ISSN,1808-lffl
V.19 nº 38 / jan-abr (2021) ISSN: 1808-799 X
Universidade Federal Fluminense Faculdade de Educação
NEDDATE - NÚCLEO DE ESTUDOS, DOCUMENTAÇÃO E DADOS SOBRE TRABALHO E EDUCAÇÃO
REVISTA TRABALHO NECESSÁRIO: http://periodicos.uff.br/trabalhonecessario
Redação: R. Professor Waldemar Freitas Reis, s/n°, bloco D, sala 525, Gragoatá - São Domingos, Niterói - RJ, CEP 24210-201 - revistatrabalhonecessario@gmail.com
EDITORES
Lia Tiriba, Maria Cristina Paulo Rodrigues e José Luiz Cordeiro Antunes
CONSELHO EDITORIAL
Caridad Perez García (UCPEJV – Cuba), Celso Ferretti (UNISO - Brasil), Gaudêncio Frigotto (UFF / UERJ- Brasil), José Claudinei Lombardi (UNICAMP – Brasil), Maria Ciavatta (UFF - Brasil), Roberto Leher (UFRJ - Brasil), Tomás Rodrigues Villasante (UCM – Espanha), Sonia Maria Rummert (UFF - Brasil) e Virgínia Fontes (UFF / EPJV / Fiocruz - Brasil).
COMITÊ CIENTÍFICO
Alexandre Maia do Bomfim (IFRJ), Ana Margarida Campello (EPSJV/FIOCRUZ) - in memoriam, Ana Motta (UFF), André Feitosa (EPSJV/FIOCRUZ), André Martins (UFJF), Andrea Araújo Vale (UFF), Anita Handfas (UFRJ), Angela Siqueira (UFF), Angela Tamberlini (UFF), Claudio Fernandes da Costa (UFF), Célia Regina Vendramini (UFSC), Daniela Motta (UFJF), Dante Moura (IFRN), Deise Mancebo (UERJ), Domingos Leite Lima Filho (UTFPR), Dora Henrique da Costa (UFF), Doriedson do Socorro Rodrigues (UFPA), Edison Oyama (UFRR), Edson Caetano (UFMT), Eneida Oto Shiroma (UFSC), Eraldo Leme Batista (UNIVAS-MG), Eveline Algebaile (UERJ), Filippina Chinelli (EPSJV/FIOCRUZ), Flávio Anício (UFRRJ), Francisco José Lobo Neto (FIOCRUZ), Guadelupe Teresinha Bertussi (UNAM e UFSC), Hajime Nozaki (UFMS e UFJF), Henrique Tahan Novaes (UNESP), Ivo Tonet (UFAL), Jacqueline Botelho (UFF), Jaqueline Ventura (UFF), João dos Reis da Silva Jr. (UFSCar), José dos Santos Souza (UFRRJ), Júlio Cesar França Lima (FIOCRUZ), Justino de Souza Junior (UFC), Kátia Lima (UFF), Laura Souza Fonseca (UFRGS), Lea Calvão (UFF), Lígia Klein (UFPR), Luciana Requião (UFF), Marcelo Lima (UFES), Maria Clara Bueno Fischer (UFRGS), Maria Inês do Rego Monteiro Bomfim (UFF), Maria de Fátima Félix Rosar (UNICAMP), Marcia Alvarenga (UERJ), Mariléia Maria da Silva (UDESC), Marisa Brandão (CEFET-RJ), Marise Ramos (UERJ,FIOCRUZ), Marlene Ribeiro (UFRGS), Myriam Feldfeber (UBA - Argentina), Ney Luiz Teixeira Almeida (UERJ), Olinda Evangelista (UFSC), Ramon de Oliveira (UFPE), Raquel Varela (Universidade Nova de Lisboa
- Portugal), Roberto Leher (UFRJ), Ronaldo Lima (UFPA), Rosilda Benacchio (UFF), Rui Canário (Universidade de Lisboa – Portugal), Sandra Maria Siqueira (UFBA), Sandra Morais (UNIRIO), Sérgio Lessa (UFAL), Susana Vasconcellos Jimenez (UFC), Tatiana Dahmer (UFF), Valdemar Sguissardi (UFSCar), Vania Motta (UFRJ) e Zuleide Silveira (UFF).
ORGANIZAÇÃO DA TN 38 (2021)
Professoras Tatiana Dahmer (TEIA – Núcleo de Pesquisa e extensão em Trabalho, Educação e Serviço Social da Escola de Serviço Social da Universidade Federal Fluminense – ESS/UFF) e Maria Cristina Paulo Rodrigues (TEIA – Núcleo de Pesquisa e extensão em Trabalho, Educação e Serviço Social da Escola de Serviço Social da Universidade Federal Fluminense – ESS/UFF e do Neddate – Núcleo de Estudos, Documentação e Dados sobre Trabalho-Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense - FEUFF).
ASSISTENTES DE EDIÇÃO
Daniel Tiriba, Lândhor Borges Camello (UFF), Luiz Augusto de Oliveira Gomes (Doutorando em Educação/UFF) e William Kennedy do Amaral Souza (IFRO)
BOLSISTAS DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA
Maria Clara Victorino (Serviço Social) e Emanoella Moreira Costa (Serviço Social)
FOTO DA CAPA
Entre Ovários, de Priscila Castro, 2018
MONTAGEM DA CAPA
Daniel Tiriba
V.19 nº 38 / jan-abr (2021) ISSN: 1808-799 X
Indexado por / Indexed by
Apoio:
Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoatá/SDC/UFF Bibliotecária:
Mahira de Souza Prado CRB-7/6146
V.19, nº 38, 2021 (jan-abr) ISSN: 1808-799X
Esta frase é parte da música Sujeito de Sorte, composta por Belchior no ano de 1976, num álbum chamado Alucinação – o que expressa bem os sentimentos que tomavam grande parte da sociedade brasileira naquele duro contexto da nossa história. Reproduzida pelo rapper paulistano Emicida, em 2019, numa das faixas do seu disco AmarElo2, antecipava, sem saber, o ano que viveríamos a seguir.
A partir dela, então, é que iniciamos nossas reflexões neste primeiro número da Revista Trabalho Necessário do ano de 2021. E o fazemos porque a música traz em si, dialeticamente, uma denúncia e um anúncio: morremos em 2020. Mas não morreremos agora.
E do que morremos? Morremos, real e literalmente, pela pandemia da covid-
19. No momento em que escrevemos esse editorial, são mais de 2,4 milhões de mortos no mundo3. Só no Brasil, temos mais de 240 mil mortes, o que nos coloca no 2º lugar entre os países com mais perda de vidas humanas. Morremos sem oxigênio nos hospitais de Manaus; morremos pela falta de leitos e equipamentos nas redes públicas de saúde, sucateadas e abandonadas por decisões políticas - em nível municipal, estadual e federal - que não reconhecem a saúde como bem público. Morremos pela negligência criminosa das autoridades da saúde de um governo que desde o início da pandemia escolheu deliberadamente minimizá-la, oferecendo “tratamento precoce e preventivo” com medicamentos ineficazes, fato comprovado por pesquisadores e pesquisadoras do mundo todo. Morremos porque, mais uma vez, este mesmo governo se atrasa em negociar e garantir financiamento para que nossos institutos públicos de pesquisa (especialmente Fiocruz e Butantan) pudessem se
Editorial recebido em 17/02/2021. Aprovado em 19/02/2021. Publicado em 25/02/2021. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v19i38.48789
Link para a música: https://www.youtube.com/watch?v=PTDgP3BDPIU
Disponível em: https://especiais.gazetadopovo.com.br. Acesso em 15/02/21, às 15:51h.
preparar para a fabricação de vacinas – estas, sim, o principal mecanismo de controle da pandemia de covid-19.
Mas não devemos pensar nesse número chocante de mortes como uma fatalidade. Há ainda a necessidade de compreender a relação da pandemia da covid- 19 com um modo de produção e reprodução que tem intensificado, de forma radical, a precarização da vida e a destruição da natureza.
Sob o capitalismo neoliberal, com a dominância do capital financeiro, nos últimos 40 anos, grande contingente da população mundial se tornou vulnerável e sem condições de enfrentar uma crise como a que a pandemia provocou. Contrariando a tese muito difundida, de que as doenças infecciosas não veem classe ou outras barreiras sociais, Harvey (2020: p.21) afirma que a covid assume características de uma pandemia de classe, de gênero e de raça, uma vez que “a força de trabalho que se espera que cuide dos números crescentes de doentes, é tipicamente e altamente sexista, racializada e etnizada na maioria das partes do mundo”. Da mesma forma, o conjunto de trabalhadores(as) essenciais – no comércio e nos serviços, também atende a essa interseção.
Como esquecer que a primeira morte por covid registrada no Brasil foi de uma empregada doméstica (mulher, negra), cuja patroa havia retornado contaminada de uma viagem à Europa e não a dispensou do serviço? Como não pensar na morte do menino Miguel (também negro), em Recife, morto pela neglicência criminosa da patroa de sua mãe que, também empregada doméstica, saiu para passear com o cachorro da casa, enquanto seu filho (que não pode ir para a escola em função do lockdown) ficava sob a “responsabilidade” de alguém que não o reconheceu como digno de seus cuidados?
Mas há ainda os milhares de jovens – na sua maioria homens, negros e das periferias das grandes cidades – que se expõem sistemática e cotidianamente nos serviços de entrega por plataformas, sem qualquer proteção trabalhista, acrescida agora pelo risco de contaminação pela covid. Há escolha dada a eles é: ir para a rua e correr o risco de se contaminar (e à sua família), ou ficar em casa com fome.
Assim, é preciso que se diga que essa morte que a covid escancara e exacerba numericamente, não é, nem no mundo nem no Brasil, uma novidade. Ao contrário, ela explicita uma condição histórica de desigualdade que, no caso de um país de capitalismo periférico como o nosso, carrega ainda as marcas de um passado colonial-
escravista. Marcas que estruturam as relações sociais/institucionais que nos permitem compreender como e por que morremos pela violência estatal/policial nas favelas e periferias, por LGBTfobia, por feminicídio.
No caso específico das mulheres (em especial, as mulheres negras e indígenas), a pandemia e o isolamento social foram ainda mais penosos: são elas que constituem o segmento de trabalhadores que mais rapidamente perderam o emprego e engrossaram a fila para recebimento do auxílio emergencial4. Auxílio duramente conquistado, mas limitado tanto no valor quanto na duração e abrangência. Para aquelas que estavam/estão em home office restou a sobrecarga de cuidados com os filhos em casa, sem aula (ou em aula remota), os cuidados das pessoas idosas ou enfermas, além do acúmulo das tarefas domésticas.
Além disso, a violência doméstica também aumentou na pandemia e afetou ainda mais essas mesmas mulheres. Segundo o documento Gênero e covid-19 na América Latina e no Caribe: dimensões de gênero na resposta, publicado pela ONU Mulheres em março de 2020, “enfrentar uma quarentena é um desafio para todos, mas para mulheres em situação de vulnerabilidade pode ser trágico”. Os números levantados pelas organizações Think Olga e Think Eva5, sobre a violência doméstica contra meninas e mulheres confirmam o alerta: só no Rio de Janeiro, nos primeiros meses de quarentena houve um aumento de 50% nos casos de violência contra as mulheres no ambiente doméstico. O mesmo se pode dizer sobre os casos de feminicídio. Matéria do jornal Extra6, de 27/12/20, reportava que só na véspera do Natal, seis mulheres de regiões diversas do país, com idades variando entre 23 e 74 anos, foram vítimas de feminicídio – mortas pelos maridos, ex-companheiros ou namorados, em casa (ou próximo), muitas vezes perto dos filhos, com motivações como ciúmes, não aceitação do término do relacionamento, ou por discussões.
Instituído em abril de 2020 (Lei 13.982/20), o Auxílio Emergencial propunha uma renda de R$200,00 aumentada pelo Congresso Nacional para R$600,00 (no caso das famílias “chefiadas” por mulheres, o valor podia chegar a R$1200,00) a ser distribuído para trabalhadores informais, microempreendedores individuais, autônomos e desempregados. A princípio seria distribuído por 3 meses, mas também esse período foi estendido até setembro (6 meses). Foi novamente estendido por mais 3 meses (de outubro a dezembro), no valor de R$300,00. Dados da PNAD Convid informam que em maio/20, quase 94 milhões de pessoas (o que corresponde a 45% dos 210 milhões de cidadãos brasileiros) residiam em domicílios em que pelo menos um morador recebeu o benefício). Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias. Acesso em 15/02/21.
https://thinkolga.squarespace.com/violencia-contra-mulheres. Acesso em 15/02/21.
Ver: https://extra.globo.com. Acesso em 27/12/20, às 11:48.
Estes dados e reflexões que reúnem o que chamamos a denúncia da morte que sofremos em 2020 talvez possam obscurecer o seu duplo/contrário, e que tem a ver com a resistência e com as lutas travadas – e por travar – e que, por isso nos permitem anunciar que “nesse ano eu não morro”.
É como anúncio de resistência (e, portanto, de vida) que enxergamos a greve dos trabalhadores por aplicativo, em julho de 2020 (o Breque dos Apps, como a nomearam), quando esse coletivo não formalmente organizado em sindicatos7 conseguiu trazer à público a discussão sobre a centralidade do trabalho. Ao se tornarem essenciais à garantia de isolamento que a pandemia impunha à sociedade (ou àqueles que puderam se isolar e proteger-se), denunciaram as péssimas condições de trabalho a que estavam expostos e reivindicavam condições mínimas para trabalhar. O que será da organização deste segmento ainda não está dado, seja pela permanência ou mesmo aprofundamento da crise pandêmica, seja pela sua capacidade de articulação com outros movimentos e entidades da classe trabalhadora para a constituição de ações coletivas.
Também elencamos no rol de lutas que anunciam que estamos vivos, as ações dos sindicatos em defesa do emprego e de condições de trabalho que permitam a proteção fundamental dos trabalhadores no cenário da pandemia. Essas ações incluíram desde a entrada na Justiça para que as empresas cumprissem as medidas definidas pela OMS, até greves e paralisações, além da adoção de novas formas de comunicação com os trabalhadores. Dentre essas últimas destacam-se as assembleias virtuais e as lives, como tentativa de manutenção e fortalecimento da organização coletiva (CAMPOS, 2020; PESSANHA e RODRIGUES, 2020).
É importante destacar ainda uma série de ações solidárias levadas a cabo por ONGs e movimentos sociais – de mulheres/feministas; negros; sindicais; dos trabalhadores sem-terra; dos trabalhadores sem teto, dentre outros. Desde o início da pandemia estes grupos sociais reuniram recursos para distribuição de cestas básicas, material de higienização, além da ampliação da rede de informação e orientação para acesso ao auxílio emergencial e outras políticas que, apesar de reconhecidamente limitadas quanto à sua abrangência, tornaram-se fundamentais para a existência da população mais vulnerável.
Sobre as formas organizativas deste segmento ver: Santana, M.A e Braga, R. Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2020/07/25/brequedosapps-enfrentando-o-uberismo/
O ano de 2021 nos apresenta um cenário tão ou mais difícil do que o que vivemos em 2020: a economia em recessão impacta profundamente e por longo tempo o mercado de trabalho, fazendo aumentar a taxa de desemprego, da subocupação, do trabalho intermitente e informal. No setor público, a ameaça da Reforma Administrativa é cada vez mais uma realidade próxima, estendendo a condição da precarização e instabilidade para grande parte da classe trabalhadora brasileira.
No campo da educação, vemos se agudizarem as desigualdades no acesso e no aproveitamento dos(as) discentes, seja em função da manutenção do ensino remoto e/ou híbrido – que também aumenta o risco de adoecimento dos(as) docentes por acúmulo de tarefas e pela piora das condições de trabalho; seja pela realização de um arremedo de ENEM, que exacerba a exclusão da classe trabalhadora e seus filhos à Educação Superior, fragilizando ainda mais a educação como bem público e como direito de todos/as.
Por tais condições – e apesar delas, consideramos que o papel da academia e de seus e suas pesquisadoras, em especial aqueles e aquelas que estão na Universidade Pública, é também denunciar, a partir do conhecimento produzido, as condições e mazelas da existência humana e, junto com outras forças sociais, pensar e propor a transformação destas condições.
Nesse sentido, temos o prazer de trazer no número 38 da Revista Trabalho Necessário as questões da temática Trabalho, Gênero e Feminismos. Organizado por Tatiana Dahmer Pereira e Maria Cristina Paulo Rodrigues, integrantes, respectivamente, do TEIA (Núcleo de Pesquisa e Extensão em Trabalho, Educação e Serviço Social/ESS-UFF) e do NEDDATE (Núcleo de Estudos, Documentação e Dados em Trabalho-Educação/FEUFF), o presente número reafirma a urgência desse debate na esfera acadêmica, assim como a importância da articulação entre os vários campos das Ciências Humanas e Sociais, comprometidas com a emancipação humana.
Que as reflexões aqui reunidas possam contribuir para o estabelecimento de uma agenda de pesquisa e de ação que reforce o sentido da universidade socialmente referenciada. E que 2021 nos encontre atentos e fortes!
Fevereiro de 2021 Maria Cristina Paulo Rodrigues, Lia Tiriba e José Luiz Cordeiro Antunes
Editores da Revista Trabalho Necessário
CAMPOS, Anderson de S. Sindicalismo no contexto de pandemia no Brasil: primeiras impressões. Disponível em: https://www.eco.unicamp.br/remir/index.php/sindicalismo/177-sindicalismo-no- contexto-de-pandemia-no-brasil-primeiras-impressoes. Acesso em 15/02/21, às 10:15h.
HARVEY, David. Política anticapitalista em tempos de COVID-19. In: DAVIS, Mike et al. Coronavírus e a luta de classes. Editora Terra sem Amos, 2020. pdf
PESSANHA, Elina e RODRIGUES, M.C.P. No olho do furacão: a ação sindical possível em tempos de covi-19 – o caso do Sinttel-Rio. Dilemas: Revista de Estudos de Conflitos e Controle Social. Disponível em: https://www.reflexpandemia.org/texto-12. Acesso em 15/02/21, às 9:10h.
V.19, nº 38, 2021 (jan-abr) ISSN: 1808-799 X
Tatiana Dahmer Pereira2 Maria Cristina Paulo Rodrigues3
O presente número da Revista Trabalho Necessário que chega às suas mãos apresenta artigos, registros históricos e artísticos, entrevista e resenha, os quais circulam em torno de tema delicado e fundamental para a formação humana em nossa sociedade periférica ocidental: articulam conteúdos relacionados ao trabalho, às lutas feministas e estudos de gênero, raça e classe social no Brasil e na América Latina.
Organizada em pleno ano em que se instala a pandemia mundial da Covid-19, com rebatimentos graves sobre as condições concretas de vida em nosso país fomentados pelas diretrizes de ação do governo federal, têm sido mulheres (especialmente as negras e indígenas) e segmentos mais pauperizados da classe trabalhadora que vivenciam os impactos mais perversos gerados não apenas pela doença, mas em função do agravamento da crise capitalista e dos caminhos governamentais adotados para o trato dessas questões.
Neste sentido, a revista é construída não apenas em um momento que aglutina tanto a crise aguda da pandemia, quanto as consequências do aprofundamento da crise estrutural do capital (MÉSZAROS, 2011). Esse contexto tem sido vivenciado com o recrudescimento do conservadorismo, alimentando a permeabilidade cada vez
1Apresentação submetida em 19/02/2021. Aprovada pelos editores em 20/02/2021. Publicada em 25/02/2021. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v19i38.48812
2 Doutora em Planejamento Urbano e Regional (IPPUR-UFRJ), docente e pesquisadora do PPGSSDR- UFF, formada em Serviço Social (UFRJ). Pesquisadora apoiada pelo CNPq. Integrante do TEIA –
Núcleo de Pesquisa e Extensão em Trabalho, Educação e Serviço Social (ESS-UFF)
E-mail: tatianadahmerpereira@gmail.com; Lattes: http://lattes.cnpq.br/2619212275317172. ORCID:0000-0002-1096-8950
3 Doutora em Políticas Públicas e Formação Humana (UERJ); Professora Adjunta da ESS/UFF; estudiosa da área do trabalho e dos movimentos sociais. Integrante do TEIA – Núcleo de Pesquisa e
Extensão em Trabalho, Educação e Serviço Social (ESS-UFF); e do Neddate (Núcleo de Estudos, Documentação e Dados em Trabalho-Educação) - FEUFF. E-mail: mcristina@id.uff.br;
Lattes: http://lattes.cnpq.br/0279905252377710. ORCID: 0000-0003-0545-2260
maior da cristianização de práticas por dentro das estruturas do Estado. Imbricado a isso, ressaltamos o agravamento de nossas marcas colonialistas e elitistas materializadas na banalização da criminalização dos pobres, das pessoas negras e indígenas, da xenofobia e dos sexismos, naquilo que Mascaro (2019) enuncia como sendo a “crise brasileira (...) em essência, tanto reflexo de uma crise do capital mundial quanto uma crise da política em sua forma de desaguadouro” (p.25).
É nesse sentido que o messianismo e os embates polarizados e marcados pela influência da manipulação midiática e das redes sociais, alimentam-se de fake news e utilizam o ódio (especialmente nas suas marcas elitistas, sexistas e raciais) e a confusão como mediação social, relegando a política ao esvaziamento como espaço de diálogo e construção coletiva.
As escolhas e possibilidades de organização deste número não passam ao largo de tais questões e nos apresentaram desafios importantes no registro sobre resistências e acúmulos das mulheres e de homens que estudam criticamente e militam em torno de lutas feministas e combatem racismos, assim como pelo direito à diversidade de gênero e sexual.
Nesse sentido, a temática em tela assume urgência e importância para a Trabalho Necessário, que, sendo uma revista dedicada ao campo da formação humana, deve estar aberta e comprometida com a análise das complexas relações e mediações que estruturam e organizam a existência humana e a vida social.
Tendo por ementa a premissa que as relações de gênero, classe social e de raça são, historicamente, fundamentos da vida social e expressam opressões vivenciadas na carne e no cotidiano por parte significativa das pessoas, não há como partilhar de leitura homogeneizadora e universalizante sobre o ser humano sem que enfrentemos questões específicas que acentuam opressões, desigualdades, exclusões e violações no capitalismo, especialmente aquelas propaladas a partir do próprio Estado e de suas estruturas institucionais voltadas prioritariamente à garantia da extração de valor (KURZ, 2018).
Aqui vocês encontram estudos e reflexões críticas sobre construções históricas relacionadas aos papéis sociais de gênero, à racialização das pessoas e à construção desigual na relação entre as classes sociais. Tais marcações expressam compreensões hierárquicas e discriminatórias em relação aos seres humanos e especificam violações presentes na própria construção do sentido do trabalho no
capitalismo. Isso não é secundário nem tampouco menor, na medida em que as injustiças e violações não se distribuem nem são sentidas igualmente por todos(as) aqueles(as) que compõem diferentes segmentos da classe trabalhadora.
Conhecer, pesquisar, problematizar e entender a dinâmica de nossa formação socio-histórica e como se forjam os sujeitos na história necessariamente é reconhecer essas diferentes identidades, as quais não se somam e tampouco se hierarquizam como dimensões, mas se conformam em marcações objetivas as quais permitem que algumas vidas valham menos do que outras, ou que valham nada.
A Revista divide seus conteúdos entre diferentes seções. Já em sua abertura, a homenagem materializa-se na Seção Clássico. Milhares de mulheres merecem nossa homenagem pela forma corajosa com que lutam pela emancipação humana. Algumas delas são especiais! É o caso de Alexandra Kollontai, revolucionária russa que, em 1917, ocupou o posto de Comissária de Saúde do Governo Soviético. Para ela, trabalho, casamento, família, divórcio, maternidade, sexualidade, entre outros, eram questões a ser debatidas e enfrentadas cotidianamente e, em especial, pelo Estado, tendo em vista a constituição de relações sociais entre homens e mulheres, fundadas no amor-camaradagem (elemento fundamental do processo de construção de uma sociedade verdadeiramente humana). Nesse sentido, brindamos os leitores com o texto de Kollontai intitulado Abram caminhos para o eros alado (Uma carta para a juventude operária). Ainda na mesma seção, indo ao encontro de nossa homenagem póstuma, Denise Santana Maia e Cláudio Félix dos Santos apresentam o artigo A luta contra a opressão da mulher em Alexandra Kollontai, trazendo-nos a vida e obra dessa militante no enfrentamento da luta contra a exploração, a opressão de classe e de gênero como desafios do socialismo.
Na Seção Artigos Temáticos, encontramos a riqueza de reflexões oriundas de distintos lugares institucionais, vivências pessoais/políticas e nacionalidades, distribuída ao longo de 12 (doze) artigos.
Amaia Pérez Orozco, em seu artigo El conflicto capital-vida: aportes desde los feminismos, nos apresenta elementos os quais permitem nomear importante contradição estrutural acirrada com o desenvolvimento das relações produtivas. Sua leitura marxista, ecológica e feminista, a partir da realidade dos países do hemisfério
Sul, é incisiva quanto à total inviabilidade da relação entre desenvolvimento predatório do capital e a sustentabilidade da vida em todas as suas formas.
No artigo Desengavetando gênero à luz dos feminismos no Brasil, Tatiana Dahmer Pereira traz uma reflexão sobre as diversas formas de resistência dos movimentos de mulheres e feministas, tomando a particularidade da formação social brasileira, atenta ainda às contradições e tensões que transbordam para o campo acadêmico, este que não está imune à naturalização das opressões. Sem desconhecer estes limites, a autora destaca que um dos legados das “mulheres em movimento” tem sido a de que “não se deve constituir novas definições conceituais universalizadoras sobre a existência das mulheres”.
Luciana Sardenha Galzerano, ancorada num criterioso referencial teórico, expõe no artigo A Ofensiva Antigênero na Sociedade Brasileira, o embate entre o (diverso e às vezes polêmico) campo dos estudos de gênero e o discurso da ideologia de gênero, analisando como este último repercute no Brasil a partir da atuação dos setores religiosos e conservadores, assumindo também papel importante na disputa em torno das políticas sociais, mormente a Educação, através do Escola sem Partido. O artigo de Hildete Pereira de Melo e Lucilene Morandi, intitulado A divisão sexual do trabalho no contexto da pandemia, analisa os impactos perversos sobre a vida das mulheres no contexto atual da pandemia de Covid-19 no Brasil. Reflete sobre como as desigualdades históricas e estruturais acirram-se com a crise sanitária e a estagnação econômica, fortalecendo inserções femininas precárias no mercado de trabalho e acentuando sobrecarga no trabalho doméstico não remunerado e nas
atividades de cuidado para as mulheres.
A partir de pesquisa fundada no pensamento crítico decolonial, Verônica Souza de Araújo e Rachel Barros, no artigo "Cuida de quem te cuida": a luta das trabalhadoras domésticas durante a pandemia de covid-19 no Brasil, problematizam os impactos da pandemia de Covid-19 sobre as trabalhadoras domésticas brasileiras, categoria formada majoritariamente por mulheres negras. Tendo a colonialidade e o racismo estrutural como elementos de nossa formação social, ilustra essa dura (e invisibilizada) realidade a partir de casos recentes de violação de direitos, e sistematiza algumas formas de resistência de organização trabalhista da categoria.
covid-19, fazem importante reflexão sobre a difícil inserção deste grupo populacional no mercado de trabalho, dificuldade relacionada principalmente à sua identidade de gênero (que também afeta sua permanência na escola e em outras esferas da sociabilidade). Os autores denunciam tal condição, que se agudiza em um contexto de grave crise econômica, sanitária, política e social, apontando para a necessidade urgente de políticas públicas que reconheçam a multiplicidade de corpos que compõem a força de trabalho.
Anna Violeta R. Durão, em “A naturalização do feminino e o trabalho comunitário em saúde: a experiência de ser mulher trabalhadora no Programa de Agentes Comunitários de Saúde”, traz uma grande contribuição para a área Trabalho- Educação e a saúde, quando se reporta às ACSs como "trabalhadoras" da saúde, com toda a sua contradição em termos de constituição histórica articulada à conformação do feminino. Respalda-se em E. P. Thompson como companheiro de viagem para realizar a sua análise, com conceitos consistentes do materialismo histórico-dialético, denunciando o que propõe a política para o setor da saúde e anunciando como essa política se inscreve nos sujeitos que vivem os processos e as experiências - no caso em tela, a maioria de mulheres.
O artigo Universidade e Trajetórias Profissionais: uma leitura a partir das relações de gênero, de Paolla Cappellin e Jorge Custódio, apresenta o resultado de pesquisa realizada entre 1993 e 2013, acompanhando 10 jovens trabalhadores (homens e mulheres) das classes populares cariocas em seu esforço para entrar e cumprir a formação em universidades públicas do Rio de Janeiro, num contexto de crise econômica e política. Em que pese a proximidade quanto às motivações e a satisfação na obtenção do diploma, o estudo aponta para a persistência de ambiguidades entre tradição e inovação nas relações de gênero, tanto na família quanto no ambiente de trabalho, afetando especialmente as mulheres.
Com base na narrativa de sua história pessoal, Giovana Xavier, no artigo Grupo Intelectuais Negras UFRJ: a invenção de uma comunidade científica e seus desafios, conduz reflexão sobre desafios da construção e consolidação de uma educação transgressora, objetivando a formação de comunidade científica negra feminista. Como a autora situa, fundamenta-se em paradigmas da história social para visibilizar e consolidar no meio acadêmico “formas de agir, pensar e produzir saberes empreendidos por mulheres negras em tempos e espaços distintos”.
O artigo de Nilsa Maria Conceição dos Santos, intitulado Da Sanga a Paris: discursos de mulheres negras velhas sobre trabalho, traz um estudo qualitativo com seis mulheres negras (com idade entre 72 e 86 anos), com experiências escolares e de trabalho variadas. Ao incorporar à tripla discriminação – gênero, raça e classe – um quarto elemento, a velhice, a autora, ao mesmo tempo que denuncia o silenciamento da experiência e da narrativa dessas mulheres, nos aproxima do debate sobre os sentidos do trabalho e as contradições em relação aos papéis “destinados” às mulheres e seus respectivos lugares de pertencimentos.
Em Violência de gênero e desigualdade racial em uma pesquisa com mulheres no território conflagrado do conjunto de favelas da Maré/Rio de Janeiro, Miriam Krenzinger, Patrícia Farias, Rosana Morgado e Cathy McIlwaine apresentam dados e reflexões resultantes de rica pesquisa de campo no maior complexo de favelas da capital fluminense sobre a multidimensionalidade e implicações da violência de gênero em um contexto que, segundo as autoras, é predominante uma territorialidade urbana racializada, com precária infraestrutura e desigualdade de acesso a direitos. Nesse cenário, em que o Estado é tolerante com a violência, as autoras esperam que o estudo contribua para a “construção de políticas de enfrentamento às violências que integrem de forma mais aprofundada as dimensões de raça/cor, gênero, classe social e de território presentes nas sociedades contemporâneas”.
Renata Lewandowski Montagnoli e Liane Vizzoto, no artigo A Fogueira que queimou a alma ontem incinera a Educação hoje: a perseguição aos estudos de gênero, trazem ao debate o tema candente da perseguição aos estudos sobre gênero e diversidade nas escolas, a partir da análise das ações que chegaram ao STF, entre 2016 e 2019, movidas por órgãos de classe da área da educação e por partidos de esquerda e centro esquerda, em defesa da sua constitucionalidade. E que resultam da disputa não apenas dentro das escolas, entre forças progressistas e conservadoras, com destaque ao Escola sem Partido.
Fotos inspiradas e muito potentes ilustram o Ensaio Fotográfico de Priscila Castro. Intitulado Escuta as manas: a experiência e a construção da arte urbana de gênero no Rio de Janeiro, o trabalho é resultado de pesquisa realizada para o doutorado (PPGSS/UERJ; 2020), e além de nos revelar a arte do graffitti feito por mulheres no espaço urbano do Rio de Janeiro, nos permite “ouvir” suas vozes, falando
de preconceitos, discriminação, mas também identidade, solidariedade e liberdade a partir da ampliação das percepções políticas e pedagógicas da arte como instrumento das lutas feministas.
O gênero do trabalho operário: condições de trabalho, divisão sexual e práticas sociais em indústrias metalúrgicas dos segmentos automotivo e eletroeletrônico. Este é o nome do livro de Thaís de Souza, publicado pela Editora Lutas Anticapital (2020) e analisado por Liliane Bordigon na Seção Resenha. Para Liliane, a pesquisa contribui com a compreensão da existência de “duas fábricas paralelas” nas quais as mulheres trabalham: a metalúrgica e a casa. Recomenda a leitura para os/as que desejam compreender como ocorre no tempo presente a produção de mercadorias e da vida.
A Entrevista desse número conta com a valiosa participação de Lucia Maria Xavier de Castro, ativista feminista negra histórica, criadora da ONG Criola. Com sua lucidez e inteligência, numa conversa conduzida por Jacqueline Botelho, Tatiana Dahmer Pereira e Maria Cristina Paulo Rodrigues, Lucia Xavier recupera sua história/trajetória de formação pessoal e política encadeada na história do país e dos movimentos de mulheres negras pela vida, por dignidade e por direitos.
A Seção Teses e Dissertações é composta, neste número, por três relevantes trabalhos, em total acordo com a análise crítica do real e da temática em tela. Sob o título “Mulheres dos Escombros”: a condição das mulheres periféricas em tempos de catástrofes, Scheilla Nunes Gonçalves apresenta as ideias principais da sua tese de doutorado (PPGSS/UFRJ), propondo que a análise sobre as condições de vida das mulheres (incluída a violência a que são submetidas) deve ser pensada desde a periferia do capitalismo sob o aprofundamento da crise civilizacional contemporânea. No diálogo com a crítica do valor (em KURZ e SCHOLZ) e Menegat, sobre a realidade brasileira, a autora se preocupa em “evidenciar a relação violenta entre desenvolvimento das forças produtivas, direitos e punição.”
Célia Barbosa da Silva Pereira nos apresenta sua tese de doutorado (PPGPS-UFES). Intitulada A relação entre movimento feminista e partidos políticos no Brasil, sua pesquisa acurada e bem fundamentada nos traz elementos importantes para pensarmos os cursos dos movimentos sociais (em particular os feministas na sua complexidade) e as formas organizativas institucionalizadas no contexto da crise capitalista.
A dissertação de Priscila Moreira Borges, intitulada Trabalhadoras do Brasil, uni-vos: a Central Única dos Trabalhadores (CUT) - uma história escrita sob uma perspectiva de gênero, buscou analisar as relações de gênero na trajetória da Central Única dos Trabalhadores (CUT) entre os anos de 1983 e 2010, percebendo o processo de desigualdade que ainda persiste nos organismos de poder da entidade. O estudo é relevante na medida em que traz uma inter-relação entre gênero- sindicalismo-participação política das mulheres trabalhadoras, além de apresentar os condicionantes que dificultam a participação das mulheres na vida sindical, não apenas por sua tripla jornada, mas sobretudo pela forte presença do patriarcado no movimento sindical.
A Seção Memória e Documentos traz o texto de Leila Barsted, advogada e militante feminista histórica. Sob o título de Quem ama não mata. Temos que voltar às ruas!, a autora nos brinda com a recuperação de uma campanha realizada pelos movimentos feministas, nos anos 1980, contra a violência que tirava a vida das mulheres e encontrava nas instituições brasileiras a leniência em favor do poder patriarcal. A importância do texto está tanto no resgate dos desdobramentos e conquistas que se seguiram às lutas feministas, quanto no alerta de que essas não são garantias imutáveis – como o recrudescimento do conservadorismo atual comprova – e, por isso, o chamamento para a volta às ruas.
Este denso, rico e atual material que reunimos no número 38 da Revista Trabalho Necessário não esgota, com certeza, os desafios teórico-práticos que a temática de “gênero” encampa. No entanto, o esforço e a seriedade demonstrado por nossas autoras e autores no trato do seu “objeto” de pesquisa apontam para a complexa articulação entre as várias dimensões da opressão, da desigualdade, da exploração/dominação e exclusão no capitalismo contemporâneo, o que definitivamente não pode ser analisado e enfrentado sem o reconhecimento da interseção entre classe, raça, gênero.
É por isso também que, ao contrário do que afirmam os militantes do Escola sem Partido e de vários outros grupos conservadores, a Escola (em todos os níveis) é lugar, sim, do debate sobre desigualdades sociais, opressões raciais e as “questões de gênero” (FRASER, 2019; FRIGOTTO, 2017).
Esperamos que as reflexões aqui reunidas contribuam para o avanço neste debate e na formulação de políticas e práticas sociais sustentadas na defesa substancial da justiça, da igualdade na diversidade e da liberdade.
Boa Leitura!
FRASER, Nancy. Feminismo, capitalismo e a astúcia da história. In: Heloísa Buarque de Hollanda (org.) Pensamento feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2018.
FRIGOTTO, Gaudêncio (org). Escola “sem” partido: esfinge que ameaça a educação e a sociedade brasileira. Rio de Janeiro: UERJ, LPP, 2017.
KURZ, Robert. A crise do valor de troca. Rio de Janeiro: Consequência Editora, 2018.
MASCARO, Alysson Leandro. Dinâmica da crise e do golpe: de Temer a Bolsonaro. Bolsonaro – Margem Esquerda. Revista da Boitempo 32. 1º semestre de 2019. São Paulo: Boitempo, 2019.
MÉSZAROS, István. A crise estrutural do capital. São Paulo: Boitempo, 2011.
V.19, nº 38, 2021 (jan-abr) ISSN: 1808-799 X
Alexandra Kollontai
Jovem camarada: me perguntas que lugar corresponde ao amor na ideologia proletária. Admira-te o fato de que nos momentos atuais a juventude trabalhadora “se preocupe muito mais com o amor e todas as questões a ele relacionadas” que os grandes assuntos que a República dos operários tem por resolver. Se isto é assim
— dificilmente posso apreciar de longe —, busquemos juntos a explicação deste feito e vamos encontrar a resposta para este primeiro problema: que lugar tem o amor na ideologia da classe operária?
É fato verdadeiro que a Rússia Soviética entrou em uma nova etapa de guerra civil. A frente revolucionária foi deslocada. Na atualidade, a luta deve livrar-se
1 Originalmente publicado em A. Kollontai, «Дорогу крылатому Эросу! (Письмо к трудящейся молодежи)» en Молодая гвардия [Molodaia Gvardiia], 1923, No 3. С. 111—124. Disponível em https://www.marxists.org/portugues/kollontai/1923/mes/90.htm (Creative Commons).
entre duas ideologias, entre duas civilizações: a ideologia burguesa e a proletária. Sua incompatibilidade se mostra cada vez com maior claridade. As contradições entre estas duas civilizações diferentes se aguçam a cada dia.
O triunfo dos princípios e ideias comunistas no campo da política e da economia tinha inescapavelmente que ser a causa de uma revolução nas ideias sobre a concepção do mundo, nos sentimentos, em toda criação espiritual da humanidade produtora. Já hoje se pode apreciar uma transformação destas concepções da vida, da sociedade, do trabalho, da arte e das “nossas normas de condutas”, isto é, da moralidade. As relações sexuais constituem uma parte importante destas normas de conduta. A revolução na frente ideológica colocará ponto final a transformação realizada no pensamento humano durante os cinco anos de vida da República dos trabalhadores.
Não obstante, a medida que se acirra a luta entre as duas ideologias: a burguesa e a proletária; a medida que esta luta se expande e abarca novos domínios, apresentam-se, ante a humanidade, novos “problemas da vida” que unicamente a classe operária poderá resolver de forma plena. Encontram-se entre estes múltiplos problemas, jovem camarada, o que tu aponta: “o problema do amor”, que nas diversas fases de seu desenvolvimento histórico, a humanidade pretendeu resolver por procedimentos diversos. Porém, “o problema” persistia: variavam, única e exclusivamente, suas intenções de solução, que diferem, obviamente, segundo o período, a classe e o que lhe constituía o “espírito da época” ─ ou dito de outra forma, a cultura.
Na Rússia, durante anos de intensa guerra civil e de luta contra a desorganização econômica, e até recentemente, apenas alguns estavam interessados neste problema. Eram outros sentimentos, outras paixões mais reais as que preocupavam a humanidade trabalhadora. Quem havia sido capaz de preocupar-se seriamente dos pesares e sofrimentos do amor através daqueles anos em que o fantasma descarnado da morte cercava a todos? Durante aqueles anos, o problema vital se resumia em saber: quem vencerá? A revolução (o progresso) ou a contrarevolução (o reacionarismo)?
Diante do aspecto sombrio do enorme conflito, da revolução, o delicado Eros tinha ferozmente que desaparecer de uma forma apressada. Não havia oportunidade nem energias psíquicas para refugiar-se nas “alegrias” e “torturas” do amor. A humanidade responde sempre a uma lei de conservação da energia social e
psíquica. E esta energia se aplica sempre ao fim fundamental e imediato do momento histórico. Por isso, durante estes anos se adiou da situação a voz, simples e natural, da Natureza, o instinto biológico da reprodução, a atração entre dois seres de sexo contrário. O homem e a mulher se uniam e se separavam facilmente, muito mais facilmente que no passado. O homem e a mulher se entregavam mutuamente, sem estremecimento em suas almas, e se separavam sem lágrimas nem dor.
É certo que desaparecia a prostituição; mas, em troca, aumentavam as uniões livres entre os sexos, uniões sem compromissos mútuos, e nas quais o fator principal era o instinto de reprodução, desprovido da beleza e dos sentimentos de amor. Muitos foram os que diante deste fato sentiram espanto; mas é evidente que durante aqueles anos as relações entre os sexos não podiam ser de outro modo. Não podiam se dar mais que duas formas de união sexual: o matrimônio consolidado durante vários anos por um sentimento de camaradagem, de amizade conservada através dos anos, e que, precisamente, pela seriedade do momento, convertia-se em um vínculo de união mais firme, ou, ao contrário, as relações matrimoniais que surgiam para satisfazer uma necessidade puramente biológica e constituíam simplesmente um capricho passageiro, do que ambas as partes se saciavam logo, e que se apressavam a terminar rapidamente, a fim de não obstaculizar-se o fim essencial da vida: a luta pelo triunfo da revolução.
O brutal instinto de reprodução, a simples atração dos sexos, que nasce e desaparece com a mesma rapidez, sem criar laços sentimentais nem espirituais, é esse Eros “sem asas”, que não absorve as forças psíquicas que o exigente Eros “alado” consome, amor tecido com emoções diversas que foram sido forjadas no coração e no espírito. O Eros “sem asas” não emenda noites de insônia, não faz vacilar a vontade nem enche de confusão o frio trabalho do cérebro. A classe formada pelos lutadores não podia deixar-se levar pelo Eros de asas abertas naqueles momentos de transtornos da revolução que chamavam sem cessar ao combate a humanidade trabalhadora; durante aquelas jornadas era inoportuno desperdiçar as forças psíquicas dos membros da coletividade que lutava, em sentimentos de ordem secundária, que não contribuíam de uma maneira direta com o triunfo da revolução. O amor individual, que constitui a base do matrimônio, que se concentra em um homem ou em uma mulher, exige uma perda enorme de energia psíquica. Durante aqueles anos de luta, a classe operária, artífice da nova vida, não estava interessada somente na maior economia possível de suas riquezas materiais,
senão que intentava economizar também a energia de cada um de seus membros para aplicar-lhe as tarefas gerais da coletividade. Não é outra a razão pela qual, durante o período agudo da luta revolucionária, o “Eros alado”, que arrasa tudo em seu caminho, tivesse sido substituído pelo instinto pouco exigente da reprodução, pelo Eros desprovido de asas.
Agora o quadro é completamente distinto. A URSS, e com ela toda a humanidade trabalhadora, entrou em um período de relativa calma. Começa agora um trabalho essencialmente complexo, posto que se trata de fixar e compreender de uma maneira definitiva tudo que foi criado, adquirido, conquistado. O proletariado, arquiteto das novas formas de vida, se vê obrigado a tirar uma lição de todo fenômeno social e psíquico. Deve, portanto, compreender também este fenômeno, assimilá-lo, apropriar-se e transformá-lo em mais uma arma para a defesa de sua classe. Só depois de ter assimilado as leis que presidem a criação das riquezas materiais e as que dirigem os sentimentos da alma poderá o proletariado entrar na briga armado até os dentes contra o velho regime burguês. Só então a humanidade assalariada poderá vencer na frente ideológica como triunfou na militar e na do trabalho.
Uma vez consolidado o triunfo da revolução russa, começa a aclarar a atmosfera do combate revolucionário, e o homem já não se entrega inteiramente à luta, o terno de Eros de “asas abertas”, desprezado durante os anos de agitação, reaparece de novo e reclama seus direitos. Atreve-se a sair de novo da sombra do insolente Eros “sem asas”, do instinto de reprodução, que desconhece os encantos do amor, porque ele não mais satisfaz as necessidades dos homens. Neste período de relativa calma se acumulou um excedente de energia que os homens do presente, mesmo os representantes da classe trabalhadora, não sabem, entretanto, aplicar à vida intelectual da coletividade. Este excedente de energia psíquica busca sua saída nos sentimentos amorosos. A lira de múltiplas cordas do deus alado do Amor apaga de novo o som da monótona voz do Eros “sem asas”. O homem e a mulher não se unem mais como durante os anos da revolução, não buscam uma união passageira para satisfazer seus instintos sexuais, até que começam a viver de novo “novelas de amor”, com todos os sofrimentos e o êxtase amoroso que vão acoplados ao Eros alado.
Na República Soviética, estamos testemunhando um crescimento patente nas necessidades intelectuais; se sente mais avidez para o saber a cada dia; as
questões científicas, o estudo da arte, o teatro, despertam todo o nosso interesse. Esta ânsia de pesquisa sentida na República Soviética para encontrar novas maneiras de encerrar as riquezas intelectuais da Humanidade inclui também, naturalmente, a esfera dos sentimentos amorosos. Observa-se, pois, um despertar de interesses em tudo o que se refere a psicologia sexual, isto é, ao “problema do amor”. Esta é uma fase da vida da qual participam com maior ou menor intensidade todos os indivíduos. Observa-se com assombro como militantes, que há algum tempo não liam mais que dois artigos editoriais do diário Pravda, agora leem com fruição livros onde se canta ao “deus Eros de asas abertas”
Podemos interpretar isto como sintoma de reacção? Talvez como sinal de decadência da ação revolucionária? De modo algum. Já é tempo de rejeitarmos de uma vez por todas toda a hipocrisia do pensamento burguês. Chegamos ao momento de reconhecer amplamente que o amor não é só um poderoso fator da natureza, que não é somente uma força biológica, mas também social. O amor é, por essência, um sentimento de caráter profundamente social. O certo é que o amor, em suas diferentes formas e aspectos, constituiu em todos os graus do desenvolvimento humano uma parte indispensável e inseparável da cultura intelectual de cada época. Mesmo a burguesia, que às vezes reconhece que o amor é “um assunto de ordem privada”, na realidade como acorrentar o amor aos seus padrões morais para que sirva a afirmação de seus interesses de classe.
Porém há outro aspecto dos sentimentos amorosos ao qual a ideologia da classe trabalhadora deve atentar-se com maior importância. Nos referimos ao amor considerado como um fator do qual se pode obter benefícios a favor da coletividade, o mesmo que qualquer outro fenômeno de caráter social e psíquico. Que o amor não é, de modo algum, um “assunto privado” que interesse somente a dois corações isolados, mas, ao contrário, que o amor supõe um princípio de união de valor inestimável para a coletividade, evidenciado com o fato de que em todos os graus de seu desenvolvimento histórico a Humanidade estabeleceu pautas que especificam quando e em que condições o amor era considerado “legítimo” (quer dizer, quando correspondia aos interesses da coletividade), e quando tinha que ser condenado como “culpado” (isto é, quando o amor conflitava com os princípios da sociedade).
A Humanidade começou, quase desde tempos antigos, a estabelecer regras que regulavam não somente as relações sexuais, como também os sentimentos amorosos.
Na etapa do patriarcado, a virtude moral suprema dos homens, era o amor determinado pelos vínculos de sangue. Naquela época, uma mulher que se sacrificava por seu marido ou amante merecia a desaprovação e o desprezo da família ou tribo a que pertencia. Ao invés disso, era atribuída uma grande importância aos sentimentos amorosos por um irmão ou irmã. A Antígona dos gregos enterrava os cadáveres de seus irmãos mortos correndo risco de vida. Este fato apenas tornava Antígona uma heroína aos olhos de seus contemporâneos. A sociedade burguesa de nossos tempos qualificaria esta ação, terminada pela irmã e não pela esposa, como algo escandaloso e um tanto impróprio. Durante os anos de domínio da sociedade patriarcal e da formação das estruturas do Estado, o sentimento de amor foi, sem dúvida de qualquer espécie, a amizade entre dois indivíduos da mesma tribo. Era de uma importância transcendental para a coletividade, que mal havia passado da fase de organização puramente familiar e, portanto, ainda se sentia socialmente frágil, que todos os seus membros estivessem unidos por sentimentos de amor e laços espirituais.
As emoções do espírito que respondiam melhor a esta finalidade eram as determinações do amor-amizade e não dos sentimentos amorosos das relações sexuais. Durante este período, os interesses da coletividade exigiam a Humanidade o crescimento e acumulação de laços espirituais, não entre os casais unidos em matrimônio, mas entre os organismos da mesma tribo, entre os organizadores e defensores da tribo e o Estado. (Não havia menção aqui de amizade entre mulheres, uma vez que as mulheres, naquela época, não podiam ser consideradas um fator social).
No patriarcado se admiravam as virtudes do amor-amizade, que era considerado como um sentimento muito superior ao amor entre esposos. Castor e Pólux não passaram para a posterioridade por suas façanhas e serviços prestados à pátria. Foram os sentimentos de mútua fidelidade, amizade inseparável e indestrutível que fizeram seus nomes chegarem a nós. A “amizade” (ou o que aparenta ser um sentimento de amizade) era o que obrigava o marido apaixonado
por sua esposa a ceder ao amigo preferido seu posto no leito conjugal. Outras vezes não era sequer o amigo, mas também o hóspede, a quem tinha que demonstrar a verdade de um sentimento de “amizade”, aquilo que supria o marido junto à mulher.
A amizade, sentimento que supõe “a fidelidade ao amigo até a morte”, foi considerada no mundo antigo com uma virtude cívica. Todo o contrário sucedia no amor e no sentido contemporâneo desta palavra, que não tinha nenhum papel na sociedade e nem sequer captava a atenção dos poetas ou dos dramaturgos da época. A ideologia daqueles tempos considerava o amor incluído nos quadros dos sentimentos exclusivamente pessoais, dos quais a sociedade não tinha porque se ocupar. O amor ocupava o lugar de outra distração qualquer: era um luxo que um cidadão podia se permitir depois de cumprir suas obrigações para com o Estado.
A qualidade de “saber amar”, tão valorizada pela ideologia burguesa quando o amor não vai além dos limites impostos pela moral de sua classe, carecia de sentido no mundo antigo quando se tratava de apontar as “virtudes” e qualidades características do homem. Na antiguidade, o único sentimento de amor que tinha valor era a amizade. O homem que realizava façanhas e arriscava sua vida pelo amigo alcançava fama, como os heróis lendários; sua ação se considerava como a expressão da “virtude moral”. Do contrário, o homem que arriscava sua vida pela da mulher amada incorria na reprovação de todos, reprovação que poderia inclusive chegar até em desprezo. Todos os escritos da antiguidade condenam os amores de Paris e a bela Helena, que foram a origem da Guerra de Tróia, guerra que somente “infortúnio” poderia acarretar aos homens.
O mundo antigo apreciava apenas a amizade como sentimento capaz de consolidar os laços espirituais necessários para a manutenção do organismo social entre os indivíduos de uma tribo, inescapavelmente frágeis naquela época. Por isso, posteriormente, a amizade deixou de ser considerada uma virtude moral.
Na sociedade burguesa, construída sobre a base do individualismo, concorrência desenfreada e simulação, já não há lugar para a amizade, considerada como fator social. A sociedade capitalista considerava a amizade como manifestação de “sentimentalismo”; portanto, como uma fraqueza de espírito completamente inútil e até nociva para a realização das tarefas de classe burguesas. A amizade na sociedade burguesa se transforma em motivo de trapaças. Se Castor e Pólux tivessem vivido em nossos tempos, sua amizade sem limites teriam provocado o sorriso indulgente da sociedade burguesa de Nova Iorque ou Londres.
A sociedade feudal tampouco admitiu o sentimento de amizade como uma qualidade digna das que foram dignas de cultivar entre os homens.
O fundamento da sociedade feudal consistia no estrito cumprimento dos interesses das famílias nobres. A virtude não estava determinad a pelas relações mútuas dos membros da sociedade, mas também pelo cumprimento dos deveres de um membro de uma família com respeito a ela e suas tradições. Predominavam no matrimônio os interesses familiares e, portanto, o homem jovem (a garota não tinha poder de escolha) que preferia uma mulher contra os interesses familiares sabia que tinha que fazer frente a censuras e desaprovações severas. Na Idade Média, não era conveniente para um homem antepor seus sentimentos pessoais aos interesses da família; era considerado um “pária” o que pretendesse romper as normas estabelecidas pela sociedade do seu tempo. Na ideologia da época feudal, o amor e o matrimônio não podiam andar juntos.
Porém, durante o feudalismo, o sentimento de amor entre seres de sexo contrário adquiriu certo direito pela primeira vez na História da Humanidade. À primeira vista, parece estranho o fato de que o amor fora reconhecido como tal naqueles tempos de ascetismo, de costumes brutais, naquela época de violências e do reinado do direito de usurpação. Mas se analisarmos detidamente as causas que tem obrigado ao reconhecimento do amor como um fator social, não somente ilegítimo, mas também desejável, veremos perfeitamente claros os motivos que determinaram o reconhecimento do amor. O homem apaixonado pode ser impelido pelo sentimento do amor (em determinados casos e com a ajuda de determinadas circunstâncias) a realizar feitos que não poderia executar em outra disposição mental.
A cavalaria errante exigia a todos os seus membros, no domínio militar, a prática de elevadas virtudes, mas de caráter exclusivamente pessoal. Estas virtudes eram a coragem, a bravura, a resistência etc. Naquela época, não era a organização do exército o determinante para a vitória no campo de batalha, mas as qualidades individuais dos combatentes. O cavaleiro apaixonado de sua dama inconquistável, “a escolhida de seu coração”, poderia ser o herói de verdadeiros “milagres de bravura”, poderia triunfar mais facilmente nos torneios e sabia sacrificar destemidamente sua vida em nome de sua amada. O cavaleiro apaixonado era movido pelo desejo de “diferenciar-se”, para conquistar assim os favores da escolhida de seu coração.
Este fato, por conseguinte, foi levado em conta pela ideologia cavaleiresca. Como reconhecia no amor o poder capaz de provocar no homem um estado psicológico útil para as finalidades da classe feudal, procurou, naturalmente, dar um lugar preferente ao amor nos sentimentos determinantes de sua ideologia. Naquele período, o amor entre os esposos não pode inspirar os cantos dos poetas, posto que o amor não era a base em que se fundamentava a família que vivia nos castelos. O amor como fator social só era valorizado quando se tratava dos sentimentos amorosos do cavalheiro pela esposa de outro, sentimentos que o levavam a realizar atos corajosos. Quanto mais inacessível estava a mulher escolhida, maior era o esforço realizado por seu cavaleiro para conquistar seus favores com as virtudes e qualidades apreciadas em seu mundo (coragem, resistência, tenacidade e bravura).
O natural era que a dama escolhida por um cavaleiro ocupasse uma posição o mais inacessível possível. A senhora de seus pensamentos, escolhida pelo cavaleiro, era correntemente a mulher do senhor feudal. Em algumas ocasiões, o cavaleiro era tão ousado que pousava os olhos sobre a rainha. Este ideal inacessível se baseava na concepção de que unicamente o “amor espiritual”, o amor sem satisfações carnais, que impulsionava o homem a tomar parte em feitos heróicos e lhe obrigava a realização de “milagres de bravura”, era digno de ser citado como modelo e merecer a qualificação de “virtude”.
As moças solteiras não eram nunca objeto da adoração dos valentes cavaleiros. Por mais elevada que fosse a posição, a adoração do cavaleiro podia terminar em matrimônio. Neste caso desaparecia inevitavelmente o fator psicológico que levava o homem a atos heróicos. Diante deste perigo, a moral feudal não poderia admitir o amor do cavaleiro pela moça solteira. O ideal de ascetismo (abstinência sexual) tem pontos de contato com a elevação do sentimento amoroso convertido em virtude moral.
O anseio de purificar o amor de tudo que fosse carnal, “culpável”; a aspiração de transformar o amor em um sentimento abstrato levava os cavaleiros da Idade Média a cair em monstruosas aberrações: escolhiam como “senhora de seus pensamentos” mulheres que nunca haviam visto, chegando inclusive a se apaixonar pela “Virgem Maria”. Não creio que seja possível desviar mais um sentimento. A ideologia feudal considerava, antes de tudo, o amor como um estimulante para fortalecer as qualidades necessárias a todo cavaleiro; o “amor espiritual”, a adoração do cavaleiro pela dama de seus pensamentos, serviam diretamente aos interesses
da casta feudal. Esta apreciação foi a que fixou, desde os primórdios das época feudal, o conceito de amor. Antes da traição carnal da mulher, antes do “adultério” da esposa, o cavaleiro da Idade Média não hesitava, a enclausurava ou matava. Ao contrário, ele ficava lisonjeado se outro cavalheiro escolhesse sua esposa como a senhora de seus pensamentos e até mesmo permitia a ela uma corte de amor composta de "amigos espirituais".
Do contrário, a moral feudal cavaleiresca, que cantava e exaltava o amor espiritual, não exigia que as relações matrimoniais ou outras formas de união sexual tivessem por base o amor. O amor era uma coisa e o matrimônio outra. A ideologia feudal estabelecia entre estas duas noções uma clara distinção.
As noções de amor e matrimônio não se unificaram até os séculos 14 e 15, nos quais viu se iniciar a moral burguesa. Isto explica que, ao longo da Idade Média, os sentimentos amorosos elevados e delicados chocam-se com a grande brutalidade de costumes no domínio das relações sexuais. Como as relações sexuais, tanto no matrimônio mais legítimo como fora dele, estavam privadas do sentimento de amor capaz de transfigurá-las, ficavam reduzidas ao simples ato fisiológico.
A Igreja parecia excomungar a libertinagem; mas como promovia o “amor espiritual” de boca em boca, não fazia, na realidade, mais do que patrocinar relações brutais entre os sexos. O cavaleiro que levava sempre em seu coração o emblema da senhora de seus pensamentos, que compunha em sua honra versos cheios de delicadeza, que arriscava sua vida para merecer o sorriso de seus lábios, violava tranquilamente uma jovem da aldeia ou mandava seu escudeiro lhe levar ao castelo para distrair-se com as camponesas mais belas dos arredores.
As mulheres dos cavaleiros também não cessaram, imitando seus maridos, de gozar os prazeres carnais com trovadores e pajens. Em algumas ocasiões, estas esposas até admitiam as carícias dos criados, apesar de seu desprezo por eles.
À medida que a sociedade feudal perdia sua força, quando surgiam novas condições de vida que impunham os interesses da classe burguesa em formaçã o, um novo ideal moral nas relações sexuais foi sendo criado aos poucos. A burguesia incipiente rejeitou o ideal do "amor espiritual" e tomou sob sua defesa os direitos do amor carnal, tão desprezados durante o feudalismo. A burguesia traz de volta ao amor a fusão do físico com o espiritual.
Entre o amor e o casamento, a moralidade burguesa não fazia diferença. Pelo contrário, o casamento tinha que ser determinado pela inclinação mútua entre os cônjuges. Embora a burguesia violasse com muita frequência este princípio moral, na prática, por razões de conveniência, é evidente que reconhecia o amor como fundamento do casamento. A burguesia tinha sólidas razões de classe para isso.
A família estava, no regime feudal, cimentada por tradições da nobreza. O matrimônio era de fato indissolúvel; sobre o casal unido em matrimônio pesavam os mandamentos da Igreja, a autoridade ilimitada dos chefes de família, o ascendente das tradições e da vontade do senhor feudal.
Sob outras condições, a família burguesa foi formada: não se baseava na posse de riqueza patrimonial, mas na acumulação de capital. A família se convertia em guardiã da riqueza acumulada. Mas para que esta acumulação se realizasse o mais rapidamente possível, era muito importante para a classe burguesa que os bens adquiridos pelo marido ou pai fossem gastos "economicamente", de forma inteligente, para não os desperdiçar. Era preciso, portanto, que a mulher fosse amiga e assistente do marido, além de "boa dona de casa".
Quando se estabeleceram as relações capitalistas, somente a família, na qual existia uma estreita colaboração entre todos os seus membros interessados na acumulação de riquezas, foi fundada em bases sólidas. Esta colaboração era muito mais perfeita e dava melhores resultados se os esposos e filhos estavam, no que diz respeito aos pais, unidos por verdadeiros laços espirituais e de carinho.
A nova estrutura econômica desta época contribuiu, a partir de fins do século 14 e início do 15, para o nascimento da nova ideologia. Gradualmente mudou-se o aspecto das relações de amor e matrimônio. Lutero, o reformador religioso, e com ele todos os pensadores e homens de ação do Renascimento e da Reforma (séculos 15 e 16), compreenderam claramente a força que o sentimento de amor implicava. Os ideólogos revolucionários da burguesia nascente se deram conta de que, para que a família pudesse ter uma base sólida (unidade econômica na base do regime burguês), era inevitável uma íntima união entre todos os seus membros e proclamaram a fusão do amor carnal e o amor psíquico, como um novo ideal moral de amor.
Estes reformadores se burlavam sem piedade do “amor espiritual” dos cavaleiros apaixonados, forçados a se consumir em seus desejos amorosos, sem esperança de satisfazê-los. Os ideólogos burgueses, os homens da Reforma,
reconheceram a legitimidade das sãs exigências da carne. O mundo feudal dividia o amor e lhe obrigava tomar duas formas completamente independentes uma da outra: o simples ato sexual de um lado (relações sexuais do matrimônio ou do concubinato) e um sentimento de “elevado” amor platônico por outro ser (o amor que sentia o cavaleiro pela senhora de seus pensamentos).
O ideal moral da classe burguesa compreendia, na noção do amor, a atração carnal saudável entre os sexos e a afinidade psíquica. O ideal feudal estabelecia uma diferenciação clara entre o amor e o matrimônio. A burguesia fundia estes dois conceitos. Para a burguesia, o conceito do amor era equivalente ao do matrimônio.
Naturalmente, na prática, a burguesia violava seu próprio ideal. Enquanto na época feudal não tivesse havido sublevação contra a questão da inclinação mútua, a moral burguesa exigia, ainda que o matrimônio fosse por questões de conveniência, que os esposos aparentassem amar um ao outro, mesmo que somente em público.
Os preconceitos de amor e casamento da época feudal eram tão fortes que conservaram-se até nossos dias por sua adaptação ao meio ambiente durante os séculos de moralidade burguesa. Em nossos tempos, os membros das famílias coroadas e da alta aristocracia que os rodeiam ainda obedecem a essas tradições. Nestes meios da sociedade, o matrimônio de inclinação se qualifica de “ridículo” e sempre produz escândalo. Os jovens príncipes e princesas têm que se submeter à tirania das tradições de raça e as conveniências políticas de seu país e unir sua vida a uma pessoa que não conhecem nem amam. A história conserva um grande número de dramas como o do infeliz filho de Luís XV, que foi levado a realizar um casamento secreto apesar da profunda tristeza que sofria com a memória da morte de sua esposa, a quem havia amado apaixonadamente.
Existe igualmente entre os camponeses a subordinação do matrimônio a considerações de interesses. A família camponesa difere precisamente nisto da família burguesa da cidade. A família camponesa é, antes de tudo, uma unidade econômica de trabalho. Os interesses econômicos dominam de tal modo a família camponesa que todos os demais laços de ordem psíquica desempenham um papel secundário.
O amor nunca foi levado em consideração na família da Idade Média quando o casamento era arranjado. Na época das guildas de artesãos, a família era também uma unidade de produção que descansava sobre o princípio econômico do trabalho. O ideal do amor em um casamento não começa a aparecer até que a família deixa
de ser uma unidade de produção para se converter em uma unidade de consumo e em guardiã do capital acumulado.
Mas apesar da moral da burguesia proclamar o direito de “dois corações amantes” unirem-se mesmo contra as tradições familiares, apesar de se burlar do “amor platônico” e do ascetismo e de afirmar que o amor era a base do matrimônio, era muito cuidadosa em por estreitas rédeas a todas as suas concessões. O amor não poderia ser considerado como um sentimento mais legítimo que o matrimônio: fora dele, o amor era considerado imoral. Este ideal respondido à consideração é de natureza econômica: evitar que o capital acumulado se espalhe com os filhos nascidos da união conjugal. Toda a moral da burguesia tinha por função contribuir com a acumulação do capital. O ideal de amor ficava, portanto, constituído no casal unido em matrimônio, cujo fim era aumentar seu bem estar material e as riquezas no núcleo familiar completamente isolado do resto da sociedade. Quando os interesses da família e da sociedade se confrontavam, a moral burguesa sempre se inclinava a favor dos interesses da família. (Por exemplo, a condescendência, não admitida por lei, mas que a moral burguesa concedia aos desertores; a justificativa moral de um administrador dos interesses de vários acionistas que lhe haviam confiado seus fundos, que ele arruinou para aumentar o patrimônio família etc.)
A burguesia, com o espírito utilitarista que a caracterizava, pretendia tirar proveito do o amor e converter, portanto, esse sentimento em um meio de consolidar os laços de família.
Mas o amor estava aprisionado com fortes correntes pelos limites impostos pela ideologia burguesa. Assim, os "conflitos de amor" nasceram e se multiplicaram. O romance, um novo gênero literário criado pela classe burguesa, serviu para expressar os conflitos amorosos causados pela corrente do amor. O amor ultrapassava constantemente os limites matrimoniais que lhe eram impostos e assumia a forma de união livre ou adultério, condenadas pela moral da burguesia, que na realidade nada mais fazia do que cultivar.
Este ideal burguês de amor, que não satisfaz os desejos da classe trabalhadora, não corresponde às necessidades da maior camada social. Tampouco satisfaz as aspirações de vida dos trabalhadores intelectuais. A isto se deve o enorme interesse que despertam todos os problemas de sexo e amor surgidos nos países de capitalismo desenvolvido. É aqui que se originam pesquisas apaixonadas para encontrar uma solução para este problema angustiante que assola a
humanidade há vários séculos. Como será possível estabelecer relações entre os sexos que ajudem a tornar os homens mais felizes, mas ao mesmo tempo não destruam os interesses da comunidade?
A juventude trabalhadora da Rússia passa pelo mesmo problema. Uma breve análise da evolução das relações conjugais e dos sentimentos de amor nos ajudará, jovem camarada, a compreender uma verdade indiscutível: que o amor não é um assunto privado, como parece à primeira vista. O amor é um precioso fator social e psíquico que a Humanidade maneja instintivamente de acordo com os interesses da comunidade. A humanidade trabalhadora, munida do método científico do marxismo e da experiência do passado, deve compreender o lugar que a nova Humanidade deve reservar ao amor nas relações sociais. Qual é, então, o ideal de amor que corresponde aos interesses da classe que luta para estender seu domínio por todo o mundo?
Não devemos confundir esta dualidade com as relações sexuais de um homem com várias mulheres, ou de uma mulher com vários homens, quando falamos da dualidade do sentimento de amor, das complexidades do “Eros de asas abertas”. A poligamia, na qual o sentimento de amor não ocorre, pode ser causa de consequências nefastas (esgotamento prematuro, maior facilidade para contrair doenças venéras etc.); mas estas uniões não criam “dramas morais”. Os conflitos, os “dramas” surgem quando nos encontramos na presença do amor com todas as suas manifestações e nuances.
Pode uma mulher amar um homem “pelo seu espírito” somente se seus pensamentos, seus desejos e suas aspirações se harmonizarem com os seus e, ao mesmo tempo, pode sentir-se arrastada pela poderosa atração física por outro homem. O mesmo que a mulher pode o homem experimentar um sentimento de ternura cheio de considerações, compaixão cheia de desejo por uma mulher, ainda que encontre em outra seu apoio e compreensão das mais altas e melhores aspirações de seu “eu”. A qual destas duas mulheres deverá entregar a plenitude de “Eros”? Terá necessariamente que mutilar sua alma e arrancar um destes dois sentimentos quando apenas pode adquirir a plenitude de seu ser com o mantimento destes dois laços de amor?
O desdobramento da alma e do sentimento traz consigo inevitáveis sofrimentos sob o regime burguês. A ideologia baseada no instinto da propriedade incutiu no homem por séculos e séculos que todos os sentimentos de amor devem
ser baseados em um princípio de propriedade. A ideologia burguesa tem gravado na cabeça dos homens a ideia de que o amor dá direito a possuir plenamente, e sem compartilhar com ninguém, o coração do ser amado. Este ideal, esta exclusividade no sentimento de amor, era a consequência natural da fórmula estabelecida do casamento indissolúvel do ideal burguês de “amor absorvente” entre os esposos. Mas pode um ideal desta classe responder aos interesses da classe trabalhadora? Do ponto de vista da ideologia proletária, é muito mais importante e desejável que as sensações dos homens se enriqueçam cada vez com maior conteúdo e sejam mais diversas. A multiplicidade da alma constitui um feito precisamente facilitador da educação e do desenvolvimento dos laços do espírito e do coração, mediante os quais se consolidará a coletividade trabalhadora. Quanto mais numerosos os fios que se estendem entre as almas, entre as mentes e os corações, mais solidez adquire o espírito de solidariedade e mais facilmente se realiza o ideal da classe operária: o amor-camaradagem.
A Humanidade do patriarcado apresentou o amor como o afeto entre os membros de uma família (amor entre irmãos e irmãs, entre filhos e pais). O mundo antigo colocava o amor-amizade antes de qualquer outro sentimento. O mundo feudal fazia do amor “espiritual” do cavaleiro seu ideal, amor independente do matrimônio e que não levava consigo a satisfação da carne. O ideal de amor da sociedade burguesa era o amor de um par unido com um sentimento legítimo.
O ideal de amor da classe operária está fundamentado na solidariedade de espírito e da vontade de todos os membros, homens e mulheres, na colaboração e no trabalho, e portanto, se distingue de um modo absoluto da noção de amor que tinham as outras civilizações. Que é, pois, o “amor-camaradagem”? Tudo isto quer dizer que a ideologia severa da classe trabalhadora, forjada em um clima de luta pelo triunfo da ditadura do proletariado, se prepara para expulsar sem piedade o delicado Eros alado? De modo algum. A ideologia da classe operária não pode desprezar o “Eros de asas despregadas”. A ideologia da classe trabalhadora não pode deslocar o "Eros de asas abertas". Muito pelo contrário; ou seja, como força social e psíquica, prepara o reconhecimento do sentimento de amor.
A moral hipócrita da cultura burguesa, que obrigava ao deus Eros não visitar mais que o “casal unido legalmente”, arrancava-lhe sem piedade as plumas mais belas de suas asas de cores brilhantes. Para a ideologia burguesa, fora do matrimônio não poderia existir mais que o Eros sem asas, o Eros despojado de suas
plumas de cores vibrantes; a atração passageira entre os sexos na forma de carícias roubadas (adultério) ou compradas (prostituição). Ao contrário, a moral da classe trabalhadora rejeita francamente a forma externa que estabelece as relações de amor entre os sexos.
Para a realização das tarefas do proletariado, é exatamente o mesmo que o amor tenha a forma de uma união estável ou que não tenha mais importância do que a de uma união temporária. A ideologia da classe operária não pode fixar limites formais ao amor. Esta ideologia, pelo contrário, começa a sentir inquietude pelo conteúdo do amor, pelos laços de emoções e sentimentos que unem os dois sexos. Neste sentido, a ideologia proletária tem que perseguir ao “Eros sem asas” (injúria, satisfação única dos desejos carnais por si mesmos, o que faz dele um “prazer sexual” com um fim em si mesmo, um prazer fácil etc.) mais inplacadamente que o fazia a moral burguesa. O “Eros sem asas” se contradiz com os interesses da classe trabalhadora. Este amor supõe, em primeiro lugar, inevitavelmente os excessos e o esgotamento físico, o que contribui para a diminuição da reserva de energia da Humanidade. Em segundo lugar, o “Eros sem asas” empobrece a alma, porque impede o desenvolvimento de sensações de simpatia e de laços psíquicos entre os seres humanos. Em terceiro lugar, este amor tem por base a desigualdade de direitos entre os sexos e as relações sexuais; isto é, está fundado na dependência da mulher em relação ao homem, na insenbilidade ou fatuidade do homem; tudo isso necessariamente sufoca qualquer possibilidade de experimentar um sentimento de camaradagem. Por outro lado, a ação exercida sobre os seres humanos pelo "Eros de asas abertas" é completamente diferente.
Como no "Eros sem asas", é claro que os sentimentos não se manifestam apenas nas relações com o objeto de amor físico entre os sexos. A diferença consiste precisamente no fato de que no ser movido por sentimentos de amor que o empurram para outro ser, principalmente aquelas qualidades da alma necessárias aos construtores da nova cultura, se manifestam e despertam: delicadeza, sensibilidade e desejo de ser útil ao outro. Por outro lado, a ideologia burguesa exige que o homem ou a mulher exibam essas qualidades apenas na presença do escolhido; isto é, em seus relacionamentos com um homem solteiro ou com uma mulher solteira. Para a ideologia proletária, o mais importante é que essas qualidades sejam despertadas, educadas e desenvolvidas em todos os homens e,
portanto, que se manifestem não apenas nas relações com o objeto amado, mas nas relações com todos os membros da comunidade.
Na verdade, as nuances e sentimentos predominantes no "Eros com asas abertas" não são importantes para o proletariado; o proletariado sente-se indiferente aos tons delicados do complexo do amor, às cores ígneas da paixão ou à harmonia do espírito. O que só lhe interessa é que em todos os sentimentos e manifestações de amor existam elementos psíquicos que desenvolvem o sentimento de camaradagem.
O ideal de camaradagem forjado pela ideologia proletária para substituir o amor conjugal "exclusivo" e "absorvente" da moral burguesa baseia-se no reconhecimento dos direitos recíprocos, na arte de saber respeitar, mesmo no amor, a personalidade de outro, no firme apoio mútuo e na comunidade de aspirações coletivas.
O amor-camaradagem é o ideal necessário para o proletariado em períodos difíceis de grandes responsabilidades, nos quais luta pelo estabelecimento de sua ditadura ou pelo fortalecimento de sua manutenção. Desta forma, quando o proletariado tiver triunfado plenamente e a sociedade comunista já for um fato, o amor, o "Eros alado", assumirá um aspecto completamente diferente do que tem atualmente, irá apresentar-se de uma forma totalmente diferente, adquirirá um aspecto completamente desconhecido até agora pelos homens. Entre os membros da nova sociedade, "laços de simpatia" terão se desenvolvido e fortalecido, "a capacidade de amar" será muito maior e o amor-camaradagem se tornará um "animador", função que originalmente estava reservada na sociedade burguesa à competição e ao egoísmo. O coletivismo de espírito e vontade triunfará sobre o individualismo autossuficiente. Desaparecerá o "frio da solidão moral", do qual, no regime burguês, os homens tentavam fugir refugiando-se no amor ou no casamento; os homens estarão unidos uns aos outros por inúmeros laços psíquicos e sentimentais. Os sentimentos dos homens serão modificados no sentido de interesses cada vez maiores para com os assuntos públicos. A desigualdade entre os sexos e todas as formas de dependência das mulheres em relação aos homens vão desaparecer no esquecimento sem deixar o menor vestígio.
Eros, o deus do amor, ocupará uma posição de honra como sentimento capaz de enriquecer a felicidade humana nesta nova sociedade, coletivista em espírito e emoções, caracterizada pela união feliz e relações fraternas entre membros da
comunidade trabalhadora e criadora. Como esse Eros será transfigurado? Nem mesmo a fantasia mais criativa pode imaginar isso. A única coisa indiscutível é que quanto mais a humanidade estiver unida por laços duradouros de solidariedade, mais intimamente ela estará em todos os aspectos da vida, relações mútuas ou criação. Consequentemente, menos espaço será deixado para o amor no sentido contemporâneo da palavra.
O amor peca sempre, nos nossos tempos, pelo excesso de absorção de todos os sentimentos, de todos os pensamentos entre dois "corações que se amam", e que, pelo mesmo motivo, isolam e separam o casal amoroso do resto da coletividade. Esse isolamento moral, esse afastamento do "parceiro amoroso" não apenas será completamente inútil, mas psicologicamente impossível em uma sociedade na qual os interesses, aspirações e tarefas de todos os membros da comunidade estão intimamente unidos. Neste novo mundo, a forma normal, reconhecida e desejável de relações entre os sexos será baseada puramente na atração saudável, livre e natural "sem perversões ou excessos" dos sexos; as relações sexuais dos homens na nova sociedade serão determinadas pelo "Eros transfigurado".
Mas hoje nos encontramos na esquina onde duas civilizações se cruzam: a civilização proletária e a civilização burguesa. Neste período de transição, em que estes dois mundos lutam ferozmente em todas as frentes, mesmo na ideológica, o proletário está muito interessado em conseguir por todos os meios à sua disposição o acúmulo mais rápido possível de "sensações ou sentimentos de simpatia". Neste período de transição, a ideia moral que determina as relações entre os sexos não pode ser o instinto sexual brutal, mas as múltiplas sensações de amor- camaradagem experimentadas por homens e mulheres. É necessário, para que essas sensações correspondam à nova moral proletária em formação, que se baseiem nos três postulados seguintes:
Igualdade nas relações mútuas (isto é, o desaparecimento da suficiência masculina e a submissão servil da individualidade da mulher ao amor).
Reconhecimento mútuo e recíproco dos seus direitos, sem reclamar a nenhum dos entes unidos por relações de amor a posse absoluta do coração e da alma do ente querido. (Desaparecimento do senso de propriedade fomentado pela civilização burguesa).
Sensibilidade fraterna: a arte de assimilar e compreender o trabalho psíquico que se realiza na alma do ente querido. (A
civilização burguesa só exigia que as mulheres possuíssem essa sensibilidade no amor).
Mas embora a ideologia da classe trabalhadora proclame os direitos do "Eros de asas estendidas" (do amor), subordina ao mesmo tempo o amor que os membros da comunidade trabalhadora sentem uns pelos outros a outro sentimento muito mais poderoso, um sentimento de dever para com a comunidade. Por maior que seja o amor que une duas pessoas de sexos diferentes, por quantos laços que unem seus corações e almas, os laços que os unem à comunidade devem ser muito mais fortes, mais orgânicos e mais numerosos. "Tudo pelo homem amado", proclama a moral burguesa. "Tudo pela comunidade" determina a moralidade proletária.
Agora ouço você argumentar, meu jovem camarada: concedido, como você afirma, que as relações de amor baseadas no espírito de fraternidade se tornam o ideal da classe trabalhadora. Mas esse ideal, essa "medida moral" do amor, não pesará muito sobre os sentimentos de amor? Não poderia acontecer que este ideal destrua e mutile as asas delicadas do "Suspeito-Eros"? Libertamos o amor das correntes da moralidade burguesa; mas será que não criaremos outras?
Meu jovem camarada, você está certo. Ao rejeitar a "moralidade" burguesa no domínio das relações matrimoniais, a ideologia proletária forja inevitavelmente sua própria moralidade de classe, suas novas e reguladoras normas de relações entre os sexos, que correspondem melhor às tarefas da classe trabalhadora, que servem para educar os sentimentos de seus membros e que, portanto, constituem em certa medida correntes que aprisionam o sentimento de amor. Não há dúvida de que o proletariado arrancará irrevogavelmente muitas penas das asas do delicado Eros, se falarmos do amor patrocinado pela ideologia burguesa, como essa ideologia o representa. Mas o que não se pode fazer, porque significa não perceber o futuro, é lamentar que a classe trabalhadora imprima as relações sexuais para fazer corresponder o sentimento de amor às suas tarefas de classe. É evidente que em vez das velhas penas arrancadas das asas de Eros, a classe ascendente da Humanidade fará crescer outras de beleza, brilho e força até então desconhecidos. Não te esqueças, jovem camarada, que o amor muda de aparência e se transforma inevitavelmente à medida que mudam os fundamentos culturais e econômicos da sociedade.
Se conseguirmos que desapareça das relações amorosas o sentimento cego, absorvente e exigente da paixão; se também desaparece o sentimento de propriedade, assim como o desejo egoísta de "unir-se ao ente querido para sempre"; se conseguirmos fazer desaparecer a fatalidade do homem e que a mulher não renuncie criminosamente ao seu "eu", não há dúvida de que o desaparecimento de todos esses sentimentos fará com que outros elementos preciosos para o amor se desenvolvam. Desta forma, o respeito pela personalidade do outro irá se desenvolver e aumentar, assim como a arte de contar com os direitos dos outros será aperfeiçoada; se educará a sensibilidade recíproca e se desenvolverá grandemente a tendência para expressar o amor não só com beijos e abraços, mas também com uma unidade de ação e vontade na criação comum.
Não é, portanto, tarefa da ideologia proletária separar o "Eros alado" de suas relações sociais. Consiste simplesmente em encher sua aljava com novas flechas; no desenvolvimento do sentimento de amor entre os sexos a partir da nova força psíquica mais poderosa: a solidariedade fraterna.
Jovem camarada, espero que agora você veja claramente que o fato de o problema do amor despertar um interesse tão extraordinário entre os jovens trabalhadores não é um sinal de "declínio" de forma alguma. Creio que agora poderá encontrar para si o lugar que o amor deve corresponder tanto na ideologia do proletariado como na vida quotidiana da juventude trabalhadora.
- O amor-camaradagem
A nova sociedade comunista é construída com base no princípio de camaradagem e solidariedade. Mas o que é solidariedade? Devemos não apenas compreender por solidariedade a consciência da comunidade de interesses; A solidariedade também é constituída pelos laços sentimentais e espirituais estabelecidos entre os membros de uma mesma comunidade de trabalho. O sistema social construído sobre princípios de solidariedade e colaboração exige, no entanto, que a sociedade em questão possua, desenvolvida em alto grau, “a capacidade de amar potencial”, isto é, a capacidade de sentir simpatia.
Se essas sensações faltam, o sentimento de camaradagem não pode ser consolidado. Por isso, a ideologia proletária procura educar e reforçar em cada um dos membros da classe operária sentimentos de simpatia pelos sofrimentos e
necessidades de seus camaradas de classe. A ideologia proletária também tende a compreender as aspirações dos outros e a desenvolver uma consciência de sua união com os outros membros da comunidade. Mas todos esses "sentimentos de simpatia", delicadeza, sensibilidade e afeição derivam de uma fonte comum: a capacidade de amar, não de amar no sentido puramente sexual, mas com um amor no sentido mais amplo da palavra.
O amor é um sentimento que une os indivíduos; podemos até dizer que é um sentimento de ordem orgânica. A burguesia também compreendeu todo o poder de união entre os homens que o amor pode ter e, por isso, procurou sujeitá-lo bem aos seus interesses. É por isso que a ideologia burguesa, ao tentar consolidar a família, recorre à virtude moral do "amor entre os esposos"; ser "um homem de família" era, aos olhos da burguesia, uma das maiores e mais preciosas qualidades do homem.
Por sua vez, o proletariado deve considerar o papel social e psicológico do sentimento de amor, tanto no sentido literal da palavra como no que diz respeito às relações entre os sexos, que pode e deve desempenhar para estreitar os laços, não no domínio das relações conjugais e familiares, mas sim aquelas que contribuem para o desenvolvimento da solidariedade coletiva.
Qual será, então, o ideal de amor para a classe trabalhadora? Em que sentimentos as relações sexuais devem ser baseadas na ideologia proletária?
Já vimos, meu jovem camarada, como cada época da história tem seu próprio ideal de amor peculiar; analisamos como cada classe, em seu próprio interesse, dá à noção moral do amor um certo conteúdo. Cada grau de civilização traz à Humanidade sensações intelectuais e morais mais ricas em nuances, que cobrem as delicadas asas de Eros de uma certa cor. A evolução do desenvolvimento da economia e dos costumes sociais foi acompanhada por novas modificações no conceito de amor. Algumas nuances deste sentimento foram reforçadas, enquanto outras diminuíram ou desapareceram totalmente.
O amor, ao longo dos séculos de existência da sociedade humana, evoluiu de um simples instinto biológico (o instinto de reprodução, comum a todos os seres vivos superiores ou inferiores, dividido em dois sexos) e foi constantemente enriquecido com novas sensações psíquicas até que se torne um sentimento muito complicado.
O amor deixou de ser um fenômeno biológico para se tornar um fator social e psicológico.
O instinto biológico de reprodução, que nos estágios iniciais do desenvolvimento humano determinava as relações entre os sexos, assumia dois significados diametralmente opostos sob a pressão das forças econômicas e sociais: de um lado, sob a pressão das relações econômicas e sociais monstruosas, especialmente sob o jugo capitalista, o instinto sexual saudável (a atração de dois seres de sexos diferentes baseada no instinto reprodutivo) degenerou e se tornou uma luxúria doentia. O ato sexual tornou-se um fim em si mesmo, um meio para alcançar "maior volúpia", uma depravação exacerbada pelos excessos, perversões e picadas doentias da carne. O homem procurava a mulher, não movido por uma corrente sexual saudável que o empurrasse com todo o seu ímpeto para uma mulher; o homem "procurava" a mulher sem sentir nenhuma necessidade sexual, e ele a procurava com o único propósito de satisfazer esta necessidade por meio do contato íntimo com a mulher. Desta forma o homem busca uma volúpia com o próprio fato do ato sexual. Se a intimidade de lidar com as mulheres não provoca nos homens a esperada excitação, os homens devastados pelos excessos sexuais recorrem a todo tipo de aberrações.
Este é um desvio do instinto biológico em uma luxúria doentia que faz com que ele se afaste de sua fonte original.
A atração física entre os sexos se complica, por outro lado, ao longo dos séculos de vida social da Humanidade e das diversas civilizações, e adquire toda uma gama de diferentes nuances e sentimentos. O amor é um estado psicológico muito complexo, em sua forma atual, que durante muito tempo foi completamente desvinculado de sua fonte original, o instinto biológico de reprodução, e que em muitos casos se contradiz com ele. O amor é um conglomerado de diversos sentimentos: ternura espiritual, paixão, inclinação, pena, costumes etc. É portanto difícil, dada a grande complexidade, estabelecer uma ligação direta entre o "Eros sem asas" (atração física entre os sexos) e o "Eros com asas abertas" (atração psíquica).
Amor-amizade, em que não é possível encontrar um átomo de atração física; amor espiritual, sentido pela causa, pela ideia; o impessoal em relação à comunidade, são sentimentos que demonstram claramente até que ponto o sentido do amor foi idealizado e afastado de sua base biológica. Mas até o problema é muito mais complicado. Com grande frequência surge uma contradição flagrante entre as várias manifestações de amor e a luta começa. O amor sentido pela "causa amada"
(não o amor sentido simplesmente pela causa, mas pela causa amada) não condiz com o amor sentido pelo eleito do coração, amor pela esposa, pelo marido ou pelos filhos. O amor-amizade está em contradição com o amor-paixão. Em um caso, o amor é dominado pela harmonia psíquica; no outro, baseia-se na "harmonia do corpo".
O amor foi revestido de muitos aspectos. Do ponto de vista das emoções do amor, o homem do nosso tempo, em que séculos de evolução cultural fizeram se educar e desenvolver as diferentes nuances deste sentimento, sente-se incômodo no sentido que é demasiado vago e significado geral da palavra amor.
A multiplicidade do sentimento de amor, sob o jugo da ideologia e dos costumes capitalistas, cria uma série de dramas morais dolorosos e insolúveis. Desde o final do século 19, psicólogos e escritores passaram a tratar como tema favorito a multiplicidade do sentimento de amor. Os representantes reflexivos da cultura burguesa começaram a ficar perplexos e desconfortáveis com esse "enigma" do "amor por dois ou até três seres". H. A. Herzen, nosso grande pensador e escritor do século passado, tentou encontrar uma solução para essa complexidade da alma humana, para esse desdobramento de sentimentos, em seu romance intitulado “De quem é a culpa?”. Chernichevski também tentou encontrar a solução para esse problema no romance social “O que fazer?”. O desdobramento do sentimento de amor, sua multiplicidade, preocupou os maiores escritores da Escandinávia, como Hansen, Ibsen, Bernsen e Heiderstam.
Os escritores franceses do século passado também trataram desse assunto. Romain Rolland, escritor simpatizante do comunismo, e Maeterlinck, que não poderia estar mais longe de nossos ideais, também tentaram encontrar a solução para este problema. Gênios poéticos como Goethe, Byron e George Sand, este último um dos mais ardentes pioneiros no domínio das relações entre os sexos, tentaram resolver na prática este complicado problema, esse "enigma do amor". Herzen, o autor do livro mencionado, assim como outros pensadores, poetas e estadistas, perceberam à luz de sua própria experiência o terrível problema. Mas sob o peso do “enigma da dualidade dos sentimentos de amor”, também homens que não são “grandes” de modo algum, mas que em vão procuram a chave para a solução do problema dentro dos limites impostos pelo pensamento burguês. A solução do problema está precisamente nas mãos do proletariado. A solução deste problema pertence à ideologia e ao novo modo de vida da humanidade trabalhadora.
V.19, nº 38, 2021 (jan-abr) ISSN: 1808-799 X
Denise Santana Maia2 Cláudio Félix dos Santos3
Resumo
O presente trabalho tem por objetivo discorrer acerca de aspectos do pensamento e da vida de Alexandra Kollontai acerca da luta contra a opressão feminina em seu processo de formação política. O referido estudo tem como aporte as seguintes obras: “A Nova mulher e a Moral Sexual” e “Autobiografia de uma mulher emancipada”. Discutimos nesta ocasião os obstáculos encontrados pela autora na luta pela construção do socialismo, explorando as seguintes questões: a situação da mulher na Rússia e as possibilidades de uma nova moral sexual; a concepção de amor e família para a sociedade socialista em construção.
Palavras-chave: Alexandra Kollontai. Mulher. Moral sexual. Comunismo.
LA LUCHA CONTRA LA OPRESIÓN DE LAS MUJERES EN ALEXANDRA KOLLONTAI
Resumen
El presente trabajo tiene como objetivo analizar, a partir del pensamiento de la autora Rusa Alexandra Kollontai, algunos desafíos que encontró en la lucha contra la opresión femenina en su proceso de formación política. Este estudio aborda la análisis de su pensamiento a partir de los siguientes textos: “La nueva mujer y la moral sexual” y “Autobiografía de una mujer emancipada”. En ese texto, discutimos los obstáculos encontrados por la autora en la lucha por la construcción del socialismo, explorando los siguientes temas: la situación de la mujer en Rusia y las posibilidades de una nueva moral sexual; la concepción del amor y la familia para la sociedad socialista en construcción.
Palabras-claves: Alexandra Kollontai. Mujer. Moralidad sexual. Comunismo.
THE FIGHT AGAINST OPPRESSION OF WOMEN IN ALEXANDRA KOLLONTAI
Abstract
This work aims to analyze, based on the thoughts of the Russian writer Alexandra Kollontai, the challenges she faced in her fight against female oppression during her political formation. This study comprises the analysis of her thoughts based on the following works: New Woman and Sexual Morality and The Autobiography of a Sexually Emancipated Communist Woman. We discuss the obstacles faced by Kollontai during her fight for socialism, delving into the situation of women in Russia and the possibilities of a new sexual morality, and the conception of love and family for the society in construction.
Keywords: Alexandra Kollontai. Woman. Sexual morality. Communism.
1 Artigo recebido em 22/12/2020. Primeira avaliação em 12/01/2021. Segunda avaliação em 14/01/2021. Aprovado em 25/01/2021. Publicado em 25/02/2021
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v19i38.47776
2 Denise Santana Maia: Mestrado em Memória: Linguagem e Sociedade/UESB. E-mail: ise.direito@gmail.com.; Lattes: http://lattes.cnpq.br/6844284111505847. ORCID: https://orcid.org/0000- 0003-1022-2312
3 Cláudio Félix dos Santos: Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia; Doutor em Educação UFBA; Pesquisador do Museu Pedagógico Padre Palmeira (UESB) e do Grupo de Estudos Marxistas em Educação. E-mail: cláudio.felix@uesb.edu.br; Lattes: http://lattes.cnpq.br/7594684135461900; ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0545-1102
A luta contra a opressão da mulher tomou novos rumos com a revolução Russa de 1917 e a elaboração de reflexões e orientação política advindas de militantes e intelectuais que se debruçaram sobre essa questão. Dentre essas pessoas encontrava-se Alexandra Kollontai.
Há pesquisas e estudos diversos sobre Kollontai, contudo, o texto que aqui apresentamos4 constitui uma reflexão a partir das memórias escritas por uma revolucionária comunista acerca de antigos problemas da sociedade patriarcal e seu enfrentamento no percurso da Revolução Russa entre 1917 e 1926 (ano em que escreveu sua autobiografia).
Nas “trilhas” deixadas por Kollontai, entendemos que a busca por materializar novas relações sociais tinha na luta pela socialização dos grandes meios de produção sua meta maior. Contudo, havia neste processo determinados impasses, como a necessidade de voltar os olhares e ações para a luta contra a opressão da mulher. Isso se expressava nos conteúdos e formas de submissão feminina por meio da moral sexual e tantas tentativas de submissão que Alexandra Kollontai combateu fortemente.
Do mesmo modo, as experiências e visões sobre o amor e a família cristalizavam memórias e atitudes que precisavam ser superadas para que o novo homem e a nova mulher pudessem nascer a partir de um acontecimento radical na história da humanidade e nas lutas do proletariado: a Revolução de outubro de 1917 na Rússia.
Tomando como “fio condutor” as experiências relatadas em seu livro intitulado “Autobiografia de uma mulher emancipada”, escrito em 1926 e publicado em 1946; bem como no livro “A nova mulher e a moral sexual”, publicado em 1918, percorremos uma pequena parte de sua trajetória de militância articulando sua autobiografia com alguns materiais produzidos por esta autora em relação à condição da mulher no enfrentamento da luta contra a exploração, a opressão (de classe e gênero) e a construção do socialismo.
4 Esse artigo é baseado na dissertação de Mestrado defendida por Denise Maia no Programa de Pós- Graduação em Memória: Linguagem e Sociedade da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. A dissertação intitula-se: Alexandra Kollontai: Memória, reflexões e lutas pela libertação da mulher.
No ano de 1872, na cidade de San Petersburgo, nasce Alexandra M. Domontovitch. O sobrenome Kollontai veio de seu ex-marido.
Oriunda de uma família de proprietários nobres, sendo seu pai um general russo de origem ucraniana e sua mãe finlandesa de origem campesina, Alexandra passou sua infância na cidade de San Petersburgo nas últimas décadas do século passado. Segundo Kollontai (1978), morar naquela cidade significava viver em um dos centros industriais mais importantes da Rússia na qual o movimento operário se mostrou muito pujante.
Seus pais optaram por realizar sua educação no modelo aristocrata, contratando professores particulares para o ensino em casa. Em seu percurso de apropriação da cultura, a jovem sempre demonstrou apreço pela leitura e pelo conhecimento. Sob influência de uma de suas professoras mais queridas, em sua adolescência chegou a se inserir em um grupo de jovens revolucionários de São Petersburgo demonstrando forte atitude e pensamento crítico que havia adquirido antes mesmo de tomar contato com o marxismo (KOLLONTAI, 1978).
Apesar do receio de seus pais, Kollontai se envolvia cada vez mais com a política e os estudos sobre a sociedade russa, em especial a situação da mulher. Em uma das passagens de sua autobiografia ela relata:
A sociedade russa tinha características de patriarcado. O homem, o pai, era o agente ativo que decidia e controlava, desde os menores, como a família, até os maiores como o aparato estatal e econômico. A mulher estava relegada a um segundo posto. No campo, seu trabalho não era tão importante quanto do homem (a mão de obra era abundante) e sua missão consistia na criação dos filhos e no cuidado da casa; as pequenas tarefas artesanais ou agrícolas que desempenhavam não tinham um valor fundamental. A mulher não havia se incorporado ainda ao trabalho industrial. Em um país onde existia tanta miséria e a mão de obra masculina era excedente e baratíssima, desvalorizava-se o trabalho feminino, a mulher operária foi socialmente quase inexistente, e sua incorporação aos movimentos sociais emancipadores foi mais tardia que em outros países europeus (KOLLONTAI, 1978, p. 22. Tradução nossa).
Nessa passagem, Alexandra Kollontai anuncia um conceito que bem definia os limites de liberdade das mulheres: a presença do patriarcado. Sobre o referido conceito, Misa Boito explica:
O patriarcado – como forma de organização social na qual é exercido o poder do homem sobre a mulher – não é exclusivo do capitalismo. Ele surge na história da humanidade juntamente com a propriedade privada, que coloca a questão da transmissão da riqueza, da herança e da definição da paternidade. Antes do surgimento da propriedade privada, a sociedade se organizava em torno da figura da mãe. Com a família monogâmica, quando a mulher é entregue “ao poder do homem”, como explicou Engels, nasce o germe do Estado patriarcal. Ao modo de produção capitalista corresponde o estado burguês, no qual se mantém o patriarcado – e não poderia ser diferente, pois a questão da propriedade privada e sua transmissão seguem colocadas (BOITO, 2016, p. 15).
Portanto, segundo a autora, o patriarcado se articula ao surgimento da propriedade privada. O argumento de Boito (2016) nos leva a concluir que o movimento das mulheres contra a opressão deve ser pensado a partir da história, das formas de produção da existência humana, que tem como marca a exploração dos trabalhadores e trabalhadoras. Esse fato produz, de modo particular, comportamentos e visões de mundo que impõem à mulher a condição de submissão ao homem. Portanto, mais do que uma questão de luta pela emancipação feminina, ou de instigar o conflito de homem versus mulher, Boito (idem), a partir das reflexões de Engels, entende ser necessário compreender e lutar contra a opressão da mulher no seio da totalidade das relações sociais de exploração e dominação, que têm na propriedade privada a sua gênese.
Na adolescência, a jovem Alexandra morou na Finlândia e estudou a história de luta daquele povo contra a aristocracia czarista (KOLLONTAI, 1978). Desde então, foram muitos os eventos dos quais a autora participou ao longo de sua trajetória na luta pela revolução socialista que culminou com a vitória do proletariado em outubro de 1917.
Em meio ao cenário de Revolução, as mulheres trabalhadoras também foram amparadas por novos direitos como o divórcio, conquistado com o decreto de 18 de dezembro de 1917. Essa legislação, segundo a própria Alexandra, livrou muitas mulheres da permanência em situações de violência doméstica.
Kollontai assumiu tarefas de comando no governo e no partido no processo revolucionário pós-1917. Esta nova responsabilidade ligou Kollontai a atribuições importantes como o cargo de Comissária do Povo para o Bem-Estar Social. Na sua gestão instituiu a central de proteção à maternidade e ao recém-nascido. O referido projeto de lei se firmou em janeiro de 1918, ocasião na qual Kollontai transformara todas as maternidades em residências gratuitas para atender às mães e seus
respectivos filhos. Segundo a autora, essa medida tornaria a proteção à maternidade um instituto completamente estatal e seguro para as mulheres (KOLLONTAI, 1978).
Em 1926, como Comissária de Saúde do Governo Soviético, comandou importantes missões diplomáticas na Noruega, Suécia, México e Finlândia (KOLLONTAI, 2011).
Todavia, é recorrente em sua autobiografia o registro dos vários desafios encontrados no sentido de pautar questões específicas das mulheres no partido e no governo. Esse fato exigia que ela continuasse formulando reflexões e desenvolvendo ações na luta contra a opressão da mulher. A seguir, passamos a apresentar algumas reflexões sobre família, o amor, e a relação homem e mulher na transição ao socialismo na perspectiva daquela militante.
Kollontai (1978) afirmou em sua autobiografia que enquanto esteve casada com seu companheiro, pai de seu único filho, o matrimônio lhe despertou certa angústia por se sentir presa e impedida de se empenhar com mais vigor aos movimentos políticos e à luta das mulheres. Segundo a autora, o matrimônio lhe tirava a atenção sobre o que realmente importava: a condição social das mulheres trabalhadoras e a situação da Rússia.
