trabalho criativo que estão sujeitos (precariado e uberização), por parte do capital e a consequente fragilização dos trabalhadores da educação e suas lutas.
O texto de Eraldo Souza do Carmo, intitulado Financiamento da educação e as implicações à garantia do direito e qualidade da educação, trata de temática atual e relevante no momento em que se problematiza a política dos fundos, principalmente o FUNDEB. Dialogando com alguns pesquisadores da área da educação e contando com a análise da legislação educacional, o autor, ao problematizar a política de fundos, conclui que o financiamento não representou / apresentou recursos adicionais ou novas fontes de recursos à educação, gerando limites para a sua oferta com qualidade em diferentes municípios brasileiros, além de salientar a não superação das desigualdades educacionais de recursos.
Para finalizar a apresentação da TN 37, gostaríamos de enfatizar que as reflexões que deram corpo a este número temático, cuja centralidade são as relações de trabalho vinculadas às terras, águas e florestas, tendo em vista o trabalho como princípio educativo, sugestivamente tendem a responder questões-problema que afetam as comunidades nos seus diferentes territórios amazônicos. Estas comunidades, ao produzirem suas existências no/pelo trabalho, oferecem inúmeros elementos de investigação que podem abarcar as riquezas culturais, as linguagens e os seus modos de vida, contribuindo assim para as áreas científicas e sociais.
Por meio do Programa de Cooperação Acadêmica – PROCAD(UFPA/UFMT/UFAM) que oportunizou a presente publicação, trazemos um conjunto de estudos sobre os aspectos das riquezas culturais, as linguagens e os modos de vida mediatizados pelas relações seres humanos/natureza. O fato de o PROCAD ter contemplado três universidades públicas federais situadas nos Estados do Pará, Mato Grosso e Amazonas permitiu que, a partir de uma visão plural, se
trouxesse à tona a diversidade e as singularidades da vasta região amazônica. As três universidades, em articulação com pesquisadores e pesquisadoras da Universidade Autônoma do México (UNAM) e de outros institutos federais e universidades brasileiras tomaram por base os saberes e visões cosmológicas ímpares e plurais construídas nos diferentes espaços/tempos existenciais das populações, assim como as determinações do capital e as múltiplas dimensões das políticas públicas de educação para crianças, jovens e adultos trabalhadores/as e, em particular, para indígenas, quilombolas, ribeirinhos e extrativistas da região amazônica.
Pelas reflexões produzidas na composição do presente número temático se pode depreender das realidades analisadas nesse contexto, ao mesmo tempo plural e singular, uma Amazônia que se expressa no trabalho e na cultura dos diferentes sujeitos, entendendo-se o trabalho e a cultura como categorias histórico-ontológicas onde homens e mulheres produzem as suas existências e constroem resistências em favor da vida através das relações estabelecidas no/pelo trabalho, sendo este o ato fundante do ser social. Conceber o trabalho, dessa forma, é reconhecê-lo como práxis social humana, que implica reflexão e ação, tomada de decisão e execução, ou seja, atividade intelectual e, também, atividade manual.
Convidamos o leitor/a leitora a adentrar na proposta que trazemos, que é a construção de uma nova forma de produzir, rompendo com estereótipos e evidenciando que a Amazônia é um espaço ocupado com seres humanos que vivem e pensam o mundo de outras formas, sendo necessário entender que a Amazônia precisa ser preservada.
PADINHA, M. R. Grandes objetos na Amazônia: das velhas lógicas hegemônicas às novas centralidades insurgentes, os impactos da Hidrelétrica de Belo Monte às escalas da vida. 2017. 444f. 2017. Tese (Doutorado em Geografia) - Programa de Pós-Graduação em Geografia. Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Tecnologia, Presidente Prudente.
RODRIGUES, D. do S. Saberes sociais e luta de classes: um estudo a partir da colônia de pescadores artesanais Z-16 Cametá/ Pará. 2012. 337f. Tese (Doutorado em Educação)
Programa de Pós-Graduação em Educação, Instituto de Ciências da Educação, Universidade Federal do Pará, Belém.
SOUZA, W. K. do A. Trabalho-Educação, Economia e Cultura em Povos e Comunidades Tradicionais: A (Re)Afirmação de Modos de Vida como Forma de Resistência. 2020. 222f. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal Fluminense. Niterói.
V.18, nº 37, set-dez (2020) ISSN: 1808-799 X
UNA SPACCATURA STORICA1
Paolo Nosella2
Resumo3
O texto comprova a afirmação de Pasolini: “A ‘esquerda’ é objetivamente dividida por uma grande spaccatura [divisão] histórica que separa os defensores da cultura humanista dos defensores da subcultura tecnológica”. Pasolini traduz a proposta de Gramsci para o contexto social da segunda metade do século XX, afirmando que só uma “cultura extrema” libertará o proletariado (o lumpemproletariado, os subalternos, o povaréu, a ralé) de sua “extrema” opressão. O trabalho como princípio educativo refere-se à história em movimento, articulando dois lados complementares: o econômico e o político.
Palavras chaves: Princípio educativo do trabalho; Antônio Gramsci; Pier Paolo Pasolini.
EL PRINCIPIO EDUCATIVO DEL TRABAJO EN LA FORMACIÓN HUMANA: UNA SPACCATURA STORICA
Resumen
El texto comprueba la afirmación de Pasolini: “La izquierda, objetivamente está dividida por una gran fractura histórica que separa a los defensores de la cultura humanística de los defensores de la subcultura tecnológica”. Pasolini traduce la propuesta de Gramsci para el contexto social de la segunda mitad del siglo XX, afirmando que sólo una cultura extrema liberará al proletariado (el lumpen proletario, los subalternos, la multitud, la chusma) de su opresión extrema. El trabajo, como principio educativo, atañe y compete a la historia dinámica, articulando los dos lados complementarios: el económico y el político.
Palabras claves: Principio educativo del trabajo; Antonio Gramsci; Pier Paolo Pasolini.
THE EDUCATIONAL PRINCIPLE OF WORK IN HUMAN FORMATION: UNA SPACCATURA STORICA
Abstract
The text proves Pasolini’s affirmation: “The left is objectively divided by a big historic fracture that separates the humanistic culture from the subcultural defenders.” Pasolini translates the Gramsci proposal for the social context of the XX century second half, by affirming that only an extreme culture will free the lumpenproletariat (the subalterns, the mass, the rubble) from its extreme oppression. The labor, as an educational principle, is related and pertinent to the dynamic history, because articulates two complementary sides: economic and politic
Key words: Educational principle of the labor; Antonio Gramsci, Pier Paolo Pasolin
1 O texto foi apresentado no VIII Seminário Internacional de Teoria Política - Gramsci, na Universidade Estadual Paulista - UNESP, Marília – São Paulo / Brasil, de 09 a 13/09/2019 e no Minicurso da Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Educação - ANPEd, no Grupo de Trabalho – GT 09 – Trabalho-Educação, na Universidade Federal Fluminense - UFF, Niterói / Rio de Janeiro - Brasil, 23/10/2019; no VI Encontro do Labor, Fortaleza – Ceará / Brasil, 13/11/2019. As traduções do original italiano são de responsabilidade do autor. Traduzir para o português a palavra “spaccatura” foi difícil. Os termos ‘divisão’, ‘diferença’ ‘racha’ se aproximam, mas, nenhum traduz perfeitamente.
2 Doutor em Educação (Filosofia da) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - Brasil (PUC/SP). (1981). Professor titular de Filosofia da Educação na Universidade Federal de São Carlos / São Paulo – UFSCar/SP - Brasil, desde 1979. Na mesma instituição, aposentado, atua como colaborador do Programa de Pós-graduação em Educação - PPGE. É pesquisador sênior do CNPq – Conselho nacional de Pesquisa. E-mail: nosellap@terra.com.br. ORCID: 0000-0001-6272-9073. Lattes: http://lattes.cnpq.br/7159165045266256.
3 Artigo recebido em 24/07/2020. Aprovado pelos editores em 24/07/2020. Publicado em 25/09/2020. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v18i37.44266
O título “O princípio educativo do trabalho na formação humana: una spaccatura storica” nos remete ao debate das pedagogias progressistas ou socialistas que colocam a categoria ‘trabalho’ no centro da reflexão pedagógica, porém, com enfoques diferentes.4
Preliminarmente, é importante estarmos cientes de que o trabalho como princípio educativo não é categoria simples e fácil de ser precisada. Talvez, pelo frequente uso, as marcas da historicidade e da complexidade conceitual tornaram-se tênues, quase imperceptíveis. Por isso, frequentemente, a categoria é definida de forma estereotipada, aparentemente óbvia, até mesmo no campo do nosso GT da educação. De fato, o trabalho como princípio pedagógico, na concepção dialética, refere-se à própria história em movimento. Sua apreensão exige reflexão contínua e atenta.
Portanto, não devemos estranhar que entre os educadores progressistas ou socialistas o debate sobre o trabalho como princípio educativo tenha sido marcado por uma divisão histórica, às vezes com tons de polêmica, entre os que priorizam na formação humana a cultura clássica humanista e os que priorizam um ensino politécnico. Nas palavras de Pier Paolo Pasolini: “A ‘esquerda’ é objetivamente dividida por uma grande spaccatura histórica que separa os defensores da cultura humanista dos defensores da subcultura tecnológica.” (2012, p. 1693).5
O debate entre as duas partes, defensores da cultura humanista de um lado e defensores da cultura tecnológico-profissionalizante de outro, foi ficando
4 Portanto, desconsideramos aqui os princípios educativos inspiradores de metodologias pedagógicas utilitaristas, idealistas, conservadoras, reacionárias, místicas ou espiritualistas, por exemplo, o mercado, a pátria, a religião revelada, a evolução científico-tecnológica perene e progressiva, o espírito absoluto, a raça, a nação ‘superior’ ou, até mesmo, o acaso, a irracionalidade etc.
5 Davide Lajolo entrevistando Pasolini. In: Revista semanal Giorni, Vie Nuove, em 30/06/1971, sob o título de Botta e risposta sui fatti che scottano. In: Pasolini, 2012, 1693. Pasolini referia-se, inclusive, ao debate sobre a reforma e implantação na Itália da Escola Média Única (fundamental 2), obrigatória, de 1962. Houve, então, uma grande discussão sobre a abolição do ensino do Latim. Importantes lideranças de esquerda divergiam entre quem defendia uma escola pública de qualidade sem o latim e com o fortalecimento do eixo científico matemático, e quem (inclusive entre os comunistas, como o grande latinista Concetto Marchesi) defendia uma escola de ‘estrutura gentiliana’, mas, para todos, com latim.
historicamente cada vez mais tenso, simplesmente porque, mesmo nascendo da mesma vontade política de unir teoria à prática e, portanto, de propor um percurso formativo unitário da escola básica do trabalho, fundamenta-se em situações histórico- sociais e estratégias de luta hegemônica diferentes.
Este ensaio visa a comprovar o acerto da afirmação de Pasolini, visando com isso a reconhecer o problema e, assim, criar a condição essencial para melhor analisá- lo e, quiçá, tentar superá-lo.
Há 28 anos, foi publicado no Brasil o livro Trabalho, educação e prática social organizado por Tomaz Tadeu da Silva, Editora Artes Médicas, 1991. Para o GT 9 da ANPEd foi um livro marcante, com textos de John Mepham do Brighton Labour Process Group, Edward Palmer Thompson, M.A. Manacorda, Carlos Lerena, Miguel Arroyo, Mariano F. Enguita, Gaudêncio Frigotto, Tomaz Tadeu. Foi um livro que ajudou a estabelecer entre nós o axioma do trabalho como categoria central na análise do modo capitalista de produção e fundamental princípio pedagógico. Comenta Tomaz Tadeu da Silva na Introdução:
A análise do processo de trabalho realizada pelo Grupo de Brighton constitui-se talvez na melhor síntese disponível sobre esse assunto, firmemente ancorada na análise do próprio Marx, e explorando fundamentalmente o Capítulo VI inédito de O Capital. Este ensaio do Grupo de Brighton coloca a categoria “trabalho” no centro da análise do modo capitalista de produção, constituindo-se numa espécie de fundamentação para os ensaios que se lhe seguem. (1991, p. 9).
Manacorda reafirma a mesma tese, sintetizando o pensamento de Marx pela metáfora do filo rosso (fio vermelho):
Eu diria, com Marx, que a base ou o fio vermelho (filo rosso) que costura o conjunto da história é o trabalho do homem, em colaboração com os outros homens, para dominar a natureza e dominá-la, de forma a produzir e aumentar a própria vida material e espiritual. Esta sempre foi a raiz da história, isto é, o trabalho entendido como atividade do homem para produzir a própria vida; é a confrontação com a natureza que só acontece em associação com os outros homens. Naturalmente, aí nascem as contradições maiores da história humana: o trabalho, de manifestação de si, como Marx dizia, torna-se perdição do homem a si mesmo... Esperamos podê-lo recuperar esse homem perdido. (Manacorda, 1DVD, 2007, p. 12).
Karl Marx, portanto, lançou as bases de uma nova concepção educacional recomendando combinar educação e trabalho produtivo. Mas é preciso reconhecer que se trata de um princípio pedagógico amplo, aberto, complexo que se adequa às características de cada momento histórico, abrindo caminho para a escola básica única, melhor, unitária, para todos, integradora da cultura geral humanista e tecnológico profissional. Infelizmente, essa busca não teve ainda pleno sucesso, sobretudo, no Ensino Médio.6
A spaccatura pasoliniana constata-se também em Marx e Engels. Eram grandes amigos, companheiros solidários, mas tinham diferenças teóricas. Eram como o primeiro e o segundo violino7. Em geral, afinados, mas, às vezes, enquanto a música do esplêndido violino de Marx, o primeiro, nos mergulha em profunda reflexão sobre a complexa difícil lógica dialética da história, o segundo, ao simplificar a própria dialética, nos faz pensar, às vezes, que a história é uma ciência ‘exata’. Em outras palavras, se Marx pagou tributo ao positivismo da época, Engels pagou mais.
Após o falecimento de Marx, março de 1883, o segundo violino precisou tomar o lugar do primeiro, porém, “em questões de teorias e violino – escreve o próprio Engels – inevitavelmente haverá erros”. (ENGELS, 2020, p. 191).
Houve erros. Entre esses, destacamos a publicação das Teses sobre Feurbach, manuscritas por Marx em 1845 e publicadas por Engels em 1888 “com algumas mudanças que visavam a esclarecê-las, mas que, em realidade, eram uma interpretação (...), como na XI Tese” (FROSINI, 2017, p. 17). A tese compreende duas orações: “Os filósofos somente interpretaram de forma diversa o mundo, trata-se de transformá-lo”. Ou seja, no original de Marx, as duas orações são unidas por uma vírgula sem recurso às conjunções; gramaticalmente, são independentes, formam uma parataxe. Engels, para ajudar, interliga as duas orações com a preposição adversativa alemã aber (ao contrário, porém, ao invés) isto é, contrapõe “transformar” a “interpretar”. Por que não as interligou com a preposição auch (também)? Melhor,
6 Cfr. Paolo Nosella. Ensino Médio à luz do Pensamento de Gramsci. Alínea Editora, Campinas, SP, 2016.
7 A metáfora do ‘primeiro e segundo violino’ foi utilizada pelo próprio Engels em carta para Johann Philipp Becker, outubro de 1884. Escreve: “Eu passei a vida inteira desenvolvendo uma tarefa para a qual eu estava preparado, tocando o segundo violino e de fato acredito que a desempenhei de maneira razoavelmente bem. Eu era muito feliz por ter que seguir um violino tão esplêndido como o de Marx.”(ENGELS, 1977, p. 101-102, in BITTAR, Marisa e FERREIRA Jr. Amarílio, A Educação Soviética, mimeo. São Carlos, UFSCar., 2020, p. 191).
por que não deixou a Tese na formulação de parataxe como Marx a redigira? Frosini comenta: “É como se para Marx o nexo entre ‘interpretar’ e ‘transformar’ fosse o correspondente a uma mudança de terreno ou de linguagem e não uma aversão crítica direta.” (idem, ibidem).
Gramsci, que considera esse texto “uma das primeiras manifestações maduras do pensamento marxiano” (GRAMSCI, 2007, p. 745), assim traduz a Tese: “Os filósofos somente interpretaram o mundo em modos diferentes; trata-se agora de mudá-lo.” (idem ibidem, p. 814 nota 1).
Ou seja, também Gramsci parece “infiel” à letra marxiana, pois desconsidera a preposição adversativa engelsiana aber, mas acrescenta o termo italiano ora (agora). Entretanto, trata-se de uma infidelidade aparente. Com efeito, traduziu para o italiano o nexo entre “interpretar” e “transformar” à luz do historicismo que o distingue no âmbito do pensamento marxista e que, afinal, caracteriza o próprio Marx. Com efeito, “ora” (agora) conota expressões como “sempre, a cada momento”, negando com isso qualquer identificação institucional burocrática, geográfica e cronologicamente determinada, definitiva, como sendo a única responsável pela missão de transitar do “interpretar” para o “transformar”. Tal passagem8, dentro do historicismo dialético, não denota data cronológica definitiva: deve ocorrer sempre, em todos os momentos e em todos os lugares, conforme se lê no Manifesto Comunista: “O comunismo, como ‘movimento real’, nunca pode ser reduzido a um ‘sujeito’ que o personalize [encarne] por inteiro” (FROSINI, idem, ibidem, p. 18-19). Em outras palavras: os comunistas extrapolam o partido burocrático, o sujeito social identificado e definitivo, “são na pratica a parte mais decidida dos partidos operários de todos os países, a [parte] que sempre empurra [a luta] para frente.” (MARX-ENGELS, in FROSINI, ibidem, p. 19).
Portanto, a tradução de Gramsci da XIª Tese não é uma infidelidade ao texto marxiano, mas a tradução fiel do pensamento historicista de Marx para quem a história não é precisamente uma ciência exata, ao contrário, ele historiciza a própria ciência. Assim, na tradução da Tese XI de Marx, Gramsci, reconhecendo a vitalidade da filosofia passada, propõe e contrapõe outro movimento de cultura,
8 A problemática da transição ou passagem de um momento histórico para outro levanta em Gramsci perplexidade, é o punctum dolens da filosofia positivista. Exemplo, no Caderno 11: “Eis porque a proposição da passagem do reino da necessidade ao reino da liberdade deve ser analisada com muita finura e sutileza” (GRAMSCI, 1975, p. 1489).
elaborado e proposto na consciência do caráter político da cultura, isto é, do fato que somente elaborando ‘as concepções mais gerais, as armas mais refinadas e decididas’ da cultura (GRAMSCI, 1975,p. 309) pode-se herdar plenamente o passado, propondo-lhe uma alternativa concreta. (FROSINI, idem, ibidem, p. 22).
Demoramos na análise de um exemplo aparentemente pequeno, mas significativo, da contraposição entre o Marx, filosoficamente historicista, aberto às filosofias passadas, e Engels ‘cientificista’, pragmático, ‘desdenhoso’ das filosofias passadas, visando a confirmar que a spaccatura de Pasolini tem raízes longínquas, remonta aos dois ‘violinos’ fundadores do movimento da filosofia da práxis. Eles, sem desafinarem no escopo fundamental de unir teoria e prática, já apontavam justamente para a diferença entre os que priorizam a cultura humanista, extrema, “desinteressada”, dos que priorizam a cultura ‘prática’, científica, profissional, tecnológica.9
Em linha geral, parece fácil responder a Pasolini dizendo que o marxismo é ao mesmo tempo antagonista e herdeiro da tradição burguesa, conforme escreve Mario Alighiero Manacorda:
O marxismo não rejeita, mas assume todas as conquistas ideais e práticas da burguesia no campo da instrução, já mencionadas: universidade, laicidade, estatalidade, gratuidade, renovação cultural, assunção da temática do trabalho, como também compreende o aspecto literário, intelectual, moral, físico, industrial e cívico. O que o marxismo acrescenta de próprio é, além de uma dura crítica à burguesia pela incapacidade de realizar esses seus programas, uma assunção mais radical e consequente destas premissas e uma concepção mais orgânica da união instrução-trabalho na perspectiva oweiana de uma formação total de todos os homens. (2010, p. 357).
A resposta de Manacorda, correta em tese, exala todavia um sabor institucional, político-partidário, burocrático, visando a minimizar a ‘spaccatura’ que, no entanto, tornava-se historicamente cada vez mais profunda à medida em que a prática e o conceito de trabalho tomavam conotações difíceis de serem precisadas e as estratégias de luta pela hegemonia divergiam entre os militantes.
Também Lênin, de rigorosa formação clássico-humanista, viveu essa tensão. Nos seus escritos, percebe-se posicionamento pendular entre a defesa de uma
9 Note-se que a mesma “spaccatura” pasoliniana já aparecia nos debates entre socialistas utópicos, por exemplo, entre Charles Fourier e Robert Owen. Ver, de nossa autoria, A linha vermelha do planeta infância. In Os intelectuais na história da infância. Marcos Cezar de Freitas e Moysés Kuhlmann Jr. (orgs.). Cortez Editora, SP. 2002.
formação técnica, profissionalizante, imediatista e a defesa de uma formação escolar humanista, de longo alcance, profunda, filosófico literária.
Por exemplo, a situação econômico-social da Rússia Soviética forçava Lênin a empunhar a bandeira da formação técnico profissionalizante, até mesmo, precoce. Empenhou-se pessoalmente para que no VIII Congresso do Partido Comunista (bolchevique), de 1919, fosse aprovada a resolução que determinou:
Instrução geral e politécnica gratuita e obrigatória para todas as crianças e adolescentes dos dois sexos, até os 17 anos de idade; 2. Plena realização dos princípios da escola única do trabalho, ensino na língua materna, estudo em comum das crianças dos dois sexos, absolutamente laica, livre de qualquer influência religiosa, que concretize uma estrita ligação do ensino com o trabalho socialmente produtivo, que prepare membros plenamente desenvolvidos para a sociedade comunista. (Apud MANACORDA, 2010, p. 378).
A objetiva necessidade dessa resolução justifica-se, entre outras, pela situação da eletrificação nacional. Em conversa com o correspondente do jornal americano The World, em fevereiro de 1920, diz Lênin:
Supomos, entre outras coisas, que dentro de três anos estarão acesas, na Rússia, 50 000 000 de lâmpadas incandescentes. Suponho que nos Estados Unidos há 70 000 000 dessas lâmpadas, mas para um país onde a eletricidade se encontra ainda na infância, mais de dois terços desse número representam um enorme progresso. Em minha opinião, a eletrificação é a mais importante das grandes tarefas que se nos colocam. (1980, p. 257).
Entretanto, no mesmo ano de 1920, diz: “Só se pode chegar a ser comunista depois de ter enriquecido a memória com o conhecimento de todas as riquezas que a humanidade elaborou”. (1980, p. 389).10
Em 1923, Lênin, no âmbito desse mesmo dilema, acena a uma solução que se identifica com o espírito da XIª Tese marxiana:
Para renovar o nosso aparelho de Estado devemos a todo custo colocar-nos a tarefa de: primeiro estudar, segundo estudar e terceiro estudar, e depois controlar que entre nós o saber não fique reduzido a letra morta ou a uma frase na moda (coisa que, não devemos ocultá- lo, acontece com demasiada frequência entre nós), que o saber se transforme efetivamente em carne e sangue, se torne plena e verdadeiramente um elemento integrante do modo de vida. Numa palavra, não temos que apresentar as exigências que apresenta a Europa Ocidental burguesa, mas aquelas que são dignas e
10 Lounatcharski traduz esse posicionamento de Lênin: “Se nós não assimilarmos toda a cultura do passado, não poderemos avançar.” (LÊNIN, apud LUNATCHARSKI, 1981, p. 132).
convenientes apresentar num país que coloca como sua tarefa desenvolver-se para se tornar um país socialista. (1980, p. 671).
Lênin viveu essa spaccatura dentro de si ao tomar decisões de política educacional; mas a vivenciou também, polemicamente, em debates com as lideranças revolucionárias de sua época. Os nomes de Bogdanov, Lunatchárski e do Proletkult são os mais emblemáticos. Rememoram a feroz disputa entre os intelectuais soviéticos sobre ortodoxia marxista e política cultural e educacional:
De um lado o marxismo dogmático de Lênin, embasado no materialismo dialético, de outro, o empiriocriticismo de Bogdanov, que propunha um novo saber único, baseado na elaboração científica da experiência sensível, que excluía todo tipo de metafísica. A ortodoxia marxista-leninista chocava-se contra a exigência de receber o pensamento de Marx de forma aberta, adequando-o às novas exigências históricas. (GHETTI, 2016, p. 79).
A sensibilidade e inteligência de algumas mulheres pesquisadoras11 conseguiram retratar a dureza dessa disputa:
Das ideias de Bogdanov emergia, portanto, um caminho da transição para o socialismo muito diferente do proposto por Lênin e suas ideias constituíram uma alternativa única dentro do movimento operário internacional, sem dúvida semelhante à oferecida alguns anos mais tarde pelas teorias de Antonio Gramsci.12 (CIONI, Paola. Um ateísmo religioso. p. 47, In: GHETTI, 2016, p. 81).
Bogdanov morreu em 1928. Provavelmente, sua trágica morte esteja relacionada com as perseguições de Stalin que não o teria poupado. Infelizmente, se com Lênin a liberdade ficou constrangida pela necessidade da ditadura do proletariado (de curta duração!) e pelo centralismo democrático, permanecendo, porém, viva no palco da política soviética, infelizmente, com Josef Stalin, que governou a União Soviética de meados da década de 1920 até 1953, aos poucos, a liberdade foi
11 Noemi Ghetti, Paola Cioni, Maria Luisa Righi entre outras. “Sobre o Proletcul’t e o conflito com o Narkom-pròs (Comissariado do povo para a instrução), a instituição oficial que ocupava-se da instrução escolar e da cultura soviética, veja-se S. Fitzpatrick, Rivoluzione e cultura na Russia: Lunacârskij e il Commissariato del popolo per l’istruzione, 1917-1921. Editori Riuniti, Roma, 1976, pp. 124- 32.”(nota 8 in GHETTI, 2016, p. 84).
12 Gramsci combinou com Júlia de traduzir para o italiano o romance de Bogdanov A estrela vermelha. Ele faria a revisão pretendendo publicá-lo na Itália. O projeto não foi a porto, mas evidencia que Gramsci tinha gostado desse romance. (In Noemi GHETTI, citado).
totalmente sufucada no palco político soviético, refugiando-se nos porões da história.13 Sem liberdade, não há dialética14 e sem dialética não há marxismo.
Grande importância na educação soviética reveste, entre outros, o pensador pedagogo russo Moisey Mikhailovsky PISTRAK15 cuja tese é “a realidade atual como princípio educativo”. Gramsci conheceu o pensamento desse autor, em conversas com as irmãs Eugênia e Julia Schucht, colaboradoras militantes no NarComPros. Sua defesa da formação escolar como cultura “desinteressada”, polemiza também a ‘dialética domesticada’ de Pistrak, para quem a vitória da luta entre a revolução comunista russa e o imperialismo capitalista é, historicamente, garantida e conhecida a priori, ou seja, é uma luta que “ocorre como num ‘ring’ convencionalmente regulado” (GRAMSCI, 1975, p. 1221).
A spaccatura pasoliniana visivelmente marcou toda a trajetória de Gramsci. A polêmica existia no Partido Socialista Italiano desde os anos de 1912: enquanto uns acusavam os outros de “economicistas”, estes acusavam os primeiros de “culturalistas”. Do cárcere, escreve:
Relembrar polêmica, antes de 1914, entre Tasca e Amadeu, com reflexos no [jornal] Unitá de Florença. Frequentemente, se diz que o extremismo “economicista” era justificado pelo oportunismo culturalista (e isso é afirmado em toda a área do conflito), mas é possível também dizer o contrário, isto é, que o oportunismo culturalista era justificado pelo extremismo economicista. Na realidade, nem os primeiros nem os segundos podiam ser “justificados”, nem nunca serão justificáveis, pois devem ser “explicados” realisticamente como dois aspectos da mesma imaturidade e do mesmo primitivismo. (GRAMSCI, 1975, p. 1112).
Para Gramsci também a “explicação” desses dois aspectos não foi tarefa fácil: quantas dúvidas didático-pedagógicas na preparação do número especial La cittá
13 Pessoal e intuitivamente, penso que o marxismo difundido na América Latina, não resolveu teoricamente sua relação com o “estalinismo”. Em geral, prefere-se a omissão, reeditando o taticismo político. A maior contraposição, o trotskismo, apresenta-se com enfoque personalista. Ou seja, a questão teórica não foi vista em profundidade, o que Gramsci fez, nos Cadernos.
14 Merleau-Ponty, Maurice. As aventuras da Dialética. Editora Martins Fontes. São Paulo, 2006.
15 De 1918 a 1931 trabalhou no NarKomPros da União Soviética e simultaneamente dirigiu, por 5 nos, a Escola Comuna do NarKomPros. De 31 a 36 atuou no Instituto de Pedagogia no Caucaso e, em 1936, foi Diretor do Instituto Central de Pesquisa Científica de Pedagogia junto ao Instituto Superior de Educação do Partido Comunista. Preso, em setembro de 1937, foi fuzilado por Stalin em 25 de dezembro do mesmo ano.
Maiores dúvidas, ainda, surgiram nos anos do terror fascista (1924-25). Gramsci é o novo Secretário Geral do P.C.d’I. Ao organizar a única forma possível de educação para os militantes, um curso por correspondência para que “os militantes tenham cérebro, além de pulmões e garganta”, reconhece, entretanto, que “Corre-se o risco dos alunos tomarem o conteúdo das apostilas como ouro puro, doutrina infalível e perene.”(GRAMSCI, 1974, p. 23, 58).
Nos primeiros 44 dias de cárcere na ilha de Ùstica, ao organizar uma escola para presos políticos e moradores da ilha, pensando na especificidade cultural e psicológica daqueles ‘alunos’, prioriza conteúdos de cultura geral, discordando dos conteúdos propostos pelo companheiro Berti, excessivamente ideológicos, doutrinários, inadequados a uma escola “desinteressada”. Propõe:
Um panorama resumido de história da filosofia insistindo no estudo de um sistema filosófico concreto, o hegeliano, esmiuçando-o e criticando-o em todos os seus aspectos (...). Dever-se-ia oferecer, inclusive, um curso de lógica [formal] etc. e de dialética. (GRAMSCI, 2005, p. 166-168).
Tão logo conseguiu papel e tinta para trabalhar (escrever), em fevereiro de 1929, elaborou seu plano. Renomeou o marxismo ou o materialismo dialético com filosofia da práxis à luz do lema für ewig, expressão ao mesmo tempo de resistência e liberdade contra o fascismo e contra o desvio teórico-político do estalinismo. Analisa, detalhadamente, a divergência com o Ensaio Popular de N. Bukharin, doutrina ‘oficial’
ou vulgata marxista, da qual, cinco anos atrás, na qualidade de Secretário Geral do P.C.I., utilizará partes no curso por correspondência para os militantes.16
Em todas as páginas dos Cadernos, sobretudo no caderno 12 “Observações sobre a escola: para a investigação do princípio educativo”, defende a ‘fusão’ entre o ‘fato’ e o ‘conceito’ do trabalho. O trabalho é a categoria unificante de ‘informação’ e ‘formação’, de ‘natureza’ e ‘sociedade civil’, da societas rerum e societas hominum, das ciências e convivência humana etc.:
Na escola primária dois elementos prestavam-se para a educação das crianças, as noções de ciência e os direitos e deveres do cidadão. A ciência devia servir para introduzir a criança na “societas rerum”, os diretos e os deveres na “societas hominum”. A “ciência” entreva em luta contra a concepção “mágica” do mundo e da natureza que a criança absorve do ambiente “impregnado” do folclore: o ensino é uma luta contra o folclore, em favor de uma concepção realista na qual se unem [fundem-se] dois elementos: a concepção de lei natural e a de participação ativa do homem à vida da natureza, isto é à sua transformação conforme uma finalidade que é a vida social dos homens. Esta concepção unifica-se no trabalho, que se embasa sobre o conhecimento objetivo e exato das leis naturais para a criação da sociedade dos homens. [Assim], o conceito e o fato do trabalho (da atividade teórico-prática) é o princípio educativo imanente na escola primária, uma vez que a ordem social e estatal (direitos e deveres) é introduzida e identificada na ordem natural pelo trabalho. (GRAMSCI, 1975, p. 1541). [negrito meu]
Todavia, mesmo na redação final do Caderno 12 Per la ricerca del princípio educativo (GRAMSCI, 1975, p. 1540-1551), ou seja, no momento de concluir sua proposta pedagógico educativa baseada no Trabalho como Princípio Pedagógico, quantas perplexidades! É o caso do ensino do latim. Sabemos que Gramsci, na proposta curricular da Escola Única do Trabalho, renunciou às disciplinas do Grego e Latim, princípio educativo da escola tradicional,
expressão de um modo tradicional de vida intelectual e moral, de um clima cultural difuso em toda a sociedade italiana por antiquíssima tradição. (...) ( GRAMSCI, 1975, p. 1543).
Um atento leitor percebe, entretanto, que não foi fácil para ele concordar sobre a eliminação do currículo escolar dessas duas disciplinas. Nas linhas (e são várias) que dedica à análise da eficácia pedagógica do ensino de latim e grego na escola
16 Antonio Castronuovo, La questione del für ewig, in Envoi Gramsci, cultura filosofia e humanismo.
(obra citada). Angelo D’Orsi, Una nuova biografia. Editore Feltrinelli, Milano, 2017, pp. 229-231.
tradicional17, essa tensão emerge claramente, ao ponto que, para muitos companheiros defensores de um currículo mais tecnológico, não era tranquilo que Gramsci tivesse desistido dessas duas disciplinas. Precisou a intervenção esclarecedora e definitiva de Togliatti para testemunhar e confirmar que Gramsci havia admitido
ser necessário substituir o latim e o grego como fulcro da escola formativa e que esta substituição será feita; mas [confessa] não será fácil dispor a nova matéria ou a nova série de matérias numa ordem didática que dê resultados equivalentes no que toca à educação e à formação geral da personalidade, partindo da criança até chegar aos umbrais da escola profissional. (GRAMSCI, 1975, p. 1546).
Gramsci permanece um autor, entre os mais conhecidos e significativos do pensamento pedagógico progressista do século XX, que vivenciou fortemente e, às vezes, dolorosamente, a tensão entre os defensores da cultura humanista e os da cultura tecnológica. De um lado, em sintonia com o Marx defensor da Grande Indústria, pressuposto histórico da revolução proletária, defende o trabalho como princípio educativo na formação dos jovens colocando-se aos antípodas do posicionamento rousseauniano, saudosista de um inexistente idílio entre o mundo agreste e o trabalho artesanal18, de outro lado, a sintonia com Marx não era perfeita. Em geral, Marx
coloca fora do trabalho o reino da liberdade (o que lhe foi censurado por Della Volpe como se fosse uma aporia); enquanto Gramsci aparece, por assim dizer, mais marxista do que Marx, pois coloca o crescimento da personalidade não fora, mas sim dentro do trabalho. (In, TOMAZ, 1991, p. 138).
Em suma, trabalho, para Gramsci, não é um lado ou um polo de uma hipotética relação dialética escola-trabalho, mas é a própria relação, é a integração do fato e do princípio, é a tradução da unidade dialética proclamada por Marx entre escola e produção. Isto significa que, para ele, só em abstrato existem formas autônomas de prática e de teoria; em concreto, existe o trabalho, fusão das duas.
17 “O estudo gramatical das línguas latinas e grega, junto com o estudo das respectivas literaturas e histórias políticas era um princípio educativo enquanto o ideal humanista, que se impersonificam nas cidades de Atenas e Roma antigas, era difuso em toda a sociedade, era um elemento essencial da vida e da cultura nacional. Até mesmo a mecanicidade do estudo gramatical era informada desta perspectiva cultural.” (idem, ibidem).
18 Permito-me aconselhar de assistir ao filme dos irmãos Vittorio e Paolo Taviani Pai patrão (1977), baseado no livro homônimo, autobiográfico, de Gavino Ledda, para compreender emocionalmente o antirousseaunismo de Gramsci.
Assim, trabalho é sempre integração, mesmo que desequilibrada, desproporcional, de teoria e prática. Portanto (e é isso que, sobretudo, o interessa), a atividade do estudo sendo trabalho, é integração de corpo e mente, de esforço muscular nervoso e disciplina mental, é integração de direção moral, de insight, memória, vontade, nervos e músculos.
Essa tese de Gramsci, contundente e repetida, evidencia indiretamente a spaccatura entre diferentes posições ideológico-políticas, inclusive, no campo socialista e comunista, uns priorizando no processo formativo o ‘trabalho produtivo’, a dimensão tecnológico profissional em perspectiva economicista e determinista (ou, até mesmo, defendendo a mera vivência na condição de classe) e outros priorizando a formação cultural humanista “desinteressada”, enfim, o trabalho-do-estudo que só pode se realizar seriamente por meio de um amplo e exato conhecimento das leis naturais e sociais e, com isso, realizar sua potencialidade produtiva:
Pode-se dizer, portanto, que o princípio educativo que fundamentava as escolas primárias era o conceito de trabalho que não pode se realizar em toda sua potencialidade de expansão e de produtividade sem um conhecimento exato e realista das leis naturais e sem uma ordem legal que regule organicamente a vida dos homens entre si, ordem que deve ser respeitada por convicção espontânea e não somente por imposição exterior, por necessidade reconhecida e proposta para si mesma como liberdade e não por mera coerção. (GRAMSCI, 1975, p. 1541).
Enfatizando: a unidade de ensino e trabalho produtivo proposta por Marx, nas escolas de formação, realiza-se exatamente no próprio trabalho-do-estudo.
Corolário: a disputa entre diferentes currículos jamais é uma disputa entre currículos integrados e outros não integrados, mas, entre diferentes formas de integração: a forma das escolas de elites, a das escolas públicas tradicionais, a das escolas técnicas, a das assistenciais etc. Priorizar uma forma de integração sobre outras, é decisão política determinada pela estratégia da luta hegemônica definida à luz da filosofia da práxis.
Observação: Gramsci realça que a dialética escola e vida se processa, inclusive, no nexo entre os conteúdos (informações sobre ciências da natureza e direitos e deveres dos cidadãos) e a vida do mestre, isto é, no testemunho existencial do mestre dentro e fora da sala de aula: “A verdade é que o nexo instrução-educação é representado pelo trabalho vivente do mestre.” (Gramsci, 1975, 499).
Sintetizando: Gramsci, pressionado entre os defensores da cultura humanista clássica de um lado, e os da cultura tecnicista profissional de outro, estabeleceu um princípio educativo e pedagógico complexo, individuando dois lados complementares, compenetrados dialeticamente: o primeiro de caráter econômico19; o segundo de caráter político20. São faces da mesma medalha, isto é, da superação da divisão entre dirigentes e subalternos no contexto produtivo existente. (Baldacci, 2019, 6). É a Filosofia da Práxis, equação de filosofia e política, de pensamento e ação revolucionária, integração como desafio histórico que permanece aberto.
O debate didático pedagógico sobre a formação dos trabalhadores (educação popular no sentido amplo) entre quem prioriza o currículo de cultura geral e quem o de formação técnico profissionalizante continuou durante todo o século XX e na contemporaneidade. A busca pela integração entre os dois percursos formativos, que não fosse mera justaposição legal, burocrática, arquitetônica etc., envolveu todos os pensadores progressistas e continua hoje. São defensores da necessidade de instruir as massas populares integrando cultura geral e profissional.
Dewey se destaca nesse debate que ocorre na maioria dos Estados nacionais empenhados em programas de reformas, sobretudo, do ensino básico. (META, 2019,
p. 21). Há quem rotula Dewey de liberal, excluindo-o desse debate. Pessoalmente, o considero um intelectual de esquerda, empenhado nessa luta, conforme afirma Joel Martins:
Democracia e Educação é o livro fundamental de Dewey, é o livro básico, é a coluna mestra de todo o pensamento de Dewey. Ele não faz citações das obras ou do pensamento marxista, mas se você fizer uma exegese do texto, uma hermenêutica você vai encontrar as ideias marxistas ali presentes. (...) Conheço bem toda a história do progressivismo nos Estados Unidos (...). Tive oportunidade de ouvi-lo, de conversar com ele e com todo seu grupo. (...) Tiveram que enfrentar a Suprema Corte dos Estados Unidos por serem socialistas. (MARTINS, 2019, p. 15-16).
A descoberta da dimensão social da pessoa humana, eixo central do pensamento desse importante intelectual americano, o levou a participar do debate
19 Destaque-se o Caderno 22, Americanismo e fordismo. (Gramsci, 1975, 2137-2181).
20 Destaque-se o Caderno 12, Storia degli intellettuali. (Gramsci, 1975 1513-1551).
entre os que priorizam currículos de “estudos científico-técnicos” e outros que priorizam “estudos literários” (META, 2012, p. 36). Com vistas à necessidade de superar esse dilema, Dewey aposta no progresso técnico e científico como elemento de democratização. Em outras palavras, pensa que o lastro positivo, a densidade intelectual da cultura industrial, quase ‘osmoticamente’, realizaria a integração entre a cultura técnico científica e a cultura literário humanista, eliminando, assim, a barreira cultural que separa dirigentes e subalternos na sociedade. Gramsci, em outra posição quanto a isso, considera que o progresso técnico científico jamais poderá superar a contradição entre a relação de produção e a relação de propriedade, pois esse é tema historicamente próprio da filosofia da práxis. (META, 2012, p. 37).
Outra dissonância entre os dois é representada pela proposta de Gramsci para que, nas sociedades em que os privilégios imperam brutalmente, o Estado assuma as despesas do sistema escolar básico, unitário e público, inclusive, se necessário for, em regime de internato ou semi-internato, hoje a cargo das famílias. (GRAMSCI, 1975, p. 1534). Nesse tópico, comenta Chiara Meta, a “assonanza” entre Dewey e Gramsci parece forte, moral e eticamente (META, 2019, p. 23).
Todavia, não resta dúvida que tanto Dewey como Gramsci defendem o valor da democracia, mesmo que, enquanto Gramsci considera que a democracia liberal representativa é apenas uma forma histórica da organização política contemporânea, Dewey considera a democracia liberal dos países mais avançados do mundo do século XX, representada pelo americanismo, a forma política definitiva da história.21
Dewey, para a manutenção desse axioma democrático,
estabelece a necessidade de uma continuidade das instituições liberais americanas e a exigência de uma correção, gradual e progressiva, somente da organização econômico-produtiva a qual, polemizando com o socialismo, mascara visões palingenéticas de mudanças da sociedade. (META, 2019, p. 25).
Gramsci, ao contrário, não engessa ‘metafisicamente’ nenhuma forma histórica de poder e de economia (por isso, autodenomina-se historicista absoluto), priorizando a direção política (filosofia da práxis) na formação e organização da vontade coletiva dos subalternos ao realçar “a íntima dependência entre os elementos ‘materiais’ da
21 Para Gramsci, esse posicionamento filosófico de Dewey sobre democracia representativa resvala (da mesma forma como resvalou em Croce) numa concepção metafísica da história.
estrutura e os elementos linguísticos, simbólico-culturais da ‘superestrutura” (Meta, idem ibidem). Em outras palavras:
Disso conclui-se a importância que tem o “momento cultural” também na atividade prática (coletiva): (...). Uma vez que assim acontece, emerge a importância da questão linguística geral, isto é, de como alcançar coletivamente o mesmo “clima” cultural. (...) Toda relação de “hegemonia” é necessariamente uma relação pedagógica que se dá não somente no interior de uma nação, entre as diferentes forças que a compõem, mas no universo campo internacional e mundial, entre complexos de civilizações nacionais e continentais. (GRAMSCI, 1975, p. 1331).
Todos os pedagogistas progressistas do século XX, entre esses, os Pioneiros da Educação brasileira, Anísio Teixeira, Paulo Freire, Maria Nilde Mascellani (experiência dos ginásios vocacionais), Escolas da Pedagogia da Alternância, Ensino Médio em Tempo Integral e muitos outros, incluindo os atuais defensores do Ensino Médio Integrado à Formação Profissional dos Institutos Técnico Profissionais etc., todos estavam e estão conscientes dessa contradição. Por isso, buscam integrar a prática profissional com a cultura geral, rejeitando a injusta dualidade do sistema educativo. Mas, a spaccatura continua: enquanto uns priorizam nessa luta a formação de cultura geral, extrema, clássica, desinteressada, outros priorizam a formação técnico profissionalizante.
Certamente, no caso de Gramsci, a experiência escolar do Liceu Clássico de Cagliari e, sobretudo, as aulas na importante Universidade de Turim, trincheira de elevados estudos de linguística e da luta cultural contra o positivismo, influenciaram- no no privilegiar a formação clássico literária, básica, para todos
Gramsci enfrenta os problemas da educação defendendo a necessidade de preservar e reforçar a escola clássica. É necessário combater -sublinha- aquela concepção aristocrática que considera o patrimônio literário humanista âmbito reservado a limitadas elites, conforme uma visão abstrata e ‘esnobe’ em relação à prática. (META, 2012, p. 27).
Com efeito, desejava ele, de coração, que todos e, por que não? Sobretudo, os proletários percorressem semelhante percurso formativo, quando alternava as aulas do grande ateneu de Turim à participação nas manifestações dos operários nos portões das fábricas. Nessa alternância operou sua catarse político-cultural. Foi quase mudança antropológica.
Pasolini defende a mesma tese de Gramsci, mas percebe que a cultura consumista da 2ª metade do século XX desnaturou a forma e as lutas de classe: E eis-me aqui eu mesmo... pobre, vestido/com roupas que os pobres espiam nas vitrines/de grosseiro esplendor, enfim perdido” (PASOLINI, 2009, p. 819).
O poeta traduz a proposta de Gramsci para o novo contexto, defendendo que só uma ‘cultura extrema’ libertará o proletariado (o lumpemproletariado, os subalternos, o povaréu, a ralé) de sua histórica “extrema” opressão.22
Trata-se, diz o poeta, de uma cultura que pouco ou nada tem a ver com o seco academicismo que os intelectuais hoje produzem, uma vez que estes mistificam a base social, pensando-a de forma abstrata, falsamente unitária, avulsa de sua concretude, consistência e problemática. O que eles escrevem, comenta, é uma “base social” vista de longe, por meio de teorias, quase uma metafísica sociológica. Para esses acadêmicos de esquerda o povo é sim a realidade e o motor da história, mas de uma história diferente, quase de outra humanidade que acreditam (acreditamos), com uma ponta de vergonha suspeita, ser igual à nossa (afinal, somos todos trabalhadores), mas, no fundo, duvidam (duvidamos) que assim seja.
Pasolini traduz Gramsci (dois intelectuais ‘inconvenientes’) penetrando em sua alma como sabem fazer os poetas. Percebem, por exemplo, a grande diferença entre os mestres da filosofia da práxis, representados por Francisco de Sanctis e os conservadores, representados por Benedetto Croce “cujo modo de ser consiste na eloquência, motor exterior e momentâneo dos afetos e das paixões” (Gramsci, 1975, 1551). Cuja motivação mais importante é a carreira individual.
Pasolini, talvez, seja a consciência mais autocrítica das esquerdas da II metade do século XX. Suas análises doem e, por isso, há ‘companheiros’ preferindo negar seu pertencimento à esquerda. Como sempre. Sua afirmação sobre a spaccatura storica das esquerdas, que separa os defensores da cultura humanista dos defensores da subcultura tecnológica, nos coloca um sério problema: se a fórmula da filosofia da práxis “especialista + político” é tão clara, por que falar em divisão?
22 Sobre o conceito de ‘cultura extrema’, ver artigo de minha autoria, “Le ceneri di Gramsci”, poema de Pier Paolo Pasolii: a crise de 1956 e a proposta da cultura extrema. REBE, v.24 Rio de Janeiro 2019.
Talvez, porque muitos, mesmo da esquerda, não acreditem de verdade no direito de todos os jovens adolescentes (de 13 a 18 anos) à indefinição profissional.23 Defendem, envergonhados, a formação profissional antecipada para o ensino médio, porque socialmente conveniente para os mais necessitados que, obviamente, haverão de sacrificar parte dos estudos de cultura geral.
Ou, ainda, porque não acreditem bastante no dever do jovem adolescente aplicar-se ao trabalho do estudo com afinco, disciplina, integralmente. São pedagogicamente “tolerantes” quando os adolescentes abandonam a escola ou migram para o turno noturno “para trabalhar de dia”, justificando essa ‘opção’ pelo fato (inconteste, mas não definitivo) deles “precisarem” de algum salário ou porque as escolas públicas são didaticamente indigentes, semi abandonadas e “chatas”. Em suma, não acreditam, de verdade, que o estudo seja o verdadeiro trabalho do adolescente, seu dever e obrigação que deve ser avaliado e remunerado.
Ou, ainda, porque muitos não acreditem, de verdade, que os subalternos possam se tornar realmente dirigentes da sociedade, bastando-lhes, sindicalistamente, garantir-lhes parcela do poder e alguns direitos.
Mas, então, com Pasolini, sacrifica-se a unidade política da esquerda?
A unidade da esquerda é um valor e deve ser preservado enquanto possível (Pasolini, 2012, 1693). Além de tudo, é confortável se aconchegar, unidos, em instituições onde recebe-se identificação, proteção, fraternidade. A divisão enfraquece a luta e os heréticos são, no mínimo, incômodos. Todavia, na história, heréticos determinaram importantes viradas e funcionaram como antibióticos para muitas instituições que, na fase de se constituírem, eram pela mudança, mas, uma vez instaladas no poder, tornam-se conservadoras: “As instituições são, portanto, sempre fatalmente de direita e por isso eu não posso deixar de me opor a elas” (PASOLINI, ibidem, p. 1690).
Difícil é perceber o momento e a forma para assim se posicionar. Em todo caso, a lição histórica dos heréticos vale para nos ensinar a não eliminá-los, mas a discutir com eles.
23 Letícia Lenzi, em recente tese de doutorado: Ensino Médio na berlinda: adolescência e o direito à indefinição profissional ilustra com abundantes dados essa difusa antinomia existente entre muitos educadores progressistas brasileiros.
Significativo24 é o fato de Gramsci, no Caderno 4, redigir um original e único comentário (sete páginas) à Divina Comédia de Dante e justamente ao Cântico X do Inferno, círculo dos hereges. No comentário, defende que o principal personagem do Cântico, do ponto de vista estético e lírico, não seja Farinata (como parece, e todos os principais comentaristas afirmam) e sim Cavalcante, em aparência, personagem secundário, humilde: “Cavalcante não aparece ereto e viril como Farinata, mas humilde, abatido, talvez ajoelhado e perguntando com perplexidade e dúvidas sobre o filho”. (GRAMSCI, 1975, p. 518).
Pesquisadores se perguntam: quem representaria Farinata e quem Cavalcante no comentário de Gramsci? Seriam essas páginas uma comunicação política em código? O nome de Stalin e dele próprio, naturalmente, surgem como hipótese.
Giuseppe Cospito, no livro Introdução a Gramsci25, afirma ser importante na história do marxismo a atuação militante “aberta, antidogmática, heterodoxa e até mesmo herética”:26
Na lista dos 250 autores da literatura de todos os tempos mais citados no mundo, aparecem somente cinco italianos, um deles é Antonio Gramsci. Sobre ele acumulou-se uma imensa literatura crítica que hoje [2015] ultrapassa os 19.000 títulos em quase todas as línguas modernas. Entre as razões dessa fortuna, há sem dúvida o caráter aberto, antidogmático, heterodoxo e para alguns até mesmo herético de seu marxismo, o que favoreceu sua difusão inclusive em espaços relativamente impermeáveis, quando não hostis, a essa doutrina, como os Estados Unidos e, sobretudo, permitiu-lhe, antes de sobreviver à crise do próprio marxismo, em seguida, ao término da experiência histórica do assim chamado socialismo real. (COSPITO, 2015, p. 5).
Sobre instituições e heresias, Pasolini continua: a unidade pode significar também estagnação política institucional. Como defender a integração entre subcultura tecnológica com a elevada cultura humanista clássica quando sabemos que o verdadeiro opositor da cultura humanista não é propriamente a cultura tecnológica em si, mas o que ela ‘exala’, isto é, nada mais do que uma alienada cultura de mercado, consumista, uma subcultura que,
esta sim, está unificando-nos com uma rapidez e regularidade nunca vistas antes na história. E o terrível é que sua subcultura unificante unifica também, apesar de sua intenção, muitas formas da nova esquerda.” (PASOLINI, 2012, p. 1693).
24 Ghetti, Noemi. Gramsci nel cieco cárcere degli erétici. Ed. L’Asino d’Oro. Roma, 2014.
25 Edição Il Melângolo. Genova, 2015.
26 Espero que os leitores não entendam o texto como apologia à heresia, mas como tentativa de resgate da original ortodoxia marxista.
Em direção oposta, pela cultura ‘desinteressada’, ‘clássica’, ‘extrema’, ‘aparentemente inútil’, alternada à participação em movimentos renovadores, o jovem pode (mesmo arriscando) ou tomar consciência disso ou aceitando a linguagem do mundo na forma como se organizou ou rejeitando-a para criar uma nova linguagem27, uma nova racionalidade, nova organização, novos valores. A subcultura técnico- profissional é orgânica ao mercado, ao utilizo dos combustíveis fosseis (petróleo, carvão, gás) que fazem pensar em soluções a curto prazo, de mercado e, por isso, exulta vendo a mão triunfante de um Presidente da República encharcada de óleo. A subcultura técnico-profissional inflama a esperança, enquanto a cultura humanista acende a utopia. (PASOLINI, idem ibidem) 28.
Nosso objetivo foi transmitir a ideia de O princípio educativo do trabalho na formação humana levanta uma problemática bastante complexa. Acho que alcançamos esse objetivo. Querendo ser didáticos e sistemáticos, diremos que esse princípio compõe-se de, pelo menos, cinco fatores que deverão ser analisados detalhadamente:
As necessidades histórico-objetivas do desenvolvimento das forças produtivas: Fordismo, Taylorismo, Toyotismo etc..
A natureza e dinâmica históricas das Instituições Educativas;
Os alunos, suas faixas etárias e sua inserção social;
Os docentes e sua didática;
A direção política ou a filosofia da práxis.
27 Linguagem é costume, é modo de comportar-se, conforme uma determinada ordem é, em suma, práxis social. Ao definir o ‘como da revolução’, Gramsci utiliza a categoria linguagem (não território), afirmando a “importância da questão linguística” (1331). Obviamente, não se trata precisamente e pontualmente da língua, linguagem relaciona-se com a memória, individual e coletiva, com valores, gostos, preferências, concepções, emoções, forma de vida social no seu conjunto. Nesse sentido, revolução não é propriamente conquista militar de territórios ou golpe político (insurreição), mas equivale à criação de uma nova ordem, de nova linguagem.
28 Ver o inacabado romance de Pasolini, Petrolio , cerca de 600 páginas de anotações/fichas, que, no projeto do autor, se tornariam uma “Suma de todas as minhas experiências, de todas as minhas memórias.” Edição Oscar Mondadori, Milão, 2014. Nas entrelinhas, identificamos no romance a teoria Gramsciana de revolução passiva regressiva. O autor considera que a industrialização movida a petróleo é certamente uma revolução passiva regressiva.
Mas, então, ao encerrar a exposição, percebemos que, na verdade, fizemos apenas uma introdução à temática. A resposta sistemática e completa iniciar-se-ia agora, ilustrando e comentando os cinco fatores aqui elencados.
Será tarefa para outra oportunidade.
BALDACCI, M. La scuola come antítese. In: Articolo 33. Universidade Roma 33. Roma, maio, 2019.
COSPITO, G.. Introduzione a Gramsci. Edição Il Melângolo, Genova, 2015. ENGELS, Friedrich. Apud, Bittar, Marisa e Ferreira Jr. Amarílio, A Educação Soviética, mimeo, São Carlos, UFSCar, 2020, 191.
FROSINI, F. L’ereditá culturale dell’opera di Antonio Gramsci. In: Envoi Gramsci, cultura filosofia e humanismo. Editore Campanotto, Pasian di Prato, Udine, 2017.
GHETTI, N. La cartolina di Gramsci. A Mosca tra politica e amori, 1922-1924. Donzelli Editore, Roma, 2016.
. Gramsci nel cieco carcere degli eretici. Edizioni L’asino d”oro. Roma, 2014.
GRAMSCI, A. La costruzione del partito comunista 1923-1926. Giulio Einaudi Editore. Torino, 1974.
. Quaderi del cárcere - II. Edição crítica de Valentino Gerratana. Einaudi Editore, Torino, 1975.
. Quaderni del cárcere. 1 Quaderni di traduzioni (1929-1932) **. Edizioni Nazionali, Istituto della Enciclopedia Italiana – Treccani- 2007.
LÊNIN, V.l. As tarefas das uniões da juventude. In: Obras escolhidas. São Paulo: Editora Alfa-Omega, t. 3, 1980.
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MANACORDA, M. A. Mario Alighiero Manacorda, aos educadores brasileiros.
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DA SILVA, T T. (Org.). Trabalho, educação e prática sociual – por uma teoria da formação humana. Artes Médicas, Porto Alegre, 1991.
V.18, nº 37, set-dez (2020) ISSN: 1808-799 X
Homenagem
Ronaldo Marcos de Lima Araújo2 Luciane Teixeira da Silva3
Neste número 37, a Revista Trabalho Necessário apresenta uma seção de homenagem a um pesquisador que tem papel destacado para a constituição do campo de estudos e pesquisas em Trabalho e Educação no Brasil, o Filósofo Paolo Nosella, cabendo a nós essa difícil e prazerosa tarefa de apresentá-lo.
Tarefa difícil no sentido de se buscar as palavras que expressem o singular de
Paolo Nosella, que nos faz escutar Gramsci, movimentar-se pela formação
1 Artigo recebido em 24/07/2020. Aprovado pelos editores em 24/07/2020. Publicado em 25/09/2020. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v18i37.46276.
2 Doutor em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professor Titular do Núcleo de Educação Básica da Universidade Federal do Pará - Brasil. E-mail: ronaldolimaaraujo@gmail.com ORCID:0000-0002-5982-793X. Lattes:http://lattes.cnpq.br/7901626430586502. Agradeço a cooperação de Luciane Silva, doutoranda e orientanda de Paolo Nosella, minha companheira, que me forneceu algumas informações preciosas sobre a vida de Paolo Nosella.
3 Mestra em Educação pela Universidade Federal do Pará - Brasil. Doutoranda em Educação pela
Universidade Federal de São Carlos - São Paulo - Brasil. E-mail: luciane.teixeira.silva@gmail.com ORCID: 0000-0002-8967-6298. Lattes: http://lattes.cnpq.br/0495011691036166,
omnilateral e a defesa de uma escola unitária, em que a cultura extrema seja a tônica, o que acaba, no final das contas, constituindo uma dificuldade eivada de prazer.
É prazerosa porque nos possibilita expressar o carinho – com a sensibilidade voltada para quem nos provoca para o gosto pelo clássico, que se objetiva na poesia, na política, nas relações humanas e em tantas outras dimensões da existência – e o reconhecimento pela contribuição de Paolo Nosella com a formação de cada um de nós, construindo irmandades acadêmicas e de afetos.
O nosso homenageado, pois, é um ser humano de sorriso acolhedor, de voz forte e calma, professoral, com os cuidados de quem nos media a formação, que nos coloca como horizonte uma sociedade de liberdade e de efetivamente humanos, contrária a tudo que nos possa desumanizar a existência, como o fascismo que se intenta movimentar.
Nosella nasceu em 1942, na cidade de Pádova, na região de Vêneto, no Nordeste da Itália. Cidade de três mil anos, que tem na história, na ciência e na religião elementos importantes em sua composição histórico-social. Esses também foram constitutivos na formação do nosso homenageado, que foi seminarista jesuíta (sendo relevante para a sua formação essa experiência eclesiástica), constituindo-se filósofo de formação, pesquisador da história da educação, professor universitário por mais de 40 anos, chegando à condição de Professor titular de Filosofia da Educação da Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR). Pesquisador Sênior
do CNPq é um grande estudioso da produção teórica de Antonio Gramsci, em particular de seu projeto de escola.
Vive no Brasil há mais de 50 anos. Veio da Itália em 1967 para ajudar a organizar as primeiras Escolas da Família Agrícola (EFAs) que experimentavam a organização da Pedagogia da Alternância no estado do Espírito Santo, sendo esse o tema da sua dissertação de mestrado defendida dez anos depois na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Esse texto foi publicado em livro em 2013, sob o título de Origens da Pedagogia da Alternância no Brasil, pela Editora da Universidade Federal do Espírito Santo, tornando-se referência para os estudiosos da educação do campo no Brasil e para aqueles que se interessam pela Pedagogia da Alternância.
Escola Família Agrícola de Olivânia, em Anchieta (Espírito Santo): primeira escola com Pedagogia da Alternância. Nosella e o gosto pelo campo
Filho de pais agricultores e pequenos produtores de vinho, teve seus primeiros vinte anos de vida marcados pelas histórias das duas grandes guerras e da repressão fascista, contadas pelos pais e avós. Também o sonho socialista do período posterior a primeira guerra compunha essas histórias. Assim, fascismo e socialismo foram os opostos que mobilizaram a sua produção e a liberdade foi assumida como o objetivo fundamental da formação humana. Para ele, na tese gramsciana do trabalho como princípio pedagógico, o trabalho deve ser entendido como momento educativo da própria liberdade humana, concreta e universal.
Nosella cursou Filosofia na Itália, mas sua formação pós-graduada é toda no Brasil, no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Educação4 da PUC-SP, onde realizou mestrado e doutorado sob a orientação do professor Demerval Saviani, com quem guarda relação de diálogo acadêmico e de amizade até hoje.
É autor de textos seminais para área de trabalho e educação no Brasil, em
particular, o livro A Escola de Gramsci, publicado em 1991 (ano do centenário de nascimento de Gramsci) pela Editora Cortez, estando hoje na sua 5ª edição. Nesse livro, o pesquisador tenta um “acerto de contas” com as leituras, para ele, fragmentadas e a-históricas de Gramsci feitas pela maioria dos educadores brasileiros. Lendo Gramsci a partir do método histórico-filológico, propõe-se a:
Levar meus colegas educadores do Brasil, quase tomando-os pela mão, a percorrerem os textos de Gramsci, sobretudo os referentes à Cultura, Educação e Escola, selecionando, datando, desvelando o sentimento exato dos termos, explicando, comentando e também alimentando o nosso debate atual sobre a escola (p. 33).
O próprio pesquisador distingue três fases da sua produção intelectual. A primeira fase (1967-1977), com forte interesse pela Educação Popular, com destaque para o estudo sobre a criação das Escolas da Família Agrícola da Pedagogia da Alternância; a segunda fase (1978-1988), com interesse para a Educação Operária, sendo dessa fase a escritura do livro "A Escola de Gramsci". Também é desse período a tese de doutorado intitulada Pensamento Operário: do Momento Puramente Econômico (ou Egoista-passional) ao Momento Ético-Político, num Estudo Sobre Cinco Metalúrgicos de São Paulo, defendida em 1981; e, na
4 Hoje PEPG em Educação: História, Política, Sociedade.
terceira fase (1988-2008), revela seu maior interesse pela Educação Brasileira, em particular sobre a história das instituições escolares de São Carlos - SP5.
Diz Nosella que seus “trabalhos publicados na primeira fase são marcados por certo assistencialismo, os da segunda fase por uma fervorosa discussão político-ideológica; os da terceira fase se caracterizam por uma salutar ‘decantação’ da efervescência ideológica”. Explica que essa "decantação" se revela na maior clareza das ideias, “superando o espírito insurrecional para fortalecer o espírito autenticamente revolucionário”.
Posterior a essas fases descritas há uma grande produção que concentra principalmente nos estudos sobre Gramsci e o Ensino Médio, com destaque para a coletânea “Ensino Médio à Luz do Pensamento de Gramsci”, publicado em 2016 pela Editora Alínea, no qual reúne seis ensaios em que defende um ensino médio que garanta aos jovens o acesso a uma cultura geral, moderna, humanista e desinteressada, portanto não profissionalizante.
Como intelectual, Nosella é rigoroso e polêmico. Durante décadas manteve posicionamento crítico em relação a vários
pesquisadores brasileiros, entre eles Dermeval Saviani, seu ex-orientador de mestrado e doutorado, que priorizaram o uso do conceito de politecnia, para expressar uma diretriz para a organização do ensino médio brasileiro. Para Nosella, “os educadores brasileiros marxistas, ao erguerem na atualidade a bandeira da politecnia, acenam semanticamente para uma posição teórica historicamente ultrapassada que, entretanto, representou, nos anos 1990, o posicionamento majoritário desses educadores”6. Para ele, a defesa da escola unitária ficou fora de foco e é preciso assumi-la como orientação para a organização da educação básica. Pelo mesmo motivo se mantém crítico ao projeto de Ensino Médio Integrado, proposto por um conjunto de pesquisadores também do campo marxista, entre os quais um dos autores aqui se situa, que o compreendem como “travessia”
necessária para a construção de uma escola unitária, socialista.
5 Retirado do currículo lattes de Paolo Nosella.
6 NOSELLA, Paolo. Trabalho e perspectivas de formação dos trabalhadores: para além da formação politécnica. Rev. Bras. Educ., Rio de Janeiro, v. 12, n. 34, p. 137-151, Abril. 2007.
Nosella faz parte de um grupo de pesquisadores da área de educação que ajudou a constituí-la cientificamente. Foi da primeira turma de um dos primeiros doutorados em educação do Brasil. Faziam parte de sua turma Luís Antônio Cunha, Guiomar Namo de Melo, Osmar Fávero, Neidson Rodrigues, Miriam Warde, Carlos Jamil Cury, Elisabeth Antunes, Bruno Pucci, Antônio Chizzotti, Lilian Marmorato e Cláudio Gomide, entre outros7. Ajudou também na constituição da área Trabalho e Educação, que tem no GT 09 da Associação Nacional de Pós-Graduação em Pesquisa em Educação (ANPED) o seu principal lócus de encontro. Por sua contribuição a essa área e em alusão aos 22 anos de publicação do livro A Escola de Gramsci recebeu homenagem dos pares no Intercâmbio Nacional dos Núcleos de Pesquisa em Trabalho e Educação (Intercrítica), em 2014, em Belém-PA, junto com Gaudêncio Frigotto, Acácia Kuenzer, Lucília Machado e Celso Ferretti.
Em sua trajetória na pós-graduação, como orientador, já ajudou a formar quase uma centena de mestres e doutores. Como professor é reconhecido pelo seu rigor intelectual, pelo entusiasmo com os estudos sobre e Gramsci e também pelo incentivo à ampliação do universo cultural de seus alunos. Não é raro, por exemplo, acompanhar alunos e orientados em espetáculos no Teatro
Municipal de São Paulo. Sua recomendação é sempre para a leitura dos clássicos.
Atualmente concentra seus estudos na produção teórica de Antonio Gramsci e desenvolve um projeto sobre a “Pedagogia da Alternância: cinquenta anos de prática".
Conhecemos Nosella em situações diferentes. Ronaldo com a leitura do texto “Trabalho e Educação: do tripalium da
escravatura ao labor da burguesia; do labor da burguesia à poesia socialista”8, no início da minha carreira docente. Esse texto tornou-se leitura obrigatória para as turmas de pedagogia em que lecionava. Conheceu-o pessoalmente no início dos anos 2000, quando suas universidades firmaram um convênio de cooperação acadêmica. Na mesma década, em 2006-2007, dividiram a coordenação do GT09 da ANPED. Luciane teve seu primeiro contato com o professor quando estudava as “Origens da Pedagogia da Alternância no Brasil”. Pode conhecê-lo como seu
7 Informação extraída do Epílogo à 3ª Edição de A Escola de Gramsci. São Paulo: Cortez, 2016. 8NOSELLA, Paolo. Trabalho e Educação: do tripalium da escravatura ao labor da burguesia. In: Gaudêncio Frigotto. (Org.). Trabalho e Conhecimento: dilemas na educação do trabalhador. São Paulo: Cortez Editora, 1989.
orientador de Doutorado, na UFSCAR, tendo a oportunidade de vaguear na sua biblioteca, local em que ocorrem as sessões de orientações e onde também se trata da vida, dos livros, dos clássicos, da horta, do clima, da sanidade e também da tese em construção, que precisa ter rigor, ser autoral e volumosa, além de “um bom título e um excelente subtítulo”. Podemos dizer que nessa biblioteca nasceram sentimentos de afeto e de admiração, para além dos laços acadêmicos, próprios de “companheiros de câmara”, numa amizade que admite divergências e cultiva a utopia.
E é carinho que se manifesta na apreciação da vida e nas lutas socialistas, que nos conduzam à emancipação humana, permitindo o acesso de homens e mulheres, adultos, jovens e crianças à diversidade de produções resultantes do trabalho humano, numa partilha universal; carinho que se faz presente nos encontros, ao movimento de conversas e sabores, no respeito e cuidados, constituídos e constituintes de afetos.
Paolo Nosella é professor aposentado pela UFSCAR, mas em contínuo trabalho como colaborador do Programa de Pós-Graduação em Educação, onde revela ímpeto juvenil pela pesquisa e pela produção do conhecimento, mantendo regular oferta de disciplinas e de orientação acadêmica, dada sua ampla preocupação com a formação humana e a socialização da vida.
Não se descuida, entretanto, “do reino da liberdade”: gosta de bons vinhos, cafés e da boa comida. Nutre, também, especial cuidado com seu pequeno pomar e sua horta. Marido, pai e avô dedicados, mantém olhar atento ao processo de formação dos filhos e netos.
Na sua casa há espaços para o trabalho manual perto de sua confortável biblioteca, organizada cronologicamente, onde os livros sobre e de Gramsci e os dicionários ganham destaque. Diz que amigos são aqueles que chegam à sua casa.
No texto publicado nessa revista, intitulado “O princípio educativo do trabalho na formação humana: una spaccatura storica”, Nosella organiza o curso encomendado pelo GT09 da ANPED, em 2019, dado junto com Marise Ramos (UERJ). Nele retoma o debate no campo marxista acerca do trabalho como princípio
educativo, problematizando os que priorizam a cultura ‘prática’, científica, profissional, tecnológica em detrimento de uma “cultura desinteressada”. Para isso recupera do poeta Italiano Pasolini a ideia de “cultura extrema”, que traduziria o conteúdo da Escola Unitária de Gramsci. Para ele “só uma ‘cultura extrema’ libertará o proletariado de sua ‘extrema’ opressão”. O texto mantém, portanto, as marcas da produção acadêmica de Nosella, o rigor e o diálogo crítico com a produção da área.
No prefácio à terceira edição de A Escola de Gramsci, Nosella se apresenta como um socialista que se opõe, à direita, à barbárie do capitalismo e, à esquerda, ao pensamento débil do pós-modernismo. Podemos também apresentá-lo como um intelectual autêntico, com ideias próprias.
No último Intercrítica, realizado em 2018, em Natal-RN, e no texto aqui
publicado na Revista Trabalho Necessário, Nosella empresta a definição feita de Gramsci por Giuseppe Cospito para destacar a importância do herege para a crítica e a renovação das instituições. Pode-se dizer que também fala de si mesmo, de sua produção crítica ao estabelecido na área e no campo marxista da educação brasileira, tal como um militante acadêmico “aberto, antidogmático, heterodoxo e até mesmo herético”.
V.18, nº 37, set-dez (2020) ISSN: 1808-799 X
Boris Marañón-Pimentel2
Plantea una discusión descolonial de los conceptos dominantes de “economía” y trabajo que permita contribuir a sentipensar formas no eurocéntricas de concebir la satisfacción de nuestras necesidades materiales y espirituales. Se trata de establecer cuáles son los aportes de las visiones “indígena”, marxista y feminista para la elaboración de una mirada otra de “economía” denominada solidaridad “económica” (SE) como categoría de transición histórica, y resignificar el trabajo, entendido como actividad en sentido amplio y no sólo como trabajo asalariado o empleo.
Apresenta uma discussão descolonial dos conceitos dominantes de "economia" e trabalho que permite contribuir para sentir-pensar maneiras não-eurocêntricas de conceber a satisfação de nossas necessidades materiais e espirituais. A idéia é estabelecer quais são as contribuições das visões “indígenas”, marxistas e feministas para a elaboração de outra visão de “economia” denominada solidariedade “econômica” (SE), como uma categoria de transição histórica e ressignificar o trabalho, entendido como exercício em um sentido amplo e não apenas como trabalho ou emprego assalariado.
"ECONOMIC" SOLIDARITY AND DECOLONIALITY OF POWER: A DIALOGUE WITH "INDIGENOUS", MARXIST AND FEMINIST VISIONS
This article raises a decolonial discussion of the dominant concepts of "economy" and work that allows us to contribute to feel and think non-eurocentric forms ways of conceiving the satisfaction of our material and spiritual needs. It is about establishing what are the contributions of the “indigenous”, marxist and feminist visions for the elaboration of another “economy” look called “economic” solidarity (ES) as a category of historical transition, and resignify the work, understood as activity in a broad sense and not only as salaried work or employment.
1 Artigo recebido em 29/05/2020. Primeira Avaliação em 10/06/2020. Segunda avaliação em 10/06/2020. Aprovado em 02/07/2020. Publicado em 25/09/2020. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v18i37.46277
2 Doctor en Estudios Latinoamericanos, UNAM – Universidad Nacional de México - México, Investigador en el Instituto de Investigaciones Económicas (IIEc) - UNAM, México.
e-mail: bolin88@unam.mx. - http://www.iiec.unam.mx/directorio/persona/marañón-pimentel-boris-wolfang
Este documento es una versión modificada del artículo presentado en el Encuentro Internacional sobre alternativas al desarrollo y tendencias en la descolonización de "economías"3 para la reproducción de la vida y el bienestar, organizado por la Universidad del Cauca - Colombia y el Consejo de Ciencias Sociales de América Latina - CLACSO, en la ciudad de Popayán, Colombia, en 2019.
En este texto se plantea una discusión descolonial de los conceptos dominantes de “economía” y trabajo para sentípensar formas no eurocéntricas de satisfacer nuestras necesidades materiales y espirituales, a través de una exploración de los aportes centrales de las visiones “indígena”, marxista y feminista. Se trata de elaborar una mirada de otra “economía” denominada solidaridad “económica” (SE) como categoría de transición histórica, y resignificar el trabajo, entendido como actividad en sentido amplio y no sólo como trabajo asalariado o empleo.
Algunas categorías centrales que deberían ser consideradas para contribuir a elaborar una nueva visión de la “economía” son: a) la relación sociedad - “naturaleza”, relevante en esta época histórica caracterizada por el peligro de destrucción de las bases materiales de la vida en el planeta5, b) las relaciones de poder y la totalidad histórico- social, y c) la heterogeneidad histórico-estructural y la pluriversalidad de epistemes.
A continuación se desarrolla cada una de ellas.
3 En este artículo se ponen entre comillas diversos términos como “economía”, “indígenas”, para enfatizar que no son expresiones neutrales sino creaciones desde el poder para imponer significados específicos y arbitrarios.
4 Esta sección está basada en Marañón (2018).
5 Ver Marañón (2016), Toledo (2013).
La relación sociedad - “naturaleza”
Este es un tema crucial en el actual tiempo histórico de crisis del patrón de poder, por su orientación destructiva no solo de la vida humana, sino de las posibilidades de la vida en general en el planeta Tierra. Es indispensable tener como punto de partida de toda consideración descolonial de la “economía” y del trabajo la visión de relacionalidad y complementariedad entre los humanos y la “naturaleza”, de relación sujeto-sujeto y de cuestionamiento a la dominación y explotación de la segunda por los primeros. Son imprescindibles, sin duda alguna, los aportes de las culturas “indígenas” al proponer lo humano como integrado y perteneciente a la “naturaleza”, la misma que no es un objeto sino un ser vivo: la Madre Tierra. Esto se relaciona con el principio panzoísta que implica
“Todo tiene vida, nada es simplemente materia inerte… el universo Pacha no es una máquina o un mecanismo gigantesco que se organiza y mueve simplemente por leyes mecánicas, tal como afirmaron los filósofos europeos modernos (...) es más bien un organismo vivo en el que todas las partes están relacionadas entre sí, en constante interdependencia e intercambio” (ESTERMAN, 2012: p.157)
De ahí que se considera que:
la vida (kawsay, qamaña, jakaña) en su totalidad, no solamente la del ser humano o de animales y plantas, sino de toda la Pacha;
el bien vivir (allin o sumak kawsay; suma qamaña; ivi maräei; küme mogen) como horizonte de sentido, que incluye a los demás seres, animales, plantas, minerales, astros, espíritus y divinidades, como modo de existencia que está en equilibrio con todos los demás elementos de la Pacha;
el bien vivir se orienta por los principios de compatibilidad ecológica, social, intergeneracional, pachasofía y cultural; la sostenibilidad y sustentabilidad del “desarrollo” en clave indígena sólo se garantiza en la medida en que contribuye al Vivir Bien, d) del principio panzoísta, ya enunciado, se deriva que el “desarrollo” para el mundo andino no es antropocéntrico ni antropomorfo, ya que no puede haber crecimiento y mejoramiento para la humanidad en detrimento de la “naturaleza”, pues todo esfuerzo por mejorar el bienestar humano tiene que estar articulado con un equilibrio mayor que es ecológico y
en última instancia – cósmico (o pachasófico). El ser humano no es la medida de todas
las cosas, sino una chakana, un puente mediador para contribuir a constituir y restituir la armonía y el equilibrio universal (ESTERMANN, 2012: 157-159, énfasis propio).
Relaciones de poder y totalidad
Es necesario incorporar la cuestión del poder en el conocimiento y el debate, las relaciones de poder entre explotadores y explotados, entre dominantes y dominados, ya que eso implica estudiar sus determinaciones históricas: sus fuentes, condicionamientos, patrones de formación, de cambio, de crisis y de remoción. Así, plantearse el estudio de una problemática concreta requiere pues, tener en consideración, la totalidad social.
En la partida, es necesario reconocer que todo fenómeno histórico-social consiste en y/o expresa una relación social o una malla de relaciones sociales. Por eso, su explicación y su sentido no pueden ser encontrados sino respecto de un campo de relaciones mayor al que corresponde. Dicho campo de relaciones respecto del cual un determinado fenómeno puede tener explicación y sentido es lo que aquí se asume con el concepto de totalidad histórico-social (QUIJANO, 2007: p.9).
Plantear el análisis de la “economía” a partir de las relaciones de poder, aspecto evadido e invisibilizado por la vertiente hegemónica de “economía”6 implica reconocer también límites en los diversos enfoques críticos al capital y al capitalismo. Este es el caso de lo que desde fines de los noventa se vino a llamar en América Latina “economía” solidaria, “economía” social, “economía” social y solidaria, términos que tratan de mostrar la emergencia de prácticas de solidaridad y reciprocidad en nuestro subcontinente. No obstante, los enfoques hegemónicos de “economía” solidaria se caracterizan por su marcado economicismo, su elevado componente ético asociado a una falta de discusión de la complejidad e historicidad del poder, al no enfatizar el surgimiento de las prácticas económicas solidarias como resultado específico de las actuales tendencias del capital, pues en diversas ocasiones, son presentadas como una continuidad de las prácticas prehispánicas y no como respuesta a la crisis del patrón de poder y de sus fundamentos: “la solidaridad es una práctica que ha existido siempre en nuestros países”, se suele decir7.
6 Ver Dobb (2007), Corredor (2005), Gibson y Graham (2011), Quijano Valencia (2012).
7 Ver Marañón (2016).
Además, incorporar las relaciones de poder en el análisis de la “economía” solidaria es importante pero no suficiente, pues se requiere considerar una perspectiva integral del poder, de modo que la crítica de la idea hegemónica de “economía” incorpore la totalidad social y por tanto los diversos ámbitos en que se expresa el poder8, articulando los cuestionamientos desde lo material y subjetivo sin que ambas dimensiones queden separadas, y sin que una se considere determinante de la otra, que el control de los medios de producción sea el eje de estructuración de la sociedad). Al mismo tiempo, es importante incorporar una visión de la totalidad no sistémica ni orgánica ni mecánica, sino un enfoque de totalidad abierta, en la que la sociedad tiene una lógica de desenvolvimiento, pero al mismo tiempo cada parte integrante tiene su propio movimiento, de modo que el todo influye en las partes y viceversa (Quijano, 2007).
Heterogeneidad histórico-estructural y pluriversalidad de epistemes
La contribución a la elaboración de una nueva visión de “economía” debe incluir también las distintas miradas que emanan desde la heterogeneidad histórico-estructural (combinación de diversos espacios-tiempos articulados por la relación capital-trabajo) y desde las distintas formas de desobediencia epistémica que se expresan desde abajo respecto del actual patrón de poder capitalista, moderno-colonial. La propuesta de un nuevo sentido de la “economía” no podría basarse en un solo lugar de enunciación, ni en una sola nueva episteme, sino en varias de ellas, como un reconocimiento a las diferencias culturales existentes y negadas por la colonialidad del poder (Quijano, 2007). La concepción hegemónica de “economía”, fue la imposición de una sola episteme que se tornó universalista, colonialista y eurocéntrica como resultado de la hegemonía mundial de un grupo social, capitalista, originado en Europa. Desde la descolonialidad del poder, una nueva idea de “economía” debe partir del reconocimiento de la diversidad e incorporar las propuestas que emanan de diversas epistemes, considerando, según Quijano, “la revuelta epistémica existente a nivel mundial”. En este sentido el esfuerzo de síntesis orientado hacia un concepto pluriverso de “economía” debería considerar una
8 Como lo plantea la teoría de la Colonialidad del poder (Ver Quijano, 2007).
amplia gama de orientaciones críticas descoloniales, que se caracterizan por no asociarse a la racionalidad instrumental, y que pueden tener elementos liberadores y solidarios, una amalgama de racionalidades diversas, tanto de origen occidental y no occidental, que en el pensamiento de Mariátegui, según Germaná (1995), tendrían elementos de racionalidades liberadoras (en términos de las promesas incumplidas de la modernidad) y solidarias (respecto a la convivencia equilibrada entre lo humano y la “naturaleza”)9.
Por tanto, la mirada descolonial de un nuevo concepto de “economía” requiere partir de relaciones sujeto-sujeto entre lo humano y no humano para aprender a cuidar a la Madre Tierra como fuente de toda vida, desde una visión no antropocéntrica sino ecosociocéntrica; partir de la “economía”, sus sentidos y prácticas como expresión de relaciones de poder subjetivas y materiales al mismo tiempo, ubicándola en la totalidad social; y finalmente, reconocer la heterogeneidad histórico estructural de la sociedad y tomar la pluriversidad de visiones y prácticas “económicas” y culturales. Esto es, la diferencia económico-cultural enfatizada por Quijano Valencia (2012).
La visión “indígena” aporta elementos que permiten fortalecer una visión teórica que establezca: a) un criterio de relacionalidad en el conjunto de relaciones sociales a partir del territorio como espacio material y simbólico, b) la búsqueda del bienestar no sólo humano sino de la Casa Común-Madre Tierra, considerando la necesidad de velar tanto por los equilibrios sociales y ecológicos como los de la Pacha, c) la reciprocidad simétrica como el eje de las relaciones sociales, d) el trabajo, en tanto actividad, inseparable de la vida y como actividad espiritual y lúdica, de satisfacción de las necesidades y de reproducción de la vida, humana y no humana, en su conjunto; e) la
9 Ver Marañón (2014), López y Marañón (2014).
10 Esta síntesis está basada en Marañón (2018). Es importante señalar que es necesario proseguir este diálogo epistémico con las propuestas de la economía social y solidaria, y de la economía ecológica, entre otras. Sobre las contribuciones del anarquismo ver Maceda, Arce y Marañón (2018) y una referencia más amplia de las visiones marxista e indígena, en Marañón (2018).
Madre Tierra o Pachamama en tanto creadora de masa y energía, debe ser entendida como la generadora y regeneradora de vida.
La visión marxista contribuye con su análisis a entender: a) cómo se configura el armazón de la “economía” capitalista en términos materiales y subjetivos alrededor de la mercancía (valor, valor de uso, valor de cambio, trabajo abstracto, dinero, capital), a partir de la explotación de la fuerza de trabajo, del proceso de enajenación de ésta y del fetichismo de la mercancía. b) qué criterios teóricos y políticos deben ser considerados para instituir desde la práctica y desde espacios de poder formas otras de “economía”, que rompan con la ley del valor y con las relaciones de poder basadas en la dominación y explotación propias de la modernidad-colonialidad. En este sentido, se señala: i) el proceso de desmercantilización, en tanto intercambios recíprocos de fuerza de trabajo y de trabajo sin pasar por el mercado capitalista o el dinero; es decir, el paso de la producción de valores de cambio a valores de uso, por tanto, se convierte en una categoría central para teorizar y practicar “economías”; ii) se enfatizan las ideas de excedente y de reproducción ampliada, para tener en cuenta que un sistema económico, para consolidarse y expandirse requiere como condición básica la generación de un excedente “económico” y plantearse su reproducción ampliada, aspectos que no han tenido mucha atención en la discusión de las “economías” alternativas; iii) el tránsito del trabajo alienado al trabajo productor de valores de uso, fuente de creatividad y realización humana11.
Ambas visiones, la “indígena” y la marxista, permiten estructurar una mirada más abarcativa de la “economía” y del trabajo en términos de la Solidaridad Económica - SE y de la Des/Colonialidad del poder, es decir, de una “economía” orientada a la reproducción de la vida y de la Casa Común, a partir de la territorialidad, reciprocidad, de la desmercantilización, del autogobierno y de la supresión de las relaciones de dominación y explotación y de los constructos mentales que jerarquizan verticalmente a los seres vivos y no vivos. Una “economía” orientada hacia los Buenos vivires descoloniales.
11 Al respecto ver Cruz (2011).
Esta revisión teórica preliminar de las visiones “indígena” y marxista de “economía” y de trabajo, permite plantear una discusión más precisa sobre la SE como una categoría de transición histórica, específicamente sobre el significado y alcances de la desmercantilización, pues parece haber una confusión respecto a sí todo valor de no uso para su productor director es ya una mercancía, en términos del mercado capitalista y de la acumulación de capital, o por el contrario, ese valor de uso es una mercancía pero que puede estar destinada al intercambio, ya sea a través del trueque o por medio del dinero en tanto relaciones de producción mercantil simple. En este mismo sentido, se requiere realizar una precisión de lo que es el trueque y la reciprocidad, pues entre ambos no existe una correspondencia biunívoca. Finalmente, es necesario plantearse una reflexión profunda sobre el papel del mercado capitalista y de los otros mercados en términos de una “economía” descolonial articulada hegemónicamente por la reciprocidad.
Se seleccionaron tres perspectivas feministas por su radicalidad y fundamentación: la crítica feminista-marxista (Federici), el conflicto capital-vida (Pérez) y la crítica decolonial (Quiroga/Gómez).
En palabras de Federici (2019), “la Economía Feminista tiene su origen en las visiones epistemológicas de los movimientos sociales, que fomentaron el debate y el análisis sobre el concepto de la reproducción en los años ‘70”. Federici sostiene que dos de las tareas fundamentales de la economía feminista son, por un lado, promover una crítica de la lógica de la acumulación capitalista, que se funda en la explotación del trabajo humano, en la privatización de la riqueza natural y de la riqueza producida, y
hacer una crítica del concepto mismo de economía. Nos han enseñado que la economía es la ciencia que muestra cómo utilizar la distribución de la riqueza en un contexto de escasez. Es imprescindible para la economía feminista demostrar que no hay escasez, que la escasez hoy y siempre es una cosa producida por las desigualdades sociales, por un sistema que se está comiendo el mundo, que se apropia de la riqueza natural, que la
destruye y no se preocupa de reproducirla para las nuevas generaciones (p. 49-50).
Federici (2018) reconoce la contribución valiosa de Marx al pensamiento feminista, entendido este como parte de un movimiento de liberación y de cambio social, no solo para las mujeres sino para toda la sociedad. Sin embargo, plantea la crítica a ciertos elementos problemáticos de la visión de Marx, destacando su crítica en cuatro aspectos cruciales: i- su visión de la historia a partir de un sujeto universal, ii- la ausencia del análisis de la reproducción en la acumulación originaria, iii- el silencio sobre la contribución decisiva del trabajo reproductivo a la acumulación capitalista y iv- una concepción restringida de trabajo socialmente necesario.
Sobre, la visión de un sujeto histórico universal único en la sociedad señala:
Para Marx, la historia es un proceso de lucha, de lucha de clases, de lucha de los seres humanos por liberarse de la explotación. No se puede estudiar la historia desde el punto de vista de un sujeto universal, único, si la historia es entendida como una historia de conflictos, de divisiones, de lucha. Para el feminismo esta perspectiva es muy importante. Desde el punto de vista feminista es fundamental poner en el centro que esta sociedad se perpetúa a través de generar divisiones, divisiones por género, por raza, por edad. Una visión universalizante de la sociedad, del cambio social, desde un sujeto único, termina reproduciendo la visión de las clases dominantes” (FEDERICI, 2018, p.12).
Respecto del papel de la reproducción en la acumulación originaria, Federici (2018) afirma que fue:
un proceso de desposesión, de expulsión del campesinado de la tierra y que incluyó también la esclavitud y la colonización de América (…). Lo que Marx no vio es que en el proceso de acumulación originaria no solo se separa al campesinado de la tierra sino que también tiene lugar la separación entre el proceso de producción (producción para el mercado, producción de mercancías) y el proceso de reproducción (producción de la fuerza de trabajo); estos dos procesos empiezan a separarse físicamente y, además, a ser desarrollados por distintos sujetos. El primero es mayormente masculino, el segundo femenino; el primero asalariado, el segundo no asalariado (FEDERICI, 2018,p.19).
En relación a la acumulación capitalista y trabajo reproductivo, la autora menciona que:
una mirada marxista-feminista, y para mí «feminista» significa «centrada en el proceso de reproducción» (…Implica la) recuperación del trabajo de reproducción, de las actividades de reproducción, de su revalorización, desde la óptica de la construcción de una sociedad cuyo fin, en palabras
de Marx, sea la reproducción de la vida, la felicidad de la sociedad misma, y no la explotación del trabajo” (FEDERICI, 2018,p. 21-23).
Federici critica a Marx por no considerar el aporte femenino como trabajo reproductivo a la acumulación capitalista, pues Marx destacó solamente la explotación de la fuerza de trabajo asalariada. Así, Federici (2013) afirma que:
El trabajo doméstico es mucho más que la limpieza de la casa. Es servir a los que ganan el salario, física, emocional y sexualmente, tenerlos listos para el trabajo día tras día. Es la crianza y cuidado de nuestros hijos ―los futuros trabajadores― […] asegurándonos de que ellos también actúen de la manera que se espera bajo el capitalismo. Esto significa que tras cada fábrica, tras cada escuela, oficina o mina se encuentra oculto el trabajo de millones de mujeres que han consumido su vida (…) La disponibilidad de una fuerza de trabajo estable, bien disciplinada, es una condición esencial para la producción en cualquiera de los estadios del desarrollo capitalista (FEDERICI, 2013. p. 30-31).
Federici afirma que Marx a pesar de su crítica a las relaciones patriarcales, centró su análisis del capital desde un punto de vista masculino del “hombre que trabaja”, del trabajador industrial, considerado el portador de una aspiración universal a la liberación de la humanidad. Si bien Marx está consciente de que la acumulación de capital tiene como elemento central la reproducción de la fuerza de trabajo, no considera la importancia del trabajo doméstico, el mismo que se encarga de proveer fuerza de trabajo estable y disciplinada, lo que implica que el trabajo reproductivo es un momento de la producción capitalista:
Federici (2018) trata de explicar esta “ceguera” en Marx - sobre la relación inextricable entre producción y reproducción -, sosteniendo tres razones centrales: a) en su época todavía no se había constituido la familia nuclear obrera, pues mayormente en las fábricas trabajan los padres y los hijos; b) la naturalización y vocación del trabajo femenino y su desvalorización, así como el surgimiento de una división sexual del trabajo específica del capitalismo, tiene su origen en los siglos XVI y XVI con la caza de brujas;
c) su visión progresiva de la historia “su creencia en el progreso a partir del desarrollo de las fuerzas productivas, del capitalismo y de la clase obrera que conduciría al socialismo no le llevó a considerar la importancia del trabajo femenino (FEDERICI, 2018, p.64-65)”. Si la crítica de Marx al capital no considera el trabajo de reproducción como un elemento fundamental de la acumulación capitalista, “es igualmente cuestionable la
concepción marxista del trabajo y se requiere una redefinición del mismo en tanto trabajo socialmente necesario, pues éste para el marxismo está conformado por el trabajo asalariado productor de mercancías” (Federici, 2018: 102). Por lo tanto, en una propuesta de reformulación del trabajo socialmente necesario, Federici propone incluir el trabajo de reproducción
“Pilar de todas las formas de organización del trabajo en la sociedad capitalista. No es un trabajo precapitalista, un trabajo atrasado, un trabajo natural (…) es absolutamente funcional a la organización del trabajo capitalista. (…). La sociedad y la organización del trabajo como formado por dos cadenas de montaje: una cadena de montaje que produce las mercancías y otra cadena de montaje que produce a los trabajadores y cuyo centro es la casa” (FEDERICI, 2018, p.18).
Otra vertiente crítica es la Economía Feminista (EF) desarrollada por Pérez y Agenjo, que formulan críticas a la economía ortodoxa, a la economía que busca la equidad de género y proponen no sólo una crítica a las relaciones patriarcales en la economía asociada al salario y mercado capitalista, sino también al capitalismo, destacando la necesidad de enfatizar la sostenibilidad de la vida. Según estas autoras, la Economía feminista pretende:
Identificar los sesgos androcéntricos de las teorías económicas que impiden tener una comprensión integral de la economía y de los procesos de inclusión/exclusión que en ella se producen, especialmente de los marcados por el género. A partir de ahí, pretende obtener herramientas conceptuales y metodológicas para revertir dichos sesgos y aplicar una perspectiva feminista a la comprensión de fenómenos económicos, desplazando el eje analítico de los mercados a los procesos que sostienen la vida. Con todo ello, se propone reflexionar sobre los procesos y políticas económicas actuales recuperando las esferas invisibilizadas de la economía y preguntándose cómo interactúan con la desigualdad entre mujeres y hombres” (PÉREZ Y AGENJO, 2018, s/p).
De acuerdo con las autoras mencionadas:
“La EF rompe con la economía convencional en múltiples aspectos. A nivel epistemológico, cuestiona las gafas androcéntricas con que la economía neoclásica observa todo, y su estructura de pensamiento dicotómica y androcéntrica, que excluye sistemáticamente lo feminizado. También denuncia que el objeto de estudio de la economía queda reducido a los aspectos mercantiles, relegando a la invisibilidad la naturaleza, las necesidades del cuerpo y las relaciones humanas,
incluyendo la reproducción del poder (en base a la clase, el género, la raza, etc.)” (PÉREZ Y AGENJO 2018: s/p).
Se destaca la corporeidad y los criterios centrales de clasificación social (género, raza, clase) de los sujetos económicos, destacando las relaciones de género:
Se pone cuerpo a la teoría, reconociendo que los agentes económicos no son homos economicus abstractos, sino sujetos marcados por el género, la raza/etnia, la clase social, la condición migratoria, la orientación sexual, la identidad de género, etc. La EF desvela que el Robinson Crusoe que la economía neoclásica utiliza en sus modelos matemáticos, asegurando que es una metáfora universal del ser humano, realmente es el símbolo del sujeto privilegiado en el sistema económico dominante: el BBVAH (blanco, burgués, varón, adulto, heterosexual) sin diversidad funcional, urbano, occidental. Esta figura convierte a todo el resto de personas en el otro. (PÉREZ Y AGENJO 2018: s/p).
En otros textos, Pérez (2014 y 2019) ha desarrollado el enfoque del conflicto capital-vida. Destaca su esfuerzo por criticar al capitalismo a partir del reconocimiento de la pluriversalidad de miradas críticas, ubicándose de manera clara en una perspectiva anticapitalista:
Dentro de la diversidad de los feminismos, este enfoque se sitúa en una posición marcada, sin lugar a dudas, por su condición anticapitalista, por estar cercana al ecofeminismo y por aspirar a haber aprendido algo del feminismo queer y postcolonial (...) busca aportar ideas que confluyan con otras miradas heterodoxas en la configuración de un horizonte de utopía frente a la crisis civilizatoria que estamos viviendo. Varias de estas miradas apuestan por la sostenibilidad multidimensional en tanto que herramienta analítica (cómo el sistema sostiene o ataca la vida, y de qué vida se trata) y política (cómo avanzar hacia un sistema que sostenga la vida) (PÉREZ, 2019, p. 37).
Esto, lo plantea argumentando que hay una contradicción fundamental entre el capital y la vida:
Pues bien, uno de los elementos definitorios de esa Cosa escandalosa (…) este sistema biocida que se va imponiendo globalmente (…) es que los mercados capitalistas están en su epicentro. El punto de arranque de la propuesta que toma como eje analítico y político la sostenibilidad de la vida, a la hora de pensar la economía y abordar la crisis, puede entenderse como una rebelión contra este statu quo (…) decimos que están en el epicentro porque sus mecanismos definen cómo funciona la estructura socioeconómica; y porque el proceso socialmente garantizado es la acumulación de capital. Esto inhibe una responsabilidad colectiva en el sostenimiento de la vida y, más aún, establece una amenaza constante
sobre esta, que termina resolviéndose (malamente) en esferas feminizadas e invisibilizadas. (PEREZ, 2019, p.137).
Pérez (2014) precisa los alcances de la noción de sostenibilidad de la vida, distinguiéndola del “desarrollo sustentable”, proponiendo incorporar lo humano y lo no humano:
La noción de sostenibilidad proviene de la mirada ecologista (y no debe confundirse con su tergiversación en términos de desarrollo sostenible), mientras que la idea de sostenibilidad de la vida está más vinculada a la pregunta feminista sobre cómo se reproducen las sociedades. La apuesta sería la confluencia de estas dos perspectivas (y otras), sin escindir vida humana y no humana, y siendo conscientes de que no hay una vida abstracta, pura e inmaculada a la que podamos volver la mirada, sino diversas concepciones ético-políticas de la vida (PÉREZ, 2014, p. 37-38)
Al plantear el conflicto capital-vida, Pérez (2019) hace una síntesis desde varias teorías críticas. Recupera la crítica marxista como un sistema basado en la desigualdad y en el conflicto capital-trabajo, que se basa en la expropiación de los medios de reproducción de la vida por parte de los capitalistas, donde los desposeídos se convierten en esclavos del salario, precisando que hay una contradicción entre la acumulación capitalista y la sostenibilidad de la vida. Pero, sostiene que el conflicto capital-vida no es solo con el trabajo asalariado:
sino con todos los trabajos, también los no pagados. El problema es que el marxismo da una explicación basada en una noción unidimensional y reduccionista de la vida, donde esta se entiende solo en tanto en cuanto es mano de obra, mercancía fuerza de trabajo. Pero no queremos pensar la vida solo desde su faceta de input en el proceso de valorización; queremos pensar la vida desde la vida misma (...) Dicho de otra forma, el bienestar (o el malestar) es una experiencia multidimensional y compleja que no se entiende sólo a través de la pregunta por el acceso al salario, ni siquiera desde su noción amplia de salario directo, indirecto y diferido (p.123).
Por tanto, la autora añade otros dos conflictos que contribuyen a perfilar una mirada más abarcativa de la contradicción capital-vida: el ecologismo y el feminismo. El primero sostiene que:
En el capitalismo, la naturaleza se entiende como un recurso puesto al servicio del crecimiento económico, sin valor ni sentido en sí misma. La producción de bienes y servicios de mercado es un proceso que utiliza energía para extraer y transformar los materiales que están en el plantea,
emitiendo a la vez energía degradada y generando recursos, en un proceso cada vez más acelerado que presiona de manera creciente sobre los límites del planeta. La ganancia siempre se ha hecho en base a la depredación ecosistémica. El capitalismo está en conflicto estructural con la vida del planeta, es inherentemente ecocida” (PÉREZ, 2019, p. 120).
Este triple enfoque, marxista, ecologista y feminista, permite a Pérez “definir esta contradicción estructural e irresoluble entre el proceso de acumulación de capital y los procesos de sostenibilidad de la vida”; por tanto, afirma que la “valorización del capital se da a costa del expolio y despojo de la vida humana y no humana” (Pérez, 2019: 122). Agrega que este es un conflicto definitorio del sistema socioeconómico hegemónico, que es capitalista, pero es también heteropatriarcal, colonialista y medioambientalmente destructor (Pérez, 2019).
Es un conflicto de carácter heteropatriarcal porque la esfera de la acumulación necesita de una dimensión invisibilizada de cuidados feminizados. Hay una comprensión binarista y heteronormativa de las esferas producción/reproducción: la reproducción queda feminizada y leída como una esfera que no tiene sentido en sí misma sino por servir a la producción (como el sentido de ser de las mujeres es servir a los hombres). Y es heteropatriarcal porque la lógica de acumulación refleja los valores asociados a la masculinidad blanca: altius, citius, fortius. Más alto, más lejos, más fuerte. Hay un menosprecio intrínseco al sostenimiento de la vida, leído como una labor feminizada que no deja huella. ((PÉREZ, 2019, p. 122).
Al mismo tiempo, Pérez (2019) incluye los factores étnicos y de clase en la división sexual del trabajo que:
se acompaña de una división étnica y de clase, ya que el significado mismo de la feminidad/masculinidad no se genera en abstracto, sino en su cruce con otros ejes de jerarquización social. Existe una división racializada del trabajo, que está también sexuada, y una división sexual del trabajo, que está racializada. Y, en tercer lugar, en este reparto sistémico según el sexo, se asocian a la feminidad los trabajos que otorgan menor poder socioeconómico, los más invisibles (…) estos son los trabajos que sostienen la vida: los trabajos residuales, los cuidados. La división sexual del trabajo significa que existe una asociación diferencial y sexuada de los trabajos con el valor ((PÉREZ, 2019, p. 171).
