V.20, N° 41- 2022 {jan-abr) ISSN: 1808-799X
V.20 nº 41 / jan-abr (2022) ISSN: 1808-799 X
Universidade Federal Fluminense Faculdade de Educação
NEDDATE - NÚCLEO DE ESTUDOS, DOCUMENTAÇÃO E DADOS SOBRE TRABALHO E EDUCAÇÃO
REVISTA TRABALHO NECESSÁRIO: http://periodicos.uff.br/trabalhonecessario
Redação: R. Professor Waldemar Freitas Reis, s/n°, bloco D, sala 525, Gragoatá - São Domingos, Niterói - RJ, CEP 24210-201 - revistatrabalhonecessario@gmail.com
EDITORES
Lia Tiriba, Jacqueline Aline Botelho Lima, José Luiz Cordeiro Antunes e Regis Eduardo Coelho
Arguelles da Costa
EDITOR ADJUNTO
William Kennedy do Amaral Souza
CONSELHO EDITORIAL
Caridad Perez García (UCPEJV – Cuba), Celso Ferretti (UNISO - Brasil), Gaudêncio Frigotto (UFF / UERJ- Brasil), José Claudinei Lombardi (UNICAMP – Brasil), Maria Ciavatta (UFF - Brasil), Roberto Leher (UFRJ - Brasil), Tomás Rodrigues Villasante (UCM – Espanha), Sonia Maria Rummert (UFF - Brasil) e Virgínia Fontes (UFF / EPJV / Fiocruz - Brasil).
COMITÊ CIENTÍFICO
Alexandre Maia do Bomfim (IFRJ), Ana Motta (UFF), André Feitosa (EPSJV/FIOCRUZ), André Martins (UFJF), Andrea Araújo Vale (UFF), Anita Handfas (UFRJ), Angela Siqueira (UFF), Angela Tamberlini (UFF), Claudio Fernandes da Costa (UFF), Célia Regina Vendramini (UFSC), Daniela Motta (UFJF), Dante Moura (IFRN), Deise Mancebo (UERJ), Domingos Leite Lima Filho (UTFPR), Dora Henrique da Costa (UFF), Doriedson do Socorro Rodrigues (UFPA), Edison Oyama (UFRR), Edson Caetano (UFMT), Eneida Oto Shiroma (UFSC), Eraldo Leme Batista (UNIVAS-MG), Eveline Algebaile (UERJ), Filippina Chinelli (EPSJV/FIOCRUZ), Flávio Anício (UFRRJ), Francisco José Lobo Neto (FIOCRUZ), Guadelupe Teresinha Bertussi (UNAM e UFSC), Hajime Nozaki (UFMS e UFJF), Henrique Tahan Novaes (UNESP), Ivo Tonet (UFAL), Jacqueline Botelho (UFF), Jaqueline Ventura (UFF), João dos Reis da Silva Jr. (UFSCar), José dos Santos Souza (UFRRJ), José Luiz Cordeiro Antunes(UFF), Júlio Cesar França Lima (FIOCRUZ), Justino de Souza Junior (UFC), Kátia Lima (UFF), Laura Souza Fonseca (UFRGS), Lea Calvão (UFF),Lia Tiriba (UFF), Lígia Klein (UFPR), Luciana Requião (UFF), Marcelo Lima (UFES), Maria Clara Bueno Fischer (UFRGS), Maria Cristina Paulo Rodrigues (UFF), Maria Inês do Rego Monteiro Bomfim (UFF), Maria de Fátima Félix Rosar (UNICAMP), Marcia Alvarenga (UERJ), Mariléia Maria da Silva (UDESC), Marisa Brandão (CEFET-RJ), Marise Ramos (UERJ,FIOCRUZ), Marlene Ribeiro (UFRGS), Myriam Feldfeber (UBA - Argentina), Ney Luiz Teixeira Almeida
(UERJ), Olinda Evangelista (UFSC), Ramon deOliveira (UFPE), Raquel Varela (Universidade Nova de Lisboa - Portugal), Roberto Leher (UFRJ), Ronaldo Lima (UFPA),Rosilda Benacchio (UFF), Rui Canário (Universidade de Lisboa – Portugal), Sandra Maria Siqueira (UFBA), Sandra Morais (UNIRIO), Sérgio Lessa (UFAL),, Susana Vasconcellos Jimenez (UFC), Tatiana Dahmer (UFF), Valdemar Sguissardi (UFSCar), Vania Motta (UFRJ), William Kennedy do Amaral Souza (IFRO) e Zuleide Silveira (UFF).
ORGANIZAÇÃO DA TN 41 (2022)
Prof.ª Drª Jacqueline Aline Botelho Lima (NEPEQ/UFF - Núcleo de Pesquisa e Extensão sobre Projetos Societários, Educação e Questão Agrária na Formação Social Brasileira, da Universidade Federal Fluminense) e Prof.ª Drª Leonilde Servolo de Medeiros (MSPP/CPDA/UFRRJ - Núcleo de Pesquisa, Documentação e Referência sobre Movimentos Sociais e Políticas Públicas no campo do Programa de Pós- graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro)
ASSISTENTES DE EDIÇÃO
Daniel Tiriba, Landhor Borges Camello (UFF), Luiz Augusto de Oliveira Gomes (Doutorando em Educação/UFF), Laura Brandão Martins (Biomedicina-UFF) e Francine Sampaio (Serviço Social-UFF)
FOTO DA CAPA
“Café” - Cândido Portinari, 1935, pintura a óleo / tela, direito de reprodução gentilmente cedido por João Cândido Portinari (PORTINARI LICENSING LTDA e ASSOCIAÇÃO CULTURAL CANDIDO PORTINARI).
MONTAGEM DA CAPA
Daniel Tiriba
V.20 nº 41 / jan-abr (2022) ISSN: 1808-799 X
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Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoatá/SDC/UFF Bibliotecária:
Mahira de Souza Prado CRB-7/6146
V.20, nº 41, 2022 (jan-abr) ISSN: 1808-799 X
Venham, seus mestres da guerra Vocês que fabricam as armas todas Vocês que fabricam os aviões da morte Vocês que fabricam as grandes bombas
Vocês que se escondem por trás de muros Vocês que se escondem por trás de mesas
Só quero que vocês saibam Que eu enxergo por trás dessas máscaras
(...)
Vocês encaixam os gatilhos Pros outros dispararem Aí relaxam e observam
Quando os mortos se acumulam Vocês se escondem nas mansões Enquanto o sangue dos jovens Escorre dos seus corpos
E se enterra pela lama
(Mestres da guerra, Bob Dylan, 1963)
Conforme a caracterização precisa de Arantes (2016), a história do tempo presente é encapsulada em um regime de espera destituído de perspectivas para o futuro. O novo tempo do mundo, encharcado de um apelo ao presentismo, parece acelerar-se através do livre fluir do capital e do desenrolar de eventos apocalípticos em cadeia, enquanto o próprio sentido da história vai se esvaindo.
A classe trabalhadora, por sua vez, é sufocada por um regime de trabalho mais precário, vigilante e punitivo, legitimado por um Estado que precisa sempre despir-se de sua já fina camada de direitos sociais, conquistados duramente ao longo dos séculos XIX e XX. A máquina tecnológica que se tornou o capitalismo contemporâneo parece incansável em seu ímpeto de disciplinar duramente o trabalhador, custe o que custar.
1Editorial recebido em 16/03/2022. Aprovado pelos editores em 21/03/2022. Publicado em 28/03/2022. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v20i41.53537.
O ano de 2022 que se inicia parece confirmar ainda mais a hipótese de Arantes, esboçada brevemente acima. Estamos diante de acontecimentos cuja marca indelével é a de catástrofes em largas proporções – a pandemia de COVID-19 e a guerra na Europa –, manifestações dramáticas do novo tempo do mundo. Enquanto isso, a burguesia assume com esmero o papel de protagonista da tragédia em que ela mesma é a principal responsável, seja alimentando conflitos armados através dos complexos industriais militares, seja esbanjando recursos com viagens espaciais particulares ou, ainda, desenvolvendo sistemas sofisticados de vigilância dos cidadãos, para os mais diversos usos.