Ela entendia que todas as relações humanas deveriam fundamentar-se no amor. Contudo, constatava que o matrimônio não se baseava tão somente neste princípio, mas, sobretudo, em uma ideia de posse do homem em relação à mulher. Esta seria uma das primeiras reflexões feitas pela autora no sentido de pensar as relações de gênero na ótica marxista. Na sua crítica ao matrimônio ela afirma:
[...] O matrimônio legal está fundado em dois princípios igualmente falsos: a indissolubilidade, por um lado, e o conceito de propriedade, da posse absoluta de um dos cônjuges pelo outro. A indissolubilidade do matrimônio legal está baseada numa concepção contrária a toda ciência psicológica; na invariabilidade da psicologia humana no transcurso de uma longa vida. [...] O segundo fator que envenena o matrimônio legal é a ideia de propriedade, e posse absoluta de um dos cônjuges pelo outro” (KOLLONTAI, 2011, p. 28- 30).
Fruto das condições objetivas das relações de exploração e dominação e dos modos de produção material e espiritual da vida, o universo feminino foi se limitando ao âmbito da vida privada: família, cuidados com os filhos, e as atividades domésticas; bem como a prostituição para outras parcelas de mulheres. Enquanto isto, os homens dedicavam-se à vida pública, aos interesses econômicos e políticos. Segundo a autora, a solução para a construção de relações de gênero livres estaria na promoção e na prática de determinados princípios, especialmente os da camaradagem e da solidariedade, como pontos de partida no esforço de transição para a construção de uma sociedade que se pretendia socialista.
Segundo ela, a camaradagem e a solidariedade na relação homem e mulher são da maior importância para a construção da sociedade socialista. Ela compreendia que a construção de uma sociedade socialista como transição ao comunismo, e, portanto, ao modo de produção da vida com a inexistência da propriedade privada dos grandes meios de produção passa, concomitantemente, pelo processo de criação de novas relações sociais e pessoais entre os indivíduos. Nas palavras de Alexandra Kollontai:
A nova sociedade comunista será edificada sobre o princípio da camaradagem e da solidariedade. Mas o que é a solidariedade? Não somente devemos entender por solidariedade a consciência da comunidade de interesses; constituem a solidariedade, também, os laços sentimentais e espirituais estabelecidos entre os membros da mesma coletividade trabalhadora. O regime social edificado sobre o princípio da solidariedade e da colaboração exige que a sociedade em questão possua, desenvolvida em alto grau, a capacidade do potencial de amor, isto é, a capacidade para a sensação de simpatia. [...] a ideologia proletária procura educar e reforçar em cada um dos seus membros da classe operária sentimentos de simpatia diante dos sofrimentos, das necessidades de seus camaradas de classe. A ideologia proletária tende também, a compreender as aspirações dos demais e desenvolver a consciência de sua união com os outros membros da coletividade (KOLLONTAI, 2011, p. 121).
O projeto de construção de uma sociedade comunista se daria articulada a uma transformação da “psicologia humana”5, inspirando homens e mulheres a trabalharem em benefício das necessidades da coletividade, do grupo. (KOLLONTAI, 2011). Segundo ela, este não é um princípio presente na ideologia e
5A autora utiliza o termo “psicologia humana” para se referir aos fundamentos psicológicos dos comportamentos de homens e mulheres, que são formados/construídos socialmente, e, consequentemente, mutáveis ao longo do tempo. O referido termo é usado especialmente em sua obra “A mulher e a moral sexual”. A autora o usa especialmente para tratar da questão sexual entre homens e mulheres.
na família burguesa, visto que a burguesia defende fortemente a proteção da unidade familiar endurecida por papéis e funções sociais pré-determinados, isolando e repreendendo homens e mulheres sob uma moral sexual específica. Portanto, não há liberdade entre os cônjuges, nem entre o restante da família que compõe essa mesma estrutura. Existe, de fato, uma naturalização das relações de opressão de homens sobre as mulheres, como se isso fizesse parte da natureza humana.
Portanto, para superar essas determinações, o exercício da solidariedade e do respeito entre os camaradas são sentimentos gerados no amor, enquanto capacidade de amar, em seu sentido mais amplo. O amor é um sentimento orgânico que por natureza une os indivíduos. O amor se constitui enquanto meio para o desenvolvimento de uma solidariedade coletiva (KOLLONTAI, 2011).
Ao aprofundar suas reflexões sobre o amor, Alexandra Kollontai recorre à história para buscar o desenvolvimento das formas e dos conteúdos do amor. Segundo ela,
Cada época da história possui seu próprio ideal de amor. [...] cada classe, em seu próprio interesse, atribui à noção moral de amor um conteúdo determinado. Cada grau da civilização traz à humanidade sensações morais e intelectuais mais ricas em matizes, que cobrem o amor com um colorido diverso. A evolução no desenvolvimento da economia e nos costumes sociais foi acompanhada de novas modificações no conceito de amor. Alguns matizes desses sentimentos se reforçavam, mas os outros caracteres diminuíam ou desapareciam totalmente. O amor, no transcurso dos séculos de existência da sociedade humana, evoluiu de um simples instinto biológico (instinto de reprodução, comum a todos os seres vivos, superiores ou inferiores, divididos em dois sexos) e se enriqueceu sem cessar com novas sensações, até converter-se num sentimento muito complexo. O amor deixou de ser um fenômeno biológico para converter-se num fator social e psicológico (KOLLONTAI, 2011, p. 122-123).
A partir do entendimento do amor enquanto sentimento que se expressa de infinitas maneiras, o ideal de amor para além da perspectiva romântico-burguesa pode ser assim entendido:
O exclusivismo e a absorção do sentimento de amor não podem constituir, do ponto de vista da ideologia proletária, o ideal de amor determinante nas relações entre os sexos. Ao contrário, o proletariado, ao tomar conhecimento da multiplicidade do amor, não se assusta absolutamente com esta descoberta, nem tampouco experimenta indignação moral como aparenta a hipocrisia burguesa. O proletariado trata, ao contrário, de dar a este fenômeno (que é resultado de complicadas causas oficiais) uma direção que sirva a
seus fins de classe, no momento da luta e da edificação da sociedade comunista. Estará, por acaso, a multiplicidade do amor em contradição com os interesses do proletariado? Ao contrário, esta multiplicidade no sentimento do amor facilita o triunfo do ideal de amor nas relações entre os sexos, que já se formam e cristalizam no seio da classe operária: o amor-camaradagem (KOLLONTAI, 2011, p. 127).
Podemos observar no excerto uma profunda crítica materialista histórica às concepções burguesas de amor e relação entre homem e mulher. O esforço de construção do “amor-camaradagem”, o amor entendido desde o ponto de vista de relações humanas não mediadas por relações de exploração e opressão, estaria baseado em valores que superem a mesquinharia burguesa, distinguindo-se completamente das noções de amor estabelecidas em outras épocas da civilização. Importante destacar que Kollontai não despreza o amor romântico. Pelo contrário, prepara o reconhecimento do sentimento de amor como força social e psíquica que liberta e não aprisiona o ser humano (KOLLONTAI, 2011).
Por sua vez, na visão de mundo burguesa, a família e o amor entre um casal apenas se poderiam estabelecer através do matrimônio, o qual representou um dos alicerces da moral sexual burguesa. Neste sentido, afirma Kollontai:
Para o sucesso das tarefas do proletariado, é indiferente que o amor tome a forma de uma união estável ou que não tenha mais importância que uma união passageira. A ideologia da classe operária não pode fixar limites formais ao amor. Ao contrário, esta ideologia começa a sentir inquietação pelo conteúdo do amor, pelos laços de sentimentos e emoções que unem os dois sexos; por isso, neste sentido, a ideologia proletária tem que enfrentar a luxúria, a satisfação única dos desejos carnais pela prostituição, a transformação do ato sexual num fim em si mesmo, que faz dele um prazer fácil etc., mais implacavelmente que o fazia a moral burguesa. A luxúria está em contradição com os interesses da classe operária. Em primeiro lugar, este amor supõe inevitavelmente os excessos e o esgotamento físico, que contribuem para diminuir a reserva de energia da humanidade. Em segundo lugar empobrece a alma porque impede o desenvolvimento, entre os seres humanos, de laços psíquicos e de sensações de simpatia. Em terceiro lugar, este amor tem por base a desigualdade de direitos entre os sexos nas relações sexuais; ou seja, está baseado na dependência da mulher em relação ao homem, na vaidade ou insensibilidade do homem, o que afoga necessariamente toda a possibilidade de experimentar um sentimento de camaradagem. Em troca, a ação exercida sobre os seres humanos pelo amor espiritual é completamente distinta (KOLLONTAI, 2011, p. 128).
Portanto, ao identificar a concepção de amor na perspectiva burguesa e diferenciá-la da perspectiva socialista, a autora destaca que para a burguesia o amor exige que o homem ou a mulher só enxergue e se vanglorie das qualidades de doação, delicadeza, sensibilidade de ser útil apenas ao eleito ou à eleita e, nesse sentido, ao núcleo familiar como algo isolado da sociedade. Por sua vez, numa perspectiva socialista, se espera que essas qualidades despertem, desenvolvam e eduquem homens e mulheres de modo que o sentido do amor se manifeste não apenas dentro da relação amorosa, mas sobre toda a comunidade.
Podemos perceber uma profunda preocupação da dirigente revolucionária com as relações entre homens e mulheres no campo privado em articulação com as determinações sociais gerais. Além disso, destacava o quanto de obstáculos deveriam ser enfrentados para construir comportamentos e visões de mundo que alcançassem formas não-alienadas de convivência no desenvolvimento de sentimentos que deveriam pautar essas relações. Essas relações teriam seus fundamentos no amor-camaradagem, “no reconhecimento dos direitos recíprocos na arte de respeitar, inclusive no amor, a personalidade do outro, num firme apoio mútuo e na comunidade de aspirações coletivas” (KOLLONTAI, 2011, p. 129).
Segundo a perspectiva da autora, seria necessária uma transformação no modo de se conceber o amor entre homens e mulheres. A transição para uma sociedade socialista implica, reciprocamente, a passagem para a vivência de uma nova forma de amor e de sua inteira expressão em comunidade, com bases em laços de empatia entre os membros da nova sociedade que, na expectativa de Kollontai, desenvolveria e fortaleceria as relações entre camaradas. Desse modo,
a capacidade para amar será muito maior, e o amor-camaradagem se converterá no estimulante papel que na sociedade burguesa estava reservado ao princípio de concorrência e ao egoísmo. O coletivismo do espírito e da vontade triunfarão sobre o individualismo que se bastava a si mesmo. Desaparecerá o frio da solidão moral, do qual no regime burguês os homens tentavam escapar, refugiando- se no amor ou no matrimônio; os homens ficarão unidos por inúmeros laços sentimentais e psíquicos. Seus sentimentos se modificarão no sentido do interesse cada vez maior pela coisa pública. Desaparecerão sem deixar o menor rastro a desigualdade entre os sexos e todas as formas de dependência da mulher em relação ao homem (KOLLONTAI, 2011, p. 129).
Kollontai deixou claro que a superação da sociedade e da moral burguesas são fundamentais para a superação da opressão feminina. A experiência da
Revolucionária Russa na luta pela construção do socialismo trazia novas possibilidades de transformação da realidade.
Os ventos de mudança que sopravam por aqueles territórios no ano de 1918, primeiro ano da revolução Russa, inspiravam Alexandra Kollontai a afirmar que no futuro seria possível:
Nesta nova sociedade, coletivista por seu espírito e suas emoções, caracterizada pela união feliz, por relações fraternais entre os membros da coletividade trabalhadora e criadora, o amor ocupará um lugar de honra, como sentimento capaz de enriquecer a felicidade humana. Como se transfigurará? Nem a fantasia mais criadora é capaz de imaginá-lo. Só é indiscutível que, quanto mais unida estiver a humanidade pelos laços duradouros da solidariedade, tanto mais intimamente unida estará em todos os aspectos da vida, da criação ou das relações mútuas [...] Neste mundo novo, a forma reconhecida, normal e desejada das relações entre os sexos estará fundamentada puramente na atração sadia, livre e natural (sem perversões, nem excessos) dos sexos; as relações sexuais dos homens na nova sociedade estarão determinadas pelo novo amor (KOLLONTAI, 2011, p. 130).
A autora defendia que o caráter coletivista desta nova sociedade traria não apenas melhores condições materiais de vida, mas um equilíbrio nas relações sexuais, muitas destas marcadas pela prostituição, violência de todas as ordens, submissão e tantas outras manifestações de opressão da mulher.
Kollontai entendia que três princípios fundamentariam as relações de gênero, quais sejam: a) igualdade entre os sexos (eliminando de vez a submissão da mulher nas relações amorosas); b) reconhecimento mútuo e recíproco dos direitos das mulheres (sem o exercício do sentimento de posse); c) sensibilidade fraternal (o respeito à personalidade do outro, às particularidades da sexualidade feminina e masculina) (KOLLONTAI, 2011).
Desta maneira, poderia emergir um novo sentido ao amor:
A classe ascendente da humanidade criará motivos de beleza, força e brilho até agora desconhecidos. [...] o amor muda de aspecto e se transforma, inevitavelmente, uma vez que se transformam as fases econômicas e culturais da sociedade. Se conseguirmos que, das relações de amor, desapareça o cego, o exigente e absorvente sentimento passional; se desaparece, também, o sentimento de propriedade, tanto quanto o desejo egoísta de unir-se para sempre ao ser amado; se conseguirmos que desapareça a vaidade do homem, e que a mulher não renuncie criminosamente ao seu eu, não há dúvida de que, com o desaparecimento de todos esses sentimentos, desenvolvam-se outros elementos preciosos para o
amor. [...] A tarefa da ideologia proletária não é, pois, separar das suas relações sociais o amor, mas dar-lhe um novo colorido. Ou seja, visa desenvolver o sentimento do amor entre os sexos, baseado na mais nova e poderosa força: a solidariedade fraterna (KOLLONTAI, 2011, p.132-133).
Em sua autobiografia podemos elencar uma série de reflexões em relação a obstáculos e possibilidades de mudança na vida cotidiana das mulheres, tais como:
a) Libertando-se das atividades domésticas, as mulheres passarão a dedicar-se às questões da comunidade; b) Os cuidados com os filhos não seriam mais sua função exclusiva, mas uma tarefa a ser compartilhada com seus respectivos companheiros;
c) Nenhuma mãe cairá em preocupação com seus futuros filhos, visto que a Pátria Comunista assegurará a ambos todas as condições para sua sobrevivência; d) A Pátria Comunista também assegurará a educação dos seus filhos, não lhes negando sua participação em qualquer momento; e) a maternidade poderá ser vivida de modo seguro, com o apoio e o amparo da sociedade, resguardando, sobretudo, o direito das mulheres de não exercê-la. (KOLLONTAI, 1978).
Segundo ela, não é possível falar em progresso da humanidade sem que o tema da libertação das mulheres esteja em pauta. Mas essa libertação não seria produto da luta das mulheres apenas. A construção de “um novo homem” e de uma “nova mulher” seria resultado da superação de valores e condições de exploração estabelecidas no modo de produção capitalista. Contudo, a expressão “a nova mulher”, recebeu uma definição bem mais específica na obra de Kollontai.
A partir da análise dos valores e costumes que fundamentavam a família, o matrimônio, a sexualidade, a maternidade e tantos outros aspectos da vida social, Kollontai demonstrou o quanto esse quadro social impossibilitava a verdadeira libertação das mulheres.
Ao final do século XIX, com a inserção das mulheres nas fábricas, se observou uma nova fase na dinâmica de produção. Parecia ser o início do processo de libertação das mulheres, com as indústrias tendo seus postos de trabalho também ocupados pela massa feminina. Todavia, as proletárias não foram poupadas, assim como não eram os homens operários, das inúmeras condições de exploração existentes no contexto fabril. Neste momento, processos de tomadade
consciência de classe e das especificidades femininas vão se desenvolvendo gradativamente a partir da realidade objetiva e da crescente organização da classe trabalhadora por meio de seus sindicatos.
A mulher moderna surge exatamente sob este contexto de exploração da mão de obra feminina nas fábricas. Essa nova e dolorosa realidade atravessada pelas mulheres da classe proletária impulsionou o desenvolvimento de uma nova consciência e o reconhecimento sobre as variadas formas de opressão feminina. Sobre isso, a autora russa afirma:
A mulher moderna, a mulher que denominamos celibatária, é filha do sistema econômico, não como tipo acidental, mas como realidade cotidiana, uma realidade da massa, um fato que se repete de forma determinada, nasceu com o ruído infernal das máquinas da usina e da sirene das fábricas (KOLLONTAI, 2011, p.15).
Como afirmamos anteriormente, a Revolução Russa possibilitou o desenvolvimento de uma nova concepção e relações de gênero que não se resolveram imediatamente com a tomada do poder pelo proletariado organizado. Segundo Kollontai (2011), apesar dos progressos daqueles primeiros anos da Revolução, havia um longo caminho a ser percorrido em relação à superação de valores herdados do passado pré-revolucionário que marcavam a visão de mundo e a memória de todos.
Neste sentido, Alexandra Kollontai acreditava que:
Porém,
As mulheres do novo tipo, ao criar os valores morais e sexuais, destroem os velhos princípios na alma das mulheres que ainda não se aventuraram a empreender a marcha pelo novo caminho. São estas mulheres do novo tipo que rompem com os dogmas que as escravizam. A influência das mulheres trabalhadoras estende-se muito além dos limites de sua própria existência. As mulheres trabalhadoras contaminam com sua crítica a inteligência de suas contemporâneas, destroem os velhos ídolos e hasteiam o estandarte da insurreição para protestar contra as verdades que as submeteram durante gerações. As mulheres do novo tipo, celibatário e independente, ao se libertarem, libertam o espírito agrilhoado, durante séculos, de outras mulheres ainda submissas (KOLLONTAI, 2011, p. 24).
Os sentimentos atávicos perturbam e debilitam as novas sensações. As velhas concepções da vida prendem ainda o espírito da mulher que busca sua libertação. O antigo e o novo se encontram em contínua hostilidade na alma da mulher. [...] têm que lutar contra um
inimigo que apresenta duas frentes: o mundo exterior e suas próprias tendências, herdadas de suas mães e avós (KOLLONTAI, 2011, p. 25).
A construção do socialismo requer, além das radicais transformações no campo da organização do trabalho e da produção da vida, a promoção de uma nova consciência e psicologia humana. Assim, o “novo homem” e a “nova mulher” representam o novo sentido que Kollontai e tantos outros militantes se dedicaram integralmente a construir naquele primeiro quarto de século XX, interrompido pelas mudanças de rumo de direção política após a morte de Lenin em 1926.
Os aspectos do pensamento e das lutas de Alexandra Kollontai aqui apresentadas por meio de suas memórias e reflexões é um exercício de aproximação ao pensamento de uma revolucionária que ousou lutar, organizada e coletivamente, pela revolução social, e que se articula ao combate pela superação da opressão contra as mulheres.
A leitura de suas memórias e escritos teóricos nos permitiu adentrar em um universo de questões que articulam o privado e o público no processo de construção de modos de vida e visões de mundo. Neste caso específico, abordamos as ideias e recordações de uma mulher em meio a um processo de transição histórico-social profundamente marcado por mudanças bruscas e estruturais: a Revolução.
Kollontai evidenciou que com a tomada de poder em outubro de 1917, a luta contra a opressão da mulher ganharia outra perspectiva. Apesar das rápidas mudanças na organização da produção e do Estado, havia um longo percurso e barreiras a serem superadas no que se refere ao estabelecimento de relações pessoais e de gênero.
Em relação aos desdobramentos e do sentido das revoluções, Caio Prado Júnior (1966) entende que revolução é mais do que o emprego da força ou a insurgência. O autor afirma que o “seu significado próprio se concentra na transformação, e não no processo imediato através de que se realiza” (1966, p. 1).
Kollontai entendia que o processo de criação do novo homem e da nova mulher não se realizaria por decretos ou ultimatos. Ela tinha plena consciência disso, mas sabia também que essas transformações não se dariam de forma espontânea,
sem a intervenção da educação, da política estatal, da organização das mulheres comunistas.
Sem dúvida, Alexandra Kollontai nos deixou um legado de muita importância nestes tempos de avanços e recuos da luta contra a opressão da mulher e pela emancipação humana, sobretudo quando observamos e constatamos um aumento no Brasil do número de violência contra a mulher, sobretudo no período de isolamento social por conta da Pandemia de Coronavírus. O Site Uol, em reportagem publicada no dia 20 de abril de 2020,6 informou que “No contexto da pandemia de covid-19, os atendimentos da Polícia Militar a mulheres vítimas de violência aumentaram 44,9% no estado de São Paulo”. A reportagem fala ainda do aumento de 19,8% das denúncias de violência doméstica no estado de São Paulo, desde o decreto de isolamento social adotado pelo governo paulista, o que foi considerado um dado inédito obtido através da Secretaria de Segurança Pública. Com base nos atendimentos realizados pela Polícia Militar entre os dias 20 de março e 13 de abril deste ano, foram 7.933 denúncias contra 6.624 no ano de 2019.
Esses dados são indicadores da necessidade da superação dessas relações de opressão contra a mulher e que têm suas bases fundamentais no modo de produção da existência humana organizado pelo sistema privado dos grandes meios de produção. Essa forma de produzir a vida tem levado a humanidade a momentos cada vez mais intensos de barbárie, exploração e opressão, aprofundados por fenômenos como esses que agora vivemos que não é apenas provocado por um vírus letal, mas pela incapacidade do capitalismo responder de modo profundamente solidário e eficiente a essas contingências.
As reflexões de Alexandra Kollontai, articulando a organização política de mulheres e homens pela superação da sociedade burguesa, a luta contra a opressão da mulher e a revolução são atuais e demandam amplos debates e ações nesse momento dramático pelo qual passa a humanidade.
BOITO, Misa (Org.). A luta contra a opressão da mulher: recuperando uma abordagem de classe. São Paulo: Editora Nova Palavra, 2016.
6 UOL, SP: violência contra mulher aumenta 44,9% durante pandemia. Disponível em https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-brasil/2020/04/20/sp-violencia-contra-mulher- aumenta- 449-durante-pandemia.htm?cmpid=copiaecola
COBRA, Rubem Queiroz. Vida, pensamento e obra de Saint-Simon. Página de Filosofia Contemporânea. Brasília,1999 [<http://www.cobra.pages.nom.br/fmp-saint- simon.html>. Acesso em: 11 jan. 2017.
PRADO JR, Caio. A revolução brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1966.
KOLLONTAI, Alexandra. A nova mulher e a moral sexual. São Paulo: Editora Expressão Popular, 2011.
___________________. Autobiografía de una mujer emancipada. Barcelona: Ed. Editorial Fontamara, 1978.
V.19, nº 38, 2021 (jan-abr) ISSN: 1808-799X
Amaia Pérez Orozco3
Resumo
A ideia do conflito capital-vida é uma contribuição fundamental do feminismo para entender a toxicidade do sistema hegemônico que tende a se impor globalmente, como constitutivo do projeto modernizador que se desdobra há pelo menos quinhentos anos, um sistema econômico que destrói outras formas anteriores de economia, um sistema contra o qual tentamos implantar outras formas econômicas, em resistência, subversivas. Neste artigo exploramos a caracterização que a economia feminista faz desse conflito, enfatizamos seu apoio em dimensões econômicas invisíveis e discutimos brevemente a forma como ele se reconfigura hoje.
Palabra-chave: conflito capital-vida; sustentabilidade da vida; economia feminista; mal-cuidado
EL CONFLICTO CAPITAL-VIDA: APORTES DESDE LOS FEMINISMOS
Resumen
La idea del conflicto capital-vida es un aporte fundamental de los feminismos para comprender la toxicidad del sistema hegemónico que tiende a imponerse globalmente, como constitutivo del proyecto modernizador que lleva cuando menos quinientos años desplegándose, un sistema económico que destruye otras formas de economía previas, un sistema frente al cual intentamos desplegar formas económicas otras, en resistencia, subversivas. En este artículo exploramos la caracterización que realiza de este conflicto la economía feminista, enfatizamos su sostenimiento sobre dimensiones económicas invisibilizadas y discutimos brevemente la manera en que se reconfigura en la actualidad. Palabra-chave: conflicto capital-vida; sostenibilidad de la vida; economía feminista; malos-cuidados
THE CAPITAL-LIFE CONFLICT: CONTRIBUTIONS FROM FEMINISMS
Abstract
The notion of the capital-life conflict is a critical feminist contribution. It helps us to clarify the toxic character of the hegemonic system, which is being imposed at a global level and which is grounded in the 500 years old Modernizing project. This system tends to destroy other forms of economic organization that may pre-exist. It is against it that other counter-hegemonic, rebel economic networks are trying to be deployed. This text explores the characterization of the conflict provided by feminist economics; emphasizes the invisible dimensions of the economic system that sustains such a system; and briefly discusses the way in which the conflict is being reconfigured.
Key words: capital-life conflict; sustainability of life; feminist economics; bad-care
1 Artigo recebido em 14/09/2020. Primeira avaliação em 20/10/20. Segunda avaliação em 21/10/2020. Aprovado em 17/11/2020. Publicado em 25/02/2021. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v19i38 45907.
2 Una versión de este artículo fue publicada en DOBRÉE, P. y QUIROGA DIAZ, N. Luchas y alternativas para una economía feminista emancipatoria. Asunción: Centro de Documentación y Estudios / Articulación Feminista Marcosur, 2019.
3 Amaia Pérez Orozco, doctora en economía pela Universidade Complutense de Madrid. “Colectiva XXK. Feminismos, pensamiento y acción”. E-mail: amaia@colectivaxxk.net.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9605-7559
Una manera de narrar la genealogía de este concepto (que no pretende plantearse como la verdadera, sino como una de las lecturas posibles) comienza por recuperar la crítica marxista al capitalismo como un sistema basado en la desigualdad y el conflicto. Desde ahí, hablaríamos del conflicto entre el capital y el trabajo asalariado (en sentido amplio) que surge cuando los medios de reproducción de la vida son expropiados y puestos en manos particulares bajo la figura de la propiedad privada, convirtiéndose en medios de producción de capital y convirtiéndonos en esclavas y esclavos del salario. Esta producción se da en el marco de una relación de fuerzas en la que el capital se apropia del valor generado por el trabajo (la plusvalía). Posteriormente, este conflicto se redefine por una doble vía: desde el ecologismo y desde el feminismo. Desde el ecologismo se afirma que, en el capitalismo, la naturaleza se entiende como un recurso puesto al servicio del proceso de crecimiento económico, sin valor ni sentido en sí misma. La producción de bienes y servicios de mercado es un proceso que utiliza energía para extraer y transformar los materiales que están en el planeta, emitiendo a su vez energía degradada y generando residuos. Este es un proceso sin fin, cada vez más acelerado, que lleva a ejercer una presión creciente sobre los límites del planeta. El capitalismo (particularmente desde la revolución industrial) se ha basado en la energía abundante y barata y ha tenido unas tasas de uso de energía y materiales y de generación de basura tales que nos han llevado a una situación de translimitación (indisolublemente ligada a una profunda desigualdad global, a los modos de vida y producción de las zonas de acumulación del planeta). La ganancia siempre se ha hecho en base a la depredación ecosistémica y, ahora más que nunca, siendo el (neo)extractivismo una
4 Este texto surgió en el marco del Seminario Internacional “Luchas y alternativas para una economía feminista emancipatoria”, celebrado los días 28 y 29 de noviembre de 2017 en Asunción, Paraguay. Es fundamental señalar que este texto está escrito desde el Norte global; rezuma norcentrismo en mucha mayor medida de lo que querría. A pesar de ello, el deseo es abrir diálogo con perspectivas feministas de otras latitudes del mundo, aprender de ellas y, ojalá, descentrarse cuando menos un poco (por eso mismo se encuadra dentro de las actividades del grupo de trabajo de CLACSO sobre Economía Feminista Emancipatoria, un espacio privilegiado de aprendizaje para quienes venimos de fuera de Abya Yala). Se utilizan en ocasiones conceptos (como el de buen vivir) que surgen desde cosmovisiones muy distintas a las eurocéntricas. No se hace con espíritu de apropiación, sino de dejarse contagiar. Porque necesitamos otras palabras para nombrar otros mundos que, hoy en día y en el centro de esta cosa escandalosa, nos resultan lamentablemente inimaginables. Es desde ahí que se ha escrito este texto, por si es útil para construir juntas, asumiendo cada quien las responsabilidades asimétricas que nos corresponden en función de nuestro posicionamiento en este complejo y desigual sistema-mundo.
clara materialización de este conflicto. El capitalismo está en conflicto estructural con la vida del planeta, es inherentemente ecocida.
La otra perspectiva que contribuye a redefinir el conflicto de base en el sistema es el feminismo y, particularmente, el feminismo del Sur global. Desde el feminismo se afirma que el conflicto del capital con el trabajo no se reduce al trabajo asalariado, sino que abarca todos los trabajos. El negocio se hace explotando los trabajos invisibilizados, históricamente en manos de las mujeres, aquellos que ni siquiera son reconocidos como trabajo. Más aún, lo que se explota es el tiempo, las energías, las emociones, los cuerpos y, en un sentido amplio, la vida misma. Esto se vio con claridad hace unas décadas a través de la crítica a los programas de ajuste estructural y de la resistencia a la firma de tratados de libre comercio. Se vio que lo que estaba en juego no era, por ejemplo, una determinada industria que quedaba desprotegida frente a la inversión extranjera directa. Lo que se arriesgaba era la vida entera (humana y no humana) porque era esta la que se mercantilizaba. Se comprendieron los caminos por los que discurría este ataque a los procesos vitales: la necesidad cada vez mayor de ingresos (por la expropiación de los medios de reproducción de la vida como la tierra, la privatización de servicios públicos, el encarecimiento de bienes básicos y el fomento de modos de vida consumistas) se daba al tiempo que se reducían las posibilidades de acceso a ingresos estables y se producía una fuerte precarización laboral. La vida quedaba cercada. El trabajo no remunerado se intensificó para suplir esas carencias a la par que se generalizaron nuevos malos vivires y se desbocó la desigualdad. Lo que estaba en riesgo era el hecho mismo de vivir.
Por esa triple vía (marxista, ecologista y feminista) llegamos a definir esta contradicción estructural e irresoluble entre el proceso de acumulación de capital y los procesos de sostenibilidad de la vida. La valorización del capital se da a costa del expolio y despojo de la vida humana y no humana. Es un conflicto definitorio del sistema socioeconómico hegemónico, que es capitalista, pero es también heteropatriarcal, colonialista y medioambientalmente destructor. Llamamos esa cosa escandalosa a este sistema biocida, que se va imponiendo globalmente.
El conflicto capital-vida es un conflicto de carácter (neo)colonial, que se despliega en un mundo dividido entre zonas de acumulación (Norte global, los centros) y zonas de despojo (Sur global, las periferias). Es definitorio de un modelo socioeconómico que se despliega sobre todos los territorios destruyendo formas de economía otras, a las que menosprecia como economías de subsistencia, aquellas que simplemente reproducen las condiciones de vida sin colmar esa aspiración de progreso, desarrollo y crecimiento constante, infinito; sin anhelar ir a más, entendiendo que más es mayor riqueza monetaria (de un dinero capitalista que no es un medio de intercambio, sino de acumulación a costa del despojo).
Y es un conflicto de carácter heteropatriarcal porque la esfera de la acumulación necesita de una dimensión invisibilizada de cuidados feminizados. Hay una comprensión binarista y heteronormativa de las esferas producción/reproducción: la reproducción queda feminizada y leída como una esfera que no tiene sentido en sí misma sino por servir a la producción (como el sentido de ser de las mujeres es servir a los hombres). Y es heteropatriarcal porque la lógica de acumulación refleja los valores asociados a la masculinidad blanca: 4ltius, citius, fortius. Más alto, más lejos, más fuerte. Hay un menosprecio intrínseco al sostenimiento de la vida, leída como una labor feminizada que no deja huella. La vida ha de someterse a un valor superior: progreso, civilización, crecimiento. Entendiendo que la masculinidad es un estatus que se consigue como conquista, SEGATO (2017, p. 16) habla del “mandato de la masculinidad como primera y permanente pedagogía de expropiación de valor y consiguiente dominación”; la lógica de acumulación de capital refleja claramente esa masculinidad hegemónica.
Afirmar que existe un conflicto capital-vida no significa afirmar que todos los ataques a la vida revistan la misma gravedad. Tampoco significa hablar de el capital como un ente abstracto. El capital tiene rostro: el del sujeto privilegiado de la modernidad, el hombre blanco, burgués, urbano, heterosexual, sin diversidad funcional. Es el sujeto que se sitúa en la cúspide de la intersección de ejes de privilegio/opresión que conforman esta cosa escandalosa. Podemos entender el capitalismo como un conjunto de instituciones y dinámicas que permite acumular poder y recursos en torno a este sujeto, aquel que detenta el poder corporativo. Es el
sujeto que impone el valor de su vida individual en escisión del resto (que niega sus lazos de inter y ecodependencia). Esta vida individualizada se impone a sí misma como la única plenamente digna de ser sostenida (de que se colmen sus aspiraciones y sentidos de trascendencia) … a costa de la vida del planeta y de la vida común. En el marco de este sistema, las vidas del resto de sujetos reciben ataques de mayor virulencia cuanto más se alejen de ese individuo privilegiado. Hasta el extremo de llegar a aquellas vidas que no valen nada (las que son expulsadas o exterminadas), que valen más muertas que vivas (por ejemplo, comunidades expulsadas) o que solo valen destruidas (como aquellos cuerpos sobre los que se inscribe el mensaje del poder corporativo blanco y masculino: “el dominio de la vida lo tengo yo, no lo olvidéis”).
Al hablar del conflicto capital-vida no estamos refiriéndonos a algún tipo de vida pura, inmaculada, que flota en el vacío y que el capital ensucia. La vida no es en sí misma, sino que construimos cierta idea de lo que es estar viva (o vivx), de cuáles son las vidas que importan y qué hace que una vida sea significativa, tenga valor, merezca la pena (o la alegría) de ser vivida.
En esta cosa escandalosa se impone una idea de la vida que es en sí misma tóxica y autodestructiva: un ideal de autosuficiencia en el que se niega la vulnerabilidad y se entiende que la vida no depende de nada ni nadie, no está marcada ni tiene un cuerpo reconocible detrás. En clases de economía utilizan la figura mítica de Robinson Crusoe para representar a ese sujeto heroico del desarrollo, aquel descubridor que tiene toda una tierra ignota a explorar, a conquistar, a dominar, para generar civilización, crecimiento, progreso… él solo. Desde perspectivas críticas, aseguramos que esta metáfora no es en absoluto inocente: muestra el cuerpo oculto. Lo que esta cosa escandalosa nos impone como plenamente humano, la vida plenamente viva es la de la masculinidad blanca, el resto de vidas son un poco menos humanas: las mujeres como cuerpos sexuados y marcados por lo reproductivo, los sujetos racializados. Ese Robinson Crusoe pretende una ficción de autosuficiencia que solo es alcanzable en base a ocultar todo aquello que lo sostiene y al despojo que hace de aquellas vidas que valen menos, que valen solo para ponerse al servicio de la suya.
Esta lógica de acumulación, tóxica, perversa, articulada en el marco de un heteropatriarcado (neo)colonial, se expande globalmente en un doble sentido
geográfico (colonizando nuevos territorios) y de ampliación de la frontera de la mercancía (mercantilizando todo lo vivo). Va convirtiendo los medios de reproducción de la vida en medios de producción de capital, expropiando los comunes (por ejemplo, con el acaparamiento de tierras o la privatización de servicios públicos).
El proceso de acumulación, que se da en el ámbito de los mercados, tiene contracaras. Cuando menos, podemos nombrar dos. Por un lado, los despojos: las vidas que sobran, que no son rentables ni como mano de obra, ni como consumidoras, ni como deudoras. Estas vidas son constantemente expulsadas hacia las periferias del escenario de la acumulación (las periferias de las ciudades, las periferias del planeta). La violencia de este proceso de expulsión se acrecienta en este momento donde la lógica de acumulación se ha expandido globalmente.
La otra cara oculta y a la que más atención ha prestado el feminismo son los cuidados. Afirmar que el conflicto capital-vida es estructural e irresoluble significa afirmar que no hay estructuras colectivas con capacidad de anularlo (el estado del bienestar tiene capacidad para modular la intensidad del conflicto, sí, pero no para resolverlo). Por tanto, como conjunto social, hay que optar por garantizar uno de los dos procesos. Por definición, en el capitalismo el proceso asegurado es el de acumulación; los mercados capitalistas están en el epicentro de la estructura socioeconómica. Y por eso afirmamos que en el capitalismo ni existe ni puede existir una responsabilidad común en sostener la vida (esta responsabilidad responde al proceso que está en oposición a la vida).
La pregunta es, entonces, cómo sale la vida atacada adelante, quién se responsabiliza de ella. Y aquí hablamos de los cuidados. Quizá cuidados no sea la palabra adecuada. Al usarla en diferentes contextos nos podemos estar refiriendo a asuntos sumamente distintos. Cuando menos, necesitaríamos distinguir, por un lado, los cuidados como aquellas actividades que se realizan para hacerse cargo de la vulnerabilidad de la vida, desde el reconocimiento de la interdependencia y la ecodependencia. Estos son los cuidados que querríamos que existieran, y los que pueden ser practicados por sujetos o redes en rebeldía con el capitalismo. Por otro lado, están los malos-cuidados que fomenta esta cosa escandalosa. En su avance, va
asentando esta forma de mal-cuidar a costa de otras formas de cuidado más colectivas, en red, comunitarias, emancipatorias. Va imponiendo los malos-cuidados como la contracara del trabajo asalariado.
Estos malos-cuidados son las actividades residuales del capitalismo heteropatriarcal colonialista que asumen tres funciones. Primero, cierran el ciclo económico, en el sentido de proveer todo lo demás necesario para que la vida continúe y que no puede adquirirse con el salario (ni comprándolo en el mercado usando el salario directo, ni accediendo a ello como servicio público a través del salario indirecto). Segundo, los malos-cuidados sanan (o intentan sanar) la vida de los ataques del capital: regeneran el bienestar, recobran las fuerzas, la alegría, la salud. Tercero, garantizan que el capital disponga de mano de obra plenamente disponible y flexible para las necesidades de la empresa, proveen esa mano de obra que tiene todas sus necesidades resueltas y no tiene responsabilidades sobre la vida ajena que condicionen su inserción mercantil.
Y hacen todo lo anterior bajo tres condiciones. Están privatizados, metidos en la esfera de lo privado-doméstico, en los hogares heteropatriarcales, y no en la esfera de lo público ni de lo común. Segundo, están feminizados, porque la gran mayoría de estos cuidados es realizada por las mujeres, cuestión que captamos con la idea de división sexual del trabajo. Y porque la identidad femenina se construye en torno a una ética reaccionaria del cuidado: una ética mariana, de la inmolación y del sacrificio, donde el sentido vital propio se adquiere dando la vida propia por la vida ajena. Esta es una de las caras ocultas del individualismo, la autosuficiencia y la competitividad. Para que unos sujetos puedan jugar a ser autosuficientes e individualistas en los mercados, otros sujetos cubren sus carencias, hacen todo lo que ellos no hacen. En tercer y último lugar, están invisibilizados: carecemos de herramientas para captarlos (sin datos ni nombres), de regulación colectiva de las condiciones laborales (descansos, cualificaciones, riesgos…), de compensación que dé autonomía vital (remuneración o derechos)… Pero, sobre todo, son invisibles porque realizar estos trabajos no genera ciudadanía económica y política, y porque desde ellos no nos reconocemos como sujetos de derechos ni sujetos políticos que cuestionan desde ahí el conjunto del sistema. Son invisibles en el sentido de carecer de poder para denunciar el conflicto básico que absorben. Para vivir en un sistema donde la vida misma está atacada, es clave no ver el conflicto. Y, para no verlo, son necesarias
esferas económicas y trabajos subalternos. De esto se encargan el heteropatriarcado y el racismo, dando lugar a ese carácter feminizado y racializado de los malos- cuidados. No son invisibles, están invisibilizados.
Por todo ello, desde el feminismo utilizamos la metáfora del iceberg para describir el capitalismo heteropatriarcal (neo)colonial. Cuando decimos que la acumulación de capital tiene lugar en la parte visible, nos referimos a que tiene el poder para imponer sus ritmos e intereses; que el sujeto que domina este proceso impone su propia vida a costa de la vida del resto. Por otro lado, hay una dimensión invisibilizada en el sentido de que los sujetos que la habitan y los trabajos que la conforman no tienen poder para definir el funcionamiento del conjunto, ni siquiera para politizar su malestar.
Identificar el conflicto capital-vida es fundamental para afrontar el momento actual. La crisis multidimensional y acumulada está derivando en una crisis de reproducción social global, que golpea a todos los lugares, aunque con distinta intensidad, en un proceso de periferización del centro. Más aún, podemos leerla como la crisis del proyecto civilizatorio de esa cosa escandalosa, que muestra a las claras su carácter biocida. Esta quiebra profunda se da a la par que la crisis ecológica nos ha llevado a una situación de colapso. El decrecimiento material es ya un hecho inevitable, no una opción. Como conjunto, vamos a vivir con menos uso de materiales y energía, simplemente, porque no hay. La pregunta es cómo vamos a distribuir ese decrecimiento, quién va a decrecer. En esta situación de transición la pregunta no es si queremos que el mundo cambie, porque ya está cambiando, sino si vamos a hacernos responsables de ese cambio.
Si no nos hacemos responsables de la transición, esta se va a guiar por las fuerzas hegemónicas. Esta cosa escandalosa tiene un proyecto de rearticulación para el siglo XXI, que combina elementos de continuidad y de cambio. En línea clara de continuidad, plantea la mercantilización global, con el repunte del (neo)extractivismo y el acaparamiento de tierras, la consolidación de nichos de negocio antes impensados (como las bioeconomías, en general, y las bioeconomías de la reproducción, en concreto; o la inteligencia artificial y las nuevas tecnologías de la
comunicación). Al mismo tiempo, amputa las (escasas) capacidades de las instituciones públicas para mediar en el conflicto: las vacía de contenido y/o las pone directamente a su servicio (avanzando hacia el estado-corporativo). Todo esto queda claramente reflejado en la nueva oleada de tratados de comercio e inversión que está negociándose.
Sin embargo, este proyecto tiene también elementos de ruptura. Esta cosa escandalosa tiene dos formas de imponerse: la seducción y la violencia. Lo que desde el feminismo se ha denominado el “neoliberalismo de colores” nos prometía un juego en el que todos ganan con la expansión global del capital: era posible compaginarla con el logro de los sueños de éxito individuales (de cada país, de cada persona), con el respeto de derechos civiles y políticos, con la igualdad de oportunidades entre mujeres y hombres, con dar cabida a la diversidad sexual racial, cultural… Eran cantos de sirena del empoderamiento, del ejercicio de la diversidad mediante el consumo.
Pero hoy las máscaras se han caído; se ha hecho evidente que en este mundo no cabemos todxs, que el éxito de algunos se da a costa del despojo de otrxs. Esto es lo que reconocen discursos abiertamente racistas y heteropatriarcales. ¿Cuál es su solución? Si no cabemos, expulsemos al otro. Y, para quedarte dentro, debes quedarte en tu sitio, según una estricta jerarquía racial y de género. Este discurso usa la violencia para expulsar y para ordenar. Estamos ante un momento de rearticulación violenta del sistema. Observamos con claridad un proceso de militarización de los territorios. Pasamos a hablar de estados securitarios y de narcoestados. Afrontamos un “capitalismo gore” (AGUINAGA ET AL., 2017, p. 3).
He ahí la urgencia: si aquí no cabemos, precisamos hacernos cargo de la transición para poder llevarla hacia un horizonte donde sí quepamos todas, todos, todes; hacia un futuro de buenos convivires que se arraiguen en un planeta vivo. Y, para ello, es una labor crítica la construcción de lo común. Silvia L. Gil (2011) nos habla de la urgencia de construir lo común como punto de partida y como punto de llegada.
Como punto de partida, un elemento fundamental es, precisamente, identificar el conflicto capital-vida. Este es un problema común, gravísimo, que tenemos todas y todos como conjunto vivo, pero que nos afecta de manera radicalmente desigual según la posición que ocupemos. Es un conflicto que nos abre margen para ejercer privilegios a muchas y, sobre todo, a muchos; nos genera pequeños o grandes
espacios a través de los cuales ejercer la opresión: sea el ejercicio del poder blanco en el marco del racismo institucional y cotidiano, sea el ejercicio del poder heteropatriarcal en la calle o en la casa, sea el expolio desde las ciudades hacia lo rural. Por eso, la construcción de lo común de partida pasa por enfrentar las desigualdades en la manera en que se expresa y se encarna ese conflicto en cada vida concreta, y por asumir la responsabilidad por el lugar que ocupamos cada quien.
Y lo común como punto de llegada nos habla de preguntarnos por cuál puede ser nuestra utopía compartida. Aquella que no actúe como una receta cerrada, sino como un destino posible que nos ayude a definir los pasos. Necesitamos discutir cuál puede ser nuestro horizonte compartido de buenos convivires, entendiendo que solo serán si son en armonía con la tierra (y las aguas, y el aire…), si son para todxs (porque, si son a costa del resto, no son buen vivir) y si dan cabida a la diversidad de formas de ser y estar en el mundo (porque cada vida es irrepetible). Un buen convivir cuyo cuidado se asuma como responsabilidad compartida. Un cuidado que podamos realizar usando los medios de reproducción de la vida en común. Un buen convivir sobre el que tengamos soberanía individual y colectiva. Un buen convivir arraigado en el territorio cuerpo-tierra.
Este horizonte, que nombramos aún con palabras grandes que necesitan ir aterrizándose, sabemos que, sí o sí, va en línea opuesta al modelo que se impone hoy. Por eso, desde el Norte global, en ocasiones lo llamamos decrecimiento: exige destronar a la lógica del crecimiento y la acumulación como el eje vertebrador de nuestros mundos. En todo caso, las etiquetas no son lo relevante. Podemos llamarlo de cualquier otra manera.
En este camino, el diálogo horizontal entre miradas críticas, en contagio mutuo, es imprescindible. Y una de las miradas que debe estar es la del feminismo. Entre otros asuntos, los feminismos son fundamentales para ver el papel que juega la violencia machista en la rearticulación de la cosa escandalosa. El avance (neo)extractivista está persiguiendo de manera particularmente violenta a las mujeres en resistencia al mismo tiempo que aumentan los feminicidios. Hay compañeras que hablan de feminicidios corporativos y de femicidios territoriales. ¿Cómo se vinculan violencia heteropatriarcal y violencia corporativa/extractiva? ¿Por qué ese ensañamiento? ¿Es una violencia instrumental que se dirige contra las mujeres porque ellas son más activas en la resistencia (porque valoran más la tierra en su
vínculo con la vida) y porque ellas están en el centro del sostenimiento de sus comunidades (destruirlas a ellas genera una mayor onda expansiva)? ¿Es una violencia expresiva (destruir el cuerpo de las mujeres es la primera forma de mandar el mensaje “aquí lo que se domina es la vida, y la domino yo”)?
Los feminismos nos muestran más cosas. Nos ayudan a ver el papel de los cuidados cotidianos: el de los malos-cuidados que sostienen el sistema y el de los cuidados emancipatorios que lo minan. Los feminismos nos enseñan que, sin deshacer el género, no podemos luchar contra el capitalismo: hay que desprenderse de esa quimera tóxica de la autosuficiencia de la masculinidad blanca, y de esa ética reaccionaria del cuidado de la feminidad hegemónica.
Nos insisten en que la lucha es sobre y desde la vida. No luchamos (solo) como mano de obra explotada, emprendedoras endeudadas o consumidoras insatisfechas. Luchamos como vidas que nos reivindicamos dignas de ser vividas y sostenidas, vidas hoy día atacadas que quieren poner su cuidado (su autocuidado y su cuidado mutuo) en el centro. Luchar desde la vida nos permite democratizar la lucha. Todas podemos luchar, no solo las trabajadoras de tal o cual sector. Y nos permite articular luchas más sostenibles, porque la apuesta es mejorar la vida desde ya, no sacrificar la vida hoy por un supuesto bien mayor futuro.
Los feminismos nos enseñan también que la lucha prioritaria es desde las esferas invisibilizadas, aquellas donde se absorbe con mayor dureza el conflicto capital-vida y desde las cuales hasta ahora no hemos hecho política (o cuyos intentos de hacer política hemos taponado, menospreciado). Luchas como las de las mujeres campesinas o las trabajadoras remuneradas de hogar nos ponen sobre la mesa no solo lo que el capital no quiere ver, sino lo que otras muchas, otros muchos, tampoco queremos ver para seguir ejerciendo nuestra (más pequeña o más grande) parcela de privilegio.
Los feminismos del Norte global tenemos que hacer un ejercicio de fuerte revisión, una práctica de descentramiento, de mirarnos desde otros ojos y reconocer la rearticulación cotidiana y estructural de privilegios sobre la que nos sustentamos. Es quizá momento de que la economía feminista del Norte global calle mucho más y escuche mucho más.
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V.19, nº 38, 2021 (jan-abr) ISSN: 1808-799 X
Tatiana Dahmer Pereira2
Resumo
O artigo trata de questões emanadas pela diversidade de resistências de movimentos de diferentes mulheres no Brasil, as quais se norteiam por vivências concretas distintas e com projetos societários variados. De caráter teórico - porém fundado em trajetória pessoal e profissional da autora junto aos movimentos feministas e de mulheres - visa refletir sobre as diferentes visibilidades e mesmo invisibilizações de movimentos de mulheres e feministas, a partir da dinâmica particular de nossa formação social brasileira. Ao final, visando futuros do debate, sinalizamos elementos importantes para os estudos de feminismos, movimentos de mulheres e de gênero na academia.
Palavras-chave: Gênero. Relações sociais de sexo. Raça. Classe social. Formação social brasileira.
DESHACIENDO GÉNERO A LA LUZ DE LOS FEMINISMOS EN BRASIL
Resumen
El artículo trata temas derivados de la diversidad de resistencias de movimientos de diferentes mujeres en Brasil, que se basan en diferentes experiencias concretas y con variados proyectos sociales. De carácter teórico -pero fundada en la trayectoria personal y profesional de la autora con los movimientos feministas y de mujeres- pretende reflexionar sobre las diferentes visibilidades e incluso invisibilidades de los movimientos de mujeres y feministas, desde la particular dinámica de nuestra formación social brasileña. Al final, con el objetivo de futuros del debate, señalamos elementos importantes para los estudios de feminismos, movimientos de mujeres y género en la academia.
Palabras clave: Género. Relaciones sociales. Raza. Clase social. Formación social brasileña.
UNDRAWERING GENDER IN THE LIGHT OF FEMINISMS IN BRAZIL
Abstract
The article deals with issues emanating from the diversity of resistances of movements of different women in Brazil, which are based on different concrete experiences and with varied societal projects. Of theoretical character - but founded on the author's personal and professional trajectory with feminist and women's movements - aims to reflect on the different visibilities and even invisibilities of women's and feminist movements, from the particular dynamics of our Brazilian social formation. In the end, aiming at futures of the debate, we signaled important elements for the studies of feminisms, women's movements and gender in university.
Keywords: Gender. Social and sex relations. Race. Social class. Brazilian social formation.
1 Artigo recebido em 14/01/2021. Primeira avaliação em 18/01/2021. Segunda avaliação em 22/01/2021. Aprovado em 05/02/2021. Publicado em 25/02/2021.
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v19i38.48161
2 Doutora em Planejamento Urbano e Regional (IPPUR-UFRJ), docente e pesquisadora do PPGSSDR-
UFF, formada em Serviço Social (UFRJ). Pesquisadora apoiada pelo CNPq. E-mail: tatianadahmerpereira@gmail.com Lattes: http://lattes.cnpq.br/2619212275317172 ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1096-8950
A presente reflexão3 foca em questões geradas pelas formas de resistências engendradas por movimentos históricos de diferentes mulheres, com suas especificidades, as quais se norteiam por vivências concretas distintas e, necessariamente, possuem projetos societários diversos. Procuramos dialogar, aqui, com os desdobramentos dessas questões no campo dos feminismos e mesmo nos rebatimentos dessas construções no âmbito de espaços de produção de conhecimento. Consideramos essa abordagem importante, na medida em que nos auxilia a compreender as mobilizações das trajetórias de movimentos (feministas e de mulheres) no Brasil e suas relações/conexões em torno do conceito de gênero na contemporaneidade.
A questão que nos norteia é como essa diversidade se constrói no contexto da modernidade periférica4 e qual a sua relação com os dilemas existentes entre tais formas de resistência, seus registros e reconhecimentos nos movimentos sociais e espaços de produção de conhecimento.
Considerando os limites do espaço de um artigo, realizamos breve historicidade visando problematizar os seguintes elementos: (i) diferentes visibilidades e mesmo invisibilizações e silenciamentos sociais e políticas de movimentos de mulheres de corte feminista, a partir da dinâmica particular de nossa formação social brasileira; (ii) diálogos, confrontos e (re)significações do conceito de gênero com base nessas formas de resistência; (iii) interconexões e conflitos com as formas de organizações e de resistência do que se nomeia como campo histórico da diversidade (de identidade de gênero e sexual).
3 O texto é uma reflexão fundada em experiências/vivências junto a movimentos feministas, de diversidade e de mulheres desde os anos de 1990, assim como da trajetória de estudos e trabalho profissional tanto no campo de assessoria e formação política junto a movimentos sociais quanto da docência no ensino superior A partir de ingresso como docente na universidade, em 2009, deparo-me com os esforços de ministrar disciplina para discentes de graduação sobre relações de gênero, gerando, então, reflexões permanentes sobre essas relações entre a produção acadêmica e o cotidiano das produções de conhecimento a partir de movimentos sociais.
4 Por modernidade periférica compreendemos as relações constituídas de subjugação pela
dependência da dinâmica dos países centrais quanto à exportação e demais relações geopolíticas, que imprimem particularidades distintas ao processo modernizador brasileiro. Alguns autores trazem contribuições distintas e importantes quanto à constituição desses elos (MENEGAT, 2019; COUTINHO, 2000 e OLIVEIRA, 2003 são os centrais em nossa leitura).
Os três pontos mencionados anteriormente consistem no caminho traçado no artigo. Ao final, a título de desdobramentos futuros do debate, sinalizamos elementos importantes para os estudos de gênero na academia.
Um primeiro ponto trazido por nós refere-se aos contextos e processos históricos nos quais se constroem os reconhecimentos e visibilidades no Brasil quanto às formas de resistência e lutas de movimentos de mulheres e feministas. Essa análise, merecedora de maior elaboração e adensamento, se restringirá aqui a alguns elementos centrais em função dos limites do espaço. Porém, consideramos sua relevância na medida em que expressa muito das formas estruturantes da sociabilidade brasileira, não sendo possível pensá-los sem entender a formação do mundo moderno e suas particularidades.
Consideramos como marcos da fundação da modernidade processos os quais viabilizam a generalização das relações mercantis e a racional separação entre ser humano e natureza. A substância desta forma social conforma-se, como discutimos em trabalhos pregressos5, na conflagração processual da centralidade de um tipo particular de ser humano difundido e legitimado como universal: o homem branco (caucasiano), europeu, possessivo/proprietário e heteronormativo. Esta afirmação se constrói a partir das expansões europeias ultramarinas iniciadas no século XV, mas assenta-se sobre forçosos adventos profundamente violentos – paradoxalmente como forma de construção positiva da identidade do “homem” da modernidade.
Citamos aqui alguns aspectos centrais para a nossa argumentação:
as inquisições da Igreja Católica como imposição de poder e ordenamento do que era a forma “estatal”, refuncionalizando violentamente o lugar social e os corpos das mulheres (FEDERICI, 2017), conflagrando o que Segato (2016) nomeia como uma “guerra contra as mulheres”;
as objetificações (reificações) do real, com as separações e hierarquizações entre o campo e a cidade, o político e o econômico, entre outras dualidades construídas na
5 (PEREIRA, 2019; PEREIRA et al 2019).
era moderna. Wood (2000) demonstra como as raízes agrárias do capitalismo instituem marcos fundadores da propriedade privada e da despossessão na Inglaterra, por exemplo;
a ressignificação do lugar do trabalho e, conseqüentemente, da construção de uma moral positivada com as reformas protestantes (século XVI);
o colonialismo escravista, em especial, na violenta dominação territorial e subjugação de povos originários não reconhecidos em sua humanidade; como central para a “acumulação primitiva” e a configuração de relações de desenvolvimento dependente e subordinado e, por fim, mas não menos relevante;
os avanços das ciências e a otimização (e imposição) do tempo e do ordenamento do espaço na construção da vida cotidiana a partir da consolidação da razão iluminista, imposta como universal.
Esses ingredientes fundam e alimentam de forma não linear e marcada por muitas contradições geradas pelos embates cotidianos de afirmação em torno de quem é passível do reconhecimento de humanidade. Configuram-se de forma distinta em função das formações sociais de cada lugar e das relações geopolíticas o que hoje estruturam as ações do Estado capitalista. Porém, para nós algo as unifica, considerando a dinâmica impressa às relações, o que Gonçalves (2019) explicita como a forma específica e única à modernidade: o patriarcado produtor de mercadorias. Este possui por centralidade a valorização do valor como um fim em si mesmo e a difícil compreensão dos sujeitos sobre a objetividade por eles produzida (GONÇALVES, 2019, pp.41-42).
Essa dinâmica fetichista estrutura-se sobre a dinâmica das relações sociais, com as desigualdades entre as classes sociais, os tensionamentos do patriarcado moderno6 e o racismo estrutural. Este último se expressa através da hierarquização e da desumanização permanentes nas diferenças racializadas entre os seres humanos na vida social. Um dos sinais é a banalização em torno de quais vidas podem se perder ou consistem em ameaça social. Recuperamos o quanto esses elementos conflagram
6 Reforçamos, como algo distinto das outras estruturas patriarcais e com formas próprias de controle dos corpos das mulheres, na sua desumanização e objetificação, das definições identitárias de gênero e na afirmação permanente da divisão sexual do trabalho (GONÇALVES, 2019).
o que Fanon (2008) nomeia criticamente como a construção histórica da “outridade”7 e que Segato (2007) problematiza como a antítese da construção da ideia homogeneizadora de nação: os outros.
Nessa ótica, a narrativa histórica hegemônica que consolida a ideia do feminismo em “ondas” por anos invisibilizou ou desqualificou formas de resistência e de luta pela vida, contra opressões e pela liberdade – na materialidade perigosa de uma história única (ADICHIE, 2019). Essa mesma leitura muitas vezes trabalha com uma ideia de movimento feminista (e não de movimentos feministas e movimentos de mulheres), e alinha essa qualificação cronológica8 da construção das lutas à conformação dos direitos de cidadania dentro de uma perspectiva bastante marshalliana9.
Ao construir a consciência universal e racional, o faz incidindo sobre o apagamento de memórias e histórias diversas (GONZALES, 1984). Por exemplo, quando do reconhecimento de formas de resistências permanentes à escravização, os quilombos foram, por muito tempo, mencionados como lugares de fuga, em uma clara animalização e subalternização das pessoas africanas – e não compreendidos nas suas riquezas e complexidades, como estratégias e espaços de sociabilidade de resistência cultural, afetiva e de organização dos enfrentamentos que contribuíram
7 Para Fanon (2008) o conceito de outridade se constitui para designar o negro como o outro em relação ao branco em uma distinção negativa, de tudo aquilo que o branco não reconhece em si. Em leitura crítica com base na psicanálise, repensa a alteridade como um elemento próprio à construção da identidade do indivíduo a partir da conformação dessas distinções e hierarquias sociais.
8 Nosso desconforto com a narrativa histórica de um movimento feminista universal que pode ser
narrado a partir de “ondas” traz simplificações bastante delicadas no que tange ao reconhecimento político e histórico da diversidade dos feminismos e movimentos de mulheres. Por exemplo, ao se assinalar a primeira onda do feminismo como marcado pelas lutas das sufragistas pelos direitos ao voto (e pela cidadania na sua dimensão política), ignoram-se outras formas históricas anteriores de insurgência e resistência das mulheres, como no caso das mulheres escravizadas nas Américas, por exemplo. Estas não necessariamente tematizavam ou qualificavam suas lutas como direitos políticos, mas na concretude essas formas de resistência pelo direito a existir dignamente, sem sofrer violações de seus corpos, materializa-se como movimento coletivo de resistência, ainda que não se nomeie nem se reconheça como feminista. Algo bastante semelhante ocorre com a “segunda onda”, narrada como momento de pleito ao direito ao ingresso no mercado de trabalho, ao controle sobre seus corpos e vivência enquanto mulheres. Essa não era, necessariamente, a pauta central das mulheres negras, por exemplo, tanto no Brasil quanto em outros países ocidentais, na medida em que o trabalho e sua dimensão opressiva e exploratória sempre se fizeram presentes na vida das mulheres negras - mas são muitas vezes sistematicamente silenciados sendo necessário “enegrecer o feminismo” (CARNEIRO, 2003).
9 Referenciamos a leitura de T. H. Marshall (1967) sobre cidadania, em contexto de pós-guerra e expansão capitalista - na qual o autor defende a possibilidade de compatibilidade entre desigualdade e direitos. O autor desenvolve a recuperação cronológica e etapista das dimensões que ele credita à conformação da construção da cidadania.
para corroer por dentro as estruturas da escravidão no Brasil. Mais ainda, a invisibilidade das mulheres africanas e afro-descendentes nas lutas de resistência à escravidão é algo permanente, ganhando alguma projeção e visibilidade dos registros graças aos resgates históricos, reconstrução de histórias orais e às pesquisas e registros acadêmicos realizados por aquelas que têm sido sujeitos da visibilização e do resgate de outras narrativas históricas em torno dessas lutas, em especial a partir dos anos de 1970 (GONZALES, 1984; CARNEIRO, 2003; LUGONES, 2008 como
alguns exemplos).
É a partir da conformação histórica moderna, com suas contradições e violências intrínsecas, que reforçamos a importância do reconhecimento das formas de opressão desde a sua origem. Essas formas se naturalizam na espoliação cotidiana e assumem características cada vez mais complexas. Por isso, o resgate da história e da memória tanto das opressões e violações quanto, especialmente, das formas de resistência e dos embates produzidos por elas, são recursos políticos e epistêmicos fundamentais de visibilidade, reconhecimento, registro e de fortalecimento das diferentes existências e construções do feminino no Brasil na contemporaneidade.
Uma observação inicial é importante na organização dessa argumentação: embora as formas de resistência das mais diferentes mulheres às distintas opressões históricas sempre tenham existido, ainda que invisibilizadas, as narrativas sobre as mesmas e a nomeação dada a estas de “feminismo” é algo bastante controverso e polêmico. Por isso também reforçamos a distinção entre movimentos de mulheres e feminismos.
A delicada questão é que a narrativa hegemônica quanto ao que seria uma história do feminismo no Brasil (PINTO, 2003 e 2010; TELES, 1999) nos apresenta registros importantes, porém extremamente parciais e marcados pela exposição da condição das mulheres como mulher universal. Essa questão é central para se compreender as armadilhas de não ruptura com essa forma social do patriarcado produtor de mercadorias, como mencionamos, e que alimentam opressões e desigualdades internas dos próprios movimentos de mulheres e de movimentos feministas em nossa história. Não se trata apenas de um reconhecimento formal,
de alteração de nomenclaturas 10, mas da centralidade do resgate e reconhecimento dessa diversidade, das contradições existentes e das demandas específicas das diferentes mulheres em seu existir a partir dos marcadores fundamentais como raça, classe social e mesmo caminhos da construção identitária de gênero11.
Os limites concretos e políticos dessa leitura universalizante situam-se justamente na construção de pautas únicas e na hierarquização de demandas e lutas de diferentes mulheres. Por exemplo, tanto a predominância da visibilidade dos feminismos liberais quanto até mesmo de uma leitura clássica de feminismos marxistas, em geral priorizam uma dada construção de igualdade das mulheres em relação aos homens e a partir de uma premissa de mulher universal - alimentando e mantendo esta ideação do que é o parâmetro a se conquistar. A interessante crítica de Roswitha Scholz (1996) problematiza essa construção feita a partir da centralidade da dinâmica do valor, que em nada contribui para a ruptura com o fato que o “valor é o homem”.
Em argumentação por caminhos distintos, Fraser (2019) pondera sobre os limites da “segunda onda” do feminismo, no pós II guerra mundial – chamando a atenção para o fato que “o sucesso relativo do feminismo na transformação da cultura contrasta nitidamente com seu relativo fracasso na transformação das instituições” (p.26). A autora problematiza a abordagem dualista e simplista segundo a qual existiria uma falha institucional com sucesso cultural, na medida em que essas mudanças não impactaram as instituições. Sinaliza como uma de suas causas as próprias transformações na organização social do capitalismo e considera que “o verdadeiramente novo na segunda onda foi o entrelaçamento, na crítica ao
10 Gonzales (1984) problematizava a relevância de recuperar e construir autonomeações ou autodefinições, narrativas e “epistemes” próprias, não eurocêntricas. Nos Estados Unidos da América, Collins (2019) problematiza a adoção eurocêntrica da nomeação “feminismo”, propondo a construção de nomeação própria aos movimentos das mulheres negras, “mulherismo” (womanism).
11 Reforçamos aqui o elemento da construção identitária, na medida em que ele é central na
modernidade. No entanto, a identidade do indivíduo aparece como uma abstração que se materializa em uma forma única e universal, como no caso da “mulher”. O ser mulher como uma construção social a partir das suas mais diferentes vivências, das contradições estruturais e dos caminhos de construção dessa identidade se configura com diferentes compreensões no seio dos feminismos, redefinindo campos próprios, como o transfeminismo, ao se considerar “o ponto em que o transfeminismo diz respeito às vidas das pessoas transexuais, travestis e transgêneras” de forma a visibilizar e não apagar a existência de pessoas trans na sociedade (BAGAGLI, 2018, p.345). Nessa mesma publicação, Vieira (2018) afirma que “ora, se a própria noção de sexo pode ser compreendida histórica e situacionalmente, então as ‘causalidades compulsórias’ vagina-mulher-feminilidade/homem-pênis-masculinidade se desestabilizam, e começamos a pensar, portanto, nos corpos que escapam dessas tríades, os corpos transexuais e travestis” (p.357).
capitalismo androcêntrico organizado pelo Estado12, de três dimensões analiticamente distintas de injustiça de gênero: a economia, a cultural e a política” (FRASER, 2019, p.32).
Esse aporte, para os quais os feminismos hegemônicos universalizantes acabam por convergir, faz com que os registros das histórias dos feminismos sejam marcados como tendo o passo inicial os movimentos sufragistas a partir da segunda metade do século XIX com maior projeção no início do XX e a luta das mulheres brancas pela inserção no mercado de trabalho. Isso não apenas não é um consenso, como não enfrenta as questões trazidas pelas mulheres negras e indígenas, por exemplo, quanto à prioridade no reconhecimento de sua humanidade, na denúncia da histórica violação e erotização de seus corpos, na desapropriação de suas terras e apartação dos recursos naturais e saberes ancestrais e do não reconhecimento quanto à histórica integração subalternizada e violenta ao trabalho (seja forçado, escravizado ou “livre”).
Embora a leitura hegemônica possua preponderância, a presença e posicionamento de registros das leituras contra-hegemônicas se fazem presentes há tempos, adquirindo maior força, impulso e, especialmente, visibilidade a partir dos anos de 1970 no Brasil com as contribuições de autoras fundamentais como Gonzales (1984) e Carneiro (2003), entre outras.
Soma-se ao aprofundamento das distinções raciais e de classe social entre mulheres, avanços dos debates identitários não essencialistas sobre ser mulher e caminhos distintos que enfrentam, no campo da diversidade sexual, a imposição histórica patriarcal da heteronormatividade. Essa riqueza de reflexões não ocorre, obviamente, de forma tranqüila por dentro dos movimentos - o que é importante para mexer com as estruturas (CARNEIRO, 2003). A autora sintetiza bem essa questão ao demonstrar o quanto
a origem branca do feminismo estabeleceu sua hegemonia na equação das diferenças de gênero e tem determinado que as mulheres não brancas e pobres, de todas as partes do mundo, lutem para integrar em seu ideário as especificidades raciais, étnicas, culturais,
12 Realiza essa reflexão com base em Friedrich Pollock e referenciada nas experiências de Estado de Bem Estar Social (p.28), uma realidade bem distinta da nossa trajetória de formação no Brasil e mesmo latino-americana.
religiosas e de classe social. Até onde as mulheres brancas avançaram nessas questões? (CARNEIRO, 2003, p.318)
Distintos registros em torno de formas e movimentos de resistências e enfrentamentos de opressões e violências por parte das diferentes mulheres na história e nos lugares podem ser mapeados a partir das distintas reflexões críticas e deste embate travado por dentro dos feminismos, impulsionados pelas mulheres negras, pelas mulheres trans e mesmo as indígenas. Se demandas, denúncias, tensões emanadas dos movimentos do real rebatem nas universidades como temas e, necessariamente, metodologias analíticas e campos teóricos nos anos de 1960 na Europa e América do Norte e nos de 1970 na América Latina13, a tentativa de identificar, classificar, analisar, compreender o real como elementos constitutivos do saber acadêmico hegemonicamente iluminista tem sido sistematicamente questionada, vivenciando impactos e desafios importantes que desequilibram uma estrutura aparentemente asséptica de produção do saber “formal".
Essa não é uma questão periférica ou menor, na medida em que as possibilidades geradas pela força política das abordagens dos feminismos negros e movimentos mulheristas (COLLINS, 2019) e ligados também à diversidade de gênero e sexual e daqueles vinculados aos deslocamentos em relação ao eurocentrismo, como a proposta de feminismos decoloniais críticos, demarcam não apenas espaços nem tampouco se propõem a pactuar agregação de temas e enfoques. Incidem sobre clara disputa por inscrever histórias e recontar outras a partir das perspectivas de distintas vivências dos femininos e existências de mulheres, de outras perspectivas, de deslocar o foco e a luz sobre quem são narradoras e produtoras de interpretações – e como o saber hegemônico pouco tem historicamente contribuído para visibilidade, enfrentamento de opressões estruturais, compreensões da diversidade e da complexidade do mundo.
A grande questão, ao se considerar tempos atuais, de aprofundamento da crise capitalista no final do século XX acompanhado do recrudescimento de formas totalitárias e fundamentalistas expressas na sociedade e materializadas em ações
13 Essa cronologia não é muito precisa, mas sinaliza para o tardio reconhecimento de movimentos importantes do real, como os trazidos pelos feminismos e lutas antirracistas e anti colonialistas – inicialmente incorporados de forma periférica e, muitas vezes, tratados pelo mainstream na academia como temas coadjuvantes ou de baixa qualificação teórica.
estatais - as quais impactam diretamente e de modos distintos as mulheres -, é pensar como, se e qual tipo de saber feminista e do campo dos estudos de gênero possui papel relevante. Para nós, essa relevância se faz presente quando este saber é constituído a partir de perspectiva desestabilizadora e consistente das estruturas que tradicionalmente valorizam determinadas epistemes formais, que mais servem para alimentar novas hierarquias e opressões sem incidir em instrumentos capazes de contribuir para a compreensão (ainda que parcial) de movimentos do real.
Sem receitas ou formatos prévios, o que desestabiliza certezas e definições geralmente tem se fundado em trajetórias periféricas, marginalizadas, coletivas, colaborativas, de valorização de relações originárias e um passado resgatado a contrapelo (pelas bases da ancestralidade, na contraposição a uma ideia de história única e universal, conforme defende ADICHIE, 2019), da construção dos “comuns” (FEDERICI, 2019) e com base em práticas afetivas e metodologias pedagógicas agregadoras na diversidade.
Essas vivenciam múltiplas compreensões em construção sobre os lugares e usos do saber – com todas as contradições possíveis ao fazê-lo nesse mundo, sob essa forma social. Ainda assim, contribuem não apenas para aprendizados novos e a apreensão conceitual de conteúdos, mas sua contextualização histórica a partir do reconhecimento das vivências na História, de percepção de contradições, violências, opressões e crise como elementos motores da constituição moderna.
Nesse sentido, o saber não deve contribuir para edificar doutrinas ou trazer certezas impermeáveis, nem deve nos colocar em pedestais ou criar distinções hierárquicas, ao mesmo tempo que nos perguntamos: como reconstruir abordagens, leituras e compreensões sem esvaziar seus conteúdos originários a partir de experiências vividas?
Tampouco deve nos trazer alívio nas certezas doutrinárias – este é o papel, quando muito, das religiões -, mas sim nos desafiar acolhedoramente à compreensão do que nos parece tão difícil, distante e alheio a nós. Deve, especialmente, nos ajudar a romper nossa preocupação central de definição de sujeitos conhecedores à luz do Iluminismo, qual seja, a de conhecer a partir do que sou e das minhas referências, nomear, classificar e hierarquizar – conforme nos ensina a forma positivista predominante.
Por fim e sem pretensões de conclusão em torno de tema tão complexo, elenco alguns limites e o que considero dilemas na construção de aportes acadêmicos em um contexto de acirramento da crise e de caminhos de recrudescimento de imposição autoritária da ordem, criminalização de movimentos sociais insurgentes e de busca por certezas em embate com formas de resistências nas diversidades de existências.
Não é possível a escrita desse artigo sem que consideremos o aprofundamento da crise do capitalismo, com a forte ascensão da extrema direita. Em especial no Brasil, esta vem balizada na militarização, nos discursos e práticas de ódio e extermínio a tudo o que não se conforma como o homem branco possessivo – sobram exemplos e dados crescentes sobre práticas misóginas na sociedade e estimuladas pelo Estado, de aumento de feminicídios14 e de políticas de extermínio de populações indígenas, negras e trans.
A universidade, especialmente a pública, não está imune ao controle e ao autoritarismo existentes. Mas, ao mesmo tempo em que pesquisas com temas críticos, que têm por centro “objetos” de estudos que são alvos dos discursos de ódio e da política estatal de aniquilamento deste outro (nas palavras de Achilles Mbembe, da necropolítica, 2016), trazem também suas questões internas sobre as formas de assimilação dos elementos que tratamos aqui nesse trabalho. Não nos caberá muito espaço para o aprofundamento dessas questões, tão relevantes quanto às anteriormente trabalhadas. Mas é importante ressaltar que, ainda que os debates sobre identidade de gênero, questões raciais e de sexo – assim como de leituras fundadas nas contradições entre classe social – encontram nas universidades públicas flancos de resistência de forma bastante diferenciada entre os temas, por vezes, e de forma ainda tímida, conseguem promover integração, no sentido de
14 O Brasil é o quinto país em feminicídios no mundo, tendo sofrido em 2020 um aumento de mais de 22% de casos em doze estados entre março e abril de 2020 durante a pandemia de Covid – com o confinamento - se compararmos os dados do mesmo período em 2019 (FBSP, 2020). Na última
década, como reflexo da força do racismo estrutural, o extermínio de pessoas negras cresceu em 11%
na contramão da diminuição de 12% do assassinato de brancos (Atlas da Violência, IPEA/FBSP, 2020). Também carrega a triste marca de ser o país que mais mata pessoas LGBTQI+ no mundo (ANTRA,2019) nos últimos dez anos, bem como denúncias apontam para o incremento do assassinato de ativistas e de indígenas desde 2018, quando da posse do atual presidente, Jair Bolsonaro (sem partido).
pensar essas distintas marcações nas suas particularidades e importância na leitura sobre a realidade, como é o caso da incorporação do debate metodológico sobre interseccionalidade. O importante é ressaltar que esse saber acadêmico é tensionado pelas lutas sociais concretas e, ainda que com baixa permeabilidade, é possível reconhecer produções e espaços de formação nas universidades públicas brasileiras.
De alguma forma, ainda que incipientemente, no campo da produção de conhecimento acadêmico, movimentos de ruptura com a naturalização das opressões têm sido realizados. Essa naturalização assenta-se sobre uma reificação (e, como parte disso, objetificação) do que é ser mulher ou de quais são as formas que estruturam essa forma social mercantil que se materializa na modernidade.
Esta, por sua vez, se não é boa, em nenhuma instância, para mulher alguma – ainda que algumas adquiram ganhos secundários ou se protejam por privilégios próprios aos marcadores específicos, como, por exemplo, as mulheres brancas de classes sociais ou de segmento de classes mais abastadas – impacta de forma estrutural cotidiana e violentamente àquelas que passam ao largo dessa imposição normativa. Talvez um dos legados e aprendizados relevantes dessas mulheres em movimento (CARNEIRO, 2003) tem sido nos tensionar a não nos voltar a constituir consensos ou outras novas definições conceituais universalizadoras e estagnadas sobre existências de mulheres (negras, lésbicas, trans etc). Na linha da argumentação de Fraser (2019), o tensionamento interno aos movimentos feministas por busca de consensos para atender às demandas impostas pelo Estado quanto aos limites do desenho das políticas públicas e de suas respostas, acentuou (e acentua) feridas históricas no que tange às relações sociais entre as classes, raças e mesmo no que se refere às questões identitárias.
Chamamos a atenção, por fim, sobre a necessidade de ouvir, de lidar com a alteridade sem hierarquizá-la e desumanizá-la na outridade, de (re)conhecer movimentos concretos da realidade, revendo e desconstruindo alguns princípios políticos. Nos referimos às amarras raciais, sexuais e sociais (classistas), que impõem o manto da invisibilidade e do silenciamento, especialmente a partir da negação sobre a validação de determinados saberes e de sua desqualificação.
Esse movimento nos auxiliaria a desengavetar pré-definições quanto a gênero, sem necessariamente impor sua fusão na violência do consenso que silencia e oprime. Esses princípios que orientam aquilo que feminismos e movimentos de mulheres (críticos e anticapitalistas) negros, indígenas, decoloniais e
transfeminismos problematizam a partir da denúncia das invisibilidades e homogeinizações no saber, pode ser entendido como a exposição de novas formas, caminhos e recursos de valorização, resgate e produção de saberes15.
São pressupostos importantes que necessitam estar presentes na construção de epistemes e de metodologias de ensino, pesquisa e de sistematização de saberes críticos na academia e no cotidiano das lutas políticas.
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V.19, nº 38, 2021 (jan-abr) ISSN: 1808-799 X
A OFENSIVA ANTIGÊNERO NA SOCIEDADE BRASILEIRA1
Luciana Sardenha Galzerano2
Resumo
O artigo objetiva compreender a gênese e difusão da ideologia de gênero e sua repercussão na sociedade brasileira. O termo busca naturalizar as questões de gênero e ideologizá-las, evitando que sejam enfrentadas a partir dos estudos científicos da área. Apoiamo-nos no marxismo e nas teorias que dele partem para analisar as relações sociais de sexo/gênero, e na epistemologia feminista que questiona o masculino dito universal na produção da ciência. Observamos que a disseminação do discurso sobre a ideologia de gênero resulta em ofensivas antigênero em diversos países, incluindo o Brasil.
Palavra-chave: Ideologia de Gênero; Gênero; Relações Sociais de Sexo; Divisão Sexual do Trabalho.
LA OFENSIVA ANTIGÉNERO EM LA SOCIEDAD BRASILEÑA
Resumen
El artículo investiga la génesis y difusión de la ideología de género y su repercusión en la sociedad brasileña. La expresión busca naturalizar las cuestiones de género y ideologizarlas, evitando que sean enfrentadas desde los estudios científicos del área. Nos apoyamos en marxismo y las teorías que de él surgen para analizar las relaciones sociales de sexo/género, y en la epistemología feminista que cuestiona al masculino universal en la producción científica. Observamos que la difusión del discurso de la ideología de género resulta en ofensivas antigénero en varios países, incluido Brasil.
Palabra chave: Ideología de Género; Género; Relaciones Sociales de Sexo; División Sexual del Trabajo.
THE ANTI-GENDER OFFENSIVE IN BRAZILIAN SOCIETY
Abstract
The article aims to understand the origin and diffusion of gender ideology and its repercussion in Brazilian society. The expression tries to naturalize gender issues and ideologize them in a way to avoid the discussion in scientific areas. We use Marxism as the theorical reference and the theories that emerges from it to analyze the social relations of sex. Also, we support the Feminist Epistemology that questions the universal male in the scientific production. It is observed that the diffusion of gender ideology results in anti-gender offensives in several countries, including Brazil.
Keyword: Gender Ideology; Gender; Social Relations of Sex; Sexual Division of Labour.
1 Artigo recebido em 01/09/2020. Primeira avaliação em 22/09/2020. Segunda avaliação em 30/09/2020. Aprovado em 07/10/2020. Publicado em 25/02/2021.
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v19i38. 45703
2 Mestra em Educação pela Universidade Estadual de Campinas - Unicamp, Campinas - São Paulo, Brasil e doutoranda em Educação pela Universidade de São Paulo - USP, São Paulo - Brasil.
E-mail: lucianasgalzerano@gmail.com. ORCID: 0000-0002-5818-5461. Lattes: http://lattes.cnpq.br/5729695358938810.
Introdução
O objetivo deste estudo é compreender a gênese e difusão do discurso sobre a ideologia de gênero ou teoria do gender/gênero e sua repercussão na sociedade brasileira. O termo foi cunhado pela Igreja Católica, numa tentativa de retorno à naturalização e biologização do gênero. Ao utilizar o conceito ideologia, setores religiosos e conservadores buscam impedir que a questão seja debatida e enfrentada no campo de estudos científicos sobre a temática.
Neste trabalho compartilhamos do pressuposto central da epistemologia feminista, isto é, o questionamento do masculino dito universal na produção da ciência (HARAWAY, 1994; HARDING, 2002; LOWY, 2009). Nas palavras de Lowy (2009, p.
40), “as definições vigentes de neutralidade, objetividade, racionalidade e universalidade da ciência, na verdade frequentemente incorporam a visão de mundo das pessoas que criaram essa ciência: homens – os machos – ocidentais, membros das classes dominantes”. E brancos, acrescenta Hirata (2014).
Não se objetiva recriar a ciência e produzir um método feminista totalmente distinto quanto aos procedimentos e técnicas de coleta e investigação de informações, mas indagar o que tem sido e o que deveria ser objeto de conhecimento. O questionamento, portanto, situa-se no plano epistemológico (HARDING, 2002).
Sabendo que não há neutralidade na produção da ciência, buscamos produzir um conhecimento situado de orientação teórica feminista, isto é, teorizar a partir de um ponto de vista feminista (HARAWAY, 1994). O referencial teórico adotado será o materialismo histórico e dialético e as teorias que dele partem para analisar as relações sociais de sexo/gênero, sobretudo a partir da contribuição das feministas materialistas francesas. A teorização em torno dessa temática questiona o pensamento naturalista e afasta os grupos sociais de homens e mulheres da bicategorização biologizante machos-fêmeas (HIRATA e KERGOAT, 2009).
A adoção da noção de relações sociais de sexo/gênero não significa que consideramos tais relações como as predominantes na sociedade, tampouco que o elo de dominação homem-mulher é a estrutura essencial. Só é possível trabalhar em conjunto sobre a totalidade do social se compreendemos que as relações sociais são consubstanciais e coextensivas (KERGOAT, 2010).
A escolha do objeto de estudo, portanto, não advém de mero acaso. Acreditamos que analisar a criação e difusão do discurso sobre a ideologia de gênero
no âmbito das relações sociais pode auxiliar na compreensão dos modos pelos quais estão sendo reproduzidas e legitimadas as relações de forças vigentes, e constituir um caminho inicial em busca de sua superação.
Articulando relações sociais de classe e relações sociais de sexo/gênero
A compreensão do objeto ora analisado insere-se no âmbito da análise das relações sociais. Para Kergoat (2010), relação social é uma relação antagônica entre dois grupos sociais, instaurada em torno de uma disputa. As relações formam uma teia em que há separação e entrelaçamento, contradição e coerência (HIRATA e KERGOAT, 1994). Busca-se, ademais, uma abordagem que articule relações sociais de classe, conceito de tradição marxista, e relações sociais de sexo/gênero, termo desenvolvido pelas feministas materialistas francesas.
Os antropólogos e sociólogos que estudaram o conceito de sexo social/gênero fizeram-no com base no quadro histórico do movimento feminista que tomou consciência de uma opressão específica: a enorme quantidade de trabalho realizada gratuitamente pelas mulheres em benefício dos outros e em nome da natureza humana, do amor e do dever maternal. O trabalho reprodutivo/doméstico era atribuído exclusivamente às mulheres de forma naturalizada e era invisível, pois não visto, não reconhecido e tampouco remunerado3 (KERGOAT, 2009).
Na análise desse tipo específico de trabalho, termos como dupla jornada ou conciliação de tarefas tratam-no como mero apêndice do trabalho assalariado. Consideramos, entretanto, indissociáveis os trabalhos produtivo e reprodutivo. O funcionamento de ambos é essencial para a manutenção da lógica capitalista. Kergoat (2009) ressalta, ademais, que o trabalho doméstico exercido de forma gratuita e naturalizada pelas mulheres também interessa aos homens, uma vez que os livra da realização de tarefas indesejadas, como a limpeza do banheiro. Disso surge a reivindicação de que a exploração – conceito central do marxismo e base da relação antagônica entre as classes – era insuficiente para analisar a opressão sofrida pela mulher nas relações homem/mulher no seio da sociedade. Compreender essa opressão específica em sua relação com a exploração de classe fazia-se necessário.
3 Para discussão mais aprofundada, recomendamos a leitura de Delphy (2015) e Federici (2019).
O tema do trabalho feminino foi a porta de entrada dos estudos e pesquisas francesas sobre mulheres e relações sociais de sexo/gênero nos anos 1960 e 19704. De modo geral, os estudos dialogavam com o marxismo – em referência ou em oposição – na elaboração dos novos conceitos e essa constitui uma das principais diferenças entre o feminismo francês e o norte-americano.
Na sociologia francesa, o estudo sobre a articulação entre relações sociais de classe e relações sociais de sexo/gênero vem sendo desenvolvida desde os anos 1970 por Daniele Kergoat, com o objetivo de compreender as práticas sociais de homens e mulheres diante da divisão social do trabalho (HIRATA, 2014).
As relações sociais de sexo/gênero acontecem entre dois grupos antagônicos, os homens e as mulheres, em que se estabelece uma relação hierárquica, ou seja, uma relação de poder. As diferenças entre as atividades desenvolvidas não provêm de causa biológica, trata-se de construções sociais que possuem uma base material, o trabalho, e são expressas por meio da divisão sexual do trabalho.
A divisão sexual do trabalho é, portanto, a forma de divisão do trabalho social decorrente das relações sociais de sexo/gênero. Essa forma é histórica e adapta-se aos diferentes contextos, mas há dois princípios organizadores que são válidos para todas as sociedades conhecidas no tempo e no espaço: 1) separação, que indica a existência de trabalhos masculinos e trabalhos femininos, havendo a destinação prioritária dos homens à esfera produtiva e das mulheres, à reprodutiva; 2) hierarquização, que expressa que o trabalho do homem vale mais que o da mulher, ocupando ele, portanto, funções consideradas de forte valor social agregado como políticas, religiosas, militares etc. Esses princípios são aplicados graças à difusão e legitimação da ideologia naturalista, que reduz o gênero ao sexo biológico e entende as práticas sociais como meras execuções de papéis sociais que são resultado de um destino natural (KERGOAT, 2009).
As relações sociais de sexo/gênero e a divisão sexual do trabalho são indissociáveis e formam, epistemologicamente, um sistema. A análise em torno desse sistema busca, por um lado, compreender historicamente como as relações sociais materializaram-se nas instituições e legislações que, comumente, reproduzem e
4 Dentre eles, destacamos os trabalhos de Guilbert e Isambert-Jamati, de 1962, mas traduzido para o português em 1973; e de Mathieu (1975/1976). O Brasil seguiu essa mesma direção, tendo relevância os estudos de Saffioti (1969) e de Blay (1978); na geração seguinte, destacaram-se as pesquisas de Souza-Lobo (1991).
legitimam as relações de forças entre os grupos num determinado momento histórico; por outro, apresentar as novas tensões geradas, buscando entender de que modo elas deslocam as questões e possibilitam a deslegitimacão de regras, normas e representações consideradas naturais. Nesse sentido, o debate não se encontra apenas no campo epistemológico, mas também no político (KERGOAT, 2009).
Kergoat (2010) argumenta que a inserção da mulher no mercado de trabalho não é suficiente para gerar uma contradição interna às relações sociais de sexo/gênero. Há um paradoxo, pois ao mesmo tempo em que a situação da mulher melhora no mercado de trabalho, há uma intensificação da divisão sexual do trabalho:
A participação da mulher no mercado de trabalho aumenta, mas as segmentações, horizontais e verticais, entre empregos masculinos e femininos, perduram. As desigualdades de salário persistem, e as mulheres continuam a assumir o trabalho doméstico. A meu ver, no entanto, isso não representa nenhuma aporia ou contradição interna às relações sociais de sexo, mas aponta para o fato de que o capitalismo tem necessidade de uma mão‑de‑obra flexível, que empenhe cada vez mais sua subjetividade: o trabalho doméstico assumido pelas mulheres libera os homens e, para as mulheres de alta renda, há a possibilidade de externalização do trabalho doméstico para outras mulheres (KERGOAT, 2010, p. 94).
Esse paradoxo indica a imbricação das diferentes relações sociais na própria gênese da divisão sexual do trabalho, e aponta a impossibilidade de analisá-las da mesma maneira. Para Kergoat (2010, p. 103):
Compreender melhor as relações sociais e seu entrelaçamento, analisá‑las e elaborar um método para pensá‑las, é dar um passo em direção à sua superação. Recusar‑se a pensar por ideias e categorias fixas (raciocínio que leva a aporias em termos de ação política, como vimos — cf. os debates sobre o uso do véu islâmico) permite recolocar no centro da análise o sujeito político (e não a vítima de múltiplas dominações), levando em consideração todas as suas práticas, frequentemente ambíguas e ambivalentes.
Ainda segundo Kergoat (2010), três são as relações sociais fundamentais na sociedade: raça5, sexo/gênero e classe. São consideradas estruturais porque são relações de produção cuja base material é o trabalho. Elas organizam a totalidade das práticas sociais, operam e se manifestam sob suas três formas canônicas: dominação,
5 Embora o termo raça tenha uma carga social e histórica e não haja consenso entre os sociólogos, seu uso aponta para um conceito político, cultural e social que não deve ser considerado no sentido biológico. Raça deve ser entendida como uma categoria construída socialmente, resultado de discriminação e produção ideológica (KERGOAT, 2010).
opressão e exploração. Nenhuma delas tem prioridade sobre a outra, não havendo, portanto, nenhum tipo de hierarquia. Essas relações são consubstanciais e coextensivas.
A consubstancialidade “é o entrecruzamento dinâmico e complexo do conjunto de relações sociais, cada uma imprimindo sua marca nas outras, ajustando‑se às outras e construindo‑se de maneira recíproca” (KERGOAT, 2010, p. 100). Forma-se um nó que só pode ser desatado na perspectiva da análise sociológica, e não nas práticas sociais. Já a coextensividade aponta para o dinamismo das relações sociais, indicando que elas se reproduzem e coproduzem mutuamente.
Na análise a partir da consubstancialidade não se pode pensar que as relações de classe estão inscritas exclusivamente na instância econômica e que as relações de sexo/gênero unicamente na instância ideológica. Cada sistema, afirma Kergoat (2010), possui suas próprias instâncias que dominam, oprimem e exploram economicamente e que se articulam entre si, de modo intra e intersistêmico.
A eclosão da ideologia de gênero: gênese e difusão mundial
A criação e difusão global do termo ideologia de gênero acontece pela ação de sujeitos individuais e coletivos que são produtos e produtores das relações sociais. É fundamental, portanto, averiguar as disputas vinculadas a esse processo e identificar os sujeitos envolvidos.
Saffioti (1999) identifica n’O Segundo Sexo, publicado em 1949 por Simone de Beauvoir, a primeira manifestação sobre gênero, ainda que a autora não dispusesse do termo naquele momento6. Ao afirmar que “Ninguém nasce mulher, torna-se mulher”, Beauvoir questionou o feminino como resultado do naturalismo e fatalismo biológico e afirmou a importância de sua construção social. Para Saffioti (2000), a frase de Beauvoir reúne o único consenso que existe entre as feministas sobre o conceito de gênero:
6 Em sua obra pioneira, A mulher na sociedade de classes, de 1969, Saffioti quase não dialoga – e quando o faz, é em tom crítico – com Simone de Beauvoir. À época, a autora fez a opção metodológica de não a adotar por considerá-la demasiadamente culturalista. Ganhou proeminência em seus escritos a obra A mística feminina, de 1963, da feminista norte-americana Betty Friedan. Mais tarde, Saffioti (1999, 2000) fez uma autocrítica sobre as opções adotadas naquele momento, chegando a afirmar que Friedan plagiou a obra de Beauvoir.
Todo mundo diz: gênero é uma construção social. Muitas vezes, porém, quem diz nem sabe o que isso significa; mas todo mundo está de acordo que o gênero não é biológico, que ele é social. Esse é o único acordo; não existe consenso sobre mais nada; cada uma pensa o gênero de uma maneira diferente: umas são pós-modernas, outras são humanistas, outras partem da diferença sexual, outras são indiferentes à diferença sexual, enfim, há feminismos, teorias feministas e não “a teoria feminista”, não “o feminismo” no singular (SAFFIOTI, 2000, p. 22-23).
O termo gênero ganhou curso a partir de 1970 no ambiente acadêmico estadunidense (MIGUEL, 2016), mas ele não teve aceitação inicial em todas as partes do globo. Na sociologia francesa, por exemplo, gênero apresentava uma existência quase marginal, tendo sido elaborada e preferida a noção de sexo social.7
Portanto, ainda que o gênero tenha ganhado destaque no feminismo num curto espaço de tempo, o conceito nunca foi unânime. A trajetória de constituição do campo de estudos varia em cada contexto social; diversas correntes do feminismo e da teoria queer interpretam o gênero e sua relação com o sexo biológico de maneiras distintas. Se, por um lado, a tradição marxista influenciou discussões feministas em determinados contextos sociais, como é o caso do Brasil e da França, sobretudo nas décadas de 1970 e 1980, por outro, há feministas que não dialogam com a obra de Marx e seus intérpretes e tampouco se reivindicam materialistas8. Isso significa que
que as relações entre o feminismo e o marxismo não são rígidas e mecânicas9.
Esse vasto e complexo campo de estudos sobre gênero é desconsiderado na criação e difusão da terminologia ideologia de gênero ou teoria do gender/gênero. Foge ao escopo deste trabalho realizar um debate profundo sobre os distintos usos do conceito ideologia, mas importa afirmar que, sua utilização pela Igreja Católica e seus aliados expressa uma tentativa de ideologizar as questões de gênero, evitando que ela seja debatida e enfrentada no campo de estudos científicos sobre a temática. Setores religiosos e conservadores homogeneízam as distintas vertentes dos estudos científicos da área e atuam com o objetivo de deslegitimá-las na sociedade. Ao
7 Sobre a evolução no tratamento da questão de gênero na França, ver Hirata (1989) e Hirata e Kergoat (2005).
8 O pensamento queer, do qual Judith Butler é uma das principais expoentes, costuma ser associado a uma corrente pós-moderna e pós-estruturalista, inspirando-se, em grande medida, na reflexão do filósofo francês Michel Foucault. Autoras como Arruzza (2011) e Noyé (2019) têm buscado aproximar o feminismo materialista e o movimento queer.
9 Foge ao escopo deste trabalho realizar uma análise sobre essas relações. Para aprofundar os estudos, recomendamos as obras de Hartmann (1979) e Arruzza (2019).
disseminarem o combate a uma suposta ideologia, esses setores defendem sua própria posição ideológica: antigênero e anticiência.
Há certo consenso entre diversos autores10 sobre a disseminação da recente ofensiva antigênero como uma reação de setores conservadores e religiosos às iniciativas feministas que tiveram êxito na inserção da categoria gênero nas conferências sociais da Organização das Nações Unidas a partir da década de 1990. Duas conferências chamaram a atenção da Igreja Católica: uma sobre população e desenvolvimento, realizada no Cairo, em 1994, e outra sobre as mulheres, em Pequim, em 1995.
A construção de uma doutrina contrária ao gênero teve início com o pontificado de Wojtyla (João Paulo II). Junqueira (2017) destacou três documentos eclesiásticos em que a ideologia de gênero ganhou notoriedade: uma nota da Conferência Episcopal do Peru de abril de 1998 (La ideologia de género: sus peligros y alcances)11, um documento da Cúria Romana de julho de 2000 (Família, Matrimônio e “uniões de fato”), o dicionário enciclopédico de 2003 (Lexicon: termos ambíguos e discutidos sobre família, vida e questões éticas)12. O Lexicon ganhou destaque; objetivava desmascarar termos ambíguos que servem para “camuflar estratégias contrárias à dignidade da pessoa e da família e à tutela da vida humana” (JUNQUEIRA, 2017, p. 39). Com relação ao gênero, há um rechaço de seu uso como categoria analítica e uma denúncia da promoção da desnaturalização da ordem sexual13.
O pontificado de Ratzinger (Bento XVI), a partir de 2005, foi marcado por pronunciamentos polêmicos sobre gênero e sexualidade. Seus discursos funcionaram como um sinal verde, fazendo eclodir um movimento transnacional antigênero, presente em mais de 50 países. Apesar dos distintos contextos, algumas características são comuns: defesa da família natural, fundada no matrimônio heterossexual e destinada à reprodução da vida; e defesa da primazia das famílias na educação moral e sexual dos filhos (JUNQUEIRA, 2017). Delineou-se, assim, o inimigo comum a ser combatido: a ideologia de gênero, como ficou conhecida no Brasil
10 Destacamos Rosado-Nunes (2015), Miguel (2016), Miskolci e Campana (2017), Junqueira (2017), Machado (2018).
11 A nota foi produzida pelo monsenhor Oscar Alzamora Revoredo, Bispo Auxiliar de Lima à época.
12 Os trabalhos foram conduzidos pelo presidente do Conselho Pontifício para a Família, à época, o cardeal colombiano Alfonso López Trujillo.
13 Segundo Rosado-Nunes (2015) há diversidade interna no catolicismo, não podendo tratá-lo como um bloco homogêneo. Para ela, o conservadorismo da Igreja Católica está ligado aos setores cujo discurso e prática são contrários aos direitos sexuais e reprodutivos.
e em outros países da América Latina, ou a teoria do gender/gênero14, na França e na Itália.
Além dos documentos e discursos da Santa Sé, destacaram-se produções de sujeitos ligados a organizações conservadoras e/ou religiosas. Em sua obra The Gender-Agenda: redefining equality, a jornalista e escritora norte-americana Dale O’Leary15 (1997) discutiu a radicalização do feminismo a partir das influências do pensamento marxista. Essa ideia da existência de uma relação mecânica feminismo- marxismo permitiu articular discursos sexistas e perspectivas políticas de combate ao socialismo; tal articulação foi rapidamente difundida e incorporada nos documentos da Igreja Católica (MACHADO, 2018).
Na América Latina, disseminou-se o livro do advogado argentino Jorge Scala16 (2010), denominado Ideologia de gênero: El género como herramienta de poder. Para ele, os estudos de gênero não se constituem em campo teórico, pois não partem de uma hipótese verificada experimentalmente, mas sim de um pressuposto falso, considerada por ele como uma ideologia. Afirmara ainda que a ideologia de gênero se impõe por meio da educação formal e dos meios de comunicação.
Para os setores religiosos e conservadores, o termo gênero, sem conotação ideológica, está relacionado ao conceito de natureza humana. Essa é entendida como decorrência de uma lei natural que é criada por Deus, comprovada pela biologia e incapaz de ser alterada. As diferenças biológicas conformam as mulheres à esfera doméstica, legitimando sua exclusão da esfera pública e reforçando sua inferioridade social e política. Há, portanto, uma exaltação dos papéis tradicionalmente classificados como femininos: esposas e mães. A defesa da família tradicional, que a Igreja Católica ajudou a moldar e que é um de seus fundamentos, é essencial para a organização de sua própria reprodução social e ideológica, num contexto de expansão da secularização (MIGUEL, 2016).
Ao questionar a ideia de natureza humana e de lei divina, as proposições feministas colocam em xeque um dos fundamentos da Igreja Católica, por isso são
14 Rosado-Nunes (2015) destaca que, em determinados discursos católicos, o termo aparece em inglês (gender) numa tentativa de enfatizar a imposição cultural realizada pelos Estados Unidos. Para Junqueira (2017), o uso em língua inglesa objetiva, ainda, demonstrar sua “origem alienígena”.