Pérez (2019) plantea la necesidad de sostener la vida ante la ofensiva capitalista, centrarse en los cuidados, hacerse cargo de la vulnerabilidad de la vida, desde el
reconocimiento de la interdependencia y la ecodependencia. Estos tipos de cuidados tienen una cualidad emancipatoria, colectiva y comunitaria.
Pérez (2014) plantea subvertir nociones como “economía”, necesidades y trabajo (asalariado), y sugiere algunas resignificaciones conceptuales desde la sostenibilidad de la vida y del conflicto capital-vida. Sobre la “economía”, destaca la existencia de Paraeconomías:
“La gente que vive en contextos capitalistas (porque ya no hay lugares vacíos), pero cuya vida no genera negocio (…) En este sentido irían, al menos en parte, nociones como la «economía popular», entendida como
«el conjunto de actividades económicas y prácticas sociales desarrolladas por los sectores populares con miras a garantizar, a través de la utilización de su propia fuerza de trabajo y de los recursos disponibles, la satisfacción de las necesidades básicas, tanto materiales como inmateriales»”((PÉREZ, 2014, p. 127).
Igualmente plantea sustituir necesidades por desesidades:
Desde Centroamérica, en el contexto de la Educación Popular y la Investigación Acción Participativa, las mujeres lanzan la propuesta de un nuevo vocablo para resignificar la idea de «necesidades» sin escindirla de los «deseos»: las «desesidades» (…) para ellas «la palabra necesidades les resultaba muy enemiga: sus necesidades siempre tenían que ver con lo que decía su marido –si existía– o su prole, los otros, de manera que se pasaban la vida luchando por los deseos de otros. Ellas «deseaban» y peleaban por cambios y nos les parecía que el proceso pudiera ser una simple asunción de necesidades. (MARTINEZ DEL ARCO, M. Á., 2011 apud PEREZ, 2014, p. 40)
En relación al trabajo, orientado a la redistribución y revalorización, propone, por un lado, el fin del trabajo asalariado:
El trabajo asalariado es un trabajo alienado, porque a quien lo realiza se le expropia de su resultado; y porque no se realiza por sus resultados en términos de bien-estar, sino porque vivimos inmersos en un marco de esclavitud del salario y de búsqueda de beneficio monetario. Avanzar hacia el buen vivir implica reconstruir el nexo entre la actividad realizada y su impacto en términos vitales; destruir los trabajos asalariados innecesarios y dañinos; y organizar los desesarios en un marco distinto al constreñido por la lógica de acumulación. (PÉREZ, 2014, p. 172)
Y por otro, el fin de la división sexual del trabajo (¿contra los cuidados?)
Esta es la contracara del fetichismo del trabajo asalariado, que implica la privatización, la feminización y la invisibilización de la responsabilidad de sostener la vida. Por lo tanto, no solo ha de darse un reparto de todos los trabajos al margen de la identidad de género de los sujetos, sino que hay
que acabar con la existencia misma de trabajos feminizados que resuelven la vida desde lo oculto” (PÉREZ, 2014, p. 172).
Y plantea desplazar la discusión del empleo asalariado al trabajo en general:
“Asumimos el trabajo asalariado porque somos esclavos del salario. Nos encadenamos a un círculo vicioso en el que buscamos que nos contraten y/o inventamos tareas absurdas que nadie desesita para lograr un salario con el que consumir cosas que no desesitamos o que podrían redistribuirse en lugar de comprarse”. (PÉREZ, 2014, p. 271)
Al mismo tiempo propone otra concepción del trabajo:
En otros marcos posibles el trabajo quizá no se llamaría trabajo, pero formaría parte de la vida. Como afirma Javier Medina: “La Vida Buena occidental excluye el trabajo, pues es entendido como castigo divino. La Vida Dulce amerindia incluye el trabajo como algo bueno y positivo (…) Trabajar, por tanto, significa (…) ‘criar la vida del mundo’, pero vida en su sentido más pleno, como vida biológica, humana y espiritual”. El trabajo (resignificado) está en el centro del buen vivir porque es lo que pone sus condiciones de posibilidad y se hace cargo de la vulnerabilidad de la vida (PÉREZ, 2014, p. 272).
Esta vertiente ha sido desarrollada por Natalia Quiroga y Diana Gómez (2013). Si bien no hay una explicación de lo que se entiende por decolonial, propone varios ejes de búsqueda de las características de una economía alternativa en la que se reconocen las injusticias epistémicas, materiales y simbólicas que han experimentado aquellos considerados no blancos, no modernos, no ilustrados y en particular con aquellos no portadores de los ideales de masculinidad o feminidad hegemónicos. Entre los ejes centrales están:
sostenimiento. El carácter relacional de estas economías tiene una dimensión que involucra a humanos y no humanos, los vínculos establecidos le dan agencia a la naturaleza y en eso desafían la idea de qué es el saber y cómo se produce, instaurado por el proyecto de colonialidad-modernidad.
En otro texto, Quiroga (2016) desarrolla algunas ideas complementarias respecto de lo que sería el feminismo decolonial, sosteniendo que este reconoce la subordinación de las mujeres como parte de un proceso histórico que las sitúa en una posición de desventaja en relación a los hombres, en distintas esferas e instituciones de la vida en sociedad. La teoría feminista aportó el concepto de patriarcado: una estructura de dominación que contiene relaciones de poder concretas, por lo tanto, no es una formación transhistórica, transcultural o estática; es además, dinámica en el sentido en que se transforma y modifica con el paso del tiempo y con el relacionamiento con otras estructuras de dominación como el capitalismo, el colonialismo y el imperialismo.
La EFD parte de una mirada que trata de conocer cómo los grupos subalternos latinoamericanos han enfrentado procesos políticos y económicos, haciendo énfasis en las experiencias económicas desde lo femenino (indígena, afrodescendientes, campesinas) y sus saberes desde la interseccionalidad de la clasificación social y del territorio. Se afirma que en las experiencias económicas subalternas también hay inequidades entre hombres y mujeres, y que el homo economicus es masculino y blanco, así como se ha establecido el imaginario de la modernización y el “Desarrollo”, que las deslegitima:
En estas economías la participación de hombres y mujeres es también diferencial. La teoría hegemónica ha naturalizado el lugar masculino, blanco y europeo o norteamericano desde el que se ha venido pensando, por lo que esta diversidad ha sido abordada desde las categorías de atraso, informalidad, empujando un ideal de modernización que ha subalternizado activamente estas experiencias. Así, por esta vía, ha negado su importancia y relevancia teórica en la economía” (QUIROGA, 2016, p. 41).
La EFD aporta a una mejor comprensión respecto de por qué los distintos grupos sociales pueden resolver sus necesidades básicas de manera diferenciada, considerando las fuentes de desigualdad existentes:
Un ejemplo de ello es el mercado de trabajo en el que se produce una jerarquización entre los géneros, las etnias, las razas, las clases y la edad. Esta segmentación ha sido cuantificada mostrando el impacto de las brechas salariales por género y por etnia como una de las razones que explican que América Latina sea la región más desigual del planeta (QUIROGA, 2016, p. 42).
Se plantea una distancia respecto de las ideas del “Desarrollo” y la modernidad, las mismas que inspiran la homogeneización social impulsando el capitalismo por ser lo “avanzado”, ya que existen otras formas de organización económica y social no capitalistas, basadas en otras ontologías: se trata es de reconocer que existen opciones económicas distintas ya presentes y actuantes en la región, muchas de las cuales son alimentadas por las ontologías indígenas y afrodescendientes, por las prácticas de la economía social y solidaria (QUIROGA, 2016, p. 42).
Por tanto, la EFD tendría que entrar en diálogo con los pueblos para pensar y practicar otras formas de economía, definiendo como un eje básico la búsqueda del reencuentro entre producción y reproducción, separadas artificialmente por el capitalismo, a partir del reconocimiento del trabajo del cuidado. Se plantea que es necesario reforzar los espacios no mercantiles y la generación de valores de uso subvirtiendo el imaginario del “Desarrollo” y del mercado capitalista como el camino a seguir en tanto que:
La mayor parte de las políticas desarrolladas en apoyo a la economía popular están centradas en facilitar el proceso de inserción al mercado, sin considerar la intervención sobre las condiciones de una competencia que es más aguda para quienes no tienen una posición dominante en el sistema de privilegios que produce el capital, mientras que los actores con mayor nivel de acumulación fijan las condiciones de intercambio de sus productos” (QUIROGA, 2016, p. 43).
Se propone, además, dar cuenta de otras formas de trabajo no monetario que amplían la concepción de trabajo socialmente necesario hacia la producción de valores de uso:
para el fortalecimiento de las unidades domésticas, así como del conjunto de la economía popular y de la economía social, contribuye a reconocer que en la sociedad existen capacidades de trabajo que en la actualidad no están siendo valoradas en términos monetarios, lo que implica que amplios sectores de la sociedad no pueden contribuir con su trabajo, ni cuentan con ingresos para atender sus necesidades y sin embargo pueden activarse para resolver necesidades. Una vivienda protege aunque no sea producida como mercancía, la ropa abriga aunque no sea comercializada. Los bienes pueden ser impulsados por la función social que suplen y no por la ganancia (QUIROGA, 2016: 43).
En este sentido, la generación de valores de uso tiene una clara orientación descolonial ya que puede contribuir a reforzar las formas de vida en términos materiales y simbólicos de las víctimas de la colonialidad del poder, al proponer:
fortalecer la autonomía de los sectores considerados no blancos y en particular de las mujeres negras, indígenas, campesinas y de sectores populares sobrerrepresentadas en la población sin ingresos. En especial, porque muchas de sus economías vinculadas con circuitos territoriales en lo urbano y lo rural sufren la constante presión de las políticas de modernización capitalista asociadas a la petrificación, especulación inmobiliaria, etc., y la violencia propia de la acumulación originaria y/o extractivista que ensancha las tasas de ganancia del capital y despoja a grupos enteros de las condiciones necesarias para su reproducción material y simbólica” (QUIROGA, 2016, p. 44).
La mercantilización de la vida lleva a que sin ingresos o rentas no se puedan alcanzar las condiciones de vida para participar en condiciones de inclusión en la sociedad. Y el desarrollo actual del capitalismo considera excedente y no útil para el capital buena parte de las capacidades de trabajo. Por lo tanto, el bienestar no puede ser un resultado del devenir económico del mercado liberado por el neoliberalismo, sobre todo cuando de manera creciente la acumulación de ganancias es fruto de la actividad especulativa. La autora enfatiza una propuesta de racionalidad reproductiva:
que integra la producción y la reproducción viendo como un todo el proceso económico. Esta racionalidad reproductiva sustituye la lógica utilitarista del homo economicus y se relaciona con las propuestas que se vienen formulando como alternativas al desarrollo vinculadas con el Buen Vivir. La perspectiva de la Buena Vida y su racionalidad reproductiva permite formular políticas de cuidado no antropocéntricas, dado que la tierra es considerada como sujeto de reciprocidad (si la protegemos, ella nos cuida). A la vez que abre una dimensión comunitaria, de autonomía, autoorganización colectiva que amplíe las alternativas para pensar las políticas de cuidado (QUIROGA, 2016, p. 45).
El diálogo economía social y feminismo pone en evidencia el confinamiento “natural” de la reproducción fuera del mercado y la actividad femenina:
la separación entre producción y reproducción, genera condiciones de vulnerabilidad estructural para estas iniciativas (...) Cuando la economía se observa desde la perspectiva del cuidado y de la reproducción, se rompe con el encarcelamiento de la economía en el mercado tan propio de la teoría neoclásica y se expanden las posibilidades de acción para los actores organizados y para quienes construyen alternativas comprometidas con la vida y no con el capital (QUIROGA, 2016, p. 43).
La intersección entre EFD y las propuestas alternativas de economía, revela aspectos no mercantiles de la vida social, que pueden permitir construir economías alternativas orientadas al cuidado de la vida en su conjunto.
Se trata de construir una mirada pluriversa de “economía” y de trabajo a través del diálogo entre diversas epistemes, considerando la heterogeneidad histórico- estructural de la sociedad, así como el reconocimiento de la totalidad social y de las relaciones de poder en su complejidad. Si el pensamiento hegemónico que sustenta teóricamente a la “economía” dominante invisibiliza otras epistemes, trata de homogenizar la vida social y de negar la totalidad social y las relaciones de poder que estructuran la vida en sociedad, la crítica descolonial plantea, por el contrario, el diálogo epistémico entre visiones que critican el poder en tanto dominación y explotación, reconociendo la heterogeneidad histórico-estructural y la idea de totalidad social.
Asimismo, en esa etapa histórica en la que el patrón de poder capitalista moderno-colonial amenaza con destruir las bases materiales de la vida, es indispensable tener en cuenta la relación sociedad-“naturaleza”, desde una perspectiva relacional, recíproca y complementaria entre los seres humanos y con la Madre tierra.
La revisión preliminar del aporte “indígena” para sentipensar el concepto de “economía” y trabajo, plantea que cualquier “desarrollo” debe estar orientado a y en beneficio de la colectividad; la relación sociedad -“naturaleza” debe verse a partir de ritos y mitos que establecen una visión de sacralidad y de diálogo sujeto-sujeto; la “economía” es el manejo prudente y cuidadoso no solo del oikos doméstico humano sino de la Casa
Común, que incluye a la Madre Tierra y al universo; el humano no es el amo (como en la visión cristiana) sino el cuidante, el facilitador de la vida pues es la Madre Tierra la que posee la energía para producir y reproducir la vida. Desde esta visión la vida es un conjunto de relaciones entre los humanos y entre éstos y la Madre Tierra caracterizadas por la reciprocidad y la complementariedad; y el trabajo, en una actividad inseparable de la vida y como actividad espiritual y lúdica, de satisfacción de las necesidades y de reproducción de la vida, humana y no humana, en su conjunto.
Del marxismo es indispensable rescatar su crítica radical al capitalismo, así como sus categorías básicas (mercancía, valor de uso, valor de cambio, trabajo abstracto, explotación, alienación, subsunción del trabajo al capital, reproducción ampliada, mercantilización y acumulación, entre otras) y recuperar la importancia de la desmercantilización, en tanto producción de valores de uso que no se intercambian a través del mercado capitalista y del dinero. También, su énfasis en la supresión de las relaciones de dominación y explotación y su llamado a la construcción de una “economía” que alcance la reproducción ampliada, construyendo sus propios circuitos económicos, generando y reinvirtiendo sus propios excedentes, en disputa cotidiana con la “economía” y acumulación capitalistas, superando tanto la subsunción formal y real del trabajo al capital, de manera que el trabajo sea el camino hacia la realización y liberación humana.
En una apretada síntesis de las contribuciones feministas, del feminismo marxista de Federici se debe considerar que existe una división sexual del trabajo propia del capitalismo, una separación entre las esferas de la producción y la reproducción, la innegable contribución directa del trabajo femenino a la acumulación de capital al encargarse del cuidado y la reproducción de la fuerza de trabajo, una ampliación del concepto de trabajo para incorporar el trabajo reproductivo, una orientación anticapitalista de las luchas sociales. Pérez y Agenjo problematizan en torno al conflicto capital-vida, critican el androcentrismo y el capitalismo y apuntan a salidas orientadas a la sostenibilidad de la vida que vayan más allá de la economía de género, en una perspectiva anticapitalista; visibilizan al sujeto de la teoría económica, blanco, burgués, varón, adulto, heterosexual (BBVAH); critican el reduccionismo economicista y propone incorporar las visiones ecologista y de género; de la que derivan aportes para resignificar ciertos conceptos “económicos” centrales, como el de necesidades/desesidades y
trabajo, el cual estaría asociado a la vida, en las dimensiones biológica y espiritual, como sucede en las culturas “indígenas”. Entre los aportes de Quiroga y Gómez destacan la necesidad de deconstruir el imaginario del “desarrollo”; proponer el impulso de racionalidades de vida, relacionales, que implican reconocer a la Madre Tierra como fuente básica de vida, el diálogo de saberes y formas democráticas de vida, así como “economías” basadas en la reciprocidad, desmercantilización y producción de valores de uso; impulsar la consolidación de “economías” que parten de lo subalterno (mujeres, “indígenas”, campesinos, afrodescendientes), suprimiendo las jerarquías de “raza”, clase y sexo-género”, así como la separación entre sociedad y “naturaleza”; y ampliar la idea de trabajo a todo aquello que reproduzca la vida, la Casa Común.
Las aportaciones de las tres visiones contribuyen a tener una visión enriquecida, intercultural, de diálogo de saberes y epistemes de la SE y el trabajo en un sentido descolonial. Un elemento central es la reconstrucción de una totalidad social heterogénea, más amplia de aquella establecida por la homogeneidad del eurocentrismo y su modo de combinar la racionalidad-colonialidad/modernidad, pues se trata de entender la vida a partir de la convivencia entre los humanos y con la Madre Tierra. Otro elemento valioso es la constatación de que la sociedad capitalista se estructura a través de relaciones de poder, que no sólo son de explotación sino también de dominación, y que incluyen el sexo-género, la clase, y la “raza”, además del dominio de la Madre Tierra. Esto significa que el poder no es unidimensional y restringido a la “economía”, sino que abarca otros ámbitos de la existencia social, de modo que la sociedad capitalista se estructura a través de una malla de relaciones sociales. Por tanto, la transformación de la sociedad capitalista requiere resistencias y reexistencias no sólo en lo “económico”, sino frente al patrón de poder capitalista y moderno-colonial en su conjunto. Esto implica además la crítica radical al “desarrollo” y la articulación de la SE a los Buenos vivires como alternativas de sociedad.
Estos aportes llevados a nueva visión de la “economía” y del trabajo, en la perspectiva de la SE y la descolonialidad del poder, implican reconocer que la economía dominante tiene un sujeto específico, caracterizado por ser europeo, blanco, burgués, patriarcal, quien es el portador de los intereses del capitalismo colonial-moderno. En cambio, desde las visiones descoloniales se parte de una amplia diversidad de sujetos y
sujetas invisibilizados y oprimidos por el poder. Se busca la satisfacción de las necesidades básicas, materiales y espirituales, considerando el cuidado de la Casa común, la Madre Tierra (y el cosmos). Esto se articula con el cuidado de la vida reconociendo la contribución de las mujeres a la reproducción, enfatizando la producción de valores de uso y no de valores de cambio. Se trata de una perspectiva desmercantilizadora y que erradique las relaciones de dominación y explotación. Estos aportes implican, al mismo tiempo, resignificar el trabajo en un sentido descolonial, como productor de valores de uso, de reproducción de la vida y cuidante de la Casa Común, más allá de la concepción eurocéntrica que lo asimila a empleo.
Estas diversas aportaciones para resignificar la “economía” y el trabajo pueden ser articuladas si se plantea un diálogo de saberes descolonial.
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V.18, nº 37, set-dez (2020) ISSN: 1808-799 X
Resumo
Lea Tiriba2 Christiana C. Profice3 Miguel T. Schlesinger4
Inscrito no sofrimento da atual pandemia causada pelo coronavírus, este texto traz reflexões sobre relações entre seres humanos e natureza, sobretudo em referência aos povos originários do Brasil, com atenção especial voltada às suas infâncias. Tratamos conceitualmente da dicotomia natureza-humano, própria de nossa cultura ocidental, sob a ótica crítica da ecologia política e na busca de aproximação com teóricos da biofilia e da noção de sociobiodiversidade. A partir da percepção de proximidade entre as visões de mundo de Spinoza e de povos originários brasileiros, afirmamos a necessidade de aprender com os povos indígenas a cuidar das crianças e, simultaneamente, do planeta.
Palavras-chave: pandemia, povos originários, infâncias
LA TIERRA EN PANDEMÍA: PUEBLOS INDÍGENAS Y SUS (ÚLTIMAS?) INFANCIAS
Resumen
Inscrito en el sufrimiento de la pandemia actual causada por el coronavirus, este texto trae reflexiones sobre las relaciones entre los seres humanos y la naturaleza, especialmente en referencia a los pueblos originarios de Brasil, con especial atención a sus infancias. Tratamos conceptualmente con la dicotomía naturaleza-humano, típica de nuestra cultura occidental, bajo la perspectiva crítica de la ecología política y en la búsqueda de aproximación con los teóricos de la biofilia y de la sociobiodiversidad. Con base en la percepción de proximidad entre las visiones del mundo de Spinoza y de los pueblos originarios brasileños, afirmamos la necesidad de aprender de los pueblos indígenas para cuidar a los niños y, simultáneamente, del planeta.
Palabras clave: pandemia, pueblos originarios, infâncias
EARTH IN PANDEMIA: BRAZILIAN INDIGENOUS PEOPLES AND (LAST?) CHILDHOODS.
Abstract
Inscribed in the suffering of the current pandemic caused by the coronavirus, this text brings reflections about the relationships between human beings and nature, especially concerned with native peoples of Brazil, with special attention to their childhoods. We deal conceptually with the nature-human dichotomy, typical of our Western culture, from the critical perspective of political ecology and searching approximation with theorists of biophilia and the notion of socio biodiversity. Based on the perception of proximity between the worldviews of Spinoza and native Brazilian people, we affirm the need to learn from indigenous peoples to take care of children and, simultaneously, the planet.
Keywords: pandemic, Brasilian native people, childhood.
Artigo recebido em 02/06/2020. Primeira avaliação em 15/06/2020. Segunda avaliação em 18/06/2020. Aprovado em 29/07/2020. Publicado em 25/09/2020.
Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) - Brasil. Professora da Escola de Educação e do Programa de Pós Graduação em Educação (PPGEdu) da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNiRIO) - Brasil. E-mail: tiribalea@gmail.com ORCID: 000-0001-9508-5980
Doutora em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) - Brasil. Professora do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional e Meio Ambiente (PRODEMA) na Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC) - Ilhéus / Bahia - Brasil. E-mail: ccprofice@uesc.br ORCID: 0000-0002-1972-9622 Lattes: http://lattes.cnpq.br/2410356941075360
Mestre em Educação pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNiRIO) - Brasil. Pesquisador no
campo das ciências sociais em interface com o campo do Direito E-mail: migtiriba@gmail.com ORCID: 0000-0001- 9828-3501 Lattes: http://lattes.cnpq.br/8605203940803020
A escrita deste artigo se deu entre março e maio de 2020, quando da ameaça do Covid-19, um dos coronavírus que vêm, sucessivamente, ameaçando a humanidade. Dirigimos nosso olhar para as relações dos seres humanos com a natureza, e, a partir daí, para nossos povos originários, que, ainda nos dias de hoje, 500 anos após a invasão do colonizador, perseveram em visões de mundo/modos de vida em clara oposição às formas de organização social ocidental dominante.
Trazemos os povos originários ao centro da cena, primeiramente, pela necessidade de afirmação de seu direito à existência. Pois, apesar do forte movimento de resistência, hoje, mais que nunca, estão ameaçados pela retirada de direitos conquistados, pela invasão permanente de seus territórios, pela queima da floresta, pelo arruinamento das águas e das terras, pela fome, agora por um vírus poderoso. Mas a aproximação se dá também pela necessidade de estabelecermos contrapontos à civilização ocidental que, em seu processo de degeneração, abre espaços para o surgimento de epidemias e as pandemias devidas à ação devastadora do capitalismo. Neste sombrio momento buscamos filosofias e modos de vida afirmadoras do pertencimento ao cosmos, em contraposição a concepções e práticas que agridem os ambientes naturais por atribuírem ao ser humano uma posição de centralidade em
relação ao universo.
Ainda que sejam muitas as diferenças entre seus modos de vida, embora habitem diferenciados meios sociogeográficos, mantenham estilos de vida e modos próprios de expressão, os povos indígenas brasileiros têm suas vidas organizadas em sintonia com os ciclos da natureza (CRUZ, 2012). Assim, seus saberes e afetos estão associados à relação com o cosmo, à ancestralidade, aos modos de vida e manejos dos recursos naturais em equilíbrio dinâmico com o ecossistema. O território guarda a memória e materializa o sentimento de pertencimento, é fonte de reprodução e de recursos materiais e assegura a sobrevivência material. Outra marca das culturas originarias diz respeito às formas de organização econômico-produtiva, em que o sentido do trabalho é o de suprir as necessidades do coletivo, não do indivíduo. Tampouco há a intenção de acúmulo ou produção de excedente em grande escala, além das trocas locais. As energias produtivas são destinadas à subsistência do grupo e à manutenção das práticas sociais, festas e rituais, e não ao mercado capitalista. As
relações de poder são horizontais. Não há lugares de chefia; são as lideranças instituídas por sua idade e sabedoria, ou ainda por linhagens familiares, que orientam política e espiritualmente, em direção à cooperação. Tomando de empréstimo as palavras de Maturana e Varela (1995, p. 23), podemos dizer que nossos povos originários se constituem subjetivamente, no sentido da afirmação de “impulsos altruístas, presentes desde o começo de nossa vida de seres sociais (...) condição biológica de possibilidade do fenômeno social: sem altruísmo não há fenômeno social”.
Consideramos que o “sistema mundial capitalista-urbano-industrial-patriarcal” (GUATTARI e ROLNIK, 1986, p. 15-16) inclui todos os modelos econômicos que fizeram/fazem da natureza simples objeto de dominação, exploração, consumo e descarte. Consideramos também que o socialismo, como fruto da Revolução Industrial, também se relacionou/relaciona com a natureza tomando-a como matéria prima para a produção de bens. Assim, apesar de propor a propriedade coletiva dos recursos naturais e a distribuição igualitária do que é socialmente produzido, do ponto de vista das relações com a natureza, as formas de organização das sociedades socialistas não consideraram que a sua preservação está para além da luta contra a apropriação privada dos recursos naturais e dos bens que eles geram. Pois não bastam mecanismos de controle público e justa distribuição da riqueza, é necessário produzir de forma sustentável.
A necessidade de ruptura com o que está hegemonicamente instituído distância as nossas pesquisas de padrões eurocêntricos. Na contramão de antropocentrismos, individualismos, racionalismos, racismos e patriarcalismos (que, enredados, estão na origem da crise generalizada das condições de vida no planeta), realizamos um mergulho nas filosofias de povos originários e tradicionais brasileiros. Dirigimo-nos, em especial, às crianças, pela necessidade de conhecer modos de pensar, de sentir e de educar pautados por pressupostos altruístas. Atuando junto a educadoras de crianças urbanas, e por meio de nossas próprias experiências em educação, identificamos conexões entre o modelo de desenvolvimento econômico e práticas escolares que desconsideram os apelos infantis de convívio com o ambiente natural. Consideramos que as formas de organização dos espaços/rotinas escolares, ao distanciar as crianças da natureza, produzem sentimentos de desconexão física e emocional, necessários a uma visão do ambiente como objeto de conhecimento,
domínio e controle, em consonância com os interesses do sistema capitalista. Para designar esta condição de distanciamento, utilizamos a expressão “emparedamento”, em alusão ao diminuto tempo em espaços abertos e ao longo tempo em que as crianças permanecem em espaços fechados: oito, nove ou mais horas diárias (TIRIBA, 2005). Mas o conceito de emparedamento denuncia também sofrimentos que são decorrentes do sofrimento imposto pela vida em espaços entre-paredes, abrangendo as travas corporais, a ênfase no desenvolvimento racional, o controle do devaneio, a sufocação estética, o impedimento de contato físico e espiritual com o que afeta (SPINOZA, 2009). Enfim o conceito de emparedamento denuncia um modo moderno de organizar a vida que interfere maleficamente no desenvolvimento pleno do humano.
O modelo escolar dominante - via contenção de corpos e controle de desejos - reproduz os pressupostos do paradigma moderno, ao separar as crianças natureza, eleger a razão como caminho exclusivo de conhecimento e definir os humanos como seres de racionalidade, deixando de fora outras dimensões importantes da existência. Em linha inversa, nos processos de educação das crianças indígenas, a liberdade e a autonomia são determinantes. Para dar conta do universo de questões que nos desafiam neste momento de comoção e medo, organizamos esse artigo em três partes, relativas: (a) às relações entre seres humanos e natureza em um contexto de pandemia; (b) às condições de existência dos povos originários, vítimas mais frágeis do COVID-19; e (c) à importância de aprendermos com esses povos e com suas crianças os saberes necessários a modos de organização social em equilíbrio com a biodiversidade.
Na primeira parte, trazemos informações e reflexões sobre relações entre seres humanos e natureza sob a ótica da ecologia política. Abordamos a emergência ambiental planetária, em suas dimensões biofísicas, sociais e econômicas, ainda mais evidenciada com a entrada em cena do COVID. O novo coronavírus põe em risco e altera radicalmente a existência humana sobre a Terra, mas também faz tremer o ideário antropocêntrico da modernidade, que omite a unidade da vida, a hierarquiza e, por subjugo e sobre-exploração, a ameaça. Na segunda parte, lançamos um olhar para os povos originários brasileiros, com o objetivo de compor um retrato de suas condições atuais de existência, impactadas por mega projetos neoliberais, em um contexto de desrespeito/violação de direitos, agora potencializado pelo estado de
pandemia. Na terceira e última parte, o olhar se volta mais diretamente para as infâncias indígenas, abordando concepções de criança, relações com a natureza e o seu lugar na organização das sociedades originárias. Nesta perspectiva, o texto aproxima visões de mundo não hegemônicas, ao promover diálogos entre a filosofia de Spinoza e saberes de povos indígenas brasileiros. A intenção é trazer a realidade cotidiana das crianças indígenas e contrastá-las com a realidade das crianças urbanas, com vistas a afirmar os modos de educar comprometidos com a saúde das crianças e do planeta.
A ecologia política, social ou, simplesmente, ecologia dos pobres, aborda a questão do meio-ambiente e da natureza voltada para as desigualdades e os conflitos socioambientais e orientada pela ideia de justiça ambiental (MUNIZ, 2009; PEREIRA; DIEGUES, 2010). Como define Muniz (p. 184), a ecologia política se caracteriza por ser um “movimento” simultaneamente político e acadêmico (...) e que trouxe para a discussão acadêmica e intelectual a “crise ambiental”, como resultante do colapso entre crescimento econômico e a base finita dos recursos naturais”. Contudo, para a ecologia crítica de Latour (2004), trata-se de abandonar definitivamente a ideia da natureza como algo exterior, ou mesmo superada, pela nossa condição social. A natureza nos é interior, nós somos a natureza. As relações entre natureza e pessoas e sociedades e culturas são, como destaca Harvey (2020), metabólicas, porque compartilhamos fluxos de matéria e energia com outros modos e expressão da natureza – humanos e não humanos, somos mutuamente afetados em nossos processos auto regulatórios e homeostáticos.
El capital modifica las condiciones medioambientales de su propia reproducción, pero lo hace en un contexto de consecuencias involuntarias (como el cambio climático) y con el trasfondo de fuerzas evolutivas autónomas e independientes que andan perpetuamente reconfigurando las condiciones ambientales. (p.82).
Neste sentido, a ecologia política de Latour (2004) pensa para além da ontologia e propõe a retomada da desigualdade e distinção inaugural que se estabeleceu entre pessoas e natureza na racionalidade ocidental. Conforme o autor, desde a caverna de Platão, a natureza ficou do lado de fora, verdadeira, mas externa
à ilusão sombreada e enganosa de seu interior, ocupada apenas por homens de visão limitada às sombras projetadas por uma luz que não conheciam. Poucos foram os humanos que saíam da penumbra para constatar a existência de uma verdade palpável e mensurável, não camuflada pelas sombras, mas plena em sua realidade. Estes sábios retornavam para contar aos quase cegos o que havia lá fora; não para chamá-los para fora, mas para consolidar esta separação de mundos e de possibilidade de trânsito entre eles.
Seguindo em sua crítica da alegoria platônica, Latour (2004) argumenta que a cegueira dos humanos ocidentais dentro das cavernas tem ramificações na ecologia, é esta última que não reconhece no mundo social a mesma legitimidade do mundo e dos seres da verdadeira natureza. Essa pendência biocêntrica da ecologia clássica, reverso natural da moeda antropocêntrica da filosofia ocidental, também se orienta por um desprezo descrente do mundo social que seria necessariamente deletério à natureza, em menor ou maior escala. A ecologia biológica permanece encantada com a natureza que lhe é exterior, mesmo dentro das cavernas, revelando que no seu interior e em suas bordas existem ecossistemas com seres e substâncias, líquidos percolando, insetos da escuridão, rochas amontoadas, morcegos que entram e saem. Pelo lado das ciências humanas, serão a antropologia cultural e a arqueologia que, ao contrário de descrever a caverna como locus da ignorância, a revelam como nosso primeiro refúgio e abrigo, onde o fogo podia ser mantido aceso, as feras afastadas e as entradas e saídas controladas. Nas paredes das cavernas, encontramos suporte pra arte. De seus contornos e reentrâncias, fizemos uso. Em seus recônditos os mortos foram sepultados e, desse modo, protegidos. Arte, expressão, cultos sagrados (LEROI-GOURHAN, 1971), a caverna é nossa natureza humana também.
A Ciência se configura como “única salvação para o inferno social”. (2004, p. 31). Aqui, Latour conclui que a ruptura humanidade-natureza se consolidou, permanece e se pretende hegemônica porque ela é política, ela trata da divisão dos territórios, das coisas e dos seres transformados por nós em recursos. Então a natureza é palco político de competições e colaborações, de perseverança ou de destruição. Para Latour, “concepções de política e concepções de natureza sempre formaram uma dupla tão rigidamente unificada como os dois lados de uma mesma gangorra, em que um se abaixa quando o outro se eleva e inversamente” (2004, p.59).
Propomos aqui uma aproximação entre a ecologia política crítica, que convoca para a suspensão conceitual do a priori dicotômico humano-natureza, e a filosofia da natureza, ou substância espinosana, que se expressa por seus atributos: extensão e pensamento. Nós, humanos, também somos expressão desta natureza, fonte e imanência de tudo. Somos corpos da Natureza entre tantos outros: gente, bicho, planta, lua, sol, casa, barco, tudo é de lá, tudo vem de lá (DELEUZE, 2002). Em Espinosa, os seres, nós inclusive, somos todos modos de expressão de uma mesma e imanente Natureza, e que se definem por seu poder de afetar e ser afetado, graus de potência que diminuem ou aumentam a nossa capacidade de agir. É esta a ética ou, em termos atuais, a bioética espinosana.
Pela via da ecologia política e do pensamento espinosano, nos aproximamos da biofilia. Segundo o criador do conceito, Edward Wilson (1984), a biofilia é uma tendência inata a focar na natureza e nos seres vivos. Já Fromm (1973) entende a biofilia em seu aspecto psicossocial, opondo-se à necrofilia e à impulsos destrutivos, pessoais e coletivos. Conforme sua própria definição, “A biofilia é o amor passional pela vida e por tudo que é vivo; é a vontade de crescer, seja em uma planta, uma pessoa ou um grupo social” (FROMM, 1973, p. 365). Defendemos que - por nossa condição biofílica, querendo ou não, tendo consciência ou não - somos natureza, modos de expressão da mesma substância que é tudo o que se conhece e tudo que pode ser, independente de nosso conhecimento. Conhecimento só alcançável por meio de nossos corpos, em sua dinâmica. Buscando integrar a ecologia política com a biofilia, ao invés de nos paralisarmos no dilema da culturalidade ou naturalidade dos humanos, optamos por explorar a sociobiodiversidade (DIEGUES, 2001) como expressão da complexidade ambiental que coloca em interação humanos e não- humanos, seres animados e inanimados, processos biofísicos e metabólicos.
No território que hoje chamamos Brasil, as comunidades originárias vivenciam a chegada dos povos europeus com suas próprias e muito diferentes concepções de natureza, hoje ameaçadas não mais pela investida colonial, mas por projetos da ordem neoliberal. O processo de formação como território nacional se apoiou na exploração, corporal e cultural, do indígena e a consequente invasão biológica de seres humanos, vírus e animais domésticos (PROFICE; SANTOS, 2017). Nas colônias, com a adoção de um modo de vida agrícola, sedentário e, posteriormente, urbano, nos moldes do pensamento europeu ocidental, o apartamento entre humanos
e natureza se forjou e consolidou. Este avanço colonizador sobre a natureza tropical foi a base sobre a qual se deu a consolidação do capitalismo neoliberal e seus megaempreendimentos na floresta, como veremos na seção seguinte.
Aqui fazemos uma breve retrospectiva da luta incessante dos povos originários, ao longo de cinco séculos, pelo direito à soberania, isto é, pelo direito à decidir autonomamente sobre os modos de organizar sua vida social. Desde a invasão, em 1500, vêm sendo expulsos e encurralados em função dos ciclos econômicos do ouro, da cana, do café, da borracha, etc. Agora, ainda mais acentuadamente, pela derrubada da floresta, pela soja, pelo boi.
Até meados dos anos 70, acreditava-se na inexorável extinção da população indígena. Entretanto, os anos 80 apontaram uma tendência de reversão da curva demográfica. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2010), existem aproximadamente 305 etnias totalizando 896,9 mil indígenas distribuídos pelo território brasileiro5.
A disputa por territórios, o acesso, o uso e a apropriação da terra remetem à colonização portuguesa, através da concessão de sesmarias; depois, ao latifúndio e à grilagem, viabilizada por falsificação, em larga escala, de documentação de posse de terra. O resultado dessa política foi o extermínio de milhões de indígenas, dada a destruição de suas relações com o território.
A partir das primeiras décadas do século passado, a demarcação de reservas para usufruto de indígenas teve o objetivo de confinar os grupos, indígenas, liberando, assim, o restante do território para a colonização (BRANDT, 2001; REZENDE, 2011). Constituíram-se, portanto, como “estratégia governamental de colonização e consequente submissão da população indígena aos projetos de ocupação e exploração dos recursos naturais por frentes não indígenas” (BRANDT, 2011, p.16).
5 Registra-se atualmente dentre os territórios indígenas isolados, 54 terras isoladas e 24 unidades de conservação. https://pib.socioambiental.org/pt/%C3%8Dndios_isolados, acessado em 29/05/2020. De acordo com dados do IBGE (2010), 36% dos povos indígenas vivem em áreas urbanas. Entre 2000 e 2010 houve uma queda dessa população de 58.464 pessoas nos centros urbanos, indicando que os índios estão voltando as suas terras de origem (https://www.socioambiental.org/pt-br/blog/blog-do- monitoramento/ibge-detalha-dados-sobre-povos-indigenas, acessado em 29/05/2020)
De acordo com o Relatório da Comissão Nacional da Verdade (2014), os povos indígenas sofreram graves violações de direitos humanos entre 1946 e 1988.6 Em um primeiro período, a violação se caracterizou majoritariamente (mas não exclusivamente) pela omissão da União, acobertando o poder local e interesses privados, propiciando a extração de madeira e minérios, a colonização e obras de infraestrutura em terras indígenas. Em contradição, o posicionamento dos irmãos Villas-Bôas acerca da política indigenista brasileira, tributário das ideias do Marechal Rondon, abriu espaços para políticas protecionistas e preservacionistas. Como resultado, em 1961, foi criado o Parque Nacional do Xingu, a mais importante reserva indígena das Américas, com vistas a resguardar as culturas originárias, assim como a preservar a fauna e a flora ainda intocadas da região. Já no segundo período, é nítido o protagonismo da União no aviltamento de direitos humanos, notadamente na área de saúde e no controle da corrupção. A promulgação do Ato Institucional nº 5 (AI-5), em 1968 cedeu terreno às atividades associadas à extração de madeira e minérios, à colonização e a obras de infraestrutura. Foi a partir da ditadura militar que o governo federal passou a tomar medidas a fim de tornar efetiva a ocupação na Amazônia7.
Os movimentos de resistência à Ditadura Militar possibilitaram maior visibilidade ao drama indígena, ganhando ainda mais impulso no período da redemocratização política do Brasil, pós-1980 (KEHL, 2014). Grande parte das conquistas estão concentradas no Capítulo VII, artigos 231 e 232 da Constituição Brasileira (BRASIL, 1988): o reconhecimento dos modos de vida, no que concerne às formas de organização, costumes, línguas, crenças e tradição.
6https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4469887/mod_resource/content/1/Volume%202%20-
%20Texto%205%20-%20Povos%20Indi%CC%81genas%20na%20CNV.pdf, acessado em 25/03/2020 7Em 1968 foi lançada a Operação Amazônia e criado o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), além da Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM). Como “solução” para o conflito de terras, o governo deu início à expansão da fronteira agrícola. O objetivo era financiar a construção de infraestrutura nas áreas de atuação da SUDAM, promovendo a integração da Amazônia à estrutura espacial nacional, mediante ocupação às margens da rodovia Transamazônica. Além desta, foram construídas as rodovias Cuiabá-Santarém (BR-163), Manaus-Porto Velho (BR-364) e Perimetral-Norte (BR-210). A abertura da BR-230 nos anos 1970 modificou drasticamente o sudeste do Pará. A castanha extrativista, predominante até então, deu lugar à criação de gado, prejudicando assim a qualidade de vida. Ademais, os povos Parakanã foram afetados pela construção da Estrada de Ferro Tocantins, da usina hidrelétrica de Tucuruí e pela abertura da Transamazônica. Em 1971 o primeiro grupo foi contatado e sofreu um decréscimo populacional de 54% em uma população de cerca de 200 índios, consequência das doenças transmitidas por trabalhadores da estrada e por funcionários da Funai. O mesmo ocorreu com os Asurini do Xingu.
Entretanto, apesar dos movimentos em defesa da soberania, e de estarem assegurados legalmente os direitos sobre as terras originariamente ocupadas, o avanço das práticas capitalistas vem intensificando ainda mais as formas de expropriação e rompimento com a principal forma de reprodução de vida (a terra), entre indígenas, lavradores e quilombolas. São inúmeras as ameaças, sobretudo decorrentes da pressão exercida pela bancada ruralista do Congresso Nacional brasileiro, que envolvem a exploração e expulsão das populações originais e tradicionais, por meio de ações predatórias do capital, dadas pelos grandes empreendimentos, tais como hidrelétricas, barragens, exploração de minérios, entre outras.
Nos anos mais recentes a construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte na bacia do Rio Xingu, norte do estado do Pará, resultou em um processo de desconstituição étnico-cultural de povos como os Juruna, Parakanã, Arara e Munduruku. Consoante o Dossiê Belo Monte, elaborado pelo Instituto Socioambiental/ISA, a construção dessa usina pela empresa Norte Energia em parceria com a prefeitura de Altamira, gerou e ainda gera inúmeras violências contra os povos originários na Região Amazônica. Entre elas, a perda da própria língua, que se encontra em desuso entre parte das crianças e jovens munduruku8.
Embora seja ainda hegemônica uma visão dos indígenas como membros de sociedades sem regras e sem estrutura social, ganha força a concepção de que suas sociedades são estáveis, equilibradas, sustentadas na convivência em princípios éticos que asseguram relação orgânica, política, social, vital com a terra. Caminhando na contramão do etnocentrismo, em “A sociedade contra o Estado”, Pierre Clastres (1974), nega a ideia de evolução das sociedades em função de ausência ou presença do Estado. Para Clastres não existe sociedade superior nem inferior. O autor critica o argumento de que as comunidades indígenas possuem uma economia rudimentar, haja vista que as forças consideradas primitivas se unem para oferecer o mínimo necessário para atender às necessidades de seus povos. Clastres desconstrói a ideia da sociedade do ócio, a partir da consideração de que são necessárias poucas horas de dedicação à colheita, em padrões suficientes para saciar as necessidades da população indígena. Trazendo as colocações do autor para a realidade brasileira, podemos considerar que a autossuficiência é um dos elementos possibilitadores da
8 https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Munduruku, acessado em 25/05/2020.
vida de cerca de 69 povos indígenas isolados no território nacional9. O outro elemento é a necessidade de manter distância de tudo que ao longo da história só trouxe a morte.
Para Clastres (1974), o Estado é possível, mas não necessário. Os povos sem Estado, como os indígenas brasileiros, não são involuídos socialmente que em algum momento de seu desenvolvimento histórico dariam lugar a Impérios, Monarquias e Estados. Não se organizar em Estados, mas em Comunidades, é uma possibilidade social. Vamos entender aqui Comunidades como agrupamentos humanos que podem se articular com outros, onde seus membros vivem sem diferenças econômicas e hierarquia social rígida ou intransponível; a economia não está regulada pela da produção em quantidade, nem o objetivo do trabalho, ou da exploração dele, visa o acúmulo ou lucro.
Ontem, como hoje, a migração frequente e a vida em terras exíguas interferem
negativamente em modos de ser, pensar e viver indígenas. Toda a tradição é posta
em suspenso sempre que são alteradas a sua organização social, a relação com o
território, os modos de exploração dos recursos naturais aí existentes. À medida que
são retiradas as condições materiais para a atividade de caça e pesca, atribuídas aos
homens, como para as atividades de cuidado da terra, atribuídas as mulheres; a
dificuldade de produção de alimentos altera profundamente a sustentabilidade de seus
modos de vida e os faz dependentes de políticas governamentais assistencialistas, como a de distribuição de cestas básicas.
Distantes da terra, as mulheres indígenas perdem prestígio social em função
da impossibilidade de permanecerem como produtoras de alimentos, o que as isola,
as confina e as coloca em situação de dependência. A precarização de condições
socioeconômicas abala o seu prestígio de detentoras de conhecimentos relativos às
práticas tradicionais, hábitos alimentares e regras sociais, o que desfavorece as
mulheres, ou até mesmo as impede de desempenhar suas funções sociais/maternas.
9 Povos isolados são grupos indígenas com ausência de relações permanentes com as sociedades nacionais, seja com não índios, seja com outros povos indígenas. Esse isolamento pode ser atribuído ao insucesso dos encontros com as demais sociedades, caracterizado pela infestação de doenças, infecções, epidemias, atos de violência física, espoliação dos recursos naturais e até morte. Ademais o isolamento associa-se à experiência de uma sociedade autossuficiente economicamente e social. https://pib.socioambiental.org/pt/%C3%8Dndios_isolados, acessado em 29/05/2020.
Como as crianças internalizam as relações sociais (VIGOTSKI, 1989) não se pode imaginar seu bem estar desvinculado do bem estar de suas mães.
Com a acentuação do processo de desmatamento, as comunidades indígenas são destruídas, os moradores, dispersos e as famílias, desarticuladas. Tornam-se precárias as condições de manutenção de práticas religiosas, especialmente os rituais de iniciação de meninas e meninos, alterando-se, assim, a tradição de educá-las/los segundo papéis que são próprios de cada grupo étnico atingido. A exposição à sociedade de consumo, sem condições para consumir, abre espaços para a baixa autoestima. As tensões não apenas criam ambiente para o mal estar e para práticas de violência, suicídio e alcoolismo, como também para o desmembramento de grupos e mudanças para as beiras de estrada e periferias urbanas (URQUIZA; NASCIMENTO; VIEIRA,2011). É nesse ambiente hostil que as crianças - deslocadas de suas terras e arrancadas de suas tradições por mega empresários, grileiros, autoridades públicas, com o apoio ou a condescendência dos governos - são jogadas em meios sociais para quem seu povo é indesejável, selvagem, primitivo e imprestável.
Nossa intenção, aqui, é dar visibilidade a modos de viver, sentir e pensar, cujas raízes culturais são incompatíveis com o sistema-mundo moderno-colonial (PORTO- GONÇALVES, 2017). Lançamos um olhar para as crianças pertencentes a grupos humanos cuja ecologia política se funda em relações harmônicas entre as práticas sociais e o ecossistema em que estão inseridos. Estas relações são asseguradas, nos planos material e subjetivo, por dimensões intrínsecas e indissociáveis à constituição humana. De modo genérico, é possível afirmar que essa liga está na base das culturas indígenas brasileiras. Ela se afirma, geração após geração, via processos educativos coerentes com uma visão de mundo que afirma a unidade do humano com o cosmos. É preciso lembrar que a criança não é uma categoria natural. Os conceitos de criança e de infância de cada sociedade/grupo social emergem de condições sócio- históricas, culturais e ambientais em que vivem: crescer em uma aldeia indígena amazônica é diferente de crescer na caatinga nordestina, em uma favela carioca ou em um bairro de classe média de São Paulo. O que hoje está em disputa é a afirmação
de uma visão de criança como frágil e incapaz, que requer políticas de controle e submissão. Interessa que sejam sentidas e compreendidas como “Uma presença através de uma ausência” (PANCERA, 1994, p.103), em oposição ao adulto que ainda não é. Entretanto, se ontem a entendíamos em oposição aos adultos, hoje podemos olhá-las como pessoas concretas, de carne, osso e afetos; habitantes de um território, detentoras da memória de sua existência, constituídas no compartilhamento com os adultos em lutas pela sobrevivência, lutas de resistência, pela comida, pela moradia (CARREIRO; TAVARES; 2018; ARROYO; VIELLA; SILVA, 2015).
Como os povos indígenas concebem as crianças? Embora a cada etnia corresponda um modo próprio de conceber a vida, é possível afirmar que, de modo geral, como uma etapa da vida cujas particularidades devem ser valorizadas e respeitadas (BRANDT, 2011; LANDA, 2001; BERGAMASCHI, 2011; GOMES; SILVA;
DINIZ, 2011).
Com vistas a evidenciar dimensões, comportamentos e atitudes humanas pouco valorizadas no ocidente, fazemos uma aproximação entre visões de mundo que não se afirmaram como hegemônicas. Essa opção se dá pela sintonia entre concepções de Baruch Spinoza (1642-1677) e a de povos originários brasileiros. Spinoza, expoente da cultura europeia em resistência contra os valores do capitalismo emergente, foi excomungado pela tradição religiosa judaico-cristã (DELEUZE, 2002); tal como as “bruxas” foram perseguidas e queimadas por defenderem os territórios, os modos de organização econômica e política que o capitalismo emergente engendrou (FEDERICI, 2019; MIES; SHIVA, 1997).
Próxima a visões indígenas que afirmam a unidade da vida, na perspectiva espinosana, a existência humana se dá em estado de conexão com o universo. Tudo está em rede, Corpo e alma são expressões indissociáveis, são atributos do ser que se manifestam como extensão e/ou como pensamento (SPINOZA, 2009, Ética IV). Na visão do filósofo, os seres são modos de expressão da natureza que se manifestam em diferentes graus de potência, não há uma hierarquia entre eles. O antropocentrismo não faz sentido porque, como efeito da condição de entrelaçamento, os seres se interconectam e se fortalecem na medida da força dos afetos que asseguram o estado de conexão. Não há hierarquia. As diferenças entre espécies se dão em parâmetros relativos ao grau de potência de afetar e ser afetado (SPINOZA, 2009, Ética III). Assim, os humanos não ocupam uma posição de centralidade em
relação a todo o universo. Na mesma direção, as doenças ou a morte são provocadas por atitudes predatórias de entidades cósmicas contra os humanos. Nas palavras de Tassinari (2007).
Entre mortos e vivos, entre deuses, animais e humanos, há uma relação agonística constante marcada pela possibilidade da captura das crianças do outro. Tudo se passa como se cada categoria cósmica buscasse, através das crianças, fazer valer seu “ponto de vista” (p.19).
A liberdade de brincar livre e autonomamente, de circular por espaços da aldeia a que só elas têm acesso são marcas importantes da constituição indígena. O brincar é uma atividade universal entre os humanos. Para Vygotsky (1989), o brincar é uma atividade constitutiva de nossa humanidade: as crianças brincam porque brincar é uma fonte do seu desenvolvimento, é um caminho de acesso à realidade, à cultura. E, simultaneamente, o brincar possibilita uma leitura singular desta mesma cultura, desenhada através de sistemas simbólicos próprios, através dos quais a criança recria a realidade. Brincar é, portanto, uma atividade cultural, além de ser uma atividade psicológica.
A partir da filosofia de Spinoza (2009), podemos acrescentar que as crianças brincam pela necessidade de se manterem como parte de um universo único. Como membros de uma espécie que existe em conexão com milhares de outras espécies, os infantes humanos, brincando, mantém viva esta conexão. Brincam porque afetam e são afetadas por outras espécies, seres e processos naturais que compõem também a natureza-ambiente de que são parte. A sua integridade depende do estado de conexão porque a potência da vida está relacionada à diversidade, à existência de muitas formas de vida que conversam entre si: trocam oxigênio, água, calor, afeto, tudo de que necessitam para manter o equilíbrio de cada indivíduo e do meio que habitam. Quanto maior forem as trocas, quanto maior a diversidade de espécies, maiores as possibilidades da vida se manter, perseverar (MATURANA, 1998).
Os infantes humanos são membros de uma das espécies que participam da dança da vida. Movimentam-se em relação a outras formas de vida, desejam isso, pedem isso no dia a dia da vida e da escola porque necessitam manter-se em conexão. É essa possibilidade que o movimento brincante propicia, como fruto e expressão da potência de agir, que assegura aos sujeitos o fortalecimento do conatus. Esse conceito define o esforço de perseverar na vida, enquanto modos de expressão da natureza que existem são entrelaçados com outros modos de expressão não
humanos, por quem se sentem atraídas, e com quem as crianças sempre desejam brincar.
Como vimos na primeira parte, os humanos têm uma atração inata, uma tendência a associar-se a outras formas de vida, condição para um processo de evolução que sempre se deu em co-evolução com os demais seres e sistemas vivos (WILSON, 1984; PROFICE, 2016, 2018). Segundo os autores, essa atração, que denominam como biofilia, depende de modos de viver e de educar: uma cultura que alimenta a proximidade gera sentimentos de afeição e, consequentemente, praticas de proteção à natureza; uma cultura que alimenta o distanciamento produz sentimentos e atitudes de desapego, indiferença e, até mesmo, práticas de agressão. O conceito de biofilia revela e evidencia relações entre as condições ambientais do planeta e sentimentos e comportamentos humanos, socialmente construídos. Ele nos leva a pensar que a educação das crianças indígenas alimenta sentimentos de pertencimento ao ambiente; que este sentimento se traduz no desejo e no compromisso com a sua preservação, o que certamente contribui para que uma grande parte das áreas protegidas do Brasil estejam situadas em terras indígenas10.
A potência de agir ganha força quando o desejo impulsiona aos bons encontros.A via do desejo permite uma aproximação com conceitos espinosanos. Para o filósofo, o desejo é a inclinação por algo que julgamos útil para nossa conservação. Assim, o desejo não é falta; pelo contrário, é potência que orienta a vida afetiva, sempre no sentido de fortalecer o conatus, pois “[...] nenhuma coisa tem em si algo por meio do qual possa ser destruída, ou retirada a sua existência. E esforça- se assim, tanto quanto pode e está em si, por perseverar em seu ser” (SPINOZA, 2009, p. 105).
Em sentido oposto, a negação do desejo enfraquece o conatus, conduz ao aprendizado da alienação, em relação a si mesmas e ao mundo, portanto, à despotencialização, ao entristecimento. Ao contrário, a potência, a alegria e a liberdade são decorrentes do aprendizado da consciência de si e do mundo,
10 De acordo com o Instituto Socio ambiental/ISA, as Terras Indígenas na Amazônia abrigam 173 etnias indígenas e são fundamentais para a conservação da biodiversidade regional e global, pois as comunidades indígenas reconhecem o valor da floresta em pé na proteção e manejo dessas áreas. Enquanto 20% da floresta amazônica brasileira foi desmatada nos últimos 40 anos, as Terras Indígenas na Amazônia Legal perderam, somadas, apenas 2% de suas florestas originais. https://www.socioambiental.org/pt-br/blog/blog-do-monitoramento/a-demarcacao-das-terras-
indigenas-e-decisiva-para-conter-o-desmatamento-e-manter-funcoes-climaticas-essenciais. Acesso 22/06/20
possibilitada pela conexão com aquilo que verdadeiramente mobiliza o ser (DAMÁSIO, 2004; GLEIZER, 2005).
Como exemplo de aprendizado da consciência de si, trazemos o estudo antropológico de Elizabeth Pissolato (2007), que investiga a busca de alegria, de bem- estar, em duas aldeias Guarani Mbya do litoral do estado do Rio de Janeiro. De acordo com a autora, deslocar-se frequentemente, de um território a outro, é um modo de vida, é um modo de ser. Perguntados sobre o porquê do deslocamento (que, nas condições atuais, são realizados em pequenos grupos, ou por indivíduos, homens e mulheres, e mesmo jovens e adolescentes), os guarani mbya respondem que se deslocam para buscar, em outros territórios, geralmente ocupados por sua etnia, o que acreditam que os fará mais alegres do que se encontram no lugar onde estão. Referindo-se à filosofia espinosana, Deleuze (2002, p.34) afirma a alegria como um afeto que assegura o fortalecimento e a potencialização do humano: “(...) somente a alegria é válida, só a alegria permanece e nos aproxima da ação e da beatitude da ação. A paixão triste é sempre impotência”. Assim, a decisão de deslocar-se exige uma autonomia que é fruto de conexão profunda com os sentimentos; uma inteireza que se só constitui em condições de liberdade, sem a qual é impossível sentir-pensar– agir a partir de causas próprias (SPINOZA, 2009)
Em culturas originárias, o princípio da autonomia se relaciona ao exercício de enxergar-se e manter-se ativo no mundo; diz respeito à criação de condições para tornar-se capaz de tomar suas próprias decisões, a partir de suas próprias necessidades, de seu bem estar e do outro (TASSINARI, 2007; NASCIMENTO; URQUIZA; VIEIRA, 2011; SILVA; NUNES; MACEDO, 2002).
Como em Spinoza, a submissão a forças alheias fere a essência do ser, o colocam à deriva, por isso entristecem. As condições de desigualdade interferem negativamente na essência entendida como natureza existente, imanente, pois a consciência do que se sente é, a cada momento, guiará em relação aos encontros que faz; em sintonia fina com o desejo, orientará na escolha de afetos que potencializem, que assegurem a alegria. As vivências não são definidas por adultos, não obedecem à definição prévia de objetivos e/ou habilidades a serem alcançadas, mas sim estão coladas no desejo e respondem aos chamados da natureza, das crianças e de seus corpos (TIRIBA, 2010; TIRIBA; PROFICE, 2012; 2019). Esse modo de constituição humana corresponde a uma ecologia política definida por relações de
proximidade com a sociobiodiversidade. Ao contrário, o sentimento de opressão despotencializa, entristece.
Desejo, potência, alegria, liberdade, autonomia: esses são elementos básicos da educação indígena, a serem incorporados aos processos de educação de todas as crianças brasileiras.
Apesar da política de extermínio levada à frente durante séculos, com raros e curtos períodos, nossos povos originários estão presentes. A fisionomia da população, a literatura, os banhos de todos os dias, o nosso linguajar, os nomes de ruas, cidades e vilarejos: a cultura brasileira expressa a presença histórica de nossos ancestrais.
Latour (2004) nos convoca a sair da caverna. Sem esse deslocamento, nada será possível. O ambiente social não é necessariamente corrompido, não é uma sombra tremulante e imperfeita do real - este último sempre justo, destituído de opiniões, legitimado em sua ontologia que nos é independente, se expressa por meio de objetos limpos e sem risco -. Aí se localiza, conforme a ecologia política, a fenda radical entre humanidade e natureza que se estende fincada em toda racionalidade ocidental, que se infiltra e mina, como filosofia, entre as pedras porosas da caverna e forma um lago de fundo infinito que chamamos Ciência. A ciência, conforme Latour, só é possível a partir desta ruptura, na qual o sábio, e mais tarde o cientista, tem acesso ao lado de fora da caverna, o mundo objetivo, e depois pode entrar na caverna e contar aos que ali ficaram aprisionados como ele se configura. De fato a natureza não está em crise e sim a objetividade. A partir daí, acreditamos, é que os povos indígenas têm a nos ensinar sobre Natureza, sendo parte dela. Então todo estudo é, ao mesmo, tempo autorreflexão. A cultura fala da planta, fala do animal, fala do céu, fala de mim e de meu povo. Todas essas são suas expressões e intensidades. A cultura canta, dança, reverência seres que vemos e que não vemos, mas estamos todos no mesmo plano de imanência, ainda que em diferentes dimensões. Os seres e processos vivos da natureza, no nível molar e molecular, com substâncias in natura ou beneficiadas, nós somos isso também e nossas criações já são natureza também, aliás, sempre o foram, desde sua concepção até a produção de seus resíduos e rejeitos.
De acordo com a abordagem espinosana, todos os seres encontram alegria quando sua plenitude de ação é aumentada e tristeza quando esta última é diminuída. Podemos estender essa compreensão aos rios que foram drasticamente alterados para a construção de usinas como Belo Monte; e a todos os povos indígenas que foram, e ainda são direta ou indiretamente afetados por gigantes equipamentos de concreto instalados no meio da floresta, pela inundação de uma grande área ecossistêmica, alterando o funcionamento das cheias e vazantes no território, transformando completamente a relação estabelecida entre pessoas e peixes nas águas bruscamente reformatadas.
Por que sair, especialmente, em defesa das crianças indígenas e de suas infâncias? Primeiramente, por seu direito à existência, porque perseverar na vida é um direito seu. O foco nas crianças indígenas se dá pela necessidade de sensibilizar para uma necessária aproximação daquilo que o projeto capitalista-colonizador sempre necessitou afastar: o espírito de coletividade, a solidariedade, a criação, o encontro das gerações, omnilateralidade, a natureza, a ludicidade, a brincadeira. Vivemos na contramão da natureza: adoecemos os rios e os mares, as comidas, o ar, adoecemos nós! Ao defender os povos originários e suas crianças, mantemos uma porta aberta para a afirmação da vida.
O exercício de constituição existencial dos infantes humanos se dá no brincar. As indígenas brincam livremente porque os adultos as entendem como seres que se constituem em conexão, e a partir de seus próprios desejos, com o que afeta, aqui e agora. Entretanto, as crianças urbanas dispõem, cada vez menos, de condições para brincar - na cidade, em casa, na escola - porque aqui elas estão destinadas à vida adulta, são, conduzidas, educadas com referência no padrão- adulto-trabalhador. Vivendo em grandes conglomerados humanos – em um tempo de produtivismo exacerbado, condições de moradia verticalizadas ou rizomáticas, perigos externos às vezes mortais – para as crianças urbanas, especialmente as das classes populares, os bons encontros com a natureza podem ser apenas acasos. Porque gozar, desfrutar das interações que a vida pode oferecer, se constituir nelas, fruir: isso não faz sentido na ordem opressora de sociedades regidas por relações de lucro e poder. Brincar não interessa à lógica do Capital. Interessa, ao contrário, que sejam sentidas e compreendidas como “Uma presença através de uma ausência” (PANCERA, 1994, p.103), em oposição ao adulto que ainda não é.
Para redesenhar a vida, as novas gerações necessitam ser assumidas como
seres da cultura e simultaneamente da natureza, com referências culturais, históricas,
ambientais, espirituais muito distintas das que lhes oferecemos na vida cotidiana, na
escola. Dependemos da existência dos povos originários para aprender com eles
modos mais compatíveis com o planeta. Não se trata de idealismo ingênuo, delírio
ufanista, referências idílicas em relação a estes povos, não se trata de propor um
retorno à aldeia. Mas da necessidade de aprender com quem sabe viver fora da
imensa bolha consumista, distante (mas não à parte) da cultura vídeo maquínica, em
conexão com os ventos, as marés, o fogo, as raízes. Morrendo as novas gerações
indígenas, morrem culturas cuja existência se dá em harmonia com a natureza, em
que as espécies coexistem sem antagonismos; em territórios não organizados pela
propriedade privada, pois a terra não pertence aos indígenas, são os indígenas que
pertencem à terra.
Decerto que a derrubada da sociobiodiversidade não é salutar nem aos povos indígenas, nem à própria floresta, que apenas em nossa visão ocidental os distingue. As crianças participam da sociobiodiversidade, contribuem para sua riqueza, sua condição biofílica as convoca a esse movimento de pertencimento da natureza (TIRIBA; PROFICE, 2019).
O vírus global ameaça, especialmente agora, pela mineração, pelo agronegócio, por usinas que fazem submergir não apenas as terras, a vegetação, os animais, mas etnias inteiras.Os recursos medicinais e curativos são solapados pela pandemia. As aldeias não estão isoladas, ao contrário, está dada a autorização federal para invasão de terras indígenas e livre ação dos garimpeiros. Órgãos como Instituto Brasileiro do Meio ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) e a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) completamente desarticulados e sabotados, não mais coíbem a ação de invasores, uns latifundiários, outros também miseráveis em busca de maior fortuna. No plano da educação também os tempos andam bicudos, no que se refere à educação escolar indígena, o quadro não poderia ser de maior desmonte.
Estamos perdendo a floresta e, com ela, as culturas indígenas e suas crianças, talvez as últimas a nos indicarem um ponto de fuga em relação às mazelas decorrentes dos maus-tratos infligidos ao planeta. Negando a natureza que somos, para a qual nos fizemos surdos e mudos, negamos nossa condição de seres
desejantes de outros seres não humanos, processos, lendas e encantados. Será impossível garantir às crianças as condições de perseverarem como seres de cultura que se constituem e se fortalecem em conexão com a natureza, se seguirmos golpeando, física e simbolicamente, a nossa própria cultura subterrânea que insiste em perseverar e emergir, ainda que no sofrimento, como tudo o que é vivo.
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V.18, nº 37, set-dez (2020) ISSN: 1808-799 X
Arminda Rachel Botelho Mourão2
Iraci Carvalho Uchôa3 Heloísa da Silva Borges4
Resumo
O artigo analisa a materialidade do trabalho e a sua organização na comunidade de Nogueira/Alvarães/Amazonas, apresentando um panorama das relações de trabalho na Amazônia. Os procedimentos metodológicos foram estudos bibliográficos e de campo, tendo o materialismo histórico dialético como método para apreciação e análise dos dados. Conclui-se que no campo das terras, águas e florestas, a força de trabalho relaciona-se aos ciclos da natureza e que, frente à ausência/insuficiência de políticas públicas de Estado, cabe aos/as trabalhadores/as enfrentar diversos desafios.
Palavras-chave: Trabalho no campo; Trabalhadores amazônidas; Educação do Campo.
LA MATERIALIDAD DEL TRABAJO EN LOS TERRITORIOS DEL AGUA, TIERRAS Y FLORESTAS DE LA AMAZONIA
Resumen
El artículo analiza la materialidad del trabajo y su organización en la comunidad de Nogueira/Alvarães/Amazonas, presentando una visión general de las relaciones de trabajo en la Amazonía. La metodología se basó en estudios bibliográficos y de campo, adoptando el materialismo- histórico dialéctico como método para la apreciación y el análisis de los datos. Se concluye que en el campo de las tierras, aguas y florestas, la fuerza de trabajo se relaciona con los ciclos de la naturaleza y que, delante de la ausencia/insuficiencia de políticas públicas estatales, tocan a los trabajadores/as enfrentar muchos desafíos.
Palabras chave: Trabajo en el campo; Trabajadores amazónicos; Educación del campo
MATERIALITY OF LABOR IN AMAZONIAN WATER, LAND AND FOREST TERRITORIES
The article analyzes the materiality of the work and its organization in the community of Nogueira/Alvarães/Amazonas. With a view to this, it provides an overview of working relations in Amazon. The methodology was based on bibliographic and field studies, adopting the dialectical materialism- historical method for data appreciation. It is concluded that: The workforce in the community field is related to nature cycles; and workers face real challenges due to the absence of state policies.
Keyword: Work in the field; Amazonian workers; Field Education.
Artigo recebido em 29/04/2020. Primeira avaliação em 01/06/2020. Segunda avaliação em 02/06/2020. Aprovado em 16/08/2020. Publicado em 25/09/2020. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v18i37.46279
Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) - Brasil. Professora
Titular da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) - Brasil. E-mail:mailto:armindaufam@gmail.com ORCID: 0000-0002-1940-9477. Lattes: http://lattes.cnpq.br/3864748731992379
Doutoranda em Educação na Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e Mestre em Educação pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM) - Brasil. Professora da Secretaria Municipal de Educação - SEMED (Padre Pedro Vignola) - Amazonas / Brasil. E-mail:mailto:irauchoa100@outlook.com ORCID: 0000/0003-1794-924X. Lattes: http://lattes.cnpq.br/0565932748535945
Doutorado em Educação e Mestrado em Educação pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM) -
Brasil. Atualmente Professora do Departamento de Administração e Planejamento e do Programa de Pós- Graduação em Educação, da Faculdade de Educação, da Universidade Federal Amazonas - Brasil. E-mail: helo-borges@hotmail.com ORCID: 0000-0001-7629-7056
Lattes: http://lattes.cnpq.br/9429409939324333
O artigo é o resultado de uma pesquisa inserida no eixo de políticas públicas educacionais, com lócus no município de Alvarães/Amazonas5. Os sujeitos foram os/as trabalhadores/as da comunidade e professores/as das escolas de classes multisseriadas que participaram do Programa Escola da Terra6. Salienta-se que suas identidades foram preservadas, conforme orientação do Comitê de Ética 7.
Durante a realização das atividades de formação continuada dos professores/as das escolas do campo do referido município, questões referentes à forma de vida nesse território foram socializadas, tais como: a) cultura; b) história;
c) acesso e permanência na escola; d) organização e materialização do trabalho. Dentre esses temas debatidos, o último nos aguçou analisá-lo, pois em territórios de águas, terras e florestas compreendemos que o trabalho é a categoria fundante, pois o homem ao modificar a natureza modifica-se, transformando seu ambiente e constrói sua cultura, garantindo a existência na comunidade de Nogueira.
Nesse sentido, formulamos a seguinte problemática: Como se materializa o trabalho e sua organização na comunidade de Nogueira/ Alvarães/Amazonas? Diante do problema levantado foi elaborado o projeto de pesquisa, que proporcionou a realização do estudo, tendo como objetivo: Analisar materialidade do trabalho e a sua organização em territórios de águas, terras e florestas no contexto amazônico.
Para Witkoski (2010, p. 169):
O trabalho e os produtos do trabalho da unidade de produção só são possíveis porque a família funciona como uma espécie de “máquina humana produtiva”, onde todos devem e não podem deixar de participar da vida produtiva; seja fundamentalmente para subsistência [...] ou comercialização de eventuais excedentes, todos os membros da família devem trabalhar [...].
No território da comunidade de Nogueira essa existência significa que os
5. O Estado o Amazonas tem 62 (sessenta e dois) municípios, o Programa Escola da Terra atendeu 46 (quarenta e seis), desenvolvendo também a especialização. Deste trabalho se originaram várias pesquisas, esta refere-se a uma delas.
6 Em desdobramento a Portaria nº 679 de julho, foi instituído o Programa Escola da Terra como uma das ações do Programa Nacional da Educação do Campo - PRONACAMPO, no qual compõe o primeiro eixo articulador que trata das categorias: Gestão e Práticas Pedagógicas.
7A pesquisa tem autorização do Comitê de Ética e, portanto, os pesquisados assinaram o Termo de Consentimento Livre Esclarecido, que na tentativa de preservar suas identidades foram utilizados nomes de rios para identificar os sujeitos concretos, protagonistas de suas histórias.
produtos agrícolas cultivados são para além do consumo doméstico. Esse processo se dá em razão de que há produtos que os/as trabalhadores/as não cultivam, e para obtê-los precisam comprá-los. A terra, a floresta e a água participam de modo decisivo da forma como esses/as trabalhadores/as procuram dar plenitude à vida. “A terra e as riquezas que ela guarda são valorizadas como um patrimônio que cria as condições para que os/as trabalhadores/as apareçam como protagonistas de sua unidade de produção” (WITKOSKI, 2010, p. 191).
A pesquisa permitiu a compreensão que o trabalho desenvolvido na terra pelo/a trabalhador/a na agricultura familiar é para a produção de mandioca, melancia, milho e hortaliças em geral. Essa produção é para o uso doméstico e para a comercialização, entretanto, parte do produto destinado à venda fica à deriva, em função de não haver transporte para a sua comercialização na cidade. Esse movimento acentua o direito de ações efetivas de políticas de escoamentos para a produção. Segundo Marx (1982, p.94) “não é com os pés que as mercadorias vão aos mercados, nem se trocam por decisão própria”. Nesse sentido, os/as trabalhadores/as devem levar suas produções agrícolas ao mercado, implicando relações mútuas entre capital e trabalho. Essa relação de troca demonstra-se como um processo individual, contudo, não se desvincula de um processo social, conforme Marx (2011, p.864) “usar é consumir, seja para a produção, seja para o consumo. Trocar é esse ato mediador por um processo social. Ou seja, o próprio uso pode ser posto pela troca e ser mera consequência dela”.
No âmbito dessas relações, os/as trabalhadores/as da comunidade de Nogueira precisam de transporte fluvial para comercializar os produtos cultivados. Esse transporte fluvial é, portanto, resultado de uma política pública que emerge a partir da realidade concreta e da materialidade do trabalho em territórios de águas, terras e florestas no contexto amazônico.
A ausência de políticas públicas nesses territórios é o reflexo da correlação de força entre capital e trabalho. A implicação dessa correlação de força resulta em produtos à deriva nas margens dos rios, como por exemplo, a melancia e o milho, dentre outros que ficam à espera de um transporte que garanta o seu deslocamento aos estabelecimentos de vendas. É importante considerar que o território amazônico garante a existência de pessoas, de vidas, de saberes, de tradições, de culturas, de gestos e de costumes e por essas razões, a não implementação de
políticas públicas efetivas caracterizam o negligenciamento de uma classe historicamente excluída de seus direitos.
O território amazônico é constituído pelas águas, terras e florestas, que são territórios de trabalho. “O território é um produto das ações coletivas, uma construção histórica do homem à medida que esse se organiza culturalmente” (PEREIRA, et al, p. 215, 2009). Nesse território as relações sociais se construíram historicamente no trato do ser – humano com a natureza. (WITKOSKI,2010), existindo várias comunidades amazônicas com diversidades culturais que atravessaram gerações e que se consolidaram no processo histórico.
O artigo está dividido em três partes. A primeira seção é a contextualização da comunidade de Nogueira. A segunda seção se insere na categoria central, que é o Trabalho; e se desdobram discussões sobre a agricultura familiar camponesa apontando que no campo, a comunidade é a unidade de produção do trabalhador e trabalhadora de uma região do Médio Rio Solimões/AM. A terceira seção aborda a organização do trabalho e por fim, as considerações finais.
As águas negras, a floresta, a areia, os igarapés, as terras de várzeas e terras firmes, a cheia, a seca são aspectos particulares que caracterizam Nogueira, na região de Alvarães (UCHOA & MOURÃO, 2019). A comunidade é para os trabalhadores/as um território em que as relações se constituem, “os aspectos culturais, as tradições se interligam, a economia, a religião, a política, diversos aspectos de uma cultura aparecem interligados e formam parte de um sistema geral de cultura, tais como o são na realidade” (WAGLEY, 1988, p. 44).
É o campo dos sujeitos que migraram de comunidades distintas e constituíram a base familiar; consolidaram laços e se relacionam com os modos e costumes que caracterizam a vida na comunidade.
Esse é um recorte da imensidão do território amazônico, local que representa a existência de um povo, que tem a terra como matriz fundamental para existir e coexistir. A comunidade de Nogueira que apresenta as possibilidades de existência de tantos, localiza-se ao norte do município de Alvarães – Rio Solimões – faz extremidade ao Sul com o Lago de Tefé, a Leste com o Igarapé do Grilo, a Oeste
com o Igarapé do Minerva e situa-se no Centro-Oeste do Estado do Amazonas. A extensão territorial da comunidade é de aproximadamente 11.000km, o acesso para quem sai do Porto de Tefé é por via fluvial e de quem sai do Porto de Alvarães se faz por via terrestre ou fluvial (UCHOA & MOURÃO, 2019).
A comunidade de Nogueira tem uma diversidade cultural que ao longo dos anos se constituiu e se reconstruiu. É uma comunidade de terra firme e terra de várzea, a seca evidencia a beleza e riqueza natural da praia, local de recreação para os sujeitos que utilizam aquele território como um dos meios de diversão que a dialética da natureza possibilita (UCHOA & MOURÃO, 2019).
A praia é um ponto turístico, pois reúne a população de Nogueira, e de regiões como Alvarães8 e Tefé9. Aos domingos e feriados, é cenário do lazer, caracteriza-se também, por ser um local de passagem de viajantes e comerciantes que utilizam os motos-taxistas e as canoas como transporte para percorrer as terras e navegar as águas do Lago de Tefé e Rio Solimões em direção aos municípios adjacentes.
A canoa é uma das formas de transporte mais utilizada pelos trabalhadores/as da comunidade, com destino aos rios, furos10 e igapós, locais onde retiram da natureza a sua existência. Para Silva (2016, p. 30), “a canoa ou casco, é a arquibancada do tempo, cujo fundo está coberto por ramos de capim ou de folhas de árvores protegendo os peixes capturados”, nela o/a trabalhador/a vai à procura da dieta alimentar da família que é totalmente orgânica. O remo é um dos instrumentos usados pelos/as trabalhadores/as que prevalece como condutor a impulsionar a canoa a navegar as águas.
Esses objetos são característicos das singularidades amazônicas, são elaborados por meio de saberes históricos. Os trabalhadores e as trabalhadoras carregam em suas costas os rabetões11 até o porto da comunidade e acoplam na
8 Alvarães é um município do Estado do Amazonas, Região Norte do Brasil. Pertence à Mesorregião do Centro Amazonense e Microrregião de Tefé, localiza-se a oeste de Manaus, capital do estado. Sua população é de 16.041 habitantes, dados estimados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
9 Tefé é um município do Estado do Amazonas. Sua população, segundo estimativas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), é de 59.842 habitantes. Sua área territorial é de 23. 808 quilômetros quadrados.
10 É um termo utilizado pelos moradores das margens dos rios no Amazonas e significa um pequeno percurso que permite o atalho de uma longa curva de rio.
11 O dicionário da Língua Portuguesa define como rabeta, um pequeno motor que acoplado à traseira de uma canoa, é conduzido manualmente com ajuda de um bastão que determina a direção.
popa12 da canoa com a finalidade de percorrer os locais em que cultivam suas produções agrícolas.
Os instrumentos de trabalho formados pela canoa e o remo são a realeza que agregam as particularidades das regiões amazônicas, visto que para Silva (2010, p.119), “o rabetão no Rio Solimões é a majestade. Ele leva e traz pessoas, vidas, saberes e narra com a dança das águas a vida daquele que vive num trânsito constante” entre o campo e a cidade; esse é o cenário territorial que permeia a calha do Médio Solimões e a comunidade de Nogueira (UCHOA & MOURÃO, 2019).
Ao desvelar a comunidade na visão de quem avista pela primeira vez, se depara com o contraste da cultura do campo e da cidade. Existem casas de alvenaria, de madeira e mistas; as mistas são caracterizadas pelas estruturas de alvenaria e as paredes de madeira. A comunidade possui uma Associação Comunitária, uma escola da rede municipal, um posto de saúde, dois campos de futebol, uma casa de reuniões comunitárias, uma Igreja Católica fundada em meados do século XIX, duas Igrejas Protestante-Assembleia de Deus, duas ruas que – cujos nomes são Rio Niterói e Rio de Janeiro – dividem aproximadamente oitenta residências e residem aproximadamente trezentas pessoas. (UCHOA & MOURÃO, 2019).
Destaca-se que mesmo existindo na comunidade duas Igrejas protestantes, é perceptível o respeito que os moradores apresentam pelo catolicismo, visto que comemoram no dia sete de outubro, o aniversário da padroeira: Santa Nossa Senhora do Rosário.
As casas com arquiteturas cidade - campo, como já foi mencionado, possuem televisão, rádio, geladeira e antena parabólica. As residências visitadas no decorrer da pesquisa de campo, realizada em 2016, são construídas em terrenos planos, cercadas por árvores frutíferas, existem nos quintais criações de animais, uma horta ao fundo, local que se cultivam as hortaliças e plantas medicinais, tais como capim– santo, alecrim, camomila, hortelã, anador, penicilina e cibalena. “As plantas medicinais fazem parte do cotidiano dos trabalhadores/as, que utilizam mais de 60 espécies cultivadas em canteiros residenciais” (SILVA, 2010, p.149).
Dicionário da Língua Portuguesa. Disponível em: https://www.dicio.com.br/rabeta. Acesso dia 28 de novembro de 2017.
12 Parte traseira de um meio de transporte fluvial.
O território de Nogueira é caracterizado pelo plantio da mandioca, da macaxeira, banana, abacaxi, cará, açaí, do milho e da melancia - produtos que formam a base alimentar dos sujeitos que ali residem. As espécies são cultivadas pelos/as trabalhadores/as em função de obter produtos para a sua existência no campo. Esses sujeitos utilizam a terra, as águas e as florestas como condutoras no processo de produzir e reproduzir os usos múltiplos dos recursos naturais. Essa forma de produzir dialoga com a perspectiva da agricultura familiar que, para Caldart, Molina e Arroyo (2000, p. 42) significa “diversidade, no uso múltiplo dos recursos naturais”. Entretanto, a visão que ainda prevalece na sociedade é a que considera o campo lugar do atraso, do inferior, e do arcaico. O que na verdade é uma falsa imagem, pois coloca a cidade como o único espaço de desenvolvimento, desvalorizando os processos produtivos dos que residem no campo.
A comunidade é atendida pelo Programa Luz Para Todos, direito que possibilita qualidade de vida aos moradores, facilita a conservação dos alimentos, meios de comunicação e entretenimentos. Juruá, 67 anos, agricultora da comunidade destaca: “hoje aqui na comunidade, nós temos a opção de congelar os peixes, fazemos dindinho13, e as crianças adoram, eu não perco a novela que passa todo dia, depois do almoço, estico o meu tupé14, e só levanto depois que acaba aí vou para o roçado” (CADERNO DE PESQUISA DE CAMPO, 2016).
É importante destacar que uma das particularidades da comunidade é o uso do jirau. O jirau se configura como uma área de serviço doméstico utilizada pelos trabalhadores/as de Nogueira. É ali, que os peixes são tratados, se armazenam água, ocorrem as higienizações dos utensílios, é o local do majestoso fogão à lenha, traços dos povos tradicionais que residem na região desde o período da colonização do Amazonas (UCHOA & MOURÃO, 2019).
Na Comunidade de Nogueira, a Associação Comunitária é formada pelo Presidente, Vice-Presidente, Secretário e Tesoureiro, coletivamente reivindicam para a melhoria da qualidade de vida dos que nela reside, uma das reivindicações se relaciona às políticas públicas, como por exemplo, escoamento das produções que é inexistente. Fazem isto, por meio de reuniões, e encaminham seus anseios à prefeitura do município. O que também reivindicam é a valorização e o registro dos
13 Em outras regiões do país é conhecido como sacolé.
14 É um instrumento de origem chão indígena utilizado para forrar o.
produtos destinados à comercialização. Lutam pelo registro dos produtos cultivados, para que o consumidor tenha o conhecimento de sua origem como o local, a data e o nome de quem produziu. (UCHOA & MOURÃO, 2019).
Segundo Caldart e Kolling (2002, p. 10), “a participação em uma organização coletiva cria traços fundamentais no perfil do ser humano que precisamos formar na atualidade: lutadores e construtores”. Os/as trabalhadores/as de Nogueira se organizam em função de reivindicar melhores condições de vida no campo, e deste modo potencializam a cultura e os processos produtivos locais.
Esses movimentos são em razão de que o sujeito percebe que a forma como são comercializados seus produtos, bem como, ausência de registro, acabam por desvalorizar sua produção agrícola. Ao reconhecer essa negação, ocorre um movimento que os possibilitam se reconhecerem como sujeitos de direitos, e decorrentes das lutas, surgem políticas públicas ancoradas à realidade do trabalho, que se contrapõe a figura do atravessador, já que esse é um dos autores coadjuvantes do modo de produção capitalista presente no campo. (UCHOA & MOURÃO, 2019).
Na comunidade, existem famílias antigas que se constitui no grupo de trabalhadores/as mais antigos; esses se conheceram e estreitaram laços de parentesco que passaram de geração a geração. Os vínculos refletem nos modos de organização do trabalho. É típico o casamento entre primos; esses residem no mesmo teto que os pais e assim estabelecem as bases familiares. Esse fato se torna relevante no processo de produção, isto porque, conseguem transformar uma quantidade maior de “bens in natura, em produtos, resultados da ação coletiva coordenada da unidade familiar, o que acaba contribuindo, de maneira significativa, para a subsistência da unidade familiar” (WITKOSKI, 2010, p. 164).
Os sujeitos da pesquisa se reconhecem como indígena, negro ou pardo, é trabalhador, é católico ou protestante, uns são analfabetos, outros concluíram a Educação Básica, outros o Ensino Superior. Entretanto, todos possuem conhecimentos amplos no que se refere aos saberes tradicionais, passados de geração a geração, mesmo com o advento da tecnologia, que sim, chega ao campo. São trabalhadores/as que se caracterizam como sujeitos que, ao longo do processo histórico construíram laços permanentes com a natureza e, no compasso do trabalho na terra com a agricultura, produzem sua existência.
Ao discutir o Trabalho na terra, especificamente na Agricultura Familiar, é fundamental retomar o entendimento de que no Brasil, existem dois campos; o primeiro é o da Educação do Campo, que nas perspectivas de Oliveira (2007) e Molina (2003), não é adepto ao produtivismo e caracteriza-se pelo uso múltiplo do solo. O segundo, é o campo do Agronegócio capitaneado pela classe dominante, cujo objetivo é a concentração e expansão econômica (MOURÃO, 2012).
O recorte pesquisado converge com a Agricultura Familiar Camponesa. É na comunidade de Nogueira que as múltiplas culturas são cultivadas de acordo com a subida e descida das águas, portanto a comunidade se caracteriza como uma das unidades de produção do/a trabalhador/a, e neste compasso, o sujeito organiza o seu calendário de trabalho. “A terra, a floresta e a água participam de modo decisivo da forma como esses agentes sociais procuram dar plenitude à vida” (WITKOSKI, 2010, p. 160). Essa plenitude se relaciona com os processos produtivos que são efetivos num dado espaço, cria-se e recria-se a identidade coletiva entre os indivíduos e o território, é esse o território de trabalho que são desenvolvidas as atividades produtivas. (PEREIRA, et al, 2009).
A organização do calendário de trabalho é constituída a partir da experiência adquirida historicamente; deste modo, o/a trabalhador/a vai produzindo sua existência e seus múltiplos cultivos. Nos pressupostos de Caldart (2004), “o potencial da Agricultura Familiar está na diversidade e nos usos múltiplos dos recursos naturais”, tal posicionamento se materializa na comunidade de Nogueira, já que é no chão das terras que são cultivados os diversificados produtos da cadeia alimentar dos trabalhadores e trabalhadoras amazônidas.
Em relação à organização do trabalho na Comunidade, o agricultor e pescador Rio Amazonas15 de 26 anos, ao ser entrevistado responde que:
[...] aqui temos tempo para fazer tudo, não dá para perder a época de nada, se quiser comer milho maduro, ele tem que ser plantado no início da vazante. O dia a dia daqui é assim: ora colocamos a
15Destaca-se que a pesquisa tem autorização do Comitê de Ética e, portanto, os pesquisados assinaram o Termo de Consentimento Livre Esclarecido, que na tentativa de preservar suas identidades utilizaram-se pseudônimos. Entende-se que cada sujeito é concreto, protagonista da sua história e representam todos os Beneditos, Manueis e Marias da imensidão Amazônica.
malhadeira, ora brocamos o roçado e plantamos a mandioca, o milho, e a melancia (Informação verbal)16.
O trabalho no campo se relaciona a existência do trabalhador/a. A agricultura e o extrativismo formam o conjunto de saberes, no qual o/a trabalhador/a constrói e reconstrói seus conhecimentos, o “homem, sem dúvida, constitui uma forma de vida, no âmago da natureza” (WITKOSKI, 2014, P.128).
Os ciclos da vida no campo estão articulados aos cotidianos dos trabalhadores/as, já que no processo de desenvolvimento dos modos de produzir, desde a primeira infância, o/a trabalhador/a, vai adequando-se ao percurso da natureza e retira dela, o essencial para a sua existência, fazendo da mesma, uma unidade de produção. Assim, o cotidiano de suas vidas é marcado pela polivalência das atividades. Eles fazem da pesca mais uma de suas atividades, voltadas para o sustento familiar, ao mesmo tempo em que, se reconhecem como pescadores/as, se reconhecem como agricultores/as, pois na condição de posseiros/as, proprietários/as ou arrendatários/as, cultivam espécies, criam animais e caçam. (WITKOSKI, 2014). A este respeito, Witkoski assim se pronuncia:
[...] para quem está fora, o camponês e sua família são vistos, fundamentalmente, como uma fonte de trabalho e de produção de valores de uso, com os quais os grupos ou classes sociais podem aumentar seu fundo de poder. Mas o camponês é, também, e simultaneamente, um agente econômico e o chefe de sua família – mais do que isso, sua propriedade é, ao mesmo tempo, uma unidade econômica de produção de valores de uso para si, valores de uso para outras pessoas e seu lar (WITKOSKI, 2010, p. 162).
O trabalho no campo vai além da “subsistência”, visto que enquanto categoria fundante o trabalhador/a produz sua existência. Segundo Lessa (2012, p. 28): [...] o trabalho enquanto” categoria fundante é o complexo que cumpre a função social de realizar o intercâmbio material do homem com a natureza”. É um conjunto de relações sociais encarregado da reprodução da base material da sociedade eis o motivo pela sua natureza ontológica.
No campo pesquisado, a adaptação do trabalhador/a aos ciclos das águas, das terras e das florestas implica na construção de um calendário de trabalho singular, cujas atividades estão estreitamente vinculadas às subidas e descidas dos
16 Informação obtida no período da coleta de dados da pesquisa em 2016.
rios que correspondem ao período de reprodução das espécies de peixes encontradas, bem como das estações do ano, que no lócus em destaque, caracterizam-se como os tempos das cheias e vazantes, do sol e da chuva.
É nessa dialética que o/a trabalhador/a vai construindo a organização do trabalho. A natureza apresenta suas mediações e contradições, de modo que ao ligar as comunidades pelas águas dos rios, furos e igarapés, causa a aproximação de animais peçonhentos e selvagens, como cobras e jacarés à população. “Com relação ao regime de inundação, as várzeas17 da Amazônia brasileira formam-se sobre a influência da enchente/cheia/vazante/seca” (WITKOSKI, 2010, p. 116).
Os ciclos das águas representam a materialização “dialética da natureza”, já que a descida e subida significa a dinâmica do plantar, cultivar e colher. O trabalho está organizado de acordo com o movimento da natureza, quando termina na terra de várzea, é o período de arregaçar as mangas18 e iniciar as atividades na terra firme, contudo, as atividades produtivas, se articulam e se completam, além de servirem como suporte na elaboração do calendário de trabalho amazônico.
A organização do calendário dos trabalhadores e trabalhadoras segue a influência dos modos e costumes que passaram de geração a geração, pois mediante aos conhecimentos adquiridos19 foi articulado e pensado seguindo “as orientações dos instrumentos que a natureza lhes oferece, a orientação da natureza no que concerne aos períodos de plantar, cultivar e colher serve como indicativos para as atividades produtivas” (FRAXE et al, 2007, p. 215).
As atividades na terra firme se intensificam no período da enchente, no campo, as dinâmicas do cultivo e da colheita perduram o ano todo, de janeiro a janeiro. Quando a produção da lavoura temporária finda, iniciam as produções da lavoura permanente. As águas disponibilizam no decorrer do ano, os meios de vivência no campo e das florestas o/a trabalhador/a retira o essencial, e das terras brotam as mais diversificadas frutas, que juntamente com a pesca formam a base da alimentação daqueles que ali vivem.
A várzea é um dos principais lócus de trabalho do camponês. No decorrer da vazante as diversas culturas são semeadas, sendo utilizada a fertilização natural do
17 Essas terras são inundadas pelas águas nas épocas de cheias no Amazonas.
18 É o momento de trabalhar na lavoura.
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solo, cujo resultado, são frutos “vistosos”, ou seja, de boa qualidade. Os frutos gerados em terras banhadas pelos rios possuem uma frutificação diferenciada, pois o solo é mais rico devido aos rios Solimões e Tefé (WITKOSKI, 2010).
O Rio Solimões é o rio que banha o território de Alvarães; a comunidade de Nogueira situa-se às margens do Lago de Tefé. As suas águas carregam apreciáveis quantidades de sedimentos, “no fluxo da enchente/cheia e, quando voltam ao seu leito natural, deixam detritos minerais e orgânicos depositados sobre a planície em inundação, dando-lhe grande fertilidade e valor para a produção intensiva de alimentos” (FRAXE, et al 2007, p. 112).
Na subida e descida das águas ocorre o movimento constante dos modos e costumes dos/as trabalhadores/as. Têm as suas vidas traçadas pelos ciclos da natureza, os quais se apresentam com as suas mediações e contradições, fazendo uma dança. Seguindo o ritmo das águas, homens e mulheres relacionam-se aos diversos trabalhos nas terras/florestas/águas.
O território, local de existência dos sujeitos, está permeado de contradições, de modo que, ora a terra de várzea produz frutas “vistosas”, e leva o camponês a indicar a sua preferência por ela, ora se vê diante das alegações, que por questões circunstanciais migram seus processos produtivos para a terra firme. Nessa dinâmica, os trabalhadores/as constroem com o compasso das águas o seu trabalho, seus gestos e formas de vida.
Os trabalhadores e as trabalhadoras não abandonam a terra de várzea em função da terra firme, pois, na verdade, existem dois territórios de trabalho. A várzea localiza-se às margens dos rios e possibilita também, a plantação, o cultivo e a colheita, às vezes no próprio quintal. O roçado20, para muitos se configura a extensão da sua casa e localiza-se na terra de várzea. A terra firme, é uma área que não inunda nas enchentes e o trabalhador utiliza no deslocamento cerca de uma hora ou mais para produzir sua existência, não obstante, tais fatores implicam no fortalecimento da agricultura familiar.
20 É uma área onde os trabalhadores cultivam a terra.
A organização do trabalho no campo da comunidade de Nogueira é articulada, de acordo, com a diversidade da natureza. A partir dos cultivos de múltiplas produções agrícolas, como é o caso da melancia, do milho e da mandioca, o sujeito produz sua existência. Tais produtos ocupam lugares relevantes nos processos produtivos, contudo a pretensão é evidenciar como se materializa o trabalho com destaque para o plantio da mandioca.
Esses trabalhadores/as têm a ação coletiva da família como motores propulsores do trabalho no campo. Vinculam-se aos recursos naturais que a terra, as florestas e as águas disponibilizam, pois o território caracteriza-se como o local da produção de sua existência, contemplando três habitats essenciais: terra, floresta e água. Em cada um desses habitats existem diversos ecossistemas que “as populações tradicionais se inserem não como dominadoras desse cenário natural, mas como parte integrante consciente dos próprios ecossistemas e usufruem destes apenas para satisfazer suas necessidades” (LIRA, 2012, p. 75).
Os processos que materializam o trabalho no campo da comunidade perpassam por ciclos que não se condicionam em únicos, mas se articulam, de acordo, com as respectivas culturas a serem cultivadas. Por exemplo, a plantação da mandioca, que vai desde a preparação da terra à produção da farinha, conforme apresenta o trabalhador do Rio Uatumã21, de 26 anos:
O primeiro passo é a gente procurar um bom local descansado e pôr a roça, aí vem a derrubada da capoeira que às vezes já está grande. Esse trabalho é todo braçal. Aí a gente derruba toda área que vai ser plantada. E depois de derrubada a gente encoivara, encoivara é tacar fogo. Depois que acaba de queimar os paus menores a gente empurra, os maiores ficam lá mesmo, porque são muito grandes e pesados. A limpeza e a coivara, é que temos de fazer primeiro, depois disso, a gente passa para plantar a maniva [...]. (Informação verbal)22.
Enquanto sujeito historicamente situados, os trabalhadores e trabalhadoras articulam suas ações no respeito mútuo com a natureza, cuja relevância é a preservação do seu território, já que retira do ambiente o essencial para a sua
21A identidade do sujeito foi preservada conforme orientação do Comitê de Ética.
22 Informação obtida no período da coleta de dados da pesquisa em 2016.
vivência no campo. Para Silva (2016), o trabalhador/a que retira o essencial para sua existência, não degrada os recursos naturais, pois seus instrumentos são rudimentares, seus costumes são tradicionais, especialmente na organização do trabalho passam de geração a geração, respeitando a terra m parte integrante de existência.
O processo de deixar a terra descansar é um costume, e tem por objetivo reverenciá-la, uma vez que a mesma é fundamental para a sua vivência. Para Fraxe et al (2007, p.114) “quando ocorre o cansaço das terras, em face do seu uso mais intenso, em lugares que não sofrem inundações todos os anos, o camponês tem como costume deixar a terra em descanso – fazer o pousio”. Denota que a “capoeira”, é na verdade o local onde a terra está passando pela etapa do repouso, para que nos períodos posteriores, esteja propicia as diversificadas formas de cultivo e uso da terra como meio de existência dos trabalhadores e trabalhadoras das comunidades.
Os processos da construção do roçado são necessários os seguintes instrumentos com “o machado, o terçado, o facão” (FRAXE, et al 2009, p.151). Witkoski (2010), afirma que na fabricação de parte dos instrumentos de trabalho, como os cabos de machado ou os remos de canoa, utilizam a paracuúba (Lecointea amazonica - árvore típica da região amazônica). O conjunto dos recursos naturais disponíveis para a vida do trabalhador/a é um elemento estruturante do campo, o que se contrapõe à lógica do agronegócio. Segundo Caldart, Molina e Arroyo (2000), os agricultores familiares são percebidos como portadores de outra concepção de agricultura, diferente e alternativa à agricultura tradicional, à latifundiária e patronal dominante no país.
Os instrumentos de trabalhos, embora rudimentares, são na verdade
,herança dos povos tradicionais que ali estiveram e que, por uma lógica da cultura dominante foram usurpados, tiveram seus nomes esquecidos, mas são relembrados pelos costumes e saberes que atravessaram gerações. “As populações utilizam técnicas baseadas nos recursos naturais, ocorre entre elas uma constante transmissão de conhecimentos através das gerações como forma de perpetuar a identidade do grupo” (FRAXE, et al 2009, p. 94).
Na realidade o trabalho coletivo é utilizado para suprir em determinados momentos, a força de trabalho familiar. Entre essas práticas está o mutirão ou a
troca pura e simples de dias de trabalho entre eles. Na verdade esses processos aparecem em função de que os/as trabalhadores/as não dispõem de rendimentos monetários necessários para pagar trabalhadores assalariados. Na comunidade pesquisada esta prática é conhecida como “ajuri”, que em articulação com o trabalho coletivo da família, é utilizada para agilizar o trabalho da agricultura familiar camponesa. Segundo Noda (2007, p. 270), “as relações de ajuda mútua, denominadas regionalmente de mutirão, ajuri ou puxirum23, apresentam-se como sendo o produto das necessidades econômicas dos/as trabalhadores/as amazônidas”.
Tais atividades são ações que ocorrem no campo e pelos sujeitos, com sentimentos profundos de pertença a um determinado grupo familiar, ou até mesmo a uma definida classe social, visto que tais atividades ocorrem no espaço onde há resquícios das heranças culturais, e que mesmo estando no modo de produção Capitalista, se consolidam na comunidade de Nogueira.
O ajuri, na comunidade, é realizado em conformidade com a organização do trabalho. A prática do ajuri é conhecida e utilizada pelo/as trabalhadores/as daquele território como um recurso relevante do processo de construção e socialização das suas experiências. “A principal característica é o conhecimento dos processos de trabalho nos subsistemas agrícolas e no extrativismo vegetal e animal, essas relações são tradicionais e caracterizam uma situação na qual há pouca circulação da moeda” (WITKOSKI, 2010, p.173). A mandioca é uma das principais produções da comunidade já que é possível cultivá-la nas terras de várzeas e nas terras. Dentre outros, são seus derivados: a farinha ova, a farinha branca, o beiju, a tapioca, a farinha de tapioca, o pé de moleque e o tucupi.
A mandioca pode ser servida, cozida ou assada. É parte integrante da cadeia alimentar dos animais, já que a “crueira” 24 é jogada para os porcos. Esse processo de trabalho envolve os sujeitos partícipes da lida no campo, que em Nogueira são os homens, as mulheres e as crianças, “ na casa de farinha, todos temos as nossas
23 Esses conceitos representam a linguagem regional do contexto pesquisado e significa nesse campo o processo de ajuda mútua entre os trabalhadores (as) sem relação efetiva com a venda da força de trabalho. É um mutirão que é realizado por todos os trabalhadores (as) e ocorre em função de organizar e estabelecer as relações de trabalho; por exemplo, o processo de cultivo da mandioca; é um movimento dinâmico em que todos os comunitários se ajudam mutuamente na tentativa de usufruir integralmente o período propício a plantação para que a colheita seja realizada antes das cheias.
24 Sãos os restos que sobram da macaxeira.
responsabilidades, os homens torram a massa no forno, as mulheres raspam a mandioca, e as crianças ajudam a carregar água e a jogar as cascas para os porcos” (CADERNO DE PESQUISA DE CAMPO, 2016, p. 1).
Durante as atividades da realização da pesquisa de campo, foi possível observar o espaço de construção de saberes e de fortalecimento das diversas culturas. A produção da agricultura é de relevância para a comunidade, pois além de ser um dos principais meios produtivos, beneficia o fortalecimento das relações sociais entre os comunitários construídos socialmente. A divisão social do trabalho envolve todos da família, visto que é construído socialmente nas relações com os outros indivíduos e principalmente na base familiar. Em Nogueira, cedo a criança é incluída no processo de trabalho, e atividades como raspar a macaxeira, peneirar a massa para fazer a farinha, carregar água para o consumo dos animais são perceptíveis, ali, onde coletivamente constroem conhecimentos que são passados de geração a geração.