Mas a história é também dinâmica e se desenvolve em diversos níveis e âmbitos. Aqui na Trabalho Necessário seguimos na resistência, contra a universalização radical da forma-mercadoria, que vicia indelevelmente a produção social do conhecimento. Iniciamos 2022 com uma equipe editorial renovada, que assume o desafiador propósito de manter o padrão de qualidade de nossas edições quadrimestrais e o compromisso político da Trabalho Necessário, propósito este que, vale ressaltar, foi cumprido com habilidade e firmeza pela equipe anterior2. Remamos contra a maré, em uma estrutura-conjuntura extremamente instável e inimiga para a construção do conhecimento crítico3.
Aproveitando o ensejo, nunca é demais ressaltar que o trabalho de organização e edição de uma revista acadêmica envolve dispêndio de tempo e energia, em uma série de frentes de trabalho. A atual conjuntura altamente regressiva – para dizer o mínimo – de financiamento da pesquisa e da divulgação científica vem tornando esse trabalho ainda mais árduo. Quando olhamos para a área das ciências humanas, especialmente aquelas com compromisso voltado para a crítica na análise da realidade social, a situação é de terra arrasada.
Segundo estudo de Fernanda de Negri, em 2021, o nível de investimento em ciência foi o menor dos últimos 12 anos – R$ 17,2bi versus R$ 19bi em 2009. E esses patamares só não caíram ainda mais por conta dos investimentos na Embrapa e
2Um agradecimento especialíssimo à professora Maria Cristina de Paulo Rodrigues, que deixa a editoria da TN, pelo rigor científico, pela crítica vigorosa, generosidade, sensibilidade e compromisso político com a educação pública. Avante em novos projetos!
3Nos referimos as idas e vindas do processo de avaliação dos periódicos e dos Programas de Pós-
graduações, a instabilidade na conduta da Capes e do Inep, a utilização de métricas internacionais que comprometem a internacionalização das produções e os caminhos de Ciência Aberta, querendo transformar o conhecimento científico como mais uma mercadoria para a recomposição do capital, trazendo a competitividade e disputas para os campos de conhecimentos.
Fiocruz, argumenta a pesquisadora4. Em suma, a combinação de ultraliberalismo com um governo inimigo da produção de conhecimento vem sendo devastadora para toda a comunidade científica brasileira. Caminhamos, contudo, na resistência, pela divulgação de um saber comprometido com a emancipação da classe trabalhadora e a superação da exploração do homem pelo homem, nas quais as relações sociais se transformem radicalmente, baseadas em outros patamares e/ou valores civilizatórios, para que o bem comum, a valorização da vida e da diversidade humana sejam respeitadas.
Sabemos que nosso caminhar se dá, na atual conjuntura, em um terreno bastante perigoso. Nesse sentido, nada se mostra tão significativo dos perigos atuais quanto a eclosão de um novo conflito armado, que se soma a outros na Palestina ocupada, na Síria, no Iêmen, na Somália, na Líbia, no Mali, etc. A guerra entre a Federação Russa e a Ucrânia é mais um instante do novo tempo do mundo, que aponta outra vez para a colossal crise que estamos experimentando desde o início dos anos de 1970 sendo que, desta vez, o risco de um desdobramento global do conflito armado é real.
Para abordarmos os problemas pela raiz, conforme indicou Marx, é preciso explorar a fundo as contradições da história. História que, aliás, segue pulsando com vigor, contrariando todos os seus coveiros do final do século passado, embriagados pela derrocada do socialismo real, pelas reformas Deng na China e pela consolidação dos EUA como única superpotência econômico-militar. A guerra da Ucrânia é prova cabal que o capitalismo globalizado é incapaz de construir uma ordem harmônica e próspera, tal qual os “vencedores” dos anos 1990 preconizavam à época.
Em primeiro lugar, trata-se de uma guerra fundada na questão imperialista, que se expressa na exportação massiva de capital para outros países menos desenvolvidos, no sentido de combater a tendência geral de queda na taxa de lucro. Essa expansão é acompanhada de uma série de medidas que combinam coerção e consenso, incluindo ações militares de agressão. Guerra significa acumulação não só por conta do espólio dos vitoriosos, mas pela sua própria existência. Como o capital
4SHALDERS, André. Brasil tem menor investimento em ciência dos últimos 12 anos. Portal Terra, 25 ago. 2021. Disponível em: https://www.terra.com.br/noticias/ciencia/brasil-tem-menor-investimento-em- ciencia-dos-ultimos-12-anos,ca770e530e11e1de2553c2389f90b2c8idkybgug.html. Acesso em 13 de março de 2022.
não pode se expandir sem encontrar resistência, colocar a máquina de guerra em movimento significa mais lucro e mais poder5.
A expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) nos últimos 30 anos é exemplo cristalino da movimentação da máquina de guerra imperialista sob hegemonia estadunidense. A despeito de ter se comprometido com o último governo da União Soviética, em 1990, no sentido da não expansão da aliança militar em direção ao Leste Europeu, a integração de diversos países da região, desde então, demonstra que suas intenções sempre foram outras. A expansão da OTAN vem sendo objeto de contestação mais efetiva de Moscou desde 20076. A partir de então, o processo de expansão da aliança em direção às fronteiras da Rússia vem sendo a principal preocupação da política externa deste país.
Do lado ucraniano, a situação política passou por uma inflexão a partir do golpe parlamentar de 2014, liderado por políticos ucranianos apoiados pelos EUA, que acabou por destituir o então presidente Yanushenko. Seu substituto, Petro Poroshenko, promoveu uma política ultranacionalista (seu lema foi “exército, língua nacional, fé”), que envolveu a perseguição de minorias étnicas da Ucrânia e apoio às milícias neonazistas. Quanto à Rússia, o discurso de ameaça militar nas fronteiras do país foi turbinado pela ascensão de ideologias políticas ultranacionalistas, tradicionalistas e de teor conspiratório – especialmente a Quarta Teoria Política, de Dugin – que contribuíram para moldar uma política externa de um maior enfrentamento com a EU e os EUA.
Desde o golpe parlamentar de 2014, as relações entre Ucrânia e Federação Russa deterioraram rapidamente. Putin, sob a justificativa de proteger a população de origem russa do leste da Ucrânia, anexou a Criméia e apoiou abertamente as milícias separatistas da região do Donbass. Apesar dos acordos de Minsk (2014-2015) terem estabelecido um cessar-fogo na região, houve violações constantes dos dois lados.
5“Mesmo durante o choque na economia global causado pela pandemia de COVID-19, as vendas de armamentos continuaram a crescer. As 100 maiores empresas do setor militar venderam US$531 bilhões em armamento e serviços militares, um aumento de 1,3% se comparado com o ano de 2019, de acordo com um instituto de pesquisa sediado em Estocolmo (SIPRI). ” MCYNTIRE, Douglas. This is the company profiting most from war. 24/7 Wall St., 26 dez. 2021. Disponível em: https://247wallst.com/aerospace-defense/2021/12/26/this-is-the-company-profiting-most-from- war/?utm_source=flipboard money%26utm_medium%3Dreferral%26utm_campaign%3Dflipboard- money%26utm_content%3Dthis-is-the-company-profiting-most-from-war%26wsrlui%3D610202181.
Acesso em 14 de março de 2022.
6A Ucrânia vem tentando a admissão na OTAN desde 2008.
De acordo com a ONU, a guerra em Donbass causou cerca de 14.000 mortos e 50.000 feridos entre 2014 e 2021.
Ou seja, o que estamos assistindo é o agravamento de uma situação que se desenrola militarmente desde 2014, e que deita raízes no fim da Guerra Fria, na expansão imperialista da OTAN, e nos desdobramentos da grande crise de 2008, dentro os quais Melo (2016) assinala o crescimento global da extrema-direita organizada, e de suas milícias armadas. E, independente da saída diplomática encontrada para a agressão militar russa, já sabemos de antemão quem serão os mais penalizados: os trabalhadores ucranianos, os quais estão emigrando compulsoriamente, que tiveram seus laços familiares abalados, que perderam entes queridos na tragédia da guerra. Mas não nos enganemos. Na guerra entre os senhores capitalistas, a classe trabalhadora como um todo é a grande derrotada. Por isso, os trabalhadores devem ter como primeira e fundamental exigência o reestabelecimento da paz.