15 A jornalista é ligada à Opus Dei, representa o lobby católico Family Research Council e participa do National Association for Research & Therapy of Homosexuality, que promove terapias reparadoras da homossexualidade (JUNQUEIRA, 2017).
16 É católico e professor de bioética (MACHADO, 2018).
classificadas como ideológicas, no sentido de falseamento da realidade. Sobre isso, Rosado-Nunes (2015, p. 1251-1252) afirma:
Os argumentos centrais para o tratamento negativo de gênero como uma ideologia perniciosa vinculam-se às suas concepções sobre a moral sexual e reprodutiva, e, por consequência, sobre família, alicerçadas em sua compreensão da “natureza humana”. A estrutura organizacional católica assenta-se em relações de poder hierárquicas e androcêntricas, construídas sobre diferenças sexuais consideradas definitivamente marcadas pela biologia. As proposições feministas ancoradas em uma perspectiva de gênero ou de relações sociais de sexo como prefere parte das especialistas francesas, questiona e desconstrói essa visão fixista e biologizante da natureza humana. Tal desconstrução afeta fortemente o edifício real e simbólico católico.
Nos últimos anos, os discursos contra a ideologia de gênero deslocaram-se dos contextos vaticanos e adentraram o âmbito político. Miskolci e Campana (2017) destacaram que, apesar de ter surgido no âmbito da Igreja Católica, setores evangélicos também aderiram à causa. Somam-se a eles, as organizações não governamentais pró-vida com características ligadas à religião e ao conservadorismo e outros grupos que apoiam a causa não apenas por motivos religiosos, como é o caso do Movimento Escola Sem Partido, no Brasil. Esses grupos atuam por meio de ações políticas (lobbies legislativos ou denúncias a funcionários públicos, sobretudo professores), jurídicas (apresentação de ações judiciais) e midiáticas (manifestações públicas, programas de rádio e televisão, congressos, redes sociais etc.).
Essa breve digressão demonstra que a gênese e difusão do termo ideologia de gênero caricaturiza17 e deslegitima um vasto campo de estudos sobre a temática ao mesmo tempo em que serve de arcabouço ideológico na disputa das políticas sociais. Para Machado (2018), o confronto envolvendo as questões de gênero retoma uma antiga disputa entre as esferas religiosas e científicas sobre a noção de verdade e como devem ser pensadas as relações humanas e a ordem social. A esfera religiosa apropria-se de ideias do campo científico para defender uma concepção que relaciona a verdade à fé e à autoridade divina.
Não nos esqueçamos, ademais, que as disputas envolvendo as questões de gênero e de sexualidade possuem base material: o trabalho e sua divisão social. As relações sociais ora destacadas têm se materializado em políticas sociais que tendem
17 Rotulações como feminazis, destruidores de família, gayzistas tornaram-se comuns na sociedade brasileira.
a reproduzir e legitimar essa correlação de forças que favorece os interesses de grupos religiosos e conservadores e que perpetua a dominação, a opressão e a exploração. A biologização do gênero que naturaliza e atribui vontade divina aos supostos papéis sociais a serem desenvolvidos por homens e mulheres contribui para a intensificação e legitimação da divisão sexual do trabalho que confina as mulheres à esfera reprodutiva.
A ideologia de gênero no Brasil
Os discursos e documentos produzidos pela Santa Sé bem como as produções de O’Leary18 (1997) e de Scala19 (2010) chegaram em território latino-americano e influenciaram nas disputas relacionadas às temáticas de gênero e sexualidade nas políticas sociais. Para Miskolci e Campana (2017), esses embates ganharam relevância especial na América Latina, pois, por um lado, aconteceram avanços nos direitos sexuais e reprodutivos em alguns desses países nos últimos anos (descriminalização do aborto, reconhecimento de união homoafetiva, inclusão da educação sexual nas escolas20), por outro, há um certo distanciamento de católicos das normas de moral sexual impostas pelo Vaticano.
Apesar das diferenças em cada contexto nacional, Miskolci e Campana (2017) elencaram elementos comuns na América Latina: 1) aconteceram a partir da virada do milênio, 2) insurgiram nos países que passaram a ter governos mais alinhados à esquerda, 3) deflagraram-se em torno das reformas educacionais e legais.
Analisando o contexto em nosso país, Miguel (2016) afirmara que dois fenômenos se destacaram. O primeiro refere-se a uma retração dos consensos mínimos que, acreditava-se, demarcavam o debate público brasileiro; os direitos têm sido abertamente desafiados em nome da tradição, da moral ou mesmo da vontade divina. O segundo relaciona-se a uma aliança estabelecida entre o conservadorismo moral e o ultraliberalismo econômico, que se tornou a base da direita brasileira; sua
18 O Movimento Escola Sem Partido disponibilizou uma tradução condensada da obra de O’Leary em seu site.
19 Publicado no Brasil em 2011 e distribuído pelo Observatório Interamericano de Biopolítica.
20 Para analisar os avanços e desafios envolvendo o gênero nas políticas educacionais, recomendamos Vianna e Unbehaum (2004), Carreira et al (2016), Vianna (2018).
ação conjunta gerou um programa sui generis, em que o Estado não deve interferir nas relações econômicas, mas deve regular intensamente a vida privada21.
Machado (2006) destaca que o fundamentalismo religioso se tornou uma força política no Brasil a partir da década de 1990, sobretudo com o investimento das igrejas neopentecostais para eleger seus pastores. O fundamentalismo advém da percepção de que há uma única verdade, divina e inconteste, que anula qualquer possibilidade de debate. Em trabalho posterior, Machado (2018) identificara uma aliança cada vez maior entre católicos e pentecostais, apesar das diferenças entre eles. Os primeiros destacaram-se pela defesa da vida, enquanto os segundos deram prioridade ao tema da sexualidade, combatendo a ampliação dos direitos sexuais.
O fortalecimento político dos pentecostais na Câmara de Deputados com a indicação do deputado e pastor Marco Feliciano (PSC-SP) para a presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias, em 2013 e, após, com a eleição de Eduardo Cunha (PMDB) para a presidência da casa, em 2015, também favoreceu os grupos católicos comprometidos com a luta contra a ideologia de gênero, que passaram a ser convidados a expressar suas ideias em diversas situações (MACHADO, 2018).
Ambos os segmentos (católicos e pentecostais) têm se aliado a diversas forças conservadoras no Congresso, com destaque para os latifundiários e os defensores dos armamentos. A ação conjunta desses setores costuma ser designada pela mídia como Bancada BBB, que significa boi, bala e Bíblia.
A eleição de Jair Bolsonaro, em 2018, deu novo impulso ao fortalecimento desses setores. A Frente Parlamentar Evangélica do Congresso Nacional22 cresceu e passou a ser composta por 195 deputados, representando aproximadamente 18,5% do total. Em 2019, a Frente passou a ser coordenada por Silas Câmara (Republicanos- AM), pastor evangélico da Igreja Assembleia de Deus (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2019).
Na cruzada contra uma suposta ideologia de gênero no Brasil existe um bloco heterogêneo, composto por sujeitos diversos que se unem para combater o que elegeram como inimigo comum. Além das bancadas constituídas por legisladores
21 Casimiro (2018) utiliza a expressão Nova Direita para designar a articulação entre grupos que aliam liberalismo econômico e autoritarismo social.
22 Lembremos que, embora a designação mais conhecida seja Bancada Evangélica, ela aglutina diferentes denominações protestantes e setores conservadores da Igreja Católica (MIGUEL, 2016).
ligados a grupos religiosos diferentes, há a atuação de sacerdotes e missionários que prestam assessoria parlamentar, fazem lobbies e expõem suas ideias em audiências públicas e seminários. Ao perceberem a insuficiência do discurso moral e religioso nas disputas, buscam acionar a retórica científica por meio da convocação de mulheres jovens que possuem formação universitária e que atuam em ONGs vinculadas às igrejas ou em movimentos como a Renovação Carismática Católica, o Pró-vida e Pró- família etc. (MACHADO, 2018).
Para além das discussões e disputas no âmbito do poder executivo, na sociedade civil, indivíduos (sacerdotes, pastores, bispos etc.) e grupos conservadores
– religiosos ou não – utilizam a mídia impressa e televisiva e as redes sociais para disseminar suas ideias. Dentre esses grupos, destaca-se a atuação do Observatório Interamericano de Biopolítica e do Movimento Escola Sem Partido.
O Observatório autodeclara-se uma “organização de cidadãos livres, conscientes e ativos dedicada à defesa da dignidade e dos direitos da pessoa humana”. Afirmam estar empenhados em contribuir para as condutas parlamentares comprometidas com a vida, a família, a educação e a liberdade (OBSERVATÓRIO, s/d). É dirigido pelo professor católico Felipe Nery. O Observatório foi o responsável pela distribuição do livro do advogado argentino Jorge Scala no Brasil.
O Movimento Escola Sem Partido (MESP) autodeclara-se uma “associação informal, independente, sem fins lucrativos e sem qualquer espécie de vinculação política, ideológica ou partidária”. Afirma estar preocupado “com o grau de contaminação político-ideológica das escolas brasileiras, em todos os níveis: do ensino básico ao superior”. Criado em 2004, foi baseado no grupo estadunidense No Indocrination; seu coordenador é o advogado Miguel Nagib (NAGIB, s/d).
Miguel (2016) destaca que, embora o Movimento tenha ganhado visibilidade e força política na luta contra a ideologia de gênero, ele nasceu com outra agenda: a luta contra a suposta doutrinação marxista existente nas escolas. Machado (2018) assevera que a difusão da errônea articulação rígida e mecânica entre marxismo e feminismo permitiu a ação conjunta dos setores religiosos com o Movimento Escola Sem Partido. Contribuíram para tal articulação propagandistas de extrema-direita, principalmente aqueles aliados a Olavo de Carvalho, que afirma que a dissolução da moral sexual tradicional é uma estratégia comunista (MIGUEL, 2016).
Inicialmente, a principal estratégia adotada pelo MESP foi a judicialização da relação entre professores e alunos. Após, o movimento passou a pressionar as
assembleias estaduais e municipais por projetos de leis que legitimassem suas propostas, criando o que se denominou Programa Escola Sem Partido23; a Frente Parlamentar Evangélica dominou as comissões em que os projetos foram discutidos. O MESP constitui exemplo de grupo que alia o conservadorismo moral e o liberalismo econômico, uma vez que há alianças entre o Movimento e grupos liberais como Instituto Millenium (IMil)24 e Movimento Brasil Livre. Nagib foi colaborador do Instituto e chegou a escrever artigo afirmando que a escola deve promover os valores do IMil: propriedade privada, responsabilidade individual e meritocracia25 (PERONI,
CAETANO, LIMA, 2017).
De acordo com Miskolci e Campana (2017), o discurso sobre a ideologia de gênero ganhou notoriedade no Brasil a partir de 2011, quando o Supremo Tribunal Federal reconheceu que a união homoafetiva tinha o mesmo status do casamento heterossexual. No mesmo mês dessa decisão, ganhou destaque a polêmica sobre o material didático do programa Escola sem homofobia, apelidado posteriormente pelos conservadores de kit gay26.
A luta contra uma agenda feminista no Congresso Nacional se intensificou com a apresentação do Projeto de Lei que discutiria o Plano Nacional de Educação (PNE)27. O documento, que deveria se referir aos anos de 2011-2020, foi aprovado com quase quatro anos de atraso e com muitas mudanças em sua versão original.
O texto final da Conferência Nacional de Educação (Conae) de 201028 trazia avanços frente às políticas vigentes para a educação no decênio anterior; entretanto
23 É lícito ressaltar que foi Flávio Bolsonaro, senador e filho do atual presidente da república, Jair Bolsonaro e, à época, deputado do Estado do Rio de Janeiro (PSC), quem solicitou à Miguel Nagib a elaboração de um projeto de lei baseado nos princípios do Movimento Escola Sem Partido.
24 Em 2018, o IMil era o 34º maior centro de pensamento das Américas Central e do Sul, segundo o ranking Global Go To Think Tank¸ elaborado pela Universidade da Pensilvânia (INSTITUTO MILLENIUM, 2019).
25 Ressalta-se que Nagib se desvinculou do IMil e o artigo deixou de constar na página eletrônica do ESP.
26 Após sofrer forte oposição, a então presidente Dilma Rousseff vetou a distribuição do material. Vale lembrar, entretanto, que a polêmica em torno da existência de um suposto kit gay foi recuperada por setores religiosos e conservadores e voltou à tona nos meses que precederam as eleições presidenciais brasileiras em 2018.
27 Para aprofundamento da questão, recomendamos a leitura do dossiê intitulado Caminhos na construção do Plano Nacional da Educação: questões desafiadoras e embates emblemáticos, publicado pela revista Educação & Sociedade, em seu número 112. Seu acesso está disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_issuetoc&pid=0101-733020100003&lng=pt&nrm=iso.>.
28 A Conae, ocorrida em Brasília, em 2010, foi precedida pelas conferências municipais, regionais e estaduais. Todas as etapas contaram com a participação de professores, gestores educacionais, estudantes, pais, pesquisadores e demais sujeitos e segmentos organizados em torno da educação
sua transformação no PL n. 8.035/2010, pelo governo brasileiro, não refletiu o conjunto das deliberações aprovadas. Além disso, o PL apresentava limites quanto à ausência de diagnóstico da realidade educacional brasileira e de processos avaliativos sobre o cumprimento das metas do PNE anterior (2001-2010) (OLIVEIRA et al, 2011). As mudanças pelas quais passou essa política demonstra as intensas disputas envolvidas no decorrer do processo. A Frente Parlamentar Evangélica foi uma das principais interlocutoras do Ministério da Educação nos movimentos que culminaram
na retirada de discussões de gênero e sexualidade do PNE29.
Naquele momento, D. Orani Tempesta, cardeal e arcebispo do Rio de Janeiro publicou um texto denominado Reflexões sobre a ‘ideologia de gênero’ que dialogava com documentos produzidos pela Santa Sé. Rosado-Nunes (2015) afirmara que o cardeal ocupava lugar de destaque na hierarquia eclesiástica, o que lhe conferia capital simbólico e real considerável. Não à toa, sua publicação influenciou fortemente as discussões do PNE.
A atuação do Observatório Interamericano de Biopolítica também foi intensa. Em 2014 realizou dois seminários cuja temática era a defesa da vida e da interpretação naturalista dos gêneros feminino e masculino. A tônica era auxiliar no assessoramento de parlamentares que estavam discutindo e votando o PNE. Nos anos seguintes, outros eventos semelhantes foram reproduzidos nos estados e municípios, quando da discussão dos Planos Estaduais e Municipais de Educação30 (MACHADO, 2018).
Em 2015, o Observatório (2015) publicou a cartilha “Você já ouviu falar sobre a ideologia de gênero? Conheça esta ideologia e entenda o perigo que você e seus filhos estão correndo!”. Esse material foi distribuído gratuitamente em sites de organizações cristãs e redes sociais com o intuito de popularizar o discurso sobre a ideologia de gênero e alertar sobre os supostos riscos da introdução do termo gênero nos planos municipais e estaduais de educação.
O Movimento Escola Sem Partido também teve atuação significativa nessa direção. Ao identificar na ideologia de gênero um potencial de visibilidade, o MESP
brasileira – da creche à pós-graduação. O objetivo era fornecer os subsídios necessários para elaboração do PNE (OLIVEIRA el al, 2011).
29 Para compreender as disputas envolvendo as temáticas relacionadas ao gênero no PNE, recomendamos a leitura de Rosado-Nunes (2015), Reis e Eggert (2017), Luna (2017).
30 Após homologação do PNE, seguiu-se o desafio de elaboração ou adequação de planos de educação nos estados, no Distrito Federal e nos municípios.
abandonou a defesa de uma educação pretensamente neutra e apostou na ideia de primazia da família sobre a escola. Assim, reivindicava que as escolas não podem trabalhar qualquer conteúdo que seja contrário aos valores prezados pelos pais, tanto no que se refere às questões de gênero e sexualidade, quanto a outros conteúdos científicos como a teoria da evolução das espécies ou o heliocentrismo (MIGUEL, 2016).
Estabelecida a hierarquia entre família e escola, com o predomínio irrefutável da primeira, o slogan “Meus filhos, minhas regras”31 ganhou visibilidade nas redes sociais e passou a ser repetido nas intervenções públicas do grupo e de seus aliados. De acordo com Miguel (2016, p. 603-604), esse slogan sintetiza duas negações importantes:
A primeira é a negação do caráter republicano da instituição escolar. Sua função pedagógica incorpora também – e de forma central – a educação para o convívio com as diferentes visões de mundo, próprio de uma sociedade pluralista e democrática. A socialização na escola é importante, entre outros motivos, porque oferece às crianças o contato com valores diversos, ou diversamente interpretados, daqueles que estão presentes na família. A segunda é a negação do estatuto da criança como sujeito de direitos – o que inclui, aliás, o direito de conhecer o mundo e de adquirir os instrumentos para pensar com a própria cabeça.
Desde então, os temas envolvendo gênero e sexualidade têm se configurado nos mais polêmicos na elaboração e implementação de políticas educacionais brasileiras. E a influência dos setores religiosos e conservadores cresce. No documento final da Base Nacional Comum Curricular (BNCC)32, por exemplo, a sexualidade aparece limitada à prática heterossexual e reprodutiva e não há qualquer menção ao termo gênero33.
31 É evidente a provocação ao slogan feminista “Meu corpo, minhas regras”.
32 Para compreender a influência da manipulação em torno da ideologia de gênero na BNCC, recomendamos Freire (2018).
33 O número de ocorrências do termo gênero nas diferentes versões da BNCC demonstra o intenso debate em torno dessa categoria na construção do documento. Na primeira versão gênero aparece 15 vezes e na segunda, 38. As terceiras versões são fragmentadas, há uma que trata da Educação Infantil e do Ensino Fundamental, em que gênero aparece 19 vezes, e outra que se refere ao Ensino Médio, em que aparece 1 vez. Na proposta final homologada pelo MEC não há qualquer menção ao termo.
Considerações finais
Os estudos sobre a epistemologia feminista auxiliam na compreensão de que a produção de ciência não é neutra e de que a existência de um suposto universal masculino frequentemente anula as visões de mundo daqueles que são dominados, oprimidos e explorados. As teorizações em torno da consubstancialidade das relações sociais buscam compreender historicamente a reprodução e legitimação dessa tríade dominação-opressão-exploração e apontar a existência de caminhos para sua superação.
Na inobservância de hierarquia entre as relações sociais fundamentais – raça, gênero e classe –, todas as lutas são legítimas, necessárias e igualmente importantes. Analisar os processos sociais pelo privilegiamento de uma única relação social obscurece as outras clivagens existentes na sociedade. A análise da gênese e difusão de uma ofensiva antigênero considerando a consubstancialidade das relações sociais é, portanto, fundamental para compreender por que se reproduz os diferentes modos de opressão e para apontar a necessidade e possibilidade de superá-los.
O sistema epistemológico relações sociais de sexo/gênero-divisão sexual do trabalho auxilia no questionamento da bicategorização biologizante de homens e mulheres como machos e fêmeas, respectivamente. Os sujeitos são dotados de vontades que independem da natureza biológica ou da vontade divina. As consequências desse processo ultrapassam os limites acadêmicos; mudanças de ordem prática podem ser geradas: liberdade sexual, rearranjos familiares, união homoafetiva, descriminalização do aborto, reconhecimento da diversidade sexual, criminalização da homofobia, equiparação salarial entre homens e mulheres, inclusão da educação sexual nas escolas etc.
Lembremos, entretanto, que a mudança de mentalidades acontece quando há conexão com a base material, isto é, com a divisão de trabalho concreta. E, as resistências só podem ser originadas nas práticas sociais e não nas relações intersubjetivas, ainda que ambas estejam relacionadas (KERGOAT, 2009).
A gênese e difusão da ideologia de gênero é caracterizada pela ação de diferentes sujeitos – individuais e coletivos – e a repercussão desse processo é marcada por intensas disputas. De um lado, setores religiosos e conservadores; de outro, movimentos feministas, LGBTQIA+ e simpatizantes; ainda que não sejam homogêneos, os grupos buscam aliar-se naquilo que consideram comum.
A disputa entre as esferas religiosas e as científicas em torno da noção de verdade é evidente. Ainda que os setores religiosos busquem atribuir um tom de cientificidade em seus discursos dando voz a sujeitos com formação superior ou ligadas ao âmbito acadêmico, a tônica que prevalece é o fundamento da fé, da moral e da vontade divina. Ao notarem a insuficiência argumentativa de seu discurso, esses setores adotam outras estratégias com o objetivo de deslegitimar o campo de estudos científicos da área: homogeneização das teorias do gênero, desconsiderando a complexidade de vertentes existentes; sua caricaturização, gerando denominações pejorativas como feminazi e gayzista; e sua denominação de ideologia, no sentido de falseamento da realidade, ignorando a cientificidade e validade dos estudos desenvolvidos.
A materialidade das disputas é notável na discussão sobre os papéis sociais que devem ser desenvolvidos por homens e mulheres. Ao naturalizar as relações sociais de sexo/gênero, setores conservadores e religiosos reproduzem e legitimam uma divisão sexual do trabalho que limita as mulheres à esfera do trabalho reprodutivo. A reprodução dos papéis tradicionalmente exercidos pelas mulheres – mães e esposas – atende aos interesses dos diferentes setores religiosos, que mantêm os fiéis sob sua dominação; dos setores burgueses, que seguem explorando o trabalho não-pago; dos homens, que se veem livres de realizar os afazeres domésticos necessários a sua própria sobrevivência.
Lembremos do paradoxo do trabalho doméstico. As mulheres inserem-se no mercado de trabalho, mas seguem assumindo os afazeres domésticos ou delegando- os para outras mulheres e, frequentemente, seus salários são menores que o dos homens, mesmo exercendo a mesma função. A divisão sexual do trabalho não apenas permanece, mas é intensificada. “Tudo muda, mas tudo permanece igual”, nas palavras de Kergoat (2010, p. 94). Isso não significa, entretanto, que a divisão sexual do trabalho é rígida e imutável.
A ofensiva antigênero vivenciada pelos diferentes países também funciona como uma forma de legitimar a violência aos sujeitos que não se enquadram no padrão biologizante de feminino e masculino. As consequências podem ser drásticas. De acordo com o Atlas da Violência 2020, no Brasil, em 2018 uma mulher foi assassinada a cada duas horas, tendo alcançado o número de 4.519; as negras representaram 68% desse total. O percentual de mulheres vítimas de violência no interior da residência foi 2,7 maior do que os homens; uma mulher foi assassinada
dentro de casa a cada 6 horas e 23 minutos. No período entre 2008 e 2018 o território brasileiro apresentou aumento de 4,2% nos assassinatos de mulheres e, nos anos entre 2013 e 2018, a taxa de homicídios na residência aumentou 8,3%. Esses dados evidenciam a dimensão da violência de gênero e do feminicídio, sobretudo de mulheres negras (CERQUEIRA, BUENO, 2020).
Com relação à violência contra a população LGBTQIA+, o Atlas da Violência 2020 demonstrou que houve um crescimento de 88% no registro de tentativas de homicídios de 2017 para 2018. Os dados do Sistema de Informações de Agravos de Notificação (SINAN), que categorizam as informações somente pela orientação sexual (bissexual, homossexual ou heterossexual) mostraram que a maioria das vítimas eram negras (com exceção das vítimas bissexuais, em 2017), solteiras e moravam em áreas urbanas (CERQUEIRA, BUENO, 2020).
De acordo com dados coletados por Júlio Pinheiro Cardia, ex-coordenador da Diretoria de Promoção dos Direitos LGBT do Ministério dos Direitos Humanos, entre os anos de 2011 e 2018, 4.422 pessoas LGBTs foram assassinadas no Brasil, equivalendo a uma morte a cada 16 horas. As informações, disponibilizadas pelo pesquisador para a UOL, fazem parte de relatório encomendado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos no final de 2018. Ressalta-se que, nos últimos anos o governo federal cancelou a divulgação dos relatórios sobre o assunto (SOBRINHO, 2019).
As questões de gênero e sexualidade estavam entre as mais emblemáticas na elaboração e aprovação das políticas educacionais nos últimos anos. Como meio privilegiado para veicular conhecimentos, valores e ideologias, a instituição escolar tem se caracterizado como um intenso espaço de disputas. No Brasil, o Plano Nacional de Educação constitui caso exemplar. O slogan de uma educação neutra como defendem grupos como o Movimento Escola Sem Partido e o Observatório Interamericano de Biopolítica oculta a interpretação de que a escola, na verdade, precisa ser neutralizada. Os confrontos envolvendo as temáticas de gênero e sexualidade ilustram essa situação; impedir sua discussão nas salas de aula é estratégico para reproduzir a divisão sexual do trabalho e legitimar as situações de opressão, dominação e exploração vivenciadas cotidianamente pelas mulheres e pela população LGBTQIA+, sobretudo as negras.
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V.19, nº 38, 2021 (jan-abr) ISSN: 1808-799 X
Hildete Pereira de Melo2 Lucilene Morandi3
Resumo
Este artigo tem como propósito fazer uma análise conjuntural da economia brasileira nestes meses de crise sanitária sem precedentes em sua história, tendo como fio condutor e pano de fundo a divisão sexual do trabalho. A pandemia da Covid-19 irrompeu em meio à crise econômica que a economia brasileira amargava desde 2015, com baixas taxas de crescimento desde 2017. Para as mulheres, a estagnação econômica e a crise sanitária potencializaram as desigualdades relativas ao mercado de trabalho e à divisão das tarefas de cuidado dentro da família.
Palavras-chave: gênero; desigualdade; crise sanitária; crise econômica.
LA DIVISIÓN SEXUAL DEL TRABAJO EM EL CONTEXTO DE LA PANDEMIA
Resumen
El propósito de este artículo es hacer un análisis coyuntural de la economía brasileña en estos meses de crisis de salud sin precedentes en su historia, tomando la perspectiva de la división sexual del trabajo. La economía brasileña vivía una crisis económica desde 2015, con bajas tasas de crecimiento desde 2017, cuando irrumpió la pandemia de Covid-19. Para las mujeres, el estancamiento económico y la crisis de salud han intensificado las desigualdades del mercado laboral y de la división de tareas de cuidado dentro de la familia.
Palabras clave: género; desigualdad; crisis de salud; crisis económica.
THE SEXUAL DIVISION OF WORK IN THE CONTEXT OF THE PANDEMIA
Abstract
The purpose of this article is to make a conjectural analysis of Brazilian economy in these months of health crisis unprecedented in its history, with the sexual division of labor as the guiding thread and background. The Coronavirus pandemic erupted in the midst of the economic crisis that the Brazilian economy has suffered since 2015, with very low growth rates since 2017. For women, economic stagnation and the healthy crisis have increased inequalities related to the labor market and the division of care work within the family.
Key words: gender; inequalities; sanitary crisis; economic crisis.
1 Artigo recebido em 11/09/2020. Primeira avaliação em 01/10/2020. Segunda avaliação em 05/10/2020. Terceira avaliação em 23/10/2020. Aprovado em 01/12/2020. Publicado em 25/02/2021. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v19i38.45884.
2 Doutora em Economia, Professora da Faculdade de Economia e do Programa de Pós-Graduação em Políticas Sociais, Pesquisadora sênior do Núcleo de Pesquisa em Gênero e Economia (NPGE) da Universidade Federal Fluminense (UFF). E-mail: hildete43@gmail.com.
ORCID: 0000-0002-9701- 7890.
3 Doutora em Economia, Professora associada da Faculdade de Economia, Coordenadora do Núcleo de Pesquisa em Gênero e Economia (NPGE) da Universidade Federal Fluminense (UFF).
E-mail: lmorandi@id.uff.br. ORCID: 0000-0002-3943-6229.
A pandemia da Covid-19 atingiu o Brasil em um momento particularmente difícil, dado que a economia vinha de uma grave crise econômica, em 2015 e 2016, e apresentando baixa capacidade de recuperação desde então. A pandemia colaborou para agravar o quadro de baixo crescimento econômico com alto nível de desemprego, ampliando as desigualdades já bastante severas, numa economia em que parte significativa da força de trabalho (41,6% em 2019) estava na informalidade, o que aumentou a vulnerabilidade das famílias de menor renda.
Os efeitos econômicos adversos, decorrentes do isolamento social necessário para reduzir o contágio durante a pandemia, não tiveram o mesmo impacto em homens e mulheres trabalhadoras e isso ampliou a desigualdade de gênero no país. Isso porque as mulheres são maioria nos postos de trabalho relacionados a cuidados, como trabalhadoras domésticas, em que a maioria (76,4%) é contratada informalmente, sem carteira assinada; como cuidadoras contratadas diretamente pelas famílias ou através de empresas; ou como trabalhadoras nos serviços de saúde (as mulheres são 65% dos trabalhadores desse setor).4
Durante a pandemia, de um lado, alguns desses postos de trabalho foram mais prejudicados e o desemprego foi maior, como o emprego doméstico em que, segundo o IBGE (PNAD-Covid, 2020), 747 mil postos de trabalho foram extintos em 2020, e, de outro lado, os trabalhadores do setor de cuidados foram os mais expostos ao contágio. E, por fim, o fechamento de creches e escolas e o isolamento social fizeram com que recaísse totalmente sobre as famílias as tarefas de cuidados, incluindo as tarefas domésticas, os cuidados dispensados às pessoas de alguma forma dependentes, acrescido do auxílio às crianças em aprendizado à distância. Como cultural e socialmente as tarefas de cuidado são vistas como trabalho feminino, as mulheres foram mais sacrificadas com o acúmulo de tarefas. Por causa da impossibilidade de utilizar as redes de apoio (creches, escolas, centros de atenção especializados, avós e outros membros da família e vizinhos/as) para a terceirização das tarefas de cuidado, para muitas famílias a opção “natural” foi a mulher acumular mais essas tarefas ou mesmo “optar” por abandonar o emprego.
4 Estas informações estatísticas são das pesquisas domiciliares do IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio Anual (2001-2015) e para a segunda década do século XXI são da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio Continua (2012-2020), na medida do possível explicitadas no texto.
Isso, além de representar um retrocesso em relação às conquistas das mulheres ao longo do tempo, mostra que a desigualdade estava apenas camuflada, em parte visível no número de horas a mais gastas pelas mulheres com o trabalho não remunerado (21,4 horas semanais) em relação aos homens (11 horas semanais). Durante a pandemia, quando as pessoas na família tiveram que assumir novas tarefas e ficaram sobrecarregadas, a resposta continuou a ser que a mulher assumisse seu posto no comando e gerenciamento da casa, fazendo o necessário para a manutenção do nível de bem-estar social de seus membros.
Portanto, pode-se entender que a pandemia tem impactos imediatos relacionados à saúde das pessoas, cujos métodos disponíveis para o combate, tais como o isolamento social e a proteção individual, têm efeitos econômicos perversos: provocaram o fechamento temporário ou permanente de empresas, causando aumento do desemprego e queda da renda, cujos efeitos são não apenas de curto, mas de longo prazo, na medida que alguns dos postos de trabalho poderão não retornar imediatamente após a estabilização e controle da doença. E, além disso, a pandemia terá efeitos sobre as desigualdades, dentre elas a de gênero, caso as políticas públicas efetivadas durante a pandemia e na fase de retomada das atividades econômicas não estejam especificamente preocupadas e direcionadas às pessoas e grupos (ou seja, as mulheres) que, neste período, se mostraram mais vulneráveis.
Este texto tem a preocupação de mostrar como a formulação de políticas públicas no combate aos efeitos da pandemia deve incluir a participação das mulheres, tendo como fio condutor a economia feminista e a reprodução social do trabalho e seus impactos sobre as vidas femininas. Desta forma, privilegiando o olhar de gênero e destacando a importância do trabalho não remunerado e os reflexos de sua desigual distribuição entre homens e mulheres, este trabalho traça um quadro dos impactos da crise econômica de 2015 em diante no mercado de trabalho, analisando- o sob a ótica da divisão sexual do trabalho, em torno da qual se estrutura o exercício do poder em nossas sociedades e a discriminação de sexo, raça e identitária na sociedade (KERGOAT, 2019, p.288).
A crise econômica brasileira, iniciada no final de 2014, e o deterioramento das contas públicas têm sido combatidos com o uso de políticas restritivas. Desta forma, a primeira foi a aprovação da Proposta de Emenda Constitucional número 55 (a PEC do Teto dos Gastos ou PEC 55, de 15/12/2016), que instituiu o Novo Regime Fiscal e determinou o congelamento dos gastos públicos aos mesmos níveis de 2016 pelos 20 anos seguintes. E como afirma Fagnani (2018, p. 59), desde 2016 tem prevalecido o discurso que justifica a política de austeridade e a implantação do Estado Mínimo como única alternativa de política econômica para o país. E seguiu-se com a aprovação das reformas trabalhista e da previdência social, ambas com forte viés liberal, o que significou a redução de proteção social e trabalhista para famílias que já vivem no limite da pobreza e têm baixa resiliência a crises.
E tanto a reforma da Previdência Social (Emenda Constitucional 103, de 13/11/2019), como a Reforma Trabalhista, aprovada em 2017, agravaram este quadro de penúria das camadas mais pobres da sociedade. A Reforma Trabalhista reduziu parte da estrutura de proteção ao trabalho estabelecida na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT, de 01 de maio de 1943). A nova lei permite formas de contratação de mão de obra sem configurar vínculo trabalhista, que significa sem a garantia de direitos protetivos ao trabalho, prevalecendo o negociado sobre o legislado5, e também permite a contratação de mão de obra para trabalho intermitente e terceirizado. Esta reforma levou também à redução do acesso dos trabalhadores aos recursos na Justiça do Trabalho ao estabelecer que os custos do processo, referentes às ações trabalhistas, seriam de responsabilidade do perdedor da ação. O temor de perder a ação faz com que a parte mais frágil, o/a trabalhador/a, seja excluída do caminho da Justiça para dirimir conflitos.
Desde 2015 o Brasil tem apresentado baixo desempenho econômico, com taxas negativas de crescimento do PIB em 2015 e 2016, de -3,5% e -3,3%, respectivamente, e baixo crescimento nos anos seguintes, crescendo apenas 1,3% em 2017, 1,8% em 2018 e 1,1% em 2019 (IBGE, Contas Nacionais). A leve recuperação nos três últimos anos não promoveu melhorias iguais entre os diversos
5 Esta mudança está escrita: “No artigo 611-A do texto da Reforma, há previsão de que o negociado deve prevalecer sobre o legislado, violando a construção do direito internacional do trabalho no sentido de que as negociações devem melhorar as condições de trabalho” (Artur, 2020, p.28).
segmentos sociais. Esta deterioração da economia implicou em aumento da desigualdade de renda e dos níveis de pobreza, que estavam em queda desde 2003 (DWECK, 2019). Segundo os dados do IBGE (Síntese de Indicadores Sociais, 2019), o rendimento dos 10% mais ricos da população, em 2018, era 13 vezes maior que o rendimento dos 40% mais pobres, índice que tem aumentado desde 2015. Foi neste quadro de crise econômica e alto desemprego que a economia foi impactada pela pandemia da Covid-19.
O trabalho está na base da produção do viver em sociedade, sendo um mediador das relações sociais. No século XX a vida das mulheres teve muitas transformações relativas à forma de engajamento delas na sociedade. No Brasil, desde o final dos anos 1980 as mulheres mantêm uma média de anos de estudos superior à média dos homens, mas isso não se refletiu em igualdade de participação ou de remuneração no mercado de trabalho, o que mostra que a diferença de rendimentos entre homens e mulheres vai além da qualificação (MORANDI e MELO, 2019). De forma geral, as mulheres continuam mais presentes que os homens nas atividades de cuidados, remuneradas ou não6. Nos últimos setenta anos, como mostram os gráficos 1 e 2, a participação das mulheres na força de trabalho brasileira continuou proporcionalmente menor que a dos homens, passando de 13,6% da população econômica ativa (PEA), em 1950, para 44,1% em 2000 (Censo Demográfico, IBGE), patamar que não se alterou significativamente nos anos seguintes, ficando em torno de 43% das mulheres e 72% dos homens em 2018 e 2019 (IBGE, PNAD Contínua).
6 Atividades relacionadas à reprodução da vida como educação, saúde, serviço social, trabalho doméstico, serviços de alojamentos e alimentação. (Melo e Thomé, 2018).
Gráfico 1: População economicamente ativa, segundo o sexo, 1950-2010
Fonte: IBGE, Censos Demográficos (1950-2010).
Gráfico 2: População economicamente ativa, segundo o sexo, 1995-2015
Fonte: IBGE, PNAD-Anual (1995-2015)
No geral, as mulheres estão pouco representadas em setores produtivos identificados tradicionalmente com atividades masculinas, como construção civil, engenharias e ciências exatas e de tecnologia, áreas que tipicamente apresentam melhor remuneração. A maior responsabilidade com os cuidados da família e amaior representação feminina nos setores relacionados aos cuidados é apenas parte da
explicação da diferença de rendimento médio das mulheres ocupadas. Em 2019, os homens tiveram rendimento médio 28,7% maior que o das mulheres (IBGE, PNAD Contínua) e essa diferença não desaparece mesmo quando se consideram cargos e qualificação semelhantes. De forma geral, as mulheres frequentemente ocupam menos cargos de chefia e gerência. Ou seja, apesar do aumento do nível educacional das mulheres, persiste uma sociabilidade entre as pessoas que molda o comportamento homens/meninos e mulheres/meninas e se traduz em desigualdade de gênero, também no mercado de trabalho (MELO e THOMÉ, 2018).
A perspectiva teórica da economia feminista7 agrega o conceito de divisão sexual do trabalho e denuncia o problema da invisibilidade do trabalho não remunerado, que engloba as tarefas relacionadas aos cuidados, necessárias à reprodução da vida e ao bem-estar, realizadas majoritariamente por mulheres em prol dos demais membros da família. A distribuição desigual do trabalho não remunerado dentro das famílias sobrecarrega o tempo gasto pelas mulheres no trabalho (remunerado e não remunerado), gerando o fenômeno da escassez de tempo vivido pelas mulheres, que têm menos tempo para se dedicar ao trabalho remunerado, às atividades de aprendizagem, menos horas de lazer e de cuidado de si mesmas, menos tempo para qualificação. Isto contribui para que as mulheres fiquem em desvantagem em relação aos homens na competição por espaço e carreira no mercado de trabalho (KERGOAT, 2019).
As estatísticas mostram que não basta as mulheres buscarem maior nível educacional ou concorrer em novos campos de trabalho. As diferenças de rendimento permanecem mesmo quando elas têm nível de escolaridade ou assumem cargos e posições semelhantes às dos homens. Portanto, são necessárias políticas públicas que promovam uma divisão mais igualitária do trabalho não remunerado como uma das mudanças necessárias para eliminar as diferenças de rendimento entre homens e mulheres, aumentar e melhorar a participação delas no mercado de trabalho para reduzir sua dependência econômica, reduzir a feminização da pobreza e promover o
7 Segundo Enriquez (2015, p. 30), a economia feminista é uma corrente de pensamento heterodoxo preocupada em visibilizar as dimensões de gênero da dinâmica econômica e suas implicações para a vida das mulheres. Sua noção de “economia do cuidado” contribui para atualizar o debate feminista sobre as formas de organização da reprodução social e reconhece o impacto destas na reprodução da desigualdade. E, como afirma Carrasco (2006), pretende-se com a economia feminista uma mudança radical da análise econômica para que integre e analise a realidade de mulheres e homens, tendo como princípio básico a satisfação das necessidades humanas.
empoderamento das mulheres, contribuindo também para a redução da violência contra as mulheres (CARRASCO, 2011).
Durante a pandemia do Coronavírus, a rede de apoio das mulheres para a terceirização das tarefas domésticas e de cuidado dispensadas à família foi eliminada ou seriamente reduzida pelo necessário distanciamento social e fechamento de escolas e creches, o que agravou a sobrecarga de trabalho das mulheres. As mulheres assumiram mais tarefas e inclusive deixaram o emprego para cuidar da família, o que agravou e deixou mais visível a desigualdade de gênero.
No Brasil, esta sobrecarga é mostrada quando se compara as jornadas de trabalhos de ambos os sexos: a jornada de trabalho total dos homens (trabalho principal mais afazeres domésticos) foi de 53,1 horas-semanais em 2004, tendo reduzido para 50,5 horas-semanais em 2015; enquanto para as mulheres, a jornada total foi de 57,2 horas-semanais em 2004 e de 55,1 horas-semanais em 2015. Comparando-se o total de horas-semanais trabalhadas, as mulheres têm mais horas- semanais que os homens. Quando se comparam apenas as horas-semanais despendidas nos serviços domésticos, as mulheres aumentaram em cinco horas a jornada de trabalho não remunerado entre 2004 e 2015, chegando a 20,5 horas- semanais, enquanto os homens mantiveram, a mesma média, de 10 horas-semanais ao longo do tempo, como explicitam os gráficos 3 e 4.
Gráfico 3: Média de horas semanais dedicadas aos afazeres domésticos e cuidados por homens e mulheres com e sem filhos, 2001-2015.
Fonte: PNAD Anual, IBGE (2001-2015),
Gráfico 4: Média de horas semanais dedicadas aos afazeres domésticos e cuidados por homens e mulheres segundo estado da ocupação, 2001-2015
Fonte: PNAD Anual, IBGE (2001-2015),
Assim, como elas têm menos horas de trabalho remunerado, também têm proporcionalmente menor renda. E uma das razões de as mulheres dedicarem menos horas ao trabalho remunerado é a necessidade de cumprirem as tarefas de cuidado da família. Para ajustar a carga horária de trabalho remunerado com a de trabalho não remunerado, uma solução comum é assumir trabalhos de horário flexível ou de meio expediente, o que acarreta desvantagens para as mulheres na competição por maiores salários e melhores cargos no mercado de trabalho (IBGE, PNAD Anual, vários anos).
Desde final de 2014, no início da crise econômica brasileira, o emprego informal tem aumentado na proporção do aumento do desemprego. Nas crises econômicas, o emprego informal termina sendo a solução para a perda do emprego sempre que a economia não dispõe de redes de auxílio social suficientes para dar suporte às famílias que perderam renda. E como, geralmente, este tipo de emprego (o chamado “bico”) implica menor rendimento, ele também contribui para o empobrecimento das pessoas das camadas mais baixas de renda. A pandemia fechou inclusive postos de trabalho informais, agravando o quadro de empobrecimento e perda de renda destas famílias.
Mesmo antes da pandemia, a crise econômica já havia provocado o deslocamento da mão de obra do trabalho formal (com carteira assinada) para o informal (como mostra o gráfico 5). Os dados mostram que, em 2017, 82% dos novos postos de trabalho foi ocupado por mulheres pretas/pardas, sendo que grande parte delas (71,2%) estava trabalhando em serviços domésticos remunerados sem carteira assinada e as demais eram trabalhadoras por conta própria (como ambulantes e cuidadoras). Outra consequência da crise econômica foi o aumento do microempreendedorismo individual, maioria de mulheres, com destaque para os setores industriais (alimentos, vestuário), serviços e atividades de comércio (TEIXEIRA, 2018, pp. 286-293). Muito provavelmente, parte importante dos negócios das mulheres microempreendedoras é informal, sem registro oficial de empresa.
Gráfico 5: Brasil, taxa de desemprego e de informalidade (%), 2012-2019
Fonte: Ulissea (2020), PNAD Contínua (IBGE).
A reforma trabalhista, que reduziu tanto proteções sociais ao trabalhador/a, como os entraves legais para contratação e demissão de empregados/as, além de ampliar as possibilidades legais de terceirização do trabalho, também prometia a redução significativa dos custos relativos à mão de obra e, com isso, esperava promover uma expansão significativa de novos postos de trabalho, com impacto positivo sobre emprego e investimentos. No entanto, isto não ocorreu, muito provavelmente porque as reformas não implicaram o fim da crise econômica e a volta de expectativas positivas sobre crescimento econômico. O discurso oficial de queera fundamental viabilizar o ajuste fiscal para estimular o investimento privado, que seria
a alavanca do novo ciclo econômico, não se concretizou e a economia cresceu pouco mais de 1% ao ano entre 2017 e 2019 (CARVALHO, 2020; DWECK, 2019).
Com o advento da crise sanitária provocada pela Covid-19 e a ausência de medicamentos ou vacina apropriadas, o distanciamento social foi a solução apresentada pelas equipes científicas que acompanharam o desenvolvimento e avanço do contágio. O impacto do distanciamento social foi mais significativo nos setores e atividades que envolviam contato direto entre pessoas, com destaque para o setor de serviços, com as atividades sendo interrompidas e vários estabelecimentos ficaram fechados. Foi o caso de restaurantes e afins, hotéis, transporte aéreo, salões de beleza, de manicura, empregadas/os domésticas/os e cuidadoras foram dispensadas temporariamente ou de forma definitiva. Como o setor de serviços congrega muitos trabalhadores e pequenos negócios informais, o distanciamento social teve um importante impacto, neste setor, sobre o emprego e a renda8. Como estes/as trabalhadores/as informais não têm registro foi mais difícil identificá-las para receberem o auxílio emergencial. A pandemia escancarou a pobreza da sociedade brasileira, e o enorme contingente de pessoas que vivia à margem da sociedade. Esta perda de renda e emprego, principalmente em setores da economia em que as mulheres têm maior participação, é preocupante pelo aumento percentual de domicílios chefiados por mulheres, que passou de 25% em 1995 para 45% dos domicílios em 2018 (IBGE, PNAD anual e PNADC).
Na atual recessão, os homens sofreram com a perda de emprego e redução salarial sem que isso implicasse ganho de rendimento para as mulheres. Na verdade, em 2017 houve uma inflexão na curva de rendimento médio do trabalho principal das mulheres, acentuando a diferença de rendimento entre homens e mulheres (gráfico 6). O fato de as mulheres terem menor rendimento médio que os homens, serem cada vez mais as responsáveis (chefes) pela família e estarem na informalidade tem impacto também na qualidade de vida de seus dependentes, sendo um fator que contribui para a reprodução da pobreza.
8 As maiores quedas na ocupação foram de empregadores (-13,2%), autônomos (-16%), trabalhador/a informal (-23%) e trabalhadoras/es domésticas/os (-32%). (IBGE, PNAD-Covid).
Gráfico 6: Brasil, rendimento médio do trabalho principal por sexo, 2012.1-2020.1
Fonte: PNAD Contínua (IBGE). Elaboração própria.
A quebra desse ciclo vicioso passa por mudanças culturais relativas à divisão sexual do trabalho não remunerado, que também dependem de incentivos econômicos e legais, como a equiparação das licenças maternidade e paternidade.9 Nesse sentido, uma contribuição importante de políticas públicas para aumentar a renda média das mulheres é através da oferta de creches e escolas de ensino fundamental de tempo integral, principalmente para as famílias de menor renda. A creche e a escola integral permitem que as mulheres trabalhem em empregos de tempo integral, aumentando a possibilidade de conseguirem emprego formal e terem melhoria de renda, com maior acesso às redes de proteção laboral oficiais.
Algumas questões importantes ficaram mais evidentes durante a pandemia do Covid-19, como a importância do acesso universal à saúde de qualidade, a disponibilidade de rede de água tratada e coleta de esgoto e de lixo, e a boa qualidade e disponibilidade de transporte público. A perda abrupta de renda, sem uma data para o retorno, deixou famílias inteiras sem nenhuma possibilidade de sobrevivência. O auxílio foi fundamental e ainda é essencial, até a volta da economia à nova normalidade. Mas ficou evidente que a renda não resolve todos os problemas. O descaso com a estrutura de saúde pública das últimas décadas, acrescido do
9 Países nórdicos têm definido uma licença parental que tem incentivado a maior participação efetiva do pai nos primeiros meses da vida do bebê. Ela obriga que ambos os pais utilizem a licença, caso contrário, o tempo de quem não usou é perdido.
negacionismo do governo federal e sua atuação no sentido de desacreditar a ciência, insistir em não coordenar uma ação conjunta para o combate à epidemia, contribuíram para que o número de contaminados e de morte por Covid-19 no Brasil fosse maior do que o que poderia ser. Um dos graves problemas relativo ao enfrentamento da pandemia no Brasil foi a obstinada negativa do governo federal de coordenar as ações necessárias para o controle da expansão do contágio, alternativa viável na ausência de medicamento ou vacina adequados, insistindo numa postura negacionista em relação à ciência. Essa atitude levou, possivelmente, a que o Brasil tivesse mais mortes do que o que poderia ter tido caso o governo federal tivesse assumido o papel de coordenador nacional efetivo. Durante todo o período da pandemia, a preocupação principal do governo federal foi apenas com o aprofundamento da crise econômica imposta pela política sanitária de combate ao vírus e seu impacto sobre as contas públicas.10
O Ministério da Economia foi lento em programar medidas de apoio e o fez de má vontade, mais preocupado com o saldo orçamentário do que com a real situação e capacidade de reação da economia caso não houvesse nenhum tipo de repasse monetário às famílias e empresas. Segundo dados da PNAD Covid (IBGE, 2020), 5,2% dos domicílios (cerca de 3,5 milhões) sobreviveram apenas com o auxílio emergencial que, em média, aumentou em 95% a renda habitual, com maior impacto nas famílias de menor renda. O auxílio emergencial compensou cerca de 45% do impacto da pandemia sobre a massa salarial e 67% da perda de massa salarial das pessoas que continuaram empregadas (IPEA, 2020).11
Inicialmente, o projeto de Lei enviado pelos Ministérios da Economia e da Cidadania com a proposta para o auxílio emergencial para pessoas que estavam na informalidade e não recebiam benefícios previdenciários ou assistenciais e tampouco seguro-desemprego, estipulava um auxílio de R$ 200,00 durante 3 meses. Na Câmara Federal, com a pressão popular e a crítica generalizada ao baixo valor proposto, o valor foi alterado para R$ 500,00 e o governo, para mostrar magnanimidade e sair como o definidor do valor, alterou o valor para R$ 600,00 (Lei 13.982, de 02/04/2020). Foram definidas 3 parcelas pagas através da Caixa Econômica, utilizando o Cadastro
10 O isolamento social foi a política sanitária adotada pela grande maioria dos países como política vital para reduzir o contágio e reduzir o número de mortes.
11 O valor médio do auxílio emergencial foi de R$ 846,50, que correspondeu a 44,6% do rendimento médio da população ocupada, 77,5% do rendimento médio dos trabalhadores por conta própria e 21,2% maior que a média dos rendimentos dos trabalhadores domésticos (IPEA, 2020)
Único disponível no programa Bolsa Família. Durante o processo de discussão na Câmara Federal ficou evidente a fragilidade das mulheres chefes de família, o que levou à alteração e aprovação para que as mulheres chefes de família com filhos menores recebessem R$ 1.200,00 reais nos três meses. Esta foi uma vitória construída no plenário da Câmara Federal, já que o projeto de lei não tinha considerado esta questão. Esta medida foi muito importante porque as mulheres sozinhas, chefes de família e com filhos menores12 são, em grande maioria, trabalhadoras informais e, consequentemente, muito vulneráveis no quadro da pandemia (entrevista Lucilene Morandi, O Globo, 03/04/2020).
A parte institucional e burocrática para o pagamento do auxílio emergencial não funcionou adequadamente e muitas pessoas demoraram muito tempo para conseguir se cadastrar e receber. As dificuldades estavam relacionadas ao fato de parte dos trabalhadores informais não estar incluída no Cadastro Único e com a não adequação do sistema de atendimento on-line da Caixa Econômica Federal, a operadora bancária do benefício. A discussão, no momento, é sobre a prorrogação do auxílio emergencial porque a pandemia não foi debelada e a taxa de mortalidade ainda continua em centenas diárias. A proposta do governo federal é de prorrogação do auxílio emergencial, agora com novo nome, auxílio emergencial residual, com valor reduzido para a metade, R$ 300,00, a ser pago apenas até o fim do ano, e será estendido automaticamente para todos que receberem o auxílio emergencial em setembro, caso se enquadrem nos critérios da MP 1000/2020. A mulher provedora continua a receber em dobro. (Portal G1, 09/09/2020)
O programa de auxílio do governo federal para as empresas permitiu que estas reduzissem o salário na medida da redução da jornada de trabalho ou mesmo suspendessem contratos de trabalho, sendo a complementação da remuneração arcada pelo programa do governo, tendo como base o seguro-desemprego. Nesse pacote de ajudas, as mulheres tiveram destaque nos casos específicos das empregadas domésticas, tendo o mesmo tratamento que os trabalhadores dos demais setores. Com relação às mulheres gestantes, ficou explicitado que também podiam ter seus contratos reduzidos ou suspensos, como os demais trabalhadores, mas continuariam não podendo ser demitidas sem justa causa. As mulheres que estavam,
12 Segundo o IBGE (PNAD Contínua), 87,4% das famílias com apenas um cônjuge e com filhos são chefiadas por mulheres. O percentual quando se inclui corte de cor e raça não se altera.
durante este período, em licença-maternidade, não poderiam ter alteração nos seus contratos.
A queda súbita da produção e emprego, ocorrida em março, começou a arrefecer em maio, segundo dados da Receita Federal13, com leve retorno do nível de vendas após o impacto das medidas de estímulo econômico. O governo federal, ao se recusar a montar uma estratégia de campanha a nível nacional, obrigou a que os governos estaduais e municipais adotassem as medidas necessárias de forma autônoma e isolada, ao mesmo tempo que sofriam pressão – inclusive com ameaças de corte de apoio – do governo central para não adotarem o isolamento social para não paralisar a economia, como se os governos estaduais e municipais tivessem escolha. O resultado foi que o combate à pandemia foi diferente em cada região, dependendo do maior ou menor comprometimento do governo local com o bem-estar da população e dependendo de sua capacidade de mobilizar recursos para as intervenções e ajudas à população que se fizessem necessárias. Certamente o Brasil, por causa de uma falta de liderança nacional para o adequado combate à pandemia, registrou um número elevado de mortes desnecessárias.14
Instituições internacionais (CEPAL, 2020; ONU Mulheres, 2020) têm feito diversos apelos e recomendando que os países que enfrentam os impactos do Covid- 19 deveriam incorporar o enfoque de gênero nas políticas sanitárias e econômicas adotadas. Justifica seu posicionamento alertando que as normas sociais e os padrões culturais são fatores determinantes dos impactos diferenciados desta crise sanitária para mulheres e homens. Os dados da PNAD Covid (IBGE, 2020) mostram que apesar de a taxa de desemprego ter começado a cair em agosto passado, ainda é muito alta (acima de 13%) e cerca de 29% das famílias ainda não tem nenhuma renda proveniente de emprego e dependem de programas de repasse de renda. Estes dados reforçam a necessidade da continuidade do auxílio emergencial até que a economia volte efetivamente a crescer.
Um dos temas que esta pandemia também trouxe à tona foi a dimensão da divisão sexual do trabalho em relação ao trabalho não-remunerado, cuidados e afazeres domésticos, realizados para a reprodução da vida no interior das famílias.
13 Boletim da Receita Federal, Impactos da Covid-19, No. 1, 1 de junho de 2020.
14 “Ao minar o trabalho dos profissionais de saúde e se recusar a assumir responsabilidade pela pandemia, os líderes do Brasil e México em particular desencadearam uma onda de mortes desnecessárias” (ENRIQUEZ, CABAL, CENTENO, 2020).
Trabalhadores/as domésticos/as ainda eram, até 201915, um dos maiores contingentes de trabalhadores nacionais, representando 6,3 milhões de trabalhadores/as, ou cerca de 14,6% dos trabalhadores nacionais, sendo que 92,4% são mulheres. A renda média de 25% desses/as trabalhadores/as é de até meio salário-mínimo nacional e apenas 1,6 milhão, ou 25,4%, tem carteira assinada (IBGE, PNADC, 2018). Os/as trabalhadores/as desse setor precisam de proteção social, porque uma grande maioria está na informalidade e com o isolamento social são mais facilmente dispensados/as, sem terem direito às proteções sociais disponíveis ao trabalhador formal. E, além disso, estão mais expostos/as ao contágio na medida em que são obrigados/as a continuar a trabalhar para terem renda.
A pandemia explicitou a realidade do trabalho doméstico. Pesquisando este tema há alguns anos, estimamos que cerca de 15 milhões de famílias brasileiras empregam algum tipo de trabalhadores/as domésticos/as, seja mensalista ou diarista. O isolamento social colocou ainda outras questões. Nos estratos de renda média, as tarefas relativas aos cuidados e afazeres domésticos eram divididas entre as mulheres da família e as trabalhadoras domésticas remuneradas. Esta rotina foi alterada pela pandemia e as famílias se viram na dura posição de assumir o risco e manter o/a trabalhador/a doméstico/a ou assumir mais estas responsabilidades, além do trabalho remoto, o auxílio com as aulas on-line das crianças e o cuidado das pessoas idosas ou enfermas da família. Normalmente, os homens, mesmo os mais politizados com relação à divisão destas tarefas, nunca as assumiram como suas. Há grande expectativa com relação ao que este estado caótico, provocado pela pandemia no interior das famílias, poderá trazer de novidade no comportamento das pessoas em relação ao trabalho não remunerado depois da pandemia. Mesmo que os homens não venham a dividir igualitariamente estas tarefas em suas famílias, a pandemia destacou a grande importância desse trabalho, tradicionalmente invisível e desacreditado na sociedade.
A desigualdade social pré-existente amplifica os novos problemas gerados pela crise sanitária e econômica da Covid-19. O fechamento das escolas, com a proibição das atividades presenciais e sua substituição por atividades on-line de ensino, pode
15 Segundo o IBGE (PNAD-Covid, 2020), durante a pandemia foram extintos 727 mil postos de trabalho doméstico. Em abril havia 5,5 milhões de trabalhadores domésticos no país, o menor contingente desde 2012, quando teve início a série histórica da pesquisa. Deste total, apenas 28,5% (1,5 milhão) possuía carteira de trabalho assinada.
aumentar a desigualdade entre as crianças e jovens para o período pós pandemia. A maior ou menor disponibilidade de meios eletrônicos adequados para o acesso às aulas on-line (computador, tablete ou celular com acesso à internet de qualidade e rápida), além de um espaço individual e adequado para o acesso às aulas, pode ser o grande diferencial entre os estudantes. Sabe-se que a educação é uma forma de quebrar a cadeia da desigualdade, mas estas desigualdades no acesso às atividades on-line poderão acentuar ainda mais as desigualdades e a capacidade de competir dos jovens das diferentes classes de renda no mercado de trabalho, com desvantagem evidente para os de menor renda.
Será que novos tempos se anunciam e podemos ter esperança que a pandemia revele alguma mudança no comportamento dos homens em relação a estas atividades domésticas, incluindo não apenas as atividades que eles já admitem fazer, como cozinhar, ir ao supermercado, jogar bola com a criança, pagar contas na internet? Será que após a pandemia e tudo o que ela nos permitiu perceber em relação à essencialidade do trabalho não remunerado e sua invisibilidade, os homens/companheiros vão substituir o verbo ajudar, quando se referem às tarefas domésticas, para o verbo partilhar? Será que após a pandemia nós todos discutiremos com mais seriedade a importância do trabalho não remunerado e sobre formas de diminuir a desigualdade neste aspecto?
Uma grande preocupação, tanto a nível internacional quanto nacional, é com as pessoas que trabalham nos serviços essenciais de saúde. É preciso incluir também as cuidadoras na categoria de atividades de risco, porque, tanto no Brasil como no mundo, são as mulheres que predominantemente compõem estes serviços. No Brasil, as mulheres preenchem 63% das vagas de emprego consideradas de grande risco em relação ao Covid-19, ao mesmo tempo que representam apenas cerca de 43% da força de trabalho do país. A ONU Mulheres também recomenda que o Estado forneça os dados da Covid-19 por sexo, não só para a mortalidade, mas para as pessoas infectadas. É necessário conhecer se há diferenças ou maior vulnerabilidade por sexo na transmissão e taxa de mortalidade relativa ao Coronavírus.16
Historicamente, as crises econômicas criam mais desemprego entre as mulheres, com destaque para uma das mais numerosas categorias de trabalhadoras
16 Segundo dados do IBGE (PNADC, 2018), as mulheres são 65% dos profissionais de saúde, sendo apenas 47,5% dos médicos (47,5%), sendo maioria (80%) dos médicos nas faixas de renda mais baixas enquanto os homens são maioria (51%) nas faixas de renda mais alta.
brasileiras, as empregadas domésticas, que têm sofrido com desemprego amplificado também em função do relativo empobrecimento das camadas médias da sociedade. A ONU Mulheres tem apelado para que os governos adotem trabalhos flexíveis e proteção para estas mulheres, porque elas acumulam a jornada de trabalho com os cuidados com sua família.
Nestes tempos de pandemia, quando um atrevido novo vírus derruba as economias mundiais e aplasta todas as sociedades, ressoa o apelo de Phumzile Malambo-Nouka, sub-secretária geral da ONU e diretora executiva da ONU Mulheres quando diz que
“há espaço não apenas para resistência, mas para recuperação e crescimento. Onde governos ou empresas implementam proteção à renda, ...evita-se levar as famílias à pobreza. Essa resposta também deve incluir a economia informal, onde a maioria das mulheres ganha a vida trabalhando fora de casa ... Este é um momento de ... reconhecimento da força da solidariedade para os serviços públicos e a sociedade como um todo” (ONU Mulheres, 2020).
É preciso que os Estados priorizem as mulheres nos processos de formulação, implementação e avaliação de políticas públicas, em particular políticas de emprego, inclusão social e redução da pobreza. O impacto econômico provocado pela pandemia pode ter efeito relevante sobre duas das principais ocupações femininas, trabalhadora doméstica e cuidadora, e pode significar um impulso a mais para o empobrecimento das famílias de menor renda. Os dados sobre população ocupada, para o primeiro trimestre de 2020, mostram que a população ocupada sofreu um decrescimento de 3,4% e a das trabalhadoras domésticas um decréscimo de 10,1% (IBGE, PNADC).
Outro aspecto que deve ser levado em consideração refere-se ao impacto do auxílio emergencial de R$ 600,00 para os trabalhadores informais, resultando em 44 milhões de pessoas beneficiadas. Como ressaltou o professor da Unicamp Dari Krein (2020, p.17), no Brasil a força de trabalho tem cerca de 106 milhões de pessoas e mais da metade dos ocupados foram buscar esse auxílio. Mesmo que muitos destes não estejam na inatividade no momento, isso mostra a dimensão da precariedade do povo brasileiro.
Ainda como reflexões finais, é preciso alertar para o aumento da violência doméstica no Brasil, com aumento, ainda no mês de março/abril, de 9% de denúncias no Disque 180, em comparação com o mesmo período do ano passado. A violência doméstica não foi um problema apenas brasileiro. Ela explodiu no mundo inteiro com o confinamento das pessoas para deter a pandemia. Segundo o depoimento da juíza titular da vara de violência doméstica do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Adriana Mello, a imprensa mostra a preocupação que deve ter o Estado com relação a esta questão tão espinhosa para todas as mulheres. Ela declarou que foram registrados 724 pedidos de medidas protetivas de urgência no plantão judiciário do Estado nos primeiros meses da pandemia e ela teme que as medidas de restrições de circulação possam limitar as denúncias (Jornal O Globo, 03/04/2020, p. 16). A violência doméstica é uma preocupação de todas as sociedades e um dos pontos destacados pela ONU Mulheres nos seus comunicados globais.
No Brasil, o quadro de crise sanitária, humanitária, socioeconômica e de cuidados da Covid-19 elevou a desigualdade de todos, mas esta foi mais intensamente vivida pelas mulheres. A perda de emprego agravou a situação das famílias de menor renda e, porque as mulheres, em média, têm menor rendimento que os homens, pode-se concluir que as famílias monoparentais chefiadas por mulheres foram mais atingidas pela perda de renda. É preciso reconhecer que há uma difícil conciliação entre trabalho e família nos países em que a estrutura de apoio aos cuidados é precária, como no Brasil. Nesse sentido, as mulheres em idade ativa dividem-se entre o trabalho de cuidado na família e o mercado de trabalho, onde tem menor participação que os homens, caracterizando uma situação de maior dependência econômica do sexo feminino. O reconhecimento da necessidade do trabalho de cuidado e sua essencialidade à reprodução da vida e geração de bem- estar é importante para que, de um lado, as políticas públicas incluam os recortes de gênero e raça como base de decisão e, de outro lado, precisamos de mudança na postura social em relação ao trabalho dito feminino, o que envolve mudanças culturais com a participação igualitária de homens e mulheres na divisão do trabalho não remunerado, o que demanda esforço educacional e conscientização social.
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Verônica Souza de Araújo2 Rachel Barros de Oliveira3
Resumo
Neste artigo, analisamos os impactos da pandemia de COVID-19 sobre as trabalhadoras domésticas remuneradas, categoria formada majoritariamente por mulheres negras com longo histórico de organização política. Elencamos as estratégias de luta postas em prática pelo movimento sindical dessas trabalhadoras frente ao acirramento da sua condição de vulnerabilidade durante a crise sanitária imposta pela pandemia, agravada pela gestão implementada pelo Estado brasileiro. Essas estratégias abordam, principalmente, campanhas por acesso e manutenção de direitos, iniciativas de solidariedade e denúncias de violações de direitos.
Palavras-chave: trabalho doméstico; COVID-19; racismo estrutural; colonialidade; movimento sindical.
“CUIDEN A LOS QUE TE CUIDAN”: LA LUCHA DE LOS TRABAJADORES DOMÉSTICOS DURANTE LA PANDEMIA DEL COVID-19 EN BRASIL.
Resumen
En este artículo analizamos los impactos de la pandemia de COVID-19 en las trabajadoras del hogar remuneradas, categoría formada mayoritariamente por mujeres negras con una larga trayectoria de organización política. Enumeramos las estrategias de lucha puestas en práctica por el movimiento sindical de estas trabajadoras ante el agravamiento de su condición de vulnerabilidad durante la crisis de salud impuesta por la pandemia, agravada por la gestión implementada por el Estado brasileño. Estas estrategias abordan principalmente campañas de acceso y mantenimiento de derechos, iniciativas de solidaridad y denuncias de violaciones de derechos.
Palabras clave: trabajo doméstico; COVID-19; racismo; colonialidad; movimiento sindical.
“TAKE CARE OF THOSE WHO TAKE CARE OF YOU”: THE FIGHT OF DOMESTIC WORKERS DURING THE COVID-19 PANDEMIC IN BRAZIL.
Abstract
In this article, we analyze the impacts of the COVID-19 pandemic on paid domestic workers, a category formed mostly by black women with a long history of political organization. We list the fight strategies put into practice by the union movement of these workers in face of the worsening of their condition of vulnerability during the health crisis imposed by the pandemic, aggravated by the management implemented by the Brazilian State. These strategies mainly address campaigns for access and maintenance of rights, solidarity initiatives and complaints of violations of rights.
Keywords: domestic work; COVID-19; structural racism; coloniality; union movement.
1 Artigo recebido em 17/01/2021. Primeira avaliação em 19/01/2021. Segunda avaliação em 21/01/2021. Aprovado em 08/02/2021. Publicado em 25/02/2021.
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v19i38.48187
2 Mestra em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (ENSP)/FIOCRUZ
– Rio de Janeiro. E-mail: veronica.sa.med@gmail.com. ORCID: 0000-0002-7104-6984. Lattes: http://lattes.cnpq.br/9857798694507242.
3 Doutora em Sociologia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Pesquisadora do Cidades - Núcleo de Pesquisa Urbana (UERJ). E-mail: barrorsdeoliveira.rachel@gmail.com.
ORCID: 0000-0002-4293-1853. Lattes: http://lattes.cnpq.br/8208747130293747.
Os primeiros casos de infecção pelo novo coronavírus (SARS-CoV-2) foram documentados na China, no final de 2019, e a coronavirose-19 (COVID-19) foi declarada uma pandemia pela Organização Mundial de Saúde (OMS) em 11 de março de 2020 (ONU, 2020). O vírus se espalhou pelo Ocidente seguindo o sentido do Norte para o Sul global, a exemplo do que aconteceu no Brasil, cujos primeiros casos foram importados da Europa e dos EUA (ABRASCO et al., 2020). A pandemia impôs profundas modificações às relações humanas, aos arranjos de socialização dentro de comunidades e entre os países, e descortinou desigualdades estruturantes da sociedade brasileira, como o racismo, as iniquidades regionais, as disparidades de gênero, entre outras, o que se desdobrou em padrões desiguais de acesso aos serviços de saúde.
Diversas medidas de saúde pública foram preconizadas pela OMS para a contenção da disseminação do coronavírus, uma vez que não há tratamento específico para a doença, e a vacina só começou a chegar em alguns países no final de 2020 e início de 2021. Apesar de ter um dos maiores programas de imunização do mundo, reconhecido internacionalmente (DOMINGUES et al., 2020), o Brasil não possui, na primeira semana de 2021, um plano de vacinação nacional. Entre as ações de contenção da pandemia recomendadas pela OMS estão a quarentena de contatos, o uso de máscaras, o isolamento de casos e o distanciamento social (AQUINO et al., 2020). As medidas de distanciamento social são progressivas e compreendem o fechamento de escolas e universidades, a proibição de eventos de massa, a restrição de viagens, podendo chegar à proibição de circulação nas ruas, exceto para a compra de alimentos, remédios e atendimento médico.
O Brasil adotou recomendações pontuais e descontínuas de distanciamento social - não sem dificuldade, frente à desinformação produzida pelo Ministério da Saúde (MS) do governo Jair Bolsonaro (CEPEDISA; CONECTAS, 2021). A efetividade e a sustentabilidade de tais medidas dependem de políticas públicas de apoio à população em situação de vulnerabilidade, especialmente num país com profundas desigualdades sociais e regionais, elevado número de profissionais na informalidade e crescente número de pessoas pobres e extremamente pobres nos últimos anos, como reflexo, principalmente, da adoção de medidas de austeridade
fiscal desde 2015. Entre as ações centrais recomendadas frente à pandemia está a implementação de um programa estatal de renda mínima, associada a garantias de manutenção de empregos dos assalariados enquanto durarem as restrições às atividades econômicas, a fim de garantir adesão relevante da população às restrições impostas pelo distanciamento social (AQUINO et al., 2020).
A suspensão das aulas presenciais para milhões de crianças, o fechamento de espaços de socialização para jovens, adultos e idosos, o fechamento das já insuficientes creches, a adoção do trabalho remoto para uma parcela privilegiada de profissionais assalariados, entre outras medidas, tiveram como resultado o deslocamento de quase todas as atividades necessárias à reprodução da vida para o espaço doméstico.
Apesar de o trabalho de cuidado e de reprodução da vida ser de responsabilidade de todos os moradores do lar e do Estado, é necessário ressaltar que no Brasil essas atividades são desempenhadas majoritariamente pelas mulheres, o que foi aprofundado com a pandemia (CASTELLANOS-TORRES; TOMÁS MATEOS; CHILET-ROSELL, 2020; REIS et al., 2020). Soma-se a isso a orientação ultraliberal do atual governo, que implica uma extrema desresponsabilização do Estado sobre a garantia desses serviços. Desse modo, a pandemia é experimentada de forma genderizada4, impondo e naturalizando uma maior carga de trabalho sobre as mulheres no Brasil e no mundo.
Boa parte desse trabalho é realizado pelas trabalhadoras domésticas remuneradas, principalmente em casas das classes médias e altas5. O Brasil é o país com o maior número de pessoas empregadas nesse segmento no mundo: são cerca de 6,2 milhões de pessoas, que desempenham um trabalho marcado pela precariedade, devido aos baixos rendimentos, à instabilidade, à informalidade, à frágil
4 Empregamos o termo genderizado/a para tratar do que se refere à categoria social gênero. O termo deriva do inglês gender (gênero)/genderized (genderizado) e seu uso aponta para a influência de países de língua inglesa sobre os estudos de gênero (Gender Studies), principalmente a produção estadunidense.
5 Neste artigo utilizamos o conceito de classe tendo como referência a definição marxiana de classe social, que confere centralidade à divisão econômica entre proprietários dos meios de produção e trabalhadores que vendem sua mão de obra, ao analisar a dinâmica dos conflitos presentes na sociedade capitalista. Importa ainda dizer que, por este artigo tematizar o trabalho doméstico, ocupação marcada historicamente pela precariedade, as reflexões de Ricardo Antunes (2009) sobre classe-que- vive-do-trabalho são de fundamental importância para compreender a atualidade das reflexões feitas por Marx.
proteção social e a uma hiperexposição à discriminação e ao assédio (PINHEIRO; TOKARSKI; VASCONCELOS, 2020).
Os trabalhadores domésticos remunerados são majoritariamente mulheres (92%), motivo pelo qual nos referimos a essa categoria no feminino neste artigo, e 63% são negras (PINHEIRO et al., 2019). Essas cerca de 6 milhões de mulheres correspondem a quase 15% das trabalhadoras ocupadas no país (10% das brancas e 18,6% das negras) (PINHEIRO; TOKARSKI; VASCONCELOS, 2020). A maior parte delas encontra-se na informalidade; segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua de 2020, apenas 28% delas possuem carteira de trabalho assinada (PINHEIRO; TOKARSKI; VASCONCELOS, 2020). O perfil dessas trabalhadoras é, em geral, de mulheres negras, pobres e com baixa escolaridade, que cuidam de famílias das classes médias e altas.
As trabalhadoras domésticas brasileiras dedicam, em média, 52 horas por semana às atividades domésticas, somando-se o tempo de trabalho pago e não pago (PINHEIRO et al., 2019). Elas são as principais responsáveis pelo cuidado também em suas próprias famílias e comunidades, realizando a maior parte das atividades necessárias à manutenção da vida, como alimentação, higiene e o cuidado de crianças, idosos e enfermos.
Desde o início da pandemia, a (oni)presença das empregadas domésticas na sociedade brasileira e a essencialidade do seu trabalho vêm sendo debatidas. Para Luiza Batista, presidenta da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (FENATRAD), definir o trabalho doméstico remunerado como uma atividade essencial durante a pandemia é uma “crueldade”, como ela afirmou em um protesto em 08/05/2020:
Nós sempre lutamos por valorização e a sociedade nunca quis reconhecer a importância do serviço doméstico. Aí neste momento de pandemia, a casa grande que está em quarentena, não quer se dar ao trabalho de fazer as próprias tarefas domésticas (FENATRAD, 2020a).
Frente a esse cenário, essas mulheres organizaram suas lutas para garantir a manutenção de direitos trabalhistas durante a pandemia de COVID-19 e a ampliação de direitos para que a categoria possa enfrentar esse período, observando as recomendações de Saúde Pública. Essas lutas se conectam historicamente às lutas de outras mulheres negras que vieram antes, a exemplo de Laudelina de Campos
Melo (1904-1991), precursora do movimento organizado de trabalhadoras domésticas no Brasil.
Neste artigo, realizamos um levantamento da história do movimento das trabalhadoras domésticas no Brasil, a fim de posicionar historicamente as lutas, reivindicações e denúncias dessas trabalhadoras organizadas frente à pandemia de COVID-19. Neste percurso, elaboramos uma discussão sobre a colonialidade presente na organização do mundo do trabalho doméstico remunerado e discutimos a crise do cuidado aprofundada durante a pandemia.
As mulheres negras sempre povoaram o mundo do trabalho na sociedade brasileira e, no período colonial, esse trabalho era compulsório, exaustivo e não remunerado. Após serem destituídas de sua condição humana pelo racismo que engendrou as relações sociais vigentes no Brasil, elas foram submetidas a um regime de servidão contínuo. Essas mulheres desempenhavam funções tanto no campo, trabalhando diretamente com a terra, quanto nas “casas grandes”, onde eram responsáveis pelo cuidado e pela reprodução da vida das famílias dos senhores. Entre as suas funções, destacavam-se as de babá, ama-de-leite, faxineira, mucama e cozinheira. Além disso, foram sistematicamente submetidas a violências sexuais pelos seus senhores (GIACOMINI, 1988). Dessa forma, parte importante da miscigenação brasileira, para além de teorias que estimulassem o branqueamento, se deve ao estupro de mulheres negras escravizadas.
A imbricação entre escravidão, gênero e etnia estrutura o modelo de família patriarcal característico do período colonial (COLBARI, 1992). Segundo Hahner (2003), no século XIX, as mulheres escravizadas em contextos urbanos possuíam certo grau de mobilidade e circulação em relação àquelas que trabalhavam no campo. Muitas delas eram escravas de ganho, mulheres que exerciam atividades diversas pelas ruas das cidades em troca de pagamento. Como quituteiras, lavadeiras, cozinheiras e faxineiras, elas tinham que conseguir quantias pré-estabelecidas pelo seu senhor, a serem pagas no final do dia ou da semana. Caso não alcançassem a meta, poderiam ser castigadas (MACHADO, 2004). Dados do Censo de 1872 atestam a relevância do trabalho doméstico neste período. No Rio de Janeiro, tanto para
mulheres escravizadas quanto para mulheres livres, esta ocupação chegava a empregar 63% da força de trabalho feminina da cidade (HAHNER, 2003).
A herança colonial da sociedade brasileira se expressa de modo marcante na organização do mundo do trabalho. Ainda hoje, os marcadores de raça e gênero continuam a definir o perfil de quem exerce o trabalho doméstico. Lélia Gonzalez, no início dos anos 1980, analisou a fixação da mulher negra no lugar de empregada doméstica, lugar marcado pela subalternização, pela invisibilidade e pela exigência de uma atitude de deferência contínua aos seus patrões.
Acontece que a mucama “permitida”, a empregada doméstica, só faz cutucar a culpabilidade branca porque ela continua sendo mucama com todas as letras. Por isso ela é violenta e concretamente reprimida. Os exemplos não faltam nesse sentido; se a gente articular a divisão sexual e racial de trabalho fica até simples. Por que será que ela só desempenha atividades que não implicam “lidar com o público”? Ou seja, atividades onde não pode ser vista? Porque os anúncios de emprego falam tanto em “boa aparência”? Por que será que, nas casas das madames, ela só pode ser cozinheira, arrumadeira ou faxineira, e raramente copeira? Por que é “natural” que ela seja a servente nas escolas, supermercados, hospitais etc. e tal? (GONZALEZ, 2020, p. 85).
A persistência do trabalho doméstico como uma das principais atividades profissionais destinadas às mulheres negras reforça a construção histórica de um imaginário servil sustentado pela interseccionalidade6 de raça, classe e gênero. Tal fato denuncia o racismo estrutural (ALMEIDA, 2018) que produz a naturalização da presença de mulheres negras em posições subalternizadas, desempenhando atividades historicamente construídas a partir da cozinha da “casa grande”. Essa essencialização da mulher negra como um corpo de extração de um tipo de trabalho desvalorizado e a serviço, majoritariamente, da reprodução da vida de um outro grupo racializado - os brancos - aponta para a colonialidade do poder (QUIJANO, 2005) constitutiva da formação social brasileira.
A colonialidade, conceito desenvolvido por Aníbal Quijano (2010), pode ser compreendida como uma lógica de desumanização operacionalizada por meio do
6 Interseccionalidade é um conceito cunhado por Crenshaw (1989) para discutir a condição de invisibilidade histórica da mulher negra em análises que abordam os diferentes sistemas de opressão, como raça, classe e gênero. Para ela, o foco das análises sociais reside, habitualmente, sobre os membros mais privilegiados de cada grupo e marginaliza aqueles com múltiplas categorias de opressão, como as mulheres negras. Assim, o emprego da interseccionalidade nas análises em ciências sociais visa lançar luz sobre iniquidades invisibilizadas histórica e estruturalmente.
racismo que engendra uma política de vidas descartáveis. A colonialidade continua existindo mesmo na ausência de uma política colonial oficial, pois consiste no enraizamento de uma intersubjetividade racista que estrutura todas as relações de poder e possui efeitos materiais, epistêmicos e simbólicos. Dessa forma, esforços realizados para explicitar e desmontar tais estruturas assumem um caráter decolonial e são, inerentemente, antirracistas. Ao sinalizar a presença da colonialidade nas relações de trabalho doméstico remunerado, reforçamos a indissociabilidade entre a sua desvalorização e o racismo.
Para Bernadino-Costa (2015), o trabalho doméstico é uma ocupação que explicita desigualdades sociais persistentes. Articulando os conceitos de colonialidade e interseccionalidade, o autor demonstra que o padrão de submissão que atravessou a existência de mulheres negras no período colonial gerou um modelo de estratificação social que fixou pessoas negras em ocupações e lugares subalternizados, o que se mantém na atualidade. A intersecção de eixos de poder – notadamente raça, classe e gênero – estrutura as vulnerabilidades e desigualdades experimentadas pelas mulheres negras no Brasil, o que se expressa de forma sistemática na trajetória das trabalhadoras domésticas (BERNARDINO-COSTA, 2015).
O trabalho doméstico ocupa um lugar central na organização da vida social brasileira. Ele representa a única opção de renda para grande parcela das mulheres do país. Esse trabalho mal remunerado é um dos garantidores do bom funcionamento da família heteropatriarcal, possibilitando que as tensões resultantes da baixa participação dos maridos na esfera doméstica sejam atenuadas, além de apaziguar as cobranças sobre um Estado já pouco garantidor de políticas públicas de cuidado. Essa estrutura é sustentada pela transferência do trabalho de cuidado para a figura da “empregada doméstica”, uma outra mulher racializada, mantendo-se assim a histórica divisão racial do trabalho entre as mulheres.
A terceirização do trabalho doméstico cria, portanto, uma oposição de classe e raça entre as próprias mulheres, ao mesmo tempo que se configura em uma solução privada para um problema público, sendo, portanto, acessível apenas àquelas famílias com mais renda. (PINHEIRO; TOKARSKI; VASCONCELOS, 2020, p. 7).
Essa terceirização do trabalho doméstico para uma mulher racializada, em posição socioeconômica subalternizada, mantém invisíveis esse trabalho e essas
trabalhadoras, aprofundando a sua desvalorização. Nesse sentido, Vergès (2020) afirma que:
O capitalismo produz inevitavelmente trabalhos invisíveis e vidas descartáveis. A indústria da limpeza é uma indústria perigosa para a saúde, em todos os lugares e para aquelas e aqueles que nela trabalham. Sobre essas vidas precárias e extenuantes para o corpo, essas vidas postas em perigo, repousam as vidas confortáveis das classes médias e do mundo dos poderosos (p. 25).
Sobre a exploração das trabalhadoras domésticas repousa também a possibilidade de adesão de boa parte das classes médias e altas às medidas de confinamento impostas pela pandemia. A seguir, abordaremos a luta dessas trabalhadoras por reconhecimento enquanto categoria trabalhista, sua organização sindical e suas mais recentes vitórias. As demandas por direitos e por sobrevivência encampadas pela categoria durante a atual crise sanitária estão conectadas a um longo histórico de luta sindical.
A história da sindicalização das trabalhadoras domésticas no Brasil tem início em 1936, quando Laudelina Campos de Melo (1904-1991) funda a primeira Associação de Empregadas Domésticas, na cidade de Santos, em São Paulo. A trajetória de vida desta mulher é indissociável do histórico de organização da categoria.
Nascida em Poços de Caldas, Minas Gerais, Laudelina começou a trabalhar como babá aos sete anos de idade, realidade ainda compartilhada por muitas meninas negras e empobrecidas no Brasil. O início de sua atuação política ocorre ainda em sua cidade natal, onde passa a integrar o “Grupo 13 de Maio”, agremiação formada por pessoas negras, com fins políticos e recreativos. Já em São Paulo, na cidade de Santos, Laudelina foi uma das fundadoras da Frente Negra Brasileira, que chegou a ter cerca de 30 mil afiliados nos anos 1930 (PINTO, 2015).
Em 1936, ela se filiou ao Partido Comunista, mesmo ano em que fundou a primeira associação das empregadas domésticas do Brasil. No ano seguinte, todas as organizações políticas em que Laudelina militava - a Associação, o Partido Comunista e a Frente Negra Brasileira - foram perseguidas e fechadas pela ditadura
de Getúlio Vargas, durante o Estado Novo. Na década de 1950, Laudelina se mudou para Campinas, onde fundou a Associação de Empregadas Domésticas de Campinas, em 1961 (PINTO, 2015).
A década de sessenta representou um marco para a organização nacional das trabalhadoras domésticas, que contou com a colaboração da Juventude Operária Católica (JOC), grupo que surgiu em diversas cidades do país entre 1930 e 1940. Em 1960, o grupo realizou o Primeiro Encontro Nacional de Jovens Empregadas Domésticas, reunindo no Rio de Janeiro trabalhadoras domésticas de diferentes regiões do país. A atuação da JOC contribuiu para o surgimento de algumas das associações de empregadas domésticas pelo Brasil, como as do Rio de Janeiro e do Recife (BERNARDINO-COSTA, 2007).
Entre as décadas de 1960 e 1980, o foco das trabalhadoras domésticas esteve no seu reconhecimento como categoria profissional. Na década de 1970, a participação de Laudelina foi fundamental para a categoria conquistar o direito à Carteira de Trabalho e à Previdência Social. As resoluções do V Congresso Nacional das Empregadas Domésticas, realizado na cidade de Olinda em 1985, evidenciam a luta pelo reconhecimento profissional e demonstram a influência de diferentes movimentos sobre a trajetória da categoria:
A quase totalidade de nossa categoria é de mulheres e por isso, sofremos também toda a discriminação da mulher na nossa sociedade machista. A mulher é sempre vista como inferior e com menos capacidade.
Sabemos que ainda há entre nós muitas companheiras que não se aceitam como domésticas. Somos profissionais e por isso, trabalhadoras e somos parte da classe trabalhadora, classe que, no nosso sistema não tem vez nem voz.
Verificamos que infelizmente, muitos companheiros de outras categorias não nos reconhecem como trabalhadores. Várias companheiras participam de outros grupos ou movimentos, como sindicatos, movimento negro, associação de bairro, pastoral operária etc. Vários sindicatos já convidam a empregada doméstica a participar de debates, de lutas (inclusive greves).
Isso se deu, especialmente, a partir da criação da CUT (Central Única dos Trabalhadores) da qual são membros empregadas domésticas de várias associações do país.
(V Congresso Nacional das Empregadas Domésticas do Brasil apud
BERNARDINO-COSTA, 2007, p. 206).
Mais recentemente, a relação com o movimento feminista e com outros setores organizados se ampliou em escala nacional, principalmente após o surgimento da FENATRAD, em 1997. A categoria também passou a fazer importante incidência
política no âmbito internacional, a exemplo da participação nas atividades da Confederación Latinoamericana y del Caribe de Trabajadoras del Hogar (CONLACTRAHO) e da presença na 100ª Conferência Internacional do Trabalho da Organização Internacional do Trabalho (OIT), em 2011. A participação nesta última foi essencial para reativar o debate sobre o trabalho doméstico, culminando na aprovação da Proposta de Emenda Constitucional nº 66, conhecida como “PEC das Domésticas”7, a qual equipara os direitos das trabalhadoras domésticas aos previstos na Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT).
A atuação junto ao movimento negro, aos sindicatos, aos setores da igreja católica e ao movimento feminista esteve na base do processo de organização das trabalhadoras domésticas, da expansão da sua sindicalização e da ação política da categoria a nível nacional e internacional. Esta forma de atuação, que resulta em articulações e diálogos estratégicos, é nomeada por Bernardino-Costa de “interseccionalidade emancipadora”, pois ela demonstra como marcadores de diferença são articulados na produção de solidariedade política e de estratégias de atuação para acesso a direitos e outros ganhos democráticos, o que, para o autor, configura dinâmicas que resultam na construção de “projetos decoloniais de resistência e reexistência” (BERNARDINO-COSTA, 2015, p.159).
Esse modo de ação articulado em várias parcerias de solidariedade política foi essencial para amplificar as demandas por direitos das trabalhadoras domésticas durante a pandemia de COVID-19. A seguir, elencamos as principais ações adotadas pelas trabalhadoras domésticas organizadas em entidades sindicais e articuladas na FENATRAD, que visam a proteção dessa categoria dos impactos negativos da pandemia, bem como as principais denúncias de violações efetuadas por elas e publicadas no site da Federação entre março e outubro de 2020.
7 Segundo Ruth Coelho Monteiro (s.d.), por meio da PEC nº 66/2013 foram garantidos importantes direitos, como salário nunca inferior ao mínimo para os que percebem remuneração variável, proteção do salário, jornada de trabalho de 08 horas diárias e 44 horas semanais, hora extra, redução dos riscos inerentes ao trabalho, reconhecimento de Acordos e Convenções Coletivos de Trabalho, proibição de discriminação, proibição de trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de dezoito anos, e de qualquer trabalho a menores de dezesseis anos, salvo na condição de aprendiz, a partir de quatorze anos. Contudo, outros direitos não foram regulamentados e só entraram em vigor com a Lei Complementar nº 150/2015, que garantiu proteção do trabalhador doméstico contra demissão arbitrária ou sem justa causa, seguro desemprego (extensão de 03 para 05 parcelas), FGTS, adicional noturno, auxílio creche, salário família e seguro contra acidentes de trabalho, além de definir o direito a férias, a jornada de trabalho para quem mora no local de trabalho, contribuição para o INSS, entre outros. Disponível em: <https://fsindical.org.br/midias/arquivo/846-evolucao-dos-direitos-trabalhadores- domesticos.pdf>.
A realidade das trabalhadoras domésticas durante a pandemia é de acirramento da sua condição de vulnerabilidade, tanto sanitária quanto trabalhista. Entre os principais elementos dessa maior vulnerabilização, podemos citar: a proximidade física característica do trabalho doméstico; a maior exposição no deslocamento até o trabalho, pois elas dependem do transporte público; a impossibilidade de trabalhar de casa; o maior risco de demissão ou afastamento não remunerado; a sobrecarga de trabalho pago e não pago, frente à redução da disponibilidade de serviços de educação, acolhimento, alimentação e cuidados, que atinge tanto os empregadores como as famílias e comunidades das próprias trabalhadoras (PINHEIRO; TOKARSKI; VASCONCELOS, 2020; FENATRAD, 2020b).
As trabalhadoras domésticas organizadas nos sindicatos estaduais e articuladas na FENATRAD desenvolveram diversas ações com o intuito de assegurar direitos da categoria e combater a vulnerabilidade a que estão expostas. Identificamos três tipos principais de ação: campanhas públicas, voltadas para a divulgação de informações sobre direitos das trabalhadoras e deveres dos empregadores no período de pandemia; solidariedade, através de campanhas para doação de produtos de limpeza e cestas básicas; acolhimento, publicização e apoio jurídico para denúncias de violação de direitos, hiperexploração e violências extremas, como assédio e cárcere privado.
Já no início de março, a Federação lançou a campanha “Cuida de quem te cuida”, voltada para a garantia da quarentena remunerada, ou seja, a liberação das trabalhadoras com manutenção dos salários. Nos casos em que se configure a essencialidade de seu trabalho, como o cuidado de idosos, a entidade recomenda a disponibilização de transporte por aplicativos pelos empregadores, o fornecimento de equipamentos de proteção individual, como luvas, máscaras e álcool-gel, e a flexibilização dos horários de trabalho, para evitar os horários de pico. Além disso, a campanha convoca as autoridades competentes, em nível estadual e federal, a criarem um fundo emergencial para as trabalhadoras domésticas demitidas ou impossibilitadas de trabalhar. A FENATRAD sugere, ainda, a prorrogação da Lei 1.766/2019, que permite dedução de imposto de renda para as famílias que empregam trabalhadoras domésticas (esse incentivo fiscal foi revogado no início do
ano de 2020, prejudicando fortemente as chances de formalização do vínculo de emprego) (FENATRAD, 2020c).
Para a divulgação dessa campanha, elas mobilizaram suas redes sociais com vídeos de trabalhadoras solicitando a liberação remunerada e lançaram um abaixo- assinado para pressionar por proteção. Essas recomendações fazem coro com uma campanha realizada por filhos e filhas de trabalhadoras domésticas, intitulada “Carta- manifesto pela vida de nossas mães”. O documento, assinado por mais de 130 mil pessoas, pede quarentena remunerada para diaristas e mensalistas.
O Ministério Público do Trabalho (MPT) também propôs, por meio da Nota Técnica Conjunta 04/2020, de 17 de março de 2020, uma série de medidas de proteção às trabalhadoras domésticas. Sempre que possível, a recomendação é que se observe a quarentena remunerada. No caso das atividades de natureza essencial
- como o cuidado de idosos que residam sozinhos e de pessoas que necessitem de acompanhamento permanente, bem como a prestação de serviços aos dependentes de profissionais que desempenham funções consideradas essenciais nesse período-
, recomenda-se a flexibilização dos horários de trabalho, o acesso a equipamentos de proteção individual e a dispensa remunerada pelo período de isolamento dos empregadores com COVID-19 confirmada ou suspeita.
Ainda em março, as trabalhadoras domésticas se posicionaram contrárias à Medida Provisória (MP) 927, editada pelo Governo Federal e apelidada de “MP da Morte” por alguns setores da esquerda, como sindicatos e partidos políticos. Essa MP previa, entre outras coisas, a suspensão do contrato de trabalho e de salários por 4 meses, longas jornadas de trabalho e a demissão de trabalhadores/as. Nesse momento, as trabalhadoras domésticas reforçaram seu alinhamento com as medidas propostas pela Nota Técnica Conjunta 04/2020 do MPT. Elas reivindicavam a adoção de medidas de proteção, a garantia de remuneração para as trabalhadoras mensalistas e de uma renda mínima para as trabalhadoras domésticas diaristas. Uma das estratégias para pressionar por esses direitos foi o envio de um ofício ao Ministério da Economia, em busca de interlocução para posicionar as demandas da categoria.
À época, o Auxílio Emergencial ainda não havia sido instituído - o Governo Federal caminhava na contramão do resto do mundo, optando pela maior vulnerabilização dos trabalhadores frente à pandemia e pelo esgarçamento das relações trabalhistas.
Em nota emitida pela FENATRAD, as trabalhadoras repudiavam esta MP,
por ser uma medida que só favorece ao capital, enquanto até países que enfrentam a COVID-19 com condições financeiras pior que o Brasil já garantiram para as trabalhadoras/es manutenção do vínculo empregatício enquanto perdurar a pandemia, renda mínima e segurança para as trabalhadoras domésticas ficarem em suas casas com remuneração, em condições dignas e não se tornarem vetores de contaminação. (FENATRAD, 2020d.)
Após ampla luta da classe trabalhadora, intensa pressão junto à mídia e mobilização de vários atores da sociedade civil, o Governo Federal editou uma nova MP, em 1 de abril de 2020. A MP 936 criou o Benefício Emergencial (que ficou posteriormente conhecido como Auxílio Emergencial), por meio do qual os brasileiros e brasileiras maiores de 18 anos e sem fonte de renda durante a pandemia poderiam acessar o valor de 600 reais por pessoa, para até dois adultos por família, totalizando até 1200 reais por família. Estava previsto também o valor de 1200 reais por família chefiada por mãe solo que tivesse um ou mais filhos com até 18 anos. Além disso, a MP regulamentava a suspensão temporária do contrato de trabalho e a redução de jornada e/ou de salário, instituindo o pagamento, pelo Governo Federal, de até um salário mínimo ao trabalhador. Vale ressaltar que, no início das negociações, o governo Bolsonaro queria disponibilizar um auxílio emergencial de apenas 200 reais por família.
A FENATRAD orientou os sindicatos e as trabalhadoras sobre como acessar o Auxílio Emergencial, forneceu modelos de suspensão temporária do contrato de trabalho e reforçou a importância de o empregador continuar pagando o INSS, tendo em vista que a MP 936 dispensa o empregador dessa obrigação e determina que as trabalhadoras teriam que pagar o INSS, como contribuinte facultativa e com desconto bem maior, de 11% a 20%. A entidade também orientou que, na negociação da redução da jornada de trabalho, fossem acordados menos dias de trabalho, a fim de reduzir a exposição da trabalhadora ao coronavírus (FENATRAD, 2020e).
Apesar da recomendação do MPT na Nota Técnica 04/2020, quatro estados brasileiros (Pará, Maranhão, Rio Grande do Sul e Ceará) classificaram o trabalho doméstico como serviço essencial durante a pandemia em seus respectivos decretos instituindo o lockdown (suspensão total de atividades não essenciais). Para a FENATRAD, essas medidas adotadas pelos governadores penalizam as trabalhadoras domésticas, ao incluir os serviços domésticos em geral entre as
atividades essenciais, contrariando o preconizado pelo MPT. Em comunicação oficial, a Federação avalia que
a medida adotada é descabida, se baseia em pensamento arraigado do regime escravocrata que predominou legalmente no Brasil até 1888 onde ‘chova ou faça sol’, ‘na doença ou na saúde’ a população negra tinha que estar à postos para servir seus senhores. (FENATRAD, 2020f).
Em contraposição a esses decretos, a FENATRAD mobilizou uma campanha nacional para pressionar o MPT a fiscalizar a aplicação de suas próprias recomendações. Ainda como parte da luta pela não essencialidade do trabalho doméstico durante a pandemia, a Federação conseguiu criar um importante espaço de interlocução junto ao Congresso Nacional, quando, em julho de 2020, reuniu-se com o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), para demandar que o Projeto de Lei 2477/20, de autoria da deputada federal Sâmia Bonfim (PSOL- SP), entrasse na pauta de votação. O referido projeto determina que serviços domésticos não serão incluídos no rol de serviços essenciais e busca assegurar os direitos trabalhistas da categoria (FENATRAD, 2020g). O projeto segue aguardando o despacho do Presidente da Câmara dos Deputados, seis meses após ter sido apresentado.
Diante do desconhecimento generalizado tanto sobre o conteúdo da Emenda Constitucional 72 de 2013 (conhecida como “PEC das Domésticas”)8 quanto sobre as medidas de proteção ao trabalho doméstico remunerado tomadas especificamente em função da pandemia, a FENATRAD, em parceria com a organização feminista Themis – Gênero, Justiça e Direitos Humanos, lançou a campanha “Essenciais São Nossos Direitos”. Essa campanha tem por objetivo informar às trabalhadoras domésticas, aos empregadores e à população sobre medidas de proteção legal ao emprego doméstico.
Ainda como parte da luta dessas trabalhadoras pela sobrevivência durante a pandemia, os sindicatos organizaram campanhas para a doação de produtos de limpeza, em parceria com empresas privadas e campanhas transversais para a
8 Segundo o Estudo CAP Brasil: traçando caminhos para a valorização do trabalho doméstico, 83% dos empregadores e 70% das trabalhadoras domésticas desconhecem o conteúdo da “PEC das Domésticas” (vide nota 1). Disponível em <https://themis.org.br/wp-content/uploads/2020/07/ESTUDO- CAP-BRASIL-TRA%C3%87ANDO-CAMINHOS-PARA-VALORIZA%C3%87%C3%83O-DO- TRABALHO-DOM%C3%89STICO-REMUNERADO.pdf> Acesso em: 01/10/2020.
distribuição de cestas básicas, nas quais a Federação contou com o apoio de ONGs, igrejas e entidades da sociedade civil.
Ao longo desse período, representantes da Federação participaram de diversas lives e da elaboração de artigos divulgados em veículos da mídia e no meio acadêmico, como forma de amplificar suas vozes e demandas. O artigo “Guia para patroa feminista” elaborado por Luíza Batista, presidenta da FENATRAD, e Liana Cirne, advogada feminista e professora da Faculdade de Direito da UFPE, foi publicado no site da Mídia Ninja, e o artigo “Trabalhadoras domésticos e COVID-19 no Brasil”, escrito por Maria Izabel Monteiro, presidenta do sindicato das trabalhadoras domésticas do município do Rio de Janeiro, e Mary Garcia Castro, professora da UFRJ, foi publicado no site da FLACSO-Brasil.
Estes são exemplos concretos de mobilização social das trabalhadoras domésticas junto às suas redes e articulações, produzindo as ações de solidariedade e resistência/reexistência que constituem a base do que Bernardino-Costa define como interseccionalidade emancipadora (2015).
Apesar das conquistas alcançadas pela categoria em seu esforço contínuo de debate e mobilização pela garantia e ampliação de direitos, a realidade experimentada pela maior parte delas vem sendo a de continuar trabalhando, sob o risco de contaminação ou de demissão - 1,6 milhão de trabalhadoras domésticas já perderam o emprego durante a pandemia, segundo dados da PNAD Contínua do terceiro trimestre de 2020, uma queda de 25,5% nos postos trabalho para a categoria se comparada ao mesmo trimestre de 2019 (IBGE, 2020).