O campo revela a força de trabalho dos membros da família, “é impossível renunciar todo e qualquer tipo de trabalho doméstico, porque ele permite adquirir uma série de bons hábitos, que introduzem a civilização no seio da família” (PISTRAK, 2011, p. 25). Assim, o trabalho socialmente construído permite ao sujeito da comunidade articulações distintas com os processos produtivos locais, uma vez que nesse movimento, as relações sociais se entrelaçam e se articulam, e constroem os saberes, os gestos e as diversas formas de labor existente que vão se materializando no trabalho do campo de Nogueira. As responsabilidades que são atribuídas a todos da família, como por exemplo, as irrigações dos cultivos tradicionais permitem a identificação da água como nutriente fundamental para o mantimento da vida das plantas, e deste modo, “[...] o trabalho socialmente útil determina as relações sociais dos seres-humanos” (PISTRAK, 2011, p. 39).
Há uma relação de ajuda mútua, que se articula e se completa “[...] na plantação de milho, enquanto o meu filho do meio fica embalando, o mais novo na rede, que trago para o roçado, eu vou abrindo a cova e o mais velho vai plantando” (CADERNO DE PESQUISA DE CAMPO, 2016, p. 02). Esse argumento potencializa a afirmativa de Pistrak (2011, p. 27) no qual “existem, trabalhos que não exigem conhecimentos especiais, são caracterizados como, limpeza e conservação de jardins, e plantação de árvore” que, no campo da comunidade é formulado pela
inserção da criança nas relações de trabalho.
Sobre o trabalho na agricultura, Pistrak (2011), afirma que esse trabalho não é estreitamente profissional, mas ligado à vida e à atividade humana em condições puramente naturais. As técnicas e instrumentos utilizados para a manipulação do solo, os modos como os processos produtivos são organizados, caracterizam-se atividades vinculadas à agricultura familiar camponesa. Nas palavras do entrevistado e trabalhador Rio Negro25 (2016), “quando a gente colhe a mandioca, leva tudo para casa de farinha, lá as mulheres raspam a mandioca, as crianças também ajudam a raspar, ajudam também a carregar água, a jogar as cascas para os porcos”.
Há relevância no esclarecimento de que este trabalho precisa ser orientado à criança para que elas participem no trabalho social de forma ativa, consciente e socialmente explicada. A orientação a ser direcionada está embutida de intencionalidades e possui estreita ligação ao projeto da classe trabalhadora que, segundo Caldart, Molina e Arroyo (2000) é histórico e tem a ver com as diversas realidades particulares, que por sua vez guardam relação com a realidade socialmente construída.
A sinalização evidencia a intencionalidade da concepção da Educação do/no campo na comunidade de Nogueira, enquanto ação que compreende a educação como um direito e reconhece a enorme dívida do poder público em relação ao direito dos povos do campo à educação (BRASIL, 2013).
Para Caldart, Molina e Arroyo (2000), um projeto de classe tem como pressuposto a compreensão do processo histórico e do tipo de sociedade que se quer construir. Isso requer uma análise crítica da sociedade, estabelecendo um movimento o universal e singular. Para os autores, as práticas de transformação ocorrem em cada assentamento, fato este que, no contexto amazônico, acontece em cada calha dos rios e igarapés que banham as comunidades camponesas, nos processos de trabalho em que homens e mulheres retiram das terras, das florestas e das águas o necessário para sua existência.
A Educação do Campo nasce colada aos processos produtivos do campo, significa dizer que a valorização do trabalho que forma e produz o ser humano é necessário, uma vez que possibilita a dignidade para as famílias das comunidades.
25 A identidade do sujeito foi preservada conforme orientação do Comitê de Ética.
Caldart, Molina e Arroyo (2000), afirmam que o trabalho produz cultura, produz também a classe trabalhadora que se organiza e luta pela superação das condições de alienação que historicamente os caracterizaram como sujeitos excluídos a todo e quaisquer formas de direitos.
O campo da pesquisa que se desdobrou na escrita é o campo da agricultura familiar camponesa e de trabalhadores/as amazônidas, representado pela singularidade da comunidade de Nogueira. O Trabalho é considerado a categoria fundante da existência do ser social, a sua análise nesta pesquisa se fez a partir do Materialismo Histórico Dialético, que estuda os modos de produção e, com eles, os processos produtivos que caracterizam a vida na sociedade.
Ao retratar a centralidade do trabalho na formação humana, ressalta-se que nas comunidades primitivas, caracterizadas pelos modos de vidas baseados nas coletas de frutos e caças de animais, o trabalho se consistia na produção de conhecimentos e na socialização dos saberes que passavam de geração a geração. No entanto, à medida que as sociedades se desenvolveram, o trabalho se metamorfoseou, cujo principal fim passou a ser a exploração do trabalhador que, sob o comando de outro ser humano, perde o controle do que produz.
Os campos das águas, das terras e das florestas apresentam formas de organização do trabalho, historicamente constituídos. As terras firmes e de várzeas são os lócus dos processos produtivos. O calendário de trabalho é organizado, de acordo com as cheias e as secas. A agricultura familiar camponesa é atividade de maior predominância, e é desenvolvida por meio das lavouras permanentes e temporárias, nas quais a mandioca, a melancia e a banana exercem maior representatividade entre os produtos cultivados. A divisão do trabalho revela a força de trabalho do homem, da mulher e da criança; deste modo, se organizam e se articulam mutuamente.
As categorias analisadas permitiram a compreensão de como o trabalho nas águas, nas terras e nas florestas é organizado. Assim, o texto aponta a adaptação do/da trabalhador/a aos ciclos das águas, das terras e das florestas que implica na construção de um calendário de trabalho, cuja dinâmica respeita o período das
reproduções das espécies, bem como as estações do ano. O transporte das lavouras é realizado nas chalanas ou canoas motorizadas, sendo que a maioria dos/as trabalhadores/as pagam os barcos de propriedade privada para a realização do transporte ou vendem para o atravessador, havendo um movimento de agregação de valor aos produtos.
As análises evidenciam que o trabalhador/a produz, no entanto, as políticas públicas são insuficientes. O trabalho na comunidade de Nogueira é realizado nas terras/florestas/águas e tem estreita relação com cada componente familiar, tanto que é perceptível a relação social construída a partir da sua organização coletiva. O palco do território amazônico é o de quem vive das águas, das terras e das florestas.
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Benedita Celeste de Moraes Pinto 2 Vilma Aparecida de Pinho3 Beleni Saléte Grando4
Resumo
O estudo analisa como tem ocorrido o processo educativo na povoação remanescente de quilombolas de Boa Esperança, norte da Amazônia, tendo como base as narrativas partilhadas por seus moradores. A partir de uma abordagem de cunho qualitativo, baseada em estudos etnográficos, coleta e análise de relatos orais e histórias de vida, a pesquisa permitiu inferir que, no que tange aos desdobramentos da lei 11.645/2008, os elementos culturais da referida povoação não perpassam as práticas escolares, tão pouco nas relações que se estabelecem dentro e fora do espaço escolar, não havendo, assim, articulação entre cultura local e o processo educacional.
Palavras-chave: História; Memória; Processo Educativo; Quilombola.
HISTORIA, MEMORIA Y EDUCACIÓN EN EL AJUSTE DE QUILOMBOLAS DE BUENA ESPERANÇA - PARÁ
Resumen
El estudio analiza cómo se ha estado produciendo el proceso educativo en el resto de la aldea de Quilombolas de Boa Esperança, al norte de la Amazonía, basándose en las narrativas compartidas por sus residentes. Desde un enfoque cualitativo, basado en estudios etnográficos, recopilación y análisis de informes orales e historias de vida, la investigación nos permitió inferir que, con respecto a las consecuencias de la ley 11.645/2008, los elementos culturales de esta aldea no impregnan las prácticas escolares, ni impregnan las relaciones que se establecen dentro y fuera del espacio escolar, por lo que no tienen articulación entre la cultura local y el proceso educativo. Palabras chave: História; Memória; Proceso educativo; Quilombolas.
HISTORY, MEMORY AND EDUCATION THE REMAINING QUILOMBOLA POPULATION OF BOA ESPERANÇA - PARÁ
Abstract
This study analyzes how the educational process has been occurring in the remaining village of Quilombolas of Boa Esperança, in the northern Amazonia, based on the narratives shared by its residents. From a qualitative approach, based on ethnographic studies, collection and analysis of oral reports and life histories, the research allowed us to infer that, with regard to the consequences of law 11.645/2008, the cultural elements of this village do not permeate school practices, nor does it permeate the relationships that are established inside and outside the school space, thus not having articulation between local culture and the educational process.
Keyword: History; Memory; Educational Process; Quilombola.
1Artigo recebido em 30/04/2020. Primeira avaliação em 27/05/2020. Segunda avaliação em 24/07/2020. Aprovado em 15/09/2020. Publicado em 25/09/2020. DOI: https://doi.org/10/22409/tn.v18i37.42443.
2 Doutora em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP - Brasil. Docente da Universidade Federal do Pará - Brasil E-mail: celpinto18@gmail.com ORCID: 0000-0001- 9450-5461. Lattes: http://lattes.cnpq.br/7489392738166786.
3 Doutora em Educação pela Universidade Federal Fluminense – UFF/Brasil. Docente da Universidade Federal do Pará - Brasil. E-mail: vilmaaparecidadepinho@gmail.com
ORCID: 0000-0002-2544-0841. Lattes: http://lattes.cnpq.br/2018069654110698.
4 Doutora em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC/Brasil. Docente da Universidade Federal de Mato Grosso - Brasil. E-mail: beleni.grando@gmail.com
ORCID: 0000-0002-5491-2123. Lattes: http://lattes.cnpq.br/2322323427528838
O presente estudo analisa como tem ocorrido o processo educativo na povoação quilombola de Boa Esperança, no município de Cametá/PA, norte da Amazônia, tendo como base as narrativas partilhadas por seus moradores.5 É seguindo os rastros de histórias e memórias de descendentes de antigos quilombolas que trilhamos pelas matas, rios, furos e igarapés em buscas dos ecos de resistências do processo escravista, na região do Tocantins, no Pará, tenta-se seguir pelos vestígios de caminhos difíceis, escondidos como estratégia para não serem capturados pelas tropas oficiais, que caçavam negros fugidos, cujos feitos também foram ocultados pela escrita da história oficial.
Nesta região vários povoados negros rurais têm suas origens sinalizadas pela existência desses redutos de luta por liberdade, cujos traços culturais são fortemente marcados pelo diálogo intercultural entre crenças e credos religiosos afros e ameríndios, que ao constituírem os mocambos ou quilombos da região; locais de compartilhamento de modos próprios de crer, lutar e sobreviver (PINTO, 2004, p. 50). No município de Cametá, formaram-se alguns desses focos de resistência negra, dos quais se destaca o Quilombo do Mola; no município de Mocajuba, há indícios do Quilombo do Icatu; e no município de Baião, negros libertos e fugidos se uniram na formação do Quilombo de Paxibal. Ao serem perseguidos pelas autoridades legais, se espalhavam pelas matas, criavam outros redutos negros, gerando, portanto, estratégias de resistências e vida. Ao se reagruparem em redes familiares ampliadas compuseram nossas comunidades (mini quilombos), como é o caso do antigo Quilombo de Paxibal, no município de Baião, do qual se formaram Umarizal, Bailique Centro, Bailique Beira e Igarapé Preto. Do quilombo do Mola, em Cametá, originou-se Itapocu, Porto Seguro, João Igarapé, Laguinho, Tomásia, Bom Fim, Porto Alegre e Boa Esperança. Enquanto, o Quilombo de Icatu, no município de Mocajuba, se desmembrou no Putiri (PINTO, 2010, p. 57).
5Os dados deste estudo fazem parte do banco de dados das pesquisa: Inclusão no ensino- aprendizagem: alunos de povoações remanescentes de quilombolas na produção do seu próprio material pedagógico, na região do Tocantins/PA & Pesquisa História, Educação, Cultura e Saberes Afro Indígena na região Amazônica (PROCAD-AM), coordenadas por Benedita Celeste de Moraes Pinto.
O processo escravista brasileiro não se deu de forma passiva, uma vez que negros e negras levados à condição de escravos desenvolveram estratégias de lutas e resistências, construíram histórias contra a escravidão, impondo-se de diversas formas, não fugindo de conflitos em busca por liberdade, que foram essenciais para a constituição dos redutos de negros resistentes à escravidão: os quilombos. Conforme afirma Funes (1996), não houve aceitação tácita do escravizado à sua condição social, “por um lado e, por outro, uma benevolência explícita, ou mesmo implícita, dos senhores”. Deixando evidente que a luta de classe não deixou de existir, e isso ocorria de várias formas, era no cotidiano que o escravo construía a sua contraordem escravista (FUNES, 1996, p. 472). E nessa luta de classes, como afirma Edward Palmer Thompson (1987), que ocorre a partir das conjunções sociais, revelada de várias formas, a contraordem defendida por Funes (1996), que ocorria quando os negros se negavam trabalhar (especialmente pela imposição racial), quando se organizavam em rebeliões nas senzalas, arrumavam estratégias de fugas, aquilombavam-se, até mesmo se suicidando, ao serem recapturados e reescravizados. A contraordem também se dava quando se trincheiravam e lutavam pelos quilombos nos diversos combates com as tropas do Estado, que eram designadas para caçar negros fugidos e exterminar os quilombos (FUNES, 1996, p. 487).
Deste contexto histórico, trazemos as memórias insurgentes, que povoam as lembranças e as narrativas dos habitantes do povoado de Boa Esperança, que nos instigaram a refletir a respeito de como tem ocorrido o processo educativo e quais práticas pedagógicas acontecem na escola assumida nessa população. Visto que, segundo defende Brandão (2002), a questão educacional articulada com a cultura é complexa, surgindo muitas dificuldades quando se fala de educação e cultura, pois muitas vezes a educação não é pensada como algo que se completa e se relaciona com a cultura. Uma vez que, “toda teoria da educação é uma dimensão parcelar de alguns sistemas motivados de símbolos e de significados de uma dada cultura, ou do lugar social de um entrecruzamento de culturas” (BRANDÃO, 2002, p. 139).
Os processos metodológicos da pesquisa se estabeleceram a partir de diálogos com autores que se ocupam da temática em estudo, auxiliando na constituição deste trabalho. Além da pesquisa de campo, realizada a partir da observação em loco e entrevistas com estudantes, professores, habitantes da comunidade quilombola de
Boa Esperança e de outros povoados vizinhos, cujas narrativas foram gravadas, sendo posteriormente transcritas e analisadas. Para Paul Thompson (1992), a entrevista é um dos recursos de coleta de dados na pesquisa, essencial para se compreender qualquer objeto, mas para entrevistar se faz necessário algumas habilidades específicas, como flexibilidade em encarar as diversas opiniões, o respeito por elas e a capacidade de sempre buscar compreendê-las (THOMPSON, 1992).
E, assim, a partir do diálogo estabelecido entre pesquisadoras e entrevistados(as), além do processo de coleta dos dados, compartilhamos experiências, inquietações, processos de lutas, resistências e reivindicações. Afinal, como afirma Portelli (1997), a arte essencial da história oral é ouvir, não só aquilo que acreditamos querer ouvir, mas também o que a outra pessoa considera importante dizer, e nisso nossas descobertas sempre vão superar nossas expectativas. A essencialidade do indivíduo é salientada pelo fato de a história oral dizer respeito a versão do passado, da memória. Ainda que essa seja sempre moldada de diversas formas pelo meio social, sendo que a arte de lembrar jamais deixa de ser profundamente pessoal. Pois, a memória é um processo individual, que ocorre em um meio social dinâmico, valendo-se de instrumentos socialmente criados e compartilhados. Assim, sendo o que torna a história oral diferente é que nos conta menos sobre eventos que sobre significados. As entrevistas sempre revelam eventos desconhecidos ou aspectos desconhecidos de “eventos conhecidos: elas lançam nova luz sobre as áreas inexploradas da vida diária das classes não hegemônicas” (PORTELLI, 1997, p. 22-31).
Trata-se, portanto, de uma pesquisa com abordagem qualitativa, que leva em consideração as vivências e experiências cotidianas das pessoas entrevistadas a partir da utilização da técnica de entrevista semiestruturada, mediada por conversações continuadas entre entrevistados e pesquisadoras que atendem aos objetivos de ambos (DUARTE, 2002). A pesquisa qualitativa, conforme afirmam Gerhardt e Silveira (2009), leva em consideração a compreensão de como vivem socialmente grupos sociais, enquanto pesquisadores e pesquisadoras que optam por tal abordagem buscam entender o porquê das coisas, sem a preocupação com a representatividade numérica. Ao se referirem à abordagem qualitativa da pesquisa, Ludke e André (1986) reconhecem que é no trabalho de campo que se dá de forma intensiva o contato entre o pesquisador e seu ambiente de investigação. Tendo isso
em consideração, os dados coletados foram analisados com base em uma abordagem qualitativa, reconhecendo os valores, crenças, hábitos, atitudes e opiniões dos atores sociais que ali se encontram.
Segundo Edward Thompson (1998), no século XVIII havia clareza sobre a consciência dos usos costumeiros de uma época permeada por reivindicações de direitos dos trabalhadores, e que muitos costumes estavam em decadência, assim como a magia, a feitiçaria e superstição, ocasião em que as pessoas eram forçadas a mudar sua cultura com base em padrões e normas tidas como superiores. Ao destacar essa realidade o autor afirma que também neste contexto histórico havia resistência dos diferentes grupos populares, como trabalhadores, artesãos e camponeses, que valorizavam seus costumes tradicionais em paralelo a imersão do capitalismo já instaurado (THOMPSON, 1998). Assim, compreendemos que em cada contexto histórico os sujeitos resistem com seus modos de vidas peculiares, e por isso, embora nossa pesquisa se dê em contexto histórico diferente, reconhecemos que as populações quilombolas e indígenas no Pará também lutam por direitos e autonomia, características que os incorporam nas conjunturas sociais atuais.
Partindo das análises de Thompson (1998), buscamos refletir a respeito das populações quilombolas da região do Tocantins, enfocando fundamentalmente os habitantes da povoação de Boa Esperança e os enfrentamentos encarados nos dias de hoje, em prol de reconhecimento, valorização e legitimação de seus direitos, principalmente, no que diz respeito à educação digna, à saúde e à posse de suas terras. Nessas circunstâncias, lutam contra a tentativa de padronização, imposta pela classe economicamente dominante, que tem como referência uma única cultura, a cultura branca, dos colonizadores (THOMPSON, 1998).
Edward Thompson (1998) faz referência em seus estudos sobre esse distanciamento da sociedade formal, os atores sociais marginalizados pelo poder colonial, vistos como inferiorizados e considerados incapazes de responder aos acontecimentos do momento atual, uma vez, que eram desconsiderados pelo mundo científico e considerados atrasados pela titulada “cultura erudita”, ambas representantes dos interesses das classes dominantes. Por isso, ao pesquisador não basta só descrever os costumes que resistiram e, até hoje resistem, nos lugares obscuros da margem da sociedade, como: os becos, as ruas, as matas e florestas. A tarefa é dar voz à cultura desta população, além de mostrar que os seus saberes são
produzidos pela sociedade e que desta também se constitui. É dessa luta e resistência por legitimação de seus costumes que a sociedade se faz. A palavra “costume” foi associada ao conceito de cultura e, portanto, à segunda natureza do homem.
Isso se confirma ao percebermos que cultura é movimento, como um corpo dinâmico, flexível e em constante construção pelos diversos fatores sociais de cada sociedade (THOMPSON, 1998). Assim, o conceito de “cultura popular” é visto como sendo a manifestação do comportamento e dos costumes herdados por gerações ao mesmo tempo que a expressão das lutas sociais.
No caso das comunidades quilombolas da região do Tocantins, as pessoas mais velhas assumem o papel de preservadoras de suas histórias e memórias, na condição de guardiãs, por meio das suas experiências com um passado; são transmissoras de saberes ancestrais às futuras gerações, no intuito de garantir que costumes, hábitos e tradições permaneçam vivas e com significados próprios. Verifica-se que a cultura, que compreende os modos de vida singulares de uma população específica, como é o caso dos descendestes dos negros resistentes do processo escravista, carregam consigo, comportamentos, costumes e saberes tradicionais, que contrariam as políticas de opressão e silenciamento da cultura eurocêntrica. Dessa forma, a resistência de um povo, conforme explicita Edward Thompson (1998), não teria lugar para a classe dominante naquela sociedade e época, cuja pressão faz surgir uma “nova cultura”, essa compreensão podemos levar para a cultura da globalização, nos dias atuais.
Ao voltarmos essa leitura para a realidade da pesquisa, identificamos que essa população frequenta os diversos espaços e relaciona-se com diferentes culturas, mas nesse ir e vir, ocorre o processo que conhecemos por relações interculturais. Como ocorre nas mediações interculturais estabelecidas pelas populações quilombolas e indígenas da região do Tocantins, que saem do seu lugar de origem, convivem com outras pessoas e grupos sociais e retornam trazendo consigo novas experiências, novos conhecimentos e novos sentidos, que ressignificam, sem comprometer aspectos que garantem a manutenção cultural do seu grupo de pertencimento e de identidade cultural.
É neste cenário intercultural que nos colocamos a problematizar o desafio do currículo escolar, como “norteador” de um projeto de escola, conforme defende Brandão (2002), que deveria conciliar as experiências obtidas em casa, na rua e em
outras instituições por meio dos conteúdos escolares, enveredando por uma educação que valorize as identidades com base no diálogo entre as experiências de mundo com os saberes privilegiados na escola. Ao nos pautarmos neste autor, reconhecemos que não há um único modelo de educação ou de lugar no qual a educação possa acontecer, pois o ensino escolar não é a sua única prática e o professor o único profissional praticante. Desse modo, a educação dos habitantes das povoações quilombolas da região do Tocantins, como é o caso de Boa Esperança, ocorre por meio da oralidade, das práticas e experiências cotidianas dos seus habitantes, heranças de uma ancestralidade que se faz latente na memória dos guardiões de memórias, responsáveis pela transmissão de práticas, hábitos, costumes e saberes aos mais novos. Segundo afirma Edward Thompson (1998),
As práticas e as normas se reproduzem ao longo das gerações na atmosfera lentamente diversificada dos costumes. As tradições se perpetuam em grande parte mediante a transmissão oral, com seu repertório de anedotas e narrativas exemplares. Sempre que a tradição oral é suplementada pela alfabetização crescente, os produtos impressos de maior circulação – brochuras com baladas populares, panfletos, coletâneas de “últimas palavras” e relatos anedóticas de crimes – tendem a se sujeitar a expectativas da cultura oral, em vez de desafiá-las com novas opções (THOMPSON, 1998, p. 18).
Sendo assim, apesar da escravidão no Brasil ter sido abolida no ano de 1888, a luta do povo negro para a inclusão social ainda continua na atualidade, pois negros e negras continuam sendo desprestigiados em suas formas de viver, de compreender o mundo e crer na vida e para além dela, com isso, a eles é imposta cotidianamente pela cultura colonial atualizada, uma série de limitações e violências. As memórias e lembranças, presentes nas histórias vividas e herdadas de seus antepassados, alicerçam os registros do vivido, por meio dos quais os habitantes da povoação de Boa Esperança revisitam o passado e por intermédio da oralidade nos dando a dimensão de todo legado trazido pela ancestralidade africana, da riqueza cultural, artística, seus saberes, e a importância da sua valorização.
Nas afirmações de Davis (2000), antigamente o negro era estigmatizado pela sua condição de ter sido submetido à escravidão, não tendo direitos civis, em uma sociedade puramente tradicional, que historicamente sempre desconsiderou seus direitos, e os considerava como objeto, como propriedade (DAVIS, 2000). Nos dias atuais a população negra é excluída por inúmeras estratégias sociais naturalizadas
pelo racismo, que se estrutura a partir de premissas, entre a qual pauta a crença da existência de raças hierarquizadas numa escala de inferioridade imposta aos não brancos. Estes, por sua vez, atribuem-se “herdeiros de uma raça europeia”, cujas qualidades “mentais, morais, estéticas, religiosas” se pautam no ideal político que justifica aos demais o não acesso aos bens sociais e economicamente valorizados para o reconhecimento de sua humanidade, ao não reconhecimento de seus territórios, suas línguas, suas educações e de suas formas de viver (PINHO, 2010).
Isso é evidenciado em relação aos elementos culturais advindos do colonizador, que sempre foram privilegiados, sem deixar de mencionar o currículo pedagógico que sempre esteve voltado aos anseios de uma classe considerada branca. Por outro lado, a luta da população negra em busca da inserção social e da valorização histórica e cultural provoca mudanças, mesmo que tardiamente.
Como nos alerta Mattos (2007), em sua longa trajetória de lutas, marcadas por diferenças, preconceito e discriminação racial, a população tem conseguido levantar suas bandeiras de lutas e conquistas. Foi por meio das lutas do movimento negro reivindicando seus direitos que conseguiram várias conquistas, como por exemplo, no campo da educação, destaca-se a Lei 10.639/2003, sancionada no dia 9 de janeiro de 2003, que tornou obrigatória no currículo escolar de todos os estabelecimentos de ensino fundamental e médio, particulares e públicos o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (MATTOS, 2007, p. 191). A regulamentação desta Lei, em junho de 2004, alterou a Lei 9.394/96 de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, representando um marco muito importante para a população negra brasileira, pois a partir de então as pessoas vão se reeducando e compreendendo as relações étnicos- raciais, oportunizando aos educandos o conhecimento da história e cultura, que compõem a história e cultura brasileira e que, por muito tempo foi silenciada, revendo assim a possibilidade de todos os estudantes, independente da sua raça ou etnia, valorizarem o povo negro oportunizando a esse o orgulho de sua origem e a reconstrução das identidades afrodescendentes sem sentimentos de inferioridades (MAGALHÃES, 2010).
Em 10 de março de 2008 foi sancionada a Lei 11.645, estabelecendo Diretrizes e Bases da Educação Nacional para ampliar essa retomada da história do Brasil e valorizar as culturas marginalizadas que identificam a sociedade, tornando obrigatório incluir no currículo oficial da rede de ensino a temática História e Cultura Afro-
Brasileira e Indígena. Mesmo com as legislações e após um processo de lutas e disputas e de conquista legal, não foram efetivados conteúdos, que revisem e apresentem as histórias silenciadas do povo negro e dos povos indígenas nas práticas escolares, especialmente, por falta de políticas públicas mais efetivas para o rompimento das amarras coloniais.
Reconhece-se assim, que são relevantes as leis, mas com elas são fundamentais os investimentos nos processos formativos e nas políticas de enfrentamento das raízes coloniais escravocratas e racistas, para que o sistema de ensino brasileiro reconheça as realidades passadas e presentes dos africanos e afro- brasileiros e dos povos indígenas. Trata-se assim, de na escola, abrir-se espaços de diálogos interculturais que prezem pela valorização da diversidade étnica e cultural como qualidade na educação brasileira, fortalecendo processos de auto reconhecimento das identidades dos estudantes, professores e comunidades escolares de suas origens ancestrais africanas e ameríndias.
Ensinar a história e cultura afro-brasileira, história da África, dos africanos e das populações indígenas nas escolas é uma formas de valorização étnicas e culturais, tanto das comunidades tradicionais, como a que pesquisamos no Pará, as quilombolas, para quebrar as barreiras que negros(as) e indígenas encontram para acessar seus espaços de cidadania na sociedade brasileira, e para contribuir com o desvelamento do preconceito e da discriminação racial. Espera-se que isso possa contribuir também para as lutas contra as desigualdades socioeconômicas e pelo exercício dos direitos e oportunidades iguais conforme prevê a Carta Magna que reconhece pela primeira vez, em 1988, a igualdade entre de todos os cidadãos. Dessa forma, começar pela escola é essencial, por ser esse o espaço-tempo em que todos se encontram desde a mais tenra idade, independente das perspectivas raciais, das crenças, dos saberes e das práticas, dos costumes; enfim, é ela um espaço em que se convive com a diversidade e a diferença, mas também nela muitas vezes encontramos diversos tipos de preconceito e práticas racistas (SOUZA, 2009, p. 92).
A povoação remanescente de quilombolas de Boa Esperança está localizada no km 55, do distrito de Juaba, Município de Cametá, no estado do Pará - norte da
Amazônia. O acesso a essa povoação se dá via transporte terrestre, através de um ônibus que faz linha de segunda à sexta-feira, chegando até a povoação de Porto Alegre. Daí, a viagem prossegue até o povoado de Boa Esperança a pé ou de bicicleta. A distância entre as duas povoações é de aproximadamente 7 km. A povoação de Boa Esperança ocupa uma área de terra fértil nas proximidades do campo de natureza conhecido como Anuerá. É formada por aproximadamente 105 pessoas, agrupadas em 24 famílias: sendo 25 homens, 23 mulheres; e 57 crianças,
26 meninos e 21 meninas.
A economia desse povoado gira em torno da produção e venda de farinha e demais derivados da mandioca como, tucupi, farinha de tapioca. A farinha e outros gêneros oriundos da mandioca são processados na casa de forno, que em sua maioria fica situada nos terreiros ou quintais das casas, cuja produção é comercializada, aos domingos na feira da vila de Juaba, e nos demais dias da semana na feira livre da Cidade de Cametá.
No cotidiano dos habitantes dessa povoação emergem lembranças herdadas da escravidão, principalmente, as que demarcam as bravuras e resistências dos seus ancestrais negros, que se rebelavam contra o processo escravista, através de fugas e formação dos antigos núcleos de resistências, que foram os quilombos ou mocambos. Os mais velhos habitantes desses povoados “ao revisitarem suas lembranças fazem alusão não só as bravuras dos seus avós ‘resistentes’ ou fugidos da escravidão, mas das dificuldades em se viver a ermo” (PINTO, 2006, p. 276). Nessa perspectiva, a memória revela-se de fundamental importância para a compreensão do processo histórico-social vivido pelos descendentes dos “resistentes da escravidez”. É através dessa memória insurgente que aparecem as narrativas a respeito das histórias de constituição dos antigos quilombos e de negros(as) fugidos(as), que não se submeteram ao processo escravista na região.
São nos registros de uma memória herdada, que os moradores das povoações remanescentes de quilombolas viajam no tempo, revisitam seu passado em busca de lembranças que estão embebidas de histórias contadas pelos moradores mais velhos nos dando a dimensão de todo legado trazido nos navios negreiros pela ancestralidade africana, a riqueza cultural, artística e religiosa, assinalando a importância de negros, afrodescendentes e seus descendentes na construção da identidade brasileira. Cujas origens, como assevera Funes (1996), não são expressas
apenas na cor da pele da sua gente, mas, sobretudo na memória, nas lembranças, que nos remetem sempre a um outro passado, que é dos antigos mocambos. Trata- se, portanto, de uma história que está viva na memória dos remanescentes de quilombolas, que são netos e bisnetos, de negros quilombolas, que por muito tempo “ocuparam as matas, fazendo delas seu espaço de liberdade” (FUNES, 1996, p. 476- 467).
Os quilombos contemporâneos são conhecidos como comunidades remanescentes de quilombolas, que por questões políticas, relacionadas à lutas reivindicatórias dos seus habitantes pela posse e titulação de suas terras, direito assegurado no art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal do Brasil, são reconhecidos como espaços de terras de descendentes de negros e negras que foram submetidos(a) à condição de escravizados(as) no período colonial. As terras onde vivem seus descendestes, vieram de doações, ocupações ou foram compradas secularmente a partir de muito esforço empreendido pelo grupo, cujos habitantes, na sua maioria, vivem da agricultura de subsistência, transmitindo para os mais jovens, a partir de vivencias e experiencias cotidianas, hábitos, costumes, práticas culturais e saberes herdados dos seus ancestrais.
É no revisitar da memória dos moradores mais velhos da povoação de Boa Esperança, como, de dona Maria Gonçalves Ribeiro, 68 anos, que a história dessa povoação vai sendo reconstituída:
A comunidade de Boa Esperança foi fundada pelos irmãos Custódio Ribeiro e Juventino Ribeiro no ano de 1862. Eles moravam em Nova Alegria que é próxima da comunidade de Laguinho outra comunidade quilombola e vieram pra cá. A povoação recebeu esse nome porque suas terras eram boas de plantar. A primeira casa era de dona Maria do Rosário Ribeiro, mãe de Custódio e Juventino Ribeiro, e ficava lá na beira do campo, o barracão era de palha de muçu. Já queimou. As parteiras da povoação eram Velha Mansa e Antônia, já falecidas. Agora elas (mulheres grávidas) vão pra cidade ter filhos, porque dona Maria do Lago não se compromete mais em fazer partos (MARIA GONÇALVES, moradora da povoação de Boa Esperança).
As narrativas capturadas com base nas lembranças de dona Maria Gonçalves surgem mediante o exercício de revisitar a sua memória, as quais reconstituem as origens de formação da povoação de Boa Esperança, que teria surgido a partir da ramificação de um outro reduto negro, o povoado de Nova Alegria, cujo nome teria
vindo da abundância de frutos e da qualidade de terras férteis, boas para a plantação. Assim como, suas lembranças também destacam a importância dos saberes das práticas de curas e arte de ajudar outras mulheres na hora do parto, que as parteiras detinham nesta povoação. E que nos dias de hoje, devido à idade avançada e com sérios problemas de visão, a única parteira da povoação, já não se responsabiliza em fazer os partos das mulheres, mas “puxa a barriga delas, ou então, faz remédio de planta pra aliviar” dores e males do corpo e do espirito. Devido não haver Posto de Saúde e nenhum profissional qualificado da área da saúde, essa parteira recomenda que as mulheres grávidas busquem apoio nos hospitais da cidade de Cametá para dar à luz aos seus filhos.
As narrativas dos habitantes desta povoação nos dão pistas a respeito dos seus saberes e aprendizados, entre os quais se incluem os referentes ao uso e técnicas de manipulação de plantas medicinais, quando buscam auxílios na sabedoria desenvolvida pelos seus ancestrais, mediante a utilização de remédios caseiros feitos à base de plantas, ervas, banhas, folhas, sementes, raízes e cascarias com propriedades terapêuticas para curar suas doenças. Driblando as dificuldades de acesso a saúde, suas práticas e saberes de curas vão sobrevivendo, proporcionando visibilidade, resistência e transmissão de uma geração para outra (PINTO, 2010).
Boa Esperança possui o formato de um semicírculo: havendo no centro o barracão, onde seus habitantes realizam reuniões e as festividades dos santos que são venerados nesta povoação. Esse barracão comunitário abriga todas as celebrações religiosas como, missas, ladainhas e romarias, além das festas dançantes. A disposição das casas lembra os traços dos antigos quilombolas, a forma de organizar suas casas de maneira semicircular demarca a solidariedade praticada pelos moradores desses núcleos de resistência, herança dos antigos quilombolas, que ainda se faz presente no cotidiano das povoações remanescentes da região do Tocantins. A maioria das casas do povoado é coberta com telha de barro, possuindo assoalhos e paredes de madeira, e, “margeando o semicírculo encontra-se a escola, ou melhor, apenas uma sala de aula” (PINTO, 2006, p. 290).
Nesse povoado não há espaço físico de nenhuma igreja, contudo, o culto ao catolicismo popular é muito forte, a partir da veneração de santos, como São Benedito, Santo Antônio, São Sebastião e Nossa Senhora do Tempo, que ao longo dos anos se alternavam na condição de padroeiro do lugar. Segundo contam alguns moradores,
como por exemplo, o senhor José Camilo Cantão, 72 anos, primeiro padroeiro desse lugar era São Benedito, que foi festejado durante muito tempo no mês de agosto. Enquanto, Santo Antônio era festejado na época da Companhia Positiva, nesse período os moradores mais velhos realizavam os “cunvidados de planta”. Além de festejarem São Sebastião, no mês de janeiro, e no mês de julho fazem a festividade da atual padroeira, Nossa Senhora do Tempo:
O Santo Antônio da Companhia Positiva, nos dias de hoje, essa geração mais nova não festeja mais, mas continua fazendo por aí o cunvidado pra plantá as roças, porque é mais rápido, num dia planta tudo a roça dum, e já vai ajudá na plantação da do outro. Tudo naquela alegria, brincadeiras, amizade e diversão, mesmo dona (CAMILO CANTÃO, 72 anos, morador da povoação de Boa Esperança).
A partir da narrativa do senhor José Cantão a religiosidade através das festas de santos envolvem formas de viver, resistir, celebrar, ensinar e aprender, que atravessam o mundo do trabalho permeando um tipo de produção que em certo sentido burla a lógica capitalista consumista, que individualiza, homogeneíza, e rompe com a “natureza humana” (E. THOMPSON, 1987, p. 346).
A organização do “cunvidado” ou mutirão para plantio em companhia, além de unir os trabalhadores para diminuir o tempo gasto nas atividades de preparação das roças de mandioca, cuja produção é voltada para subsistência das famílias envolvidas, produz outras formas de valores, que agrega união, lazer, estreitamento dos laços de companheiros, ensinamentos para os mais jovens e experiências de resistências, que fortalecem as formas de viver nas comunidades remanescentes de quilombolas, como ocorre em Boa Esperança.
Embora as dinâmicas empreendidas no “cunvidado”, conforme afirma Tiriba (2008), não eliminem a alienação do trabalho, a propriedade e a posse dos meios de produção permitem aos descendentes de quilombolas a possibilidade de articulação de práticas e saberes que a organização capitalista do trabalho fragmentou. E, desta forma, “os processos educativos como mediação e elemento da cultura do trabalho” vai se moldando no cotidiano desse tipo de produção associada e “no movimento maior de constituição de novas relações de convivência no âmbito da sociedade” (TIRIBA, 2008, p.74).
A religiosidade dos habitantes de Boa Esperança é permeada pela influência do catolicismo mediante ao culto aos santos, cuja história de Nossa Senhora do Tempo ganha destaque, sendo envolta em causos de muita devoção e milagres. Os
habitantes mais velhos dessa povoação narram que a imagem dessa santa teria sido encontrada por ocasião das atividades de preparação de um roçado para plantar mandioca, parecia um pedaço de madeira preste a queimar, conforme narra dona Maria Gonçalves, “era uma santinha bem perfeitinha, toda chamuscada pelo fogo, e ali no tempo aberto, foi milagre mesmo, a gente viu que era Nossa Senhora do Tempo”. Ao identificar o referido pedaço de madeira como uma santa, trabalhadores lhe atribuíram o nome de Nossa Senhora do Tempo, e devido a encontrarem no mês de julho, período tido como verão na região, passaram a festejá-la neste mês:
Quando eu ia trabalhar na Companhia Positiva em um dos roçados encontraram um pedaço de madeira no formato de uma santa, eles deram nome de Nossa Senhora do Tempo, eu era menino quando encontraram tinha uns dez anos. A santa tem uns 62 anos agora. Ela é muito poderosa. No tempo do verão é que a encontramos, ela já ia ser queimada. O frenteio foi quem encontrou ela. Ela foi encontrada no campo. Ela foi encarnada no mês de julho, tem novena em julho, dia 14 é o dia do mastro, dia 15 é a primeira noite e 25 é a festividade. Tem romaria pelos caminhos, dentro da povoação, e cada casa dá um donativo para o bingo, leilão tudo pra comunidade (CAMILO CANTÃO, 72 anos, morador da povoação de Boa Esperança).
Os moradores de Boa Esperança contam que, para abrigar e festejar a imagem da santa encontrada, construíram um barracão com uma capelinha coberto com palhas da palmeira buçu, que após algum tempo pegou fogo. Todos as imagens de santos de veneração dos habitantes do povoado, que estavam no altar da capelinha, foram queimadas, porém, a imagem de Nossa Senhora do Tempo mais uma vez escapou do fogo, conforme se observa na narrativa de dona Maria Gonçalves:
O barracão queimou e a santa, Nossa Senhora do Tempo não queimou, ela desapareceu do altar e os outros santos ficaram e queimaram. Ela foi encontrada no terreiro, de pé. Ela não queria ser queimada de novo, foi um milagre, pois ela é de madeira (MARIA GONÇALVES, 68 anos, moradora de Boa Esperança).
Nos dias de hoje dona Maria Gonçalves é a guardiã das imagens de santos da povoação, mas diz que reserva respeito e cuidado muito especial às imagens de São Benedito e Nossa Senhora do Tempo, por serem esculpidos em madeira, são consideradas raras e protetores especiais dos habitantes de Boa Esperança. Aliás, dona Maria Gonçalves faz questão de mostrar aos visitantes o “chamusco de fogo” ainda visível embaixo do pé da imagem de Nossa Senhora do Tempo, uma marca que
prova os milagres dessa santa, que já apareceu e desapareceu umas três vezes para não ser queimada.
Nas povoações remanescentes de quilombolas da região Tocantina, a identidade negra é vivenciada no cotidiano de seus habitantes, através de seus costumes, saberes, crenças rezas, cantorias e danças que são repassadas de geração em geração (PINTO, 2007). A memória leva a ressignificação das experiências e práticas cotidianas, e nesse sentido, a história e a historicidade é a descoberta do próprio indivíduo que traça desde o começo a trilha do pensamento, do fazer-se e os caminhos a seguir. A história é uma força aglutinadora, na qual nós apoiamos. Dessa forma, a memória tem uma importância crucial, pois é pensamento auto reflexivo que dá origens as ações individuais. Pois, há uma dinâmica entre pensamento e ação que se relaciona com a forma pela qual cada ser humano se torna consciente de estar inserido entre um passado infinito e um futuro infinito (ARENDT, 1978).
No contexto da historicidade o indivíduo é levado a agir sobre sua vida, suas condições, e isso depreende um processo criativo que tem origens na compreensão do passado. Isso pode ser observado quando os moradores mais idosos dessas povoações ao buscarem nas lembranças traços de suas raízes, tradições e costumes reclamam da falta de interesse de se trabalhar também na escola a importância da constituição histórica e cultural da povoação, fazendo com que os mais jovens dei pouca importância às festas e brincadeiras que faziam e fazem:
Hoje os nossos jovens têm vergonha da nossa cultura, só querem saber de música que não é nossa, e essa escola daqui também não ensina nada disso, então como é que eles vão gostar, não conhecem [...]. As memórias e histórias estão se perdendo porque a juventude não quer saber de mais nada e as pessoas mais velhas morrem, levam com elas. Já não se comemora como antes [...]. O samba é feito na época da festa. Os jovens participavam do samba, era demais bonita a festa aqui. O samba que é repassado de pai para filho, quando tem algum cunvidado sempre tem samba e hoje a juventude não quer sabê de mais nada (CAMILO CANTÃO, morador da Povoação de Boa Esperança).
Essa fala do senhor Camilo Cantão, um dos moradores mais idosos de Boa Esperança, soma-se a de outros(as) habitantes desse e de outros povoados da região do Tocantins, reivindicando que as escolas de áreas quilombolas tragam para seus espaços temas que estejam presentes na realidade desses sujeitos, escutar suas
histórias de vida, problematizando o contexto social, político e cultural por eles vivenciados, permitindo com que o processo educativo formal, também seja um instrumento de luta dessa população.
Observa-se que nessas escolas, referente à religiosidade, por exemplo, ainda há predominância da influência do cristianismo, a partir do catolicismo e das igrejas evangélicas, ocultando diferentes rituais de louvação aos seres da natureza, que ocorrem durante os plantios e colheitas das roças, por ocasião dos nascimentos ou despedidas, nas curas através de rezas e com poções feitas com ervas, plantas, raízes, banhas e semente. Isso tudo se caracteriza como herança da ancestralidade negra, que é manejada pelos mais velhos, pessoas sábias, detentoras de diversos saberes, que estão imbricados nas vivências cotidianas quilombolas. Daí, por que reivindicam uma educação quilombola que atenda às necessidades dos habitantes dessas comunidades, através de um currículo que incorpore nas atividades educacionais constituição histórica, saberes tradicionais, práticas culturais, formas de trabalhos e vivências cotidianas, respeitando questões étnico-raciais permitindo que o processo educativo formal, também seja um instrumento de luta dessa população.
A povoação remanescente de quilombolas de Boa Esperança possui uma pequena escola, cuja estrutura física dispõe apenas de uma sala de aula, razoavelmente ampla, isso se levar em consideração as salas de aulas de muitas povoações remanescentes de quilombolas da região do Tocantins. No entanto, observa-se poucas carteiras, uma mesa para o professor, um quadro para atividades do professor, dois banheiros (sendo um feminino e um masculino), uma pequena copa, onde há um fogão a gás de duas bocas, uma sala em que são guardados os materiais da escola como: cadernos, lápis, borracha, alguns jogos didáticos e uma caixa d’água. Em relação às escolas das povoações remanescentes de quilombolas por onde se passou no decorrer da pesquisa, como Mola, Bom Fim, Tomásia e Laguinho, a escola de Boa Esperança apresenta um melhor espaço físico.
Inicialmente a escola funcionava no barracão de festa e reuniões desse povoado, após haver um incêndio, foi transferida para a casa de um morador, cujo espaço foi posteriormente alugado pela secretaria de educação do município de
Cametá. O funcionamento da escola na casa de um morador é um tipo de acordo corriqueiro na zona rural, estabelecido entre o poder público e um morador local para que na comunidade possa ter um espaço físico próprio da escola, embora não seja este assumido em termos de condições estruturais pelo Estado. Neste acordo é pago uma quantia irrisória de dinheiro a um determinado morador pelo aluguel da sua residência, que será o local de funcionamento da escola, uma espécie “de cala boca”, ou seja, faz com esse morador se acomode, não reclame juntamente com os demais a ausência de escola para os seus filhos, devido acreditar que está lucrando, enquanto isso, o poder público vai postergando sua responsabilidade e mantendo o racismo institucionalizado ao não atender de forma igual aos estudantes e professores da comunidade.
A construção da atual escola só aconteceu após praticamente uma década de lutas reivindicatória dos habitantes de Boa Esperança, que organizados pressionaram insistentemente o poder público local. Importante observar, que o poder público transfere, em um processo alienante, suas responsabilidades e deveres legais para a população local, privatizando o seu papel na educação. Segundo afirma Freire (1996), trata-se da ideologia fatalista e imobilizante neoliberal, que com ares de pós- modernidade, anda solta no mundo, insistindo em “convencer-nos de que nada podemos contra a realidade social que, de histórica e cultural, passa a ser ou a virar ‘quase-natural’’, restando para a prática educativa adaptar o educando a esta realidade que não pode ser mudada (1996, p. 19-20).
No primeiro momento da pesquisa se observou que o quadro de funcionários da E. M. E. F. Boa Esperança era constituído de apenas 02 professores polivalentes, ou seja, trabalham em sala multissérie, realidade corriqueira nas escolas de áreas quilombolas. Além de ministrarem aulas, executam outras atividades na escola e se envolvem nos acontecimentos da povoação. Essa é uma das realidades vividas pela maioria das crianças e jovens das comunidades remanescentes de quilombolas da região do Tocantins, nas quais o ensino ainda acontece pelo sistema multisseriado. Nesse molde de ensino convivem alunos de idade e séries diferentes em uma sala de aula. E um único professor tem que se desdobrar em vários professores, tentando desenvolver as mais variadas estratégias para vencer cada dia de aula (PINTO, 2006). Neste malabarismo circense do professor polivalente e artista do quase improvável, os mais prejudicados são os seus alunos, que apresentam muitas
dificuldades de aprendizagens, independentemente da idade. Pois, nas turmas multisseriadas da região, existem crianças a partir de 04 anos e jovens com 15 anos de idade, todos apresentam algum tipo de dificuldade no processo de aprendizagem. Interessante destacar que as orientações curriculares desde a educação infantil até o ensino médio preveem a organização das turmas de estudantes por faixa etária, tendo sido efetivado os ciclos de aprendizagens e outras políticas, como a atual Base Nacional Curricular Comum, que organiza o sistema de ensino de forma a padronizar os sistemas municipais e estaduais com o nacional. Porém, nesta comunidade historicamente de resistência e luta por reconhecimento dos seus direitos, o Estado Brasileiro mantém o processo de subjugo com justificativas na contramão das normativas e legislações vigentes. Essa situação se agrava ainda mais devido à ausência de espaço da sala de aula ou da precária estrutura física das escolas. Sem falar da falta de transporte escolar, merenda escolar e outros.
No tocante a sala de aula da escola de Boa Esperança, verificou-se que não consegue abrigar confortavelmente todos os alunos, pois, além de frequentarem os alunos que estão regularmente matriculados, há ainda os chamados “alunos encostados”, que pela ausência de documentos necessários (como certidão de nascimento) para que suas matrículas sejam efetuadas, ou por serem crianças temporárias na povoação, devido ao trabalho dos pais (PINTO, 2006), assistem às aulas de forma voluntária, sem compromisso da Secretaria de Educação do município. Atualmente estudam 53 alunos nessa escola, sendo que no turno da manhã funciona uma turma multisseriada composta por 25 crianças do jardim I até o 2º ano do ensino fundamental. E no turno da tarde são atendidos 28 alunos, em uma turma multisseriada composta por estudantes do 3º ao 5º ano do ensino fundamental. Observamos que no jardim III há uma criança com Necessidades Educacionais Especiais – NEE – com diagnóstico de surdez total e pouca audição. Quando indagamos ao professor Janil Moraes, responsável pela turma multissérie, na qual estuda esse aluno, acerca das metodologias utilizados para trabalhar com os
mesmos, sua resposta foi emblemática:
[...] a escola não dispõe de recursos didáticos para esse ensino. [...] no interior as dificuldades são maiores, principalmente pelo fato de trabalhar com multisseriado, e também porque a gente se reuni uma vez no ano com a Secretaria de Educação para o planejamento, daí vem a supervisora saber se a escola vai bem, se a comunidade aceita o professor, se estão gostando dele, se reuni com os pais pra saber o
que a comunidade precisa (PROFESSOR JANIL MORAES, morador de Boa Esperança).
Buscando compreender como essa escola tem acesso aos direitos legais que na educação potencializaria o auto reconhecimento étnico e cultural e a valorização das histórias e culturas afro-brasileiras como a da comunidade, trazemos a fala deste professor que se refere não só as dificuldades enfrentadas devido à ausência de materiais didáticos e paradidáticos, mas também a falta de cursos de aperfeiçoamento para qualificar a educação escolar acerca dos dispositivos da 11.645/2008. Isso reforça o abandono e a falta de políticas públicas para os quilombolas da região, pois não há investimentos para que possam ser revistos os processos históricos de imposição colonial visando o reconhecimento e valorização das diversidades e dos diversos saberes dessas populações. Nesta direção, também não é ofertado o curso de libras e não recebem nenhum tipo orientação para lidar com um aluno com NEE. Sem falar que esse professor trabalha com uma turma multisseriada, situação que dificulta ainda mais seu trabalho e a aprendizagem dos estudantes.
No entanto, como um contraponto, observou-se que a maioria dos estudantes de Boa Esperança concluem seus estudos no 6º ano do ensino fundamental. Aqueles que se predispõem em continuar estudando, são obrigados a se deslocar até a escola da povoação quilombola de Porto Alegre, que atende até o 9º ano do ensino fundamental. Há casos que para continuar os estudos, os jovens, na maioria mulheres, mudam-se para a cidade de Cametá, onde moram com algum parente e trabalham como domésticas ou diaristas. Isso expressa ainda que as dificuldades em conciliar estudos e trabalho acarretam a desistência dos estudos. Assim, os fatores de ordem econômica são os principais responsáveis pelo não acesso aos direitos à formação escolar, os quase se articulam aos fatores subjetivos de ser negro em uma sociedade ainda racista, tornando o acesso à escola e ao ensino superior um desafio quase impensável aos jovens quilombolas na região. Isso porque enfrentam, além da pobreza material, os processos de exclusão, preconceito e discriminação racial institucionalizada e invisibilizada nas relações sociais naturalizadas no cotidiano das cidades.
É importante mencionar, que não basta criar leis, obrigando a conhecer e estudar as realidades passadas e presentes das populações africanos e indígenas, mas, antes disso, é imprescindível construir cenário para sua efetivação, com mudanças tanto administrativas, quanto pedagógicas para que realmente sejam
colocadas em prática, visto ser necessário de se educar estudantes com consciência política e histórica, que valorize e respeito às diversidades reconhecendo as suas individualidades e ao mesmo tempo o seu direito à igualdade.
Nos casos das escolas de áreas quilombolas da região em estudo, verificou-se que a cultura afro-brasileira e africana é trabalhada de forma superficial, apenas em situações específicas, como por exemplo, no ensino de história, quando as discussões em salas de aulas é a escravidão negra no Brasil ou em datas comemorativas, como: Semana da Consciência Negra, Abolição da Escravatura e dia do folclore. Os textos, as gravuras e os desenhos trabalhados nas aulas não fazem referência alguma à cultura afro-brasileira, tampouco refletem o contexto sociocultural no qual as crianças estão inseridas. A partir disso, observa-se que “o currículo adotado nas escolas dessas povoações ainda segue os mesmos padrões estabelecidos pelo sistema formal de ensino. Não considera o modo de vida e as experiências cotidianas dos alunos” (PINTO, 2006, p. 283).
Contudo, verifica-se que há preocupação de grande parte dos moradores das povoações quilombolas, assim como, de professores, que reclamam da falta de atenção dispensada para o conhecimento das histórias de constituição dessas comunidades, suas práticas culturais, hábitos e costumes herdados dos seus ancestrais. Visto que, os conhecimentos resultantes não levam em consideração os processos ocorridos na vida dos alunos, e assim são materializados nos programas educacionais e livros didáticos, quando o conhecimento escolar se torna “objeto”, “coisas”, a ser transmitida (DAYRELL, 2001). As práticas desvinculadas da realidade, tendem a seguir modelos de currículos direcionados para escolas de áreas urbanas, descontextualizadas das realidades de estudantes quilombolas, que, na sua grande maioria, vivem em áreas rurais. O processo de educação continuada dos professores que vão atuar em sala de aula, no que diz respeito às relações étnicas e indígenas, deve ser ininterrupto, ou seja, está sempre procurando aprender, frequentando cursos, participando de palestras, para assim melhorar seu desempenho em sala de aula.
Durante as atividades de pesquisa de campo observamos que alguns professores de escolas quilombolas vêm buscando a formação continuada para trabalhar com o ensino da história e da cultura negra e indígena, iniciativa fundamental para que seja revisto, principalmente na educação, devido ao processo de
invisibilidade e exclusão enfrentados pelos habitantes destas comunidades. A maioria dos professores quilombolas entrevistados, como é caso dos professores de Boa Esperança, afirmam já ter feito uma formação continuada na área, ou dizem já ter reclamado junto a Secretaria de Educação do Município de Cametá, algum curso de formação nesse sentido. Assim como, dizem que participam de cursos e palestras, com esse propósito, promovidos por professores pesquisadores do Campus Universitário do Tocantins/UFPA- Cametá, os quais constantemente oferecem cursos sobre relações étnicas, abordando o ensino da história, cultura afro-brasileira, africana e indígenas:
Olhe, pra lhe falar a verdade na secretaria de educação do município não se aproveita quase nada, é só enrolação. Eu gosto de participar mais desses eventos que acontecem aí na universidade, a UFPA, aqui em Cametá, tem palestras, oficinas, cursos, que trata de assuntos da nossa realidade, da nossa cultura, nossas festas, a importância da terra quilombola, das nossas escolas. E, assim, tudo de graças, a gente não paga nada pra participar, mas tudo ali é ótimo, esclarece muita coisa pra gente trabalhar com nossos alunos, e eles gostam muito, ficam olhando diferente os velhos, com admiração, orgulho mesmo (PROFESSOR RAIMUNDO GONÇALVES, morador da povoação de Boa Esperança).
Partindo da fala desse professor observa-se que a formação parte do próprio sujeito que por sua vez tem uma posição crítica sobre o que se “transfere” nas formações oficiais e o que aprende com seus próprios meios e valorização de sua comunidade. Percebe-se que os próprios professores buscam se inteirar sobre o ensino da história e da cultura afro-brasileira e africana, para inserir nas suas práticas na escola, disseminar entre os estudantes. Neste sentido, estão pensando em práticas pedagógicas que contemplem a diversidade cultural da qual fazem parte, que possibilitem aos estudantes compreenderem-se enquanto sujeitos ativos, “com capacidade de transformar o seu cotidiano” (LIMA e VIEIRA, 2006, p.31). Percebe-se ainda que há casos de professores de Boa Esperança, que possuem só o ensino médio, mas que tentam fazer o curso superior a exemplo dos colegas que exercem o magistério nas povoações de Bom Fim e Mola, pagando com seus próprios salários. No mesmo sentido de busca de qualificação, verificam-se casos de professores quilombolas que estão cursando nível superior pelo Programa Nacional de Formação de Professores da Educação Básica – PARFOR/CAPES ou então na Universidade Federal do Pará (UFPA), a partir da aprovação no Processo Seletivo Especial para
estudantes indígenas e quilombolas dessa instituição, como ocorre com professores que moram na povoação quilombola de Porto Alegre, que ministram aulas em escolas dos municípios de Oeiras do Pará e Baião.
Diante da pesquisa com essas realidades históricas e seus processos para o acesso à escola em áreas quilombolas, o procedimento educativos das mesmas precisa ser repensando frente às multiplicidades identitárias que se inscrevem no contexto escolar, o que, ao nosso ver, requer a necessidade de se considerar e respeitar as experiências dos estudantes a partir do reconhecimento e valorização dos seus comportamentos, rituais, tradições, heranças e todo contexto histórico, pois estas contribuem para a construção da identidade étnico-racial no espaço escolar, assim como, fortalece a luta dos professores por formação específica, que possam atender a compreensão dos processos interculturais que perpassam a prática pedagógica em turmas, cujas identidades são diversificadas (em idade, gênero, grupo familiar, e outros), ou seja, tanto para atuarem nessas comunidades, bem como, na educação de modo geral.
Ao tecer algumas considerações acerca dos desdobramentos educacionais referentes à consolidação da 11.645/2008 na povoação remanescente de quilombolas de Boa Esperança, verifica-se que os moradores dessa comunidade continuam a valorizar as formas tradicionais de viver coletivo, ao ressignificar a cultura de seus antepassados, intercalando momentos de lazer, com suas festas, danças e ladainhas, com o trabalho nas roças de mandioca. Na pesquisa em Boa esperança, são evidenciadas heranças ancestrais da comunidade expressos nas formas de organização espacial, de festejar os santos venerados, de solidarizarem-se entre moradores, de fazer a economia girar em torno da produção e venda da farinha de mandioca e de seus derivados e de praticar o samba de cacete; elementos essenciais da cultura quilombola da região.
No entanto, quanto ao processo educacional, a pesquisa traz ao debate o grande distanciamento do acesso aos direitos já firmado pelas legislações em vigor. Ou seja, embora alguns estejam assegurados nas legislações esses não são efetivados, uma vez que tantos os moradores, quantos os professores desse povoado
reclamam da falta de escolas com espaços dignos e inclusivos, assim como da formação de professores que possam ser garantias de organização de um currículo escolar que atenda a realidade local sem desconsiderar os direitos constitucionais de cidadãos cujo acesso aos diferentes sistemas de ensino deva ser assegurado.
Dessa forma, é imprescindível pensar a escola como construtora de identidades positivadas no sentido de igualdade de direito e do reconhecimento a diferença sem desqualificá-la. Esse espaço da educação escolar como local de efetivo exercício de aprendizagem da cultura negra, oportunizará as crianças, jovens e adultos viverem a diferença na igualdade a caminho para uma sociedade antirracista. Por fim, em consonância com os estudos de Gatinho (2008), reconhece-se que apesar de haver algumas mudanças no processo educacional a partir da promulgação da lei 11.645/2008, a maioria dos professores quilombolas, também ainda deixam de inserir no espaço escolar muitos elementos da cultura negra, que poderia fazer parte
de sua prática pedagógica.
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V.18, nº 37, set-dez (2020) ISSN: 1808-799 X
Hellen do Socorro de Araújo Silva2 Carlos Nazareno Ferreira Borges3 Maria do Socorro Dias Pinheiro4
Resumo
O texto objetiva analisar a política de formação dos professores do campo e sua contribuição para construção da escola do campo como prática de resistência no território da Amazônia paraense. A metodologia se ancorou em estudos bibliográficos, documentais e pesquisa de campo. Os resultados evidenciaram que a formação de professores tem pautado estudos e debates que corroboram para refletir a escola do campo, suas contradições, seus desafios e as possibilidades de transformações por meio de práticas de resistências.
Palavras-chave: Políticas Educacionais; Educação do Campo; Licenciatura em Educação do Campo.
POLÍTICA DE FORMACIÓN DE PROFESORES DEL CAMPO: PRÁCTICA DE RESISTENCIA EN LA AMAZÔNIA
Resumen
El texto tiene como objetivo analizar la política de capacitación de docentes rurales y su contribución a la construcción de escuelas rurales como práctica de resistencia en el territorio de la Amazonía de Pará. La metodología se basó en estudios bibliográficos, documentales e investigaciones de campo. Los resultados mostraron que la capacitación de maestros ha guiado los estudios y debates que corroboran para reflejar la escuela rural, sus contradicciones, sus desafíos y las posibilidades de cambios a través de las prácticas de resistencia.
Palabras clave: Políticas educativas; Educación rural; Grado en Educación Rural.
POLICY FOR TRAINING COUNTRY TEACHERS: PRACTICE DE RESISTANCE IN THE AMAZON
Abstract
The text aims to analyze the training policy of countryside teachers and their contribution to the construction of countryside school as a practice of resistance in the territory of the paraense Amazon. The methodology was anchored in bibliographic and documentary studies, and field research. The results showed that the training of countryside teachers has guided studies and debates that corroborate to reflect the countryside school, its contradictions, its challenges and the possibilities of changes through resistance practices.
Keywords: Educational Policies; Country Education; Degree in Country Education
Artigo recebido em 20/04/2020. Primeira avaliação em 31/05/2020. Segunda avaliação em 30/06/2020. Terceira avaliação em 15/07/2020. Aprovado em 04/08/2020. Publicado em 25/09/2020. DOI: https://doi.org/10.22409/TN.V18I37.42429
Doutora em Educação pela Universidade Federal do Pará. Docente da Universidade Federal do Pará do
Programa de Pós-Graduação em Educação e Cultura/ PROCAD/Amazônia - Brasil. E-mail: hellen.ufpa@gmail.com ORCID: 0000-0002-5443-2373. Lattes: http://lattes.cnpq.br/4932105074922888
Doutor em Educação Física pela Universidade Gama Filho - Rio de Janeiro - Brasil. Docente Associado da Universidade Federal do Pará - Brasil, do Programa de Pós-Graduação em Educação. E-mail: naza_para@yahoo.com.br. ORCID: 0000-0002-1908-3315.
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação e Mestre em Educação pela Universidade Federal do Pará (UFPA) - Brasil.. Docente da Universidade Federal do Pará (UFPA) - Brasil
E-mail: sdiasufpa2@gmail.com ORCID: 0000-0003-1109-6733.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/7850316457132758
A política direcionada para formar professores do campo no Brasil e na Amazônia tem sido, neste século XXI, o epicentro do debate pelo (des) interesse por parte do projeto político instalado no Brasil. A referida política se fundamenta na lógica privado-mercantil e no rentismo, que ganha força com a crise orgânica do capitalismo de 2008 e se manifesta de diversas formas em todos os países (MANCEBO, 2019). A autora diz também que no Brasil, tal crise acirrou as desigualdades sociais e econômicas, afetando ainda os alicerces políticos, sobretudo após o impeachment da presidenta Dilma Rousseff em 2016, que conduziu ao cargo de presidente da República Michel Temer.
As primeiras medidas tomadas pelo governo de Michel Temer estiveram concentradas em reformas que procuraram reduzir os gastos com saúde e educação, o que se agravou com a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 55 de 2016, cujo objetivo foi restringir os gastos sociais por 20 anos. Estas medidas limitam a efetivação do Plano Nacional de Educação (Lei 13.005/2014) em determinadas metas, dentre as quais podemos mencionar: o cumprimento no atendimento de educação obrigatória de 4 a 17 anos; a valorização dos profissionais da educação; além dos cortes nos investimentos para as universidades públicas.
Hage, Silva e Souza (2019) afirmam que o pleito ocorrido em 2018, ao eleger como presidente Jair Bolsonaro, coloca em pauta a lógica do projeto conservador da ultradireita. Este projeto tem intensificado o desmonte dos direitos trabalhistas conquistados pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e o acesso aos direitos sociais previstos na Constituição de 1988. Os autores dizem ainda que houve a implementação de políticas de austeridade, que impõem o controle e diminuição dos investimentos públicos nas políticas sociais e educacionais.
Os impactos das ações do atual governo têm ocasionado uma sensação de incerteza na política educacional brasileira, principalmente na política de formação dos professores do campo. Por exemplo, a institucionalidade dos cursos de Licenciatura em Educação do Campo (LEDOC) enfrenta sérios riscos de perda de sua identidade.
Em que pese as Instituições de Educação Superior (IES) públicas assumirem os mencionados cursos como política permanente, enfrentam os cortes em seu financiamento, sendo que consideramos os recursos como essenciais para o
funcionamento desta modalidade de licenciatura. Entre os recursos seriamente comprometidos com os cortes ocasionados pela atual política de governo estão os destinados para aquisição de material didático; alimentação e moradia dos estudantes; e às atividades do ‘tempo comunidade’ e ‘trabalho de campo’.5
A Organização Não Governamental ‘Ação Educativa’, juntamente com o portal virtual ‘De Olho nos Planos’ e o coletivo ‘Carta Educação’ elaboraram um material que traz reflexões sobre os 100 dias do atual presidente em 2019. Este material apresenta as correlações de força e os projetos educacionais em disputa, visto que há um desmonte das secretarias, programas e projetos no âmbito do Ministério da Educação (MEC). Entre as evidências do desmonte, destacamos a dissolução da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI); e extinção da Secretaria de Articulação com o Sistema de Ensino (SASE), criada em 2011 para acompanhar o processo de monitoramento e avaliação dos planos estaduais e municipais de educação.
No campo da Política Agrária, destacamos a aprovação do Decreto
10.252 de 21 de fevereiro de 2020, que apresenta alterações estruturais e regimentais do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). A partir de então, toda a política agrária fica subordinada à formulação do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA). Houve também a extinção de coordenações no INCRA, dentre as quais registramos a Coordenação-Geral de Educação do Campo e Cidadania, setor responsável pelo Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA). Isto representa a retirada de direitos dos povos tradicionais e camponeses, conquistados por mais de 20 anos de luta.
Diante de medidas que desconsideram a educação como um direito de todos, o MEC apresenta um conjunto de projetos centrados numa visão que secundariza a concepção historicamente acumulada e referenciada pela luta dos trabalhadores do campo e da cidade.
Na perspectiva de contrastar com os saberes sociais, culturais, políticos, econômicos e formativos de caráter inclusivo, o MEC lança projetos e resoluções que afirmam a lógica da educação privatista, centrada em uma racionalidade técnica
5 São tempos formativos, cujo objetivo é fortalecer o trabalho como princípio educativo na ação dos sujeitos do campo, para que a sua identidade e seu vínculo com o trabalho e com a vida continue a existir e a resistir (SILVA, 2017).
e na epistemologia da prática. Como exemplos citamos a alfabetização com o método fônico e a militarização das escolas. Quanto à formação de professores destacamos: a Base Nacional Curricular para a Formação de Professores instituída pela Resolução CNE/CP Nº 2, de 20 de dezembro de 2019, que institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para formação inicial de professores para Educação Básica; e a Base Nacional Comum para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica (BNC Formação).
As normativas supramencionadas procuram controlar e regular a concepção e as práticas dos professores, alinhadas aos parâmetros dos organismos multilaterais (OM) como a Organização das Nações Unidas para Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), Banco Mundial (BM), Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), dentre outros. A influência dos OM nas políticas nacionais mencionadas provocam limitações impactantes à educação do campo, dentre as quais destacamos a precarização da formação de professores e estruturação curricular, que tendem a se direcionar pelo perfil citadino; e a precarização das condições de infraestrutura, além do quantitativo de escolas fechadas no Brasil e no Pará6, baseados no critério de oferta mínima necessária, na compreensão do Estado acerca das demandas do campo.
Deste modo, este artigo tem como objeto de investigação a política de formação dos professores do campo da Amazônia paraense e sua inter-relação com a transformação da escola do campo. O estudo é resultado das pesquisas que temos desenvolvido no Programa de Pós-Graduação em Educação e Cultura, em parceria com a Faculdade de Educação do Campo do Campus Universitário do Tocantins-Cametá, e com o Programa de Pós-Graduação em Educação, do Instituto de Ciência da Educação, ambos da Universidade Federal do Pará (UFPA).
Nosso objetivo foi analisar a política de formação dos professores do campo e sua contribuição para a construção da escola do campo como prática de resistência no território da Amazônia paraense.
Quanto às questões metodológicas, os dados seguiram os procedimentos de estudos bibliográficos, análise documental e pesquisa de campo. Os documentos
6 Em todo Brasil mais de 100 mil escolas foram fechadas no período de 2000 a 2015. No Estado do Pará, foram 5.355 mil escolas do campo fechadas, sendo 4.411 escolas no campo e 944 na cidade (CENSO ESCOLAR, INEP/GEPERUAZ, 2014).
analisados foram: o texto da lei de Diretrizes e Bases da Educação (9394/96); o documento do Programa Nacional de Educação do Campo (PRONACAMPO), sobretudo as indicações quanto à LEDOC; o Projeto Político de Curso (PPC) do Curso da LEDOC da Universidade Federal do Pará (UFPA) do Campus de Tocantins-Cametá. Os documentos não foram analisados em categorias, mas retirados de seus conteúdos as informações necessárias para alcance de nossos objetivos, o que será demonstrado na análise a seguir.
Na pesquisa de campo fizemos observação e realizamos entrevistas com seis sujeitos: um docente, a coordenação da LEDOC da UFPA do Campus do Tocantins-Cametá; um representante dos movimentos sociais e três estudantes. Suas narrativas encontram-se ao longo do texto identificadas com nomes fictícios para resguardar sua autoria e seguir os princípios éticos da pesquisa.
Na análise de dados, ancoramo-nos na análise de conteúdo de Bardin (2010) e Franco (2008) na perspectiva de triangularmos os dados coletados por meio dos documentos e do trabalho de campo. Em termos de interpretação, dialogamos com autores que nos possibilitam a crítica em relação à problemática anunciada, dentre os quais destacamos as contribuições clássicas de Gramsci (1989), e as contribuições de estudiosos nacionais como: Freire (2007), Caldart (2020) e Molina (2014).
Este texto se estrutura em duas partes. A primeira apresenta reflexões sobre a política de formação de professores do campo, na Amazônia paraense, e a segunda trata da experiência formativa do curso da LEDOC e suas contribuições para a construção de práticas formativas na/da Educação do Campo como espaços de resistência no território do Baixo Tocantins.
A política de formação de professores, entre os séculos XX e XXI, tem sido um tema muito debatido nas instâncias governamentais, nas instituições de formação e em diversos setores da sociedade. Também se pode afirmar que a política de formação se constitui como pauta das exigências reivindicativas dos movimentos sociais e sindicais, sobretudo, nas associações da categoria docente.
Quando consideramos as ações governamentais, a concepção de formação em meio às reformas implementadas tem se traduzido como um serviço na relação entre Estado e a lógica de mercado, pelo qual é atribuído um valor que se paga para ter acesso. Esta relação envolve o público e o privado, fundamentada na Lei Nº 11.079/2004, a qual institui normas gerais para licitação e contratação de parceria público-privada no âmbito da administração pública. Segundo Oliveira et al, (2005), consiste no princípio de que o governo busca recursos financeiros adicionais e possibilita que investidores possam construir e manter obras, e em troca ter direito de exploração comercial dos serviços.
A perspectiva legal a qual nos referimos acima se orienta através de uma lógica neoliberal, que envolve os OM por recolocar a política e a economia brasileira em um alinhamento com o desenvolvimento e crescimento econômicos sob as diretrizes do chamado Consenso de Washington. Por um conjunto de medidas formuladas por economistas na capital Norte Americana em 1989, adotou-se como princípio a liberalização econômica, que se traduzia pela diminuição do papel do Estado e por uma maior participação do mercado no processo de decisão em rápidas e eficientes questões econômicas.
As deliberações do consenso de Washington tinham como base o “ajuste fiscal, privatização, liberalização [...], desregulamentação do setor financeiro, liberação do comércio, incentivo ao investimento externo, reforma do sistema de previdência/seguridade social e reforma do mercado de trabalho” (SGUISSARDI; SILVA JR., 2001, p.27).
Quando analisamos a repercussão das políticas ultraliberais na educação, inúmeras mudanças podem ser identificadas. Freitas (2007) pondera que a partir dos anos 2000, insere-se na formação de professores cursos à distância, com a finalidade de ampliar o atendimento às demandas docentes sem qualificação em nível superior. A alternativa para isso foi a Educação a Distância (EAD), criada por meio de um aparato tecnológico com a utilização de um sistema midiático interativo, no qual se reduz a mediação pedagógica entre o professor e aluno. A mesma autora diz que assim “responsabiliza-se os estudantes, que já chegam a estes cursos, em condições desiguais frente aos demais estudantes das universidades, sem que se ofereçam as condições de ensino” (p. 1213).
Pesquisa das Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC-Domicílios)7 realizada pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação, divulgada em agosto de 2019, destaca que 70% da população brasileira possui acesso à internet, sendo o celular o meio mais utilizado por 97% dos usuários. Segundo a mesma pesquisa, na área urbana, 74% tem conexão à internet, enquanto nas áreas rurais, esse número alcançou apenas 49%. Nas camadas mais pobres de toda a população 48% estão conectados à rede, embora o número de domicílios sem acesso à conexão em todo o país seja de 46,5 milhões. Como se viu pelas evidências supracitadas, no Brasil as desigualdades também são observadas no acesso à tecnologia de comunicação. No entanto, a política de formação a distância se estendeu à Amazônia paraense, inicialmente por meio de instituições privadas, sem aparato tecnológico necessário para desenvolver um trabalho com o mínimo de qualidade. O déficit de qualidade era observado facilmente porque a maioria dos cursos funcionava em escolas públicas estaduais e municipais que cediam o espaço para que ocorressem as aulas “presenciais”,
porém, sem ter infraestrutura tecnológica necessária.
A Lei de Diretrizes e Bases (LDB) 9.394/96 decreta no art. 87 § 4º que “Até o fim da Década da Educação somente serão admitidos professores habilitados em nível superior ou formados por treinamento em serviço”. Sobre isso, Freitas (2002,
p. 148) afirma que:
Os professores têm sido levados a frequentar cursos de qualidade duvidosa em grande parte, pagos por eles. [...] esse processo tem se configurado como um precário processo de certificação e/ou diplomação e não qualificação e formação docente para o aprimoramento das condições do exercício profissional. A formação em serviço da imensa maioria dos professores passa a ser vista como lucrativo negócio nas mãos do setor privado e não com política pública de responsabilidade do Estado e dos poderes públicos.
Assim, a partida para obter a formação inicial e continuada se dá na iniciativa privada, uma vez que a década de 1990 foi marcada pela presença de um Estado mínimo. Naquele momento já existia a ideia de iniciativa privada na educação superior como um negócio lucrativo e também como uma opção para o professor sem formação alcançar em tempo hábil a formação exigida pela lei. Por isso, os
7 Pesquisa sobre uso das Tecnologias da Informação e Comunicação nos Domicílios brasileiros (TIC- Domicílio) 2018, publicada em 2019. Disponível em https://www.cetic.br/pesquisa/domicilios/publicacoes/ Acesso em abril de 2020
professores recorreram e ainda recorrem a esses ambientes na perspectiva de adquirir a formação em nível de Graduação e Pós-Graduação (SILVA, 2011).
Os professores que se encontravam fora dos parâmetros das novas exigências de formação, buscavam a alternativa nas universidades privadas, à distância, aligeiradas e com ensino precário, pois as aulas presenciais aconteciam e acontecem sob a mediação de um tutor. Tudo isso foi destacado por Freitas (2007) ao dizer que “a maioria dos cursos de formação na modalidade à distância, no Brasil [...] se apresenta como uma forma de aligeirar e baratear a formação. [...] pensada como uma política de formação compensatória que visa suprir a oferta de cursos regulares” (p.1214).
Quanto ao financiamento público da formação de professores, as políticas de formação que têm atendido professores do campo no Brasil e na Amazônia, nas últimas décadas, articulam-se sob quatro programas, a saber: Universidade Aberta do Brasil (UAB-2006); o Plano Nacional de Formação de Professores (PARFOR- 2009); o Programa de Formação Superior e Licenciatura Indígena (PROLIND) e o Programa de Apoio à formação Superior em LEDOC (PROCAMPO-2009). Este último foi criado a partir das experiências piloto da LEDOC que estavam sendo desenvolvidas na Universidade de Brasília (UnB), Universidade Federal de Sergipe (UFS), Universidade Federal da Bahia (UFBA) e Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) desde 2007. Constituíram-se como programas gratuitos, com objetivo de formar os professores sem nível superior nos diversos territórios brasileiros.
A partir de 2006, o fluxo de oferta de cursos públicos de ensino superior, na modalidade à distância se multiplica com introjeção da UAB. A partir de então, há a intensificação da oferta de diversos cursos de formação inicial e continuada, capacitação de dirigentes, gestores e profissionais da educação. Tal incremento na oferta desacelerou os cursos de curta duração em funcionamento pela iniciativa privada.
Mesmo com tal direcionamento, a partir da UAB, as políticas continuam centradas numa formação fundamentada aos interesses mercadológicos, na visão capitalista, pela qual se prioriza a formação instrumental, sem aprofundar os conceitos e a visão de mundo que caracterizariam uma perspectiva política de formação docente. Sobre isso, Freitas (2007) destaca a continuidade da formação
baseada nos princípios da aprendizagem dos conteúdos escolares, na avaliação dos resultados e na gestão do trabalho pedagógico.
A formação conteudista à qual nos referimos está relacionada à educação bancária, apresentada por Freire (2007). Segundo o autor, essa concepção se caracteriza em moldar, domesticar, transformar a pessoa em mero objeto a serviço da cultura dominante, elitista, conservadora, que se projetou para disseminar e se perpetuar no poder. Continuando seus argumentos Freire (2007, p. 34) diz que:
Nestas sociedades se instala uma elite que governa conforme as ordens da sociedade. Esta elite impõe-se às massas populares. Esta imposição faz com que ela esteja sobre o povo e não como povo. As elites prescrevem as determinações às massas. Estas massas estão sob o processo histórico. Sua participação na história é indireta, não deixam marcas como sujeitos, mas como objetos.
As colocações de Freire expressam uma nação, a nação brasileira, sendo manipulada pelas elites internacionais dos países ricos. Elites estas que monitoram e manipulam as políticas sociais, inclusive a educacional. Deste modo, a visão de educação homogeneizadora e disciplinar continua a fomentar o ideário não somente da formação de professores, mas todo um processo epistemológico presente na educação básica, que direta ou indiretamente torna a profissão docente um território em disputa (NÓVOA, 1995).
Mesmo nesse contexto de supremacia liberal é possível observar, no entanto, que a sociedade civil organizada, em especial atores dos movimentos sociais, resistem às reformas que se entrelaçam aos modos de produção flexível e ao estilo da classe dominante internacionalizada, que exerce o controle hegemônico do saber/poder/fazer estabelecido nas lógicas de produção do sistema capitalista nesta economia globalizada. E exigem políticas e ações públicas que atendam aos direitos mais básicos dos povos do campo. Entre esses direitos destacamos a educação, saúde, previdência, reforma agrária, trabalho, ou seja, condições dignas para continuar a existir como sujeitos do campo.
É no campo desta luta que situamos a adoção de alguns programas de formação docente. Dentre estes programas, citamos o PARFOR. De acordo com Scheibe (2010, p. 986), o PARFOR é um programa que tem o “[...] objetivo de estabelecer ações e metas para qualificação de professores brasileiros que ainda não possuem a formação considerada adequada ao trabalho que exercem”. Dessa forma, se funcionar de acordo com sua prescrição, Camargo (2017, p. 133) diz que
o programa se constitui como “[...] uma possibilidade de mudança em direção à superação das assimetrias regionais, além de contribuir (de certa forma) para a ruptura com os programas de curta duração e com o caráter mercadológico que predominava desde a LDB [...]”.
Ainda sobre a relevância do PARFOR, pode-se dizer que o programa responde ao que prevê o Decreto Nº 6.755/2009, que institui a Política Nacional de Formação de Profissionais do Magistério da Educação Básica, que disciplina a atuação da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior-CAPES no fomento a programas de formação inicial e continuada. No Art. 3º inciso VII do decreto, lê-se que dentre os objetivos desta política nacional de formação se destaca a necessidade de “ampliar as oportunidades de formação para o atendimento das políticas de educação especial, alfabetização e educação de jovens e adultos, educação indígena, educação do campo e de populações em situação de risco e vulnerabilidade social” (BRASIL, 2009).
Além do PARFOR, os programas PROLIND e PROCAMPO são articulados ao Programa Nacional de Educação do Campo (PRONACAMPO), efetivado pela Portaria n. 86, de 1º de fevereiro de 2013 e regulamentado pelo Decreto nº 7.352/2010 e dispõe sobre a política de educação do campo e o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária - PRONERA. Esses programas atendem a demandas que historicamente ficaram à margem das políticas públicas educacionais. Estes são também os programas pelos quais os indígenas e os povos do campo têm feito o enfrentamento para garantir que na formação inicial sejam reconhecidas suas identidades e seus modos de vida. Uma das mais importantes estratégias para a formação diferenciada é que a elaboração dos Projetos Pedagógicos de Cursos universitários reconheça como formativa a alternância entre tempo universidade e tempo comunidade.
A perspectiva de formação dos professores do campo nasceu especialmente com o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária em 1998, a partir da organização Movimento Nacional de Luta Por uma Educação do Campo. O objetivo era alfabetizar, elevar a escolaridade e ofertar cursos de nível superior aos trabalhadores assentados das áreas de reforma agrária.
A luta pelo direito a educação nos assentamentos e acampamentos da reforma agrária, tem como marco inicial a perspectiva para a construção de escola
do campo. Para isso teve seu marco inicial no I Encontro Nacional de Educadores e Educadoras na Reforma Agrária (1996) ENERA, e na I Conferência Nacional de Educação do Campo (1998). Este marco pode ser compreendido assim porque foram nestes momentos que se apresentaram as denúncias do descaso do Poder Público para com a garantia do direito à educação e a escola nas comunidades rurais e nos assentamentos.
Os encontros nacionais mencionados foram protagonizados pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST). Este movimento avançou nas suas conquistas, pois enfrentou dificuldades (violência e criminalização) e pautou a reforma agrária, como o direito de viver, estudar e produzir com dignidade na terra. Daí se intensifica a mobilização coletiva para a construção de escolas nos assentamentos rurais que tivessem sintonia política e pedagógica com os princípios do movimento, isto é, para ser “conduzida pelo povo organizado e no desenho de um projeto educativo que ajude a trilhar ‘o caminho transformador do sistema social’” (CALDART, 2020, p. 6)
Nesse sentido, destacamos que o MST protagonizou inicialmente a luta pela escola e, de forma articulada, foi percebendo que outros coletivos compartilhavam desta luta. Sobre isso, Caldart; Benjamin (2000) dizem que
havia muitas outras famílias trabalhadoras do campo e da cidade que também não tinham acesso a este direito. Segundo, e igualmente grave, se deram conta de que somente teriam lugar na escola se buscassem transformá-la. Foram descobrindo, aos poucos, que as escolas tradicionais não têm lugar para sujeitos como os sem terra, assim como não costumam ter lugar para outros sujeitos do campo, ou porque sua estrutura formal não permite o seu ingresso, ou porque sua pedagogia desrespeita ou desconhece sua realidade, seus saberes, sua forma de aprender a ensinar (p. 45-46).
As concepções de escolas presentes ao longo do tempo, pouco consideraram a realidade construída historicamente pelas populações camponesas, suas formas de ser, produzir e resistir nos territórios urbanos e rurais. Tem-se segregado, marginalizado e criminalizado os movimentos sociais que almejam uma pedagogia diferenciada na formação crítica, e que vá ao encontro das práticas de ensino e aprendizagem dos sujeitos que têm o direito negado à escolarização.
As reivindicações pelo direito a educação não ficaram restritas somente à educação básica, pois o processo de acúmulo de luta dos movimentos sociais do campo, começaram a exigir também o acesso à educação superior pública em
várias áreas de conhecimentos, mediadas por um currículo e projetos pedagógicos que considerassem a matriz teórica e metodológica da educação do campo.
Acreditamos que estas iniciativas, ao oferecer significativos avanços e por ofertar formação inicial e continuada aos professores das redes públicas, procura superar a concepção de racionalidade técnica e de epistemologia da prática, para assim avançar na formação de sujeitos críticos e orgânicos. A nosso ver, isso só efetivar-se-á se o processo de conscientização e de libertação dos sujeitos contribuírem para que estes professores saiam da situação de alienados, subalternos e oprimidos e se tornem sujeitos de práxis.
Como itinerário para conscientização e libertação dos sujeitos, acredita-se que a perspectiva de formação reivindicada pelos povos do campo, das águas e das florestas do Brasil e da Amazônia, apresenta-se contrária à formação centrada no mercado. A bem da verdade, a perspectiva vai ao encontro da compreensão social e educacional defendida por entidades organizadas, tais como: Associação Nacional de Política e Administração da Educação (ANPAE); Associação Nacional pela Formação de Profissionais da Educação (ANFOPE); Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPED); Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE); Fórum Nacional de Diretores de Faculdades (FORUMDIR); Associação Nacional dos Docentes de Ensino Superior (ANDES) e Movimento da Educação do Campo.
Todas as entidades supramencionadas primam pela valorização da escola pública e reivindicam formação inicial e continuada indissociada da valorização profissional. A intenção é de atender a realidade dos professores, seja da cidade ou do campo, ancorados na qualidade social (SILVA, 2017).
Ao dialogar com o território da educação do campo, partimos do princípio de que formar professores para atuar em práticas educativas e pedagógicas que considerem a diversidade sociocultural dos sujeitos sociais é requerer uma epistemologia própria. Essa precisa ser representativa dos saberes, das experiências e dos modos de vida de homens e mulheres que constroem seu pertencimento social e educacional no campo, nas águas e nas florestas.
O curso de Licenciatura em Educação do Campo regulamentado a partir do Decreto 7.352/2010 e pelo PRONACAMPO é assumido pelas Universidades Federais e Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia de Ensino
Superior. Essas instituições operam com a proposta curricular vinculada à alternância pedagógica, caracterizada por dois momentos – Tempo Universidade e Tempo Comunidade. A proposta pedagógica corrobora também para a formação em docência interdisciplinar nos anos finais do ensino fundamental e ensino médio, priorizando uma das áreas do conhecimento: linguagens e códigos, ciências humanas, ciências da natureza, matemática e ciências agrárias (EDITAL, Nº. 02/2012)8.
A proposição dos cursos de licenciatura se fundamentou no contexto social dos povos do campo e quilombolas, na luta dos movimentos sociais do campo e nas necessidades de organização da educação básica presente nas comunidades rurais. A oferta dos cursos da LEDOC ocorre em 42 IES no Brasil (destes, 03 estavam naquele momento no Pará, estabelecidos a partir de 2009). A expansão ganhou maior abrangência territorial após 2013, com processo seletivo definido especificamente para sujeitos sociais de territórios camponeses, sendo a prioridade dada para professores em exercício sem graduação. No Pará houve uma expansão, pois, a LEDOC passa a ser ofertada pela UFPA (Campi de Abaetetuba, Altamira e Cametá), Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (UNIFESSPA) e Instituto Federal do Pará (IFPA/Campi de Bragança, Breves, Castanhal e Marabá).
Diante do que até aqui foi dito, destacamos que a formação de professores do campo, a partir das experiências formativas do curso da LEDOC, ancora-se numa teoria do conhecimento em que a práxis concretiza-se como educativa e formativa. Esta proposta de conhecimento visa romper com a fragmentação estabelecida entre teoria e prática referendada pelo ceticismo, dogmatismo, realismo acrítico e criticismo não realista, os quais separam os saberes constitutivos da vida (NORONHA, 2010).
Consideramos que a práxis enquanto categoria e como ação, constitui-se como um dos caminhos essenciais para romper com a lógica da racionalidade técnica, da epistemologia da prática e da unilateralidade no campo da formação de professores. Assim sendo, afirmamos que a práxis se apresenta como uma das possibilidades para encontrar as vias da transformação e da emancipação. É nesse
8 Chamada Pública para seleção de Instituições Federais de Educação Superior – IFES, denominação utilizada para designar as Universidades Federais e os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia, para criação de cursos de Licenciatura em Educação do Campo, na modalidade presencial.
sentido que, a seguir, discutiremos a respeito das práticas de resistências para construção da escola do campo, sob a contribuição da LEDOC.
A política de formação dos professores do campo, referenciada política e pedagogicamente pela LEDOC, busca reconstruir a escola que se encontra presente nas comunidades rurais. Isso porque, em sentido amplo se pode dizer que “não basta ter escolas no campo, quer-se ajudar a construir escolas do campo, ou seja, escolas com um Projeto Político Pedagógico vinculado às causas, aos desafios, aos sonhos, à história e a cultura do povo trabalhador do campo” (KOLLING; MOLINA; NÉRY, 1999, p. 29).
O contexto de reconstrução da escola do campo requer, então, maior resistência por uma formação de professores inclusiva e com seu pilar na diversidade e nas políticas afirmativas. Por isso, a resistência precisou ser intensificada pelas lutas dos movimentos sociais do campo, como também de parcelas sociais que defendem uma política de igualdade social e educacional.
É neste sentido que o Movimento Nacional de Educação do Campo pauta outro projeto de formação e de escola do campo, articulados ao PRONERA e à LEDOC. Estas experiências formativas tiveram seus projetos pedagógicos formulados de forma coletiva a partir da matriz teórico-prática, centrado na epistemologia da práxis, construídos em sintonia com as lutas dos movimentos sociais do campo, os quais têm demandado por políticas educacionais como uma fração das políticas públicas.
As demandas se justificam, por entenderem que a defesa por outro projeto de educação do campo não está dissociada da questão agrária e da concentração fundiária no Brasil. Também devemos ressaltar que a educação do campo não nasce na academia, nem da teoria, ela nasce da realidade, da materialidade concreta das lutas dos sujeitos camponeses pelo direito à terra (MOLINA, 2014).
A LEDOC representa uma alternativa à formação dos professores e, também, um passo necessário para a construção de um trabalho interdisciplinar na universidade e nas escolas. Da mesma forma, compreende-se como a possibilidade de problematizar e construir a escola do campo; como perspectiva de garantia do acesso e permanência das crianças, jovens e adultos do campo; além de ser um
marco para o acesso à educação superior pública aos povos do campo, os quais estiveram historicamente ausentes deste direito.
Dentre as práticas de resistência possíveis e prováveis para as mudanças necessárias na escola do campo destacamos a integração entre os conhecimentos socioculturais e científicos. A integração poderá gerar mais resistência quando provocada na interação entre a formação inicial e a realidade concreta dos sujeitos camponeses.
Com a intenção de demonstrar traços de resistência no lócus investigado, apresentamos, na sequência, depoimentos e nossas análises, tomando como base o ‘olhar’ dos entrevistados sobre a importância da formação oferecida pela LEDOC como espaço de práxis. Acreditamos que esse ‘olhar’ possa, de forma significativa, contribuir para o repensar da escola ainda rural9, a qual atende aos povos do campo em suas comunidades e na cidade.
Em relação às práticas de resistência para construir a escola do campo, é que damos destaque para os depoimentos que expressam o quanto a formação vivenciada pela LEDOC tem apontado caminhos da mudança. Procuramos, assim, expressar o que declarou Freire (2016), que a realização da prática da liberdade é a superação da contradição opressor-oprimido, por meio do processo de conscientização de homens e mulheres do campo. É o que expressa o depoimento:
Vejo que a formação do curso de Licenciatura em Educação do Campo é bem diferenciada. Por exemplo, as disciplinas que nós estamos tendo estão dando suporte, pois tem feito a gente aprender a se identificar como pessoa do campo e identificar também as nossas raízes dentro da nossa comunidade. Isso nos leva a compreender que temos um currículo muito diferenciado, porque aprendemos a lidar com nossa realidade e a ser um educador, de fato, que venha trabalhar dentro das escolas das comunidades, levando em consideração nossas raízes e nossas culturas. Tivemos uma disciplina sobre alternância que foi de suma importância para que a gente pudesse compreender que existe os tempos educativos, que o campo é diferenciado, que ele precisa ser
9 “A escola rural historicamente defendeu que os saberes a serem transmitidos devem ser poucos e úteis para mexer com a enxada, plantar, colher, levar para a feira [...] aprender apenas os conhecimentos necessários para sobreviver e até para modernizar um pouco a produção; introduzir novas tecnologias, sementes e adubos, etc. Essa visão utilitarista sempre justificou a escola rural pobre, os conteúdos primaríssimos, a escolinha das primeiras letras. O projeto de escola do campo tem de incorporar uma visão mais rica do conhecimento e da cultura, uma visão digna de campo, o que será possível se situarmos a educação, o conhecimento, a ciência, a tecnologia, a cultura como direito e as crianças e jovens, homens e mulheres do campo como sujeitos desses direitos” (ARROYO, 2004, p. 82).
entendido de acordo com sua realidade, de acordo com suas produções (Margarida dos Santos -estudante LEDOC).
Os aprendizados vivenciados no tempo/espaço formativo do curso de Licenciatura em Educação do Campo se concretizam nas possibilidades de se ampliar uma concepção de trabalhador e de escola do campo. Isso ocorre porque a formação enfatizada no depoimento revela uma disseminação do conhecimento interdisciplinar e aponta o quanto é importante a intervenção nas comunidades para se construir uma escola do campo diferenciada.
O curso parece trazer novos olhares, novos horizontes, alarga a visão de mundo e de sujeito do campo, uma visão de escola ampliada, ancorando-se no campo do devir. Tudo isto nos leva a afirmar que há um anseio para a construção de uma escola do campo e, no depoimento acima, percebemos o quanto a LEDOC pode ser o caminho para problematizar a escola rural ainda presente nas comunidades, numa perspectiva para a construção da identidade como educador do campo a partir de uma escola que se aproxime das lutas sociais e do processo cultural dos sujeitos.
A referida licenciatura garante, entre os seus princípios, a necessidade de reconhecer as particularidades dos sujeitos coletivos do campo. Por isso, subscreve em seu PPC que “a educação do campo ganhou marco legal que assegura formalmente o direito a uma educação diferenciada que respeite as especificidades, as particularidades dos sujeitos implicados aos lugares onde vive” (UFPA, 2017, p. 5).
A LEDOC se propõe, desde o seu PPC (2017), à formação do sujeito crítico e, sobretudo, à perspectiva de uma aproximação com as escolas dos territórios rurais.
Para a emergência da resistência, é de fundamental importância que os estudantes em processo de formação, possam se engajar na materialidade de uma nova organização do trabalho pedagógico, em sua efetiva atuação como educador do campo. Nesse sentido, o próximo depoimento deixa claro como os sujeitos procuram se envolver na luta pela transformação de suas ações educativas nas escolas onde atuam, compreendendo-as como um território de práxis educativa. Isto pode ser observado no discurso ora apresentado.
Quando nós vamos para o tempo comunidade a gente passa a entender a diversidade que existe naquela determinada localidade.
Pensamos que tendo um conhecimento teórico, vamos dar conta de entender os conhecimentos práticos do dia a dia dos sujeitos, mas quando começamos a fazer nossas pesquisas no tempo comunidade a gente vai vendo que as coisas não é como pensávamos. Quando me deparei com a minha pesquisa lá na localidade tive uma visão totalmente diferente da vida e dos saberes dos sujeitos - hoje tenho uma visão diferente e que eu entendo de uma forma melhor o dia a dia, a forma como se trabalha, a forma como se processa as atividades que se praticam no campo, então, vejo assim, que mudou muito a minha forma de entender nossa identidade como sujeito do campo (Maria-estudante LEDOC).
É interessante destacar que a materialidade dos princípios originários da educação do campo começa a aparecer nos discursos e na prática dos estudantes que atuam como educadores nas escolas públicas. O depoimento apresentado acima, expressa com bastante clareza o quanto o curso tem lhe ajudado a pensar sobre os ideais necessários para que venha defender o projeto político pedagógico da educação do campo.
Referendando nossas interpretações, dialogamos com Frigotto (2010, p.188) ao reiterar que “na escola, os processos educativos não podem ser inventados e, portanto, não dependem de ideias ou fórmula mágica. Dependem de um conjunto de moléculas orgânicas, pari passu com a construção da própria sociedade no conjunto das práticas sociais”.
As mudanças a serem feitas em uma escola do campo devem partir do princípio de coletividade, tendo-as como práticas de resistência na constituição de estratégias político-culturais, para assim conseguir integrar os modos de vida e os saberes das comunidades. É preciso ter clareza da necessidade de uma concepção de sociedade inclusiva, cujas aproximações são com o projeto de agricultura familiar e camponesa, assim como com o protagonismo dos movimentos sociais. Sem isso, não se avança no sentido de escola do campo que se pretende construir e transformar.
Para tanto, destacamos que a formação da LEDOC deve apontar para outros significados e mudanças necessárias a serem feitas na universidade e na escola. São nesses lugares que os professores desenvolvem em sua prática uma inter- relação entre os conhecimentos científicos sistematizados com os saberes vivenciados de forma cotidiana pelos povos do campo. E o que estamos falando serve tanto para a universidade como para a escola e as comunidades.
Outro destaque está na afirmação de que por meio do processo formativo, os estudantes se percebem imersos nesta prática docente diferenciada, e assumem o compromisso político e social com uma prática engajada e em sintonia com o currículo que seja representativo de suas experiências. A construção da escola do campo se afirma “pela resistência e luta das famílias e comunidades que trabalham e vivem no campo” (CALDART, 2020, p. 7). É por isso que aspiramos à formação do sujeito político, este que produz cultura e que luta pelos seus direitos como pessoa humana engajada na incansável “batalha” pela transformação social.
Sobre a perspectiva de formação comentada acima, o depoimento seguinte reitera que:
Apostando na formação, enfim, no conhecimento. Então era importante que a universidade pudesse, através do curso direcionado aos povos do campo, pudesse ir ajudando a preservar esses saberes, através do processo de formação. E a Licenciatura em Educação do Campo trouxe essa valorização. Por isso que acreditamos que o conhecimento educacional é a principal forma de libertar do povo do campo. (Mario-Movimento Social).
No trecho de depoimento acima transcrito, a formação é entendida no sentido de batalha das ideias e de guerra de posição (GRAMSCI, 1989). Entende-se assim pelo fato de que o poder ideológico remete à tomada de consciência das contradições sociais, econômicas, políticas e culturais diante da situação de exploração imposta pela lógica excludente do capital.
A partir da leitura gramsciana, afirmamos que a LEDOC deve assumir o compromisso com a formação de intelectuais orgânicos, para se engajarem no enfrentamento político e ideológico que o sistema lhes impõe. Mas também deve ser assumida uma posição de classe no campo do devir, na perspectiva da emancipação social e humana. Portanto, faz-se necessário formalizar as denúncias sobre as posturas antidemocráticas assumidas na direção das escolas, condições de funcionamento, ausência de transporte e alimentação escolar. Vejamos o que diz sobre isso o depoimento que se segue:
Existem muitas dificuldades de um trabalho mais coletivo, pois muitos professores não moram nas comunidades, falta de tempo, desgaste, excesso de carga horária, perseguição política [...]. Acredito que se faz necessária uma formação mais voltada para a realidade, fazendo-a dentro da comunidade, envolvendo os próprios moradores, envolvendo não só a comunidade escolar, mas todos os sujeitos da comunidade, em que o professor possa sempre relacionar com a prática junto com os alunos. Em meu ponto de
vista, isso pode ser um caminho para pensarmos a escola do campo (Carmem-Docente LEDOC).
O trecho de depoimento aponta que a formação da LEDOC se concretiza no sentido de superar a fragmentação da teoria e da prática existente no contexto das escolas rurais. No entanto, há fatores de dificuldade, como: professor que não reside nas comunidades; dificuldades de acesso às comunidades; transporte escolar escasso e precário; excesso de carga horária e a falta de tempo para uma organização mais efetiva de seu trabalho. Isto tem impedido a execução de uma pedagogia que se construa articulada com a vida dos estudantes e sintonizada com a realidade concreta das comunidades.
A aproximação com a efetiva realidade das escolas de educação básica do campo tem uma orientação-acompanhada a partir do momento em que os estudantes têm sua inserção na escola, por meio do estágio de docência. Para essa inserção, no caso da LEDOC, no território do Baixo Tocantins, os estudantes cursam: estágio nos anos finais ensino fundamental na área de Ciências da Natureza (100h); estágio no ensino médio, precisamente em Biologia e Química (100h); e estágio na Educação de Jovens e Adultos (100). Além destas 300 horas de inserção na escola, os estudantes também cumprem 100 horas de estágio em organizações populares/comunitárias. Estes estágios se configuram como uma aproximação dos estudantes com o campo profissional (RESOLUÇÃO DE ESTÁGIO DA FECAMPO, 01/2017) e também é uma oportunidade para aprofundar a pesquisa que desenvolvem quando estão em Tempo Comunidade.
Na inter-relação do estágio com a pesquisa, trazemos o olhar de sujeitos entrevistados, suas críticas sobre a negação do direito à escola, e a importância da Licenciatura em Educação do Campo para denunciar as contradições das escolas rurais.
As escolas rurais nas comunidades ainda seguem um modelo multisseriado com escolas precárias e com péssimas condições de trabalho, ainda tem o ensino médio que é pelo modular, onde os professores fazem rodízio nas comunidades e passam pouco tempo nas aulas com a gente e em condições de espaço muito ruim, pois até no salão paroquial a gente estuda (José-estudante LEDOC).