Aqui, os efeitos da crise ucraniana já foram percebidos no último reajuste dos combustíveis, que levou o litro da gasolina a alcançar a faixa dos R$10,00 em algumas regiões do país, e o gás de cozinha a ultrapassar R$100,00. Como a maior parte do preço das mercadorias e serviços é atrelado ao preço dos combustíveis, as expectativas são de aumento do custo de vida nos próximos meses. Isso tudo em um cenário de pandemia e crise climática7, de diminuição extrema do poder de compra do trabalhador, de desvalorização da moeda, de precarização do trabalho, de desmatamento acelerado, de fome e desemprego, de ausência de moradia digna. A classe trabalhadora vem pagando um preço caríssimo, agravado pela gestão ultraliberal da economia praticada por Bolsonaro, Paulo Guedes e seus aliados8.
As projeções dos efeitos da guerra sobre o preço dos alimentos são, da mesma forma, desfavoráveis. A cadeia de produção do agronegócio brasileiro é deveras dependente das matérias-primas vindas da Belarus e da Federação Russa que, sob
A relação como o Homem estabelece com a natureza, que não se refere somente a diminuição da camada de Ozônio, mas a devastação dos nossos bens naturais, a devastação da Amazônia, trazendo como consequências as incessantes enchentes, vide o que recentemente aconteceu com a cidade de Petrópolis e com várias cidades brasileiras. Isso acontece em várias partes do globo terrestre.
Especificamente para os trabalhadores da educação, a Lei Complementar nº 191/2022, sancionada
em março, promove alterações que afetam servidores de diversos estados e municípios, como a usurpação na contagem de tempo de serviço público para receber benefícios tais como adicionais de tempo de serviço e para o cômputo de licença prêmio, retirando "direitos dos trabalhadores que trabalharam durante a pandemia de forma remota,muitas vezes de maneira mais precarizada e mais intensa” (Boletim da Aduff-SSind, março/2022).
sanções econômicas como retaliação à invasão da Ucrânia, não irão chegar ao país. Além disso, a guerra no Leste da Europa vem dificultando a logística do comércio internacional, já combalida pelos anos de pandemia. Ao fim e ao cabo, todos esses entraves logísticos aumentarão os preços da cadeia produtiva, o que irá inflacionar o preço dos alimentos para o consumidor9.
A questão da alta do preço dos alimentos, todavia, vem de antes da pandemia: o DIEESE divulgou dados mostrando que, em setembro de 2021, a cesta básica de alimentos já consumia pouco mais de 65% do salário em Porto Alegre, e ficava nesse patamar em pelo menos 7 capitais brasileiras. E aí é fundamental discutir o papel concreto do agronegócio brasileiro na questão do preço dos alimentos no país, para além dos efeitos da corrente guerra entre Rússia e Ucrânia. Pois, à medida que se trata de um modelo que tem por base a exportação e a inserção subordinada às grandes cadeias produtivas internacionais, extremando a forma-mercadoria da agricultura, a demanda irracional de acumulação se sobrepõe a qualquer política de segurança alimentar da população. Com isso, seguimos consumindo alimentos mais caros, produzidos com grandes quantidades de agrotóxicos e que contribuem para o enriquecimento de poucos, à custa da fome e miséria de muitos.
Como não poderia deixar de ser, o enorme poder econômico do agronegócio vem acompanhado de uma extensa rede de poder político, que hoje conta com importantes conexões no poder executivo e legislativo da república, com apoio explícito do atual presidente, que recentemente renovou sua posição favorável ao “agro”, ao afirmar que o setor é a locomotiva do país10. No âmbito do legislativo, um dos exemplos recentes da força do agronegócio é o avanço de projetos de lei que favorecerem a ampliação do uso de agrotóxicos, a mineração comercial em terras indígenas, a flexibilização do licenciamento ambiental, a mudança no marco temporal e a legalização da grilagem, o que vem sendo chamado por diversas lideranças e movimentos sociais de “Pacote da Destruição”. Todos esses projetos, obviamente,
9VENÂNCIO, Romualdo. Agronegócio: entenda como a guerra na Ucrânia eleva o custo dos alimentos. Istoé Dinheiro, 02 de mar. 2022. Disponível em: https://www.istoedinheiro.com.br/agronegocio- entenda-como-a-guerra-na-ucrania-eleva-o-custo-dos-alimentos/. Acesso em 14 de março de 2022.
10BRITO, Ricardo. Bolsonaro defende agronegócio e consumo de carne 'de segunda a domingo'. UOL,
06 jan. 2022. Disponível em: https://economia.uol.com.br/noticias/reuters/2022/01/06/bolsonaro- defende-agronegocio-e-consumo-de-carne-de-segunda-a-domingo.htm. Acesso em 14 de março de 2022.
têm apoio ostensivo do governo Bolsonaro, e a crise gerada pela guerra na Ucrânia vem sendo usada como justificativa para fomentar a sua aprovação.
As lutas dos trabalhadores do campo e das comunidades originárias adquire um significado ainda mais relevante na atual conjuntura de avanço da devastação ambiental no Brasil, pois trata-se de resistir contra uma força predatória que afeta não somente as vidas cotidianas daqueles sujeitos, mas também a qualidade e preço da alimentação da classe trabalhadora como um todo. E quando nos voltamos para as questões educacionais, a situação não é menos dramática. A atual política de financiamento da educação, com destaque para o FUNDEB, vem tornando ainda mais limítrofe a situação das escolas do campo que, de 2007 a 2018, tiveram uma redução de 1,4 milhão de matrículas, algo em torno de 20% do total (PINTO, 2019). Outra questão substantiva refere-se às estratégias de construção de uma imagem “positiva” do agro junto aos alunos da escola pública, através da um modelo de educação ambiental cujo foco está nas “boas práticas” dos indivíduos na preservação dos recursos naturais, e na divulgação da “responsabilidade ambiental do agro” (LAMOSA, 2016), sem no entanto retirar a responsabilidade (des)educativa que assumem os meios de comunicação de massa. Há uma pedagogia destes meios que mascaram ou falseiam a possível compreensão da realidade – o que de fato é, como conforma emoções, sentimentos e os próprios corpos.
Não se furtando ao debate sobre o avanço predatório do agronegócio, cujas consequências são terríveis para trabalhadores e trabalhadoras, suas famílias e filhos, acreditamos que o número 41 da Trabalho Necessário, “Questão agrária e lutas no campo: experiência camponesa”, propiciará um enfoque necessário e crítico ao avanço capitalista no campo e à resistência de agricultores, quilombolas e indígenas. Aproveitamos para agradecer todos e todas que contribuíram na realização dessa edição: autor@s, pareceristas, revisor@s e apoiador@s da revista, pois muitas são e foram as mãos e mentes para a elaboração desse número, nesta nova gestão editorial. Conforme já afirmamos acima, o combate é sempre árido, mas seguiremos juntos.
No mês do centenário da Semana de Arte Moderna de 1922, a capa da TN 41 traz a contribuição de Cândido Portinari com a obra Café, de 193511, artista que
11 Agradecemos a Eliza Seoud Portinari – Assessoria Jurídica da Coleção Portinari pela cessão / autorização das imagens e Vera Lúcia Macedo Bendia por ser a mediadora no processo.
sempre esteve atento para apresentar um Brasil real, rico em sua diversidade e desigual em sua realidade social, tão propício e emblemático ao número temático, na medida em que denuncia e anuncia as possibilidades das experiências humanas e que as vidas precisam ser valorizadas. Convidamos @s) leitor@s também a visitarem a Coleção Portinari no site www.portinari.org.br. Deixamos também para fruição d@s leitor@s uma homenagem prestada por Mercedes Sosa para o grande artista brasileiro. Link: https://youtu.be/uC-mtcabM0k
Por último, e aproveitando os trechos da música de Bob Dylan citados na epígrafe, reforçamos nosso desprezo pela guerra produzida por aqueles que só impõem dor e sofrimento aos povos, enquanto a burguesia se esconde em suas mansões. Os “mestres da guerra” são, enfim, os reais inimigos. Que tenhamos a capacidade de enxergá-los por detrás de suas máscaras.