Os sindicatos e a FENATRAD também se destacaram como espaço para denúncias e aconselhamento jurídico para as trabalhadoras. Milca Martins, secretária- geral do Sindicato dos Trabalhadores Domésticos da Bahia (Sindoméstico), reuniu, já no início de abril, diversos casos de demissão, dispensa sem pagamento de direitos, redução do salário com manutenção ou aumento da carga horária trabalhada e contínua exposição ao risco de contrair o coronavírus.
Cleide Pinto, presidenta do Sindicato de Trabalhadoras Domésticas de Nova Iguaçu, no Rio de Janeiro, alertou para o uso irregular do Auxílio Emergencial por parte dos empregadores. Segundo Cleide, os patrões vêm suspendendo contratos de trabalho, deixando de remunerar as profissionais, que, no entanto, são obrigadas a
continuar prestando os serviços domésticos: “Ou seja, a doméstica continua trabalhando, mas quem passa a pagar o salário é o governo” (FENATRAD, 2020h).
Outra violação de direitos recorrente é a proibição da saída das trabalhadoras do local de trabalho, especialmente as cuidadoras de idosos, enfrentando cortes de salários, jornadas mais longas e quarentena compulsória na casa dos patrões. Observa-se o retorno a práticas que reforçam a exploração e o assédio contra as trabalhadoras da categoria, obrigadas a ficar disponíveis para servir seus patrões 24 horas por dia durante a pandemia, tendo a relação com a sua própria família cerceada nesse processo. O caso de Rosalia Alves, publicado no site estadunidense nacla.org e traduzido pela FENATRAD, ilustra bem essa combinação de sobrecarga de trabalho, sub-remuneração e cárcere privado com afastamento compulsório da família:
Durante 90 dias seguidos, Alves fez o trabalho outrora executado por três empregadas diferentes. A família demitiu duas funcionárias quando ocorreu o surto de coronavírus.
O homem de quem Alves cuidava no Tocantins exigia mais atenção: tinha que tirá-lo da cama, colocá-lo na cadeira de rodas, dar banho, trocar a fralda e a roupa dele, colocá-lo de volta na cadeira de rodas, dar café da manhã e aproximá-lo das janelas para tomar um banho de sol. Quando ela termina, é apenas a hora do almoço. Para além das tarefas habituais de cuidadora, Alves também cozinhava e limpava a casa. Ela recebia [...] menos de R$ 2.200, uma fração do que seus empregadores destinavam aos mesmos serviços antes da pandemia. Alves diz que não teve nenhum dia de folga, nem foi compensada pelos 12 fins de semana que passou trabalhando. Suas tentativas de negociar uma remuneração mais alta caíram em ouvidos surdos. Durante três meses, as interações de Alves limitaram-se ao casal e ao motorista da família, que a levava para dar uma olhada na sua própria casa a cada oito dias por cerca de duas horas, para que ela volte em seguida a cuidar dos entes queridos de outra família em tempo integral (FENATRAD, 2020i).
Efetivamente, o caráter colonial dessas relações de trabalho foi escancarado no contexto da pandemia de coronavírus, como reforça a presidenta do Sindicato dos Trabalhadores Domésticos do município do Rio de Janeiro, Maria Izabel Monteiro, em artigo publicado no site Notícia Preta e no site da FENATRAD:
Costuma-se falar que o trabalho doméstico é herança da escravidão (...) nesta campanha que estamos fazendo para proteger a categoria contra o coronavírus fomos criticadas, pois alguns empregadores não ficaram satisfeitos, porque não sabem fazer funcionar suas casas grandes sem uma mucama da senzala, mesmo com os Sindicatos da categoria pedindo medidas protetivas (FENATRAD, 2020j).
Como argumentamos anteriormente neste artigo, o caráter servil da exploração do trabalho doméstico pode ser compreendido lançando mão da noção de colonialidade. A raça - marcador central da categoria das trabalhadoras domésticas, majoritariamente formada por mulheres negras - serve à colonialidade ao determinar quais seres estão nessa posição subontológica e desumanizada, definida por Maldonado-Torres como “seres abaixo dos seres”, e, portanto, expostos a todo tipo de exploração. Esses “seres abaixo dos seres” são construídos a partir do que ele nomeia de uma “catástofre metafísica”:
Um ponto de partida para essa modernidade foi, portanto, o postulado de uma separação que quebrou com, ou pelo menos começou a tornar irrelevante, a noção de uma cadeia que conectava todos os seres humanos ao Divino. Isso é o que nomeio de catástrofe metafísica, uma catástrofe ao mesmo tempo ontológica, epistemológica e ética. A catástrofe metafísica inclui o colapso massivo e radical da estrutura Eu-Outro de subjetividade e sociabilidade e o começo da relação Senhor-Escravo. Isso introduz o que eu denominei em outro lugar de diferença subontológica ou diferença entre os seres e aqueles abaixo dos seres (Maldonado Torres, 2008). Isto é, a principal diferenciação entre sujeitos será menos uma questão de crença e mais de essência nessa nova ordem mundial (BERNARDINO-COSTA; MALDONADO TORRES; GROSFOGUEL, 2019, p. 37).
Um exemplo dessa posição subontológica foi o caso da trabalhadora doméstica de 61 anos, contratada em 1998 por uma família que morava no Alto de Pinheiros, bairro de classe alta em São Paulo, e que não recebia salário desde 2011. Ela foi encontrada em condições de trabalho análogas à escravidão, trancada em um depósito, sem acesso ao banheiro. A patroa, a executiva Mariah Corazza Üstündag, havia se mudado e abandonado a trabalhadora trancafiada durante a pandemia. A executiva foi presa e liberada após o pagamento de fiança no valor de 2.100 reais.
Outro caso que gerou intensa comoção e mobilização, principalmente entre ativistas do movimento negro, e que foi amplamente divulgado pela FENATRAD, em veículos da mídia nacional e internacional, foi a morte do menino Miguel Otávio, de cinco anos. Ele havia sido levado pela sua mãe, Mirtes Renata, à casa onde ela trabalhava como empregada doméstica, num bairro de classe alta no Recife (PE). Mirtes também não foi dispensada pelos seus empregadores para cumprir a quarentena; ela relatou, inclusive, que continuou trabalhando mesmo após contrair o vírus. Mirtes, que havia recebido ordens para passear com o cachorro da família (função que não está prevista entre as atribuições das trabalhadoras domésticas),
deixou seu filho aos cuidados da patroa, Sari Corte Real, que colocou Miguel sozinho no elevador de serviço do prédio, de onde ele saiu já no nono andar e caiu no duto de ar do edifício, falecendo. Sari pagou 20 mil reais de fiança por homicídio culposo e saiu em liberdade. Em 02/06/20, ela foi indiciada por abandono de incapaz. A primeira audiência do caso foi realizada no dia 03/12/2020. Mirtes acusa a defesa de Sari Corte Real de adultização de Miguel, culpando a vítima pelo seu comportamento, ao passo que a ré foi infantilizada pela defesa, tratada como incapaz.
Em todos esses casos, observa-se que os empregadores tomaram decisões, agravadas pelo contexto da pandemia de COVID-19, que apontam para o aviltamento e desumanização das trabalhadoras domésticas. Aqui elencamos a interdição à possibilidade de aderir à quarentena, a exposição das trabalhadoras ao risco conhecido de contaminação no próprio ambiente de trabalho, o desprezo pela vida de crianças negras e relações de trabalho que passam ao largo dos direitos básicos dos trabalhadores, culminando na emblemática escravização moderna como indicadores dessa desumanização.
O trabalho doméstico passou a ocupar as produções acadêmicas a partir dos anos 1970, como resultado dos questionamentos e discussões levantados por estudos feministas, a partir do contexto francês, que denunciavam a invisibilidade construída em torno deste trabalho como parte da estrutura de dominação e subalternização de mulheres pelo patriarcado (HIRATA; KERGOAT, 2007). A desigualdade na distribuição das atividades domésticas e de cuidado entre os gêneros e a naturalização da atribuição desse trabalho ao gênero feminino motivaram a luta por uma divisão mais igualitária dessas tarefas entre homens e mulheres (HIRATA, 2014).
Para Hirata e Kergoat (2007) a divisão sexual do trabalho confere à unidade familiar um caráter puramente reprodutivo da vida, apartado do valor produtivo e remunerado do trabalho desempenhado fora de casa. Essa estrutura permite também a manutenção desse trabalho na esfera privada ou privatizada - para aquelas que podem pagar, transferindo-o para outra mulher. Assim esse trabalho segue
invisibilizado e passa ao largo de políticas institucionais que socializem as atividades de reprodução da vida.
Há uma crescente produção feminista sobre a “crise do cuidado”, que se caracteriza por múltiplas pressões sobre aquelas que efetuam, de forma naturalizada, os processos de reprodução social com pouca ou nenhuma ajuda institucional. A crise do cuidado evidencia a incompatibilidade entre as necessidades de cuidados e a disponibilidade de pessoas (principalmente as mulheres) para assumi-las (PÉREZ OROZCO, 2014). Para Fraser (2016) sem esse trabalho, geralmente realizado sem remuneração, não haveria cultura, economia ou organização política. Ela afirma que a sociedade capitalista atual opera para minar os esforços de manutenção da vida, gerando uma crise de reprodução social sem precedentes.
O Brasil é conhecido por não possuir políticas públicas universais de cuidado; os equipamentos existentes, como creches e asilos, bem como o cuidado domiciliar de idosos são iniciativas limitadas a determinados contextos, funcionando como um apoio estatal específico e não como uma política pública consolidada e ampla de cuidado (CAMARANO, 2012; ENGEL; PEREIRA, 2015). Assim, a principal medida tomada pelas classes médias e altas para garantir esses serviços, é a contratação de empregadas domésticas, babás e cuidadoras de idosos. Todas as mulheres de todas as classes sociais são sobrecarregadas pelas demandas de reprodução social, mas são as mulheres pobres que ocupam esse mercado de trabalho, reduzindo suas possibilidades de trabalhar em outros contextos (PINHEIRO et al., 2019). Elas seguem sendo as responsáveis pelo cuidado em suas próprias famílias, e frequentemente, precisam contar com a solidariedade de outras familiares e/ou vizinhas para garantirem o cuidado em suas próprias residências (ENGEL; PEREIRA, 2015).
O contexto da pandemia de COVID-19 aprofunda essa crise do cuidado, ao tornar ainda mais escassos os espaços públicos e institucionais de reprodução da vida, como creches, escolas e asilos. A situação foi agravada para as trabalhadoras domésticas e outras mulheres pobres pela restrição de suas redes tradicionais de apoio, formadas geralmente por mulheres mais velhas da família, uma vez que essas são parte do grupo de risco (REIS et al., 2020).
Muitas mulheres passaram a assumir ainda mais funções durante a pandemia, como aponta pesquisa realizada pelas organizações feministas Gênero e Número e Sempreviva Organização Feminista (SOF), da qual participaram mais de 2600
mulheres do país. Segundo a pesquisa, 50% das mulheres passaram a cuidar de alguém durante a pandemia; para as mulheres do campo, esse número sobe para 62%. Para 72% das participantes, houve um aumento da necessidade de monitoramento e companhia.
Como reflexo da necessária suspensão das aulas presenciais e do início das aulas remotas para crianças e adolescentes, as trabalhadoras domésticas também experimentaram um aumento das atividades dentro dos seus próprios lares, mas apenas uma pequena parte dessas trabalhadoras foi liberada das suas atividades para cumprir a quarentena de forma remunerada. Além disso, boa parte do aumento do trabalho doméstico nas casas das classes médias e altas foi transferido para as empregadas domésticas. Desse modo, esse grupo de mulheres experimenta a sobrecarga do trabalho de cuidado decorrente da pandemia de forma mais acentuada
– elas acabam tendo mais trabalho e menos apoio.
A relação entre COVID-19 e trabalho doméstico no Brasil é um retrato da vulnerabilidade social dessa categoria profissional. As duas primeiras pessoas mortas por COVID-19, nas duas maiores cidades do país, foram trabalhadores domésticos, provavelmente expostos ao vírus pelos seus empregadores que retornavam de viagens ao exterior. Em São Paulo, um homem que trabalhava como porteiro no bairro Paraíso, zona sul da cidade, foi a primeira morte documentada, em 17 de março. No Rio de Janeiro, a primeira vítima fatal da COVID-19 foi uma trabalhadora doméstica do bairro de classe alta Alto Leblon, que contraiu a doença de sua patroa recém regressada de uma viagem à Itália (então epicentro da doença). Ela apresentava sintomas, mas, ainda assim, submeteu a sua funcionária ao risco de contrair o vírus.
Essa situação ilustra o grande risco de contágio pelo coronavírus ao qual as trabalhadoras domésticas estão expostas. A maior parte das trabalhadoras que compõem a categoria está na informalidade e, portanto, à margem das escassas medidas adotadas pelo Governo Federal para preservação do emprego. Assim, aprofundam-se as desigualdades que elas já experimentam, na medida em que boa parte delas não possui condições mínimas para garantir a sua própria subsistência durante a pandemia ou de ter o seu risco de exposição ao vírus mitigado. A redução do valor do auxílio emergencial no segundo semestre de 2020 e sua suspensão a partir de janeiro de 2021 agravaram ainda mais esse quadro.
A persistência do trabalho doméstico como função desproporcionalmente reservada às mulheres negras no Brasil não se explica unicamente pelas desigualdades econômicas entre os diferentes grupos raciais. Olhar para a colonialidade que sustenta as relações sociais no país fornece ferramentas analíticas para compreender a produção de subjetividades, discursos e estruturas que naturalizam a mulher negra como principal responsável pelo cuidado reprodutivo. Essa colonialidade reforça o caráter subserviente e racializado do emprego doméstico, fundamentando sua desvalorização.
Da mesma forma, as análises sobre a divisão do trabalho de reprodução da vida que levam em consideração apenas a assimetria entre os gêneros também não explicam a transferência do trabalho de cuidado de famílias de classes médias e altas para mulheres negras e empobrecidas. O trabalho doméstico remunerado explicita de forma privilegiada a divisão racial e sexual do trabalho, ao evidenciar dinâmicas de subordinação que reificam o lugar historicamente reservado às mulheres negras na organização social brasileira.
O aumento da carga de trabalho doméstico durante a pandemia não é uma experiência individualizada das mulheres, mas sim experimentada de forma coletiva entre elas (LEÃO et. al, 2020). Além da pandemia, a postura ultraliberal do governo Bolsonaro, que impôs contingenciamento de gastos com educação, saúde e assistência social, transferiu ainda mais trabalho para o ambiente doméstico, naturalizando a desresponsabilização desse mesmo Estado em relação ao trabalho reprodutivo.
Na medida em que as demandas de cuidado crescem concomitantemente ao aumento do número de demissões das trabalhadoras domésticas, o atual contexto brasileiro nos coloca diante de uma profunda crise do cuidado e das desigualdades estruturais que a conformam. A precariedade genderizada (LEÃO et. al, 2020) vivenciada pelas trabalhadoras domésticas vem sendo amplamente denunciada e publicizada pela categoria. As formas de ação elencadas neste artigo dão mostras de uma construção histórica que objetiva suplantar as iniquidades ancoradas na interseccionalidade de gênero, raça e classe, a fim de garantir direitos e combater a exploração dessas trabalhadoras.
A particularidade brasileira na gestão da pandemia reside na “existência de uma estratégia institucional de propagação do vírus, promovida pelo governo federal sob a liderança do Presidente da República”, o que contraria a tese da incompetência ou negligência do governo (CEPEDISA; CONECTAS, 2021, p. 7). Tal estratégia se esconde por trás do discurso de priorização do funcionamento da economia, e tem como efeitos o aprofundamento das desigualdades e a naturalização de novas formas de exploração. A luta das trabalhadoras domésticas fornece caminhos baseados na solidariedade de classe, na proteção de direitos e na valorização do trabalho como centrais para a condução da atual crise sanitária.
Um Estado efetivamente comprometido com a garantia de direitos e com o bem-estar da população deveria ser permeável às reivindicações trazidas pelo movimento organizado de trabalhadoras domésticas, uma vez que suas propostas ultrapassam em muito as demandas específicas da categoria. Além disso, um olhar sobre a economia e as políticas públicas que incorpore uma perspectiva feminista, anticapitalista e antirracista faz-se urgente. Contar com a disponibilidade de mulheres para exercer cada vez mais atividades que garantem a reprodução social da vida é naturalizar a sua superexploração para a manutenção de um modo de produção capitalista.
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V.19, nº 38, 2021 (jan-abr) ISSN: 1808-799 X
Jéssyka Kaline Augusto Ribeiro2 Guilherme Silva de Almeida3
Resumo
O artigo é parte de um esforço para compor uma análise de reflexões sobre as condições de vida das trabalhadoras e trabalhadores trans no atual contexto da pandemia da Covid-19. Nesse processo é importante destacar a dificuldade da inserção das travestis, das mulheres transexuais e dos homens trans no mercado de trabalho que, em contexto de crise do capital, exploração intensa do trabalho e aumento do desemprego a situação se agrava ainda mais. Com a pandemia da Covid-19 ocorreram mudanças significativas, principalmente na vida das que são mais impactadas pela pobreza e desigualdade social.
Palavras-Chave: Trabalho; Transexualidade; Covid-19.
¿DE QUIÉN ES EL CUERPO QUE COMPONE LA FUERZA DE TRABAJO? REFLEXIONES SOBRE TRABAJADORAS/ES TRANS NO CONTEXTO DA COVID-19
Resumen
El artículo es parte de un esfuerzo por componer un análisis de reflexiones sobre las condiciones de vida de los trabajadores y trabajadores trans en el contexto actual de la pandemia Covid-19. En este proceso, es importante resaltar la dificultad de insertar travestis, mujeres transexuales y hombres trans en el mercado laboral, quienes, en el contexto de una crisis de capital, intensa explotación laboral y creciente desempleo, la situación se agrava aún más. Con la pandemia de Covid-19, se produjeron cambios significativos, principalmente en las vidas de los más afectados por la pobreza y la desigualdad social.
Palabras Clave: Trabajo; Transexualidad; COVID-19.
OF WHOM IS THE BODY THAT COMPOSES THE LABOR FORCE? REFLEXIONS ABOUT TRANS WORKERS IN THE CONTEXT OF COVID-19
Abstract
The article is part of an effort to compose an analysis of reflections on the living conditions of workers and trans workers in the current context of the Covid-19 pandemic. In this process, it is important to highlight the difficulty of inserting transvestites, transgender women and trans men in the labor market, who, in the context of a capital crisis, intense labor exploitation and rising unemployment, the situation is even worse. With the Covid-19 pandemic, significant changes occurred, mainly in the lives of those most impacted by poverty and social inequality.
Keywords: Work; Transsexuality; Covid-19.
1 Artigo recebido em 13/11/2020. Primeira avaliação em 25/11/2020. Segunda avaliação em 02/12/2020 Aprovado em 27/01/2021. Publicado em 25/02/2021.
DOI: https://doi.org/10-22409/ tb.v19i38.47135
2 Jessyka Kaline Augusto Ribeiro. Doutoranda no Programa de Pós Graduação em Serviço Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (PPGSS-UERJ). Assistente Social na ONG Casinha Acolhida no Rio de Janeiro-RJ. E-mail: jsk.ribeiroz@gmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8006-5629. Lattes: http://lattes.cnpq.br/4094295442168877.
3 Guilherme Silva de Almeida. Doutor em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da UERJ. Professor Adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ. E-mail: gsdealmeida@gmail.com ORCID:https://orcid.org/0000-0001-7355-6606. Lattes: http://lattes.cnpq.br/2981461762793065.
O processo histórico de inserção das mulheres como trabalhadoras evidencia que essa inserção não foi a mesma para mulheres brancas e mulheres negras. Scott (1991) enfatiza que durante o período de industrialização na Inglaterra do século XIX, a força feminina era predominantemente jovem, solteira e associada ao trabalho barato, porém, nem todo trabalho barato era apropriado para ela. Os trabalhos para os quais as mulheres eram contratadas eram definidos como “trabalho de mulher”, supostamente adequados, de algum modo, às suas capacidades físicas e ao seu nível de produtividade.
No que diz respeito às mulheres negras, Carneiro (2003) realça que o movimento de mulheres negras foi pondo em relevo a distância no mercado de trabalho entre mulheres brancas e negras, denunciando o peso do racismo e da discriminação racial nos processos de seleção e alocação da mão-de-obra feminina.
Atualmente, deparamo-nos com outro processo de complexidade analítica semelhante: o da inserção das travestis4, das mulheres transexuais e dos homens trans5 no mercado de trabalho. Uma pesquisa desenvolvida por Carrara & Ramos (2006) demonstrou que a população trans constitui o grupo majoritário entre os(a)s que não são selecionado(a)s para um emprego ou entre os (as) que foram demitidos(a)s em razão de sua identidade de gênero. Somado a esse processo estão os baixos níveis de escolaridade dessa população e, consequentemente, as diminuídas possibilidades de acesso ao mercado de trabalho. O tratamento que é, por muitas vezes, dado a estas pessoas, é baseado em estereótipos e preconceitos que, consequentemente, desestimulam a adesão de muitas delas à escolarização e a outros espaços de sociabilidade.
No contexto de crise do capital, exploração intensa do trabalho, desemprego estrutural e destruição de direitos conquistados historicamente pelos(as) trabalhadores(as), o conservadorismo tem encontrado espaço para se reatualizar, motivando atitudes autoritárias, discriminatórias, irracionalistas e preconceituosas.
4 Kulick (2008) aponta que a existência de travestis é registrada em toda a América Latina, mas em nenhum país elas são numerosas e conhecidas como no Brasil, onde alcançam visibilidade notável tanto no espaço social, quanto no imaginário cultural.
5 Para efeito deste artigo, trataremos essas diferentes identidades a partir da expressão “população trans”.
Preconceitos6 são orientações de valores cristalizados na sociedade, organizados a partir de precedentes históricos. Eles se constituem como uma expressão das relações conservadoras da sociabilidade burguesa e de seu individualismo que, por sua vez, remete à exploração, cada vez mais bárbara, do trabalho pelo capital. A banalização destes fundamentos representa um desvalor que emerge nas mais diferentes formas da vida cotidiana, inclusive no âmbito da diversidade sexual e de gênero (CFESS, 2016):
As opressões situam-se, sobre todas as formas que ousam constituir- se como o “outro” em relação à régua cortante que mede a normalidade, na constituição de sujeitos que se materializam como seres humanos com cores de pele (nomeada colonialmente por “raça”); características sexuais, orientações distintas de seus afetos; performatividades singulares como pessoas e pertencimentos de classe social – estabelecidas por condições materiais concretas, mas também por identidades socioculturais construídas espacialmente (OLIVEIRA et al, 2019, p.34).
A concepção hegemônica do que venha a ser o trabalho desempenhado pela população trans é pautada em preconceitos e estereótipos diversos, e, mesmo que ocorra a oferta de trabalhos para essa população, esta acaba sendo feita de trabalhos extremamente precários. Há, de fato, inserção da população trans no mercado de trabalho, mas o que podemos afirmar é que o mercado de trabalho em suas características é majoritariamente cisgênero.
Com a pandemia da Covid-19 ocorreram mudanças significativas no que concerne à vida das pessoas trans no Brasil, em especial para aquelas mais impactadas diretamente pela pobreza e pela desigualdade social. Observamos um número cada vez mais crescente de trabalhadoras/es desempregadas/os.
A permanente existência de uma massa de trabalhadoras/es desempregadas/os é uma especificidade do modo de produção capitalista. A acumulação de capital depende da exploração da força de trabalho e da existência de um exército industrial de reserva, que permite aos capitalistas impor salários cada vez mais baixos, em especial para aquelas/es trabalhadoras/es que não dispõem de mão de obra qualificada. As pessoas trans são parte dessa massa.
6 De acordo com Heller (2008), os preconceitos são obra da própria integração social, o desprezo e antipatia pelo “outro” ou pelo que é considerado diferente, são tão antigos quanto a própria humanidade.
O modo de produção capitalista se reproduz na busca constante do lucro, portanto, não existe capitalismo sem acumulação de capital. Para Marx (2017), durante a jornada de trabalho o tempo de trabalho se divide em duas partes, primeiro a(o) trabalhador(a) produz o valor correspondente ao seu salário (tempo de trabalho necessário), e em outro momento produz o valor excedente que é extraído pelo capitalista (tempo de trabalho excedente), a chamada mais-valia.
Portanto, o que interessa ao capitalista é justamente o processo de valorização, pois é justamente nele que se produz a mais-valia. A aplicação de mais-valia como capital ou conversão de mais-valia em capital é o que chamamos de acumulação de capital.
No processo da acumulação capitalista se produz uma população trabalhadora relativamente supérflua, em uma condição essencial para a subordinação do trabalho aos propósitos do capital. Para Marx (2017), ao produzir a acumulação do capital, a população trabalhadora produz, em proporções crescentes, os meios que fazem dela uma população supérflua. Essa população está sempre presente, mantém o funcionamento da lei geral da acumulação e constitui o exército industrial de reserva. Podemos afirmar que a população excedente é um produto necessário da acumulação ou do desenvolvimento da riqueza no sistema capitalista; ela se torna a alavanca da acumulação capitalista e, mesmo, condição de existência do modo de produção capitalista: “ela fornece a suas necessidades variáveis de valorização o material humano sempre pronto para ser explorado, independente dos limites do verdadeiro aumento populacional” (MARX, 2017, p. 707).
A superpopulação relativa existe em todos os matizes possíveis. Todo trabalhador a integra durante o tempo em que está parcial ou inteiramente desocupado. Se levarmos em conta as grandes formas, periodicamente recorrentes, que a mudança de fases do ciclo industrial lhe imprime, fazendo com que ela apareça ora de maneira aguda nas crises, ora de maneira crônica nos períodos de negócios fracos, a superpopulação relativa possui continuamente três formas: flutuante, latente e estagnada (MARX, 2017, p. 716).
Dessa forma, observamos que grande parte da população trans está no segmento mais baixo da superpopulação relativa, a estagnada, a que habita a esfera do pauperismo. Tendo em vista que possui ocupações irregulares e precárias, de acordo com a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA, 2020),
apenas 10% da população trans está inserida no mercado de trabalho formal. O que implica em que suas condições de vida e de trabalho estejam abaixo do nível médio da classe trabalhadora e, justamente por isso, possam ser facilmente um alvo da exploração do capital.
O pauperismo constitui o asilo para inválidos do exército trabalhador ativo e o peso morto do exército industrial de reserva. Sua produção está incluída na produção da superpopulação relativa, sua necessidade na necessidade dela, e juntos eles formam uma condição de existência da produção capitalista e do desenvolvimento da riqueza (MARX, 2017, p. 719).
O pauperismo como resultado do desenvolvimento das forças produtivas do trabalho social é uma especificidade da produção fundada no capital. Nesse processo, observa-se que a acumulação de miséria é relativa à acumulação do capital. Para Iamamoto (2015), o capital, em seu movimento de valorização, produz a invisibilidade do trabalho e a banalização da vida humana.
O trabalho se encontra no centro da questão social7, que evidencia a imensa fratura entre o desenvolvimento das forças produtivas do trabalho social e as relações sociais que o impulsionam. Fratura que se manifesta na “banalização da vida humana, na violência escondida no fetiche do dinheiro e da mistificação do capital ao impregnar todos os espaços e esferas da vida social” (IAMAMOTO, 2015, p. 144). O trabalho assalariado é um dos pilares fundamentais para o sucesso da reprodução do capital, uma vez que é através dele que o capital consegue exercer controle absoluto sobre a força de trabalho.
Quando pensamos na inserção da população trans no mercado de trabalho, é preciso considerar que a vida deste segmento é marcada por processos de opressão e violência, o que nos coloca a necessidade de estarmos atentos (as) às narrativas de trajetória de vida, que para cada sujeito é única e específica. Então, seria impossível a tentativa de realizar uma única análise que estabelecesse de forma conclusiva a situação geral das pessoas trans trabalhadoras no Brasil. No entanto, é importante apontar características que tocam um número considerável de travestis e transexuais em suas histórias de vida, conforme já foi apontado em algumas
7 Entendemos a questão social como um fenômeno que se apresenta com novas configurações. Para Cisne (2015), essas novas configurações são determinadas pelo processo de reestruturação do capital, ou seja, pelas novas formas de gestão e/ou estratégias do modo de produção capitalista para se manter e se fortalecer na sociedade.
pesquisas (PELÚCIO, 2009; KULICK, 2008; BENTO, 2006; LEITE JR., 2011;
OLIVEIRA, 2016; MARINHO, 2018; entre outras).
Nessas pesquisas é possível elencar alguns condicionantes que atuam de maneira singular em cada trajetória individual e que se constituem como dificuldades para a inserção no mercado de trabalho. Alguns desses obstáculos seriam: a dificuldade de fazer-se respeitar em seu processo de transição de gênero; a expulsão de casa e a falta de apoio da família; a perda progressiva das relações comunitárias e familiares; a falta de acesso à saúde pública; e a falta de recursos para recorrer à assistência à saúde privada. Podemos elencar também o êxodo que várias pessoas trans empreendem de seus lugares de origem em direção aos grandes centros urbanos, conforme Pelúcio (2009) constata na trajetória das travestis: “mover-se na busca de um corpo, de um lugar habitável, de uma vida longe da abjeção, da pobreza e violência doméstica é um enredo comum” (PELÚCIO, 2009, p. 47).
Há também as diferentes formas de violência comunitária e de violência institucional no âmbito das ações governamentais, como a evasão (ou expulsão?) escolar e o assédio sofrido com o despreparo e/ou o desinteresse do Estado e das instituições de ensino para constituir acessibilidade para essa população.
De acordo com a Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT, 2016), o grupo populacional que mais sofre discriminação na escola é o de transexuais e travestis. Para muitos(as), a escola se constitui como uma das primeiras instituições que as/os violentam, fazendo com que abandonem o espaço que impõe normas de se viver a sexualidade e identidade de gênero baseadas na heteronormatividade8, o que acaba alimentando a ideia da travestilidade e da transexualidade como anormais e doentias:
Aqueles e aquelas que transgridam as fronteiras de gênero ou sexualidade, que as atravessam ou que, de algum modo, embaralham e confundem os sinais considerados "próprios" de cada um desses territórios, são marcados como sujeitos diferentes ou desviantes. Tal como atravessadores ilegais de territórios, como migrantes clandestinos que escapam do lugar onde deveriam permanecer, esses sujeitos são tratados como infratores e devem sofrer penalidades. Acabam por ser punidos, de alguma forma, ou na melhor das
8 O processo de normatização das identidades é chamado de heteronormatividade, que é o “enquadramento de todas as relações – mesmo as supostamente inaceitáveis entre pessoas do mesmo sexo – em um binarismo de gênero que organiza suas práticas, atos e desejos a partir do modelo do casal heterossexual reprodutivo” (PINO, 2007, p. 160). Pela lógica da heteronormatividade, todas as pessoas devem ser heterossexuais e todos os bens produzidos pela sociedade, sejam eles materiais ou simbólicos, são destinados para quem vive segundo seus preceitos.
hipóteses, tornam-se alvo de correção. Possivelmente, experimentarão o desprezo ou a subordinação (LOURO, 2004, p. 89).
Nesse sentido, a própria concepção de trabalho para a população trans é pautada dentro de uma heteronormatividade – mas não só - o que acaba limitando e dificultando a demanda de empregos existentes, e favorecendo que trabalhos precários sejam naturalizados como mais frequente realidade. As dificuldades na obtenção de um emprego se constituem a partir de condicionantes que atuam de maneira específica na trajetória singular de cada sujeito. Observa-se que existe um controle dos corpos nas relações sociais, dessa forma, nem todos os corpos serão considerados aptos para todo tipo de atividade. Esse controle se exerce pois:
[...] cada sociedade ou cada grupo social imprime marcas em seus membros, tanto através de inscrições físicas (tatuagens, circuncisões, modelamento de determinada parte do corpo etc.), como estéticas (roupas, acessórios) e comportamentais (formas de andar, sentar, repousar etc.). O pertencimento social é, dessa forma, corporalmente inscrito, podendo ser identificado pelos demais membros daquela sociedade. Essas marcas corporais podem corresponder a diferentes situações – como classe social, faixa etária, etnia, posição social etc.
– e, nesse sentido, indicam estados passageiros ou permanentes dos indivíduos (VÍCTORA et al, 2000, p.20)
A questão da sexualidade e da identidade de gênero, portanto, não é o único marcador de diferenças e organizador de desigualdades sociais, existindo também uma generificação das profissões/ocupações e uma cromatização das profissões/ocupações, entre outras formas de classificação dos corpos e lugares sociais. Não há uma única regra geral aplicável sempre; esses marcadores interagem de formas muito diversas. Conforme acentua Brah (2006), tais marcadores nunca agem isoladamente, costumam se combinar para reforçar diferenciações e exclusões; agem em articulação, mantêm relações de conexão e eficácia através dos quais as coisas são articuladas, tanto por suas diferenças como por suas semelhanças.
É importante destacar que não existem dados estatísticos sobre o número e o quantitativo exato da população trans empregada no mercado de trabalho. Não há um registro oficial, mas de acordo com a ANTRA (2020), cerca de 90% das pessoas trans possuem o trabalho sexual como fonte de renda. Ativistas do movimento LGBTI+ afirmam que, como muitas pessoas trans estão registradas a partir do nome que
consta nos documentos de Registro Geral (RG)9 a partir das Secretarias de Segurança Pública (e não de seus nomes sociais), torna-se difícil distingui-las do restante da população desempregada, subempregada ou empregada. Além disso, existe uma parte dessa população que já fez a requalificação civil (alteração de nome e sexo nos documentos) e que, portanto, encontra-se igualmente dispersa na população cisgênera. Haveria, desse modo, dificuldades em identificar e dimensionar estes(as) trabalhadores(as) e poucas pesquisas que trabalham o tema entre pessoas trans tem sido visibilizadas publicamente.
E se existem dúvidas quanto à qualidade das ocupações executadas por essa população específica, para além do desemprego ou subemprego, há também o desafio da violência presente nas mais diversas expressões de acirramento da Questão Social. Connel (2014) aponta que as práticas de violência constituídas por uma ação que “ou destrói ou danifica corpos” são estruturadas socialmente e, em grande medida, são geradas pela própria dinâmica social, como a violência urbana e o genocídio da população negra. Ela é aplicada nas práticas rotineiras, antes socialmente invisíveis, de violência doméstica e de abuso sexual, até mesmo dentro do próprio ambiente familiar.
Os preconceitos e estereótipos que circundam a população trans favorecem seu encaminhamento a trabalhos extremamente precarizados. Ela está inserida no mercado de trabalho em espaços diversos. Está no trabalho doméstico10, no trabalho sexual11, no trabalho eventual (por demanda), às vezes nas artes e na moda, em atividades ilícitas, como operadores/as de telemarketing12 e muitas/os nas atividades informais (ambulantes, faxineiras, lavadores de carro, feirantes, cabeleireiras, barmen, freelancers). E aqui destacamos as/os trabalhadoras/es dos serviços de entrega por
9 Desde 2019, a alteração de documentos civis de pessoas trans foi repassada do Poder Judiciário, os cartórios (sem necessidade de cirurgia e/ou de diagnósticos médicos e psiquiátricos).
10 Importante destacar a respeito do trabalho doméstico que quando se observa dados recentes, verifica-se que o trabalho doméstico continua sendo exercido majoritariamente por mulheres, conforme pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no ano de 2015, o percentual de mulheres foi de 92,00%, já o de homens foi de apenas 8,00%. Tais informações demonstram claramente um número consideravelmente superior de mulheres inseridas nessa atividade.
11 Adoto aqui o uso termo trabalho sexual em oposição à prostituição (frequentemente vinculado ao crime, ao desvio, à necessidade de “correção”, ao estigma e à vergonha), como trabalhador/a do sexo entende-se aqui, todas/os aquelas/es que trocam serviços sexuais por alguma forma de ganho econômico, incluídas aí todas as atividades da indústria do sexo (RAMALHO, 2012).
12 Marinho (2018) abordou a presença de pessoas trans como operadores/as de telemarketing. A pesquisadora demonstrou ser uma atividade comum a jovens e marcada por intensa exploração e precarização das condições de trabalho, mas ainda assim, um importante nicho de sobrevivência.
aplicativo13, que vem aumentando consideravelmente nos últimos anos e, ainda mais, no contexto da pandemia da covid-19.
Além destas atividades previamente mencionadas, vale lembrar que há aquelas/es que realizam outras atividades formais14, o que nos leva a afirmar que há, de fato, inserção da população trans no mercado de trabalho.
Pouco se tem produzido academicamente no Brasil sobre o mercado de trabalho para a população trans. Algumas pesquisas vêm demonstrando que existem desigualdades sociais que permeiam a vida, especialmente das travestis. Destaco aqui o trabalho desenvolvido por Oliveira (2016), que demonstra que as travestis pertencem a um dos segmentos mais subalternizados da classe trabalhadora e que vive particularidades no cotidiano do mercado de trabalho.
Já a pesquisa de Hartmann (2017), apontou para a existência de fortes resistências por parte das empresas privadas e do Estado em criar alternativas para inserir formalmente pessoas trans no mundo do trabalho. A pesquisa identificou que elas estão, de um modo geral, em empregos subalternos e quase sempre sem segurança financeira, sem estabilidade de vínculo empregatício e sem qualquer direito trabalhista.
Há diversas formas de violação de direitos, que ocorrem em casa, na rua, na escola e no ambiente de trabalho. Não é raro identificar depoimentos em que travestis e transexuais são violentados/as ao serem tratados/as de modo desrespeitoso e humilhante. A pesquisa desenvolvida por Rondas & Machado (2015), por exemplo, sobre a inserção de travestis no mundo do trabalho, demonstra que as formas de violência vividas nos espaços de trabalho são de abuso de autoridade, assédio sexual baixa remuneração e impossibilidade de promoções ou de ocupação de cargos de chefia.
13 De acordo com uma reportagem da BBC News Brasil realizada em maio de 2019, que conversou com dezenas de entregadores da cidade de São Paulo, os ciclistas ouvidos pela reportagem relataram fazer jornadas de mais de 12 horas diárias, trabalharem muitas vezes sem folgas e até dormirem na rua para emendarem um horário de pico no outro, sem precisar voltar para a casa distante. Para Antunes (2018), estamos presenciando a expansão da chamada uberização do trabalho, um novo estágio de exploração do trabalho e da terceirização. Trabalhadores/as com seus instrumentos de trabalho, arcam com suas despesas de seguridade, com os gastos de manutenção do carro, moto ou bicicleta, alimentação e limpeza: “enquanto o aplicativo – na verdade, uma empresa privada global - apropria-se do mais-valor gerado pelo serviço dos motoristas, sem preocupações com deveres trabalhistas historicamente conquistados pela classe trabalhadora (p.35).
14 Aqui, foi considerada uma ocupação formal, aquelas pessoas que são assalariadas com carteira, servidores/as públicos e trabalhadores/as por conta própria, contribuintes para a previdência social (CARDOSO, 2013).
Também é observada a própria não legitimação do nome social, regulamentado pela Portaria n. 1.036/2015 do Ministério do Trabalho (MT), e pelo Decreto Presidencial Nº 8.727/2016, que dispõe sobre a possibilidade do uso do nome social e do reconhecimento da identidade de gênero de pessoas travestis e transexuais no âmbito da administração pública federal.
A partir da década de 1970, as transformações operacionalizadas pela ofensiva do capital, em resposta à crise estrutural, resultaram na banalização da vida humana e no agravamento das desigualdades socioculturais, em meio ao desenvolvimento desigual e combinado entre as nações e, no interior destas, entre as classes e grupos sociais.
Nesse sentido, é preciso destacar a complexidade que marca a constituição da classe-que-vive-do-trabalho15, diante desse emaranhado de contradições, postas pela sociabilidade capitalista. Foi nesse período que o capital implementou um processo de reestruturação em escala global, objetivando tanto a recuperação do seu padrão de acumulação, quanto fortalecer sua hegemonia no espaço produtivo.
Assiste-se a intensas mudanças na organização, gestão e consumo da força de trabalho, avançando na opressão da classe que vive do trabalho, em nome dos mecanismos materializados pela reestruturação produtiva, o que acarretou a perda de direitos historicamente conquistados. Dessa forma, o capital, veio “redesenhando novas e velhas modalidades de trabalho – o trabalho precário – com o objetivo de recuperar as formas econômicas, políticas e ideológicas da dominação burguesa (ANTUNES, 2009, p. 233)”. Nestes termos, o capital elaborou suas estratégias de reação para reverter a queda da taxa de lucros, através da mundialização da economia e da ascensão do neoliberalismo.
Para Barroco (2011), esses processos imprimem uma nova dinâmica no conjunto das relações sociais, marcadas pela radicalização da alienação e mercantilização da vida social, fazendo emergir o problema axial da vida cotidiana na
15 A utilização do termo classe-que-vive-do-trabalho vem, de acordo com Antunes (2003), com o objetivo de dar ênfase à noção ampliada de classe. O autor constrói uma argumentação que demonstra e reafirma a nova composição assumida pela classe trabalhadora hoje, sem negar as profundas transformações que o proletariado passou em seu interior, fundamentalmente nas quatro últimas décadas. Ao contrário, Antunes enfatiza algumas dessas mudanças, sem desconsiderar, no entanto, que a efetividade, processualidade e concretude da classe permanecem vivas.
atualidade: a reificação das relações sociais. Nessas condições, foi implementado um modo de vida orientado pelo consumo, pela competitividade e pelo individualismo, e esse processo intervém em todas as dimensões da vida social, constituindo o chamado ethos burguês, cujos valores se apoiam no princípio da propriedade privada. Nesse cenário de profundas mudanças que incidiram na vida cotidiana dos sujeitos, a ideologia dominante cria e reforça uma cultura transfóbica constituída por discursos sociais de inferiorização da sexualidade não heterossexual:
A ideologia dominante, patriarcal-racista-capitalista, penetra na consciência dos indivíduos devido a naturalização das relações de dominação e exploração que a alienação produz. Essa naturalização dificulta a possibilidade de se pensar e agir de forma transformadora. Com isso, muitos indivíduos não percebem essas relações como tais [de dominação e exploração] ou, quando percebem, não acham possível alterá-las (CISNE, 2014, p. 95).
De acordo com Antunes (2011, p. 80) “o valor de uso das coisas é minimizado, reduzido e subsumido ao seu valor de troca. Mantém-se somente enquanto condição necessária para integralização do processo de valorização do capital, do sistema produtor de mercadorias”, ou seja, o trabalho abstrato posto como dispêndio da força de trabalho, é elemento determinante da acumulação capitalista através da mais-valia. Nessa perspectiva, o trabalho no modo de produção capitalista, à medida que desencadeia o aumento do desenvolvimento das forças produtivas através do incentivo às novas tecnologias no âmbito do processo de produção de valores de uso e valores de troca, instaura necessariamente uma modificação na relação capital x trabalho, sendo ressaltado o protagonismo do capital nessa dada ordem social.
Contudo, tal protagonismo não descarta o trabalho e a tensão estabelecida nesse processo de acumulação, tendo em vista que o capital não se reduz a um conjunto de coisas, na forma do fetiche/dinheiro, mercadorias e/ou objetos, na medida em que este só existe ao subordinar a força de trabalho à lógica que lhe dá sustentação se configurando como uma relação social.
Desse modo, na medida em que o modo de produção capitalista se desenvolve, ele revela contradições que se manifestam nas suas crises periódicas. O sistema do capital é passível de crises cíclicas inerentes ao seu desenvolvimento: a crise possui um sentido processual, de média ou longa duração e com períodos de retomada do crescimento e de expansão do capital. Portanto, trata-se de um fenômeno dinâmico (MOTA, 2011).
É através da crise que foram desencadeadas transformações no ambiente social, político, econômico e cultural, como formas de garantir um processo de reorganização política e ideológica de dominação do capital sobre o trabalho. Nesse processo, o Estado, em uma orientação neoliberal, cumpre um papel primordial.
Neste aspecto, a classe dominante assume o papel de instituir estratégias de recuperação da taxa de lucro intensificando o ritmo do processo de trabalho, com vistas à extração de mais-valia, na medida em que modifica as formas de consumo e gestão da força de trabalho, modificando o modo de produção e concebendo novas bases políticas, sociais e ideológicas que objetivam construir uma nova hegemonia ao capital, caracterizando a sua nova fase de acumulação, com fortes rebatimentos na estrutura produtiva e nas formas de representação sindical e política.
Em contrapartida, é exigido ao trabalhador a qualificação profissional neste novo processo de produção, rompendo com a relação homem máquina que acontecia no fordismo através da execução de várias tarefas, aumentando o grau de exploração (número mínimo de trabalhadores) e sobrecarregando-os com uma série de funções, assumindo um papel de polivalência, sob condições de flexibilização dos direitos trabalhistas e subcontratação (ANTUNES, 2011).
Um dos aspectos de destaque no processo de reestruturação produtiva é a criação de um novo tipo de trabalhador que melhor se enquadre aos objetivos do capital. Esse processo imprime novas exigências ao trabalhador, acirra-se a competitividade, ocorre a flexibilização16 dos processos de trabalho, mercados de trabalho, dos produtos, dos padrões de consumo, e dos direitos sociais da classe trabalhadora.
O neoliberalismo na América Latina provocou a realização de contrarreformas que visam atender às demandas do capital, resultando em uma situação de persistente desemprego e relações informais e precarizadas de trabalho (BOSCHETTI, 2009). Observa-se com as mudanças no mundo do trabalho uma dinamicidade de processos que atinge os/as trabalhadores/as, dentre eles, a diminuição da classe operária nos moldes tradicionais, a intensificação do trabalho assalariado, a ampliação do setor de serviços, a incorporação da mão de obra
16 A flexibilidade do trabalho repousa sobre níveis variáveis, mas sempre presentes, de rigidez nos comportamentos sociais. Entre esses fatores de rigidez, a divisão sexual do trabalho é central. Paradoxalmente, ela possibilita a organização flexível do trabalho: o trabalho assalariado das mulheres, principalmente sob a forma de trabalho em tempo parcial compulsório, e o trabalhado assalariado dos homens, possibilitado pelo trabalho doméstico das mulheres (CATTANEO & HIRATA, 2009, p. 109).
feminina e o encadeamento do trabalho parcial, temporário e precarizado. Esse último, com as determinações de gênero e raça/etnia, adensam os aspectos de exploração e dominação da classe trabalhadora, tendo como seu maior expoente a expansão do desemprego em escala globalizada.
Há de se destacar que o interesse do capital está tanto na forma de assegurar a apropriação do exército industrial de reserva – e assim garantir os salários cada vez mais baixos - como também há grande proveito em alguns setores da economia dessa população.
Conforme pesquisa desenvolvida por Marinho (2018), no setor do telemarketing existe uma cultura de absorção da população trans. Para o empregador, a força de trabalho dos corpos trans é mais docilizável e subordinável ao trabalho. Sendo assim, o conjunto de/a trabalhadores/as que tem maiores dificuldades de obter trabalho e/ou de se manterem nele, parece se dispor com mais facilidade a condições de trabalho adversas e à superexploração.
Há de se atentar também para o valor agregado ao capital das empresas quando elas apresentam uma imagem socialmente comprometida com segmentos discriminados, algo que vem crescendo gradativamente nos últimos anos no Brasil, principalmente após a criação da norma de certificação social chamada de SA800017
- que certifica que uma empresa possui ou não produtos ou serviços executados de forma socialmente correta.
O respeito à diversidade faz parte das estratégias das empresas na busca de maior produtividade, eficiência e visibilidade, portanto, embora essas iniciativas possam ser fundamentais para quem precisa trabalhar e encontra dificuldades, o objetivo delas também é o crescimento de seus lucros.
Presenciamos atualmente o advento e crescimento exponencial do novo proletariado da era digital, cujos trabalhos ganham impulso com as Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs). O trabalho online, que cresce intensamente desde o processo da reestruturação produtiva nos anos 1970, “com o seu instrumental tecnológico-informacional-digital, fez deslanchar essa processualidade, que se tornou
17 Lançada em outubro de 1997 pela Council on Economics Priorities Accreditation Agency (CEPAA), atual Social Accountability International (SAI), organização não-governamental norte-americana. Foi criada baseando-se nas normas da Organização Internacional do Trabalho (OIT), na Declaração Universal dos Direitos Humanos e na Declaração Universal dos Direitos da Criança da ONU.
incessante, convertendo a reestruturação produtiva em um processo permanente” (ANTUNES, 2018, p. 47-48).
Conforme análise de Antunes (2018), atualmente presenciamos uma nova morfologia da classe trabalhadora, com destaque para o papel crescente do novo proletariado de serviços da era digital. Instabilidade e insegurança são traços constitutivos dessa nova modalidade, como também o trabalho sem contrato, no qual não há previsibilidade de horas para cumprir, muito menos direitos assegurados: “Quando há demanda, basta uma chamada e as trabalhadoras e os trabalhadores devem estar online para atender o trabalho intermitente (...) As transversalidades entre classe, gênero, etnia, geração, tudo aparece nas complexas fábricas” (p. 21-23).
Conforme ocorreu historicamente às mulheres no mundo do trabalho, empiricamente é possível observar que a população trans tende a desempenhar funções com as piores remunerações, como também não há incentivos na qualificação de suas atribuições.
As relações sociais no capitalismo potencializam as desigualdades para as pessoas trans, sobretudo no aspecto da violência e exploração. Os dados da ONG “Transgender Europe” apontam que, entre 2008 e 2014, foram reportados 689 assassinatos de pessoas trans no Brasil. De acordo com o Relatório Anual de Assassinato de LGBT no Brasil18, divulgado pelo Grupo Gay da Bahia (GGB) ocorreram 164 assassinatos de travestis e transexuais, no ano de 2018, o que confirma o dado de que o Brasil é o país que mais mata travestis e transexuais no mundo.
Conforme expõe Brito (2016), o preconceito, a discriminação e o constrangimento perpassam o cotidiano de trabalho das pessoas trans e evidenciam que a condição de trabalhador/a trans tem reflexos diretos nas condições de sobrevivência material e subjetiva desses sujeitos. Essa violência tem no “aparato repressivo do Estado, capturado pelas finanças e colocado a serviço da propriedade e poder dos que dominam, o seu escudo de proteção e disseminação” (IAMAMOTO, 2015, p. 144).
18 Segundo o Relatório Anual da página eletrônica “Quem a homofobia matou hoje” https://homofobiamata.wordpress.com/estatisticas/relatorios/. Acesso em 10 de agosto de 2020.
Em tempos de crise capitalista, as consequências que afetam o emprego, o trabalho e a divisão do trabalho entre sexo, gênero, classe, raça, orientação sexual e identidade de gênero se agudizaram de forma preocupante na sociedade.
No cenário já descrito de neoliberalismo, o crescimento do nível de exploração e das desigualdades sociais, as expressões da questão social19, assume novas roupagens. Inscrita na natureza das relações sociais capitalistas, a questão social passa por um processo de progressiva criminalização e por uma tendência de naturalização, isentando a sociedade de classes da responsabilidade na produção das desigualdades sociais.
É interessante observar como esses sujeitos estão vivenciando a atual crise, quais são as condições objetivas e subjetivas para realizar o isolamento social, principal tática de enfrentamento da propagação do vírus da covid-19. Como já dito, uma questão comum a muitas pessoas trans tem sido historicamente a expulsão ou evasão das próprias famílias, por vezes, ainda crianças ou adolescentes.
A partir daí (ou simultaneamente) trajetórias escolares são rompidas e a sobrevivência material se impõe no limite. Raramente pessoas trans têm oportunidade de completar seu processo de escolarização sem vivenciarem conflitos tanto em casa quanto na escola. Além disso, também raramente podem escolher quando e como irão se inserir numa atividade de trabalho remunerado. Formação precária, ausência de uma rede de suporte familiar e transfobia comunitária cooperam em processos que empurram essas pessoas para moradias precárias e temporárias, sejam estas individuais ou coletivas, especialmente nas periferias e favelas das grandes cidades. Ora, se a tática de isolamento social pressupõe uma habitação estável, segura e infraestrutura sanitária adequada, pode-se concluir que a maior parte dessas habitações não tem essas características.
Ainda que parte dessas pessoas viva em moradias com água encanada e ventilação adequada, muitas vezes a manutenção dessa moradia só é possível a partir de uma busca diária e insegura por renda, feita, como dito através de um conjunto de ocupações precárias, a maior parte delas no setor de serviços, gravemente afetado
19 Expressa disparidades econômicas, políticas e culturais das classes sociais, “mediatizadas por relações de gênero, étnico-raciais e formações regionais colocando em causa as relações entre amplos segmentos da sociedade civil e o poder estatal” (IAMAMOTO, 2015, p. 17).
pelo isolamento social. A maior parte da população trans esteve e está entre a população que não pôde realizar o isolamento social pela necessidade de assegurar minimamente suas condições de sobrevida, como moradia e alimentação.
O abrigamento de pessoas em situação de vulnerabilidade figura legalmente entre as competências da Política Nacional de Assistência Social (PNAS), que deveria promover o acolhimento dessa população através dos seus serviços. A maior parte dos municípios brasileiros, entretanto, não executa a PNAS adequadamente e de acordo com as reais necessidades das populações que dela necessitam. Assim, a população trans, muitas vezes, não é abrigada pelos poucos equipamentos públicos disponíveis e, quando isso ocorre, pode vivenciar novos episódios de transfobia institucional. Além disso, não é possível afirmar que a maior parte dos abrigos destinados à população que vive nas ruas logrou êxito em garantir condições sanitárias adequadas durante a pandemia, como também em garantir um espaço isento dos assédios e violências que a população trans em geral sofre.
A ausência de abrigamento e de alternativas de habitação para a população trans não é um problema novo, apenas se tornou mais grave num contexto de pandemia e de desemprego estrutural agravado pela conjuntura. Muitas travestis e mulheres trans viveram e continuam vivendo em habitações comunais conquistadas pela via do auxílio mútuo e/ou de uma estratégia de ocupação, principalmente do casario abandonado das grandes cidades.
Algumas dessas iniciativas, geralmente das próprias travestis ou transexuais, foram muito populares, como a Casa Brenda Lee, fundada em 1986, em São Paulo, no contexto da AIDS e ainda em funcionamento. Também a da travesti Luana Muniz, falecida em 2017. Ela era conhecida como “rainha da Lapa”, pela criação do bordão “travesti não é bagunça” e, principalmente, por acolher travestis, transexuais, portadores de HIV, prostitutas e outras pessoas que viviam na rua no casarão da avenida Mem de Sá, no bairro da Lapa na cidade do Rio de Janeiro (RJ).
Mais recentemente, várias outras “casas20” têm sido fundadas no Brasil com propósito semelhante, o de acolhimento da população LGBTI+ e maior organização social de suporte, tais como a Casa Aurora em Salvador, o Instituto Transviver em Recife, a Casa Chama, o Coletivo Arouchianos, a Casa Florescer e a Casa 1, todos em São Paulo, a Casa Nem e a Casinha Acolhida no Rio de Janeiro, a Casa Miga em
20 É importante registrar que a maioria das “casas” oferece além de moradia, cursos e outros recursos para inserção no mercado de trabalho e acesso à escolarização e cultura.
Manaus, a Astra LGBT e a CasAmor, ambas em Aracaju, a Transvest em Belo Horizonte e a Casa Transformar em Fortaleza.
Na ausência do Estado em assegurar o direito constitucional à habitação digna, reatualiza-se diante das necessidades trans, estratégias políticas levadas à frente pela militância trans. Ilustra essa tendência a situação ocorrida na cidade do Rio de Janeiro (RJ) em plena pandemia de covid-19.
Em 2019, um prédio da Rua Dias da Rocha em Copacabana, foi ocupado pela Frente Internacionalista dos Sem-Teto (FIST). Na ocupação ali instituída, passou a viver um grupo de cerca de 40 pessoas LGBTIQA+, lideradas pela famosa coordenadora da ocupação e ativista Indianare Siqueira. Segundo ela, a ocupação não tinha cunho partidário e era formada por pessoas que “se protegiam, trocavam oportunidades e humanidade”, geralmente pessoas jovens que tinham rompido com suas famílias de origem em razão da orientação sexual e/ou identidade de gênero. A ocupação do imóvel de Copacabana era parte de uma trajetória de ocupação de outros imóveis abandonados pelas ativistas trans da FIST, sempre expulsas por processos de reintegração de posse.
Entre julho e agosto de 2020, mediante um processo judicial, ocorreram tentativas de reintegração de posse ao proprietário, que mantinha o imóvel inabitado há aproximadamente dez anos. Com o apoio de outros/as ativistas não residentes e de algumas autoridades públicas do campo dos direitos humanos, as ocupantes resistiram à desocupação. A partir daí, ocorreu uma longa negociação bem sucedida que permitiu que elas fossem realocadas numa casa provisória no bairro do Flamengo, a fim de aguardarem posteriormente sua alocação numa ocupação definitiva em Laranjeiras (Blog LuLacerda, 2019; Cachapuz, 2020; Vinodj, 2020).
Além de viverem cotidianamente experiências de desemprego ou subemprego, pessoas trans encontram dificuldades adicionais para acessarem os programas de transferência de renda destinados a quem deles necessita. Isso ocorre com regularidade em benefícios assistenciais de amplo alcance populacional como o Programa Bolsa Família (PBF) e o Benefício da Prestação Continuada (BPC). Os motivos para não acessarem são todos os outros que dificultam o acesso da população pobre em geral, agravados pela transfobia.
Ao discutir o PBF, Jaccoud (2020) analisa que a despeito das ofertas terem progredido quanto à universalização do acesso, há “dificuldades de se contrapor à reprodução das desigualdades sociais, efetivar igualdade de chances e fortalecer um
projeto de integração e desenvolvimento social”. Seriam dificuldades “particularmente graves, segundo a autora, quando referidas a alguns públicos específicos” (p.296).
No caso das pessoas trans, uma das principais dificuldades é saber da existência de tais benefícios e a forma de acessá-los, porque parte dessa população vive à margem das instituições de execução das políticas sociais. Além disso, uma parte procura evitar o contato com tais instituições por receio de transfobia institucional (o que ocorre com frequência), sobretudo, expressando-se no não reconhecimento do nome e identidade/expressão de gênero dessas pessoas.
No contexto da pandemia, a grande massa de trabalhadores/as informais do país esteve diante do parco e dificultoso acesso ao único programa social diretamente associado ao grave quadro sanitário, o auxílio emergencial. O governo federal não disponibilizou o benefício através da malha de instituições que já operam na execução da PNAS, tampouco favoreceu o acesso. Ao contrário: o fez através do aplicativo de um banco público com graves problemas operacionais e inacessível a quem não dispunha de telefones celulares e documentos oficiais.
É comum à população que reside, mesmo temporariamente, nas ruas, a perda de documentos, assim como à população que é expulsa ou foge de casa. A população em condição de pauperismo, aí incluída a população trans, muitas vezes não dispõe, seja de um celular, de uma conexão à internet, ou de conhecimentos de informática (ou outros) para realizar seu cadastramento. Além disso, o sistema operacional do aplicativo de acesso bloqueava incongruências, como alteração de nomes de familiares, entre outras. Quando finalmente um indivíduo conseguia ser incluído como beneficiário do auxílio emergencial ainda restava a ele muita paciência para aguardar pelo recebimento da quantia que em muitos casos levou meses.
Finalmente, sabe-se ainda que pessoas trans enfrentam historicamente no país um conjunto de dificuldades oriundas do reconhecimento tardio da possibilidade de requalificação civil e da resistência de um amplo leque de instituições ao reconhecimento do nome social e da identidade/expressão de gênero. Relatos informais nos permitem afirmar que algumas pessoas trans ficaram excluídas do auxílio emergencial da pandemia de covid-19 em razão de dificuldades para o reconhecimento de suas identidades.
É fato também que nem todas as pessoas trans têm forte engajamento político e/ou integram comunidades de resistência. Se a pandemia tem efeitos detratores
sobre a saúde mental da população em geral, tais efeitos são potencializados por vivências de solidão, estigma, desproteção familiar e culpabilização, que são comuns. A descrição de um isolamento social idílico vivenciado em condições familiares estereotipadas numa moradia de camadas médias higienizada, clara, ventilada, com farto alimento, tempo livre para o desenvolvimento de hobbies e novas habilidades empreendedoras, bem como marcadas por uma convivência supostamente harmoniosa entre seus membros, não pode ser entendido como algo além de uma ficção para a maioria das pessoas. Tão frustrante quanto não vivenciar a ficção tão exaustivamente explorada pelas diferentes mídias é vivenciá-la o tempo todo como
apologia.
Como analisou Mioto (1997), a ideia de família como lugar de felicidade ocorre pelo não-desvelamento do seu caráter histórico. Ela é tomada como um grupo “natural” e há uma naturalização de suas relações: enaltecimento do amor materno, paterno e filial. Tal ficção também é amplamente difundida nas instituições públicas e seus profissionais, inclusive as de saúde, responsáveis pelo enfrentamento à pandemia. Muitas pessoas trans têm histórias muito distintas dessa para contarem e viveram a pandemia sofrendo toda sorte de violações no interior da própria família e, em alguns momentos, tendo que escolher entre a exposição à pandemia no espaço público e a angústia e violência nas relações familiares.
O corpo é construído historicamente, e os corpos que compõem a força de trabalho são marcados por raça, classe, sexo, gênero, nacionalidade, cor, etnia, entre outros marcadores. A vida da população trans é fortemente marcada por processos de opressão e violência desde os primeiros momentos formativos. Muitas são excluídas do espaço escolar, expulsas de casa ainda na infância e vivem em condições de miséria marcadas pela violência e opressão do Estado. Grande parte quando se inserem no mercado de trabalho entram de forma precarizada e em empregos que exploram sua força de trabalho.
É preciso atentar-se para as questões específicas das pessoas trans, como os aspectos da transfobia, violência, evasão escolar, desemprego, perda de laços familiares, e a pobreza que afeta grande parte. Infelizmente, os dados empíricos não refletem a realidade devido a falta de notificações do Estado, como também a
ausência de dados governamentais. O Brasil é o país que mais mata pessoas trans e travestis, o que reforça a importância de políticas, ações, programas, instituições que possam trazer impactos no combate a violência transfóbica em nossa sociedade.
A pandemia deixa transparecer ainda mais essa desigualdade: a ONG Casinha Acolhida21, localizada no Rio de Janeiro, deu início a um projeto em abril de 2020 para distribuição de cestas básicas entre a população LGBTI+. Gradativamente, o público foi se expandindo, e em setembro já havia, em média, 80 pessoas beneficiadas com o programa, grande parte composta por pessoas trans e negras. Além do aumento da procura por alimentação, houve diversos relatos de sofrimento psíquico, desemprego, dificuldades de acesso ao auxílio emergencial, aumento da homofobia no confinamento com familiares, e dificuldades na materialização de uma terapia online, devido ao medo de que algum membro familiar o/a escutasse falar.
Sobre as iniciativas de inserção no mercado de trabalho, há poucas, quase inexistentes, grande parte criadas por órgãos não governamentais. Iniciativas pontuais e que não possuem continuidade, condições de trabalho precárias, pouca possibilidade de progressão na carreira, de acesso a benefícios, ausência de direitos trabalhistas e altos requisitos de formação profissional demandados pelas/os contratantes.
As iniciativas para inserção da população LGBT no mundo do trabalho ainda são bastante tímidas e não apontam para a efetividade de metas. No Brasil, há quase uma inexistência de políticas definidoras de qualificação para o mercado de trabalho deste público, e mesmo quando existem, tendem a se estabelecer sobre estratégias de patologização e de mercantilização da sua mão de obra barata.
Há claramente, em grande medida, ausência e/ou alcance limitado de uma legislação que garanta direitos e que possibilite o exercício pleno da cidadania de tal população. Além disso, não há disposição governamental no presente contexto para o estabelecimento de políticas nesta direção.
Por fim, precisamos nos dar conta de que há uma multiplicidade de corpos, que são compreendidos e vistos de formas distintas em diferentes culturas. O corpo que compõe a força de trabalho se modifica histórica e culturalmente.
21 Esse relato veio da experiência de um das(os) autoras(es) como Assistente Social na ONG citada.
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V.19, nº 38, 2021 (jan-abr) ISSN: 1808-799 X
Anna Violeta R. Durão2
Resumo
Esse artigo analisa as relações entre gênero e trabalho comunitário na Institucionalização da profissão das Agentes Comunitárias de Saúde (ACS) no Nordeste do Brasil. Na esteira de E.P. Thompson, recupera-se a história dessas trabalhadoras, considerando tanto as políticas mais amplas que direcionaram a sua formação, quanto a participação das agentes nesse processo. Constatou- se que a experiência de trabalho foi alicerçada em valores tradicionais da socialização feminina que se consolidaram na sobreposição de várias esferas da vida: na família, na religião e na comunidade.
Palavras-chave: Gênero; Agente Comunitária de Saúde; História e Trabalho Comunitário.
LA NATURALIZACIÓN DE LO FEMENINO EN EL PROGRAMA DE AGENTES COMUNITARIOS DE SALUD EN EL NOROESTE DE BRASIL
Resumen
El artículo analiza las relaciones entre género y trabajo comunitario en la institucionalización de la profesión de los Agentes Comunitarios de Salud (ACS) en el noroeste de Brasil. Fundamentado en E.P. Thompson, se recupera la historia de esas trabajadoras, considerando las políticas más amplias que direccionaron su formación, así como la participación de los agentes en ese proceso. Se constató que la experiencia de trabajo tuvo como base los valores tradicionales de la socialización femenina que se consolidaron en sobre posición de las diversas esferas de la vida: en la familia, la religión y la comunidad.
Palavras-chave: Género; Agente Comunitario de Salud; Historia y Trabajo Comunitario.
THE NATURALIZATION OF WOMEN IN THE COMMUNITY HEALTH AGENTS PROGRAM IN NORTHEAST BRAZIL
Abstract:
This article analyzes the relations between gender and community work in the institutionalization of the profession of Community Health Agents (CHA) in the Northeast Brazil. In the wake of E. P. Thompson, the history of these workers was recovered, considering both the broader policies that directed their formation and the participation of agents in this process. It was found that the work experience was based on traditional values of female socialization that were consolidated in the overlapping of various spheres of life: in the family, in religion and the community.
Keywords: Gender; Community Health Agent; History and Community Work.
1 Artigo recebido em 13/11/2020. Primeira avaliação em 02/12/2020. Segunda Avaliação em12/12/2020. Aprovado em 22/12/2020. Publicado em: 25/02/2021. DOI:https://doi.org/10.22409/tn.v19i38.47128
2 Doutora em Educação pela Universidade Federal Fluminense - UFF. Professora/pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio/Fiocruz. E-mail annadurao12@gmail.com.
Lattes: http//lattes.cnpq.br//7221590839853064. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9795-557X
Introdução
Esse trabalho analisa as relações entre gênero e trabalho comunitário na institucionalização da profissão das Agentes Comunitárias de Saúde (ACS) no Nordeste na década de 1990, quando foram contratadas mulheres como forma de diminuir a mortalidade materna infantil na região, sendo que um requisito para a contratação dessas trabalhadoras era/é que fossem moradoras das comunidades onde trabalham3.
As ACS estão presentes nas políticas de assistência, desde meados da década de 1970, atuando, principalmente, nas regiões Norte e Nordeste do país. No entanto, foi a partir dos anos 1990, com a criação do Programa de Agentes Comunitários em Saúde (PACS) que sua atuação passa a fazer parte de uma política mais ampla do Estado. Constatou-se que na sua formação4 perpassam as contradições entre uma política de caráter neoliberal de focalização na pobreza e a possibilidade de consolidação do Sistema Único de Saúde (SUS). De um lado, contrataram mulheres da mesma condição social do seu entorno como forma de minimizar a condição de pobreza gerada pelo aprofundamento da crise financeira e da diminuição do investimento do Estado nas políticas sociais. De outro, a incorporação das agentes, representava a possibilidade da construção efetiva do SUS, na medida em que a universalização do direito à saúde não poderia se dar sem a participação da população e as Agentes eram vistas como as principais mediadoras desse processo, responsáveis por estabelecer o elo entre os serviços de saúde e a comunidade (DURÃO, MOROSINI e CARVALHO, 2011).
Assim, a noção de comunidade está imbricada com o trabalho das agentes e foi entendida como extensão do trabalho doméstico, tendo estreita relação com uma visão essencialista do que é ser mulher. O trabalho em tela analisa os sentidos dados a essa noção, colocando em relevo as contradições que o trabalho comunitário envolve quando perpassado pelas questões de gênero.
3 Esse artigo traz alguns resultados da tese intitulada Relações de gênero na conformação de uma nova morfologia do trabalho: o fazer-se das agentes comunitárias de saúde (DURÃO, 2018).
4 Vale destacar que se utiliza a palavra formação em sentido amplo, ou seja, como formação humana, no mesmo sentido que E.P. Thompson (2011) utiliza a palavra making, em seu famoso livro “The making of the English working class” que foi traduzido em português como “A formação da classe trabalhadora inglesa”.
No contexto atual de retrocesso, no qual somam-se a políticas econômicas neoliberais um conservadorismo moral, acredita-se que a recuperação histórica do processo de formação dessas trabalhadoras contribui para colocar em relevo a sua participação na construção do SUS e para o entendimento sobre as hierarquias de gênero que reforçaram/ reforçam o papel desigual das mulheres no mercado de trabalho, no cuidado e na família. Em termos mais amplos, lança luz sobre o trabalho do cuidado (care), que vem ganhando acento devido às mudanças no papel do Estado, que passa a restringir a sua atuação nas políticas sociais. A diminuição de creches públicas, o aumento da população idosa sem uma política pública que assegure os seus direitos, a entrada maciça das mulheres no mercado de trabalho, entre outras questões, colocam em pauta a profissionalização do trabalho do cuidado. Essas transformações apontam para a necessidade de se analisar a relação entre trabalho doméstico e trabalho remunerado, em outras palavras, o imbricamento entre a esfera privada e a pública (HIRATA; GUIMARÃES, 2012).
Para investigar o processo histórico da constituição dessas trabalhadoras além do levantamento da literatura mais ampla sobre trabalho e gênero, buscou-se fazer um estado da arte sobre o trabalho das Agentes e o direcionamento dado às políticas de Atenção Primária à Saúde no país5. Fundamenta-se no pensamento do historiador marxista de E. P. Thompson, principalmente nos conceitos de cultura, experiência e classe social.
O autor conceitua a cultura como todo um modo de luta. Ressalta, dessa forma, a relação de classe presente no capitalismo, como também a importância de se contrapor às formas hegemônicas de poder. Para Thompson, o embate entre classes está presente tanto nas lutas políticas mais amplas quanto no que cunhou de cultura costumeira, ou seja, naquelas lutas que se dão na disputa por diferentes saberes, valores, modos de vida que ocorrem no cotidiano. Decorre daí a importância da experiência, pois esta é entendida como “resposta mental e emocional seja de um indivíduo ou de um grupo social a muitos acontecimentos inter-relacionados ou a muitas repetições do mesmo tipo de acontecimento” (THOMPSON, 1981, p.194). A experiência constitui-se, portanto, como um conceito de junção entre a consciência e
5 A Atenção Primária à Saúde, como sintetiza Matta e Morosini (2009, p. 44), refere-se a: “uma estratégia de organização da atenção à saúde voltada para responder de forma regionalizada, contínua e sistematizada à maior parte das necessidades da saúde de uma população, integrando ações preventivas e curativas, bem como a atenção a indivíduos e a comunidades”.
a realidade concreta que os homens e as mulheres, em um dado período histórico, vivenciam em suas múltiplas determinações, estando associado, a um só tempo, a uma experiência do sujeito e a uma experiência coletiva.
O esforço feito nesse artigo foi analisar como se deu o processo histórico ativo de constituição das Agentes, ressaltando a cultura costumeira que foram estabelecidas e se estabeleceram na repetição de algumas experiências que fizeram parte da sua formação.
Para tanto, utiliza como fonte primária o trabalho de Sousa (2011) que teve a iniciativa de entrevistar 50 mulheres pioneiras na implantação do PACS em diversos estados do país. A autora optou por deixar a fala das entrevistadas quase na íntegra, sem analisá-las. Dentre as entrevistas produzidas por Souza (2011), foram selecionadas aquelas ACS mais antigas, que tinham participado do início da implantação do PACS no Nordeste.
Primeiramente, contextualiza-se o direcionamento da política durante os anos de 1990, relacionando-a com a constituição das agentes. Em seguida, procura-se analisar as suas experiências de vida e de trabalho na passagem do trabalho doméstico para o trabalho comunitário remunerado.
O feminino nas políticas sociais nos anos de 1990 e a implantação do PACS
Vários autores (NEVES et al., 2005; ANZORENA, 2010), analisando o direcionamento das políticas sociais durante os anos de 1990, sinalizam a preocupação dos organismos internacionais com a coesão social na América Latina, pois, em face da retração do Estado nas políticas públicas, colocava-se em risco a paz na região. Desejava-se dar uma “face humana” aos ajustes macroestruturais impostos aos países pobres. O discurso de solidariedade e colaboração entre os membros de uma dada comunidade é enfatizado, sendo visto como capaz de reverter as desigualdades sociais e a pobreza.
Nesse sentido, a comunidade será entendida como lócus desse modelo de desenvolvimento diretamente relacionado às populações pobres, sendo a mulher considerada potencializadora de políticas públicas, devido aos papéis de cuidadora e educadora que realiza na família. Esse encaminhamento da política pretende diluir as contradições entre capital e trabalho, ressaltando uma suposta aliança entre as
classes antagônicas em torno de objetivos comuns, tais como o combate à fome, à miséria etc. (FARAH, 2004; SIMÕES-BARBOSA, 2001).
Anzorena (2010) analisa que a valorização da participação feminina pelos organismos internacionais ocorreu sob o argumento de que as mulheres teriam uma superioridade moral dentro da comunidade. A autora esclarece que as agências internacionais e os governos se apropriaram de ideias como “cidadania ativa e participação por baixo”, que foram fomentadas pelas Comunidades Eclesiais de Base, e as transformaram em ferramentas para a formulação de políticas que visavam a contrarrestar os problemas sociais e políticos. Essas políticas, ao mesmo tempo que buscam reduzir a responsabilidade do Estado nas políticas de assistência e seguridade social, valorizam as atividades femininas no campo da reprodução, em outras palavras, reforçam o papel histórico das mulheres no trabalho não remunerado do cuidado. Ao definir as mulheres-mães-pobres como as principais indutoras das políticas, naturalizam sua responsabilidade de cuidar do lar e do seu entorno, desconsiderando que elas são as mais prejudicadas pelas políticas de ajuste. Enfim, são políticas que, a um só tempo, buscam tirar proveito de habilidades vistas como femininas, como também das redes de solidariedade que as mulheres criam como estratégia de sobrevivência (ANZORENA, 2010). Farah (2004) destaca a recomendação do Banco Mundial que, com base na noção de feminilização da pobreza, fomenta a focalização em políticas para mulheres nas áreas de saúde, educação, geração de emprego e renda, entre outras, argumentando maior eficiência dessas políticas no combate à pobreza.
A institucionalização do trabalho das Agentes caminha nesse sentido, como é possível depreender do direcionamento dado pelo Estado para sua implantação. A implantação do Programa no estado do Ceará, serviu de exemplo para difusão do modelo para o resto do país. Em 1987, o estado vivia mais um período de seca e durante a estiagem, tradicionalmente, os chefes de família recebiam uma remuneração mensal como forma de alívio da pobreza que se acentuava nesses momentos. Em contrapartida, prestavam algum serviço ao município, na maioria das vezes, na manutenção das estradas (ÁVILA, 2011). Nesse ano, o estado privilegia a contratação de mulheres para diminuir a mortalidade materno-infantil. Nas palavras do então Secretário de Saúde do Ceará, Carlyle Lavor:
Sempre na emergência se empregam os homens, mas há muitas mulheres que não têm marido, que são donas de casa. Então sugerimos empregar 6 mil mulheres, que era o cálculo que a gente tinha feito de agentes de saúde necessários para o estado. Foram selecionadas 6 mil mulheres dentre aquelas mais pobres do estado, que eram escolhidas por um comitê formado por trabalhadores, igreja, representantes do estado e município. (CARLYLE LAVOR apud NOGUEIRA; SILVA; RAMOS, 2000, p. 4).
O trabalho consistia no encaminhamento de gestantes para o pré-natal e para a maternidade, no incentivo ao aleitamento materno, na vacinação das crianças e em orientações de higiene. A melhora nos indicadores de saúde materno-infantil revelou a importância do trabalho dessas mulheres que deixou de ser uma ação pontual de caráter emergencial e passou a ser institucionalizado (ÁVILA, 2011). Indicativo, portanto, que o sentido dado à comunidade não tinha uma neutralidade nem de gênero, nem de classe. Foram contratadas mulheres proximamente identificadas com suas vizinhas. Amplia-se o cuidado, que sai do âmbito da casa para o espaço público, institucionalizando o trabalho do cuidar.
Nota-se no depoimento do então Secretário de Saúde, Carlyle Lavor, uma visão patriarcal sobre o trabalho feminino, na medida em que são destinatárias da política as mulheres que não têm marido, ou seja, que não estão sob a guarda, vale dizer, sob a dominação masculina. Constata-se, portanto, que mesmo com a complexidade das sociedades contemporâneas, as relações de poder patriarcal continuam presentes na dominação/exploração das mulheres.
Diante das transformações que ocorreram na reprodução do capitalismo, a inserção das Agentes é apresentada, pela política, como uma forma de geração de renda para mulheres que têm dificuldades de entrar no mercado de trabalho e que vêm sendo responsáveis pela manutenção da nova composição familiar, na qual, dentre outros arranjos, a mulher se configura como arrimo de família. Enquadra-se no que Fleury (2005) caracteriza como um modelo assistencial que abrange ações emergenciais dirigidas a grupos pobres mais vulneráveis em uma perspectiva caritativa reeducadora que, embora assegurem certos bens, não configuram uma relação de direito social, tratando-se de políticas compensatórias. O que a autora cunhou como cidadania invertida, na qual, para se ter acesso à proteção social, os grupos vulneráveis têm que provar sua não inserção no mercado de trabalho. No caso das ACS, o acesso a certos direitos refere-se a uma remuneração precária por um trabalho que elas já exerciam junto à comunidade.
Em 1991, a experiência do Ceará se espraia para outros estados do Norte e Nordeste, constituindo o Programa Nacional de Agentes Comunitários de Saúde (PNACS). No ano seguinte, perde o termo nacional, passando a ser chamado de Programa de Agentes Comunitários (PACS), no qual, mais uma vez, contratam-se mulheres, priorizando-se o atendimento ao grupo materno-infantil (SCOTT, 2011).
Destacar-se-á a seguir algumas experiências que conformaram o trabalho/vida das Agentes. Essas experiências formaram elos intercessores, no qual o trabalho do cuidado na família se estendeu para o trabalho voluntário realizado junto às Pastorais da Criança e desse para o trabalho remunerado na comunidade.
Relações de gênero e experiência no Programa de Agentes Comunitários em Saúde
Em seu percurso de investigação, Sousa (2011) apresentava como primeira indagação às mulheres entrevistadas a questão: “Quem sou eu?”. A maior parte das respostas enfatiza o papel de cuidadoras que elas desempenhavam na família. Assim, é esse o elemento que parece conferir sentido à sua vida e ao seu trabalho como ACS. Isso se explicita, por exemplo, na fala de uma Agente do Ceará: “estas são as coisas que eu sei fazer: ser mãe, Agente Comunitária de Saúde e dona de casa” (IRLANDIA/CE apud SOUSA, 2011, p. 45).
Evidencia-se a íntima relação entre a experiência de se fazer mulher e sua condição de classe, pois, no discurso das agentes, seu papel de mulher e de cuidadora na família e uma vida marcada pela adversidade são naturalizados como intrínsecos a seu ser. Sobreleva-se, portanto, na narrativa dessas trabalhadoras, uma dupla determinação. De um lado, uma determinação de classe, pois são mulheres que tiveram sua vida construída diante de condições mínimas para produzir a existência. De outro, uma determinação de gênero, na medida em que se estabelece uma relação linear entre o sexo e seu papel como cuidadora dos filhos, dos pais, do marido e da comunidade.
Vale esclarecer que se entende determinação no mesmo sentido que destaca Willians (2011), para quem o conceito, longe de ser entendido como uma causa externa que prediz e prefigura por completo uma atividade ulterior, atua como forma de fixar limites e exercer pressões nas práticas sociais. Nesse sentido, o autor
compreende a hegemonia como práticas e expectativas que, ao serem vivenciadas, conferem sentido à vida e ao mundo. Nas palavras do autor:
Falo de um conjunto de significados e valores que, do modo como são experimentados enquanto práticas aparecem se confirmando mutuamente. A hegemonia constitui, então, um sentido de realidade para a maioria das pessoas em uma sociedade, um sentido absoluto por se tratar de uma realidade vivida além da qual se torna muito difícil mover-se e que abrange muitas áreas de suas vidas (WILLIANS, 2011, p. 44).
Como se buscou destacar, a política de institucionalização das Agentes teve um forte direcionamento de gênero que se relaciona com a experiência de vida dessas trabalhadoras. Vale analisar como essa hegemonia ganha sentido nas várias áreas que envolvem a sua vida e o seu trabalho e em que medida se contrapõe à cultura dominante, tendo em mente, como também aponta Willians (2011, p. 48-49), que a principal coisa que “um trabalhador produz é sempre ele mesmo, tanto nas condições específicas do seu trabalho, quanto na ênfase histórica mais ampla dos homens produzindo-se a si mesmos e a sua história”.
Pode-se pensar, a partir de E. P. Thompson, em que medida é possível falar sobre uma experiência no feminino. Como já destacado, o conceito de experiência em Thompson está associado, a um só tempo, a uma experiência do sujeito e a uma experiência coletiva. Assim, na luta pela produção da existência, criam valores que ora se alinham, ora se distanciam da cultura dominante. Nesse sentido, o fazer-se mulher engloba várias experiências que formam um amálgama, no qual elas se constituem e são constituídas como mulheres trabalhadoras. Nessa relação, sua experiência de trabalho e vida é permeada por uma visão do feminino, culturalmente diferenciada da do masculino e marcada por sua condição de classe.
Para se pensar a experiência no feminino faz-se necessário entender as atividades domésticas como trabalho, na medida em que houve uma tendência de se enquadrar nessa classificação apenas o trabalho produtivo enquanto tal, separando- se a esfera doméstica como lócus do feminino, e a esfera pública como lócus do masculino. Neste contexto, a reprodução social dos seres humanos ficou ao encargo das mulheres e, embora esse não seja diretamente produtivo ao capital, se tornou, nas relações capitalistas, elemento de mediação da reprodução da força de trabalho que engloba a nutrição, o cuidado, a educação, a socialização das crianças, entre
outras atividades. Atividades estas que associadas ao amor materno, estabeleceram as bases ideológicas para a divisão sexual do trabalho.
O trabalho doméstico sempre foi central na vida das mulheres trabalhadoras, mesmo quando inseridas na produção. O peso desse trabalho esteve a seu encargo. Interessante perceber que, com o crescimento do desemprego e as políticas neoliberais correlatas, a política reforça essa centralidade, estendendo-a a outros espaços. Em outras palavras, em um momento de fragmentação, precarização do trabalho, aposta-se na centralidade do trabalho doméstico como forma de aliviar a pobreza. Se a partir da década de 1970, nos países centrais, passa-se a questionar a centralidade do trabalho, tendo como contexto a crise do fordismo, quando as políticas neoliberais se espraiam para os países periféricos, enfoca-se o trabalho das mulheres na esfera doméstica na tentativa de arrefecer a crise.
Vale a pena elucidar a contradição que o trabalho feminino traz. Por um lado, sua inserção no assalariamento corresponde a um trabalho unilateral, mutilador e alienado. De outro, a delimitação da sua participação na esfera doméstica limita a possibilidade de uma formação integral como ser humano ao seu corpo biológico, na qual a recuperação da força de trabalho será realizada por elas como trabalho não pago.
No entanto, o trabalho dessas mulheres no lar tem um forte valor de uso que é inerente à reprodução da existência, sendo regido, contraditoriamente, por uma ótica que não se afina, inteiramente, com a dimensão do mercado. A luta que elas travam para a sobrevivência é fortemente marcada pelo anseio de uma vida mais digna não só para si, mas para a população do seu entorno.
Ao se auto definirem, as Agentes destacam o seu papel de guerreiras, lutadoras que diante das dificuldades são capazes de dar um sentido positivo a seu trabalho e a sua vida, aliás aspecto também ressaltado em outras pesquisas (MENEZES, 2011; OLIVEIRA, 2015) que se debruçaram sobre as mulheres da classe trabalhadora. Acredita-se que a luta em que elas se inserem diz respeito, diretamente, à reprodução da existência, na medida em que, historicamente, se constituíram e foram constituídas para e no trabalho doméstico. Não por acaso, quando perguntadas sobre quem são, destacam o valor da família como inerente ao seu ser. Como destaca Lucia Gutemberg (ACS/BA apud SOUSA, 2011, p. 31), refletindo sobre a sua história de vida:
Eu tinha vindo de uma história muito difícil, de uma infância muito difícil, porque os meus pais haviam se separado havia muitos anos, e era complexa a vida de uma mulher sozinha e separada, para criar cinco filhos. A minha mãe não teve a estrutura e abandonou a casa, e eu tive que sustentar toda a família e brigar com a vida dia após dia.
Nota-se, na constituição de vida dessas ACS, que o trabalho de cuidado com a família percorre a trajetória de vida das Agentes, tendo sido socializadas, desde a infância, para o papel de cuidadoras, que já realizavam quando crianças e que ganha relevância no seu trabalho atual junto a seus familiares se estendendo para o trabalho junto à comunidade. Souza-Lobo (2011, p. 89) chama essa percepção das mulheres como experiência de destino, onde “o trabalho, o casamento, a maternidade, sucedem-se naturalizados como os ciclos de vida”. Nesse mesmo sentido, não há uma ruptura no papel de cuidadora. Mesmo as ACS mais velhas, que já tinham criado seus filhos, assumem esse trabalho ao cuidar dos netos e, muitas vezes, de outras pessoas não diretamente ligadas à sua família parental. Como destaca Antônia Regina de Souza Moura (ACS/CE apud SOUSA, 2011, p. 27):
Sou casada, tenho três filhos e moro no horto florestal há 27 anos. Tenho dois netos, dois filhos, que já são casados. Por enquanto, sou só eu e meu esposo em casa. Ainda crio um menino de 12 anos e tenho a minha mãe viúva com 84 anos, e a minha avó que tem 103.
Ao contrário da visão da mulher independente, emancipada, que “trabalha fora” e é dona do seu corpo, bandeira do movimento feminista na década de 1970, que não ecoava as experiências e vozes de outras mulheres, como as negras, as hispânicas, as indígenas, entre outras; o trabalho do cuidar ganha uma dimensão ontológica que se imbrica com a construção do corpo biológico, fundando-se no valor da família e da comunidade. Ontologia, aqui, compreendida não como uma visão metafísica do que constitui a natureza humana, mas construída historicamente no trabalho dessas mulheres na esfera doméstica. Pode-se dizer com Thompson (1998, p. 18) que as ACS se formaram e foram formadas dentro de uma cultura costumeira, na qual:
A criança faz o seu aprendizado das tarefas caseiras primeiro junto à mãe ou à avó, mais tarde (frequentemente) na condição de empregada doméstica ou agrícola. No que diz respeito ao mistério da criação dos filhos, a jovem mãe cumpre o seu aprendizado junto às matronas da comunidade. O mesmo acontece com os ofícios que não têm aprendizagem formal. Com a transmissão dessas técnicas particulares, dá-se igualmente a transmissão de experiências sociais ou da sabedoria comum da coletividade.
Em que pese a enorme distância temporal que separa a análise de Thompson sobre a constituição da classe trabalhadora e o trabalho das ACS, pode-se inferir que o trabalho das Agentes nasce dessa aprendizagem não formal que se solidifica através de outras experiências que corroboram para fortificar uma dimensão essencialista do papel da mulher.
Dentre essas experiências, ganha relevo o trabalho voluntário realizado nas Pastorais da Criança, que se soma ao papel construído na família e transmite outros ensinamentos que serão repassados para as mulheres da vizinhança. Souza e Lautert (2008), ao se debruçarem sobre o conceito de trabalho voluntário, ressaltam que, na maioria dos estudos sobre o tema, esse é entendido como qualquer atividade onde as pessoas ofertam seu tempo livre para ajudar outros grupos/pessoas sem retribuição monetária. Difere-se ainda do trabalho remunerado, pois não possui um sistema de classificação e definição. Acrescentam que outra característica comum desse trabalho é o direcionamento às comunidades e às pessoas mais carentes do que o voluntário. Willians (2007) destaca que o serviço para a comunidade guarda um sentido antigo com o trabalho voluntário na medida em que é suplementar à provisão oficial ou ao serviço pago.
No início do século XX no Brasil, o trabalho voluntário se estabeleceu como um caminho encontrado pelas mulheres da elite para sair do confinamento do espaço doméstico. Por ser um trabalho sem remuneração, não representava um risco aos papéis estabelecidos para o feminino, vale dizer como esposa e mãe. A participação em trabalhos de caridade era vista como uma prova de altruísmo e de forte valor moral. Nesse sentido, fomentava-se o envolvimento das mulheres de classe alta para instruir e moralizar as crianças e as mulheres da classe trabalhadora (BESSE, 1999). Em grande medida, foi a partir do trabalho voluntário, agora realizado por mulheres da mesma classe social do seu entorno, que se deu o deslocamento do
trabalho voluntário para a sua institucionalização.
Eu já fazia um trabalho voluntário pela pastoral da paróquia da comunidade de Brejo Santo, a paróquia do Sagrado Coração de Jesus. Sou líder da Pastoral da Criança, participo do coral da comunidade de Cabeceiras com o nome de Juventude Franciscana, e vi que, com o trabalho da Pastoral da Criança, eu juntaria o trabalho em uma comunidade só e faria um complemento (MARIA DE LOURDES SILVA/CE apud SOUSA, 2011, p. 49-50).
O trabalho da Pastoral da Criança se originou nos marcos dos movimentos progressistas da Igreja Católica na década de 1980. No entanto seu discurso ganhou um novo direcionamento: a opção pelos pobres e a libertação afastaram-se da relação com mudanças econômicas e passaram a enfatizar o engajamento em ações concretas, optando pelo trabalho no cotidiano e por práticas relativas ao domínio privado. As ações emergenciais para salvar vidas ganham relevo, secundarizando as desigualdades da sociedade brasileira. Neste contexto, “não basta mulheres e homens dizerem que a situação está ruim e gritarem pelos seus direitos. Isto é bom e necessário, mas elas e eles querem também ações concretas agora, pois mortes que poderiam ser evitadas estão ocorrendo” (PASTORAL DA CRIANÇA apud ANJOS, 2007, p. 30). A ação da pastoral passa a ter como foco da atenção os cuidados com crianças de zero a seis anos e, como destaca Anjos (2007), apesar do trabalho não se restringir ao atendimento de mulheres grávidas e de crianças, mais de 90% eram mulheres.
Como sinaliza Saffioti (2013), a ação inovadora da Igreja, que poderia resultar do princípio cristão da igualdade entre os homens, esbarra, não só, no perigo da eliminação da consciência religiosa, como também pode abalar sua posição na estrutura de poder. Nesse sentido, a autora sinaliza que “as medidas progressistas que a Igreja tem apoiado dentro dos programas da democracia cristã visam à preservação do sistema capitalista de produção e à conservação da estrutura de poder que essa sociedade permite” (SAFFIOTI, 2013, p. 141). Não por acaso, durante o pontificado de João Paulo II (1978-2005), personagens ligadas à Teologia da Libertação foram questionadas, pois, para Roma, o risco de ideologizar a fé deturpava perigosamente os objetivos da Igreja (COSTA, 2015). No que tange à questão feminina, Saffioti (2013) destaca que a Igreja Católica, através de técnicas sociais que visam moldar o comportamento humano, reforça a posição subordinada da mulher, adequando-a ao status quo.
Embora sob outra perspectiva teórica, Anjos (2007, p. 28) corrobora com o pensamento de Saffioti, analisando que a mobilização para o trabalho, nas Pastorais da Criança, se deu a partir da construção de identidades e papéis femininos, reforçando a relação entre o corpo e a função como mãe. Reproduz-se, dessa forma, a atuação da mulher no espaço privado. Nas palavras da autora, recorre-se “a mecanismos de educação dos corpos e de ‘somatização’ do arbitrário cultural”. Nesse
sentido, reforça-se uma identificação do papel da mulher como mãe, bem como se naturaliza o amor materno.
Costa (2015), analisando o discurso de Zilda Arns, famosa intelectual orgânica da Igreja, sinaliza que o trabalho comunitário é exaltado, compreendendo o esforço comunal em torno de um objetivo repartido e visto como missão que visa, nesse contexto, à transformação da dura realidade. Assim, o trabalho voluntário realizado nas pastorais, não é visto como uma escolha, mas um chamamento – vocação – no qual seu exercício é entendido como um serviço, ou uma missão. Tal compreensão vai de encontro à construção da profissão que pressupõe um ganho material (SEIDL, 2012).
Não por acaso as Agentes definem seu trabalho como ACS como missão, deslocando os objetivos do trabalho voluntário nas Pastorais para o trabalho no SUS. “Elenita, como pessoa, como ser humano, também é uma serva de Deus, que não vive só para pregar o Evangelho da Paz, mas também para a missão de fazer com que a saúde pública aconteça em nosso país” (ELENITA RAOLIM/CE apud SOUSA, 2011, p. 28), ou como reforça outra entrevistada: “Maria dos Anjos é uma daquelas pessoas que não desistem. Eu gosto de lutar. Ser Agente de Saúde para mim, não é só uma profissão, eu encaro como uma missão” (MARIA DOS ANJOS/PE apud SOUSA, 2011, p. 33).
A missão no momento da implantação do PACS era, principalmente, acabar com a diarreia e com a desnutrição que atingiam as crianças do Nordeste do país. Com efeito, conforme o Ministério da Saúde, em 1991, a taxa de mortalidade infantil era 71.2 por mil nascidos vivos, no Nordeste (BRASIL, s/d). Vale lembrar que a Pastoral se notabilizou pela utilização do “soro caseiro” no combate à desnutrição, bem como pela “farinha multimistura” ministrada como complemento nutricional. O primeiro era indicado para uso emergencial, já a segunda para uso contínuo (COSTA, 2015). Em que se pese a importância dessas ações para minimizar a mortalidade infantil, quando não se questionam as determinações do processo saúde-doença, nas quais as crianças e os adultos estão inseridos, acaba-se por normalizar o estado de pobreza. No caso da “missão” das ACS, coloca-se nos ombros das Agentes a responsabilidade pela superação da pobreza, na qual elas mesmas estavam submersas. Esquecendo-se que “a individualidade que possuímos e a natureza que desenvolvemos (nutridos, subnutridos, abrigados, sem-teto, sem-terra, etc.) estão subordinados ou resultam de determinações sociais que os homens (e as mulheres)
assumem historicamente” (FRIGOTTO, 2002, p. 13). Nesse sentido, a formação das Agentes para o cuidado apreendida no espaço da família, como também no trabalho voluntário junto às Pastorais da Criança, reforça, mutuamente, a “natureza” de gênero e de classe em que estão inseridas.
Na passagem do trabalho voluntário para o remunerado, o pagamento não é, a princípio, visto como um direito, pois o mesmo trabalho já era realizado nas horas vagas. Ser remunerada é percebido como uma ajuda a mais para facilitar algo que ‘naturalmente’ já realizavam. Se o que marcava a inserção de mulheres no trabalho voluntário é a ideia de realizar uma missão, uma doação em nome de uma causa superior, a remuneração aparece como algo bom, mas não muito ressaltado nos depoimentos, na medida em que contradiz a própria ótica do voluntariado.
O perfil do agente era ser líder comunitário, era participar do trabalho da comunidade, e essa era minha cara. Quando eu me inscrevi, vi que era tudo aquilo que eu gostava de fazer, que era o meu trabalho, que eu ia ter um complemento, e que eu ia apenas passar a ser remunerada por aquilo que eu já fazia (LUIZA ROSA DA SILVA/PE apud SOUSA, 2011, p. 47).
Na contradição que o próprio trabalho feminino engendra, Lourdes Moraes fala da importância da remuneração, mesmo sem direitos, para sua vida, pois trabalhar como ACS possibilitou abandonar o trabalho na casa dos outros e, ao mesmo tempo, perceber que ela tinha direito a ter direito, nas palavras da entrevistada, e que podia lutar para a melhoria do trabalho.
(...) quando comecei o trabalho pela pastoral como Agente Comunitária de Saúde, eu não era paga. Depois apareceu a Unicef, que nos dava uma bolsa. Para falar a verdade, essa bolsa que ganhávamos em dinheiro caiu do céu. Deixei de ser empregada doméstica e de trabalhar na casa dos outros e comecei a ser Agente Comunitária de Saúde, ganhando essa bolsa. Foi aí que veio a ideia de lutarmos juntos para a melhoria desse trabalho (LOURDES MORAES/PE apud SOUSA, 2011, p. 46).
Vale esclarecer que, no momento da implantação do PACS, as Agentes eram pagas através de bolsas concedidas pela Unicef nos marcos da atenção primária seletiva, ou seja, privilegiando ações de orientações preventivas de técnicas simples para a diminuição da mortalidade infantil. O que compunha o pacote GOBI sigla em inglês que, como esclarecem Fonseca, Morosini e Mendonça (2013, p. 538): “combina os procedimentos growth monitoring (acompanhamento do crescimento), oral
rehidration (reidratação oral), breast feeding (aleitamento materno) e immunization
(imunização)”.
Se a concessão do tempo para o trabalho voluntário era da prerrogativa da própria agente, com o PACS o trabalho passa a ser mais sistematizado, ampliando tanto as famílias atendidas, quanto o grau de informação e de orientação que eram repassadas. No começo do Programa o foco do trabalho das Agentes era a mortalidade materno-infantil, com o passar dos anos, ampliam-se as atribuições das ACS e elas passam a ser responsáveis pela prevenção de outras doenças que atingem a maioria da população, tais como: tuberculose, hanseníase, diabetes, entre outras. O espaço de atuação se estende para a casa das famílias, havendo um limite tênue entre a vida privada e o trabalho remunerado. Ao contrário da fábrica, na qual a inserção das mulheres se dá em espaços/tempos e relações diferenciadas, no trabalho como Agente o tempo e o espaço se imbricam, estreitando ainda mais as ralações que as trabalhadoras já tinham com a comunidade.
Assim, o papel feminino de cuidadora na família, reforçado pela Igreja, ganha pleno sentido no trabalho junto à comunidade, pois as crianças atendidas pelas agentes são crianças que fazem parte da vizinhança, são integrantes de famílias que elas conhecem e acompanham seu crescimento. Além disso, as lutas pela sobrevivência enfrentadas por essas famílias não se diferem das enfrentadas pelas Agentes. Há, portanto, uma identidade entre as mulheres usuárias do Programa e a própria vida. “É muito bom quando nos identificamos. Quando você vai a sua comunidade, encontra um problema que tem alguma coisa para resolver e você consegue” (LUIZA ROSA DA SILVA/PE apud SOUSA, 2011, p. 61).
Nas ações concretas no cotidiano, no enfrentamento das adversidades, percebem o valor do seu trabalho e são reconhecidas pela comunidade, sendo o trabalho permeado por uma visão coletiva de preocupação com o outro. No entanto, essa mesma identificação causa sofrimento ao perceberem os limites tanto de sua atuação, como de sua própria vida: “Agora está melhor. Era tão doloroso. Íamos orientar as mães, mas quando íamos ter notícias, elas diziam que faltava alimentação, e eu via que na minha casa faltava a mesma coisa” (LOURDES MORAIES/PE apud SOUSA, 2011, p. 61). Assinala-se que quando só se ressalta as ações concretas no cotidiano como forma de amenizar a pobreza, acaba-se por gerar uma lógica perversa, na qual os próprios sujeitos são responsabilizados e se veem responsáveis por mudanças que estão muito além das suas possibilidades. É na luta diária junto à
comunidade que criam laços de pertencimento e estratégias de sobrevivência que se retroalimentam.