No campo, a partir das visitas que fazemos nas comunidades e pelos depoimentos dos próprios alunos, há um problema seríssimo de questões políticas e eleitoreiras, pois as prefeituras só colocam para trabalhar nas escolas os professores contratados que não são das comunidades; isso causa um desânimo nos alunos que cursam
a licenciatura em educação do campo e querem continuar nas suas comunidades para contribuir (Conceição-Coordenadora LEDOC).
Os depoimentos denunciam as precárias condições do ensino no campo. Os problemas estão presentes desde os anos iniciais, com as escolas multisseriadas, pouco pautados nas agendas do Poder Público. O descaso não tem assegurado qualidade nas condições de funcionamento das escolas em razão da metodologia que vem sendo adotada pelos professores. Ou seja, nestas turmas há um problema gravíssimo da falta de uma proposta pedagógica, como também de formação permanente dos professores.
Outra questão é o ensino médio, que tem sido atendido no estado do Pará pelo Sistema Modular de Ensino (SOME). Este funciona por módulos, porém, há muitas dificuldades para sua efetivação, uma vez que nem sempre o regime de colaboração com as prefeituras têm se estabelecido. Entre as principais dificuldades são relatados: o tempo das aulas, a ausência de professores e, sobretudo, quanto a uma estrutura para o funcionamento das aulas.
Há também a ser destacada a questão dos contratos de trabalhos temporários, que têm sido efetivados de forma alarmante nas escolas do campo. Com isto, as prefeituras não realizam concursos públicos e acabam por ter o cargo público como uma moeda de troca em processos eleitorais. Tal fato tem desmotivado os estudantes da LEDOC que se preparam para trabalhar, mas, devido às questões políticas, não conseguem atuar em seu campo profissional.
Outrossim, destacamos que os sujeitos sociais vão trabalhando sua organicidade no sentido de perceber que “as escolas precisam ajudar as famílias a entender porque é preciso mantê-las, e como escolas públicas, qual o seu lugar nos processos de ‘resistência ativa’ dessas comunidades” (CALDART, 2020, p. 8). Por isso que a escola do campo deve transgredir políticas curriculares urbanocêntricas, que historicamente têm sido impostas pelo poder hegemônico do capital. É dessa forma que a escola do campo poderá protagonizar práticas educativas referenciadas pelo trabalho, pela agroecologia, pela agricultura familiar e por um meio ambiente ecologicamente sustentável.
A escola do campo a ser transformada deve se constituir por sua concreticidade, para superar as contradições vivenciadas e impostas pelas condições estruturais da sociedade. É dessa forma que poderá ir ao encontro de
práticas educativas de resistências, que vislumbrem perspectivas de outra sociedade de forma humana, e coerentes com as novas formas de sociabilidade.
A política de formação de professores do campo se vincula de forma orgânica há pelo menos 20 anos com a luta histórica do Movimento Nacional de Educação do Campo, o qual busca por meio da teoria do conhecimento, integrar a práxis. Sua iniciativa começa com a inserção dos estudantes na escola; nas organizações populares e nos movimentos de base para a realização de estudos, pesquisas e intervenções na realidade educacional. Tudo isso pode se dar a qualquer momento, mas se processa particularmente pelos estágios docentes e por processo de formação permanente e acompanhada. Tais ações visam contribuir com a construção de políticas alternativas de educação para a escola do campo na Amazônia paraense.
Finalizar nem sempre é uma tarefa fácil, principalmente quando o debate deixa claras pistas de continuidade permanente enquanto o status quo do problema levantado não é alterado. Diante de situações inquietantes percebidas na realidade educacional vivenciada em comunidades do Território da Amazônia paraense, nossa pretensão foi de analisar a política de formação dos professores do campo considerando o curso de Licenciatura em Educação do Campo e as contribuições para a construção da escola do campo como prática de resistência nesse território.
Procuramos mostrar por meio de nossas fontes, como os sujeitos do campo são submetidos a iniciativas institucionais que, longe de lhes proporcionar uma ampla formação humana, coloca-os à mercê da dominação do capital, operado por ditames de Organismos Multilaterais que ditam as políticas educacionais brasileiras.
Para dar conta de nossa tarefa, utilizamos de procedimentos mistos de coleta do material empírico, os quais se constituíram de estudos bibliográficos, dados documentais e pesquisa de campo, além de um esforço pela construção de um referencial teórico de suporte. No que diz respeito aos diferentes sujeitos que colaboraram com o estudo, pudemos contar com a coordenação, docentes e estudantes do curso de Licenciatura em Educação do Campo da UFPA do Campus Universitário do Tocantins-Cametá, além de representações de movimentos sociais do campo. Todos envolvidos com o curso no território do Baixo Tocantins.
Os resultados nos mostraram que, de fato, confirma-se a existência de ações implementadas no campo, para que a educação mantenha os sujeitos sob o jugo do capital. No entanto, os resultados revelam também que há políticas de formação direcionadas aos professores do campo, com destaque para a Licenciatura em Educação do Campo, que têm se configurado como mecanismo de resistência. Sabe-se que essas iniciativas são dirigidas por legislações que muitas vezes dificultam o avanço de uma formação comprometida com o amplo desenvolvimento das potencialidades dos sujeitos, da mesma forma que se somam às dificuldades geradas pelas condições estruturais de ausência de políticas públicas nos territórios, tais como: problemas de infraestrutura, transporte, emprego, entre outras.
Apesar das dificuldades em geral, a Licenciatura em Educação do Campo tem pautado estudos e debates que corroboram para conhecer a escola do campo, identificando as contradições, seus desafios e as possibilidades de transformações por meio da construção de práticas de lutas e resistências. Acreditamos que a luta continua, e que estamos no caminho!
ARROYO, M. G. A educação básica e o movimento social do campo. In: ARROYO, Miguel Gonzalez; CALDART, Roseli Salete; MOLINA, Mônica Castagna (Org.). Por uma educação do campo. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2004.
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V.18, nº 37, set-dez (2020) ISSN: 1808-799 X
Maria Sueli Corrêa dos Prazeres2
Ilda Gonçalves Batista3
O artigo analisa o uso de dispositivos móveis por docentes nas escolas de ensino médio no município de Cametá/PA e as mudanças ocorridas nas relações/espaço-tempo, referenciada pelo materialismo histórico. Conclui-se que o uso das tecnologias digitais na escola converge num duplo sentido (pessoal e pedagógico) e retroage em desdobramentos favoráveis e, ao mesmo tempo, desfavoráveis ao ensino e a prática docente, construindo uma “nova” dinâmica que possibilita outras relações tecidas no espaço- tempo virtual/real relacionada, especialmente, ao trabalho docente.
El artículo analiza el uso de dispositivos móviles por parte de los maestros en las escuelas secundarias del municipio de Cametá / PA y los cambios que ocurrieron en las relaciones/ espacio-tiempo, a los que hace referencia el materialismo histórico. Se concluye que el uso de tecnologías digitales en la escuela converge en un doble sentido (personal y pedagógico) y retroactivo en desarrollos favorables y, al mismo tiempo, desfavorable para la enseñanza y la práctica docente, construyendo una dinámica "nueva" que hace posible otras relaciones entrelazadas en espacio / tiempo virtual / real relacionado, especialmente, con el trabajo docente.
The article analyzes the use of mobile devices by teachers in high schools in the municipality of Cametá
/ PA and the changes that occurred in the relations / space-time, referenced by historical materialism. It is concluded that the use of digital technologies in the school converges in a double sense (personal and pedagogical) and retroactive in favorable developments and, at the same time, unfavorable to teaching and teaching practice, building a “new” dynamic that makes possible other woven relationships in virtual / real space-time related, especially, to teaching work.
1 Artigo recebido em 01/06/2020. Primeira avaliação em 06/06/2020. Segunda avaliação em 20/06/2020. Aprovado em 16/07/2020. Publicado em 25/09/2020.DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v18i37.46282
2 Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG) - Paraná - Brasil. Mestre em Educação pela Universidade Federal do Pará (UFPA) - Brasil. Atualmente é docente da Universidade Federal do Pará E-mail: suelicorrea@ufpa.br. ORCID: 0000-0001-8119-6313.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/7320780651650730
3 Mestre em Educação e Cultura pelo Programa de Pós-Graduação em Educação e Cultura da Universidade Federal do Pará - Brasil (PPGEDUC/UFPA - Brasil). É docente da Prefeitura Municipal de Parauapebas. amazônico. E-mail: ildagoncalves92@yahoo.com.br ORCID: 0000-0002-5745-6207. Lattes: http://lattes.cnpq.br/5408547583754911
O artigo analisa o uso das tecnologias digitais móveis por professores das escolas públicas no município de Cametá/PA e as mudanças ocorridas nas relações/espaço-tempo no cotidiano das escolas estaduais4. Parte-se do pressuposto de que a inserção das tecnologias digitais móveis se apresenta como possibilidade de alunos e professores terem acesso a formas outras de informação e comunicação na escola. Todavia, esse acesso tem-se materializado a partir de tensionamentos e contradições que ora “enriquecem”, ora “empobrecem” as ações educativas em virtude das relações tecidas durante e/ou após a prática educativa.
O estudo referencia-se pelo materialismo histórico-dialético, que possibilita alcançar a realidade do objeto de pesquisa no seio da sociedade capitalista e apontar meios para transpor essa realidade. Parte-se dos problemas concretos da realidade histórico-social, pois é ela que dará subsídios para compreender a totalidade concreta do estudo, uma vez que para Marx (2008, p. 258-259) “o concreto é concreto, porque é a síntese de muitas determinações”. Compreender a realidade em sua totalidade pressupõe começar a análise pelas relações mais simples até alcançar as mais complexas e, posteriormente, o todo estará envolvido em um só movimento.
O método dialético possibilitou conhecer os pressupostos ideológicos e econômicos que se escondem por trás da defesa das tecnologias digitais na sociedade, bem como os tensionamentos, as contradições, os limites e as possibilidades de mediação no contexto educacional. Revelar esse “claro-escuro de verdade e engano”, a “pseudoconcreticidade” (KOSIK, 2002), é uma tarefa complexa, mas que possibilita compreender a realidade concreta do estudo sobre as tecnologias móveis e o contexto educacional, assim como visualizar a forma em que o objeto se apresenta, se transforma e como se realiza a passagem de interpretação de um fenômeno social aparente para a sua concreticidade.
O município de Cametá possui 8 escolas estaduais, distribuídas entre a área urbana e as vilas do município. Realizou-se pesquisa em uma escola pública de ensino médio, situada no espaço urbano, adotando-se como critério a escola ofertar o nível médio de ensino regular; estar situada na sede do município onde o acesso à
4 O artigo resulta de discussões realizadas no contexto do Curso de Mestrado em Educação e Cultura da Universidade Federal do Pará, sobre o uso de tecnologias digitais móveis nas escolas de ensino médio no município de Cametá/PA e as mudanças ocorridas nas relações/espaços-tempos. Aqui, trata- se de versão revisada e ampliada.
tecnologia é mais facilitado e, por último, os sujeitos terem acesso às tecnologias digitais móveis.
Para a coleta de dados utilizou-se de entrevista semiestruturada em uma escola pública de ensino médio, com oito professores da rede pública estadual no município de Cametá/PA, sendo cinco mulheres e três homens, sendo complementada pela observação no cotidiano escolar.
O texto apresenta-se dividido em três seções. Na primeira discute-se a inserção das tecnologias da informação e comunicação no campo educacional, problematizando a lógica instrumental que caracteriza o uso das tecnologias nas escolas e a possibilidade de sua superação. Na segunda seção analisa-se a possibilidade de criação de novos tempos/espaços de aprendizagem a partir da inserção das tecnologias digitais móveis. Na terceira e última seção reflete-se sobre a vivência e trabalho docente com o uso das tecnologias digitais móveis nas escolas.
Parte-se do entendimento que a tecnologia não pertence a um só indivíduo, a um grupo de pessoas, a uma comunidade, muito embora ela tenha sido apropriada, historicamente, por grupos dominantes para produzir mais-valor, mercadoria, dinheiro, ferramentas tecnológicas. Comungamos da perspectiva marxiana de que “Uma história crítica da tecnologia provaria o quão pouco qualquer invenção do século XVIII pode ser atribuída a um único indivíduo [...]. (MARX, 2013, p. 446). Para Marx, a tecnologia é resultado de processos históricos pertencentes à humanidade, sendo, portanto, projetada para satisfação de necessidades básicas e melhoria das condições de vida do homem.
Todavia, é na sociedade capitalista que, contraditoriamente, ao ser apropriada pelo capital, passa a ter a função de aumentar a produtividade, gerando mais-valia relativa. Dessa forma, a compreensão do conceito de tecnologia, na sociedade capitalista, é primordial, uma vez que a concepção mais recorrente parece ser aquela que coloca as ferramentas a serviço dos fins econômicos, em detrimento das necessidades humanas, isto é, meramente instrumental.
Assim, acredita-se que, mesmo em face de um processo em que o capital se apropria das tecnologias para explorar a força de trabalho e gerar lucro, é possível propor alternativas que possam viabilizar a apropriação dos recursos tecnológicos, a
partir de uma concepção crítica da tecnologia. Esse processo exigirá dos sujeitos de diferentes categorias a disposição para lutar por um projeto que subsidie a classe trabalhadora para ir além da concepção ingênua das tecnologias (VIEIRA, p., 2005). Além disso, deve servir de instrumento de luta contra a lógica perversamente instrumental que vem sendo imposta pela sociedade capitalista, que objetiva “treinar” e “adaptar” as pessoas para que melhor utilizem as tecnologias na sociedade e na escola.
Uma análise à luz dos acontecimentos históricos provará que os homens, no decurso de seu desenvolvimento histórico, não aceitaram passivamente os postulados ideológicos que lhes foram impostos pela lógica do mundo invertido das mercadorias, onde as coisas e o ter se sobrepõem ao homem. Ao contrário, isso foi bastante evidenciado na célebre afirmação de Marx, que afirma ser a história de todas as sociedades que existiram até hoje, a história das lutas de classes.
Argumenta-se, então, que esse processo somente será possível por meio da luta da classe trabalhadora, já que, conhecendo a lógica do capital, seria como esperar por um milagre que o sistema permitisse qualquer forma de controle (MÉSZÁROS, 2005). A possibilidade de superação da dimensão instrumental se dará, portanto, pelo uso crítico-dialético das tecnologias na escola.
Para tanto, torna-se essencialmente importante que os usos das tecnologias nas escolas devem ser a partir das dimensões pedagógica, didática e científica, para que, realmente, possam auxiliar os sujeitos não somente na busca de informações, mas, principalmente, para transformá-las em conhecimento. Depois, os sujeitos devem formatar uma concepção dialética das tecnologias, que lhes auxilie superar os processos alienantes que os levam a perceber somente a forma-mercadoria, a máquina, o computador.
Defende-se que os sujeitos sejam incluídos no universo digital como possibilidade de acesso à informação e ao conhecimento historicamente construído, mesmo tendo clareza que em face da sociedade excludente como a capitalista, esse processo seja dificultado sobremaneira para a classe trabalhadora. Defende-se que são os próprios sujeitos, nos seus processos de luta, que devem apontar quais políticas e tecnologias são mais adequadas à sua realidade de vida e trabalho. Todavia, se são verdadeiras as assertivas de Mészáros (2011) de que a tecnologia capitalista é pensada como propósito de reprodução ampliada do capital, também são verdadeiros os movimentos históricos de resistência e de processos contra
hegemônicos da classe trabalhadora, que luta pela garantia de direitos como a reforma agrária, a preservação ambiental, educação, saúde e tantos outros.
Partindo do pressuposto de que a tecnologia foi idealizada e construída pelo homem, que é o único que tem a capacidade de imaginar e projetar objetivamente, conforme observou Marx, Vieira Pinto (2005), buscando o caráter ontológico da tecnologia e a relação com o ser social, realiza uma análise minuciosa da essência da tecnologia, ao abordar a relação orgânica entre o homem e a natureza, e entre a técnica e o trabalho. Para o autor, a tecnologia incorpora uma dimensão ambivalente, ou seja, ela incorpora e reproduz elementos de classe e de poder, interesses e preferências culturais, mas, ao mesmo tempo, traz a dimensão dialética de possibilidade de ser o seu contrário.
Ao revelar o caráter dialético da tecnologia, o autor afirma que a tecnologia pode ser “ao mesmo tempo o esteio e a arma da dominação, na mão do senhor, e a esperança de liberdade e o instrumento para consegui-la, na mão do escravo” (VIEIRA PINTO, 2005). Isso evidencia o aspecto contraditório que envolve os processos de introdução das tecnologias na sociedade. A análise do autor indica que conceber a tecnologia apenas como uma vitória do homem sobre a natureza, acompanhada das possibilidades de satisfação das necessidades básicas, é extremamente complexo e nos remete a pensar apenas em sua suposta dimensão neutra.
Assim, analisar o conceito e a natureza da tecnologia no contexto contemporâneo é essencial, uma vez que, conforme Vieira Pinto (2005), toda tecnologia transporta um conteúdo ideológico. Como existe um interesse dos grupos dominantes em manter uma espécie de “feitiço” sobre a concepção e conteúdo das tecnologias, torna-se essencialmente importante compreender seu significado no contexto mais ampliado, a fim de lutar contra a escamoteação produzida pelo sentido ideológico dessa tecnologia.
Portanto, torna-se imprescindível estabelecer mediações para que a mercadoria capitalista, que naturalmente encaminha para o uso instrumental, seja elevada ao âmbito das suas potencialidades, sempre em direção de apontar caminhos para a superação dessa dimensão alienante no cenário da sociedade capitalista. A superação, portanto, perpassa pela mediação dialética que aponta para a superação da alienação, do modo de produção capitalista de exploração, reprodução e formatação dos sujeitos alienados ante o processo de inserção tecnológica (BUENO, 2013).
Neste aspecto, a mediação se faz essencial, mas não a mediação que favorece os aspectos instrumentais, o uso pelo uso das ferramentas, mas aquela que atribui uma dimensão pedagógica capaz de oportunizar espaços de diálogo, reflexão, sempre em direção à possibilidade de superação da dimensão instrumental das tecnologias na escola. As análises encaminham para a constatação de que “[...] a mediação não é pelas máquinas, pelos artefatos inovadores, mas pela capacidade de problematizar, questionar e dialogar com a realidade histórica dos sujeitos (BUENO, 2013). Logo, o sentido dessa mediação deve ser aquele que priorize os sujeitos como centro do processo de mudança.
Assim, reafirma-se a defesa de que o acesso ao mundo digital deve ser qualificado, pois entende-se que não se trata apenas de garantir o acesso aos recursos tecnológicos numa perspectiva instrumentalizada. Devem ser oportunizadas condições para que os sujeitos possam se apropriar dos códigos e das diferentes linguagens do mundo digital-tecnológico, e que sem eles, torna-se impossível o acesso à informação e ao conhecimento que auxilie os sujeitos a transformar sua realidade social, criando novas formas de interação e comunicação, bem como, novos espaços/tempos de aprendizagem.
Muito recentemente, as tecnologias da informação e comunicação deixaram o campo analógico e transformaram-se em formato digital. Sustentadas pela introdução da internet, estão associadas ao “[...] desenvolvimento de processos e atividades em escalas muito maiores do que antes, e de formas mais rápidas e poderosas” (KOBS, 2017, p. 39). Até pouco tempo atrás, elas faziam parte de um conjunto de tecnologias fixas, presas a ambientes, à fiação e a desktops, contudo, recentemente ganharam outra característica – a mobilidade5 (CORDEIRO, 2014). Mobilidade é um termo polissêmico e sistêmico que envolve todas as relações sociais e é caracterizada pelo modo como vive o homem, estando ligado à divisão social e territorial do trabalho e aos modos de produção da sociedade (BALBIM, 2016).
5 Lemos (2011) destaca que podemos pensar em três dimensões fundamentais de mobilidade: a do pensamento, a física e a informacional-virtual. A mobilidade do pensamento sempre esteve presente em nossas vidas na capacidade de refletir, informar e comunicar com as outras pessoas, a física possibilita-nos o deslocamento entre os diferentes lugares, e a informacional-virtual promove o acesso rápido e fácil ao fluxo de informações. Todas estão associadas, uma potencializando a outra, formando, juntas, uma mobilidade ampliada que se difunde nas múltiplas relações cotidianas.
Segundo Cordeiro e Bonilla (2015), com a chegada da internet e do celular o conceito de mobilidade ganha novo significado e passa a ressignificar todas as relações sociais devido ao acesso instantâneo à comunicação e à possibilidade imediata de responder, participar, opinar sobre as mensagens e informações recebidas. Para as autoras é:
A partir da revolução digital, da miniaturização de aparelhos e de sua conectividade com redes de comunicação, possibilitando misturar/articular o digital com o físico, criando um ambiente de tecnologia semântica e cognitiva, que começa a remodelar as nossas formas de fazer, criar, pensar e relacionar em nossa vida cotidiana, no trabalho, no lar, no lazer, na educação ou em qualquer espaço que possamos habitar (CORDEIRO; BONILLA, 2015, p. 262).
Concordamos com as autoras que as Tecnologias Digitais Móveis trouxeram uma nova dinâmica aos espaços (real e virtual), transformando os movimentos e as relações, porém, não podemos desconsiderar suas implicações nos diferentes contextos, em particular, no espaço escolar. As tecnologias móveis estão redefinindo as relações sociais e os sentidos de lugar (LEMOS, 2011) e na escola isso não ocorre de forma diferente.
Desse modo, a mobilidade deve ser problematizada, pois “[...] ela não é neutra e revela formas de poder, controle, monitoramento e vigilância, devendo ser lida como potência e desempenho” (LEMOS, 2011, p. 17), haja vista que:
Seu ar inofensivo é uma consequência deliberada da regra logística moderna que padroniza os movimentos, que elimina, o máximo possível, a estagnação. Mobilidade é adotada como padrão e passa a ser rotina. É nessa conexão entre visibilidade, padronização e rotina que se baseiam os movimentos dos bens globais. Ela tenta produzir estabilidade e previsibilidade e, assim, invisibilidade. (CRESSWELL, 2011, p. 87).
Afirma-se que a mobilidade cria uma relação complexa entre o espaço físico e o virtual de difícil percepção, pois esconde alguns movimentos contraditórios no curso das transformações sociais. Por isso, ela parece propícia à lógica de funcionamento da sociedade moderna, em razão do que Cresswel (2011) afirma ser a invisibilidade do processo basilar da produção social. Acredita-se que a mobilidade dada pelas tecnologias contribui para produzir o “invisível”, visto que proporciona, durante os fluxos de informação, movimentos ocultos que “desaparecem” e “aparecem” nos diferentes momentos das relações.
Junto a essa mobilidade, o espaço e o tempo são elementos que também devem ser problematizados, tendo em vista que as duas categorias (espaço-tempo) se transformam em suporte indispensável às formas de pensar, viver e produzir na contemporaneidade. Nesse sentido, a compreensão de ambos os termos são chaves para o cotidiano do homem.
Hoje, a mobilidade das relações representa fator indispensável ao desenvolvimento mundial, e isso somente é possível pela capacidade de o homem agir sobre o espaço e o tempo, sobre a natureza. Nesse sentido, espaço e tempo são elementos importantes, pois deles dependem as condições físicas para o capital mover-se aceleradamente.
Sendo assim, o capitalismo produzirá mudanças sempre que elas forem necessárias para a circulação de suas mercadorias. Por isso, o “tempo aniquila o espaço” como presumiu Marx, pois este, ao ser acelerado, satisfaz às condições lucrativas do mercado e destina-se, por meio da evolução dos meios de transporte e comunicação, a reduzir o processo de circulação da mercadoria. Ao capitalismo não importa a distância espacial que um produto percorre, mas a velocidade que determinado objeto leva para ser consumido.
Recentemente, com a inserção das tecnologias digitais na sociedade, há uma nova configuração social; nela, o espaço e o tempo passam a ser suprimidos pelas condições do “ciberespaço”6. São diversas as atividades possíveis, realizadas no mesmo lugar ou a quilômetros de distância; nelas entrelaçam-se os espaços (real/virtual) e anula-se o tempo, tendo em vista que as atividades podem ser realizadas no mesmo período de tempo. Transitar de um ambiente a outro, produzir, receber ou compartilhar informações, imagens, vídeos são algumas das possibilidades dessas ferramentas, quando conectadas à internet.
Infere-se que essa nova dinâmica social insere novos ritmos e formas à vida e à atividade produtiva do homem. Implica uma utilização diferenciada do espaço e do tempo, construindo novas formas de comunicação e relacionamento entre as pessoas. Nesse sentido, há, na contemporaneidade, uma forma diferenciada de produzir, vivenciar e perceber o espaço e o tempo, fruto do “novo” modelo de produção onde a
6 O ciberespaço é o novo meio de comunicação que surge da interconexão mundial dos computadores. O termo especifica não apenas a infraestrutura material da comunicação digital, mas também o universo oceânico de informações que ela abriga, assim como os seres humanos que navegam e alimentam esse universo (LÉVY, 1999, p. 16).
informação e o conhecimento constituem eixos fundamentais para satisfazer às necessidades produtivas.
Desse modo, argumenta-se que as tecnologias digitais móveis junto à internet “[...] reconfiguram a trama de relações ao redor do globo de forma diversa e contraditória, afetando dinâmicas díspares e interdependentes (economia, política, educação e cultura)” (BASTOS, 2011, p. 55). Nessa reconfiguração, o homem não está preso ao ambiente físico, mas às novas possibilidades de interação trazidas pelas tecnologias.
Dessa maneira, torna-se essencialmente relevante compreender como a escola trabalha com essa dinâmica digital. Por isso, problematiza-se: em que medida as tecnologias digitais móveis entram em cena no contexto educacional? Até que ponto produzem novas maneiras de vivenciar o espaço-tempo? Como ocasionam mudanças nas relações, na comunicação, na prática pedagógica, enfim, nas dinâmicas do cotidiano escolar? É necessário compreender se as tecnologias transformam as formas, os ritmos e as modalidades da comunicação, da percepção e da produção do conhecimento.
Identifica-se a presença dos elementos tecnológicos no contexto educacional por meio de políticas públicas educacionais propostas pelos governos, ou trazidas do ambiente social para o meio escolar, pelos alunos, professores, coordenadores e gestores. Muitas vezes, são bem recebidas, noutras não, por isso, acabam ocasionando tensão no ambiente educativo. A escola tende a ignorar as ferramentas que não são enviadas pelo governo, porém, os alunos continuam insistindo em levá- las para as salas de aulas, com maior frequência, o celular. A percepção é que esses recursos entram nas comunidades escolares e invadem um cotidiano que já tem seus próprios espaços-tempos delimitados, cronometrados, onde seus sujeitos possuem funções e tempos delimitados para estar na escola (CORDEIRO, 2014).
É imprescindível enfatizar que leis foram criadas para barrar o uso inadequado de algumas das tecnologias móveis no contexto educacional, mas elas acabam sendo burladas, pois os jovens não têm discernimento para saber quando se (des)conectar do mundo virtual. Assim, por meio dessas ferramentas, o cotidiano da escola passa a ser marcado por espaços e tempos diversificados, com uma “[...] dinâmica que mistura padronização e hierarquização de ritmos, conjuntamente com as possibilidades de negociação e alteração desses determinismos” (CORDEIRO, 2014, p. 116).
Logo, a chegada dessas ferramentas à escola, principalmente, os smartphones, propõem refletir sobre o cotidiano escolar a partir da dualidade entre o presencial e o virtual, uma vez que esse parece ter sido transformado (CORDEIRO, 2014). Cordeiro analisa que o “[...] momento em que as tecnologias digitais móveis chegam às escolas elas já causam movimento no sentido da reorganização dos cotidianos escolares” (CORDEIRO, 2014, p. 296) e acrescenta ainda que “[...] há um movimento no sentido da desconstrução dos espaço-tempos lineares, alterando as relações e maneiras de produzir conhecimentos” (CORDEIRO, 2014, p. 287).
Para compreender esse contexto nos embasamos em Lemos (2007) e no seu conceito de “territórios informacionais”, elaborado após a expansão das tecnologias de informação sem fio, para caracterizar as interfaces comunicacionais entre o espaço eletrônico e o urbano. Trata-se de um território invisível, constituído entre a interseção do espaço físico e o eletrônico. Nele, vivemos a sensação da perda de território, de apagamentos das fronteiras, não sabemos mais qual o limite das relações. Desse modo, há um processo de desterritorialização “generalizado” e agravado pela presença das tecnologias móveis, mas, ao mesmo tempo, criamos também novas territorializações, novos movimentos, estabelecemos um fluxo constante de trocas de informações nos diferentes espaços (LEMOS, 2007).
Sendo assim, parece pertinente argumentar que as tecnologias estão reconfigurando as práticas comunicacionais nos diversos ambientes sociais, inclusive no educacional, haja vista que por meio delas, os alunos navegam, mesmo estando na sala de aula, em uma variedade de páginas virtuais e aplicativos, mostrando que há diferentes formas de pensar, estar, ser, conviver, relacionar, interagir e aprender. As tecnologias digitais móveis, como afirma Lemos (2007), “reterritorializam” o espaço escolar, porém, ainda não podemos afirmar com clareza que tais meios são objetos propulsores de ensino e aprendizagem, uma vez que, na atual sociedade, elas são usadas, com maior grau de intensidade para reproduzir informação. Inseri-las com propósitos educacionais requer um debate profundo sobre quais possibilidades e limites trazem à educação.
Há de se concordar com Cordeiro (2014) que a tecnologia digital, em sua dimensão de mobilidade, cria espaços-tempos que “colocam na berlinda” a organização espaço-temporal da escola. O cotidiano educativo amplia-se e é alterado com a inserção de tais elementos, pois, por meio deles, os alunos criam novas formas de se relacionar, trocar informações e compartilhar conteúdo. Portanto, em uma
dinâmica mais fluida, alunos e professores vão criando novas formas de habitar o espaço-tempo escolar, mesmo estando em contextos diferentes.
Desse modo, é preciso compreender o papel que as tecnologias digitais móveis assumem na educação, sem perder de vista todos os efeitos causados por essa interatividade. A reflexão sobre mobilidade, tempos e espaços proporcionados pelo uso digital tecnológico indica que é necessário ampliar a realização de estudos e pesquisas sobre a temática, que ainda está em construção no Brasil. Novos estudos são fundamentais para compreender os desafios e encontrar possíveis caminhos para o uso pedagógico das tecnologias digitais móveis no campo educacional, pois, por meio delas, pode-se identificar as mediações e possibilidades de criação de novos tempos e espaços de aprendizagem nas escolas.
As análises sobre a inserção das tecnologias digitais no contexto educacional amazônico e as vivências e trabalho docente apontam para a necessidade de se buscar outras formas de inserir tecnologias no ensino, formas estas que possibilitem driblar a lógica empresarial posta à educação e criar espaços em que prevaleçam ações realmente pedagógicas, que considerem a formação do sujeito em seus múltiplos aspectos e os levem a refletir, questionar, problematizar e identificar os anseios de inserir recursos tecnológicos na escola.
Mas, para que isso ocorra, é imprescindível que a tecnologia seja analisada e interpretada de forma crítica, sob a proposição de desvendar os anseios históricos e sociais que cercam a produção tecnológica nessa sociedade. Os relatos docentes expõem exaustivamente essa contradição, evidenciando que o uso do celular na escola pode contribuir com o processo educativo, mas também ocasionar alguns problemas.
Eu acho, que quando ele é utilizado de forma para a gente colocar o conteúdo para o aluno, ele vem ajudar muito. Agora, tem momentos que ele prejudica. A gente não tem controle. Aqui as nossas salas são todas superlotadas, então, a gente vai dizer que a gente tem domínio totalmente de sala? Eu posso dizer que uma hora ou outra algum aluno vai pegar. Aí, o que que a gente faz? Pede para eles pararem de utilizar. É isso que a gente pode fazer. A gente não pode estar arrancando celular, pegando celular, a gente fala que não pode trazer celular para dentro da sala de aula (PROFESSORA P1).
Eu acho assim, para mim, o celular contribui. Ele causa problema quando eu não consigo frear o limite para o que é permitido ou não. [...] Para mim, ele traz mais consequências positivas do que negativas. Não que não apareçam as negativas. Aparecem. Porque num momento que é para eles discutirem num grupo, um ou outro aluno está ali conversando no WhatsApp [...] Mas aí, até nesse ponto a gente perceber que o nosso aluno está utilizando de maneira errada é pra que isso aconteça pra que a gente possa orientá-los no que é possível de acordo com aquele contexto ali da situação de como usar o celular. [...] Mas, é o risco que a gente assume, né! (PROFESSORA P2).
Essa é uma grande pergunta, porque se o celular... eu, como professor, para mim trouxe grande avanço. Porque se você precisar, opa! Vamos aqui [no celular] tirar a dúvida. Porém, para o alunado talvez como eles não têm a noção de como utilizar, talvez, atrapalhe, provavelmente, atrapalha (PROFESSOR P4).
Olha, eu fico em dúvida. Eu não falo que trouxe mais problemas, porque uma inovação tecnológica, ela tem os pontos positivos. Ela depende de como se utiliza e como se conversa com o aluno para usar ou não essa metodologia em sala de aula (PROFESSORA P6).
As falas reforçam o posicionamento de Selwyn (2017) sobre o uso das tecnologias na educação, ao demonstrarem que o celular, enquanto recurso pedagógico, não é um problema à educação, mas seu uso é problemático, pois depende da forma como é operacionalizado e dos anseios que rodeiam sua introdução na prática pedagógica. As opiniões corroboram a ideia de que o uso do celular de forma orientada pode ser aliado ao processo educativo, mas, do contrário, pode prejudicar alunos e professores quando desvia o foco das atividades pedagógicas.
É curioso, nos relatos, saber que os docentes afirmam ser o celular uma situação-problema apenas para os alunos, mas não para os professores, pois, segundo a categoria, os docentes têm propriedade para manusear a ferramenta, já os alunos “[...] não têm a noção de como utilizar” (PROFESSOR P4). Nesse sentido, é necessário frisar, e os depoimentos evidenciam isso, a importância de os usos das tecnologias digitais móveis na educação serem mediados e planejados para que todos tenham uma formação crítica sobre as ferramentas tecnológicas.
Os depoimentos apontam a ambiguidade da tecnologia na educação e reforçam a contradição que as ferramentas tecnológicas assumem na sociedade capitalista. O caráter dialético apresenta-se, quando os docentes argumentam que o celular pode trazer consequências positivas, mas também negativas à ação humana de educar. Desse modo, é importante reafirmar que a análise da tecnologia deve
começar pelo modo como as pessoas se apropriam dos aparatos tecnológicos nos diferentes ambientes sociais.
Esse aspecto ambivalente da tecnologia é que permite interpretar as possibilidades e os limites do uso tecnológico na educação, isso porque, segundo Vieira Pinto (2005), na sociedade capitalista, essas ferramentas, na maioria das vezes, assumem uma dupla função: por um lado, elas podem operar dentro das relações sociais humanizadas, mas, por outro, podem estar a serviço de outros interesses. Porém, que fique claro, o aprisionamento não está nas tecnologias, mas sim nas estruturas sociais e econômicas em que estão imersas e acabam sendo inscritas em sua materialidade.
Desse modo, pode-se inferir que a problemática está relacionada à maneira como se dá o uso dessa tecnologia na sala de aula, já que os alunos têm “acesso” e fazem uso do celular no espaço escolar. Esse uso, pessoal ou pedagógico, ocasiona desdobramentos ao processo educativo dos alunos e está condicionado a aspectos favoráveis e desfavoráveis do ensino-aprendizagem. Os depoimentos, a seguir, são pertinentes e retratam as consequências desse uso durante as aulas.
Os meus alunos, quando vão me dar um texto, são todos médicos. A grafia deles é terrível, então, quando a gente termina de preencher o quadro eles falam: pera aí professor! Aí eles vão e batem foto e estudam por aquilo. Então, eles já não têm o hábito de estar escrevendo. [...] A grafia é ruim, a gramática é terrível, a acentuação [...] e geralmente, esses alunos que ficam mexendo no celular são os que têm as piores notas, porque eles se distraem muito com aquilo. Agora, ontem eu passei uma recuperação para uma turma e uma aluna [...] além de tirar vermelho, a nota é muito baixa, porque ela senta no canto, coloca a bolsa e pega o celular (PROFESSOR P4).
Eu observo que eles não prestam muita atenção na explicação nas aulas, as notas deles diminuem [...] têm muitos que têm nota baixa. A minha disciplina com eles é arte e têm muito dois, três, cinco e meio [...] eles pensam que artes é fácil e por conta disso não prestam atenção. Conversar pessoalmente eles conversam pouco, mas no celular eles ficam bastante e isso atrapalha o rendimento deles (PROFESSORA P6).
Porque eles acabam não tendo atenção total para aula, ficam assim desligados e querem ver o celular, aí alguns acabam vendo mesmo e aí a gente chama atenção, às vezes, fica um clima até desagradável, às vezes, existem problemas quando realmente a gente chama atenção e tira o celular deles. Existe essa política também, na maioria das escolas como é proibido na sala de aula, quando não se tem um fim pedagógico, de retirar de levar para coordenação, pra direção.
Então, tem todo um transtorno aí. Mas, a falta de interesse é só reforçada pelo uso do celular (PROFESSOR P8).
Ao que se pode averiguar pelos depoimentos, o uso do celular na sala de aula causa sérias implicações ao processo de ensino-aprendizagem dos alunos. Os professores evidenciam em suas falas que o uso da tecnologia resulta em processos inconvenientes à relação professor-aluno, provoca falta de atenção nas aulas, atrapalha o rendimento e ocasiona notas baixas, modifica a grafia (devido à ausência da escrita) e transforma as formas de comunicação entre os sujeitos.
Os usos diversos que os alunos fazem dessa tecnologia ocasiona tensão ao espaço educativo pelas outras maneiras de estar, ser e se comunicar (CORDEIRO, 2014). Há uma dualidade sobre o que se passa na escola e o contexto compartilhado nas redes, pois esses sujeitos não almejam ficar desconectados dos acontecimentos à sua volta e continuam manuseando suas tecnologias móveis no espaço escolar. A distração é resultado desse intenso “convívio” digital, que está ancorado nas inúmeras notificações que chegam instantaneamente nos aparelhos celulares dos alunos.
Consequentemente, esse uso acaba causando desordem, como é evidenciado no relato do Professor P8: “[...] fica um clima até desagradável, às vezes, existem problemas quando realmente a gente chama atenção e tira o celular deles”, e reforça o uso do autoritarismo (MARTÍN, 2014), quando retira, contra a vontade dos alunos, suas tecnologias pessoais. O clima desagradável, exposto pelo professor P8, surge dessa oposição de vontades e se converge em uma maior repressão por parte da direção e dos professores sobre os alunos, que, timidamente, recolhem suas ferramentas para utilizarem em momentos mais “calmos”.
Outra consequência destacada nos depoimentos refere-se à falta de atenção nas aulas, que resulta na redução do desempenho do aluno nas aulas e em notas baixas. Kobs (2017) aponta, em sua tese, que um maior uso dos dispositivos móveis reflete em uma ligeira redução na nota, motivado pelo pouco aproveitamento dos dispositivos no processo de ensino-aprendizagem. A descoberta pode estar relacionada ao fato de os adolescentes utilizarem seus dispositivos móveis, sobretudo para o lazer, e pouco para pesquisas em assuntos pertinentes ao conteúdo escolar.
Uma terceira implicação, destacada pelo Professor P4 está relacionada à grafia dos alunos. É perceptível, no depoimento do docente, que o uso da tecnologia converge para o empobrecimento da escrita dos jovens, pois costumam utilizar suas tecnologias nos diversos momentos da aula, deixando de escrever as atividades para
registrá-las em imagem fotográfica. A digitalização, a mobilidade, a possibilidade de armazenamento e o acesso momentâneo à informação corroboram para que os estudantes deixem de lado o papel e a caneta e utilizem seus smartphones para “guardar” conteúdo escolar.
Por outro lado, a resposta do Professor P4 e da Professora P6 permite pensar que o contexto vivido nas escolas está sendo transformado por novos hábitos comunicacionais que valorizam o aspecto digital e a mobilidade das informações, deixando de lado a oralidade e a escrita. Essas ferramentas, conforme o relato docente, ao adentrarem o espaço da sala de aula, começam a influenciar a forma como os alunos lidam com as informações veiculadas nesse espaço, como as armazenam para consultas posteriores e como estudam, pois, como afirma o Professor P4, “[...] quando a gente termina de preencher o quadro eles [...] vão e batem foto e estudam por aquilo”.
Observa-se que a introdução do aparelho celular na escola possibilitou um novo modo de lidar com as informações recebidas na sala de aula, onde o acesso aos conteúdos trabalhados ocorre de maneira imediata e instantânea. Entende-se, assim como Subtil (2013, p. 408), que essa realidade “[...] propõe um novo significado aos momentos do processo comunicacional – produção, circulação e recepção – enfatizando as tecnologias por suas características mediadoras que modificam o emissor, o receptor e a mensagem”. Evidentemente que tais mudanças não ocorrem por acaso, pois estão ligadas a um contexto maior e têm como pano de fundo a estrutura econômica que determina o grau e as mudanças que devem ocorrer na sociedade.
Corroboramos o pensamento de Subtil (2013) acerca dessas considerações que nos alertam, enquanto educadores, para o fato de que nossos espaços escolares estão sendo bombardeados pelos avanços tecnológicos e neles estão presentes as diferentes possibilidades de oralidade, escrita e interação que hoje conectam crianças, jovens e adultos mundo afora. Assim, se levarmos em consideração essas mudanças, não de forma absoluta, mas contextualizando-as e atribuindo a elas sentido pedagógico, pode-se afirmar que professores devem se voltar para o estudo e para a formação em tempos de tecnologias informacionais.
Nosso grande desafio, hoje, é fazer com que essas informações digitais, que chegam até nossos alunos, não sejam simplesmente armazenadas em seus dispositivos móveis e compartilhadas intencionalmente, mas que sejam apropriadas e
transformadas em conhecimento sobre a realidade em que estão inseridos. Para isso, características pedagógicas devem ser pensadas de modo a potencializar, não somente o trabalho docente, mas que possibilitem o uso crítico e criativo da tecnologia (PRAZERES, 2016).
Ao examinar o espaço-tempo das escolas, a partir da inserção das tecnologias digitais móveis, identificou-se que a tecnologia vem interferindo nas relações, na forma de comunicação e facilitando o diálogo entre as categorias investigadas, conforme apresentado nos depoimentos a seguir:
O que eles não têm coragem de falar para gente presencial, eles passam mensagem: “Professora, eu não entendi sua aula hoje. Teria como a senhora me passar algum link de algum material pra estudar?” Eu recebo muitas mensagens, então, assim, a relação professor-aluno teve uma aproximação maior (PROFESSORA P1).
Sim, principalmente, pelo WhatsApp: a gente cria grupos quando tem algum trabalho específico, [por exemplo] quando teve a gincana da escola. Então, através do grupo, como a gente não tem tempo de se reunir, aí a gente decide as ações pra planejar como é que a gente vai fazer. Então, fica mais fácil essa conversa a distância (PROFESSORA P5, grifos nossos).
É visível nos depoimentos que o adentramento do celular na escola rompeu com a barreira física de se estar no espaço escolar para manter o diálogo, tirar dúvidas, questionar e solicitar conteúdo aos professores. Os limites demarcados pelos muros escolares foram ultrapassados e, a qualquer momento, com uma “simples” mensagem, o aluno pode solicitar informações ao docente e o docente, ao aluno. Pelo exposto, essa interação é frequentemente utilizada, como relatam as Professoras P1 e P5.
Assim, observa-se que, após a inserção das tecnologias digitais móveis na escola, professores e alunos deixaram de estar presos a tempos e espaços fixos e começaram a “navegar” pelas novas possibilidades trazidas pelos aparatos tecnológicos. Houve uma mudança significativa nas práticas de comunicação, convivência e interação entre os sujeitos, desencadeando reflexos no ato educativo. O momento aula deixou de ser o único lugar onde alunos e professores trocavam informações. A tecnologia possibilitou criar um ambiente remoto, onde a escola possui vínculos invisíveis com outros espaços. Os sujeitos que nela frequentam dão vida e movimento a essas conexões, por meio das formas que interagem e alimentam esses
espaços. Os conteúdos envolvidos variam e são transmitidos constantemente por trocas de mensagens, fotos, vídeos e documentos compartilhados ou recebidos.
Cordeiro (2014), ao analisar o espaço-tempo da escola com a chegada das tecnologias digitais móveis, avalia que esse território foi alterado e novos espaços- tempos de comunicação e interação foram criados pelos jovens, gerando uma multiplicidade espaço-temporal nesse ambiente. Para a autora, são espaços e tempos híbridos que “colocam na berlinda” a organização da escola, pois, ao mesmo tempo em que os alunos estão enviando mensagens ou entrando nas redes sociais, estão tirando foto do conteúdo que o professor passou no quadro ou realizando pesquisas sobre os conteúdos trabalhados em sala.
A presença crescente da tecnologia digital no cotidiano é, assim, vista como algo que derruba barreiras tradicionais entre lugar/espaço; produção/consumo; atos isolados/simultâneos; tempo síncrono/assíncrono; indivíduos/instituições (SELWYN, 2017). Observa-se, portanto, que o espaço-tempo da escola está sendo expandido para além da sala de aula, para outros espaços-tempos, podendo chegar tanto nas residências dos alunos quanto em qualquer outro espaço onde possam estar com seus celulares, tirando dúvidas ou trocando ideias e informações em rede.
A narrativa da professora parece acenar nessa direção:
Eu tenho uma equipe que tá produzindo o vídeo sobre regência não verbal e elas estão mandando vários vídeos pra ver se tá bom, se é assim para eles fazerem, então, olha como é interessante, né. A menina está aonde? Não sei. Elas podem estar lá no grupo de discussão sobre o trabalho e eu estou aqui num outro ambiente e eu posso dar assistência para elas. E o resultado do trabalho delas vai sair mais produtivo do que se, por exemplo, eu não tivesse o celular pra gente se comunicar. Então, olha como é fantástico! (PROFESSORA P2).
Verifica-se que uma nova interface é criada entre zona real-virtual, para a realização de atividades escolares e ampliação da comunicação entre professor-aluno e vice-versa. Nessa interconexão, mora uma nova forma de construção de saberes e conhecimentos que não se dá no ambiente escolar pela “timidez do aluno” (PROFESSORA P1) e das formas que a escola trabalha com esse recurso, negando- o na maioria das vezes. A tecnologia, nesse caso, possibilita que o ensino e a aprendizagem se prolonguem para além do ambiente escolar.
Contudo, cabe enfatizar que a ação informada pela docente não faz parte de uma prática orientada, mas despretensiosa que “[...] se dá nas fendas, entre aqueles
praticantes mais inteirados que entram nas redes e chamam o professor, que perguntam, que buscam estabelecer essa relação fora do espaço formal da escola” (CORDEIRO, 2014, p. 230). Pelo relato da docente, o uso da ferramenta tecnológica apresenta-se como uma possibilidade de interação pedagógica sobre o trabalho escolar, porém observa-se que a atividade parte de ações fragmentadas e individualizadas que se dão a partir de iniciativas solitárias dos alunos.
A simples orientação seletiva atribuída pelo professor a um ou dois grupos de alunos não é suficiente para que esse ato se efetive como prática pedagógica. É preciso, acima de tudo, que essas atividades tenham intencionalidade pedagógica e se desenvolvam a partir de ações planejadas orientadas a atingir objetivos. Além disso, é necessário que o processo de interação atenda a todos os sujeitos envolvidos no ato educativo e não somente aos que solicitarem ajuda. A mediação aqui é instrumento central para tornar possível o processo educativo e atribuir dimensão pedagógica ao uso tecnológico, isso porque a lógica de uso da tecnologia no ensino deve fugir do mero consumo de informações.
Portanto, há de se ter o cuidado de “[...] não estender o conceito de mediação a pura utilização do recurso ou mesmo a mediação dependente do recurso, depositando no recurso tecnológico a capacidade de mediação que deve ser depositada no sujeito como meio social” (BUENO, 2013, p. 304). Para Bueno (2013), deve-se colocar o sujeito professor no centro do processo de mediação, não o instrumento máquina, considerando o trabalho pedagógico como forma de mediação, e não o instrumento, a máquina. A autora deixa claro que a máquina jamais deve ser o centro em uma relação com uso de instrumentos tecnológicos. Ela deve ser vista, desse modo, como um ator coadjuvante, que interage com os demais personagens para compor uma cena, mas tendo como principal protagonista o homem.
Considerando as novas possibilidades de comunicação e interação, os dados indicam que o celular é um importante instrumento para a escola. O que não parece claro para os sujeitos são os usos pedagógicos dessa ferramenta na educação, as implicações dos processos digitais na aprendizagem, no ensino, na construção do conhecimento, como lidar com as relações tecidas por meio desses aparelhos e como ter o autocontrole sobre o tempo e espaço de uso no que se refere à hora de enviar ou de responder mensagens, acessar redes sociais, compartilhar arquivos, dentre outras atividades possíveis. De todo modo, não se pode negar a positividade desse
meio comunicativo, mas há a necessidade de questionar sua inserção nas relações educativas.
Na escola, a inserção do aparelho móvel pessoal e as novas relações projetadas em rede, por via dele, estão sendo inseridas não só entre professores e alunos, mas nas diversas relações tecidas nesse ambiente, como evidencia o depoimento a seguir:
A gente tem na escola o grupo de WhatsApp. Inclusive eu fui descobrir que têm vários grupos. Tem o grupo só dos professores, só dos coordenadores, só dos diretores, então, para você ver só o nível de relação que o celular proporciona. [...] Ora, nós temos grupos de WhatsApp que é aonde a gente sabe que vai ter reunião, que é quando a gente sabe que vai ser um simulado, porque não dá para o diretor reunir todo mundo ao mesmo tempo numa sala. Por exemplo, quando tem reunião sempre falta um, dois, três e no grupo de WhatsApp ele põe uma informação e todo mundo fica sabendo da informação. [...] Então, eu acho assim, que há essa interação e isso acaba repercutindo em nossa sala de aula (PROFESSORA P3).
A presencialidade deixou de ser um fato necessário para efetuar determinadas atividades da escola e o mundo digital passou a influenciar no trabalho e nas formas de relacionamento interpessoal dentro da escola. Veja que a fala docente expõe traços significativos de como o ambiente virtual está adentrando o contexto escolar e transformando o espaço de trabalho, o tempo em que se realizam as atividades e as relações, incluindo aqui as reuniões periódicas realizadas entre os diferentes grupos de profissionais e os vínculos pessoais entre os funcionários. Dessa forma, a rede comunicativa criada entre os agentes escolares passa a permitir que o trabalho realizado no espaço físico da escola vá além do momento presencial e ultrapasse os limites espaço-temporais da escola.
Os grupos criados em rede permitem que a escola e o trabalho nela realizado se reproduzam em outros espaços e tempos, o que demonstra que a rotina escolar foi metamorfoseada para estar além do espaço físico, e tempo e espaço foram modificados ou reeditados a partir da inserção da tecnologia móvel. Há, portanto, a desconstrução dos espaço-tempos lineares e a construção de “novas” relações e maneiras de produzir conhecimento (CORDEIRO, 2014) e trabalho. Porém, cabe-nos questionar até que ponto essa nova relação está contribuindo com o desenvolvimento das atividades escolares.
As narrativas docentes expõem claramente que a tecnologia digital móvel permite criar uma “nova” dinâmica escolar que influencia na forma de comunicação e no relacionamento professor-aluno, aluno-professor e demais categorias profissionais que compõem o núcleo escolar, mas, de outro lado, invisibilizam, pelas positividades enfatizadas, outras relações tecidas nos espaços-tempos real/virtual. As diferentes situações vividas na escola são exteriorizadas pelo ambiente virtual, que amplifica a rotina escolar para além do que é estabelecido. Com isso, a relação real-virtual cria uma ruptura da linha divisória entre tempos e espaços de produção e reprodução das tarefas/atividades escolares, levando o trabalhador professor a não saber ao certo onde começa e onde termina seu tempo de trabalho. Essa avaliação permite crer que tempo e espaço de trabalho docente são rarefeitos pela dinâmica digital.
Assim, em tempos de tecnologias digitais e móveis, o celular e a sua fábrica de aplicativos têm-se mostrado excelentes meios de intensificação da jornada de trabalho, quando nenhum trabalhador prescinde viver sem essa tecnologia. Desta feita, torna-se relevante analisar o trabalho docente como inserido em uma totalidade maior, ou seja, no contexto da reestruturação produtiva do capital, que vem sendo implementada desde a década de 1970 e tem forte repercussão no trabalho e na formação docente. Ressalta-se que esse processo tem relação direta com a nova morfologia do trabalho, a qual exige um trabalhador “polivalente e multifuncional”, alinhado com as perspectivas da Sociedade do Conhecimento. (ANTUNES, 2008).
Não há dúvida de que o trabalho docente é afetado, em cheio, por essas mudanças, que forçam o ritmo da produção, incrementam as tarefas a serem realizadas, instituem horários atípicos, com aceleração no desempenho das atividades e o aprofundamento de uma dinâmica produtivista-consumista. (MANCEBO; MAUÉS; CHAVES, 2006). Em consequência da adoção das perspectivas gerenciais no campo da educação, ocorre uma naturalização dos princípios neoliberais e capitalistas, em detrimento da formação humana.
As condições comunicativas da sociedade atual reforçam a necessidade da comunicação instantânea e implicam que trabalhadores e trabalhadoras fiquem conectados a seus trabalhos mais de oito horas por dia. No caso do espaço escolar, há uma ausência de tempo livre quando afirma que “para dar conta de tudo, fazemos no presencial e no virtual”. (PROFESSORA P5; P4).
Fidalgo, Oliveira e Fidalgo (2009) analisam o trabalho docente, frente às novas exigências do processo de globalização e a reestruturação tecnológica de produção e
seus desdobramentos na educação, retratando que a profissão docente sofre impactos e intervenções a partir dessa nova configuração social que afeta diretamente em sua forma de trabalho, uma vez que são obrigados a se adequar e a incorporar habilidades e competências ao manuseio das TICs em sua atividade laboral. Esse processo, segundo os autores, ocasiona algumas consequências à profissão docente, entre elas, a intensificação do trabalho relacionada principalmente à sobrecarga de trabalho difundida pela falta de tempo dos professores para exercer determinadas atividades escolares.
Além disso, Antunes (2018) afirma, ao realizar um apanhado fotográfico sobre o trabalho na sociedade digitalizada e tecnologizada, que está florescendo uma nova era de trabalho precário escamoteada pelo trabalho on-line e digital. O autor apresenta um mosaico excepcional do mundo do trabalho real na era do trabalho virtual, expondo experiências de trabalho excessivo nas empresas de fabricação de smartphones e seus assemelhados e conclui que as tantas cenas presentes no universo do trabalho fazem desmoronar um labor invisibilizado que floresce em uma nova modalidade de trabalho: o escravo digital.
Em meio a essa nova formatação do trabalho, novas formas de exploração surgem para atender às particularidades do universo informatizado e evidencia, claramente, o que Marx assinalava, em meados do século XIX:
O que diferencia as épocas econômicas não é “o que” é produzido, mas “como”, “com que meios de trabalho”. Estes não apenas fornecem uma medida do grau de desenvolvimento da força de trabalho, mas também indicam as condições sociais nas quais se trabalha (MARX, 2013, p. 257).
Nessa passagem, Marx salienta que a transformação do trabalho e dos meios de trabalho tem consequências diretas às condições sociais, assim como estas têm para os processos de produção. Isso significa que, se as condições sociais mudam, mudam com elas os instrumentos e as formas de trabalho, e vice-versa. Logo, à medida que a sociedade é transformada, transformam-se com ela as tecnologias e, junto a essa transformação tecnológica, também se transformam as relações sociais. Esse recorte, extraído do livro primeiro d’O Capital, é pontual e, surpreendentemente, elucida como o avanço tecnológico segue as tendências da transformação histórico-social e, como essa mutação atua na incrementação de novas formas de trabalho e na criação de meios de produção. Portanto, há uma relação
dialética que se desenvolve de forma mútua, onde ambos necessitam um do outro para proliferarem. Entretanto, esses avanços não se dão por acaso, ao contrário, acompanham a escala de desenvolvimento vigente para atingir a determinados interesses gerados pelo sistema sociometabólico do capital.
Dessa forma, na era das tecnologias digitais móveis, o processo de trabalho docente está sendo ressignificado e, com ele, as formas de extração de mais trabalho para atender às novas demandas capitais. Antunes (2018, p. 44) argumenta que atualmente estamos presenciando “[...] o advento de novas formas de extração do mais-valor também nas esferas da produção não material”, tendo nas TICs seu flagelo-motor. Essas novas engrenagens reproduzidas pelo capitalismo informatizado, ao contrário da eliminação completa do trabalho pelo maquinário informacional-digital, estão levando ao extremo os níveis de superexploração da classe trabalhadora.
Na perspectiva de Frigotto (2006, p. 134) isso ocorre porque a ideia básica é que o capital “no seu processo de acumulação, concentração e centralização pelo trabalho produtivo vai exigindo cada vez mais, contraditoriamente, trabalho improdutivo, como se fossem verso e anverso de uma mesma medalha”. Para o autor, a improdutividade da escola constitui uma mediação necessária e produtiva para a manutenção das relações capitalistas de produção criando, portanto, vínculos da educação com a estrutura econômico-social capitalista.
A abordagem apontada por Frigotto expõe a necessidade de conhecer a caracterização das diferentes formas de trabalho e de trabalhador na divisão social do trabalho, tomando como fundamento as diferentes configurações da sociedade em discussão, pois é essa última que desenha as múltiplas formas de trabalho na fábrica ou em qualquer outro setor do sistema produtivo. Esse processo, que tem como resultante uma crescente inter-relação entre trabalho material e imaterial, parece indicar uma necessária complementaridade entre ambos em uma mesma totalidade na visão do trabalho e do trabalhador coletivo.
Pelo que foi exposto até aqui, a inserção de tecnologias digitais móveis na escola não está desarticulada do âmbito social e nos oferece pistas pertinentes do porquê o espaço escolar e o trabalho docente estão sendo submetidos a questões comunicacionais/informacionais mediadas por modernos instrumentos tecnológicos. Se, por um lado, os smartphones possibilitam uma melhor comunicação e interação entre os agentes escolares, por outro, deve ser considerado como produtor de mais trabalho, ao intensificar a carga horária de labor docente e fazer com que os
professores disponham de seu “tempo livre” para continuar resolvendo questões relacionadas à escola, porém, esse tempo extra de trabalho digital não é pago, é trabalho excedente.
Nosso desafio, enquanto educadores, é desvendar essa rede de relação complexa, cercada por grupos de interesses políticos e econômicos, para pensar formas outras de apropriação das tecnologias digitais móveis na educação. Nesse sentido, antes de utilizá-la em qualquer ato educativo, é imprescindível levantar a natureza política da relação educação e tecnologia, para refletir “como” e “por que” tecnologias estão sendo usadas em contextos educacionais. Vista por esse prisma, essas inovações, ao serem introduzidas na escola, requerem um exame crítico sustentado com análises mais detalhadas e ricas sobre os aspectos positivos, negativos a toda e qualquer nuance intermediária (SELWYN, 2017).
Desse modo, é imprescindível uma análise mais criteriosa dos recursos tecnológicos na educação com o propósito de desvendar a conexão dessas máquinas com o contexto mais amplo e com o modo de produção capitalista, pois é desvelando a lógica incorporada nessas máquinas e seus elementos históricos e sociais que se pode pensar na superação das condições materiais e na possibilidade de contribuição ao ensino.
As análises realizadas apontam para a necessidade de superação da lógica instrumentalizada das tecnologias na sociedade e na escola. No campo das relações, evidenciou-se que o celular transforma o ritmo e as modalidades de comunicação e interação na escola, propondo pensar o cotidiano escolar entre o ambiente presencial e o virtual. As análises apontam que, muito embora o uso do aparelho celular seja proibido nas escolas estaduais, ele vem criando e alterando as formas que aluno/aluna e professor/professora se relacionam um com o outro e com a informação e o conhecimento.
As análises encaminham, então, para a constatação de que, após a inserção das tecnologias digitais móveis na escola, professores e alunos/alunas deixaram de estar presos a tempos e espaços fixos; começam a “navegar” pelas novas possibilidades trazidas pelos aparatos tecnológicos para trocar informações e conteúdos. As análises permitem constatar ainda que o momento da aula deixou de
ser o único lugar onde esses sujeitos trocam informações, uma vez que a tecnologia possibilitou criar um ambiente remoto entre a escola e os outros espaços. Nesse ambiente invisível, são os sujeitos que dão vida e movimento a essas conexões, por meio das formas que interagem e alimentam esses espaços. Os conteúdos envolvidos variam e são transmitidos ou recebidos, constantemente, por trocas de mensagens, fotos, áudios, vídeos e documentos compartilhados.
Os dados possibilitam constatar, portanto, que o espaço-tempo da escola está sendo expandido para além da sala de aula, para outros espaços-tempos onde o aluno/aluna ou professor/professora possa estar conectado tirando dúvidas ou trocando informações em rede. Verifica-se, assim, que uma nova interface é criada, entre zona virtual e real, para a realização de atividades escolares e ampliação da comunicação entre professor-aluno e aluno-professor. Nessa interconexão, mora uma nova forma de construção de saberes e conhecimentos que não se dá no ambiente escolar pela “timidez do aluno” e pelas formas que a escola trabalha com esse recurso, negando-o, na maioria das vezes. A tecnologia, nesse caso, possibilita que o ensino e a aprendizagem se prolonguem para além do ambiente escolar.
Observa-se, ainda, que essa transformação se espalha também sobre as demais relações desenvolvidas na escola e no trabalho docente. Através das análises, identifica-se que a presencialidade deixa de ser um fato necessário para efetuar determinadas atividades da escola e o mundo digital passa a influenciar no trabalho e no espaço-tempo em que se realizam, nas relações entre gestão, coordenação, professores e alunos, incluindo aqui as reuniões periódicas realizadas entre os diferentes grupos de profissionais e os vínculos pessoais entre os funcionários.
No âmbito do trabalho docente, as análises realizadas possibilitam constatar que a rede comunicativa criada entre os agentes escolares, por meio de aplicativos de mensagem instantânea, permite que o trabalho realizado no espaço físico da escola vá além do momento presencial e ultrapasse os limites espaço-temporais da escola. Os grupos criados em rede possibilitam que a escola e o trabalho nela realizado se reproduzam em outros espaços e tempos, o que demonstra que a rotina escolar foi metamorfoseada para estar além do espaço físico e tempo/espaço foram modificados ou reeditados a partir da inserção da tecnologia móvel pessoal.
É interessante pontuar que apesar das inúmeras possibilidades criadas pela inserção das TICs no cotidiano escolar, elas ocorrem no contexto de reestruturação produtiva do capital onde a intensificação do trabalho tem sido uma estratégia adotada
pelo capital para aumento de suas taxas de lucro. Por outro lado, o trabalho docente também vem sendo intensificado onde passa-se a exigir novas competências e habilidades à profissão docente. Tais análises evidenciam os sérios desafios a serem enfrentados pelos sujeitos, no contexto escolar brasileiro e amazônico.
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Resumo3
Larissa de Nazaré Carvalho de Aviz2
Resulta de uma pesquisa que teve como objetivo analisar o processo de escolarização no Ensino Médio de jovens filhos dos trabalhadores pertencentes ao assentamento Palmares II, na Amazônia paraense. Versa em sua fundamentação teórica sobre os estudos de Caldart (2007), Laureano (2007) e Grzybowski (1991), tendo como referencial o materialismo histórico-dialético. Demonstra que o Ensino Médio conquistado pelo MST vem perdendo sua identidade, pois o currículo proposto fragiliza os saberes constituídos na vivência do movimento social.
Palavras-chave: Movimento dos Trabalhadores Sem Terra; Ensino Médio; Juventude da classe trabalhadora.
MOVIMIENTO SOCIAL LA EDUCACIÓN: EN LA ENSEÑANZA MEDIA DE LA ESCUELA CRESCENDO NA PRÁTICA
Resumen
Resulta de una investigación dirigida a analizar el proceso de escolarización en la escuela secundaria de niños de trabajadores pertenecientes al asentamiento de Palmares II, en la Amazonía de Pará. Discute en su fundamento teórico los estudios de Caldart (2007), Laureano (2007) y Grzybowski (1991), utilizando el materialismo histórico-dialéctico como referencia. Demuestra que la escuela secundaria ganada por el MST ha estado perdiendo su identidad, ya que el plan de estudios propuesto debilita el conocimiento constituido en la experiencia del movimiento social.
Palabra chave: Movimiento de Trabajadores Sin Tierra; Escuela secundaria; Juventud de clase trabajadora.
SOCIAL MOVEMENT AND EDUCATION: IN HIGH SCHOOL OF THE SCHOOL CRESCENDO NA PRÁTICA
Abstract
Results from a research that aimed to analyze the process of schooling in high school of young children of workers belonging to the Palmares II settlement, in the Amazon of Pará. It’s theoretical foundation is based on the studies of Caldart (2007), Laureano (2007) and Grzybowski (1991), using historical-dialectical materialism as a reference. It demonstrates that the High School won by the MST has been losing its identity, as the proposed curriculum weakens the knowledge constituted in the experience of the social movement.
Keyword: Landless Workers Movement; High school; Working class youth.
1Artigo recebido em 29/04/2020. Primeira Avaliação em 30/05/2020. Segunda Avaliação em 04/06/2020. Aprovado em 23/08/2020. Publicado em 25/09/2020.
DOI: DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v18i37.42430.
2 Professora da Universidade do Estado do Pará (UEPA); Mestra em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Pará (PPGED/UFPA); Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Trabalho e Educação da Universidade Federal do Pará (GEPTE/UFPA). E-mail: larissaviz@gmail.com ORCID: 0000-0002-5255-545X.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/1981446092851473
3 Uma primeira versão deste trabalho foi apresentada no VI Colóquio Nacional Trabalho, Educação e Resistência em comunidades e povos tradicionais, realizado no período de 06 a 08 de novembro de 2019, no Campus Universitário do Baixo Tocantins, da Universidade Federal do Pará (UFPA), sendo esta uma versão revista e ampliada.
Movimento social e a educação na Amazônia Paraense: o Ensino Médio da Escola Crescendo na Prática é o título deste artigo, que nasce com a finalidade de apresentar, a partir de uma perspectiva dialética, o sentido do Ensino Médio para os jovens da classe trabalhadora do assentamento Palmares II.
As reflexões aqui apresentadas fazem parte da pesquisa de mestrado (2014- 2016) que teve como objetivo analisar a integração/fragmentação entre os saberes sociais produzidos por jovens do assentamento Palmares II e os conhecimentos escolares, na perspectiva da luta de classes, no contexto educacional do Ensino Médio da Escola Crescendo na Prática, no município de Parauapebas (PA).
A Escola Crescendo na Prática e, dentro dela, o Ensino Médio constituem o espaço da educação escolar de jovens e adultos do assentamento Palmares II, no Sudeste do Pará. Reconhecido, entretanto, que, nesse lugar, as características que demarcam o movimento social – neste caso, o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) – para além do campo formal, as práticas educativas evidenciadas pela produção e formação dos sujeitos encontra campo fértil para a conjugação.
Sobre isso, Arroyo (2002) compreende que a escola não é o único espaço que detém a educação, assinalando que o meio social contribui proficuamente para a formação do indivíduo e, ainda, que é por meio das relações sociais que se constituem as apropriações dos saberes.
Dessa maneira, é possível compreender a distinção entre a educação entendida enquanto instrução e a educação entendida enquanto produção- formação dos sujeitos, no que tange à construção da identidade de uma classe, uma movimentação que cerca a ação escolar como elemento que permite serem acrescentadas novas dimensões às ações desenvolvidas, e que, por sua vez, enriquecem as anteriores, atendendo aos interesses de classe (SAVIANI, 1996).
Ressaltamos que a Escola Crescendo na Prática, entre 2005 e 2013, apresentava sua base curricular vinculada ao Ensino Médio modular, e só em 2014 começou a trabalhar com a matriz do Ensino Médio regular.
Com o fim de analisar o que dizem os relatos dos sujeitos pesquisados, apresentamos os dados coletados por meio da realização de entrevistas semiestruturadas, nas quais foi possível viabilizar as categorias a serem descritas
como fenômenos sociais. A entrevista é uma das principais técnicas de pesquisa e desempenha um importante papel, não apenas nas atividades científicas, como em muitas outras. Por esta técnica de coleta de dados, há interação entre pesquisador e entrevistado (LUDKE; ANDRÉ, 2003, p. 33).
Com base nessa compreensão, as entrevistas foram aplicadas na Escola Crescendo na Prática no decorrer do mês de maio de 2015. Foram realizadas em dois momentos: o primeiro, com um grupo de 12 (doze) jovens que foi entrevistado por cerca de 50 minutos, com o objetivo de selecionar os respondentes da entrevista que focou nas questões norteadoras da pesquisa; e, no segundo, foram entrevistados 05 (cinco) jovens sujeitos selecionados deste universo de 12 alunos, 03 (três) rapazes e 02 (duas) moças (A1, A2, A3, A4 e A5), bem como o Coordenador do Ensino Médio e 02 (dois) professores da escola (Anexo I). Os dados resultantes dessas entrevistas foram analisados à luz da Análise de Conteúdo (BARDIN, 2012).
O que nos interessou nesta pesquisa é exatamente que, a partir dos sujeitos entrevistados, seja possível analisar a essência do que dizem e como dizem, percebendo, desse modo, nas falas: (i) a conquista do Ensino Médio no Assentamento Palmares II; (ii) a institucionalização do Ensino Médio, em 2014; e
(iii) o processo de integração/fragmentação entre os saberes sociais e conhecimentos escolares na formação dessa juventude.
Isto quer dizer que, ao entrevistar alunos, coordenação e professores, identificamos pontos de referência de como o objeto poderia ser tratado. Buscamos o envolvimento com o contexto da pesquisa, com os sujeitos que vão revelando pistas sobre o fenômeno da pesquisa, que não se restringe ao contexto escolar, mas, envolve o social, o político e o econômico.
Num segundo momento, tratamos e apresentamos as análises das respostas que obtivemos ao indagarmos acerca da importância da escola e do Ensino Médio na vida dos estudantes, buscando analisar as coerências/incoerências entre o Ensino Médio no assentamento Palmares II e os interesses da classe trabalhadora. É nesse sentido que realizamos a pesquisa, seguindo a perspectiva do materialismo histórico-dialético, à luz do entendimento de que a ciência e o processo científico não são imunes aos embates reais que se dão na sociedade de classe, e, ainda, o que nos afirma Bachelard (1996, p. 8) sobre ser preciso, para confirmar
cientificamente a verdade, confrontá-la com vários e diferentes pontos de vista. Além disso, quando o conhecimento expõe a historicidade do real, nas determinações que o constituem nos seus diferentes âmbitos – social, econômico, político, cultural etc., este conhecimento, como indicou Marx, se transforma em força material revolucionária.
Baseado em Marx, Engels, Gramsci e Lenin, Bachelard (1996, p. 111) considera:
O conhecimento que se constitui em força material gesta-se na práxis revolucionária; portanto não é o da ciência positivista e funcionalista que alimenta a reprodução do capital. Revolucionário é o conhecimento que se constrói dentro da concepção materialista histórica da realidade humana e do método dialético materialista histórico, que busca sua compreensão.
Compreendemos que a pesquisa sobre o Ensino Médio para os jovens assentados, a partir da educação escolar desenvolvida pela organização do MST, possibilita a reflexão acerca de uma realidade que envolve hoje uma parcela da juventude amazônica, que faz parte do movimento social que mantém esses jovens como fruto da organização iniciada no Assentamento Palmares II, por volta de 1996. Desse modo, apresentamos as reflexões sobre a Escola Crescendo na Prática e a institucionalização do Ensino Médio com o objetivo de problematizar este estudo e o que nos levou a pesquisar tal espaço. Primeiramente, consideramos importante destacar a história da formação do MST no Brasil e no Pará, para compreender o processo dialético que resultou em vários pontos de referência para
que se tornasse um dos maiores movimentos sociais da América Latina.
Tomamos o estudo de caso qualitativo, pois a pesquisa se baseia na construção do conhecimento, de forma a considerar a realidade e sua compreensão em várias dimensões. Entretanto, para o entendimento do percurso histórico da Escola Crescendo na Prática, foi necessário compreender a maneira como se constitui o movimento popular - MST - e os elementos que protagonizam sua fundação.
No tratamento dos dados, utilizamos a Análise de Conteúdo, em que foi possível compreender e afirmar a constituição de duas problemáticas. A primeira que se relaciona à implementação do currículo proposto pela Secretária de Estado de Educação do Pará (SEDUC/PA), o qual supomos que fragiliza a socialização dos saberes constituídos na vivência do movimento e das relações do assentamento. E
uma segunda relacionada ao entendimento de como de fato se constituí o Ensino Médio no contexto do Assentamento Palmares II.
Os movimentos sociais da classe trabalhadora em nossa sociedade expressam a eloquência de vozes de muitos trabalhadores e trabalhadoras que precisam ser ouvidos, precisam ser respeitados ou, pelo menos, precisam ser lembrados diante da desigualdade social.
O Movimento Sem Terra é datado de 1984, no contexto de luta contra a política agropecuária que se instalou durante o regime militar (1964-1985), na qual era praticamente impossível qualquer nível de organização popular, sindical ou política, o que pressupõe entendermos o molde capitalista da época, baseado no desenvolvimento industrial.
Um elemento a ser considerado na constituição do movimento diz respeito aos seus constructos para com a juventude, pois é um movimento que busca meios para garantir que os jovens permaneçam no assentamento, uma vez que muitos acabam saindo em busca das seduções do capital, sendo este um dos motivos pelos quais o MST procura promover a formação política de toda família.
Segundo Caldart (2007) o MST é fruto de uma questão agrária estrutural e histórica no Brasil, que nasce, especificamente, no centro-sul do país, com o primeiro Encontro Nacional de Trabalhadores Sem Terra, realizado de 21 a 24 de janeiro de 1984, em Cascavel, no Paraná. Outro ponto a ser destacado diz respeito ao cenário de migração de um grande quantitativo da população do campo para as cidades, por causa da industrialização do campo, da substituição do homem pela máquina. A falta de trabalho para esses sujeitos oportunizou a resistência e a inquietação dos colonos, o que gerou a busca por alternativas de luta pela terra nas regiões onde viviam.
Nesse contexto, a implantação de uma agricultura baseada nas práticas capitalistas expulsou do meio rural, de forma muito rápida, grandes números de pessoas, famílias inteiras “que viviam como arrendatários, meeiros, posseiros, parceiros e até mesmo pequenos agricultores que, por fatores diversos, haviam perdido suas terras” (LAUREANO, 2007, p. 37-38). Esses fatores ocasionaram:
[...] o aguçamento das lutas e conflitos no campo, e na luta por terra. Coube aos trabalhadores unirem suas forças e demonstrarem capacidade de mobilização e conquista de posições com a organização de “42 acampamentos até o final de 1985, com mais de 11.500 famílias sem-terra, espalhadas por vários estados do país” (GRZYBOWSKI, 1991 apud LAUREANO, 2007, p. 75).
São esses sujeitos expulsos de suas terras, explorados e perseguidos que compuseram o MST. O primeiro registro de organização massiva dos trabalhadores é datado do dia 07 de setembro de 1979, na cidade de Ronda Alta, no Rio Grande do Sul, na terra da gleba Macali. Havia mais de 1.700 famílias sem trabalho, pois tinham sido expulsos das terras dos índios Kaingang. Desse modo, essas famílias buscaram novas terras para poderem trabalhar, e acabaram aceitando a proposta do governo federal, deslocando-se para as regiões Centro-Oeste e Norte, nas conhecidas “novas fronteiras agrícolas” (LAUREANO, 2007, p. 82).
A década de 1970 foi marcada por fortes movimentos e, após a ditadura, a população brasileira continua seu processo de reorganização popular. A Central Única dos Trabalhadores (CUT), por exemplo, nasce nesse contexto, em 1983, em São Bernardo do Campo. O MST também começa a sua História com base em movimentos populares anteriores, como o das Ligas Camponesas, em 1946, Movimentos de Agricultores Sem Terra (MASTER) de 1960 a 1964, e União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas (ULTAB), de 1964 (MORENO, 2011, p. 54). Outro ponto a ser considerado é que, em meio a esse processo de industrialização do campo, o camponês é “espremido pelo latifúndio; e na cidade é forçado a viver nas favelas, talvez pior que as senzalas” (MORENO, 2011, p. 41) e, com isso, o camponês descobre que, “se ficar, o latifúndio come; e se correr para a cidade o empresário pega” (MORENO, 2011, p. 41). A saída, certamente, é ficar e
enfrentar o sistema capitalista. Com isso, o MST
[...] é um movimento que representa a luta de agricultores acostumados com o trabalho familiar e que resolveram lutar pela terra. Pessoas que descobriram na luta e aprenderam a creditar, e assim passam a defender, que terra é de quem nela trabalha. Lutam contra o monopólio da terra em mãos de poucos os latifundiários. Para o MST, o latifúndio representa toda forma de exclusão: política, social e econômica da maioria da população (LAUREANO, 2007, p. 83).
É válido destacar que, além da questão socioeconômica, houve também o aspecto ideológico com a presença da Igreja CATÓLICA, com o trabalho pastoral, e da Igreja luterana, significativo desde a gênese do MST.
A presença da Igreja foi mais forte nos estados do Paraná e Santa Catarina e essa presença ecumênica deu unidade/organicidade ao movimento, evitando sua fragmentação. A Comissão Pastoral da Terra (CPT), que surgiu em 1975, em Goiânia, foi de suma importância para a reorganização das lutas dos trabalhadores rurais, pois passou a conscientizá-los na busca de uma organização homogênea entre eles, uma forma de unir os interesses e politizar os trabalhadores (LAUREANO, 2007).
De acordo com Stédile e Fernandes (1999, p. 16, 19-20, 23) há três aspectos decisivos para compreendermos o surgimento do MST na luta pela reforma agrária no Brasil: 1) o aspecto socioeconômico: em que houve a mecanização da lavoura na região Sul do país, desencadeada pela introdução da soja, em 1970, ocorrendo o movimento de migração para o Pará, Rondônia e Mato Grosso; 2) o aspecto ideológico: a colaboração dos padres, pastores, agentes pastorais, com o trabalho pastoral, principalmente da Igreja Católica e da Igreja Luterana, imprescindível para a organização dos camponeses, sendo discutida a necessidade de organizarem-se;
3) o aspecto político: momento de luta pela democratização do país, onde a reivindicação pela reforma agrária se somou ao ressurgimento das greves operárias, em 1978 e 1979, à luta pela democratização da sociedade brasileira e contra a ditadura militar, criando as condições necessárias para o surgimento do MST.
Desse modo, o movimento tem, em suas raízes, resistir ao capital de modo que não seja submisso aos comandos e controles da política externa ao movimento, mas, que busque meios de garantir a sua “sobrevivência” no sistema. Trata-se de uma luta não apenas de direito pela terra, mas também por boas condições de produção e comercialização que exprimem a sua inserção na divisão do trabalho.
Na prática, os objetivos do MST vêm sendo desdobrados numa multiplicidade de ações coletivas, que seguem desde as reivindicações por conquistas imediatas, a luta por seus direitos de cidadania e transformação sócio-político-culturais, com ações incisivas de luta na promoção de acampamentos e nas ocupações, como
resultado de um esforço enorme de organização coletiva fundamentada em princípios marxista-leninistas4.
Para o MST, o estudo é condição para o desenvolvimento da organização do movimento, uma forma de assumir o trabalho, de superar as dificuldades e o isolamento do meio rural brasileiro. Isso envolve a tarefa de árdua luta contra o “latifúndio do saber: discurso que circula entre os sem-terra” (CAMPOS, 2003, p. 51).
Com isso, é possível atribuirmos que o movimento social é fruto de uma reação contra as forças opressoras que buscam paralisar o movimento social de alguma forma para que a identidade e o seu poder de “voz” se perca. Na verdade, o movimento é o resultado de um processo em permanente construção, contribuindo para a cultura e a história do nosso povo. O MST celebra as lutas em sua caminhada, de forma a não esquecer os que tombaram lutando, de maneira que as novas gerações possam aprender com as experiências já vividas, e, nesse contexto, a educação contribui para a formação desse sujeito, uma vez que estabelece influência na vida de crianças, jovens e adultos nos próprios assentamentos.
A escola que conhecemos e pela qual passamos nesta pesquisa resulta de um processo de luta travada no ano de 1996, em que a classe trabalhadora do MST se preocupou tanto com a conquista das terras da fazenda Ingá, em Parauapebas, no sul do Pará, como também para instaurar um projeto de educação que correspondesse aos interesses genuínos do movimento.
Compreendemos que a educação do MST é uma necessidade, não apenas para obter conhecimento, mas, também, uma necessidade fundamental para resolver os problemas da luta política (STÉLIDE; FERNANDES, 1999, p. 18). Entender a escola para o MST é ultrapassar as dimensões simplistas estabelecidas pela sociedade do “saber”.
4 O primeiro criou teorias que revolucionaram a concepção de mundo, e advogou a necessidade de os trabalhadores se organizarem de forma independente e tomarem o poder de Estado, para construir um novo modo de produção, o comunismo. O segundo, líder revolucionário russo, desenvolveu o marxismo aplicado à realidade de seu país e foi um dos principais dirigentes da Revolução Russa (MORENO, 2011).
Tomamos a Escola Crescendo na Prática como caso a ser estudado. A escola fica situada no assentamento Palmares II, no sudeste do Pará, a 20 km de Parauapebas, tendo uma área de 6.886,208 km². Segundo os dados do IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2019), Parauapebas possuía 153.908 habitantes, sendo 15.218 pertencentes à zona rural (7.839 homens e 7.379 mulheres) e 138.690 da zona urbana. Dessa população, 52.707 são alfabetizados. Entre 15 e 29 anos, 37.162, representa o número de alfabetizados.
Durante os anos 1960, a região foi palco do grande “formigueiro humano”, resultado da ocupação de terras da região de Serra Pelada e adjacentes. Anos depois, o governo federal concedeu à Companhia Vale, à época estatal, o direito de explorar o minério. Parauapebas se situa em uma região da Amazônia rica em minérios e a economia do município é baseada na extração mineral (ferro, ouro e manganês), sendo que, na década de 60, foi descoberta a maior reserva mineral do mundo em Carajás, no então município de Marabá (IBGE, 2019).
O assentamento Palmares II5, onde está situada a Escola Crescendo na Prática, lócus desta pesquisa, possui uma área de 16.111 hectares, com aproximadamente 2.000 famílias assentadas, fruto de uma ocupação ocorrida em meados de 1990, na fazenda Ingá.
O Quadro 1 registra o crescimento demográfico da cidade de Parauapebas, de 1991 a 2015, sendo possível observar que a ocupação6 da região se deu de forma acelerada, em especial, no ano de 1996. Em seguida, é possível localizar no Mapa 1 o assentamento Palmares II, fruto das organizações trazidas pelo MST para a região.
5 Dados do INCRA - Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (2000) revelam que o número de assentamentos pertencentes a área Pará/Marabá chega a 505, com número de 71.868 famílias assentadas e área de total 4.641.357,16 (ha). O número de assentamento com mais de 10 anos chega a 434 assentamentos, com 64.486 famílias, e com relação a assentamentos com menos de 10 anos, são 71, tendo 7.382 famílias.
6 Essa ocupação se deu com base em projetos do governo federal, por meio do Incra: a “febre” do ouro em Serra Pelada; os empregos gerados pelos grandes projetos, como Grande Carajás, e pela Companhia Vale do Rio Doce, que, em conjunto, trouxeram para a região trabalhadores de todo país (CAMPOS, 2003, p. 84).
ANO | PARAUAPEBAS | PARÁ | BRASIL |
1991 | 53.335 | 4.950.060 | 146.825.475 |
1996 | 73.831 | 5.466.141 | 156.032.944 |
2000 | 71.568 | 6.192.307 | 169.799.170 |
2007 | 133.298 | 7.065.573 | 183.987.291 |
2010 | 153.908 | 7.581.051 | 190.755.799 |
2015 | 189.921 | 8.175.113 | 204.450.649 |
Segundo Campos (2003) quando o MST chegou ao Pará, em 1989, a ocupação de terras e seus conflitos se dava por meio do Sindicato dos Trabalhadores Rurais (STR), ligado à Federação dos Trabalhadores da Agricultura (FETAGRI) ou mesmo pelas mãos da liderança responsável pelas invasões.
É válido ressaltar que, primeiramente, no estado do Pará, quanto à imigração de um grupo de assentados que saiu de Conceição do Araguaia para ocupar as terras onde hoje se encontra Palmares, a ocupação deriva do contexto social que transcorria na época, da famosa “Serra do Carajás”, espaço de grande exploração de ouro na região sul do Pará. Nesse período, várias pessoas migraram para essa região na busca de “melhores condições” de vida (relato do Coordenador cedido em 2015).
A Escola Crescendo na Prática nasce exatamente em 1996, como atestam as falas das entrevistas colhidas na pesquisa de Campos (2003) com os alunos e professores, no qual percebemos o sentimento de pertença e de conquista,
conforme podem ser percebido nos trechos de A, B, C e D (sujeitos identificados da pesquisa de campo), quando dizem:
Essa escola foi uma conquista nossa, né? (A).
A gente foi pra frente da prefeitura, todo mundo, né? Os alunos, os professores, nossos pais, né? Aí gente ficou acampado lá até a prefeitura receber a gente e acertar que ia fazer nossa escola (B). Pra conquistar essa escola aqui foi uma luta danada... a gente passou muito tempo lutando, brigando, teve até greve de fome lá na prefeitura uma vez pra poder a prefeita receber a gente (C).
Não foi ninguém não que trouxe essa escola pra cá, não, fomos nós que construímos essa escola aqui, com a nossa luta, os professores, nossos pais, a gente foi várias vezes em caminhada até lá em Parauapebas pra poder ter essa escola aqui, né? (CAMPOS, 2003, p. 107).
Como podemos perceber nas falas, a escola é fruto da luta de pais, professores, alunos, que, durante os anos de 1990, colocaram-se em marcha para ocupar a sede da Prefeitura de Parauapebas em busca da implantação da Escola Crescendo na Prática. Ou seja, a escola foi constituída após árduo trabalho pelos militantes e corresponde aos interesses por educação escolar de qualidade que atendesse aos filhos do grupo de trabalhadores oriundos do MST.
No momento da entrevista, o número de estudantes era de 1.332, incluindo o ensino regular, educação infantil, Ensino Fundamental e Médio, sendo 460 alunos do Ensino Médio e na modalidade EJA; deste número, 20 alunos são pertencentes ao 3º ano do Ensino Médio, sujeitos de nossa pesquisa.
Por sua vez, a preocupação da escola está presente desde o início da construção do assentamento, em seus primeiros acampamentos: a necessidade do acesso à escola por parte dos jovens/crianças para que fossem alfabetizados.
Segundo Dalmagro (2011) para o MST, a escola é vista como um espaço onde crianças e adolescentes estão se formando como seres humanos integralmente. Isso implica dizer que não é apenas um lugar para a aprendizagem teórica, porém, é o lugar do saber, do estudo e trabalho.
Todavia, o acesso ao elaborado conhecimento escolar não deve ser visto como um fim em si mesmo, mas, uma relação de integração com a realidade e da sua transformação. Justifica aqui a práxis, enquanto articulação entre teoria e prática, “na qual o envolver do homem com a realidade vai produzindo saberes que se emolduram à medida que se vão gestando no cotidiano dos sujeitos” (RODRIGUES; ARAUJO, 2014, p. 170). Acrescentamos a anuência da perspectiva
adotada pelos autores na dimensão em que o saber social e o conhecimento tomem sua importância para que a formação integral assumida pelo MST se efetive no cotidiano escolar das instituições assumidas pelo movimento.
Diante da grande fragilidade do acesso à educação pública de qualidade por parte dos filhos da classe trabalhadora do Assentamento Palmares II, a fase de institucionalização do Ensino Médio modular ganha força em 2005, sendo fatores responsáveis por essa situação, primeiramente: a) a necessidade social; b) a necessidade da comunidade estudantil; e c) materialização do direito ao ensino.
A necessidade social pauta-se na bandeira de luta do próprio movimento, de garantir educação para a juventude do assentamento, uma vez que os jovens tinham que sair de sua localidade e ir até a cidade de Parauapebas para poderem continuar os estudos.
Além disso, os pais, jovens, representantes do movimento, acreditavam que garantir o Ensino Médio regular dentro do assentamento assegurava a constituição de uma educação pautada nos princípios do movimento social, em que confirmam não só o acesso à escrita e à leitura da palavra, mas, a compreensão de mundo necessária para se constituírem como cidadãos, como sujeitos de direitos, pois o MST considera a educação uma ferramenta de luta política e aprofundamento do conhecimento, por assim dizer, entre os “intelectuais orgânicos da classe trabalhadora” e as “organizações de trabalhadores do campo e da cidade” (GRAMSCI, 1991, p.119 ).
Segundo os dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) no ano de 2014, o número de escolas em área de assentamento registra 4.225 escolas, sendo que o Pará lidera, com 1.042 (mil e quarenta e duas) escolas em área de assentamento, sendo 159 (cento e cinquenta e nove) escolas de Ensino Médio. Trata-se, pois, de uma configuração escolar que se manifesta nas engrenagens do movimento, seja por influência do MST ou sob sua coordenação, a qual configura o desenvolvimento do conhecimento escolar em consonância com os preceitos do movimento para a formação do sujeito assentado.
Desse modo, compreendemos as dificuldades recorrentes para a constituição de políticas públicas para a universalização do Ensino Médio e, entre estas, está à definição de sua identidade, que ultrapasse o sentido de trampolim para a universidade ou a formação profissional (KRAWCZYK, 2011).
O Ensino Médio é historicamente marcado por sua indefinição de identidade: ora está para a formação dos alunos para estudos posteriores, ora para a preparação para o mundo do trabalho. Isto é, a rigor, esse nível de ensino tem sido direcionado a preparar o sujeito para o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM)7 e para o mundo do trabalho. Este fato resulta, principalmente, das etapas de sua institucionalização, desde a reforma educacional do Ministro Francisco Campos (Decreto nº 18.890/31) até recentemente, com o parecer CNE/CEB nº 07/2010 e a resolução CEB nº 04/2010, que delibera sobre as Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para Educação Básica, e com a Reforma do Ensino Médio, pela Lei 13.415/2017, com ênfase nos novos componentes curriculares e pelos itinerários formativos.
Por outro lado, esse processo de ampliação não pode ser caracterizado enquanto universalização, nem democratização do Ensino Médio, uma vez que a porcentagem de jovens fora da escola, além dos índices de reprovação e evasão devem ser considerados (KRAWCZYK, 2011).
O Ensino Médio acentua o momento em que os jovens estão configurando seus horizontes, em termos de cidadania e de vida economicamente ativa, onde a experiência educativa deve proporcionar o desenvolvimento intelectual e a apreensão de elementos culturais que possibilitem a configuração desses horizontes.
Com isso, consideramos que a categoria contradição ajudou a compreender esse processo de escolarização do Ensino Médio que possui o MST, suas relações e contradições que possuem os saberes sociais e conhecimentos escolares na sua essência.
No caso da Escola Crescendo na Prática, no entanto, houve a necessidade de lutar também por uma forma institucionalizada de Ensino Médio regular, já que
7 Não é objetivo, nesta pesquisa, realizar uma análise sobre o ENEM, mas, estreitar o entendimento do que tem sido o papel do Ensino Médio.
o estado ofereceu, em 2005, apenas o ensino por meio de Módulo8. Esta configuração desmotivava os alunos, sendo este um dos motivos de base de luta para que fosse institucionalizado, como se pode perceber nas falas do coordenador e dos professores de Filosofia e Sociologia: “uma vez que faltavam professores, os alunos sentiam-se prejudicados pelo ensino fragmentado que estava sendo ofertado no ensino modular, sem contar o sentimento de exclusão, que indicaria que a institucionalização do Ensino Médio na Escola Crescendo na Prática poderia ser de qualquer forma”.
Somente em 2014, após momentos de debates, ocupação e apreciações junto à SEDUC/PA, o Ensino Médio no assentamento Palmares II passou a ser regular:
O aluno terminava a oitava série, ele saia e ia estudar em Parauapebas, ai várias escolas lá, e tinha uma escola exclusiva praticamente pra receber os alunos de Palmares, né? Que é uma escola mais próxima daqui da parada de ônibus né? Então, em 2004 a gente iniciou um debate pra construção do Ensino Médio né. Então em 2005, tivemos as primeiras turmas de Ensino Médio modular, que era o que o estado podia oferecer (relato do Coordenador cedido em 2015).
Esses pontos surgem a partir do momento em que a comunidade percebe que o direito ao acesso ao ensino se encerra no Ensino Fundamental, e os alunos teriam que se deslocar para o centro da cidade para poderem concluir seus estudos, fato que concentrou inquietações e reprovações por parte da escola, comunidade e alunos.
As falas sobre o que o estado podia oferecer têm a tônica de conformação por parte da comunidade, por ser submetida às condições de educação incompatíveis com a formação humana e o empoderamento dos saberes sociais. No entanto, o Ensino Médio modular “conquistado” naquele momento não garantiu aos alunos as condições necessárias e suficientes para o desenvolvimento da relação entre os saberes sociais e conhecimento escolar, tão relevante para o processo de ensino-aprendizagem desses jovens pelo distanciamento cultural e
8 As primeiras turmas do Ensino Médio no Assentamento foram ofertadas por Módulo de ensino, o que significa que cada disciplina é trabalhada de forma individual (uma por vez), por um período, e atende às exigências de sua carga horária anual. Por exemplo, o módulo de Língua Portuguesa com a carga horária de uma determinada série poderá ser concentrado num período de trinta e dois (32) dias, com seis (6) horas/aula por dia (ANDRADE, 2008).
político do que era ensinado, em relação à realidade em que viviam os alunos do movimento.
Ele só vem dá aula dele normal, vem explica. (A2)
No ensino médio nunca teve, estudar sobre a questão do movimento. (A3) (relato dos alunos cedido em 2015).
Nessa situação, o que ocorre é a fragilização da própria cultura, do próprio saber social da comunidade local, pois as relações entre professor e aluno foram demasiadamente difíceis. Professores provenientes de fora do assentamento, sem práticas adequadas e com dificuldades de trato na educação dos jovens do Ensino Médio no contexto do movimento, com sérios problemas de disciplina, compromisso, respeito e reconhecimento de que a educação que estava sendo constituída naquele momento pertencia a uma área de reforma agrária.
Este fato veio sendo protelado durante dez anos, evidenciando um dos motivos pela fragmentação entre o saber social e conhecimento escolar.
E nós tínhamos muitos enfrentamentos, principalmente por preconceito por ser aluno de assentamento, de reforma agrária né. Aí o aluno se perdia, praticamente perdia a disciplina, tinha que pagar disciplina, porque o professor tinha abandonado a turma (relato do Coordenador cedido em 2015).
Um impasse perceptível na fala do coordenador a educação aqui introduzida ocorreu de “fora para dentro”; não houve diálogo com a comunidade e nem mesmo a valorização da realidade da comunidade, como se percebe na fala do Coordenador.
Assim, compreendemos que o Ensino Médio que veio sendo consolidado no contexto do assentamento Palmares II, desde 2005, no ensino modular, é também um espaço de disputa, pois o Ensino Médio fortalece a formação do sujeito para inserção na Universidade, o que não nega que esse sujeito também tenha a sua formação política, cultural, histórica valorizada nesse processo, ponto central da tese estabelecida pelo MST, de defesa da educação enquanto coração do movimento, uma educação pautada na valorização da cultura, da vivência desses sujeitos, em que se estrutura a formação política, ideológica e histórica.
A grosso modo, a institucionalização do Ensino Médio modular, mesmo sendo reconhecida, não assegurou as condições mínimas para o seu funcionamento e se manteve de maneira “irregular e precária”. Embora essa tenha sido uma conquista após um longo processo de luta, as primeiras turmas foram
concentradas em uma casa alugada pelo governo, com infraestrutura inadequada para concentrar os alunos:
Era um lugar que era uma casa de família arrendada por não sei quantos milhões pra permanecer num sei o quê, mas lá não tinha condições de ser escola lá era difícil de ensinar, eu tive muita dificuldade de ensinar, achava poeiral na escola [...], mas graças a Deus nós viemos pra cá diminuiu mais (relato do Professor 1 cedido em 2015).
Ou seja, as condições das primeiras turmas do Ensino Médio carregavam uma situação demasiadamente difícil, desde a sua estrutura física até a lotação de professores que geralmente não tinham vínculo efetivo de trabalho, sobretudo, do ponto de vista estrutural e da falta de compromisso por parte do corpo docente com relação à formação dos jovens.
Nesses trechos, compreendemos a situação em que as aulas do Ensino Médio ocorriam e a forma como fora tratada a inserção do modular por parte, principalmente, do poder público e dos professores. O descompromisso com a formação dos jovens se afirmou no simples exercício do cotidiano escolar e o descumprimento dos módulos foi maior que o desejo de contribuir para a unidade teórico e prática (RODRIGUES; ARAUJO, 2014).
A partir disso, ressaltamos que a conquista do Ensino Médio modular na Escola se deu, principalmente, pelo movimento constante instalado no interior do movimento social, mas, ainda assim, relacionado a uma lógica de reduzir a educação da classe trabalhadora, o que significa dizer que a educação dessa classe não tem espaço, pois não é interesse da burguesia que “[...] desfrute dos prazeres da cultura e do coletivo das letras, das artes e do espírito, seu lócus não está ai, seu
papel será preparar a festa, produzir os alimentos, trabalhar” (ARROYO, 2002, p. 92).
Com isso, os alunos revelaram insatisfações com uma escola exageradamente teórica, alheia a muitos problemas que eles enfrentavam fora dela, que não os tomava como interlocutores possíveis e que também não lhes oferecia a estrutura material e o suporte profissional necessários para cumprir mesmo aquilo que é legal, ou seja, a educação que se tem apresentado ao Ensino Médio, muitas vezes, não corresponde ao que a Lei de Diretrizes e Bases da Educação propõe: a consolidação e o aprofundamento dos conhecimentos adquiridos no Ensino Fundamental, possibilitando a continuidade dos estudos; a preparação para o trabalho e a cidadania; o aprimoramento do educando (ético, intelectual e crítico); e a compreensão dos fundamentos científicos-tecnológicos dos processos produtivos (teoria e prática) (BRASIL, 1996).
Atualmente, a Escola possui uma boa estrutura, destacando-se que a conquista se deu, principalmente, pela luta estabelecida desde as primeiras habitações nesse território. Durante a nossa pesquisa, percebemos que a instalação da Escola trouxe alguns benefícios para o assentamento, como o prédio novo, estruturado para as atividades escolares.
Por outro lado, houve problemas que se apresentaram no decorrer da constituição do Ensino Médio, principalmente quanto ao corpo docente da escola, pois os professores não pertenciam ao assentamento, o que dificultava a relação e desenvolvimento da aprendizagem dos alunos e o próprio sentido de educação para eles, como exposto no diálogo a seguir:
“[...] pra mim o ensino médio significa... com certeza pra eu subir numa escada eu preciso me preparar mais por que depois que eu sair do ensino médio, claro, poder cursar uma faculdade”. (A1)
Ele ajuda bastante, porque tem certos assuntos que a gente fica pensando é porque eu tô vendo isso não sei pra quê, mas lá na faculdade, eu acredito que essas coisas que a gente não dá tanto valor vai ajudar bastante. (A2) (relato dos alunos cedido em 2015).
Nesse aspecto, percebemos o dilema existente na escola, pois a fala mostra que houve nesse processo muitos enfrentamentos que passaram desde a formação dos professores ao preconceito existente entre os assentados. Além desse, outro ponto colocado na fala acima apresentados podem ser compreendidos a partir da ótica da escolarização desses sujeitos, que passa a ser compreendida enquanto
“precondição para sobreviver na lógica da sociedade capitalista”, e neste fato, resume-se outro ponto da fragmentação em que tem sido desenvolvido o Ensino Médio desses sujeitos da classe trabalhadora. Chegamos a inferir que a educação do Ensino Médio desenvolvida no e não do assentamento, pois, observamos por meio das análises, que o processo fragmentação latente deriva principalmente da anuência do currículo proposto pelo sistema de educação, e aí a educação não é instrumento da emancipação humana, mas mecanismo de perpetuação e reprodução desse sistema (MÉSZÁROS,2008, p. 15).
De certa forma, o modo como o Ensino Médio regular foi desenvolvido se refletiu no estabelecimento do movimento descompromissado com a formação humana desses alunos, que, de certa, rompeu com um dos princípios estabelecidos pelo próprio movimento, que envolve a questão do corpo docente pertencer ao assentamento, justamente para garantir o fortalecimento da identidade e emancipação do saber social.
Sobre este aspecto, a Resolução nº 23/2007 do CNE/CEB (BRASIL, 2007) estabelece que a escola do assentamento deve ter:
professores simpatizantes da reforma agrária;
conteúdos incluindo a história do MST;
livros contendo a experiência dos sem-terra;
e relação professor-aluno como uma relação de companheirismo.
No que tange à Resolução nº 02/2008, é destacada em seu art. 1º a concepção da escola de assentamento:
A Educação do Campo compreende a Educação Básica em Educação Infantil, Ensino Fundamental, Ensino Médio e Educação Profissional Técnica de nível médio integrada com o Ensino Médio e destina-se ao atendimento às populações rurais em suas mais variadas formas de produção da vida - agricultores familiares, extrativistas, pescadores artesanais, ribeirinhos, assentamentos e acampados da Reforma Agrária, quilombolas, caiçaras, indígenas e outros (BRASIL, 2008, p. 1).