Desejamos a tod@s uma excelente leitura e reflexão!
Niterói-RJ, março (verão) de 2022.
ARANTES, P. O novo tempo do mundo: e outros estudos sobre a era da emergência. São Paulo: Boitempo, 2014.
DYLAN, B. Mestres da Guerra. In: Letras (1961-1974). São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
LAMOSA, R. Educação e agronegócio: a nova ofensiva do capital nas escolas públicas. Curitiba: Appris, 2016.
MELO, D. A direita ganha as ruas: elementos para um estudo das raízes ideológicas da direita brasileira. In: DEMIER, Felipe e HOEVELER, Rejane (orgs.). A onda conservadora: ensaios sobre os atuais tempos sombrios no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad, 2016.
PINTO, J. M. de R. A política de fundos no Brasil para o financiamento da educação e os desafios da equidade e qualidade. Propuesta Educativa, Año 28, núm. 52, p. 24-40, 2019.
V.20, nº 41, 2022 (jan-abr) ISSN: 1808-799X
Jacqueline Aline Botelho Lima2 Leonilde Servolo de Medeiros3
A partir da proibição do tráfico internacional de escravos, resultado da Lei Eusébio de Queirós datada de 1850, a Lei de Terras tornava a terra cativa no Brasil (Martins, 2010), definindo que ela só poderia ser acessada por meio de compra. Com essas leis, o Brasil inicia a longa transição de sociedade escravista para uma sociedade capitalista dependente, continuando o campo (e, em grande medida a sociedade brasileira) sendo palco do poder derivado da forma de propriedade da terra resultante da grande concentração fundiária. Desta forma, compreendemos que não é possível entender o Brasil, sem uma análise da questão agrária, ainda pouco revisitada em nossa contemporaneidade. Esse conteúdo imprescindível nos permite analisar as dinâmicas das classes sociais, as origens agrárias do Estado brasileiro, a formação das classes urbanas, o surgimento das cidades, e, especialmente, os processos de lutas e resistências camponesas e indígenas, evidenciadas na relação
1 Artigo recebido em 27/03/2022. Aprovado pelos editores em 28/03/2022. Publicado em 28/03/2022 DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v20i41.53717.
2 Professora Adjunta da Escola de Serviço Social da UFF/Niterói. Doutora em Serviço Social pela UERJ. Mestre em Políticas Públicas e Formação Humana pelo PPFH/UERJ. Graduada em Serviço Social pela UERJ. Pesquisadora Permanente do NEDDATE/UFF. Coordenadora do NEPEC (ESS/UFF).
E-mail: botelho.jacque@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/7423332568707388. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1989-5089.
3 Professora titular no Programa de Pós-graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade, da UFRRJ. Bacharel e licenciada em Ciências Sociais pela USP. Mestre em Ciência Política pela USP e Doutora em Ciências Sociais pela UNICAMP. Coordenadora do Núcleo de Pesquisa, Documentação e Referência sobre Movimentos Sociais e Política Públicas no Campo, do CPDA/UFRRJ e membro do Observatório de Políticas Públicas para a Agricultura da UFRRJ.
E-mail: leonildemedeiros@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/6874717097891723. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5030-8044.
que trabalhadores e trabalhadoras do campo estabelecem com a terra e, nas últimas décadas com o poder derivado da força econômica, social e política do agronegócio. Numa primeira aproximação, o sumário do número 41 da Revista Trabalho Necessário, que se dedica à análise da Questão agrária e lutas no campo: experiências camponesas, mostra a importância das abordagens relacionais para entender o que está em jogo no meio rural brasileiro (mas nem só no rural e, muito menos, só no Brasil): como entender as dimensões contemporâneas da questão agrária sem adentrar nas complexas relações em que ela está imersa e que se relacionam com as diferentes expressões de poder e do papel do agronegócio? Onde
e como se manifesta? Como se evidenciam suas práticas?
Esta edição se inicia com a seção Homenagem, que contempla o documentarista, professor aposentado do Instituto de Economia da UFRJ, José Roberto Pereira Novaes, conhecido como Beto Novaes, autor de uma ampla filmografia sobre as condições do trabalho no campo, com destaque para os canaviais paulistas; as formas de organização; o trabalho das mulheres, com destaque para pescadoras e marisqueiras (“mulheres das águas”); jovens rurais; assentados; efeitos dos agrotóxicos sobre os trabalhadores etc. O artigo, escrito por um parceiro de trabalho por longos anos em pesquisas, documentários, artigos, livros, Francisco José da Costa Alves, professor aposentado da UFSCar, narra a trajetória dessa relação, os temas tratados por Beto Novaes, mas principalmente fala de uma determinada concepção do cineasta que acompanha a produção dos documentários: a ideia de educação através de imagens. Ao longo do texto, o autor reitera a sensibilidade de Beto Novaes para diferentes dimensões do cotidiano apreendido nos filmes e a importância que dá à divulgação de sua produção entre os próprios trabalhadores, de forma a provocar debate e aprendizado entre eles.
A seção artigos do número temático inicia-se com o texto de Paulo Alentejano, intitulado “Contrarreforma agrária, violência e devastação no Brasil” onde o autor apresenta um balanço da reforma agrária no Brasil nos últimos anos, com ênfase no desmonte promovido a partir do governo Temer, mas em especial no governo Bolsonaro. Não por acaso, Alentejano usa o termo “contrarreforma agrária”, utilizado por diferentes analistas em contextos diversos. Ou seja, trata-se de um conjunto de medidas que estimulam não a distribuição de terras aos que nela trabalham, mas sim processos de expropriação e a concentração, com base na
violência contra as populações demandantes de direitos, intimidando seus porta- vozes, buscando anular resistências. Dessa perspectiva, o autor mostra que se, no governo Temer, houve um total desmonte das instituições e da legislação que foram se constituindo a partir da aprovação da Constituição de 1988, no governo Bolsonaro há uma forte pressão pela construção de novos aparatos legais que estimulem a grilagem e a devastação ambiental, além de colocar na pauta iniciativas que visam inserir no mercado as terras conquistadas pelos assentados. Com efeito, a possibilidade de titulação individual dos lotes certamente conduzirá a uma ativação do mercado de terras. Cercados pela precariedade, com apoio frágil à produção, à saúde, à educação, sem estradas para escoamento do que produzem para permitir o acesso aos consumidores, sem telefonia e pouco alcance da internet, não é difícil entender quão tentadora é a possibilidade de venda da terra e consequente saída do lote ou para ir morar com outros membros da família nas próprias áreas rurais ou para tentar a vida nos centros urbanos. Com isso, criam-se condições para o avanço do agronegócio, corporificado não só na concentração fundiária, mas também na concentração de investimentos em logística, infraestrutura, produção de máquinas, insumos e sementes, grande parte deles controlados por indústrias globalizadas e regidas por uma lógica que não se prende ao local, mas sim às estratégias globais de reprodução do capital investido. A essa lógica, que fragilizou a capacidade de resistência dos movimentos sociais, somam-se os efeitos da pandemia, que dificultam ainda mais (mas não eliminam) as formas de resistência. Como aponta Alentejano, estas cada vez mais assumem um caráter local e se reinventam.
Como perspectiva teórico-metodológica, consideramos na organização deste número que o Estado não é o demiurgo das relações sociais, mas que estas, na particularidade brasileira, abriram espaço para uma sociedade autoritária e de cultura autocrático-burguesa que contribuiu para processos de tipo “não clássico” no enfrentamento de tarefas de transformação social, diferenciados das experiências pelas quais passaram países “que terminaram por gerar sociedades de tipo “ocidental”, “liberal-democráticas” (COUTINHO, 2006, p.174).