Por ser da comunidade, vejo a luta diária e nos auto ajudamos mesmo. Para mim é muito mais que fazer a prevenção. Uma vez, uma instrutora nossa perguntou assim: ‘Como você chega nas suas famílias? ’ Eu não chego lá e pergunto a Dona Maria como ela está hoje. De jeito nenhum. Eu logo vejo se ela está feliz. Afinal, são 23 anos de Agente Comunitária de Saúde e temos uma história ali. Na minha comunidade, é assim, quando cheguei lá, só havia três casas. A partir daí a comunidade foi crescendo. Ajudamos a construir a comunidade. Durante a construção não tinha escola, não tinha posto de saúde, faltava tudo. Eu era uma Agente Comunitária de Saúde (LUCIA GUTEMBERG/BA apud SOUSA, 2011, p. 46).
Nota-se no depoimento de Lúcia Gutemberg o forte vínculo com as pessoas atendidas que vai muito além de procedimentos prescritos de como se abordar as famílias, nas suas palavras, “de fazer a prevenção”. São conhecimentos tácitos adquiridos na constituição tanto da sua história de vida, quanto da própria comunidade. Trabalho que ganha sentido devido ao seu caráter necessário e inevitável e que não se dá somente por imposição externa, mas pelo envolvimento na luta por uma vida mais digna junto à comunidade.
Dessa maneira, as ACS estabelecem relações afetivas e solidárias que permitem contrarrestar, em parte, a dura realidade. Um trabalho construído a longo prazo, que se dá através de relações duráveis, alicerçado nos vínculos com a comunidade. Acrescenta-se que, como há um imbricamento entre o trabalho e a moradia, não existe um distanciamento entre as questões que envolvem o dia a dia de trabalho das Agentes e outras questões referentes à população, pois todas estão inseridas no mesmo contexto.
Lucia Gutemberg também ressalta a importância do trabalho no PACS como elemento que possibilitou aumentar sua autoestima e romper com o cerceamento de trabalhar na esfera doméstica. A perspectiva de ser remunerada, de fazer uma prova para admissão se constituíam como uma possibilidade de caminho para romper com as amarras da vida doméstica, como também com as relações de poder dentro de casa. Como se constata em seu depoimento sobre o processo de seleção para ser ACS e sobre a reação do seu marido: “Não estuda não porque lá só tem gente boa e isso não vai dar em nada. Eu pensei: ‘Se eu fizer eu passo’. Eu chorei a noite toda achando que não conseguiria. Estava sem estudar há 12 anos” (LUCIA GUTEMBERG/BA apud SOUSA, 2011, p. 31).
Os requisitos básicos para a contratação das ACS à época eram saber ler e escrever e ser moradora da comunidade. Constata-se, portanto, em pleno século XX, o grande hiato presente na educação brasileira quanto à premissa liberal sobre a necessidade de uma educação universal, pública e gratuita. Nesse contexto, observa- se a dualidade da aprendizagem presente nos primórdios da implantação da escola, onde se separou/separa de um lado a educação formal e de outro a educação comunitária, onde se dá o saber fazer sobre a existência e sobre as formas culturais do local, sendo no “trabalho concreto que se educa para ele” (RODRIGUES, 2016, p. 360).
No entanto, o trabalho feminino ao deslocar-se para a esfera pública, trouxe consigo uma demanda pelo aumento de escolarização, tanto por parte das trabalhadoras, como por parte do Estado, pois como foi salientado, o trabalho das ACS ao se institucionalizar vai incorporando novas funções que requerem um maior nível educacional.
Enfim, buscou-se, na esteira de Thompson, analisar as transformações no trabalho das Agentes em sentido amplo, ou seja, na sua relação com o trabalho doméstico, com a religião e com a comunidade, tentando desvelar o intrincado processo que envolve a formação, principalmente, quando inscrita no feminino.
Considerações finais:
Pode-se dizer com Thompson que no momento de implantação do Programa de Agentes Comunitários no Nordeste a passagem do trabalho doméstico ao trabalho remunerado se deu através de uma experiência herdada, na medida em que as normas, os valores e as atitudes que conformaram o seu ser social estavam de tal forma articulados com o seu corpo biológico que eram percebidos como determinados, no sentido estreito do termo. Com a implantação do PACS a centralidade do seu trabalho no lar amplia-se para a população do entorno, ganhando sentido em suas vidas, como também dentro da comunidade. Ao passarem a ser remuneradas, mesmo que com bolsas e contratos verbais, essa inserção lhes possibilitou outro status, dentro daquele contexto. Nesse percurso colaboraram para a diminuição da mortalidade infantil, para a vacinação das crianças, para o acompanhamento do pré-natal, facilitaram o acesso aos serviços de saúde, entre muitas outras contribuições.
Passados mais de 30 anos da consolidação das ACS como uma política de Estado, as Agentes foram consolidando uma cultura do trabalho alicerçada nos valores da socialização feminina. Tentou-se manter um lugar bem delimitado e cerceado para essas mulheres, reforçando a diferença de classe e gênero da sua constituição. No entanto, como alerta Thompson (1998, p.16), falar de cultura é destacar uma arena de elementos conflitivos, ou seja, de “fraturas e oposições existentes dentro do conjunto”.
Com efeito, embora a profissão das ACS ainda seja permeada por uma cristalização do que se entende como trabalho feminino que corrobora para a precarização do seu trabalho, as Agentes, no processo de constituição do seu trabalho, organizaram-se politicamente e lograram algumas conquistas, tais como: o reconhecimento da profissão, a qualificação técnica, o estabelecimento de um piso salarial nacional, entre outras.
No entanto, considerando a intensificação das políticas neoliberais nos últimos anos, esses avanços continuam ameaçados com forte possibilidade de retrocesso. Tem-se a esperança de que o esforço de rememoração do processo da sua formação, feito nesse artigo, contribua para que a luta dessas mulheres não se apague e atualize-se.
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V.19, nº 38, 2021 (jan-abr) ISSN: 1808-799 X
Paola Cappellin2 Jorge Custodio3
Resumo
O estudo toma como objeto a aproximação por parte de jovens trabalhadores à Universidade pública no período entre 1999-2013. Esta conjuntura brasileira, marcada por frequentes crises econômicas, interfere no mercado de trabalho fragilizando as trajetórias ocupacionais das pessoas. Neste contexto, a busca do diploma universitário representa uma estratégia para enfrentar a ameaça do desemprego. O estudo do quotidiano de homens e mulheres, mostra como não enfrentam os mesmos desafios, já que o tempo dedicado a frequentar a universidade, assistir a família e manter o emprego, faz as respectivas experiências bastante diferentes. Dos resultados, pode-se apontar que entre os dois grupos há diversidade entre inovações e permanência de valores de gênero.
Palavras-chave: gênero e trabalho; trabalho e universidade; gênero e Universidade.
TRAYECTORIAS UNIVERSITARIAS Y PROFESIONALES: UNA LECTURA DE RELACIONES DE GENERO
Resumen
El estudio tiene como objeto el acercamiento de los trabajadores jóvenes a la Universidad pública en el período 1999-2013. Esta situación brasileña, marcada por frecuentes crisis económicas, interfiere en el mercado laboral, debilitando las trayectorias ocupacionales de las personas. En este contexto, la búsqueda de un título universitario representa una estrategia para enfrentar la amenaza del desempleo. El estudio de la vida diaria de hombres y mujeres muestra cómo no afrontan los diferentes retos, dado que el tiempo dedicado a asistir a la universidad, ayudar a la familia y mantener o empleo, hace que las respectivas diferencias sean bastante diferentes. De los resultados, podemos ver que lo que marca las opciones de los dos grupos es la diversidad de innovaciones y la permanencia de los valores de género.
Palabras clave: género y trabajo; trabajo y educación, Universidad y género.
UNIVERSITY AND PROFESSIONAL TRAJECTORIES: A READING FROM GENDER RELATIONS
Abstract
The study takes as its object the approach of young workers to the public University in the period between 1999-2013. This Brazilian situation, marked by frequent economic crises, interferes in the job market, weakening people's occupational trajectories. In this context, the search for a university degree represents a strategy to face the threat of unemployment. The study into daily life of men and women shows how they do not face the different challenges, given that the time devoted to the time dedicated to attend university, to assist the family and to keep their job, it makes the respective differences quite different. From the results, we can see that what marks the options of the two groups is the diversity of innovations and permanence of gender values.
Key words: gender and work; work and higher education; Gender and University
1 Artigo recebido em 07/10/2020. Primeira avaliação em 12/10/2020. Segunda avaliação em 20/10/2020. Terceira avaliação em 26/10/2020. Aprovado em 30/11/2020. Publicado em 25/02/2021. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v19i38.46459.
Doutora em Sociologia Urbano-Rural, Université de Nanterre, Paris X, França. Professora aposentada da Universidade Federal do Rio de Janeiro e Coordenadora de pesquisa em Sociologia no Arquivo de Memória Operária do Rio de Janeiro. E-mail: cappellinp@gmail.com
Lattes: http://lattes.cnpq.br/2835994964894930. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0061-9271.
Doutor em Sociologia e Direito pela Universidade Federal Fluminense. Professor da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro e professor de sociologia na Fundação de Apoio à Escola Técnica do Estado do Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: jorgecustodio13@yahoo.com.br
Lattes: http://lattes.cnpq.br/4044028651064402. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9313-4849.
Ressaltamos neste artigo os sentidos que assumem a frequência e a obtenção do diploma universitário na trajetória ocupacional de um grupo de trabalhadores, de ambos os sexos, pertencentes às classes populares cariocas. O estudo foi realizado acompanhando um grupo de jovens trabalhadores, de ambos os sexos, que, após ter frequentado cursos em pré-vestibulares comunitários, conseguiram finalmente se matricular nas universidades públicas cariocas e alcançaram o diploma universitário4. A pesquisa registra, assim, dez percursos de vida de trabalhadores que relataram, em 1999, seu cotidiano em plena frequência aos cursos de graduação, pondo em ênfase as motivações e o interesse pela conquista da formação universitária. Sucessivamente, em 2013, as mesmas pessoas foram reencontradas, já de posse do diploma superior. Nesta oportunidade, o diálogo foi aprofundado para compreender o sentido mais amplo dado à educação universitária no que se refere às novas oportunidades encontradas e à experiência ocupacional quando de posse do diploma. Momentos importantes da nossa interação incluíram os depoimentos de vida pessoal e familiar desses trabalhadores.
Em síntese, estes percursos se inserem no contexto mais amplo das contínuas crises econômicas e das consequentes fases de reengenharia dos empregos que ameaçam a permanência no mercado de trabalho. A obtenção do diploma superior se transforma, para eles, em uma conquista social. Neste complexo e crítico contexto socioeconômico, a nossa analise se detém em identificar e sublinhar como e quando, nas experiências destes jovens trabalhadores, aparecem assimetrias de significados e valores de gênero.
4 A estratégia para selecionar os/as entrevistados faz referência às listas de aprovação de alunos do curso de pré-vestibular do Sindicato dos Trabalhadores da Educação da UFRJ (SINTUFRJ), do Centro de Ações Solidárias da Maré (CEASM), do Instituto Palmares de Direitos Humanos (IPDH) e do Centro Comunitário de Capacitação Profissional Paulo da Portela (CCCPP). Outros critérios de escolhas: ter 25 anos de idade frequentando a Universidade, possuir um histórico escolar que inclui uma interrupção dos estudos por três anos no mínimo e ser empregado/a ou ter vivenciado o desemprego durante a década de 1990.
No Brasil, o diploma superior tem indicado historicamente um privilégio das elites e tornou-se para a classe média um instrumento de distinção social que legitima o esforço individual. No contexto das famílias de classes populares, a formação universitária dos jovens trabalhadores é uma recente referência moral e intelectual, que se amplia atingindo as estratégias sociais para o futuro de todo o núcleo. Nas conjunturas recentes, 1990 - 2000, a motivação de aceder à educação superior é fortalecida pelo interesse de frear a insegurança e superar a ameaça do desemprego ou do trabalho precário, buscando alcançar um percurso estável.
Assim, para os/as entrevistados/as, obter o diploma superior se transforma numa credencial que possibilita enriquecer e renovar a experiências profissionais e os estilos de vida. Tudo indica que os ganhos individuais relatados pelos entrevistados se espalham, atingindo a reinvenção das perspectivas de vida não só pessoal, mas também do cônjuge e como projeto de criação dos filhos. Torna-se nítida a ampliação deste capital cultural (o diploma) nas relações sociais.
Hoje, em 2020, com a presente crise plural (sanitária, política e econômica), tudo indica que se reatualizam as experiências e práticas laborais passadas. Desde 2016, o impacto socioeconômico é agravado pelas reformas trabalhista e previdenciária, do congelamento dos gastos sociais, do crescimento do desemprego e do emprego informal. Com efeito, acreditamos que as reflexões aqui apresentadas possam ajudar a acompanhar as escolhas pessoais, o repertório cultural e o imaginário político de trabalhadores antes, durante e depois da pandemia.
A análise sociológica do processo de aproximação à Universidade por parte de trabalhadores brasileiros pretende mostrar a imbricação entre possibilidades, motivações e escolhas. Graças à contribuição da sociologia econômica, esta densa confluência de mecanismos é interpretada como conexão de relações econômicas e culturais. O nosso artigo se propõe refletir sobre a imbricação de diversas dimensões culturais e sociais, além de econômicas, que se manifestam quando jovens trabalhadores buscam atingir o diploma universitário.
Para os economistas, os indivíduos movimentam-se num mercado perfeito. Para eles, seguindo o modelo do ator racional, demandas e ofertas se encontrariam. Granovetter (1973 e 1998), fundador da nova sociologia econômica,
estudou as influências e as conexões que embasam a eficiência de achar o emprego (getting a job) graças a diferentes estruturas e dinâmicas de contatos interpessoais, os networks. O autor ressalta os aspectos relacionais que contribuem para enfatizar quanto o olhar do pesquisador deve-se ampliar ao adotar a perspectiva da imersão das práticas econômicas no contexto de relações sociais. Assim, os contatos pessoais e informais (entre familiares, colegas de trabalho, amigos) e os contatos formais e impessoais (instituições de intermediação, anúncios nos jornais etc.) participam enriquecendo as práticas que procuram renovar a inserção no mercado de emprego. Esta busca, expressão das relações econômicas, é imersa num contexto social e cultural. A socióloga Viviana Zelizer (2005) aprofunda essa instigante perspectiva. A economia e a sociedade são esferas que se influenciam reciprocamente, mantendo um continuum de interações. Não há necessária preponderância de uma esfera sobre a outra.
Através da análise de processos interpessoais, a autora estuda as interações entre atividades econômicas e a esfera íntima, pessoal, dos sentimentos que interferem nas situações de aparentes escolhas econômicas (economic activity and intimacy). Com esses importantes e desafiantes elementos analíticos, renovamos a leitura dos depoimentos dos jovens trabalhadores em três momentos de suas vidas: quando decidem retornar a estudar, quando frequentam o curso pré-vestibular e a universidade e, sucessivamente, após ter obtido o diploma universitário. Este percurso pode ser mais bem percebido se seguimos a sugestão de Granovetter e Zelizer, ampliando a conexão das diferentes interferências. A ênfase atribuída às urgências econômicas não deixa de visualizar a presença das dimensões culturais, em seus valores e sentimentos que fortalecem a inserção na sociedade contemporânea. Enquanto motivações sociais, estas acompanham o agir e o pensar dos trabalhadores que vivenciam a crise do emprego. Esta contingência marca a combinação de resultados econômicos conjuntamente ao futuro sucesso pessoal, como ideário cultural.
Algumas perguntas têm guiado este artigo. Com quais preocupações as pessoas enfrentam o retorno ao estudo? O único incentivo seria proteger-se da ameaça de desemprego, fruto da conjuntura de contínua reorganização dos lugares de trabalho? Sem dúvida, escolher frequentar a universidade, mantendo o vínculo de trabalho, representa uma estratégia que é, ao mesmo tempo, racional e emotiva. Assim, como se entrelaçam dimensões econômicas e afetivas nos comportamentos
de homens e mulheres que retornam a estudar? As pessoas, ao iniciar este percurso, deverão conectar e associar os compromissos de trabalho, de família e de estudo na universidade. O ideário cultural de emancipação tem impulsionado a difusão do projeto de autonomia entre as mulheres trabalhadoras. Como se manifesta a superação da assimetria das relações sociais de gênero? Com efeito, o advento da democratização do acesso à universidade, poderia supor a liberalização, entre as mulheres, da responsabilidade doméstica e afetiva, imposta por longo tempo pelos ambientes sociais de procedência?
No Brasil, só após a Constituição Federal de 1988 é definido o direito público subjetivo (art. 208, VII, lº) à educação para todos, superando a lógica seletiva. Além disso, em 1990, o período de escolarização obrigatória duplicou, passando de quatro para oito anos5. A inscrição na universidade, como “oportunidade” e “chance” é promovida. (Figura 1, In: GOLDEMBERG, 1993 p.68).
O governo Lula (2003-2010) consolidou a progressiva implantação de políticas de financiamento para a educação de jovens e adultos, instituindo um diálogo com a
5 Lembramos que no Brasil, em 1950, apenas 36,2% das crianças de 7 a 14 anos tinha acesso à escola (GOLDEMBERG, 1993, p. 93).
sociedade bem mais aberto em relação aos governos anteriores (1995 –2002). O resultado foi que no período de 1999 a 2006, a média dos anos de estudo da população de 15 anos ou mais, passou de 5,8 para 7,2.
Ainda que a quantidade de vagas disponíveis nos cursos de ensino superior no Brasil siga sendo insuficiente para o número de jovens e adultos que aspiram a um diploma universitário, a expansão da oferta de vagas, sobretudo a partir da década de 1990, é inquestionavelmente significativa. O incremento da quantidade de universidades e vagas é perceptível ao confrontá-lo com os dados do início do século XX, mais especificamente do ano de 1929.
De acordo com os dados fornecidos pelo Departamento Nacional de Estatística do Ministério do Trabalho, no ano de 1929, formaram-se 5.558 pessoas dentre as diversas áreas do conhecimento. Se o ínfimo número de graduados chama hoje a nossa atenção, mais gritante é a discrepância do número de mulheres frente aos homens graduados. Como se pode observar na Figura 2, houve 4.257 homens formados dentre as diversas áreas, e apenas 1.301 mulheres. O que significa uma média aproximada de 3,3 homens para cada mulher formada.
Em contraste, na década de 1990 há um considerável avanço dos concluintes. Mais ainda, as mulheres superam os homens, representando 60% dos graduados. Em 2005, seguindo as estatísticas sobre as universidades, a proporção de mulheres graduadas aumenta para 62%, enquanto as dos homens somente 38%, equivalendo, em números absolutos a 446.724 e 271.134, respectivamente, totalizando 717.858 graduados.
Fonte: INEP, Ministério da Educação, Brasil, elaboração por Cappellin e Cortez, 2009
Notamos que, entre os anos de 1997 e 1998, há um aumento considerável. Nos dois mandatos do Presidente Fernando Henrique Cardoso, o Brasil presencia uma proliferação de instituições privadas de ensino superior. Podemos concluir, portanto, que a progressão de graduados por sexo, de 1929 até hoje, se inverte: em 1929 as mulheres representavam aproximadamente 30% do total de graduados; em 2005 são os homens que representavam 38%. Todavia, embora as mulheres mais jovens atinjam a educação superior, sua inclusão no mercado de trabalho qualificado não é significativamente presente. Isto é, no mercado de trabalho brasileiro, nos últimos trinta anos, sua inserção não se dá de forma linear e tampouco é definitiva. Pelo contrário, tanto no Brasil quanto na Europa a integração produtiva das mulheres é marcada por avanços e retrocessos. Seguindo Margaret Maruani, (2003, p.21) “pode ser caracterizada por três passos para frente, dois passos para trás”. De acordo com a mesma autora, as mudanças que vêm ocorrendo nos últimos trinta anos nas trajetórias profissionais das mulheres não devem ser compreendidas como rupturas, mas como brechas decisivas que não significam, entretanto, uma garantia de conquistas realizadas.
Em última análise, “a feminização do mercado de trabalho é real, mas inacabada, incompleta, tanto que se fez sob o signo da desigualdade e da precariedade”. (MARUANI, 2003, p.21).6 Com efeito, há um dado exemplificativo: em 2006, a taxa de desocupação entre as mulheres na faixa de 18 a 24, atingiu 21,6%, enquanto entre os homens foi de 12,9%.
O período escolhido para nossa análise é emblemático por suceder a uma marcante readaptação das estruturas organizacionais das empresas, iniciada nos anos 1980. Muda-se a composição das ocupações e aumentam as exigências de competência profissional. De uma estrutura vertical, rígida e claramente hierárquica, muitas empresas tornam-se estruturas horizontais, em muitos casos desativando setores e seções ou mais ainda, expulsando seções e serviços para inaugurar a terceirização. Por outro lado, o trabalho em equipe vai sendo substituído pelo trabalho
6 O termo feminização refere-se ao aumento significativo no mercado de trabalho da população feminina em ocupações tradicionalmente designadas aos homens. (BRUSCHINI e LOMBARDI, 2000, NOGUEIRA, 2004).
individual, extremamente especializado. A gerência passa a demandar do trabalhador uma pluralidade de especializações e habilidades, muitas vezes não só técnicas ou racionais, mas também comportamentais e emocionais. Nos anos 1990, se aprofunda a desregulamentação e a flexibilização (CASTEL, 1998). Novas formas contratuais surgem, flexibilizando as jornadas e precarizando as relações de trabalho (CESIT, 2007). Ao desemprego estrutural se agrega o desemprego recorrente, a instabilidade dos contratos e, de forma geral, aumenta a incerteza do vínculo de emprego de um sem-número de trabalhadores. São estes os condicionantes da reestruturação que colocam em risco a continuidade do emprego, sobretudo de quem está, como o segmento por nós escolhido, no mercado de trabalho, de posse de diplomas não universitários.
Entre os anos 1999 e 2013 realizamos os contatos com os trabalhadores, na cidade do Rio de Janeiro. Inicialmente, foi solicitado externar as motivações que os levam escolher e frequentar a universidade. Sucessivamente, aos mesmos trabalhadores, de posse do diploma universitário, foi sugerido avaliar as mudanças e/ou as substituições de suas posições ocupacionais. Nestes períodos, as configurações e os contornos das estruturas socioeconômicas se espelhavam nas próprias trajetórias individuais dos entrevistados. Com efeito, lidamos com gestões do governo brasileiro bastante distintas: a administração do presidente F. H. Cardoso (1994-2002) e a de Luiz Inácio da Silva (2003-2010). Lembramos que desde 1990 a consciência e a mobilização em defesa do direito à educação superior cresceram entre a população jovem e adulta, fazendo com que aumentasse a demanda por projetos políticos-pedagógicos e políticas públicas a ela destinadas. É efetivamente desde o início do governo Lula, diferentemente do governo anterior, que se promovem políticas de expansão, incrementando o acesso ao ensino superior (em instituições públicas e bem mais em universidades privadas). Assim, paulatinamente, o volume de emprego e o consumo de bens se estendem, proporcionando o aumento real do salário mínimo, além do incremento da transferência de renda.
Algumas perguntas têm guiado a análise dos percursos de vida de dez jovens que, inseridos no mercado de trabalho, se vincularam às Universidades públicas (federais e estaduais) na cidade do Rio de Janeiro. A sua releitura põe em evidência a riqueza das emoções, a variedade dos comportamentos e a originalidade das estratégias para seguir com o interesse e superar as muitas dificuldades para frequentar a universidade. Todos os entrevistados (homens e mulheres) conseguiram
obter o diploma, sempre mantendo ativo o vínculo de emprego. Esse sucesso possibilita rearticular carreiras, construir novos estilos de vida e novos retratos identitários? Quais foram os desejos e expectativas destas mulheres e homens trabalhadores cariocas? Que projetos de vida tentaram galgar?
Para todo o grupo entrevistado a experiência de frequentar a universidade proporciona uma renovada socialização, a possibilidade de apropriar-se de novos gostos, ou seja, nos ambientes de trabalho se redefiniram as profissões e as relações interpessoais; nos espaços domésticos foram reorganizadas as relações entre os membros do núcleo familiar, avaliando as dificuldades e ressaltando os ganhos alcançados.
Ao colocar em confronto as experiências dos entrevistados, logo se percebe que as condições de entrada e ascensão das jovens mulheres no mercado de trabalho permanecem marcadas fortemente pela desigualdade. Inicialmente, os entraves à equidade de oportunidades são situados no cotidiano de trabalho. Está presente o fenômeno da segregação horizontal, que se relaciona, mais do que a atributos técnicos ou de escolarização das pessoas, a construções sociais e culturais que atribuem ‘lugares’ e valores diferenciados – e hierarquicamente definidos – ao trabalho de homens e mulheres, negros e brancos. É nesse sentido que podemos recuperar, à guisa de introdução, a reflexão feita por MARUANI (2003:24):
“... As mulheres são globalmente mais instruídas que os homens, mas continuam ganhando menos, ainda concentradas num pequeno número de profissões feminizadas, mais numerosas no desemprego e no subemprego.”
Por outro lado, no ambiente familiar aparecem algumas especificidades. As mulheres relatam que, ao introduzir a dedicação ao estudo, devem negociar para chegar ao equilíbrio do uso do tempo. Elas, e só elas, devem conciliar, no âmbito do trabalho e na família diversas práticas: permanecer no emprego, dar continuidade aos compromissos da vida familiar, empreender a atividade (noturna) de estudo e frequentar as aulas universitárias. Os homens, ao introduzir o tempo de estudo, mantêm maior espaço de autonomia para poder dedicar-se quase integralmente a uma dupla jornada externa aos lares: trabalhar e estudar. Em síntese, por essas iniciais distinções, a meta central da releitura dos depoimentos da pesquisa é ressaltar como a iniciativa pessoal de obter o diploma universitário envolve homens e mulheres em relações e práticas de vidas nem sempre homogêneas em seus significados.
A infância de todos/as trabalhadores entrevistados (em 1999 e 2013) é marcada pela residência nas periferias urbanas. O analfabetismo, a pouca escolarização dos pais e a pobreza são, muitas vezes, consequências do processo de exclusão social ou de situações precárias de moradia, de trabalho, de equipamentos públicos, sofridas na primeira fase de vida. Os pais foram trabalhadores em serviços manuais (qualificado e não qualificado), ou serviços não manuais de rotina (mecânico, serralheiro, trabalhador autônomo, auxiliar administrativo). Entre as mães, muitas foram donas-de-casa, e algumas foram merendeiras, costureiras ou secretárias em consultório médico (Tabela n. 1).
Trabalhadores (*) | Família de origem: | |||||
Curso de Escolhido | Graduação | Ano de Nascimento | Estado Civil 1999 – 2013 | Pais Escolaridade | Mães Escolaridade | |
Adriana Química | 1973 (Parda) (**) | Solteira Casada | – | Ens.Fundamental (Incompleto) | Ens.Fundamental (Incompleto) | |
Filipe Ciências Contábeis | 1966 (Branco) | Casado Casado (***) | – | Ens.Médio (Completo) | Ensino Médio (Completo) | |
Daniel Arquivologia | 1971 (Branco) | Solteiro Casado | – | Ens. Fundamental (Incompleto) | Ens. Fundamental (Incompleto) | |
Levi Arquivologia | 1969 (Branco) | Casado Casado (***) | – | Ens.Fundamental (Incompleto) | Ens.Fundamental (Incompleto) | |
Erica Ciências Contábeis | 1965 (Negra) (**) | Solteira Solteira | – | Ens.Fundamental (Incompleto) | Ens.Fundamental (Completo) | |
Claudia Bibliteconomia | 1972 (Branca) | Casada Divorciada | – | Ens.Fundamental (Completo) | Ensino Médio (Completo) | |
Marcos História | 1971 (Pardo) (**) | Solteiro Casado | – | Ens.Fundamental (Incompleto) | Ens.Fundamental (Incompleto) | |
Simone Ciências Sociais | 1967 (Branca) | Casada Casada (***) | – | Ensino Superior (Completo) | Ens.Fundamental (Incompleto) |
Carmen Ciências Contábeis | 1963 (Negra) (**) | Solteira - Divorciada | Ens.Fundamental (Incompleto) | Ens.Fundamental (Incompleto) |
Pedro Arquivologia | 1969 (Pardo) (**) | Casado – Casado (***) | Ens.Fundamental (Incompleto) | Ens.Fundamental (Incompleto) |
(*) Os nomes das pessoas entrevistadas são codinomes. (**) Autodeclaração das pessoas entrevistadas.
(***) Casado com outra pessoa em 2013.
Todos os entrevistados alcançaram o ensino médio normalmente na adolescência. Alguns deles tentaram o exame vestibular, mas não conseguiram ingressar nas faculdades. Em geral, esta decepção é superada pela urgência de trabalhar e colaborar com o orçamento familiar. Tudo leva a mantê-los afastados dessa ambição, por muito tempo. Nos relatos, na fase adulta, retorna o desejo de estudar, de frequentar a universidade. Por isso, todos frequentam um curso pré- vestibular especificamente dirigido para trabalhadores. As metas enunciadas são precisas: superar a ameaça de desemprego e usufruir de novas condições de inserção profissional. Por estas aspirações, as pessoas entrevistadas se diferenciam da jovem população estudantil que chega à universidade sem ter interrompido os estudos no nível médio e sem, provavelmente, ter procurado uma relação de emprego fixo, ou não ter assumido a formação de uma nova família. Estamos assim acompanhando percursos não de jovens estudantes, mas de jovens trabalhadores-estudantes.7
Dito isso, podemos chegar ao core da problematização: reconhecer quando e como aparecem interferências que distanciam as experiências entre homens e mulheres.
A decisão de retornar a estudar numa estrutura pública universitária advém no contexto econômico do fim dos anos 1990. É quando se verificam profundas alterações organizativas e tecnológicas nos locais de trabalho. Reorganizações, desregulamentação e fusões de empresas, recrudescem as condições de trabalho e enfraquecem o reconhecimento dos direitos sociais. No decorrer de todas as entrevistas aparecem evidentes os vários constrangimentos que, naquela época, motivam reativar a trajetória de estudo. Os sentimentos que estão sempre presentes se referem aos fenômenos provocadores de instabilidade e de insegurança que ameaçam a certeza de um vínculo estável no mercado de trabalho. Os trabalhadores
7 Várias são as pesquisas e estudos na área de educação que têm enriquecido a análise da aproximação de trabalhadores adultos à universidade. Entre outros, ROMANELLI, (1978) ZAGO (2006), SOUZA E SILVA (2003) COULON (2008).
acreditam que ativar um percurso de estudo nas universidades públicas lhes proporcionaria maior conhecimento e poder para, assim, conseguir superar o passado. Isso é possível graças à crença difusa que a obtenção do diploma universitário é uma fonte de promissor sucesso (CUSTODIO, 2017).
Dispor-se a frequentar a universidade demanda um conjunto de escolhas: superar o exame pré-vestibular, identificar instituições acadêmicas válidas, perceber suas novas vocações e interesses acadêmicos, alocar recursos monetários para comprar livros e materiais didáticos, e, finalmente, aprimorar os laços e a divisão do trabalho8, no próprio ambiente familiar para inserir o tempo de estudo.
A leitura das entrevistas, realizadas na segunda fase, em 2013, oferece a possibilidade de repensar as experiências de vida profissional. Com efeito, todos eles concluem o percurso de estudo. Estes relatos não evidenciam as mesmas ameaças, nem os mesmos desafios registrados no ano de 1999, quando iniciaram sua aproximação ao mundo universitário. Em 2013, eles apontam dinâmicas e ambientes renovados. Efetivamente, a conjuntura econômica nacional é diferente. Por um lado, em 2013, o mercado de trabalho aponta a redução dos impactos dos ajustes recessivos. Manifestam-se evidências de crescimento e expansão econômica. Por outro, de posse do diploma universitário, o medo e o risco de perder o emprego são substituídos pela satisfação de ter conseguido progredir, vivenciando novas oportunidades, tendo conseguido até fazer avanços ou mudar a inserção profissional e/ou emprego.
Ao ouvir jovens mulheres e homens em seus balanços de vida, compartilhando satisfações e desafios, fomos levados a aprofundar, com o recorte de gênero, os impactos dessa larga experiência de sociabilidade no ambiente profissional e no núcleo familiar.
8 Para KERGOAT (2000, p. 55) “A divisão sexual do trabalho é a forma de divisão do trabalho social decorrente das relações sociais de sexo; essa forma é adaptada historicamente e a cada sociedade”.
As mulheres reconhecem, em seus depoimentos, que as condições e o tratamento no mercado de trabalho diferenciam as pessoas. O seu desejo de independência, principal razão em busca do diploma universitário, nem sempre foi correspondido no ambiente familiar, devido ao costume de organizar de forma rígida a divisão sexual do trabalho. (BRUSCHINI e LOMBARDI, 2000; KERGOAT, 2000; HIRATA, 2002; CAPPELLIN, 2005).
Algumas delas apontam que estas dificuldades não só tornam insegura a permanência no mundo do trabalho, mas se agravam, enfraquecendo até a perspectiva de crescimento profissional (TONELETO FRANCO de SOUZA, 1998). É sobretudo o marido quem se opõe a que elas conciliem o exercício profissional com o estudo, já na época de frequentar a universidade. Às vezes parece que suas expectativas de emancipação pelo trabalho estimulam reformular a dinâmica familiar, decorrentes das contínuas resistências culturais na esfera privada. As passagens ocupacionais realizadas pelas jovens mulheres são aqui sistematizadas:
De técnica em química de alimentos em empresa nacional, para técnica sênior em empresa americana, conjuntamente com atividade de professora.
De técnica em contabilidade em empresa de telefonia, para contadora sênior em empresa de telefonia terceirizada.
De vendedora de loja e operadora de telemarketing, para representante de vendas em laboratório farmacêutico, conjuntamente à prática de bibliotecária autônoma.
De recreadora numa escola privada na Maré, para professora em escola pública.
De balconista, para técnica sênior em contabilidade na empresa estatal Infraero.
Movimentar-se no mercado de trabalho, após ter obtido um diploma por uma universidade pública do Rio de Janeiro, é uma meta que se torna realidade efetiva para todas as mulheres entrevistadas. Frequentemente, os ganhos individuais podem contrariar ou se chocar com a hierarquia de poder e a divisão sexual de trabalho nos espaços produtivos e reprodutivos. As relações entre os trabalhadores-estudantes e os familiares nesta fase de transição solicitam conciliar o trabalho, o estudo e os compromissos domésticos. Na fase adulta, a decisão de introduzir o tempo de estudo é enfrentar contínuas negociações a fim de ajustar, modificar, inovar, introduzir novas
atividades e aspirações que superam as exigências preexistentes provindas do ambiente do trabalho. Em cada depoimento há exemplos concretos desse contrasto. Adriana, de balconista tornou-se técnica em química de alimentos, conseguindo um emprego num laboratório. “O trabalho é muito duro, produzir mais é impossível (...). Eu sei de uma coisa: o estudo ampliou minhas possibilidades de emprego e carreira, é o que importa para o meu futuro.” (Curso de Química/UERJ).
As trabalhadoras entrevistadas têm associado a posse do diploma superior às expectativas de mudanças, a ganhos econômicos, à ampliação de sua autonomia pessoal. Pelas novas posições ocupacionais alcançadas, constatamos que ocorre a
mobilidade, sem por isso chegar a alcançar níveis significativos na hierarquia profissional.
Os homens relatam vários momentos da trajetória ocupacional que os incentivam a procurar o ensino superior. Para eles, a meta é reajustar e enriquecer o compromisso designado de trabalhador-provedor. (OLIVEIRA, 2005; CAPPELLIN, 2005). Esta responsabilidade, que lhe é atribuída, é fonte de difusas e contínuas ameaças pela instabilidade do vínculo de emprego no atual cenário do mercado de trabalho. Esta instabilidade é ainda mais forte para o homem que assume, ainda na juventude, a sobrevivência do núcleo familiar. Nos anos 1990 os entrevistados iniciam sua inserção, logo após frequentar o segundo grau de ensino básico, em âmbitos ocupacionais bastante vulneráveis. São posições que sofrem maior instabilidade pela reorganização interna das empresas. Lembramos que no fim dos anos 1990, no governo Fernando H. Cardoso, através de decretos, leis e medidas provisórias, as regras de contratação de emprego são alteradas. Importantes direitos da legislação trabalhista que possibilitam proteger são cancelados ou fragilizados por novas normas. Emerge uma nova configuração dos vínculos de empregos que aumenta as formas precárias de trabalho (BOURDIEU, 1998; POCHMANN, 2001 e 2012; CARDOSO Jr., 2001). O amplo processo de desregulação, a assim chamada insegurança socioeconômica, atinge a vida dos trabalhadores em sua cotidianidade (STANDING, 2005; CUSTODIO, 2015; CARDOSO e AZAIS, 2019). Os trabalhadores
entrevistados citam diferentes constrangimentos, dentre os quais se destacam: o risco de ser expulso do emprego; a possibilidade de retroceder nas condições de trabalho e/ou nos direitos adquiridos; a impossibilidade de progredir na carreira; a ameaça e o medo de ter de enfrentar um longo período de desemprego.
Eles lembram que as motivações para buscar o acesso à universidade provêm de um contexto de premente solicitação para uma mais alta qualificação profissional, aprimorando e atualizando conhecimentos e saberes. Para eles, são empurrados a introduzir estudo ao trabalho, pelas dinâmicas do mercado concorrencial externas ao núcleo familiar. A distribuição do seu tempo, bem mais coeso, solicita, por outro lado, menores exigências de negociação entre a vida profissional e a vida privada, do que acontece com as mulheres. Aos homens não é atribuída qualquer superposição entre
vida pública e vida privada. O compromisso de ordem doméstica não lhe compete socialmente. As dinâmicas, com menores pressões internas ao núcleo familiar, dizem respeito essencialmente à reorganização de sua vida pessoal. As passagens ocupacionais realizadas são aqui sistematizadas:
De pedreiro autônomo, para professor.
De encadernador, para arquivista chefe num escritório de advocacia.
De office-boy, para arquivista no Arquivo Nacional.
De porteiro, para despachante na Marinha.
De auxiliar de serralheiro, a gerente de vendas.
A preocupação que os homens verbalizam diz respeito mais à esperança do que às novas aquisições obtidas, acentuando que a relativa ascensão na pirâmide profissional permite abandonar a baixa qualificação e as contínuas ameaças do desemprego.
da construção de uma vida melhor, estar por cima” (Curso de Matemática UERJ).
fugir do conformismo. O diploma, assim, veio pelo espírito de resistência e esperança” (Curso de Arquivologia UNIRIO).
Nos depoimentos destes trabalhadores é marcante o valor atribuído à ética do trabalho, transmitido pela família, já desde a infância (CUSTODIO, 2017). Se confrontarmos as trajetórias entre os/as entrevistados/as, percebe-se que para as trabalhadoras há situações
“...de contrastes e de paradoxos, de progressos evidentes e de regressões impertinentes, de movimentos e de ventos contrários cujo resultado ainda se avalia mal. É essa situação eminentemente móvel e instável (...) a cartografia das diferenças de sexo no mercado de trabalho.” (MARUANI, 2003, p.23).
Para os homens, a conexão entre trabalho diurno e estudo noturno é parte do compromisso pessoal e coletivo. Pode-se até afirmar que, após a obtenção do diploma universitário, há maior reconhecimento na mudança de posição ocupacional conseguida. A força da atribuição social de homem provedor poderia sugerir até a maior sensibilidade por parte do ambiente de trabalho que o recompensa, com maior poder aliado ao avanço, profissional e econômico (BILAC,1978; OLIVEIRA, 1990).
Nas duas oportunidades de contato (1999 e 2013), as pessoas entrevistadas têm modificado sua vida pessoal e vivência familiar (Tabela n. 2) Sublinhamos, sem nenhuma pretensão de representar a realidade demográfica da população brasileira, as alterações dos dez núcleos familiares que temos conhecido no decorrer da pesquisa.
Entre os entrevistados, só duas mulheres permanecem no seio da família de origem, sem filhos. Quatro (duas mulheres e dois homens) no decorrer do período de estudo universitário, saem do núcleo de origem para constituir um novo núcleo familiar. E constatamos que entre os núcleos das entrevistadas há a presença de um ou dois filhos, enquanto os entrevistados têm um núcleo familiar mais extenso (dois e três filhos).
Tabela n. 2: Trabalhadores, presença de filhos e mudança do estado civil, 1999 e 2013
Família (Estado civil) | |||
Trabalhadores (Filhos) | 1999 | Anos intermediários | 2013 |
Adriana (Sem filhos) | (Solteira) | ----- | (Casada) |
Felipe (3 filhos) | (Casado) | (Divorciado) | (Casado) |
Daniel (1 filho) | (Solteiro) | ----- | (Casado) |
Lévi (3 filhos) | (Casado) | (Divorciado) | (Casado) |
Érica (Sem filhos) | (Solteira) | ----- | (Solteira) |
Marcos (Sem filhos) | (Solteiro) | ----- | (Casado) |
Claudia (2 filhos) | (Casada) | ----- | (Divorciada) |
Simone (1 filha) | (Casada) | (Divorciada) | (Casada) |
Carmem (1filha) | (Solteira) | (Casada) | (Divorciada) |
Pedro (2 filhos) | (Casado) | ----- | (Casado) |
As dinâmicas no seio destes núcleos familiares são frequentemente enriquecidas por arranjos e mudanças que não excluem contradições e ambiguidades, já que cada pessoa está em contínuo amadurecimento cultural e social. Assim, é valido resgatar as situações que têm demandado novos esforços para conciliar a presença do compromisso (frequência a universidade) juntamente ao tempo dedicado à família e ao emprego extra doméstico.
Todos os entrevistados apontam o quanto as relações interpessoais são marcadas por dinâmicas entre gerações diferentes (entre pais e filhos, entre maridos e esposas). Entretanto, como é abordada a conciliação entre família, trabalho e estudo?
A análise do balanço da provisória experiência de articulação trabalho-estudos, solicita predispor duas leituras: a experiência das mulheres e a experiência dos homens. O ideário cultural que impulsiona os processos de modernização das relações de gênero – enfatizado na literatura sociológica e na difusão das propostas dos movimentos feministas nos anos 1990 – apoia-se muitas vezes no pressuposto de que o Rio de Janeiro, como grande centro urbano, é parte dos territórios mais
férteis, acolhedores, permeáveis às inovações de comportamentos igualitários entre as pessoas (ARAUJO e SCALON, 2005; CAPPELLIN, 2004).
Entre as mulheres entrevistadas as dinâmicas nos núcleos familiares são fontes frequentes de contradições e ambiguidades. Quando frequentam a universidade (fase provisória entre trabalho e estudo) elas ressaltam a tensão de ter que manter ativos seus múltiplos papéis. Reiteram, assim, como o sentimento de insegurança e desconforto acompanha sua perene divisão entre o desejo (avançar em seu preparo profissional) e a responsabilidade (compromissos familiares). Mas nenhuma delas abandona a iniciativa de fazer “isto e aquilo”. (ÁVILA e PORTES, 2012). Alcançar e conquistar a autonomia econômica, em busca de auto realização (BECK, 2003 e 2010), atrita com os clássicos compromissos que a família lhes exige (SINGLY, 2012). As pesquisas realizadas sobre o uso do tempo no Brasil (SOARES e SABOIA,
2007; DEDECCA, 2007) respaldam estes desconfortos. Os dados apontam que, nos núcleos familiares das camadas populares, as mulheres são ainda as maiores responsáveis pelo trabalho não remunerado de afazeres domésticos (SOUZA PASSOS e GUEDES ROCHA, 2016). Isso é particularmente evidente entre as entrevistadas. Em seus arranjos familiares não há nunca a menção de contratação ou de ajuda extra, por parte de outras mulheres, para aliviar a densa rede de compromissos. Alguns exemplos são ilustrativos:
Adriana: “O diploma superior me trouxe um choque de felicidade. A reviravolta se expressou na família de origem. Tornei-me a única com diploma superior. Eles têm muitos filhos e até netos, além de viverem pelo subemprego (...). Eu ainda preservo as amizades da favela, do pré-vestibular e da graduação (...). Eu sinto o desejo de engravidar, porém estou amarrada no trabalho pelo tempo. O marido se empolga e sugere que largue tudo pelo desejo. A realidade é dura e o bem- estar exige dinheiro. Sinto que é preciso reorganizar o tempo e as fases da vida.” (Casada sem filhos)
Erica: “Realizei uma revolução pessoal pelo estudo, sobrevivendo ao stress do trabalho e do estudo. Eu influencio muito um sobrinho (...). Transmito na família um sentido de ascensão social pelo estudo. A família reconhece meu esforço e me respeita pela capacidade de fazer o futuro. Sinto que meu sobrinho me ouve e me admira. Ele me procura sempre para conversar e pensar uma futura profissão.” (Solteira sem filhos).
Claudia: “Atingir a formação superior comportou a coragem frente à repressão e ao machismo vividos no seio da família. Eu sinto que o diploma me trouxe liberdade, porque agora possuo uma profissão, sem estar na tutela de marido. Superei limites do casamento na busca de formação superior. Eu hoje estou bancando o divórcio, apesar das dificuldades, porque ainda não saiu o concurso público para a
Biblioteca Nacional, mas eu consigo ganhar meu dinheiro.” (Divorciada com dois filhos).
Simone: “A família reconhece que superei a submissão no trabalho e em casa. Eu seria, se não resistisse pelo uso do estudo, sempre uma balconista, dependendo muito do marido (...). O diploma me trouxe o emprego formal, o que me deu mais liberdade na vida conjugal.” (Casada após um divórcio, com filha).
Carmen: “(...) O diploma superior nasce pela disciplina de estudo, sendo um êxito pessoal. Reflete meu esforço em tempo e energia. O estudo me fez ter outra consciência na criação da minha família. Eu não tenho a visão dos meus pais (...). Transmito novas visões de mundo, esperando que ela seja uma pessoa mais forte. Eu tive muitos complexos, problemas na autoestima e na autoconfiança pelo fato de ser negra, algo que nos impõe pouco a pouco, sem a gente sentir.” (Divorciada com filha).
Essas perspectivas de futuro indicam que entre as mulheres há a formação de contínuas tensões entre papéis atribuídos socialmente (na esfera privada) e a busca de maior qualificação, estimulada para poder concorrer, em breve, no mercado de trabalho com maior qualificação. Estas dinâmicas são fontes de constrangimentos que tencionam a manutenção da complexa rede da identidade feminina: ser mulher, ser trabalhadora, ser mãe, ser esposa.
Para os homens, a introdução do tempo de estudo concomitante ao tempo dedicado ao trabalho parece promover novas reflexões. Os desafios para seguir frequentando a universidade, nem sempre tencionam ou reduzem os compromissos em sua vida. Para eles, superar as dificuldades tem como meta principal ganhos futuros, que se dirigem à próxima geração, os filhos. Isto imprime uma nova ordem moral: ativar o papel de pai-educador (CUSTODIO, 2015, p.110). Enfim, os depoimentos indicam que os trabalhadores usufruem, com menos constrangimentos, do tempo de estudo e de convivência no interior do ambiente universitário. Eles têm a possibilidade de aprimorar seus gostos e posturas. Afinam e apreciam os ambientes urbanos conseguindo ter acesso à cultura urbana da cidade do Rio de Janeiro (cinema, teatro, exposições de arte, etc.). Por último, almejar o sucesso será, para eles, uma oportunidade a ser transmitida, finalmente, aos filhos e às esposas. Alguns exemplos:
Filipe: “A família recebeu o fruto do meu trabalho. As crianças receberam uma ótima criação. Elas estão fazendo hoje Administração, o menino tem 25 e a garota tem 26 anos. Eu agora sou pai novamente. A vida sempre te surpreende pela própria renovação (Casado após um divórcio, três filhos).
Daniel: “Eu cultivarei na criação do meu filho o diálogo, a conversa e o amor, orientando-o para o futuro. Eu uso o diploma e a autobiografia para mostrar o valor da educação e que a mudança é possível... houve uma revolução mental na família” (Casado com um filho).
Levi: “A família tem de continuar o que eu comecei. Eu exijo dos meus filhos muito estudo. Relaciono estudo e futuro, além de explicar a história da família. Meu pai sempre diz que tem um filho que é mecânico (meu irmão) e outro que é inteligente. Eu, no entanto, sou muito grato pelo apoio que recebi da mãe dos meus filhos. Ela me fez acreditar e persistir num futuro. Temos de trazer mais diplomas para a família” (Casado após divórcio, três filhos).
Marcos: “A família me admira e ao mesmo tempo estranha meu comportamento. Eu me casei e formei uma família própria sem filhos.
.... Eu influenciarei sutilmente a educação do meu sobrinho. Torço para criar o gosto pela leitura. Eu reforço sempre a necessidade do estudo para minha esposa. (...) A família e a esposa reconhecem meus êxitos na vida” (Casado sem filhos).
Pedro: “A minha família estava na luta pela sobrevivência e assim eu não tive oportunidades de estudo. Recebi muitas reclamações da esposa. Eu estava muito ausente de casa e nossa filha sentia muito. O tempo da família ficou mais curto, porém minha esposa se acostumou e reconhece que tudo é para o bem da família. Eu e ela sabemos que é necessário se diferenciar pelo nível de formação. Eu hoje priorizo a educação dos filhos (...). Eu lhes deixo como herança a educação, o que lhes dará ascensão social e respeito social. (...) tornei-me sinceramente a inspiração da família. Eu não aceitaria deixar um filho sem estudo” (Casado com dois filhos).
Em muitos desses depoimentos há a reinterpretação do poder da autoridade paterna. Antes, para muitos, em sua família de origem, a fonte da presença educativa do homem junto aos filhos era manifestada exclusivamente através da ética do trabalho. Hoje, a meta principal é fortalecer uma ética de trabalho qualificado. A posse do título universitário (novo capital cultural) é uma manifestação deste recurso simbólico, que eles oferecem como legado aos filhos. Vivenciar um longo período de aprendizado frequentando o ambiente universitário, influencia modificando o poder de pai tradicional, e favorecendo o compromisso por uma paternidade mais ativa, educadora da nova geração. Inaugura-se uma ruptura da reciprocidade homens- mulheres no meio familiar (SARTI, 2003).
Podemos assim enfatizar que, para os/as entrevistados/as, o bom desempenho, a partir do sucesso em obter o diploma universitário, parece ter repercussão diversificada nas dinâmicas de reprodução social do núcleo familiar. Para as mulheres, emergem mais rapidamente os constrangimentos que aumentam suas responsabilidades (domicilio, família e vida pública no trabalho e na universidade), limitando os ganhos e a riqueza de significados futuros, percebidos como projetos,
mas nem sempre alcançados em sua vida. Para os homens, quando descrevem sua renovação de estilos e a incorporação de gostos cotidianos de classe, percebe-se que o projeto de futuro se realiza, aprimorando o amadurecimento individual de sua identidade. O projeto dos homens se estende, incluindo em sua responsabilização, a maior participação ativa na criação dos filhos. A renovação da identidade dos trabalhadores (entrevistados) é, sem dúvida, um ganho positivo que parece poder ampliar o papel da paternidade, no núcleo familiar.
A crise que estamos vivenciando desde 2019, pela sua natureza plural (sanitária, política e economia), está acelerando as transformações no mercado de trabalho. Por isso, o passado que acabamos de apresentar pode apresentar muitos elementos de continuidade com a atualidade. As transformações que atingem o mercado de trabalho hoje, bem mais que ontem, fomentam a erosão da estabilidade do emprego, acelerando as possibilidades de exclusão. Para a jovem geração de trabalhadores, que tem sido compelida a abandonar prematuramente os estudos, obter um diploma universitário continua representando um valido exemplo dos investimentos pessoais disponíveis para arrestar e/ou se proteger de ameaças de desemprego.
O interesse implícito neste artigo foi realizar uma releitura das potencialidades do acesso ao ambiente universitário público, na modalidade presencial, assumindo a perspectiva do recorte de gênero. O percurso e o êxito em alcançar o diploma universitário colaboram para aproximar as trajetórias e as práticas entre jovens? Como e quando neste percurso de emancipação pessoal se manifestam as tradicionais assimetrias e diferenciações de gênero na cotidianidade de trabalhadores/as?
O acesso às universidades públicas por parte de “alunos não tradicionais” - alunos maiores de 25 anos, com compromissos familiares e de emprego (ALMEIDA et al, 2012), nem sempre é garantia de vivências e experiências homogêneas entre os estudantes. Originários de ambientes familiares com nenhuma tradição de formação acadêmica superior, são todos compelidos a realizar diferenciadas adaptações no quotidiano para não desistir do objetivo final, o diploma universitário.
Temos apresentado os mais importantes resultados, evidenciando as modalidades em conciliar trabalho, família e estudo dos jovens homens e mulheres.
Todos os/as entrevistados/as, pertencendo à primeira geração de longa escolaridade, compartilham a supervalorização do diploma obtido por universidades públicas no Rio de Janeiro. Este é reconhecido como um passaporte que confere, no nível individual, autoestima e a nível coletivo, cidadania. A valorização cultural da educação superior na mentalidade cultural brasileira é parte do legado dos anos 1950 (PAIVA,1997). Esta continua representando o meio que parece contribuir para superar a exclusão social. O diploma continua sendo valorizado como recurso que abre para novas oportunidades, favorecendo a desejada mobilidade ascendente na rígida estrutura de classe brasileira9. Assim, esta perspectiva segue influenciando, fomentando impactos positivos nas vidas desta geração (homens e mulheres) que abandonou prematuramente os estudos para contribuir à formação do orçamento familiar.
Há quem, de posse do diploma universitário, espera poder mudar e/ou crescer na hierarquia ocupacional, quem espera ter condições de investir na compra da casa própria, ou na posse de automóvel, em aumentar o acesso aos bens e serviços de lazer, para si próprio e para os familiares. A pesquisa aponta percursos de sucesso, isto é, todos tiveram a capacidade de superar os desafios na e fora da universidade. Há modalidades diferenciadas entre homens e mulheres, mas a forte motivação e mobilização para projetos futuros, ampara para que todos enfrentem e superem o desgaste físico, aceitem cargas horárias extensas, mesmo não obtendo ajuda econômica complementar, para matricular-se e frequentar as universidades federais. Finalmente, é no núcleo familiar onde registra-se a maior transformação de valores culturais. Sobretudo entre os jovens homens pais-alunos há abertura para renovar até sua autoridade moral quando desenham e projetam o futuro de sua família. Mudam as atenções dadas aos filhos, abre-se também a possibilidade de proporcionar a reinvenção da vida junto aos cônjuges. Aos ganhos materiais se aliam, assim, ganhos também simbólicos. De uma meta individual, instigada pelo medo do desemprego, de causas econômicas, chega-se a ampliar os horizontes culturais. Podemos afirmar que, no início, incorporar a frequência à universidade foi
9 Lembramos a importância, para o processo de mobilidade social, do nível educacional. Entre as contribuições em sociologia lembramos o estudo de PEUGNY (2014) que renova a análise da dinâmica geracional da mobilidade social nas últimas décadas.
apresentada (em 1999) como uma modalidade individual de luta. No sucessivo contato (em 2013), os depoimentos apontam para um olhar mais amplo, contribuindo para redefinir o destino do coletivo intergeracional de muitas famílias dos estudantes- trabalhadores. (CUSTODIO, 2015).
As mulheres entrevistadas parecem indicar que os ambientes sociais de procedência não sabem apreciar a iniciativa de retornar a estudar, frequentando uma universidade pública. Introduzir no cotidiano esta nova atividade não as libera da centralidade do conjunto de deveres familiares, que ainda aparece como limitação solicitada. Também nas práticas de trabalho, nos depoimentos, elas denunciam persistentes ambiguidades entre tradição e inovação das relações de gênero. Assim, a experiência das jovens-estudantes distancia-se daquela de seus colegas homens. O contínuo apelo à centralidade da solidariedade e do altruísmo familiar, freando assim as motivações de qualificação (entre as mulheres) marca o confronto com o reconhecimento e a exaltação da atividade profissional (entre os homens). Por isso, continua difícil para elas conseguir incorporar e alimentar as perspectivas de aspirações profissionais. Para elas, é ainda um desafio atingir a autonomia e superar as expectativas que continuam a encaixá-las em posição subordinada no ambiente de trabalho, assim como no núcleo familiar. Assim, sua individualidade se renova mais devagar por ter que confrontar-se e negociar com sentidos tradicionais de sua responsabilidade familiar. Mesmo com estas ambiguidades, tudo indica que entre elas, diminui o peso da norma cultural denominada de “realização vicária”, segundo a qual a mulher buscaria o sucesso pelo êxito de sua contribuição para o “feito de outra pessoa, em geral marido ou filhos” (MARKUS, 1987, p.98).
Lembramos que entrevistamos um grupo de trabalhadores admitidos na fase de massificação das instituições universitárias públicas que oferecem o acesso a um conhecimento profissional de qualidade. Hoje é considerado direito público subjetivo completar o ensino fundamental-obrigatório. Mais alto é o salto de qualidade quando se pertence à primeira geração de longa escolaridade, a universitária. A estratégia de acesso (frequentando cursos pré-vestibulares para trabalhadores), a obtenção do diploma universitário em instituições públicas para estes “alunos novos” é fonte de autoestima. Nesse sentido, a condição objetiva do crescimento de oferta de vagas nas universidades públicas (federais ou estaduais), aliada ao crescimento da demanda de estudo (sobretudo por parte de mulheres e homens trabalhadores), é parte das repercussões da assim chamada massificação do ensino superior. Acompanhamos
a literatura (SGUISSARDI, 2015, ALMEIDA et al. 2014) quando sublinha que não há igualdade de oportunidades ao acesso entre esta população de jovens trabalhadores se comparada aos “alunos tradicionais” que se apresentam na faixa etária esperada e têm no meio familiar um background universitário. Finalmente, podemos perguntar: êxitos individuais podem indicar a existência de repercussões sociais difusas? O grupo entrevistado, “alunos novos”, explicitaria que na sociedade brasileira há iniciativas de "massificação" das instituições públicas federais a nível presencial? Não há dúvidas que este processo se realiza numa encruzilhada entre motivações pessoais e dinâmicas objetivas no mercado de trabalho que fomentam contínuas ameaças de desemprego.
Ė de extrema importância não abandonar ou perder o registro destas iniciativas de abertura ao acesso pelas universidades públicas no Brasil durante as primeiras décadas do século XXI. Nos anos atuais, a centralidade de democratização do saber parece estar ameaçada pelos contínuos programas de contingenciamento. Se isto continuar a acontecer, poderá causar um dano irreparável, apagando os caminhos que, durante duas décadas, contribuíram para remodelar um dos objetivos das Universidades Públicas (Federais e Estaduais): acolher sempre mais jovens alunos de ambos os sexos, dos mais diferentes segmentos da sociedade brasileira.
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Giovana Xavier2
Resumo
Meu objetivo com este texto é discutir avanços e dificuldades da invenção de uma comunidade científica fundamentada na tradição feminista negra de articular pensar e fazer. Alicerçada em conceitos como autodefinição (COLLINS, 2019) e narrativa na primeira pessoa (XAVIER, 2019) analiso os diversos significados do Grupo de Estudos e Pesquisas Intelectuais Negras na UFRJ. Com isso, menos do que rebater pressupostos de objetificação da estrutura acadêmica, interessa-me apresentar caminhos alternativos de produção científica, dentro da abordagem que conceituo história intelectual das mulheres negras.
Palavras-chave: história intelectual de mulheres negras; narrativa na primeira pessoa; validação de conhecimento.
INTELECTUALES NEGRAS UFRJ: LA INVENCIÓN DE UNA COMUNIDAD CIENTÍFICA Y SUS DESAFÍOS
Resumen
Mi objetivo con este texto es discutir los progresos y las dificultades de la invención de una comunidad científica basada en la tradición feminista negra de articular el modo de pensar y hacer. Basado en conceptos como autodefinición (COLLINS, 2019) y narrativa en primera persona (XAVIER, 2019), analizo los diferentes significados del Grupo de Investigación e Estudios Intelectuales Negras de la UFRJ. Por lo tanto, menos que refutar los supuestos de la objetivación de la estructura académica, me interesa presentar caminos alternativos de producción científica, dentro del enfoque que conceptualizo la historia intelectual de las mujeres negras.
Palabras clave: negras intelectuales; narrativa en primera persona; validación de conocimientos.
BLACK FEMALE INTELLECTUALS GROUP UFRJ: THE INVENTION OF A SCIENTIFIC COMMUNITY AND ITS CHALLENGES
Abstract
My aim with this text is to discuss advances and difficulties of the invention of a scientific community based on the black feminist tradition of articulating thinking and doing. Based on concepts such as self-definition (COLLINS, 2019) and first-person narrative (XAVIER, 2019) I analyze the different meanings of the Black Women Intellectuals Studies and Research Group at UFRJ. Thus, rather than rebutting the assumptions of objectification of the academic structure, I am interested in presenting alternative paths of scientific production, within the approach that I conceptualize the intellectual history of black women.
Key-Worlds: Black Females Intellectual; History; First person narrative; Validation of Knowledge.
Artigo recebido em 17/06/2020. Primeira avaliação em 18/08/2020. Segunda avaliação em 19/08/2020. Aprovado em 01/09/2020. Publicado em 25/02/2020. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v19i38.43121.
Doutora em História Social pela Universidade Estadual de Campinas - Unicamp, Campinas – São
Paulo, Brasil. Profa. Didática e Prática de Ensino de História Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, Rio de Janeiro - Brasil. Líder apoiada pelo Programa de Aceleração e Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras Marielle Franco do Baobá Fundo para Equidade Racial. Email: contatogiovanaxavier@gmail.com. ORCID: 0000-0002-6118-3889.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/9883445785268500
Percebi que minha formação como cientista social era inadequada para a tarefa de estudar o conhecimento subjugado do ponto de vista das mulheres negras. Isso porque os grupos subordinados perceberam há muito tempo que é necessário recorrer a formas alternativas para criar autodefinições e autoavaliações independentes, rearticulando-as por meio de nossos próprios especialistas. Como outros grupos subordinados, as afro-americanas não apenas desenvolveram um ponto de vista específico das mulheres negras, mas usaram formas alternativas de produzir e validar o conhecimento para isso.
(PATRICIA HILL COLLINS, 2019, p. 402)
Hoje, eu gostaria de pedir que todo mundo fechasse os olhos e se perguntasse “como eu quero contar minha história?” Imagine-a. Na forma de um desenho. De um poema. Um livro. Uma música. Do jeito que você quiser. Afinal, ela é sua. Só sua. De mais ninguém.
(GIOVANA XAVIER, 2019)3
Esta é uma história de muitos começos. Oito de abril de 1979, dia do meu nascimento, em tarde de céu azul e sol escaldante, no subúrbio carioca do Irajá, como cresci ouvindo minha mãe, com sorrisos e olhos marejados, contar-me. Março de 1999, ano em que vivi minha primeira grande mudança. De jovem suburbana, trabalhadora informal, me transformo em estudante universitária do curso de História da UFRJ. Janeiro de 2009, um ano depois de enterrar minha mãe e minha avó, desembarquei nos EUA. País no qual por durante um ano vivi a experiência de ser estudante internacional na New York University.4 Março de 2012, depois de longo ritual, deixo, acompanhada por amigos e familiares, o prédio do Instituto de Filosofia e Ciências
Meu trabalho de intelectual pública envolve a redação de textos livres para diálogo com o público aos quais denomino narrativas na primeira pessoa. É o caso de Como você quer contar sua história?, preparado e lido no lançamento do meu livro Você pode substituir Mulheres Negras como objeto de estudo por Mulheres Negras contando sua própria história, na XVII Festa Literária Internacional de Paraty, 2019.
Doutorado Sandwich CNPq, realizado no Departamento de História da NYU, onde tive a oportunidade marcante de ter como supervisora a Profa. Dra. Barbara Weinsten.
Humanas da Unicamp. Com céu estrelado, carregava em meu ventre um bebê de cinco meses. Na bolsa, um diploma de doutorado.5 Outubro de 2013, céu azul e sol escaldante voltaram. Com Peri no colo, agarrado ao meu peito, após assinar um documento, tomava posse de um dos lugares mais importantes da minha vida: o de professora adjunta da Universidade Federal do Rio de Janeiro, sonhado e planejado por meus ancestrais.
Sete anos mais tarde, atendendo ao convite da Revista Trabalho Necessário, eu estou aqui. Iniciando na primeira pessoa as reflexões por escrito de minha carreira, marcada pelo grande feito de construir um projeto de formação e produção científicas inédito no Brasil, pois focado na que conceituo história intelectual das mulheres negras. Uma nova abordagem que desenvolvo dentro do campo do ativismo científico (XAVIER; MATTOS, 2016). Fundamentada em paradigmas da história social, do feminismo negro e da educação transgressora, tal abordagem tem me permitido avançar no estudo das formas de agir, pensar e produzir saberes empreendidas por mulheres negras em tempos e espaços distintos (hooks, 2013).
Composto de muitas cenas e ritos variados - solitárias leituras, traduções, escrita de artigos, colunas, projetos; salas de aula e redes sociais repletas de vidas e desejos de escrever novas histórias; litígios acadêmicos sobre quem tem o direito à fala acadêmica - este projeto transformou minhas concepções sobre produção do conhecimento científico. Uma transformação que me impulsiona a, como professora universitária, forjar e praticar uma “epistemologia alternativa” aos pressupostos de objetificação e inferioridade feminina negra (COLLINS, 2019). Compartilhados pela comunidade científica, tais pressupostos culminam na subrepresentatividade de mulheres negras não somente em programas de pós-graduação, mas em comitês científicos de áreas, conselhos editoriais de periódicos e no mercado editorial universitário (SILVA, 2010; XAVIER, 2018).
Atravessada por muitos afetos, nas páginas que se seguem, transito livremente por histórias de apagamentos, conflitos, dores (SANTANA, 2020). Assuntos que nos meus percursos acadêmicos como intelectual negra misturam-se a muitas alegrias e
Em 14/03/2012 defendi a tese Brancas de almas negras? Beleza, racialização e cosmética na imprensa negra pós-emancipação (EUA, 1890-1930), orientada pelo Prof. Dr. Sidney Chalhoub no Programa de Pós-Graduação em História Social da Unicamp.
conquistas geradas na universidade pública, e, importantíssimo dizer, também fora dela. Por isso, reforçando o compromisso assumido com minha comunidade, como teórica e ativista, registro profunda gratidão às milhões de mulheres negras brasileiras. Sujeitas políticas que inspiram e contribuem para a sustentação de meu trabalho, ensinando-me, com pontos de vista riquíssimos, conceitos, métodos e paradigmas sobre educação, letramento, gestão orçamentária, planejamento familiar, espiritualidade. Entre tantos outros assuntos que entram pela porta da frente da UFRJ, trazidos por filhas, sobrinhas e netas.
Como primeiras da família a cursar a universidade pública, estas jovens me impulsionam a traduzir para o discurso científico nossos trajetos intelectuais. Obrigada por me contarem suas histórias! Espero que este artigo represente uma fonte de recursos e ideias para produção de conhecimentos centrados nas insubmissas premissas de mulheres negras (EVARISTO, 2011).
Em maio de 2015, apresentei ao colegiado do Departamento de Didática da Faculdade de Educação da UFRJ a proposta do curso Intelectuais Negras: escritas de si, saberes transgressores e práticas educativas de mulheres negras. Aprovada por unanimidade, a proposição passou a integrar a grade curricular de disciplinas eletivas do curso de Pedagogia, aberta a todos os estudantes da UFRJ e demais universidades brasileiras e internacionais.6
Fundamentado nas articulações horizontais entre saberes ativistas, acadêmicos e pessoais, o referido Grupo possui um programa formativo amplo e diversificado, que oportuniza tanto a formação de novas gerações acadêmicas quanto a produção de teorias, conceitos, práticas educativas e métodos focados na referida história intelectual de mulheres negras7: o Seminário de Prática de Pesquisa no Programa de Pós-
A ementa, o programa, assim como metodologias de trabalho, referências bibliográficas e produções acadêmicas das estudantes podem ser acessados no site www.intelectuaisnegras.com
O Grupo Intelectuais Negras foi criado em 2014. Inicialmente como um espaço independente voltado a
mulheres negras interessadas em discutir autoras feministas negras. Nesta primeira etapa, o grupo contou com a participação de diversas mulheres que foram fundamentais para sua continuidade. Entre as quais destaco e agradeço através do ato político de nomeá-las: Azoilda Loretto da Trindade (in
Graduação em Educação da UFRJ, voltado para a formação de mestras com ênfase em epistemologias feministas negras; o projeto de extensão Intelectuais Negras Diálogos, que promove bimestralmente encontros abertos à comunidade para discutir a produção intelectual de mulheres negras. Além do citado curso eletivo, na pós- graduação, destacam-se as disciplinas: Educação, Gênero e Estudos Pós-coloniais e Ensino de História do Pós-Abolição e Feminismos Negros Interseccionais, oferecidas respectivamente no PPGE/UFRJ e no Programa de Pós-Graduação em Ensino de História (PROFHIST UFRJ). Todas essas ações inseridas em um projeto científico.
Ancorados nos aportes teórico-metodológicos de valores civilizatórios afro- brasileiros como ancestralidade, afetividade, corpo, ludicidade (TRINDADE, 2006), a presença do Grupo Intelectuais Negras na UFRJ gera uma infinidade de conteúdos sobre relações raciais e de gênero, importantes para estudo da história do tempo presente. Identificação, reconhecimento, empatia. Curiosidade, estranhamento, suspeição, diante de instigante paisagem. Uma sala de aula na zona sul do Rio de Janeiro protagonizada por jovens negras. Universitárias de diferentes estados, países e cantos da cidade que mesclando diários, poemas, lápis de cor e textos científicos vivenciam experiência de formação acadêmica singular. O estudo semestral do pensamento de mulheres negras através de aulas em roda, com discussões de textos, confecção de desenhos e bordados, estímulo ao abraço, ao olhar, à escuta e à escrita criativa. Marcadas pela raridade e pelo distanciamento do padrão científico hegemônico, tanto a proponente (“minha primeira professora negra”) quanto a estrutura de produção de conhecimento centrada nas premissas feministas negras são rotineiramente definidas por quem participa como “surreais”.
memoriam); Claudielle Pavão, Célia Cristo, Janete Santos Ribeiro, Marta Muniz Bento, que compunham ao meu lado o núcleo gestor. Rapidamente, as propostas e objetivos foram transformando-se e os debates sobre as implicações e sentidos da manutenção de um grupo com objetivos acadêmicos fora da academia também se intensificaram. Em 2016, o grupo é institucionalizado na universidade, passando a se chamar Grupo de Estudos e Pesquisas Intelectuais Negras UFRJ. Para marcar essa ocasião realizamos o I Seminário Intelectuais Negras Escritas de Si, na Casa da Ciência. Situada no Campus da Praia Vermelha, na Urca, bairro carioca da zona sul, a repercussão do evento na comunidade acadêmica foi grande, evidenciando sentimentos de estranhamento e identificação diante do fato de mulheres negras contarem suas próprias histórias em um espaço historicamente fundamentado na lógica de objetificação da população negra pela qual a palavra “ciência” define-se. Encontra-se em fase de produção texto específico sobre a história de formação do GIN-UFRJ, que se insere no plano de desenvolvimento individual “Ciência das Mulheres Negras: pesquisa ativista e liderança acadêmica no Brasil”, apoiado pelo Programa de Aceleração e Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras Marielle Franco Baobá - Fundo para Equidade Racial.
A experiência de como professora universitária desenvolver práticas educativas cooperativas, que me permitem-me ensinar e aprender com meninas cheias de brilho e saberes variados - artes, literatura, audiovisual, alimentação, saúde, é potente. Uma potência da qual emerge uma nova comunidade científica. Protagonizada por intelectuais negras e fundamentada em concepções de ciência tecidas através das práticas de ler, escrever, interpretar e compartilhar histórias na sala de aula. Em acordo com bell hooks:
Para educar para a liberdade, portanto, temos que desafiar e mudar o modo como todos pensam sobre os processos pedagógicos. Isso vale especialmente para os alunos. Antes de tentarmos envolvê-los numa discussão de ideias dialéticas e recíprocas temos de lhes ensinar o processo (2013, p. 193).
Considerando o papel político da nomeação nos feminismos negros, a materialização do Grupo Intelectuais Negras UFRJ também se relaciona a passos que vem de longe (WERNECK, 2019).8 Mais precisamente do final dos anos 1970, quando mulheres negras iniciaram um brilhante e ousado movimento intelectual de cruzar discursos científicos e ativistas em seus trajetos profissionais.
Através da produção de monografias, teses, dissertações, eventos acadêmicos assim como da escrita e publicação de livros, cartilhas e materiais didáticos para os movimentos negros, essas ativistas acadêmicas que passo a nomear, entre muitas outras, protagonizaram diversificadas lutas intelectuais pela igualdade racial no Brasil: Azoilda Loretto da Trindade (13/09/2015), Beatriz Nascimento (12/07/1942-28/01/1995), Lélia Gonzales (01/02/1935-10/07/1994), Luiza Bairros (27/03/1953-12/07/2016). Sem dúvida, a escrita de seus trajetos científicos é um trabalho a ser feito. Dentro de uma história intelectual das mulheres negras, que ilumine a magnitude de suas realizações intelectuais. (PINTO; FREITAS, 2016; RIOS; ROSE, 2018).
Alusão a “Nossos passos vêm de longe”. Visibilizada na produção teórica da ativista e médica feminista negra Jurema Werneck, esta frase tornou-se um lema dos movimentos de mulheres negras, fincados no reconhecimento do papel da ancestralidade nas conquistas e lutas presentes.
Em uma linha passado-presente de intelectuais negras, o conceito de movimento negro de base acadêmica (RATTS, 2009) é de grande contribuição ao meu trabalho. Voltado à análise da trajetória de sujeitos que na carreira universitária assumiram projetos políticos de afirmação racial, lidando com contradições entre individual e coletivo, acadêmico e ativista, a categoria estimula-me a examinar traços compartilhados e singulares que conectam minha história a dessas acadêmicas negras que abriram caminhos que seguem alimentados dentro de um contexto muito distinto.
Enquanto as intelectuais acima citadas trilharam caminhos acadêmicos como estudantes e professoras excepcionais, eu, três décadas depois, ainda que integre uma minoria docente e também seja racializada pelo discurso do brilhantismo, integro outro universo. Composto por uma significativa comunidade estudantil negra9, de maioria feminina, com a qual construo sentidos coletivos de negritude.
Um bom exemplo encontra-se na disciplina Intelectuais Negras. Para cursá-la, a Faculdade de Educação da UFRJ oferece semestralmente quarenta e cinco vagas. Dessas, a grande maioria é preenchida por estudantes negras, que em cinco anos de curso, considerando ouvintes, palestrantes e a categoria das visitantes10, beiram a casa de mil cursistas. Em média com dezoito e vinte e cinco anos, essas jovens chegam à universidade com novas demandas de conhecimento sobre empoderamento estético (#meucrespoéderainha), financeiro (#blackmoney), intelectual (#leiaautorasnegras).
Grafadas com a linguagem das redes sociais, tais demandas influenciam diretamente a definição das agendas acadêmicas construídas coletivamente em sala e
Pesquisa divulgada pelo IBGE registra que em 2018, 50,3% dos estudantes de universidades públicas brasileiras são negros.
É recorrente a presença de mulheres negras não-matriculadas no curso por razões variadas:
curiosidade, vontade de retomar os estudos “sem saber como”, desejo de se reconciliar com o ambiente acadêmico após experiências traumáticas relacionadas ao racismo acadêmico, realizar o sonho de estudar ao lado de suas filhas. Sobre este último exemplo, o contrário também acontece. Mães universitárias acompanhadas por suas filhas, estudantes do ensino médio, que frequentam as aulas porque “gostaram da bibliografia”, querem se preparar “melhor” para o ENEM, seguem feministas negras nas redes sociais, leram alguma autora negra e quiseram aprender mais. Além deste público amplo e diverso, também é comum a participação de convidadas - ativistas, artistas, escritoras, avós, tias, vizinhas, que ao contarem suas histórias promovem momentos de produção de conhecimento profundos para todas nós. De fato, este assunto merece texto específico, pois em muitos casos o compromisso e a seriedade das visitantes ultrapassa o das estudantes matriculadas, evidenciando o potencial de impacto extra-muros que a universidade possui se devidamente trabalhado.
também em pesquisas individuais.11 O que também contribuiu para caracterizar o projeto Intelectuais Negras UFRJ como uma política curricular de ação afirmativa. Que nascida dos diálogos entre academia, escola e movimentos sociais tem contribuído para suportar e expandir os avanços conquistados em termos de acesso das classes trabalhadoras ao ensino superior.12
Dar a luz a nós mesmas: diferentes percepções acerca da intelectualidade de mulheres negras entre docentes, estudantes e trabalhadoras terceirizadas
Visibilizar, na universidade, a mulher negra como sujeito intelectual e ao mesmo tempo criar discursos científicos que sustentem esta afirmação é desafiador, pois parte de dois movimentos que questionam, na prática, os pressupostos da subalternidade: a expressão da subjetividade feminina negra e a tomada do território da produção teórica, tradicionalmente associado ao masculino. Esse processo, pelo qual podemos perceber as assimetrias de gênero e raça, pode ser pensado dentro do que Petronilha Gonçalves (1998) conceitua dar à luz a nós mesmas. Em rituais de nascimento que envolvem segmentos da comunidade universitária distintos: professoras, estudantes, trabalhadoras terceirizadas. Sujeitos com demandas específicas que me desafiam a criar diálogos e linguagens variadas para fortalecimento do trabalho (COLLINS, 2012). Nesta seção, através da perspectiva do telling stories (WHITE, 2008), exponho experiências que contribuem observar os afetos relacionados ao dar à luz.
A primeira refere-se aos debates suscitados pela proposição da disciplina Intelectuais Negras, levada, em março de 2015, à reunião de colegiado do Departamento de Didática da Faculdade de Educação da UFRJ, com a seguinte ementa:
Meu último livro Você pode substituir Mulheres Negras como objeto de estudo por Mulheres Negras contando sua própria história, que combina métodos como narrativa na primeira pessoa, contação de histórias e análises de fontes primárias para interpretar a história do Brasil, insere-se nesse contexto.
A escrita deste texto ocorre em um contexto no qual as atividades acadêmicas presenciais encontram-
se suspensas na UFRJ. Diante dessa situação extrema e da importância da manutenção de vínculos entre professora e estudantes, organizei com a turma encontros de acolhimento. Nesses espaços virtuais, conversamos sobre as experiências da quarentena articulando-as às demandas de conhecimento sobre a intelectualidade de mulheres negras. Inspiradas por discussões como as presentes no texto “Vivendo de amor” de bell hooks, nesses espaços refletimos bastante sobre subjetividades políticas negras no Brasil contemporâneo.
Conhecimentos orais e escritos de mulheres negras. Histórias, práticas e nuances dos feminismos negros (cis e transgêneros) e seus sujeitos no Brasil, na América Latina e no continente africano. Práticas educativas emancipatórias, relações de gênero e antirracismo. Pensamento feminista negro e reeducação das relações étnico-raciais em contextos escolares. Pesquisa ativista e a construção de narrativas na primeira pessoa (“escritas de si”). Diálogos horizontais entre produção escolar, acadêmica e militante. As relações entre subjetividade (saberes localizados) e conhecimento científico. O trabalho com gêneros literários diferenciados em sala de aula (livros e artigos, entrevistas, romances, poesias, letras de música, documentários). Os conceitos de intelectual negra e interseccionalidade.
Findadas a apresentação da proposta, a leitura do parecer favorável e a votação, entre elogios e palmas, destaca-se o pedido à palavra de um colega. Dirigindo-se à frente do plenário, o docente parabeniza a iniciativa. Todavia, assinala a inadequação curricular da proposta. Ao seu ver, mais “alinhada a um curso de extensão”, que evitaria a colocação do “currículo em muitas caixinhas”. O pronunciamento é acompanhado por uma segunda colega que “desabafa” seu “receio” sobre a “inexistência de bibliografia para o curso”. Essas falas, arrematadas pela pergunta recorrente - “Mas por que intelectuais negras e não só intelectuais?” Caracterizadas como insulto ao trabalho intelectual (WHITE, p. 21), esses posicionamentos expressam os usos seletivos dos discursos de neutralidade e distanciamento.
Em se tratando da comunidade estudantil, existem muitas demandas dos movimentos sociais levadas para salas de aula, grupos de pesquisa e demais espaços universitários. Essa entrada de demandas é essencial, pois ela se pauta no diálogo entre academia e sociedade, no entanto, existe todo um caminho para que tais demandas sejam lapidadas como conhecimentos científicos. No trabalho com epistemologias alternativas dos feminismos negros tenho aprendido sobre a importância de criar estratégias formativas diferenciadas. Que estimulem estudantes a conquistarem autonomia intelectual para se apropriarem dos códigos da cultura acadêmica hegemônica. Um investimento intelectual indispensável para instrumentalizar novas gerações para produção de conhecimento científico.
Nesse processo formativo, é comum que as primeiras versões de textos monográficos e exames de qualificação cheguem na forma de narrativas de ativismo pessoal. Ou seja, textos repletos de expressões como “Eu, mulher negra resisto”,
“Jovem Negro Vivo”, “Mulheres Negras Movem o Mundo” que evidenciam que o trabalho de formação acadêmica está só começando. Evidenciam também que o desafio para sustentar a tradição feminista negra de articular pensar e fazer é grande. Isso porque tais articulações não são ensinadas na universidade. Lembro, nesse caso, que um dos argumentos principais de estudantes que participam das ações que promovemos é o do desejo de aprender a articular teoria e prática.
Nesse contexto, no Grupo Intelectuais Negras, articulo conceitos e metodologias científicas com aquelas aprendidas em movimentos sociais, tais quais diários de bordo, rodas de conversa, vivências corporais, entre outras. Essa articulação estimula uma autoria acadêmica mais livre e criativa, por meio da qual invento métodos como o da narrativa na primeira pessoa. Compartilhados no início das reuniões, estes escritos, nos quais a única obrigação é se esforçar para conectar as ideias pessoais àquelas lidas, trazem ricas interpretações sobre textos de autoras negras que integram os programas de curso. E, não menos importante, contribui para aliviar traumas gerados pelo elitismo acadêmico e expressos em discursos anti-cotas nas aulas, em correções de prova que invalidam ideias e uma série de outras situações de assédio acadêmico, fundamentadas na cultura do aqui não é para você.
As leituras em voz alta desses materiais constituem-se em momentos de muita emoção nos quais percebemos a potência das conexões entre subjetividade e objetividade. Dada a força das histórias evocadas, observa-se que o texto da aula espontaneamente mistura-se ao texto da vida. Marcado por descobertas e ressignificações da negritude, da infância, de histórias de amor, trabalho, família. Compartilhado entre abraços, lágrimas e feridas, este movimento intelectual das estudantes tem sido fundamental para aprimorar meu trabalho científico, identificando - dentro de vínculos acadêmicos de afeto e cumplicidade, que conhecimentos sistematizar na história intelectual de mulheres negras.
Na perspectiva da comunidade de aprendizado (hooks, 2013), eles também me possibilitam, como professora e orientadora, ensinar estudantes negras que confiam em mim e se espelham no meu trabalho, a desenvolverem suas próprias estratégias de curadoria do conhecimento de mulheres negras. Tratado pelo mainstream como não acadêmico, muito pessoal, militante. Considerando a lida cotidiana com estas
invalidações, costumo provocá-las com a mesma indagação que me faço e busco responder: “Como você acha que seu texto pode ser trabalhado para produzir uma linguagem acadêmica que em vez de te expor e fragilizar constitua-se em uma nova forma de fazer ciência?”
E assim, juntas aprendemos que, independente das respostas, que serão variadas, todas precisaremos construí-las dentro de padrões científicos que articulem subjetividade, objetividade, rigor teórico e ativismo como modelo de produção de conhecimento possível.13
Ainda em relação às interações no espaço acadêmico, último e importantíssimo exemplo encontra-se nas relações de aprendizado e identificação que professora e estudantes estabelecemos com as trabalhadoras terceirizadas. Usualmente invisibilizadas no espaço acadêmico como tias da limpeza, essas profissionais conduzem conosco diferentes processos de produção de conhecimentos. Contação de histórias pessoais, de filhas e netas interessadas no estudo. Participação nas aulas com depoimentos sobre suas trajetórias, seguidos de palmas e abraços de reconhecimentos. Compartilhamento de conhecimentos gastronômicos mesclados a ricas análises da conjuntura política.
Em diálogo com Patricia Hill Collins, essas e muitas outras histórias dizem respeito a importantes fundamentos do pensamento de mulheres negras: a experiência como critério de significado e a prática da “autodefinição” e “autoavaliação”:
Autodefinição envolve desafiar o processo de validação do conhecimento político que resultou em imagens estereotipadas externamente definidas da condição feminina afro-americana. Em contrapartida, a autoavaliação enfatiza o conteúdo específico das autodefinições das mulheres negras, substituindo imagens externamente definidas com imagens autênticas de mulheres negras (COLLINS, 2016, p. 102).
O trabalho de formação acadêmica com esses e outros conceitos feministas negros contribui para estimular jovens a produzirem novos modelos interpretativos nos
Meu credenciamento nos dois programas de pós-graduação em que atuo ocorreram entre 2016 e 2017. Nesse tempo, eu aprendi muito com Anne Carolinne Carvalho Nunes, Daiana da Silva, Evelyn Beatriz Lucena Machado, Pâmela Cristina Nunes de Carvalho e Sylvia Soares Souza, sobre o trabalho com epistemologias feministas negras. Todas elas, a quem agradeço imensamente, tornaram-se mestras e seguem atuando na educação básica pública e privada com muito compromisso e talento.
quais mães, tias, avós, vizinhas são reposicionadas como autoras, leitoras, protagonistas da história intelectual de mulheres negras.
Depois que a conheci aqui no curso, todas as noites leio Conceição Evaristo para minha avó iletrada, contou-nos a estudante da Escola de Belas Artes.
Eu deixei de ser intelectual negra para que você fosse, rememora a universitária do curso de Comunicação Social, a fala de sua mãe, trabalhadora doméstica, quando a jovem pensou em desistir da faculdade.
Na próxima seção, esboço alguns desafios postos à produção científica na primeira pessoa. Se em países como Inglaterra, EUA, Índia, este debate encontra-se bastante avançado, no Brasil, ele está só começando (HARDING, 1988).
Professora, eu posso escrever na primeira pessoa? o desafio de transformar reivindicações em novos conhecimentos científicos
Um dos principais mecanismos de produção intelectual de mulheres negras é o contar histórias. Conduzida em cozinhas, quintais de casas, transportes públicos, esta tradição de narrar na primeira pessoa tem propiciado por séculos a produção de conhecimentos sobre educação, família, ativismo. Ao mesmo tempo que primordial nas classes trabalhadoras, a narrativa na primeira pessoa costuma ser recebida com muita desconfiança no mainstream:
Professora, como escrever na primeira pessoa sem ser deslegitimada na academia?
Minha avó entregou-me uma caixa antiga de fotografias com nossas imagens. Posso escrever a história de minha família na monografia com este material?
Descobri uma biblioteca organizada e financiada por um grupo de mulheres negras em um bairro de Nova Iguaçu. Este pode ser o tema do meu mestrado?
Posso trazer para a pesquisa os projetos que desenvolvo com meus pequenos na educação infantil?
Professora, eu posso escrever texto acadêmico na primeira pessoa?”
Recorrentes no pensamento de estudantes negras, essas indagações mostram que a entrada das classes trabalhadoras na academia culminou na elaboração de novas perguntas e formas de se relacionar com a ciência. Pautadas nas premissas de mulheres negras, as perguntas ajudam a pensar tanto na potência de novas ideias quanto nos desafios à sua validação científica. Como afirma Collins: “os métodos usados para validar reivindicações de conhecimento também devem ser aceitáveis para o grupo que controla o processo de validação de conhecimento” (p. 407) Ainda discutidos superficialmente no Brasil, esses são temas fundamentais para construção de epistemologias alternativas que fundamentem escrita de si de intelectuais negras como uma alternativa científica (XAVIER, 2015).
No Grupo Intelectuais Negras UFRJ, o trabalho para transformar reivindicações em conhecimentos tem se mostrado muito necessário, inspirador, frutífero. Nos termos da criação de uma perspectiva negra que se define através de negociações entre os meus pontos de vista de pesquisadora, as reivindicações das novas gerações e os métodos hegemônicos de validação. Um trabalho de produção de novas abordagens de história social focadas nas mulheres negras para muitas vidas.
***
R: Sim, você pode e deve escrever na primeira pessoa. Faça isso consciente de que falar cientificamente por nós mesmas é uma invenção que demanda tempo, paciência, habilidade para criar estratégias e ferramentas próprias. #nossospassosvêmdelonge.
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V.19, nº 38, 2021 (jan-abr) ISSN: 1808-799 X
Nilsa Maria Conceição dos Santos2
Resumo
Este é um estudo qualitativo, com entrevista narrativa, que busca dar visibilidade aos discursos de mulheres negras e velhas sobre trabalho em seus diversos “lugares de fala”, contribuindo para a desconstrução de estereótipos que negam o protagonismo dessas mulheres. São utilizados os pensamentos de Foucault e de Djamila Ribeiro, com a seguinte organização: introdução; trabalho e envelhecimento; trabalho, racismo e educação; discurso e lugar de fala; “a sanga”; “o caminho do meio”; “paris”; considerações finais.
Palavras-chave: discursos; lugar de fala; mulheres negras; envelhecimento; trabalho.
DE SANGA A PARÍS: DISCURSOS DE MUJERES NEGRAS Y VIEJAS SOBRE TRABAJO
Resumen
Se trata de un estudio cualitativo, con entrevista narrativa, que busca dar visibilidad a los discursos de las mujeres negras y viejas sobre el trabajo en sus diversos "lugares de habla", contribuyendo a la deconstrucción de los estereotipos que niegan el protagonismo de estas mujeres. Se utilizan los pensamientos de Foucault y Djamila Ribeiro, con la siguiente organización: introducción; trabajo y envejecimiento; trabajo, racismo y educación; habla y lugar de habla; “la sanga”; “el camino del medio”; “parís”; consideraciones finales.
Palabras clave: discursos; lugar de discurso; mujeres negras; envejecimiento; trabajo.
FROM SANGA TO PARIS: SPEECHES OF OLD BLACK WOMEN ABOUT WORK
Abstract:
This is a qualitative study, with narrative interview, that seeks to give visibility to the discourses of black and old women about work in their various "places of speech", contributing to the deconstruction of stereotypes that deny the protagonism of these women. It uses the thoughts of Foucault and Djamila Ribeiro, with the following organization: introduction; work and aging; work, racism and education; speech and place of speech; “the sanga”; “the middle way”; “paris”; final considerations.
Keywords: discourses; places of speech; black women; aging; work.
1Artigo recebido em 12/12/2020. Primeira avaliação em 05/01/2021. Segunda Avaliação em 07/01/2021. Aprovado em 05/02/2021. Publicado em 25/02/2021.
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v19i38.47602.
2Nilsa Maria Conceição dos Santos. Mestre em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Especialista em Gestão Empresarial pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUC/RS. Graduada em Letras – Bacharelado em Assessor Secretário Executivo pela Universidade Luterana do Brasil – ULBRA. Brasil. E-mail: nilsamcs@yahoo.com.br
Lattes: http://lattes.cnpq.br/6414182499643317. ORCID: 0000-0003-3623-3546
Este texto é um recorte de uma pesquisa (SANTOS, 2016a) e de um livro (SANTOS, 2016b) sobre saberes de mulheres negras e velhas. Na revisão bibliográfica observou-se o restrito número de pesquisas sobre essas mulheres (SANTOS, 2019), em razão desse sujeito, comumente, aglutinar assimetria de gênero, raça e classe, a tripla discriminação3 na qual é agregada, uma quarta, a velhice, que faz com que seus discursos sejam silenciados, desqualificados ou não suficientemente considerados (FOUCAULT, 2008).
O estudo foi qualitativo, com utilização de entrevista narrativa (JOVCHELOVITCH; BAUER, 2002). São analisados os relatos de vivências no trabalho de seis mulheres negras e velhas, partindo dos seus lugares de fala (RIBEIRO, 2017), que, para essas mulheres “em uma sociedade na qual os privilégios são para os homens, brancos e jovens, encontrar o seu lugar [...] é uma questão de sobrevivência!” (SANTOS, 2019, p.500).
As entrevistadas foram selecionadas visando uma maior variedade de experiências em relação à escolaridade e ocupações no mundo do trabalho. Elas estão na faixa dos 72 aos 86 anos de idade (dados de 2015), e se autodeclaram negras (pretas e pardas), segundo o critério do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Todas residem em Porto Alegre, estado do Rio Grande do Sul - Brasil e dispensaram o uso de pseudônimos, conforme registrado nos termos de autorização e consentimento. São elas: Wilma, Carmen, Marisa, Norma, Petronilha e Vera.
Wilma, nascida em 1927, 86 anos, três filhas, viúva, 4ª série do primário, pensionista. Carmen, nascida em 1932, 81 anos, sem filhos, solteira, segundo grau completo, agente administrativo, servidora pública aposentada. Norma, nascida em 1936, 78 anos, solteira, uma filha, segundo grau completo, agente administrativo, aposentada. Marisa, nascida em 1939, 76 anos, um filho, divorciada, segundo grau completo, atendente de nutrição, aposentada. Petronilha, nascida em 1942, 73 anos, sem filhos, solteira, professora universitária, servidora pública aposentada. Vera,
3Benilda Brito. Mulher, negra e pobre: a tripla discriminação Disponível em: https://teoriaedebate.org.br/1997/10/01/mulher-negra-e-pobre-a-tripla-discriminacao/. Acesso em 10 out. 2020.
nascida em 1942, 72 anos, dois filhos e uma filha, viúva, segundo grau completo, pensionista.
Para Bernardes e Hoenisch (2003) a linguagem e a cultura estão intimamente conectadas porque a linguagem é o mecanismo essencial pelo qual a cultura produz significados sociais e permite construir discursos que estabelecem, de maneira arbitrária, o que é verdadeiro e o que não é. O sujeito, ao nomear os objetos, cria um mundo no qual atua; e o campo de atuação profissional é de suma importância para a autonomia do indivíduo, construção da identidade, reconhecimento social e acesso a bens de consumo, entre outras dimensões materiais e simbólicas, cada vez mais importantes nas sociedades do século XXI (BRASIL, 2008).
Segundo Frigotto (1994) o trabalho é uma esfera central do ser humano, pela qual ele produz e reproduz suas condições de existência. O trabalho é a base ontológica dos indivíduos que vivem em sociedade, possibilitando a formação de ações coletivas de colaboração que atendem a demandas sociais e históricas de linguagem, costumes e representações que integram a cultura e a sociabilidade humana (LUKÁCS, 2013 apud NICÁCIO; SALAZAR, 2020).
Por isto, a maneira como os grupos populacionais se inserem no mercado de trabalho retrata uma faceta fundamental da desigualdade. Mulheres, homens, negros e brancos apresentam características bem distintas na entrada e permanência no mercado de trabalho (BRASIL, 2019). Verifica-se, nos indicadores, que a situação da mulher negra é sempre a mais precária, reforçando a urgência de estudos que proporcionem visibilidade aos discursos dessas mulheres confrontados com os discursos que sustentam, ainda, essas desigualdades.
A sociedade, no desenvolvimento dos sujeitos, tenta configurá-los com dispositivos que assegurem a manutenção das assimetrias nas relações de poder (ROCHA, 2018), mantendo o status quo de grupos que são considerados a elite, em razão do poder que dispõem. E, quanto mais os sujeitos se afastam do padrão humano estético valorizado, que é o de pessoa branca, mais sofre as consequências desse poder e “onde há poder, há resistência” (FOUCAULT, 2008, p. 42).
Mulheres negras e velhas têm muito a ensinar sobre resistência, pois nasceram, cresceram, socializaram e continuam a se socializar em uma sociedade racista, machista e sexista. É nesse contexto que, muitas delas, foram precursoras do que se entende hoje por feminismo. Veja-se, por exemplo, Dandara, Tereza de Benguela, Luíza Mahin, Maria Felipa, entre outras, que foram lideranças de
escravizadas em lutas por libertação. Na pós-abolição, destacam-se Laudelina Campos Melo, Tia Ciata, Mãe Menininha do Gantois, entre outras. As mulheres negras fomentaram os ideais de liberdade e direitos, dando apoio, garantindo cuidado dos filhos e da casa, para que mulheres brancas, de classe média, pudessem lutar e disputar posições no mundo do trabalho. (SANTOS, 2019, p. 499).
Assim, a utilização do termo velha para designar as participantes visa resgatar a positividade desse termo, tanto teoricamente como empiricamente, pois como bem pontua Peixoto (2000) o termo velho(a) apresenta uma enorme ambiguidade por ser um modo de expressão afetivo ou pejorativo, cujo emprego se distingue pela entonação ou pelo contexto em que é utilizado. O termo velho(a) adquire um aspecto pejorativo a partir da década de 60, pois em documentos oficiais publicados antes desse período a denominação velha era para pessoas pertencentes à faixa etária de 60 anos, independente da condição social, e apenas no final da década que certos documentos oficiais e a maioria das análises sobre envelhecimento iniciaram a utilização do termo idoso (PEIXOTO, 2000).
Atualmente, os termos idoso e velho possuem semelhantes associações (FERREIRA et al., 2010), mas o termo velho carrega mais conotações negativas por estar relacionado a limitações, vulnerabilidade e dependências de toda ordem. Como a população negra ainda luta pela conquista de condições de vida dignas (FERREIRA et al., 2019) conclui-se que as condições de envelhecimento da maioria dessa população ressoam mais com as características desse termo.
Em relação ao termo terceira idade é uma construção contemporânea e surge para atender aos interesses de um mercado de consumo emergente, incluindo, especialmente, pessoas que têm boa saúde e tempo para o lazer (DEBERT, 1999). Como essa condição não é a realidade da maioria das mulheres negras e velhas esse termo não foi adotado.
Desse modo, a opção pelo termo velha é intencional e visa afirmar o valor da velhice (MARCONDES et al., 2013), a força dessas mulheres como ancestrais, com base nos valores civilizatórios afro-brasileiros e africanos que, entre outros princípios, percebem a ancestralidade como respeito e valorização das experiências, cheias de saberes e pensares dos mais velhos e produção de memórias e histórias (SANTOS, 2019), ancestralidade religiosa dos terreiros (SOUZA JUNIOR, 2011), das missionárias negras (BEOZZO et al., 2009), das sacerdotisas negras (CALDEIRA; ARTUSO, 2020); ancestralidade como um projeto ético e de ação política
(BERNARDO, 2018), e ancestralidade através de uma abordagem normativa não religiosa (LEITE, 2008).
Conforme Schwarcz (1987), em fins do século XIX, o termo negro foi utilizado para os negros que se recusavam à dominação branca e à adesão ao ideal de brancura imposto no Brasil e vem ao encontro do que aponta Pereira (2010 apud BOTELHO, 2019) de que a luta pela liberdade e por melhores condições de vida nascem no Brasil, com a chegada do negro escravizado.
Assim, a utilização de negras velhas para denominar as mulheres negras e velhas constitui-se em uma estratégia de combate aos preconceitos e discriminações relacionados a gênero, raça e idade, valorizando a trajetória histórica e cultural da ancestralidade feminina negra. Destaca-se, também, o matriarcado de mulheres negras e velhas. Segundo Hita (2014) esse matriarcado emerge das articulações dessas mulheres entre idade, experiências e trajetórias de vida, que possibilitaram recursos financeiros e econômicos para criarem seus filhos ou filhos de outras mulheres, configurando arranjos familiares diversos, em que elas exercem autoridade na administração e condução da casa e da família.
A sociedade contemporânea tem sido marcada por uma série de transformações e paradoxos que se fazem sentir em uma das principais categorias de análise social, que é o trabalho. O trabalho é um processo em que o ser humano, com sua própria ação, impulsiona, regula e controla seu intercâmbio material com a natureza (MARX, 1998). O trabalho possui uma dimensão simbólica que pode proporcionar aos indivíduos reconhecimento ou completa desvalorização social em razão da posição social que ocupa (VARGAS, 2016).