Com isso, identifica-se que a educação no assentamento deva atribuir interesses diferenciados ao que nos revela os depoimentos sobre a luta que veio sendo travada, desde 1996, para conseguir o Ensino Médio na Escola Crescendo na Prática.
Trata-se de uma luta fundamental, quando tratamos da educação da classe trabalhadora. As lutas são constantes e o desafio para se ter o pouco acesso a este nível de ensino é marcado por uma lógica homogeneizadora de pouca educação e muita escolarização para os sujeitos que fazem parte desse processo de construção do conhecimento científico.
O que podemos perceber nas análises sobre a educação do Ensino Médio desta escola, destinada a atender aos interesses da classe trabalhadora, não leva em conta os meandros da constituição histórica exercida pelo Movimento Social frente ao processo de luta contra os interesses contrários à educação do trabalhador. Pelo contrário, observamos que as relações estão embasadas em conhecimentos conteudistas que se limitam a compreender a realidade existente, visto que muitos desses jovens trazem o saber social (saber sobre a política do movimento, saber popular, saber social) e que poderiam ser aproveitados nas práticas educativas; assim, estas se mostram fragmentadas na formação.
Semeraro (2006) baseado em Gramsci, analisa o conhecimento a partir dos interesses da classe trabalhadora, que inspira as classes populares a passar por um processo constitutivo de sua identidade, de sua intelectualidade e por uma educação que exija a construção rigorosa de um saber mais avançado e socializado.
É precisamente neste âmbito que está a reflexão e o desafio ao Ensino Médio desenvolvido aos jovens da classe trabalho no assentamento Palmares II. A escola é lócus de dominação e, portanto, de conflito, de resistência. É fruto de intenso processo de reivindicação pelos direitos sociais: primeiro, à posse de terra e, posteriormente, à educação. É marcado por intenso repasse dos valores do Movimento dos trabalhadores Sem Terra e daqueles que iniciaram a ocupação que resultou no assentamento Palmares II. Para tanto, é imprescindível analisar profundamente as relações.
Para Arroyo (2012) os jovens e adultos que chegam ao Ensino Médio carregam em si uma experiência de luta pela escola, pelo conhecimento, experiências de tensas relações entre trabalho-sobrevivência-estudo. Isso decorre, principalmente, da realidade que se nos apresenta, de que nem todos têm lugar na escola, que é restrita, sendo os filhos de trabalhadores os menos favorecidos, uma
vez que a “educação tornou-se um instrumento da sociedade capitalista, vista, grosso modo, como mercadoria, como espaço de disputa” (ARROYO, 2012, p. 16). Nesse contexto, pouca interligação há com os saberes sociais, práticas sociais dos sujeitos que fazem parte desse processo de formação; e a educação ganha sentido enquanto fator de desenvolvimento, situação que a reduz para formação de recursos humanos, formadora de capital humano, “onde as questões educacionais se reduzem a uma contabilidade, em última análise, de custo/benefício” (GRZYBOWSKI, 1991, p. 49). Além disso, há a necessidade de criar o coletivo pedagógico e a formação permanente dos educadores e educadoras, onde é possível constituir uma equipe ou núcleo de educação com objetivo de discutir sobre as práticas de educação do acampamento focando em
torná-las cada vez mais orgânicas.
Ou seja, a prática escolar que alguns professores exerciam/exercem no Ensino Médio rompia com os princípios do próprio movimento. No entanto, esses constantes problemas e enfrentamentos desencadearam em 2009 uma paralização pelos alunos do Ensino Médio na Escola Crescendo na Prática.
Outro ponto a ser destacado é que essa institucionalização não permitiu que os princípios do MST mantivessem espaço junto ao conhecimento escolar; nem mesmo o próprio Projeto Político Pedagógico (PPP) da escola do Ensino Médio, no momento da entrevista, encontrava-se em construção. “Então nós agora estamos criando o PPP da escola, organizando a proposta pedagógica né? Tentando incorporar nós enquanto escola mesmo” (relato do Coordenador cedido em 2015), fato este que revela a frágil posição dos interesses da classe trabalhadora.
O movimento lutou pelo Ensino Médio no âmbito do assentamento Palmares II, no entanto, a formação que foi estabelecida desde 2005 fragmentou a formação desses jovens, uma vez que os professores não eram do assentamento e essa relação já dificultava pela implementação do currículo oficial, pois um dos princípios da educação do assentamento é que os professores façam parte do assentamento e entendam enquanto prática de ensino a importância do mesmo, ou seja, a relação com o saber social desses jovens em sua dimensão dialética estava fragmentada, distanciando a materialização da integração do saber-fazer.
É com esse movimento fragmentado que o Ensino Médio vem se constituindo na escola que foi conquistada pelo MST e que, por outro lado, vem perdendo sua identidade.
Os objetivos que estes percorrem para a manutenção dessa “nova” conquista, o Ensino Médio regular, veio estabelecendo novas metas, novos planos, ainda “cru”, em construção no momento da entrevista, diante de tantos desafios que passariam a ser conduzidos por eles, uma vez que nem todos os moradores do assentamento mantêm aproximação com o movimento, e, muitas vezes, não aceitam a participação dos jovens nessas atividades, fato que percebemos ser um entrave para que a proposta do MST, de uma formação atrelada ao movimento, ocorra de fato.
Desse modo, ao analisarmos os conteúdos das falas, chegamos a inferir que esta educação que se assume no Ensino Médio tem sentido de instrumento para atingir os espaços da universidade ou do mercado de trabalho. Podemos extrair que a instituição escolar dentro do assentamento Palmares II tem o tom de escola convencional, na qual o discurso de formação para o mercado de trabalho faz parte. Não estamos aqui suprimindo a importância da formação que tem sido instituída na escola, ainda que somente no campo do discurso, porém é necessário avançar nas análises e compreendermos que a escola no assentamento é resultado das lutas que se estabelecem para a efetivação da garantia de direitos e, ainda ao que se infere, há necessidade de continuar a “peleja” por um processo de ensino- aprendizagem que esteja pautada na formação humana integral. Como sucede o princípio da educação regida por este movimento, o MST.
No decorrer do artigo, destacamos alguns pontos de maiores tensões e disputas no que consiste à institucionalização do Ensino Médio no Assentamento Palmares II, pois essa disputa não foi suficiente para garantir que os princípios do MST mantivessem espaço junto ao conhecimento escolar, nem mesmo no próprio PPP da escola do Ensino Médio, que, no momento da pesquisa, encontrava-se em construção. O movimento lutou pelo Ensino Médio no âmbito do assentamento
Palmares II, no entanto, a relação que foi sendo estabelecida desde 2005 fragmentou a formação de identidade da juventude do assentamento.
A escola, especialmente, o Ensino Médio, exercia função fragmentada, visto que não havia relacionamento entre o cotidiano do assentamento e o conhecimento escolar, disperso no sistema disciplinar implementado pela SEDUC/PA para a escola analisada neste estudo.
Fato interessante é que, segundo os relatos, a valorização do entorno e seu histórico de lutas estão presentes nas atividades do Ensino Fundamental; isso se deve ao fato de o MST manter maior ingerência sobre o cotidiano escolar, bem como sobre a manutenção dos professores pertencentes ao próprio assentamento no corpo docente da escola.
Sobre o objetivo de discutir o processo de escolarização no Ensino Médio de jovens filhos dos trabalhadores pertencentes ao assentamento Palmares II na Amazônia paraense, notamos que a escola, por meio do Ensino Médio, é difusora de um conhecimento não articulado com a história, com a luta e com a vida da comunidade à qual pertence. Fato ilustrativo é a atuação dos professores que vinham de fora do assentamento, davam suas aulas e iam embora sem dialogar com a complexidade de conhecimentos que ajudaram a formar Palmares II. Assim, o currículo efetivado na escola primava por um saber disciplinar, que enclausurava os conteúdos e não os permitia transitar por aquele espaço, fruto de uma conquista no embate entre classes.
Consideramos ainda que a conquista do Ensino Médio não significa que exista um ensino que seja integralmente segundo os anseios e desejos do movimento. Caso a luta não seja permanente, abre-se espaço para disseminar a negação da própria identidade do movimento no assentamento, de maneira que uma conquista acaba por fragilizar o movimento.
A relação de saberes sociais e conhecimentos escolares dentro desse discurso e a formação da identidade da juventude da classe trabalhadora precisam superar a visão de que a educação se reduz à mera necessidade escolar, mas, assume uma importância em si mesma como elemento que ajuda a fortalecer o próprio MST, quando há essa valorização do saber social, produzido socialmente, concentrando o objetivo de fortalecer o movimento por meio do trabalho, da história, das relações sociais, ou seja, na sua dimensão histórica, filosófica e política, junto
à escola, integrado aos conhecimentos escolares (o conteúdo, a prática pedagógica etc.), havendo assim perspectiva de superar o modelo hegemônico de educação e fortalecer a ocupação do campo do saber, registrando-se a luta de classes.
É de suma importância que o corpo docente seja parte integrante desse processo, que se identifique com o movimento, que assuma seu posicionamento político, no sentido de garantir a construção do conhecimento nas dimensões política, social, crítica, reflexiva e transformadora; que venha, em especial, fortalecer o movimento e não, de alguma forma, fragmentar o que vem sendo expresso desde
o Ensino Fundamental e nas formações do próprio MST.
Sobre este ponto, cabe inferir que o Ensino Fundamental vem atribuindo o sentido integrado entre saber social e conhecimento escolar e, quando passamos ao Ensino Médio, ocorre a fragmentação, porque, este corpo docente, muitas vezes, não assume o mesmo caráter que os professores do Ensino Fundamental, o que prejudica a relação entre o saber e o conhecimento.
A escola frequentemente tem sido utilizada como espaço de reuniões, de cursos, de projetos, porém, a própria educação do Ensino Médio não está sendo incluída nesse processo. No entanto, permanecem em questão as formas como acontece o processo de ensino-aprendizagem nessa sociedade (o assentamento do MST). Como afirmou o Coordenador do Ensino Médio, as ideias eloquentes de apropriação das terras levariam à desarticulação entre povo e Estado, o que resultaria, mais tarde, na constituição do Ensino Médio modular, em 2005.
Os alunos, em princípio, continuam com seus saberes fragmentados dentro do próprio lócus que foi resultado da luta dos trabalhadores. Só a conquista do Ensino Médio não garantiu a associação entre o saber local e o conhecimento constituídos nos programas e currículos para esse grau de ensino e, assim, acaba por negar o saber social desses jovens e afirmar conhecimentos fragmentados da realidade social que os cerca.
E é aí que tem de haver, na verdade, a progressiva conquista dos trabalhadores no domínio sobre seus interesses enquanto classe social, para o que é necessário intensificar uma efetiva posição política/ideológica, a fim de garantir, realmente, a formação omnilateral que o próprio princípio filosófico e pedagógico do MST almeja.
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Identificad or | Descrição |
A1 | Menino, 18 anos de idade, estudou no terceiro ano do Ensino Médio. Veio do Maranhão com seus pais e irmãos quando ainda era criança. Morava em Palmares desde os 4 anos de idade. Primeiro, veio seu pai para Palmares, que fazia parte do MST, e logo conseguiu um lote para construir a casa e trouxe o restante da família. |
A3 | Menino, 17 anos, nasceu no Paraná e veio para Palmares em 2014; filho de trabalhador que veio para o Pará em busca de emprego. Sua família “morava na roça”, como ele diz, no interior de Palmares. |
A4 | Menino, 16 anos, morava em Palmares há 11 meses. Veio do estado do Amapá para Palmares para estudar na Escola Crescendo na Prática. Segundo ele, a sua ida para o assentamento se deu pelo interesse em participar do Movimento e estudar. |
A2 | Menina, 17 anos, estudava na Escola Crescendo na Prática. Seus pais vieram do estado do Maranhão para trabalhar. Segundo ela, eles ajudaram a fundar o assentamento Palmares II. |
A5 | Menina, 18 anos, nasceu no Maranhão, Barra do Corda, e veio ainda criança para Parauapebas. Seu pai veio primeiro, em busca de trabalho, e logo depois mandou dinheiro para que o resto da família viesse para Parauapebas: mãe e duas filhas. |
Coordenad or | Formação em Letras e pós-graduação em Gestão e Orientação Escolar e também em Artes e Linguagem nas Escolas. Trabalha na escola há 11 anos, exercendo funções tanto no município como no estado. No que diz respeito a seus vínculos trabalhistas, no município, é concursado, e no estado, é contratado. |
Professor 1 | Formação em Filosofia e Teologia e especialização em História da Filosofia e Educação do Campo. Oriundo de Fortaleza, veio para Parauapebas em 1991, onde trabalhou na Escola Eduardo Angelim. Ficou de 1991 a 2001 trabalhando indiretamente com os assentados do MST. Desde as primeiras turmas do Ensino Fundamental na Escola Crescendo na Prática, o professor estava presente. |
Professor 2 | Formação em Ciências Sociais, Sociologia. Trabalhava há dois anos na Escola Crescendo na Prática. Não participa do MST e tampouco conhece a realidade do movimento. |
V.18, nº 37, set-dez (2020) ISSN: 1808-799 X
Eleuza de Souza2 Maria Edilene da Silva Ribeiro3 Odete da Cruz Mendes4
Resumo
Este trabalho analisa o papel da mulher agricultora no Sindicato de Trabalhadores e Trabalhadoras, Agricultores e Agricultoras Familiares Rurais (STTR), a fim de compreender os limites da atuação desta e sua constituição de ser politicamente mais engajada. Parte de abordagem qualitativa, ancorada em Netto e Braz (2010), Cisne e Santos (2018), Silva (2008), Aquime (2018), e outros, e da análise documental (recorte temporal de 1997 a 2010). Os resultados demonstram a relevância do sindicato para as ações de suas associadas, e, consequentemente, as contribuições na formação de agente político.
Palavras-chave: Trabalhadora Agricultora Rural; Sindicato Rural; STTR/Cametá; Ser Político.
LA PARTICIPACIÓN DE LA MUJER TRABAJADORA COMO ASOCIADA EN STTR / CAMETÁ Y SU CONSTITUCIÓN COMO SER POLÍTICO
Resumen
Este artículo analiza el papel de la mujer agricultora en el Sindicato de Trabajadores Rurales de Cametá (STTR), para comprender los límites de las actividades de la asociada y si se ha convertido en un ser social más comprometido políticamente. Parte de un enfoque cualitativo, anclado en Netto y Braz (2010), Cisne y Santos (2018), Silva (2008), Aquime (2018), entre otros, combinados con el estudio documental (de 1997 a 2010). Los resultados demuestran la importancia del sindicato para las acciones de sus miembros y, en consecuencia, contribuyen a su constitución del ser político.
Palabras clave: Trabajador agrícola rural; Unión rural; STTR / Cametá; Ser político.
THE PARTICIPATION OF WORKING WOMAN AS AN ASSOCIATE IN STTR / CAMETÁ AND ITS CONSTITUTION AS A POLITICAL BEING
Abstract
This article analyzes the role of women farmers in the Rural Workers Union (STTR) of Cametá, to understand the limits of the associate's activities and whether she has become a more politically committed social being. Part of a qualitative approach, anchored in Netto and Braz (2010), Cisne and Santos (2018), Silva (2008), Aquime (2018), among others, combined with the documentary study (from 1997 to 2010). The results demonstrate the importance of the union for the actions of its members and, consequently, contribute to its constitution of being political.
Keywords: Rural Farming Worker; Rural Union; STTR / Cametá; Being political.
Artigo recebido em 30/04/2020. Primeira avaliação em 27/05/2020. Segunda avaliação em 14/07/2020. Terceira avaliação em 16/07/2020. Aprovado em 21/08/2020. Publicado em 25/09/2020.
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v18i37.42473
Mestre em Educação pela Universidade Federal do Pará (UFPA) - Brasil. Professora da Educação Básica. E- mail: eleuza-souza@bol.com.br. ; ORCID: 0000-0002-8289-1315 .
Doutora e Mestre em Educação pela Universidade Federal do Pará (UFPA) - Brasil. Professora da Universidade Federal do Pará - UFPA. E-mail: mariaedileneribeiro@yahoo.com.br ORCID: 0000-0002-0989-0391. Lattes: http://lattes.cnpq.br/6279228695466400
Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) - Brasil. Mestre em Educação
pela Universidade Federal do Pará (UFPA) - Brasil. Professora da Universidade Federal do Pará (UFPA). E-mail: ocm@ufpa.br ORCID: 0000-0002-1475-3922 Lattes: http://lattes.cnpq.br/3058470629162300
O presente texto é fruto de uma pesquisa que analisou o papel da mulher agricultora no Sindicato de Trabalhadores Rurais, Agricultores e Agricultoras Familiares de Cametá – STTR/Cametá, antes STR5, tendo em vista os limites da sua atuação de associada e as possíveis conquistas, a partir deste movimento sindical que a tornou politicamente mais engajada. Objetiva-se, assim, analisar a relação entre trabalho e constituição da mulher em Ser Político no/pelo trabalho, no contexto das lutas na referida entidade sindical.
Uma vez estabelecido o campo empírico da pesquisa como o Sindicato de Trabalhadores Rurais, Agricultores e Agricultoras Familiares de Cametá – STTR/Cametá, no estado do Pará, com sede na referida cidade, definimos um recorte temporal para obtenção dos dados - 1997 a 2010 -, período de interstícios de inserção e ampliação das lideranças no contexto do movimento no qual a mulher trabalhadora passou a ser reconhecida não apenas como associada, mas como liderança da organização, pautando suas demandas e buscando posicionamentos na entidade.
A metodologia constou de revisão da literatura e análise de documentos6 como relatórios de congressos, relatórios de encontros formativos e deliberativos, atas de posse de diretoria do sindicato, fichas de filiação de associados, projetos de formação e relatórios de projetos, entre outros, imprescindíveis para desvelar o processo de organização, participação da mulher trabalhadora na referida entidade.
Justifica-se as técnicas utilizadas por serem adequadas ao tratamento de um tema que envolve sujeitos coletivos e suas experiências sociais, e que suscita, segundo Minayo (1994, p. 21), “[...] um universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, relevantes para compreensão das relações, e processos de vivências dos sujeitos”. Ainda de acordo com a autora, só o ser humano é capaz de agir e pensar sobre o que faz, interpretando suas ações dentro e a partir de suas experiências vividas e partilhadas com seus pares.
Conforme Ata de Alteração Estatutária do Sindicato dos Trabalhadores Rurais – STR/Cametá, de 18 de dezembro de 2015, a alteração estatutária seria feita na “[...]representação sindical profissional para a categoria de Trabalhadores e Trabalhadoras, Agricultores e Agricultoras Familiares Rurais [...] Estatuto do Sindicato de Trabalhadores Rurais, Agricultores e Agricultoras Familiares de Cametá – STTR/Cametá (STTR/CAMETA, 2015, p. 1).
Esclarecemos que os documentos analisados retratam a entidade com a sigla STR/Cametá, uma referência ao atual STTR/Cametá, conforme a anterior nota explicativa.
A importância de documentos como fonte de pesquisa é reiterada por Cellard (2008), que considera “[...] uma fonte preciosa insubstituível em qualquer reconstituição referente a um passado relativamente distante”. Além disso, muito frequentemente, ele permanece como “[...] testemunho de atividades particulares ocorridas num passado recente” (CELLARD, 2008, p.295).
Os dados documentais foram fundamentais para a compreensão dos processos participativos e sócio-históricos; nesse caso, em particular, o processo do movimento sindical local e sua relação com inserção das trabalhadoras nesse contexto.
O interesse pelo tema, dentre outros aspectos, se deve à formação política da massa trabalhadora do município por meio do STTR/Subsede Cametá, entidade que congrega inúmeros trabalhadores da região e que, com apoio da Prelazia de Cametá, liderou uma das mais importantes mobilizações da classe trabalhadora, conhecida como “Encontro do Anilzinho”7. Neste recorte de estudo, porém, problematizamos o processo de organização e participação das trabalhadoras agricultoras no contexto do sindicato e os espaços de liderança por elas assumidos, apontando a importância das ações empreendidas como associadas.
Consideramos relevante o presente estudo por ele envolver sujeitos pertencentes a um grupo social excluído, mas que contribui decisivamente para um projeto mais humano de sociedade. Como associadas, seus serviços protagonizam a sobrevivência de sua família, produzindo, ainda que de forma invisível, os conhecimentos no/pelo trabalho e fortalecendo, assim, o movimento social de forma mais politizada e potencialmente plena.
A pertinência do tema como objeto de investigação acadêmico-científica se deve, dentre outros, à importância que a organização sindical assume, nesse caso o STTR/Cametá, na sociedade local, constituindo-se uma entidade de classe na qual homens e mulheres do campo se identificam e protagonizam direitos por meio de lutas
Segundo Almeida (2010), o movimento do Anilzinho se constitui como um marco histórico do campesinato do Baixo Tocantins. O movimento que aconteceu no município de Baião/PA, em 1979, numa região denominada Anilzinho, situada às margens de um rio do mesmo nome, foi o primeiro no contexto da luta pela tomada do Sindicato dos Trabalhadores Rurais (STR) -, hoje STTR, pelos trabalhadores alinhados politicamente como o “novo sindicalismo”. Considerado um fato importante no processo de luta pela terra que já iniciara em diversas regiões do Brasil e sobre a qual a Igreja Católica manifestou publicamente o seu apoio na Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, de 1980, lançando o documento “Igreja e problemas da terra”. Em decorrência desse acontecimento, foi criada a “Lei Anilzinho” e outras. A Lei dos posseiros 197 é “[...] um conjunto de leis construída por esses sujeitos com a finalidade de proteger as pequenas propriedades do latifúndio” (SILVA, 2018).
diversas. Além desse importante espaço de reconhecimento das identidades rurais, o estudo é um resgate de dados que pode servir para embasamento de futuros estudos e, assim, contribuir com o movimento, como forma de reflexão quanto aos direcionamentos construídos por esses sujeitos, enquanto categoria de trabalhadoras e trabalhadores.
A abordagem do tema no presente artigo está subdividida em dois momentos, além desta introdução e das considerações finais: no primeiro, a partir de uma revisão da literatura, explicita-se a origem do sindicato e sua importância enquanto organização de trabalhadores, pontuando o trabalho e a participação como categorias. Analisa-se, ainda, a organização das mulheres agricultoras e sua inserção em diferentes espaços sociais até serem associadas e partícipes da entidade sindical, no contexto da organização política; no segundo, a partir da análise documental, realizamos discussões referentes ao modo como essas mulheres se inserem na entidade, pelo modo de sobrevivência no trabalho e nas lutas do próprio sindicato, pautando suas demandas, no intuito de que sejam visibilizadas enquanto agente que como ser, no/e pelo trabalho, também, produz sua existência. Nesse item, trazemos alguns elementos constitutivos da importância da atuação da mulher trabalhadora no seio do movimento sindical e no meio onde vive, concebendo-a como um ser que é capaz de pensar, realizar ações e refletir sobre sua condição de mulher trabalhadora agricultora e associada, dimensões que a constituem como Ser Político.
O sentido de participação está ligado ao projeto democrático e ao exercício da cidadania por meio do vínculo entre povo e poder. Para Carvalhaes e Silva (2017, p. 58), “[..] somente através de participação política de todos os cidadãos é que se poderá falar em Estado Democrático de Direito, paradigma indispensável para efetivação de outros direitos fundamentais”.
Sendo a participação uma das condições principais ao exercício de cidadania e, por extensão, a participação popular um processo de aperfeiçoamento democrático, os processos participativos nos Estados Democráticos de Direito não podem ser negados. Negar a participação é, pois, transformar homens e mulheres em massa amorfa, pois o aperfeiçoamento democrático se faz por “[...] luta de vontades políticas
conscientes e responsáveis” (WEFFORT, 1984, p. 31), sendo o sindicato um importante espaço de participação política.
É, pois, nas relações de trabalho que os sindicatos, enquanto organizações ou espaço coletivo de representação de profissionais, como entidade de classes, assumem importância.
Para trazer a categoria de ser político-social, de modo a explicitar o processo de construção da mulher trabalhadora rural no contexto da organização das lutas dos trabalhadores rurais do município de Cametá, é, pois, necessário retratar o trabalho enquanto elemento fundante da materialidade da existência humana, pois, segundo Netto (2010, p. 41), “[...] o trabalho é constitutivo do ser social, mas o ser social não se reduz ou esgota no trabalho. Quanto mais se desenvolve o ser social, mais as suas objetivações transcendem o espaço ligado diretamente ao trabalho”.
A criação dos sindicatos, como entidades de classe e como espaços legítimos, segundo Pannekoek (2007, p. 60), “[...] são, pouco a pouco, reconhecidos como representantes dos interesses dos trabalhadores e trabalhadoras e ainda que a luta continue necessária, tornam-se uma força que participa nas decisões”. Para o autor, essa entidade nasce da solidariedade dos trabalhadores como necessidade de organizar-se enquanto classe trabalhadora, para enfrentar coletivamente o capitalismo como inimigo.
Para Netto e Braz (2010, p. 34), o “[...] trabalho é sempre atividade coletiva: seu sujeito nunca é um sujeito isolado, mas sempre se insere num conjunto (maior ou menor, mais ou menos estruturado) de outros sujeitos”. Logo, o caráter coletivo da atividade do trabalho, para os autores, é, substantivamente, aquilo que se denominará social. Todavia, a sistemática do capital individualiza o trabalhador, sendo o sindicato e as demais associações entidades de importância, onde as “[...] mulheres travam, assim, uma luta pela igualdade, pela visibilidade e pelo seu protagonismo, desconstruindo a história tradicional antropocêntrica e universalizante do mito do sexo frágil” (AQUIME, 2018, p. 25).
Netto e Braz (2010) trazem reflexões pertinentes em relação ao conceito de ser social e seu nexo com a formação política, cuja prerrogativa das relações de trabalho constitui o Ser Político. Trata-se de conceber o trabalho em contínua criatividade e evolução, numa dinâmica transformadora da natureza e do próprio homem graças “[...] à sua própria criatividade, ao trabalho” (NETTO; BRAZ, 2010, p. 37).
Para Cisne e Santos (2018), o trabalho é indispensável à reprodução dos seres humanos, sendo a atividade muito cara à perpetuação da espécie e de sua evolução como ser social, quando se pode dizer que essa marca diferencia os humanos dos animais. O trabalho é, na concepção do Braverman (1976), algo específico do ser humano. Para esse autor, no entanto, apoderar-se dos materiais da natureza tais como são, sem transformá-los, não é trabalho, pois o trabalho é uma atividade que modifica o estado dessa matéria para apurar sua utilidade.
Consideramos que, desde os primórdios, os seres humanos – homens e mulheres –, para garantir sua reprodução precisavam trabalhar. O conceito de trabalho que defendemos é o trabalho formador do gênero humano, ou seja, aquele que satisfaz às necessidades básicas da humanidade, que, por outro lado, promove a qualificação e o aperfeiçoamento de homens e mulheres. Para Cisne e Santos (2018), trata-se da relação dialética, cuja síntese integra o homem, tendo sentido ontológico na medida em que sua importância reside nas relações onde ocorrem o movimento entre o pensar e o agir sobre a natureza, resultando objetivamente sua condição de existência, que é processo onde se materializa na/pela transformação da natureza para garantir a sobrevivência da espécie.
Transformando, assim, a natureza, homens e mulheres, consequentemente, transformam-se, mediados pela necessidade de aprimorar os instrumentos que estes produzem, e que, buscando aperfeiçoá-los, produzem novos instrumentos capazes de dar conta, cada vez mais, de aproveitar seu uso em diferentes atividades.
Nesse sentido, mulheres e homens apropriam-se da natureza segundo suas necessidades, e seu trabalho, para Braverman (1976, p. 49-50), “[...] não transforma apenas o material sobre o que opera; ele imprime ao material o projeto que ele tinha conscientemente em mira, o qual constitui a lei determinante do seu modo de operar e ao que tem de subordinar sua vontade”. Assim, o trabalho, como atividade intencional, orientado pela inteligência e esforço físico, é “[...] produto especial da espécie humana. Mas esta, por sua vez é produto especial desta forma de trabalho. Ao agir assim sobre o mundo externo e transformá-lo, ele mesmo modifica sua própria natureza” (BRAVERMAN, 1976, p. 52), criando, recriando, refletindo e aprimorando sua existência, com e pelo trabalho.
Essa evolução realizada por meio trabalho, mediada pelos instrumentos para transformar a natureza e o próprio ser humano, acentuam Netto e Braz (2010), “[...] a
efetivação do trabalho, [...] só se dá quando essa prefiguração ideal, isto é, quando a matéria natural pela ação material do sujeito é transformada”, implicando, pois, em um movimento que exige o planejar e o executar, constituindo, segundo ponderações de Cisne e Santos (2018, p. 27 ), “[...] o trabalho do ponto de vista ontológico, no ato fundante do ser social”, que cria, reflete sobre a materialização e recria, melhorando a matéria para satisfazer outras necessidades vitais.
Desse modo, o trabalho, mediante o limiar das sociedades, permitiu a formação do ser social e estruturou a sociedade, objetiva e subjetivamente. Os indivíduos e a sociedade tendem a desdobrar-se mediados por outros sistemas que não buscam mais satisfazer às necessidades vitais, mas à individualidade. É nessa dinâmica que apreendemos a diversidade humana e, nesta, está inclusa a vida da mulher trabalhadora agricultora, seja ela negra, cabocla, indígena ou ribeirinha, cuja essência forjada no/pelo trabalho a transforma em Ser Político.
Essa diversidade de mulher trabalhadora agricultora que a totalidade de associadas no STTR/Cametá abarca é, ao mesmo tempo, singular como partícipes da população amazônica, região marcada por desigualdades diversas, onde, certamente, o peso da cultura de diferença de gênero que privilegia a figura masculina também a afronta. Nesse contexto, a militância representou avanço considerável para as trabalhadoras rurais, tendo sido maioria dentre o conjunto de associados, conforme documento da entidade (CAMETÁ/STTR, 2017).
No referido documento, observou-se um total de 7.837 (sete mil oitocentos e trinta e sete) associados, sendo 1.594 (mil quinhentos e noventa e quatro) homens e
6.243 (seis mil duzentas e quarenta e três) mulheres trabalhadoras rurais. Esse quantitativo representa 79,66% de mulheres, para 20,34% homens filiados. Tais dados informam que as trabalhadoras, em sua singularidade, buscam a entidade com maior frequência, seja por necessidade de engajamento no processo produtivo com mais visibilidade entre os demais trabalhadores e/ou como uma alternativa de participação política que ofereça oportunidades de inserção em espaços para além do sindicato.
Pondera-se que esse Ser Político, que é a mulher trabalhadora rural, com marca singular, constrói-se e reconstrói-se, pois é no contexto do sindicato do qual faz parte que se identifica como tal e, nesse caso, de acordo com Hebétte, Magalhães e Maneschy (2002, p. 32), “[...] são grupos sociais que vivem no meio rural, seja na terra
firme ou na várzea”, onde produzem suas existências. O ser social do qual tratamos é trabalhadora rural, reconhecida como agricultora familiar, e sua profissão envolve dimensões multifacetadas, pois é na relação com a natureza que retira as condições de sobrevivência, garantindo o sustento de sua família, tornando-se autônoma na relação com o parceiro e demais sujeitos. As mulheres, segundo Siliprandi e Cintrão (2015, p. 574), “[...] além do trabalho na casa, [...] participam do trabalho na agricultura (preparação do solo, plantio, tratos culturais, colheita, pós‑colheita) e também se responsabilizam pelo ‘quintal’”, como mães, cuidam de seus familiares, na relação com os outros seres humanos, buscam nas organizações evidenciar suas necessidades, e, como associadas, lutam por um espaço no contexto político do sujeito coletivo que congrega sua categoria.
Nesse entendimento, os estudos de Cisne e Santos (2018) sobre diversidade sexual humana e sua relação com trabalho, classe social, ajudam a compreender as lutas das trabalhadoras por um espaço no contexto social e político e na estrutura organizativa sindical, sem uma necessidade pujante de enveredarmos pelas discussões referentes aos feminismos e suas correntes.
Nesta premissa, concordamos que a desvalorização das trabalhadoras foi construída desde os sistemas feudal e escravista até o capitalista, que ocorreu, segundo Cisne e Santos (2018), “[...] no processo histórico, na exploração do homem/ mulher sobre homem/mulher, desde a sua formação embrionária, expressa na origem da propriedade privada”. Assim sendo, a exploração do trabalho cimentou os sistemas do racismo e do patriarcado, fazendo com que, na classe de trabalhadores, os homens exercessem esse mesmo sistema de poder sobre as mulheres.
Desse modo, as lutas das mulheres agricultoras não se fazem apartadas das lutas de classe, fração de classe, mas imbricadas a elas, mesmo que, para sua categoria, de forma parcial ou secundária, essas lutas sejam, segundo Paulilo (2010,
p. 3), “[...] um produto típico da época dos movimentos sociais no Brasil e apresenta trajetória semelhante a muitos outros destes movimentos”, que visa a demandas por reconhecimento de seu trabalho e, posteriormente, a um lugar no espaço político na entidade representativa.
O sindicato dos trabalhadores rurais é considerado um importante canal de interlocução, por isso, consideram-no como “[...] lócus de aglutinação dos agricultores familiares e trabalhadores rurais, aparecendo como espaço de organização e canal
de veiculação dos (novos) interesses sindicais e políticos dos agricultores e agricultoras familiares” (MALAGODI; BASTOS, 2003, p. 5), como as pautas e agendas das trabalhadoras em constante debate para que seus direitos de participar com voz e voto sejam respeitados.
É nesse espaço que são debatidas temáticas relevantes para fortalecer cada vez mais o sentido de pertença entre os/as associados/associadas e o sindicato. As demandas emergentes devem transformar-se em propostas nas assembleias, conferências, congressos, pautando sempre a problemática da vida dos trabalhadores e das trabalhadoras. E, por se tratar de um movimento que integra inúmeras ideias, também é perpassado por contradição, como relatam Siliprandi e Cintrão (2015, p. 578): as “[...] mulheres enfrentam uma disputa constante para a conquista de espaços e para a inserção e reconhecimento efetivo da questão de gênero no interior das organizações de trabalhadores rurais”.
Como parte do segmento de associados no STTR/Cametá, as trabalhadoras, em seus coletivos, partilham experiências e apresentam contrarrespostas aos estigmas que as inferiorizam historicamente, tornando-se aptas às conquistas de espaços de gestão no movimento sindical e para além deste, a exemplo de uma das companheiras que passara a ter assento na CONTAG8, confirmando que a base sindical é um espaço de formação e apropriação de conhecimentos que habilita os seus membros.
As agricultoras, imbuídas de conhecimentos adquiridos pela formação de base, desde a Associação Paraense de Apoio às Comunidades Carentes (APACC), e outros mais, desenvolveram estratégias de resistência em seus coletivos e lugares de pertença, conforme os postulados que propõem Netto e Braz (2010), que é a capacidade de projetar, de pensar antes de realizar a ação. Para os autores, a dimensão que o trabalho proporciona ao indivíduo, em suas complexas dimensões de humanização, linguagem, reflexão sobre o material objetivado, também o transforma. Segundo Netto e Braz (2010, p. 41-42):
Na sua ação e na sua atuação, o ser social sempre encontra alternativas, sempre pode escolher – e escolha entre alternativas concretas configura exercício de liberdade, ser livre é poder escolher
Aqui nos referimos à companheira Waldirene Gonçalves da Cruz, que após militar no STTR/Cametá como Vice-Presidente, conforme documento de posse, de 2010 (STTR/CAMETÁ, 2010) para o mandato de 2010 a 2014, passou a participar de outros espaços, tomando assento na CONTAG.
entre elas: o ser social é um ser capaz de liberdade. Pensar, projetar, objetivar-se e escolher.
A partir do trecho de Netto e Braz que salienta o engajamento do homem/mulher mediado pela ação como ato de liberdade, enfatiza-se a importância de algumas ações das trabalhadoras rurais em projetos, tomando como exemplo o “Grupo de Mulheres Nova Esperança de Cametá” (GMNE/CAMETÁ, 2009). Esses projetos funcionavam nos setores da Estrada e outras localidades como a Comunidade de Livramento, em Cametá e sua ênfase está em ser reconhecido como uma ação que resultou da associação das mulheres, sindicalizadas ou não. Nessas ações, as mulheres conseguiram ampliar e fortalecer suas lutas nessas comunidades e no interior do sindicato.
O Projeto GMNE chegou a um coletivo de 22 (vinte e duas) mulheres agricultoras/es familiares e 1 (um) homem na mesma categoria, não sendo uma associação exclusiva de mulheres, mas com maior visibilidade feminina, sem deixar de “[...] considerar alguns aspectos específicos entre os sexos, como classe social, pois tanto homens quanto mulheres fazem parte do grupo menos favorecido” (AQUIME, 2018, p. 17), quando se trata de trabalhadores.
Considerar, pois, o processo formativo do ser político-social como inconcluso e permanente, sempre aberto às possibilidades, é considerar a necessidade de constante aperfeiçoamento e, nisso, consiste a formação da mulher associada, tornando-a “[...] apta a reconfigurar-se, e enriquecer-se no curso da história presente e futura” (NETTO; BRAZ, 2010, p. 42). O permanente refletir do grupo de trabalhadoras no processo participativo das ações da base, por meio da Federação Estadual dos Trabalhadores na Agricultura (FETAGRI), por exemplo, foi uma das formas de construir modos de sustentabilidade, resistindo às ações que degradam o meio ambiente, quando estas participaram do “Projeto na Amazônia Empreendedorismo das mulheres Rurais do Pará”.
O relatório de ações desenvolvidas nesse projeto pelo grupo de mulheres sugere que é na organização do coletivo que elas mobilizam ideias sobre o desejo de desenvolver um trabalho de fortalecimento e preservação do meio ambiente, tanto pelos vínculos de pertencimento à terra quanto pelo trabalho como forma de resistência aos projetos desenvolvimentistas pragmáticos que intencionam exclusivamente resultados como bens de troca, mercadorias.
Pela práxis humana “[...] os indivíduos constroem a si mesmos e a totalidade social, e que ela é a fonte da constituição do ser social, ou da autoconstrução humana e, também, a partir dela ocorre o desenvolvimento as relações sociais” (CISNE; SANTOS, 20015, p. 28), promovendo interações que permitem propiciar momentos de encontros, de trabalho, e de contínuas elaborações e refinamentos das atividades desse coletivo em constantes elaborações e reelaborações de estratégias de enfrentamentos que permeiam suas atividades, tanto no fazer agrícola como externo a ele.
Com base nas ideias de Cisne e Santos (2018), de que as relações de gênero não se dissociam das lutas políticas e de classes, podemos retratar o projeto Grupo de Mulheres Nova Esperança de Cametá (GMNE/CAMETÁ, 2009), projeto que representou para as associadas um espaço de desenvolvimento de ações/produção de subsistência por meio de iniciativas protagonizadas por elas com assessoria técnica de órgãos competentes e financiamento por programas específicos. Nessa iniciativa, as associadas demonstraram seu potencial criativo de agricultoras, por ações de viveiros de mudas para o plantio de 10.000 (dez mil) mudas de árvores, tanto de espécies nativas da região quanto de árvores frutíferas – como cacau, açaí, cupuaçu, graviola, acerola, goiaba e outras.
Assim, a formação política como militantes e a condição de mulher e de trabalhadoras rurais integram-se para a constituição desse ser social mais consciente de seu papel. Esse modo de atuação e de organização por meio da entidade sindical é uma forma de resistir, existir e participar, considerando a necessária defesa de “[...] interesses da classe que não detém o mecanismo de produção, como a sua fração que habita e constitui na Amazônia” (SILVA, 2011, p. 89).
As trabalhadoras, segundo o documento “Grupo de Mulheres Nova Esperança de Cametá” (GMNE/CAMETÁ, 2009), se declaram agricultoras familiares, reconhecendo sua categoria e a importância que estas tencionam nesses espaços, tornando possível uma interpretação apoiada em Netto e Braz (2010) que, por meio do trabalho, pode-se transcender para outras objetivações imediatas, enquanto mulher trabalhadora rural, como aquisições da filosofia, da arte, da agroecologia, bem como o ensejo de ser mais, SER político e dirigente.
Do coletivo de mulheres agricultoras familiares ressoa um agradecimento todo especial às entidades que lhes deram fôlego para fomentar formas de construir modos
de resistência frente à produção que degrada o meio ambiente, como expressa o documento Grupo de Mulheres Nova Esperança de Cametá. (GMNE/CAMETÁ, 2009): “Queremos agradecer à FETRAGRI-PA e SAGRI, que estão trabalhando este projeto de desenvolvimento para o Estado do Pará, onde uma nova vida é possível”. Essa atividade promoveu a congregação de mulheres em busca não só de geração de renda, mas também uma forma de visibilizar seu trabalho como produtivo e garantir para as futuras gerações as riquezas naturais, concebidas como bens comuns, contrariando a única e perversa lógica de produção que intenta o capital.
É esse contexto de lutas, resistências, estratégias e apropriações de conhecimentos que constitui o processo constante de constituição de Ser Político, no qual a mulher, conscientemente, começa a se declarar trabalhadora agricultora, sendo capaz de construir estratégias de enfrentamento nas relações estabelecidas, mostrando-se sujeito de direitos, ainda que, na prática, suas ações sejam mais experienciadas ou pragmáticas do que juridicamente reconhecidas, conforme veremos no item seguinte.
O reconhecimento da condição de mulher e de trabalhadora rural foi, talvez, um dos objetivos da militância das associadas na entidade sindical, tendo estas se organizado em diversas mobilizações para que pudessem ter acesso a lugares de visibilidade, pela pertença à sociedade, como cidadãs, pleiteando espaços em outras instituições. É, pois, na mediação do trabalho e nas suas múltiplas relações que nos reconhecemos como classe, quando os indivíduos se constituem seres políticos. Cisne e Santos (2015, p. 28) ressaltam que na relação forjada, “[...] pelo trabalho, os indivíduos constroem a si mesmos e a totalidade social, e que ela é a fonte da constituição do ser social, ou da autoconstrução humana [...]”, promovendo interações que permitem propiciar momentos de encontros, de trabalho e de contínuas elaborações e refinamentos das atividades desse coletivo.
Enquanto associadas, a apropriação de conhecimentos de militantes possibilitou um movimento das trabalhadoras agricultoras em direção aos direitos de cargos na estrutura sindical, no sentido de se fazerem presentes em espaços deliberativos. O documento do “3º Congresso do Sindicato dos Trabalhadores Rurais
de Cametá – filiado à Central Única dos Trabalhadores (CUT)”, realizado de 22 a 24 de julho de 1997, registra em seu relatório que foi deliberado, nesse encontro, a criação da Comissão de Organização das Companheiras, que teria a composição de 2 (duas) representantes, que seriam escolhidas dentre alguns setores de atuação de movimento de mulheres de Cametá, conforme quadro abaixo:
Setor Estrada: Helena – (Ajó); Suely – (Cupijó); Setor Cima: Margarida (Merajuba); Orlandina – (Cuxipiari Furo Grande); Setor Médio: Gigita, Francisca da Conceição (Carapajó); Raimunda da Conceição; Setor Baixo: Claudina, Maria Zula; Cidade: Anádia, Elza, Adede (CAMETÁ/STR, 1997, p. 9).
Esse documento define o papel das comissões constituídas, que seria o de organizar as trabalhadoras e de promover discussões com elas sobre as demandas que deveriam pautar no contexto sindical. Para Leone e Teixeira (2010, p. 4), “[...] a criação de comissões de mulheres nas estruturas sindicais deu-se a partir da necessidade de introduzir no movimento sindical a luta da mulher trabalhadora para enfrentar a discriminação a que são submetidas no cotidiano do trabalho, do sindicato, e na realidade como um todo”.
A criação da Comissão de Organização das Mulheres como pauta do seminário acima citado foi, sem dúvida, um momento oportuno para a entidade sindical problematizar a condição desse segmento de trabalhadores em relação à sua inserção enquanto mulher no contexto da diretoria do Sindicato, com importante papel a desempenhar e considerável influência. Sobre a participação das mulheres em organizações como trabalhadoras Silva (2008, p. 15), afirma:
[...] a participação no movimento dos agricultores não era motivada por reivindicações específicas de sua condição de mulher; o que as mobilizava era o reconhecimento de pertencer a determinada categoria social e política, integrando, assim, o conjunto de lutas pelo direito à terra, ao crédito e aos benefícios da previdência social como aposentadoria e auxílio doença.
Por meio de sua organização, essas mulheres, no caso do STR/Cametá, que eram também invisíveis no plano político, passaram a conhecer seus principais direitos e a reconhecê-los como legítimos, como o auxílio-maternidade e o financiamento de atividades agrícolas por parte dos investidores e bancos credores e, em outros espaços, como a inserção de uma trabalhadora na composição da diretoria
do Sindicato, no mandato de 1997 a 2000, assumindo a Secretaria de Finanças, conforme o documento analisado (CAMETÁ/STR, 1997, p. 10).
No entanto, no mandato de 2000 a 2004, verificou-se que a organização das comissões por setores tomou outra configuração, reduzindo o número de lideranças femininas em setores do sindicato que antes eram por elas liderados e nos quais buscavam ampliar seus espaços de participação, sem que isso tivesse enfraquecido a participação sindical das mulheres. A partir do ano de 2000, das 12 (doze) mulheres existentes nas comissões setoriais sindicais, apenas 2 (duas) delas assumiram posição de liderança. Esse fato é ilustrado no documento Projeto de Formação de Convênio e Cooperação com a Alemanha – DED Deutscher Entwicklungsdienst, Serviço Alemão de Cooperação Técnica e Social – EO/21/2002 (EO/BRASIL, 2002), que registra os nomes de Suely da Assunção N. da Silva e Helena Ferreira da Cruz, que dentre as associadas assumiram cargos de Secretária na Secretaria da Mulher/STR/ Cametá e Secretária da Secretaria de Gênero e Geração, respectivamente, em mandatos ocorridos no recorte histórico analisado.
A inserção das companheiras como lideranças na estrutura sindical possibilitou organizar demandas em busca de caminhos viáveis para participação de modo qualificado nesse contexto. E o “Projeto de Formação da Secretaria de Mulher do STR”, em convênio com a ONG Alemã, financiou a formação das trabalhadoras no mandato entre os anos 2000 e 2004. Contudo, a Secretaria de Mulher somente se configura como tal após adentrar na pauta de discussões, como foi apurado na Proposta para Debates do 6º Congresso do STR 2006: “Consolidar a Secretaria de Mulher no STR” (CAMETÁ/STR, 2006, p. 5), fazendo composição de forma legitimada por meio do 6º Congresso do STR, onde duas trabalhadoras passaram a fazer parte dessa composição, desde o mandato do ano 2000.
Se, por um lado, as mulheres se organizam e mobilizam esforços para conquistar espaços nessa entidade – que se inicia com as Comissões de Companheiras, Coordenadoria, até a consolidação da Secretaria da Mulher –, no interior do movimento, por outro lado, confrontam-se com os encaminhamentos e prioridades desse sujeito coletivo que é o sindicato, com caráter relativamente estável e que tem a função de defender os interesses do conjunto de associados, muitas vezes, impossibilitando os encaminhamentos em relação à questão de gênero, pois “a história das trabalhadoras rurais no Brasil é marcada pela exclusão. Exclusão que
se somou durante muito tempo a sua condição de classe explorada e marginalizada, com uma forte discriminação de gênero” (OLIVEIRA, s/d, p. 5).
É, pois, a busca de uma formação política que as mulheres empreendem na militância e nas mobilizações como mecanismo de superação da discriminação. A partir das leituras de Silva (2019), pondera-se que tais discriminações são uma forma de subjugar e silenciar as possibilidades femininas, às vezes, de forma velada, individual ou nas “[...] relações em sociedade que trazem uma série de complexidades, dentre elas, as relações de poder e suas contradições, na qual o poder se dá na relação entre os indivíduos na prática social cotidiana. (SILVA, 2019, p. 2098).
Em contestação aos modos dirigentes no movimento sindical, as trabalhadoras rurais empreenderam plenárias nos diversos setores que compunham as delegacias frente às demandas por uma plataforma para a Secretaria de Mulher. Esse movimento está contido no documento do Projeto I Seminário de Mulheres Trabalhadoras Rurais STTR 2005, com objetivo de “Discutir a Relação de Gênero na Agricultura Familiar, dentro do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadores Rurais de Cametá” (CAMETÁ/STR, 2005c, p. 4).
No referido documento, verificamos que as mulheres trabalhadoras eram maioria como associadas, mas política e socialmente elas apresentavam limitações em relação aos homens tanto nos espaços de lideranças nos cargos de diretorias da entidade, quanto nos demais espaços de produção, como na agricultura familiar, onde a força de trabalho destas, ainda que considerada importante, não havia registro de liberação ou apoios financeiros à mulher junto aos órgãos competentes. Esse limitado reconhecimento da mulher associada é ilustrado no seguinte trecho: “Hoje a mulher é maioria dentro do STR de Cametá, entretanto, na prática isso não se transporta para os debates internos, ficando-a sempre em segundo plano, onde as mulheres estão em todos lugares e não estão em lugar nenhum” (CAMETÁ/STR, 2005c, p. 2).
Dessa maneira, percebe-se que, tanto no trabalho da roça quanto na sua inserção no movimento sindical, a mulher não é reconhecida, ainda que ela tenha importância para o desenvolvimento pessoal e coletivo. Essa reflexão que mostra o amadurecimento que elas alcançaram diante das lutas é consciência de si, que elas conseguem externar nesse projeto, pois, para Cappellin (1994, p. 279), quando elas
[...] conseguem fazer própria uma reflexão que articula uma luta contra a discriminação por sexo nos locais de trabalho com uma demanda visando romper a assimetria nas relações de poder no interior das organizações sindicais, esta contínua mediação entre as
especificidades da condição de produtora e a subordinação nas relações de poder faz com que se afirme que os movimentos problematizam o interesse das mulheres de querer exercitar a representação nas instâncias sindicais.
Em relação à discriminação e à inferiorização intramovimento, em especial à mulher trabalhadora, é “[...] preciso compreender, portanto, que as classes não são abstrações, mas que resultam de relações sociais concretas [...] que são marcadas por ideologias, que naturalizam inferiorizações e desvalorização em torno de sua diversidade” (CISNE; SANTOS, 2018, p. 75). Em detrimento a essas invisibilidades, segundo a CONTAG (2011, p. 48), “[...] as mulheres assumem a necessidade de adotarem as políticas afirmativas, para que sua participação seja qualificada e tenham igualdade de condições em relação aos companheiros”.
Em contrarresposta à hegemonia masculina que se acentuava no contexto político e nos direcionamentos dos caminhos tomados nesse movimento, as mulheres demandam diretrizes para orientar as relações de gênero, conforme o documento “Relatório do 3º Congresso do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Cametá Filiados à CUT – Resistir, Avançar e Vencer” (CAMETÁ/STR, 2005b, p. 3):
[...] para construirmos novas relações de gênero faz-se necessário descruzarmos os braços e sair a luta, para isso a secretaria das mulheres do STTR de Cametá, [...] está construindo uma plataforma e diretrizes norteadoras das relações de gênero dentro do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais – STR’s e da sociedade do Baixo Tocantins.9
Outro movimento que proporcionou debates em relação às demandas específicas da mulher foi a apresentação do tema relacionado à violência contra a mulher. Pelo documento sobre o Fórum de Mulheres da Amazônia Paraense (2006), evento esse que foi divulgado e mobilizado pela Secretaria de Mulher, em parceria com a Diocese de Cametá/PA, verificou-se que foi debatido o tema de modo geral e realizada roda de discussão para maior apropriação dos conhecimentos pelas mulheres do campo. O documento deixa claro que a “violência contra a mulher” fez parte da pauta do encontro como tema alusivo ao “8 de março – Dia Internacional da Mulher” (BELÉM/FMAP, 2006, p. 2). As discussões, segundo o referido documento, potencializariam as mudanças principais previstas na lei protetiva da mulher.
Não tivemos acesso a essas proposições, nem conseguimos determinar se tal plataforma foi elaborada.
Reiteramos que as mobilizações, sejam nas organizações sindicais ou para além destas, mostram-se importantes, pois a “[...] troca entre culturas diversas possibilita renovar as concepções de fazer política” (CAPPELLIN, 1994, p. 277).
Fruto das mobilizações das associadas, foi criada a Secretaria de Mulher, como um dos espaços importantes de liderança feminina no interior do sindicato. Em articulação com outros órgãos, como a Federação dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares do Estado do Pará (FETAGRI-PA) – órgão vinculado à Central Única dos Trabalhadores (CUT) –, com papel importante na defesa dos direitos do trabalhadores/as rurais contra a ofensiva assustadora do grande capital, e com o Banco da Amazônia (BASA), a Secretaria de Mulher passou a discutir a questão de gênero, e a incentivar as trabalhadoras na superação das desigualdades de condições de produção no meio rural, por exemplo, por financiamento do PRONAF MULHER10.
A Ata de Posse da Diretoria do STR – quadriênio 2010-2014 –, quando a trabalhadora senhora Waldirene Gonçalves da Cruz assumiu a Vice-direção, registra emblematicamente que os avanços e as conquistas das associadas se deve também à aquisição de saberes pertinentes de formação apropriada pelas lideranças de trabalhadoras, haja vista que o sindicato proporcionou formação para os trabalhadores e para as trabalhadoras lideranças, em parceria com a Casa Familiar, no sentido de promover a educação básica, e, em outros eventos, a formação política e sindical, embora os documentos analisados deixem evidente que as trabalhadoras eram sempre minoria nos momentos formativos propiciados pela entidade.
As diretorias e cargos de mandatos assumidos pelas mulheres no Sindicato, sem dúvida, foram um avanço importante para o aperfeiçoamento democrático da entidade, não apenas por representar a ruptura de uma cultura estabelecida de permanência de lideranças e/ou dos cargos alternados entre os homens, em até três mandatos consecutivos, mas pela presença feminina nesse espaço. Para Cisne e Santos (2018), é importante relacionar a luta das mulheres como um movimento legítimo contra as desigualdades vinculadas à classe trabalhadora.
Os mandatos com permanência de lideranças que asseguraram a mesma composição da diretoria do sindicato ou a alternância entre seus membros com a
Financiamento que visa atender as propostas de crédito de mulheres agricultoras, conforme projeto técnico ou proposta simplificada.
prevalência dos homens associados como líderes, até três mandatos consecutivos, não se revelaram atrativos para o funcionamento da entidade. Segundo as fichas de filiação dos associados, entre os anos de 1999 e 2010 – período de recorrência desse tipo de posição político-administrativa –, verificou-se baixa taxa de sindicalização por parte das trabalhadoras mais jovens. Do total de filiadas, apenas 0,77% delas tinham entre 20 e 29 anos (CAMETÁ/STR, 2010).
A nossa defesa é, pois, por um novo sindicato, transparente e participativo, com potencial para articular seus membros em torno dos interesses destes enquanto categoria, fortalecendo-os em sua representatividade. Enfim, postula-se um espaço onde se possa respeitar e valorizar homens e mulheres trabalhadores/as com particular atenção à singularidade feminina, como trabalhadora e agricultora rural, que é uma tarefa a mais na sua condição de mulher.
Para trazer as ideias conclusivas da pesquisa que deu corpo ao presente texto, retomemos o objetivo inicial da investigação – analisar o papel da mulher agricultora na entidade sindical STTR/Cametá, tendo em vista os limites da sua atuação de associada e as possíveis conquistas que a tornaram Ser Social politicamente mais engajada, a partir deste movimento sindical. Cremos, pois, que, só a partir de então, é que podemos destacar os argumentos centrais que foram produzidos desde os conceitos mais gerais às dimensões específicas das análises sobre os dados dos documentos que estudamos.
Importante destacarmos que as trabalhadoras agricultoras têm uma reivindicação comum à de todos os trabalhadores do campo, cujos direitos passaram a ter visibilidade na agenda governamental, quando o Estado passou a reconhecer os direitos dessa categoria de sujeitos em termos previdenciários, direito à terra, crédito agrícola, dentre outros. Todavia, ainda que esses direitos estejam formalmente garantidos, os acessos efetivos são lentos e bastante restritivos, razões primordiais que levam as trabalhadoras a construírem estratégias variadas e caminhos para conquistar tais reivindicações e outras mais específicas às suas condições de mulher. Nesse processo de luta, fez-se necessário o enfrentamento da desigual oportunidade dessas trabalhadoras por meio da organização sindical, para que, além
de associar-se à entidade passando a ser sócia legítima, elas pudessem ainda obter o reconhecimento de mulher trabalhadora, Ser Político. Buscavam, nessa condição, reconfigurar suas estratégias para atuar em prol da defesa de suas reais necessidades que, segundo Silva (2008), era o de pertencimento a essa categoria social e política, e, assim, integrar-se às lutas relativas ao direito à terra e por fomentos agrícolas, bem como por outros benefícios que, no decorrer das demandas sociais, vão sendo adquiridos.
Uma das estratégias dessas trabalhadoras foi pautar suas reivindicações nesse movimento sindical, antes STR/Cametá e atual STTR, onde sua inserção na estrutura política do sindicato foi, talvez, um meio de romper com a assimetria de poder, no contexto desse movimento predominantemente marcado pelo domínio masculino. De acordo com Cappellin (1994), associar-se ao sindicato foi, dentre outras, uma das maneiras encontradas para problematizar o interesse das trabalhadoras agricultoras, passando a exercitar a representação nas instâncias sindicais e, consequentemente, um meio de expor suas condições e especificidades enquanto produtoras pertencentes a essa categoria de trabalhadoras/es.
É nesse cenário de lutas desempenhadas por esses sujeitos sociais, tanto na militância do sindicato, quanto na organização de produção agrícola propriamente, onde ocorreu a constituição desse Ser Político pelo reconhecimento da existência dessas mulheres, pois o trabalho é o que caracteriza o ser social, mas o ser social não se reduz ou esgota no trabalho, mas o transcende (PAULO NETTO, 2010). Importante lembrar a mediação entre trabalho e humanização, uma vez que, à medida em que o homem produz sua existência por meio do trabalho, este transforma a natureza, sendo ele também transformado nessa relação. O trabalhador é, assim, igualmente aprimorado nessa relação, sendo potencialmente capaz de transcender o espaço imediato no/pelo trabalho.
Por meio desse movimento, as trabalhadoras apropriaram-se de conhecimentos relevantes à sua sobrevivência e à continuidade de suas demandas, transcendendo as lutas para outros espaços, de modo a consolidarem seus projetos, como ocorreu com as trabalhadoras do Grupo de Mulheres de Nova Esperança, que foi uma organização de mulheres para além do STTR/Cametá. Essa dinâmica possibilita o que Netto (2010) considera como Ser politicamente engajado. Trata-se de sujeitos imbuídos de conhecimentos em processos de aperfeiçoamento, que
transcendem o espaço ligado diretamente ao trabalho para outras dimensões, como a política, as artes e a filosofia; nesse caso, a dimensão política da estrutura sindical dos trabalhadores agricultores e das trabalhadoras agricultoras de Cametá.
O engajamento da mulher trabalhadora agricultora como associada foi, sem dúvida, quantitativamente expressivo no período analisado. Apuramos, neste estudo, que, do total de filiados à época, as trabalhadoras correspondiam a 79,66%, ou seja, as mulheres eram maioria na relação com os homens sindicalizados, ainda que estas se limitassem às ações mais gerais da entidade. Essa situação meramente quantitativa da presença da mulher no sindicato não garantia êxito desejado nas lideranças e nem nas conquistas. Suas demandas mais urgentes não eram visíveis, de modo a transformar-se em pautas das assembleias, haja vista as dificuldades de convencimento da importância do trabalho da mulher pelas fragilidades nas relações estabelecidas no contexto político. O limitado alcance do poder não garantia a mudança de qualidade de vida almejada, ainda que a busca de novas possibilidades para equacionar ou minimizar as desigualdades de oportunidade entre trabalhador e trabalhadora rural tenham sido garantidas de forma limitada no processo de engajamento como associadas no atual STTR/Cametá. No entanto, a busca de formação em suas bases para atuar e, assim, fortalecer-se enquanto lideranças pelo sentimento de pertença ao sindicato, foi um fato observado na organização das associadas.
É impossível invalidar o processo de participação política assumido pelas mulheres nesses espaços analisados, apenas considerando a não participação das trabalhadoras em cargo de liderança de alto escalão na entidade e a autonomia limitada das companheiras que conseguiram cargos nas diretorias da mesma entidade. O contraditório movimento no qual suas proposições e reivindicações, por vezes consideradas prioritárias pela executiva da entidade e, muitas vezes, sem chegar a entrar nas pautas, foram alternâncias conjunturais de mandatos que só serviram para fortalecer suas lutas.
O limitado espaço de liderança, de poder e de conquistas das trabalhadoras associadas não invalida a experiência de militância no STTR. Através dessa participação, temas como propriedade da terra, educação e igualdade de gênero passaram a ser pautas do movimento, pois esses temas são relevantes e estão diretamente relacionados à vida e à dignidade como trabalhadoras.
Apoiadas em Siliprandi e Cintrão (2015), insistimos, afirmando que, para o enfrentamento de possíveis resistências ao ser particular, faz-se necessário um constante embate que subsidie a conquista de espaços, inserção e reconhecimento contínuo, em particular, da questão de gênero. Reitera-se, ainda, a importância de organizações de trabalhadores e trabalhadoras rurais, sendo a mulher associada mais que contribuinte, e sim “ser politicamente engajado”, graças às mediações que se estabelecem no trabalho.
As estratégias de organização das trabalhadoras para sua constituição em ser político no contexto do movimento sindical é processual. O estudo revelou que as trabalhadoras rurais associadas ao STTR/Cametá têm, ainda, uma participação limitada no sentido de demandar e aprovar pautas que fomentem dimensões que permeiam sua existência como ser político. A sua militância, no entanto, demarca novos espaços, seja como provedoras de saberes ou de vivências em seus territórios sob outro “olhar”.
Enfim, ao mesmo tempo em que a participação limitada pela condição feminina não as impediu de se constituírem como um novo Ser Político, verificou-se, também, que potencialmente sua singularidade de mulher foi capaz de apontar rumos para a emancipação e constituição cidadã com ensejos de tornar a sociedade plural e democrática.
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V.18, nº 37, set-dez (2020) ISSN: 1808-799 X
Ana Paula Bistaffa de Monlevade2 Janaina Santana da Costa3 Cristiano Apolucena Cabral4
O materialismo histórico dialético tem como referência as relações entre seres humanos e natureza, mediadas pelo trabalho, sendo fundamental para análise de comunidades tradicionais. Incorporando dados empíricos de pesquisas realizadas no estado de Mato Grosso, observou-se que conhecer as formas de produção da vida nestas comunidades requer um processo de crítica, interpretação e análise dos fatos considerados na sua concretude histórica. Ressalta-se a relevância do método da economia política para apreensão da síntese de suas múltiplas determinações: unidade do diverso. Palavras-chave: Comunidades tradicionais; Materialismo histórico dialético; Cultura
El materialismo histórico dialéctico tiene como referencia las relaciones entre el ser humano y la naturaleza, mediadas por el trabajo, fundamental para el análisis de las comunidades tradicionales. Incorporando datos empíricos de investigaciones realizadas en el estado de Mato Grosso, se observó que conocer las formas de producir vida en estas comunidades requiere de un proceso de crítica, interpretación y análisis de los hechos considerados en su concreción histórica. Se destaca la relevancia del método de la economía política para comprender la síntesis de sus múltiples determinaciones: la unidad de lo diverso.
The reference of Dialectical historical materialism are the relations between human beings and nature, mediated by work, being fundamental for the analysis of traditional communities. Incorporating empirical data from research conducted in the state of Mato Grosso, it was observed that knowing the ways of producing life in these communities requires a process of criticism, interpretation and analysis of the facts considered in their historical concreteness. It is highlighted the relevance of the political economy method for understanding the synthesis of its multiple determinations, unity of the diverse.
Artigo recebido em : 22/06/2020. Primeira avaliação:13/08/2020. Segunda avaliação: 03/07/2020. Aprovado:13/08/2020. Publicado: 25/09/2020. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v18i37.46286
Doutora em Educação pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Professora do Instituto Federal de
Mato Grosso (IFMT - Campus Cuiabá),- Brasil. E-mail: ana.monlevade@cba.ifmt.edu.br ORCID: 0000-0002- 9620-9161 Lattes: http://lattes.cnpq.br/3530689053220688
3Doutora em Educação pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Professora da Universidade Federal do Tocantins (UFT) - Brasil. Email: janaina.costa@uft.edu.br ORCID: 0000-0003-2169-3523.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/8513785193151221
4 Doutorando em Educação pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) - Brasil. Email crisprelazia@yahoo.com.br ORCID: 0000-0003-3770-5648 Lattes: http://lattes.cnpq.br/8968583181133770
O presente artigo surge de pesquisas5 realizadas em comunidades tradicionais no estado de Mato Grosso, comunidades estas que são consideradas tradicionais por se reconhecerem como grupos que possuem sua própria forma de organização e por preservarem historicamente seus costumes, tradições e relações com a natureza. Porém, é importante destacar que a ideia de tradição e tradicional pode trazer consigo um sentido erroneamente pejorativo, podendo não só significar atraso, ignorância, mas também ir contra a lógica capitalista, ou seja, opor-se a produtividade, exploração, velocidade, urbanização, progresso, crescimento e modernidade. Contudo, segundo Cruz (2012, p. 598):
[...] a forma como os movimentos sociais e as comunidades rurais vêm mobilizando esse termo busca ressignificar essa carga pejorativa e estereotipada, acrescentando certa positividade à ideia de tradicional, em muitos sentidos até idealizada; nessa perspectiva, o tradicional não significa o atraso, não se restringe à ideia de tradição ao passado; tem um sentido político-organizativo e apresenta-se como alternativa ao modo de produção a ao modo de vida capitalistas.
Lembrando que se inserem nesta categoria povos indígenas, quilombolas, populações agroextrativistas, grupos vinculados aos rios ou ao mar, grupos associados a ecossistemas específicos e grupos associados à agricultura ou à pecuária (DIEGUES, 1996).
Sendo assim, este texto tem como objetivo apresentar o materialismo histórico-dialético enquanto fundamento teórico-metodológica para compreender questões que envolvem a produção da vida social dos trabalhadores e trabalhadoras das comunidades pesquisadas6. Parte-se do enfoque do
5 O artigo parte de estudos realizados junto ao Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Trabalho e Educação (GEPTE) durante o desenvolvimento do Doutorado em Educação – inserido na linha de pesquisa Movimentos Sociais, Política e Educação Popular – realizado entre 2014 e 2018, objetivando o estudo da relação existente entre trabalho-educação em comunidades tradicionais do Estado de Mato Grosso. Para tanto, a pesquisa teve como orientação teórica o método materialismo histórico-dialético.
6 Considerou-se neste artigo as Comunidades Tradicionais pesquisadas pelo Grupo de Estudos e Pesquisa sobre Trabalho e Educação (GEPTE) da UFMT do qual fazíamos parte (com exceção de Cristiano Apolucena Cabral que ainda faz parte), coordenado pelo Prof. Dr. Edson Caetano. O grupo possui como objeto de estudo as relações entre Trabalho e Educação presentes nos processos de produzir a vida de forma associada nas Comunidades Tradicionais do Estado do Mato Grosso. São elas: Comunidade Capão Verde, Imbê, Campina de Pedra, São Pedro de Joselândia, Assentamento 14 de Agosto, Nossa Senhora da Guia, São José do Facão, São Benedito Remanescente de Quilombos, Raizama, São Manoel do Pari, e Povo Xavante Marãiwatsédé.
materialismo histórico- dialético nas pesquisas realizadas na área educacional, pois, segundo Marx (2003, p. 248), o materialismo histórico é o método que “consiste em elevar-se do abstrato ao concreto, é para o pensamento, precisamente, a maneira de se apropriar do concreto, de reproduzi-lo como concreto espiritual”.
Acredita-se que, a partir do materialismo histórico, seja possível uma reflexão dialética sobre a relação existente entre trabalho e produção da existência, tendo como base, por um lado, os processos históricos, econômicos, sociais e culturais e, por outro lado, a relação com uma realidade concreta, em sua particularidade. Isto decorre do fato de que a pesquisa pressupõe a apreensão da totalidade que envolve o objeto de estudo, isto é, compreende a construção histórica e concreta do objeto em suas múltiplas determinações. É neste sentido que Kosik (2002) aponta que o caminho percorrido do abstrato ao concreto tem na dialética a alternativa da superação da abstratividade.
Nessa direção, soma-se ao aprofundamento teórico a Décima Tese contra Feuerbach (MARX, 2007, p. 539) que assevera: “O ponto de vista do velho materialismo é a sociedade burguesa; o ponto de vista do novo é a sociedade humana, ou a humanidade socializada.” Ou seja, o que é fundamental no método é a materialidade, a sociedade humana, que, nas pesquisas realizadas, consiste na produção material e imaterial da vida nas comunidades tradicionais.
Desta materialidade é que se percebe a relevância do trabalho – e neste, particularmente, do trabalho associado:
Somente o trabalho tem, como sua essência ontológica, um claro caráter de transição: ele é essencialmente, uma inter-relação entre homem (sociedade) e a natureza, tanto inorgânica (ferramenta, matéria-prima, objeto do trabalho etc.) como orgânica, inter-relação que pode figurar em pontos determinados da cadeia a que nos referimos, mas antes de tudo assinala a transição, no homem que trabalha, do ser meramente biológico ao ser social (LUKÁCS, 2013, p.44).
É no e pelo trabalho que o ser se humaniza transformando a natureza e transformando a si mesmo subjetivamente. Nas comunidades tradicionais, esta condição histórica e ontológica não é diferente: ao transformar a natureza pelo trabalho – e trabalho associado – com a finalidade de satisfazer as próprias necessidades, transforma-se subjetivamente, produzindo simultaneamente a materialidade e a imaterialidade da vida.
De acordo com o Decreto No. 6.040 de 07 de Fevereiro de 2007, promulgado pelo então Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva, povos e comunidades tradicionais são:
Grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição.
Já para Candido (2010, p. 76), comunidade tradicional consiste “[...] no agrupamento de algumas ou muitas famílias, mais ou menos vinculadas pelo sentimento de localidade, pela convivência, pelas práticas de auxílio mútuo e pelas atividades lúdico-religiosas”. Desta forma, as comunidades que foram pesquisadas são consideradas tradicionais pelas suas histórias, costumes e tradições preservados pelos seus moradores que lá estão há muitas gerações, sendo herdeiros que se reconhecem pertencentes ao local onde os mais velhos ainda guardam memórias de seus ancestrais (DIEGUES, 1996). Como por exemplo, na Comunidade Tradicional Raizama localizada no município de Jangada/MT, em que um dos entrevistados relatou durante a pesquisa que seus familiares/ancestrais se encontram no local há gerações:
Porque a gente tem muito tempo. Eu lembro, desde o tempo que eu me entendo por gente, e já vinha vindo, veja só pra completa. Uma comunidade tradicional desta aqui que meu avô nasceu aqui, então como que não tem uma comunidade (informação verbal)7.
Tudo o que guardamos, “retemos na memória”, são fragmentos do vivido, do experimentado, do percebido-e-retido. Fundamentadas em E. P. Thompson e Maurice Halbawcks, para Magalhães e Tiriba (2018, p.10), a memória, "é um fenômeno eminentemente social, condicionada por experiências coletivas vividas, herdadas e compartilhadas por grupos sociais e que são apropriadas a partir das necessidades do presente". Assim, é imprescindível que memória e experiência estejam sempre entrelaçadas para a compreensão da realidade, em que a memória é a experiência vivida no passado e presentificada na cotidianidade da vida.
7 Entrevista concedida a Ana Paula Bistaffa de Monlevade em 26 de maio de 2016 durante a pesquisa de Doutorado que resultou na Tese intitulada “Comunidade Tradicional Raizama em Jangada/MT: produzindo a existência associadamente por meio de enxadas, ralos, sucuris e torradeiras”, defendida em 2018 no Programa de Pós-Graduação em Educação da UFMT.
[...] toda memória individual é também social e que são as experiências vividas, no interior de uma sociedade e nos grupos de pertencimento mais próximos, que moldam tanto o caráter social quanto o interativo da memória coletiva. Para Halbwachs, as experiências vividas são as que mais duram na memória e são mantidas e recuperadas, mesmo na sua modificação, de acordo com os interesses dos indivíduos referenciados pelos grupos sociais (MAGALHÃES, 2018, p.79).
São, portanto, segundo Brandão (2016, p. 358) imagens do real vivido e experienciado e possuem relevância na memória nas Comunidades Tradicionais:
Não é raro que, na memória que reconta a história do lugar social da comunidade, ela seja colocada justamente a meio caminho entre a sociedade indígena cuja presença ancestral deixou escassos registros e cujo afã de socialização de um território natural foi mínima, e as formas atuais de ocupação anterior por parte das grandes fazendas e, nos dias de hoje, por empresas, quase sempre de monoculturas, cujo poder social é expropriador e cuja intervenção sobre a natureza é exageradamente transformadora. Assim como pela criação de unidades de conservação restritivas ao manejo da natureza considerada imprescindível para a reprodução material de cada família e da coletividade como um todo.
A maneira pela qual se apropria do espaço, produzindo material e imaterialmente a existência, é a construção da memória vivida do ambiente ocupado. Ou seja, a forma como transforma a natureza, como constitui a paisagem, como mantém o ecossistema, é a forma como a representação desta ação e do local se concretiza na memória.
Para tanto, Brandão e Leal (2012, p. 77) compreendem que a comunidade é o lugar humano da vida:
[...] Desde tempos antigos foi e segue sendo o lugar social arrancado da natureza, ou nela encravado ainda, em que pessoas, famílias e redes de parentes e “comuneiros” reúnem-se para viver suas vidas e dar, entre palavras e gestos, um sentido a ela. Em termos modernos, a comunidade é o lugar da escolha. É a associação, quanto mais livre e auto-assumida melhor – de pessoas que se congregam para serem, em meio a um mundo como o da grande cidade, o que desejam ser nela ou por oposição a ela.
Tais características são reconhecidas nas comunidades pesquisadas pelo GEPTE8 em Mato Grosso, pois seus moradores afirmam que são tradicionais por existirem e resistirem às mudanças e ao sistema existente “lá fora”, termo com que moradores e moradoras explicam a existência de um sistema de produção diferente
8Comunidade Capão Verde, Imbê, Campina de Pedra, São Pedro de Joselândia, Assentamento 14 de Agosto, Nossa Senhora da Guia, São José do Facão, São Benedito Remanescente de Quilombos, Raizama, São Manoel do Pari, e Povo Xavante Marãiwatsédé.
do sistema a que estão acostumados, o qual é perpassado pelo trabalho coletivo e autogestionado. Tal consciência pode ser verificada nas palavras de Brandão e Leal (2012, p. 78): “a comunidade é o como se pode fazer frente ao capital, ao poder exterior, ao mercado, à sociedade de massa e mídia”.
Já em seu ensaio sobre Comunidades Tradicionais, Brandão corrobora a compreensão ampliada da categoria, apresentando de maneira substancial os elementos constituintes que estão presentes no cerne dessas comunidades.
Em qualquer direção e provavelmente em todos os lugares onde exista, entre as suas diferenças culturais sempre presentes, uma das características de base na comunidade tradicional é a inevitável presença do outro na vida de todos. Seja como um sujeito individual
– um pai, uma mãe, um padrinho – seja como um sujeito institucional ou mesmo plural – um ancestral familiar, um líder de clã, um conselho de comunidade – a presença que ao mesmo ampara, reconhece, identifica e controla a pessoa de cada integrante de tudo o que vai de um casal à própria comunidade no seu todo, representa um ator e um fator de atribuição de identidade (BRANDÃO, 2016, p.350).
É sobre comunidades tradicionais como estas, pesquisadas por Brandão, que o presente artigo se debruça, enquanto campo empírico de análise; já o campo teórico metodológico que respalda esta pesquisa é o materialismo histórico dialético, o qual enfatiza a análise da produção da existência dos sujeitos em sua estrutura e em seu processo.
Estas comunidades tradicionais possuem características que as tornam diferentes devido à maneira de ser e pensar o mundo de seus trabalhadores e trabalhadoras, como: a relação de dependência da natureza, a forma de manejo da terra, a reduzida acumulação de capital – pois produzem prioritariamente para subsistência – a pouca tecnologia utilizada, a experiência vivida, percebida e herdada de gerações passadas, o trabalho coletivo, a auto-identificação com o local e o sentimento de pertencimento, as simbologias próprias como rituais, mitos, festejos religiosos e a ocupação do território por várias gerações (DIEGUES, 1996). Além da vivência dessas experiências costumeiras relacionadas à produção imaterial da vida, há a necessidade de uma existência coordenada por equilíbrios necessários à construção e à reprodução desta vivência O equilíbrio essencial é definido por Ploeg (2016) como o equilíbrio entre o labor e o consumo, o qual regula a intensificação sobre a força de trabalho a partir das necessidades de compra e, ao mesmo tempo, mantém o cuidado para não ampliar estas necessidades para além das possibilidades da utilização das forças de trabalho. Outro equilíbrio
relevante é entre a pessoa e a natureza (PLOEG, 2016), cujas interações devem ocorrer de forma que a pessoa cuide da natureza para conseguir produzir sua existência e manter as condições materiais da reprodução da mesma, ou seja, havendo o cuidado com a natureza esta, por sua vez, cuidará da pessoa.
Esses fatos podem ser evidenciados em uma comunidade remanescente de quilombolas e nas mais diversas comunidades tradicionais do estado de Mato Grosso, que apresentam costumes, tradições e maneiras peculiares de um modo de vida e de uma cultura diferenciados. Por exemplo, em algumas comunidades pesquisadas como Capão Verde, Campina de Pedra e São Manoel do Pari, estes sujeitos compartilham coletivamente do mesmo credo e dos sistemas de significação e explicação da vida e do mundo, vivenciando ritualmente uma religiosidade original em muitos aspectos. Além disso, nada exclui a evidência de que ali se fala uma modalidade do Português; uma modalidade do cristianismo católico em interação provável com componentes de outras religiões é praticada; a alimentação inclui receitas provavelmente apropriadas, o mesmo feijão com arroz, a farinha de mandioca e outros alimentos de uma culinária em parte cultivada e colhida na lida com a terra na própria comunidade, em parte trocada por produtos de outras comunidades semelhantes, em parte, ainda – e cada vez mais frequente
comercializada nos mercados, feiras e vendas da cidade mais próxima. Este também é o caso da farinha de mandioca produzida artesanalmente em São Benedito que é vendida em cidades vizinhas a comunidade, como Poconé, Várzea Grande e Cuiabá/MT.
Então, o que se observa é que a comunidade não se faz tradicional por apresentar aspectos folclóricos em sua cultura, mas sim como estratégia de defesa em que o modo de produzir material e imaterialmente a existência é dividido entre a relação dependente com o “mundo lá fora” e uma protegida quase-invisibilidade. Quase invisíveis, mas presentes. Enfim, são tradicionais porque são ancestrais, porque são autóctones, são antigas e resistentes sem seus saberes e fazeres. “Porque possuem uma tradição de memória de si mesmos em nome de uma história construída, preservada e narrada no existir em um lugar, por oposição a quem chega de fora” (BRANDÃO; LEAL, 2012, p. 85).
Um dos aspectos inerentes a se fazer presente o tradicional na comunidade é a vivência dos costumes9. Thompson afirma que os costumes são tanto conservadores (THOMPSON, 2001), quanto rebeldes (THOMPSON, 1998). Assim, manter a produção material e imaterial da vida embasada em seus costumes apresenta-se como uma estratégia de defesa contra o 'mundo lá fora'.
Uma das principais características dessas comunidades tradicionais é o modo de produção de existência, que é próprio de sociedades em que o trabalho ainda não se tornou mercadoria10, em que a dependência do mercado já existe, mas não é total, pois mesmo que hegemônico, o modo de produção capitalista não possui uma presença espaço-temporal in absolutum. Isto pode ser observado nas comunidades pesquisadas, por conta da dependência destes homens e mulheres em relação à terra, pois é por meio dela que, historicamente, os mesmos reproduzem sua vida material e imaterial, fazendo com que eles ainda não dependam exclusivamente da cidade para sobreviverem. Na comunidade tradicional de Raizama, por exemplo, as trabalhadoras e os trabalhadores rurais produzem a farinha de mandioca artesanalmente e de maneira associada em um espaço chamado “farinheira”, primeiramente para consumo das próprias famílias, posteriormente comercializando somente o excedente da produção.
Desta forma, segundo Diegues (1996, p.82):
[...] essas sociedades desenvolvem formas particulares de manejo dos recursos naturais que não visam diretamente o lucro, mas a reprodução social e cultural; como também percepções e representações em relação ao mundo natural marcadas pelas ideias de associação com a natureza e dependência de seus ciclos.
Já Souza (2011) relata que, para aqueles que produzem sua existência em uma comunidade tradicional, a terra é símbolo de vida e de trabalho e de onde retiram o sustento de sua família, conforme apresentado na imagem a seguir:
9Thompson (1998, p.22), embasando-se em ideias de Gerald Sider, define costume da seguinte maneira: "[...] os costumes realizam algo – não são formulações abstratas dos significados nem a busca de significados, embora possam transmitir um significado. Os costumes estão claramente associados e arraigados às realidades materiais e sociais da vida e do trabalho, embora não derivem simplesmente dessas realidades, nem as reexpressem. Os costumes podem fornecer o contexto em que as pessoas talvez façam o que seria mais difícil de fazer de modo direto [...], eles podem preservar a necessidade da ação coletiva, do ajuste coletivo de interesses, da expressão coletiva de sentimentos e emoções dentro do terreno e domínio dos que deles co-participam, servindo como uma fronteira para excluir os forasteiros".
10Todavia, mesmo que não seja uma realidade essencial e absoluta, muitos trabalhadores e trabalhadoras vendem suas forças de trabalho em fazendas ou no comércio de cidades próximas. Para poderem assim obter dinheiro, somando à venda de seus produtos comercializados, para consumirem alguns produtos necessários e não produzidos na comunidade.
No entanto, Oliveira (2010) acrescenta ainda o conceito de terra como lugar sagrado, o lugar de encontro com Deus. A “mãe” que dá bons frutos e onde descansam os antepassados. É a raiz da economia de um povo, da sua cultura e espiritualidade. Ou seja, a terra também é objeto de contemplação, conforme apresentado no organograma a seguir:
Desta forma, para os(as) trabalhadores(as) rurais dessas comunidades tradicionais, a apropriação se dá na posse da terra e no trabalho familiar, coletivo e livre, muito diferente da apropriação configurada pelos capitalistas que se assenta na propriedade privada e na exploração do trabalho alheio. Segundo Martins (1980), quando o capitalista se apropria da terra, está se transforma em terra de negócio, em terra de exploração do trabalho alheio, contudo quando o(a) trabalhador(a) se
apossa da terra, ela se transforma em terra de trabalho. São gestões distintas de propriedade, em aberto conflito uma com a outra.
Assim, a partir das características apresentadas anteriormente, entende-se que, para conhecer a realidade histórica destas comunidades deve-se partir do materialismo histórico-dialético, pois trata-se de um processo caracterizado pelo movimento do pensamento por meio da materialidade histórica da vida dos seres humanos nas relações sociais que eles contraem.
De acordo com Frigotto (2012), existem três métodos de pesquisa que se diferenciam:
Empírico-analítico: constitui-se de princípios que são usados pelas ciências físicas e naturais e apresenta uma visão idealista do mundo na qual, para se conhecer um objeto inserido em determinada realidade, basta identificá-lo e interpretá-lo. Deste ponto de vista, para se construir o conhecimento é necessária a representação de um processo que parte do todo para as partes e que implica no afastamento do pesquisador em relação ao objeto;
Fenomenológico-hermenêutico: compreende a interpretação dos fenômenos em suas diversas manifestações. Segundo Sousa (2014), nesta concepção metodológica o processo de construção do conhecimento vai das partes para o todo e requer a aproximação do pesquisador em relação ao objeto e ao fenômeno estudado.
Crítico-dialético: entende a ciência como produto da história, da ação do próprio homem que está inserido no movimento das formações sociais. Existe uma relação dialética entre o pesquisador e o objeto envolvidos em determinada realidade histórica. Nesta abordagem, o procedimento de construção do conhecimento vai do todo para as partes e depois das partes para o todo realizando um círculo de síntese conforme a conjuntura, unindo as diversas determinações, com necessidade de aproximação e, às vezes, de afastamento do pesquisador do objeto.
Porém, é importante salientar que qualquer método é apenas uma referência e não um roteiro fixo. Segundo Sousa (2014, p. 02):
[...] o método é dependente, dentre outros fatores, de um conhecimento sólido e da experiência por parte do pesquisador. Com base nesta perspectiva, a perspectiva materialista histórico-
dialético revela uma aproximação da escolha pela cientificidade da realidade, á medida que ele propicia o estabelecimento de uma relação que tem como referência a dinâmica entre sujeito e o objeto, bem como o reconhecimento da luta dos contraditórios como fonte do conhecimento.
Desta forma, a pesquisa requer a apreensão da totalidade que envolve o objeto. Se tudo aquilo que é superficial, aparente e nítido aos olhos, realmente mostrasse a essência de um fato ou fenômeno, não seriam necessários pesquisadores dedicados em desvendar o mundo que nos cerca. Segundo Ciavatta (2014, p. 204), “o pesquisador deve ser capaz de situar-se em um contexto concreto para pensar o desconhecido ou para recolher, sistematizar, analisar, extrair das informações um conhecimento que não estava dado”.
Segundo Kosik (2002, p. 16), “a concepção materialista histórica, respectivamente, se fixa na essência, no mundo real, no conceito, na consciência real, na teoria e ciência”. Ter o materialismo histórico-dialético como posicionamento teórico epistemológico demanda que sejam desenvolvidas suas categorias metodológicas próprias (práxis, totalidade, contradição e mediação).
A práxis constitui-se da prática articulada à teoria, prática desenvolvida com e através de abstrações do pensamento, como busca de compreensão mais consistente e, consequente, da atividade prática – é prática contagiada de teoria. Para Marx (2007, p. 537-9), a práxis possui uma dimensão transformadora:
A questão do saber se cabe ao pensamento humano uma verdade objetiva não é uma questão teórica, mas prática. É na práxis que o homem deve demonstrar a verdade, isto é, a realidade e o poder, o caráter terreno do pensamento. [...] não basta interpretar, o que importa é transformar.
A totalidade busca a conexão dos aspectos particulares com o contexto social mais amplo que produz as contradições. Dá-se no sentido de apreender a complexidade e abrangência das relações sociais que o envolvem, enquanto um processo dinâmico e complexo por meio do qual o objeto se manifesta e é manifestado. Já a categoria de contradição rebate a concepção de linearidade, pois parte do entendimento de que nada existe em permanência e, portanto, toda realidade é passível de superação. Ou seja, consiste em apanhar o movimento, a complexidade do real, com suas múltiplas determinações, abarcando os contrários dialeticamente, “buscando compreender onde e como se incluem/excluem, desaparecem ou originam uma nova realidade” (KUENZER, 1998, p. 65).
Além disso, existe a mediação que articula as várias dimensões e elementos presentes na pesquisa enquanto categoria metodológica, sendo diversas as determinações que interagem em uma unidade concreta do real. Segundo Ciavatta (2014, p. 209), “[...] a mediação é a especificidade histórica do fenômeno. A mediação situa-se no campo dos objetos problematizados nas suas múltiplas relações no tempo e no espaço, sob a ação de sujeitos sociais”.
Neste sentido, compreender o método materialista histórico-dialético é adquirir instrumentos para o conhecimento da realidade, que é diversa e una, síntese de múltiplas determinações. Requer encontrar os elementos concretos que instituem as intercessões e que podem auxiliar não só na explicação, mas também em uma melhor compreensão do sentido em que se dá a mediação. Além disso, é a partir desta mediação que se pode conhecer a realidade enquanto processo, em seus movimentos dialéticos. Ainda segundo Ciavatta (2014, p. 215):
Metodologicamente, é o resgate da dimensão histórica de uma questão que deve permitir superar o nível formal da expressão pelo desvelamento dialético da realidade investigada. O conhecimento produzido vai depender da pertinência da análise de uma totalidade histórica como apreensão de suas contradições recíprocas e reconhecimento do caráter mediador dessas contradições na constituição histórica da realidade.
Assim, jamais será um conhecimento acabado, mas sim limitado e transitório, aberto a novas percepções e a novas observações.
Desta forma, o processo de produção do conhecimento visa transcender a aparência dos fenômenos, ou, como denominou Kosik (2002, p.15) o mundo da pseudoconcreticidade, onde o mundo se apresenta como “um claro-escuro de verdade e engano”. E, neste mundo, a práxis perdeu seu sentido enquanto atividade que transforma a natureza para a criação do ser social, tornando-se apenas uma atividade abstrata. Com este entendimento, Kosik (2002) relata que a realidade não se apresenta de imediato ao ser humano, por isso, na dialética distingue-se a “representação” da “coisa em si” que são duas formas de conhecimento da realidade e, principalmente, duas qualidades da práxis humana.
Isto acontece porque a principal atitude do ser humano diante da realidade não é a de um abstrato sujeito cognoscente, mas sim a de um ser que age objetiva e praticamente, de um indivíduo histórico que exerce a sua atividade prática no trato com a natureza e com outros seres humanos, tendo em vista a consecução dos próprios fins e interesses, dentro de um determinado conjunto de relações sociais
(KOSIK, 2002). Desta forma, o ser humano, que concretamente se inclui neste mundo, primeiramente experimenta uma atividade prático-utilitária por meio da qual ele cria suas próprias representações das coisas, captando o aspecto fenomênico da realidade.
Para Kosik (2002), a práxis utilitária passa a ser entendida pelo senso comum e não mais pela compreensão consciente do real. Por isso, é necessário avançar além deste mundo da pseudoconcreticidade, desnaturalizar o que se posiciona como natural, pois dentro deste mundo, o ser humano permanece na superficialidade, distante do que é essencial. Vive-se uma práxis fetichizada.
Destarte, para se atingir a essência, é necessário analisar o fenômeno, entender como a coisa em si se apresenta nele: “compreender o fenômeno é atingir a essência” (KOSIK, 2002, p. 16). Contudo, na pseudoconcreticidade, o fenômeno e a essência são entendidos como iguais quando, de fato, o fenômeno no mesmo instante se manifesta. Já a “coisa em si”, a estrutura da coisa não é direta e imediatamente acessível ao ser humano.
Kosik também aborda a diferenciação entre o método da investigação e o método da exposição expressa em Marx. Diz ainda que no pensamento comum, criado pela práxis utilitária cotidiana, a “representação da coisa não constitui uma qualidade natural da coisa e da realidade: é a projeção, na consciência do sujeito, de determinadas condições históricas petrificadas” (KOSIK, 2002, p. 19). Assim, é função da dialética indicar de onde despontam os fenômenos, como os mesmos se constituem e quais suas (inter)dependências.
A dialética considera os produtos fixados, as configurações e os objetos, todo o conjunto do mundo material reificado, como algo originário e independente. Do mesmo modo como assim não considera o mundo das representações e do pensamento comum, não os aceita sob o seu aspecto imediato: submete-os a um exame em que as formas reificadas do mundo objetivo e ideal se diluem, perdem a sua fixidez, naturalidade e pretensa originalidade, para se mostrarem como fenômenos derivados e mediatos, como sedimentos e produtos da práxis social da humanidade (KOSIK, 2002, p. 21).
Kosik (2002, p. 28) afirma, ainda, que o conhecimento não é contemplação: “A contemplação do mundo se baseia nos resultados da práxis humana. O homem só conhece a realidade na medida em que ele cria a realidade humana e se comporta antes de tudo como ser prático”. Assim, para o autor, é necessário garantir a destruição da pseudoconcreticidade para que o mundo possa ser explicado
“criticamente”, dessa forma cumpre que a explicação mesma se coloque no terreno da práxis revolucionária. Para tanto, é necessária a separação entre o fenômeno e a essência, o que é complementar e o que é primordial para a constituição do conhecimento. Na ciência é necessária a divisão do todo a fim de mostrar o que é específico da coisa, pois, caso na investigação se queira, antecipadamente, dizer o que é complementar ou primordial, pode-se colocar em risco a própria legitimidade da investigação. Segundo Sobral (2012, p. 11):
No método de investigação científico proposto por Marx – o Materialismo Dialético – a história do homem é compreendida “de frente para trás”, ou seja, partindo do presente de volta ao passado, numa concepção inversa ao modo tradicional de se “contar” a história. (...) A passagem de um modo de produção para outro é entendida por Marx como uma fase de conflitos e revoluções. A história humana é concebida como uma sucessão de tais modos de produção, que representam etapas específicas do desenvolvimento das forças produtivas materiais. Os modos de produção tribal, comunal, feudal e burguês moderno são etapas de progresso da formação econômica da sociedade, sem, contudo, entendê-las como uma ordem pré-determinada de sucessão. O mecanismo geral das transformações sociais ocorre com o conflito entre forças produtivas, e as relações de produção abrem uma época de revolução social em que as mesmas se ajustam novamente ao nível das forças produtivas. Essa compreensão dialética é fundamental para o entendimento da teoria do progresso histórico no pensamento marxista.
Portanto, a partir do materialismo histórico, entende-se que é possível atingir a compreensão da produção material e imaterial da vida nas comunidades tradicionais pesquisadas, mas não de forma perdurável, já que essa é historicamente datada. O ser humano não compreende a verdade imediatamente, pois são necessários afastamentos para se chegar a ela, sendo que este processo busca explicações com base na própria realidade, investigando os movimentos que a compõem a fim de assimilar o que está oculto e indefinido para chegar ao conceito do todo, agora envolvendo as suas delimitações e ligações.
É neste sentido que Kosik aponta que o caminho percorrido do abstrato ao concreto tem na dialética a alternativa da superação da abstratividade. A dialética do concreto reproduz idealmente a realidade em sua totalidade concreta. Nesta concepção, é relevante entender que, segundo Marx (2011, p. 54):
O concreto é concreto porque é a síntese de múltiplas determinações, portanto, unidade da diversidade11. Por essa razão, o concreto aparece no pensamento como processo da síntese,
11 Destaque dos autores.
como resultado, não como ponto de partida, não obstante seja o ponto de partida efetivo e, em consequência, também o ponto de partida da intuição e da representação.
Apesar de o concreto ser um processo de síntese, unindo, mediando a diversidade de determinações, também é o ponto de partida na produção do conhecimento da realidade, pois são as relações materiais, concretas, o trabalho, que os seres humanos estabelecem entre si que desvendam as ideias e as instituições que eles criam. Por isso é preciso buscar a conexão entre o mundo das ideias e a realidade objetiva para se tentar ter uma compreensão adequada da realidade.
Gaudêncio Frigotto (2012, p.160-1), em seu texto “O enfoque da dialética materialista histórica na pesquisa educacional”, aponta que a dialética materialista histórica deve ser entendida como:
[...] uma postura, ou concepção de mundo; enquanto um método que permite uma apreensão radical (que vai a raiz) da realidade e enquanto práxis, isto é, unidade de teoria e prática na busca da transformação e de novas sínteses no plano do conhecimento e no plano da realidade histórica.
Assim, entende-se que a dialética se situa no plano da realidade, no plano histórico, perante a forma de relações contraditórias, confusas, de leis de construção, desenvolvimento e transformação dos fatos. O desafio do pensamento é trazer para o plano do conhecimento essa dialética do real, unido a diversidade de determinação em uma síntese. Esse percurso requer do homem esforço e um trabalho de apropriação, organização e exposição dos fatos. Segundo Ciavatta (2014, p. 214), “o desafio para o pesquisador está em captar os elementos mais concretos, as objetivações reais que expliquem essa totalidade não como uma noção genérica, mas como um conteúdo de natureza histórico-social”.
Conhecer a produção material e imaterial destas comunidades, na sua historicidade, é primeiramente um processo de apreensão teórica, isto é, de crítica, interpretação e avaliação dos fatos observados, coletados e registrados na pesquisa in loco. E, posteriormente, é necessário conhecer a realidade concreta do fenômeno, de forma pensada e compreendida. Ainda segundo Frigotto (2012, p. 168),
No processo dialético de conhecimento da realidade, o que importa fundamentalmente não é a crítica pela crítica, o conhecimento pelo conhecimento, mas a crítica e o conhecimento crítico para uma
prática que altere e transforme a realidade anterior no plano do conhecimento e no plano histórico-social.
Dessa forma, observa-se que o caminho do conhecimento humano é uma trajetória construída na busca da verdade do mundo, no rompimento constante da pseudoconcreticidade, que nunca se esgota totalmente. Dado que o ser humano age no mundo – realizando a transformação do mundo e de si mesmo pelo trabalho (LUKÁCS, 2013) –, a realidade que se desvenda ao conhecer humano não está pronta e acabada, não existindo independentemente do ser humano. "A destruição da pseudoconcreticidade significa que a verdade não é nem inatingível, nem alcançável de uma vez para sempre, mas que ela se faz; logo, se desenvolve e se realiza” (KOSIK, 2002, p.23). Ao contrário do mundo da pseudoconcreticidade, o mundo da realidade é o mundo da realização da verdade, é o mundo em que a verdade não é dada e predestinada, não está pronta e acabada, impressa de forma imutável na consciência humana: é o mundo em que a verdade se transforma.
Enfim, dispor do materialismo histórico-dialético enquanto método sinaliza que o pesquisador busca entender a produção social da existência humana conectando-se a uma concepção de realidade, de mundo e de vida, pois acredita que o universo e tudo o que há nele tem existência material, concreta e pode ser racionalmente conhecido.
O ser humano, enquanto ser social e histórico, determinado por contextos econômicos, políticos e culturais, é o criador e transformador da realidade social. Segundo Gomide (2014, p. 129-130), é possível afirmar que:
[...] o postulado materialista contempla tanto o aspecto ontológico, no sentido de que a matéria, a concretude, é considerada como princípio explicativo do mundo; quanto o aspecto gnosiológico, no sentido de que esta objetividade concreta é o ponto de partida para a construção do conhecimento sobre o mundo.
Assim, as reflexões que se ocupam das comunidades tradicionais a partir do materialismo histórico devem considerar esta concretude entendida como a historicidade do ser. Igualmente devem ser sopesados os determinantes econômicos, históricos, políticos e culturais, de maneira a considerar, fundamentalmente, a complicada conjuntura social presente nos diferentes momentos históricos. Na obra ‘A Ideologia Alemã’, Marx e Engels (2007, p.47) expõem, com base no desenvolvimento das condições materiais de existência, como o devir histórico produz diferentes formas de interpretar o mundo, e mostram porque certas ideias são dominantes:
As ideias (Gedanken) da classe dominantes são, em cada época, as ideias dominantes; isto é, a classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua força espiritual dominante. A classe que tem à sua disposição os meios de produção material dispõe, ao mesmo tempo, dos meios de produção espiritual, o que faz com que a ela sejam submetidas, ao mesmo tempo e em média, as ideias daqueles que aos quais faltam os meios de produção espiritual.
Uma ideia reproduzida, erroneamente, pelo senso comum é que as comunidades tradicionais estão fadadas a um fim, pois o modo de produção capitalista se articula e se organiza para que estes sujeitos sociais se apartem da sua relação ser humano-natureza. A desarticulação da relação e equilíbrio ser humano-natureza conduz os sujeitos sociais das comunidades tradicionais a um desenraizamento histórico/cultural. Este processo posto em curso imprime novas práticas, novos costumes que os deslocam de sua ancestralidade.
O discurso dominante faz contornos específicos, ele fetichiza a classe proletária de tal maneira que esta passa a defender os interesses daqueles que perpetuam a sua exploração.
As comunidades tradicionais estudadas, ao contrário do que apresenta o senso comum acima, lutam com todos os meios que possuem para resistirem a essa lógica perversa e massacrante do capital. Seja por meio da organização do trabalho associado nas farinheiras, ou da produção dos derivados da banana e cana de açúcar, ou mesmo na organização coletiva de outros momentos da vida social, ou ainda pela resistência na vivência de seus costumes, tais como nas comunidades Raizama, São Benedito e São Manoel do Pari. Resistem na esperança diária de viverem, produzirem e reproduzirem a sua existência através da solidariedade, da cooperação e da reciprocidade.
Com base no que foi apresentado entende-se que, para a análise do real (concreto caótico), o método da economia política, referenciado no materialismo histórico-dialético parte dos dados empíricos (aquilo que é visto de forma generalizada nas comunidades) para logo depois realizar a desassociarão dos fatos e indicar diferentes relações, que permitam averiguar as múltiplas determinações que se estabelecem entre os dados particulares e a totalidade, unindo estas diversas determinações em uma síntese dialética (síntese de múltiplas determinações).
Portanto, após a realização das pesquisas12 de campo no estado de Mato Grosso, compreendeu-se a relevância do método da economia política para ajudar a explicar falas, vozes e possíveis silêncios presentes nos momentos da pesquisa empírica. Muitas palavras foram registradas em gravadores e filmadoras na tentativa de se buscar a essência do fenômeno na particularidade de cada uma das comunidades tradicionais. Acredita-se que esse método auxilia na tentativa dos pesquisadores e pesquisadores de explicar, pois se sabe que a realidade não se revela de imediato (KOSIK, 2002). O que não se evidencia nos registros dos cadernos de campo, pode ser observado nas entrelinhas das vozes dos sujeitos- trabalhadores/as, os quais são parte integrante e constituinte da totalidade social que se pretende estudar: no caso, as comunidades tradicionais.