Ainda na atualidade, o processo de expansão territorial é estratégia fundamental da burguesia brasileira e internacional, o que tem trazido consequências drásticas ao meio ambiente e à preservação e à manutenção da vida. Os grupos sociais organizados contra a antiga ordem no Brasil acumularam experiências de luta
que nos trazem ensinamentos para a atualidade, tal como manifestado pelos camponeses, pelos quilombolas e indígenas, em que pese séculos de brutal repressão.
O artigo de Douglas Ribeiro Barboza, intitulado “Políticas de terra e trabalho no período pré-republicano: elementos para pensar a questão agrária no Brasil” faz uma análise das políticas de terra e de trabalho no período pré-republicano brasileiro, com o objetivo de mostrar justamente a importância da questão agrária para a compreensão das formas históricas assumidas pelo Estado ante a permanente presença dos interesses vinculados à propriedade territorial na composição do poder. Com esse objetivo, o autor analisa o colapso do sistema colonial e a continuidade da escravidão e do poder ligado à propriedade da terra, os mecanismos de coerção instituídos com a crise do escravismo, e as marcas incidentes sobre a formação social brasileira.
No artigo de Thereza Cristina Cardoso Menezes, “Colunas de fogo, cortinas de fumaça e narrativas inflamáveis: multiplicação de incêndios florestais e as novas dinâmicas sociais da expansão da fronteira agropecuária amazônica”, a autora propõe uma reflexão sobre os desdobramentos da questão ambiental no Brasil, que se agrava no contexto de expansão do capital no campo, por meio da ação ostensiva de queimadas na Amazônia, atingindo áreas de diferentes estados da federação, especialmente a partir da ação da agropecuária. O crescimento da disponibilidade de terras para fins da expansão da fronteira agropecuária, desde a década de 1990, chega a um momento alarmante no governo Bolsonaro, mediante aumento de estratégias que favorecem expectativas de uma possível regularização e valorização do estoque de terras disponíveis no mercado informal. O governo Bolsonaro e sua campanha internacional de ataque à demarcação de terras indígenas, demonstra haver uma inflexão no destino socioambiental amazônico, que irá legitimar práticas de devastação ambiental, com graves impactos aos agricultores e comunidades tradicionais
Analisando os desafios conjunturais para os povos indígenas, o artigo “Movimento e resistência indígena no contexto pandêmico brasileiro”, de Luiz Eloy Terena, denuncia o atual modelo de desenvolvimento que tem afetado de forma predatória os territórios tradicionais e nos oferece uma contextualização da política indigenista brasileira, apresentando as articulações atuais que o movimento indígena
brasileiro, liderado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), vem empreendendo. O artigo argumenta sobre como a FUNAI se comporta de maneira autoritária e colonial, criminalizando lideranças indígenas, nos permitindo também enxergar como os povos indígenas têm, apesar de toda violência, conseguido construir estratégias de resistência desde o processo de colonização do Brasil, e que na atualidade se fazem ainda mais necessárias mediante medidas agressivas do governo Bolsonaro, que sinalizam para o ataque aos direitos dessa população na reprodução do seu modo de vida, tal como o Projeto de Lei 191/20 que prioriza durante a pandemia a abertura de terras indígenas para a exploração da mineração.
O colonialismo cultural segue como estratégia na disputa dos territórios, o que impõe desafios para pensarmos as lutas e reconhecermos as resistências históricas. Apesar das interpretações eurocêntricas de que a invasão e a colonização europeia e seus efeitos foram aceitos passivamente pelos indígenas, e das reais investidas dos dominantes na cooptação dos lutadores em diferentes frentes, consideramos que, para além da presença da resistência em suas ações, os povos e comunidades tradicionais foram fundamentais na preservação da floresta, e da vida no campo, por meio de seus modos de vida e saberes.
Dessa perspectiva, entendemos que o movimento de resistência nas terras cumpre uma tarefa histórica na defesa dos territórios camponeses. Na realidade brasileira, a expansão da agropecuária que vem desde os anos 1960, com o avanço das políticas modernizadoras, também evidenciou a multiplicação dos movimentos camponeses em luta por terra, ampliando a conflitualidade e a criação de assentamentos rurais, estando o MST à frente desse processo. Corporações nacionais e transnacionais ampliaram o modelo agroexportador através do agronegócio que aglutina, com pesos diferenciados, os sistemas agrícola, pecuário, industrial, mercantil, financeiro, tecnológico, científico e ideológico (FERNANDES, 2008). Nas primeiras décadas do século XXI, as mudanças conjunturais da questão agrária, com o fortalecimento do agronegócio, geraram diferentes conflitualidades, visto que os movimentos camponeses e indígenas confrontam-se agora com corporações transnacionais.
Entendemos que a feição antidemocrática, assumida pela revolução burguesa no Brasil (FERNANDES, 2006), sustenta o processo de desigualdade de temporalidades históricas, na medida em que a transição do capitalismo competitivo
ao monopolista no país ocorre por caminhos que fogem ao modelo de democracia burguesa, ou seja, a burguesia brasileira nunca possuiu forte orientação democrática e nacionalista, direcionada à construção de um desenvolvimento autônomo.
Desta maneira, a propaganda do agronegócio e os ataques à educação do campo são parte da feição autocrática do Estado brasileiro e do seu descompromisso com a construção da democracia. Os artigos de Regina Bruno e de Tássia Cordeiro nos auxiliam a pensar nas estratégias de dominação dos setores agrários pelo convencimento no campo da cultura e educação.
Regina Bruno, no texto “O processo de construção da hegemonia do agronegócio no Brasil: recorrências históricas e habitus de classe” se volta para a análise do trabalho político no interior desse segmento, de forma a lhe assegurar a manutenção do poder de definir seus contornos. Um trabalho que, ao mesmo tempo em que se volta para dentro do amplo grupo que se agrega no que chamamos de agronegócio, num esforço de produzir uma identidade de classe, também se volta para a criação de uma imagem própria frente à sociedade, uma imagem totalizante e que procura não deixar brechas (“o agro é tudo” e está presente em todos os momentos de nossas vidas). A autora, ao longo do texto, mostra como é construída uma retórica que busca a ampla legitimidade social, mas, ao mesmo tempo, sem descuidar da procura de espaços no Legislativo, onde é capaz de influenciar na elaboração de leis. Se é conhecida e denunciada a dimensão de violência física que acompanha sua expansão, não menos relevante é a violência simbólica, desqualificadora dos que se opõem à sua expansão.
Focando uma dimensão mais específica do poder do agronegócio, em “Agro sem partido? Coerção e consenso - a investida do agronegócio na educação brasileira”, de autoria de Tássia Gabriele Balbi de Figueiredo e Cordeiro, é analisada a inserção do agronegócio na educação, tomando como objeto empírico a campanha De Olho no Material Escolar e suas relações com as propostas do movimento Escola sem Partido. A partir de uma abordagem gramsciana, a autora procura mostrar a inserção do agronegócio na educação, como contraposição à política de Educação do Campo e suas análises do campo brasileiro a partir de uma perspectiva crítica. Sob responsabilidade do grupo que se autodenomina como “mães do agro”, com uma ampla difusão no Instagram, a campanha visa atualizar e dar embasamento técnico/científico a materiais escolares relacionados ao campo, de
forma a se contrapor ao tratamento dado a temas como desmatamento, uso de agrotóxicos, lugar da agricultura familiar e da questão agrária, de maneira a produzir uma narrativa que produz fundamentos para a expansão da hegemonia do agronegócio. Trata-se de um investimento analítico que busca mapear a forma como o agronegócio interage com a educação, investe na produção de material didático etc, enfatizando uma dimensão político-ideológica que, regra geral, tem sido pouco explorada nas análises sobre o agronegócio.