Ainda em relação a essa [...] dimensão, [...] importante destacar o aspecto [...] do trabalho como fonte de rendimento e o que ele implica em termos de reconhecimento social. [...] se o trabalho é, por excelência, a fonte da riqueza socialmente produzida, ele é também um de seus principais meios de distribuição. [...] A classe trabalhadora, constituída de não proprietários dos meios de produção, [...] Nesses termos, o rendimento do trabalho torna-se um indicador fundamental para medir sua precariedade, uma vez que está em jogo, para a maior parte da população que depende do trabalho, o acesso aos bens e serviços considerados “necessários” para a garantia de uma existência “digna”. Um rendimento “insuficiente” do trabalho pode
acarretar ao indivíduo que trabalha ou a seu grupo uma situação de “privação material” ou “pobreza” (VARGAS, 2016, p. 317).
Na atual perspectiva observa-se a ocorrência de questionamentos em relação aos diferentes papéis que o trabalho tem ocupado, de acordo com o sistema político, econômico e social predominante (TOLFO et al., 2005). Segundo esses autores, a globalização, o processo de reestruturação produtiva, a competitividade, as mudanças nos contratos, dentre outros fenômenos, têm se refletido nessa categoria, emergindo investigações voltadas para o estudo da alienação, do desemprego, da precariedade das relações de trabalho e da crise das motivações.
Dentro desse contexto, é importante a compreensão dos significados do trabalho para uma sociedade em que ele ocupa papel central e determina o lugar dos indivíduos. Segundo Marx (1998), a essência da sociedade capitalista hegemônica4, no cenário histórico em que se vive, é a exploração do homem pelo homem, por meio do trabalho. Nesse sentido, a característica principal da sociedade é a transformação do trabalho em mercadoria, sujeita como qualquer outra à lei da oferta e da procura. Para Marx, o modo como os indivíduos produzem sua vida material tem relação direta com o desenvolvimento político, social e cultural. Assim, o modo de produção capitalista é um sistema produtor de mercadorias em que o ser humano é afastado do resultado do seu próprio labor, pois o produto desse não lhe pertence (SOUZA, MATIAS, BRÊTAS, 2010).
Na era industrial (TOLFO et al., 2005) o trabalho passou a ser visto como um símbolo de liberdade em relação ao sistema escravagista e agrícola, possibilitando ao homem transformar a natureza, as coisas e a sociedade. Essa centralidade do trabalho permaneceu até a década de 1970, expressa na organização da produção, principalmente, com o Taylorismo/Fordismo, que concebiam a produção em série, com empresas verticalizadas. A partir dessa década, esses modelos apresentaram sinais de esgotamento, não mantendo mais os índices de crescimento de acumulação de capital, nem os índices de emprego formal. E, desde então, o mundo do trabalho vem passando por intensas transformações, com aumento da debilidade das relações e condições de trabalho e aumento significativo do desemprego. Nesse cenário,
4Hegemônica: entendida aqui como aquela que privilegia determinados grupos sociais e categorias de análise, propostos por estes mesmos grupos e tais grupos são, invariavelmente, representados pelo “ideal” de homem, branco, de origem europeia, heterossexual e de classe média.
ocorre uma diversificação das formas de trabalho, gerando, entre outras coisas, o questionamento quanto à centralidade do trabalho5.
A articulação entre envelhecimento e trabalho pode ser pensada a partir da concepção de Borges (1999) que pressupõe uma hierarquização das esferas da vida: família, trabalho, religião, lazer e comunidade. O trabalho é tido como o segundo setor mais importante, precedido apenas pelo da família. Para compreender os sentidos do trabalho, correntes epistemológicas diversas embasaram os estudos, dentre as quais destacamos: a sócio-histórica, a humanista, a construcionista e a cognitivista.
Na perspectiva sócio-histórica (BERGAMINI, 1998), ele aparece como uma dimensão que vem sendo esquecida, substituída por pressupostos de que a motivação seria um fator gerenciável externamente ao sujeito, independentemente do sentido atribuído ao trabalho. Na abordagem humanista (MORIN, 2001) as principais motivações são: realizar-se e atualizar seu potencial; adquirir segurança; autonomia; ter o sentimento de vinculação; prestar um serviço; e contribuir à sociedade. Na vertente construcionista, independentemente do modo que as pessoas têm de compreensão da realidade, ela não existe. Os sujeitos e os objetos são entendidos como construções histórico-sociais, que criam pelo senso comum uma realidade. A partir dessa realidade as pessoas elaboram os seus significados (SPINK, 2004).
Na concepção cognitivista o trabalho é um conhecimento multifacetado, que tem um caráter histórico, dinâmico e particular, envolvendo tanto a história do indivíduo quanto a sua inserção social (BORGES, 1999). Essa perspectiva se articula à do materialismo histórico-dialético que preconiza uma possível reflexão acerca da relação entre trabalho e produção da existência, com base nos processos históricos, sociais, econômicos e culturais, relacionando-os a situações concretas e particulares (MONLEVADE; COSTA; CABRAL, 2020). Ambas as perspectivas permitem a articulação entre envelhecimento e trabalho, pois utilizam elementos presentes em outras abordagens, mas avançam, por estarem fundamentadas nos processos históricos e sociais, em permanente construção, tal qual o processo de envelhecer.
[...] envelhecimento é um processo dinâmico entre ganhos e perdas, marcado por processos biológicos e médicos; ancorado na biografia,
5 Neste artigo parte-se dessa perspectiva crítica. Essas transformações estariam gerando um novo sistema capitalista, com racionalidade voltada para uma redescoberta e maior valorização do capital humano e sua subjetividade dentro do processo produtivo (sobre essa perspectiva ver: Jürgen Habermas (1960, 1976, 1981,1990), André Gorz (1982), Claus Offe (1989), Adam Schaff (1990), Robert Kurz (1992).
marcado socialmente e economicamente; resultado da interação da pessoa com seu ambiente físico, um processo específico de gênero, diferencial, multidimensional (com dimensões objetivas e subjetivas), multidirecional e que possui uma plasticidade, que é a capacidade de se adaptar às novas situações e ou limitações (WAHL E HEYL apud DOLL, 2014, p. 7).
O envelhecimento demográfico e as demandas dele decorrentes tornaram a velhice um tema privilegiado de pesquisa em diversas áreas e em diferentes perspectivas de análises (SIQUEIRA; BOTELHO; COELHO, 2002). A primeira é a biológico/comportamentalista, que enfatiza a decrepitude física. Os velhos aparecem como portadores de múltiplas patologias sobre as quais os indivíduos e a sociedade devem atuar no sentido de retardá-las. O envelhecimento da população é considerado como um problema de Estado e social, que requer medidas urgentes em razão da dispendiosa demanda dos serviços de saúde.
A segunda é a economicista, que busca posicionar os velhos na estrutura social produtiva. Eles passam a ser denominados ex-trabalhadores e essas análises centram-se na aposentadoria e no rodízio de mão-de-obra pela troca de gerações (SALGADO, 1997). O discurso adquire contornos políticos de simpatia (SIMÕES, 1998) até a adesão explícita à luta dos aposentados (ARAÚJO, 1998). Em outra vertente, ainda relacionada à aposentadoria, aparecem os Programas de Preparação para a Aposentadoria - PPAs, que buscam dar aos futuros aposentados condições de explorarem suas possibilidades, por meio do processo permanente de educação, contribuindo para o desenvolvimento de suas vidas, com novos desafios que valorizarão a própria existência (SALGADO, 1997).
Na terceira perspectiva, é enfatizado o caráter sociocultural, que argumenta que, apesar das questões demográficas e econômicas serem aspectos plausíveis para a reformulação de políticas públicas elas são insuficientes para explicar a totalidade dos fatos que emergem da velhice como categoria analítica. Essa concepção entende a velhice como uma construção social. É a sociedade que estabelece as funções e atribuições preferenciais de cada idade na divisão social do trabalho e dos papéis na família (DEBERT, 1998). Na quarta vertente, a abordagem é transdisciplinar (BOSI, 1987, BEAUVOIR, 1990). A velhice é considerada um fenômeno natural e social que se desenvolve sobre o ser humano, único, indivisível, que se defronta com limitações biológicas, econômicas e socioculturais, que particularizam seu envelhecimento. O envelhecimento é considerado um direito, mas
há o reconhecimento das disputas e da tentativa do Estado e da sociedade de privatizar a velhice (DEBERT, 1999). Para Faleiros (2014, p. 7) “apesar de o capitalismo contemporâneo colocar seu fundamento na produtividade e na competitividade [...] a longevidade tornou-se uma conquista social”, prevista nos dispositivos legais brasileiros6, mas, depara-se com o desmonte neoliberal do Estado de direito, e com a não adequação das atuais instituições para a efetiva aplicação da legislação.
Por meio da educação é possível ter acesso a qualquer tipo de discurso, com os saberes e poderes que o acompanham (FOUCAULT, 2013). Partindo dessa premissa observa-se a importância da educação para o ato de falar. Pois quanto maior o acesso à educação, maior será o acesso a distintos lugares de fala.
Charlot (2000) refere que a construção do sujeito acontece de vários modos e um corresponde aos contextos de desumanização, em que o ser humano é proibido de ser, impedido de desenvolver as suas potencialidades e de viver plenamente a sua condição humana. O pouco acesso à educação foi um dos principais contextos de desumanização experimentado pela população negra.
[...] eu já achava que os livros iam sair caro eu mesma já me agarrei desisti no quarto ano desisti, que eu achei. [...] agora vem à seleta7, isso vai ser muito caro. [...] Aí ali eu já encerrei por minha conta (risos). Dali era a quarta para fazer a quinta, daí eu não fiz a quinta. [...] Não, não falei com os pais. Disse que dizia tudo: e a sua mãe não ficou brava. Não a mãe não tinha tanta instrução, criada assim, quase como escrava. [...] Se eu não vou ir pro Instituto, não vou tirar curso de professora, nem nada. Achei que já não precisava, então daqui já vou parar. Parar para arrumar serviço (WILMA, 2015).
Sobre a inserção dos negros na escola (ALMEIDA; SANCHES, 2016) revelam alguns percursos que ilustram a luta que essas mulheres precisaram desenvolver para se fazerem presentes na escola; e o quanto essa escola não estava preparada, como ainda hoje não está, para receber, apoiar e desenvolver plenamente os indivíduos, quando a pertença dessas pessoas difere dos “grupos que, por condições financeiras
6 Constituição Brasileira (1988), Política Nacional do Idoso (1994), Estatuto do Idoso (2003), Política Nacional de Saúde do Idoso (2006).
7Referindo-se ao exame de admissão ao ginásio, extinto pela Lei 5.692 de 1971.
e uso de poder, se veem e são tidos como a elite da sociedade” (SANTOS, 2019, p. 499).
[...] a escola [...] inserida no processo de legitimação do poder estatal por meio das instituições. Este processo foi permeado sempre pelas relações sociais hierárquicas que, aqui, têm caráter marcadamente racial, dada a realidade de mais de três séculos de prática da escravização de pessoas negras e de suas prolongadas consequências sociais. É assim que a escola, ora impediu ou dificultou o acesso de negros, de forma que as elites brancas e proprietárias pudessem utilizar-se dela como meio de diferenciação e, portanto, da manutenção das estruturas sociais; ora incentivou sua presença na instituição como estratégia para incutir valores da cultura dominante e, assim, legitimar-se. É por isso que a Lei 10.639/20038representa uma conquista da luta das populações negras por sua efetiva inclusão na instituição escolar, [...] que possibilita a desconstrução da legitimação da discriminação por meio do conhecimento [...]. (ALMEIDA; SANCHES, 2016, p. 245-246).
Portanto, o Estado legitimou o racismo na escola por meio de um ensino voltado para a valorização do modo eurocêntrico de vida, seus valores, cultura e hábitos, com a correspondente desqualificação das culturas afro-brasileira e africana, insuflando na população negra e na população não negra esses valores que repercutem até hoje, e impactam no mercado de trabalho.
[...] como eu era a mãe negra, achei aquilo pra mim, parecia uma humilhação, mas eu era negra mesmo. A mãe negra elas falavam que eu tinha que citar que a mãe preta, foi talvez, a mais infeliz das três. Era o que a gente tinha na época pra citar, cada um vinha e falava seu pedaço sobre as mães. Eu não sei aquilo entrou na minha cabeça e ficou, [...] que a mãe preta foi, talvez, a mais infeliz das três. Isso aí eu não me esqueço, eu estava no terceiro ano primário [...] e eu não sei, sempre me achei, assim, inferior, achei que como eu sou negra parece que as pessoas não recebem a gente bem. Eu sempre fui assim, complexada (MARISA, 2015).
O racismo é bastante perceptível nos processos de seleção: entre duas candidatas, geralmente, a negra é preterida pela branca, mesmo que apresente maior escolaridade e qualificação (SANTOS, 2019).
A elevada proporção de trabalhadores negros – em especial, de mulheres negras – em situação ocupacional muito precária sugere a existência de processos de segregação social, que se refletem na forma de inserção no mercado de trabalho. O acesso à escola e a
8 Lei nº 10.639/2003. Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira".
formação profissional são condições necessárias para evitar a segregação, mas não suficientes para superar o quadro crônico de desigualdades (PRONI; GOMES, 2015, p. 149).
Bento (1995) aponta a inferioridade presumida como outro aspecto do racismo que impede ou dificulta a ascensão das trabalhadoras negras, fazendo com que elas enfrentem desconfiança acerca da sua capacidade em ocupar posições de destaque no trabalho.
O conceito de discurso utilizado é na perspectiva Foucaultiana, em que o discurso possui um caráter temporário, marcado pelo jogo de relações sociais, em uma determinada época. Assim, não há verdades absolutas, tampouco, uma verdade a ser descoberta. “O que existe são discursos que a sociedade aceita, autoriza e faz circular como verdadeiros” (FOUCAULT, 2013, p. 23). Isso ocorre porque os discursos, em sua maioria, estão entrelaçados em disputas de poder, nas quais os principais objetivos são os interesses por trás daquele discurso, sua ideologia e os efeitos produzidos.
O discurso é um jogo estratégico e polêmico, por meio do qual se estabelecem os saberes de um momento histórico. É, também, o lugar em que saber e poder se associam: quem fala, fala de algum lugar, baseado em um direito reconhecido institucionalmente. Nesse ponto reside a interlocução que se pretende realizar sobre discurso e lugar de fala. O discurso é o que se fala. Mas, quando alguém fala, esse alguém fala de algum lugar, o lugar de fala.
Segundo Ribeiro (2017) todas as pessoas podem falar, em qualquer lugar, mas, as falas reconhecidas institucionalmente são aquelas que passaram pelo que Foucault (2013) denominou ritual, um dos procedimentos de controle da produção dos discursos “que define a qualificação que devem possuir os indivíduos, para em um diálogo ocupar determinadas posições e elaborar certos tipos de afirmações” (FOUCAULT, 2013, p. 37).
Ribeiro (2017) compreende que o lugar social que determinados grupos ocupam restringe ou amplia as suas possibilidades, e que os pontos de partida são “as condições sociais que permitem ou não que esses grupos acessem lugares de cidadania” (RIBEIRO, 2017, p. 35). Ela cita as experiências distintas de mulheres
negras e brancas ao vivenciarem o gênero. No caso das negras velhas, além das discriminações de gênero, raça e classe social, uma vez que a maioria se encontra nas classes sociais de menor poder econômico e simbólico (BOURDIEU, 1989), agrega-se a condição de velha” (SANTOS, 2019, p. 498).
Assim, além dos agenciamentos relacionados à condição de mulheres negras, empobrecidas, soma-se o envelhecimento, como mais um desafio a ser enfrentado. Alguns estudos que articulam sexismo, racismo e idadismo9 (QUEIROZ; CABECINHA; CERQUEIRA, 2020) apontam que a diferença nem sempre produz opressão, ampliando as possibilidades de autonomia dos sujeitos, com ações que podem ser de revolta, negociação, cumplicidade, entre outras.
E lá nessa dentista, [...] acho muito bacana, que ela vem e beija todo mundo. Eu tava prestando atenção nos outros, todos recebem o mesmo tratamento. [...] é um lugar legal, que a gente é bem recepcionada, porque exijo, ainda. [...] e esse médico de hoje também eu gostei dele [...]. Não é aquela pessoa assim que tenha nojo, chegou uma velha, chegou uma negra, chega pra lá, não. [...] tratamento exclusivo, porque eu sou negra, mas eu gosto de ser bem tratada, porque a gente sendo negra, sendo bem tratada, a gente não sente. Não sente a diferença. (MARISA, 2015)
Convém apontar que, mesmo pessoas negras de classe média ou alta, não estão isentas do racismo, pois segundo Carneiro (2003) o racismo subalterniza outras diferenças, como as de classe e de gênero. É importante, também, frisar que “o lugar social não determina uma consciência discursiva sobre esse lugar” (RIBEIRO, 2017,
p. 39). Essa compreensão é fundamental para que se entenda o comportamento reacionário de integrantes dos grupos oprimidos.
O fato de uma pessoa ser negra não significa que ela saberá refletir crítica e filosoficamente sobre as consequências do racismo. Inclusive, ela até poderá dizer que nunca sentiu racismo, que sua vivência não comporta ou que ela nunca passou por isso. E sabemos o quanto alguns grupos adoram fazer uso dessas pessoas. Mas o fato dessa pessoa dizer que não sentiu racismo, não faz com que, por conta de sua localização social, ela não tenha tido menos oportunidades e direitos (RIBEIRO, 2017, p. 38).
9 É uma importação com raízes no inglês ageism e significa discriminação baseada na idade, geralmente das gerações mais novas em relação às mais velhas. Por exemplo, equipara-se a outras atitudes e práticas negativas já consagradas no léxico, tais como o racismo ou o sexismo.
Para Ribeiro (2017) pessoas de grupos continuamente discriminados produzem saberes, que além de confrontarem o que está posto e dito, são lugares de potencialidades e ajustes do mundo por outras maneiras e posições: “mulheres negras vêm historicamente produzindo saberes e insurgências” (RIBEIRO, 2017, p. 42).
[...] uma série de saberes que tinham sido desqualificados como não competentes ou insuficientemente elaborados: saberes ingênuos, hierarquicamente inferiores, saberes abaixo do nível requerido de conhecimento ou de cientificidade. Foi o reaparecimento destes saberes, que estão embaixo – saberes não qualificados, e mesmo desqualificados [...] que chamarei de saber das pessoas e que não é de forma alguma um saber comum, um bom senso, mas, ao contrário, um saber particular, regional, local, um saber diferencial incapaz de unanimidade e que só deve sua força à dimensão que o opõe a todos aqueles que o circundam [...] trata-se da insurreição dos saberes antes de tudo contra os efeitos de poder centralizadores que estão ligados à instituição e ao funcionamento de um discurso científico organizado no interior de uma sociedade como a nossa (FOUCAULT, 2008, p. 170- 171).
É importante ressaltar (RIBEIRO, 2017) que todos têm lugar de fala sobre quaisquer temas. O ponto a ser observado é de onde se fala. Se a pessoa não integra o grupo que vivencia aquela realidade, é necessário um posicionamento a partir do lugar que ocupa. Portanto, é preciso uma percepção de que, mesmo que a sua experiência não reflita a experiência coletiva, ou seja, mesmo que uma ou mais pessoas negras não tenham e nem venham a passar por situações desagradáveis (ofensa, violência, entre outras), isso não apaga a história social de exclusão e marginalização sistemática dessa população, suficientemente documentada em boletins de ocorrência policial, em situações cotidianas de racismo divulgadas nas mídias, por quais passam as pessoas negras.
A abolição da escravatura sem planejamento e a estrutura da sociedade de base patriarcal, machista e classista, acabou por resultar na situação atual, em que as mulheres negras [...] são vítimas dessa [...] discriminação, mesmo que, muitas vezes, não tenham consciência dessa condição (VILA NOVA; SANTOS, 2013, p. 19).
Os lugares de fala considerados neste artigo estão denominados como: “A sanga”, “O caminho do meio” e “Paris”. Esses lugares remetem às trajetórias de vida das negras velhas, destacando as estratégias que elas utilizaram para enfrentar e resistir “aos discursos racistas e sexistas que tentaram e ainda tentam desqualificar as mulheres negras” (SANTOS, 2019, p. 504)
“A sanga” sintetiza o lugar de fala inicial da maioria das mulheres negras. Ela remete às lavadeiras, que foi uma das poucas ocupações que permitiram às mulheres negras uma renda e trabalho, sem que precisassem manter-se trabalhando nas casas dos senhores, apesar de ainda estarem trabalhando para os senhores.
[...] o trabalho de lavadeira [...] ajudou muitas mulheres negras, na época em que para elas, existiam pouquíssimas opções de ganho [...] É bom esclarecer que essa profissão de lavadeira não foi uma opção agradável para nossas avós, mães, tias, enfim, foi uma opção forçosa em função da migração forçada dessas netas e filhas que foram guindados à força para este país. [...] Era o que restava: lavar roupa, ser lavadeira (SILVEIRA, 2002, p. 48,75-76).
A extinção do regime de escravização dos negros pela Lei Áurea não foi acompanhada por políticas de inserção desse trabalhador na vida produtiva do país. Dessa constatação decorre o discurso dos movimentos negros organizados “A Princesa Isabel assinou a Lei Áurea, mas esqueceu de assinar as nossas carteiras de trabalho” (VILA NOVA; SANTOS, 2013, p. 23). O racismo legou aos africanos escravizados no Brasil e aos seus descendentes uma situação de marginalidade, exclusão, exploração e pobreza, que, ainda, não foi equacionada. E a história oficial negou até o advento da Lei 10.639/2003 o ensino e valorização da história e culturas africana e afro-brasileira, como se a população negra não tivesse uma história e cultura, antes do advento da escravização, e também, os negros brasileiros, descendentes de africanos escravizados no Brasil, não tivessem construído uma história, que juntamente com as dos povos indígenas, asiáticos e europeus constituem a história do povo brasileiro (SILVA et al., 2018).
Ainda que o regime oficial de escravização não mais exista, as negras velhas, deste estudo, trazem informações importantes sobre a transição do trabalho escravizado para o trabalho livre. Elas pertencem à segunda geração após a abolição da escravização dos negros no Brasil.
[...] a minha mãe, com os irmãos dela, que eram uns quantos, se encontraram já adultos [...] pra fora, de primeiro, é como dá nas novelas í [...] teve filho, já doava, já davam, tinham que dar. Difícil o patrão querer que ficasse [...]. Ela não chegou a ser bem escrava [...] escrava não, mas era como fosse. A minha mãe foi filha de escrava.
Tinham que amamentar o filho do patrão. E minha avó teve bastante, mas aí foram todos assim, distribuídos. E não sei como [...] esse tio guardou pra que lugar cada irmão foi, pra que família e [...] em adultos [...] se encontraram os irmãos (WILMA, 2015).
As vivências dessas mulheres permitem que se tenha uma noção das dores e lutas que as mulheres negras precisaram enfrentar para existirem no mundo. Dessa resistência, dependia a sua sobrevivência, a sobrevivência de sua família, e em última análise, a sobrevivência da população negra, constituindo-se as mulheres negras no “sustentáculo da raça” (FERNANDES, 1978; IANNI, 1972 apud BENTO, 1995, p. 480).
[...] A minha mãe foi filha de escrava. Conheci a veinha [...] com a anquinha assim duma porretada que a mulher (sinhá) deu (ela demonstra com gestos e curvando o tronco) (WILMA, 2015).
[...] lá pelos quatorze, [...] comecei a lavar pra fora. [...] quando secava as sangas, a gente tinha que ir pra beira da praia. Aí pegava uma trouxa de roupa, com vários lençóis e toalhas e tudo, bem pesado, ia lavar na beira da praia. [...] botava aquela trouxa de roupa na cabeça e vinha pra casa pra passar aquelas roupas, entregar, pra no fim de semana ter um dinheiro pra ajudar a mãe, que o pai tinha problema de saúde, [...] Daí meu pai faleceu. Lá era tudo muito difícil [...] aí vim morar aqui pra poder trabalhar. E aqui eu vim, fiquei doméstica. Trabalhei em casa de família nove anos [...] nunca gostei de trabalhar em casa de família. [...] Eu fui muito humilhada. Sabe aquele pão seco? Davam pra gente. A comida, tudo, era só aquelas sobras [...]. Eu nunca gostei de ser diminuída, entende? [...]. Eu fui muito humilhada [...] tinha que encerar [...] o apartamento [...] e tinha que dar brilho em todas as peças do apartamento de joelhos, no chão. E foi muita humilhação até que eu consegui entrar numa empresa (MARISA, 2015).
Segundo Hahner (1978), o trabalho doméstico é uma atividade que absorve, majoritariamente, a mão de obra feminina negra.
[...] a escrava de cor criou para a mulher branca das casas grandes e das menores, condições de vida amena, fácil e da maior parte das vezes ociosa. Cozinhava, lavava, passava a ferro, esfregava de joelhos o chão das salas e dos quartos, cuidava dos filhos da senhora e satisfazia as exigências do senhor. Tinha seus próprios filhos, o dever e a fatal solidariedade de amparar seu companheiro, de sofrer com os outros escravos da senzala e [...] de submeter-se aos castigos corporais que lhe eram, pessoalmente, destinados (HAHNER, 1978, p. 120-121).
As experiências acima relatadas por Wilma e Marisa evidenciam uma face da relação, entre as sinhás e as escravizadas, e entre patroas e empregadas, respectivamente, baseada na desigualdade de gênero, classe, e raça (BRITES, 2013).
Na primeira, quem dá a porretada é outra mulher, evidenciando as assimetrias de classe e raça (a condição de escrava e de negra da avó da Wilma). Na segunda situação, a própria Marisa é quem relata o tratamento indigno ao ser oferecido para ela, como alimento, somente as sobras e pão seco.
O trabalho que as empregadas desempenhavam [...] assumia uma conotação maior de criada e não de empregada, em uma situação de exploração maior do que a que atualmente vivenciam. Se a casa era dos outros, era território de outros. Tratadas como criadas vivenciaram muitos atos de exclusão e segregação no ambiente doméstico. As situações relatadas demonstram que elas apenas habitavam a casa dos patrões para lhes servirem, vivendo em um ambiente que não invocava pertencimento. [...] havia nesses espaços a construção de uma identidade negativa, pautada no não pertencer, no não ter direito, em não ser respeitada e não “ser gente” (TEIXEIRA; SARAIVA; CARRIERI, 2015, p. 172).
Bem diferente dessas vivências têm-se as da Norma e as da Wilma:
[...] fui trabalhar numa casa, [...] criei os guris tudo. Eles me chamavam de mãe. Aí depois eu vim embora, mas eu ia sempre pra [...] visitar, ficava sempre nessa família. [...] aí eu vim embora pra Porto Alegre, [...] nesse meio tempo trabalhei em uma casa de família pra me equilibrar por um ano. Depois, operei o estômago. Fui pra casa dessa senhora pra me recuperar. (NORMA, 2015)
Aí com quatorze anos eu fiquei em casa, [...]. Ajudando em casa a cuidar dos sobrinhos que iam nascendo. [...] Ir pro colégio, almoçar, ir pra lá deixar a cozinha em dia. [...] Eu ia ajudar a minha irmã em tudo de serviço doméstico, [...]. Dos nove aos quatorze anos fiquei esperando a idade pra trabalhar. (WILMA, 2015).
Norma não relatou nenhum conflito com as famílias para as quais trabalhou, muito ao contrário, ela destaca a relação de respeito e carinho de ambas as partes. Chamada de mãe pelas crianças, mantendo laços afetivos “a relação entre patroa e empregada pode ser [...] bastante positiva, [...] laços de ajuda, respeito e aprendizagem” (STENGEL, 2003 apud ANGELIN; TRUZZI, 2015, p. 64).
Na narrativa da Wilma observa-se que o trabalho doméstico realizado não era encarado como um trabalho, mas como uma atividade temporária. Ela continuava estudando, aguardando a idade para trabalhar “o emprego doméstico não faz parte dos projetos [...] da maioria das adolescentes [...] Elas sempre almejam melhores postos de trabalho” (MOREIRA; TOSA, 2009 apud ANGELIN; TRUZZI, 2015, p. 65).
De acordo com dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - IPEA (BRASIL, 2019) há aproximadamente seis milhões de mulheres cuja ocupação é de
empregada doméstica, sendo que mais de 60% desse contingente são mulheres negras.
O fenômeno da racialização não é apenas uma característica residual na sobrevivência do trabalho doméstico; na verdade ele compõe a base de manutenção da lógica deste último. Em países como o Brasil, na maioria das regiões, o peso da sociedade colonial escravista continua a acentuar as desigualdades entre negros e brancos – e nesse lugar social que se dá o maior recrutamento de trabalhadoras e onde também outras desigualdades se interseccionam (BERNARDINO-COSTA, 2012 apud BRITES, 2013 p. 429)
Em relação ao peso da sociedade escravista, Bento (1995) alerta para a importância de estudos acerca do legado da escravização negra sobre os brancos – que constitui o outro dessa relação, na qual o negro é o sujeito discriminado e o branco o sujeito que discrimina. Verifica-se, nesse lugar de fala, o estabelecimento de relações ambivalentes entre patroas e empregadas. Segundo Brites (2013) ainda não há uma produção significativa sobre essas interações, reiterando a necessidade, no Brasil, de mais pesquisas quantitativas referentes às patroas: faixa salarial, escolaridade, entre outros dados, visando apoiar de modo mais eficaz as políticas públicas. Para além desse objetivo, pontua-se que a revelação do perfil das patroas lançará luz ao outro na relação entre empregadas e patroas, pois no campo de estudos sobre trabalho doméstico (BRITES, 2013) pouco ou quase nada se sabe das patroas. Elas continuam na invisibilidade, sem serem confrontadas, nem responsabilizadas pelas más condições de trabalho, informalidade, salários baixos e horas de trabalho semanais elevadas impostas às empregadas domésticas.
“O Caminho do meio” é o lugar de fala que revela as conquistas e o empoderamento10 das negras velhas que, mesmo frente a um cenário adverso e hostil, conseguiram romper barreiras e se posicionar no mundo do trabalho em posições diversas das comumente destinadas a elas (lavadeiras, domésticas, faxineiras, babás, entre outras similares), mesmo que tenham em algum momento de suas vidas ocupado essas funções/profissões.
10 Berth (2018) define empoderamento como o conhecimento histórico, político e social, combinado com a aceitação e valorização da estética, cultura e percepção acerca da sociedade, posicionando-se criticamente, com estratégias de atuação nos espaços em que se está inserida.
O “Caminho do meio” é o lugar de fala localizado entre “A sanga” (o lugar de fala menos qualificado) e “Paris” (o lugar de fala mais qualificado). Nesse lugar estão mulheres que saíram ou nunca estiveram em “A Sanga” e que não conseguiram chegar em “Paris”, mesmo que apresentem formação superior, pois de acordo com os dados do IPEA (BRASIL, 2019) do contingente de 15 milhões de mulheres ocupadas no Brasil, seis milhões atuam no serviço doméstico e desses, quatro milhões são mulheres negras. Assim, chega-se ao número de nove milhões de trabalhadoras (entre negras e não negras) que estão distribuídas entre os lugares de fala “Caminho do meio” e “Paris”. Tendo em vista a histórica desigualdade racial no mercado de trabalho, não é necessário muito esforço para depreender-se que mulheres negras no “caminho do meio” e em “Paris” estão sub-representadas, e com o advento da pandemia e as políticas reacionárias em curso no país, esses números estão despencando11, em que pese algumas ações afirmativas em curso12.
O lugar de fala “Caminho do meio” possibilitou às negras velhas evitar em permanecer ou virem a ocupar o principal destino para as mulheres negras, que era tornar-se doméstica (FARIA; FERREIRA; COUTINHO, 2014). A Marisa e a Norma, que foram domésticas conseguiram migrar para esse “Caminho do meio”. A Marisa, para uma empresa privada: “Aí depois que eu entrei, eu fiquei 12 anos. Depois eu fui para outra empresa na qual eu me aposentei” (MARISA, 2015). A Norma, para uma empresa pública: “fiz concurso e passei” (NORMA, 2015).
A Vera teve como “Caminho do meio” outro destino preconizado para mulheres daquela época, independentemente do grupo racial, tornar-se esposa e mãe (PINSKY, 2006).
Depois já veio o casamento. Casamento como se diz: é da casa pra casa. [...] Conheci o meu marido nas férias em Porto Alegre. [...]. Foi o primeiro e único namorado. O pai sabia, a mãe sabia. [...] quando viram eu já tava sendo pedida em casamento (VERA, 2015).
A Wilma, que iniciou o percurso profissional no serviço doméstico, auxiliando sua irmã, com o casamento manteve-se no “Caminho do meio”, iniciado na livraria.
Dos quatorze anos até os dezenove anos trabalhei na livraria [...] Saí só quando eu fui casar. [...] sai da livraria para casar. [...] De primeiro
11 https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2020/09/16/desemprego-pandemia-negros.htm
12 https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2020/09/23/nao-e-so-a-magalu-vagas-so-para-negros- avancam-mas-sofrem-criticas.htm
as pessoas casavam e ficavam em casa. A não ser que tivesse filho e tivesse mesmo que ajudar (WILMA, 2015).
A Norma e a Marisa, também foram mães. Ambas, transitaram pelos destinos prescritos: tornar-se esposa, tornar-se mãe, tornar-se doméstica: os dois primeiros pela condição de ser mulher, e o segundo pela condição de ser mulher negra.
A Carmen trilhou pelo “Caminho do meio” até aposentar-se. Ela iniciou sua trajetória profissional já nesse lugar e destaca a consciência da mãe, que era doméstica, sobre o destino reservado às filhas. Com muito esforço sua mãe realizou os investimentos possíveis em educação para que as filhas tivessem uma inserção no mercado de trabalho em profissões outras, que não a de empregada doméstica, estratégia essa, que se mostrou exitosa:
[...] A minha mãe nunca deixou nem eu nem minhas irmãs se empregar em casa de família. Fiquei em casa até 18 anos, trabalhando em casa. [...] E sempre eu ia ao colégio [...] quando eu tava com 18 anos fui trabalhar como servidora pública [...] onde que eu fiquei até me aposentar. (CARMEN, 2015).
O lugar de fala “Paris” é o de direito de todos, de qualquer classe, raça/etnia, gênero, orientação sexual e idade. É o lugar em que é permitido ser, fortalecer suas potencialidades e vivenciar com plenitude sua condição humana. “Paris” é aquele lugar com o qual algumas das negras velhas, participantes deste estudo, sonharam. Uma atingiu esse lugar, outras ficaram no “Caminho do meio”, mas todas saíram de “A sanga” e algumas nunca estiveram lá.
Então, conforme ensina Ribeiro (2017) os lugares de fala não são vivências individuais, mas experiências coletivas, experimentadas por um grupo social, e mesmo que alguns indivíduos não tenham sofrido as tensões por ocupar um lugar de fala desprestigiado ou a serenidade por estar posicionado em um lugar de fala prestigiado, isso não os evade de refletir e de responsabilizar-se pelas mudanças, uma vez que, conforme o grupo social em que se está inserido, o ponto de partida difere de maneira positiva ou negativa. No caso da mulher negra, considerada como grupo e não individualmente, o ponto de partida é sempre mais precário e vulnerável. Essa mulher, para chegar ao lugar de fala “Paris”, precisa superar muitos obstáculos, começando pelo seu pertencimento racial. Mas, em que pese essas condições,
Petronilha conseguiu se posicionar nesse lugar de fala, além de, literalmente, estudar e conhecer Paris, capital da França.
Eu nasci aqui, [...] meu umbigo está enterrado aqui. [...] Esse terreno foi comprado pelos meus bisavôs maternos no início do século XX. Este bairro era chamado Colônia Africana. [...], embora já tivesse o nome [...] de Rio Branco. Outra coisa, a gente tinha muito livro. A leitura era incentivada. [...] a professora veio aqui em casa dizer que tinha um lugar [...] em uma escola Normal, para eu ser coordenadora. [...]. Eu fiz o concurso pra Português e pra Francês. [...] Fiquei em [...] 1º lugar no Francês. [...] recebi a bolsa do governo francês para estudar Literatura na França. Fui coordenadora pedagógica [...] em uma escola particular [...] e em uma escola pública. [...] me inscrevi no Instituto de Planejamento em Educação - Paris e fui selecionada. [...] eu era a única brasileira, na ocasião. [...] quando eu fui nós estávamos [...] escrevendo o Segundo Plano Estadual da Educação [...] e estavam me esperando para escrever. A responsabilidade da redação ficou comigo. [...] Quando acabou tudo eu fui chamada pela presidente para ser do Conselho de Educação do Estado [...] da Assessoria do Conselho. [...] Fiz o concurso [...] eu comecei a lecionar redação na universidade pública [...] e fui lecionar na universidade privada, até entrar no Doutorado. Trabalhei 12 anos na universidade privada. Depois [...] fui pra Universidade pública [...] até me aposentar [...]. Sou professora emérita da Universidade, [...] passei seis meses como professora visitante nos Estados Unidos (PETRONILHA, 2015).
Petronilha, mulher negra, cujo gênero e grupo racial, majoritariamente, ocupam lugares de fala sem nenhum prestígio. Ela nasceu, cresceu e se socializou em uma família negra de classe média. Sua avó e sua mãe tinham o mesmo nível de escolaridade que as mulheres brancas de classe média da época. Sua mãe, professora e diretora de escola. Ambas, avó e mãe, mulheres negras, eram exceções para a época. Igualmente a trajetória brilhante da Petronilha, em se tratando de mulher negra, pois, professoras universitárias negras são menos de 3% nas universidades brasileiras13. Mas, mesmo ela tendo alcançado resultados e oportunidades similares às do grupo racialmente dominante no Brasil, que é o de pessoas brancas, ela reconhece e se responsabiliza pela construção de mudanças. Ela é um nome de referência em estudos das Relações Étnico-Raciais no Brasil, com interlocuções internacionais, representando o Brasil, o Movimento Negro e o Movimento de Mulheres Negras. Sua trajetória no mundo do trabalho demonstra o potencial da população negra, se oferecidas às oportunidades de acesso à educação de qualidade.
13 FERREIRA, L. “Menos de 3% entre docentes da pós-graduação, doutoras negras desafiam racismo na academia”. Disponível em http://www.generonumero.media/menos-de-3-entre-docentes-doutoras- negras-desafiam-racismo-na-academia/. Acesso em 30 jun. 2018.
Ela cumpriu o ritual necessário para ocupar esse lugar de fala e desse lugar, tal como a cidade luz, Paris, ela lança luz a outras mulheres negras para que elas possam brilhar e estarem presentes em todos os lugares de fala qualificados em que estão ausentes ou sub-representadas.
O sentido do trabalho para as negras velhas é percebido, distintamente, conforme os lugares de fala ocupados durante a trajetória profissional: com sentimento negativo “nunca gostei de trabalhar em casa de família” (MARISA, 2015); como algo compulsório “tinha que amamentar os filhos dos patrões” (WILMA, 2015); como fonte de orgulho e satisfação “fiquei me destacando 21 anos” (MARISA, 2015); “Sou professora emérita da universidade” (PETRONILHA, 2015), “Criei todos os guris. Eles me chamavam de mãe” (NORMA, 2015); como superação “o que aconteceu comigo foi bullying [...] mas eu superei” (CARMEN, 2015); como um sonho “Queria ser professorinha, preta, exibidinha. Esse era o meu sonho” (VERA, 2015); e como algo, eventualmente, necessário “De primeiro as pessoas casavam e ficavam em casa. A não ser que tivessem filhos e tivesse mesmo que ajudar” (WILMA, 2015).
Elas reconhecem o racismo “[...] como dá no rádio essa coisa de bullying14 na parte onde que eu trabalhava existia muito [...] racismo porque o negro, os brancos tinham medo. Medo que eu fosse pegar uma chefia [...] Eu cheguei até aonde que na época, de acordo com a estrutura que tinha o Brasil, era assim, porque o negro sempre tinha que ser meio capacho, e a gente sabia, então foi indo assim” (CARMEN, 2015); “[...] eu era a única negra na sala de aula [...] até perdi uma viagem porque imaginei: a única negra e vá que vão querer entrar em algum lugar e vão ser barrados [...] depois de estar com tudo pronto [...] eu disse não [...]. Era a viagem de formatura” (VERA, 2015).
A luta de classes também é percebida “[...] até hoje os professores são educados pra lecionar para uma classe social. [...] É recente essa conversa de diversidade cultural, combate ao racismo [...]” (PETRONILHA, 2015), bem como a legitimação do saber científico em detrimento do saber das pessoas: “O meu pai foi
14Bullying é um termo utilizado para descrever atos de violência física ou psicológica, intencionais e repetidos, praticados por um indivíduo ou grupo de indivíduos causando dor e angústia, sendo executados dentro de uma relação desigual de poder.
para Candiota15, como se diz: deixar o terreno pronto pra depois chegar os engenheiros e assinar embaixo” (VERA, 2015).
As contradições aparecem em relação aos papéis destinados à mulher pela sociedade “Essa do colégio já é uma frustração. Depois que passa o tempo tu fica pensando quem sabe se tu te formasses. [...] mas se eu me formasse, ele não ia querer que eu lecionasse [...] E aí a gente trabalha mais em casa” (VERA, 2015).
Elas refletem, também, acerca das escolhas que foram pautadas não pela falta de condições materiais, mas por se sentirem constrangidas, em virtude de racismo e ou sexismo, a não realizar o investimento em educação ou porque suas famílias não detinham o capital simbólico suficiente para sugerir e/ou apoiar outras possibilidades. Este artigo suscita uma série de questionamentos para investigações futuras acerca da relação dessas mulheres com o trabalho, como exemplos: faixa salarial, cargo/atividades desenvolvidas, condições de trabalho, benefícios, oportunidades, com dados quantitativos, que permitam uma visão ampla das condições atuais de existência dessas mulheres, pois, “Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela, porque tudo é desestabilizado a partir da base da pirâmide social onde se encontram as mulheres negras, muda-se isso, muda-se a base do capitalismo.”16 Portanto, cabe às novas gerações se apropriar dos saberes das negras velhas que possuem “uma riqueza de saberes tanto do mundo dos negros, quanto do mundo dos brancos” (SANTOS, 2019, p. 520), em prol de uma sociedade mais justa, igualitária e livre.
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15 Candiota é um município brasileiro do estado do Rio Grande do Sul.
16 Fala de Angela Davis na Conferência “Atravessando o tempo e construindo o futuro da luta contra o racismo”, do evento Julho das Pretas, realizado pela Universidade Federal da Bahia – UFBA, em 25 jul., 2017. Disponível em https://agenciapatriciagalvao.org.br/destaques/angela-davis-quando-as- mulheres-negras-forem-finalmente-livres-o-mundo-sera-livre/
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V.19, nº 38, 2021 (jan-abr) ISSN: 1808-799 X
Miriam Krenzinger2 Patrícia Farias 3
Rosana Morgado 4
Cathy McIlwaine 5
Resumo
Este artigo apresenta resultados de pesquisa realizada entre 2016 e 2018 sobre percepções de mulheres moradoras do conjunto de favelas da Maré, no Rio de Janeiro, quanto à violência de gênero, suas manifestações e formas de enfrentamento. Considerando que mulheres pretas e pardas são mais suscetíveis de serem afetadas, verificou-se que os tipos de violência e os locais onde se manifestam são resultado de condições econômicas e relacionais, em geral no ambiente doméstico/familiar e perpetradas por pessoas conhecidas pela vítima. Os processos de violência também se relacionam estruturalmente à ausência de políticas públicas e à ação de grupos armados, que reforçam múltiplas desigualdades sociais.
Palavras-chave: Violências de Gênero; Desigualdade racial; Conflitos armados.
VIOLENCIA DE GÉNERO Y DESIGUALDAD RACIAL EN UNA INVESTIGACIÓN CON MUJERES DEL TERRITORIO CONFLAGRADO DEL CONJUNTO DE BARRIOS DE MARÉ / RIO DE JANEIRO
Resumen
Este artículo presenta los resultados de las investigaciones realizadas entre 2016 y 2018 sobre las
percepciones de mujeres residentes en las favelas de Maré, en Río de Janeiro, sobre la violencia de
1 Artigo recebido em 30/11/2020. Primeira avaliação em 07/12/2020. Segunda avaliação em 17/12/2020. Aprovado em 13/01/2021. Publicado em 25/02/2021.
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v19i38.47366.
2 Miriam Krenzinger é professora do Programa de Pós-Graduação de Serviço Social da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro/UFRJ. Realizou pós-doutorado em Antropologia do Direito, na Universidade de Brasília (UnB, 2016-2017); e em Ciência Política, pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro; e Doutora em Serviço Social (PUC/RS).
E-mail: m.krenzinger@ess.ufrj.br. Lattes: http://lattes.cnpq.br/3658926460189319. ORCID: https://orcid.org/0000- 0002-1935-2976.
3 Patrícia Silveira de Farias é professora do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social/UFRJ, com pós-doutorado em Antropologia Social (UFRGS) e em Geografia Humana (King's College London), doutora em Antropologia Cultural e coordenadora do Grupo de Pesquisa CNPq Sociabilidades Urbanas, Espaço Público e Mediação de Conflitos (GPSEM). E-mail: trapfarias@gmail.com.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/2927612633388671. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3669-7626.
4 Rosana Morgado é professora do Programa de Pós-Graduação de Serviço Social da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro/UFRJ e coordenadora do Núcleo de Pesquisa NETIJ/ESS/UFRJ. Realizou pós-doutorado nas Universidades de Hertfordshire/ Inglaterra (2010) e na King’s College/Inglaterra (2020). Mestrado em Serviço Social, pela UFRJ (1992) e doutorado pela PUC/SP (2001). E-mail: rmorgadopaiva@hotmail.com.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/4281701886369977. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3094-9802
5 Cathy McIlwaine é professora da Faculdade de Ciências Sociais e Políticas Públicas da King’s College London, Departamento de Geografia. Mestre em Estudos Latino-Americanos pela University of Liverpool e Doutora pela London School of Economics. E-mail: cathy.mcilwaine@kcl.ac.uk
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6528-599X
género, sus manifestaciones y formas de prevención. Considerando que las mujeres negras y pardas tienen más probabilidades de verse afectadas, se concluyó que los tipos de violencia y los lugares donde se manifiestan resultan de condiciones económicas y relacionales, generalmente en el ámbito doméstico/familiar y perpetradas por personas conocidas por la víctima. Los procesos de violencia también están estructuralmente relacionados con la ausencia de políticas públicas y con la acción de grupos armados, los cuales refuerzan diversas desigualdades sociales.
Palabras clave: Violencias de género; Desigualdad racial; Conflictos armados.
GENDER VIOLENCE AND RACIAL INEQUALITY IN A RESEARCH WITH WOMEN IN THE CONFLAGRATED TERRITORY OF THE SET OF SLUMS OF MARÉ / RIO DE JANEIRO
Abstract
This article presents results of a research conducted between 2016 and 2018 on the perceptions of women living in favelas of Maré, in Rio de Janeiro, regarding gender-based violence, its forms of manifestation and prevention. Considering the fact that black and mixed-race women are more likely to be affected, the research findings revealed that the types of violence and the places where they occur are the result of economic and relational conditions, generally in the domestic/family environment and perpetrated by people known by the victim. The incidence of violence is also structurally related to the absence of public policies and to the action of armed groups, which reinforce multiple social inequalities. Keywords: Gender-based violence; Racial inequality; Armed conflicts.
Este artigo objetiva articular algumas reflexões teórico-metodológicas a respeito de gênero, cor/raça e local de moradia, suscitadas a partir da pesquisa de amplo escopo, intitulada Cidades saudáveis, seguras e com equidade de gênero: perspectivas transnacionais sobre violência urbana contra mulheres e meninas (VCMM) no Rio de Janeiro e em Londres,6 desenvolvida entre novembro de 2016 e abril de 2018.
Com base nesse estudo, que mobilizou inúmeros/as pesquisadores/as de instituições do Brasil e do Reino Unido, em diferentes fases de formação, e que se constituiu a partir de metodologia qualitativa e quantitativa, com pesquisa de campo e surveys em ambas as cidades, fez-se aqui um recorte que visa destacar elementos relativos à experiência metodológica e analítica sobre violências de gênero em meio
6 Financiada pelo Economic and Social Research Council (ESRC) e pelo Newton Fund, a pesquisa foi realizada entre novembro de 2016 e abril de 2018, a partir da parceria entre a Escola de Serviço Social (UFRJ), a Organização não governamental Redes de Desenvolvimento da Maré, o People’s Palace Project (Queen Mary University of London) e o King’s College London University. Como objetivo principal, buscou-se conhecer a percepção das mulheres, moradoras da Maré e de brasileiras que residem em Londres, sobre o fenômeno da violência, seus contextos e formas de manifestações, bem como mapear a rede de atendimento às mulheres vítimas de violência oferecida nas duas cidades. A pesquisa, de natureza interdisciplinar e interinstitucional foi realizada por três equipes de pesquisadores: a) Pesquisadoras da Escola de Serviço Social/ UFRJ- Joana Garcia, Miriam Krenzinger Rosana Morgado; b) Pesquisadores/as da Queem Mary University e Kings Kollege - Cathy Mcilwany, Paul Heritage e Yara Evans; c) Pesquisadores da Redes da Maré/ Casa das Mulheres da Maré: Bianca Polotto Cambiaghi, Dalcio Marinho Gonçalves, Eliana Sousa Silva, Gisele Ribeiro Martins, Isabela Souza da Silva. Assistentes de Pesquisa: Andreza da Silveira Jorge, Alessandra Pinheiro, Juliana Alves Sá, Kelly San Tereza Onä.
a um lócus complexo, marcado por conflitos urbanos, pela violência armada e por segregações sócio raciais. Desta forma, o presente artigo lida com as informações da pesquisa realizada com mulheres das favelas da Maré - maior conjunto de favelas da capital fluminense - e, particularmente, mulheres negras. Assim, pretende-se refletir sobre as condições e o contexto de vida destas mulheres, analisando as relações étnico-raciais, de gênero, de classe e as múltiplas dimensões da violência, com destaque para a questão da violência armada.
A Maré é uma unidade territorial administrativa da cidade do Rio de Janeiro, que ocupa uma área de quase 4 km2 e abrange 16 favelas do chamado “Complexo de favelas da Maré”, configurando-se como o maior conjunto de favelas da capital fluminense. Na pesquisa de campo, utilizamos um conjunto de estratégias de coleta de dados: mapeamento dos principais serviços públicos ativados na rede de apoio às mulheres em situações de violência; survey conduzido por cinco assistentes de pesquisa que aplicaram 801 questionários em visitas domiciliares em 15 comunidades Maré7; entrevistas semiestruturadas com 20 mulheres moradoras da(s) Maré(s) vítimas de violência, e realização de sete grupos focais compostos por um total de 59 participantes com perfis diversificados. Como resultado, esta experiência empírica complexa propiciou a identificação de uma série de fatores relativos a causas, tipos, formas, multidimensionalidade e implicações da violência de gênero em contextos de alta complexidade social. Neste artigo, destacamos justamente as questões relativas a territorialidade urbana racializada, precariedade infraestrutural e desigualdade de acesso a direitos. Outras dimensões podem ser encontradas em Krenzinger et al. (2018) e McIlwaine et al. (2020).
Segundo dados do Censo Maré 20138, as mulheres e meninas moradoras da Maré são 70.900 (das quais 49.932 têm mais de 18 anos), no universo de 139.073 pessoas. Assim, elas representam 51% dos moradores desse conjunto de favelas que
7 Das 16 favelas que compõem o Complexo da Maré, apenas Marcílio Dias não participou da pesquisa. Em 1994, a Maré passou a ser tratada como uma área totalmente urbanizada, com alterações nos limites dos bairros de Olaria, Ramos, Bonsucesso e Manguinhos. Essa condição viabilizou a criação do bairro, composto por um conjunto de 15 localidades: Praia de Ramos, Parque Roquete Pinto, Parque União, Parque Rubens Vaz, Nova Holanda, Parque Maré, Nova Maré, Baixa do Sapateiro, Morro do Timbau, Conjunto Bento Ribeiro Dantas, Conjunto Pinheiro, Vila dos Pinheiros, Novo Pinheiro (popularmente chamado Salsa e Merengue), Vila do João e Conjunto Esperança. A delimitação não inclui o território da comunidade de Marcílio Dias, que pertence ao bairro da Penha Circular (Fernandes, 2015).
8 REDES DA MARÉ. Censo da Maré 2013. Observatório de Favelas. Disponível em:
<https://redesdamare.org.br/censomare/
se configura, a partir do número total de habitantes, maior do que mais de 90% dos municípios brasileiros. Para lidar com este locus, o questionário acima mencionado foi aplicado por cinco entrevistadoras, todas com experiência em pesquisa tipo survey, sendo duas delas moradoras do Complexo da Maré. Em relação a estas, a região coberta não coincidiu com seu lugar de moradia, de modo a evitar o contato com mulheres conhecidas. A escolha de mulheres para conduzirem o levantamento foi uma estratégia para favorecer a proximidade com as pessoas entrevistadas, especialmente em função do tema central da pesquisa.
A pesquisa adotou como pressupostos teóricos que a violência contra a mulher (VCM), por ser um fenômeno complexo e multidimensional, está relacionada à questão do medo e da insegurança urbana (MOSER e MCILWAINE, 2004), expressando diferenças socialmente construídas entre os gêneros, etnias e raças, assim como na divisão sexual do trabalho. As formas da violência (física, psicológica e simbólica) e os contextos das suas manifestações (doméstico, urbano, institucional) decorrem, principalmente, de fatores econômicos, culturais e relacionais. É comum a violência ocorrer em âmbito privado, dentro da própria casa da menina, jovem ou da mulher, envolvendo namorados, cônjuges, parentes e/ou amigos próximos de seus familiares (SAFFIOTI, 1999). Conforme Almeida (2007), a violência doméstica remete ao espaço onde a violência se manifesta, ou seja, na esfera privada. Já a violência intrafamiliar caracteriza-se mais do que o espaço, diz respeito às relações envolvidas na dinâmica violenta. Esta última pode compreender pessoas que não necessariamente integrem determinado núcleo familiar, mas que com ele convivem de forma comunitária.
A violência interpessoal pode se dar no espaço sociocupacional de trabalho, nas escolas, universidades, instituições religiosas e outros espaços da vida comunitária onde os atos são encobertos pelo sigilo, pelo medo e pela baixa visibilidade (Almeida, 2007). As expressões de violências que se manifestam nesses contextos podem ser de diferentes formas: psicológica, simbólica, assédio verbal e físico, podendo ser até letal. Englobam-se, nessa ótica, os processos e dinâmicas sociais e interpessoais de violência e as respostas dadas pelos agentes do Estado e por diferentes grupos societários (com destaque para os grupos armados), estando relacionadas novamente a questões de classe social, raça/etnia e orientação sexual, entre outras categorias socialmente construídas.
Também foi considerado na pesquisa aqui relatada que os papéis impostos às mulheres e aos homens, consolidados ao longo da história e reforçados pelo patriarcado e sua ideologia, induzem ao estabelecimento de relações violentas entre os gêneros, que é fruto do processo de socialização dos indivíduos. Nessa mesma linha, considera-se que as construções sociais, tanto da feminilidade quanto da masculinidade, estão conectadas ao fenômeno da violência urbana, especialmente em territórios em conflitos armados. A generalização da violência machista e sexista contribui para que algumas mulheres culpabilizem as vítimas, reproduzindo a violência que as oprime. Posto isso, a violência contra as mulheres decorre de uma relação abusiva de poder exercida, de forma dinâmica, tanto por homens como por mulheres, ainda que de forma desigual.
As relações entre sujeitos inseridas desigualmente na estrutura familiar e comunitária subjugam, tendencialmente, o “mundo do feminino” (entendendo não só como de mulheres cisgênero,9 mas incluindo aí homens “afeminados”, gays, travestis e mulheres trans). A maioria das vítimas de violência de gênero são as mulheres e, ainda, a família e o espaço doméstico, de maneira geral, são territórios vulneráveis ao domínio das armas e à reprodução de circunstâncias enquadradas como tal. Além disso, há consonância entre as violências física e simbólica, uma vez que a primeira não se mantém sem que a segunda seja a base legitimadora do uso da força física. No caso da violência de gênero, a dimensão simbólica é fundamental para sua compreensão e usada como legitimação, pois “a ordem simbólica favorece o exercício da exploração e da dominação” (ALMEIDA, 2007) de homens sobre mulheres.
A palavra “favela” tem um peso simbólico já reconhecido internacionalmente. Desta forma, falar em “favela” em relação à Maré significa frisar sua instável inserção no composto da cidade do Rio de Janeiro, em termos de direitos de cidadania e da (in)existência de equipamentos públicos para garantir tais direitos – como água, luz, esgoto, escolas, postos de saúde, ruas asfaltadas e segurança pública. Nesta direção,
9 Pessoa cisgênero: pessoa que foi designada com um gênero ao nascer e se identifica com ele. Sinônimo de cissexual. Abreviado como “cis”. Pessoa transgênero: pessoa que foi designada com um gênero ao nascer e não se identifica com ele (GUIMARÃES, 2013).
o trabalho de campo na “favela”10 desenvolveu-se num território associado à precariedade da presença do Estado e, por conseguinte, da própria fragilidade de seus moradores. Para o senso comum, porém, a questão da desigualdade de acesso a bens e serviços parece se ampliar abarcando uma questão “moral”: de um lado, os moradores destes locais são associados a comportamentos criminosos, no que já se configurou na chamada “criminalização da pobreza” (WACQUANT, 2001). De outro lado, esta mesma precariedade leva a uma forma de identificação de seus moradores como “vítimas”. Assim, desenham-se dois “lugares sociais” – e apenas dois, frise-se
– possíveis para estes cidadãos: o de “criminoso” ou o de “vítima da sociedade”. Embora se diferenciem comportamentos ligados à legalidade ou à ilegalidade, ambos os rótulos têm algo em comum: associam aspectos morais às condições objetivas de existência destas pessoas, traçando e apresentando um perfil preconcebido de suas práticas e vivências cotidianas.
Não é um procedimento incomum, em se tratando de habitações populares. De fato, como Roy (2018) afirma em seu ensaio crítico sobre a proposta do urbanismo subalterno, “favela” se tornou uma metonímia para variadas formas de reafirmação da desigualdade, inclusive aquela, mais sutil, ligada a um suposto “caráter subalterno” que nega potência e agência a todas as alternativas postas em jogo em ambientes de precariedade. Mais ainda: sinaliza um pertencimento precário ao próprio cenário urbano mundial – assim, “favela” se torna um ícone da chamada “megacidade global”, aquela cidade caótica, desorganizada, com pessoas das mais variadas origens e “impossível” de ser habitada, a que se referem urbanistas, gestores, financistas, quando se trata de grandes metrópoles do Sul Global. Enquanto isso, as grandes cidades europeias ou americanas, ainda de acordo com o ensaio de Roy, são aquelas com grande população, de diferentes origens, e com problemas urbanos sérios – mas que são chamadas de “cidades globais”.
As favelas brasileiras não se apresentam de forma diferente. Embora cercadas, muitas vezes, pela falta de recursos e de acesso a bens públicos, seus moradores se expressam em busca de direitos e pela garantia de seus interesses. Além disso, longe de se apresentarem como territórios uniformemente “despossuídos” e precários, tais
10 A favela, com base em Jailson Silva (2009), foi definida como um território com implenitude de políticas e ações do Estado, precariedade em investimentos, como resumo das condições desiguais da urbanização e configuração de um território com identidades plurais com expressiva presença de negros e indígenas.
lugares da cidade se inserem em intrincadas hierarquias locais, que é preciso compreender a fim de analisar com mais propriedade as realidades aí inscritas.
O caráter complexo da territorialidade na cidade do Rio de Janeiro e, particularmente, sua articulação com processos de atribuição de comportamentos a partir do local de moradia já foram indicados em diversos estudos (FARIAS e CECCHETTO, 2009, por exemplo). Assim, é preciso reconhecer que há uma dicotomia mais ampla da cidade, já demonstrada na literatura, que divide bairros “superiores” hierarquicamente, na Zona Sul do Rio de Janeiro (Ipanema, Leblon e Copacabana, mas a Barra da Tijuca, que administrativamente se situa na Zona Oeste, mas é simbolicamente alocada neste vetor) e os bairros situados na base da escala hierárquica, aqueles pertencentes à Zona Norte/subúrbios. No entanto, dentro da mesma escala, alguns bairros são mais “bem situados” que outros; desta forma, morar na Tijuca é “melhor” que morar em Japeri, por exemplo.
Desta intrincada hierarquia local, as favelas também participam; assim, morar numa favela da Zona Sul, como Rocinha ou Chapéu Mangueira, ou dos “melhores bairros” da Zona Norte, como o Borel, na Tijuca, não é o mesmo que morar numa favela mais periférica, como Acari. O critério de proximidade com a Zona Sul como definidor de uma posição mais favorável é compreensível, no sentido de que as favelas ali localizadas usufruem, ao menos em parte, dos equipamentos públicos urbanos destinados aos moradores abastados. No entanto, vale lembrar que, também aqui, o espectro dos comportamentos “desordeiros” ou simplesmente criminosos ronda e sobressai, mesmo sobre aqueles e aquelas moradores/as das favelas da Zona Sul.
A expressão carioca “morar mal” ou “morar bem” sugere uma hierarquia territorial, ao mesmo tempo que a perpetua. Quem mora no Complexo da Maré, portanto, “mora mal”, no senso comum dos habitantes da cidade do Rio de Janeiro, já que se trata de um conjunto de favelas que não se localiza na Zona Sul. Isso significa dizer que, ao fazer um trabalho de campo neste território, há de se levar em conta os processos simbólicos da classificação dos espaços urbanos; dito de outra maneira, é preciso reconhecer que a ampliação do alcance destas vozes locais já se torna um ato político, pois perturba os lugares sociais de visibilidade/invisibilidade previamente concebidos. Entretanto, é necessário destacar que estes espaços e lugares sociais
não se encontram vazios; há uma série de grupos, organizações, redes de sociabilidade, que circulam, agitam e dão suporte a reivindicações, medos e sonhos.
Neste sentido, a opção do grupo de pesquisa em se articular a uma rede local não é simplesmente uma escolha pragmática – de permitir mais facilmente o acesso às mulheres. Tratou-se de analisar o que existe, como mulheres e homens construíram formas de lidarem com a ausência de equipamentos e serviços públicos e, consequentemente, com a dificuldade de acesso a direitos – no caso, o direito à segurança e a viver sem violência. Por sua vez, as participantes reconhecem a validade do trabalho científico como possibilidade de ampliar o alcance do saber local e dar visibilidade a suas ações, além da importante troca de informações e de conhecimento. Dessa forma, reconhece-se como fundamental a participação da Redes da Maré, localizada na Nova Holanda, como parte integrante da coordenação da pesquisa, tanto pelos motivos anteriormente enunciados, como por possibilitar a continuidade/reestruturação de ações que já estavam sendo desenvolvidas na Casa das Mulheres,11 situada em local próximo, o Parque União.
Como Simone (2004) sugere, as pessoas podem ser consideradas como infraestrutura local, no sentido de que se trata de um repertório de saberes e práticas, formas de agir, que se aglutinam num conhecimento local, um patrimônio que enforma as vivências cotidianas, um trunfo que pode e é usado para negociar saídas em um ambiente conflituoso e inóspito muitas vezes. Prestar atenção neste tipo de infraestrutura, nos saberes e fazeres locais constitui uma estratégia ao mesmo tempo ética, metodológica e heurística, com pesquisa em diversas fontes e documentos.
É nesta perspectiva que se entende a dimensão de um trabalho acadêmico transdisciplinar: uma pesquisa que atravessa as já reconhecidas áreas do conhecimento científico, mas que abrange ainda o reconhecimento de outros saberes, como o militante, o religioso, o tradicional, o cotidiano como igualmente válidos e importantes, em busca do enfrentamento de uma questão que atinge a todos: a violência racial e de gênero. Sem dúvida, este tipo de conhecimento, mais amplo e
11 A Casa das Mulheres foi inaugurada em outubro de 2016 e tem por objetivo fomentar o protagonismo das mulheres da região, contribuindo para a melhoria de sua condição de vida e, consequentemente, de todos que as cercam. As atividades se encaixam em diferentes frentes de trabalho: qualificação profissional, enfrentamento das violências contra mulheres, atendimento sociojurídico e psicológico e articulação territorial para a criação de uma agenda positiva nas políticas públicas para este segmento da população.
aprofundado, leva em consideração não só o aspecto teórico, mas as práticas envolvidas – portanto, é um conhecimento que se quer ação, que se pensa como ação.
O intercâmbio de saberes e de pessoas foi um dado significativo para a configuração do estudo. Porém, outro lado desse intercâmbio foi igualmente fundamental, ou seja, aquele veiculado pela associação com a organização Redes da Maré. Para consolidar o suporte a partir do qual foi realizada a pesquisa, é interessante notar o trabalho de formação de alunas/os, por meio da experiência como estagiárias/os e participantes da equipe. Particularmente, a presença de estudantes moradoras/es das localidades da Maré se expressa como um ganho a mais no envolvimento da comunidade com a questão da violência.
Os dados do Boletim Direito à Segurança Pública na Maré, aqui destacados, indicam que, em 2017, ocorreram na região: 41 operações policiais; 42 mortes em decorrência de confrontos armados; 41 feridos em operações policiais e 16 em confrontos entre grupos armados; 45 dias com atividades suspensas nos postos de saúde; e 35 dias com escolas fechadas, o que equivale a 17% dos dias letivos. Ainda a partir da mesma fonte, em relação ao número de intervenções de agentes de Segurança Pública, entre 2016 e 2017, verifica-se a ampliação de 24% do número de ocorrências. Importante assinalar, no contexto da nossa pesquisa, que a incidência e o aumento nos últimos anos de operações policiais – reflexos de uma política de segurança descontínua e equivocada – efetiva-se de forma diferente no conjunto das 16 favelas que compõem a Maré, e criam níveis de violência diferenciados em cada uma das áreas analisadas (Redes da Maré, 2018 e 2019). Tanto em 2016 quanto em 2017, as operações policiais se concentraram, significativamente, numa região específica do Bairro, onde estão localizadas as favelas Parque União, Rubens Vaz, Nova Holanda e Parque Maré. Todas vinculadas ao grupo Comando Vermelho. Os dados mostram que apenas nessas quatro favelas ocorreram 59% do total das operações. Não há registro de incursões em áreas dominadas pelas milícias.
No conjunto das favelas pesquisadas há, portanto, lógicas distintas no que diz respeito à ocupação de grupos armados e ao cotidiano de intervenções policiais
violentas. Nesse sentido, nossa pesquisa de campo reconheceu o conjunto de favelas da Maré como unidade de pesquisa plural e considerou que as especificidades territoriais, inevitavelmente, se revelariam nas situações de violência sofridas pelas mulheres e nas diversas formas de seu enfrentamento.
Nessa ótica, entendemos que a violência se expressa com singularidades na vida de mulheres, especialmente das mulheres negras, que moram em favelas e de forma ainda mais específica nas mulheres que residem na Maré. Há, portanto, a nosso ver, um contexto de violências que incidem socialmente nas experiências de vida, tanto no âmbito público como privado, de mulheres da Maré, que consideramos reflexo das violências contra mulheres na sociedade de maneira geral e com todas as consequências objetivas do patriarcado e do racismo estrutural presentes no Brasil.
Trabalhamos com a perspectiva, portanto, de que a Maré é um conjunto de favelas, não uma unidade homogênea, e as especificidades territoriais inevitavelmente se constituem nas formas como cada uma dessas favelas/áreas experienciam situações de violência e de enfrentamento. Esta perspectiva está, portanto, alinhada à premissa de que estamos lidando com várias favelas, que vivem lógicas distintas no que diz respeito à ocupação de grupos armados e ao cotidiano de intervenções policiais violentas. A partir da lógica territorial, reconhecemos que há grupos armados e ações dos entes estatais – estes últimos deveriam ser responsáveis pela provisão do direito à Segurança Pública – que conformam realidades diferentes e, somadas ao histórico da habitação e à origem sociocultural dos moradores, se apresentam como fatores que impactam nos tipos e nas dinâmicas de violência que as mulheres vivenciam nesses territórios. Os grupos civis armados e paramilitares impõem dinâmicas específicas a cada área da Maré, bem como a lógica de atuação das polícias se dá de forma distinta, e isto, por sua vez, se configura como um dos elementos responsáveis pela heterogeneidade das favelas da Maré, visto que seus moradores/as vivenciam a violência de formas diferentes, e como são suas estratégias de resiliência (KRENZINGER et al., 2018). Esse cenário de violência constante pode ser ainda mais intensificado em situações como a ocupação da Maré pelo Exército brasileiro, entre abril de 2014 e junho de 2015, que teve como objetivo estabelecer as bases para implantação da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) na Maré, quando naquela ocasião a Maré era “controlada” por quatro grupos civis armados (GCA):
Comando Vermelho (CV), Terceiro Comando (TC), Amigos dos Amigos (ADA) e Milícia (Silva, 2017, p.16).
No conjunto das 15 favelas pesquisadas, percebemos, contudo, que haveria lógicas distintas no que diz respeito à ocupação de grupos armados e ao cotidiano de intervenções policiais violentas. Nesse sentido, nossa pesquisa de campo, ao reconhecer o conjunto de favelas da Maré como unidade de pesquisa diversa e plural, considerou que as especificidades territoriais inevitavelmente se revelariam nas situações de violência sofridas pelas mulheres e nos modos de enfrentamento dessa diversidade de violências que atingem seus moradores. Ao mesmo tempo, de forma generalizada, a violência urbana endêmica se revelou como um efetivo 'gatilho urbano' que propicia formas particulares de violências de gênero e que afeta fortemente a experiência urbana de mulheres (McIlwaine et al., 2020). Por um lado, agentes armados, como a polícia, foram apontados como frequentes perpetradores de violências contra mulheres e meninas. Outros atores armados, como integrantes do tráfico, são também apontados como perpetradores – nas formas de agressão e de exercício de poder territorial – mas também como agentes de 'proteção' na ausência de forças de segurança do Estado dispostas a apoiar as mulheres dentro de favelas. De modo geral, o problema da violência em favelas é sabidamente um fator que compromete a vida urbana plena. Silva (2009, p. 247) observou que a satisfação dos moradores da Maré com a qualidade de vida é inversamente proporcional ao grau de violência – uma vez que em favelas nas quais a violência é menos conflagrada, principalmente, porque os agentes de Segurança Pública atuam de forma extremamente diferenciada, e apesar de situação mais precária no que se refere a serviços e infraestrutura, quase 90% das pessoas entrevistadas declararam gostar de morar na Maré. Além disso, 75,5% dos moradores entrevistados para a pesquisa da referida autora apontou a violência ou elementos relacionados a ela como os principais pontos negativos de se morar na Maré, o que desmistifica o “senso comum” de que moradores/as de favela se acostumaram ou naturalizam a violência e, de certa forma, revelam o medo e a sensação de insegurança dos seus habitantes. Por outro lado, mesmo identificando a violência e seus elementos correlatos como os aspectos mais negativos de viver na Maré, 67,3% dos/as moradores/as declararam que se sentiam mais seguros na Maré do que no restante da cidade (SILVA, 2009, p. 272).
No paradigma de cidades justas, seguras e saudáveis para mulheres (vide McIlwaine et al., 2020), é fundamental, para a compreensão dos entraves da violência ao direito à cidade com igualdade de gênero, reconhecer que a violência de gênero se desenvolve em diferentes escalas, domínios e territórios e, por sua vez, as cidades estão situadas em relações mais amplas de violência estrutural que também mediam e influenciam a natureza da violência de gênero. Assim, tendo em vista estes desafios urbanos, cabe salientar que um dos aspectos mais importantes trazidos à tona pelos questionários e entrevistas com as mulheres da Maré sobre a questão da violência diz respeito ao imbricamento entre relações étnico-raciais, de classe e de gênero – ponto destacado a seguir.
Ao longo dos anos, as estatísticas vêm demonstrando o lugar subalternizado das pessoas afrodescendentes no Brasil. Piores condições de vida as acompanham historicamente e abrangem, desde índices inferiores de inserção no mercado de trabalho, passando por piores salários, maior taxa de mortes violentas e de encarceramento.12
Especificamente em relação à segurança desta parcela da população, a desigualdade se repete. O Atlas da Violência 2019 (Brasil, 2019) regularmente apresentado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), por exemplo, informa que, em 2017, 75,5% das vítimas de homicídios em todo o País são pessoas negras.13 É preciso frisar que todos os índices se referem a cerca de 55,5% da população do País que em 2018 era a dimensão da população negra, segundo dados do IBGE (Brasil, 2018), e expressam a extensão da desigualdade étnico-racial no Brasil.
No País, a conjugação violência-população negra é inequívoca, com desdobramentos, entre os homens, particularmente os jovens, nas taxas de
12 Para um panorama completo atualizado em 2018, referente aos dados da população brasileira por cor ou raça, cf. IBGE, acesse
<https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101681_informativo.pdf.>
13 Esses dados tiveram como base informações do Ministério da Saúde em relação às cidades brasileiras no ano de 2017. O relatório foi lançado em junho de 2019 e está disponível em
<http://www.ipea.gov.br/ atlasdaviolencia/download/19/atlas-da-violencia-2019>
homicídios, como consta no relatório elaborado pelo IPEA/FBSP (Brasil, 2019).14 A pesquisa registra um panorama histórico de piora nos indicadores, pois, comparando- se com relatórios de anos anteriores, na última década a letalidade entre as pessoas negras cresceu 33,1%, contra um crescimento, no mesmo período, de 3,3% entre indivíduos não negros. O relatório constata “a continuidade do processo de profunda desigualdade racial no País” e que, diante deste quadro, “fica evidente a necessidade de que políticas públicas de segurança e garantia de direitos devam, necessariamente, levar em conta tais diversidades” (p. 51).
Concomitantemente, o encarceramento em massa nos apresenta dados incisivos sobre as desigualdades raciais no momento da consideração do que é “crime” e da pena envolvida. Assim, em seu último levantamento nacional sobre a população carcerária, em junho de 2017, o Infopen15 registra que 63,6% das pessoas presas são negras. Segundo consta na PNAD Contínua do mesmo período – 2017 – a população negra no País representa 55,4% da população total brasileira, o que indica uma sobrerrepresentação desta etnia/raça nas prisões brasileiras. Este dado reforça as acusações recorrentes, feitas por ativistas negros e estudiosos do tema, de indícios de discriminação étnico-racial pela polícia e órgãos de Segurança Pública ao longo do tempo, que seguem proporcionando barreiras no caminho da população brasileira descendente de africanos.
Desta forma, historicamente, os dados não podem ser dissociados da condição de escravização de africanos que durante séculos formou a base econômica do País, nem do arranjo pós-abolição, que privilegiou em sua busca pela consolidação do capitalismo industrial a importação de mão de obra imigrante europeia e a exclusão dos agora não escravizados. Assim, mesmo com a mudança do modo de produção, não houve efetiva política do Estado brasileiro que incorporasse, no novo esquema, essa grande parcela da população; pelo contrário, a desigualdade étnico-racial se perpetuou e se inseriu de forma estrutural no nascente capitalismo brasileiro, como demonstrou Hasenbalg (1979).
Os dados relativos à raça/cor no Brasil apresentam, ainda, em termos de local e condições de habitação, a concentração da população preta e parda nos locais mais
14 Atlas da Violência (Brasil, 2019), p. 49. Disponível em <http://www.ipea.gov.br// atlasdaviolencia/ download/ 19/ atlas-da-violencia-2019>
15 O Infopen é um sistema de informações estatísticas do sistema penitenciário brasileiro (estabelecimentos penais e população prisional), em funcionamento desde 2004.
insalubres e precários em termos de moradia urbana. Neste sentido, voltando os olhos para a pesquisa realizada na Maré, não surpreende o percentual de mulheres pretas e pardas: 67% das 801 respondentes. Em contrapartida, apenas 30% se declararam mulheres brancas.16
Em relação a esta classificação por raça/cor, um dado considerado significativo pelas pesquisadoras é o de que 13 pessoas declararam “não saber” sua cor. Para entender melhor esta questão, há de se recorrer à literatura sobre relações étnico- raciais no Brasil. Nogueira (1985), por exemplo, já destacava que o exercício de classificação de cor no Brasil envolve algumas associações e indicadores que vão além da cor da pele ou da origem étnica. Segundo o autor, o gestual, alguns traços físicos específicos – notadamente o formato do nariz, o tamanho da boca e o tipo de cabelo – o modo de se vestir e mesmo a forma de falar são utilizados como meios de indicar se uma pessoa é de ascendência europeia ou afrodescendente. Ainda de acordo com Nogueira (1985), o exercício da classificação dependerá, mais do que a referência a uma origem africana, de um cálculo em que o aspecto relacional estará presente – assim, ser “mais claro” ou “mais escuro” do que o/a interlocutor/a será um esforço empreendido pela pessoa ao ser perguntada sobre sua cor.
Este aspecto interativo da classificação entra em jogo no momento mesmo em que foram realizadas as entrevistas no campo. Daí a relevância heurística, sem falar na importância ética, nesta direção, de contarmos com uma equipe de pesquisadoras de diferentes pertencimentos étnico-raciais, de modo a provocar e a incluir esta forma de classificação como dado de pesquisa e reflexão. É compreensível que, dada a complexidade do exercício de classificação de cor assim elaborado, muitas vezes os/as entrevistados/as prefiram o silêncio, ou a alternativa “não sabem”, em questionários com a pergunta direta sobre autoclassificação de cor. Importante verificar, na pesquisa em questão, que a grande incidência de pessoas de origem nordestina na Maré – 88% dentre as 38% não cariocas vieram do Nordeste – provoca reflexões nas respondentes: como alertaram diversos estudos, muitas vezes esta classificação, o “ser nordestina”, é compreendida em alguns circuitos de interação social como um tipo de classificação “racial”.
16 Nas entrevistas da pesquisa, foi utilizado o recurso da autodeclaração, dentro das opções estabelecidas pelo IBGE: branca, parda, preta, indígena e amarela.
Afinal, como frisa Guimarães (1999), “o racismo e o ‘preconceito de cor’ são formas racializadas de se naturalizar a segmentação da hierarquia social. A racialização desta hierarquia pode, inclusive, ajustar-se, segundo as regiões e o tempo histórico, provendo sucedâneos simbólicos aos ‘negros’, como são, no Sudeste brasileiro, os epítetos de ‘baianos’, ‘paraíbas’ e ‘nordestinos’” (p. 27). Desta maneira, muitas pessoas, acostumadas a serem classificadas como “nordestinas”, quando perguntadas sobre sua raça/cor, podem ter em mente sua origem territorial como forma de resposta, e se sentiram pouco confortáveis em decidir a partir das categorias estabelecidas pelo IBGE e constantes no Censo Demográfico.17
Portanto, violência e raça/etnia são termos que se articulam dolorosamente desde a chegada dos primeiros africanos escravizados no Brasil, assim como em outras partes do mundo.18 A subordinação à força, a condição de desumanização, as torturas estavam ligadas ao processo de escravização desde o embarque dos prisioneiros em portos africanos, até sua chegada ao Brasil – assim, dados indicam que por volta de 4,9 milhões de pessoas vieram escravizadas para o País, enquanto cerca de 690 mil morreram neste deslocamento. Após a chegada, a sujeição, a separação de famílias e povos, a negação de sua cultura, religião e crenças, os castigos e o trabalho em condições desumanas faziam com que, por exemplo, no cultivo da cana, a expectativa de vida de uma pessoa escravizada fosse de 23 a 29 anos (GOMES e SCHWARZ, 2018).
As diversas estratégias de resistência a esta situação extrema foram rebeliões e revoltas, “mutirões” para compra de alforrias, fugas coletivas e formação de comunidades próprias (quilombos), passando ainda pela articulação com segmentos
17 Estas categorias, aliás, ao longo do tempo, têm sido objeto de diversas disputas e polêmicas, e está longe de ser uma unanimidade até hoje. Em 1976, por exemplo, foi realizada ampla pesquisa sobre classificação étnico-racial, pelo IBGE – a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. Nela, havia duas perguntas relacionadas à classificação de cor: a primeira convidava os interlocutores à autoclassificação espontânea, com a resposta em aberto; já a segunda, apresentava as quatro categorias tradicionais do Censo: preta, parda, branca e amarela, para que o/a respondente optasse. O resultado à questão aberta foi um leque de 136 termos para cor (para uma análise aprofundada dos dados da PNAD 1976, ver Araújo, Porcaro e Oliveira, 1985; e o excelente trabalho de Silva, 1988).
18 Calcula-se que em mais de três séculos os chamados “navios negreiros” fizeram cerca de 9,5 mil viagens destinadas ao tráfico de pessoas africanas escravizadas, trazendo, apenas para o Brasil, 4,9 milhões de pessoas. Os países que mais transportaram africanas/os na condição de escravas/os foram Inglaterra e Portugal. Estes dados, assim como vários outros referentes ao tráfico, estão disponíveis em The Transatlantic Trade Slave Database, plataforma digitalizada que abrange 35 mil expedições entre 1514 e 1866, resultado do esforço de pesquisadores de instituições de vários países, principalmente ligados às Universidades de Harvard e de Emory (EUA) e de Hull (Reino Unido) em recolher e catalogar os registros do transporte das pessoas escravizadas, registradas como mercadoria.
liberais brancos na campanha abolicionista, formação de redes de solidariedade religiosa (as Irmandades) e mesmo atitudes individuais mais agônicas – estudos mostram, por exemplo, a grande quantidade de suicídios entre os escravizados, particularmente mulheres (KARASCH, 2001).
Com a transição para um regime capitalista de grande dependência externa, os descendentes de africanos se viram às voltas com outros tipos de exclusão e violência. Com uma política oficial voltada para a absorção de mão de obra imigrante e não para a inclusão daquela já existente no País – os descendentes de africanos – e a intenção muitas vezes explicitada de “branqueamento da população” brasileira, este novo modo assalariado de produção resistiu à inclusão do povo negro, que se viu à mercê dos empregos mais precarizados e distantes dos grandes centros industriais que então passaram a se desenvolver.19
O novo modo de produção no Brasil, dessa forma, significou a inserção subalternizada na nova estrutura socioeconômica. Assim, sem políticas de acesso à terra onde haviam trabalhado brutalmente, com acesso restrito aos novos postos industriais que surgiam, sem implementação de medidas inclusivas na educação e na habitação, os descendentes de africanos se viram diante de um novo modo de produção que significou sua inserção subalternizada na nova estrutura social, impedindo qualquer mobilidade social. Nesta direção, a desigualdade social passaria a se perpetuar a partir do acréscimo de outra dimensão: a da discriminação racial. Em suma, não apenas o processo de escravização condicionou a desigualdade que se estende até os dias de hoje, mas sobretudo a ausência de políticas e ações de inclusão efetivas no período imediatamente após a abolição.
A situação das mulheres escravizadas, em relação à violência, conta ainda com a sobreposição de alguns fatores específicos, como a violência sexual generalizada. Como propriedades, as mulheres africanas e suas descendentes eram compreendidas como escravas sexuais. Segundo Stolcke (2007), o cenário se completava com a prescrição de lugares sociais de mulheres segundo a cor: às mulheres brancas era destinado o papel de “esposa e mãe”, exercidos dentro de um espaço doméstico e cujo proprietário era o marido; para as mulheres negras, e as indígenas, nenhum dos dois papéis era possível - no máximo, seriam consideradas
19 Para compreender melhor esta distribuição geográfica entre a cidade reservada aos brancos, e o campo, aos negros, ver Hasenbalg, 1979.
“amantes”, e seus filhos não teriam direito à herança. Com esta escala hierárquica que compunha os lugares sociais das mulheres brancas, pardas e pretas, segue a autora, os bens adquiridos com a pilhagem colonial e com o trabalho das pessoas escravizadas eram transmitidos diretamente aos membros da elite colonial branca.
Ainda durante a época da escravização, as mulheres africanas e descendentes foram associadas ao trabalho doméstico e de cuidados nas casas das famílias brancas. Além disso, formavam grande parte das pessoas designadas como “escravas de ganho”, ou seja, aquelas que tinham acesso ao espaço da rua para venda de produtos agrícolas, comidas e até serviços sexuais, cujo ganho era transferido e controlado por seus patrões brancos. Assim, a circulação dessas mulheres se dava tanto no espaço público da rua quanto no doméstico – porém, na condição subalternizada de escrava, inclusive escrava sexual.
Voltando os olhos para a contemporaneidade, merecem atenção os dados relativos à violência de que são vítimas as mulheres negras. No citado relatório do IPEA/FBSP, encontramos índices gerais preocupantes em relação ao homicídio de mulheres - só no ano de 2017, foram mortas cerca de 13 mulheres por dia, o maior índice em 10 anos - quando os homicídios são desagregados por cor, temos que, enquanto a taxa para mulheres não negras subiu 1,6%, entre 2007 e 2017, a de mulheres negras cresceu 29,9%. Isso significa um aumento de 1,7% para mulheres não negras e de 60,5% para mulheres negras. No caso das mulheres negras, e das mulheres em geral, a maioria das agressões e homicídios se dá dentro da residência e por perpetrador conhecido ou familiar da vítima. Quanto ao Rio de Janeiro, o Dossiê Mulher 2018 elaborado pelo Instituto de Segurança Pública/RJ afirma que duas em cada três mulheres vítimas de homicídio doloso no estado do Rio eram negras.
No âmbito da pesquisa na Maré, alguns dados fazem eco a este cenário geral. Entre as entrevistadas, há o reconhecimento das violências de gênero, particularmente aquela associada a um território estigmatizado socialmente, como comentado; assim, quando perguntadas sobre se existe violência contra mulheres e meninas na Maré, 76% das mulheres afirmaram que sim, 18% afirmaram não saber e 6% disseram que não há. Quando se relaciona os relatos de violência à cor declarada pelas mulheres, temos 24% de mulheres brancas afirmando que sofreram violência, contra 31% das mulheres pretas e pardas – uma expressiva diferença que corrobora os dados sobre violência contra a população negra apresentados.
Quanto ao tipo de violência, foram descritas: a violência física (agressão física, contato físico indesejado, controle violento, estrangulamento, queimadura e esfaqueamento); a violência sexual (comentários sexuais, atos sexuais indesejados e estupro); e a violência psicológica (ameaças de agressão física, comentários negativos e abuso verbal). Das 801 mulheres entrevistadas, 457 (57%) relataram ter sofrido violência; destas, 317 (69,3%) eram negras (soma de mulheres pretas e pardas). As mulheres pretas e pardas estão em maioria entre aquelas que sofreram violência física – 190 (69,8%) de um total de 272 mulheres; entre as que sofreram violência sexual – 174 (71,6%) entre 243 no total. Já entre as que foram vítimas de violência psicológica, as mulheres pretas e pardas somam 252 (69,4%) de um número total de 363 vítimas deste tipo de violência.
A contínua desvalorização estética negra em favor de um modelo branco de beleza, processo histórico e que se mantém até os dias de hoje (a respeito disso, ver o instigante e pioneiro trabalho de Guerreiro Ramos, 1995), além da exclusão de pessoas negras dos espaços onde o maior número de pessoas é branco e de camadas mais abastadas da população – a chamada segregação residencial – contribuem igualmente para causar o fenômeno que diversas estudiosas e militantes analisaram: a “solidão da mulher negra” (BERQUÓ, 1987; PACHECO, 2013). Assim, a taxa de mulheres negras solteiras, ou chefes de família, ou com relações não estáveis estatisticamente é maior do que a de mulheres brancas. No Censo de 2010 (Brasil, 2010), por exemplo, verificou-se que 52,5% das mulheres negras não viviam em união (categoria utilizada pelo Censo).
Em princípio preteridas por estes fatores para relações duradouras por homens brancos e negros, as mulheres negras que ultrapassam tais obstáculos se veem às voltas com complicadores nas relações afetivo-sexuais que constroem. Racismo, inferiorização estética e desvalorização podem contribuir para torná-las mais suscetíveis a sofrerem violências do parceiro afetivo-sexual.
Esta constatação leva a outra reflexão importante sobre as dinâmicas de raça e classe, conectando-as aos processos de mobilidade urbana. Phadke, Ranade e Khan (2009), em estudo sobre a mobilidade urbana das mulheres e dos homens em Nova Delhi, na Índia, corroboram que a circulação feminina na cidade é restrita, funcionando a partir da dicotomia ocidental tradicionalmente apontada pelos estudos feministas clássicos: uma esfera/espaço público de predominância masculina e uma
esfera/espaço privado onde as mulheres majoritariamente são alocadas. No entanto, afirmam que esta restrição não é absoluta – pois desde há muito, por exemplo, as mulheres das castas mais baixas, no caso indiano, frequentam as ruas e as casas alheias em busca de sustento; no caso brasileiro, há séculos as mulheres negras frequentam e trabalham dentro e fora de suas casas, como escravas domésticas e de ganho, primeiro e, em seguida, como trabalhadoras subalternizadas. Neste sentido, casta (na Índia), e classe e raça (no Brasil) são indicadores dos lugares sociais e dos espaços possíveis de serem ocupados por homens e mulheres na cidade.20
Num cenário capitalista em que o consumo de mercadorias é um pilar estrutural, a divisão dos espaços públicos e privados por gênero e classe, além de não ser absoluta, é também seletiva. Não só as figuras das “mulheres trabalhadoras” são aceitas como legítimas partícipes dos espaços urbanos, mas as “mulheres compradoras” são permitidas e legitimadas nas ruas. No entanto, em ambos os casos
- o das compradoras e o das trabalhadoras - é preciso que sejam respeitados determinados locais e horários, ou seja, fora do “horário comercial”, e especialmente à noite, nos locais públicos como ruas e esquinas, bares, boates e eventos festivos, o acesso feminino é considerado socialmente indesejável, classificando as mulheres que circulam por estes espaços nestes horários como tendo um “caráter moralmente reprovável”.21
Apesar de reconhecidas, em nível mundial, como uma das melhores legislações que buscam enfrentar o problema da violência contra a mulher, as leis Maria da Penha (Brasil, 2006) e do Feminicídio (Brasil, 2015) não foram suficientemente inibidoras da violência de gênero no Brasil. No mesmo sentido, o celebrado Estatuto da Cidade (Brasil, 2001) não assegurou efetivo direito à cidade para mulheres, especialmente as negras e periféricas. Mesmo com o avanço da
20 Sobre a relação entre classe, raça e gênero expressa nas opostas perspectivas sobre o significado histórico do trabalho, da casa e da rua para mulheres negras e brancas, ver Carneiro, 2019.
21 Rabossi (2004) indicou que o espaço público em Ciudad del Este, vizinha a Foz do Iguaçu, era frequentado tanto por homens quanto por mulheres, nos papéis de “compristas” (consumidoras) ou comerciantes informais; no entanto, quando caía a noite na cidade, a presença nestes espaços se tornava eminentemente masculina.
legislação e do engajamento social ao tema, a redução significativa da desigualdade de gênero/raça ainda está longe de ser uma realidade no País. Pelo contrário, nos últimos quatro anos, sofremos vários reveses limitando os espaços recém- conquistados, bem como uma significativa redução dos investimentos e recursos destinados às políticas de combate à violência contra a mulher.
Nesse aspecto, a realização de uma pesquisa sobre violência num território com as especificidades da Maré/RJ reuniu um acervo de dados valioso para subsidiar a construção de novos caminhos para o enfrentamento da temática da violência de gênero. Ter ouvido um conjunto expressivo de mulheres constituiu uma oportunidade rica de significados para todos os envolvidos nesta pesquisa. Os repertórios sobre violência, questões de gênero, relações étnico-raciais e outros temas foram densos e sugestivos para um investimento maior no debate sobre a violência contra mulheres, bem como nas formas de enfrentamento desenhadas para mulheres em geral, e mulheres com perfis semelhantes às que vivem na Maré ou fora dela.
Se relacionarmos os dados apresentados ao contexto brasileiro, temos um quadro em que as complexidades e intersecções das desigualdades de gênero, raça/cor e classe se mostram de forma aguda. Assim, ao se refletir sobre os índices referentes às violências contra as mulheres negras, o encarceramento e o homicídio massivos de homens negros, pode-se dizer, em suma, que o fenômeno da violência acompanha a população negra em suas diferentes manifestações e territórios. Desta forma, se a rua é o ambiente em que mais homens negros são mortos, por exemplo, a casa é onde há maior incidência de violência doméstica, que atinge principalmente mulheres negras. Para esta parcela da população, não existe ambiente seguro.
Na pesquisa realizada na Maré, as depoentes relatam que a violência se espraia tanto no cenário privado como no público, com uma ligeira vantagem deste último, onde ocorrem a maioria dos casos de violência psicológica – de comentários ofensivos a ameaças físicas e/ou sexuais. E como citado, grande parte das entrevistadas que sofreram este tipo de violência são pretas ou pardas.
É preciso considerar, ainda, que o entendimento conceitual sobre violência de gênero deve ser analisado e enfrentado de uma perspectiva transnacional, como um fenômeno que atinge mulheres, especialmente as mulheres negras, nas mais diversas nações e territórios do mundo. No presente estudo, a atenção a esta perspectiva permitiu, por exemplo, a reflexão sobre as conexões que unem e perpetuam as
múltiplas manifestações das violências contra as mulheres moradoras da Maré e as brasileiras que residem em Londres.
A dinâmica de desigualdades superpostas e mescladas precisa ser levada em conta em qualquer desenho de políticas públicas, particularmente aquelas relacionadas à saúde e à Segurança Pública. Esse contexto de realização da pesquisa e a escolha metodológica têm, então, relação objetiva com as variáveis que incidem no cotidiano de territórios conflagrados onde há uma frágil presença do Estado de Direito (que se evidencia na precariedade de serviços públicos e na parca garantia de direitos, entre os quais, naturalmente, o direito à Segurança Pública), que se concretiza numa polícia que atua recorrentemente de forma muito violenta.
É nesta direção que se compreende o presente estudo, como uma contribuição rumo à construção de políticas de enfrentamento às violências que integrem de forma mais aprofundada as dimensões de raça/cor, gênero, classe social e de território presentes nas sociedades contemporâneas.
A dimensão política da violência de gênero é visível pelo grau de tolerância do Estado. Tal tolerância é traduzida pela ausência ou deficiência de políticas públicas capazes de gerir o problema em sua complexidade (o que inclui, necessariamente, a dimensão preventiva); pela sustentação do fenômeno pelo poder público, expressa no seu (não) enquadramento legal (o que engloba a intervenção do aparato policial- judiciário), ou pela estratégia governamental de reafirmar lugares de gênero hegemonicamente distribuídos. A questão da tolerância do Estado e de sua histórica indolência com as questões que envolvem direitos humanos – e aí, não somente os das mulheres – sempre deverá ser analisada a partir das dinâmicas sociais e políticas.
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V.19, nº 38, 2021 (jan-abr) ISSN: 1808-799 X
Renata Lewandowski Montagnoli2
Liane Vizzotto3
Resumo
O objetivo deste artigo é analisar as ações e os seus julgados no Supremo Tribunal Federal para apontar os pontos convergentes a favor dos estudos sobre gênero utilizados pelos ministros da Suprema Corte em suas decisões. A análise de dez Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental ou Ação Direta de Inconstitucionalidade, já julgadas pela Suprema Corte, constituem a base documental da pesquisa. A grosso modo, os achados mostram a legalidade dos estudos de gênero na escola, ancorada na Carta Constitucional Federal (1988).
Palavra-chave: Gênero; Legalidade; Supremo Tribunal Federal; Educação.
LA HOGUERA QUE QUEMÓ EL ALMA AYER INCINERA LA EDUCACIÓN HOY: LA PERSECUCIÓN DE LOS ESTUDIOS DE GÉNERO
Resumen
El objetivo de este artículo es analizar las acciones y sus sentencias en la Corte Suprema para señalar los puntos convergentes a favor de los estudios de género utilizados por los ministros de la Corte Suprema en sus decisiones. El análisis de diez (Irguiese) de incumplimiento de un Precepto Fundamental o Acción Directa de Inconstitucionalidad, ya juzgadas por el tribunal Supremo (o Corte Suprema), constituyen la base documental de la investigación. Los resultados muestran la legalidad de los estudios de género en la escuela, anclados en la carta Constitucional Federal (1988).
Palabra chave: Género; Legalidad; Corte Suprema (Tribunal Supremo); Educación.
SOULS BURNED AT THE STAKE IN THE PAST, EDUCATION BURNS AT THE STAKE TODAY: A “WITCH HUNT” AGAINST GENDER STUDIES
Abstract
The purpose of this paper is to analyze the lawsuits and the decisions issued by the Federal Supreme Court to point out the converging points in favor of gender studies used by the Supreme Court ministers in their decisions. The analysis of ten Non-compliance With a Fundamental Precept or Direct Unconstitutionality Action, in already decided cases by the Supreme Court, constitute the documentary basis of the research. Roughly speaking, the findings show the legality of gender studies at school, anchored in the Federal Constitution (1988).
Keyword: Gender; Legality; Federal Supreme Court; Education.
1 Artigo recebido em 19/10/2020. Primeira avaliação em 27/10/2020. Segunda avaliação em 31/10/2020. Aprovado em 14/12/2020. Publicado em 25/02/2021.
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v19i38.46595
2 Mestranda do Mestrado Acadêmico em Educação do Instituto Federal Catarinense - IFC (Campus Camboriú/SC). E-mail: renata.lemon@hotmail.com; ORCID:0000-0001-5371-0522.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/7551558761757070
3 Doutora em Educação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos)l. Professora do IFC (Campus Camboriú/SC). E-mail: liane.vizzotto@ifc.edu.br; ORCID: 0000-0002-8002-981X.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/4735083599333817.
Em 24 de abril de 2020, depois de um longo processo de perseguição e luta, o Supremo Tribunal Federal (STF) garantiu a constitucionalidade e o direito de pluralidade de ideias para os estudos sobre gênero e diversidade nas escolas. O tema estava em discussão jurídica devido aos recursos impetrados no poder Judiciário máximo do país, para que fosse julgada a legalidade da proibição nas leis municipais/estaduais e nos planos de educação de temas relacionados com os estudos de gênero, tais como: diversidade de gênero, identidade de gênero e relações de gênero.
Para essa análise, vale usar das palavras de Tomaz Tadeu da Silva (2014, p. 81), o qual diz que “[...] na disputa pela identidade, está envolvida uma disputa mais ampla por outros recursos simbólicos e materiais da sociedade”.
Nesse espaço de poder, podemos entender, segundo Joan Scott (1989, p. 21), “[...] conexões explícitas entre gênero e poder, mas eles não são mais que uma parte da minha definição de gênero como uma forma primária de dar significado às relações de poder”. Diante das disputas de poder e de impasses jurídicos, o caso que levou o Supremo a julgar o tema foi a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF)4 457, referente à Lei municipal 1.516/20155 da cidade de Novo Gama, em Goiás, que proibia a abordagem de gênero e sexualidade nas escolas públicas da cidade. Os 11 ministros da Corte foram unânimes sobre a necessidade de se discutir questões de gênero na escola, e, segundo o relator do caso, ministro Alexandre de Moraes, os princípios atinentes à liberdade, conforme preceitua a Constituição Federal (CF/1988), “[...] não se direcionam apenas a proteger as opiniões supostamente verdadeiras, admiráveis ou convencionais, mas também aquelas eventualmente não compartilhada pelas maiorias” (STF, 2020a, p. 2)
4 Esta ação está prevista no art. 102, § 1º da CF, tendo sido regulamentada pela Lei nº 9.882/1999. “A ADPF vem completar o sistema de controle de constitucionalidade concentrado, uma vez que a competência para sua apreciação é originária e exclusiva do Supremo Tribunal Federal”. Tem como objeto “[...] a possibilidade de impugnação de atos normativos municipais em face da Constituição Federal e o cabimento da ação quando houver controvérsia envolvendo direito pré-constitucional [...], podendo, por meio dela, ser impugnado qualquer ato do Poder Público de que resulte lesão ou ameaça de lesão a preceito fundamental decorrente da Constituição Federal”. As decisões do STF em sede de ADPF nortearão o juízo sobre a legitimidade ou a ilegitimidade de atos de teor idêntico editados pelas diversas entidades federadas. (PAULO; ALEXANDRINO, 2017, p. 852/853).
5 Lei 1.516, de 30 de junho de 2015. Que versa sobre a proibição de material com informação sobre ideologia de gênero nas escolas municipais de Novo Gama – GO.