Assim, tem-se consciência de que o real não está dado, deslocado de uma reflexão; nem, principalmente, de uma práxis metodológica e que, ao pesquisar, se transforma o espaço pesquisado a partir das provocações e problematizações que são expostas nos diálogos abertos ou nas entrevistas realizadas e que, ao mesmo tempo, não se é o mesmo de antes. Ou seja, é preciso iniciar o processo de conhecimento da realidade pelo concreto, compreendendo as categorias mais simples e acessíveis para depois perceber as interpretações que são demonstradas sobre esse mundo, suas ideologias, conflitos e contradições.
Posto isto, o concreto real (pensado) só terá sentido quando suas múltiplas determinações forem explicadas. Segundo Rodríguez (2014, p. 146-7), “a realidade social é condicionada, os fatos sociais adotam uma configuração determinada porque não estão isolados, há uma relação dinâmica e dialética entre o singular e a totalidade”.
Assim, o materialismo histórico-dialético não deve ser compreendido de forma estática, sem compromisso com a superação do mundo material e sem envolvimento com a práxis revolucionária, pois isto seria, conforme aponta Moraes (2014, p. 96), “uma contradição epistemológica, ontológica e ética”.
12 Pesquisas estas concretizadas em dissertações e teses defendidas pelo GEPTE (NEVES, 2017; COSTA, 2017; MONLEVADE, 2018; SANTOS, 2013; GUERINO, 2013).
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V.18, nº 37, set-dez (2020) ISSN: 1808-799 X
Osvaldo Luís Martins de Castro2 Doriedson do Socorro Rodrigues3
1Artigo recebido em 14/08/2020. Primeira Avaliação em 14/08/2020. Segunda Avaliação em 27/08/2020. Aprovado em 27/08/2020. Publicado em 25/09/2020.
DOI: http://doi.org/10.22409/tn.v18i37.44.556.
Mestre em Currículo e Gestão da Escola Básica, pela Universidade Federal do Pará (UFPA) - Brasil. Docente da Educação Básica, atuando no Ensino Médio e no Ensino Fundamental. Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Trabalho e Educação (GEPTE/UFPA).E-mail: lampamartins@gmail.com; ORCID:0000-0003-4678-6099. Lattes: http://lattes.cnpq.br/6644437163550569.
Doutor em Educação pela Universidade Federal do Pará (UFPA) - Brasil. Docente da Universidade
Federal do Pará, Campus Universitário do Tocantins/Cametá - Pará, Brasil. Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Trabalho e Educação (GEPTE/UFPA) e do Grupo de Pesquisa História, Educação e Linguagem na Região Amazônica (GPHELRA/UFPA). E-mail: doriedson@ufpa.br ORCID: 0000-0002-5120-2484. Lattes: http://lattes.cnpq.br/1127076028303549.
Neste ensaio, apresenta-se um conjunto de fotografias que permitem refletir, a partir do trabalho, o ser social pescador/pescadora artesanal como produtor de saberes manifestos em instrumentos (tecnologias) que caracterizam ações de pesca e extração de recursos outros da floresta, assim como em relações sociais mediadas pelo trabalho dos homens entre si e com a natureza.
En este ensayo se presenta un conjunto de fotografías que permiten reflejar, desde de la acción laboral, el ser social pescador/pescadora artesanal como un productor de saberes que se manifiestan en instrumentos (tecnologías) que caracterizan las acciones de pesca y extracción de diversos recursos de la floresta, así como también en las relaciones sociales mediadas por el trabajo de los hombres, entre sí y con la naturaleza.
In this essay, a set of photographs is presented that allow us to reflecting, from work, the social being of the artisanal fishermen/fisherwoman as a producer of manifest knowledge in instruments (technologies) that characterize actions of fishing and extraction of other resources of the forest, as well as in social relations mediated by the work of men among themselves and with nature.
O Baixo Tocantins é uma das regiões de colonização mais antigas do estado do Pará, Amazônia, sendo constituído por sete municípios – Abaetetuba, Igarapé Miri, Limoeiro do Ajuru, Cametá, Mocajuba, Baião e Oeiras do Pará. E é a partir dessa região, com foco específico no município de Cametá, que apresentamos o presente ensaio a partir um conjunto de fotografias4 sobre o mundo de trabalho de pescadores e pescadoras artesanais, produzindo-se uma reflexão sobre saberes do trabalho da pesca, manifestos em instrumentos (tecnologias) e em relações sociais mediadas pelo trabalho dos homens entre si e com a natureza.
Isto posto, salientamos, segundo Almeida (2010, p. 292), que o Baixo Tocantins é região envolvida por um mundo de águas, “[...] organizado pelos rios Moju, Pará e o
Todas as fotografias aqui presentes estão com cessão de uso para o presente ensaio.
caudaloso Tocantins”, destacando-se que “[...] apenas o município de Oeiras do Pará não é banhado pelo Tocantins, e sim pelo Rio Pará”. Todavia, também de acordo com Almeida (2010, p. 292), a região, em maior ou menor profundidade, sofre “[...] os impactos da barragem de Tucuruí, com ênfase para a redução do pescado”, afetando a produção da vida das comunidades ribeirinhas, que têm, nesse estuário, as marés condicionando-lhes a existência em suas diferentes mediações – sociais, políticas, organizativas, produtivas, culturais, por exemplo –, permitindo-lhes também, por meio de típicas embarcações da região, como “cascos (canoas), voadeiras e popopôs - nome de embarcação adquirido por conta do ruído do motor [...]”, as “[...] relações comerciais entre os agricultores, pescadores e extrativistas com o meio urbano”.
E nesse contexto socioambiental, Cametá é território5 onde vivem comunidades quilombolas, extrativistas, povos das águas e da floresta, populações urbanas, rurais, campesinas e ribeirinhas, tratando-se de município com mais de 380 anos, com uma população estimada em 137.890 habitantes6, tendo a maior parte de seus habitantes vivendo na zona rural e em comunidades ribeirinhas, a partir das quais resultam as fotografias com as quais estabelecemos um diálogo neste ensaio, versando sobre o trabalho de homens e mulheres ribeirinhos ligados ao mundo da pesca artesanal.
Por ribeirinhos, categoria que permite compreender a materialidade produtiva e relacional de homens e mulheres, em suas relações com a natureza e com eles mesmos, entendemos, conforme Neves (2009, p. 70), um conjunto de homens e mulheres que constroem a vida por meio da pesca e extração de recursos da floresta, mas também a partir da agricultura de várzea, vivendo/trabalhando em ambientes na beira de rios, furos, igarapés, com “[...] um modo de vida advogado como sui generis”, organizados em comunidades entendidas como “[...] unidade territorial politicamente constituída pelo ideário da solidariedade e da redistribuição fraterna ou vicinal”.
Com base também em Neves (2009, p. 68), entendemos que os ribeirinhos, pela “[...] relação com os recursos naturais, são portadores de saberes, técnicas, estratégias e alternativas peculiares à convivência [...]” nesse contexto material de
Com base em Souza (2020, p. 13), entendemos também que “[...] os povos/comunidades tradicionais têm o território como “um ambiente simbólico, místico, político, econômico” (SOUZA; BRANDÃO, 2012,
p. 3), entendido como o lugar para além de suas fronteiras geopolíticas. Para eles, o significado do território norteia a vida das pessoas que ali vivem e constroem valores em suas experiências de trabalho”.
Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2019). Acesso a partir de < https://cidades.ibge.gov.br/>.
existência, permeados pelas relações com a natureza, sendo também atingidos, contudo, por ações decorrentes do modo de produção capitalista, como a presença de grandes projetos do interesse do capital, a exemplo da Hidrelétrica de Tucuruí7.
Em Cametá, pois, um conjunto de pescadores e pescadoras artesanais, ribeirinhos e ribeirinhas, vivendo no interior de ilhas, vilas, comunidades, distritos, produzindo a vida por meio do trabalho, vai pondo em movimento “[...] forças naturais de seu corpo — braços e pernas, cabeça e mãos, a fim de apropriar-se dos recursos da natureza, imprimindo-lhes forma útil à vida humana” (MARX, 2008, p. 211), tanto no que se refere à produção de tecnologias, aqui entendidas como instrumentos para a captura de pescado e extração de recursos das florestas, como no que diz respeito ao estabelecimento de relações sociais necessárias à manutenção da vida, constituindo, assim, a própria existência.
Tudo isso acontece no/pelo trabalho, que vai possibilitando a esses sujeitos de história, a partir de suas próprias ações, impulsionar, regular e controlar “[...] seu intercâmbio material com a natureza [...]”, de maneira que, “atuando assim sobre a natureza externa e modificando-a, ao mesmo tempo modifica sua própria natureza”. Desse modo, “[...] desenvolve as potencialidades nela adormecidas e submete ao seu domínio o jogo das forças naturais” (MARX, 2008, p. 211).
Isso exposto, destacamos que as fotografias aqui reunidas buscam expor cenas do cotidiano da materialidade produtiva de homens e mulheres ribeirinhos/ribeirinhas que constroem tecnologias e relações sócio-comunitárias, a fim de atender suas necessidades de existência, moldando a natureza, em seu sentido amplo, em instrumentos de captura de peixes diversos e para extração de outros recursos da floresta, e também em relações de partilha, colaboração8. No dizer de Heller (2008, p. 31-32), diríamos que esse cotidiano é a vida onde esses sujeitos colocam “[...] ‘em funcionamento’ todos os seus sentidos, todas as suas capacidades intelectuais, suas habilidades manipulativas, seus sentimentos, paixões, ideias,
Segundo Rodrigues (2012, p. 219), a “[...] construção da Hidrelétrica de Tucuruí, iniciada durante o período de ditadura militar, foi desencadeada para atender às demandas de grandes projetos industriais que se instalavam na região Norte, como o Complexo Industrial do Alumínio, em Vila do Conde, e a ALBRÁS e ALUNORTE, em Barcarena-PA”.
As tecnologias, entendidas como instrumentos de pesca e relações socioculturais, aqui expostas por
meio das fotografias, constituem materialidades de um conjunto de ribeirinhos e ribeirinhas da Amazônia, havendo possivelmente outras descrições sobre as mesmas, como as de Furtado (1993) e Moraes (2007). Contudo, para o presente trabalho, toma-se a materialidade de vida de homens e mulheres ribeirinhos e ribeirinhas do município de Cametá-Pará.
ideologias”, constituindo-se a “[...] organização do trabalho e da vida privada [...]” “[...] partes orgânicas da vida cotidiana”.
Trata-se, assim, de imagens que expõem o cotidiano de saberes do trabalho de pescadores e pescadoras artesanais do Baixo Tocantins, município de Cametá, resultantes, conforme Thompson (1981), de “experiências herdadas” a partir de relações comunitárias estabelecidas entre pais/mães, filhos e filhos, vizinhos e vizinhas, amigos e amigas, trabalhadores e trabalhadoras, em que, de acordo com Thompson (2005, p. 7), “[...] relações sociais e trabalho estão interligados – a jornada de trabalho se alonga e se prolonga conforme as tarefas – e não existe uma grande sensação de conflito entre o trabalho e o passar do dia”.
Todavia, há de se registrar que essas populações vêm sendo, também, atacadas em seus modos de existir, como outrora já aludimos, pela lógica de produção capitalista, por meio de grandes projetos minero-energéticos presentes na região, a exemplo da Hidrelétrica de Tucuruí e complexos Industriais, como os de produção de alumínio, que vêm causando a “[...] diminuição de pescado, o empobrecimento ainda mais das comunidades [...]”, conforme dispõe Rodrigues (2012, p. 220), intensificando, desse modo, desigualdades sociais, mais intensamente afloradas no contexto da pandemia por Coronavírus que assola, também, o Baixo Tocantins, onde mais de 50% da população de seus municípios apresentam domicílios com rendimentos mensais de até meio salário mínimo por pessoa. Esse é o caso de Cametá, com 55.4% da população inserida nessas condições, conforme dados de 2017 (IBGE)9, constituindo- se, portanto, em territórios de intensa pobreza.
Entretanto, opondo-se à destruição da vida, contraditoriamente, como sujeitos de história, homens, mulheres, jovens, adultos, crianças, pescadores e pescadoras artesanais vão também produzindo a vida, aqui exposta em imagens do trabalho e em instrumentos por eles e por elas realizado/produzidos, respectivamente. E pactuando com as reflexões de Magalhães e Tiriba (2018) sobre a categoria experiência, diríamos que são homens e mulheres que, vivendo em sociedade – comunidades ribeirinhas, vão, por meio do trabalho e das experiências daí decorrentes,
[...] atuando e transformando a realidade de acordo com o acúmulo histórico, material e cultural de experiências vividas, mas também transmitidas e apreendidas no seio da realidade material, formando
Acesso a partir de < https://cidades.ibge.gov.br/>.
verdadeiros repertórios de aprendizagens sociais, que são acionados de acordo com as necessidades concretas e psicossociais coletivas (MAGALHÃES; TIRIBA, 2018, p. 16).
Por fim, salientamos que o ensaio que aqui apresentamos decorre de experiências de trabalho captadas por meio de fotografias, como alhures já enfatizamos, que retratam esses verdadeiros repertórios de aprendizagens sociais, [...] acionados de acordo com as necessidades concretas e psicossociais coletivas, de que nos falam Magalhães e Tiriba (2018), partindo-se de uma compreensão da fotografia, conforme Ciavatta (2007, p. 35), “[...] como resultado da atividade social, o visível revelado e o invisível oculto, a história sob a aparente simplicidade de uma representação, a imagem”, entendendo-se ainda, de acordo com Ciavatta (2007, p. 35), a fotografia como mediação, do que resulta “[...] concebê-la como processo social complexo (Ciavatta, 2002), síntese de múltiplas determinações ou o concreto pensado Marx (1977, p. 229) [...]”, constituindo-se como “[...] uma visão historicizada de objetos singulares ou de acontecimentos, fenômenos cujo conhecimento deve ser buscado no conjunto articulado de relações sociais (estéticas, culturais, econômicas, políticas etc.) que o constituem no tempo e no espaço”.
Abaixo, apresenta-se um conjunto de fotografias que dizem respeito a tecnologias criadas pelos pescadores e pelas pescadoras, a partir do trabalho que realizam, assim como saberes sociais daí decorrentes, oriundos das relações que travam entre sim e com a natureza.
O paredão consiste em uma enorme parede feita de caule de açaizeiro (paxiba) ou de paxiubeira (árvores nativas da região), trançada com cipó de timbuí, vegetal da região. Esse equipamento tem o objetivo de capturar o pescado nas margens próximas das ilhas. Esse paredão é construído nas praias ou próximo das ribanceiras para dentro do rio. Possui 2 ou 3 gaiolas posicionadas no meio e nas extremidades, construídas com uma tecnologia nativa onde as entradas das mesmas são feitas em
forma de “V”, por onde os peixes entram e não conseguem sair. Esse equipamento de pesca, por ter grande porte, é normalmente construído para durar anos, não sendo removido pelos pescadores.
Consiste em uma gaiola em formato cilíndrico que possui, nas extremidades, entradas em formato cônico; no meio, possui uma portinhola que serve para a coleta do pescado. O matapí é utilizado para a captura de camarão. O crustáceo é capturado quando entra por uma das extremidades cônicas do equipamento, em busca do alimento (isca geralmente de babaçu), o qual é previamente colocado no interior do apetrecho; uma vez dentro, o camarão não consegue encontrar a saída.
O matapí é confeccionado comumente com talas retiradas da palmeira jupatí e pode, também, ser feito com o caule da palmeira marajá. É trançado por fibras de jacitara (cipó espinhento comum na região) ou fibras de buritizeiro e arumã (vegetais da região). Os mais comuns possuem mais ou menos meio metro de comprimento por 25 a 30 centímetros de diâmetro, podendo ser maiores conforme a utilidade. Os
matapis são armados nas praias ou igarapés e são fixados por uma vara, que é enterrada para servir de suporte. O pescador geralmente liga os matapis uns com os outros através do cipó de timbuí, o que facilita a chamada despesca, que geralmente é realizada utilizando-se um casco (canoa).
O paneiro é o utensílio mais utilizado por pescadores e pescadoras ribeirinhos na no Baixo Tocantins, existindo uma enorme variedade dele. Serve, conforme tamanho e forma, para vários usos, possuindo nomes diferentes, como pairé, paneiro de costa, dentre outros. É utilizado, por exemplo, para o carregamento do açaí, do pescado, de aves e até para acondicionar pães. Na foto, trabalhadora faz a coleta do açaí, numa operação chamada de debulha, quando os frutos são retirados dos cachos.
O paneiro é confeccionado com fibras retiradas de várias árvores da região, como o arumã, a jacitara e o buriti. A matéria prima é retirada no mato e depois é limpa, transformada em fibra e posta no sol para secar. Geralmente esse trabalho é realizado por mulheres que confeccionam o paneiro em suas próprias casas ou em barracões comunitários nas ilhas.
O tamanho do paneiro varia de acordo com sua utilidade, o que vale também para a escolha da fibra a ser utilizada na confecção do objeto. Geralmente, para o carregamento do açaí, é utilizada a fibra de jacitara, por ser mais resistente. Muitas vezes utilizam-se duas fibras, que são alternadas na hora do trançar.
O casco é embarcação a remo bastante utilizada pelos pescadores e pescadoras do Baixo Tocantins. É uma espécie de canoa confeccionada a partir do tronco de algumas árvores amazônicas, tais como a andiroba, o ipê, a itaúba, o louro- vermelho, a maçaranduba, o piquiá, a sapucaia, a tatajuba.
O casco é quase sempre construído no mesmo lugar onde se corta a árvore escolhida para a sua fabricação. A tora é descascada com machado e enxó; em seguida é riscado (demarcado), fazendo-se a cavação do tronco para a retirada do âmago. Em tal procedimento é comum usar o fogo para desbastar o cerne da madeira. Após cavado, o trabalhador põe fogo na barriga da embarcação, que é posta com o oco para baixo (de boca para baixo), a fim de que sofra um processo de dilatação, ficando, portanto, mais larga. Nesse momento, é feito o envaramento, para que o casco tome forma. O acabamento é realizado com o uso do machado, enxó, plaina e arco de pua.
Os remos geralmente são confeccionados com as mesmas madeiras que são utilizadas para a construção do casco. São os instrumentos essenciais para movimentar a embarcação. Possuem cabos cilíndricos e com as extremidades em forma de folhas arredondadas. No acabamento são utilizadas ferramentas como a
10 Instituto de Desenvolvimento, Educação Ambiental e Solidariedade (IDEAS).
enxó, o machado, plainas e raspadores, que servem para deixar os remos bem lixados.
Bloqueio ou borqueio, como é comumente falado por muitos ribeirinhos do Baixo Tocantins, é um tipo de pesca que acontece principalmente no período da abertura da pesca na região. O borqueio é visto mais corriqueiramente durante a captura do mapará, peixe da região, acontecendo inicialmente com a reunião dos pescadores de determinada área comunitária, que escolhem o poço a que devem se dirigir na busca do peixe.
Existe, nessa pesca, todo um ritual que envolve a descoberta do cardume e de seu tamanho pelo taleiro. O taleiro é um pescador que, armado de uma vara de aproximadamente 3 metros de comprimento e sentado na proa do casco, pratica uma espécie de sondagem ao afundar a vara no rio. Ao fazê-lo, sente as vibrações
provindas do cardume e, através desse ato, é capaz de identificar a direção e a quantidade de peixe no local.
Feita a sondagem pelo taleiro, a rede é jogada no rio, ao que entram em cena os mergulhadores, que têm o objetivo de imergir por baixo do cardume e costurar a rede. A costura é feita com cordas que amarram as redes por baixo, formando uma espécie de saco onde o peixe é preso. Logo em seguida, os pescadores se aproximam, puxando a rede e formando uma espécie de círculo. Ao puxarem as cordas da rede, esta vem à tona, trazendo com ela o cardume inteiro, que aflora na superfície do rio e então, a partir desse momento, os pescadores fazem a coleta do mapará, utilizando os paneiros, que são cheios e colocados nas embarcações. A partir daí o pescado é dividido entre os pescadores e os moradores da comunidade onde fica o poço de pesca. Em seguida, todos retornam a suas casas.
É bem comum na Amazônia, no contexto de trabalhadores e trabalhadoras da pesca artesanal, o trabalho/preparo de utensílios ou até a realização de refeições no assoalho de suas casas. Assim, não raras as vezes observamos no assoalho da sala ou da cozinha trabalhadores e trabalhadoras do Baixo Tocantins ligados à pesca artesanal confeccionando paneiros, tipitis, esteiras, abanos e outros instrumentos. Nas imagens, homens e mulheres nos cuidados do pescado mapará e também em almoço, em vivência a partir do comum.
Por outro lado, o chão da casa não serve apenas para fazer os trabalhos corriqueiros ou refeições, mas também para tirar a sesta da tarde, que é um repouso depois do almoço. Esse espaço é utilizado pelos mais velhos que, sentados ou deitados no chão liso de madeira, contam histórias para as crianças ou recebem os amigos para uma conversa informal, distraída e alegre. É um espaço de convivência familiar e social.
O Muquém é uma prática indígena de assar muito antiga, ainda utilizada por trabalhadores e trabalhadoras da pesca do Baixo Tocantins, e que consiste em assar peixes e carnes. Comumente, essa prática está ligada, nessa região, ao assado do peixe, principalmente ao mais apreciado nas ilhas, o mapará.
O assado do mapará, ou moquém, é feito com o pescado logo após a sua retirada do rio. Trata-as do conhecido mapará muquiado, que é lanhado, riscado e posto para assar no muquém, o qual é preparado geralmente no terreiro ou em um fogão de barro a lenha. Consiste em apoiar algumas varetas em pedaços de vara maiores, colocados nas laterais. Embaixo das varetas trançadas é acesa a brasa, feita com lenha ou carvão. O pescado é jogado em cima das varetas, onde é tostado e temperado apenas com limão e sal, alimentando, no chão das casas, um conjunto de famílias que vivem da pesca artesanal no Baixo Tocantins.
Neste trabalho, tomamos algumas fotografias que expressassem pequenas e intensas cenas da historicidade de homens e mulheres ribeirinhos, em relações entre si e com a natureza, resultando na produção de instrumentos de pesca e de coleta de outros recursos das florestas (como o fruto açaí), assim como em formas de captura do pescado, de transformação em alimento e de relações socioculturais. Trata-se de fotografias que expõem um conjunto de saberes sociais do trabalho desses sujeitos.
São saberes que caracterizam, de acordo com Rodrigues (2012, p. 54), “[...] o trabalho, em sua faceta não alienada [...], como “[...] o momento de constituição da humanidade do homem, porque lhe permite o exercício da engenhosidade, da criatividade, do planejamento e da execução do seu querer [...]”, permitindo, conforme Schwartz (2003, p. 23), que “[...] toda atividade de trabalho [...] [encontre] saberes acumulados nos instrumentos, nas técnicas, nos dispositivos coletivos [...]” e que “[...] toda situação de trabalho [...] [esteja] saturada de normas de vida, de formas de exploração da natureza e dos homens uns pelos outros”.
As fotografias aqui reunidas expressam, pois, situações de trabalho saturadas de normas de vida e indicadoras de processos importantes para a constituição de classe, como o viver coletivo e o sentir-se membro de uma totalidade social, posto que, de acordo com Thompson (1987), os homens se constituem como classe porque sentem e articulam uma identidade de interesses entre si, resultantes de experiências em comuns, herdadas ou partilhadas, produzindo saberes que, de acordo com Rodrigues (2012, p. 153) “[...] vão lhes conferindo uma identidade diferenciada em
relação a outros trabalhadores, identificando-os, do ponto de vista do trabalho, como aqueles que dominam conhecimentos relacionados ao cotidiano da pesca”.
Como base em Souza (2020, p. 129), entende-se que as fotografias aqui reunidas expressam modos de vida de pescadores e pescadoras artesanais do Baixo Tocantins, compreendidos como um “[...] conjunto de práticas sociais, econômicas e culturais cotidianas compartilhadas por um determinado grupo social no processo de produção da vida material e simbólica”, relacionando-se a “[...] costumes, tradições, valores, crenças e saberes que orientam as normas de convivência na vida familiar, no trabalho e em âmbito comunitário”, bem como “[...] às maneiras de produzir, consumir e distribuir os frutos do trabalho, tendo em conta as formas de sentir e pensar a vida e o mundo”.
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V.18, nº 37, set-dez (2020) ISSN: 1808-799 X
Distrito de São Carlos do Jamari totalmente inundado pela cheia do rio Madeira, em 2014
1Entrevista recebida em 02/07/2020. Aprovada pelos editores em 21/07/2020. Publicada em 25/09/2020. DOI: http://doi.org/10.22409/tn.v18i37.43349.
2Mestre em Educação pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO. Professora
de Geografia e doutoranda em Educação pela Universidade Federal Fluminense (Rio de Janeiro, Brasil), orientada pela Prof.ª Dr.ª Zuleide S. da Silveira. E-mail: mahaliagcaquino@gmail.com ORCID: 0000-0002-1392-8487. Lattes: http://lattes.cnpq.br/1716949253761324.
3Doutor em Educação pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Professor de Sociologia e
Sociologia Rural no Instituto Federal de Educação de Rondônia (IFRO) - Brasil. E-mail: william.souza@ifro.edu.br. ORCID: 0000-0001-6271-9422.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/0703023274968708
Em reunião ministerial no dia 22 de abril de 2020, Ricardo Salles, Ministro do Meio Ambiente, afirmou ser necessário “passar as reformas infra legais de desregulamentação, simplificação” de leis, normatizações e regras ambientais e do uso de seus recursos, se aproveitando da atenção da mídia e da sociedade voltada majoritariamente para a questão do COVID-19. Para ele, esse seria um momento oportuno para “ir passando a boiada e mudando todo o regramento e simplificando normas. (...). Agora é hora de unir esforços pra (sic) dar de baciada a simplificação, é de regulatório que nós precisamos, em todos os aspectos”4.
A fala do Ministro do Meio Ambiente nos reafirma que no governo Bolsonaro, o Brasil vive um drama não apenas político, mas econômico, social e ambiental. O cenário se apresenta como caótico em meio à paralisia do Governo Federal na contenção e tratamento à pandemia do vírus COVID-19. A insistência em manter um discurso anticientífico e irracional nas tomadas de decisão, os ataques às mídias de informação e formação de opinião pública têm o intuito de mascarar o interesse do Estado em executar pacotes de salvamento a bancos e empresas privadas, buscando soluções para a economia estagnada em detrimento da saúde coletiva da população. Essas ameaças recaem, de forma mais adensada, nos grupos mais vulneráveis economicamente e nas comunidades tradicionais, que se encontram expostas a um duplo risco: o de perder suas vidas pela irresponsabilidade do poder público e o de perder seus territórios em prol da soberania produtiva capitalista e seu desenvolvimento insaciável.
Vivemos um período marcado pela ascensão de uma extrema direta de cunho autoritário e antidemocrático, que se pauta em ideais fascistas – xenofóbicos, racistas e machistas –, e ataca ferozmente os direitos historicamente conquistados pela classe trabalhadora e os seus respectivos territórios e modos de vida, a partir de uma moral e fé cristã. Essa guinada está ancorada em velhas novidades e em discursos conhecidos de outras épocas, que se repetem em dados períodos históricos da sociedade, marcados por um aspecto em comum: originam-se como resposta da classe dominante às crises cíclicas do capitalismo (CUEVA, 1989)5.
4Divulgada ao público pelo Ministro do STF Celso de Mello no dia 22 de maio de 2020. Fonte:
<https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/05/22/ministro-do-meio-ambiente-defende-passar-a- boiada-e-mudar-regramento-e-simplificar-normas.ghtml>, acesso em: 04 de junho de 2020, as 10:42. 5CUEVA, Augustín. A guinada conservadora. In: CUEVA, Augustín (Org.). Tempos conservadores: a direitização no Ocidente e na América Latina. São Paulo: Hucitec, 1989.
A construção de barragens faz parte da dinâmica econômico-produtiva das commodities, fornecendo suportes espaciais e infra estruturais para a instalação de mega empreendimentos, sejam eles para fins energéticos – como o caso de Santo Antônio Energia em Rondônia –, ou para a retenção de rejeitos originários do processo de beneficiamento do minério, que dominam paisagens, como em Minas Gerais. Para que essas construções se efetivem, a água torna-se o elemento fundamental, isso explica o porquê sua construção se dá, “[...] sempre, nos leitos de rios e córregos, destruindo assim de forma irreversível estes cursos d’água” (JUSTIÇA GLOBAL, 2016, p. 76). Além da expropriação dos recursos naturais, as barragens submetem diversos grupos sociais à condição de subalternidade, retirando seus direitos historicamente adquiridos de existência e subsistência a partir de seus territórios e na relação intrínseca a natureza.
Ocorre então uma violência ambiental do capitalismo sobre os territórios e, com isso, desencadeia uma série de impactos socioambientais irreversíveis, como o crime ocorrido na bacia do Rio Doce (em 2015) e Paraopeba (em 2019). No caso da barragem de Fundão (Mariana – MG), sua operação iniciada em 2008 se dá no período em que o preço do minério de ferro atingiu o seu ápice. O licenciamento foi aprovado, mas com uma série de condicionantes que não foram sanadas. Possuía indícios de aumento do número de acidentes de trabalho, que já apontava para um despreparo em cumprir com os planos de segurança. Seu rompimento, em 2015, ocorre como consequência da queda no valor do minério no mercado financeiro, em meio à crise econômica mundial. Tal desastre destituiu os sujeitos de seus próprios espaços tradicionais de convívio, submergindo seus modos de vida e entes queridos sob um rio de lama (material estéril e de alta toxicidade), provocando um rompimento histórico entre o trabalho, as relações sociais e ambientais locais das comunidades atingidas.
A Revista Trabalho Necessário traz a entrevista a Océlio Muniz, membro da Coordenação Estadual do Movimento dos Atingidos por Barragens de Rondônia (MAB
RO). Océlio é nascido no Ceará, estado no qual foi atingido por barragem e que deu início a sua inserção no movimento há dez anos. Em Rondônia, contribui para a
JUSTIÇA GLOBAL. Vale de lama: Relatório de inspeção em Mariana após o rompimento da barragem de rejeitos do Fundão, 2016. Disponível em: <http://conflitosambientaismg.lcc.ufmg.br/wp- content/uploads/2016/01/Vale-de-Lama-Justic%CC%A7a-Global.pdf>. Acesso em: 29 jun. de 2020.
construção do MAB no estado, com a tarefa de organização do movimento nas comunidades. A conversa foi realizada no dia 25 de maio de 2020, por meio digital7 e conta com a apresentação de fotografias que evidenciam os processos de luta e mobilização popular do MAB nos territórios atingidos pela construção de grandes empreendimentos, como desvio de rios, barragens minerárias e hidroelétricas. Também há fotos do cotidiano de comunidades ribeirinhas e exemplos da grandeza dos rios amazônicos.
O barco na imensidão do rio Madeira.
Em cumprimento às medidas de isolamento social da pandemia do COVID-19 no período da realização da entrevista.
momento em que as políticas ambientais estão sendo desmontadas pelo atual modelo econômico, o MAB vem somando forças com outras organizações para que as ações em defesa do meio ambiente sejam fortalecidas.
uma das ações que o Movimento trabalha nas áreas urbanas. Com isso temos feito uma terceira análise de que a importância do público urbano na luta, na compreensão de que os atingidos por barragens, não estão sós, de que somos todos atingidos, porque a construção da barragem ela impacta os atingidos por barragens diretamente e os atingidos urbanos com a conta de luz, com o discurso de que a construção das hidrelétricas diminui a conta de luz da população em geral... E nos últimos anos o MAB tem se deparado com essa contradição que as famílias urbanas não diminuíram a conta de luz, pelo contrário, só tem aumentado. Então os debates que temos feito na área urbana é travar uma luta para que o acesso à luz e barata para todos e todas.
Paracatu de Baixo (Mariana – MG), segundo distrito atingido pelo rejeito minerário oriundo do rompimento da Barragem de Fundão, em 05 de novembro de 2015. Na memória da autora da foto, ainda estão presentes o cheiro forte ferroso do ar e a certeza de que nada pode ser mais destrutivo e devastador do que a ação do capital sobre a natureza.
a empresa não queria garantir o direito dos atingidos dizendo que não havia atingidos, que eram uma minoria. Então MAB foi para cima organizando as famílias no coletivo demonstrando para empresa que tinham atingidos. Então soltou de 200 famílias atingidas para quase três mil famílias e é um número que está crescendo porque empresa faz cálculos errados e tem famílias que hoje ainda, em 2020, estão sendo remanejadas. Por exemplo, o distrito em Jaci Paraná, é um conflito e uma disputa constante com a empresa, pois ela fez cálculos equivocados que o lago [da represa] subiu e mais famílias foram atingidas. Então as famílias têm esses constantes conflitos para que empresa garanta esse direito. O MAB entra nesse processo de organização social no coletivo para lutar por esse direito, que entra na segunda questão.
Santo Antônio Energia sempre atuou para que o movimento não se fixasse nas comunidades impedindo a luta coletiva;
Quando fazemos a luta coletiva, garantimos um direito mais ampliado. Tem-se o direito e, assim, amplia o acesso a mais famílias. Esse direito dá as famílias mais firmeza quando essas passam pelo processo de luta coletiva. Os conflitos com a empresa sempre estão presentes, essas disputas, porque a empresa quer garantir suas propostas e as propostas da empresa sempre foram menos. O MAB busca no processo de luta e organização social no coletivo para obrigar que a empresa atenda a demanda integral das famílias atingidas por barragens.
Trabalho Necessário: O mercado global das commodities exerce fortes pressões sobre os territórios dos trabalhadores e trabalhadoras do campo. Quais são os impactos no trabalho e, em especial, no modo de vida das comunidades tradicionais?
Balsa com contêineres de grãos descendo o rio Madeira
O MAB defende um modelo de sociedade onde todos possam ter os mesmos direitos e sermos solidários. Defendemos que a água e energia não são mercadoria,
sejam bens públicos a serviço dos brasileiros. Defendemos uma cultura da solidariedade, na necessidade de divisão das riquezas, na necessidade de colocar a vida acima do lucro, e na articulação do país com países mais avançados com este pensamento na humanidade.
Ato mobilizado pelo MAB – RO, em 14 de março de 2015, na rodovia BR 364, em Candeia do Jamari. Parte da luta, em defesa da soberania popular energética.
mas, sobretudo aos imateriais), procuram na luta coletiva uma forma de exigir o que lhes é de direito. O que fazer com essas contradições que ocorrem dentro do movimento?
Reassentamentos (realocação das famílias);
Indenizações justas e carta de crédito;
Com condições estruturantes visando à melhoria da qualidade de vida e geração de renda para as famílias atingidas.
Esse processo foi de muita luta, pois as empresas não queriam entender as demandas do MAB. Avançamos uns 70% da nossa pauta. Por não atender nossa demanda, os atingidos ainda sofrem com problemas estruturantes nas áreas atingidas. Por exemplo:
Reserva legal: Destinação das reservas legal dos reassentamentos – ao todo são sete áreas de reassentamentos sem reserva legal, nas quais as empresas não conseguem destinar a essa função.
Infraestrutura, abastecimento de água e saneamento básico: Nos reassentamentos não tem sistema de tratamento de água.
Lotes alagados: Imediata negociação coletiva para solução dos lotes que foram atingidos com a formação do reservatório e encharcados.
Assistência técnica: ampliação do período de assistência técnica para um período de no mínimo cinco anos, discutido e acompanhados pelos os atingidos.
Plano de reestruturação e desenvolvimento da comunidade: Com ações e recursos que voltados para o acesso à água, crédito produtivo, construção/reformas de casas, uso sustentável do lago pelas famílias do projeto, reflorestamento da beira do lago.
Programa de apoio atividade pesqueira: Implementação imediata do projeto experimental de criação de peixes em tanques escavados, conforme últimos encaminhamentos das reuniões no reassentamento de Teotônio – projeto que foi debatido e aprovado com a comunidade do reassentamento.
Aquisição de terras para a implantação dos projetos produtivos das famílias de Teotônio.
fazer o outro lado: questionar esse projeto feito pela usina e criar um novo e mais participativo juntamente com a psicologia rural.
Pássaros descansam no Lago Cuniã
A manutenção dos espaços formativos das populações locais atingidas por barragens é parte das ações desenvolvidas pelo MAB, promovendo debates visando à unidade popular na construção de uma nova consciência ambiental crítica e na luta por direitos. No registro fotográfico, a antiga escola de Bento Rodrigues (Mariana – MG), primeiro distrito destruído pelos rejeitos de Fundão em nov./2015, com 19 mortos. Além do ensino formal, o espaço servia de encontros e atividades coletivas da comunidade.
Trabalho Necessário: Existe um momento específico em que os(as) atingidos(as) começam a ter uma compreensão crítica de sua condição de subalternizado, de atingido ambiental e se mobilizam na luta? Em um sentido romântico, quando acontece o despertar da consciência?
construção da barragem. O segundo momento, no processo de construção da hidroelétrica (‘não conseguimos barrar, vai sair o empreendimento’), e as famílias passam a ter consciência de que a construção vai tirar a sua vida e o seu sustento. O despertar acontece pela perda, pelo sentimento da perda e esse processo começa a intensificar o processo de luta e organização no MAB, na necessidade de se organizar no coletivo e fazer luta para garantir um direito. O terceiro momento é o depois da construção da hidrelétrica, porque depois da sua construção nem tudo foi garantido, nem todo direito foi garantido. Depois do empreendimento pronto, tem muito despertar ainda - de continuar na luta, na organização do movimento e coletiva, os grupos de base -, em um processo de pressão constante. Porque o empreendimento, por exemplo, a usina de Santo Antônio Energia, elas terão uma concessão da hidrelétrica por 30 anos. Então fazemos um processo de organização em longo prazo, de que a luta vai ser permanente. Quem já despertou a consciência está nas fileiras de luta e organização do MAB, quem falta despertar em um desses três momentos vai acontecer. Mas o momento chave para essa construção crítica, mais firme e constante é no segundo momento, quando se dá a construção da hidrelétrica, onde os sentimentos da perda e da impotência de fazer a luta aparecem e ficam mais visíveis.
Em agosto de 2019, ruralistas convocaram o “dia do fogo”. Ao fundo, o sol vermelho por conta de fumaça das queimadas. Em primeiro plano a Usina Hidrelétrica de Santo Antônio.
saberes são construídos na vida cotidiana, na relação com a natureza e entre si. Qual a importância desses saberes tradicionais na luta do MAB por uma sociedade melhor?
Em 2014 uma enchente colossal trouxe uma série de consequências negativas para a cidade de Porto Velho e para as comunidades ribeirinhas. Bairros e comunidades ficaram debaixo d’água por conta das inundações. E muitos especialistas afirmaram que tais inundações são impactos causados pelas usinas. Na foto, o Distrito de São Carlos do Jamari totalmente inundado pela cheia do rio Madeira. Os moradores reconstruíram a comunidade. Fonte: http://rondoniadigital.com
Distrito de São Carlos do Jamari reconstruído pelos moradores
V.18, nº 37 - 2020 (set-dez) ISSN: 1808-799 X
COSTA, Ana Maria Raiol da2. A experiência educativa da casa familiar rural de Gurupá. 2019. 141 p. Tese (Doutorado) - Universidade Federal do Pará, Instituto de Ciência da Educação. Programa de Pós Graduação em Educação, Belém - PA.3
A Casa Familiar Rural (CFR) de Gurupá fica localizada na Amazônia paraense, município de Gurupá, Ilha de Marajó. Desenvolveu o ensino médio integrado à educação profissional do Campo, mediado pela Pedagogia da Alternância; uma experiência educativa de resistência em contraposição ao modelo hegemônico, que pensa a educação voltada para a realidade local. A experiência é entendida como categoria material, social e histórica, estabelecida por homens e mulheres em seu modo de produzir a vida material, nas relações de produção e forças produtivas que condicionam a vida social, produzindo o mundo real e sua própria história (THOMPSON, 1981). A hipótese emergiu diante do fato que a CFR realiza a Educação do Campo, um processo formativo mediado pela Pedagogia da Alternância, que alterna tempos e espaços, integrando saberes da família, da comunidade e da escola. A questão central foi descobrir, se a experiência educativa da CFR de Gurupá/PA com
1 Resumo recebido em 01/04/2020. Aprovado pelos editores em 06/04/2020. Publicado em 25/09/2020. DOI: https://doi.org/10.22409/tyn.v18i37.41267.
2 Doutora em Educação pela Universidade Federal do Pará - Belém / Brasil. Professora na Educação Básica da Secretaria Estadual de Educação do Estado do Pará (SEDUC/PA) - Brasil. Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Trabalho e Educação (GEPTE/UFPA). E-mail: anaraioldavi@gmail.com ORCID: 0000-0003-2588-9507.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/2574829928192680.
3 Tese orientada pelo professor Dr. Gilmar Pereira da Silva. Universidade Federal do Pará - Brasil.
a Pedagogia da Alternância pode ser configurada como uma experiência de educação integral no Campo. O objetivo geral foi analisar dialeticamente a experiência educativa da Casa Familiar Rural de Gurupá/PA. Os objetivos específicos buscaram: apreender experiências educativas de Trabalhadores do Campo no Brasil, na perspectiva da formação integral; verificar os princípios que norteiam a formação integral na Educação do Campo; desvelar o projeto educativo da CFR em suas potencialidades e limites.
Quanto aos aspectos teóricos e metodológicos, pauta-se no Método Histórico- Dialético, buscando o objeto em sua essência, para além da aparência, verificar a experiência educativa em sua realidade concreta (KOSIK, 1976), onde a educação da CFR é uma totalidade histórica que expressa os movimentos contraditórios de lutas entre as classes sociais. Essa estrutura estabelece uma forma dual de produzir a vida social, e sob ela se assentam as demais relações sociais, onde a educação é uma delas. Fundamenta-se em estudos clássicos marxianos e marxistas que se opõem à concepção pragmática de ciência e possibilitam a retomada da inclusão da categoria trabalho como princípio educativo, na definição de políticas educacionais para os trabalhadores. Também contou com referenciais da educação do Campo no Brasil. A pesquisa de campo foi realizada na CFR Gurupá, com levantamento documental e entrevista semiestruturada junto à equipe de dirigentes, monitores e estudantes/alternantes da CFR.
No plano de exposição, os resultados são revelados em três capítulos. O primeiro é constituído de introdução, apresenta aspectos gerais do problema, objetivos e caminho teórico-metodológico. Ainda como subseção é apresentada o locus da pesquisa em seus aspectos relevantes como o processo histórico de formação do município de Gurupá. Também aborda aspectos que impulsionaram a criação da Associação das Famílias da Casa Familiar Rural/ACFAG, entidade responsável em dirigir técnico-pedagógico e administrativamente a CFR que é uma entidade Pública, não estatal, filantrópica.
O segundo capítulo apresenta o resultado do mapeamento das teses e dissertações sobre experiências de educação do campo no Brasil. Identifica categorias conceituais definidoras do objeto de pesquisa, como “Educação do Campo” e “Formação humana Integral”, reconhecendo-as como instrumento de análise, ao fazer a interlocução com a contextualização histórico-social de formação da CFR de
Gurupá/PA. Composto em duas subseções. A primeira seção evidencia o significado histórico de “Educação do Campo”, em suas determinações gerais no movimento das contradições expressas nos processos sociais, econômico e político brasileiro. Recupera a trajetória histórica da Educação Rural à emergência da Educação do Campo e desvela no plano concreto, a presença de uma disputa de classes com interesses educativos antagônicos. De um lado, há a prevalência da “Educação Rural” (desde o Brasil colônia), entendida como a velha proposta educativa hegemônica liberal burguesa; do outro, emerge a “Educação do Campo” (mais recente) protagonizada pelos trabalhadores camponeses, na tentativa de estabelecer um novo paradigma na educação brasileira4. Em sua forma, é considerada uma conquista do movimento social do campo, instituída como política pública, por meio do marco regulatório, leis, decretos e um conjunto de programas e projetos educacionais. Enquanto conteúdo é norteado pela ideia do trabalho como princípio educativo e readquire a perspectiva da formação humana ampla, pautado na “Formação Omnilateral” e “Politécnica” de Marx, como também na “Escola Unitária” de Gramsci. As produções acadêmicas revelam que a formação integral, por meio do compartilhamento dos saberes e da interdisciplinaridade, já vem sendo adotada nas diferentes experiências de Educação do Campo, mediada pela Pedagogia da Alternância, nos Centros Familiares de Formação em Alternância -CEFFA’S no Brasil. O terceiro capítulo é constituído em duas subseções; na primeira subseção, a origem da Pedagogia da Alternância é contextualizada em seu movimento histórico, desde o surgimento da primeira “Maison” francesa a sua manifestação na Casa Familiar Rural de Gurupá/PA. Destaca-se que o processo formativo da CFR é pautado em quatro pilares básicos. Dois correspondem ao campo das Finalidades da educação sendo a Formação Integral visando o Desenvolvimento do Meio. Os outros dois correspondem ao método da Pedagogia da Alternância e Associação das Famílias da CFR. Esses pilares apresentaram potencialidades na integração dos saberes (da comunidade e da escola), favoreceu a formação interdisciplinar, com os conteúdos de maneira diversa, global. Na segunda subseção, foi elucidado que o pilar, finalidade educativa da CFR Gurupá, é a formação humana integral, visando o desenvolvimento do meio social. Sua materialidade é permeada de contradições,
4A tese apresenta na forma de quadros como a Educação Rural e a Educação do Campo emergem no âmbito das políticas públicas educacionais, em seus marcos regulatórios e particularidades que se manifestam na educação brasileira.
evidenciando os limites e desafios na experiência educativa da CFR. Pondera-se que a concretude de proposta educativa com essa magnitude, não dependerá única e exclusivamente da Casa, está para além de sua ação e função educativa, dadas as contradições estruturais da sociedade de classes capitalista, na qual a CFR de Gurupá/PA está inserida. Logo, a concretude dessa finalidade fica em suspenso, pelo fato de entrarem em confronto com a própria lógica da estrutura desigual da sociedade de classes, que estabelece uma disputa de projetos societários, dificultando a materialidade da finalidade educacional na perspectiva da formação humana ampla e total, que só pode ser atingida mediante a recuperação total do homem, pois a “libertação” é um ato histórico, não um ato de pensamento (MARX, 2009, p. 35). Mas, é reconhecido que a ideia de formação humana integral atende aos interesses dos associados da CFR, e mesmo que haja múltiplas dificuldades, não pode ser descartada. Propostas educativas, que se coloquem em contraposição à lógica escolar capitalista, poderão emergir da educação protagonizada pela organização social, advinda da força coletiva dos trabalhadores (e não do capital) com poder soberano, de decisão da política social e econômica. Só desse modo, a classe trabalhadora terá potencial em direção ao sentido concreto da cidadania radical plena, para além do capital (MÉSZÁROS, 2009). As conclusões reafirmam a tese que a CFR desenvolveu o seu processo formativo mediado pela Pedagogia da Alternância, que no Brasil adquiriu o significado de metodologia educativa, a qual busca a articulação permanente do conhecimento escolar com a realidade prática e social do sujeito alternante, mediante uma prática que alterna o tempo de estudo, entre a Casa Familiar Rural e a comunidade, na perspectiva da formação humana ampla. A adoção da Pedagogia da Alternância por meio de seus instrumentos didáticos pedagógicos se revelou com essa potencialidade. Porém, há limites a superar, a exemplo os de ordem pedagógica, mas, sobretudo os financeiros, de modo a assegurar as condições materiais para formação integral dos alunos. A captação de recursos financeiros é primordial para a continuidade do funcionamento da Casa. Por fim, mesmo diante de um cenário político-econômico tão adverso, experiências educativas como a CFR Gurupá/PA precisam ser fortalecidas, pois percebe-se que a Casa apresentou potencialidade na integração do ensino médio e técnico, no que tange a organização, ao planejamento e execução. Mas somente isso não materializa sua finalidade educativa, pelo fato que a concretude da formação humana integral, não depende
única e exclusivamente da questão pedagógica, depende, sobretudo de mudanças na estrutura política de nossa sociedade. Esse é o grande desafio.
MARX, K. O 18 de Brumário de Luiz Bonaparte, tradução e notas de Nélio Schneider; prólogo de Herbert Marcuse. São Paulo: Boitempo, 2011. (Coleção Marx e Engels).
MÉSZAROS, I. A Crise Estrutural do Capital. São Paulo: Boitempo Editorial, 2009.
KOSIK, K. Dialética do concreto, tradução de Célia Neves e Alderico Toríbio. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.
THOMPSON, E. P. A Miséria da Teoria. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
V.18, nº 37, set-dez (2020) ISSN: 1808-799 X
LISBOA, José Rivaldo Arnaud2. Atuação da Igreja Católica na prelazia de Cametá: o contexto da educação popular no período de 1980 a 1999. 2019. 206p. Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-Graduação em Educação e Cultura. Universidade Federal do Pará – Campus CUNTINS/Cametá, 2019.3
A pesquisa, em termos gerais, busca compreender como se efetivou a educação de cunho popular oportunizada pela Prelazia de Cametá às suas bases4 .e Em termos específicos, analisar a formação e informação das bases pela Prelazia, se está direcionou essa formação para a luta política, bem como observar quais resultados dessa educação tornaram-se visíveis. Desta forma, o objeto de estudo partiu da hipótese que a formação propagada na Prelazia durante a administração de Dom José Elias (1980 a 1999) desenvolveu-se sob viés político, formando com isso
1 Resumo recebido em 30/04/2020. Aprovado pelos editores em 29/05/2020. Publicado em 25/09/2020. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v18i37.46292.
2Mestre em Educação e Cultura pelo Programa de Pós-graduação em Educação e Cultura – PPGEDUC
(Cametá – Pará – Brasil), da Universidade Federal do Pará (UFPA). Professor de História das redes estadual e municipal de ensino de Cametá – Pará – Brasil. E-mail:rivaldo_lisboa@hotmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2577-3053. Lattes: http://lattes.cnpq.br/3901758252699435.
3Dissertação de Mestrado defendida em 26 de abril de 2019, sob orientação da Prof.ª Drª Benedita Celeste M. Pinto, no Programa de Pós-Graduação em Educação e Cultura da Universidade Federal do Pará – Campus CUNTINS/Cametá, Pará - Brasil.
Entenda-se “bases prelatícias”, no referir-se aos membros das comunidades cristãs, aos
trabalhadores rurais, camponeses, pequenos agricultores, ribeirinhos, sindicalizados, não sindicalizados, filiados e não-filiados politicamente, ou seja, àqueles que estavam dentro do contexto para e por onde fluiu a educação popular a partir da Instituição Prelazia.
lideranças nos municípios de Cametá, Igarapé-Miri e Oeiras do Pará, que assumiram o Legislativo, Secretarias de Governo, Conselhos Municipais, etc., Logo, encaminharam-se análises sobre a atuação da Igreja Católica de Cametá com a educação popular, partindo do pressuposto de que a Prelazia de Cametá, nas décadas de 1980 e 1990, viabilizou educação de cunho popular às suas bases. Ressalta-se que esse modelo de educação seria aos moldes da pedagogia freireana, fundamentada em sua obra Pedagogia do Oprimido.
Em termos metodológicos, o processo de investigação constituiu-se por levantamento e análise literária e documental, considerando ainda entrevistas com sujeitos ligados aos movimentos sociais da região e com o processo formativo. Desse modo, os principais dispositivos teóricos compreenderam determinadas categorias, como as reflexões freireanas, que atravessaram temáticas como a Educação Popular; Sujeitos e Comunidades Eclesiais de Base (Comunidades Cristãs); Formação e Conscientização da Construção Cidadã, dentre outras. Com isso, foi possível embasar todo o contexto empírico das entrevistas realizadas.
Ressalte-se que, dada a configuração em que estas formações ocorreram, isto é, ao período ditatorial brasileiro, precisou-se também de análise de bibliografia específica e sua conexão com a Amazônia, bem como com estudos já produzidos a respeito da Prelazia de Cametá, em que mereceram destaque os impressos do Jornal Comunidade Cristã, os quais possibilitaram a análise profunda das atividades desenvolvidas pela mesma, permitindo retroceder até a fundação deste jornal (1969), coincidentemente ano de criação das Comunidades Cristãs na Prelazia de Cametá.
A partir da memória dos que vivenciaram esse período histórico da Prelazia e que muito contribuíram com o estudo analisado, constatou-se que estes sujeitos foram transformados em protagonistas e narradores de suas próprias histórias. “Na opinião de Paul Thompson, a história ganha nova dimensão quando se utiliza a experiência de vida das pessoas de todo tipo como matéria-prima” (PINTO, 2010, p. 34).
Aos nove narradores escolhidos de forma criteriosa, levou-se em conta o papel que tiveram ou desempenharam no contexto do processo prelatício com a educação popular, sendo pois: membros do clero local, da equipe central e da equipe de formação, motorista da Prelazia e particular do bispo, agente da pastoral de educação, animadores de comunidades e membro da pastoral da juventude (PJ), o que tornou um grupo bem heterogêneo e com condições de proporcionar uma visão bem mais
ampla da temática estudada e da realidade vivenciada pela Prelazia. Assim, teve-se uma pesquisa qualitativa porque seus sujeitos apresentaram experiências realizadas no campo da educação popular produzida pela Prelazia de Cametá.
Domingues & Carrozza (2013) aferem que a técnica da “História Oral tem sido uma das grandes contribuições no estudo das experiências de homens e mulheres em diversos e diferentes setores da sociedade”, como forma de valorizar grupos sociais que, de certa forma, estiveram/estão invisíveis nos registros científicos e/ou escritos (DOMINGUES & CARROZZA, 2013, p. 147).
A educação popular pensada e oportunizada pela Prelazia caracterizou-se pela “educação de base, alfabetização de adultos, organização popular, apoio e integração”5.
Para consecução desse processo, a Prelazia contou com o trabalho de vários agentes ligados à Pastoral de Educação, mas também com a colaboração de monitores e animadores de comunidades. Além destes, foram firmadas parcerias com o Partido dos Trabalhadores e com os Sindicatos dos Trabalhadores, dos Pescadores e dos Professores, entidades que se tornaram parceiras da Prelazia, principalmente na realização dos encontros “Anilzinho”, nos Acampamentos dos atingidos pela “Barragem de Tucuruí” e outros, por onde também fluiu educação popular às bases prelatícias.
Foram vários os caminhos e vieses utilizados pela Prelazia para oferecer educação de cunho popular às suas bases. De uma forma mais direta podemos ressaltar as turmas de alfabetização de adultos, as quais eram criadas e formadas dentro de uma pedagogia freireana; os Encontros de Formação (de Liderança, de Catequese, de Agricultura, de Saúde e outros) que usavam a temática “Fé e Política”, para formar os comunitários da base; os Círculos Bíblicos que reuniam semanalmente os comunitários e discutiam temas de relevância nacional, regional e/ou local, dentro de uma perspectiva do método Ver, Julgar e Agir; as edições do Jornalzinho Comunidade Cristã que buscavam informar e formar ao mesmo tempo dentro de uma perspectiva mais ampla.
O texto final da pesquisa foi estruturado em quatro capítulos. No primeiro, fez- se uma discussão teórica acerca da educação popular e a ação de Paulo Freire, no
Relatório “Memória do Setor Educação da Prelazia de Cametá do Tocantins – 1º semestre de 1991”. Fonte: Acervo da Diocese de Cametá-Pará.
Brasil, América Latina e África, intitulado “A educação como práxis que liberta”; o segundo, compreendeu o “Histórico da Diocese de Cametá”; o terceiro e quarto capítulos apresentaram a estruturação da Prelazia e o agir e interagir com o processo de viabilização da educação popular, denominados, respectivamente, “O sentido da educação popular na Prelazia de Cametá” e “Ver, julgar, agir e resistir”.
Assim, na perspectiva de promover as gentes de sua base, a Igreja prelatícia de Cametá - dentro de uma linha libertadora com a educação popular aos moldes freireanos e sob inspiração da Teologia da Libertação a qual embeveceu os padres lazaristas da Congregação da Missão, bem como comunitários e agentes de pastoral
-, viabilizou educação de cunho popular, evidenciada pela pesquisa.
Resultado do agir e interagir dos vários atores sociais no contexto da Prelazia e suas ações com a educação popular, evidenciamos vários “achados” com esse processo, sendo eles: a Educação Popular como denúncia da ausência do Estado; a Educação Popular como militância; a Educação Popular com foco na formação e trabalho associados a fatores econômicos; a Educação Popular na perspectiva de atividade ético-política transformadora; a Educação Popular como integração. E ratificamos: a Prelazia viabilizou educação de cunho popular aos moldes freireanos às suas bases, promoveu um processo de alfabetização às mesmas, bem como proporcionou formação cidadã com viés político.
Quanto ao questionamento que permeou todo o estudo, se “houve contribuição ou não da Prelazia para uma formação cidadã das gentes da base?”, a resposta se encontra ao longo dos capítulos terceiro e quarto: O povo prelatício protagonizou sua história, recebeu formação e orientação para melhor viver e produzir, trilhou os caminhos da conscientização a partir dos cursos e informações recebidas e buscou e lutou por seus direitos (seja com os encontros Anilzinho, seja com os Acampamentos do Movimento dos atingidos pela Barragem de Tucuruí).
Assim, percebe-se que a educação de cunho popular recebida pelas bases prelatícias contribuiu, de forma significativa, para sua formação, informação e conscientização. “A iniciativa própria tornara-se o motor de vitalidade das comunidades, incluindo cada vez mais pessoas, valorizando os dons diversos e a boa vontade” (FRENCKEN, 2010, p. 472).
Ao final, conclui-se: A Igreja Católica de Cametá se voltou às suas bases com uma proposta de educação que foi bem acolhida. Em contrapartida, a resposta destas
se reverteu em mais qualidade de vida, de cultivar, de cuidar da saúde, de se organizar, de lutar por seus direitos, de se informar, de celebrar a vida. A Teologia da Libertação, além dos padres lazaristas, acabou por contagiar comunitários e demais pessoas da base, dando à Igreja Católica local um rosto cada vez mais progressista.
DOMÍNGUEZ, A. S.; CARROZZA, N.G.V. História Oral, Discurso e Memória. In:
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FRENCKEN, G. Em Missão: Padres da Congregação da Missão (Lazaristas), no Nordeste e Norte do Brasil. Fortaleza: Edições UFC, 2010.
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PINTO, F. Capitolina. Edição 24, Ano 2, 2016. (Disponível em: file:///C:/Users/rival/Desktop/Hist%20Oral%20-%20Textos/O%20que%20%C3%A9% 20hist%C3%B3ria%20oral Capitolina.html. > Acesso em: 26/03/2019, às 20:35h.)
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Francisco José da Silveira Lobo Neto2
Há três fases no Projeto Rondon. A primeira da origem, em 1966, até 1985 com a extinção da Fundação Projeto Rondon. Assim o Projeto permaneceu em hibernação até 2003, quando a União Nacional dos Estudantes faz ao Presidente Lula o pedido de retomada das operações do Projeto. A formação de um grupo de trabalho em 2004 e o Decreto de 14 de janeiro de 2005 que cria o Comitê de Orientação e Supervisão do Projeto Rondon, representa bem uma segunda fase.
A grande questão é se o Decreto n. 9.848, de 25 de junho de 2019, cria uma nova fase, a terceira, ou não. Creio que ainda não temos elementos concretos para responder a esta questão, porque as operações deflagradas em 2019, foram orientadas e planejadas em 2018.
O I Seminário sobre Educação e Segurança Nacional, aberto na Escola de Estado-Maior do Exército - ECEME no Rio de Janeiro, em 17 de outubro de 1966, foi o berço da ideia que, posteriormente, se concretizou como o Projeto Rondon. (cfr. Correio da Manhã, edição de 22 de outubro de 1966, p. 2).
1Texto recebido em 25/07/2020. Aprovado pelos editores em 16/08/2020. Publicado em 25/09/2020. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v18i37.44596
2 Doutor em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense - UFF, Niterói
(RJ), Professor Aposentado de História da Educação da UFF, Professor-Pesquisador do Laboratório de Trabalho e Educação Profissional em Saúde (LATEPS) da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV) da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) – Rio de Janeiro, Brasil. E- mail::sloboneto@gmail.com ORCID: 0000-0002-9292-3069.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/2774154084956899
Neste Seminário é que o Professor Wilson Choeri, diretor do Departamento Cultural e Vice-Reitor da Universidade do Estado da Guanabara - UEG (hoje Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ), apresenta a ideia do que seria futuramente o Projeto Rondon, inspirado na experiência da Universidade Volante do Paraná “de onde retirou conhecimentos operacionais fundamentais” (GURGEL ROCHA, 1986, p. 116).
A Comissão Diretora foi formada pelo Diretor do Departamento Nacional de Educação; Reitores das Universidades; representantes do Estado Maior das Forças Armadas - EMFA; do Conselho de Segurança Nacional - CSN; do Ministério das Relações Exteriores - MRE; e o comandante da ECEME, Coronel Mattos Júnior, que a presidia. (cfr. CORREIO DA MANHÃ, idem).
Formaram-se cinco Comissões Temáticas:
Principais setores e formas da contribuição da Universidade à Segurança Nacional;
Intercâmbio entre as faculdades e as academias militares;
Intercâmbio de órgãos civis e militares de ensino secundário;
Visualização da contribuição das Forças Armadas na Educação para a cidadania;
Exequibilidade da criação de um órgão de coleta de dados e informações de natureza cultural.
Estas Comissões entregaram seus relatórios conclusivos nas plenárias de 7 e 11 de novembro seguintes. Participaram do Seminário, representantes de entidades da Presidência da República; do Ministério da Educação e Cultura (MEC); da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ; da Pontifícia Universidade Católica - PUC-Rio; da Universidade do Estado da Guanabara - UEG; do Colégio de aplicação da Faculdade Nacional de Filosofia - FNFi; de várias Associações; dos Ministérios da Aeronáutica, da Marinha e do Exército. Este Seminário preocupava-se com uma aproximação entre civis e militares, depois do fato que partes deles se uniram para perpetrar a ruptura da Constituição de 1946 em um golpe, auto definido como ‘Revolução’. Ele - como o próprio nome “Educação e Segurança Nacional” e o tema da primeira Comissão indicam - preocupa-se com a doutrina fundamental da Escola Superior de Guerra, isto é a Doutrina da Segurança Nacional. Todas as áreas
abrangidas pelas Comissões submetem-se ao sistema conceitual e estratégico desta doutrina, sempre relacionada ao desenvolvimento nacional.
Quanto ao pensamento político dos militares brasileiros, segundo afirma Rodrigo Lentz (2019, p. 44), ele foi constituído com fundamentos das doutrinas positivistas e nacionalistas “com postulados segurança e desenvolvimento aliados ao anticomunismo”. Desenvolveu-se na doutrina de segurança nacional do Estado Novo. E depois foi adaptada, no pós-guerra (Guerra Fria), pela ESG (criada em 1949). O mesmo Lentz (idem, p. 68-69) sintetiza “a ideologia nacional dos militares brasileiros” nos seguintes termos:
E considera “que ter clareza da herança autoritária no pensamento político dos militares brasileiros é uma chave de interpretação fundamental do presente” (ibidem, p.69).
Nada mais previsto do que se originar neste Seminário, no contexto das Comissões, uma proposta síntese de enviar universitários às comunidades mais carentes, para exercitar nelas as profissões em que se estavam formando. Neste sentido, as Universidades e Faculdades estariam colaborando com a segurança nacional pela integração dos jovens às realidades longínquas; havia uma
aproximação entre civis e militares, além de fortalecer o intercâmbio das instituições militares e civis.
Oito meses depois do encerramento do Seminário, a denominada “Operação Zero” se deflagrou. Trinta estudantes e dois professores de universidades do Estado da Guanabara (o professor da UEG, Omar Fontoura, coordenava o grupo), partiram para Rondônia, à época território federal. Lá ficaram, por 28 dias, conhecendo “de perto a realidade amazônica”, através de levantamentos e pesquisa, bem como promover cuidados de saúde e auxiliar o desenvolvimento de projetos para a população local.
Os próprios estudantes, ao regressarem de Rondônia, “propuseram a criação de um movimento universitário que desse prosseguimento ao trabalho iniciado no território visitado” (cfr. PROJETO RONDON, s/d). E os voluntários da chamada “Operação Zero” denominaram seu movimento de Projeto Rondon, em homenagem ao Marechal Cândido Mariano da Silva Rondon3, que construiu “mais de 4,5 mil
3Cândido Mariano da Silva Rondon (1865-1958) entrou na Escola Militar do Rio de Janeiro aos 16 anos, tendo se destacado como militar do Exército Brasileiro, não só pela integração por linhas telegráficas, mas como desbravador do sertão e pacificador dos índios. Em 1910 foi o primeiro Diretor do Serviço
quilômetros de linhas telegráficas” na Amazônia, unindo na comunicação a Região Norte a Centro-Oeste, “ajudando a ocupar a região do atual Estado de Rondônia ... fez contatos com várias tribos indígenas, tratando-as pacificamente” (GONÇALVES, 2017, p.7-8).
Segundo o Correio da Manhã de 10 de janeiro de 1968, os vinte um sextanista da Faculdade de Medicina da UEG (pertencentes ao Grupo Marinhan-1) já estavam percorrendo na Região Amazônica “as populações ribeirinhas” nas corvetas Mearim e Solimões, providenciando “atendimento médico”, assim como “cursos rápidos de higiene, primeiros socorros e educação sanitária”. Cinquenta e oito estudantes do Sul estavam sendo esperados, no dia 15 de janeiro, para o Estado do Amazonas e ainda iriam os integrantes do Grupo Roraima. O “movimento universitário”, com apoio do Ministério do Interior, Ministério da Educação e Cultura e Forças Armadas, cinco meses antes de formalizado o Decreto presidencial 62.927, de 28 de junho de 1968, foi a campo interagir com as populações carentes da Amazônia.
Este Decreto cria, “em caráter permanente, um Grupo de Trabalho (GT), denominado ‘Projeto Rondon’ diretamente subordinado ao Ministério do Interior” com o objetivo de promover estágios para estudantes universitários conduzindo “a juventude a participar do processo de integração nacional” (BRASIL, 1968).
Esse GT converte-se em Fundação Projeto Rondon pela Lei n. 6.310, de 15 de dezembro de 19754. Continua vinculada ao Ministério do Interior e terá a finalidade de “motivar a participação voluntária da juventude estudantil no processo do Desenvolvimento, da Integração Nacional e da Valorização do Homem, em cooperação com o Ministério da Educação e Cultura”. (BRASIL, 1975, Art. 1º, § 1º).
Em janeiro de 1989, através da Medida Provisória n. 28/1989, que o Congresso Nacional converte na Lei n. 7.732, de 14 de fevereiro de 1989 (BRASIL,1989), José Sarney resolve extinguir autarquias federais e fundações públicas, entre elas, a Fundação Projeto Rondon. A Associação Nacional dos Rondonistas criada como Organização Não Governamental em 1990, depois reconhecida como Organização
de Proteção aos Índios. Ao pacificar tribos antropófagas, ordenava aos seus subordinados que seguissem o lema “Morrer, se preciso for, matar nunca”. Em 1952, viu aprovado seu projeto do “Parque Nacional do Xingu”. A Câmara dos Deputados, em 1955, concedeu-lhe as insígnias de Marechal. Em 1956, o território de Guaporé, recebeu em sua homenagem o nome de Rondônia. Faleceu em 1958. 4Neste mesmo ano, a Universidade Federal Fluminense - UFF, que vinha desenvolvendo ações no Estado do Pará desde 1972, transfere definitivamente seu Campus para Oriximiná.
(cfr. http://www.uff.br/?q=cidade/oriximina-pa Acesso em julho de 2020).
da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP) pelo Ministério da Justiça, manteve “vivo o idealismo de seus pioneiros”. No rastro da Associação Nacional, criaram-se similares, independentes, nas Unidades Federadas (cfr. GONÇALVES, 2017, p. 17).
Em novembro de 2003, a União Nacional dos Estudantes encaminhou ao Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, a retomada oficial do Projeto Rondon. Criou-se um grupo de trabalho interministerial, em março de 2004, cujos membros eram representantes do Ministério da Defesa (que devia coordenar o GT e a segunda fase do Projeto Rondon), do Ministério da Educação, do Ministério da Integração Nacional, do Ministério da Saúde, do Ministério do Desenvolvimento Agrário, do Ministério do Desenvolvimento Social, do Ministério do Esporte, do Ministério do Meio Ambiente e da Secretaria Geral da Presidência da República.
Em 14 de janeiro de 2005, um Decreto Presidencial “cria o Comitê de Orientação e Supervisão do Projeto Rondon”, sendo seu Presidente o representante do Ministério da Defesa5, a quem cabe “prover o apoio administrativo e os meios necessários à execução dos trabalhos do Comitê”. O Decreto tem um Anexo em que são elencadas as “Diretrizes Básicas para a Execução das Ações do Projeto Rondon” (cfr. BRASIL, 2005).
Na cidade de Tabatinga (AM), o Presidente Lula, no dia 19 de janeiro de 2005, lançou a primeira operação da nova fase do Projeto Rondon afirmando ser o momento de "unir brasileiros de todas as origens e de todas as regiões" na retomada de uma “política de integração e desenvolvimento regional” (UOL NOTÍCIAS, 2005).
O I Congresso Nacional do Projeto Rondon, realizou-se somente em 2013, em Ribeirão Preto (SP). Paralelamente ao I Congresso, reuniu-se o I Fórum Nacional dos Estudantes Rondonistas e VII Reunião dos Professores. Fruto do Congresso foi a Carta de São Paulo, reivindicando que o Projeto Rondon, seja um Programa de Estado e solicitando aos políticos uma lei que o torne permanente (cfr. AZEVEDO et al., 2014). Talvez tenham esquecido da Lei da criação da Fundação Projeto Rondon, que foi revogada pela Medida Provisória n.28/1985, extinguindo-a, e o Projeto também.
O Decreto de 14 de janeiro de 2005 foi revogado pelo Presidente Jair Messias Bolsonaro, em nova reformulação do Comitê de Orientação e Supervisão do Projeto Rondon, dada pelo Decreto n. 9.848, de 25 de junho de 2019.
5O Vice-Presidente, José Alencar Gomes da Silva, acumulava as funções de Ministro da Defesa.
Na atual configuração, o Comitê passa a ser definido como “órgão de assessoramento” - o que diminui concretamente sua força de decisão - e as diretrizes passam para o Art. 3º do corpo do Decreto, excetuando a de “assegurar a participação da população na formulação e no controle das ações”. O que significa esta eliminação? Certamente, a não explicitação da população “na formulação e controle das ações” pode significar a exclusão da população local, em dizer o que espera e em exercer um controle sobre as ações. Assim, de nove diretrizes no Anexo do Decreto anterior, passam a ser oito diretrizes.
1- Decreto n. 62.927 de 28 de junho de 1968.
Institui, em caráter permanente, o Grupo de Trabalho "Projeto Rondon", e dá outras providências.
Art. 1º. Fica instituído em caráter permanente, um Grupo de Trabalho, denominado "Projeto Rondon" com sede na cidade do Rio de Janeiro, diretamente subordinado ao Ministério do Interior, com a finalidade de promover estágios de serviço para estudantes universitários, objetivando conduzir a juventude a participar do processo de integração nacional.
Parágrafo único. O Grupo de Trabalho poderá coordenar suas atividades com quaisquer outras da mesma natureza que se realizem no país.
Art. 2º. O Grupo de Trabalho, ao qual caberá a organização de planos e projetos específicos, será constituído por um representante dos seguintes órgãos:
a) | Ministério do Interior; |
b) | Ministério da Educação e Cultura; |
c) | Ministério da Marinha; |
d) | Ministério do Exército; |
e) | Ministério da Aeronáutica; |
f) | Ministério dos Transportes; |
g) | Ministério da Agricultura; |
h) | Ministério do Planejamento e Coordenação Geral; |
i) | Ministério da Saúde; |
j) | Movimento Universitário de Desenvolvimento Econômico e Social - MUDES; |
k) | Conselho de Reitores, representando as entidades de ensino superior. |
Parágrafo único. Integrará, ainda, o Grupo de Trabalho um representante da Universidade do Estado da Guanabara - UEG, em face de sua participação pioneira no Projeto.
Art. 3º. Os trabalhos do Grupo ora criado serão desenvolvidos com apoio básico em um Núcleo Central, constituído pelos representantes do Ministério do Interior, do Ministério da Educação e Cultura, do Ministério da Marinha, do Ministério do Exército, do Ministério da Aeronáutica e do Conselho de Reitores.
Parágrafo único. Ao Núcleo Central compete orientar, coordenar e prover o apoio às atividades do "Projeto Rondon" e deliberar sobre conclusões, sugestões ou providências a serem adotadas.
Art. 4º. Os estágios de serviço a que se refere o artigo 1º, serão realizados durante o período de férias escolares, obedecendo aos objetivos e ao plano geral de trabalho constantes de instruções que serão baixadas pelo Núcleo Central.
Art. 5º. O Grupo de Trabalho e seu Núcleo Central serão presididos por um Coordenador Geral, de livre escolha do Ministro de Estado do Interior.
Parágrafo único. O Núcleo Central do Grupo de Trabalho reunir-se-á por convocação do Coordenador Geral, na sede do Ministério do Interior, ou em local diverso por ele indicado.
Art. 6º. O Coordenador Geral responsável direto perante o Ministério do Interior, promoverá, sempre que julgar necessário aos objetivos do "Projeto Rondon" e ocorrer motivação no meio universitário, a criação de Grupos ou Subgrupos Regionais, com atuação em um ou mais Estados ou Territórios.
Parágrafo único. Caberá ao Coordenador Geral a designação dos Coordenadores regionais.
Art. 7º. Os órgãos da Administração Federal, direta ou indireta existentes nas diferentes áreas, darão o necessário apoio aos grupos regionais.
Art. 8º. Continuam em vigor as atuais normas para funcionamento do Grupo de
Trabalho "Projeto Rondon" devendo, dentro de 90 (noventa) dias, ser elaborado seu Regimento Interno.
Art. 9º. As atividades do "Projeto Rondon" serão custeados com recursos proporcionados pelo Ministério do Interior ou por ele obtidos, e constituídos, de:
a) | créditos que lhe forem atribuídos; |
b) | donativos, subvenções, auxílios contribuições e legados de particulares; |
c) | contribuição proveniente de acordos e convênios com entidades públicas e privadas; |
d) | dotações que foram consignadas nos orçamentos da União, Estados, Municípios, Entidades Paraestatais, Autarquias e Sociedades de Economia Mista; |
e) | Rendas eventuais. |
§ 1º Os recursos indicados neste artigo serão depositados em conta especial no Banco do Brasil S.A. e movimentados pelo Coordenador Geral do Grupo de Trabalho.
§ 2º A aplicação desses recursos será feita rigorosamente de acordo com o planejamento apresentado pelo Grupo de Trabalho e aprovado pelo Ministro de Estado do Interior, no qual serão discriminados os trabalhos a serem executados, a modalidade de financiamento e os respectivos orçamentos.
Art. 10. Aos participantes do "Projeto Rondon" serão conferidos certificados correspondentes aos serviços prestados; às instituições de Direito Privado e pessoas jurídicas que se destacarem no apoio às atividades do "Projeto Rondon" serão conferidos diplomas ou medalhas.
Art. 11. Poderá ser autorizada a dispensa de ponto, pelo prazo máximo de 30 dias por ano, para os servidores civis dos Ministérios, Autarquias e Sociedades de Economia Mista, aos participantes, universitários, técnicos e professores que integrarem as diferentes operações do "Projeto Rondon".
Art. 12. O presente decreto entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.
Brasília, 28 de junho de 1968; 147º da Independência e 80º da República.
A. COSTA E SILVA José Moreira Maia Aurélio de Lyra Tavares Mário David Andreazza Ivo Arzua Pereira
Tarso Dutra
Carlos Alberto Huet de Oliveira Sampaio
Leonel Miranda
João Paulo dos Reis Velloso Afonso A. Lima
Este texto não substitui o original publicado no Diário Oficial da União - Seção 1 de 01/07/1968.
- Lei n. 6.310, de 15 de dezembro de 1975.
Autoriza a instituição da Fundação Projeto Rondon, e dá outras providências.
Faço saber que o CONGRESSO NACIONAL decreta e eu sanciono a seguinte Lei:
Art. 1º Fica o Poder Executivo autorizado a instituir, com sede e foro na Capital Federal, uma Fundação, com patrimônio próprio e personalidade jurídica de direito privado, nos termos da lei civil, denominada Fundação Projeto Rondon.
§ 1º. A Fundação, vinculada ao Ministério do Interior, terá como finalidade motivar a participação voluntária da juventude estudantil no processo do Desenvolvimento, da Integração Nacional e da Valorização do Homem, em cooperação com o Ministério da Educação e Cultura.
§ 2º. Para o atendimento da finalidade estabelecida no parágrafo anterior, a Fundação terá como objetivo:
- no campo do desenvolvimento e da integração nacional:
a) | colaborar com o Ministério da Educação e Cultura na organização, implantação e coordenação de estágios de estudantes, no interior do país; |
b) | colaborar na execução da política de integração nacional, em consonância com os planos de desenvolvimento; |
c) | promover ou participar de programas de desenvolvimento comunitário com as populações interioranas. |
- no campo do mercado de trabalho e mão-de-obra:
a) | promover, com os estágios de universitários, o conhecimento das condições do interior do país, abrindo perspectivas para a interiorização e fixação de técnicos de nível superior nas áreas em que atuarem; |
b) | desenvolver, junto às populações carentes, o treinamento especializado de nível médio, incentivando o mercado de trabalho e o aprimoramento da mão- de-obra qualificada; |
c) | promover, juntamente com os órgãos especializados, a abertura de novos mercados de trabalho; |
d) | promover a interiorização de técnicos em áreas menos desenvolvidas do Território Nacional. |
- no campo da pesquisa e preparação de recursos humanos:
a) | contribuir para a promoção, coordenação e realização de pesquisas voltadas para o conhecimento da realidade nacional; |
b) | contribuir para a preparação dos recursos humanos necessários ao desenvolvimento. |
§ 3º. Na execução dos seus programas de desenvolvimento, a Fundação, para as atividades de extensão universitária, atuará em coordenação com o Ministério da Educação e Cultura, principalmente através dos "Campi" Avançados e de outros programas similares, compatibilizando seu funcionamento com as diretrizes básicas estabelecidas por aquele Ministério.
Art. 2º No ato de constituição da Fundação Projeto Rondon, após a aprovação do respectivo Estatuto por decreto do Poder Executivo, o Governo Federal será representado pelo Ministro de Estado do Interior.
Art. 3º A Fundação Projeto Rondon gozará de autonomia administrativa, financeira, didática e disciplinar e adquirirá personalidade jurídica a partir da inscrição, no Registro Civil das Pessoas Jurídicas, do seu ato constitutivo, com o qual será apresentado o respectivo Estatuto e o Decreto que o houver aprovado.
Art.4º Constituirão o patrimônio da Fundação: I- dotações consignadas no Orçamento Geral da União;
bens doados ou adquiridos pelo Projeto Rondon;
doações, subvenções, auxílios, contribuições ou legados de pessoas físicas ou jurídicas, de direito público ou de direito privado; IV- contribuições provenientes de acordos com entidades públicas ou privadas, nacionais, estrangeiras e internacionais; V- rendas ou emolumentos provenientes de serviços prestados a pessoas jurídicas de direito público ou privado; VI- bens oriundos de entidade que, nos termos desta Lei, venham a ser incorporados à Fundação;
VII - bens da União atualmente em poder do Projeto Rondon;
VIII- outras rendas eventuais.
Parágrafo único. O patrimônio, a renda e os serviços da Fundação gozarão da imunidade prevista na alínea " c ", item III, do artigo 19, da Constituição.
Art. 5º O orçamento da União consignará, em exercício, recursos suficientes ao atendimento das despesas da Fundação.
Art. 6º As despesas necessárias à implantação da Fundação correrão à conta dos recursos orçamentários e extraordinários destinados ao Projeto Rondon.
Art. 7º Serão órgãos da Fundação, com a constituição e atribuições fixadas no respectivo Estatuto:
a) | Conselho Diretor; |
b) | Conselho Curador; |
c) | Presidência. |
Art. 8º Serão extensivos à Fundação os privilégios da Fazenda Pública quanto à impenhorabilidade de bens, rendas e serviços, prazos processuais, ações especiais e executivas juros e custas.
Art. 9º A Tabela Provisória de Lotação de Pessoal do atual Projeto Rondon será considerada extinta, passando seus servidores, a critério da Fundação, a integrar o Quadro de Pessoal da entidade.
§ 1º. O regime de pessoal da Fundação será o da legislação trabalhista.
§ 2º. O Quadro e a remuneração de pessoal da Fundação, depois de aprovado por seu Presidente, serão submetidos a homologação do Ministério de Estado do Interior, devendo observar as condições do mercado de trabalho e as diretrizes da política de pessoal do Governo Federal.
Art. 10. A Fundação promoverá, quando conveniente, a incorporação de entidades privadas congêneres, na forma da legislação em vigor, e, quando for o caso, a absorção de atividades cometidas a órgãos da Administração Federal Direta ou Indireta, desde que compatíveis com a finalidade estabelecida no § 1º, do artigo 1º, da presente Lei.
Parágrafo único. A absorção de atividades atribuídas a órgãos da Administração Federal Direta ou Indireta far-se-á mediante decreto do Poder Executivo.
Art. 11. No prazo de 90 (noventa) dias, a contar da publicação desta Lei, o Ministro de Estado do Interior submeterá à aprovação do Presidente da República o projeto do Estatuto da Fundação Projeto Rondon.
Art. 12. Instituída a Fundação, será considerado extinto o Projeto Rondon.
§ 1º. As dotações orçamentárias consignadas à Coordenação do Projeto Rondon no Orçamento da União serão automaticamente transferidas a Fundação, na data de sua instituição.
§ 2º. Cumprido o disposto no caput deste artigo, ficará extinto o Fundo do Projeto Rondon (FUNRONDON) de que trata o artigo 13 do Decreto nº 67.505, de 6 de novembro de 1970, cujos recursos serão automaticamente transferidos à Fundação.
Art. 13. Esta Lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.
Brasília, 15 de dezembro de 1975; 154º da Independência e 87º da República. ERNESTO GEISEL
Ney Braga
João Paulo dos Reis Velloso Maurício Rangel Reis
Este texto não substitui o original publicado no Diário Oficial da União - Seção 1 de 16/12/1975
- Decreto de 14 de janeiro de 2005
Cria o Comitê de Orientação e Supervisão do Projeto Rondon e dá outras providências
Art. 1º Fica criado o Comitê de Orientação e Supervisão do Projeto Rondon, que terá por objetivos:
- executar as ações do Projeto Rondon de acordo com as diretrizes básicas constantes do Anexo a este Decreto;
- orientar a política de atuação do Projeto Rondon; e
- propor diretrizes para as atividades a serem desenvolvidas.
Art. 2º O Comitê será integrado por um representante, titular e suplente, de cada órgão a seguir indicado:
I - Ministério da Defesa, que o presidirá; II - Ministério da Educação;
III - Ministério do Desenvolvimento Social e Combate àFome; IV - Ministério da Saúde;
- Ministério do Meio Ambiente;
- Ministério da Integração Nacional; VII - Ministério do Esporte;
- Ministério do Desenvolvimento Agrário; e
- Secretaria-Geral da Presidência da República.
§ 1º Os membros do Comitê serão indicados pelo titular do órgão representado e designados pelo Ministro de Estado da Defesa.
§ 2º Os membros do Comitê terão mandato de dois anos, podendo ser reconduzidos.
§ 3º O Comitê deliberará mediante resoluções, por maioria simples dos presentes, tendo seu Presidente o voto de qualidade no caso de empate.
Art. 3º O Comitê contará com as seguintes Comissões:
- de Coordenação-Geral, com natureza técnica e articuladora, voltada para a implementação das diretrizes emanadas do Comitê e para a direção das atividades desenvolvidas no âmbito do Projeto Rondon;
- de Coordenação Operacional e Administrativa, com natureza executiva, voltada para a confecção do plano operacional anual e de sua execução; e
- de Coordenação Regional, com natureza executiva, ativada conforme as necessidades e a dimensão dos trabalhos nas regiões de atuação.
Parágrafo único. Poderão ser convidados a participar das Comissões personalidades e representantes de outros órgãos e de entidades públicas e privadas.
Art. 4º São atribuições do Presidente do Comitê:
- convocar e presidir as reuniões do colegiado;
- solicitar a elaboração de estudos, informações e posicionamento sobre temas de relevante interesse público na área de sua atuação;
- firmar atas das reuniões e homologar as resoluções; e IV - constituir e organizar as Comissões.
Art. 5º O regimento interno do Comitê será submetido pelo seu Presidente à aprovação do colegiado e disporá sobre a organização, a forma de apreciação e a deliberação das matérias, bem como sobre o funcionamento das Comissões.
Art. 6º Caberá ao Ministério da Defesa prover o apoio administrativo e os meios necessários à execução dos trabalhos do Comitê e das Comissões.
Art. 7º As atividades dos integrantes dos membros do Comitê e das Comissões são consideradas serviço público relevante, não remuneradas.
Art. 8º Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação.
Brasília, 14 de janeiro de 2005; 184º da Independência e 117º da República. LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA
José Alencar Gomes da Silva
Este texto não substitui o publicado no D.O.U. de 17.1.2005
A N E X O
DIRETRIZES BÁSICAS PARA A EXECUÇÃO DAS AÇÕES DO PROJETO RONDON
Viabilizar a participação do estudante universitário nos processos de desenvolvimento e de fortalecimento da cidadania.
Contribuir para o desenvolvimento sustentável nas comunidades carentes, usando as habilidades universitárias.
Estimular a busca de soluções para os problemas sociais da população, formulando políticas públicas locais, participativas e emancipadoras.
Contribuir na formação acadêmica do estudante, proporcionando-lhe o conhecimento da realidade brasileira, o incentivo à sua responsabilidade social e o patriotismo.
Manter articulações com as ações de órgãos e entidades governamentais e não- governamentais, em seus diferentes níveis, evitando a pulverização de recursos financeiros e a dispersão de esforços em ações paralelas ou conflitantes.
Assegurar a participação da população na formulação e no controle das ações. Priorizar áreas que apresentem maiores índices de pobreza e exclusão social,
bem como áreas isoladas do território nacional, que necessitem de maior aporte de
bens e serviços.
Democratizar o acesso às informações sobre benefícios, serviços, programas e projetos, bem como recursos oferecidos pelo poder público e iniciativa privada e seus critérios de concessão.
Buscar garantir a continuidade das ações desenvolvidas.
- Decreto n. 9.848, de 25 de junho de 2019.
Dispõe sobre o Comitê de Orientação e Supervisão do Projeto Rondon.
84, caput, inciso VI, alínea “a”, da Constituição,
Art. 1º Este Decreto dispõe sobre o Comitê de Orientação e Supervisão do Projeto Rondon.
Art. 2º O Comitê de Orientação e Supervisão é órgão de assessoramento destinado a:
- propor diretrizes para as ações do Projeto Rondon;
- detalhar os objetivos e as orientações relativos ao Projeto Rondon; e
- executar as ações do Projeto Rondon de acordo com as diretrizes estabelecidas no art. 3º.
Art. 3º A execução das ações do Projeto Rondon observará as seguintes diretrizes:
- viabilizar a participação do estudante universitário nos processos de desenvolvimento e de fortalecimento da cidadania;
- contribuir para o desenvolvimento sustentável nas comunidades carentes, com o uso das habilidades universitárias;
- estimular a busca de soluções para os problemas sociais da população, por meio da formulação e disseminação de políticas públicas locais, participativas e emancipadoras;
- contribuir para a formação acadêmica do estudante, a fim de lhe proporcionar o conhecimento da realidade brasileira e incentivar a responsabilidade social e o patriotismo;
- manter articulações com as ações de órgãos e entidades governamentais e não-governamentais, em seus diferentes níveis;
- priorizar áreas que apresentem maiores índices de pobreza e exclusão social e áreas menos populosas e isoladas do território nacional, que necessitem de maior oferta de bens e serviços;
- democratizar o acesso às informações sobre benefícios, serviços, programas e projetos, e os recursos oferecidos pelo Poder Público e pela iniciativa privada e seus critérios de concessão; e
- promover a continuidade das ações desenvolvidas.
Art. 4º O Comitê de Orientação e Supervisão do Projeto Rondon é composto por representantes dos seguintes órgãos:
- Ministério da Defesa, que o presidirá;
- Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento;
- Ministério da Educação; IV - Ministério da Cidadania; V - Ministério da Saúde;
- Ministério do Meio Ambiente;
- Ministério do Desenvolvimento Regional; e
- Secretaria de Governo da Presidência da República.
§ 1º Cada membro do colegiado terá um suplente, que o substituirá em suas ausências e impedimentos.
§ 2º Os membros do Comitê de Orientação e Supervisão do Projeto Rondon e respectivos suplentes serão indicados pelos titulares dos órgãos que representam e designados pelo Ministro de Estado da Defesa.
§ 3º Poderão ser convidados a participar dos trabalhos do comitê, sem direito a voto, personalidades e representantes de outros órgãos e de entidades públicas e privadas.
Art. 5º O Comitê de Orientação e Supervisão do Projeto Rondon se reunirá em caráter ordinário duas vezes por semestre e em caráter extraordinário sempre que convocado por seu Presidente.
§ 1º O quórum de reunião do Comitê é de maioria absoluta e o quórum de aprovação é de maioria simples.
§ 2º Além do voto ordinário, o Presidente do Comitê de Orientação e Supervisão do Projeto Rondon terá o voto de qualidade em caso de empate.
§ 3º Os membros do Comitê de Orientação e Supervisão que se encontrarem no Distrito Federal se reunirão presencialmente e os membros que se encontrem em outros entes federativos participarão da reunião por meio de videoconferência.
Art. 6º O Comitê de Orientação e Supervisão poderá instituir subcolegiados com o objetivo de:
I - avaliar e selecionar as propostas de trabalho das ações do Projeto Rondon; II - analisar os relatórios das ações; e
III - providenciar os trabalhos técnicos necessários ao funcionamento do Comitê de Orientação e Supervisão do Projeto Rondon.
Art. 7º Os subcolegiados:
- serão compostos na forma de ato do Comitê de Orientação e Supervisão do Projeto Rondon;
- não poderão ter mais de trinta membros;
- terão caráter temporário e duração não superior a um ano; e
- estão limitados a três operando simultaneamente.
Art. 8º A Secretaria-Executiva do Comitê de Orientação e Supervisão será exercida pelo Ministério da Defesa.
Art. 9º O Comitê de Orientação e Supervisão elaborará e aprovará o seu regimento interno.
Art. 10. A participação no Comitê de Orientação e Supervisão e nos subcolegiados será considerada prestação de serviço público relevante, não remunerada.
Art. 11. Fica revogado o Decreto de 14 de janeiro de 2005, que cria o Comitê de Orientação e Supervisão do Projeto Rondon.
Art. 12. Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação.
Brasília, 25 de junho de 2019; 198º da Independência e 131º da República. JAIR MESSIAS BOLSONARO
Fernando Azevedo e Silva
Este texto não substitui o publicado no DOU de 26.6.2019
Ainda sobre o Projeto Rondon cabem questões que tocam campos interdisciplinares, que vão da História à Ciência Política e à Pedagogia. Neste sentido, selecionamos alguns trabalhos e alguns documentos que se encontram nas Referências.
No corpo da coluna ‘Memória e Documentos’, apenas os Decretos e Leis, que demonstram a trajetória do Projeto Rondon. Nem foi admitida neste elenco, a Medida Provisória do Presidente Sarney, convertida em Lei pelo Congresso Nacional, extinguindo a Fundação Projeto Rondon, por ser seca e burocrática, não fazendo jus a milhares de estudantes que se voluntariaram para ser rondonistas da primeira fase. Tanto as Universidades quanto as Faculdades estavam num movimento pré-
1964 de extensão. O uso da expressão “movimento” é proposital. Antes mesmo de 19116, o movimento estudantil empurrava as instituições a levar à sociedade, de forma
6Ano em que o Decreto n. 8.659, de 5 de abril, aprovava a Lei orgânica do Ensino Superior e Fundamental da República.
pontual e esporádica, os frutos de seu Trabalho em pesquisa e ensino. E é Luciane Pinho de Almeida (2015, p. 6) que nos ensina:
No ano de 1937, com a criação da União Nacional dos Estudantes – UNE, intensificaram os protestos e ações do movimento estudantil, retornando com muita força a discussão da proposta da extensão universitária. Mas foi apenas em 1956, que o movimento estudantil passou a adotar postura mais ativa na vida da sociedade brasileira.
Assim, não há que se estranhar que a UNE tenha proposto, ao Presidente Lula, a retomada do Projeto Rondon depois de 15 anos. Na maturidade da extensão universitária, estas ações faziam mais sentido ainda, na medida de que criavam oportunidades de maior número de estudantes circulasse em campi avançados de suas próprias universidades e de outras universidades.
O importante é resgatar critérios essenciais para a democracia, como participação das populações locais na formulação e controle das ações; como uma educação da cidadania como aperfeiçoamento de direitos individuais e sociais, e nenhuma submissão às realidades perversas da desigualdade; como uma segurança nacional que integre e desenvolva sustentavelmente a todos; como igualdade de condições de educação e saúde para todos.
ALMEIDA, Luciane Pinho de. A extensão universitária no Brasil: processos de aprendizagem a partir experiência e do sentido. In: Dire, n. 7, 2015. Disponível em https://www.unilim.fr/dire/692. Acesso em julho de 2020.
AZEVEDO et al. I Congresso Nacional do Projeto Rondon. In: Mundo Rondon, v. I, n.1, p.20-23, 2014.
BRASIL. CONGRESSO NACIONAL. Lei n. 6.310, de 15 de dezembro de 1975.
. CONGRESSO NACIONAL. Lei n. 7.732, de 14 de fevereiro de 1989. Brasília (DF): D.O.U. Seção 1, de 15/02/1989. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L7732.htm#:~:text=LEI%20No%207.732%2 C%20DE%2014%20DE%20FEVEREIRO%20DE%201989.&text=Disp%C3%B5e%2
0sobre%20a%20extin%C3%A7%C3%A3o%20de,federais%20e%20d%C3%A1%20o utras%20provid%C3%AAncias. Acesso em julho de 2020.
. PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Decreto n. 62.927 de 28 de junho de 1968. Brasília (DF): D.O.U. Seção 1, 01.07.1968, p. 5.387. Disponível em https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1960-1969/decreto-62927-28-junho- 1968-404732-publicacaooriginal-1-pe.html. Acesso em julho 2020.
. Decreto de 14 de janeiro de 2005.Brasília (DF): D.O.U. Seção 1, de 17/01 /2005.
. Decreto n. 9.848, de 25 de junho de 2019. Brasília (DF): D.O.U. Seção 1, de 26/06/2019.
CASTRO, Aline K. A. e GENRO, Maria E.H. A Universidade pública e o Projeto Rondon: espaços de democratização. In: X ANPEd Sul, Florianópolis (SC), 2014.
CAZES, Leonardo Faria. Tempo de reforma, tempo de repressão: a trajetória de Wilson Choeri na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Dissertação Mestrado - Niterói (RJ): Universidade Federal Fluminense, Instituto de História, 2017.
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LENTZ, Rodrigo. O Pensamento Político dos Militares Brasileiros: a doutrina de “Segurança Nacional” revisitada (1930-1985). In: Revista da Escola Superior de Guerra, v. 34, n. 70, p. 39-71, jan.-abr. 2019. Disponível em https://revista.esg.br/index.php/revistadaesg/article/view/1059. Acesso em julho de 2020.
PROJETO RONDON. Nossa História. s/d. Disponível em https://projetorondon.defesa.gov.br/portal/index/pagina/id/9718/area/C/module/defaul t . Acesso julho 2020.
UOL NOTÍCIAS. Disponível em https://noticias.uol.com.br/ultnot/reuters/2005/01/19/ult27u46884.jhtm Acesso em julho 2020.
V.18, nº 37, set-dez (2020) ISSN: 1808-799 X
George Amaral2 Anderson Deo3
O artigo propõe uma reflexão sobre a relação entre as categorias Trabalho e Educação. A partir de uma análise exegética e imanente das categorias, buscaremos compreender a função social da Educação no processo de formação humana. A nossa hipótese busca dilucidar os nexos constitutivos entre o processo de formação da sociabilidade, sua ontogênese, fundada no Trabalho, e sua imbricação na Educação. A pesquisa se apoiou na análise produzida por Karl Marx, sobre a categoria Trabalho, e na abordagem de György Lukács, que se desdobra em complexos sociais, tais como a Educação.
El artículo propone una reflexión sobre la relación entre las categorías Trabajo y Educación. A partir de un análisis exegético e inmanente de las categorías, buscaremos comprender la función social de la Educación en el proceso de formación humana. Nuestra hipótesis busca aclarar los vínculos constitutivos entre el proceso de formación de la sociabilidad y su ontogénesis basada en el trabajo, y su imbricación en la educación. La investigación se basó en el análisis de Karl Marx de la categoría Trabajo y el enfoque de György Lukács que se desarrolla en complejos sociales como la Educación. Palabras clave: Trabajo; Educación; Metabolismo social.
The article proposes a reflection on the relationship between the categories Work and Education. From na exegetical and etaboli analysis of the categories, we will seek to understand the social function of education in the etabolism human formation. The hypothesis seeks to clarify the constitutive links between the etabolism sociability formation and its ontogenesis based on work, and its imbrication in education. The research relied on Karl Marx’s analysis of the Work category and György Lukács’s approach that unfolds into social complexes such as Education.
1Recebido em 06/12/2019. Primeira avaliação em 18/05/2020. Segunda avaliação em 16/06/2020 Terceira avaliação em 26/06/2020. Aprovado em 14/08/2020. Publicado: 25/09/2020.
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v18i37.38896.
2Doutor em Educação pela Universidade Estadual Paulista - UNESP/Marília - São Paulo / Brasil., Professor de história da rede de educação básica do Ceará - Brasil. Bolsista pela Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico - FUNCAP-CE. E-mail: georgeamaralp@gmail.com ORCID:0000- 0002-5685-0579. Lattes: http://lattes.cnpq.br/5700823644219229.
3 Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista - UNESP/Marília - São Paulo / Brasil onde
também é professor no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais - PPGCS. Pesquisador/colaborador no Instituto Caio Prado Júnior – São Paulo (ICP - SP). E-mail: deoanderson@hotmail.com ORCID: 0000-0001- 6081-3159. Lattes: http://lattes.cnpq.br/3488579869641105.
O presente artigo é o resultado de um esforço de leitura e sistematização introdutórios ao pensamento de Karl Max4, a partir da ontologia do ser social. Em específico abordamos as reflexões que o autor elaborou sobre a Categoria Trabalho5 e o caráter que tal reflexão ocupa no conjunto de sua obra. Sendo assim, resgatar o caráter ontológico do Trabalho, como fez Lukács, na constituição do ser social, faz-se mister como pressuposto teórico-filosófico de nossa exposição. Uma vez exposta a categoria Trabalho em seus nexos constitutivos, sobretudo de caráter fundante da sociabilidade, apontaremos seu desenvolvimento histórico e assim buscaremos elucidar a relação que se reproduz entre o Trabalho e o complexo da educação enquanto complexos societais de formações históricas.
A análise produzida por Marx sobre a categoria Trabalho aponta para seu caráter ontológico na constituição do ser social, como assinalou György Lukács. Segundo esse autor, a partir do Trabalho complexo fundante se desdobram outros complexos sociais, tais como a Educação. Nessa leitura metodológica, compreender a totalidade de um determinado fenômeno social pressupõe a apreensão da realidade como síntese de múltiplas determinações, como um complexo de complexos. A partir de uma análise exegética e imanente das categorias mencionadas acima, buscaremos compreender as determinações que a Educação reproduz no metabolismo social.
Como o ponto de partida é a centralidade do Trabalho, analisada por Marx, apoiamos nossas reflexões nos Manuscritos econômico-filosóficos (2010) e no Livro I do Capital (2013). Nessas obras, Marx revela os pressupostos essenciais e universais do Trabalho, apreendendo a esfera de constituição do ser social e seu desdobramento histórico em meio ao modo de produção vigente em cada época. Na esteira,
4Essa pesquisa foi desenvolvida através do intercâmbio entre o Grupo de Pesquisa Trabalho, Educação, Estética e Sociedade (GPTREES), da Faculdade de Ciências e Letras do Sertão Central (FECLESC-UECE) e o Grupo de Pesquisa Núcleo de Estudos de Ontologia Marxiana – Trabalho, Sociabilidade e Emancipação Humana (NEOM).
5 Optamos pela grafia Trabalho, com a inicial maiúscula, para indicar seu conteúdo categorial. Em Marx, uma categoria expressa uma forma de ser do real. Assim, utilizamos Trabalho para definir uma característica própria da forma de ser do Homem, diferentemente das formas históricas de reprodução da mão de obra, para a qual utilizaremos a grafia trabalho, com a inicial minúscula. Adotaremos esse procedimento com a palavra Educação.
ressaltamos a relevância da análise de György Lukács, responsável pelo desenvolvimento do caráter ontológico da obra de Karl Marx. Por isso, recorremos a sua obra Para uma ontologia do ser social (2012; 2013).
Seguindo esse roteiro de análise, consideramos a Educação um complexo essencial à existência do ser social6, à reprodução de sua estruturação, bem como sua contribuição na transformação das relações sociais vigentes. Na obra Para uma ontologia do ser social, Lukács aponta o complexo social como um aspecto da totalidade social constituído pelo conjunto das relações que os seres humanos estabelecem para atender a determinadas necessidades.