Continuando as reflexões em torno do agronegócio, o artigo de Heráclito Santa Brígida da Silva, “Agronegócio na Amazônia e o avanço do capital: ataque aos povos do campo”, discute o avanço do agronegócio no norte do país, tratando dos conflitos lá gerados e da política sistemática de negação de direitos dos povos do campo, não só os individuais como também dos chamados direitos difusos (ambientais, territoriais). O autor chama a atenção para o papel central do Estado nesse processo. O texto “A Revolta do Cachimbo e a luta pela terra no Quilombo da Caveira”,
de autoria de Gessiane Nazario, analisa os conflitos fundiários e a luta pela terra, que se prolongam desde os anos 1950, na comunidade quilombola da Caveira, em São Pedro da Aldeia, no estado do Rio de Janeiro. O caso analisado além de tratar da ruptura do pacto moral entre fazendeiros e moradores, descendentes de escravos, da antiga Fazenda Campos Novos, mostra outa face do processo de expropriação que marca determinadas regiões do país: o avanço dos loteamentos urbanos, em especial com finalidades turísticas. Nesse processo de longa duração, o conflito ganha novas formas. A autora apresenta os desdobramentos históricos e mostra como a luta por permanecer na terra se transforma em luta pelo reconhecimento do território secularmente habitado por comunidades de origem escrava que, nos anos 1950 a 1980, lutaram por permanecer na terra a partir dos direitos de posse e, nos anos 1990, passaram a se identificar como quilombolas.
Nesse cenário de diferentes formas de conflito pelo direito à terra, há que considerar ainda a perseguição aberta aos Sem Terra e a política de militarização do INCRA. Nos primeiros dias do governo Bolsonaro, a reforma agrária foi suspensa por tempo indeterminado, arquivando cerca de 250 processos em andamento. Desde
2015, como tem sido noticiado, a reforma agrária vem sofrendo cortes drásticos no financiamento4.
O conjunto de retrocesso corroborados pelo governo Bolsonaro reitera como linha política o ataque aos direitos, e aprofunda medidas de contrarreformas, difundidas como “necessárias” para o capital superar sua crise. Torna-se um desafio para as esquerdas articularem uma reação, quando a ordem da direita ultraliberal é reduzir o valor da força de trabalho com corte brutal de direitos como educação e saúde, com ampliação da barbárie.
Na seção Resenha são apresentadas duas contribuições fundamentais para a discussão por aqueles que, de alguma forma, encontram-se envolvidos no debate sobre as várias dimensões da questão fundiária no país. Elaine Moreira apresenta o livro de Débora Franco Lerrer, intitulado ‘MST: como um movimento de ‘gaúchos’ se enraizou no nordeste”, que analisa como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra chega ao Nordeste brasileiro para levar suas formas de luta. O texto evidencia os processos menos visíveis de expansão e consolidação das organizações e as dificuldades advindas das relações entre grupos portadores de culturas distintas. A segunda resenha, escrita por Ricardo Braga Brito, trata do livro de Caio Pompéia “Formação Política do Agronegócio”. É destacada a multiplicidade de entidades criadas para evidenciar e estabelecer os interesses compartilhados de amplos setores que estariam articulados em torno do que hoje se convenciona chamar de “agronegócio”. O resenhista também destaca como o livro, ao mesmo tempo em que aborda a história e a emergência do agribusiness e do agronegócio como construções políticas, revela um conjunto de mecanismos de organização e estratégias discursivas de enunciação para criação de consensos e espaços de socialização que serão, ao longo do tempo, responsáveis pela aparente homogeneidade de interesses, discursos e práticas do campo do agronegócio.
Na seção Ensaio, Jesús Jorge Pérez García em “Necesidades sentidas: ensayo sobre luchas comunitarias en territorios rurales en Cuba y en la amazonía tocantina paraense – Brasil” identifica a resistência como uma experiência prática, a partir das análises da realidade de Cuba e Brasil no tocante às comunidades rurais.
4 CAMARGOS, D; JUNQUEIRA, D. Governo Bolsonaro suspende reforma agrária por tempo indeterminado. Disponível em:< https://reporterbrasil.org.br/2019/01/governo-bolsonaro-suspende- reforma-agraria-por-tempo-indeterminado/>Acesso em 15 de mar. de 2022.
Como proposta, o autor apresenta o debate sobre o conceito de necessidades sentidas, realizando uma abordagem de base materialista histórico-dialética, na escolha metodológica de revisão de literatura, observações e anotações de campo. O trabalho também evidencia as necessidades sentidas desde os processos educativos/comunitários, que fazem sentir, pensar, atuar em uma dimensão sociocultural.
O número 41 da revista Trabalho Necessário traz ainda na seção Entrevista, importante contribuição de uma liderança do Movimento dos Pequenos Agricultores(MPA), Humberto Ribeiro, onde ele narra a sua trajetória, encontro com o MPA e principais atividades realizadas no estado do Rio de Janeiro. Ao longo da entrevista, Beto desvela dimensões importantes do processo de formação de lideranças, bem como apresenta relevantes reflexões sobre as relações entre movimentos sociais urbanos e rurais em torno do tema alimentação. Beto Ribeiro também fala da importância da criação do espaço Raízes do Brasil, em cujo processo de construção as articulações campo/cidade ganharam materialidade e forma específica de colaboração.
Na seção Teses e Dissertações, são apresentadas três importantes produções sobre o tema. William Kennedy do Amaral Souza, em sua tese de doutorado intitulada “Trabalho-Educação, economia e Cultura em povos e comunidades tradicionais: a (re)afirmação de modos de vida como forma de resistência” evidencia, a partir dos fundamentos teórico-metodológicos do materialismo histórico, modos de vida de povos e comunidades tradicionais nos vales dos rios Guaporé e Madeira, em Rondônia, trazendo os nexos entre trabalho- educação, economia e cultura, entendidos como unidades dialéticas. O autor parte do pressuposto de que a defesa do território e a afirmação de suas maneiras de ser, fazer, sentir e pensar o mundo é elemento de estruturação de suas identidades e, ao mesmo tempo, condição para sua existência. Ou seja, para resistir ao processo de expansão capitalista na Amazônia e à produção destrutiva do capital que, na contemporaneidade do agronegócio e do neoextrativismo corroboram para a desestruturação dos modos de vida, homens e mulheres insistem em conservar formas de estar no mundo que requerem a produção de saberes em sintonia com a natureza e com a comunidade, tendo como horizonte a reprodução ampliada da vida.
Como procedimentos de pesquisa, o autor realizou a observação das práticas cotidianas, entrevistas semiestruturadas e rodas de conversa.
A tese de Marisa Oliveira Santos, intitulada “Memórias do trabalho familiar em casas de farinha: transformação dos modos de vida de homens e mulheres do campo” teve como objetivo analisar as memórias do trabalho familiar em casas de farinha. Trata das transformações no processo de trabalho e nos modos de vida de homens e mulheres do campo, atingidas pelo capital em duas comunidades rurais da Bahia: Campinhos (Vitória da Conquista) e Peri Peri (Belo Campo). A autora trabalha a memória como um construto social que, por meio do vivido, também é capaz de revelar as contradições e as transformações observadas nos modos de vida e no processo de trabalho, em detrimento da inserção da reprodução ampliada do capital na vida em comunidade. Assim, expõe as objetivações e subjetivações da memória e das transformações no processo de trabalho realizado no interior das farinheiras, refletindo a respeito da sobreposição do capital no modo de produzir e de viver das famílias. As entrevistas e as rodas de conversas foram procedimentos utilizados na investigação para revisitarem as memórias do sujeito de pesquisa, homens e mulheres do campo, trabalhadores e trabalhadoras em casas de farinha, tomando o materialismo histórico como suporte teórico metodológico.
A dissertação de mestrado de Thaís Henriques Dias, com o título “O desastre de fundão e a advocacia em questão” analisa a prática advocatícia no contexto do rompimento, em 2015, da barragem de rejeitos de mineração de Fundão, da empresa Samarco Mineração S.A e de suas controladoras Vale S.A e BHP Billiton, no município de Mariana, Minas Gerais. A autora busca identificar a diversidade de agentes e grupos específicos relacionados ao universo da advocacia no desastre e suas consequências na trajetória político-profissional de algumas dessas advogadas(os), da advocacia privada, pública e popular. Também procura desvendar o campo da advocacia empresarial, de forma a apresentar tendências no Direito relacionadas a esse campo. A autora analisa ainda o conflito entre advogados das empresas e advogadas populares sobre os processos de reparação do desastre de Fundão, em meio a um processo judicial. A dissertação usou métodos da pesquisa qualitativa: estudo de caso, conversas informais e entrevistas semiestruturadas com advogadas(os) que atuaram em diferentes momentos a partir de tipos de advocacia distintos; pesquisa e caderno de campo, nos territórios em conflito com a mineração
e atingidos; análise de documentos jurídicos referentes à litigância por direitos das populações atingidas em tensão com os interesses das empresas por reduzir custos da reparação; perfis de advogados empresariais, para identificar atributos comuns, contrapostos e divergentes entre outros.