A discussão jurídica desse tema veio à tona a partir do momento em que movimentos conservadores e reacionários da sociedade civil iniciaram uma campanha de perseguição e eliminação dos estudos sobre gênero do currículo escolar, além de promover um movimento de “caça às bruxas”6 contra os/as professores e professoras que ousassem discutir essa temática em sala de aula. De acordo com Cunha (2016, p. 3), “[...] o currículo da Educação Básica, particularmente das escolas públicas, é objeto de ação modeladora que visa frear os processos de secularização da cultura e de laicidade do Estado”. Para o autor, isso ocorre mediante dois movimentos, a saber, um de contenção, outro de imposição. Ambos constroem um projeto de educação reacionária, visto que se opõem às mudanças sociais em curso e se esforçam para restabelecer situações ultrapassadas (CUNHA, 2016).
Essa campanha ecoou na sociedade e ganhou força, dando origem ao movimento Escola Sem Partido7. A mobilização de grupos conservadores, dentre eles o Escola sem Partido, conseguiu que a temática gênero fosse retirada de muitos planos de educação, seja nas esferas municipais, estaduais e nacional. A alegação utilizada por esses grupos é de que estão em defesa da família, da moral e dos bons costumes cristãos, algo que, segundo eles, o gênero busca destruir.
Sob essa ótica, temos a ideia de uma normatividade cristalizada, que deve se sobressair em relação à minoria. Sobre isso, Miranda (1995, p. 95) escreve: “[...] o irrestrito domínio da maioria poderia vulnerar o conteúdo essencial daqueles direitos, tal como o princípio da liberdade poderia recusar qualquer decisão política sobre a sua modulação”. Portanto, os propagadores dessa cruzada contra o mal contemporâneo querem impor através da força (seja política ou jurídica) suas crenças, uma vez que consideram que representam uma maioria.
6 No período medieval, foram criados os Tribunais da Santa Inquisição pela Igreja Católica, os quais tinham por objetivo julgar os casos de heresia. Nesse período, criou-se no imaginário coletivo a ideia da bruxa maligna, que propagava o mal contra os seguidores de Deus, por isso, deveria ser caçada, julgada, condenada e queimada viva. Usamos esse fato para a analogia contemporânea de “caça às bruxas”, que, aqui, representa a perseguição aos estudos de gênero e aos docentes que trabalham com essa temática.
7 O Movimento Escola Sem Partido surgiu em 2004, a partir de um grupo de pessoas liderado pelo ex- procurador de justiça do estado de São Paulo, Miguel Nagib, que almeja o controle, a vigilância sobre escolas e educadores, bem como sobre o currículo escolar. O movimento tem inspiração em movimentos norte-americanos que combatem posições ideológicas e temas do multiculturalismo, principalmente os estudos de gênero. O movimento tem um endereço eletrônico no qual propaga suas ideias, indica livros, divulga vídeos e denúncias contra escolas e docentes. Site Escola Sem Partido. Disponível em: <https://www.escolasempartido.org/>. Acesso em: 12 out. 2020.
No sentido de realizar uma pesquisa documental sobre as ações no STF que tratam da retirada das questões de gênero dos planos de educação, este trabalho tem por objetivo analisar as ações judiciais8 sobre o tema que chegaram até a Suprema Corte e os julgados que lhes foram dados.
Neste artigo, os documentos referem-se a dez ações, entre elas sete ADPF e três ADI9, já julgadas pelo STF. Salientamos que outras ações, de igual teor, ainda estão em fase de análise pela Suprema Corte. Sendo assim, esses documentos compõem o material empírico de análise, pois “[...] representam uma fonte natural de informação [...]” (LÜDKE; ANDRÉ, 1986, p. 39). O estudo das legislações, ora elencadas, não pode ser compreendido fora de sua dimensão prática, pois se corre o risco de ocultar elementos importantes da totalidade e, por consequência, impedir a sua compreensão (TORRIGLIA; ORTIGARA, 2014).
As implicações decorrentes da aprovação ou não de legislações acerca de diversos assuntos resulta na consolidação de políticas educacionais, que, como formas jurídicas e ideológicas, “[...] não podem ser analisadas fora do movimento dialético do real, em suas determinações concretas” (TORRIGLIA; ORTIGARA, 2014, p. 188). Desse modo, o conteúdo das políticas, considerando cada uma na sua especificidade, “[...] carrega normas e orientações para efetivar comportamentos sociais necessários para sustentar o modo de produção na atualidade, o capitalismo” (TORRIGLIA; ORTIGARA, 2014, p. 189).
Na construção desta pesquisa, o trabalho se concentrou nas ações que foram protocoladas no STF no período entre 2016 e 2019 e que já foram julgadas, ou que já tiveram alguma manifestação por parte da Suprema Corte. A pesquisa foi realizada no site do STF, sendo encontradas 15 ações (ADPF ou ADI) que versam sobre implantação do Programa Escola Sem Partido ou da proibição dos estudos de gênero nas escolas das redes públicas de ensino. Desse total, dez ações contestam leis aprovadas em diferentes municípios ou estados brasileiros, sendo três somente do estado de Alagoas (já julgadas). As ações foram protocoladas por requerentes
8 É importante esclarecer que a legitimidade ativa para as ações que versam sobre controle concentrado de constitucionalidade (ADPF, ADI, ADO, ADC) é restrita às pessoas identificadas no artigo 103 da Constituição Federal. Em razão da especificidade do assunto, esse tipo de ação compreende a exclusividade da competência para instauração e julgamento ao STF.
9 “A Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) é a ação típica do controle abstrato brasileiro, tendo
por escopo a defesa da ordem jurídica, mediante a apreciação, na esfera federal da constitucionalidade, em tese, de lei ou ato normativo, federal ou estadual, em face das regras e princípios constantes explícita ou implicitamente na Constituição da República” (PAULO; ALEXANDRINO, 2017, p. 782).
que representam diferentes instituições/órgãos, assim distribuídas: sete ações movidas pelo Procurador-Geral da República; uma pela Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino (CONTEE); três pela Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE); uma pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT); uma pelo Partido Comunista do Brasil (PCdoB); e duas pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL). Os julgamentos das ações analisadas ocorreram entre 24/04/2020 e 21/08/2020.
Quanto à organização, este artigo apresenta reflexões a partir de duas seções. A primeira discorre sobre as primeiras leis aprovadas que proíbem o estudo da temática gênero e que foram questionadas no STF e apresenta um levantamento feito sobre o processo de perseguição aos estudos de gênero instituídos por grupos civis e religiosos. Na segunda seção, analisa-se os julgados do STF quanto às dez ações que versam sobre a proibição do trabalho datemática gênero nas escolas.
Até a chegada do julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 457 (ADPF) (BRASIL/STF, 2020a) no dia 24/04/2020, muita coisa aconteceu e muitas lutas foram travadas, tanto no campo educacional quanto no cenário social e político. Em fevereiro de 2020, o ministro relator do caso, Alexandre de Moraes, já havia dado uma liminar10 para suspender a Lei 1.516/2015, que versa sobre a proibição da divulgação de material com informação sobre ideologia de gênero nas escolas municipais de Novo Gama – GO (NOVO GAMA, 2015).
Mesmo a Suprema Corte expedindo liminares semelhantes a essa para outros casos que chegaram à Corte máxima do país, muitos políticos se aliaram aos movimentos de combate às questões de gênero. Muitos daqueles que advogam a favor desses movimentos de retirada desse estudo dos currículos estão apoiados em igrejas cristãs, onde alguns de seus líderes vociferam contra a temática com o discurso de que o gênero tem por objetivo destruir a família brasileira. Um exemplo desse combate religioso ao gênero pode ser visto no documento “A ideologia do
10 “[...] liminar é aquilo que se situa no início, na porta, no limiar [...]. Rigorosamente, liminar é só o provimento que se emite inaudita altera parte, antes de qualquer manifestação do demandado e até mesmo antes de sua citação” (DIDIER, 2008, p. 615).
gênero: seus perigos e alcances”, da Conferência Episcopal Peruana realizada na cidade de Lima (Peru) em abril de 1998:
[...] existem muitas pessoas que talvez por falta de informação ainda não compreenderam a nova proposta e os perigosos alcances da mesma. Vale a pena, pois, conhecer esta „perspectiva do gênero‟ que - segundo informações fidedignas - atualmente não apenas está ganhando força nos países desenvolvidos como também, ao que parece, começa a se infiltrar no nosso meio. Basta rever alguns materiais educativos difundidos não só nos colégios do país como ainda em prestigiosas universidades. (CONFERÊNCIA EPISCOPAL PERUANA, 1998, p. 15).
No mesmo caminho, segue o discurso do pastor evangélico e Deputado Federal Silas Malafaia, que, em um evento político em São Paulo, em agosto de 2017, fez um discurso deixando claro que:
“Quem quiser fazer graça na eleição para o politicamente correto, para a ideologia de gênero, casamento gay, legalização das drogas e aborto, vai embora, segue seu caminho”, afirmou Malafaia em evento na zona norte da capital paulista que reuniu líderes evangélicos. “Não vamos negociar nossos valores. Não vamos negociar em nenhuma eleição”, acrescentou o pastor, que classificou a ideologia de gênero como uma “engenharia do diabo feita para destruir famílias”11.
A partir do discurso desses religiosos, podemos levantar alguns questionamentos importantes no que diz respeito aos valores e conceitos defendidos por eles, como sendo valores de toda nação. Precisamos pensar, segundo Pinha (2016, p. 18-19), “[...] nas singularidades e no respeito pelas diferenças étnicas, religiosas, sexuais das diversas sociedades. Isto é, uma concepção de cidadania pautada, fundamentalmente, na noção de pluralidade”. Outros questionamentos podem ser feitos, como: É o Brasil um país majoritariamente cristão? Qual é a representação de família que hoje temos em nosso país?
Quando falamos de família, precisamos levar em consideração que, no nosso país, hoje, apenas 42% das famílias representam aquilo que é chamado por alguns de “família tradicional”, constituída por pai, mãe e filhos, segundo dados da Pesquisa
11 Reportagem escrita por Pedro Venceslau e Eduardo Laguna (17.08.2017). O acesso a ela é on- line, por isso, não é possível identificar um número da página. Disponível em:https://exame.com/brasil/malafaia-diz-que-evangelicos-nao-negociarao-ideologia-de-genero/.
Acesso em 18 set. 2020.
Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad, 2015)12. De acordo com Cunha (2009, p. 418), esse estereótipo de família:
[...] tem sido a idealização maior dos grupos conservadores, que supõem em geral uma forma familiar específica (pai, mãe e filhos em convivência duradoura) [...] nuclear pequeno-burguesa estaria supostamente dotada de valores positivos, crença que não resiste a mais elementar análise objetiva.
Precisamos, então, discutir essa concepção hegemônica de família que não condiz mais com a realidade nacional, e, mesmo com dados científicos/estatísticos que comprovam a mudança da constituição familiar, existem grupos que não consideram e negam a existência dessa nova realidade. Esses grupos conservadores levam em consideração o modelo de uma família patriarcal, branca, cristã, de classe média e urbana. Essa é a representação de um grupo que detém o poder econômico, político e social e que se utiliza dele para que suas pautas continuem sendo atendidas e colocadas em prática pelo Estado.
Nesse cabo de guerra pelo poder, a escola foi o campo de disputa escolhido por ser o espaço de frequência significativa das crianças e jovens, portanto, os guardiões dessa moral cristã investiram-se da indumentária dos cavaleiros medievais da proteção contra o mal e de tudo aquilo que atente contra os costumes. A partir do discurso de que o mal deve ser combatido, a cientificidade dos conteúdos acabou por dar espaço para pautas religiosas e morais, que nada representam o saber que se espera de uma escola. Isso porque:
A educação escolar compete corroborar o desenvolvimento do pensamento teórico, uma vez que o conceito, na exata acepção do termo, eleva a mera vivência à condição de saber sobre o vivido, isto é, permite avançar da experiência ao entendimento daquilo que a sustenta – condição imprescindível para as ações intencionais (MARTINS, 2013, p. 304).
A escola tem por finalidade desenvolver junto aos educandos os conhecimentos já testados e comprovados cientificamente, que levaram homens e
12 A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) “Investiga características gerais da população, algumas anualmente, outras eventualmente, de acordo com a necessidade do País para suprir a falta de informações sobre a população brasileira durante o período intercensitário, e estudar temas insuficientemente investigados ou não contemplados nos censos demográficos”. Disponível em:http://www.sei.ba.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=2199&Itemid=458. Acesso em: 12 out. 2020.
mulheres ao avanço da ciência e da civilização. Sobre essa mudança social e a educação, Brandão (2007, p. 79) avalia:
A ideia de que a educação não serve apenas à sociedade, ou à pessoa na sociedade, mas à mudança social e à formação consequente de sujeitos e agentes na/da mudança social, pode não estar escrita de maneira direta nas „leis do ensino‟. Afinal, as leis quase sempre são escritas por quem pensa que nem elas nem o mundo vão mudar um dia. Mas as suas consequências podem aparecer indiretamente.
Não é à toa que muitas legislações educacionais não levam em conta as demandas das escolas, mas sim dos grupos que detêm o poder e que, por muitas vezes, comprometem profundamente o desenvolvimento da educação. A mudança social perpassa por uma sociedade mais justa, humana e fraterna que respeita todos os indivíduos dentro de suas especificidades, com suas singularidades e na sua completude e incompletude. Quando pensamos na questão da diversidade religiosa dos sujeitos, é preciso lembrar que esta faz parte da subjetividade, desse modo, deve ficar a cargo das igrejas e das famílias, não da escola, sendo, portanto, obrigação do Estado o respeito a todas as crenças e o direito à não crença de seus cidadãos, permitindo que todos e todas manifestem suas opiniões, orientações e opções. Entender isso parece ser difícil para alguns grupos, pois, durante muito tempo em nosso país, vendeu-se a ideia de um país majoritariamente cristão (católico), e as igrejas criaram suas próprias escolas para propagar sua fé, quando não escolas públicas, que, mesmo legalmente sendo laicas, professavam a fé católica de modo geral e obrigavam os estudantes a também seguir os ritos dessa religião/igreja.
Não é difícil encontrar, nos dias de hoje, ainda, escolas que realizam rezas e orações no início das aulas, celebrações cristãs, ou que tenham em seus espaços comuns imagens sacras. Um exemplo dessa prática é o caso do município gaúcho de Xangri-Lá. A Câmara de Vereadores da cidade promulgou, no dia 21 de agosto de 2020, a Lei 2.166, que torna obrigatória a leitura da Bíblia no início das aulas (matutino e vespertino) nas escolas públicas do município (CÂMARA DE XANGRI- LÁ, 2020).
Esse tipo de prática é normalizado pelas pessoas de um modo geral, isso porque há, no imaginário coletivo, a ideia de que ela é inofensiva. Então, podemos questionar: o que aconteceria se em uma escola pública um gestor colocasse num
espaço comum a imagem de alguma divindade relacionada a uma religião de matriz africana? Isso seria bem visto? Muito provavelmente não seria algo aceito pela comunidade e ainda usariam o argumento de que o Estado é laico e não pode estabelecer uma crença em prejuízo de outras. Nesse contexto, no entanto, percebe- se que o Estado é laico somente em certas relações, em certas situações de poder.
Isso demonstra uma face de intolerância,que tem
[...] sua origem em uma predisposição comum a todos os humanos, a de impor suas próprias crenças, suas próprias convicções, desde que disponham, ao mesmo tempo, do poder de impor e da crença na legitimidade desse poder. Dois componentes são necessários à intolerância: a desaprovação das crenças e das convicções do outro e o poder de impedir que esse outro leve sua vida como bem entende (RICCEUR, 1997, p. 20).
A intolerância religiosa, a desconsideração da ciência, a polarização e a criminalização dos estudos sobre gênero ganharam força em toda a América Latina no final dos anos de 1990. Segundo a antropóloga feminista francesa Françoise Héritier (1997), a intolerância é o desejo de um grupo de manter a sua união, quando este se sente ameaçado por aqueles excluídos anteriormente.
No Brasil, essa pauta marcada pela intolerância ganhou força nos primeiros anos de 2000, quando foi criado o movimento Escola Sem Partido, que conseguiu angariar adeptos e propagar suas demandas conservadoras pelo país. Aqueles que antes não demostravam interesse algum para com a escola, principalmente a pública, começaram a advogar por ela, prezando pela sua organização curricular e a manutenção dos privilégios e direitos daqueles que sempre tiveram o poder. Dessa forma, a escola passou a ser o centro de vigilância, no sentido de impedir que quaisquer debates sobre temas julgados inadequados fossem discutidos.
O discurso conservador ganhou apoio entre alguns religiosos cristãos que, do dia para a noite, passaram a lutar pela educação, não qualquer educação, mas sim uma educação que vá ao encontro de suas práticas e explicitem a ideia de “nós” e “os outros”:
O outro necessariamente diferente e, portanto, o estabelecimento de critérios de reconhecimento, a lógica da diferença não deveria acarretar, automaticamente, nem hierarquia, nem desconfiança, nem ódio, nem a exploração, nem a violência (HÉRITIER, 1997, p. 27).
Nesse movimento de demarcação do nós e dos outros e de articulação contra o gênero na escola, os documentos oficiais da educação nacional, estadual e municipal passaram a ser vistoriados e questionados, assim como os docentes e suas práticas pedagógicas, processo que se assemelhou à caça às bruxas do período das trevas, quando aqueles que ousavam questionar as práticas da Igreja Católica eram levados para Tribunais da Inquisição. Os tribunais dessa inquisição contemporânea passaram a ser midiáticos: o docente dogmático e subversivo que ousasse trabalhar com as questões de gênero em sala de aula era/é desmoralizado, demonizado e combatido moralmente, tendo seu trabalho desqualificado devido à sua atuação a favor de um mundo melhor. Conforme as palavras de Brandão (2007,
p. 110), “Acreditar que o ato humano de educar existe tanto no trabalho pedagógico que ensina na escola quanto no ato político que luta na rua por um outro tipo de escola, para um outro tipo de mundo”. Os professores e suas ideias de igualdade e de justiça social passaram a ser vistos como um perigo para a escola e para a sociedade.
Os debates contra o gênero ficaram mais acalorados quando da promulgação, em 2014, do Plano Nacional de Educação (PNE), Lei 13.005, de 26 de junho de 2014. Nesse documento, foi retirada toda e qualquer menção às questões de gênero. Os planos municipais e estaduais sofreram a mesma pressão de grupos religiosos ligados às igrejas evangélicas, à igreja católica e aos grupos de cidadãos que alegam não querer que seus filhos aprendam sobre a famigerada ideologia de gênero nas escolas. Esse discurso demonstra total desconhecimento sobre o tema, além de constatar o desrespeito aos princípios democráticos constitucionais.
Em dezembro de 2018, é promulgada a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), documento que regulamenta o currículo nacional por meio de uma base comum de aprendizagens, conhecimentos, competências e habilidades a serem desenvolvidas em cada etapa do processo educacional. Esse documento nacional não faz menção às questões de gênero, negligenciando esse tema, diferentemente do que ocorria com os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs/1997). Nele, os temas transversais abordados são: ética, saúde, meio ambiente, pluralidade cultural e orientação sexual. Essa foi uma grande derrocada para a educação nacional, pois retrocede em muito nas conquistas sobre o tema. À vista disso, não dialogar sobre as questões de gênero é simplesmente fechar os olhos para as demandas e
problemáticas que envolvem o tema; é varrer a questão para debaixo do tapete, como se negligenciá-la fosse a solução.
O caso da cidade de Novo Gama (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 457) foi o primeiro a ser julgado dentre as 15 ações que versam sobre a proibição dos estudos sobre o gênero que chegaram ao STF no período de 2016 a 2019. Outras ações não chegaram à Suprema Corte, mas tramitam na Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, Procuradoria-Geral da União e Ministério Público, os quais já se manifestaram contra leis que coíbem os estudos de gênero nas escolas.
Das quinze ações que tramitam no STF, sete corresponderam a municípios localizados na região Sul [Paranaguá (PR), Foz do Iguaçu (PR), Cascavel (PR), Santa Cruz de Monte Castelo (PR), Londrina (PR), Tubarão (SC) e Blumenau (SC)], um da região Sudeste [Ipatinga (MG)], um da região Norte [Palmas (TO)], um da região Centro-Oeste [Novo Gama (GO)] e três da região Nordeste [três ADIs correspondentes ao estado de Alagoas, Garanhuns (PE) e Petrolina (PE)]. O que dez dessas quinze ações têm em comum é que os ministros do STF já se manifestaram por meio de liminares de suspensão de parte ou da integralidade das leis que foram aprovadas contra as questões de gênero, além de já terem sido julgadas e consideradas inconstitucionais pela corte. Nos pareceres, os ministros estabeleceram o direito ao desenvolvimento de atividades pedagógicas sobre gênero. Para os magistrados da Suprema Corte, as leis que proíbem os estudos de gênero ferem preceitos constitucionais e direitos garantidos na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), como coloca o Ministro Barroso em dos seus pareceres:
[...] as bases do ensino dizem respeito aos alicerces que servem de apoio à educação. „Ocorre que a Constituição estabelece expressamente como diretrizes para a organização da educação a promoção do pleno desenvolvimento da pessoa, do desenvolvimento humanístico do país, do pluralismo de ideias, bem como da liberdade de ensinar e de aprender‟, afirmou (STF, 2018).
O fundamento jurídico dos outros ministros em seus votos nos demais casos segue o mesmo argumento, portanto, é ponto pacífico que, entre os magistrados, a proibição dos estudos de gênero nas escolas fere os princípios fundamentais da Constituição Federal (1988), das leis que regem a nossa educação, além de acordos internacionais dos quais o Brasil é signatário. Portanto, fica a pergunta levantada por Brandão (2007, p. 98-99):
Se a educação é determinada fora do poder de controle comunitário dos seus participantes, educandos e educadores diretos, por que participar dela, da educação que existe no sistema escolar criado e controlado por um sistema político dominante?
No caso deste estudo, os poderes que constituem o Estado parecem entrar em contradição, ou seja, os Legislativos municipais/estaduais criam e aprovam leis que vedam os estudos de gênero, sendo necessário que outro poder – agora o Judiciário – movimente seu órgão de controle concentrado de constitucionalidade, o STF, para julgar ações de sua competência e barrar a continuidade de atos que estão em desacordo com a Constituição Federal em vigor no país.
Em cada um dos casos que aguardam julgamento no STF, está implícita a ideia de que gênero é uma ideologia que deve ser combatida e proibida no espaço escolar. De acordo com esse raciocínio, em 2016, o município de Palmas (TO) instituiu uma lei que proibia o ensino sobre sexualidade e gênero na rede pública municipal. Quando a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 465 foi analisada no Supremo pelo ministro Luís Roberto Barroso, este concedeu uma liminar que suspendeu parte do artigo 1º do Plano Municipal de Educação, Lei 2.243/201613, argumentando que a lei municipal não pode estar em conflito com a lei maior. O trecho revogado, segundo o que se extrai de reportagem veiculada na imprensa local14, dizia respeito à proibição da discussão e à utilização de material didático e paradidático sobre a ideologia ou teoria de gênero, bem como a
13 Lei Municipal nº 2.243/2016, de 23 de março de 2016, que versa sobre a alteração da Lei n° 2.238, na Meta 5, as redações das estratégias 5.24 e 5.26 vedando a discussão e a utilização de material didático e paradidático sobre a ideologia ou teoria de gênero, sexualidade e erotização.
14 Na reportagem intitulada “Prefeitura de Palmas se manifesta sobre liminar do STF sobre suspensão
aos efeitos de lei municipal”; a Prefeitura diz respeitar a decisão. Disponível em: https://www.justocantins.com.br/noticias-do-estado-46631-prefeitura-de-palmas-se-manifesta-sobre- liminar-do-stf-sobre-suspensao-aos-efeitos-de-lei-municipal.html. Acesso em 7 out. 2020.
permissão de atos e comportamentos que induzam à referida temática, bem como os assuntos ligados à sexualidade e à erotização.
Em 2016, um deputado estadual de Alagoas propôs um projeto de lei – posteriormente aprovado com a identificação de Lei 7.800/2016 – que instituiu o programa Escola Livre e a proibição de ensino de sexualidade nas escolas do estado nordestino. Segundo Penna (2016, p. 57),
[...] devido à mudança de nome, os opositores das propostas do movimento escola sem partido e os professores de Alagoas nem ao menos sabiam da tramitação do projeto até que ele fosse aprovado por unanimidade e todos identificassem sua real origem. A polêmica ganhou força quando o governador do estado vetou o projeto, alegando que era inconstitucional. A assembleia, algumas semanas depois, derrubou o veto e promulgou a Lei n. 7.800, em 5 de maio de 2016. O MEC posicionou-se através de nota oficial contra o projeto e informou que entrará com uma ação de inconstitucionalidade.
No mesmo ano, o Plenário do STF analisou a lei alagoana, e, segundo o ministro relator, Luís Roberto Barroso:
Não tratar de gênero e de orientação sexual no âmbito do ensino não suprime o gênero e a orientação sexual da experiência humana. Apenas contribui para a desinformação das crianças e dos jovens a respeito de tais temas e para a perpetuação de estigmas e do sofrimento que deles decorre (STF, 2020b).
Novamente, os magistrados demonstraram de forma legal e ética a importância dos estudos sobre gênero para o pleno desenvolvimento do indivíduo e para o desenvolvimento de uma sociedade mais humana.
Chegaram na Suprema Corte em 2017 seis ações sobre o tema, sendo elas dos municípios de: Paranaguá (PR), Cascavel (PR), Blumenau (SC), Tubarão (SC), Ipatinga (MG) e Novo Gama (GO). No caso da cidade paranaense de Paranaguá, o procurador-geral da República Rodrigo Janot ajuizou no STF a ADPF 461 contra a Lei municipal 3.468/2015, artigo 3º, que veda políticas de ensino sobre diversidade de gênero e orientação sexual. Segundo o procurador-geral,
[...] as normas, ao proibirem qualquer abordagem de temas ligados à sexualidade pelas políticas de ensino, reafirmam uma inexistente equivalência entre sexo e gênero e ignoram quaisquer realidades distintas da orientação sexual heteroafetiva, o que contraria dispositivos da Constituição Federal de 1988 (STF, 2017a).
O relator da ADPF, ministro Luís Roberto Barroso, determinou a suspensão dos efeitos da lei municipal, ressaltando ainda que “A transexualidade e a homossexualidade são um fato da vida que não deixará de existir por sua negação e que independe do querer das pessoas” (STF, 2017a).
Também foram suspensas outras leis municipais, tais como: Lei 6.496/2015, do município de Cascavel (ADPF 460); Lei Complementar 994/2015, de Blumenau (ADPF 462); Lei 2.243/2016, de Palmas (ADPF 465); e Lei 3.491/2015, de Ipatinga (ADPF 467). Para o Procurador-Geral da República, as normas
[...] também ferem o direito constitucional à igualdade, segundo o qual todos são iguais perante a lei, sem distinção de natureza alguma. Se gênero é categoria que concorre para explicar a diversidade sexual, igualdade de gênero é princípio constitucional que reconhece essa diversidade e proíbe qualquer forma de discriminação lesiva. Ele sustenta ainda que, ao pretender vedar que escolas utilizem material didático que articule discussões sobre gênero, às normas atacadas contrariam princípios conformadores da educação brasileira, em especial as liberdades constitucionais de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber; o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas. Esses princípios asseguram que o ambiente escolar seja pluralista e democrático quanto a ideias e concepções pedagógicas, o que impossibilita que determinados temas sejam, a priori, banidos dos estabelecimentos escolares, ainda que mediante iniciativa legislativa (STF, 2017b).
Em 2018, os ministros avaliaram a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 526, referente à emenda da Lei Orgânica Municipal nº 47 do município de Foz do Iguaçu (FOZ DO IGUAÇU, 2018)15. Segundo o ministro Barroso, citado no Manual de defesa contra a censura nas escolas (2018, p. 30):
Por óbvio, tratar de tais temas não implica pretender influenciar os alunos, praticar doutrinação sobre o assunto ou introduzir práticas sexuais. Significa ajudá-los a compreender a sexualidade e protegê- los contra a discriminação e a violência.
Voltando a atenção para o estado de Santa Catarina, é perceptível que a “caça às bruxas” fez o seu trabalho no estado catarinense também. O PEE - Plano
15 A emenda a Lei Orgânica nº 47, de 03 de maio de 2018, da cidade de Foz do Iguaçu (PR), versa sobre a proibição da adoção e/ou divulgação de políticas de ensino que tendam a aplicar a ideologia de gênero nas instituições de ensino da rede municipal. Disponível em: https://leismunicipais.com.br/a/pr/f/foz-do-iguacu/emenda-a-lei-organica/2018/5/47/emenda-a-lei- organica-n-47-2018-acrescenta-dispositivo-a-lei-organica-do-municipio-de-foz-do-iguacu-vedando-a- adocao-e-ou-divulgacao-de-politicas-de-ensino-que-tendam-a-aplicar-a-ideologia-de-genero. Acesso em: 10 out. 2020.
Estadual de Educação (2015-2024), Lei 16.794/2015 (SANTA CATARINA, 2015b), de 14 de dezembro, apresenta uma única vez a palavra gênero, e essa menção faz referência a gêneros alimentícios, o que em muito difere da versão de 16/06/2015, na qual a palavra gênero aparecia dez vezes. Esse documento de 2015 tinha, inclusive, metas e estratégias relacionadas às questões de gênero nos diversos níveis de ensino. Nessa versão, na meta 1, a estratégia 1.17 estabelecia:
Implementar espaços de interatividade considerando a diversidade étnica, de identidade de gênero, de gênero e sociocultural, tais como: brinquedoteca, ludoteca, biblioteca infantil e parque infantil (SANTA CATARINA, 2015a, p. 103).
Já a meta 11, estratégia 11.12, dispunha que se deveria “Adotar políticas afirmativas para reduzir as desigualdades étnico-raciais, regionais e de gênero, no acesso e permanência na educação profissional técnica de nível médio” (SANTA CATARINA, 2015a, p. 127). Percebe-se que há uma significativa perda para a educação de Santa Catarina com a aprovação de um plano cuja vigência é para uma década. Nesse período, caso não haja revisão para incluir os estudos de gênero, a temática permanecerá silenciada.
No ano de 2019, a polêmica levantada em Santa Catarina relacionava-se à aprovação do Currículo Base da Educação Infantil e do Ensino Fundamental do Território Catarinense.16 Esse currículo já vinha recebendo críticas desde 2015, devido às questões de gênero que estavam presentes. A Base Estadual só veio a ser promulgada em 2019, no governo de Carlos Moisés (PSL). A partir das notícias veiculadas na mídia, ficou evidente que a bancada conservadora da Assembleia Legislativa do Estado de Santa Catarina (ALESC) realizou uma feroz campanha contra a contemplação das questões de gênero no documento estadual.
16 Resolução CEE/SC Nº 070, de 17 de junho de 2019, que versa sobre a instituição e orientação para a implementação do Currículo Base da Educação Infantil e do Ensino Fundamental do Território Catarinense e normatiza a adequação à Base Nacional Comum Curricular dos currículos e propostas pedagógicas da Educação Infantil e do Ensino Fundamental no âmbito do Sistema Estadual de Educação de Santa Catarina. Disponível em: http://www.sed.sc.gov.br/professores-e-gestores/30440- curriculo-base-da-educacao-infantil-e-do-ensino-fundamental-do-territorio-catarinense-3. Acesso em: 7 out. 2010.
estaduais, que pedem a retirada dos termos do plano e alegam que a inclusão seria uma “proposta ideológica” (LAURINDO, 2019a).
Segundo o deputado Ismael do Santos (PSD), um dos deputados defensores da retirada do tema gênero do documento base estadual, a “[...] proposta ideológica [...] visa à [...] desconstrução do conceito da família e a erotização precoce [...]” vem desde 2015 e, portanto, deve ser retirada do documento (LAURINDO, 2019b). O discurso do parlamentar na tribuna foi endossado por outros legisladores, tais como: Maurício Eskudlark (PL), Ricardo Alba e Ana Caroline Campagnolo (ambos do PSL).
Toda a indignação dos parlamentares faz referência a dois pontos específicos do documento, com mais de 490 páginas, que menciona relações de gênero, identidade de gênero e diversidade. A primeira menção questionada diz respeito às relações de gênero e de diversidade sexual na página 43, num tópico que pergunta quem são os sujeitos dadiversidade, tendo como resposta o seguinte:
Os sujeitos da diversidade “somos todos nós”, mas há de destacarem-se os grupos que vivenciaram processos de preconceito e discriminação. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei Nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996) obriga o ensino de conteúdos históricos nas escolas: os afro-brasileiros e indígenas (BRASIL, 1996). De acordo com as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação em Direitos Humanos (2012) isso significa que “(...) todas as pessoas, independente do seu sexo, origem nacional, étnico- racial, de condições econômicas, sociais ou culturais; de suas escolhas de credo; orientação sexual; identidade de gênero; faixa etária, pessoas com deficiência, altas habilidades/superdotação, transtornos globais e do desenvolvimento, têm a possibilidade de usufruírem de uma educação não discriminatória e democrática” (SANTA CATARINA, 2019, p. 43).
A análise dessa manifestação deixa evidente que a intenção da escrita é deixar registrada a importância dos direitos humanos, das comunidades tradicionais, do respeito à diversidade sexual e as relações de gênero, algo que faz parte dos princípios de civilidade de uma sociedade. O item foi mantido na versão final assinada pelo governador do estado. O mesmo não aconteceu com a segunda menção a gênero questionada pelos parlamentares. Na página 393 do documento, no quadro sobre conhecimentos e habilidades a serem desenvolvidas por alunos do 8º ano do Ensino Fundamental, mais especificamente no tópico “vida e evolução dentro das múltiplas dimensões da sexualidade humana”, havia a expressão Identidade de gênero, e essa parte foi suprimida do documento na sua versão final (SANTA CATARINA, 2019, p. 393).
Essa polaridade em torno de dois itens num documento tão amplo e desenvolvido por mais de 550 profissionais de educação demonstra como os interesses e a relações de poder estão em jogo nas esferas educacionais, campo de grande destaque dessas pessoas que criminalizam os estudos de gênero.
O caso do estado catarinense não chegou ao plenário do Supremo, pois não criou lei que proíba os estudos de gênero, contudo, em seus documentos norteadores, também não as discutiu, deixando um vácuo educacional extremamente prejudicial para o debate sobre diversidade, igualdade e cidadania.
A partir da pesquisa realizada para este trabalho, podemos afirmar que as leis municipais/estaduais e os planos educacionais não podem agir com demagogia, colocando em suas laudas a importância da democracia, da participação cidadã para a construção de uma sociedade mais justa, igualitária, humana e ao mesmo tempo transparecer sua intolerância quanto às temáticas que envolvem os excluídos, os marginalizados. James Mursell (1955, p. 3) já discorria sobre essa questão no século passado, e, hoje, mesmo tantas décadas depois, sua análise continua atual e totalmente pertinente:
Se as escolas de uma sociedade democrática não existem e não funcionam para manter e expandir a democracia, então, ou são socialmente inúteis, ou são socialmente perigosas. Na melhor das hipóteses, educarão pessoas que se limitarão a viver a sua vida e a ganhar o pão, insensíveis às obrigações da cidadania, em particular, e ao modo de vida democrático, em geral... E, muito provavelmente, educarão as pessoas para serem inimigas da democracia – pessoas que cairão nas garras dos demagogos, apoiarão determinados movimentos e reunir-se-ão em torno de líderes hostis ao modo de vida democrático. Tais escolas ou são fúteis ou são subversivas. Não têm qualquer razão legítima de existência.
Entre 24/04/2020 e 21/08/2020, o STF já havia julgado como inconstitucionais dez leis (ou fragmentos de leis) que versam sobre a proibição dos estudos de gênero nas escolas, sendo elas: Lei 1.516/2015 de Novo Gama (ADPF 457); Lei 3.941/2015 de Ipatinga (ADPF 467); Lei 7.800/2016 do estado de Alagoas (ADI 5537, ADI 6038, ADI 5580); Lei 2.243/2016 de Palmas (ADPF 465); Lei 3.468/2015
de Paranaguá (ADPF 461); Lei 6.496/2015 de Cascavel (ADPF 460); Lei Orgânica, Emenda 55/2018 de Londrina (ADPF 600); e Lei Orgânica, Emenda 47/2018 de Foz do Iguaçu (ADPF 526). Em todos os julgados a decisão para a inconstitucionalidade das leis foi unânime entre os ministros, e, em todas as decisões, eles ressaltaram a
importância de uma educação para a cidadania, diversidade, que respeite o pluralismo de ideias e desenvolvimento pleno dos sujeitos.
A decisão do STF só reafirmou aquilo que está impresso em nossa Carta Magna: laicidade do ensino, pluralismo de ideias e a liberdade de cátedra, além das designações expressas nas convenções internacionais das quais o Brasil é signatário, entre elas: Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Social e Culturais (1966) e o Protocolo Adicional de São Salvador à Convenção Americana sobre Direitos Humanos (1988). Essas convenções tratam de questões relacionadas à promoção dos direitos humanos, da justiça social e o fim das desigualdades, sejam elas de gênero, raça/etnia ou religiosas.
A Organização das Nações Unidas (ONU), dentre os 17 Objetivos para o Desenvolvimento Sustentável (ODS), no objetivo 5, Igualdade de Gênero, busca alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas. 17 Portanto, há preocupação global com as questões de gênero, com o fim das desigualdades e com as violências de gênero. Por isso, precisamos pensar que:
[...] a regra da maioria só pode ser justificada se os homens são iguais e eles só são iguais na posse de direitos. Uma política de igualdade, portanto, precisa ser uma política preocupada com direitos. Consequentemente, a regra da maioria, só é legitima se na prática a maioria respeita os direitos da minoria (BERNS, 1986, p. 285).
Por conta disso, é de extrema importância enfatizar que vivemos em um país democrático e que tem no seu conjunto de leis a proposição do Estado de Direito, o qual deve respeitar todos os cidadãos e primar por uma escola democrática e pautada na cientificidade, e não em crenças religiosas ou morais de grupos que querem, por meio da violência, perseguição e ignorância impor o seu posicionamento. Como disse Bobbio (1993, p. 117), “[…] sem respeito às liberdades civis, a participação do povo no poder político é um engano, e sem essa participação popular no poder estatal, as liberdades civis têm poucas probabilidades de durar”.
17 Segundo o site Estratégia ODS: “Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) são uma agenda mundial adotada durante a Cúpula das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento Sustentável em setembro de 2015 composta por 17 objetivos e 169 metas a serem atingidos até 2030”, que dentre as ações previstas há referência à igualdade de gênero. Disponível em: https://estrategiaods.org.br/o-que-sao-os-ods/. Acesso em: 10 out. 2020.
Pensando nas palavras de Bobbio sobre liberdades e participação civil, se revela necessário compreender que é direito da sociedade civil se manifestar contra aquilo que se apresenta como injusto e ilegal, porém, não contra a ciência e os preceitos legais de uma constituição, pois, se assim o fizerem, estão agindo de forma antidemocrática, quando não autoritária.
Desse modo, a sociedade, quer seja por meio de seus representantes eleitos, quer seja por intermédio das pessoas da sociedade civil, precisa entender que os estudos de gênero como conhecimento escolar, além de terem legalidade jurídica, fazem parte da constituição humana e promovem o desenvolvimento de uma sociedade mais plena, justa e igualitária para todos e todas. Também precisa assimilar que não temos mais espaço para preconceito, racismo, sexismo, misoginia, transfobia, homofobia e tantas outras formas de violência carregadas de crenças e valores de exclusão e de julgamentos religiosos que em nada representam as leis e a laicidade do nosso Estado.
Depois de tantas lutas travadas e disputas de ordem micro e macro, em 24 de abril de 2020, o STF finalmente julgou como inconstitucional uma ação tão polêmica envolvendo o estudo das questões de gênero, deixando professores e profissionais de educação resguardados no seu direito de liberdade de cátedra para ensinar e aprender. Todo esse movimento contrário aos estudos sobre gênero promoveu um retrocesso no desenvolvimento dessas temáticas na educação escolar, uma vez que em vários municípios e até em um estado do Brasil foram criadas leis que proibiam o estudo da temática.
Anteriormente a essa data, o STF havia concedido liminares para a suspensão de artigos de leis ou leis em sua íntegra que tratassem da proibição da temática gênero nas escolas. Porém, a primeira decisão da corte favorável ao estudo de gênero (em abril de 2020) abriu precedente para todas as demais ações no Supremo que tratam de conteúdos relacionados à famigerada ideologia de gênero e ao movimento Escola Sem Partido. Os ministros e ministras do Supremo Tribunal Federal decidiram, num placar de 11 x 0, que a lei do município goiano de Novo Gama é inconstitucional, pois fere a competência privativa da União em
legislar diretrizes e bases da educação nacional, a laicidade do Estado, o direito à igualdade, o direito de divulgar o pensamento e o direito à liberdade de aprender, ensinar e pesquisar. Em 20 de fevereiro de 2020, o relator da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 457, ministro Alexandre de Moraes, já havia concedido suspensão imediata da Lei 1.516 de Novo Gama até que houvesse o julgamento definitivo. Agora não cabe mais recurso e, em definitivo, os governos estaduais e municipais não poderão calar as demandas que envolvem as questões de gênero.
Em novembro de 2018, mais de 60 entidades uniram-se para lançar o Manual de Defesa contra a Censura nas escolas (2018), que serve de auxílio a professores e profissionais de educação, e é também uma resposta contundente aos movimentos conservadores e suas cartilhas de perseguição e discriminação. Existem hoje no Brasil mais de 180 Projetos de Leis (PL) ou leis que proíbem o estudo da temática gênero nas escolas ou que instituem normas baseadas nos fundamentos do movimento Escola Sem Partido (MANUAL de defesa contra a censura na escola, 2018, p. 15).
A articulação de entidades educacionais demonstra que a defesa da ciência, do Estado laico e da pluralidade de ideias está presente e que os interesses de um grupo que prega a intolerância e o preconceito não podem se sobressair ao saber, à liberdade de cátedra, à cientificidade e à busca por uma sociedade mais justa.
Os movimentos conservadores de manutenção do status quo buscam homogeneizar a sociedade a partir do seu ponto de vista, impondo suas regras, normas e moral. Todavia, ainda vivemos num país livre e que deve respeitar a todos e a todas como cidadãos de direitos, de tal forma que, nesse caminho, a educação tem papel fundamental no processo de humanização da sociedade, não podendo ser talhada ou tolhida, seja pelas amarras, seja pelas fogueiras da intolerância.
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V.19, nº 38, 2021 (jan-abr) ISSN: 1808-799 X
ESCUTA AS MANAS: A EXPERIÊNCIA E A CONSTRUÇÃO DA ARTE URBANA DE GÊNERO NO RIO DE JANEIRO1
Priscila Castro2
Foto: O que?
Autor: Priscila Castro, Rio das Ostras- RJ, junho de 2018.
1 Ensaio recebido em 16/09/2020. Aprovado pelos editores em 16/09/2020. Publicado em 25/02/2021. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v19i38.46220.
2 Doutora em Serviço Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, Rio de Janeiro - RJ, Brasil; Mestre em Serviço Social pela Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF, Minas Gerais
- MG, Brasil; Especialista em Políticas Públicas pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, Minas Gerais - MG, Brasil; Graduada em Serviço Social pela UFJF - MG, Brasil; Assistente Social da Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro FIRJAN; E-mail: priscilardcastro@gmail.com; Lattes: http://lattes.cnpq.br/2203394196267866 e ORCID: 0000-0002-3288-5419
Este ensaio pretende destacar a presença de mulheres na produção de graffitis na cidade do Rio de Janeiro, tendo como foco as possibilidades de conquista cotidiana do espaço público e consequentemente das implicações resultantes da ampliação das percepções político e pedagógicas da arte como instrumento das lutas feministas.
A arte é entendida aqui como componente essencial da sociabilidade humana e um importante campo para o estabelecimento de mediações teóricas e construção de conhecimento. Presente de forma concreta na vida dos sujeitos, ela se liga à essência humana: “o homem se eleva, se afirma, transformando a realidade, humanizando-a, e a arte com seus produtos satisfaz essa necessidade de humanização” (VÁZQUEZ, 2010, p.43). A arte carrega também as contradições advindas da base da produção econômica e suas relações sociais. Sofre, portanto, uma reconfiguração e tem sua função social distorcida no curso do desenvolvimento da história.
Este processo não se dá de forma mecânica: a arte e o desenvolvimento produtivo e econômico estabelecem relações que ganham contornos importantes no estágio do capitalismo tardio. As contradições que permeiam esse processo histórico de consolidação e dominação capitalista engendram, na mesma medida, forças e práticas de resistência que tensionam esta ordem. O capitalismo, nestes marcos, atualiza o obscurecimento das práticas artísticas contemporâneas, portanto, é necessário e urgente realizarmos análises críticas às manifestações e expressões artísticas populares no sentido de situar as tendências e possibilidades emancipatórias.
Analisar a arte urbana3 significa pensar a relação da cultura, espaço e os desdobramentos e implicações desta apropriação no sentido político da ação do sujeito artista. Pensando na diversidade das manifestações contidas nas definições de arte urbana, que muitas vezes não se enquadram nas manifestações artísticas ditas convencionais, e que geralmente são interpretadas como transgressões ou criminalizadas, cabe, dentro da perspectiva do direito à cidade desenvolvido por Lefebvre (2008) diferenciá-las e compreendê-las. Abarcando as interpretações sobre
3 Podemos identificar como arte urbana ou street art todas as formas, tipos e estilos artísticos que acontecem essencialmente na rua, expostas nas cidades, em vias públicas e de grande circulação. As definições sobre o conceito são contraditórias e não consensuais. Porém, podemos indicar que se relaciona com características populares e lúdicas e os conteúdos dizem respeito as relações e vivências cotidianas dos sujeitos.
o que seriam expressões de identidades, de modos de vida, de culturas, bem como reconhecer as potencialidades de representações e práticas com sustentação política.
Como parte dos resultados alcançados em pesquisa acadêmica4, devolvemos agora algumas reflexões e imagens capturadas durante a coleta de dados. O registro fotográfico foi um importante elemento metodológico de investigação, além de significar um caminho artístico redescoberto pela própria pesquisadora. Registramos algumas obras importantes na cidade, aproveitando os momentos pessoais de deslocamento e momentos da prática de graffiti feito por mulheres no Rio de Janeiro. Utilizar as paredes e muros das cidades como suporte para registrar mensagens e imagens não é atividade recente. Desde as intervenções rupestres, encontradas nas cavernas de todos os continentes até o contemporâneo graffiti,
escrever nos muros sempre esteve presente como ação criadora do homem. Com um dos elementos constitutivos do movimento Hip-Hop 5 , o graffiti 6 é a
expressão plástica que tem como característica essencial o urbano e utiliza o espaço como suporte. Hoje ele está incorporado à rotina pública e abre discussão sobre a cidade, sua estética padronizada e o modo de vida no espaço urbano, recriando uma linguagem que confronta as normas visuais arquitetônicas e estabelece uma relação entre o homem e a paisagem.
A contradição que permeia essa prática artística advém, em grande medida, em nossa perspectiva, das tensões criadas no espaço público onde ela se desdobra.
4 A experiência de mulheres grafiteiras na arte urbana no Rio de Janeiro. Tese de Doutorado apresentada ao curso de Pós Graduação em Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, no ano de 2020.
5 O Hip-Hop se constitui de quatro elementos: o break (a dança de passos robóticos, quebrados e, quando realizada em equipe, sincronizados), o grafite (a pintura, normalmente feita com spray, aplicada nos muros da cidade), o DJ (o disc-jóquei) e o rapper (ou MC, mestre de cerimônias, aquele que canta ou declama as letras sobre as bases eletrônicas criadas e executadas ao vivo pelo DJ). A junção dos dois últimos elementos resulta na parte musical do hip hop: o rap (abreviação de rythym and poetry, ritmo e poesia, em inglês). Alguns integrantes do movimento consideram também um quinto elemento, a conscientização, que compreende principalmente a valorização da ascendência étnica negra, o conhecimento histórico da luta dos negros e de sua herança cultural, o combate ao preconceito racial, a recusa em aparecer na grande mídia e o menosprezo por valores como a ganância, a fama e o sucesso fácil. (ZENI, 2004, p. 4)
6 A partir dele e de um cruzamento de técnicas e tendências, iniciaram, pós anos 90, uma nova vertente que contempla diversas manifestações tais como o stencil (é uma técnica usada para aplicar uma ilustração ou símbolo tipográfico através do corte ou perfuração em papel ou acetato e tinta spray); o paste-up ou mais conhecido no Brasil como lambe-lambe (é uma modalidade de pôster street os pôsteres, geralmente são imagens gráficas feitos à mão ou impressos em papel fino ou colagens); ou a sticker art (etiquetas adesivas que podem ser escritas a mão ou produzidas por gráficas com suas tag ou marcas, geralmente coladas nos postes e placas das vias públicas) englobam dentre estas, outras formas e todo o tipo de arte que acontece na rua, seja ela teatro, estátuas humanas, performances, esculturas, instalações, entre outras.
O proibido e o permitido, o público e o privado, o belo e o feio, as formas estéticas objetivadas ao consumo e as objetivadas à fruição. Por esta razão mesma, cabe destacar e refletir sobre as manifestações e práticas culturais como formas de resistências ao espaço normado do capital. O espaço homogeneizado, configurado pelo capital, vem desconstruindo as possibilidades de estabelecimento de uma diversidade social e cultural, assim como “a aniquilação de vestígios de outros modos de apropriação e uso do espaço social contribui para alienar distintos sujeitos sociais da possibilidade de apropriação, (re)conhecimento e encontro em suas cidades” (LIMONAD, BARBOSA, 2017, p. 15 - 17).
Pensar sobre a condição de gênero dentro de uma prática cultural que possui dimensões espaciais é refletir sobre as relações da mulher e de sua presença nos marcos da vida urbana. Este tipo de prática artística, assim como a história das mulheres, é constantemente apagada e invisibilizada e, por esta razão, cria um impacto significativo no cotidiano de suas vidas. Mesmo percebendo tensões, essa prática, em nosso ponto de vista, possibilita percepções sobre a cidade numa perspectiva de gênero que amplifica as experiências e as lutas das mulheres, reverberando temáticas e conflitos das questões de gênero historicamente presentes na sociedade contemporânea.
Essencialmente, pensar sobre gênero é pensar sobre a desconstrução de poder e das diferenças estabelecidas em um processo de dominação de homens sobre mulheres. Pensar sobre práticas artísticas elaboradas por mulheres é pensar em práticas que estabelecem um paradoxo com a cultura de dominação masculina; de outro modo, é pensar formas libertadoras sobre essa cultura. Demarcamos, desta forma, a relação entre arte e feminismo como uma relação que estabelece diálogos com questões trazidas sobre a condição e lutas femininas, tais como corpo, sexualidade e resgate de experiências e memórias. Localizamos, portanto, o feminismo como prática, logo, entendemos o graffiti feito por mulheres como uma prática feminista.
Atrelamos a essa perspectiva a afirmação de que ser uma mulher feminista é afirmar que os ideais de igualdade que representam o movimento permeiam vários âmbitos da vida cotidiana de mulheres. A prática feminista aqui é percebida, portanto, como um conjunto de ações que articuladas à prática artística metabolizam e potencializam de forma dupla e simultânea a finalidade do movimento feminista e a função social da arte.
Desta forma, analisar o sujeito mulher artista na cidade é investir em uma frente de análise ainda pouco priorizada sobre as formas de luta e resistência estabelecidos pelo gênero em nossa sociabilidade. Acreditamos que a cultura se configura como uma prática de estabelecer e atribuir sentido e significado para as questões da realidade. Quando mulheres estabelecem esta conexão, mediadas pela arte e as questões e tensões de seu próprio gênero, criam possibilidades de um abalo e comprometimento no sentido positivo da desconstrução ideológica do papel socialmente atribuído à mulher.
Thompson (1981, p. 15) nos ajuda a refletir sobre a experiência de mulheres pois atenta-se para o fato de que “os seres sociais”, através de sua capacidade de pensar, modificam seu cotidiano, quando refletem e agem sobre suas vidas e suas realidades. Dentro do campo da experiência, ele nos indica ser possível perceber os múltiplos caminhos que os sujeitos têm criado em seu cotidiano para resistir e tensionar a ordem de coisas estabelecidas.
Dentro das dimensões da vida cotidiana dos sujeitos não podemos diminuir e/ ou menosprezar certas práticas como meramente culturais ou corriqueiras. É necessário ultrapassar a aparência e perceber os movimentos que indiquem possibilidades de articulações mais amplas. Sobretudo, é necessário apontar esses movimentos através da experiência dos próprios sujeitos e de suas experiências em comum.
As experiências artísticas de mulheres através do graffiti nos despertaram o olhar para a análise das possibilidades da arte no resgate e construção de modos que transformam a vida cotidiana. Por este prisma carregamos de sentido político uma manifestação artística que vem sendo estigmatizada e realizamos uma investigação sobre as possibilidades pedagógicas que ampliam os horizontes de apreensão do real.
LEFEBVRE, Henri. A Revolução Urbana. Trad. Sérgio Martins. – 3ª ed. - Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2008.
LIMONAD, Ester; BARBOSA, Jorge Luiz Barbosa. “Why don’t we do it in the road?” (Por que não o fazemos na rua?). Biblio3W. Revista Bibliográfica de Geografía y Ciencias Sociales, Barcelona, Universidad de Barcelona, vol. 22, nº 1.197, abril de 2017.
THOMPSON, Edward Palmer. A miséria da teoria ou um planetário de erros. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
VÁSQUEZ, Adolfo Sánches. As ideias estéticas de Marx. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. 3. ed. - São Paulo: Expressão Popular, 2010.
ZENI, Bruno. O negro drama do rap: entre a lei do cão e a lei da selva. Estudos Avançados, São Paulo, vol.18, n.50, p.225-241, jan-abril de 2004.
Escuta as Manas:
[...] As mulheres estão começando a se fortalecer e pintando entre elas mesmas, então a gente não vê mais necessidade de chegar sozinha no mutirão, por exemplo. E enfrentar muita coisa desnecessária de homem. Então a gente vai acompanhada nos mutirões, a gente faz os nossos próprios mutirões, a gente consegue ter um ambiente mais seguro e mais confortável pra gente trabalhar a partir daí (F., 2019).
[…] Mas eu acho que a contribuição é essa, para as mulheres, a gente consegue falar mais sobre as coisas quando a gente tá pintando, sabe? Não é só assim, ah eu vou lá pintar. Eu vou lá, pintar com as minhas manas, trocar uma ideia, sabe? É outra vibe [...] Tanto que a gente criou muitas crews, né? Crews é invenção das mulheres. Além da questão da segurança, né? Porque a gente queria grafitar com segurança, elas foram criadas para a gente fazer grupo de mulheres para pintar juntas, porque a gente não tinha segurança de fazer sozinha, como os caras fazem. Mas também para essa coisa da gente tá junto, dialogar junto, uma complementar o desenho da outra. É outra pegada (S., A. 2019).
Acho que o graffiti também tem isso, sabe? De colocar mensagem, sabe? [...] então, a gente botou ali 180, a gente botou a nossa arte, uma frase da música da Elza Soares. Então, assim, às vezes uma amiga que tá sofrendo abuso e tipo tem vergonha, e não quer contar para ninguém. Ela passa ali vê aquela parada e fala: “[…] Esse número eu vou gravar!”. E de repente, algum momento ela pode precisar. Ou, às vezes, você tá num dia horrível, mano... horrível! Aí tu passa ali na Rua do Catete, tem um graffiti da Panmela escrito: “Toda mulher é linda!”. […] Então, eu acho que de alguma forma ele pode influenciar e eu acho que esse é o papel da arte também, questionamento sempre (V., 2019).
Então, o graffiti ele faz isso, ele faz a mulher perder o medo, faz a mulher invadir os espaços […]. E o graffiti faz você se deslocar na sua cidade, isso é importante. O grafite faz você sentir segurança na irmandade de uma outra mulher, cara. (C., 2019).
Foto: Alcançando Cores
Autor: Priscila Castro, Rede Nami - Tavares Bastos -RJ, março de 2017.
Foto: No topo
Autor: Priscila Castro, Rede Nami – Tavares Bastos - RJ, agosto 2017.
Foto: Não tem Obstáculo
Autor: Priscila Castro, Meeting of Favela – Duque de Caxias – RJ, dezembro de 2017.
Foto: Enxergar
Autor: Priscila Castro, Lapa – RJ, agosto de 2017.
Foto: Amam e Descansam
Autor: Priscila Castro, Lapa – RJ, outubro de 2016.
Foto: Sereno Rugido
Autor: Priscila Castro, Meeting of Favela - Duque de Caxias - RJ, dezembro de 2018.
Foto: Spray de Vênus
Autor: Priscila Castro, Tavares Bastos - RJ, maio de 2018.
Foto: Entre Ovários
Autor: Priscila Castro, Tavares Bastos - RJ, maio de 2018.
Foto: Apoio
Autor: Priscila Castro, Tavares Bastos - RJ, maio de 2018.
Foto: O vento veste cores
Autor: Priscila Castro, Meeting of Favela – Duque de Caxias - RJ, dezembro de 2019.
Foto: Aprendam
Autor: Priscila Castro, Tavares Bastos – RJ, julho 2017.
V.19, nº 38, 2021 (jan-abr) ISSN: 1808-799 X
1 Recebido em 11/02/2021. Aprovado pelos editores em 12/02/2021. Publicado em 25/02/2021. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v19i38.48725
2 Professora Adjunta da Escola de Serviço Social da UFF. Doutora em Serviço Social (PPGSS/UERJ). Coordenação do NEPEQ/ESS-UFF. E-mail: botelho.jacque@gmail.com; Lattes:
http://lattes.cnpq.br/7423332568707388; ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1989-5089
3 Doutora em Políticas Públicas e Formação Humana (UERJ); Professora Adjunta da ESS/UFF; estudiosa da área do trabalho e dos movimentos sociais. E-mail: mcristina@id.uff.br; Lattes:
http://lattes.cnpq.br/0279905252377710; ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0545-2260
4 Doutora em Planejamento Urbano e Regional (IPPUR-UFRJ), docente e pesquisadora do PPGSSDR-UFF, formada em Serviço Social (UFRJ). Pesquisadora apoiada pelo CNPq. E-
mail: tatianadahmerpereira@gmail.com Lattes: http://lattes.cnpq.br/2619212275317172 ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1096-8950
No dia 17 de dezembro de 2020, em conversa com Jacqueline Botelho, Maria Cristina Rodrigues e Tatiana Dahmer, Lúcia Xavier, mulher negra, militante e reconhecida publicamente por seu engajamento nas lutas antirracistas, apresenta sua trajetória de lutas, explicitando a motivação de suas ações, conectadas com as relações sociais, que fundamentam suas experiências concretas como mulher negra e ativista. Desde muito cedo, em sua militância contra a opressão de mulheres negras, Lúcia Xavier implicou-se na defesa dos direitos humanos e na construção de espaços onde a história dessas mulheres pudesse ser ouvida e respeitada.
Nascida no subúrbio do Rio de Janeiro, em uma família com uma mãe doméstica e um pai radialista, que morre muito cedo, essa militante histórica do movimento negro, fundadora da ONG CRIOLA, nos sinaliza a preocupação com a urgência de respostas imediatas à realidade de opressão de negros e negras, que se manifesta cotidianamente. Lúcia Xavier foi formada em um contexto de ditadura empresarial-militar no Brasil, com fortes imposições e violências do trabalho, que lhe roubaram o tempo de vida e o convívio com familiares. Essa é uma tragédia atual, que acomete a maior parte da população negra, e tal elemento revela a objetividade esmagadora do racismo, quando não reduzido ao comportamento preconceituoso das pessoas.
Lúcia foi formada na contracorrente de um ambiente de resgate da cultura negra, presente nos bailes e clubes negros cariocas, que traziam o tema racial e a denúncia da discriminação para o debate, escondido pela elite brasileira, que definia o Brasil como um país de democracia racial. Antes mesmo da sua entrada na Universidade, inicia sua ação como militante organizada no enfrentamento ao racismo, o que qualifica sua formação, que não se encerra no espaço acadêmico, mas é enriquecida por uma ativa vida política.
Lúcia Xavier nos mostra uma trajetória voltada para o debate racial e de gênero, onde sempre esteve viva a preocupação com as demandas e necessidades de negros e negras, por muitas vezes manifestada em mobilizações de rua. A preocupação com ações concretas é muito marcante em sua trajetória, pois enxerga poucas possibilidades de sucesso em táticas antirracistas limitadas ao campo institucional.
Lúcia Xavier é parte da memória viva do movimento negro organizado, e muito gentilmente nos concedeu essa entrevista valiosa, em forma de conversa, que nos ajuda a reviver as experiências do passado para reinventarmos o presente. Durante a conversa, para além de sua trajetória pessoal, Lúcia nos fala sobre as lacunas identificadas no campo organizacional, o que nos enriquece nas análises do passado, sem as quais não podemos olhar criticamente o presente.
A conversa, que reproduzimos abaixo, mostra-nos a luta histórica do povo negro contra a opressão, apesar do processo de apagamento e silenciamento promovidos pelo Estado brasileiro. Diante de uma conjuntura perversa e da atual perda progressiva de direitos sociais - com violência aberta contra as periferias das cidades e trabalhadores do campo - que cresceu exponencialmente com a chegada da extrema direita ao poder no Brasil, em 2018, e em diversos países do mundo, a Universidade revigora sua contribuição social com a produção do conhecimento crítico, e, pela mediação da teoria social, mostra-se comprometida com a transformação do real, evidenciando que homens e mulheres são sujeitos de sua própria história, ainda que não a faça sob as condições por eles definidas.
Com isto, apresentamos mais uma oportunidade de lembrar das marcas da falsa abolição, da necessidade de superação do mito da democracia racial, da violência que acomete crianças e adolescentes, mulheres e jovens negros nas periferias. A população negra vive sob a mira dos revólveres e “sob o olhar sanguinário do vigia”, mas ainda há luta nas ruas, e sua verdade vem denunciar o racismo como arma ideológica de dominação, cuja atualidade voraz nos mostra que a questão racial não é tema secundário para aqueles(as) comprometidos(as) com um projeto de transformação social.
racismo, mesmo nas universidades, é um esforço que precisa ser sempre ressaltado.
Então, quem sou eu? Eu sou uma mulher negra, nascida de uma família de uma mãe doméstica, de um pai radialista que morre muito cedo, de uma família que todos os dois, tanto o pai como a mãe... meu pai tinha uma família extensa, já minha mãe não, minha foi doada para uma pessoa. Doada é uma maneira simples de dizer; alguém largou ela na mão de alguém. Mais tarde, eu conheço seus outros dois irmãos de outros casamentos, de sua mãe ou de seu pai, mas basicamente é com a família do meu pai que a gente vai conviver mais tempo, já que minha mãe, ao longo do tempo, vinha muito pouco em casa, dado o serviço doméstico.
Hoje, se o serviço doméstico oferece algumas mudanças, uma delas é o convívio familiar e comunitário, que era negado a essas mulheres que passavam praticamente muitos dias no trabalho, inclusive sábado e domingo. Por isso, a gente tem, eu particularmente, uma especial atenção ao trabalho doméstico, e acho que qualquer mulher negra desse país, quando começa a tratar dos problemas raciais, sobretudo da mulher negra, precisa olhar para esse lugar, né? Esse é um lugar muito complexo porque marca a nossa trajetória como mulheres negras, mas marca também a nossa trajetória de escolhas políticas e capacidades de enfrentamento às barreiras impostas pelo racismo.
Dito isso, minha mãe recebe uma oportunidade de nos juntar em uma casa com ela, eu já tinha doze anos - eu tenho sessenta e um, vou fazer sessenta e dois agora. E é nessa perspectiva que eu também vou mudar de região, de território. Tudo isso está entre Cordovil e Rocha Miranda, até que vim morar na Tijuca, bem perto do Centro da cidade, mas um outro mundo, né, o mundo da classe média, classe média carioca, que é muito, muito, muito importante de sinalizar, porque a Tijuca é o centro, né? Não é lá que estão todos os quartéis, mas tem bastante generais; não é lá que estava toda classe média rica, mas lá concentrava, de certa forma, o que pesava da classe média na política brasileira, inclusive no futebol. E, bom, ao vir morar na Tijuca, se abrem também outras possibilidades: não havia muita diferença de formação escolar, mas eu me lembro que a minha turma em Rocha Miranda, sei lá, tinha cinquenta alunos; quando eu chego na Tijuca minha turma é de final de ensino médio/de ensino fundamental tinha, sei lá, trinta alunos. Então, se tinha muito mais espaço, mais tempo, mesmo que as grades eram as mesmas, a formação não era a mesma. É nessa pegada que eu vou entrar toda a
minha adolescência. Eu morava em uma casa de cômodo. Então, passei a morar em casa de cômodos até muito tempo depois (não, nem tanto tempo depois) da minha formatura. Mas até os vinte sete anos era assim que eu morava, em casas de cômodos coletivos, com banheiros coletivos, às vezes até com pias coletivas, às vezes até com cozinhas coletivas.
Essas mudanças ocorridas na minha vida, elas também vão marcar as experiências e processos de encontro com outras questões. Então, basicamente eu vivia mergulhada no mundo das domésticas, porque as adolescentes amigas eram todas domésticas, essa relação entre as meninas da classe média tijucana e as domésticas era intensa, umas estavam nas escolas e outras no mercado de trabalho. Mas vai ser quase no finalzinho da minha adolescência que eu vou me inteirar com a questão política. Isso não quer dizer que isso não era tratado na minha família. Minha família tinha regras muito objetivas sobre o racismo, desde pequeno a gente sabia do que se tratava, como se defender, como agir. Éramos uma família negra, então, uma família que tinha força nos lugares onde vivia, tinha voz de comando, tinha participação comunitária. Nesse caso, a nossa vivência em favela foi muito curta, pequena. A gente era muito pequena assim que meu pai morreu, mas como a gente vivia na casa dos nossos parentes, então esse era um outro mundo, um mundo mais organizado em termos familiar, de autoridade, de rotinas, e tudo mais.
Bom, com a minha mãe a gente vem viver um pouco também por nossa conta. Ela passava o dia inteiro trabalhando, trabalhava inclusive no sábado, então, essas coisas tinham outras perspectivas. Nesse sentido, vai ser já lá no segundo grau – e lógico né, toda a experiência política, debates políticos estão em família, que eu vou olhar um pouco mais as distinções da ditadura, as leituras sobre outras perspectivas, quer dizer, tudo aquilo que eu via ali, acompanhava trazido pela minha família, começa a aparecer concretamente nos jornais, na literatura, e tudo mais.
Há também um movimento muito forte na sociedade carioca, eu posso dizer da carioca, não sei dizer se ela tem extensão né, e por acaso, ouvindo Carlos Alberto Medeiros na defesa do seu doutorado, eu falei: “poxa, já não posso mais falar sobre isso que ele já concretizou em livro, em tese.” Havia um movimento muito forte, cultural, no Rio de Janeiro, baseado na dimensão do enfrentamento ao racismo, da afirmação de uma identidade positiva negra, o Black is beautiful, baseado na Soul Music, e esse movimento arregimenta muitos jovens, e esses
jovens vão se encontrando na praia, no samba, nos bailes de soul, nas atividades culturais que esse grupo vai vivenciando. Os bailes do Renascença, do Botafogo, da Portela, e também sambas, vão criando uma rede de encontros, e também, de possibilidades de mais debates sobre a questão racial. Você tinha um Agbara Dudu, você tinha o samba nas escolas de samba, você tinha os bailes soul e os outros bailes né, do período que você ia encontrando e também ia vendo o tipo de organização, a forma de pensar, o debate, a postura, a estética. E também, claro, isso estou analisando hoje; antes era só festa – festa que às vezes virava debate, mas festa, né. E também um encontro, um encontro de uma identidade, um debate sobre as coisas negativas que se via, as mortes violentas, a dificuldade na manutenção na escola, a procura de trabalho e que tipo de trabalho... então, é nesse ambiente que eu também vou me desenvolvendo em relação a isso.
Já um pouco antes, e mesmo depois de eu entrar na universidade, eu já faço parte de um grupo chamado “Acorda Crioulo”, que tinha a sede Cidade de Deus, e lá eu também junto com a minha própria formação em Serviço Social - eu começo na UFF de Campos, eu passo para UFF no segundo semestre, mas passo UFF de Campos no primeiro semestre, não me lembro mais, e eu vou. Sabe que o Serviço Social nessa época era um trabalho de elite, lá estavam também as pessoas da classe média, classe média alta, e eu vou para o Serviço Social também um pouco desviada. Na verdade, eu me preparava para o Direito, para a formação em Direito, quando uma prima me disse: “ah, tem um negócio lá na minha faculdade” (ela fazia fonoaudiologia), que eu acho que você vai gostar, a sua cara”. E me mostrou aquele currículo complexo, o currículo falou um pouquinho de cada coisa, e acho que bateu na minha alma, porque eu sou uma pessoa muito dispersa. Eu começo pensando “ah vou fazer isso aqui”, daqui a pouco eu estou olhando para outra coisa. E o currículo de Serviço Social era um pouco disso: tinha Ética, tinha Política, Antropologia, tinha psicologia, tinha filosofia, tinha estatística, tinha o “diabo a quatro” lá. E eu achei aquilo fantástico, muito interessante, e como esse grupo, o da minha prima também era um grupo espírita, e eu nessa época era espírita kardecista, ela falava muito de uma perspectiva do suporte da ajuda, mas, na verdade, o que eu gostei mesmo foi daquela mistura. Porque, vocês sabem, quando a gente é jovem a gente olha e fala: “ai, quero ser médica”. Daqui a pouco você diz: “quero ser psicóloga". Só quando a gente é criança que a gente define bem - bombeiro, lixeiro, policial, mas na prática, quando a gente chega nessa fase, o
mundo, a gente acha que a gente conhece tudo que está lá, e por incrível que pareça as nossas formações médias não explicam o mundo. Você não sabe bem o que faz o professor, não sabe o que faz o psicólogo, o médico. Você imagina que faz. Por quê? Porque é um mundo também cindido. Na minha família não tinha médico, não tinha psicólogo, não tinha engenheiro. Tinha era pedreiro, cozinheira, lavadeira, passadeira, costureira. E esse mundo oferecido de uma outra formação, você não conhece, só vai conhecer quando chegar na faculdade. Você não tem primo, não tem vizinho, não tem amigo que viva isso, né. Até me lembrei que eu tinha uma amiga que era empregada de uma mulher negra que era pneumologista, ou era, sei lá, nefro, não me lembro. Agora que me veio isso na mente, era uma família negra que morava na Tijuca, olha que legal! Me lembrei disso.
Aí, o que ocorre nessa fase? Eu escolho o Serviço Social, mas nessa fase eu encontro no movimento negro, na Cidade de Deus, um movimento complexo. E o que eu estou chamando de complexo? Eram negros discutindo a questão racial e agindo politicamente, então, era gente que quebrava o ônibus se o ônibus demorasse, era gente que fazia manifestação na porta do serviço de saúde, era gente que fazia reunião na praça perguntando por que na praça não tinha parque, não tinha isso, não tinha aquilo. Então, na verdade, era exatamente como eu pensava a questão racial, e ao mesmo tempo, era diferente do que se fazia com a questão racial. Por quê? Porque mesmo depois da minha segunda organização que foi o IPCN [Instituto de Pesquisa das Culturas Negras], essas questões eram pensadas desde o ponto de vista da transformação, da revolução, então, elas eram pensadas olhando para isso: “esse modelo não serve, vamos mudar, tem que construir outra coisa”. E, nesse sentido, as dinâmicas de interação com os problemas sociais e como se organizar a partir deles, fica mais complicada. Então, um está olhando o dia a dia, o que está ocorrendo, e o outro está pensando num futuro: “temos que mudar a sociedade, porque não tem jeito, não vai ter ônibus, não vai ter água, não vai ter casa, se não mudar o mundo, né”.
Então, é nessa trajetória que eu entro na faculdade já no Serviço Social. Volto em 81 para o Rio, vou para a UFRJ, porque a UFF não tinha ainda transferência, as transferências da UFF eram muito complicadas, e apesar de eu ter ido para Campos, em um arranjo com um tio meu que foi patrão de minha mãe, eu tinha que voltar, porque tinha que trabalhar. E também, quando cheguei aqui, a faculdade é de dia, é de dia mesmo, não tem isso de um dia a noite e outro dia de tarde, era de dia,
então, tive que mudar toda a minha vida, organizar esses processos, ao mesmo tempo me formar e tal, enfim.
O que isso tem a ver com a minha trajetória política? É que ali, já vem desenhando um pouco da base da minha trajetória política. Em 80, quando eu vou para Campos, na ânsia de ter algum tipo de recurso – eu não pagava pensão, quem pagava era esse meu tio, que era meu patrão, eu também trabalhava para ele, eu começo a trabalhar no serviço que era uma espécie de espaço recreativo para crianças e adolescentes. Ali eu começo a trabalhar com criança e adolescente, e vou nesse trabalho até 1997. Em que pese, que ainda a questão racial é minha questão chave, mas é aí que eu trabalho todas as dimensões políticas, era profissional, era formação, profissão, ação política e criança e adolescente. A questão racial e a questão de gênero, ela vai compondo o meu aspecto profissional e político de diferentes formas. Eu já era uma militante no movimento negro, e para enfrentar a questão das crianças na rua, que também havia toda uma ação politica de outras organizações, tanto da filantropia, quando do mundo politico, trabalhando isso. E só tinha uma organização negra que trabalhava isso na época que era o CEAP [Centro de Articulação de Populações Marginalizadas], uma organização que vem do mundo das pessoas tuteladas pelo Estado, internadas desde crianças (por várias razões), e que tomam esse tema do ex-aluno para uma discussão, e eles abrem uma organização que trata das populações marginalizadas.
Nesse período, o CEAP já levantava as questões da violência, da vida na rua e tal. A questão racial então, foi pensada por mim, diferente um pouco desse aspecto da institucionalização. Os debates que fazíamos juntos, porque nós criamos fórum, nós tivemos uma ação política muito promissora, um grupo de ativistas, e de educadores, intelectuais, muito promissor, nesse tempo do avanço dos direitos da criança e do adolescente, acho que é um grupo que fez muita diferença política, em que pese que hoje a gente olha tudo e quer jogar fora, né? Mas fez muita diferença política para organizar um processo novo, tanto de políticas públicas, como de direitos no campo da criança e do adolescente. Mas, como eu trabalhava direto na rua, a minha maneira de inserir os jovens – crianças e jovens, era levando-os para as organizações do movimento negro. E aí o IPCN, que tinha lá algumas atividades como capoeira, biblioteca, tal, e os encontros, era ali que a gente, então, levava os meninos para participar das coisas. Lógico que às vezes enchia o saco das pessoas, mas a ideia era essa. Mais tarde, isso também se aplicou no movimento feminista,
na medida em que as meninas conseguiam poder estar, não naquelas reuniões, mas em oficinas, em atividades e até em encontros. A gente começou a levar tanto para o movimento feminista, quanto para o movimento de mulheres negras, então, esse é um momento bastante importante para o sedimento da minha ação política. Então, ela segue por algum tempo no IPCN; eu fazia parte de um grupo de oposição à direção do IPCN.
Queria ressaltar outra questão importante: é nesse trabalho com criança e adolescente que nós começamos a esbarrar com as questões de gênero – olhando as meninas, o que era oferecido para elas pedagogicamente, oferecido em termos de formação, de trabalho, como elas viviam essas violências, e sobretudo, as experiências sexuais e reprodutivas. Então, assim, uma das primeiras gravidezes acompanhada por mim, no meu grupo, a menina tinha catorze anos - eu até sou madrinha do filho dela. Aí, você vai vendo que essa experiência de vivência na rua, de construção de família, de gravidez, de cuidado com a infância, e tudo mais, está muito presente, mas está também um ação política-pedagógica que às vezes se confundia, que botava essas meninas num lugar, as condenava na vida sexual e reprodutiva, e as colocava num lugar em que devia estar preparada para repetir essa trajetória de doméstica, de cuidadora, no campo da beleza, saber fazer uma unha, cuidar de um cabelo, saber limpar casa, mas nada que saísse desse escopo. E aí, então, a gente forma com um grupo, um estudo, um olhar sobre elas, isso também depois vai ser replicado em Criola, de certa forma.
Nós montamos um encontro estadual dessas meninas, que estavam tuteladas pelo Estado, que estavam na rua, que viviam em projetos sociais, para compreender sua situação, quais eram suas questões, como que elas viviam. Então fizemos vídeos, material de análise crítica sobre essa situação, montamos uma rede, montamos uma rede de educadores que trabalhavam com meninas, e mais tarde, a Criola também vai ampliar e fortalecer essa rede, oferecendo formação sobre a questão racial, formação sobre educação não sexista. Aproveitamos bastante para entender e compreender como se pensava essa menina, e porque essas propostas vinham, de certa forma, contrárias àquilo que elas viviam e pensavam.
Então, na perspectiva do feminismo, à medida que essas meninas iam tomando também mais consciência sobre o que elas viviam, era fácil incluí-las em reuniões – não tanto em reuniões, mas em oficinas e encontros, nas manifestações públicas, nos encontros nacionais, um pouco para elas compreenderem essa
dinâmica. O que facilitava também era a presença de mulheres negras nessas ações. Então, por exemplo, você vai ao encontro, no encontro das mulheres negras, levávamos elas. Por exemplo, houve um encontro feminista em Caldas Novas, lá na região Centro-Oeste, e não tinha como a menina ficar lá uma semana sem conhecer ninguém, sem entender como funcionava aquele processo, então, as mulheres negras que iam para lá, iam acompanhando-as, orientando-as, tirando as dúvidas, mostrando como conviver naquele ambiente. Você chega no frigobar “cheio de bagulho”, você acha que tem que comer, que pode comer, você quer o melhor do lugar, quer ficar mais tempo na piscina do que na reunião, então, tudo isso, as mulheres que iam com ela também ajudavam, apoiavam essa ação, ajudavam-nas nessas atividades.
Então, a minha trajetória começa assim. E já em 1992, quando eu fundei a Criola, eu já estou um pouco saturada da rua. Eu saio da rua em 1997 e resolvo não voltar mais, porque o trabalho na rua estava cada vez mais violento, eu já enterrava quatro por semana. Era assim, muito pesado, as respostas eram muito lentas, em que pese também que a política estava mudando, as prefeituras estavam com mais atenção, mas vêm as chacinas, as grandes chacinas - de Vigário, Candelária5. E aí você cansa de ficar indo nos IMLs da vida para reconhecer, para fazer aquele ritual de enterro. E havia, além desse cansaço, um esgotamento das possibilidades. A violência também cresceu muito, mas os esgotamentos, porque as crianças não ficam crianças a vida inteira, elas também vão crescendo e tal. E a gente foi fazendo muita coisa junto, a gente se articulava em trabalhos só para meninas, se articulava para incluir as crianças na escola, as famílias que viviam no centro.
Nós começamos com famílias ali no Largo da Carioca. Elas estavam com muita pressão, elas estavam sendo cada vez mais empurradas de volta para os lugares de origem, e muitas vezes era bastante complexo, estava aumentando a pressão do acompanhamento às delegacias, aos presídios. Então, aquelas crianças já estavam tomando outros rumos, algumas muito bem colocadas, algumas eu ainda
5 As referidas chacinas aconteceram em localidades da cidade do Rio de Janeiro, no ano de 1993, com um pouco mais de um mês de diferença entre as duas: a chacina da Candelária ocorreu em 23 de julho e nesse massacre, 8 jovens que dormiam nas proximidades da Igreja da Candelária, foram assassinados por milicianos. Em 29 de agosto, na favela de Vigário Geral, localizada na Zona Oeste da cidade do Rio, 21 moradores foram brutalmente assassinados por um grupo de extermínio, provavelmente motivado pela morte de 4 policiais militares no dia anterior, também naquela localidade.
me relaciono até hoje, outras muito mal colocadas, outras morrendo, então assim, achei que o que eu estava fazendo lá, já não tinha mais serventia.
E aí, paralelo a isso, eu já estou organizando a Criola. Em 97, a instituição onde eu trabalhava resolveu se mudar para Brasília – eu trabalhava com os jesuítas, e na hora eles me perguntam: “você quer continuar com o projeto? A gente segura a onda do projeto”. Aí eu achei que, apesar de estar mais perto agora das meninas, não fazia muito sentido. Então, eu saio desse trabalho em 97. Mas já em 92, com a Criola, a gente já vai organizando encontro com as meninas de novo, formação dos educadores, articulação das instituições que atuam, porque agora também a política aumentava a tutela, a política que era para não tutelar, começou a aumentar a tutela; os abrigos, ao invés de serem abrigos que fossem resolutivos, começaram a institucionalizar, porque não conseguiam dar conta, então, era lugar para guardar criança e alguém tomar conta.
E aí, com o tempo também, e acho que não muito longe disso, há uma estratégia no movimento negro de sempre ocupar diferentes espaços políticos para levar a questão racial como chave do processo político. Como a Criola tinha muitas frentes – uma frente de saúde, uma frente de enfrentamento a violência, uma frente cultural forte, de reconhecimento e valorização da representação da mulher negra e etc, e também, cada vez mais conhecendo os problemas que as mulheres negras têm, lá para 2000, a gente tira, institucionalmente, um encaminhamento, de assim se fechar em relação à questão das mulheres negras. Então, não fazemos nada, em absoluto, que não seja dirigido, organizado e elaborado para as mulheres negras. Mesmo quando assumimos espaços gerais, o que a gente quer lá é marcar, marcar essa presença, essa possibilidade, e essa distinção, exatamente porque a mulher negra é o termômetro de tudo o que acontece no país, de bom e de ruim. Se está bom para a mulher negra, o resto está nadando de braçada; se está ruim para a mulher negra, quer dizer que a população negra está muito, muito, muito em perigo.
É assim que a gente vem fazendo ao longo do tempo, puxando determinados grupos que a gente vê em maior risco: mãe de santo, catadoras, trabalhadoras domésticas (essas, nunca sai, né? Elas também só alcançam um pouquinho mais de direito em 2015). Então, a gente vai puxando esse grupo, olhando as distintas vulnerabilidades, e vai também atravessando temas que não despontam, porque uma das questões complexas dessa ação política é que essa pessoa não pode ser separada, na saúde sexual e reprodutiva, no trabalho, na vida comunitária, na
violência. O processo que estrutura sua vida e suas condições, ele não tem essa separação, ele pode ter uma coloração, mas a separação não existe. Não tem ninguém que esteja vivendo sua vida sexual e reprodutiva bem, se não consegue pegar ônibus, ou quando pega o ônibus está sendo violentada e discriminada, e por aí vai. Isso também exige de nós uma reflexão e uma construção tática e estratégica muito mais complexa. Porque uma coisa é você olhar a pessoa e o meio-ambiente, olhar a pessoa e a saúde, mas não é possível, quando você puxa o cobertor o pé fica de fora, quando você puxa o pé, ficam os braços. Isso exige uma complexidade na leitura do sujeito, e ao mesmo tempo, considerá-lo sujeito, ler as suas condições e encontrar nessa perspectiva, soluções que ultrapassem aquela dimensão da qual a gente está mirando. Então, olhar, por exemplo a saúde nos obriga a pensar em todo processo estrutural da saúde, por dentro, como funciona, como se estabelece política, mas a primeira premissa é impedir a morte, a discriminação.
Sim, a gente quer que o cara veja por que nós somos mais afetados pela hipertensão, pela doença falciforme. Mas se não olha a violência, também não resolve. Então, há aí um processo, que eu não chamaria desgastante, mas que precisa estar muito articulado, quase como um joguinho, senão não fecha, sabe? Assim, é como eu estou aqui com a mão entrelaçada, mas se eu botar o dedo assim, fecha um pouquinho, mas as outras pontas ficam abertas, então, esse é um trabalho bem complexo. De certa forma, é também em relação à política voltada para a população negra e mulheres negras. A política em relação à população negra melhorou muito. Isso também nos deu chance de ampliar o espectro da luta das mulheres negras, outras possibilidades. Mas elas são sempre muito mais vítimas desses processos, então, você tem que estar sempre revendo, repensando. Elas são ainda campeãs de mortes maternas. Não tem como, por mais que a gente mude agora a estratégia, vamos em justiça reprodutiva para ver como isso se estabelece. E por incrível que pareça, assim que a Angela Davis fala, que pode ser uma verdade: toda vez que se mexe com a mulher negra se mexem as coisas. Então, você está ali há anos, batendo que tem um racismo institucionalizado na saúde, sobretudo na saúde reprodutiva. Aí vem violência institucional, violência obstétrica, aí muda tudo e ninguém quer mais olhar a dimensão do racismo, quer pegar aquele momento da ação obstétrica, quando a ação obstétrica não fala de tudo, do dia que essa mulher engravidou, como ela engravidou, porque ela está vivendo aquilo, como ela foi a última a chegar na unidade de saúde, quando ela aborta, porque ninguém
sabia, só ela. Ela não queria contar para ninguém o que aconteceu, se isso levou à morte, por que levou. E aí, a violência obstétrica não abarca tudo, vai abarcar, até por força do sentido “obstetrícia”, uma parte do processo que também precisa ser revista, relida. Mas o que ela viveu necessariamente, “de cabo a rabo” foi o racismo. Não teve acesso a uma política de direitos sexuais e reprodutivos, não teve informação suficiente, não teve acolhida nas unidades de saúde para o cuidado, não recebeu informação de qualidade, engravidou, foi condenada pela gravidez, e aí começa o seu calvário. Tudo que dá errado foi ela que fez, e tudo que dá certo ninguém sabe quem fez, mas não foi ela. É para tomar vacina no 1º, 2º e 3º mês, ela vai tomar no 6º. Ela está hipertensa desde do começo, todo mundo vê que ela está hipertensa, mas chega no final, no parto, ela morre. Aí estava lá escrito, mas porque não avisaram? “É porque não sou obstetra, não sou ginecologista”. Então, afinal de contas, ninguém sabe nada. E você fica pensando: “esse cara comprou esse diploma?” Por que não é possível, né? Todo mundo, até nós que temos uma profissão das mais complexas, sabemos o básico, então, não é possível que o médico não saiba o básico – sinais vitais, inchaço, coisas que qualquer pessoa, até nossa mãe que nunca passou pela medicina, sabe olhar e dizer: “essa grávida está inchada, está retendo líquido, está comendo muito, está não sei o que, né?” Eles não sabem. Então, essas mulheres vão à morte por uma circunstância de incompreensão da sua condição de gente, de ser humano, e aí vai cansando.
Muitas das nossas perspectivas como organização foi centrar, então, o olhar nessa mulher e compreender como funcionam todos esses processos... Lembrando, assim como essa mexida apareceu violência obstétrica, antes disso apareceu a Rede Cegonha, que foi pensada basicamente em cima das mulheres negras, que foi aquele debate: “está pensando em cima das mulheres negras, porque a cegonha não pode ser qualquer coisa, né?”. Aí já vem as medidas e o cadastro – quer saber se ela engravidou, se ela levou a gravidez até o fim, se não levou, o que ela fez com a gravidez. Aí você tem que lutar para isso não acontecer, porque isso é um inferno. Aí agora, abre-se estudo sobre a economia e a saúde reprodutiva e se descobre que as mulheres são mais pobres, sobretudo, as mulheres negras, porque têm filhos, porque “não sei o que”. Aí se pergunta sobre o contraceptivo hormonal que vai impedir dela engravidar na adolescência e na juventude, mas que mulher ela será na terceira idade? Após quarenta anos, qual mulher ela vai ser? Que deficiências físicas ela vai ter?
Bom, enfim, é só um pouco para contar que ela é o termômetro da desigualdade, é o termômetro da violência. E o engraçado é que tudo dela é invisível, até mesmo a violência policial, porque é uma quantidade menor, ninguém nem liga. Mas se a gente for olhar mortes de mulheres negras você vai ver um negócio muito estranho, porque elas morrem dentro das vias institucionais e isso fica parecendo coisa natural. Se você tem grávidas, oito são negras e quatro morrem, você olha e fala: “bom, mas como morreu? porque morreu?” São causas evitáveis. Agora mesmo tem uma pesquisa enorme mostrando quanta gente morre de causas evitáveis, e por que não se evita essas causas? Então, é um pouco isso.
brancas sobre as negras no feminismo brasileiro, do que está se tratando quando se está falando na trajetória das mulheres negras e da sua invisibilidade. No primeiro ponto de vista, poucas têm alcance, e esse alcance só vai aumentar agora com as diferentes traduções, ou mesmo, com as formações de outras mulheres nos Estados Unidos, que tiveram mais contato com essas teorias, basicamente com a ampliação do conhecimento nesse campo das mulheres negras, sobretudo, das americanas.
No caso brasileiro, a história é um pouquinho diferente. Ela tem início com uma certa ruptura do movimento de mulheres, que hoje é o movimento de mulheres negras, sobre o modus operandi do feminismo brasileiro. O feminismo brasileiro faz questão de fazer essa cisão, começando a história das mulheres brasileiras a partir das primeiras sufragistas, as primeiras mulheres a tomarem posição pública na sociedade, e esquece que a gente estava aqui, ao mesmo tempo, desde do começo da escravidão, buscando por liberdade, por outro tipo de tratamento, por reconhecimento da nossa humanidade. Essa cisão, ela é tão profunda, que não precisa de nenhum texto para ler, é só você ver que a primeira onda começa sem falar de mulher negra. E depois, tem essa ideia da dimensão do direito ao trabalho.
Bom, não vou falar de domésticas porque eu acho que, ainda por cima, é um entrave até hoje. Mas vem se falando do direito ao trabalho, do reconhecimento e do direito ao trabalho de mulheres de modo geral, quando as mulheres negras já estão no mercado de trabalho há muito tempo. Já andavam pela rua – e esse não era um problema moral, porque elas não tinham nem isso, “problema moral”. Como uma concepção política, ideológica, [o feminismo brasileiro] nasce em nome das mulheres, das mulheres de uma maneira universal, convivendo numa realidade completamente díspar, e logo, logo, você vai ver que a sua insuficiência no enunciado é grande.
Então, quando é muito gritante você tem: “Ah! Potiguar não sei da onde”, “Ah, a mulher negra sei o que lá”. Mas ela também tem esse diálogo intermediado, ela tem que ter ido para escola, e vocês sabem que, diferente dos Estados Unidos, no Brasil, esses direitos são conquistados muito lentamente. Mulheres brancas tinham conquistado o direito ao voto, mas negros ainda não tinham conquistado direito a educação. Então, você vai ver uma comparação imediata com os americanos, mas os americanos era o seguinte: ou você aprendia a fazer para te cuidar, montar sua universidade, fazer sua escola, ou você não teria nada disso. No caso do Brasil, você não podia fazer e não era aceito em nenhum desses espaços, não tinha o lugar
de trás no ônibus – até hoje é uma pergunta que se faz: por que os jovens sentam no lugar atrás no ônibus, se aqui não teve apartheid? Por que eles sentam atrás no ônibus? Por que eles fazem isso automaticamente? Por que é melhor? Não, a pior parte do ônibus é o fim do ônibus. “Ah, porque eles querem dar um calote”. Não tem nada a ver, é a experiência da segregação que segue, segue a ponto de você achar que seu lugar é ali, não importa o que você está fazendo. Então, esse feminismo brasileiro, ele de novo nasce, levando em consideração as hierarquias de raça, e ele é o primeiro a negar a existência de mulheres negras. Quer dizer, se você já vem de uma sociedade que nega a existência de mulheres negras como objeto (a escrava), passa o século, elas também não são trabalhadoras, porque para ser trabalhadoras elas deveriam estar incorporadas não só nos modos de produção da vida, mas nos direitos conquistados ao longo, e elas não são. Em sua maioria, estão no trabalho doméstico, que lembra muito o trabalho escravo. A gente pode até fingir, mas quando alguém diz que a gente é doméstica não está falando mentira, é ali que a gente se posiciona. Nosso salário é menor, e a vida é mais ou menos isso. Mas o que eu queria dizer com isso? Que essa negação e essa invisibilidade transformam o feminismo brasileiro em outra forma de opressão que se compara ao racismo. Por isso que a gente chama de racismo patriarcal. Então, quando as feministas começam a anunciar que o patriarcalismo morreu, já na década de 80, quando se coloca os direitos das mulheres na Constituição de 88... morreu para as brancas; para as negras seguiu. E, quem sabe, para indígenas nem se aproximou.
Agora, olhando a realidade, se mulheres têm isonomia com a Constituição Brasileira, independente de branca ou não, como isso vai se estruturar na vida de cada uma é outra história. Quer dizer, a condição de cidadão e cidadã foi ganhada por nós, a condição de sujeito de direito foi ganhada por nós, mas nós não levamos. Na nossa hora o “negócio” entornou. Foi dito “para mulheres brasileiras”, mas se ninguém nos reconhece como mulheres brasileiras, como a gente alcança esses direitos? Então, a partir dessa ideia é que surgiu o feminismo negro. Se essas concepções garantiram para vocês a condição de ser humano, de sujeito de direitos (também em tese), para nós eles são insuficientes. Eles não conseguiram nos dar pleno direito ao trabalho e proteção, eles não nos conseguiram dar direito à dignidade, eles não conseguiram mudar a representação negativa sobre nós. Ainda nos tratam, em determinados processos, como se fôssemos a escrava. Mas mudou, mudou bastante.
Esse feminismo negro começa a anunciar isso: “olha, para fazer essas mudanças é preciso pensar nessa mulher e no seu cotidiano. Elas não têm direito a serviço, não têm direito ao trabalho, não tem direito a educação, não vivem em espaço sem violência”. Em que pese que a gente sempre diz que a violência contra a mulher atravessa toda as classes, vírgula, porque não é em todas as classes que se vive a violência de uma criança de 10 anos já grávida do seu padrasto. Claro, pode acontecer sim, mas compara em números, compara em projeção de resultados. Então, esse feminismo vai dizer: para ser feminismo precisa disso, daquilo e daquilo outro, e vai se intitular então como feminismo negro.
Dizem as más línguas, que é isso que existe hoje no Brasil de feminismo, que o restante está pensando de outra natureza, de outra forma, em direitos que no fundo vão acabar regulando a vida dessas mulheres. Vou dar o exemplo da “marcha das vadias”, que começa a ser questionada nos Estados Unidos e aqui também. Nós somos chamadas de vadias há muito tempo, nós não queremos ser chamadas de vadias. Então, se para mulheres brancas ser chamada de vadia é um valor, para nós é desvalor total. Então, como vai se operando esses processos, esses direitos e essas formas? É isso que estamos chamando aqui de feminismo negro.
A Criola se sedimenta a partir daí, a partir de ações políticas, de teorias e concepções que enfrentam o racismo patriarcal, e agora cis heteronomartivo. Sem isso, nossas ações caem de novo em um processo de opressão, de invisibilidade. Mas isso não quer dizer que esse é o nome que nos marca, que chancela nossa participação. Por quê? Porque o movimento de mulheres negras se chama “movimento de mulheres negras”, ele não se chama “movimento feminista de mulheres negras”. Tem movimento feminista no movimento de mulheres negras? Tem! Tem as jovens feministas negras, tem movimento feminista negro, movimento feminista interseccional, tem movimento feminista de tudo quanto é tipo, mas o que nós prezamos é justamente essa dimensão entre o que faz o feminismo e o antirracismo. Como essa pedagogia criada pelas mulheres negras é muito mais além do que isso que é oferecido. Eu vou dar um exemplo: o movimento feminista está centrado na luta pelo direito ao aborto desde [os anos] 2000. Eu acompanho de perto esse processo, desde 2000, desde o dia em que se sentou no bar e disse “vamos fazer assim”. Concordo que o aborto é um problema, mas o aborto é a quarta causa de morte de mulheres negras, então, certamente, ele não tem a importância politica que ele teria no movimento de mulheres negras, visto que elas
estão com fome, sem trabalho, vivendo violência. Para elas, realmente é a quarta causa, não é aquela primeira causa, aquela que necessitaria de prioridade. As mulheres negras não participam dessa ação política, e muitas são criticadas por isso
– “que não dão valor a esse processo”. Mas isso não as leva à autonomia sexual e reprodutiva, ao contrário. Essa luta vai beneficiar? Claro, vai beneficiar, por isso a gente está lá, mas eu não posso parar toda a ação política de Criola e centrar nisso. Isso não é a chave para a ação política da Criola.
Tem mãe de santo tendo tudo que é seu destruído, tem meninas, crianças sendo violentadas. Você tem “n” pragas: hoje a gente está com a pandemia do novo coronavírus, mas estão sobre ela a tríplice epidemia (a Zika, Dengue e Chikungunya), que acabou com a maioria das jovens que foram infectadas por essa epidemia, sobretudo, o Zika vírus, com seus filhos e as suas dificuldades de sobreviver nesse processo. Que revela que elas não tinham direito a saneamento básico, nem água potável. Por isso que elas se infectaram. Todas elas tinham galões de água guardados em casa para o cuidado. Então, são problemas tão complexos que, ao mexer em uma camada, você não resolve o problema, você precisa ter essa percepção mais holística. Então, o direito ao aborto é legal? Vai ser bom? Vai! Mas ele não é a chave. Se o movimento feminista acabar porque conseguiu o direito ao aborto, ótimo! Mas ele não é a chave dos problemas que as mulheres negras vivem. Agora, elas têm que desviar a atenção para isso? É claro que não vão desviar! Elas sabem onde estão as prioridades, e por isso, muitas vezes, elas são incompreendidas. Elas não fazem parte do movimento feminista, sua principal bandeira não é levantada por elas. É bem complexo.
Eu diria, hoje, que existe sim, os feminismos negros, feministas antirracistas, feministas interseccionais, jovens feministas. Mas Criola se posiciona em olhar esses processos como processos políticos, que poderão, ou não, alçar essas mulheres à condição de sujeito de direito, à condição de sujeito político. E na medida em que essas concepções e esses conceitos, de fato, incorporem a luta contra o racismo. Aí sim, elas poderão nos servir cada vez mais.
IPEA6, falou que o maior segmento de trabalhadores no Brasil é de empregada doméstica – são oito milhões. Isso diz muito da nossa formação social e histórica do Brasil, e o quão tardia foi a definição de direitos básicos para esse trabalho, e o quanto tem de luta também nessa instituição de direitos. Então, esse comentário reforça as reflexões que você traz. Mas também queria te ouvir sobe um outro aspecto: você já falou um pouco sobre a história da Criola, e como essa história está entrelaçada com outras. Mas, nesse percurso, o que te surpreendeu nesse trabalho com as mulheres? E nesse percurso de luta e existência da Criola, que projetos, ou que questões, ainda são muito importantes ou fundamentais? Queria te ouvir um pouco sobre isso.
6 IPEA: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada; fundação pública federal vinculado ao Ministério da Economia.
poder alcançar educação. Então, elas transformam a vida das mulheres negras nesse período. É uma revolução silenciosa, uma revolução sem ideologia, mas é uma revolução de submissão e de opressão, porque elas pagaram o pão que o diabo amassou, comeram o pão que o diabo amassou para alcançar isso. Essa é uma perspectiva muito importante, porque a gente tem um hábito de atribuir isso tudo a uma ação benevolente da política, dos políticos, mas essa transformação... Claro, você ter de 2003 até hoje, essa quantidade de jovens formados na universidade é um luxo promovido pelas cotas, luta nossa, né? Mas, antes disso, havia um exército de pessoas formadas, instruídas, atuando e trabalhando, que não tinha cota. E foram essas mulheres, no seu trabalho, a partir do seu trabalho, de seu empenho de carregar nas costas a outra geração, que deu esse resultado. É claro que isso sempre será parte do mito, da ancestralidade. Nunca será contada na história porque há pouca pesquisa, pouco estudo sobre isso, mas é só você perguntar a qualquer figurão, que ele vai dizer: “minha mãe foi doméstica, trabalhou como doméstica e daí vai”.
O que surpreende também, neste caso, é que quando Dilma cai e entra Temer, quando a crise aumenta, as primeiras a perder emprego foram elas, e também sofreram a primeira manobra: “Então, você sai do trabalho, ou encerra o trabalho de carteira assinada e volta a ser diarista, sabe?” Tipo, elas voltaram a cem anos atrás, de novo, com essas medidas. É um grupo que não dá para esquecer, é um grupo chave quando se fala de mulheres negras. Claro, há outras, mas esse grupo aqui não chega aos pés.