A Educação possui um vínculo ontológico com o Trabalho, é determinada em última instância por ele, pois como sustenta Lukács (2013), a partir de Marx, é o trabalho o complexo base sobre o qual a práxis social se move, processual e historicamente, na singularidade, particularidade e universalidade. Esses processos são contínuos e não se esgotam jamais as possibilidades da criação de algo novo na realidade humana, pois é o trabalho a mediação ineliminável entre homem (sociedade) e natureza. Assim, o papel da Educação no processo de reprodução social tem um vínculo com o Trabalho, porém sem se limitar a ele. Na medida em que avança e interage com outros complexos que se movem na práxis social a educação se enriquece.
Nessa perspectiva, consideramos o trabalho fundamento do ser social e categoria central na análise da sociedade capitalista. Ao apontar a superação do trabalho alienado e estranhado, Marx apontou à superação da sociedade do capital. Isso porque o trabalho participa da reprodução do homem, enquanto ser social, desenvolvendo atividades que o fazem pertencer a um gênero. A partir dele, a Educação assume a função de acessarmos o patrimônio histórico-cultural da humanidade, abrindo a possibilidade da transformação das relações sociais.
Na tentativa de compreendermos a função social do trabalho e da educação, para além do que é estabelecido pela ideologia capitalista, dialogamos com Tonet (2005, 2011; 2012), Lessa (2012a, 2012b), Jimenez e Lima (2011), Santos e Costa (2012), autores que se debruçam sobre seus estudos no esforço de compreender os pressupostos ontológico-históricos marxianos. Para enriquecer o debate em torno do
6 Importante apontar que o complexo social da Educação, numa leitura marxiana, não se restringe às formas histórico-institucionais reproduzidas pela humanidade. Aprofundaremos essa questão ao longo do artigo.
nosso objeto apoiamos nossa reflexão em Harvey (2011), Braverman (1987), Infranca (2014), vislumbrando suas interpretações sobre o trabalho em Marx.
Ao analisar as obras de Marx, podemos compreender, que não existe ser social sem o trabalho; sua centralidade é a base fundadora da sociabilidade humana, resultante da interação com a natureza e as inter-relações dos sujeitos entre si na produção da existência. Ao converter a natureza em meios de subsistência ou de produção, o homem atua de forma consciente e intencional, controlando e executando sua ação através de seus membros corpóreos, num contínuo intercâmbio e interação com os elementos da natureza, externos ao próprio homem. Vejamos.
Primeiramente o trabalho, a atividade vital, a vida produtiva mesma aparece ao homem apenas como meio para a satisfação de uma carência, a necessidade de manutenção da existência física. A vida produtiva é, porém, a vida genérica. É a vida engendradora de vida. No modo da atividade vital encontra-se o caráter inteiro de um species, seu caráter genérico, e a atividade consciente livre é o caráter genérico do homem. (MARX, 2010, p.84).
O trabalho como atividade vital é base para constituição do ser social. De forma primária, a existência humana é prioridade mediante o conjunto das atividades do meio natural. Para isso, o trabalho atua como mediador entre o ser humano e o meio que possibilitou a produção da existência para além das fronteiras do meio natural. O Trabalho proporcionou um salto ontológico (quantitativo e qualitativo) do ser dominado pela natureza para o ser que pensa e a transforma para garantir sua existência. Delineando a apreensão entre espírito e matéria, sujeito e objeto, homem e natureza, Marx põe no trabalho o acento fundante da existência humana enquanto ser social, a vida produtiva como vida genérica, o autor refere-se ao trabalho como elemento central. O sentido aqui atribuído ao trabalho é o sentido concreto, como meio de atender suas necessidades, produtor de valores de uso. Em um processo de constante absorção/síntese/superação vinculado à relação entre homem e natureza, estabelece-se a reprodução do homem como um ser histórico e partícipe de um gênero. Um ser que, pelo trabalho, saltou ontologicamente para outra dimensão, a societal, capaz de criar sempre e produzir incessantemente um patrimônio histórico- cultural resultante de sua práxis.
Esse processo pressupõe a atuação do ser humano que rompe com a esfera orgânica, pois projeta, ao nível da subjetividade, suas ações concretas, atribuindo- lhes um novo sentido, transformando a natureza. Essa transformação pelo próprio processo de objetivação do trabalho retroage sobre o homem como uma nova realidade. O desenvolvimento desse salto abriu uma nova possibilidade para essa relação, o que impulsionou o surgimento de relações sociais mediadas, isto é, para além das imediatas, mesmo que em níveis e escalas diferenciadas em cada contexto histórico. Conforme Marx (2013, p. 255), “o trabalho é, antes de tudo, um processo entre homem e natureza, processo este em que o homem, por sua própria ação, medeia, regula e controla seu metabolismo com a natureza”.
Em uma passagem clássica na obra O Capital, Marx pondera.
Pressupomos o trabalho numa forma em que ele diz respeito unicamente ao homem. Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e uma abelha envergonha muitos arquitetos com a estrutura de sua colmeia. Porém, o que desde o início distingue o pior arquiteto da melhor abelha é o fato de que o primeiro tem a colmeia em sua mente antes de construí-la com a cera. No final do processo de trabalho, chega-se a um resultado que já estava presente na representação do trabalhador no início do processo, portanto, um resultado que já existia idealmente. (MARX, 2013, p. 255-256).
A centralidade assumida pelo trabalho ocorre pela necessidade humana de produzir sua existência através da transformação da natureza, diferentemente do que ocorre com os outros entes naturais, visto que estes atuam a partir do que está “impresso” em seu código genético. Essa nova forma de atuação diferencia o ser humano, pois o ato de projetar idealmente sua ação sobre o meio, no plano da subjetividade, efetiva, na natureza, os desejos que se quer alcançar, um processo que possibilita ao homem fazer escolhas entre alternativas, pôr fim às suas ações, e operar sobre uma materialidade, uma objetividade. Surge, assim, a interação ininterrupta entre natureza e ser social. Ancorado em Marx, Lukács explica que
a estrutura ontológica básica do trabalho – pôr teleológico com base no conhecimento de um segmento da realidade com o propósito de modificá-la (conservar é um simples momento da categoria modificar), efeito causal continuado que se tornou independente do sujeito pelo ser que foi posto em movimento pelo pôr realizado, retroação das experiências obtidas de todos esses processos sobre o sujeito, efeitos dessas experiências sobre pores teleológicos subsequentes – compõe, de certo modo, o modelo para toda atividade humana. (LUKÁCS, 2013, p. 287).
A necessidade objetiva de existência determina sobre o ser humano uma ação que passa pela consciência e retorna ao meio como produto concreto dessa interação e da necessidade humana. O metabolismo, a ação humana, que age e retroage sobre a natureza, estabelece uma relação que potencializa sempre novas alternativas, novas relações, novas combinações. O importante é notar que ao despertar um conjunto de novas relações, o trabalho projeta outras necessidades sociais e se torna modelo para outras práxis. Com o Trabalho, trata-se de pôr a consciência humana em movimento, cujas consequências, de acordo com Lukács (2013, p. 291), “consistem no fato de que o trabalho e seus produtos confrontam todo homem com novas tarefas, cuja execução, desperta nele novas capacidades”, resultando em “necessidades sempre novas e, até aquele momento, desconhecidas e, com elas, novos modos de satisfazê-las”.
Apenas o ser humano orienta, regula e intervém na natureza de modo que escolhe entre alternativas. O Trabalho é “em primeiro lugar, atividade orientada a um fim, ou ao trabalho propriamente dito; em segundo lugar, seu objeto e, em terceiro, seus meios” (Marx, 2013, p. 256). Certamente, esse aspecto não libera o homem de suas necessidades efetivas, biológicas, mas a latente capacidade de planejar e interferir no meio de forma teleológica requer um ser que pensa e imprime sentido a tudo que faz. Ao escolher entre alternativas, analisando as possibilidades, os meios, testando variadas formas e combinações dos objetos em si para atingir o fim posto é a atividade vital e consciente da humanidade.
Nestes termos é que Lukács (2013, p. 53) identifica o pôr teleológico, ou teleologia, prévia ideação: “um projeto ideal alcança a realização material, o pôr pensado de um fim transforma a realidade material, insere na realidade algo de material que, no confronto com a natureza, representa algo qualitativamente e radicalmente novo”. Essa questão expõe o duplo caráter da transformação. “Por um lado, o próprio ser humano que trabalha é transformado por seu trabalho; ele atua sobre a natureza exterior e modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza, desenvolve as ‘potências que nela se encontram latentes’ e sujeita as forças da natureza a ‘seu próprio domínio” (LUKÁCS, 2012, p. 286). Desse modo, o trabalho é o fundamento essencial do ser social. Nesse processo estão atuando, de forma interdependente e indissociável, o pôr do fim e seus meios, portanto, dois atos, em um processo de síntese, a práxis humana, ressaltando que somente aí, “nessa nova
vinculação ontológica constitui-se o complexo autenticamente existente do trabalho,” por assim afirmar, que “perfazem o fundamento ontológico da práxis social e até do ser social em seu conjunto” (LUKÁCS, 2013, p. 64).
Em outras palavras, o legado onto-histórico de Marx assinala que é no e a partir do trabalho que o homem – tomado em sua dimensão de gênero – produz na materialidade sua existência, sobrevivência. Através dele o ser humano produz um constante processo de distanciamento das barreiras naturais, porém sempre vinculado à sua natureza físico-biológica (BRAVERMAN, 1987). Os seres humanos são sujeitos ativos em relação ao mundo que os rodeia.
A compreensão do duplo caráter do processo de trabalho leva-nos à diferenciação entre sujeito (homem) e objeto (objetivação do Trabalho), o que possibilita ao homem o domínio de si mesmo e do ambiente a sua volta. Essa diferenciação, de acordo com Lukács (2013, p.65), é “produto necessário do trabalho e, ao mesmo tempo, a base para o modo de existência especificamente humano”. Decerto, a tese de Lukács (2012, p. 286) adverte que não se pode considerar “o ser social como independente do ser da natureza, como antítese”, o ser social pressupõe, em seu conjunto e em cada um dos seus processos singulares, o ser da natureza inorgânica e da natureza orgânica”.
O processo de trabalho exige que o homem desenvolva uma certa apreensão da realidade, própria da relação sujeito-objeto. Ao final do processo de trabalho o produto foi objetivado e existe, a partir daí, independente de quem o produziu, portanto, uma causalidade (INFRANCA, 2014). De acordo com Lukács (2013), a teleologia implica a existência de ação previamente concebida no plano da subjetividade, conduzindo o homem a fazer escolhas entre alternativas, orientando a ação a ser efetivada a alcançar um fim estabelecido, enquanto a causalidade (dada ou posta), segundo Lukács, é o princípio do movimento autofundado e que existe objetivamente, independente do agir humano ou, mesmo que seja fundado por um ato da consciência, ao ser exteriorizado, torna-se também causalidade.
Podemos mencionar, por exemplo, o fato de se utilizar uma pedra para a caça, ou um pedaço de madeira que aumente a extensão do braço humano para a coleta de frutas nas copas mais altas, sem alterar com isso a matéria natural da madeira. Apenas o indivíduo atribuiu um significado diferente ao objeto, transformando-o em um ser distinto de sua natureza, desde que atenda a uma necessidade. É ela que
impulsiona a teleologia, inserindo um novo momento na realidade, uma causalidade posta, pois o meio foi modificado em função de uma ação planejada. A tarefa de conversão da matéria natural em outro objeto, que pode ser mais elaborado, polido ou afiado, depende dos meios e da habilidade humana requisitada pelo fim posto, se a realidade foi apreendida corretamente. Ao experimentar e combinar os elementos naturais, convertendo-os em um novo objeto é atividade especificamente humana.
O trabalho possibilita produzir essa nova objetividade, que a consciência toma como base para refletir e efetivar, na prática humana, uma ação sempre nova (LESSA, 2012a). Certamente, esse aspecto não libera o homem de suas necessidades efetivas e biológicas, porém o torna capaz de planejar e interferir no meio de forma racional, isto é, um ser que pensa e imprime sentido a tudo que faz. Sendo assim, capacidades mentais e físicas são desenvolvidas na elaboração de uma nova materialidade onde “a natureza aparece como sua obra e a sua efetividade” (MARX, 2010, p. 85).
Essas características aparecem como referências dos elementos essenciais e universais do trabalho. De sua natureza essencial emerge, pois, o postulado marxiano de que o trabalho é “protoforma” do ser social. No processo de produzir algo novo, como já enfatizamos, articulam-se teleologia e causalidade cuja práxis é cada vez mais social. Na medida em que as barreiras naturais são afastadas, o ser humano torna-se cada vez mais um ser histórico, ao produzir a sua existência, não somente vive, mas existe enquanto ser histórico que avança e depende cada vez mais do metabolismo social para se reproduzir enquanto ser social. Difere-se, portanto, dos animais, visto que produz a existência e a si mesmo,
A primeira premissa de toda a existência humana, e, portanto, também de toda a história, é premissa de que os homens, para “fazer história”, se achem em condições de poder viver. Para viver, todavia, fazem falta antes de tudo comida, bebida, moradia, vestimenta e algumas coisas mais. O primeiro ato histórico é, pois, a geração dos meios para a satisfação dessas necessidades, a produção da vida material em si, e isso é, sem dúvida, um ato histórico, uma condição fundamental de toda a história (MARX; ENGELS, 2007, p. 40-41).
O desenvolvimento societal e a produção da existência estão balizados pelo Trabalho e, por sua vez, a prévia-ideação que projeta a finalidade desejada tem um caráter ineliminável para a existência humana. Quanto mais os homens se desenvolvem objetiva e subjetivamente, quanto maior o desenvolvimento dos meios de produção da existência, menos ele é limitado pelas amarras da natureza, tornando
assim mais complexo o mundo fundado por ele. Esse afastamento das barreiras naturais pressupõe uma correlação de forças entre objetividade e subjetividade, na qual a segunda não pode ser deslocada da primeira. Precisamos, é claro, da subjetividade, pois o intercâmbio entre ser humano e natureza é mediado pela consciência uma vez que ele reflete, subjetivamente, para fazer escolhas no plano da objetividade. Todavia, o ponto de partida é a objetividade já que, primeiro, os indivíduos precisam existir para depois pensar: a prioridade recai sobre a objetividade. Fundamentalmente ele existe quando satisfaz suas necessidades, produzindo alimento, vestuário e abrigo.
A partir da síntese entre objetividade e subjetividade, surge um mundo fundamentalmente social, o mundo dos homens. Ao inserir nele novos objetos, desperta também “novas capacidades e necessidades cujas consequências trazem ao mundo novas capacidades e necessidades para satisfazê-las” (LUKÁCS, 2013, p. 303). Conforme esse autor, o trabalho põe em movimento, em sua dialética e dinâmica concretas, o afastamento da barreira natural. A criação do novo levanta novas perguntas, não mais a partir do entorno imediato, mas sobre o que já está posto. O novo, além de atender uma necessidade, possibilita uma realidade diferente do momento anterior. Cozinhar o alimento mudou a digestão, potencializou o melhor aproveitamento da digestão e preveniu doenças que antes eram mais letais à saúde humana, por exemplo. Esse processo é o movimento do ser social.
A sociabilidade, como uma realidade fundada pelo trabalho, funciona como uma causalidade posta, “desdobrando o trabalho como modelo da práxis, como um processo que se dinamiza por contradições, envolvendo teleologia e causalidade, cuja superação o conduz a patamares cada vez mais crescentes de complexidade, nos quais novas contradições impulsionam a outras superações” (NETTO e BRAZ, 2012,
p. 31). Essa maior complexidade, salienta Lessa (2012b), é propiciada pelo desenvolvimento crescente das forças produtivas resultando na diminuição do tempo de trabalho socialmente necessário à sua reprodução material. Ao mesmo tempo, consegue-se o afastamento das barreiras naturais, pois uma proporção menor da força de trabalho total da humanidade está envolvida nesse intercâmbio entre homem e natureza.
O que o homem fez para sobreviver não estava escrito no código genético, ele precisou do trabalho para produzir a existência cuja ação permitiu o salto da esfera
orgânica para a esfera social. Nestes termos, o intercâmbio entre homem e natureza, mediado pelo trabalho, efetuou novas objetivações que, por sua vez, são potencializadores do desenvolvimento social. Abre-se, portanto, um campo de possibilidades, exigindo o domínio de conhecimentos corretos da realidade, habilidades para manipular objetos e transformá-los em ferramentas. Desdobra-se desse processo a criação de uma codificação para representar os conhecimentos adquiridos, a linguagem, e um conjunto de formas de apropriações e transmissão para novas gerações do patrimônio historicamente acumulado a fim de perpetuar o ser social.
O “mundo dos homens” se torna cada vez mais um complexo de coisas, a que se refere Lukács (2012) como complexos de complexos, onde os homens criaram as condições históricas cada vez mais possibilitadas pelos seus atos, na correlação de forças entre a objetividade e a subjetividade. O autor assegura o pressuposto marxiano para intrincadas relações entre os complexos sociais, de complementariedade e autodeterminação, que podem ser sintetizadas no plano categorial pela autodeterminação entre universal/particular/singular (LUKÁCS, 2013), mesmo que, em Marx, tal como indica Lukács, a base material se constitui, em última instância, como momento predominante7. Trata-se de considerar que estruturas complexas como a ciência, o direito, a linguagem, a Educação, situem-se com relativa autonomia, porém sempre fundadas ontologicamente pelo complexo do Trabalho, que as determina como complexo particular da totalidade. Por sua vez, a dependência ontológica em relação ao trabalho não significa um limite para o avanço e o surgimento de novas relações. Balizado nessa assertiva marxiana, Tonet (2005) demonstra que o trabalho em sua
[…] dimensão fundante do ser social, não se esgota. Que a partir dele e, às vezes como desdobramento de germes já existentes no seu interior (caso da linguagem, da educação, da ciência, etc.), surgem inúmeras outras dimensões, de modo que o ser social é sempre um complexo articulado que inclui a dimensão fundante e um conjunto de outros campos da atividade humana. Dessa forma, reafirmamos o trabalho como modelo de toda a práxis social. Ele é base sobre a qual a práxis social se move processual e historicamente sem esgotar jamais as possibilidades da criação de algo novo na realidade humana (p.232).
7 Para que se produzam e reproduzam relações sociais é preciso, inicialmente, que os seres humanos existam.
Procuramos até o momento estabelecer os elementos fundamentais da categoria Trabalho como base do mundo dos homens. Através dele o homem “salta” de sua condição natural e inicia um processo histórico, enquanto transforma a natureza, modifica sua própria existência, reproduzindo, para além da esfera biológica, o fenômeno da sociabilidade. Por isso, traçamos um panorama que indica o percurso originário e processual do ser social, constituído de complexos, entre os quais, o da Educação.
Compreender a gênese e processualidade histórica do Trabalho nos permite refletir sobre a função social, o papel do complexo da Educação e no complexo da reprodução social, pois mantém com aquele uma relação de dependência ontológica, autonomia relativa e determinação recíproca (TONET, 2011). A Educação é um instrumento poderoso para a formação dos indivíduos, contudo, precisamos entender o contexto em que está inserida a sua função social, a serviço de quais interesses e se esses interesses atendem às reais necessidades humanas.
Nesse momento trataremos de expor a conexão da Educação8 como prática social das atividades humanas individual e universalmente. Primeiramente, situamos o contexto categorial que envolve as atividades educativas no processo de reprodução social, refletindo a intricada relação da educação com a totalidade social. Nesse caso, traçamos o desenvolvimento da formação dos indivíduos articulado às atividades produtivas, inseridos em práxis sociais, demonstrando algumas particularidades históricas do complexo educativo onde a Educação conserva o seu caráter mais geral no quadro da reprodução social.
Não oneroso é lembrar que a Educação enquanto complexo social abrange um conjunto de relações que os seres humanos estabelecem tendo por base a teleologia de sujeito para sujeito. Seu vínculo ontológico primário é o trabalho, mas ela transita e absorve, influencia e é influenciada, avança e recua conforme o movimento do complexo de complexos, ou seja, conforme o movimento da sociedade. Ao mesmo tempo, em que a história dos processos educativos se desenvolve mediante a práxis social, é com divisão social do trabalho e a sociedade de classes, a propriedade
8 Anotamos aqui a Educação no sentido geral do conceito que não se limita às práticas institucionais.
privada e a exploração do homem pelo homem que se institui a forma stricta da educação.
Na medida em que o trabalho e as forças produtivas se desenvolvem ocorre o recuo das barreiras naturais expressando não só a alteração da natureza, mas também modificações nas condições sociais e humanas. A Educação dentro da complexidade própria e da totalidade social pôde desenvolver no ser humano ações que orientaram para possibilidades sempre novas, desde as primeiras formações sociais até as sociedades mais evoluídas. Nesse sentido, para que os indivíduos se integrem ao gênero humano é imprescindível o processo de educação. A formação da individualidade atende à linguagem, aos hábitos alimentares, ao comportamento desejado pelo grupo social, sua cultura de modo geral. Assim o indivíduo se integra ao meio social, universalizando-se. Na categoria trabalho esse processo de universalização passa pelo intercâmbio entre natureza e homem, “protoforma” da sociabilidade. O complexo da educação, por sua vez, é acionado a fim de assegurar a transmissão dos conhecimentos, habilidades e valores necessários para que o ser humano se torne um sujeito apto a refletir sobre a sociabilidade, para pensar em algo novo sem ter que repetir todo o processo. A Educação preserva, e ao mesmo tempo possibilita, avançar sobre determinados problemas e, ao transmitir conquistas que a humanidade já realizou, projetar a superação das condições que a afligem em sua história.
Todo povo que atinge um certo grau de desenvolvimento sente-se naturalmente inclinado à prática da educação. Ela é o princípio por meio do qual a comunidade humana conserva e transmite a sua peculiaridade física e espiritual [...]. Só o Homem, porém, consegue conservar e propagar sua forma de existência social e espiritual por meio das forças pelas quais a criou, quer dizer, por meio da vontade consciente e da razão. (JAEGER, 1995, p. 3).
Começamos, portanto, pelo plano da generidade onde o trabalho desencadeou um conjunto de ações complexas, cada uma com sua função social específica, compondo nesta perspectiva a práxis social. O processo de complexificação ocorre por meio da criação de algo sempre novo, que tende a organizar outro algo novo, “alargando o horizonte da reprodução humana, criando necessidades e ampliando as formas de satisfazê-las” (LIMA e JIMENEZ, 2011, p. 74).
O processo de reprodução social na sua totalidade “se dá num complexo – composto de complexos - que só pode ser compreendido adequadamente em sua
totalidade dinâmica e complexa” (LUKÁCS, 2013, 170-172). A educação é o complexo que faz parte da vida humana em sociedade, não se limitando a transmitir comportamentos inscritos na base orgânica, mas em promover o desenvolvimento do indivíduo como parte do gênero humano. O processo educativo tanto ocorre no plano da individualidade quanto se articula com a universalidade do ser social. Pressupomos, com base em Lukács (idem), a educação como um pôr teleológico secundário, isto é, a prévia ideação de um sujeito para sujeito que tem como meta influenciar seu comportamento frente a uma práxis social. A Educação9 que influencia o comportamento de um sujeito educa-o, por exemplo, a atravessar uma rua preservando sua integridade, sob determinadas condições de trânsito, conhecendo o modus operandi do tráfego daquele local. Pode também induzir a buscarmos respostas para questões que afligem nossa sociedade, encontrar a cura para determinadas doenças e, tantos outros exemplos, que de fato garantem à humanidade não precisar inventar a roda todos os dias.
Enfaticamente anotamos que os desdobramentos da articulação entre homem e natureza, objetividade e subjetividade, trabalho e teleologia no real, promovem uma complexificação intensa da vida em sociedade. Com efeito, a educação é o complexo da formação humana que se relaciona com a atividade produtiva da existência, com o universo da sociabilidade da produção e transmissão do saber.
Com essas considerações em tela, Tonet (2011), sublinha a primazia ontológica do trabalho sobre os demais complexos.
É, portanto, a partir do trabalho que surgem todos esses outros momentos da realidade social. Cada um com uma natureza e uma função próprias na reprodução do ser social. Deste modo, podemos dizer que entre o trabalho e as outras atividades existe uma relação de dependência ontológica, de autonomia relativa e de determinação recíproca. Dependência ontológica de todas elas em relação ao trabalho, pois este constitui o seu fundamento. Autonomia relativa, pois cada uma delas cumpre uma função que não resulta mecanicamente de sua relação com o trabalho. Determinação recíproca, pois todas elas, inclusive o trabalho, se relacionam entre si e se constituem mutuamente nesse processo (p. 139).
Embasados em tais pressupostos, consideramos os complexos como partes integrantes da totalidade, Lima e Jimenez (2011) embasadas em Lukács, defendem a
9 Exemplos como este revelam a necessidade de uma educação sistematizada, porém ela não passa pela educação escolar em si, propriamente.
tese de que a educação situa-se como um dos complexos sociais surgidos das necessidades e possibilidades produzidas pelo trabalho que mantêm uma dependência ontológica e uma autonomia relativa a essa atividade consciente, devido a sua especificidade. As autoras definem educação como um complexo universal necessário à reprodução do homem como ser social (idem).
Se o ser social é um ser que se constrói, a educação faz parte desse existir inerente à formação humana. Como não nascemos humanos, mas nos constituímos para atender às necessidades de sobrevivência, o complexo da educação deve propiciar a todos os indivíduos a formação que os possibilite ser partícipe do gênero humano, situando-os em uma totalidade societária. Através dela uma série de objetivações pode ser concretizada por meio das atividades realizadas, cotidianamente, retroagindo sempre a novas aprendizagens, habilidades, conhecimentos e valores.
A essência da educação “consiste em influenciar os homens no sentido de reagirem a novas alternativas da vida de modo socialmente intencionado” (LUKÁCS, 2013, p. 178). Na perspectiva do ser social, a formação social do comportamento centra-se na “práxis educativa que intenta produzir individualidades de acordo com as exigências de um determinado tipo de sociedade, o que ocorre pela sua influência sobre o campo das decisões individuais” (SANTOS e COSTA, 2012, p. 99). Essas decisões são assentadas no âmbito teleológico e a partir de uma realidade social, que orienta a ação objetiva e ao mesmo tempo impulsiona, coordena e determina o agir da consciência sobre o que “está-posto”, uma dada realidade. Como o pôr teleológico secundário se dá de sujeito para sujeito, a decisão alternativa de cumprir uma tarefa dada por outro sujeito torna-se uma possibilidade abstrata que depende do sujeito que recebeu a tarefa.
A vivência imediata de tal condição sem dúvida suscita na maioria dos homens a imagem de que o homem está vivendo em um entorno social que o confronta com as mais distintas demandas, às quais ele passa a reagir de modo extremamente diversificado, das quais ele toma conhecimento, a elas se submete, afirma-as ou as nega etc. (LUKÁCS, 2013, p. 292).
Nestes termos, precisamos da educação, como afirma Tonet (2008), porque de modo primário, o trabalho implica em uma teleologia, ou seja, em uma atividade intencional prévia e na existência de alternativas e isto não é biologicamente pré- determinado. Para tanto, o pôr teleológico da educação se difere do pôr do trabalho
em sua forma produtora de valores de uso que é desenvolver/influenciar/formar novos comportamentos perante as necessidades sociais, o que implica compreender o processo de mediação do agir entre sujeitos no plano da sociabilidade; desse modo o pôr teleológico da educação, tendo por base Lukács, é um por teleológico secundário (LUKÁCS, 2013). Tal como se apresenta, a teleologia secundária estabelece uma relação que é de sujeito para sujeito, portanto, no pôr teleológico secundário a subjetividade adquire o caráter social: possíveis decisões alternativas de pessoas onde são preponderantes as relações sociais não dependem apenas de um sujeito. Não se pode prever a reação dos indivíduos diante das alternativas possíveis, mesmo com a práxis educacional induzindo determinadas decisões, pois mesmo com as contradições, o processo educativo não cessa.
Para a continuidade do ser social, de sua forma historicamente produzida, é necessária uma educação que possibilite apreender o modo de vida do grupo, assimilando a linguagem, os costumes, as atitudes, as formas de pensar e as formas de produção que garantem a subsistência. Essas e outras objetivações da esfera do ser social são, direta ou indiretamente, originadas da relação homem e natureza ou das atividades dos sujeitos no plano da sociedade. A continuidade do gênero como ser social e a totalidade no movimento de reprodução do ser social mobilizam o complexo educacional para se apropriar das objetivações de outros complexos da práxis social: linguagem, arte, política, religião, ciência, alimentação, direito, dentre outros.
A educação, enquanto complexo da totalidade social, apropria-se das objetivações de outros complexos da práxis social, de modo que tais objetivações se tornem universais, pertencentes ao gênero humano. Ao mesmo tempo em que se afastam as barreiras naturais, elas enriquecem o ser social. No processo de reprodução social, no plano da totalidade, os indivíduos se apropriam desse patrimônio historicamente acumulado, assim como de suas contradições, para se humanizarem e possibilitarem sua participação nas conquistas alcançadas. É uma possibilidade, porque nem todas as conquistas da humanidade estão acessíveis ao coletivo social. A propriedade privada, a divisão e exploração do trabalho em benefícios de alguns indivíduos, a sociedade de classes, expõem as contradições desse processo. Nesse caso, a necessidade individual de apropriar-se do patrimônio histórico e superar as dificuldades sociais é efetuada tanto pelo processo social
quanto de aprendizagem-ensino-aprendizagem perante um conjunto de relações sociais. Isso pressupõe também um processo educacional que requer uma ação intencional e dirigida pela atividade de sujeito para sujeito, mediante a apresentação e explicitação de conhecimentos já apropriados, do estímulo à elaboração de perguntas e do pensar.
As mediações desse processo integram a práxis educacional possibilitando alargar o horizonte de reflexão dos sujeitos, possibilitando a criação de algo sempre novo frente aos desafios atuais e projetando um maior refinamento das faculdades humanas. Através da práxis social pode surgir uma série de objetivações concretas das atividades realizadas pela humanidade cotidianamente, que produzem sempre novas aprendizagens, habilidades, conhecimentos e valores. Lembrando que nem sempre esse processo ocorre de maneira contínua e satisfatória, pois envolve um conjunto de relações sociais articuladas a outros complexos sociais. Isso porque a educação é um pôr teleológico que se realiza de sujeito para sujeito, mediada por uma série de relações humanas.
Nesse sentido, o complexo da educação, determinado pela dinâmica do metabolismo social, fundado pelo Trabalho, avança se autorrealizando no cotidiano da humanidade, pois a aprendizagem do ser humano é constante, contínua e se vincula a outros complexos da práxis social, intimamente “ligados ao devir do homem socialmente efetuado do homem singular” (LUKÁCS, 2013, p. 295). Isso configura a educação no sentido lato de que as atividades, sejam elas produtivas ou ideológicas, possibilitam situações espontâneas de aprendizagem compondo o conjunto de conhecimentos, habilidades, valores inerentes ao gênero humano. Tomando por base as análises de Lukács (idem), elas assinalam o caráter universal da educação imanente ao processo de reprodução social, pois a educação no sentido lato jamais é totalmente concluída.
A educação do homem é direcionada para formar nele uma prontidão para decisões alternativas de determinado feitio; ao dizer isso, não temos em mente a educação no sentido mais estrito, conscientemente ativo, mas como totalidade de todas as influências exercidas sobre o novo homem em processo de formação. Por outro lado, a menor das crianças já reage à sua educação, tomada em sentido bem amplo, por seu turno igualmente com decisões alternativas, e a sua educação, a formação de seu caráter, é processo continuado das interações que se dão entre esses dois complexos (ibdem, p. 295).
Esse aspecto do complexo educativo revela sua função no processo sociorreprodutivo, evidencia que a educação é um processo continuado e de “formação dos cinco sentidos”, ao longo da vida, diria o jovem Marx (2010). A educação possibilita o refinamento e aprofunda as faculdades humanas, ainda que nela se desenvolvam desigualdades e contradições.
O desenvolvimento histórico das formações sociais está marcado pelo processo de produção dos meios de vida e, com efeito, produz a cultura no intercâmbio com a natureza e os indivíduos na sociedade. Esse desenvolvimento culminou na divisão social do trabalho, no aparecimento da propriedade privada, ocorrendo variadas contradições, na distinção entre homens que estavam livres do labor material e aqueles que eram forçados ao trabalho manual.
A separação em atividades manuais e intelectuais forneceu o caráter classista nas relações sociais, configurando o domínio do conhecimento mais sistemático e refinado às classes proprietárias em cada época histórica. A educação escolar vai se desenvolver como símbolo da classe dominante e, a partir dessas relações, se apoiará no saber sistematizado, na medida do tempo livre de trabalho laboral, articulado à domesticação de animais, à agricultura, à complexificação da produção e desenvolvimento das forças produtivas baseadas no trabalho, primeiramente no escravo, servil e, por fim, no trabalho assalariado, tornando-se determinantes na função social da escola (idem).
Através desse processo de complexificação e diferenciação nas relações sociais, simultaneamente, a Educação no sentido lato se tornara insuficiente aos interesses das classes dominantes, na medida em que o conhecimento stricto, sistemático, dos objetos e forças naturais passou a exercer um papel social para mediar e controlar o processo produtivo. A divisão do trabalho em profissões, por exemplo, apoiada no conhecimento stricto, faz com que as práticas educacionais se tornem mais sistemáticas. O conhecimento historicamente acumulado pela humanidade passa a ser transmitido pela escola. Nessa perspectiva, a educação stricta surge por força da divisão de classes e institui a escola como a esfera responsável pela transmissão do saber sistematizado (LIMA e JIMENEZ, 2011). Esse primeiro rompimento no complexo da educação é verificado quando o trabalho coletivo de caça e coleta nas sociedades primitivas é substituído pelo trabalho escravo, entre outros fatores.
A sociedade de classes, calcada na apropriação do trabalho e dos meios de produção, na exploração do homem pelo homem, promove também a distinção entre os saberes destinados à classe dominante e a instrução das classes exploradas. Isto é, para manter-se no controle da hierarquia social, a classe livre das atividades laborais apoia-se numa educação sistematizada a partir da evolução das técnicas, dos conhecimentos do meio, da elaboração de formas de controle e poder. Desse modo, as classes dominantes determinam uma educação rudimentar que assegure apenas o suficiente para a realização de alguns ofícios e a subordinação da classe ligada às atividades manuais.
A instituição escolar surgiu e se desenvolveu ligada ao modo de reprodução social em cada época histórica. A escola como símbolo da dominação e privilégio de uma parcela pequena de indivíduos realçou a função do conhecimento stricto aos destinados a governar. A origem da escola se relaciona com saber restrito a uma classe, ligada à propriedade privada e dispondo de tempo livre proporcionado pela exploração do trabalho alheio, conforme Saviani (2008), uma evidência histórica daqueles que se libertaram das atividades laborais e se tornaram dominantes na sociedade. Lembramos, contudo, que a escola não é a única esfera de transmissão do saber, uma vez que o conhecimento lato é formado mediante a constante interação dos indivíduos entre si e seus contatos com o meio natural e social ao longo da vida.
Nesse aspecto, a escola já nasce portadora de um dualismo educacional, como nos esclarece Santos (2005).
A escola passa a ser então o local ocupado por quem não precisa trabalhar para sobreviver, ou seja, pelos cidadãos ociosos que não se ocupam com a produção do trabalho. A educação escolar era oferecida aos senhores, por estes disporem de tempo livre para o exercício acadêmico do aprendizado. Para o trabalhador restava o trabalho e através deste o aprendizado na prática do dia a dia que rendia os conhecimentos necessários para melhorá-lo e aprimorá-lo p. 26).
Para o autor, a função social e trajetória da escola é instituída, inicialmente pelas classes dominantes, com finalidade de atender aos seus interesses. O contexto que envolve a escola, suas contradições, possibilidades revolucionárias e conservadoras, como instituição encarregada da transmissão do saber sistematizado, reflete os processos sociais dos quais ela faz parte.
Por sua vez, a sociedade de classes, da exploração do homem pelo homem,
promove também a distinção entre os saberes destinados à classe dominante e o que deve integrar a instrução das classes exploradas. Isto é, para manter-se no controle da hierarquia social, a classe que se apropriou privadamente dos meios de produção apoia-se numa educação sistematizada a partir da evolução das técnicas, dos conhecimentos do meio, da elaboração de formas de controle e poder. Desse modo, determina uma educação rudimentar voltada apenas o suficiente para a realização de alguns ofícios e à subordinação da classe ligada às atividades manuais às classes dominantes.
Através das reflexões desenvolvidas até o momento, percebemos que o dualismo marca a trajetória histórica da educação tendo a divisão do trabalho e sociedade de classes como alguns momentos determinantes. Para Saviani (2007),
a partir do escravismo antigo passaremos a ter duas modalidades distintas e separadas de educação: uma para a classe proprietária, identificada como a educação dos homens livres, e outra para a classe não proprietária, identificada como a educação dos escravos e serviçais. A primeira, centrada nas atividades intelectuais, na arte da palavra e nos exercícios físicos de caráter lúdico ou militar. E a segunda, assimilada ao próprio processo de trabalho (p. 155).
Nas comunidades primitivas, em que prevalecia o trabalho coletivo, não havia divisão de classes. Ao se tornarem mais complexas, tomando como exemplo as sociedades grega e romana, com nítida divisão entre trabalho manual e intelectual, desenvolveram uma educação dual, a partir do momento em que a aristocracia, proprietária de terras se apoiou no trabalho escravo para a produção da existência.
O interesse privado se sobrepôs ao coletivo provocando mudanças no que deveria ser ensinado a cada parcela da sociedade e em função dos interesses das classes dominantes. A educação escolar, apropriando-se do conhecimento elaborado sistematicamente, passou a organizar a transmissão desse saber desenvolvendo elementos próprios da forma escolar. Enquanto isso, a classe explorada, alijada da escola, apropriava-se do saber prático, ligado ao processo de trabalho e às situações cotidianas.
Com o aparecimento da sociedade de classes, a tônica do ideal educativo se voltava para os fins estabelecidos pela classe proprietária. Segundo indica Ponce (2010, p. 37), nesse contexto educativo prevalecia “a inculcação da ideia de que as classes dominantes só pretendem assegurar a vida das dominadas, e a vigilância atenta para extirpar e corrigir qualquer movimento de protesto da parte dos oprimidos”.
A separação das classes provocou uma fratura também no campo das ideias, a fim de preservar a hierarquia social dos privilegiados sobre os trabalhadores manuais. O conhecimento já não podia ser ensinado livremente a todos e ainda estava a serviço da manutenção das desigualdades sociais, explicando à massa trabalhadora que essa desigualdade educacional era natural, pertencente aos destinados a governar.
Com o trabalho dividido socialmente, surgem as diferenciações que germinam da práxis social, onde a função da propriedade privada se torna hegemônica. Esse processo também incide sobre o controle das técnicas produtivas envolvidas no processo de trabalho, diferenciadoras dos que deveriam atuar em atividades que exigiam maior esforço físico e daqueles que exerciam funções de planejamento, administração e controle, isto é, atividades intelectuais. É a propriedade privada a base de poder e controle de um grupo de indivíduos sobre outros, perfazendo a hierarquização social. Funções diferenciadas exigiam, da mesma forma, habilidades distintas e estas eram adquiridas através de processos educativos cada vez mais direcionados às atividades produtivas que cada indivíduo ou grupo deveria exercer.
A sociedade de classes, calcada na apropriação do trabalho e nos meios de produção, na exploração do homem pelo homem, promove também a distinção entre os saberes destinados à classe dominante e a instrução das classes exploradas. Isto é, para manter-se no controle da hierarquia social, a classe proprietária se apoia numa educação sistematizada a partir da evolução das técnicas, dos conhecimentos do meio, da elaboração de formas de controle e de poder. Desse modo, as classes proprietárias, economicamente dominantes, determinam uma educação institucionalizada, controlando a produção do saber que assegure seu status quo, por um lado, por outro, o acesso à escola para massas trabalhadoras é um fenômeno histórico recente em nossa história.
Após a revolução industrial, a dualidade educacional também é transformada em função das novas demandas produtivas. A divisão lato versus restrita, não atendiam as necessidades de formar o trabalhador para o manuseio do maquinário. Foi nessas condições que a educação restrita se divide numa dicotomia configurada pela separação e oposição entre um ensino propedêutico para a classe dominante e um ensino profissionalizante para a classe trabalhadora. O saber apenas para realização de alguns ofícios, subordinado à classe ligada às atividades manuais, tornou-se insuficiente para a classe burguesa em ascensão. Com isso, teríamos uma
dicotomia por dentro da dualidade. Uma primeira divisão entre trabalho manual e intelectual produziu uma dualidade cujo saber era destinado aos privilegiados, próprio de uma sociedade dividida em classes. Para atender às necessidades produtivas promovidas pela industrialização era preciso possibilitar que mais grupos sociais tivessem acesso a conhecimento, porém não o conhecimento que possibilitasse ao trabalhador exercer funções de governo tanto quanto um burguês.
Na sociedade capitalista, a esfera do trabalho passou por profundas transformações. A introdução de máquinas no processo produtivo, o mercado como fim último da produção e das relações que buscam o lucro, a ascensão burguesa como classe dominante e o surgimento do proletariado produziram novas demandas sociais. As lutas políticas entre as classes sociais e a separação entre trabalho manual e intelectual ganhou uma nova forma em meio a industrialização. Esse processo também alterou as relações sociais no meio educativo e a escola passou a assumir novas funções.
A dicotomia educativa, propedêutico versus profissionalizante, por dentro da esfera restricta veio reforçar a dualidade que opõe as classes sociais no âmbito da educação escolar. Uma educação propedêutica para a classe proprietária dominante e outra profissionalizante para os trabalhadores. Essa nova separação na esfera educacional ocorre no conjunto das transformações promovidas pela sociedade burguesa industrializada. Nesse processo, a escola assumiu o papel de educadora oficial do Estado, absorvendo demandas sociais das classes em luta, tendo a classe dominante exercido papel preponderante para encaminhar processos educativos atrelados às suas necessidades sociorreprodutivas.
A educação no horizonte do Movimento de Educação para Todos (UNESCO- ONU, FMI, Banco Mundial), coordenado por Jacques Delors, financiado pelo capital, na “Educação ao longo da vida”, reforça ainda mais o viés dicotômico, unilateral do processo educativo. Enquanto Marx se refere à educação dos cinco sentidos, isto é, uma educação omnilateral, a proposta adotada pelos organismos internacionais multilaterais está atrelada a uma dualidade educacional que reforça a unilateralidade, que se viabilizou nas instituições escolares a reboque das políticas neoliberais, e está assentada no paradigma da pós-modernidade. É uma educação para todos os pobres dos países pobres cujo teto educativo é o ensino básico, preferivelmente profissionalizante no nível médio da escolaridade. Isso condiz com a unilateralidade
do processo educativo, amparada pelo processo de divisão social do trabalho, manual versus intelectual, e seu antagonismo de classes. As instituições escolares que brotaram nele aprofundaram e avançaram no conhecimento stricto, mas também reforçaram ser ela voltada ao domínio de classe.
Para encerramos nossas reflexões, sem esgotarmos o debate – resgatamos sinteticamente a necessidade de considerar a educação como complexo fundado e reproduzido através do Trabalho. Processo que é fundamental para que a humanidade continue seu processo de desenvolvimento mediante as necessidades que se impõem. Entretanto, ressaltamos também o vínculo ontológico que a educação mantém com o complexo do trabalho, cuja determinação dialética e reciprocidade influencia na produção e reprodução do saber.
Nesse processo de reflexão, procuramos demonstrar a relação entre trabalho e educação a partir dos pressupostos ontológicos da teoria de Marx, apoiada nas análises de Lukács. A esfera do ser social é consequência do salto ontológico dado pelo ser humano através do trabalho. Através do trabalho emergiu um novo metabolismo entre homem e natureza que se desdobra num processo constante e contínuo de sociabilidade, fundando novas relações, possibilitando o afastamento das barreiras naturais, sem, contudo, eliminá-las. Esse metabolismo permite ao ser humano social desenvolver novas esferas para garantir sua sobrevivência, a reprodução social de uma práxis social, combinando objetividade e subjetividade na criação de algo novo.
De forma geral, procuramos evidenciar importantes apontamentos, sobre o que cerca a categoria trabalho em Karl Marx, os elementos centrais do complexo que funda o ser social e a forma manifestada na sociedade capitalista. Percebemos o quanto difícil é abordar tal categoria em virtude dos pressupostos e interpretações polêmicas e controversas que ela desperta. O caminho seguido foi balizado pela leitura de autores mais experientes que esboçam maior envergadura nos vários embates já travados nos estudos da obra clássica de Marx. Por isso, longe de esgotar os debates, este trabalho nos ajudou a compreender melhor as nuances do objeto,
sua imprescindível importância, quando se nega que trabalho é uma categoria superada no atual quadro da análise societal.
O resgate ontológico do trabalho, como fio-condutor do processo de autoconstrução do homem, deve ser pautado por uma perspectiva crítica e radicalmente emancipada das concepções burguesas que em si garantem a reprodução do capital. É pela centralidade do trabalho, na perspectiva ontológica, que se situa a natureza e função social da educação. Cabe a ela, enquanto práxis, a tarefa de permitir aos indivíduos a apropriação dos conhecimentos, habilidades, práticas e valores necessários para se tornarem membros do gênero humano. Nesse sentido, a educação, assim como outros complexos, está inserida na realidade social, compondo o quadro da totalidade, para cumprir necessidades humanas estabelecidas.
Como complexo da formação humana que se relaciona com o complexo do trabalho, com a totalidade social e com a esfera do conhecimento, a educação é formadora da individualidade, entretanto, ela é cercada de uma trama social que envolve as mediações historicamente desenvolvidas pelo conjunto da humanidade. As mediações da práxis educacional caracterizam-se por alargar o horizonte de reflexão dos sujeitos, possibilitando a criação de algo sempre novo frente aos desafios atuais, projetando um maior refinamento das faculdades humanas.
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V.18, nº 37, set-dez (2020) ISSN: 1808-799 X
Catherine Guillaumin2
Cet article porte sur la formation professionnelle en France et donne les informations nécessaires à la compréhension actuelle du système dans ses dimensions historiques et institutionnelles. Un ensemble de textes organise les parcours professionnels initiaux et continus dans un cadre national valorisant l’alternance et ayant pour finalité l’insertion professionnelle, le maintien en emploi, la réorientation professionnelle, l’autonomie des personnes. Cet outil majeur à la disposition de tous révèle des zones d’ombre et des insuffisances que tentent de pallier des réformes successives.
Este artigo trata da formação profissional na França e fornece as informações necessárias para uma compreensão atual do sistema em suas dimensões históricas e institucionais. Um conjunto de textos organiza as trajetórias de carreira inicial e contínua em uma estrutura nacional, promovendo o estudo do trabalho e com o objetivo de integração profissional, retenção de empregos, reorientação profissional, autonomia pessoal. Essa ferramenta importante, disponível para todos, revela áreas cinzentas e deficiências que as reformas sucessivas estão tentando superar.
Este artículo trata de la formación profesional en Francia y proporciona la información necesaria para una comprensión actual del sistema en sus dimensiones histórica e institucional. Un conjunto de textos organiza las trayectorias de las carreras iniciales y continuas en una estructura nacional, promoviendo el estudio del trabajo y con el objetivo de la integración profesional, la retención laboral, la reorientación profesional, la autonomía personal. Esta importante herramienta, al alcance de todos, revela áreas grises y debilidades que las sucesivas reformas están tratando de superar.
1Recebido em 15/05/2020. Primeira avaliação em 13/06/2020. Segunda avaliação em 30/06/2020. Aprovado em 26/08/2020. Publicado em 25/09/2020. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v18i37.46296
2 Docteur en Sciences de l’Education. Collaboratrice bénévole de l’Equipe de Recherche Education
Ethique Santé Agir ensemble et prendre soin EA 7505 de l’Université de Tours. Maître de Conférences (retraitée) de l’Université de Tours.France E-mail: catherine.guillaumin@univ-tours.fr
La loi pour une École de la confiance a été promulguée au Journal Officiel le 28 juillet 2019 : elle abaisse, à l'âge de 3 ans, pour tous les enfants, français et étrangers, l'instruction obligatoire. L’article 15 (qui entrera en vigueur à la rentrée 2020) de la loi concrétise un engagement gouvernemental de stratégie de lutte contre la pauvreté. Il prolonge l’instruction obligatoire par une obligation de formation pour tous les jeunes de 16 à 18 ans. Les parents peuvent choisir de scolariser leur enfant dans un établissement scolaire (public ou privé) ou bien assurer eux-mêmes cette instruction.
En France, la formation professionnelle articule historiquement une formation initiale, préparant notamment l’entrée sur le marché du travail, et une formation professionnelle continue destinée aux personnes déjà engagées dans la vie active ou qui s’y engagent. La fin des études initiales correspond conventionnellement à une interruption des études de plus d’un an : la distinction entre études initiales et formation continue dépend du moment auquel la formation intervient dans le parcours de la personne, et non du type de formation suivie.
A l’issue de la classe de 3ème après 9 ans d’études environ en primaire puis au collège, lorsque le jeune a environ 16 ans, trois filières sont proposées, la filière générale, la filière technologique et la filière professionnelle. Ces deux dernières constituent la voie professionnelle et délivrent des diplômes allant du Certificat d’Aptitude Professionnelle (CAP, niveau V, équivalent Cadre Européen des Certifications - EQF European Qualification Framework- CEC1) au titre d’ingénieur (niveau I, CEC 8) en passant par le Brevet de Technicien Supérieur (BTS, CEC 5).
La formation professionnelle est un processus d'acquisition de connaissances et de compétences requises dans des métiers spécifiques ou plus largement sur le marché de l'emploi. Ce processus peut débuter lors de la formation initiale et/ou se poursuivre en formation continue. Aujourd’hui, en France, 4 voies d’accès aux certifications sont instituées : formation initiale sous statut scolaire ou formation initiale sous statut d’apprentissage, formation continue et validation des acquis de l’expérience (Pair, C. 2003) (Breton, 2018).
Ainsi, le champ de la formation professionnelle se compose de deux ensembles relativement autonomes l’un envers l’autre : la formation initiale qui concerne les jeunes sous statut scolaire à temps plein et les apprentis et la formation professionnelle
continue qui concerne tous les individus ayant quitté ou terminé leur formation initiale ainsi que les adultes sur le marché du travail. L’état actuel est le résultat de transformations incessantes. Cette voie professionnelle, qui se distingue par son objectif d’insertion dans l’emploi, est confrontée aux changements économiques accélérés. Elle est tendue entre plusieurs finalités : adéquation entre formations et emplois et développement de l’autonomie des personnes favorisant l’insertion et la mobilité sociales.
Traditionnellement, le métier est appris de manière informelle : l’apprenti acquiert les compétences demandées, par la pratique auprès du maître et des compagnons, en observant et en participant à des tâches de plus en plus complexes. L’industrialisation transforme au cours du XIXème siècle la formation à l’emploi. La division des tâches ne nécessite pas davantage de savoirs que d’être capable d’écrire, lire et compter. L’encadrement est formé par les contremaîtres (anciens ouvriers particulièrement compétents) et les ingénieurs (issus d’une autre classe sociale et ayant reçu une formation technique supérieure) (Pair, 2003, pp. 174-178). De très nombreux auteurs (Prost, 1992, Brucy and Troger 2000, Lelièvre, 2004) s’accordent pour dire que le modèle scolaire caractérise et domine la formation professionnelle en France pendant une longue période. Ils situent le début de cette scolarisation de la formation professionnelle en 1880 lorsqu’après avoir achevé la constitution de l’enseignement élémentaire et sa laïcisation, les républicains promulguent une loi considérée comme l’origine de l’enseignement technique.
La loi Astier en 1919 institue le Certificat d’Aptitude Professionnelle (CAP) et pose les fondements de la formation professionnelle conçue comme vecteur de la promotion sociale (Pigassou, 2004). Cette loi est très importante au sens où elle est la première pierre de la Formation Tout au Long de la Vie (FTLV). Elle permet de certifier la qualification acquise et de construire un début de standardisation des critères de qualification à l’échelle nationale. Les apprentis obtiennent un temps de formation en dehors de l’entreprise, pendant le temps de travail. Brucy & Troger (2000) montrent que les employeurs des industries mécaniques profitent de cette opportunité pour ouvrir des écoles d’entreprises mais constatent que dans les autres domaines, les
initiatives sont rares. Les débats se multiplient car les orientations s’affrontent et se confrontent, soulignant tout à la fois, l’insuffisance de l’initiative patronale, la misère, le chômage tout autant que la nécessité de disposer d’une main d’œuvre de plus en plus qualifiée.
Dès la fin de la seconde guerre mondiale, la période dite des Trente glorieuses (1945-1975) bouscule le modèle antérieur sur fond de profondes évolutions technologiques, de demande de consommation, d’échanges internationaux. La libération est le moment où l’organisation des formations professionnelles scolarisée est stabilisée. Les Centres d’Apprentissage deviennent des Lycées Professionnels (LP). Ils sont destinés à la formation des ouvriers et des employés qualifiés. Ils deviennent ainsi les concurrents directs de l’apprentissage et des cours professionnels (Brucy & Troger, 2000), les collèges techniques prennent en 1959 le nom de Lycées Techniques et visent exclusivement la formation des techniciens. Leur formation n’a pas de visée professionnelle directe. Les instructions de 1946 précisent les finalités de la formation dispensée pour l’ensemble du territoire national. Le terme apprentissage est alors strictement circonscrit et caractérise une formation professionnelle assurée en totalité ou en partie au sein d’une entreprise. Brucy & Troger (2000, p. 15) montrent qu’entre 1945 et 1985, l’enseignement professionnel a connu un accroissement ininterrompu jusqu’à scolariser à la fin de cette période plus du tiers des lycéens ; l’enseignement technique a progressé mais de manière moins importante ; les effectifs de l’apprentissage sont faibles et ne progressent pas.
L’enseignement et la formation technique ou professionnelle se déroulent dans les établissements scolaires sans contact avec l’entreprise. Il y a cependant des exceptions, l’apprentissage tel que défini plus haut, mais aussi les formations médicales, paramédicales, sociales, celles des ingénieurs au cours desquelles les périodes en milieu professionnel sont intégrées dans la formation mais ne font pas l’objet d’une attention pédagogique particulière.
L’élévation du niveau de formation fait dans les années 70-80 l’objet d’une convergence rare dans l’histoire (Pair, C. 2003) : les durées de formation augmentent tandis qu’apparaît une perte de la correspondance entre niveau de formation et niveau d’emploi.
Chronologiquement les trois lois adoptées le 16 juillet 1971 en même temps que la loi Delors portant organisation de la formation professionnelle continue dans le cadre de l’éducation permanente constituent un moment essentiel et fondateur des transformations de la formation professionnelle.
La première loi concerne l’apprentissage. Celui-ci se constitue dès lors comme une voie de formation à part entière, avec une formation en Centre de Formation d’Apprentis (CFA) qui doit totaliser au moins 360 heures par an. Cette disposition selon Moreau (2003) fait glisser l’apprentissage, au sens strict des termes, de la formation pratique à l’alternance et construit une institutionnalisation de la formation professionnelle (Combes, 1986).
La deuxième loi concerne l’enseignement technologique et professionnel. Elle est, pour de nombreux auteurs, particulièrement importante. Appay (1992, p. 257-265) soutient qu’un verrou idéologique vient de sauter lors de l’introduction des séquences éducatives en entreprise mises en place en septembre 1979 dans les lycées professionnels. Progressivement localement sont rédigés des contrats liant les lycées professionnels et les entreprises. Le mouvement s’accélère avec en 1986 avec la création des baccalauréats professionnels qui introduisent des périodes de formation en entreprise entre 12 et 24 semaines sur 2 ans, obligatoires et dont l’évaluation est prise en compte pour l’obtention du diplôme. Celui-ci ouvre la voie de l’enseignement supérieur aux élèves issus de l’enseignement professionnel. Enfin la loi d’Orientation sur l’Education de 1989 fixe comme objectif national d’amener en 10 ans, 80 % d’une classe d’âge au baccalauréat. Elle précise que « les périodes de formation en entreprise sont obligatoires dans les enseignements conduisant un diplôme technologique ou professionnel (Guillaumin, 1997, p. 43) ». Dès 1992, le mot alternance sous statut scolaire est clairement énoncé dans les textes officiels organisant toutes les formations préparant au CAP, BEP, Bac Pro, BTS ... dans les lycées professionnels et technologiques.
La troisième loi porte sur la participation des employeurs au financement des premières formations technologiques et professionnelles.
Les organismes gestionnaires des Centres de Formation d'Apprentis sont des organismes privés (associations, entreprises, etc.), des Chambres de Métiers ou de Commerce et d'Industrie et des organismes publics (lycées, ...). Les ressources d'un Centre de Formation d'Apprentis dépendent essentiellement du versement de la taxe d'apprentissage. C’est la ressource principale à laquelle s’ajoutent la participation de l'organisme gestionnaire, les subventions de l'État ou de la région si la convention de création prévoit un financement. Les Centres de Formation d'Apprentis sont soumis au contrôle pédagogique de l'État, au contrôle technique et financier de la région. Les Etablissements Publics Locaux d'Enseignement (EPLE), c'est-à-dire les lycées professionnels et technologiques accueillent à la fois des élèves en formation professionnelle par alternance sous statut scolaire qui sont sous la responsabilité du chef d’établissement et également des apprentis au sein des Unités de Formation d'Apprentis (UFA) situées dans chaque établissement et réunis en un Centre de Formation d'Apprentis Académique ; les Universités ont des Centre de Formation d’Apprentis Universitaire. Les ministères de l'Education Nationale, de l'Enseignement Supérieur et de la Recherche encouragent le développement de la voie professionnelle, notamment en valorisant la voie par apprentissage dans les EPLE et en favorisant des parcours intégrant alternance par voie d’apprentissage et sous statut scolaire ou universitaire, au lycée et à l’Université. L'apprentissage permet de préparer les diplômes professionnels et technologiques de l'Education Nationale et universitaires : certificat d'aptitude professionnelle (CAP), brevet d'études professionnelles (BEP), baccalauréat professionnel, Brevet de Technicien Supérieur (BTS), Diplôme Universitaire de technologie (DUT), licence professionnelle, master. Les apprentis ont un statut de jeune travailleur salarié en entreprise, sous la responsabilité d'un maître d'apprentissage. Ils ont conclu un contrat de travail. Ils peuvent être accueillis dans la fonction publique. Les deux formes de contrat sont le contrat d’apprentissage et le contrat de professionnalisation qui permettent de concilier travail en entreprise et formation théorique, c'est-à-dire l’alternance entre pratique et théorie.
Le contrat d’apprentissage a pour but d’obtenir un diplôme CAP, BAC Pro, BTS, DUT, Licence, Master, ou un titre à finalité professionnelle inscrit au Répertoire National des Certifications Professionnelles (RNCP), regroupant l’ensemble des titres
professionnels relevant du ministère du Travail. Le contrat d’apprentissage s’adresse aux jeunes entre 16 et 29 ans révolus voire au-delà de 30 ans, si l’apprenti est reconnu comme travailleur handicapé ou s’il a un projet de création ou de reprise d’entreprise nécessitant le diplôme préparé. Il doit être reconnu apte à l'exercice du métier lors de la visite médicale d'embauche. Les jeunes âgés d'au moins 15 ans peuvent souscrire un contrat d'apprentissage s'ils ont accompli la scolarité du collège (de la 6e jusqu'en fin de 3e).
L'apprentissage prépare, aux métiers de l'alimentation, du commerce de détail, du bâtiment et des travaux publics, à des métiers qui relèvent de tous les autres secteurs d'activité : hôtellerie-tourisme, services à la personne, secteur automobile, électronique, etc. Le temps de formation dans un Centre de Formation d'Apprentis (CFA) est d'au moins 400 heures par an, 800 heures pour le Certificat d’Aptitude Professionnelle en deux ans, 1 850 heures pour le baccalauréat professionnel en trois ans. Ce temps est plus court que celui des formations dispensées dans les lycées professionnels ou technologiques mais il ne faut pas oublier que le temps passé en entreprise est aussi un temps de formation. Le CFA dispense les enseignements nécessaires pour préparer le diplôme prévu au contrat d'apprentissage. Les programmes de formation et les épreuves d'examen sont identiques pour les élèves et les apprentis préparant les mêmes diplômes. Au CFA, l'apprenti garde son statut de salarié. La période au CFA est donc rémunérée comme temps de travail. Il suit les enseignements prévus dans les programmes et les règlements d'examen. La formation de l'apprenti s'effectue également au sein de l'entreprise pour laquelle il travaille. L'apprenti est placé sous la responsabilité d'un maître d'apprentissage choisi en fonction de ses connaissances professionnelles.
Le contrat de professionnalisation a pour but d’acquérir une qualification professionnelle reconnue : un diplôme ou un titre professionnel enregistré dans le Répertoire National des Certifications Professionnelles, un Certificat de Qualification Professionnelle (CQP), une qualification reconnue dans les classifications d’une convention collective nationale. Le contrat de professionnalisation est un contrat de travail en alternance entre un employeur du secteur privé et un salarié répondant à certains critères qui permet d'associer l'acquisition d'un savoir théorique en cours (enseignement général, professionnel ou technologique) et d'un savoir-faire pratique au sein d'une ou plusieurs entreprises. Le contrat doit être écrit et être un Contrat de
travail à Durée Déterminée (CDD) ou un Contrat de travail à Durée Indéterminée (CDI). Le salarié bénéficie du soutien d'un tuteur. Le contrat s’adresse aux personnes âgées de 16 à 25 ans, aux demandeurs d’emploi de 26 ans et plus, aux personnes bénéficiaires du Revenu de Solidarité Active (RSA), de l’Allocation Spécifique de Solidarité (ASS), l’Allocation Adulte Handicapé (AAH) ou ayant bénéficié d’un Contrat Unique d’Insertion (CUI).
La formation professionnelle continue est un outil majeur à la disposition de tous les actifs : salariés, indépendants, chefs d’entreprise ou demandeurs d’emploi. Elle permet de se former tout au long de son parcours professionnel, pour développer ses compétences et accéder à l’emploi, se maintenir dans l’emploi ou encore changer d’emploi. Des dispositifs permettent la reconnaissance des acquis pédagogiques ou professionnels autorisant l’accès à une formation ou à certaines dispenses. Toutes ces formations relèvent de la pédagogie de l’alternance. Différentes catégories d’actions concourent au développement des compétences :
Le Conseil en Evolution Professionnelle (CÉP) constitue pour chaque actif une opportunité de faire le point sur sa situation professionnelle et engager, le cas échéant, une démarche d’évolution professionnelle. Il a pour ambition de favoriser l’évolution et la sécurisation de son parcours. Il vise à accroître ses aptitudes, ses compétences et ses qualifications, en facilitant notamment son accès à la formation. Il s’agit d’une offre de services en information, en conseil et en accompagnement personnalisés de projets d’évolution professionnelle, gratuite, confidentielle et accessible à chaque actif, avec un accueil et un conseil individualisé et personnalisé
Le bilan de compétences permet à son bénéficiaire d’analyser ses compétences professionnelles et personnelles, ses aptitudes et motivations, en vue de définir un projet professionnel ou de formation. Il est susceptible de précéder une action de formation.
Le Compte Personnel de Formation (CPF) s’est substitué au Droit Individuel à la Formation (DIF) le 1er janvier 2015, avec reprise des droits acquis sur ce dernier. Il permet à toute personne active, dès son entrée sur le marché du travail et jusqu’à la date à laquelle elle fait valoir l’ensemble de ses droits à la retraite,
d’acquérir des droits à la formation mobilisables tout au long de sa vie professionnelle. L’ambition du Compte Personnel de Formation est ainsi de contribuer, à l’initiative de la personne elle-même, au maintien de l’employabilité et à la sécurisation du parcours professionnel. A titre indicatif, pour 2020, les salariés ayant effectué une durée de travail supérieure ou égale à la moitié de la durée légale ou conventionnelle du travail sur l’ensemble de l’année 2019 acquièrent 500 euros par an pour se former (plafonné à 5 000 euros) et pour les salariés peu ou pas qualifiés (niveau BEP, CAP), le montant annuel du crédit CPF est majoré à 800 euros (plafonné à 8 000 euros).
La formation continue désigne la formation suivie par des personnes ayant terminé leurs études initiales et qui reprennent des études en vue d’obtenir un diplôme ou une qualification supérieure ou dans un champ différent. Elle favorise l’adaptation des travailleurs à leur poste de travail, participe au développement de leurs compétences, en lien ou non avec leur poste de travail, vise à réduire, pour les salariés dont l’emploi est menacé, les risques résultant d’une qualification inadaptée ainsi qu’à favoriser la mobilité professionnelle. L’employeur est dans l’obligation d’organiser la formation de ses salariés. La loi du 5 septembre 2018 impose aux entreprises de contribuer au financement de la formation professionnelle et de l’apprentissage par une contribution financière devenue unique, calculée sur leur masse salariale. Les fonds ainsi mutualisés permettent la prise en charge des coûts de formation des salariés des Très Petites Entreprises (TPE) de moins de 50 salariés et des coûts des formations en alternance (professionnalisation et apprentissage). Cette contribution est versée à des organismes spécialisés qui sont les opérateurs de compétences organisés par branches d’activité. À partir de 2021, la contribution sera versée à l’Union pour le Recouvrement de Sécurité Sociale et des Allocations Familiales (URSSAF).
La Validation des Acquis de l'Expérience (VAE) est une voie alternative, à la voie scolaire, à l'apprentissage ou à la formation continue des adultes, pour l'obtention des diplômes. Le champ de la formation professionnelle, initiale et continue a été profondément transformé par la loi de 2002 qui l’institue. Elle prend en compte les compétences professionnelles acquises à travers des activités salariées, non salariées et bénévoles, en rapport direct avec le contenu du titre ou du diplôme visé. La durée de l'expérience professionnelle considérée est d'au moins un an Les auteurs s’accordent pour reconnaitre que « le premier des défis est très certainement celui de
la légitimation de la voie de l’expérience, comme modalité d’accès à parité avec la formation formelle (Breton, 2018, p. 62) ». L’auteur (Breton, 2018) situe l’émergence du nouveau paradigme de l’Education et de la Formation tout au long de la vie au moment de la communication par la Commission des communautés européennes du 21 novembre 2001.
« (…) les publications successives des Lignes directrices européennes pour la validation des acquis non formels et informels par le Centre européen pour le développement de la formation professionnelle (CEDEFOP) ont ensuite contribué à traduire en dispositifs une politique fondée sur une logique de parité entre les formes d’apprentissage dits formel, informel et non formel. Au même moment est crée la Commission Nationale de Certification Professionnelle (CNCP) dont l’une des missions est de gérer le Registre National des Certifications Professionnelles (RNCP) (BRETON, 2018, p. 64)»
Les certifications professionnelles désignent les diplômes et titres à finalité professionnelle, certificats de qualification professionnelle (CQP), blocs de compétences, certificats ou habilitations, délivrés par une autorité compétente après vérification des compétences ou connaissances d'une personne, enregistrés au répertoire national des certifications professionnelles ou au répertoire spécifique. Elles ne doivent pas être confondues avec les notions de formations et de qualifications. Elles visent à sécuriser les parcours professionnels, en permettant une reconnaissance des compétences de la personne. Breton (2018, p. 63) reprenant Maillard (2016, p. 9) relève le paradoxe que constitue cette alternative où dans « un espace d’activités sociales foisonnant » à savoir le monde de la certification française, cette nouvelle voie d’accès crée des dispositifs visant à l’ordonner et le rendre lisible. La très grande originalité de cette voie nouvelle (Breton, 2018, p. 62) « est d’instituer dans la loi la possibilité de faire valider des savoirs non acquis en contexte formel (tels qu’écoles ou organismes de formation)». Il a donc fallu produire un énorme travail de définition « de ce que sont des acquis expérientiels, de leurs modes de manifestation dans un parcours et une pratique professionnelle, et des critères permettant de les évaluer (Breton, 2018, p. 64)». Au-delà de ce travail, la question pédagogique de l’alternance entre pratique et théorie reste centrale.
Dresser un bilan du travail réglementaire accompli est particulièrement complexe. Il permet cependant de mettre en évidence les avancées autorisant des pédagogies novatrices et inventives concernant la formation professionnelle initiale et continue mais laisse apparaître des zones d’ombre, des insuffisances qui soulèvent des questions centrales portant sur le droit à la formation pour tous.
Comme nous l’avons décrit précédemment, la formation professionnelle initiale et continue est instituée. Elle est reconnue comme un outil majeur à la disposition de tous jeunes et actifs : salariés, indépendants, chefs d’entreprise ou demandeurs d’emploi. Elle permet de se former tout au long de son parcours initial et professionnel, pour développer ses compétences et accéder à l’emploi, se maintenir dans l’emploi ou encore changer d’emploi. Les dispositifs sont pluriels et la loi sur la Validation des Acquis de l’Expérience a enrichi un ensemble de mesures favorisant le développement des compétences des individus. L’alternance et l’apprentissage sont reconnus et valorisés dans les différents parcours de formation.
Cependant, les différentes statistiques montrent une insertion difficile des jeunes, un accès à la formation continue différencié selon les catégories socioprofessionnelles. Bernard, Minni, Testas (2018) montrent que « les poursuites d’études sont plus fréquentes mais que l’insertion professionnelle est toujours difficile pour les moins diplômés ». Les auteurs mettent en évidence qu’en 2015-2016, 46 % des jeunes âgés de 14 à 29 ans sont scolarisés (élèves, étudiants ou apprentis). La part de bacheliers dans une génération a progressé et les nombres d’inscrits et de diplômes délivrés dans l’enseignement supérieur se sont aussi tendanciellement accrus. Depuis 2008, les effectifs d’apprentis ont diminué dans l’enseignement secondaire, mais ont continué d’augmenter dans le supérieur ; l’apprentissage concerne aujourd’hui près de 5 % de l’ensemble des jeunes de 16 à 25 ans.
En 2016, 9 % des jeunes de 18 à 24 ans sont considérés comme sortants précoces du système scolaire: ils possèdent au plus le brevet des collèges et ne suivent pas de formation. L’insertion des jeunes sur le marché du travail s’étale entre 1 à 4 ans avec un fort taux de chômage (19,8 % des actifs en 2016). Les jeunes en emploi récemment sortis des études sont plus souvent en sous-emploi ou en emploi à durée limitée et, bien que plus diplômés, perçoivent des salaires moins élevés.
La formation professionnelle continue est un moyen d’améliorer sa situation au regard de l’emploi. De plus en plus de diplômes sont délivrés dans le cadre de la formation continue. En 2016, deux personnes de 18 à 64 ans sorties de formation initiale sur cinq ont suivi dans l’année au moins une formation à but professionnel. Cependant, l’accès à la formation, professionnelle continue ou à la formation non formelle à but professionnel, demeure différencié. Ainsi, les cadres, les plus diplômés, les personnes d’âges intermédiaires et les salariés des grandes entreprises se forment davantage que les autres (Gaini, 2018).
Des lois récentes comme celle du 5 septembre 2018 Pour la liberté de choisir son avenir professionnel modifient en profondeur la gouvernance et le financement du système de formation professionnelle français avec la création de France compétences associée à une réforme du financement de la formation professionnelle et de l’apprentissage qui bouscule en profondeur le système antérieur. Ce mouvement se caractérise par la libéralisation du marché à l’ensemble des organismes de formation qui souhaitent dispenser des actions de formation par apprentissage et pour lesquelles un niveau de financement pour chaque contrat sera assuré. L’État reste le garant de la bonne utilisation des fonds publics et des fonds mutualisés dédiés à la formation professionnelle.
Ces réformes incessantes de la formation professionnelle sont à l’origine de nombreuses réflexions. L’appel à communication du Réseau des Universités préparant aux Métiers de la Formation (RUMEF colloque du 18-20 mars 2020) propose une synthèse actualisée des problématiques. Ainsi les coordonnateurs scientifiques de ce colloque rappellent que
« (…) depuis 2000, ce sont ainsi pas moins de quatre accords nationaux interprofessionnels entre 2003 et 2017 et cinq lois entre 2002 et 2018 qui ont vu le jour, proposant, peu ou prou, de rompre avec le passé, chacun de ces accords et lois étant opportunément précédé ou accompagné de rapports invitant à en finir avec ce « système à la dérive » et ses « réformes inabouties ». Ce mouvement de « réforme » s’est accompagné de la création régulière de dispositifs et de mesures tant pour les salariés que pour les demandeurs d’emploi et les moins de 26 ans. Accompagnées d’une sémantique de la liberté du choix, de l’autonomie, les mesures inscrites dans la dernière loi en date ne portent pas uniquement sur la formation continue, mais également l’apprentissage et l’assurance-chômage et redistribuent les activités entre les acteurs, dans une logique de compétences et moins de formation. (…) (RUMEF, 2020)».
Ainsi, au fil des années, des avancées considérables ont été construites permettant entre autres la reconnaissance des acquis formels et informels. Néanmoins de larges zones d’ombre subsistent telles celles propres à la formation, à l’insertion, à la reconversion des plus fragiles, à l’accompagnement au développement de l’autonomie des individus, largement sollicitée dans toutes les formes d’emploi. La réflexion associée à la pédagogie de l’alternance, à la formation des formateurs et pédagogues, constitue à ce titre une opportunité, non pas pour résoudre mais tout au moins pour inventer des réponses pédagogiques plurielles afin de mieux répondre aux besoins des laissés-pour-compte de la formation.
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LOI n° 2018-771 du 5 septembre 2018 pour la liberté de choisir son avenir professionnel (1) NOR: MTRX1808061L ELI: https://www.legifrance.gouv.fr/eli/loi/2018/9/5/MTRX1808061L/jo/texte Alias: Titre ier: vers une nouvelle société de compétences.
V.18, nº 37, set-dez (2020) ISSN: 1808-799 X
RECONHECIMENTO DE SABERES E COMPETÊNCIAS: GÊNESE E REPERCUSSÕES SOBRE O TRABALHO E A CARREIRA DOCENTES1
Ecléa Vanessa Canei Baccin2 Eneida Oto Shiroma3
O Reconhecimento de Saberes e Competências (RSC) visa à concessão de uma equivalência à Retribuição por Titulação para fins de remuneração dos docentes do magistério do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico. Com base no método materialista histórico, analisamos documentos e entrevistas para resgatar o processo histórico de criação do RSC, focando na resistência e nos conflitos entre governos e sindicatos. Mais que um mecanismo de certificação de práticas docentes, o RSC é um dispositivo político que tende a desmobilizar a categoria docente e a institucionalizar a quebra da isonomia salarial.
RECONOCIMIENTO DE SABERES Y COMPETENCIAS: GÉNESIS
Y SUS REPERCUSIONES SOBRE EL TRABAJO Y LA CARRERA DOCENTES
El Reconocimiento de Saberes y Competencias (RSC) pretende otorgar equivalencia a la Retribución por Grado para retribuir al profesorado en la docencia de Educación Básica, Técnica y Tecnológica. Con base en el método materialista histórico, analizamos documentos y entrevistas para rescatar el proceso histórico de creación de la RSC, enfocándonos en resistencias y conflictos entre gobiernos y sindicatos. Más que un mecanismo de certificación de prácticas, el RSC es un dispositivo político que tiende a desmovilizar la categoría docente e institucionalizar la quiebra de la isonomía salarial. Palabras clave: Trabajo y Educación; Luchas docentes; Carrera Docente; Reconocimiento de Saberes y Competencias (RSC); Enseñanza Básica Técnica y Tecnológica (EBTT).
RECOGNITION OF KNOWLEDGE AND SKILLS RECOGNITION: GENESIS AND ITS REPERCUSSIONS ON TEACHING WORK AND CAREER
The Knowledge And Skills Recognition (RSC) aims to offer an equivalent of the Retribution by Qualification in order to define the EBTT´s teachers remuneration. Based on the historical materialist method, we used document analysis and interviews to retrieve the historical process of creation of the RSC, focusing on the resistance and conflicts between the government and teachers' unions. Beyond teachers´ practices certification, RSC is a political tool to demobilize teachers' ranks and break the wage isonomy.
Keywords: Work and Education; Teachers' struggles; Teaching career; Recognition of Knowledge and Competencies; Basic Technical and Technological Education.
1Artigo recebido em 19/05/2020. Primeira avaliação em 04/06/2020. Segunda avaliação em 16/06/2020. Aprovado em 12/08/2020. Publicado em 25/09/2020. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v18i37.46297.
2Doutora em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professora de Educação Física
na rede municipal de ensino de Florianópolis/Santa Catarina - Brasil. E-mail: ecleavanessa@gmail.com; ORCID: 0000-0001-5142-8152; Lattes: http://lattes.cnpq.br/2778586906795861
3 Doutora em Educação pela UNICAMP. Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) - Brasil. E-mail: eneida.shiroma@ufsc.br;
ORCID: 0000-0002-0506-7058; Lattes: http://lattes.cnpq.br/8001069292975491.
Introdução
Reformas de corte gerencialista que objetivavam limitar e controlar os gastos públicos atingiram o campo educacional sobremaneira nos anos de 1990, ao implementar ações de racionalização nas áreas sociais. Neste contexto, um conjunto de diretrizes e programas coordenados foram lançados para gerar economia, pretendendo não apenas “fazer mais com menos”, mas disseminar — por meio da reforma do aparelho de Estado de meados desta década — conceitos como “serviços não exclusivos” do Estado e “público não estatal”, que viabilizaram, anos mais tarde, a gestão privada de instituições públicas e a prospecção da educação pública como espaço de valorização do valor. Visando saciar a voracidade do capital em se apropriar do fundo público, a economia de gastos com a força de trabalho docente assume um papel estratégico. Acompanhando o movimento global, no Brasil, os governos implantaram reformas contemplando ora mais, ora menos, as políticas sociais, mas promovendo ajustes norteados pelos interesses do capital financeiro em escala global, processo referido como “financeirização da economia” (CARCANHOLO, 2014; LUPATINI, 2012; MARX, 1991). Tal conceito, segundo Seki, tem como
principal marca distintiva a liberalização da circulação mundial de capitais, derrubando as barreiras internas ou nacionais para o livre trânsito de capitais, seja sob a forma monetária ou da mercadoria – entre as quais, a força de trabalho. “Portanto, parcelas crescentes de capitais passaram a se apresentar sob forma monetária, concentrando grandes operações de investimentos, marcadas por relativa autonomia no que diz respeito aos setores produtivos” (MANCEBO; JÚNIOR; SCHUGURENSKY, 2016 apud SEKI, 2017, p. 6).
Por certo, esses processos acirram as contradições entre capital e trabalho, aceleram as expropriações primárias e secundárias (FONTES, 2010), e produzem um crescimento exponencial do desemprego e difusas formas de precarização do trabalho (ANTUNES, 2018). É no bojo dessas transformações que situamos as reformas endereçadas aos servidores públicos, difamados pelo discurso oficial como trabalhadores privilegiados e, portanto, responsabilizados pelo crescimento da dívida pública e pela crise econômica.
O fato é que, desfrutando de aparelhos privados de hegemonia, a “nova direita” (CASIMIRO, 2018) difunde concepções como estas pela mídia e pelas redes sociais como forma de atribuir a dívida pública ao gasto com os servidores, ocultando a recorrente emissão de títulos feita pelo Estado brasileiro e alimentando o mercado financeiro. A intenção é clara: forjar a opinião pública contra os servidores públicos, induzindo a sociedade a acreditar que, retirando direitos desses trabalhadores, o gasto público será reduzido e a economia florescerá. Nesse ínterim, na batalha das narrativas, os governos e apoiadores valem-se de dados selecionados para produzir sentidos e inventar explicações que justifiquem as privatizações, a reforma da previdência, entre outras, como se fosse alternativa para a crise brasileira.
Interessadas por esses processos, nosso recorte, neste artigo, trata das suas implicações sobre os professores do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico (EBTT) da rede federal. A expansão dos campi dos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IFs) ocorrida nos governos Lula e Dilma demandou a contratação de um contingente maior de professores, o que acarretou um aumento da folha de pagamento. Na análise que fez sobre a eficiência do gasto público do Brasil, o Banco Mundial viu tal aumento como preocupante e sugeriu uma revisão das despesas e um “ajuste justo” (BANCO MUNDIAL, 2017).
Em 2012, após longa greve do magistério federal, o governo propôs aos docentes do EBTT o Reconhecimento de Saberes e Competências (RSC), possibilitando que tivessem aumento salarial mesmo sem progressão na carreira. Essa medida gerou polêmicas, pois se de um lado, atende à demanda dos professores de melhoria salarial, de outro, contraditoriamente, cria segmentações na categoria docente que comprometem a estruturação da carreira e as suas lutas. Também não há garantias orçamentárias que assegurem o RSC de forma permanente, e não como uma medida efêmera. Sua continuidade inclusive fica comprometida pelos ajustes adotados pelo Estado brasileiro, como a Emenda Constitucional nº 95/2016 (BRASIL, 2016b), aprovada no governo Temer (2016 - 2018), que institui o novo regime fiscal com o congelamento do teto de gastos com saúde e educação por 20 anos.
Com o propósito de aprofundar essa discussão, o presente artigo tem o objetivo de pesquisar a gênese do RSC, suas repercussões sobre o trabalho e a
carreira docentes do EBTT, tendo em vista compreender os determinantes de sua implantação nessa conjuntura de finança mundializada. Essas análises decorrem de uma pesquisa fundamentada no Materialismo Histórico-Dialético, que sustenta uma visão política e social centrada no compromisso com a transformação das forças de exploração produzidas pela produção e reprodução ampliada do capital. Pretendemos alcançar as determinações do RSC, a fim de compreender os interesses que fundamentaram sua elaboração e, para tal, analisamos a conjuntura econômica e política na qual a reestruturação da carreira está inserida. Nessa perspectiva é que discutiremos o RSC concebido no bojo de um conjunto de reformas mais amplas que atingem o serviço público, como também parte da classe trabalhadora que tem seus direitos aviltados pelo capital.
No que tange aos procedimentos metodológicos, analisamos documentos governamentais da rede federal, planos de carreira do EBTT e entrevistas semiestruturadas realizadas com três dirigentes sindicais. Os entrevistados foram selecionados por meio de uma amostra intencional, tendo por critérios de escolha sindicalistas que exerceram cargos de direção no período que antecedeu a aprovação do RSC e que se encontravam atuantes em 2017, quando coletamos os dados. Tais procedimentos foram realizados com o intuito de conhecer a gênese do RSC, as disputas que marcaram o processo de formulação e implantação desse dispositivo e diagnosticar seus impactos na reestruturação da carreira e do trabalho dos docentes.
Neste artigo4, recuperamos, brevemente, a história da rede federal até a formação dos IFs, para contextualizar a (re) estruturação da carreira do magistério do EBTT. Tratamos da greve do magistério federal de 2012 e dos embates em torno do RSC, procurando relacionar essa pretensa política de valorização desta classe com a “grande política”, em sentido gramsciano, na tentativa de evidenciar suas contradições e o papel importante na produção do consentimento ativo dos docentes.
4 Resulta da tese de doutorado intitulada “Reconhecimento de Saberes e Competências no Ensino Básico Técnico e Tecnológico: impactos sobre a carreira e o trabalho docente”, defendida em 2018 pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Antecedentes do RSC na rede federal de ensino
A origem da Rede Federal de Educação Profissional remonta ao início do século passado, quando o governo de Nilo Peçanha criou, em 1909, as Escolas de Aprendizes Artífices como resposta aos desafios de ordem econômica e política. Somente no ano de 1959, as Escolas Industriais e Técnicas passaram à categoria de autarquias e foram denominadas Escolas Técnicas Federais e, em 1978, transformadas em Centros Federais de Educação Tecnológica (CEFETs). Ao longo desse processo, docentes passaram a atuar também no ensino superior e conquistaram um plano de carreira em 1970, que passou por atualizações em 1987 e 2008.
Nesse sentido, as pesquisas acerca da Educação Profissional e Tecnológica (EPT) apontam um reordenamento e uma expansão da rede federal em função das demandas do sistema produtivo, que visa preparar a força de trabalho requerida pelo mercado. Assim, com a aprovação da Lei nº 11.892, de 29 de dezembro de 2008 (BRASIL, 2008b), foram formados 38 IFs, criados pela agregação e reorganização de antigas instituições de educação profissional. Como consequência, neste contexto, foram gestadas políticas que visavam modificar a carreira e o trabalho docentes.
Ainda do ponto de vista das regulamentações, o dispositivo legal que promoveu melhorias no plano de carreira foi o Decreto nº 94.664, de 23 de julho de 1987. Tal regulamento instituiu o Plano Único de Classificação e Retribuição de Cargos e Empregos (PUCRCE) e
assegurava para os técnicos-administrativos e para os docentes a isonomia salarial e a uniformidade de critérios tanto para ingresso mediante concurso público de provas, ou de provas e títulos, quanto para a promoção e ascensão funcional, com valorização do desempenho e da titulação do servidor (DOMINIK, 2017, p. 59).
O decreto incluía as instituições de ensino superior e também os professores, à época, de 1° e 2° graus, da rede federal de ensino. Desse modo, na carreira de 1987, foi acrescida a dedicação exclusiva.
Com relação à carreira destes professores, a aprovação da Lei nº 11.344, de 8 de setembro de 2006, a estruturou em cinco classes, que compreendiam quatro níveis cada, com exceção da Classe Especial, que possuía apenas um nível. A
titulação mínima requerida para ingresso na carreira foi então elevada para Licenciatura Plena ou habilitação legal. A progressão ocorria com interstício de 24 (vinte e quatro) meses, mediante avaliação de desempenho do docente ou, por titulação, a qualquer momento.
Dois anos depois, foi sancionada a Lei nº 11.784, de 22 de setembro de 2008, instituindo a carreira do magistério do EBTT como uma substituição à carreira de 1º e 2º graus. Os professores foram a partir disso induzidos a optar pelo novo enquadramento, pois se permanecessem na “antiga” carreira, poderiam não receber reajuste de benefícios ou aumento salarial. Foi assim criada a Gratificação Específica de Atividade Docente do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico (GEDBT)5. A progressão passou a ter o interstício de 18 (dezoito) meses de efetivo exercício, pelo professor, no nível respectivo.
A carreira do EBTT foi instituída para acompanhar e regulamentar a ampliação das funções docentes que já ocorria em alguns CEFETs, configurando- se como uma decisão governamental de manter a cisão entre as carreiras do magistério federal do ensino superior e da educação básica. Contudo, no que tange à estrutura e ao salário, essa reorganização aproximou a carreira do EBTT à do magistério superior.
No governo Dilma Rousseff (2011-2016), foi aprovada a Lei nº 12.772, de 28 de setembro de 2012 (BRASIL, 2012a), que instituiu o RSC, regulamentado por meio da Resolução nº 1, de 20 de fevereiro de 2014. (BRASIL, 2014). Nela, foram estabelecidos os pressupostos, as diretrizes e os procedimentos para a sua concessão. A proposta, segundo esta resolução, constitui-se em um mecanismo de validação de experiências para os docentes em exercício, realizada por meio de um processo avaliativo. O Art. 18 da referida lei regulamenta a equivalência do RSC com a titulação acadêmica, exclusivamente para fins de percepção remuneratória, que ocorre da seguinte forma: I - diploma de graduação somado ao RSC-I equivalerá à titulação de especialização; II - certificado de pós-graduação lato sensu somado ao RSC-II equivalerá a mestrado; e III - titulação de mestre somada ao RSC-III equivalerá a doutorado (BRASIL, 2012a)6.
5 A partir de 1o de março de 2012, o valor referente à GEDBT ficou incorporado à Tabela de Vencimento Básico (incluído pela Lei nº 12.702, de 2012).
6 Observe-se que o docente que já possua o título de doutor não está contemplado nesta lei.
Ao que tudo indica, ela seria benéfica para os docentes. Mas quais foram as motivações para a sua criação? Aparentemente, ela favorece o aumento salarial mesmo sem aquisição da titulação definida no plano de carreira7. E quais foram as implicações sobre a formação, a estruturação da carreira e a organização do trabalho docente nos IFs?
Para compreender a gênese do RSC na rede federal, abordamos alguns aspectos sobre a greve das Instituições Federais de Ensino Superior (IFES), ocorrida em 2012, assim como os processos de disputa entre a categoria docente e o governo federal na aprovação e na implantação desse dispositivo.
História da construção do RSC
A greve das IFES de 2012, que durou 124 dias, foi iniciada em 17 de maio, sob a liderança do Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes-SN)8. O Sindicato Nacional dos Servidores Federais da Educação Básica, Profissional e Tecnológica (Sinasefe)9 aderiu à paralisação em 13 de junho do mesmo ano e, em julho, o movimento atingia 60 IFES10.
O estopim foi o descumprimento do acordo 04/2011 (BRASIL, 2011), firmado entre o Andes-SN, a Federação de Sindicatos de Professores de Instituições Federais de Ensino Superior (Proifes)11 e os ministérios da Educação (MEC) e do Planejamento, Orçamento e Gestão (MPOG), que definira os termos do resultado das negociações – assinadas em agosto de 2011, entre o governo federal e as entidades representativas dos docentes do EBTT e do magistério superior – e previa
7 Os servidores técnico-administrativos também reivindicam direito ao RSC. (CONIF, 2014).
8 Três sindicatos representam os trabalhadores do EBTT: Andes-SN; Sinasefe e Proifes. O Andes- SN representa os professores do magistério superior e do EBTT. É filiado à Central Sindical e Popular Conlutas (CSP-Conlutas) e conta com quase 70 mil sindicalizados de 121 seções sindicais.
9 O Sinasefe abarca todos os trabalhadores da Rede Federal da Educação Básica, Profissional, Científica e Tecnológica. É filiado à Central Sindical e Popular Conlutas (CSP-Conlutas) e à Confederação de Educadores Americanos (CEA).
10 A Federação de Sindicatos de Trabalhadores Técnico-administrativos em Instituições de Ensino Superior Públicas do Brasil (Fasubra) iniciou a greve em 11 de junho.
11 A criação do Proifes ocorreu em 2004 em meio a um contexto de ação judicial e de cassação da carta sindical do Andes-SN e da articulação política com o então ministro da educação, Tarso Genro (2004-2005), e na época, secretário-executivo do MEC, Fernando Haddad. O Proifes é legalmente representante dos docentes do magistério superior e do EBTT.
a revisão do plano de carreira para 2013, com um aumento de 4% a partir de março de 2012, além da incorporação de gratificações (GOULART, 2012).
A pauta das reivindicações centrava-se nestes dois pontos: a definição de uma nova carreira para o magistério federal e a melhoria das condições de trabalho. Apesar da greve ter congregado um número expressivo de instituições federais, somente 57 dias após seu início, o governo abriu negociação com o movimento grevista. Em 13 de julho de 2012, o secretário do MPOG reuniu-se pela primeira vez com o Andes-SN e com o Proifes, e apresentou uma proposta que reforçava a posição do governo de não unificar as carreiras do magistério superior e do EBTT, mantendo a fragmentação, sem recomposição das perdas salariais dos docentes (ANDES-SN, 2012b).
Algumas das proposições acarretavam prejuízos, tais como: aumento do tempo do interstício para progressão de 18 (dezoito) para 24 (vinte e quatro) meses; aumento da carga horária mínima de ensino para 12 (doze) horas semanais e 70% de pontos de aprovação em avaliação de desempenho individual. O MEC indicou que o nível para ingresso na carreira deveria ser o mesmo para todos, independentemente da titulação do docente ingressante.
O MPOG buscava, de todas as formas, reduzir os gastos com o magistério federal. Além de tentar impor critérios para a avaliação de desempenho docente, “o governo apenas cria as figuras na Lei, o Vencimento Básico-VB e a Retribuição por Titulação-RT, remetendo para a tabela anexa na qual apenas aparecem valores nominais” (ANDES-SN, 2012c), sem definir percentuais de diferença entre níveis e classes e indo de encontro à histórica reivindicação dos docentes de ter apenas uma linha no contracheque incorporando todos os benefícios como salário-base.
Nas negociações, o MEC tentou propor ao EBTT uma Certificação de Conhecimento Tecnológico (CCT), que indicaria “um reconhecimento da experiência docente nos diversos programas e modalidades de ensino na educação básica, técnica e tecnológica, na gestão institucional, na pesquisa aplicada e/ou em atividades de extensão” (BRASIL, 2012b). Por meio de critérios que seriam estabelecidos posteriormente por um conselho e regidos pelo MEC, quem possuísse o título de especialista e conseguisse a CCT I passaria a receber a RT equiparada à de mestre; e o mestre que alcançasse a CCT II, a RT equiparada à de doutor. Essa proposta estava ligada à “[...] gestão institucional e à capacidade de
produção tecnológica, artística, cultural, de material didático e de desenvolvimento de Programas e projetos sociais” (BRASIL, 2012b). Em outras palavras, o governo anunciava uma gratificação aos que participassem de projetos governamentais no âmbito da instituição. Além disso, a equivalência da CCT dava direito à promoção na carreira, resultando, dessa forma, em um desestímulo à formação continuada.
Assim sendo, a categoria debateu o assunto em assembleias, negou a proposta do governo e avaliou não haver quaisquer avanços na propositura em questão; ao contrário, para ela, tal certificação segmentava ainda mais as carreiras docentes, continha diretrizes para a elevação da produtividade e da meritocracia, coadunando-se com uma compreensão de trabalho contrária ao projeto de educação do Andes-SN12 e da proposta do Sinasefe13. Então, após a deliberação das categorias, nova reunião foi realizada, com algumas modificações pontuais apresentadas pelo secretário do MPOG. Dentre elas, foi retirada a equivalência da CCT aos títulos de mestre e doutor para efeitos de promoção na carreira do EBTT, passando a valer somente para fins de RT. Segundo a nova proposta do governo, a CCT passaria a ser categorizada em três níveis equivalentes à especialização, ao mestrado e ao doutorado. Também foram removidas as referências aos vínculos diretos aos programas de governo. Supondo-se que a proposta fosse aprovada com essa formatação de projeto, pontos importantes e estruturais para a carreira, como os que seguem, seriam encaminhados posteriormente para a discussão em Grupos de Trabalho do MEC e não seriam debatidos com o conjunto dos docentes: revisão dos critérios para a concessão de auxílio-transporte; diretrizes de avaliação de desempenho para fins de progressão; critérios para a promoção à classe de professor titular, assim como para a CCT e para a fixação do professor em locais de difícil lotação. (BRASIL, 2012d). Tal proposta evidenciava flagrante agressão à autonomia das instituições.
Com efeito, a adesão à greve aumentava e, em 27 de julho de 2012, alcançou 58 das 59 universidades federais. A segunda proposição do governo foi discutida nas assembleias e rejeitada pelos docentes da base do Sinasefe e do Andes-SN.
12 Esta proposta foi elaborada por professores do ensino superior de todo o país, a partir de discussões sobre a reestruturação da universidade, realizadas desde 1981 em assembleias e congressos (ANDES-SN, 2013).
13 A proposta do Sinasefe parte de um princípio histórico do sindicato, que é a busca de uma Carreira Unificada dos Trabalhadores da Educação (Administrativos e Docentes). (SINASEFE, [2012a])
Por sua vez, a base do Proifes, que naquele ano possuía apenas cinco sindicatos filiados, foi consultada por meio eletrônico14 e, mesmo sem obter unanimidade em sua base, aceitou o acordo. Desse modo, em 1º de agosto, em reunião da qual participaram o Comando Nacional de Greve do Sinasefe, o Andes-SN, o Proifes e o MPOG, foram apresentadas as deliberações e, apesar da aceitação da proposta apenas por parte do Proifes, o ministro deu por encerradas as negociações.
Resumidamente, o desfecho dessa negociação, que ficou conhecido como “o golpe de 1º de agosto” (GOULART, 2012), resultou em aumentos salariais maiores para professores no topo da carreira (titulares), nível acessado por apenas cerca de 10% dos docentes, majoritariamente localizados em universidades do Sul e do Sudeste do Brasil, cujos pagamentos seriam escalonados de julho de 2012 até 2015. Além disso, o acordo firmado manteve a separação entre as duas carreiras, não estabeleceu percentuais fixos para a RT, transformando-a em gratificações, e não garantiu a isonomia entre ativos e aposentados. (MATTOS, 2013).
Assim sendo, o Termo de Acordo foi assinado entre o Proifes e o governo no dia 3 de agosto e utilizado como base para o Projeto de Lei nº 4368/12. (BRASIL, 2012c)15. Como não foi possível retirá-lo da pauta de votação, os representantes do Sinasefe e do Andes-SN acabaram discutindo o PL e defendendo a aprovação de algumas emendas, na tentativa de alterar o projeto já em tramitação. Por fim, apesar do empenho dos sindicatos, a Lei nº 12.772/2012 (BRASIL, 2012a) foi sancionada sem vetos pela presidente Dilma Rousseff em 28 de dezembro de 2012.
Certificação de Conhecimento Tecnológico proposta aos docentes do EBTT
Compreender a gênese do RSC requer retomar o projeto de CCT. Procedemos à análise da proposta apresentada pelo governo do PT à categoria docente em julho de 2012. A implantação da CCT, inicialmente, permitiria àqueles que a obtivessem melhorar sua percepção salarial por meio da equivalência da RT de mestre e de doutor. Desse modo, para acessar o primeiro nível, o professor
14“Consulta Eletrônica Nacional indica aceitação da proposta”. Matéria disponível em:
<https://goo.gl/i3kg6S>. Acesso em: 20 nov. 2017.
15 Mesmo depois do acordo assinado, o movimento grevista continuou tentando pressionar e reabrir as negociações, porém não houve alteração na postura do governo. A greve foi oficialmente suspensa em 17 de setembro de 2012.
necessitava ter título de especialista, participar dos projetos do governo e atender às diretrizes e competências descritas no Quadro 1:
CCT | Diretrizes | Competências (focadas na atuação finalística da Instituição) | Duração |
Nível 1 |
|
| 2 anos |
Fonte: (BRASIL/MEC, 2012b, p. 1).
O segundo nível era dirigido aos docentes com título de mestre e, da mesma forma, era necessário atender aos critérios e participar dos projetos do governo, conforme pode ser observado, a seguir, no Quadro 2:
CCT | Diretrizes | Competências (focadas na atuação finalística da Instituição) | Duração |
Nível 2 |
|
| 3 anos |
Fonte: (BRASIL/MEC, 2012b, p. 2).
Segundo a proposta do governo, a CCT de nível 1 tinha como focos o reconhecimento de saberes nas áreas de docência em educação básica e tecnológica, a gestão institucional e a capacidade de produção tecnológica, artística, cultural, de material didático e de desenvolvimento de programas e projetos sociais. Já a CCT de nível 2, além de contemplar os requisitos da CCT 1, incorporava critérios relativos à capacidade de geração de conhecimento tecnológico. Essa certificação também seria adotada como critério para os dois formatos existentes na carreira, tanto para a progressão vertical, entre classes, como para a horizontal, entre níveis. Para a progressão vertical, a CCT seria aplicada conforme requisito apresentado no Quadro 3:
Classe | VENCIMENTO BÁSICO | |
Requisito Padrão | Requisito com Especificidade | |
Titular | Doutorado | Doutorado |
D4 | Doutorado | Doutorado |
D3 | Doutorado | Mestrado + CCT2 |
D2 | Mestrado | Especialização + CCT 1 |
D1 | Graduação | Graduação |
Fonte: (BRASIL/MEC, 2012b, p. 2).
Em uma segunda versão, a certificação passou a comportar três níveis, contemplando a RT de especialização. Como mencionado, a obtenção dessa certificação estava ligada à realização de atividades em programas técnicos vinculados ao governo federal, como, por exemplo, o Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec)16. Conforme a declaração de um dos entrevistados, integrante da direção do Sinasefe na gestão 2012-2014, foi realizada uma avaliação sobre essa certificação, e a proposta foi considerada inadequada por dois aspectos, quais sejam:
16 Trata-se de uma política que chancela a educação profissional como um ensino mecanicista e dirigido, agora, para os “excluídos do consumismo”, de forma a assegurar-lhes uma determinada condição ao consumo da materialidade processada, um tipo de “inclusão social” que não lhes possibilita a superação da condição cultural na qual se encontram. (AZEVEDO; COAN, 2013, p. 8- 9).
Primeiro, como era um conhecimento apenas de caráter tecnológico, a nossa rede absorve hoje, muitos professores da formação geral, humanística, que não têm o perfil tecnológico, então, se a gente concordasse com a proposta do governo, ficaria de fora uma parte significativa dos docentes da carreira do EBTT; outra coisa de que nós discordamos desde o início é que a construção para qualificar o professor, na verdade, era uma imposição do governo para que nós trabalhássemos nos seus projetos paralelos – o que até hoje eles fazem –, como por exemplo, o Pronatec, EJA, etc. (DIRIGENTE DO SINASEFE-A).
Com relação a essas diretrizes da CCT, o governo declarou que seria criado um Conselho Permanente de Certificação, com função de elaborar os procedimentos necessários à sua obtenção, em colaboração com os órgãos de pesquisa e fomento ao desenvolvimento tecnológico, que também deveriam ser consultados. As competências do conselho, é necessário esclarecer, seriam estabelecidas por ato do MEC. Essa proposição acarretaria perda de autonomia por parte das universidades e dos IFs, haja vista que, além de os critérios para obtenção da certificação dependerem da criação do referido conselho, os órgãos de pesquisa e fomento teriam poder de ditar mais diretrizes condizentes aos interesses do MEC. Ciente disso, o Andes-SN (2012a) considerou que a CCT apresentada pelo governo favorecia tanto um desestímulo à capacitação docente quanto uma desvalorização da titulação acadêmica. Por isso, em razão dos critérios apresentados, a CCT foi igualmente rechaçada pela categoria da base do Sinasefe e do Andes-SN. Assim, o governo se viu obrigado a elaborar uma outra proposta, desta vez mais adequada aos interesses do conjunto dos docentes e que pudesse amenizar os conflitos com os sindicatos. Dessa forma, em uma contraproposta, a CCT reapareceu com nova roupagem como RSC.