Na seção Memória e Documentos, Gaudêncio Frigotto revisita o filme Cabra marcado para morrer, dirigido por Eduardo Coutinho ainda nos anos 1980. No artigo “Cabra marcado para morrer, sessenta anos depois: a infâmia do latifúndio contra os que lutam pelo direito à terra e à vida” chama a atenção para a importância de voltar ao documentário, que pode ser visto como um alerta tanto para os perigos que atravessam a atual conjuntura, quanto para a necessidade de retomar a agenda das reformas estruturais. Dessa perspectiva, Frigotto chama a atenção para o fato de que as Ligas Camponesas foram um momento importante da luta pela reforma agrária, uma política que, como aponta Paulo Alentejano no artigo que inicia o dossiê deste número da revista, passou um processo de desmonte institucional e legal. O autor, inspirado em Walter Benjamin, dá destaque para a importância da apropriação do passado, tal como ele se apresenta ao sujeito histórico, de forma a jogar luz sobre o perigo que ameaça a tradição: “entregar-se às classes dominantes, como seu instrumento”.
Para além dos textos dedicados a temas do meio rural, objeto da reflexão dos artigos do número temático, há três outros artigos que tratam de temas de interesse. Finalizamos a apresentação deste número trazendo as contribuições da seção Artigos de outras temáticas, que mesmo não articulada à questão do campo, não deixa de tocar em elementos que fazem chegar até ele, no que se refere ao papel da escola, às políticas e aos desafios postos para ela, enquanto instituição, na formação da classe trabalhadora, contribuindo como um dos instrumentos para a sua emancipação
O artigo de Elydimara Durso dos Reis e Felipe Alencar, “Educação profissional paulista na antessala da reforma do ensino médio: Vence e Novotec no Centro Paula Souza, 2012-2020”, discute os caminhos delineados nos programas Vence e Novotec, no Centro Paula Souza, como tendências de serem modelos para a reforma do ensino médio no estado de São Paulo. Os autores resgatam a disputa histórica no campo da educação profissional técnica no Brasil, apontando como a Reforma do Ensino Médio de 2017 e a aprovação da Base Nacional Comum
Curricular, em 2018, atualizaram o dualismo entre a formação de cultura geral, humanística, propedêutica e a formação técnica e profissional. Segundo os autores, os programas analisados tendem a acompanhar o aprofundamento desta dualidade na rede estadual de ensino e a preparar os estudantes para atividades laborais precárias, o que seria uma ameaça ao futuro dos cursos integrados.
No artigo “EJA integrada à educação profissional: avanços no PNE-retrocessos na BNCC”, Sandra Regina de Oliveira Garcia, Ceuli Mariano Jorge, Patrícia da Silveira analisam como meta do Plano Nacional de Educação – PNE 2014-2024 a ampliação da oferta da Educação de Jovens e Adultos –EJA- integrada à Educação Profissional nas etapas dos Ensinos Fundamental e Médio. A realização desse objetivo estaria relacionada ao cumprimento de 11 estratégias que tratam da expansão, do currículo, da infraestrutura, do acesso das pessoas com deficiência e das condições de permanência. Partindo dessas considerações, os autores argumentam que há uma insuficiência dessa oferta, o que se agrava com as Novas Diretrizes Curriculares da EJA, alinhadas à BNCC, que impõem mudanças curriculares que empobrecem e descaracterizam o currículo e definem obstáculos à escolarização dos trabalhadores.
Compreende-se, em diálogo com o conteúdo trazido pelos textos que resgatam o tema educação, que uma escola “viva e criadora” deva garantir o “desenvolvimento intelectual de seus alunos, de modo que possam se tornar dirigentes” (Ramos, 2004,
p. 50). O currículo integrado é pressuposto do ensino médio integrado, fundado sob uma pedagogia que busca a construção conjunta de conhecimentos gerais e específicos, no sentido de que os primeiros devem fundamentar os segundos e estes evidenciem o caráter produtivo concreto dos primeiros (Frigotto; Ramos; Ciavatta, 2005).
A preparação profissional no ensino médio é uma imposição da realidade, em que admitir legalmente essa necessidade tornou-se um problema ético. O que se pretende nas lutas dos educadores por ensino médio de qualidade não é meramente atender a esta necessidade do jovem que está nesta etapa do ensino, mas pautar a urgência de mudar as condições em que este ensino se desenvolve, na luta pela obrigação ética de que o ensino médio integrado ao ensino técnico se realize sob uma base unitária de formação humana, como condição necessária à realização da travessia para uma nova realidade que supere a desumana divisão entre os que
pensam e executam, entre o trabalho manual e o trabalho intelectual, entre o trabalho e a educação em nossa sociedade, no lugar relação entre mercado e educação. (FRIGOTTO, CIAVATTA, RAMOS, 2005, p.43).
Em “Educação jurídica no contexto da formação integrada de jovens e adultos diante da precarização de direitos trabalhistas”, Élida Cristina de Oliveira, Marcos Antônio Andrade da Costa e Wanderley Azevedo de Brito trazem uma interessante contribuição para pensar os usos do direito nas lutas sociais, entendendo-o como conhecimento necessário para possibilitar uma vida digna e o exercício pleno da cidadania pelos indivíduos. Por esse caminho, após fazerem uma análise da literatura a respeito da precarização das relações de trabalho, os autores defendem que a disseminação do conhecimento jurídico é uma ferramenta para o “desenvolvimento de uma postura crítica capaz de fazer os indivíduos compreenderem a historicidade dos direitos atuais e a necessidade de luta para a manutenção e ampliação desses direitos”.
Neste número da Trabalho Necessário há uma preocupação de alertar os coletivos organizados em defesa da educação no sentido de identificar as experiências populares em curso e as possibilidades de unidade nas lutas em prol de mudanças. Os movimentos sociais reafirmam na atualidade a necessidade do debate sobre a educação popular, transformadora, num contexto de recrudescimento das ações autoritárias do Estado e de políticas crescentemente excludentes. O grande desafio que nos é colocado é o de pensar a relação entre ciência, cultura e trabalho- mediante as evidências históricas de descarte das experiências dos sujeitos- como conteúdo pedagógico, com vistas a fomentar processos de humanização.
Por esta razão, torna-se cada vez mais urgente pensarmos as contribuições dos movimentos sociais para a consolidação de projetos democráticos de reivindicação por direitos. Os movimentos sociais têm emprestado às lutas por educação um sentido político e transformador, ao vincular o debate sobre o direito à escola à luta por direitos humanos elementares, associados à construção de vida digna para seus filhos e filhas.
Experimentamos na atualidade um dos cenários mais brutais da história do país, marcado por uma política de estratégia neofascista implementada pelo então presidente da República Jair Bolsonaro e seus aliados, que organizou políticas de incentivo aos crescimento de lucros dos setores dominantes às custas da destruição
cotidiana das condições de manutenção do modo de vida camponês, impondo desafios às lutas sociais na construção de alternativas capazes de barrar o aprofundamento da questão agrária. Sendo assim, convidamos à leitura do número temático, compreendendo ser este o resultado de um esforço intelectual coletivo, a fim de contribuir para o entendimento de que a superação do atual cenário exige, para além da superação da ordem capitalista, o fortalecimento do pensamento crítico e da produção do conhecimento científico como mediações fundamentais na ação transformadora sobre a realidade dos diferentes territórios, que permanentemente nos exigirá novas indagações.
Que tenham uma boa leitura!
COUTINHO, C. N. O Estado brasileiro: gênese, crise, alternativas. In: LIMA, Júlio César F.; NEVES, Lúcia M. W. (orgs.). Fundamentos da educação escolar do Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2006, p. 173-200.