O que me surpreendeu nesse trabalho, esse tempo inteiro? Pouca coisa me surpreendeu porque eu acho que, como mulher negra eu vivo a mesma ação. Assim, eu estou sempre em confronto com a minha própria história, com a minha própria existência. Talvez se fossem minhas sobrinhas, ou uma outra geração, não tivesse tanto esse confronto. Mas essa geração, a minha geração, vive em confronto com a sua própria realidade: de onde veio, como viveu, até onde alcançou e sem poder fazer disso um valor. Não dá para colocar como prêmio na estante – “ah, fiz faculdade disso, mestrado daquilo, doutorado daquilo”, porque, como diziam as nossas mães, “não fez mais do que a sua obrigação”. Mas nesse trabalho com as mulheres, o que mais me surpreende, é que elas desconstroem tudo que você constrói como pedagogia, maneira de funcionar politicamente. Assim, a gente sai das nossas formações (política também), olhando para essas mulheres como pobres
coitadas, como quem não sabe o que está fazendo, como quem precisa ser treinada, que não leem direito a realidade, fazem escolhas ruins, políticas. Mas ao contrário, elas são de uma sabedoria, elas são de uma sabedoria, assim... por isso, a gente olha essa dimensão da ancestralidade como processo, né? Elas são de uma sabedoria incrível. Por exemplo, muitas nunca mais casaram. Por que não casaram mais? Para assegurar segurança aos filhos. Essa segurança não era mais econômica nem financeira, mas é a segurança sexual, do corpo, da inviolabilidade do corpo. Você vai ver, são grupos de mulheres que não têm mais nenhum marido. “Ah, mas elas não têm liberdade no mercado sexual?” É verdade! "Elas não são as escolhidas para casar?” É verdade! Mas elas também vão construindo e engendrando estratégias de defesa do seu núcleo familiar.
Depois, você pega as ialorixás, que é um grupo extremamente complexo, eu diria. Elas têm economia, elas fazem economia, elas arregimentam grupos, elas fazem o trabalho do cuidado, elas fazem o trabalho da formação política, elas dão equilíbrio psicológico e social a qualquer pessoa, branca e preta. Mães de Santo! O que eu levo um ano para encontrar num projeto, elas fazem brincando, em um ano, uma renda enorme, inclusive poupança. Vocês acham que elas andam de ouro por quê? Porque ouro é uma coisa fácil de fazer apólices, buscar dinheiro fácil para dar retorno a um problema grave. Elas também vão fazendo uma espécie de poupança para o que elas precisam no dia a dia. Em torno, por exemplo, dos ebós. Então, você vai jogar, você paga e faz o ebó, aí você fica “puta”: “Pô, tem que pagar para a pessoa cuidar? Isso não deveria ser caridade?” Como a preta velha, né? A mulher, com o barraco todo caído, vai baixar a preta velha para cuidar de alguém e ela não tem o que comer em casa. Pois elas fazem disso ganho para a família, para as famílias agregadas, para a instituição, porque quando alguém perde casa, vai morar na casa dela, vai morar no barracão. Quando você sai de lá, você pode sair, inclusive, com um farnel do que comeu no final de semana, e mais os bichos que foram usados naquelas obrigações. Então, elas são de uma engenharia política enorme.
Vocês imaginam que a maior categoria, a categoria mais bem posicionada de negros no país eram os estivadores. Pois elas tinham relação direta com eles, elas deram cargo público para eles, cargo de ogã. Eles entravam na casa delas, quando elas recolhiam um barco de Iaô, a primeira pessoa a chegar era esse ogã, com uma cesta de alimento para cuidar dessa figura. Aí, hoje em dia, por exemplo, quando
você chega em um terreiro, você vê aquele bando de homem sentadinho sendo servido, você olha e fica assim: “puta que pariu, olha a opressão de gênero aí”. Claro que não, eles estão sendo bem cuidados para poder servir o que eles vão dar de troca: é o trabalho em casa, é o conserto, o dinheiro, o toque para chamar os orixás. Eles não têm papel religioso, eles não entram em obrigação de ninguém, mas eles são referenciados como pais, porque quando for necessário são eles que vão acudir. E se você entrar e criar qualquer problema lá, eles são os primeiros a te defender, eles tomam conta da rua, tomam conta da porta, das crianças, para ver se na hora que está todo mundo em função as crianças não estão andando pela rua. Tem todo um processo. Mas quando você entra, você fala: “olha a opressão de gênero ali. Esses caras sentados, mal levantam para tirar prato”. Elas sabem o que fazer. Por quê? Porque nós, mulheres, não podemos fazer tudo, carregar o bicho, tirar o lixo para fora... elas dão um jeito, elas vão criando processos tão complexos! E quando você chega, você reclama, a primeira coisa que você faz é reclamar.
A cozinha é o lugar de maior poder que tem em uma casa de santo. Lá você controla tudo o que acontece, você controla todos os alimentos que são feitos, lá você é elogiada, ou perde a vontade de ser elogiada, lá é o espaço que você controla a casa inteira. É a pessoa mais importante do Axé? Não! Mas é a pessoa que tem mais poder, tudo o que eu precisar, até as fofocas passam por lá. E são aquelas que vão lembrar de você. Você foi na rua, elas vão lembrar: “fulana ainda não comeu”. Também te castigam, e claro, mas elas vão lembrar “fulana ainda não comeu”, “separa de fulana”. Esse processo todo de cuidado, quando a gente olha de fora, vê o que? Outra vez, as mulheres negras. E você sabe que tem mulheres brancas no candomblé que não gostam de entrar na cozinha, porque elas acham opressão, mas ao contrário, sabemos o que elas fazem? Elas ensinam você a cozinhar, ensinam como descasca o alho, como descascar a cebola... Você fica “puta”: “porra, vou ter que ficar cortando essa cebola?” Aí tempera, aí te ensina: “tá vendo como se faz? É assim que se faz”. Isso vai entrando para dentro da sua vida, porque, na verdade, elas também aprendem em uma certa economia a levar isso para vida, porque o candomblé não é uma experiência religiosa, é uma experiência de vida, quase um projeto de nação. Aquilo tudo vai contigo para sua casa.
Então, o que me surpreende nesse trabalho é a capacidade delas de articular esforços para dar conta de um drama, porque a vida da mulher negra é um drama, e elas articulam esforços. É um processo. O que surpreende é a capacidade delas de
criar e modificar processos. Na minha casa tem muitos intelectuais, e aí, às vezes, eu via minha mãe falando: “ah, fulano, tão lindinho!” O fulano chegava já contando: “fui para Holanda, para França, para Alemanha, para não sei que, falei disso...” Gosta sempre de falar de cultura negra: “falei disso, daquilo, daquilo outro”. Aí, minha mãe: “Ai, que lindo! Ai, que maravilha!” Os artistas loucos, e de repente ela falava: “oh! meu Deus, como sofreu né? Tive que dar tanto dinheiro da passagem! Às vezes não tinha o que comer, vinha para cá, e hoje está tão bem”. Ele não vai botar isso nunca na tese dele, né: “fui sustentado e apoiado por uma mulher negra, que lá no seu terreiro deu suporte para que eu pudesse desenvolver”. Nenhum agradecimento. Mas quando ela começa contar a história, você... “ah, era isso, brigou com o pai, não tinha onde morar, veio morar aqui, passou aqui um tempo.” É isso, gente, é surpreendente a capacidade delas criarem forças.
Se eu chego com a Criola, dizendo: “você tem que aprender, você tem que saber fazer”, eu não adentro esse mundo, porque somos, de certa forma, hierarquizadas, vivemos em camadas. Eu sou filha de doméstica, mas, certamente, o que serão as minhas sobrinhas? O que somos como professoras universitárias, muda um pouco a maneira da gente transitar nesse mundo – se vai continuar morando em favela, se vai morar em periferia, como vai viver a vida. Mas essa hierarquização, essas camadas do que somos, não nos habilitam a dizer o que elas são, como elas vivem e porque elas vivem desse jeito. Ao contrário, habilita a pensar a possibilidade, a potência, a capacidade de transformar. Agora, lógico, uma coisa é você viver com a faca no pescoço, transformando todo dia, e outra coisa é você ter condições para viver e transformar todo dia. É nesse lugar que a gente está. Quase tudo é combinado com elas, porque esse negócio que “eu vou fazer um cursinho...” O cursinho só sai de coisas que a gente sabe que elas não têm acesso. Vão precisar aprender a mexer com as novas tecnologias. Não adianta dizer que tendo um celular vai resolver, então, a gente tem que oferecer isso. Isso é um instrumento que pode nem servir para ela, mas para amiga, ela se lembra da filha, lembra da prima, e ela bota na fita, sabe? E isso vai fazer a diferença na ação política dela: “ah, bom, eu tenho falado e fulano não tem me escutado”.
Outro dia mesmo eu estava vendo uma experiência de uma moça, que seu grupo fez uma cartinha política para campanha eleitoral, e aí o grupo foi apresentar, um grupo de catadores se não me engano. Foi apresentar a tal da cartinha. Chegando lá, o cara: “pode monitorar.” Elas começaram a monitorar desde do
começo, elas já estão cheias de reuniões marcadas. Ele disse que iria fazer “não sei o que”, elas vão lá cobrar. E fomos nós que ensinamos? Claro que não, elas sabiam. Claro, se a gente ajudá-las a monitorar! Tem várias formas de ensiná-las a monitorar que facilitam, que não vai perder tanto tempo, mas elas já estão fazendo esse trabalho. E a gente sempre despreza isso. É um jeito diferente de fazer, que não combina nem conosco, nem com financiador, mas é possível ser feito. Então, acho que é um pouco isso. E outra coisa também, nós temos uma experiência de trabalho numa época em que a violência... Não tinha a lei Maria da Penha ainda, a violência contra a mulher estava muito braba. E aí, nas tradições afro brasileiras, sempre se pergunta ao mais velho, quando o negócio não está dando certo, o que fazer, né? Aí nós perguntamos a elas: “nós queríamos fazer um trabalho com [a questão da] violência. Nós temos um dinheiro aqui para fazer isso, mas a gente ainda não conseguiu, a gente queria conversar com vocês.” Aí juntamos seis, e elas disseram: “tem que chamar fulana e beltrana, que ela é muito boa nisso” Aí chamamos. E aí nós explicamos para ela: “o Estado fez isso e não está dando certo, a sociedade está fazendo isso, não está dando certo.” Aí ela disse: “não, a gente tem que fazer”. Mas para isso a gente propôs a elas compreenderem como funcionava isso tudo. Uma coisa é elas acharem que a violência doméstica é fruto da relação homem e mulher, e outra coisa é elas imaginarem como isso se dá politicamente em todos os campos da vida. Foi isso que nós fizemos. Levamos elas para vários lugares com direito a descanso, diversão e estudo. “Olha, violência acontece assim, tem esse número, acontece assado, hoje você tem que fazer isso, aquilo e aquilo outro. O que vocês acham que pode dar independência?” Mulher que não tem independência, que não pode falar mais alto, acaba ficando submissa. Todas elas, exceto uma casa, montaram projeto de empreendedorismo. Aí, no começo, dá aquela má vontade: “ah, projeto de empreendedorismo?” Depois elas vinham trazendo a notícia: “Lúcia, fulana não tinha o que comer, agora vende pão porque abriu uma padaria, vende pão na porta de casa todos os dias”. Então, todo dia ela tem como sustentar a família. Aquilo gerou compromisso? Não. Assim que ela aprendeu a fazer pão, ela seguiu fazendo pão, e ficava lá ouvindo aquelas histórias, da não violência, “você tem direito e tal”. Ficou livre da dificuldade, não precisava mais esperar o homem trazer, ela mesmo já tinha condição de ir produzindo seus resultados. A outra disse: “ah, olha, minha vizinha morreu”. Aí a outra: “mas por que sua vizinha morreu?” “olha, se ela sabe todo dia eu ouvia essa história aqui e pensava, tenho que falar
isso com a minha vizinha, mas eu não falei, não deu tempo, mas agora eu vou falar”. Aí botou cartaz na porta de casa: “contra violência, vem aqui conversar comigo”. Depois o homem foi lá, rasgou o cartaz: “vou chamar a polícia". “Não pode chamar a polícia que o bandido não vai gostar.” “Então, vamos fazer um cartãozinho para você. O que mais você precisa? "Preciso conhecer a delegada de polícia". “Então, tá bom.” Fizemos uma reunião, elas conheceram a delegada de polícia. Por quê? Porque elas achavam que ao chegar lá na delegacia quem ia ficar preso eram elas. Então elas conheceram a delegada. A delegada não teve outro jeito senão dizer: “tá bom, então quando vocês forem lá, me procurem ou procurem fulana”. Então, todas as denúncias, elas iam direitinho na delegacia, falavam. Claro, tivemos que deixar o dinheiro para passagem? Claro! Mas o resultado foi bem melhor do que aquele que a gente imaginava, que ao fazer aquela palestra, aquele curso, tudo se resolveria.
E mais que isso, o empoderamento delas na região foi grande. Por quê? Elas começaram a falar com as autoridades locais, pois não tem como resolver a violência de São João no Rio de Janeiro, tem que ser lá. Então, elas também tiveram a possibilidade de dizer “sou mãe fulana”.
Sabe quem abriu a maternidade Heloneida Studart? Tinha um grupo de mulheres que ficavam toda semana na porta da maternidade, dizendo que dinheiro público estava se estragando, que as mulheres estavam morrendo... tem até vídeo sobre isso. Eram elas, umas Mães de Santo que resolveram que tinha que abrir a maternidade. É claro que não foram elas que abriram a maternidade, mas elas “encheram o saco”, encheram o saco da delegacia de São João para abrir, então é isso. Desculpa, nenhuma feminista vai para porta de maternidade, ou delegacia “encher o saco”, são elas que sentem na pele. Então, esse esforço que elas fazem, sempre me surpreende. Sempre quando eu vou com a fórmula pronta, eu volto para casa chateada comigo. Eu falo: “poxa, não acertei dessa vez”.
E a última que nós vivemos agora, foi muito engraçado. Sob meu ponto de vista, essa pandemia trazia uma solidariedade que ia terminar né, porque ninguém aguenta comprar cesta básica para dar de presente toda semana. E aí, eu fui conversar com elas: “estou muito agoniada, isso não vai dar certo, eu queria propor a vocês que a gente fizesse o cadastro do auxílio emergencial para as mulheres”. A primeira coisa que eu pensei que elas diriam era: “não vamos não, nós queremos cesta básica”, Por quê? Porque eu encontrei 13 mulheres fazendo isso, catando recursos na sociedade para cesta básica. Pois você sabe que elas toparam? Nós
tivemos quase 60 lideranças fazendo isso em mais de 10 territórios, em 10 cidades. Elas, lógico, inicialmente disseram: “ah, Lúcia, mas a gente tem que arrumar algum dinheiro, porque esses jovens já estão sem trabalho. Vão ficar presos nisso?” “Tá, a gente arruma”. Arrumamos um financiador e dissemos: “olha, elas precisam ganhar”, e elas toparam. Então elas faziam tudo, elas iam lá, mexendo no celular para conseguir cadastrar, elas trabalharam limpando o CPF dessas pessoas, exigindo da Caixa que desse resposta, elas foram nos CRAS, no CREAS. CRAS e CREAS fechados, unidades de saúde que não atendiam, juntaram com jovens, fizeram de tudo, gente. Fizeram jingle para cantar na comunidade sobre o coronavírus, ficavam batendo boca com pessoal para fechar o bar... porque vamos dizer a verdade, nada fechou, só o Rio de Janeiro. A maioria das cidades do entorno não teve nenhuma parada, até hoje. Você anda nos municípios, sem máscara, sem nada, nenhum aviso, nem uma carinha do corona. “Olha, eu estou aqui nessa cidade, vocês precisam se cuidar”. Nada, nada. Informação zero, contando zero com as autoridades. E elas foram e fizeram.
Então, tem uma força aí que a gente nega sob o ponto de vista político da capacidade de transformação e representação. Nisso nós já estamos vacinadas, não temos problema. Ou elas nos representam, ou nos representam. Mas é sempre uma surpresa, porque você sempre fica achando que aqueles seus diplomas estão valendo mais e elas chegam com outra coisa, sabe? Elas chegam com outra coisa, dizem: “não, nada disso”. E, mais que isso, nos chamam à responsabilidade. Eu sempre falo isso: “a senhora, nessa reunião, vocês deram dez tarefas, mas nós não vamos cumprir, são vocês”. “Então, pera aí, Lúcia”. Aí começa a negociação. “Por quê? Tem que fazer isso, tem que fazer aquilo, tem que fazer aquilo outro, tem que não sei que”. E digo mais, começa sempre por cima: “oh, essa cesta está maravilhosa, mas eu nunca vi cesta para mulher não ter absorvente higiênico”. A gente: “pelo amor de Deus, era só comida”. “Oh, está muito bom, mas não tem leite. Como que vai sustentar as crianças sem leite?” Então, assim, você acaba sendo obrigada a rever coisas. Bom, tive que achar dinheiro para comprar leite, né? Porque o que elas estavam dizendo era: “está ótimo! Muito legal! Mas não tem leite, como ficam as crianças pequenas? Elas vão comer arroz e feijão?” Para mim estava ótimo, uma cesta maravilhosa, cheia de coisa, com uma cesta de legumes frescos, entregue na hora, kit de limpeza, máscara, mas alguém reclama do leite. Você tem que rever sabe? Porque se eu não escuto, vou dizer: "tá bom, a senhora me
desculpe”. De vez em quando elas são mais delicadas, elas falam: “Olha, está maravilhosa essa cesta, sabe o que que é? As criancinhas”. Tem outras que vão dizer na lata: “Que coisa! Como é que não pensou no leite?” Tipo, não é dona de casa, não sabe que leite é fundamental? O que me surpreende nelas é sempre botar a gente na realidade, é dizer: “Oh, tu está parada aí, não é isso não.”
essa forma de resistência, seja na Baixada Fluminense, seja em vários outros lugares, que não necessariamente, como a Lúcia fala, tinham uma autonomeação de feminismo, exatamente porque o feminismo não as representava, o feminismo não as incorporava, não expressava, não materializava aquelas demandas muito concretas. E por muitas vezes, os movimentos feministas acabavam, inclusive, trazendo acusações mesmo, de divisionismo, de não fortalecimento, o que nunca foi verdade, nunca foi verdade. Então, eu fico pensando por exemplo, hoje, quando a gente fala, Lúcia, da questão da violência urbana, por exemplo, por mais que não seja a primeira forma de morte das mulheres negras, incide muito fortemente sobre elas, né? E a gente vê isso, por exemplo, na forma como as mulheres negras têm se organizado na denúncia da violência do Estado, por exemplo, do extermínio dos seus filhos, né? Das suas crianças. A gente vai em qualquer manifestação, olha para qualquer manifestação, são elas que estão na linha de frente, e assim, muito fortalecendo. Eu acho que é muito aquilo... o Emicida fez um uma coisa lindíssima, né? Um documentário lindíssimo. E “é nós por nós”, né? É “nós com nós”. “Nós só tem nós mesmos”, né? Então, é assim e isso é muito forte. E eu acho que isso tem obrigação. Eu acho que só tem sentido qualquer tipo de luta política de militância, se a gente tiver aí, ajudando, apoiando, fortalecendo esse protagonismo, essa luta das mulheres. Isso é uma coisa que a gente aprende demais. E eu queria te dizer, Lúcia, toda vez que você fala eu fico muito emocionada, é uma coisa que me toca muito fundo, eu olho para uma história viva, um legado de resistência, de luta. A importância da Criola na própria trajetória desse campo das organizações de defesa de direitos, né? E a Jacque, por exemplo, tem sido uma pessoa muito importante na escola, porque você vem do Serviço Social e você sabe como essas hierarquias são construídas de uma forma muito pesada. Muito violenta dentro do campo das esquerdas, né? Que o que é simbólico, o que é importante é a luta de classe, depois vem o resto. E a gente está falando para um público... a gente forma meninas negras, mas as
professoras que elas olham são brancas, em sua grande maioria. Eu nunca tive uma professora negra na minha vida, nada, a não ser as minhas professoras de luta política, tipo Lúcia, né? Mas eu nunca tive uma professora, no campo da educação formal, que fosse negra. Eu sou uma mulher que vem da elite, né. Então assim, eu queria muito esse diálogo com você, só para te dizer tudo isso. Porque, realmente, é algo muito forte, muito potente demais. E a própria importância da Criola, né? Tenho estado muito junto com Lia, que é uma figura espetacular, Lia Manso. E é um aprendizado, cada dia desse ano... foi um ano de trancafiamento, de isolamento, de estar nas lutas na medida do possível que a gente conseguiu. Mas um ano de aprendizado enorme, enorme, enorme! Por causa dessas mulheres, por causa desses lugares. Queria só dizer isso.
entendeu? Então, se debruça para... eu conheço uma pessoa que entende tudo de samba, eu acho lindo isso. Mas ela entende tudo de samba, porque sinceramente, ela não deu para outra coisa. Aí ela olhou para o samba, que tinha pouca gente escrevendo, tinha pouca gente falando, ela virou a pessoa do samba. Ela fala mais de samba do que os sambistas, né? Ela é capaz de dizer a hora que fulano levantou, largou o tamborim e foi fazer xixi, né? Eu não vejo só beleza. Eu vejo também uma apropriação que, às vezes, é um pouco negativa. É você ouvir dizer que se não fosse Beth Carvalho não tinha samba. É mais ou menos isso. O negócio já estava lá, se ela deu visibilidade, é porque ela também tinha interesse nisso. E é claro, outras consciências, é claro que a gente precisa olhar. Como a Sueli Carneiro diz: “se você reconhece a dívida, como se alia para resolver o problema?” Mas há aí intercorrências, processos, que precisam ser vistos e questionados. Não existe esse lugar, esse ambiente totalmente liso. Senão, a ideologia não existiria, a gente estaria falando de outra coisa. Há processos ideológicos que funcionam porque determinados grupos, justamente os que serão mais vítimas desse processo, incorporam essas dinâmicas, incorporam consensualmente e violentamente.
E também aí, é importante dizer que, apesar das mulheres negras afirmarem uma maneira de fazer política, de enfrentar os problemas, elas não negam o feminismo como um propósito, ao contrário, conhecem suas vantagens e trabalham sobre elas, mas ele é insuficiente. Por isso elas vão adjetivando, é negro, é interseccional, é africano, e tem gente que nega. Diz: “não, isso não tem nada a ver, o que cabe aqui é mulherismo, não feminismo”. E vão criando outras possibilidades, também porque a centralidade do feminismo só dá quem acha que ele corresponde a todas as dimensões da vida, e que sob essa égide... como a gente é de esquerda, a gente só dá valor a isso porque isso atravessa na sua formação, nosso modo de pensar. O que também é muito simples achar que só teve esse tipo de estrutura política capaz de pensar as mulheres, a desenvolver as ações das mulheres. Eu acho que o que nós fazemos bem é aproveitar bastante o que o feminismo oferece de vantagens e processos, mas lembrar da sua insuficiência é o que nos faz caminhar, isso é bastante importante. E acho também, Tati, que o reconhecimento do racismo não passa só pelo reconhecimento dos problemas e das assimetrias que vivem negros e negras. O reconhecimento do racismo, e eu não vou chamar isso de branquitude, tem a ver com o que se faz dos processos que engendram um determinado modo de poder, engendram determinado modo de organização social,
de padrão civilizatório. E não precisa olhar para mim para ver isso, tem que olhar para si, no sentido de compreender como é que esses padrões estabelecem poder. É claro que quando Marx diz que: “somente a partir desse sujeito histórico seria capaz de transformar” é porque ele tá dizendo: “aqui ninguém vai abrir mão de nada, não, sinto muito”, se não vierem tomar. E aí ele estabelece um sujeito histórico, dando a esse sujeito histórico, uma dimensão política para a luta de classes, né? Porque senão, não teria luta se não tivesse outro lado. Agora, ele olhou para onde? Ele olhou para o modo de produzir dos brancos. Só que quando a gente olha sua teoria, a gente olha do modo de organizar os outros, sabe? E essa questão, é inclusive disfarçada na dimensão da branquitude, porque vai falar da branquitude como um processo, da branquitude como racionalização. Mas olha, essa é uma dinâmica de organização da sociedade, de modus operandi do poder, da redistribuição, da geopolítica, e é daí que tem que analisar. Por que essas estruturas estabelecem e escolhem esses diferentes grupos para funcionar? Outro dia eu estava vendo alguém falar: “bom, tem árabes claros”, mas a maioria dos árabes não são brancos. Como é que alguém informa, então, assim? O Egito está na África, por que a gente acha que no Egito não tinha negro? Só agora, com seus presidentes, com seus não sei o que ... É isso, por onde começa a questionar esse poder? Olhando para mim? Ao olhar para si, eu acho que você começa a compreender melhor como é que isso se estrutura como um processo de poder. Que nos atinge? Ok, é verdade. Mas o que está em jogo aí? Por que raça? Por que a distinção de raça faz parte desse processo? O que ela clama? O que ela chama? Para fazer você achar que é seu direito? Mais que seu direito, é da sua natureza esse processo de exclusão, esse processo de opressão e os derivados dele. É isso.
gente também precisa de apoio, a gente também precisa ser apoiada. Porque também tem essa lógica que a mulher negra, ou a casa da mulher negra, sempre vai ter um apoio, sempre vai ter um afago. E eu vivi muito isso também na casa das minhas tias, que eram de santo, que faziam as festas das crianças, e ali a gente tinha um trabalho coletivo ao entorno, era sempre um lugar de receber pessoas. Mas também é importante que haja uma atenção para quem são as pessoas, as suas dificuldades, as suas condições de vida, que você trouxe aqui. O quanto que a gente não deve fazer o uso, a sociedade não deve fazer o uso abusivo dessa força, porque muitas vezes é o que parece. É uma falta de conhecimento total desse saber, dessas mulheres, que são rezadeiras, benzedeiras, que são parteiras, muitas delas, né?
E também dialogando, já entrando na terceira questão, você traz a questão da luta por educação antirracista, como que as mulheres se engajam nessa batalha mesmo pelas suas crianças, por instrução, inclusive desde o século XIX. Como que essa luta é histórica, que não está só colocada agora, a partir da 10.639/20037, mas que já vem há muito, muito tempo, protagonizada por essas mulheres pretas. Aí queria que você trouxesse um pouco essa questão dos desafios e agendas de lutas. Porque você fala muito, você falou bastante das crianças e dos adolescentes, das Mães de Santo, você traz muitas questões, muitas pautas na sua fala, e se você puder trazer para gente os pontos que você elenca mais centrais desses desafios hoje, seria fundamental. Não só considerando essa conjuntura, que de certa forma você também está trazendo, essa denúncia de como existe essa maior letalidade do povo negro, não por ser um pouco doente, mas por viver essas determinações sociais de forma mais aviltante. Então, como você pode trazer prá gente a questão central das lutas, das pautas atuais, nessa conjuntura? E também a partir da história das mulheres negras.
7 Essa lei, de 2003, torna obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira nas escolas.
mesmo, racismo. Então, olhar a violência com certo cuidado é importante. E por que a pandemia? Porque quando pandemias desse nível surgem, elas mudam muito estruturalmente a sociedade; muda valores, muda perspectiva, elas enfrentam os processos econômicos, e são sempre os mais pobres, os negros que vão pagar. É disso que a gente está falando. Ela muda a conformação familiar, muda renda, a renda individual, a renda de cada casa. Não muda só se você vai trabalhar ou não. De repente, você tem trabalho e morreram três pessoas da sua família, né? Muda muita, muita coisa. Ela também vai estabelecer algo incontrolável, né? Nós não sabemos quantas outras pessoas morrerão depois da pandemia, em decorrência dela. A pandemia, por exemplo, esse vírus constrói trombos, tem muita gente morrendo do coração, será que não tem a ver a pandemia? Fiz teste antes, fiz teste depois, não tem nada a ver, teve uma leve gripe vizinha, como diz o presidente, daqui a pouco tá enfartando, tá tendo uma síndrome qualquer. Então, tem muitas coisas ainda a serem tratadas. Mas ela é pano de fundo porque ela também ajudou a sedimentar algumas crises, sedimentou a crise econômica, a sanitária e a política. Nós vivemos em pleno desgoverno, ao mesmo tempo, continua a desmontar a política, mas na nossa cara, ele não tá fazendo escondido de ninguém. Ele vai falar do dinheiro do auxílio, ele vai falar do plano de contenção do vírus, ele imediatamente privatiza a atenção básica. Se você não olhar direitinho, já era.
Negros têm muito pouca voz política, então, precisa de muitos olhares para essas coisas, como de repente o cara está falando que vai aplicar o plano e tal e logo em seguida tem uma medida de privatização da atenção básica. Então, a pandemia levantou todos esses quadros mas, individualmente, ela trouxe também muitas encruzilhadas. Olha só, nem sei se é bem individualmente, mas olha só, se antes da pandemia, você tinha 13 milhões de pessoas comendo uma vez por dia, quantas pessoas depois da pandemia estão nessa situação? Quanto tempo elas levarão para sair dessa situação? Se você tinha, antes da pandemia, uma pessoa ganhando R$ 80 por dia, para ter uma renda, mais quatro pessoas da mesma família ganhando esses mesmos R$ 80, os R$ 600 [do auxílio emergencial] fez efeito para quem? Sim, para muita gente fez efeito, porque você só ganhava R$ 80 e agora você está ganhando R$600, então, você não está ganhando nos 30 dias o dobro, mas você tem, regularmente, R$600, que é o que você não teria. Você teria até mais trabalhando individualmente, mas numa busca constante. Pelo menos, no final, você tem R$ 600. Então, tem muitos dilemas ainda que a pandemia apresenta. Bom, a
questão de saneamento básico - vai ser resolvido ou não vai ser resolvido? A cidade do Rio de Janeiro toda sem água, da Zona Oeste até a Zona Norte! Também só essas duas áreas, né? Porque uma parte da Zona Leste tem água, e toda Zona Sul tem água, e o Centro também. Então você tem aí dilemas concretos, muito complexos, que a pandemia vai trazer.
A pandemia produziu para as mulheres negras uma invisibilidade e um acúmulo de trabalho, que ultrapassou, né? Na verdade, mulheres negras já têm essa rotina de trabalho, só que agora negras e brancas têm uma rotina de trabalho um pouco diferente, do cuidado da casa, do isolamento em casa, da insegurança. Então, a gente não pode tirar esse pano de fundo do retrato, ele ainda segue. Do meu ponto de vista, ele está desmontando uma das principais políticas, que é o Sistema Único de Saúde, e também está trazendo dilemas para o futuro da saúde no País. Então, acho que a pandemia vai estar sempre ali atrás e a gente olhando, tudo sem base em direitos humanos.
Depois, a Saúde. A pandemia vai nos obrigar olhar essa dimensão de saúde, não só enquanto sistema político, mas a estrutura de saúde do país: que qualidade é essa, para onde ela está indo, como ela se coliga com o meio-ambiente, como não se coliga, que expectativa você tem, como está com as próximas pandemias? Pandemias vão existir a vida toda, algumas provocadas por nós e outras. Não adianta dizer que a culpa é de quem come o morcego, de quem buscou o cachorro, quem pegou o grilo. O problema é: vamos ter novas pandemias, podemos ter uma em cima da outra, inclusive. Como é que a gente vai fazer controle ambiental, fazer um controle da vida, para evitar essas pandemias? Então, a saúde vai ser o foco. Sob o ponto de vista das mulheres negras, uma corrente está começando a crescer para o controle da natalidade de novo. Não necessariamente na mesma ordem, no mesmo valor que foi no passado, mas esse controle que vem pelo controle dos corpos, oferta de insumos hormonais, maior controle da vida sexual (e, se não pode da vida sexual, da vida reprodutiva), mais punição para aborto, mais aceitação de crianças grávidas, casamentos infantis. Não tá simples, não é? Então, eu acho que aí no campo da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos as coisas não ficarão muito tranquilas.
E também tem a questão ambiental, né? Como eu já comecei a falar, ela não para nessa questão da doença, da pandemia. Ela tem ainda outros entraves: nós estamos vivendo crises ambientais, climáticas, de mudanças... como chama essas
coisas de petróleo? esqueci o nome, mas mudança de combustível, de tecnologias também, bem complicado. O mundo tecnológico é outra coisa, né? Então, acho que o ambiente vai chamar muito a nossa atenção nesse período - os resíduos sólidos, a falta de saneamento básico. Bom, tudo coligado. E é claro, na questão ambiental, não só o desmatamento, mas também a perda dos direitos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais vai também estar muito em voga.
Eu acho que ainda tem mais questões aí em relação ao trabalho, mas surge uma oportunidade, que é uma oportunidade complicada, que tem a ver com o novo cenário de debate político, que é o judiciário. O sistema de Justiça tem produzido coisas boas e muito ruins nesse contexto. Não tem mudado, mas tem oferecido uma arena de debate bem importante para as questões sociais brasileiras, e isso é novo, né? E a gente ainda não testou essa capacidade, de como isso vai ajudar ou não, a uma estratégia de ampliação da democracia, de afastamento das forças conservadoras, ainda não deu para gente ver.
Mas esse cara passou esse tempo inteiro sem apresentar um plano. Foi preciso o STF pedir para ele dizer que plano é, né? Ele não tá dizendo mais plano da contenção da covid, mas da distribuição da vacina. Está ruim? Tá! Não é eficaz? É verdade! Mas ele teve que fazer, e ele não ia fazer, ele não ia nem comprar vacina. Essa que é verdade. Então, a gente tem que olhar o campo da Justiça, que é um campo minadíssimo, mas que tem apresentado a possibilidade de arranjo. Eu acho que o campo do trabalho e, sobretudo, olhando as tecnologias, mudou e vai mudar mais. Assim como tem gente que nunca mais vai voltar para o escritório e vai ficar Home Office, assim também vai ter mudanças enormes na estrutura do trabalho nesse período. Não só por causa da covid, mas porque as tecnologias avançaram muito – a coisa levaria cinco anos e foi feita em meses. E só não foi feito mais porque o 5G ainda está em disputa, né? Quem vai botar, quem vai fazer? Mas a hora que acabar essa disputa, vão disparar novos equipamentos, novos meios de comunicação, vão mudar as regras de comunicação, e também vai mudar o acesso ao trabalho, a maneira de funcionar, de trabalhar, então, é um pouco isso.
relação entre o movimento social e academia. Você começou falando da sua história, falando da universidade, falando da sua trajetória. E a partir desse seu conhecimento, dessa sua história toda de lutas, a gente queria saber um pouquinho o que você espera da Universidade na relação com os movimentos sociais.
Não é um julgamento sobre, mas sobre o que se tem produzido, e como isso ajuda ou não, as dimensões, os debates e as discussões sobre os movimentos sociais. Eu acho que a gente já foi mais pautado, mais articulado. Hoje eu acho que tem menos. Por exemplo, as meninas me procuram muito para essa coisa da justiça reprodutiva, da violência obstétrica, dos direitos sexuais e reprodutivos. Eu fico impressionada que aqueles estudos não dialogam conosco. A gente até convida para vir falar, mas eles não dialogam com aquilo que a gente está vendo na realidade, né? Por exemplo, recentemente a gente fez um esforço de judicialização da morte materna. Não tinha ninguém na academia pensando nisso, ninguém, a gente procurou. Vamos ver se elas estão pensando nisso lá no judiciário, lá nas escolas de magistratura, nas universidades. Não achamos. É claro, você tem aí toda uma corrente voltada para quem está posicionado nessas pesquisas, então, tem
muitas discussões identitárias que são muito interessantes, muito a ver com a realidade. Mas na prática, olhando e conversando com os movimentos, elas ainda não estão. E também, tem aí uma ideia de chancela do que vem dos movimentos sociais, que podem ou não ser necessariamente alvo dos conhecimentos produzidos, entendeu? Então digamos, tenho muita questão em relação à violência do Estado, e aí, às vezes, o estudo vai falar mais da confirmação daquilo que uma mãe falou: “ah, o Estado é violento”, do que necessariamente vai argumentar, pesquisar, discutir esta premissa do que significa a violência do Estado? Como a gente está posicionando isso? Se é para contar a história daquela situação ou daquela vida, ok, perfeito. Mas se é para indagar a realidade, indagar os processos, ver o comportamento do Judiciário, ver mesmo um fenômeno atroz... Não sei, eu tenho críticas. Eu também confesso que tenho lido pouca coisa, então, certamente, pode ser que eu esteja muito atrasada nesse debate. Mas o que eu tenho prestado um pouquinho mais de atenção, a partir dessa história, é a produção negra, que é uma produção complexa, que tem de tudo. Tem decolonialidade, generalidade. A pergunta é: como isso se conecta ou não com a realidade, com as questões que as pessoas estão vivendo, apresentando? Não que necessariamente os estudos precisam ter essa obrigatoriedade. Ter uma certa funcionalidade, um certo resultado, mas a maioria das produções que têm informado os movimentos, não estão vindo das universidades, estão vindo de outros grupos e de outros setores. Por exemplo, tudo de violência que ocorre você tem dois ou três fóruns, de cidadania, de segurança, o CESEC [Centro de Estudos de Segurança e Cidadania]. Necessariamente, até pode estar dentro da Universidade, mas não está articulado com a produção de conhecimento, sabe? Você tem outros meios. Agora mesmo a gente viu o JacaLab, Laboratório de Dados do Jacarezinho; o Datalab, Observatório de outra favela. Isso também ajuda. Melhorou também a capacidade de outros setores construírem dados, esses dados serem reivindicados como verídicos, legítimos e também, a partir deles, criar-se novos processos de conhecimento. Isso aí para mim é fantástico, acho muito bom. Se você vai ver como está o saneamento de parte da cidade do Rio, é através do Cocôzap8, não vai ser pelas universidades do Rio de Janeiro. Em que pese, que você sabe que deve ter alguém lá fazendo essa discussão, de outro lado, essa vida acadêmica tem empurrado as pesquisas e
8 Projeto de geração cidadã de dados sobre saneamento básico em favelas do Rio de Janeiro. Disponível em: https://medium.com/cocozap. Acesso em 09/02/21 às 21h.
os estudos para determinados guetos, para determinados formatos, para determinados processos. Recentemente, no último congresso da ABRASCO, que é a Associação Brasileira de Saúde Coletiva - eu faço parte do GT de Raça e Saúde e dentro do GT a gente criou um subgrupo de iniquidades em saúde -, apareceu coisas demais, coisas de profissionais e coisas da academia. Tem estudo que eu acho que é porcaria, porque falava de raça de um jeito que você fala: “de onde essa pessoa tirou isso?” E tem outros que são brilhantes, conectam as coisas e tal. Recentemente, olhando um estudo de um cara, que não sei o porquê ele estava participando desse grupo, acho que inclusive ele fala da questão racial e ele queria um pouquinho mais de conforto. Estava ele e o seu orientador na apresentação do trabalho, então quer dizer chancela. Olha que coisa interessante! Ele está olhando, onde ocorreu a tríplice epidemia, o cuidado com saneamento básico e câncer do colo do útero. Por quê? Porque quando ele começou a estudar onde estava batendo numa dada região, ele achou numa região do Nordeste, que foi o lugar que mais teve Zika vírus. Quando ele desenha o mapa, que ele puxa a incidência da tríplice epidemia, ele também puxa a coisa da água, da água do esgoto, porque a maioria desses lugares não tinha acesso a água potável. Ele descobre que essas águas todas têm alto nível de coliforme fecal, e, por causa disso, essas águas recebem mais produtos químicos do que em outros lugares. E por causa disso, não sei como, ele encontra uma incidência maior de câncer de colo do útero. Seu estudo quer saber, então, o que tem a ver essas coisas com a maior incidência de câncer de colo do útero. Quando que a gente vai conhecer isso para agir? Ele vai conseguir publicar esse estudo em uma revista especializada. Ele vai conseguir fazer um seminário para cientistas. Mas o movimento só vai saber, se estiver na academia, ou buscando esse estudo. Aqui tem uma ação de incidência política importantíssima, mas se ele não fizesse essa correlação, nada vai acontecer. Mas é para isso que os estudos são feitos? Claro que não! E se eles não estão disponíveis - e agora até que estão muito-, se eles não dialogam, a gente não consegue utilizar os resultados desse processo. Então, a gente não sabe se essa tese nasce das denúncias, se essa tese nasce da coincidência dos estudos, se essa tese nasce de um circuito, de um de uma série histórica que ele já estava seguindo com o seu orientador há muito tempo. A tese dele vai bater com a realidade? Claro que vai! Há um problema grave de saneamento básico no Brasil; há um problema grave no cuidado das águas; há um problema grave de tríplice epidemia, e por acaso, tudo isso cruzado deu câncer no
colo de útero em mulheres. Eu acho isso. Eu não sei se o momento é novo, de novos processos, de novas estruturas, mas aquela relação direta movimento e universidade, não tem mais. Eu acho que a gente tem mais expectativa que a universidade pudesse produzir mais coisas, suas coisas só para si, suas coisas só para ciência, mas suas coisas que conectam com a sociedade. Engraçado que esse, talvez, possa ser um momento especial para isso, né? Tem muitos observatórios, por exemplo, Direitos Humanos e Covid, dentro das Universidades. Tem observatórios da Universidade que estão olhando a judicialização. Pode ser que você encontre aí uma massa de gente trabalhando para essa relação, para dar suporte a essa relação. Mas são poucos os estudos que têm embasado as discussões. Talvez o problema não seja nem os estudos, me ocorreu aqui. Na verdade, esse ponto é só chute, né? Vocês estão vendo, né? Mas olha só o que me ocorreu aqui. Sabe que toda vez que a gente precisa procurar dados sobre o presídio, mulheres, a gente vai lá na Fiocruz? A Fiocruz só trata de saúde, né? Mas aí você vai lá e você tem toda uma demanda. A Fiocruz é a instituição que mais pesquisa encarceramento. Agora, ano passado saiu “Nascer nas prisões”, dali você vai descobrir todo um repositório de debate sobre saúde e aprisionamento, sobre saúde e confinamento e tal. Outro lugar é a FGV. É mais fácil você encontrar coisas de políticas públicas lá, centradas, estabelecidas. Eu não sei se é a estrutura das Universidades, ou se elas não estão preocupadas na divulgação. Tem também a UNB: todo dia, agora, quem tem relação com a UNB, recebe uma lista de lá com o livro que foi publicado. Acho que é mais da livraria e da biblioteca, do que necessariamente dos cursos. Mas são raras as vezes em que os estudos saem desses muros, né? E torno a dizer, estou falando isso de boca para fora, sem experimento. Talvez eu não seja a melhor pessoa para falar disso, mas eu via mais uma ligação né? Você sabia que determinado núcleo fazia determinado estudo e você já ia direto, né? Eu, por exemplo, quando eu quero saber de políticas públicas, vou direto à FGV. Não devia ser meu lugar preferido. Poderia ser a UFRJ, que tem todo laboratório, a UFF, que tem todo laboratório de pesquisa nesse campo de estudo. Eu não sei o que tá acontecendo não, mas o que eu tô de olho mesmo é nas pesquisas produzidas por negros. Como é que essas pesquisas estão sendo veiculadas entre nós? Como é que elas estabelecem, qual o tema que a gente tá trabalhando, se elas estão nos empurrando sobre o ponto de vista dos movimentos para outras questões, se elas só estão referendando ou dando força ao tema que a
gente trabalhava antes, se elas estão trazendo novidades, ou se elas estão trabalhando fatiados. Por exemplo, agora, o Cebrap abriu o Cebrap Covid, se juntou com o Nexo9 (a Marcia Lima trata disso, desigualdade racial e covid. Ela não vai tratar disso a vida toda, mas o ponto chave, quando eu quero saber de desigualdade racial, eu tenho que ir lá, porque lá está todo o material, o material está organizado). A PUC fez recentemente, também, no laboratório de tecnologia, um espaço desses. Os primeiros dados sobre assimetria, raça e covid foi feito por eles. Então é isso. Acho que tem também a ver com o papel das Universidades.
9 Nexo Jornal – um veículo de jornalismo eletrônico brasileiro independente, fundado em novembro de 2015. Disponível em: https://nexojornal.com.br
Então, são pautas que estão interligadas. Por isso, você muito bem coloca ao longo da sua fala, a luta antirracista. Ela é uma luta muito maior do que elementos pontuais de combate ao preconceito, ou outras questões que são também necessárias de serem combatidas. Mas vai tocar na saúde, na educação, traz aí a denúncia da violência, todos esses elementos que você pontuou muito bem.
Eu gostaria muito de agradecer à Lúcia, dizer que é um prazer estar aqui trocando com uma militante de longa data, né? Que a gente respeita a história e trajetória. Você falando de IPCN, de vários espaços antigos de luta. Nós temos muitos desafios, não é, Lúcia, para a gente chegar nesse combate ao racismo. Mas a gente sabe o que a gente quer! A gente não quer, pelo menos não queremos, isso que nos ofertam aí. Que é um antirracismo liberal. A gente quer que, de fato, a população negra tenha direitos, tenha condições mínimas de vida, o que você colocou muito bem na sua fala. Eu vou passar para Lúcia, então, se Tati e Cris não tiverem algumas considerações. E eu gostaria de ler um poema da Conceição no final, acho que ficou tão bonita conversa e eu me senti, assim, motivada.
fortalecer o sentido social e político mesmo, desse lugar do conhecimento, é estéril. E te agradecer demais. Acho que foram 2 horas muito, muito, muito ricas.
“A voz de minha bisavó ecoou criança
nos porões do navio.
Ecoou lamentos
de uma infância perdida.
A voz de minha avó ecoou obediência
aos brancos-donos de tudo.
A voz de minha mãe ecoou baixinho revolta
no fundo das cozinhas alheias debaixo das trouxas roupagens sujas dos brancos pelo caminho empoeirado rumo à favela.
A minha voz ainda ecoa versos perplexos com rimas de sangue
e fome.
A voz de minha filha
recolhe todas as nossas vozes recolhe em si
as vozes mudas, caladas engasgadas nas gargantas. A voz de minha filha recolhe em si
a fala e o ato.
O ontem, o hoje, o agora.
Na voz de minha filha
se fará ouvir a ressonância o eco da vida-liberdade.”
V.19, nº 38, 2021 (jan-abr) ISSN: 1808-799 X
Liliane Bordignon3
Qual o lugar do trabalho da mulher na indústria metalúrgica brasileira nos anos 2010? Essa é a pergunta que conduz o livro de Thaís Lapa, recolocando no campo das ciências sociais a importância de se pesquisar as particularidades das condições e da organização do trabalho fabril de mulheres no tempo presente. A autora, que no apêndice do livro mostra-se, ela mesma, filha de metalúrgico de grandes montadoras do ABC Paulista e observadora das mudanças na região brasileira que mais concentrou fábricas e lutas operárias no século XX, apresenta uma relevante contribuição à sociologia do trabalho com essa publicação. Dessa forma, oferece ao leitor(a) dados primários e análises pertinentes àqueles que buscam compreender a sociohistória das metamorfoses do trabalho, sem perder de vista as relações de sexo e classe, entendidas como consubstanciais na conformação das relações sociais.
O livro é resultado de pesquisa de doutorado, realizada entre os anos de 2015 e 2019, por meio da qual a autora coletou e analisou 48 depoimentos de operárias(os) do setor metalúrgico. Uma parte dessas(es) trabalhadoras(es) consultadas(os) estava vinculada às empresas montadoras de veículos de passeio ou às fornecedoras de autopeças do ABC Paulista e, outra parte, às indústrias eletrônicas da linha verde4 no interior de São Paulo. Trata-se de empresas transnacionais “que ocupam posição de ‘ponta’ das cadeias produtivas internacionais”, realizando a montagem final dos produtos no Brasil (p.52). Na década de 1970, o estado de São Paulo detinha
1 Resenha recebida em 10/02/2021. Aprovada pelos editores em 12/02/2021. Publicado em 25/02/2021. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v19i38.48727.
3
2 Livro publicado por Thaís Souza Lapa, em 2020, pela Editora Lutas Anticapital, Marília/SP (563p). Doutora em Educação - Faculdade de Educação da Unicamp (2020).
4
E-mail: lilianebordignon@yahoo.com.br; Lattes: http://lattes.cnpq.br/7691860854267371. ORCID: https://orcid.org/ 0000-0002-2865-3332.
Linha verde se refere a empresas do setor eletrônico que montam telefones celulares e equipamentos de informática. A linha verde “é a responsável pela fabricação de desktops, notebooks, impressoras, servidores e outros periféricos de informática, além de aparelhos de telefonia celular” (p.93).
aproximadamente 60% do valor de transformação industrial do país, concentrada na região do ABC. Atualmente, mesmo que o estado concentre a participação na transformação industrial do país, houve um deslocamento da produção para o interior (Campinas, Taubaté, São José dos Campos, Sorocaba), que em 2004 detinha 62% do valor produzido no estado (p.108-109).
A autora realizou visitas em duas dessas fábricas observando o processo produtivo, o que tem se tornado uma prática científica mais difícil nos últimos anos, devido à resistência das empresas. A partir desses dados, ela traça as semelhanças e diferenças entre o trabalho de homens e mulheres, abordando, principalmente, as relações de trabalho constatadas em quatro dessas empresas: duas automotivas e duas eletrônicas. Com isso, o(a) leitor(a) é capaz de compreender a posição dessas indústrias no setor produtivo brasileiro e a organização do trabalho nas fábricas, as divisões entre os sexos, seus postos, ritmos, movimentos, salários, formação etc.
O texto está organizado em quatro capítulos, além da introdução, conclusão e apêndices. Em resumo, no primeiro capítulo, é apresentada a configuração do trabalho metalúrgico no Brasil; no segundo, as formas históricas de segregação das mulheres no trabalho industrial; e no terceiro e quatro são reveladas as condições de trabalho das operárias nas referidas empresas metalúrgicas e a experiência de trabalho nesse contexto. A partir dessa estrutura, caracterizando as condições de trabalho nas fábricas e as práticas sociais das operárias a partir de dados primários, a autora evidencia “como o trabalho é diferencialmente atribuído e valorado entre os sexos” (p.29), demonstrando que as mulheres estão segregadas nos postos mais desvalorizados, penosos e com baixa remuneração.
Houve deslocamento de parques produtivos pelo mundo, associados às novas formas de organização do trabalho flexível, sob a égide do capital financeiro. A análise chama atenção para as particularidades do Brasil, ressaltando as formas de rebaixamento das condições de trabalho e o forte processo de precarização da indústria. Nesse sentido, posiciona o(a) leitor(a) sobre a situação da classe trabalhadora no país sem homogeneizá-la, demonstrando as particularidades das ocupações e postos de trabalho. Coloca em evidência como as operárias, principalmente no setor eletrônico, são fortemente atingidas pelas mudanças, acometidas pela dupla jornada (trabalho produtivo e doméstico) e pela segregação em postos rebaixados em termos ergonômicos e salariais, submetidas a condições
penosas. Em geral, as trabalhadoras são escolarizadas, a maioria havia cursado o ensino médio, tanto no setor automotivo como no eletrônico, o que não se reflete em seus postos de trabalho.
Thaís Lapa demonstra que no processo de “realinhamento neoliberal” (2016- atual) o setor automotivo está passando por um movimento de precarização, aproximando-se da configuração do setor eletroeletrônico. Afirma a autora: “o segmento automotivo (...) segue o caminho da desnacionalização dos conteúdos fabricados no Brasil que já trilha o eletroeletrônico, o que redunda na redução da participação dessa indústria na economia e na geração de empregos do país” (p.145). Essas transformações estão levando a uma remasculinização do setor automotivo, que só passou a acolher mulheres com muita resistência e foram elas as primeiras a serem demitidas ou colocadas em layoff. Segundo a autora, a mixidade no trabalho metalúrgico é frágil, o que significa que mesmo ocupando postos idênticos, homens e mulheres exercem trabalhos diferentes e recebem salários desiguais.
A forma que assume o trabalho na indústria é revelada pela voz das trabalhadoras(es), no sentido conferido por E. P. Thompson, conformando na pesquisa um diálogo entre a experiência operária e os estudos brasileiros e franceses sobre as relações sociais de sexo no trabalho. Dessa forma, a autora reposiciona a análise do “gênero do trabalho operário” em um contexto histórico no qual grandes montadoras estão fechando suas fábricas no ABC Paulista e aprofundando o processo de desindustrialização da região e aumentando os índices de desemprego. As práticas sociais de operárias são compreendidas e caracterizadas principalmente em diálogo com estudos das sociólogas Danièle Kergoat e Helena Hirata, aportes teóricos da pesquisa. Essas práticas são analisadas considerando o contexto de mudanças na organização do trabalho, no qual elas foram atingidas pelo princípio da flexibilidade, acompanhado por processos de precarização laboral que atingem de forma diferenciada os gêneros. Essas transformações se estabeleceram após um período de desenvolvimento social nos governos do Partido dos Trabalhadores (2003-2015), o que as tornou ainda mais complexas. Nesse sentido, uma das contribuições trazidas pelo texto para a análise da divisão sexual do trabalho no Brasil é revelar o movimento de precarização do setor metalúrgico Paulista nesse processo de inflexão neoliberal – um setor historicamente masculino e com forte
atuação sindical – que tem aproximado a experiência de trabalho dos homens das circunstâncias precárias vivenciadas pelas mulheres no trabalho há tempos.
Thaís Lapa demonstra que as relações de conflito entre homens e mulheres, na fábrica e na sociedade, promovem diferentes tipos de violência sexista. Os homens acabam se protegendo em grupos e subjugando as mulheres, que frequentemente não são vistas como trabalhadoras e profissionais, mas “apenas como mulher”, reproduzindo uma ordem patriarcal de gênero. Elas são, em geral, mais qualificadas que os homens, no entanto, segundo os depoimentos, são desvalorizadas e desacreditadas em alguns tipos de postos. No setor eletrônico, marcado pela fragmentação de tarefas, as mulheres são alocadas nos postos com mais repetição de movimentos, bastante taylorizados, sem revezamento e em ciclos curtos, resultando em adoecimento laboral a longo prazo. O setor automotivo também é marcado por essas características, “aqui é bem Chaplin” (p.304), afirma um dos trabalhadores entrevistados, ainda que as condições sejam melhores em comparação ao eletrônico.
Nos depoimentos coletados é possível verificar que as(os) trabalhadoras(es) possuem problemas de saúde decorrentes do trabalho, no entanto, muitos deles não são reconhecidos como laborais. Nas fábricas, elas (e eles) estão submetidas a riscos de acidentes; riscos químicos; adoecimentos relacionados às más posturas, carregamento de pesos e trabalho repetitivo e adoecimentos psíquicos (p.361). O adoecimento de mulheres devido a execução de trabalhos repetitivos ou a tensões e assédios no ambiente laboral são os mais questionados, promovendo um ocultamento dos problemas. Os trabalhadores acidentados e/ou adoecidos são discriminados nas empresas, segundo uma trabalhadora entrevistada: as “pessoas que têm restrição médica, automaticamente o encarregado vê com maus olhos, então, ele tenta dificultar as coisas para eles também” (p.433). A autora ressalta que a sobrecarga promovida pelo trabalho doméstico nas trabalhadoras é completamente desconsiderada.
Os sindicatos representantes de trabalhadores das metalúrgicas, majoritariamente masculinos, são muitas vezes refratários às pautas das trabalhadoras. Os coletivos de mulheres no interior dos sindicatos têm sido um espaço no qual elas têm podido apresentar e discutir suas particularidades e demandas. Em geral, são auto-organizados pelas mulheres em busca de espaços nos colegiados. É ali que as mulheres podem reivindicar direitos específicos, como extensão da licença
maternidade, aumento salarial, reconhecimento do adoecimento laboral, combate ao assédio moral e sexual no trabalho etc. As trabalhadoras têm dificuldade de até mesmo participar do sindicato devido ao peso do trabalho doméstico, nas palavras de uma delas: “a mulher não, ela tem que se preocupar com quem ela vai deixar o filho, como que vai ser na hora do almoço, até que horas vai, como ela vai e como volta. Tem toda uma ‘fábrica paralela’ na cabeça das mulheres” (p.458). O livro de Thaís Lapa contribui com a compreensão dessas “duas fábricas paralelas” nas quais as mulheres trabalham: a metalúrgica e a casa. Por isso, é uma leitura recomendada àqueles(as) que querem compreender a produção de mercadorias e da vida no tempo presente.
V.19, nº 38, 2021 (jan-abr) ISSN: 1808-799 X
GONÇALVES, Scheilla Nunes2. “Mulheres dos escombros”: A condição das mulheres periféricas em tempos de catástrofes. 2018. 208 p. Tese (Doutorado). Programa de Pós-graduação em Serviço Social. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro.
Nos efervescentes debates atuais do feminismo é comum encontrar expressões de assombro com a atualidade do patriarcado – “como é possível tal fato em pleno século XXI?” Parece que numa esquina do progresso deu-se de cara com uma imensa névoa de conflitos atávicos, e na penumbra apareceram imagens misóginas de pura regressão. Ocorre, no entanto, que pensar o quadro em que vivemos exige romper tanto com os ideais de desenvolvimento que giraram em falso no patriarcado capitalista quanto com o próprio. O absurdo e a vantagem do aprofundamento da crise atual concentram-se justamente neste ponto nevrálgico: quanto mais difícil parece ser enxergar em meio a tantas sombras, mais evidente se torna a conjunção de fatores que atestam os limites de um colapso mundial, que mesmo sendo um processo de dimensão e temporalidade imprevisível (no sentido da definição de qualquer marco cabalístico), já nos aproxima de fronteiras concretas imediatas, como a falta mais generalizada de emprego para as novas gerações, o esgotamento dos recursos naturais, e o exacerbado caos das grandes e falidas metrópoles. A brutalidade da crise do patriarcado capitalista parece reconstituir a
1 Resumo recebido em 31/07/2020. Aprovado pelos editores em 14/08/2020. Publicado em 25/02/2021 DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v19i38.44361.
2 Doutora em Serviço Social pelo Programa de Pós-Graduação da Escola de Serviço Social da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Tem atuado principalmente nos seguintes temas: crise do capitalismo, feminismo, violência contra a mulher, crítica ao desenvolvimento.
E-mail: scheillanunes@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/9368536880355595. ORCID https://orcid.org/0000-0001-6167-8833.
3 Tese defendida em 02 de março de 2018 no Programa de Pós-graduação em Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro, sob orientação do Prof. Dr. Marildo Menegat.
feminilidade como matéria-prima, evocando os sacrifícios através dos quais esta forma social foi instituída.
As análises em torno das condições em que vivem as mulheres – e a violência a que estão submetidas – no Brasil contemporâneo, em geral, não aprofundam dois pontos que considero fundamentais para tatearmos a complexidade da realidade na qual as questões que envolvem a temática do sexismo se inserem atualmente: os elementos que são constitutivos e, portanto, específicos da determinação patriarcal capitalista; e a sua atual crise estrutural. Sem o aprofundamento destes dois pontos corre-se o risco, creio, de se embarcar mais uma vez em análises desenvolvimentistas, punitivistas e inócuas. Insiste-se na ideia de superação dos “atrasos” históricos da sociedade brasileira, como quem crê num horizonte mais democrático, mais plural e menos violento, de um porvir “civilizatório” sempre adiado, quando na verdade o que se apresenta aos nossos olhos é o sombrio desmoronamento de uma forma social que nada mais pode oferecer – e não é só no território brasileiro.
Afora alguns lampejos de novidades no âmbito de reações ativas, parece ainda bloqueada a abertura para ensaios que procuram se desenvolver sobre bases teóricas e reflexivas não hegemônicas e que, por isso, podem sugerir a retirada do chão sobre o qual ainda pisam nossos pés. Entretanto, apreender o atual aprofundamento da violência misógina na chave histórica de um problema que decorre apenas da exclusão das mulheres dos espaços de poder tradicionais, tal como considerar que se pode solucionar a pauperização que se generaliza apenas com a reivindicação de empregos e desenvolvimento, significa investir energia justamente no motor desta forma social que mais do que nunca atua como uma “máquina de moer gente”. Significa, sobretudo, não levar a sério os resultados objetivos de experiências históricas que levaram ao limite determinadas expectativas de progresso nos termos das categorias da forma-valor, como são os casos emblemáticos da União Soviética e também do Estado industrializado europeu, tanto no que se refere às possibilidades emancipatórias do desenvolvimento das forças produtivas quanto ao intento de igualdade jurídica entre homens e mulheres.
A década de 1990 é um marco para aqueles que a sentiram como um divisor de águas no balanço dos resultados da modernização capitalista. Na contracorrente das explicações pós-estruturalistas de apreensão da pós-modernidade, a crítica do
valor procurou explicar o colapso do bloco soviético com categorias marxistas, indo, no entanto, além dos fundamentos do velho movimento operário, colocando no centro a categoria do valor e lendo Marx desde este ponto de vista. No âmbito das formulações da crítica do valor, que iria desenvolver a partir de então a crítica ao trabalho abstrato e a teoria da crise, Roswitha Scholz, ao observar estas questões sob a lente de preocupações da teoria feminista trazidas desde maio de 19684 – e, dentre outras coisas, da caça às bruxas –, pensa a formulação de “o valor é o homem” e se dá conta da importância de estabelecer uma relação destas elaborações com a “Dialética do Iluminismo” e a lógica da identidade de Adorno. Assim, num sentido diverso das concepções que conformam a desconstrução própria ao relativismo cultural – segundo a qual, por exemplo, o gênero poderia ser entendido não como uma realidade objetiva e fixa, e sim como algo negociável discursivamente, de modo à hipostasiar as diferenças e ignorar o papel da estrutura na determinação da violência
–, Scholz propõe através do valor-dissociação um modo de entender o nexo que une domínio da natureza, opressão da mulher e racismo. E analisando a crise, na perspectiva do valor-dissociação, a autora afirma que a atualidade da pós- modernidade revela que a totalidade fragmentada não leva à emancipação, mas antes à barbárie.
Impulsionada pela impactante tese de Scholz, estive mobilizada no decorrer desta pesquisa, porém, em pensar o aprofundamento da crise civilizacional e da violência sexista, efetivamente desde a periferia do capitalismo, território no qual a constituição e o desenvolvimento do capitalismo representaram uma constante acumulação de escombros. Neste sentido, meu esforço inicial foi estabelecer um nexo entre a contribuição da crítica do valor alemã, notadamente de Kurz e Scholz, com as elaborações de Marildo Menegat que, sintonizadas com este campo do pensamento, foram pensadas do ponto de vista da realidade brasileira. Desde o mesmo marco temporal do fim do bloco soviético, Menegat começou a pensar a barbárie e a crise da modernidade, também influenciado pelo traço contra intuitivo da crítica ao progresso de Adorno e a primeira geração da Escola de Frankfurt. Sua apreensão a respeito da constituição do capitalismo no Brasil, a partir de um balanço da tradição crítica brasileira e o vínculo que estabelece entre uma “crítica da economia política da
4 Como, por exemplo, integrar marxismo e feminismo, e como estabelecer um nexo entre capitalismo, a repressão das mulheres, a destruição da natureza e os processos de colonização no terceiro mundo.
barbárie” e a particularidade periférica (o que inclui a crítica ao trabalho abstrato e uma leitura da crise), configura no período seguinte – marcado no Brasil pelos governos petistas e pelas fantasias em torno do desenvolvimento – uma análise dissonante do espírito do tempo.
Nessa perspectiva, também procurei evidenciar, através do fio condutor histórico-processual da colonização e da escravidão 5 , sobretudo no contexto brasileiro, a relação violenta entre desenvolvimento das forças produtivas, direitos e punição6, porquanto foi a chamada “exteriorização dos custos” (Mies) que determinou, mesmo no período de ascensão do capitalismo, sobre quem recairia o reverso obscuro da forma valor e da sua aparência civilizatória – no Brasil a condição da mulher negra é a que sintetiza de modo emblemático este quadro de sobrecarga e violência.
No domínio do constructo lógico da teoria crítica, não é possível apontar saídas para uma forma sistêmica que ao mesmo tempo em que desmorona se mantém apoiada em complexos mecanismos de dominação e destruição. Nem seria papel de uma simples pesquisa projetar soluções ou conclusões para os dilemas da humanidade. Contudo, procuro destacar a importância de adquirirmos recursos que nos permitam, no mínimo, discernir o que é urgente negar. Ademais, no âmbito da realidade periférica, a experiência já se encontra profundamente marcada pela necessidade de serem pensadas formas de sobrevivência que não dependam das expectativas no desenvolvimento capitalista, mas que, ao contrário, se coloquem contra este. Não se trata de tornar virtude o que é necessidade, mas de reconhecer que no lugar de nos voltarmos contra o cuidado para buscarmos os espaços destrutivos de poder, talvez seja mais razoável considerar a possibilidade de redimensioná-lo. O que não significa aceitar passivamente a instrumentalização estatal, que atribui às mulheres a tarefa de administradoras bem adequadas do colapso, e sim pensar esta condição no sentido de romper com as aspirações idealistas que giraram em falso na modernidade – nos termos da identidade com esta forma social e dos seus mecanismos de destruição – e assim, quem sabe, limpar o
5 Neste ponto foram determinantes os estudos das abordagens decoloniais e da crítica formulada pelo feminismo negro que explicam a invenção da raça e seus impactos na realidade periférica.
6 No âmbito da crítica aos mecanismos punitivos, foi importante o esforço de apreensão da criminologia
crítica abolicionista (especialmente através de Malaguti e Batista); configurando-a como um vínculo que procurei, nos limites da incursão que me foi possível, estabelecer enquanto um dos eixos fundamentais da minha elaboração.
campo de visão, de forma a abrir caminho para que possam ser ao menos experimentados novos campos de resistências, preocupados em tornar o cuidado com a vida um critério horizontal.
MENEGAT, M. A crítica do capitalismo em tempos de catástrofe: o giro dos ponteiros do relógio no pulso de um morto. Rio de Janeiro: Editora Consequência, 2019.
MIES, M.; SHIVA, V. Ecofeminismo. Lisboa: Instituto Piaget, 1993.
SCHOLZ, R. O valor é o homem. Teses sobre a socialização pelo valor e a relação entre os sexos. Novos Estudos – CEBRAP, n 45, pp. 15-36, jul.1996.
. Escisión del valor, género y crisis del capitalismo. Entrevista com Roswitha Scholz, [Entrevista cedida a] Clara Navarro Ruiz. Constelaciones, revista de teoria crítica, Madrid, n 8/9, pp. 475-502, 2017.
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PEREIRA, Célia Barbosa da Silva2. A relação entre movimento feminista e partidos políticos no Brasil no contexto de acirramento da crise capitalista, 2008-2017. 2019. 555 p. Tese (Doutorado). Programa de Pós-Graduação em Política Social. Universidade Federal do Espírito Santo. Vitória.
O trabalho aborda os movimentos sociais contemporâneos, especificamente a sua relação com os partidos políticos no contexto das manifestações massivas e movimentos sociais que começaram a despontar em diferentes países do globo a partir do final da década de 2000. A espontaneidade na origem das manifestações, a recusa de espaços políticos e formas de lutas tradicionais (parlamento, sindicatos, partidos políticos), o perfil jovem dos manifestantes, a horizontalidade na organização, a pluralidade de bandeiras de lutas, a ocupação de espaços públicos e o uso das novas tecnologias da informação e comunicação, foram as principais características destacadas por diversos autores. Essa onda movimentalista trouxe à tona uma crise política expressa ora como crise de legitimidade dos partidos, ora como crise de institucionalidade da função dos partidos e ora como crise da democracia representativa.
A eclosão desta onda foi analisada por autores de diferentes correntes teóricas, como embates contra os efeitos da crise capitalista atual (CASTELLS, 2013; GOHN, 2014a; HARVEY et. al., 2012; BRAGA, 2015). Esta crise é compreendida no trabalho como expressão do desdobramento da crise estrutural do capitalismo de finais dos anos de 1960 (CARCANHOLO, 2017). Tendo em vista que para os movimentos que
1 Resumo recebido em 23/11/2020. Aprovado pelos editores em 24/11/2020. Publicado em 25/02/21. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v19i38.47324
2 Assistente Social. Doutora em Política Social pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).
E-mail: celiabsp@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7662-2197
Lattes: http://lattes.cnpq.br/9531241164462817
3 Tese defendida em 03 mai. 2019, pelo Programa de Pós-Graduação em Política Social, sob orientação da profª Drª Ana Targina Rodrigues Ferraz, com bolsa FAPES.
surgiram no contexto desta onda, a autonomia e o apartidarismo significam o distanciamento e/ou a negação dos partidos políticos como canais efetivos de representação, perguntamos: esta tendência se aplicaria aos partidos de esquerda e aos movimentos sociais consolidados?
A partir de uma primeira revisão bibliográfica4 do tema sintetizamos três formas possíveis de relações entre movimentos sociais e partidos políticos: 1) relação de distanciamento ou mesmo de negação, 2) relação utilitarista, 3) relação orgânica.
Na primeira, a compreensão dos movimentos sociais sobre o contexto atual os conduz a uma descrença em relação à luta político-partidária pela conquista do poder institucionalizado como via para a universalização de suas conquistas particulares. Há uma compreensão, um tanto fatalista, dos limites do sistema institucional para garantia da democracia real, da corrupção como uma suposta natureza geral dos partidos e dos políticos profissionais, resultando no distanciamento ou mesmo negação dos partidos políticos. Os partidos políticos perdem legitimidade na luta política.
Na segunda, a compreensão dos movimentos sociais sobre o papel do partido na luta política, a partir de um viés utilitarista, gera uma aproximação entre movimentos e partidos focada nas demandas dos movimentos. A relação de aproximação é pragmática. Os movimentos sociais se aproximam de qualquer partido político no poder para o atendimento de suas demandas.
E, na terceira, a compreensão dos movimentos sociais sobre o papel do partido na luta política, a partir de um viés instrumental fundado na orientação ideológica, leva os movimentos sociais a uma maior aproximação dos partidos de esquerda, sobretudo em contextos de crise. Os movimentos sociais demonstram uma compreensão quanto ao papel do partido político como instrumento de mediação na luta política pela transformação social. Os contextos de crise propiciariam uma articulação ainda maior entre estes sujeitos. A relação é caracterizada pelo vínculo orgânico entre estes sujeitos coletivos, que se identificam como parte da mesma luta.
Estas formas de relação entre movimentos sociais e partidos políticos são comuns em diferentes momentos históricos. Assim, questionou-se: que forma de relação (distanciamento/ou negação, utilitarista, orgânica) é hegemônica entre movimentos sociais e partidos políticos de esquerda no Brasil na atualidade? A partir disso, o trabalho busca responder o seguinte problema de pesquisa: Como tem se
4 Ghiraldelli Jr (1987); Sader (1991); Doimo (1995); Castells (2013); Gohn (2014a) etc.
expressado a relação entre movimento feminista e partidos políticos de esquerda no Brasil no contexto de acirramento da crise capitalista? E toma como objeto de estudo a relação entre movimento feminista e partidos políticos de esquerda no Brasil, no contexto de acirramento da crise capitalista, 2008-2017. Tendo como como objetivo geral demonstrar como tem se expressado esta relação, no período supracitado, propomos a tese de que, no Brasil, a relação atual entre movimentos feministas e partidos políticos de esquerda sinaliza uma relação de novo tipo, baseada na compreensão dos movimentos sociais de que são sujeitos políticos e cumprem a mesma função dos partidos no direcionamento da luta política da classe trabalhadora.
A escolha do movimento feminista deveu-se a inúmeras razões: as mulheres estão entre os segmentos mais afetados pela crise, têm apresentado um protagonismo expressivo no campo das lutas sociais e, historicamente, o movimento feminista fez críticas contundentes aos partidos políticos, inclusive de esquerda. Para a realização da pesquisa empírica elencamos três movimentos feministas de expressão nacional: Marcha Mundial das Mulheres (MMM), Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB) e Movimento de Mulheres Camponesas (MMC). Esses movimentos possuem a peculiaridade de serem movimentos anticapitalistas, auto-organizados, não estão direta e formalmente vinculados a nenhuma organização político-partidária, apresentando-se como autônomos ou não-partidários. São movimentos compostos por outros movimentos cumprindo o papel de articular diversas lutas sociais.
É uma pesquisa social, de natureza qualitativa, que tomou como método o materialismo histórico dialético (KOSIK, 1976) para a análise da realidade. Foi realizado um estudo de caso (CHIZZOTTI, 2001), que utilizou entrevistas em profundidade, guiadas por um roteiro de caráter semiestruturado, com perguntas abertas, realizadas com 14 militantes de referência (7 da MMM, 4 da AMB e 3 do MMC), selecionadas pela técnica "bola de neve”5, e pesquisa documental, realizada
5 Esta técnica é baseada no método cadeia de referência, que consiste em formar a amostra da pesquisa, usando a indicação de uma ou mais pessoas para se chegar àquelas consideradas por seus pares como potenciais participantes da pesquisa. No caso do estudo apresentado, esta técnica possibilitou chegar às militantes consideradas por outras militantes do mesmo movimento, referência para abordar o tema de pesquisa. A aplicação da técnica começou com nomes indicados por uma pesquisadora dos movimentos em questão e pelos próprios movimentos a partir de seus órgãos ou assessoria de comunicação. Cada militante entrevistada, ao final de sua entrevista, indicava outras militantes do seu movimento, justificando o motivo pelo qual considerava a participação de cada uma delas importante para a pesquisa. A aplicação da técnica foi finalizada quando as indicações chegaram ao ponto de saturação e os nomes começaram a se repetir. O contato foi realizado com todas as mulheres indicadas e as entrevistas foram feitas com todas que aceitaram participar da entrevista.
nos sites oficiais dos movimentos estudados, entre janeiro de 2008 e maio de 2018, a partir da qual foram selecionados 64 documentos (29 da MMM, 16 da AMB e 19 do MMC)6.
O trabalho está estruturado em três partes. A primeira apresenta uma compreensão da crise capitalista atual, abordando seus efeitos sobre as condições de vida e de organização da classe trabalhadora. Aborda as manifestações massivas e movimentos sociais da atualidade como expressões do acirramento da crise capitalista mundial.
A segunda mergulha na temática dos partidos políticos, apresentando o debate da classificação ideológica. Busca nos autores clássicos da teoria marxista e em autores influentes no pensamento socialista e comunista, elementos centrais para entender a teoria da organização política, analisando o papel do partido político em Marx e Engels, Lênin, Rosa Luxemburgo e Gramsci. Resgata a construção deste campo no Brasil e conclui que os partidos políticos expressam uma orientação ideológica conforme sua posição na luta de classes, contribuindo para a manutenção do sistema ou para sua contestação.
A terceira recupera o desenvolvimento histórico do movimento feminista, resgatando alguns dos debates teóricos que se desenvolveram no seu interior, situando as particularidades desse movimento no Brasil. Apresenta a abordagem teórica do feminismo materialista francófono, que toma a centralidade do trabalho e a divisão sexual do trabalho como pontos de partida para entender as desigualdades decorrentes das relações sociais de sexo.
Para a análise dos dados foram utilizadas as seguintes categorias analíticas: influência ideológica, autonomia financeira, organização, articulação social, articulação política, mobilização, objetivos e luta política dos movimentos estudados. A partir das quais abordamos: a) os desafios e possibilidades reais dos movimentos feministas garantirem sua autonomia política, considerando a dupla militância: mulheres ligadas a partidos políticos que também atuam no movimento; b) a relação estabelecida entre os movimentos feministas e os governos para avanço das suas pautas; c) a compreensão dos movimentos feministas sobre o papel político dos partidos políticos e sobre a prática dos mesmos; d) a relação dos movimentos
6 Notas públicas, moções de repúdio, textos informativos e de opinião, selecionados a partir das palavras-chaves Movimentos Sociais, Partidos Políticos e Estado, presentes como ideia, conceito ou concepção nos documentos e não somente citada de forma direta.
feministas e outros sujeitos coletivos: movimentos sociais em geral, outros movimentos feministas, igrejas e ONGs; e) os desafios da relação entre movimentos feministas e partidos políticos de esquerda.
Os resultados da pesquisa sustentam a tese defendida. Demonstram que os movimentos estudados no contexto da crise capitalista aproximaram-se mais de partidos políticos no campo da esquerda, estabelecendo uma relação de organicidade, principalmente com a Consulta Popular e o Partido dos Trabalhadores. Esta relação é fundamentada na compreensão de que a transformação social só poderá ser levada a cabo por meio de luta antissistêmica que articule as dimensões do gênero/sexo, da raça/etnia e da classe. O mote “sem feminismo não haverá socialismo” indica o entendimento desses movimentos de que uma sociedade mais igualitária deve se alicerçar na luta pela emancipação da classe trabalhadora, mas também atentar para as especificidades da emancipação da mulher.
A relação estabelecida com a Consulta Popular, PT e PSOL, ainda que em menor medida, é orgânica. A orientação político-ideológica desses partidos influi sobre esses movimentos, mas a relação estabelecida não é a de correia de transmissão. Compartilham princípios, diretrizes e estratégias na construção do processo de organização da classe. Portanto, esses movimentos estabelecem com os partidos do campo da esquerda uma relação de novo tipo, baseada na compreensão de que cumprem a mesma função dos partidos no direcionamento da classe trabalhadora e na organização das massas, ainda que em espaços e formas de organização diferentes. Esses movimentos não negam o partido político como instrumento e espaço importante para a organização da classe trabalhadora.
BRAGA, R. A pulsão plebéia: trabalho, precariedade e rebeliões sociais. São Paulo: Alameda, 2015.
CARCANHOLO, M. D. Dependencia, super-explotación del trabajo y crisis: uma interpretación desde Marx. Madrid: Maia, 2017 (Colección Claves para compreender la economia).
CASTELLS, M. Redes de indignação e esperança: movimentos sociais na era da internet. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.
CHIZZOTTI, A. Pesquisa em ciências humanas e sociais. 5.ed. São Paulo: Cortez, 2001 (Biblioteca de educação. Série 1. Escola; v. 16).
DOIMO, A. M. A vez e a voz do popular: movimentos sociais e participação política no Brasil pós-70. Rio de Janeiro: Relume-Damará: ANPOCS, 1995.
KOSIK, K. Dialética do concreto. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.
GOHN, M da G. Manifestações de Junho de 2013 no Brasil e praças dos indignados no mundo. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014a.
HARVEY, D et al. Occupy: movimento de protestos que tomaram as ruas. São Paulo: Boitempo: Carta maior, 2012.
SADER, E. Quando novos personagens entram em cena: experiências, falas e lutas dos trabalhadores da Grande São Paulo (1970-80). 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.
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BORGES, Priscila Moreira2. Trabalhadoras do Brasil, uni-vos: a Central Única dos Trabalhadores (CUT) - uma história escrita sob uma perspectiva de gênero. 2018. 91p. Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-Graduação em Política Social. Universidade Federal Fluminense. Niterói.
Esta dissertação foi defendida em 2018 e analisou as relações de gênero na trajetória da Central Única dos Trabalhadores (CUT) entre os anos de 1983 e 2010. A preocupação desta pesquisa foi avaliar no mundo sindical de que forma a desigualdade também estava nos organismos de poder da instituição. A partir desse contexto analisou-se, sobretudo, a implantação de uma política de gênero em seu interior (inserção nas diretorias; instâncias internas de organização das mulheres; políticas de promoção de participação feminina). Apesar de inúmeros esforços como políticas de cotas para as diretorias, o poder sindical ainda se mantém extremamente masculino. A escolha da CUT foi por esta ser a maior central sindical do país e a pioneira nas discussões de gênero. Utilizou-se como metodologia a análise documental das resoluções dos Congressos Nacionais da CUT (CONCUT) e a revisão bibliográfica de marcos teóricos como a divisão sexual do trabalho, representação política e organização sindical.
A luta das mulheres brasileiras para ocupar o espaço público e participar da vida política como cidadãs de direitos é antiga e muitas vezes esquecida. Os homens foram os reais sujeitos de direitos de nossa história. A eles coube o espaço público, o
Resumo recebido em 31/08/2020. Aprovado pelos editores em 10/09/2020. Publicado em 25/02/2021. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v19i38.45654
Mestre em Política Social pela Universidade Federal Fluminense - UFF, Niterói - Brasil. Áreas de estudo: divisão sexual do trabalho; trabalho de cuidado; políticas públicas.
E-mail: mborgespricila@gmail.com; Lattes: http://lattes.cnpq.br/5934840994764716. ORCID: 0000-0003-1437-3660.
Dissertação defendida em (31/08/2018), pelo Programa de Estudos Pós-Graduados em Política Social da UFF, orientada pela Profª Hildete Pereira de Melo.
reconhecimento e a representatividade. O Brasil é um dos campeões mundiais em baixa representação feminina na política. Por exemplo, nas Américas, estamos apenas à frente do Haiti em termos de representação parlamentar feminina.
A maior parte dos estudos sobre a participação das mulheres na política analisa cargos eletivos no legislativo ou no executivo, ligados à macro política. A questão é que os espaços de poder na política são inúmeros e diversos. A construção de lideranças políticas vêm muitas vezes de movimentos sociais organizados, como agremiações estudantis, sindicais, de luta por moradia ou terra, entre tantos outros.
Os fios condutores desta reflexão foram os conceitos da divisão sexual do trabalho e a representação política das mulheres como o fator mobilizador dessa dissertação: pesquisar o nível de participação política das mulheres trabalhadoras. E fazer isso analisando eleições para cargos eletivos como câmaras, senado ou ainda do executivo, partiria de uma distância muito grande entre o poder e o sujeito a ser estudado: as mulheres trabalhadoras. Por que, então, não analisar as instâncias de poder político menos distantes delas, os sindicatos?
Esta pesquisa se propôs a fazer algo novo no estudo sobre a representação das mulheres: analisar seu engajamento e participação nos sindicatos do Brasil. Travando o desafio de unir os debates entre o feminismo e o sindicalismo. Para tanto, abordou-se, nessa dissertação, o conceito de divisão sexual do trabalho na vida das mulheres como responsável pela subalternidade da condição feminina na sociedade e por conseguinte, na representação política. Embora não fosse um dos objetivos iniciais deste trabalho, essa dissertação acaba por trazer à luz alguns dos nomes de mulheres que participaram ativamente da organização dos trabalhadores e das trabalhadoras ao longo das últimas décadas, e que sistematicamente têm suas trajetórias invisibilizadas.
Ao longo dos Congressos da CUT é possível destacar algumas medidas importantes para o debate de gênero no interior da central como: em 1986, a proposta da criação de uma “Comissão da Questão da Mulher Trabalhadora - CQMT” dentro da entidade; em 1991, a aprovação em plenário de uma resolução da luta pela legalização do aborto, o que acabou por legitimar a entrada da CUT futuramente na Rede Nacional Feminista de Saúde e Direitos Reprodutivos; em 1994, a aprovação da orientação política de cota mínima de 30% e máxima de 70% para cada gênero
nas diretorias da entidade; em 2003, a criação das Secretarias Nacional e Estaduais sobre a Mulher Trabalhadora.
A CUT, desde sua fundação, traz em seus documentos e resoluções uma preocupação com a realidade da mulher trabalhadora. Ao longo dos Congressos, é possível perceber através dos documentos, alguns elementos que sinalizam para as dificuldades das mulheres exercerem sua vida política por completo nos sindicatos. Há uma referência, em todos os anos analisados, à pauta da Creche como política pública de Estado, reivindicando o programa “Creche para todos” em diversos congressos e pontuando que esta precisa ser uma luta da entidade como um todo. Essa argumentação se baseia no debate sobre a divisão sexual do trabalho e até mesmo do trabalho invisível das mulheres exercido dentro de casa, sustentando que as mulheres permanecem sobrecarregadas no mercado ao serem responsáveis pela dupla função.
Além disso, em mais de um congresso analisado existe a demanda para que os espaços de encontros e congressos da CUT disponibilizem creche para as crianças, sustentando que a participação das mulheres na vida sindical fica prejudicada pela divisão sexual do trabalho e por elas serem as principais responsáveis pelo cuidado dos filhos. Há, inclusive, a construção de uma linha argumentativa, que se repete em alguns anos, que fala de uma “política adequada no movimento sindical que estimule e facilite a participação das mulheres”. Com algumas especificidades, esse argumento surge e ressurge ao longo dos anos, e condiciona a participação das mulheres na luta geral da classe trabalhadora à garantia desta política. Fica evidente, com a repetição de apresentações neste sentido, a dificuldade das mulheres em se desonerarem das obrigações da vida e do espaço privado para conseguir viver em plenitude a sua vida pública, seja no sindicato, seja no mercado de trabalho.
É possível também assinalar a pressão feita pelas mulheres da CUT para a efetivação das políticas de cuidados na sociedade e no aparelho sindical: seja como formulações de políticas públicas acerca do tema da mulher trabalhadora e sindicalista, seja como políticas internas das entidades sindicais. A grande questão era e é evitar que estas políticas fiquem apenas setorizadas e registradas no caderno de resoluções a cada ano, para que não virem guetos femininos de discussão. Este é, inclusive, um forte debate quando da criação da Comissão Nacional sobre a
Questão da Mulher Trabalhadora na entidade. E isto acaba sendo reforçado pela própria estruturação dos documentos congressuais, em que a parte de discussão sobre mulheres chega sempre apresentada de maneira setorizada e não interseccional.
Apesar das tentativas de produção de políticas para aumentar a inserção das mulheres, como a aprovação de cota estatutária de 30% em 2008, percebe-se que os homens ainda são super-representados na executiva e direção nacional. Ao longo da trajetória analisada neste trabalho foi possível verificar que no ano de 1986 as mulheres eram apenas 6,70% dos cargos de diretoria e, na medida que as reivindicações feministas avançaram na sociedade, em 1994 as mulheres conseguiram chegar a uma taxa de participação de 32% nos cargos de direção. Em 2000 a presença feminina atingiu seu ápice com 40% de participação. Em 2003 o número voltou a cair para 35,5% e em 2009 chegou a 29,6%. Observa-se que o movimento sindical segue à risca o viés de gênero que caracteriza nossa sociedade e que o patriarcado permanece presente no sindicalismo, apesar das políticas de cotas implementadas pela CUT.
A partir dessas análises, é necessário aprofundar o conhecimento acerca das políticas para as mulheres defendidas ao longo dos anos nos congressos da CUT, como a questão da maternidade vivida pelas mulheres trabalhadoras; a socialização do cuidado pelo Estado; a precarização do trabalho das trabalhadoras domésticas e a questão das mulheres rurais, que aparecem com muita centralidade e frequência nas resoluções congressuais. É necessário cruzar as informações do que foi debatido nos congressos da CUT e o que se tornou política pública e direito para as mulheres trabalhadoras e, dessa forma, analisar a participação da CUT nas campanhas por estas garantias. No entanto, esta não foi uma questão tratada nesta pesquisa.
Pode-se concluir que há um limite para as políticas de promoção de maior participação das mulheres, seja por falta de uma instância que regule e fiscalize o cumprimento dessas medidas, seja pela extrema limitação gerencial dos cargos ocupados por essas mulheres. Além disso, apesar de grandes avanços na elaboração de políticas específicas de gênero, os setoriais de discussão sobre as relações de gênero acabam, aparentemente, por desonerar o restante da central sindical de uma incorporação mais ampla das políticas para as mulheres.
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Leila de Andrade Linhares Barsted2
1 Texto recebido em 14/12/2020. Aprovado pelos editores em 15/12/2020. Publicado em 25/2021. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v19i38.47625
2 Advogada, Membro do Comitê de Especialistas do MESECVI - Mecanismo de Monitoramento da Convenção para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra das Mulheres da Organização dos
Estados Americanos – OEA. Professora Emérita da Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, Coordenadora Executiva da CEPIA.
Esse texto tem como objetivo resgatar o percurso do movimento feminista no enfrentamento da violência de gênero contra as mulheres, em especial no que se refere à refutação do argumento da legítima defesa da honra.
Há 40 anos era comum no Brasil a absolvição de homens que assassinavam suas mulheres, crimes que, desde 2015 são considerados feminicídios. De fato, até meados da década de 1970, o argumento da “legítima defesa da honra” era comumente aceito pelo Tribunal do Júri3 para deixar de punir acusados de terem assassinado suas mulheres ou companheiras, apesar de não haver na legislação brasileira a pena de morte. Esse era um direito previsto na lei no período do Império4 e, mesmo abolido posteriormente, manteve-se na cultura, fortalecido pela Código Civil de 1916 que considerava o homem como chefe da família5 e restringia um conjunto de direitos de cidadania para as mulheres6.
O argumento da legítima defesa da honra vinha acompanhado da acusação contra a vítima. De fato, a defesa dos autores de assassinatos sustentava-se na caracterização do crime como um “crime de amor” provocado pelo comportamento da vítima e pelo seu desejo de quebrar as algemas7. Assim, os jurados, na realidade, acabavam julgando o comportamento das mulheres e não o do seu agressor. Expressões e adjetivações humilhantes, como adúlteras, traidoras, messalinas, diabólicas, relapsas no cuidado com a família e com os filhos, eram usadas pelos advogados de defesa para caracterizá-las como agentes provocadoras de homens honestos, bons chefes de família, trabalhadores que, sem outra alternativa, praticavam o crime.
Esses foram os argumentos para absolver os assassinos de Angela Diniz, morta em 1976, no Rio de Janeiro; de Heloisa Ballesteros, morta em 1976, e Maria Regina Souza Rocha, morta em 1980, ambas em Belo Horizonte; de Cristhel Arvid Johnston, morta em 1978, no Rio de Janeiro; de Eliane de Grammont, morta em1981, em São Paulo. Todos os acusados foram praticamente absolvidos por serem primários e de bons antecedentes. No primeiro julgamento do assassino de Angela Diniz, realizado na cidade de Cabo Frio, no Rio de Janeiro, esses mesmos
3 O Tribunal do Júri é formado por sete juízes leigos, cidadãos comuns, que julgam os chamados crimes dolosos contra a vida e, certamente, decidem de acordo com seus valores e possíveis preconceitos.
4 Ver a esse respeito HERMANN, Jacqueline e BARSTED, Leila Linhares (1995).
5 Cf BARSTED, Leila Linhares e GARCEZ, Elizabeth (1999).
6 Sobre legítima defesa da honra, ver PIMENTEL, Silvia; PANDJIARJIAN, Valéria. BELLOQUE, Juliana (2006)
7Cf. ALMEIDA, Suely (1998).
argumentos foram utilizados. Tanto a absolvição do réu como o aviltamento da vítima recrudesceram as manifestações feministas.
Em 1981, grande manifestação reuniu centenas de mulheres, diante da Igreja de São José, no centro de Belo Horizonte, que exibiam as faixas e cartazes com a bandeira que se tornaria o símbolo da luta do novo feminismo que se anunciava no Brasil - "quem ama não mata”.
No Rio de Janeiro, depois da absolvição do assassino de Angela Diniz, as feministas se mobilizaram defendendo a anulação da decisão do Júri Popular. Em segundo julgamento, foram mais uma vez para as ruas e fizeram vigília em frente do Fórum de Cabo Frio durante o julgamento. A condenação do réu, Doca Street, em 1981, representou a vitória não só do advogado da família de Angela Diniz. Em entrevista, o criminalista Heleno Fragoso reconheceu que a sua vitória, em muito foi possível graças à mobilização das feministas. Os chamados “crimes da paixão” ou “crimes passionais” passaram a ser considerados crimes de ódio. É importante destacar que as mulheres anônimas, negras e pobres assassinadas por seus maridos e companheiros continuavam sem visibilidade na grande imprensa8.
As manifestações dos movimentos feministas se espalharam rapidamente e, entre 1975 e 1985 existia, em quase todos os estados brasileiros, grupos de mulheres que ecoaram a necessidade de uma militância ativa na denúncia das diversas formas de discriminação, contra a violência de gênero na sociedade e no Estado9. Em paralelo à mobilização contra esses crimes, grupos feministas criaram os SOS Mulher para atender as vítimas de violência, prestando orientação e apoio10.
A denúncia da violência contra as mulheres incluía também a denúncia da legislação civil que mantinha dispositivos claramente discriminatórios. O espaço da família, regido, até 1988, pelo Código Civil de 1916, legitimava o poder do marido sobre a mulher e permitia a manutenção de uma cultura de violência nas relações entre os cônjuges, naturalizada como um simples conflito familiar a ser tratado na esfera estritamente privada.
Todo o início da década de 1980 foi marcado pela distensão política, e grandes manifestações de setores progressistas, com a expressiva participação de mulheres, exigiam a redemocratização do país. Esse processo político permitiu, em 1982, a eleição livre para governadores de estados, com a vitória de Franco Montoro, em São Paulo, Tancredo Neves, em Minas Gerais, e Leonel Brizola no Rio de Janeiro. Nesses três estados, em especial em São Paulo, muitas feministas conseguiram a criação dos
8Sobre sexismo e racismo ver CARNEIRO, Sueli (2011)
9 A violência política do Estado contra as mulheres foi especialmente destacada, em 2013, quando a Comissão Nacional da Verdade - CNV colheu relatos de mulheres que foram submetidas à prisão, tortura, estupros e assassinato durante a ditadura militar. Também, a Anistia Internacional tem apontado a violência contra mulheres no sistema prisional cometida por agentes do Estado.
10 Ver a esse respeito SORJ, Bila; MONTERO, Paula (1985).
primeiros Conselhos Estaduais da Condição Feminina, de Delegacias de Mulheres e de abrigos para mulheres em situação de risco de vida.
Data marcante para a democracia e para os movimentos feministas foi 1985. Nesse ano, com a eleição indireta para a presidência da república, deu-se a concretização do retorno à democracia política com a posse de um presidente civil que reconheceu o compromisso assumido com as feministas e criou o Conselho Nacional dos Direitos das Mulheres – CNDM, que, no período de 1985-1989 inaugurou a inclusão de uma agenda feminista no cenário político nacional com histórico impacto no texto da nova Constituição de 1988. A atuação do CNDM11 colocou como questão de Estado as demandas dos movimentos de mulheres que, posteriormente, foram consolidadas na "Carta das Mulheres Brasileiras aos Constituintes" (anexada ao final do texto) e entregue ao Presidente do Congresso Nacional Ulisses Guimarães. Dentre as inúmeras demandas aprovadas no texto da Constituição Federal de 1988 foi incluído o enfrentamento da violência familiar12. Em publicação do CNDM “Quando a Vítima é Mulher”13 e com a divulgação pelo IBGE dos resultados da PNAD14, de 1988, ficaram explicitadas estatisticamente as características de gênero desse fenômeno: o principal lócus de ocorrência de violência para os homens era a rua, o espaço público e, para as mulheres, era a casa, o espaço privado. A pesquisa do CNDM revelava, assim, que as violências contra as mulheres eram praticadas por pessoas que privavam da intimidade da vítima, em geral maridos e companheiros. Esse padrão se mantém até os nossos dias.
Muitos foram os avanços a partir de então na luta contra a violência de gênero15
contra as mulheres, nas suas diversas manifestações. Na década de 1990, formaram- se as redes e organizações feministas em todo o país, potencializando a defesa dos direitos das mulheres e a luta contra a violência e o uso do argumento da legítima defesa da honra. Essa atuação dos movimentos feministas ecoou no Superior Tribunal de Justiça que, em 1991, rejeitou a legítima defesa da honra. Em 1993, a Declaração da Conferência de Direitos Humanos das Nações Unidas, fortaleceu a luta feminista ao definir que “a violência contra as mulheres é uma violação de Direitos Humanos”.
11 Sobre a atuação do CNDM ver PITANGUY, Jacqueline (2008) e SCHUMAHER, S. (2008).
12 Artigo 226, § 8º - O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.
13 ARDAILLON, Danielle (1987).
14 IBGE/PNAD - Suplemento sobre Justiça e Vitimização, 1988.
15 Sobre o conceito de violência de gênero ver SAFFIOTI, Heleieth. Contribuições feministas para o estudo da violência de gênero disponível em https://www.scielo.br/pdf/cpa/n16/n16a07.pdf.
Em 1994, a Organização dos Estados Americanos – OEA, aprovou a Convenção para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra as Mulheres - Convenção de Belém do Pará. Na década de 2000, as operadoras do direito de ONGs feministas e de outras instituições atuaram de forma decisiva, sob a forma de um consórcio, na elaboração do texto que deu origem à Lei Maria da Penha16, de 2006. Em 2015 foi aprovada a alteração do Código Penal para incluir o crime de feminicídio. Nessas décadas foram ampliadas as Delegacias de Mulheres, abrigos, centros de referência, núcleos da defensoria pública, juizados de violência doméstica. No entanto, houve pouco investimento em ações de prevenção de todas as formas de discriminação e violência contra as mulheres, incluindo ações voltadas para a mudança de mentalidades e de padrões de comportamento sexistas ainda calcados na dominação patriarcal. Da mesma forma, não se investiu o suficiente para democratizar as instituições de segurança e justiça, com a perspectiva de gênero e étnico-racial, tendo por preocupação o acolhimento e o acesso das mulheres nesses espaços.
Por outro lado, a partir de 2016, iniciou-se o esvaziamento de políticas públicas voltadas para a resposta à violência contra as mulheres. O Estado, e os grupos que nele estão representados17, se afastaram com enorme rapidez do pactuado com os movimentos feministas. Ressurge, com força, uma ideologia familista, tal como a do Código Civil de 1916, com rígidos papéis sociais nas relações conjugais expressos em uma espécie de contrato de submissão das mulheres18. Além disso, grupos conservadores promovem alterações em Leis Orgânicas de diversos municípios brasileiros para proibir a discussão das questões de gênero no sistema de ensino, e que, positivamente, têm sido rejeitadas pelo Supremo Tribunal Federal.
Da mesma forma, a magnitude da violência contra as mulheres, em especial nas relações interpessoais, revela o quanto a vida privada não se democratizou. Os índices de violência de gênero contra as mulheres, incluindo o de feminicídio íntimo, são extremamente altos, conforme dados do IPEA. E mais preocupante ainda é a retomada do argumento da legítima defesa da honra. O Júri Popular continua absolvendo ou condenando a penas mínimas homens que assassinaram suas mulheres alegando esse argumento. Quando o Ministério Público e os advogados das
16 Sobre o processo de elaboração dessa lei pelas feministas ver CAMPOS, Carmen (org) 2011.
17 Junte-se a isso a liberação de armas, os discursos antidemocráticos, sexistas, racistas e homofóbicos.
18 A esse respeito ver PATEMAN, Carole (1993) e BOURDIEU, Pierre (1999).
famílias das vítimas chegam a recorrer ao Superior Tribunal de Justiça – STJ, esse órgão do Poder Judiciário tem rejeitado o argumento da legítima defesa da honra e determinado a realização de novo julgamento, mas nem todos recorrem. Em uma posição considerada firme, o Ministro do STJ, Rogerio Schietti Cruz, rejeitou recurso de homem denunciado por tentar matar a esposa e foi claro ao destacar que, desde 1991, o STJ rejeita, com veemência, a tese de legítima defesa da honra e que “….Em um país que registrou, em 2018, a quantidade de 1.206 mulheres vítimas de feminicídio, soa no mínimo anacrônico alguém ainda sustentar a possibilidade de que se mate uma mulher em nome da honra do seu consorte (…) Não vivemos mais períodos de triste memória, em que réus eram absolvidos em Plenários do Tribunal do Júri com esse tipo de argumentação. Surpreende ver ainda essa tese sustentada por profissionais do direito em uma Corte Superior”.
No entanto, retrocessos podem ocorrer com muita velocidade. Em 2020, em um caso de tentativa de feminicídio ocorrido em Minas Gerais, o Tribunal do Júri acolheu a tese da legítima defesa da honra e absolveu o acusado. Em sucessivos graus de apelação, o Ministério Público recorreu ao Supremo Tribunal Federal – STF, para a anulação desse julgamento. Em decisão totalmente oposta à do Superior Tribunal de Justiça, a Primeira Turma do STF, por 3 votos a 2, concedeu um habeas corpus para rejeitar o recurso do Ministério Público pela realização de um novo julgamento, considerando que a decisão do Júri Popular é soberana e que os jurados podem decidir pela absolvição do réu a partir de suas convicções íntimas. Os Ministros Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso votaram a favor de um novo julgamento e questionaram a legitimidade da argumentação baseada na honra ferida em pleno século XXI. O caso voltará a ser votado no STF. Em Artigo ao Jornal El País, as feministas dirigem-se ao STF exortando essa Corte para que não vire as costas para a longa luta das mulheres contra a impunidade agasalhada na tese da legítima defesa da honra, não esqueça as milhares vítimas de feminicídio no Brasil, não abandone os estándares internacionais reconhecidos há longo tempo pela Constituição Brasileira de 198819.
19Ver PIMENTEL, Silvia, BARSTED, Leila e SEVERI, Fabiana artigo publicado no Jornal El País 20 de outubro de 2020, disponível em https://cepia.org.br/2020/10/21/defesa-da-honraem-2020-o-stf-nao- pode-vira
Nesse contexto, os movimentos feministas retomam a bandeira lançada na década de 1970 - Quem ama não mata, num claro movimento de que é preciso voltar às ruas.
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