De acordo com os entrevistados, ao serem questionados sobre a origem do RSC, os dois representantes do Sinasefe confirmaram o fato de que fora precedido pela proposta da CCT, que consistia em uma acumulação de pontos conforme o professor se envolvesse com os projetos do governo.
De fato, o RSC, que foi construído em atendimento a várias demandas, apresenta como partes interessadas o governo, o Proifes e o Conselho Nacional das Instituições da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica
(Conif)17. Nesse sentido, o dirigente do Sinasefe-B ressalta que, sem dúvida, o RSC intenta fragmentar a negociação com as categorias; em segundo lugar, que a rede federal tem muitas especificidades e diferenças nas carreiras, e por isso o governo negocia os reajustes de forma fragmentada.
O fato é que, quando ocorreu a transformação dos Cefets em IFs, passou-se a supervalorizar a titulação. Sendo assim, os professores novos, com seus títulos de mestrado e doutorado, ganharam aumentos superiores em relação aos professores antigos na rede que possuíam carga de ensino muito alta e, por consequência, não conseguiam fazer pós-graduação – portanto, permaneciam com salário rebaixado. Isso foi criando um descontentamento e uma diferenciação salarial grande entre os docentes. Nessa perspectiva, segundo o representante do Sinasefe-B,
com a CD [gratificação por cargo de direção], acabavam empatando com quem não tinha cargo de gestão e retribuição por titulação, porque a RT era muito grande. Os gestores começam a se incomodar de que, no fim das contas, eles não estão tendo a diferenciação salarial por ser gestores, porque não tinham a titulação. [...] Nesse meio, é bom dizer que o Conif começa a trabalhar bastante pelo RSC. Exatamente porque foi a forma de os gestores também terem uma equiparação salarial. Ele e o Proifes passaram a defender o RSC.
O dirigente do Andes-SN, salienta que o RSC foi uma medida para resolver o problema dos professores que não tiveram acesso à capacitação, pois
[...] nunca teve política que incentivasse a capacitação dos Professores dos institutos, das escolas técnicas, nem mesmo dos colégios de aplicação, do NDI [Núcleo de Desenvolvimento Infantil]. Nunca foi prioridade. [...] Então o RSC surge como uma compensação do não acesso ao mestrado ou doutorado.
Na sequência, apresentamos as diretrizes construídas para a institucionalização desse dispositivo de certificação das práticas docentes e alguns dos embates que dele decorreram.
17 O Conif é uma instância de discussão, proposição e promoção de políticas de desenvolvimento da formação profissional e tecnológica, pesquisa e inovação. Criado em março de 2009, após a publicação da Lei n° 11.892, de 29 de dezembro de 2008, institui a Rede Federal de Educação Profissional e Tecnológica e cria os IFs. O Conif congrega 38 IFs, dois Centros Federais de Educação Tecnológica e o Colégio Pedro II.
Diretrizes e pressupostos do RSC
Iniciaremos pela análise do Art. 18 da Lei nº 12.772/2012 (BRASIL, 2012a), que apresenta o RSC para fins de percepção de RT. O RSC, se concedido, possibilita equiparar a remuneração do professor que a receber com a de outro, de titulação acadêmica superior.
Ao contrário do que propunha a CCT, esta lei, em seu Art. 19 (BRASIL, 2012a), dispõe que em nenhuma hipótese o RSC poderá ser utilizado para fins de equiparação de titulação como cumprimento de requisitos para a promoção na carreira, ou seja, ele reflete exclusivamente no valor financeiro recebido a título de RT. Para compreender melhor como se dá esse processo e quais são os critérios exigidos, buscamos analisar a Resolução nº 1, de 20 de fevereiro de 2014 (BRASIL, 2014). Em seu capítulo I – Dos Pressupostos, os perfis para a concessão do RSC são apresentados:
RSC I - Reconhecimento das experiências individuais e profissionais, relativas às atividades de docência e/ou orientação, e/ou produção de ambientes de aprendizagem, e/ou gestão, e/ou formação complementar e deverão pontuar, preferencialmente, nas diretrizes relacionadas no inciso I, do art. 11, desta resolução.
RSC II - Reconhecimento da participação em programas e projetos institucionais, participação em projetos de pesquisa, extensão e/ou inovação e deverão pontuar, preferencialmente, nas diretrizes relacionadas no inciso II, do art. 11, desta resolução.
RSC III - Reconhecimento de destacada referência do professor, em programas e projetos institucionais e/ou de pesquisa, extensão e/ou inovação, na área de atuação e deverão pontuar, preferencialmente, nas diretrizes relacionadas no inciso III, do art. 11, desta resolução. (BRASIL, 2014, sem grifos no original).
Já o Art. 11 apresenta os itens passíveis de pontuação para fins de concessão de RSC (BRASIL, 2014). Destaca-se que, para obter o RSC I, pontua- se mais a docência, a orientação, a produção de ambientes de aprendizagem e a gestão. Para o RSC II, a participação em programas e projetos institucionais e em projetos de pesquisa, extensão e inovação. O RSC III, por seu turno, além dos itens citados nos níveis anteriores, destaca o desenvolvimento, a produção e a transferência de tecnologias.
Dessa maneira, compreendemos o RSC como um dispositivo que altera a correspondência salarial, porém estabelece um impeditivo, ao não permitir acesso do docente à classe de professor titular sem o título de doutor. Outra questão
importante é que essa certificação não habilita o professor a coordenar projetos, a solicitar recursos a órgãos de fomento, a ocupar determinados cargos ou a promover outras ações que tenham o título acadêmico como requisito. Portanto, a falta de incentivo à qualificação impõe barreiras ao desenvolvimento da carreira e ao próprio desenvolvimento da instituição.
Destacamos sobretudo que, apesar de não haver nenhuma medida restritiva para que os docentes da carreira do EBTT se afastem para a realização de pós- graduação, na Portaria n° 17, de 11 maio de 2016 (BRASIL, 2016a), a Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica (Setec) indica a possibilidade da instituição prever limites diferenciados de carga horária para docentes, mas não presume a liberação integral para cursar uma pós-graduação. Esse direito conquistado pela categoria está ameaçado. Se por um lado, o RSC é apresentado pelo governo como instrumento criado para a valorização do professor, visto que o discurso propalado é o de que veio corrigir distorções históricas na carreira do EBTT, por outro, promove a fragmentação e a precarização da carreira docente, a intensificação do trabalho e do controle sobre a categoria.
Contraditoriamente, infere-se que, além do aumento salarial, outros fatores que contribuíram para a ampla aceitação do RSC entre os docentes foram a possibilidade de estudar sem afastar-se do trabalho, de não despender recursos financeiros para realizar um curso de pós-graduação nem sofrer descontos relativos ao tempo de capacitação na contagem para sua aposentadoria, uma vez que o período em que o servidor fica afastado para estudo não é computado para fins de aposentadoria especial na carreira do EBTT.
Dessa maneira, constata-se que o RSC não valoriza a qualificação e a titulação do professor, mas sim o seu desempenho prático e os resultados, o seu impacto. Na medida em que há uma restrição ao conhecimento sistematizado e uma premiação para o trabalho prático para certificar determinadas competências, efetua-se uma reconfiguração do trabalho docente. Quer dizer, está em curso um processo de desvalorização e de “desintelectualização” de professores (SHIROMA, 2003), e de desmonte da carreira do EBTT, orientado pela diretriz da redução de gastos com os professores.
Nesse contexto de financeirização da economia, mecanismos que visam à certificação das práticas, como o RSC, funcionam como baliza para a conformação
do trabalho docente à lógica de uma formação pedagógica pautada em competências e habilidades (RAMOS, 2006; SILVA, 2008; MACHADO, 2002). Com a proposta do RSC, o professor é chamado a desenvolver determinadas competências que promovam as habilidades esperadas dos alunos. Nesse sentido, a lei direciona de forma tendenciosa algumas atividades docentes, interferindo inclusive na autonomia didático-pedagógica. Por consequência, tais medidas vão tolhendo a autonomia e reorientando prioridades do docente, ao atrelá-las a incentivos salariais.
Nessa perspectiva de análise, o RSC tende a configurar-se como mais um modelo de certificação calcado em um instrumento avaliativo que promove a lógica meritocrática na instituição. Tal lógica é fortalecida com a difusão da noção de competências nos projetos pedagógicos de curso nos IFs. Segundo Freitas (2004), as competências têm o intuito de conformar as subjetividades, de modo a inseri-las na lógica da competitividade, da individualidade dos processos educativos e do aprimoramento profissional. Dessa forma, acentuam-se as dificuldades de mobilização e o arrefecimento da identidade e da consciência de classe, uma vez que o êxito é alavancado considerando iniciativas individuais, e não coletivas.
Infere-se que é esse o interesse maior subjacente às recomendações das organizações multilaterais para a educação e, dentre elas, a reforma da carreira docente. Algumas dessas orientações colocam o professor no centro das reformas e afirmam que um dos mecanismos mais poderosos para o aumento do padrão dos professores são “os exames obrigatórios de certificação” (BRUNS; LUQUE, 2014,
p. 13). Em nome de uma etérea qualidade da educação, os governantes, com amplo apoio da mídia, tentam justificar um conjunto de reformas lesivas aos trabalhadores, em geral, e aos da educação, em particular.
Com essa perspectiva, compreendemos que a reestruturação da carreira docente do EBTT é, em síntese, expressão de um reordenamento do capitalismo, que atinge a forma com que o Estado remunera os docentes da rede federal e quebra a isonomia de forma consentida, sem enfrentar resistência por parte de toda a categoria. Nesse sentido, ao oferecer uma equivalência à RT, o RSC opera a individualização da carreira, induz o consentimento ativo (GRAMSCI, 1978) de boa parte dos docentes, minando a luta coletiva, o que gera um ganho político e econômico para o Estado. Quer dizer, difunde-se a ideia de que atingir padrões mais
dignos de remuneração decorre da competência ou da incompetência de cada professor, e não mais da capacidade de mobilização política de sua categoria.
Nesse aspecto, o dirigente do Sinasefe-B ressalta que o RSC faz aumentar o distanciamento com o magistério superior, impondo também uma diferenciação com os técnicos e “cria um vencimento cada vez mais cheio de penduricalhos que são bem mais frágeis em relação ao salário mesmo”. Diante de todos esses fatos e questionamentos, aos sindicatos da categoria impõe-se o desafio de manter a organização da classe, de travar lutas e de aprofundar as discussões com suas bases.
Posicionamento dos sindicatos e disputas em torno do RSC
Constatamos, por meio das entrevistas, que as disputas pela implementação do RSC situaram-se, de um lado, entre o Proifes e o Conif — formado pelos gestores, em defesa da proposta do governo — e, do outro, os sindicatos Sinasefe e Andes-SN, contrários, inicialmente, à inserção deste dispositivo de reconhecimento e competências.
No início desse processo, estes sindicatos se opuseram, por compreenderem que o RSC causaria um desestímulo à capacitação docente e por defenderem a proposta de carreira única, que não está baseada apenas em remuneração. O Proifes, por seu turno, assinou o acordo com o governo, e a proposta foi aprovada. Com o fato consumado, a categoria passou a reivindicar o RSC. Neste outro momento, o Sinasefe, que, inicialmente, direcionara suas críticas à criação do Conselho Permanente de Reconhecimento de Saberes e Competências (CPRSC)
— que legalizaria as diretrizes para o processo de concessão do RSC —, por considerar que poderia favorecer a quebra da autonomia das instituições na elaboração de suas regras, passou a disputar a participação no referido conselho e na escolha dos critérios, uma vez que não havia sido chamado para as discussões. Mesmo sendo papel do sindicato defender os ganhos para a categoria, a sua participação na viabilização da política favoreceu o processo de construção do consentimento ativo. Portanto, o Sinasefe, que, a princípio, manteve postura contrária, participou da definição de critérios de implantação do RSC com outras categorias e representações governamentais que faziam parte do conselho, de
acordo com o entendimento de que é função do sindicato defender as reivindicações de sua base e o aumento salarial.
Houve ainda desacordo entre governo, Proifes e Sinasefe quanto à criação de uma Comissão de Avaliação de Regulamento (CAR) que teria o papel de julgar os regulamentos construídos nas IFES. O Sinasefe propôs que todos os docentes que já estivessem na rede antes de 1998 deveriam receber o RSC automaticamente (Dirigente do Sinasefe-B), pois foi a partir deste mesmo ano que começou a haver maior diferenciação remuneratória. O Proifes tomou posição contrária à aprovação automática para aqueles casos, pois defendia critérios com base na meritocracia. O governo, por sua vez, insistiu que toda a comprovação de saberes e competências deveria se dar por meio de documentos, rejeitou a proposta inicial, mas aceitou que os professores mais antigos pudessem comprovar seu trabalho por meio de memorial assinado e corroborado por duas testemunhas.
Outro ponto importante sobre a construção dos critérios aconteceu quando a decisão foi remetida às instituições. Isso fez com que se ampliassem as possibilidades de concessão da gratificação, uma vez que aqueles que vão passar pelo processo avaliativo é que determinam os critérios. Como consequência, segundo a avalição do Dirigente do Sinasefe-A, “um número muito maior do que o governo esperava teve acesso”.
Em meio às contradições e aos conflitos, o RSC se configurou como um dispositivo político que, mesmo que venha acarretar à categoria problemas de médio e longo prazos, de imediato possibilitou maior remuneração aos docentes, fato que não pode ser ignorado pelos sindicatos em uma conjuntura de progressivas perdas de direitos trabalhistas.
Considerações finais
A reestruturação da carreira dos servidores públicos é uma expressão do reordenamento do Estado diante das novas configurações e demandas do capital. Particularmente nos IFs, altera-se a forma de ingresso na carreira do EBTT, criam- se mais classes e níveis, achatando o piso salarial, sem possibilitar o reposicionamento dos aposentados, elaborando-se leis e dispositivos que fazem com que em uma mesma instituição, em um mesmo departamento ou coordenação
existam docentes com carreiras e formas de aposentadoria diferentes. Tudo isso acaba atingindo o sentimento de pertencimento à categoria e a construção da consciência de classe.
Por certo, essas reformas que atingiram os docentes do EBTT estão alinhadas às recomendações de organismos multilaterais de que se rompa com o tripé que estrutura a carreira (qualificação, titulação e tempo de serviço). Essa recomendação pressupõe condições objetivas, mas também subjetivas, e dissemina uma outra lógica, calcada na gestão por resultados, no interior das instituições públicas. A tendência é que esse processo colabore para a segmentação dos trabalhadores e para o enfraquecimento das lutas sindicais.
O fato é que uma série de políticas vêm sendo implementadas na carreira docente com o intuito de restringir a liberação integral para a realização da pós- graduação, como, por exemplo, a falta de professores substitutos, a dificuldade de acesso para os professores que estão nos campi interiorizados dos IFs, que são fatores que corroboram para a sua permanência na instituição e para a opção pelo RSC. Por um lado, esse dispositivo político tende a desmobilizar a categoria em termos de sua consciência e solidariedade de classe, e de luta coletiva, na medida em que individualiza os salários e divide a categoria. Por outro, trouxe um ganho salarial imediato para os docentes que sofrem historicamente com as perdas salariais.
Em suma, compreendemos o RSC como um dispositivo político que, na aparência, valorizaria o magistério por meio da certificação de competências para fins de remuneração, mas, em essência, reorienta o currículo, a formação e o trabalho dos professores que passam a ser reconhecidos pelas atividades e pelos projetos realizados não só dentro dos IFs, mas também como executores de programas governamentais e prestadores de serviço para empresas e organizações externas. Desse modo, reestrutura a carreira desde o ingresso até a aposentadoria, coadunando-se com a reforma da previdência. Assim, concluímos que o RSC atua sobre a subjetividade e reorienta o trabalho docente, privilegiando práticas requeridas pelo capital no atual estágio de desenvolvimento das forças produtivas como as voltadas ao mercado de trabalho e à criação de patentes e inovações. Nesse contexto, a lógica de reconhecer as competências docentes tende a nortear
a organização do trabalho nos IFs e sobrepor-se à qualificação e ao tempo de serviço como critérios que estruturam a carreira docente.
Assim sendo, o RSC, ao anunciar a possibilidade de aumento salarial, apenas na aparência, representa uma medida de valorização do magistério. Porém, como se trata de uma avaliação, sem vinculação orçamentária, funciona como um prêmio contingencial, mas não como política salarial, uma vez que não pode ser aplicado a toda a categoria. Ao contrário, desatrela vencimento e carreira, e instaura a quebra da isonomia consentida pelos trabalhadores. A médio prazo, promove uma desvalorização e não uma valorização do magistério. Tal processo operacionaliza uma meta recomendada há tempos por organizações multilaterais, qual seja: desvincular o tempo de serviço e a qualificação como critérios de promoção no serviço público. Não se trata, portanto, de uma política de carreira, mas da tentativa de sua desestruturação.
Desse modo, desvela-se o intento do capital, no sentido mais amplo do sistema metabólico, não só pelo projeto formativo, de produzir nos jovens as competências exigidas pelo sistema produtivo, qualificando consumidores ávidos por produtos tecnológicos, ao docilizar os sobrantes como nano empreendedores de si mesmos, e moldando o sistema educacional, tornando-os mais atraentes aos investidores. Essa análise permite compreender a desvalorização docente não como um paradoxo, mas como necessária à valorização do valor no capitalismo contemporâneo.
Por fim, os resultados desta pesquisa possibilitaram compreender a questão da remuneração do magistério federal articulada às reformas mais amplas e aos ajustes impetrados pela finança mundializada (CHESNAIS, 2005), que refuncionaliza as instituições educacionais públicas de acordo com seus interesses. Na esteira de decretos e medidas provisórias, o MEC lança, nos períodos de recesso, propostas de supressão da eleição para diretores, das eleições paritárias nas IFs, de suspensão de contratações e processos seletivos, que, aparentemente, são paliativos para enfrentar momentaneamente a restrição orçamentária. Coadunam-se com a proposição do Future-se, lançado em julho de 2019, inicialmente como um programa de adesão voluntária, porém, foi reapresentado, meses depois, como projeto de lei. O programa pretende criar um fundo patrimonial com as universidades e os IFs, gerar negócios com a propriedade intelectual,
investir na produção da “pesquisa interessada”, no sentido gramsciano, explorando a criatividade e o conhecimento produzido nas IES como ativos intangíveis que viabilizam a valorização do valor. Recorrendo à tese do autor de que toda relação de “hegemonia” é necessariamente uma relação pedagógica” (GRAMSCI, 1999, p. 399), tais avanços do capital educador nos lembram o quão ampliados são os desafios da luta sindical, da organização da classe trabalhadora no tempo presente.
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Victor Leandro da Silva2
O cenário recente da política brasileira vem sendo marcado por um forte ímpeto reformista ultraliberal, cujas consequências podem ser percebidas na recentemente aprovada reforma trabalhista. No entanto, para que tal empreitada se efetivasse, foi necessário promover também mudanças no sistema educativo, com vistas a propiciar as condições ideais para o desenvolvimento de tais diretrizes. Dessa forma, o presente texto tem por objetivo discutir de que maneira a educação encontra-se historicamente ligada às transformações do mundo do trabalho, bem com debater os elos que vinculam no Brasil a reforma do ensino médio e as mudanças deletérias dos direitos dos trabalhadores.
El escenario reciente de la política brasileña ha estado marcado por un fuerte impulso reformista ultraliberal, cuyas consecuencias se pueden ver en la reforma laboral recientemente aprobada. Sin embargo, para que este esfuerzo fuera efectivo, también era necesario promover cambios en el sistema educativo, con el fin de proporcionar las condiciones ideales para el desarrollo de tales pautas. Por lo tanto, este texto tiene como objetivo discutir cómo la educación está históricamente vinculada a los cambios en el mundo del trabajo, así como debatir los enlaces que vinculan la reforma de la educación secundaria en Brasil y los cambios perjudiciales en los derechos de los trabajadores.
The recent scenario of Brazilian politics has been marked by a strong ultraliberal reformist impetus, whose consequences can be perceived in the changes in the Brazilian labor legislation, which aim mainly to meet the interests of large economic groups. However, for such an quest to take place, it was also necessary to promote changes in the education system, in order to provide the ideal conditions for the development of such guidelines. Thus, the present text aims to discuss how education is historically linked to the transformations of the world of work, as well as to debate the links that bind in Brazil the reform of high school and the deleterious changes in labor rights.
1Artigo recebido em 27/04/2020. Primeira Avaliação em 01/06/2020. Segunda Avaliação em 04/06/2020. Aprovado em 16/07/2020. Publicado em 25/09/2020.
DOI: https://Doi.org/10.22409/TN.V18I37.42365
2 Graduado em Filosofia pela Universidade Federal do Amazonas - UFAM / Brasil. Doutor em Sociedade e Cultura na Amazônia pela Universidade Federal do Amazonas - Brasil. Professor Adjunto da Universidade do Estado do Amazonas - Brasil. E-mail: viktorleandro@hotmail.com
ORCID: 0000-0002-9758-5249. Lattes: http://lattes.cnpq.br/960788003958929.
É sabida, pelo menos desde A República de Platão, a relevância dos processos educativos para a constituição de um projeto sistemático de ordenamento social. É impossível construir qualquer proposta de organização em sentido amplo sem que a pedagogia em vigor participe de tais objetivos, razão pela qual esta se converte em um sistema integrado e também num agente profundo das mudanças ocorridas em cada bloco histórico.
As relações de trabalho, que na teoria marxista sedimentam a sociedade, por força dessa característica, atuam em forte relação com o que é preconizado nas práticas dos educadores. Desse modo, toda mudança estrutural trabalhista deve atravessar também as normas determinadas nas teorias pedagógicas.
No Brasil contemporâneo, a escalada ultraliberal tem se notabilizado pelo forte apelo na educação, colocando-a como uma peça-chave na imposição dessa nova ordem. Assim, a compreensão dos novos rumos do país não pode ser feita sem o debate acerca de suas implicações educativas, as quais, uma vez articuladas ao mundo do trabalho, permitem analisar profundamente o panorama das mudanças estruturais postas em curso.
Porém, antes de adentrar nessa problemática, e a fim de melhor situá-la no momento em que estamos, faz-se necessário discutir o percurso percorrido pelos vínculos entre trabalho e educação, o qual nos conduzirá, inevitavelmente, ao estudo a respeito da precarização proletária e seu mais recente movimento de uberização.
Nas últimas décadas, a primazia do trabalho para a ordenação social vem sendo contestada fortemente, sob o argumento de se configurar numa teorização ultrapassada e anacrônica. No entanto, as configurações mais recentes e as tendências de desenvolvimento do mundo do trabalho e suas consequências apontam justamente para a direção oposta, em especial no Brasil, onde a retomada do projeto ultraliberal, após um átimo de iniciativas progressistas, vem trazendo sensíveis mudanças na cena trabalhista do país.
Nesse contexto, cabe mais uma vez retomar a tradição marxista e relembrar os pontos nela que centralizam o trabalho dentro do conjunto da práxis humana, e o remetem, como bem observam Braz e Netto (2012) ao campo fundamental de constituição do indivíduo no que tange ao seu ser social. Seguindo por esse percurso, ambos enfatizam que foi devido ao trabalho que,
Os membros dessa espécie [humana] se tornaram seres que, a partir de uma base natural (seu corpo, suas pulsões, seu metabolismo etc.), desenvolveram características e traços que os distinguem da natureza. Trata-se do processo no qual, mediante o trabalho, os homens produziram-se a si mesmos (isto é, se autoproduziram como resultado de sua própria atividade) tornando-se – para além de seres naturais – seres sociais. Numa palavra, este é o processo da história (grifo do autor): o processo pelo qual, sem perder sua base orgânico- social, uma espécie da natureza constituiu-se como espécie humana
– assim, a história aparece como a história do desenvolvimento do ser social, como processo da humanização, como processo da produção da humanidade através da sua autoatividade; o desenvolvimento histórico é o desenvolvimento do ser social (BRAZ e NETTO, 2012, p. 49/50).
Na concepção advinda do pensamento de Marx, não é possível pensar o surgimento do ser humano sem estabelecer o trabalho como seu elemento básico de formação. Daí que não se trata de dizer que a sociedade simplesmente se reúne pelo trabalho no momento presente, nem tampouco que este é um determinante que está sendo ultrapassado. O trabalho, na verdade, é a forma própria de toda realização dos sujeitos, que apenas podem também modificar-se mediante sua atuação. Logo, quaisquer que sejam as mutações ocorridas no tecido social, estas têm vazão apenas se encontrarem no trabalho o ponto de esteio e sustentação que permita perpetrar tais mudanças. Do contrário, não se pode falar nem mesmo de um paradigma modificação, uma vez que a principal força atuante do processo encontra-se inerte.
Logo, para se entender as condições presentes no plano social, a análise das novas configurações do trabalho é de uma relevância imprescindível. Obviamente, isso inclui também, como componente de articulação, os processos educativos, que, ao longo de seu desenvolvimento, sofreram forte influência das mudanças ocorridas no mundo produtivo.
É o que bem observa o sociólogo Ricardo Antunes, ao articular as relações entre educação e trabalho, as quais, dentro da sociedade capitalista, adquiriram um imbricamento que torna ambos os campos interdependentes e colaboradores entre si da ordem econômica dominante.
De acordo com sua análise, tais aproximações tiveram uma forte intensificação devido ao advento do modelo taylorista-fordista na produção, que passou a demandar um maior apuro quanto aos padrões formativos dos funcionários da fábrica. Com sua proposta de divisão rigorosa de tarefas e separação entre planejamento e execução, surgiu a necessidade de se gerar, no seio das camadas trabalhadoras, um conjunto de indivíduos aptos a atuar conforme essas designações. Obviamente, no que diz respeito às classes populares, caberia sobretudo torná-las capazes de executar funções especializadas e mecânicas, sem maior apuro teórico ou científico. Assim, dessa maneira, o
taylorismo-fordismo colocou como horizonte um projeto de educação baseado em escolas técnicas ditas “profissionalizantes”, cujo mote é formar os/as estudantes para o trabalho assalariado, ou melhor, formar a sua força de trabalho para o mercado, sendo que esse conhecimento deveria ser consumido pelas empresas como capital variável, como trabalho concreto urdido em trabalho abstrato. (ANTUNES, 2017, p. 2).
Trazendo, como consequência direta, uma nova configuração para os sistemas e tendências educativos:
Dentro dessa finalidade, o capitalismo concebido pelo desenho tayloriano-fordista colocou como horizonte à educação uma pragmática da especialização fragmentada. Uma educação moldada por uma concepção técnica que direciona a qualificação do trabalho nos limites da coisificação e da fragmentação impostas pelo processo de trabalho capitalista (ANTUNES, 2009a). A “escola ideal” para essa qualificação é a que promove o desmembramento entre conceito, teoria e reflexão (o trabalho intelectual), de um lado, e prática, aplicação e experimentação (o trabalho manual), de outro. (ANTUNES, 2017, p. 2).
Tal quadro posteriormente sofreu alterações, acompanhando o ritmo das mudanças que se foram instalando na esteira das inovações inseridas na ordem produtiva. Assim, com o advento da gestão toyotista, pautada nos princípios da acumulação flexível, que visava a atender uma lógica não mais de superprodução e sim de geração de mercadorias por demanda, houve a necessidade de se construir num novo modelo de trabalhador, muito mais afinado com as novidades científicas e com capacidades comportamentais destacadas como iniciativa, empreendedorismo, polivalência e potencial de liderança, o que, para além de um vocabulário atrativo,
significava apenas um novo nome para o aprofundamento das formas de exploração da mais-valia.
Mais uma vez, as repercussões educativas são evidentes. Propostas voltadas para o aprender a aprender, que colocam o aluno apto a enfrentar o ritmo acelerado das novidades da tecnologia, começam a se tornar a palavra de ordem. O contato com aparelhos eletrônicos e digitais é estimulado desde cedo, bem como despontam as aulas interativas e os cursos que visam desenvolver a capacidade de invenção e a competitividade, buscando tornar os sujeitos cada vez mais adequados e atender as necessidades ascendentes na fábrica.
Paralelamente a esses processos, e concorrendo para o estabelecimento de uma nova razão educativa, prolifera um movimento de expansão do mercado de serviços, que passa a ocupar um lugar cada vez mais importante no mundo econômico, de tal maneira que muitos autores começam a falar de uma sociedade pós-industrial, ou seja, em que a organização da fábrica possui um impacto secundário nas diversas transformações da sociedade, ficando estas subordinadas sobretudo ao que ocorre nesses novos ramos de atividade econômica, no que a educação também atua sob esse conjunto novo de diretrizes fundamentais.
Seguindo por esse percurso, surge aquilo que foi denominado por alguns como “sociedade do conhecimento”, produto de uma era pós-industrial, em que se valorizariam, sobretudo, os conhecimentos adquiridos e a criatividade, em detrimento da mecanização de tarefas. Nesse panorama, também o ambiente e as relações de trabalho deveriam ser modificados, a fim de não colocar limites nas práticas inventivas, promovendo um forte movimento de flexibilização de normas.
Mas, o que se anunciava o alvorecer de uma época de ouro revelou-se apenas mais um agravante na já combalida condição dos trabalhadores. Uma perda progressiva de direitos e garantias sociais instalou-se em larga escala, resultando em um processo global de dilapidação do estatuto econômico da classe proletária.
Surgem daí novas configurações que, segundo Guy Standing, culminam na formação do precariado, o qual, conforme sua leitura, pode ser definido da seguinte maneira:
o precariado poderia ser descrito como um neologismo que combina
o adjetivo “precário” e o substantivo relacionado “proletariado”. Neste livro, o termo é frequentemente usado nesse sentido, embora tenha limitações. Podemos afirmar que o precariado é uma classe-em-
formação, se não ainda uma classe-para-si, no sentido marxista do termo. (2014, p. 23).
Na visão de Standing, o precariado, que à época de seu texto ele constatou como ainda em formação, deveria ser assumido como uma classe nova e perigosa, posto ser menos organizada que o proletariado tradicional, e ser submetida a condições muito mais aviltantes que esta, no que a revolta se mostrava não só iminente, como também de consequências imprevisíveis.
No entanto, a visão de Standing está longe de ser unânime. Há questionamentos que apontam não apenas para determinadas fragilidades de sua construção conceitual, como também põem em dúvida a validade de se procurar uma nova definição para o fenômeno em voga, o qual, em visões dissonantes, é tido como já incorporado em definições consagradas da análise social.
Mais uma vez, recorremos a Ricardo Antunes, que, em O privilégio da servidão, apresenta suas oposições à categoria apresentada por Standing, a qual, segundo ele, advém de um erro de concepção, em que:
com esse desenho crítico - ainda que a descrição empírica de Standing seja ampla e com informações relevantes - sua análise confere estatuto de classe ao que de fato é uma parcela do proletariado, e a mais precarizada, geracionalmente jovem, que vive de trabalhos com maior grau de informalidade, muitas vezes realizando atividades parciais, por tempo determinado ou intermitente. A resultante desse equívoco analítico levou o autor, inclusive, a concebê-la como “uma classe perigosa”, “em si” e “para si” diferenciada da classe trabalhadora. (ANTUNES, 2018, p. 58).
A posição de Antunes é bastante incisiva. A classe intitulada precariado na verdade é apenas um recorte do antigo conjunto proletário, e que já poderia ser identificado em épocas anteriores, só que com a diferença de que agora se encontra em processo de franca expansão, ou seja, os movimentos de precarização do trabalho estão numa linha ascendente. Assim, dentro do conjunto dessas razões, segundo o sociólogo brasileiro, o entendimento acerca do precariado se forma de maneira bastante equivocada.
De qualquer forma, o que fica claro, tanto nas discussões de Standing quanto de Antunes, é que há, dentro do cenário mundial do mundo do trabalho, uma progressão contínua das iniciativas de supressão dos direitos dos trabalhadores, bem como o agravamento de suas condições de atuação e de oportunidades, gerando uma
condição cada vez mais aviltante e propensa a produzir um número cada vez maior de mazelas sociais.
Tais processos, já emergidos e consolidados no século XX, adquirem, com o desenvolvimento das teletecnologias, novos patamares que apontam para uma completa dissolução dos vínculos basilares que orientam as relações outrora constitutivas do trabalho, cujo resultado é o abandono das políticas de seguridade social que antes ofertavam garantias mínimas para os trabalhadores.
Agora, o que se encontra em evidência é o movimento intitulado uberização, cujo nome alude à famosa empresa ligada ao modelo de economia de compartilhamento, na qual se usa “a internet para conectar consumidores com provedores de serviço para trocas no mundo físico, como aluguéis imobiliários de curta duração, viagens de carro ou tarefas domésticas” (SLEE, 2017, p. 21). No caso da Uber, o serviço oferecido é o de intermediação entre motoristas e passageiros, que podem trafegar pela cidade a custos módicos, enquanto do outro lado tem-se um indivíduo com a opção de utilizar seu carro para adquirir renda. Um cenário bastante animador, não fosse pelo fato de que o que se esconde por trás dele é uma grande corporação cuja finalidade é aquela comum a todas as suas semelhantes, ou seja, a de obter o máximo de lucro para suas operações mediante a exploração dos trabalhadores.
A diferença, no caso, encontra-se nos meios empregados para atingir esse objetivo, que são, se não inéditos historicamente, ao menos articulados de maneira inovadora. A empresa consegue combinar de modo surpreendentemente novo a ausência de regulação e taxas pelos órgãos competentes e uma contínua exploração e controle via tecnologia do regime de trabalho, no que o motorista, colocado pretensamente na condição de autoempreendedor, vê-se obrigado a seguir normas extremamente rígidas quanto as suas atividades, sob pena de não ser mais admitido como membro da suposta comunidade livre. Tudo isso com a vantagem – para a empresa - de não ter de arcar com nenhuma das garantias trabalhistas, uma vez que “a classificação como contratante independente livra a companhia de ter de pagar por direitos trabalhistas e de ter de respeitar os padrões de emprego. O risco é inteiramente empurrado para o contratado” (SLEE, 2017, p. 134).
O que é importante observar no sistema envidado pela Uber é o quanto este modifica um item estrutural que irá ter consequências imensas para a organização do
mundo do trabalho. Em termos estritos, o que ela promove como grande mudança é a supressão - tanto em termos jurídicos, como também personalísticos - da figura dos patrões. Logo, cria-se um mecanismo no qual não só não há a quem recorrer para garantir determinados direitos inerentes às classes trabalhadoras, como também não aparece mais o responsável por obter ganhos a partir da exploração do trabalho. Sobre a tela dos telefones móveis, o que se tem é tão apenas um aplicativo e seus comandos, e não mais um chefe. Dessa forma, tudo o que resta ao motorista é conformar-se ao que é estabelecido por essa mão invisível, ao passo em que deve ele próprio estabelecer-se como o seu único provedor aceitável, a quem compete não apenas conceder sua força produtiva, mas também providenciar os meios para sua atividade - compra e manutenção de automóveis, combustíveis e outros.
Como resultado, o que se tem é a diminuição praticamente absoluta de toda e qualquer garantia de bem-estar para os que atuam como operários nesse negócio. Férias e licenças médicas sequer podem ser pensadas. Muito menos é possível exigir a adesão das empresas a um sistema de aposentadoria. Tudo vai por conta própria. E, uma vez estando incapacitado para o trabalho, muitas vezes devido a este, o que resta ao trabalhador é tão somente relegar-se ao mais completo abandono, enquanto os executivos de compartilhamento ampliam vertiginosamente suas finanças.
Obviamente, a expansão desse modelo, por força de suas vantagens para o capital, tem-se tornado endêmica e atingido setores cada vez maiores da economia, o que, para que ocorra de maneira mais eficiente, requer que sejam repensadas as condições legais e políticas das diversas sociedades. No Brasil, tais processos de ajustamento tiveram início em 2016, numa ação que envolveu e continua a envolver de maneira coordenada mudanças no campo da educação e das leis trabalhistas, as quais, quando postas em exame, revelam um projeto sólido de recrudescimento do trabalho precarizado, cujo expansionismo encontra amparo na ascensão em larga escala das crenças ideológicas ultraliberais.
Tão logo assumiu a presidência da república, em 12 de maio de 2016, a gestão liderada por Michel Temer tratou de pôr em prática o projeto de instituir de forma contundente as políticas ultraliberais no Brasil, as quais estavam orientadas, como
não poderia deixar de ser, por uma forte redução dos investimentos públicos e por iniciativas que visavam desregular os diversos setores da economia, em especial no que dizia respeito à condição dos trabalhadores, num movimento que teve como fato principal a reforma trabalhista, assinada em julho de 2017.
Entretanto, meses antes desse evento crucial para a inserção do país nos rumos da uberização, um outro fato seria precursor desse cenário social precarizado. Trata-se da Medida Provisória 746, publicada em 23 de setembro de 2016, posteriormente convertida na Lei 13.415, e que promovia a chamada reforma do ensino médio, a qual, diferentemente da trabalhista, foi posta em curso de maneira completamente vertical, sem a menor abertura para o diálogo com os diversos segmentos da sociedade.
Qual o sentido de tal atitude? Se considerarmos o contexto geral das mudanças pretendidas, esta ruma para um caminho bem definido. A reforma do ensino médio é estratégica não somente para inserir as políticas educativas na ordem ultraliberal do trabalho, mas também para sedimentar o terreno a fim de criar as condições formativas e culturais para que o ideário político-econômico pretendido fosse posto em vigor, no que as posições expressas na MP servem como evidência.
É o que se mostra desde a exposição de motivos, em que são evocadas as razões pelas quais a MP está sendo implementada, e onde aparece a intenção clara de adequar o que está sendo ensinado nas escolas com as diretrizes do mundo do trabalho. Para tanto, usa-se como argumento a percepção do estudante, ou seja, daquele que é o mais interessado no processo:
Atualmente o ensino médio possui um currículo extenso, superficial e fragmentado, que não dialoga com a juventude, com o setor produtivo, tampouco com as demandas do século XXI. Uma pesquisa realizada pelo Centro Brasileiro de Análise e Planejamento – Cebrap, com o apoio da Fundação Victor Civita – FVC, evidenciou que os jovens de baixa renda não veem sentido no que a escola ensina. (EM 00084/2016/MEC).
Trata-se de uma estratégia bastante problemática, quando analisada mais de perto. É bastante óbvio concluir que ao aluno de baixa renda o ensino oferecido se revela desconectado com suas realidade e expectativa. Mas essa é uma consideração que deriva de diversos outros fatores, sendo que o principal deles é o estado de vulnerabilidade em que se encontra. Ao estudante que está em situação mais favorável, que tem meios para estudar visando ao ingresso no ensino superior e não
precisa se preocupar de pronto em obter renda, a impressão sobre os conteúdos ministrados pode ser bastante diferente, e rumar para uma aceitação bem mais pacífica do ensino oferecido. Contudo, para além dessa discussão, o que é preciso destacar aqui é que tais justificativas presentes no texto são indicadores inequívocos de fortes influências extraeducativas em sua redação.
Essas mesmas influências se alastram pelas determinações mais pragmáticas da nova lei, que estabelecem um forte enxugamento do currículo a ser percorrido, no qual apenas as disciplinas de matemática, língua portuguesa e língua inglesa permanecem como obrigatórias. Obviamente, a opção pelo idioma estrangeiro obedece ao princípio de inserção do aluno no mundo tecnológico e da cultura dominante, para os quais o inglês é a língua oficial. Seguindo essa linha, disciplinas de imersão crítica aos processos sociais foram negligenciadas, notadamente sociologia e filosofia, cuja presença passou a depender do esforço diretivo das gestões estaduais. Como se vê, o que persevera é a visão unívoca e inconteste de um modelo de escola plenamente direcionado à ordem vigente.
No lugar de uma educação pluralista e ampla, serão oferecidas ao aluno visões parciais, travestidas de escolhas por interesse. Além dos reduzidos conteúdos da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), o aluno poderá seguir por um dos chamados itinerários formativos - linguagens, matemática, ciências da natureza, ciências humanas e formação profissional. No entanto, o que não foi dito à sociedade nas propagandas governistas é que a oferta de tais itinerários dependerá das condições de cada sistema de ensino, que o fará mediante sua conveniência. Assim, dificilmente os estudantes poderão de fato optar livremente por qual percurso seguir, recebendo na verdade aquilo que tão só lhes é oferecido, de maneira assumidamente restrita.
No que tange à formação profissional, um fato chama a atenção. O texto considera que poderão ministrar aulas “profissionais com notório saber reconhecido pelos respectivos sistemas de ensino, para ministrar conteúdos de áreas afins à sua formação ou experiência profissional, atestados por titulação específica ou prática de ensino em unidades educacionais” (Art. 6º, Lei 13.415), o que abre caminho não só para que indivíduos sem a devida formação docente atuem nos sistemas de ensino, fato que em si já é um problema, mas também definindo as diretrizes a serem adotadas nos processos formativos daí por diante, e que irão ter como foco tão
somente o desenvolvimento da competência técnica, do saber fazer, em detrimento do debate sobre o significado social das práticas relativas às diversas profissões, as quais exigem uma muito maior imersão em problemas teóricos e aproximativos às questões sociais, o que, a considerar o perfil permitido dos professores ingressos, não será priorizado.
Eis aí um aspecto que se delineia como um ente totalizante do sentido da reforma que ora se implementa. A compreensão do processo educativo enquanto práxis humanizadora encontra-se obliterada pelo lema da aplicabilidade dos conhecimentos adquiridos, numa reedição ligeira e anacrônica do tecnicismo dos anos de chumbo, grande responsável por acentuar as desigualdades educativas até hoje vigentes.
Com isso, tem-se sedimentado o terreno ideológico em que irá avançar o projeto de repressão trazido pela nova legislação trabalhista, a qual não encontrará na população, devido ao cenário elaborado, focos significativos de resistência. Como bem nos lembra Bourdieu (2012), esse é um tipo de tarefa que se realiza sempre mediante a obtenção de anuência por parte dos oprimidos, que, no caso em questão, uma vez estando habituados à lógica exploratória no espaço da escola, naturalizam- na e não se afetam em reproduzi-la no âmbito do trabalho, razão por que as alterações nos dois âmbitos estão sendo trabalhadas em conjunto.
Nisso se identificam algumas relações, afora aquelas mais de fundo, diretas entre a organização do ensino médio proposto e as normas para o trabalho definidas na lei Nº 13.467, de 13 de julho de 2017, que também se encontra pautada no princípio de uma suposta flexibilização, que nada mais é que uma forma de fazer com que o trabalhador ofereça mais trabalho em condições menos favoráveis, tal como na escola os estudantes precisarão ter um aprendizado melhor sem as mesmas condições e conteúdos de ensino. De igual maneira, a qualificação deficitária obtida na escola se coaduna com o tipo de trabalhador que passa a ser exigido, cuja desvinculação àquele que o emprega faz com que este deva procurar estar apto a desempenhar suas funções por conta própria, uma vez que o frágil vínculo entre eles não abre espaço para o custeio de iniciativas de capacitação profissional.
Por outro lado, a oferta de ensino em EaD prevista nas diretrizes curriculares nacionais para o ensino médio, homologadas por meio da Resolução 03, de 21 de novembro de 2018, constitui um símile das regulamentações quanto ao teletrabalho e
à jornada intermitente, em que se é convocado ao posto tão somente quando houver necessidade, tal como o aluno em disciplinas a distância. Com isso, constroem-se indivíduos comportamentalmente adequados a conviver com uma oferta de condições favoráveis cada vez mais escassa e conforme interesses que lhes são alheios.
Já o afrouxamento das normas de ingresso na docência, que permite admitir professores com base no notório saber para aplicar determinadas formas de ensino técnico, relaciona-se bem às regras de terceirização, em que o trabalhador é convocado por uma empresa mediadora para cumprir uma determinada atividade, sem o mínimo de observância às suas aptidões por parte daqueles que recebem o serviço prestado, interessando tão somente o resultado final, que é o ganho econômico pretendido.
Todas essas alterações, todos esses movimentos de precarização da escola e do trabalho, rumam para o mesmo e único objetivo, traçado desde os primórdios da sociedade do capital: a manutenção da taxa de lucro por meio da produção de mais- valia absoluta e relativa, a qual vem se tornando uma tarefa cada vez mais difícil devido aos limites estruturais do capitalismo (NETTO e BRAZ, 2012), o que vem demandando medidas cada vez mais radicais e deletérias no que diz respeito à situação geral dos trabalhadores.
Se os professores, que também não escapam a essa lógica exploratória, irão ceder às pressões impostas por esse estado de forças, ainda não é possível prever. Contudo, certo é que estes se constituem como a última linha de resistência quanto a esses processos, no que a crítica e a organização de classe formam as armas mais incisivas e transformadoras.
Ao tempo em que o presente texto era redigido inicialmente, tramitava em sua fase decisiva no senado federal a reforma da previdência, a qual teve sua promulgação efetivada em 12.11.2019. Com ela, não só o presente, mas principalmente o futuro dos trabalhadores será amplamente afetado pelo ciclo de reformas ultraliberais instituído no país nos últimos anos, o qual, além de prover uma trajetória degradante no mundo do trabalho, também comprometerá por completo os anos que restam aos indivíduos em suas aposentadorias.
Desse modo, fecha-se um círculo de precarização do trabalho, que agora terá destituído as elaborações do estado de bem-estar social, deixando em seu lugar tão somente um rastro de empobrecimento e de produção contínua de desigualdades entre a maioria esmagadora dos trabalhadores e a mínima classe dos donos do capital.
Contudo, ainda é cedo para afirmar que tal movimento encontra-se plenamente estabelecido. Em países onde tais reformas foram implantadas há mais tempo, têm ocorridos protestos cada vez mais incisivos contra elas. Assim, ainda existe um largo horizonte de disputa. Porém, quaisquer que sejam as perspectivas, a educação seguirá sendo o alicerce de seu advento, para o qual se procurará sempre, por meio de mudanças no sistema educativo, direcionar os rumos da nação. Nisso, tem-se comprovada de maneira inequívoca sua importância econômica e política, para a qual os educadores precisam estar atentos permanentemente.
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V.18, nº 37, set-dez (2020) ISSN: 1808-799 X
Eraldo Souza do Carmo2
Este artigo tem a finalidade de analisar as implicações da estrutura de financiamento da educação à garantia do direito a educação. Problematizam-se as bases de cálculo para a distribuição de recursos da educação que ainda não são suficientes para superar as desigualdades educacionais regionais, principalmente dos municípios com pouca capacidade de arrecadação. As análises têm como base uma revisão teórica e a legislação educacional no que se refere às bases de financiamento da educação. Denota-se que as estratégias dos governos com a criação dos fundos para realizar a distribuição dos recursos da educação não contribuíram para elevar a qualidade da oferta educacional como tem sido propagado.
LA FINANCIACIÓN DE LA EDUCACIÓN Y LAS IMPLICACIONES PARA GARANTIZAR EL DERECHO Y LA CALIDAD DE LA EDUCACIÓN
Este artículo tiene como objetivo analizar las implicaciones de la estructura de financiamiento de la educación para garantizar el derecho a la educación. Se problematizan las bases de cálculo para la distribución de los recursos educativos, que aún no son suficientes para superar las desigualdades educativas regionales, especialmente en municipios con poca capacidad recaudatoria. Los análisis se basan en una revisión teórica y normativa educativa en cuanto a las bases para el financiamiento de la educación. Se observa que las estrategias de los gobiernos con la creación de fondos para llevar a cabo la distribución de los recursos educativos no contribuyeron a elevar la calidad de la oferta educativa como se ha propagado.
FINANCING EDUCATION AND THE IMPLICATIONS FOR GUARANTEING THE RIGHT AND QUALITY OF EDUCATION
Abstract:
This article aims to analyze the implications of the education financing structure in order to guarantee the right to education. The calculation bases for the distribution of education resources are problematized, which are still not enough to overcome regional educational inequalities, especially in municipalities with little tax collection capacity. The analyzes are based on a theoretical review and educational legislation with regard to the bases for financing the education. It is noted that the strategies of governments with the creation of funds to carry out the distribution of education resources did not contribute to raising the quality of educational offer as it has been propagated.
1Artigo recebido em 01/06/2020. Primeira avaliação em 14/06/2020. Segunda avaliação em 17/07/2020. Terceira avaliação em 10/08/2020. Aprovado em 03/09/2020. Publicado em 25/09/2020.
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v18i37.42969.
2Doutor em Educação pela Universidade Federal do Pará. Professor da Universidade Federal do Pará (Campus de Cametá), Pará / Brasil. E-mail: eraldo@ufpa.br ORCID: 0000-0003-4824-8016. Lattes: http://lattes.cnpq.br/4280135157998138.
O artigo busca problematizar a estrutura de financiamento da educação brasileira definida pela Constituição Federal (CF) de 1988 e, posteriormente, com a criação da política de Fundos enquanto estratégia do governo federal para corrigir as distorções nos recursos destinados à educação. Aspectos que não se tornaram tão eficazes, tendo em vista que essa política não representou recursos adicionas ou novas fontes de recursos à educação. Ainda que ocorra a complementação de recursos da União e as transferências complementares diretas aos municípios por meio de programas educacionais, esses não são, no entanto, recursos fixos nos caixas dos municípios.
Desta maneira, o financiamento da educação tem fomentado o debate das políticas educacionais nos últimos anos, tendo em vista assegurar o direito à educação, principalmente às populações em condições de vulnerabilidade social. Essas questões se refletiram na centralidade das discussões quando da aprovação do Plano Nacional de Educação (PNE), Lei nº 13.000/2014, quanto ao investimento de 10% do PIB até o final do período a que se refere o plano (BRASIL, 2014).
Entretanto, discutir os aspectos e a estrutura de financiamento da educação brasileira requer compreender as responsabilidades da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios com os processos educacionais. A LDB 9394/1996 assegura que cabe à União a coordenação da política nacional de educação, articulando os diferentes níveis e sistemas, além de ter função normativa, redistributiva e supletiva em relação às demais instâncias educacionais (§ 1º do Art. 8º) (BRASIL, 1996).
Dentre as funções da União é importante destacar que o art. 9º, inciso III, assegura que ela deve “prestar assistência técnica e financeira aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios para o desenvolvimento de seus sistemas de ensino e o atendimento prioritário à escolaridade obrigatória, exercendo sua função redistributiva e supletiva” (BRASIL, 1996).
Essa forma de distribuição das competências pelos sistemas de ensino, conforme preconizou a LDB 9.394/1996, se reflete também na distribuição dos recursos e nas responsabilidades que asseguram o direito à educação para as populações. Entretanto, esse processo, segundo estudiosos da educação, expressa contradições. Para Castro (2011), ele representou avanço ao deixar expressas as responsabilidades de cada ente federado com o ensino, cabendo ao município a
educação infantil, a educação básica, e a EJA. Esta responsabilidade municipal também é item de questionamento, ou seja, até que ponto os municípios conseguem responder de forma satisfatória às suas populações?
Discutir financiamento remete a pensar no conjunto de determinadas despesas, levando-se em conta a capacidade de poder financiá-las. Na educação, esse processo não é diferente e trata-se de uma política de direito social. Sendo assim, não se pode definir um beneficiário, já que todos o são.
É a partir dessa assertiva que situamos o debate do financiamento da educação, mecanismo principal de execução das políticas educacionais, que, em tese, devem garantir a efetivação do direito outorgado constitucionalmente. A educação, enquanto um direito de todos, deve ser assegurado pelo Estado e pela família, como define o artigo 205 da CF/1988. Neste aspecto, a colaboração da sociedade deve envidar esforços para que ela se efetive como direito, perpassando, inclusive, pelos aspectos financeiros. Esses esforços devem se dirigir ainda para o atendimento das condições de oferta da educação, descritas no artigo 206 da Constituição Federal de 1988, como expressam, a título de exemplo, os incisos I e VII: “igualdade de condições para o acesso e permanência na escola e garantia de padrão de qualidade”. (BRASIL, 1988).
Dessa forma, para a garantia do direito à educação, os responsáveis pela oferta devem atentar-se para os diversos aspectos que abarcam os interesses do Estado, dos alunos, da sociedade e dos profissionais da educação, buscando valorizar tanto o aspecto formativo quanto o salarial.
É importante reforçar que os gestores devem prover, em condições de igualdade, o acesso e a permanência dos alunos na escola, bem como a qualidade desse acesso e permanência baseados no princípio da qualidade, a fim de evitar as desigualdades, principalmente em um país como o Brasil, que possui dimensões continentais. A esse respeito, Sena (2014, p. 270) destaca que: “[...] a qualidade da educação integra o núcleo essencial do direito à educação, já que a garantia do padrão de qualidade é um princípio a partir do qual o ensino deve ser ministrado”. Depreende-se, com isso, que o direito à educação não se encerra na garantia do
acesso, mas estende-se à permanência, pois deve ser considerado o aspecto da qualidade enquanto obrigação constitucional, conforme está na CF/1988.
De forma legítima, o direito à educação, já inscrito na CF/1988, foi ratificado em outros termos jurídicos brasileiros, como no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) – Lei nº 8.069/1990 (BRASIL, 1990) e na LDB 9.394/1996 (BRASIL, 1996). No
entanto, a garantia dos direitos nos marcos jurídicos, por si só, não é sinônimo da melhoria da qualidade na educação; é preciso, sim, um conjunto de políticas educacionais para que esses direitos sejam efetivados. Nessa mesma perspectiva, Rezende Pinto (2014, p. 42) destaca que:
[...] a declaração dos direitos sociais na Lei Maior brasileira, embora louvável e de suma importância, não foi suficiente para garantir a sua efetivação e, por conseguinte, para a concretização de uma sociedade mais livre, justa e solidária, como preconiza nossa carta constitucional.
A efetivação do direito à educação, como destaca a autora, ainda é um processo que está em disputa na sociedade, a fim de garantir condições de igualdade a todos os cidadãos. É importante destacar que a LDB (9.394/1996) está em plena sintonia com a CF/1988, no que concerne à garantia do direito à educação.
Apesar da importância desses marcos jurídicos, segundo Cruz (2011, p. 82), ainda são frágeis essas garantias do direito à educação tendo em vista que não garantem que os governos o efetivem, já que “as condições materiais que poderiam viabilizar a implementação do direito à educação ainda são muito genericamente definidas, principalmente frente à insuficiência de recursos para universalizar e qualificar a oferta educacional pública”.
A referida LDB, em relação à educação pública, avança ao definir atribuições e responsabilidades aos entes federados com cada nível de ensino e ao promover a organização e a oferta da educação básica (BRASIL, 1996). Entretanto, segundo Cruz (2011), a distribuição das competências entre os entes federados pelo ensino teria um efeito inverso no regime de colaboração e compartilhamento das responsabilidades, dados os desníveis socioeconômicos regionais e intrarregionais. É compreensível a preocupação da autora, uma vez que, na divisão de competências dos níveis do ensino, coube aos municípios as maiores responsabilidades com a oferta, ou seja, são eles os responsáveis pela Educação Infantil e pelo Ensino Fundamental, além da Educação Especial e EJA, sendo o ente federado que mais garante essa oferta.
A título de exemplo, o Censo Escolar de 2018 para a Educação Básica registrou um total de 48.455,867 (quarenta e oito milhões quatrocentos e cinquenta e cinco mil oitocentos e sessenta e sete) matrículas. Desse total, 47,7%, estavam situadas nas redes municipais, 32,9% nas redes estaduais, 18,6% nas redes privadas e 1% na rede federal. (INEP, 2018).
Esses dados evidenciam o tamanho da responsabilidade que os municípios têm para com a oferta e a garantia do direito à educação. A propósito, eles têm atribuições obrigatórias, como a oferta de ensino para a população de 4 a 14 anos de idade, o que corresponde à Pré-Escola e ao Ensino Fundamental conforme art. 4º, inciso I da LDB 9394/1996 (BRASIL, 1996).
A concentração de matrículas nas redes municipais acarreta muito mais responsabilidades e custos financeiros para esses entes. Com efeito, o ensino em creche, embora seja facultativo, é solicitado fortemente que seja ofertado nos estabelecimentos públicos atendendo a forte cobrança social. E os municípios tentam suprir também, embora em menor escala, a essa demanda social.
Do ponto de vista das demandas da sociedade, a mesma não está interessada em saber de quem é a responsabilidade de atendimento de seus direitos nem de onde provêm os recursos para atendê-los, ela apenas exige seus direitos, pois “[...] cada sociedade incorpora o reconhecimento de determinadas necessidades educacionais e que o Estado deva assumir certa responsabilidade de resposta” (CASTRO, 2007, p. 860).
Nesse sentido, tem recaído sobre os municípios uma cobrança maior da sociedade para com a oferta de ensino, a fim de garantir o direito à educação. Essa é a forma que tem pautado as relações dialéticas entre as iniciativas governamentais e os interesses sociais pela ampliação das políticas educacionais, para garantir o acesso de todos à escola, independentemente de ser obrigatória ou facultativa. Entretanto, não se efetiva um direito sem os recursos financeiros necessários para custear as políticas de acesso. Assim, as municipalidades, principalmente as das regiões Norte e Nordeste do país, se encontram impedidas de prover uma educação de qualidade (CRUZ, 2011).
Portanto, o modelo de federalismo do Estado brasileiro tem atribuído maiores responsabilidades educacionais aos municípios, sobretudo a partir da LDB 9.394/1996. A justificativa do governo central seria a de que os governos locais seriam mais eficientes no gerenciamento das políticas educacionais, mas,
contraditoriamente, a descentralização se fez com base na centralização das definições das políticas educacionais e dos recursos financeiros (CRUZ, 2011).
Embora o repasse de recursos dos governos estaduais e da União para os municípios tenha sido crescente, a realidade demonstra que esse repasse não é suficiente. Isso, de certa forma, inviabilizou a autonomia dos munícipios para definirem suas políticas e cumprirem com as responsabilidades que lhes foram atribuídas.
O centro das discussões dos últimos anos está definido no que se refere a oferta de ensino, aliado à qualidade da educação. Esses são direitos assegurados pela CF/1988, expressos no artigo 206 (BRASIL, 1988), e também no artigo 4º da LDB 9394/1996 (BRASIL1996). Destaca-se ainda que o Novo PNE, Lei nº 13.005, definiu como sua sétima meta fomentar a qualidade da Educação Básica em todas as etapas e modalidades de ensino (BRASIL, 2014).
Entretanto, para se alcançar essa premissa, é preciso entender o quanto os governos estão dispostos a investir no custo-aluno em suas diversas realidades para que a qualidade do ensino seja materializada e saia do nível das intencionalidades e dos planos. É conveniente compreender a estrutura de financiamento da educação na legislação brasileira, uma vez que são esses instrumentos que asseguram as receitas para a União, Estados e Municípios implementarem as políticas educacionais.
Nessa perspectiva, o marco estrutural do financiamento da política educacional brasileira, segundo Castro (2011), está constituído pela CF/1988, pelo ECA (Lei nº 8.069/1990), pela LDB (Lei nº 9.394/1996), pela EC nº 14/1996, pela EC nº 53/2006 e a de nº 59/2009, e por um conjunto de normas infraconstitucionais e resoluções do Conselho Nacional de Educação. Esse arcabouço jurídico fixa, de acordo com o autor, a atual estrutura de responsabilidades e competências para a oferta da educação no Brasil.
Para Castro (2011), ao menos a partir dos aspectos constitucionais, o direito básico à educação está bem definido para o atendimento à população. Entretanto, para além do que está assegurado na legalidade do direito, é preciso avançar no campo do debate, para que o Estado implante políticas que considerem a diversidade
socioeconômica e a diversidade geográfica do Brasil, pois, assim, poderão ser reduzidas as desigualdades educacionais.
Em face disso, a CF/1988 estabeleceu responsabilidades dos entes federados para com o financiamento da educação, definindo os percentuais que devem aplicar na Manutenção e Desenvolvimento do Ensino (MDE). Dessa forma, o artigo 212 assegura que a União aplicará, anualmente, nunca menos de 18% (dezoito por cento), enquanto que os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, devem aplicar 25% (vinte e cinco por cento), no mínimo, da receita resultante de impostos (BRASIL, 1988).
Ademais, a CF/1988 assegurou o salário-educação, proveniente do recolhimento da contribuição social das empresas, que complementa o financiamento da educação brasileira (BRASIL, 1988, § 5º, Art. 212). A EC/53 no artigo 1º § 6º definiu que “as cotas estaduais e municipais da arrecadação da contribuição social do salário- educação serão distribuídas proporcionalmente ao número de alunos matriculados na educação básica nas respectivas redes públicas de ensino”. (BRASIL, 2006).
Essas prerrogativas asseguradas pela CF/1988 sobre o financiamento da educação foram, segundo Castro (2011), ratificadas pela LDB 9394/1996, em seu artigo 69, ao apontar a proveniência dos recursos para a manutenção e desenvolvimento do ensino público no país (BRASIL,1996). A fim de evidenciar a estrutura do financiamento da educação no Brasil e a proveniência das receitas dos entes federados, são apresentados dados no Quadro 1.
Observa-se nele, que a estrutura do financiamento da educação no país está, portanto, concentrada na captação de recursos por meio da vinculação de impostos de forma obrigatória da União, dos Estados e dos Municípios. Identificam-se, nesse mesmo quadro, os impostos vinculados à educação de cada ente federado, ou seja, os que geram receitas para a educação. Assim, há os federais, os estaduais e os municipais. Nessa estrutura tributária, os municípios saem em desvantagem, uma vez que o recolhimento de IPTU, ISS, ITBI vai oscilar muito de um município para outro, influenciando no quantitativo desequilibrado de recursos para a educação; assim como os impostos dos Estados também oscilam, refletindo em desigualdade no quantitativo de recursos de um estado para outro.
Quadro 1 – Impostos e contribuições sociais arrecadados pela União, Estados, Distrito Federal e Munícipios, que geram recursos da educação, conforme percentuais definidos a serem aplicados em MDE
União | Estados | Municípios |
1 Orçamentários (Tesouro Nacional) | Orçamentários (Tesouro Nacional) | Orçamentários (Tesouro Nacional) |
Ordinários do Tesouro | Vinculação de receita de impostos (25%) para MDE | Vinculação de receita de impostos (25%) para MDE |
Vinculação da receita de impostos (18%) para MDE | ICMS – FUNDEB (20%)=(5%) | IPTU |
(I.R) | IPVA- FUNDEB (20%)=(5%) | ISS |
(I.P.I) | ITCM - FUNDEB (20%)=(5%) | ITBI |
(I.T.R) | IRRF - FUNDEB (20%)=(5%) | IRRF |
Transferência | Transferência | |
(I.O.F | FPE - FUNDEB (20%)= (5%) | FPM - FUNDEB (20%)=(5%) |
IPI – EXP - FUNDEB (20%)=(5%) | ||
(I.I.) | IPI –EXP - FUNDEB (20%)= (5%) | ITR - FUNDEB (20%)=(5%) |
IOF - FUNDEB (20%)=(5%) | ||
(I.E) | Lei Kandir - FUNDEB (20%)= (5%) | ICMS - FUNDEB (20%)=(5%) |
IPVA - FUNDEB (20%)=(5%) | ||
(I.G.F) | Subvinculação do FUNDEB dos Estados | Subvinculação do FUNDEB |
União | Estados | Municípios |
2 Contribuições Sociais | 2 Transferências | 2 Transferências |
Salário-educação/cota federal um terço | Salário-educação/cota federal | Salário-educação/cota estadual |
Contribuição sobre o lucro líquido | Orçamentários da União | Salário-educação/cota federal |
Contribuição para a seguridade social | Aplicação do salário educação/cota federal e outras fontes do FNDE | Salário-educação/cota municipal |
Receitas brutas (prognósticos) | Orçamento do Estado | |
3 Mistos | 3 Contribuições sociais | 3 Orçamento da União |
Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza | Salário educação/cota estadual- dois terços | Aplicação do salário-educação/cota federal e outras fontes FNDE |
4 Outros | 4 Outros | 4 Outros |
Operações de crédito | Diretamente arrecadados | Diretamente arrecadados |
Renda líquida da loteria federal | ||
Renda de órgãos autônomos | Operações de créditos | Operações de créditos |
Aplicação do salário- educação/cota federal e outras fontes do FNDE | ||
Diretamente arrecadados | Diversos | Diversos |
Diversos |
Fonte: Castro (2011), EC 14/2006. Material elaborado pelo autor.
Esses recursos que compõem o fundo da educação são arrecadados, de acordo com Castro (2007, p. 858), “[...] de forma impositiva ao cidadão pelo Estado”. O financiamento é misto e complexo, porém, a lógica da vinculação “é uma das medidas políticas mais importantes para garantir disponibilidade de recursos para o cumprimento do vasto rol de responsabilidades do poder público nesta área” (CASTRO, 2011, p. 32).
Ainda no quadro 01, observa-se que a partir das receitas dos impostos vinculados à educação são gerados os recursos que financiam as políticas educacionais dos entes federados. Cumpre esclarecer que os percentuais que se destinam aos financiamentos da educação atribuídos à União (18%) e aos Estados (25%) incidem sobre as receitas líquidas dos impostos, ou seja, é somente após realizarem as transferências aos demais entes que são aplicados os devidos percentuais.
Cumpre destacar também que os recursos para financiar a educação, assegurados em sua maioria na CF/1988, são provenientes do recolhimento dos impostos e complementados com as contribuições sociais das empresas, o salário- educação. Entretanto, essa forma de calcular os recursos para a educação causa instabilidade financeira para os entes federados, uma vez que as receitas têm como termômetro o desempenho da economia do país.
Gouveia e Polena (2015, p. 256) reforçam essa ideia de que o desenho de financiamento da educação pública no Brasil, com base na vinculação de receitas dos impostos de diferentes entes federados, tem garantido uma relativa estabilidade aos investimentos em educação, mas também compreendem, da mesma forma, que “[...] em tempos de crescimento econômico, o investimento em educação cresce de forma quase inercial, como reflexo do aumento da arrecadação. O oposto acontece em contextos de crise, quando há queda na arrecadação”.
Isso se reflete nos constantes cortes no orçamento para a área da educação, que vêm ocorrendo de forma exponencial em todos os governos nos momentos de crise econômica, sob o argumento de se fazer o ajuste fiscal. Para além desses aspectos, a partir do ano de 1996, teve início um novo processo de distribuição dos recursos da educação, o que não significou diminuição e nem tampouco acréscimo de novas receitas para a educação, pelos entes federados.
O marco regulatório, nesse contexto, foi a aprovação da EC nº 14/1996, que criou o FUNDEF, regulamentado pela Lei nº 9.424/1996. A partir desse marco jurídico,
15% (quinze por cento) dos recursos dos impostos vinculados à educação passaram a ser subvinculados ao referido fundo de cada Estado e do Distrito Federal. Assim, cada ente estadual e mais o Distrito Federal passaram a ter um fundo constituído com parte de seus próprios recursos e com recursos oriundos dos municípios – desses, apenas os de transferência, como pode ser verificado no quadro 01.
Como definiu a EC de nº 14/1996, o fundo era de natureza contábil (sem estrutura administrativa), por isso, não representou novos recursos para a educação, pois apenas subvinculou recursos que, por direito, eram dos estados e municípios. Para Gemaque (2011), o fundo caracterizou-se como de gerenciamento e não de captação de novos recursos à educação.
Importa destacar que o artigo 2º da Lei de nº 9.424/1996 deixou explícito que “os recursos do Fundo deveriam ser aplicados na manutenção e desenvolvimento do ensino fundamental público, e na valorização de seu Magistério”. Quanto à distribuição dos recursos entre o Estado e os municípios, ela deveria considerar a proporção do número de alunos matriculados anualmente nas escolas cadastradas, nas respectivas redes de ensino, por meio da realização do Censo Escolar, tomando como base de cálculo o valor aluno para as matrículas de ensino fundamental (BRASIL, 1996, § 1º do Art. 2º).
Entretanto, a Lei do FUNDEF assegurou a diferenciação do valor por aluno, segundo os níveis de ensino e tipos de estabelecimento (§ 2º do Art. 2º). Dessa forma, os cálculos para a distribuição dos recursos do fundo deveriam considerar as matrículas de: 1ª a 4ª séries; 5ª a 8ª séries; estabelecimentos de ensino especial e escolas rurais (BRASIL, 1996). De outra forma, a EC nº 14 assegurou no artigo 5º, § 3º, que a União complementaria os recursos dos fundos, em cada Estado e no Distrito Federal, caso o valor por aluno não alcançasse o mínimo definido nacionalmente (BRASIL/EC, 1996).
Assim, deu-se início à política de fundo na estrutura educacional brasileira, em que, a partir da subvinculação dos recursos dos impostos (15%), foram criadas novas estratégias de distribuição entre os estados, o distrito federal e municípios. Diante disso, a matrícula de cada rede de ensino passou a ser o indicador principal para mensurar os recursos que cada um dos Estados, municípios e o distrito federal receberiam do fundo. Gemaque (2011), ao refletir sobre a finalidade do FUNDEF destaca que esse fundo foi instituído com a perspectiva de que:
[...] revolucionaria a educação ao promover justiça social, equidade nos gastos aluno, descentralização do ensino, redução das disparidades regionais. Configurou-se como uma política focalizada visto que priorizou exclusivamente uma etapa da educação básica – o Ensino Fundamental. Ancorou-se na lógica de que o problema central do financiamento da educação residia no seu gerenciamento, decorrente da incompatibilidade entre o atendimento às matrículas e a capacidade fiscal dos entes federados. Caracterizou-se, portanto, como um Fundo de gerenciamento e não de captação de novos recursos para financiar “novos” programas implementados no Ensino Fundamental, pois era constituído da subvinculação dos recursos já vinculados à educação. (GEMAQUE, 2011, p. 92).
Portanto, são esclarecedoras as explicações de Gemaque (2011) sobre as condições e justificativas governamentais em que foi instituída a política de fundos no sistema educacional brasileiro. Destaca-se a intenção do Estado brasileiro de pretender fazer uma revolução educacional, mas sem acréscimo de novas fontes de recursos para a educação. Criou-se uma política de financiamento sem recursos, apenas sobre as mesmas bases de financiamento da educação em vigor. Para tanto, o principal argumento do Estado foi o de que o problema da educação não estaria no aporte de mais recursos, mas sim no gerenciamento das cifras disponíveis (SHIROMA, 2000).
Embora o fundo tenha sido constituído pelos Estados e pelo Distrito Federal, que subvincularam as receitas dos seus impostos, manteve-se a relação desigual entre estados e regiões do país, considerando o desnível financeiro que existe entre essas federações. Essas desigualdades, para Gemaque (2011), ao final do FUNDEF, ainda eram evidentes, sobretudo quando os estados permaneceram com os mesmos valores per capita de renda, no ano de 2006, em relação a 1998. Como exemplo de menor per capita, citou o caso do Maranhão, e o de maior, o Estado do Acre – ambos se mantiveram em condições iguais ao final de 10 (dez) anos do FUNDEF.
À luz desses dados, Gemaque (2011) pontuou a contradição no argumento justificador da implementação do FUNDEF, que reduziria as disparidades entre custo- aluno. Assim, enfatiza que se confirmou a previsão inicial de que esse fundo, nos moldes em que foi organizado, não diminuiria as disparidades regionais.
Por conseguinte, o FUNDEF, ao final de 2006, foi substituído por outro fundo, o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e Valorização do Magistério (FUNDEB), que foi regulamentado por meio da Lei nº 11.494/2007, com previsão de funcionar até 2020. Diferencia-se do antigo fundo por atender toda a
Educação Básica, porém, continua sendo de natureza contábil e constituído a partir da subvinculação dos impostos, mas ampliado em 20%, como expõe o quadro 1.
Com uma situação análoga a do FUNDEF, os municípios só contribuem para o fundo com os percentuais dos impostos recebidos das transferências da União e dos Estados, que são deduzidos diretamente para o fundo. Portanto, as contribuições das taxas como IPTU, ISS entre outros impostos municipais ,estão isentos do fundo, mas não de serem destinadas aos respectivos percentuais de 25% para a educação.
Conforme estabelecido no artigo 6º da Lei do FUNDEB, a União deve fazer complementação de 10% (dez por cento) do total dos recursos que constituem os fundos, sempre que, no âmbito de cada Estado e no Distrito Federal, o valor médio ponderado por aluno não alcançar o mínimo definido nacionalmente (BRASIL/FUNDEB, 2007).
Quanto à distribuição dos recursos do fundo, ela deve ser proporcional às matrículas efetivadas em cada rede educacional de responsabilidade obrigatória, considerando os resultados oficiais publicados pelo Censo Escolar de cada ano. Os cálculos devem ser realizados com base no valor/aluno, divulgado anualmente pelo FNDE, e devem considerar as diferenças entre etapas, modalidades e tipos de estabelecimento de ensino da Educação Básica, como define o artigo 10 da lei.3
Essa forma de realizar o cálculo para a distribuição dos recursos entre as redes de ensino representou um avanço em relação ao FUNDEF, uma vez que este considerava apenas os níveis de ensino e tipos de estabelecimento, urbano e rural. Logo, o FUNDEB, além de atender toda a Educação Básica, no cálculo valor aluno/ano passou a considerar não só a localização dos estabelecimentos de ensino (urbano e rural), mas também as etapas, as modalidades e os níveis de ensino atendidos com as respectivas matrículas. Essa equalização do valor gasto aluno/ano, tendo como referência o indicador de matrícula, foi considerada por Castro (2011) inovadora.
3 I - creche em tempo integral; II - pré-escola em tempo integral; III - creche em tempo parcial; IV - pré- escola em tempo parcial; V - anos iniciais do ensino fundamental urbano; VI - anos iniciais do ensino fundamental no campo; VII - anos finais do ensino fundamental urbano; VIII - anos finais do ensino fundamental no campo; IX- ensino fundamental em tempo integral; X - ensino médio urbano; XI - ensino médio no campo; XII - ensino médio em tempo integral; XIII - ensino médio integrado à educação profissional; XIV - educação especial; XV - educação indígena e quilombola; XVI - educação de jovens e adultos com avaliação no processo; XVII - educação de jovens e adultos integrada à educação profissional de nível médio, com avaliação no processo. (BRASIL/FUNDEF, 2007).
Assim, atualmente, no FUNDEB, o valor aluno/ano é calculado com base em 17 (dezessete) variáveis, conforme observado no artigo 10, enquanto, no FUNDEF, eram apenas 4 (quatro). Contudo, para Bremaeker (2011, p. 60), esses coeficientes foram decididos de maneira arbitrária, uma vez que foram “acordados” por representantes do MEC, dos estados e dos municípios. Em seu entendimento, “o estabelecimento de coeficientes únicos para todo o país fez parecer que o custo das modalidades de ensino seria o mesmo nos diferentes rincões da Amazônia e na cidade de São Paulo, no Nordeste ou no Sul do país.”.
Os fatores de ponderação de custo-aluno assim definidos causaram, segundo Pinto (2007, p. 891), muitas controvérsias, tendo em vista que os critérios utilizados não abarcaram o custo real das etapas e modalidades de ensino. Com isso, reforçou- se a tese de Bremaeker, para quem esse cálculo foi uma decisão política, que teve como parâmetro a busca de um acordo mínimo entre estados e municípios. Ainda conforme Pinto:
A busca de um entendimento mínimo que garantisse a aprovação do fundo impediu, contudo, que fossem tomados como parâmetro, no seu primeiro ano de funcionamento, fatores de ponderação que explicitassem as diferenças reais de custo. Assim, não há justificativa, por exemplo, para que um aluno de EJA custe menos que um aluno do ensino fundamental, a não ser que se tenha como objetivo oferecer- lhe uma educação de baixa qualidade. (PINTO, 2007, p. 892).
Diante do exposto pelo autor, verifica-se que o Estado ainda não se dispôs a realizar estudo para se chegar a parâmetros mais coerentes com a realidade de cada região do país, a fim de estabelecer a distribuição dos recursos do fundo tendo em vista as assimetrias regionais. Por isso, apesar de se estabelecerem novos coeficientes que ampliaram a distribuição dos recursos em relação ao FUNDEF, ainda não foram suficientes para corrigir as distorções entre Norte e Sul do país. Nessa perspectiva, conforme os critérios de distribuição dos recursos do fundo, 1 (um) aluno do campo das séries iniciais em uma escola do Marajó tem o mesmo peso que 1 (um) aluno de uma escola na região Sul do país. Entretanto, as realidades geográficas e sociais são totalmente antagônicas.
Logo, apesar dos avanços, os critérios estabelecidos não representaram as condições ideais para a oferta de um ensino de qualidade, pois os procedimentos acordados, ao que se evidencia, interessavam à União, uma vez que a definição de critérios regionais poderia elevar sua contribuição aos fundos dos estados das regiões
Norte e Nordeste, que são as que mais dependem financeiramente das transferências da União. Além disso, segundo Pinto (2007), é nessas regiões que estão situados os quatro Estados (MA, CE, AL e PA) onde o investimento por aluno é mínimo.
Para se chegar a um custo de cada modalidade de ensino em cada um dos estados, era preciso que fosse realizada, no entendimento de Bremaeker (2011), uma extensa pesquisa no país, sobretudo porque as assimetrias ainda são bastante fortes entre as regiões brasileiras, bem como entre o campo e a cidade. Para que o direito à educação ocorra em condições de igualdade, o custo por aluno deve ser resultado das diferenças das assimetrias regionais. Desse modo, é preciso avançar em cálculos que sejam mais coerentes com as realidades socioeconômicas dos Estados, como bem pontuou Bremaeker (2011). Portanto, as políticas educacionais para atenderem a população em condições de igualdade vão sempre exigir maior aporte de recursos financeiros do Estado.
Retomando as discussões do FUNDEB, importa destacar a intencionalidade do governo em ampliar os recursos e abrangência desse fundo, que passou a contemplar a Educação Infantil, a Educação de Jovens e Adultos, a Educação Especial e o Ensino Médio. Em relação aos recursos, ampliou-se para 20% o percentual da subvinculação dos impostos, além de ter acrescentado mais três impostos (IPVA, ITCD, ITR) ao fundo. Também a União passou a contribuir com 10%, de forma efetiva, a partir do ano de 2010.
Entretanto, o incremento de recursos foi inferior ao de alunos incluídos, o que significa um valor aluno/ano menor. De acordo com Bremaeker (2011) e Pinto (2007), foram acrescentados 62,6% a mais de alunos em 2006 para serem contabilizados com os recursos do FUNDEB, porém, em termos de recursos para o fundo, os percentuais somaram apenas 37,3%. Essa realidade trouxe consequências negativas aos estados e municípios, uma vez que tiveram de arcar com mais recursos do tesouro para manterem o padrão do atendimento nos moldes do FUNDEF.
Outro aspecto negativo para os municípios,relacionado ao FUNDEB, ocorreu, segundo Bremaeker (2011, p. 60), no processo da distribuição dos recursos do fundo, considerando que “[...] antes recebiam recursos estaduais para a manutenção dos alunos do ensino fundamental e que passaram a repartir os recursos com o financiamento do ensino médio”. Essa situação ocorreu principalmente, em relação aos municípios de menor porte geográfico, tendo em vista que:
Como estes municípios recebem em valores per capita um repasse maior de FPM e também de ICMS, as deduções dessas receitas para a constituição do fundo estadual do FUNDEB é relativamente elevada. Como eles possuem um pequeno número de alunos, o repasse dos recursos provenientes do fundo estadual – crédito do FUNDEB – é menor que a dedução, provocando um déficit nas suas contas. (BREMAEKER, 2011, p. 62).
Essas contradições, evidenciadas por Bremaeker (2011), acerca da captação e distribuição dos recursos dos fundos, em que uns perdem e outros ganham, têm sido uma das principais características dessa política, sem que se tenham estabelecido critérios para corrigir essas distorções. Por conseguinte, em meio a essas divergências, a EC nº 53/2006 preconiza que “a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios deverão assegurar, no financiamento da Educação Básica, a melhoria da qualidade de ensino, de forma a garantir padrão mínimo definido nacionalmente” (BRASIL, 2006, Art. 60, § 1, ADCT).
A questão que se apresenta é que, mediante o anúncio da qualidade do ensino, existe um hiato denominado insuficiência de recursos financeiros. Isso não é garantido nem mesmo pela política de fundos para garantir o atendimento educacional a todos os cidadãos nas mesmas condições de igualdade. Para Amaral (2012, p. 29), “o Brasil está entre os países que possuem maiores dificuldades para resolver os grandes desafios educacionais de sua população [...]”, por causa da falta de recursos que correspondam às demandas educacionais.
Em detrimento desse aspecto, desde a elaboração do PNE, que vigorou entre 2001 e 2010 (Lei nº 10.172/2001), tem sido pautada a elevação dos gastos públicos em educação, referentes ao percentual do PIB. Mesmo tendo sido aprovado pelo Congresso Nacional um percentual de 7%, foi vetado pelo Presidente da República à época, o senhor Fernando Henrique Cardoso. O plano foi encerrado e o veto nunca mais voltou a ser discutido no congresso (CRUZ, 2011; AMARAL, 2012).
Amaral (2012) pontua que, ao final do PNE, a relação dos recursos da educação com o PIB voltou a ser discutida. Com isso, ganhou novos contornos, com a aprovação da EC nº 59/09 garantindo que na aprovação dos próximos planos de educação fosse obrigatório assegurar a relação de um percentual do PIB com a educação. Tal proposição foi garantida pela Lei 13.005/2014, que aprovou o novo PNE e assegurou, na meta 20: “ampliar o investimento público em educação pública de forma a atingir, no 5° ano de vigência dessa lei no mínimo, o patamar de 7% do PIB
do País e, no mínimo, o equivalente a 10% do PIB ao final do decênio” (BRASIL, 2014).
Há de se recordar que a base estrutural que garante o financiamento da educação no Brasil está assentada, em sua maior parte, no recolhimento dos impostos vinculados à educação e nas contribuições sociais das empresas, expressas no salário-educação. Por isso, o fato de que a política de fundos, apesar de sua importância, principalmente por assegurar que 60% dos recursos devem ser aplicados em MDE, não se configura como uma política de financiamento da educação. Até porque ela não agrega novas receitas à educação, apenas fazendo a distribuição de recursos ao subvincular receitas de impostos que, por lei, pertenciam aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios.
Diante do que se apresenta, verifica-se uma dicotomia entre o direito à educação, assegurado constitucionalmente com seus custos diferenciados em cada realidade dos municípios brasileiros, e o que se tem disponível para gastar, sempre inferior à demanda educacional, pois “[...] o limite em assegurar o direito à educação passa também pelo quantitativo de recursos disponibilizados” (GEMAQUE, 2011, p. 110). No entanto, a conta que se tem de fazer para garantir o direito à educação deve ser invertida, ou seja, não do que se tem disponível, mas do quanto se precisa.
Por fim, a atual estrutura de financiamento da educação, mesmo tendo ampliado os gastos, como destaca Castro (2014), dispõe de recursos insuficientes para financiar as políticas educacionais de interesse social com as melhorias substantivas, ou seja, que representem a ampliação do acesso aliado à qualidade social da educação.
Nos últimos anos, a sociedade obteve um conjunto de conquistas no que se refere ao direito à educação, mas, contraditoriamente, os investimentos ficaram sob a responsabilidade dos municípios. A exemplo, a ampliação do Ensino Fundamental para nove anos (dos 6 aos 14 anos), por meio da Lei nº 11.274/2006 (BRASIL, 2006), e em 2009, a obrigatoriedade da oferta de ensino a partir dos 4 anos de idade, com a aprovação da EC nº 59/2009 (BRASIL, 2009).
Com isso, foram atribuídas mais responsabilidades aos municípios, com implicações circunstanciais no campo do direito à educação. Cabe destacar que as municipalidades vinham assumindo matrículas de alunos de faixas etárias de 4 a 6 anos, porém, de forma facultativa; com a aprovação das legislações, a oferta passou a ser obrigatória. Diante do exposto, não cabe contestar a textualidade da lei, dada sua importância como conquista social que representou para a sociedade, principalmente para as camadas mais pobres da população. Com efeito, Alves e Pinto (2011) enfatizam:
[...] que a ampliação da obrigatoriedade é um importante avanço no que se refere ao direito à educação, sobretudo diante das evidências de que a obrigatoriedade tem promovido uma redução das desigualdades educacionais nos níveis de ensino obrigatórios – pelo menos no que se refere ao acesso – nos países que adotaram tal estratégia (ALVES; PINTO, 2011, p. 127).
Observa-se o mesmo entendimento e compreensão dos autores sobre os benefícios sociais que a ampliação do direito à educação, de forma obrigatória, representa para as populações menos favorecidas. Para Alves e Pinto (2011), apesar de o acesso à escola ter sido garantido, a qualidade tem ficado a desejar; assim sendo,
se esse critério não for considerado no processo de expansão, poderá causar uma ‘inclusão excludente’ ou apenas uma inclusão quantitativa, que não garantiria os resultados educacionais esperados para os indivíduos e, consequentemente, para o país (ALVES; PINTO, 2011, p. 148).
Todavia, apesar da importância dessa conquista social, esse processo não se fez acompanhar de novas fontes de recursos para a educação, não ampliando, por conseguinte, o valor aluno/ano que recebem da distribuição do FUNDEB e das demais receitas de impostos previstas constitucionalmente.
Contraditoriamente, o ente da federação que menos arrecada imposto na estrutura tributária do país é o que vem assumindo, nos últimos anos, mais responsabilidades com a oferta do ensino obrigatório (de 4 a 14 anos). Como pontuam Ednir e Bassi (2009), as regras constitucionais definem que o maior arrecadador seja o governo federal, seguido dos Estados e, por último, os municípios.
Por essa ótica, considerando também as inúmeras demandas sociais que cada município acumula sob sua responsabilidade, depreende-se que as regras do jogo
são desiguais. Tomando por base as regras constitucionais em vigor no país, Ednir e Bassi (2009) exemplificam os percentuais de tributos que as três esferas de governo arrecadaram no ano de 2005: a união arrecadou 68,4%, o conjunto dos estados 26% e o conjunto dos municípios 5,6%. Mesmo após a União realizar as transferências de parte dos tributos a Estados e Municípios, e os Estados, aos municípios, as desigualdades ainda persistem. Ao final, a União continua centralizando 57,6% dos recursos, os estados 25,2% e os municípios, 17,2%. (EDNIR; BASSI, 2009).
Observa-se, portanto, o nível de desigualdade que há entre as esferas de governo na arrecadação dos tributos, sendo a participação dos municípios (5,6%) inexpressiva diante do total. No entanto, é onde se efetivam as principias políticas na área da saúde, assistência social, educação, meio ambiente, saneamento básico, entre outras (EDNIR; BASSI, 2009). Contraditoriamente, apesar de terem a menor arrecadação, são os municípios que têm as maiores responsabilidades na garantia do direito à educação obrigatória.
Essa realidade desigual sobre a partilha dos impostos torna os municípios dependentes das receitas de transferência da União, como a do Fundo de Participação dos Munícipios (FPM). Além do mais, como destacaram Ednir e Bassi (2009), os gestores locais, em função disso, tornaram-se reféns dos governos estaduais e federal, na busca de mais recursos para complementar suas receitas, a fim de investirem em políticas públicas em favor da população.
As responsabilidades pelas políticas educacionais, a fim de assegurar o direito à educação para as populações locais, têm se apresentado, nesse cenário, como um dos maiores desafios aos municípios. Desde a aprovação da LDB (9.394/1996), a constituição da política de fundos (FUNDEF/FUNDEB) e a aprovação da EC nº 59, uma série de políticas têm-se concentrado sob a tutela municipal. Essas ações do governo federal, para Castro (2011), tiveram como função estabelecer novos mecanismos de gestão; critérios técnicos sobre a alocação dos recursos financeiros da educação, para induzir a descentralização institucional e financeira das ações, bem como para criar mecanismos de avaliação dos sistemas de ensino.
Esse conjunto de medidas, todas efetivas com maior ou menor intensidade, serviu para fortalecer o papel coordenador e articulador do governo federal no gerenciamento do ensino e, posteriormente, de toda a Educação Básica (CASTRO, 2011). Mas, as responsabilidades pela oferta educacional ficam a cargo dos municípios e vêm crescendo anualmente, desde as atribuições, conferidas pela LDB
9.394/1996, pela oferta do Ensino Fundamental e da Educação Infantil, e ainda se somam a isso a EJA e a Educação Especial. Os efeitos desse processo são expressos na evolução de matrícula nas redes municipais de ensino, no aumento do número de estabelecimentos, no transporte escolar, nos profissionais da educação, dentre outras responsabilidades.
No que diz respeito à evolução de matrículas, Pinto (2007) demonstra que, no ano de 1991, as redes municipais de ensino eram responsáveis por 37% das matrículas públicas, quando, em 2006, chegaram a 52%. Em contrapartida, em 1991, as redes estaduais concentravam 55% das matrículas desse nível de ensino, reduzindo para 40%, em 2006, redução de 15 pontos percentuais nesse período.
Outro dado que evidencia como as responsabilidades educacionais dos municípios tem crescido de forma circunstancial é a evolução do número de funções docentes nas redes municipais de ensino em relação às redes estaduais. De acordo com as informações do Censo Escolar de 2006, do total de funções docentes que atuavam nas redes públicas (federal, estadual e municipal), cerca de 50% pertenciam às redes estaduais de ensino e 34%, às redes municipais. Contudo, no ano de 2014, enquanto os Estados possuíam 36% do total de funções docentes atuando em suas redes de ensino, os municípios já contavam com um índice de 63%, ou seja, um acréscimo, em termos percentuais, de 29% para o período (MEC/INEP, 2006; 2014). Isso é mais uma evidência de que as mudanças das políticas educacionais do governo federal têm atribuído bem mais responsabilidades aos municípios.
Soma-se a isso o fato de a EC nº 53/2006 ter determinado a criação do piso salarial profissional nacional para os profissionais do magistério público da Educação Básica; com isso, alguns municípios, para se adequarem às determinações da lei, aumentaram suas receitas para fazer frente ao gasto de pessoal. (CASTRO, 2011). Observa-se, assim, que uma série de demandas educacionais tem sido incorporada aos municípios – todas justas, do ponto de vista do direito à educação, porém, todas demandando recursos. Ao que tudo indica, essas variáveis - salários dos professores, ampliação do ensino fundamental de oito para nove anos; obrigatoriedade da oferta da educação a partir dos quatro anos de idade - foram subestimadas no cálculo de quanto isso representaria em termos de investimentos educacionais.
Consequentemente, a premissa da política de fundo, como expressa na EC nº 53, de garantir a equalização de oportunidades educacionais e o padrão mínimo de qualidade da educação escolar, tem sido comprometida. Tal fato é resultado de uma
alta demanda educacional aos municípios com base em uma distribuição de recursos no valor aluno/ano sem as condições de promover o ensino de qualidade (PINTO, 2007).
Avalia-se, nesse contexto, que a instituição da política de fundo pela União, mesmo tendo ampliado sua participação com o FUNDEB, em termos de recursos aos Estados e Municípios, não foi suficiente para equalizar as oportunidades educacionais oferecidas às populações entre as regiões do país. Destaca-se, ainda, que a obrigatoriedade da pré-escola impôs novamente aos municípios uma readequação em suas redes de ensino para acolher essa nova clientela de estudantes, ou seja,
[...] além do investimento financeiro na melhoria da infraestrutura educacional das redes de ensino – o que passa pelo aumento da capacidade instalada para gerar novas vagas, pela melhora dos prédios, investimento em materiais e equipamentos, formação de professores e melhoria das condições de trabalho dos profissionais da educação –, o enfrentamento de questões sociais históricas, como a discriminação racial, o conflito urbano/rural, as disparidades do federalismo fiscal brasileiro e a superação dos problemas específicos da oferta de ensino em cada etapa de escolarização contemplada pela emenda. (ALVES; PINTO, 2011, p. 147-148).
Compartilha-se do mesmo entendimento desses autores de que a adoção dessas medidas é fundamental para que esse direito à escola se efetive de maneira satisfatória. São ações que demandariam recursos adicionais aos municípios, principalmente os que são dependentes de verbas de transferências da União.
Essa nova inclusão obrigatória se soma ao que Pinto (2007, p. 881) alertava no processo de implantação do FUNDEB, que o aumento da participação municipal nas matrículas da educação romperia “[...] o equilíbrio entre os alunos atendidos e a capacidade financeira dos municípios”, porque, explica o autor, as municipalidades ficariam com mais matrículas do que os Estados. Em contrapartida, as receitas líquidas de impostos dos municípios seriam cerca de três quartos inferiores à obtida pelos Estados. Essa condição desigual na participação dos tributos entre os entes da federação, nas palavras do autor, “demostra uma situação de grande fragilidade do atual sistema de financiamento” da educação (PINTO, 2007, p. 881).
Contraditoriamente, a União, ente com maior capacidade de captação de recursos e que concentra mais da metade dos impostos recolhidos, como apontaram os estudos de Ednir e Bassi (2009), tem contribuído de forma insuficiente com os municípios de baixa capacidade financeira para que estes ampliem seus
investimentos com educação, principalmente os que ficam nas regiões Norte e Nordeste. Por isso, o pacto federativo e o regime de colaboração têm que avançar em termos das responsabilidades financeiras, a fim de diminuir as assimetrias regionais.
As análises aqui apresentadas evidenciaram que o avanço das conquistas sociais em relação ao direito à educação de forma obrigatória, foram extremamente importantes à sociedade. Entretanto, as atribuições em garantir essas conquistas ficaram sob a responsabilidade apenas dos municípios, de forma direta, apesar da justificativa de que, por meio dos fundos educacionais, a União esteja exercendo seu papel de colaboradora. Entretanto, são recursos insuficientes, que inviabilizam a educação de qualidade.
Portanto, as bases do financiamento da educação para assegurar o direito à educação nas municipalidades não correspondem às necessidades. Na ampliação da oferta da educação básica, os dados evidenciaram que os municípios têm assumido maiores responsabilidades em relação aos demais entes da federação. Outra questão analisada diz respeito à contradição existente entre os discursos que apregoaram a ampliação dos recursos para a educação e a não alteração da matriz do financiamento. Com isso, a ampliação dos recursos tem ocorrido, mas não na mesma proporção que a inclusão de matrículas nas redes educacionais públicas.
Apesar de apresentar pontos negativos, a política de fundo possui pontos positivos, entre eles o estabelecimento do valor aluno/ano, o fato de as matrículas serem referência para calcular quanto cada rede de ensino deve receber. Verificou- se, no entanto, que embora o acesso à educação tenha crescido, os recursos não cresceram na mesma proporção.
Por fim, é notório os limites e os efeitos do financiamento da educação para os municípios, tendo em vista que, nos últimos anos, tem sido atribuída a eles uma série de responsabilidades. Por outro lado, verificou-se que o ente da federação que menos arrecada impostos é o que menos recebe das transferências, por isso, os municípios, principalmente os mais pobres, têm sérios limites para financiar suas políticas educacionais e responder à população com políticas satisfatórias.
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. Lei nº 11.274, de 6 de fevereiro de 2006. Altera a redação dos arts. 29, 30, 32 e 87 da Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, dispondo sobre a duração de 9 (nove) anos para o ensino fundamental, com matrícula obrigatória a partir dos 6 (seis) anos de idade. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 7 fev. 2006. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_ 03/_Ato2004- 2006/2006/Lei/l11274.htm>. Acesso em: 09 de mai de 2020.
. Emenda Constitucional nº 53, de 19 de dezembro de 2006. Dá nova redação aos arts. 7º, 23, 30, 206, 208, 211 e 212 da Constituição Federal e ao art. 60 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 20 dez. 2006. Disponível em:
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. Lei Nº 11.494, de 20 de junho de 2007. Regulamenta o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação - FUNDEB, de que trata o art. 60 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias; altera a Lei no 10.195, de 14 de fevereiro de 2001; revoga dispositivos das Leis nos 9.424, de 24 de dezembro de 1996, 10.880, de 9 de junho de 2004, e 10.845, de 5 de março de 2004; e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 22 jun. 2007. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/ lei/l11494.htm>. Acesso em: 09 de mai de 2020.
. Emenda Constitucional nº 59, de 11 de novembro de 2009. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 12 nov. 2009. Disponível em:
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. Lei nº 13.005, de 25 de junho de 2014. Aprova o Plano Nacional de Educação - PNE e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 26 jun. 2014. Disponível em:
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Ana Maria Motta Ribeiro (UFF) André Martins (UFFJ)
Andrea Araújo Vale (UFF) Angela Tamberlini (UFF)
Antonio Henrique Pinto (IFES) - Ad hoc Claudia Affonso (Colégio Pedro II) – Ad hoc
Cláudio Fernandes da Costa (UFF - Angra dos Reis) Elenilde Gomes Oliveira (IFCE) - Ad hoc
Elionaldo Fernandes Julião (UFF - Angra dos Reis) Ely Severiano Junior (IFRJ) - Ad hoc
Francinaide de Lima Silva Nascimento (IFRN) - Ad hoc Francisco das Chagas Silva Souza (IFRN) - Ad hoc Jaqueline Ventura (UFF)
José dos Santos Rodrigues (UFF) – Ad hoc José Luiz Cordeiro Antunes (UFF)
José Márcio Santos (Universidade Regional do Cariri) - Ad hoc Jose Moisés Nunes da Silva de Oliveira ((IFRN) - Ad hoc
Lea Calvão (UFF)
Leia Adriana da Silva Santiago (IFG) - Ad hoc Lenina Lopes Soares da Silva (IFRN) - Ad hoc Lia Tiriba (UFF)
Marcelo Lima (UFES)
Marcelo Russo Ferreira (UFBA) - Ad hoc
Maria Aparecida dos Santos Ferreira (IFRN) - Ad hoc Maria Augusta Martiarena de Oliveira (IFERS) - Ad hoc Maria de Fátima Félix Rosar (UNICAMP)
Maria Ciavatta (UFF)
Maria Cristina Paulo Rodrigues (UFF) Maria Inês do Rego Monteiro Bomfim (UFF) Marise Ramos (EPSJV/FIOCRUZ)
Mauro Titton (UFSC) - Ad hoc
Olívia Morais de Medeiros Neta (UFRN) - Ad doc Ramon de Oliveira (UFPE)
Rosangela Aquino Rosa Damasceno (IFRJ) - Ad hoc Renata Reis (EPSJV/FIOCRUZ) - Ad hoc
Sandra Morais (UNIRIO)
Sebastião Rodrigues Moura (IFPA) - Ad hoc Sonia Maria Rummert (UFF)
Tatiana Dahmer (UFF)
Vanessa Mariano Campos Ruckstadter (UEPR) - Ad hoc Zuleide Silveira (UFF)
Alexandre Maia do Bomfim (IFRJ) Ana Maria Motta Ribeiro (UFF) Andrea Araújo Vale (UFF)
Antonio Henrique Pinto (IFES) - Ad hoc
Camilla dos Santos Nogueira (TMD/UFES- Coletivo Anatália de Melo) – Ad hoc Cláudio Fernandes da Costa (UFF - Angra dos Reis)
Emmanuel Oguri Freitas (UEFS-Ba) - Ad hoc Érika Macedo Moreira (UFG) - Ad hoc
Flávio Chedid Henriques (UFRJ) – Ad hoc Jacqueline Botelho (UFF)
Janaína Tude Sevá (UFG) - Ad hoc Jaqueline Ventura (UFF)
Jesús Jorge Perez García (UNIRIO) – Ad hoc José dos Santos Souza (UFRRJ)
José Luiz Cordeiro Antunes (UFF) Kênia Miranda (UFF) – Ad hoc Lia Tiriba (UFF)
Marcelo Lima (UFES)
Maria Cristina Paulo Rodrigues (UFF)
Maria da Conceição Silva Freitas (UNB) - Ad hoc
Maurício Sarda de Faria (UFRPE) – Ad hoc Mauro Titton (UFSC) - Ad hoc
Marcos Barreto (UFF) - Ad hoc Paulino José Orso (UEOPR) – Ad hoc
Vanessa Mariano Campos Ruckstadter (UEPR) - Ad hoc María Verónica Secreto de Ferreras (UFF) – Ad hoc William Kennedy do Amaral Souza (IFRO) - Ad hoc Zuleide Silveira (UFF)
Ana Elizabeth Santos Alves (UESB) – Ad hoc Ana Violeta Ribeiro Durão (FIOCRUZ) – Ad hoc Andrea Araújo Vale (UFF)
Angela Tamberlini (UFF)
Antonio Henrique Pinto (IFRN) – Ad hoc Célia Regina Vendramini (UFSC)
Claudia Affonso (Colégio Pedro II) – Ad hoc
Cláudio Fernandes da Costa (UFF - Angra dos Reis) Daisy Moreira Cunha (UFMG) – Ad hoc
Dora Henrique da Costa (UFF) Doriedson do Socorro Rodrigues (UFPA)
Eugênio Alvarenga Ferrari (UFV) – Ad hoc Haidée Rodrigues (UFF) – Ad hoc
Ivo Tonet (UFAL) Jacqueline Botelho (UFF)
Jailson Alves dos Santos (UFRJ) – Ad hoc José dos Santos Rodrigues (UFF) – Ad hoc José Luiz Cordeiro Antunes (UFF)
Justino de Souza Junior (UFC) Katia Lima (UFF)
Laura Souza Fonseca (UFRGS) Lia Tiriba (UFF)
Lívia Diana Rocha Magalhães (UESB) – Ad hoc
Marcelo Lima (UFES)
Maria Cristina Paulo Rodrigues (UFF)
Maria das Graças da Silva (UEPA) – Ad hoc Maria Tereza Esteban (UFF) – Ad hoc Ramofly Bicalho (UFRRJ) – Ad hoc
Regis Eduardo Coelho Arguelles da Costa (UFF) – Ad hoc Ronaldo Lima (UFPA)
Soraya Frazoni Conde (UFSC) – Ad hoc
William Kennedy do Amaral Souza (IFRO) - Ad hoc Zuleide Silveira (UFF)