FERNANDES, B. M. O MST e as Reformas Agrárias no Brasil. Boletim DATALUTA
– Artigo do mês: dez. 2008.
FERNANDES, F. A revolução burguesa no Brasil. 5ª. ed. São Paulo: Editora Globo, 2006.
FRIGOTTO, g; CIAVATTA, M; RAMOS, M. Ensino Médio Integrado: concepção e contradição. São Paulo: Cortez, 2005.
MARTINS, J. S. O cativeiro da terra. 9. ed, São Paulo: Contexto, 2010.
RAMOS, M. O projeto unitário de ensino médio sob os princípios do trabalho, da ciência e da cultura. In: Ensino Médio: Ciência, cultura e trabalho. Brasília: MEC, SEMTEC, 2004.
V.20, nº 41, 2022 (jan-abr) ISSN: 1808-799 X
Francisco da Costa Alves2
1 Texto recebido em 20/02/2022. Aprovado pelos editores em 21/02/2022. Publicado em 28/03/2022. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v20i41.53223.
2 Possui graduação em Economia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – Rio de Janeiro / Brasil (1973), mestrado em Engenharia de Produção pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – Rio de Janeiro / Brasil (1975) e doutorado em Ciência Econômica pela Universidade Estadual de Campinas – São Paulo / Brasil (1986). Atualmente é Professor Associado do Departamento de Engenharia de Produção da Universidade Federal de São Carlos. Tem atuado nas áreas de Economia do Trabalho, Economia Rural e Políticas Públicas. Tem publicado sobre as seguintes temáticas: Relações de Trabalho; Condições de Trabalho; modernização da agricultura, movimentos sociais no campo e Economia Solidária. E-mail: chiquinho@dep.ufscar.br.
Lattes:http://lattes.cnpq.br/9183120186518337. ORCID:https://orcid.org/ 0000-0002-9273-2684.
Falar sobre José Roberto Novaes, mais conhecido como Beto Novaes, e sobre o conjunto de documentários realizados por ele nesses últimos 45 anos é uma tarefa grande demais para mim, não só pelo volume de sua obra, pela densidade do material apresentado e diversidade de temas tratados, mas, fundamentalmente, porque o trabalho e vida de Beto misturam-se à minha. Além de amigos, compadres, irmãos, somos parceiros antigos. Realizamos, em conjunto, inúmeras pesquisas e as transformamos em documentários desde o início desse processo, quando Beto resolveu se dedicar de corpo e alma à realização desse tipo de produção visual, ainda em Campina Grande, no campus da Universidade Federal da Paraíba. Depois de Campina Grande, já trabalhando em universidades diferentes, fizemos juntos vários trabalhos de pesquisa, que, por insistência do Beto, geraram documentários.
Beto Novaes é, na minha opinião, um dos maiores documentaristas brasileiros, não apenas pelo volume de sua obra, mas fundamentalmente pelo ângulo adotado para tratamento das temáticas apresentadas, caracterizado pelo protagonismo dado à narrativa dos trabalhadores e trabalhadoras, adultos, crianças, jovens e idosos. São esses personagens que, nos documentários de Beto, deixam de ser objeto e passam a ser protagonistas da narrativa e da ação de transformação da realidade.
Neste artigo, não vou apresentar toda a filmografia de Beto nesses quase 50 anos de trabalho. Apenas pontuarei os aspectos mais importantes dessa extensa obra, ressaltando em particular alguns documentários, nos quais tive maior participação, quer por ter conduzido a pesquisa, por ter compartilhado a direção ou até mesmo por ter sido entrevistado.
Quero ressaltar, ainda, uma característica importante da trajetória profissional de Beto. Ele conseguiu, como poucos, exercer plenamente e na integralidade as atividades inerentes à sua carreira: professor do ensino superior em duas importantes universidades do sistema federal do ensino do Brasil: a Universidade Federal da Paraíba, campus de Campina Grande (UFPB-CG) e a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Como todos conhecem, a atividade docente no Brasil, pressupõe a indissociabilidade entre o ensino de graduação e pós-graduação, a pesquisa e a extensão. Beto, ao longo de sua carreira, exerceu as três atividades plena e simultaneamente, o que é, de certa forma, raro na academia. Alguns de nós,
conseguimos nos tornar bons pesquisadores, com uma carreira invejável do ponto de vista da contribuição ao desenvolvimento da ciência, mas somos péssimos docentes; outros são excelentes docentes, sempre lembrados pelos alunos nas formaturas, mas com pouca produção científica; outros ainda fazem inúmeras e importantes atividades de extensão, mas são pouco encontrados e lembrados em salas de aula. Beto consegue fazer as três dimensões plenamente e será a elaboração de documentários o fio condutor que lhe permitirá integrar essas atividades.
Os documentários realizados por Beto se assentam em pesquisas, ou seja, são pesquisas acadêmicas realizadas por ele ou por pesquisadores próximos, que tomam a forma de imagens. Porém, para realizar a pesquisa e elaborar os documentários é necessário buscar os informantes do objeto e, como o objeto é o trabalho, os trabalhadores são procurados, assim como suas entidades de representação, sejam sindicatos, federações, confederações, centrais sindicais, associações de produtores, organizações não governamentais (ONGs) etc. Portanto, ao fazer pesquisa e ao fazer documentários, Beto tece uma enorme rede de relações, que lhe abrirá portas para uma interação efetiva entre a universidade e o mundo do trabalho. Será essa interação com o mundo do trabalho que permitirá a Beto o recebimento de demandas diretas dos trabalhadores, como, por exemplo, a da Central Única dos Trabalhadores (CUT) para fazer o documentário sobre os rurais que constituíam sua base (Os rurais da CUT).
Os filmes de Beto Novaes, que se caracterizam por colocar o objeto de análise, os trabalhadores e trabalhadoras, na posição de protagonistas, reabrem uma velha discussão sobre o que é um documentário. É uma obra de ficção ou é a realidade retratada? Para Beto, na minha interpretação, o documentário é uma obra não ficcional, na medida em que tudo o que é mostrado é real e cientificamente comprovado. Ele mostra, sem trucagem ou efeitos especiais, a realidade, nua e crua. Mas, ao mesmo tempo, ele é também ficção, na medida em que a realidade, embora não maquiada, é mostrada a partir do olhar de seu observador, o realizador. Este capta a realidade e a devolve na forma de documentário, depois de processada, decupada, montada. Nesse processo, o cérebro do realizador, antes observador,
incorpora nessa realidade reconstruída, seus valores, sua forma de ver e pensar. Nesse processo, o documentário passa a ser, portanto, a realidade não real, mas um real transformado pelo realizador, mas também pelos protagonistas da trama social: os trabalhadores e trabalhadoras, que contam suas histórias, mostram seus corpos marcados por essa realidade.
A obra de Beto mostra uma realidade, que raramente aparece na televisão, no cinema, no rádio, na mídia empresarial, de e do mercado. A realidade mostrada nesses documentários é invisível: são trabalhadores, trabalhadoras, jovens, crianças e velhos, pertencentes ao povo e este só é mostrado pela mídia em casos de catástrofes ou festas. Nos documentários de Beto não há catástrofes, a não ser o cotidiano das duras e invisíveis condições de vida e trabalho a que a população trabalhadora está submetida e que, aos olhos estranhos, parece catástrofe. Nesses documentários, embora se mostre o trabalho, há também festas, porque no trabalho se canta, se dança, se conversa. Os filmes de Beto são como o inverso de um olhar despreocupado sobre uma paisagem. Por exemplo, quando passamos de carro numa estrada e vemos, pela janela, um verdejante canavial, um belo pomar de frutas, um campo de soja flutuando ao vento, a colheita de uma commodity qualquer, mas não vemos os trabalhadores que produziram aquele cenário, que realizaram a produção ou a colheita. Vemos, no máximo, o produto e ou as máquinas. É como se estivessem ali por obra do acaso ou como resultado da ação das máquinas, que aparecem como se não tivessem sido conduzidas por homens e mulheres, como se fossem autômatos. Quando não vemos os trabalhadores, também não vemos as condições em que aquele trabalho foi realizado e isso é o que é mostrado em primeiro plano nos documentários de Beto.
O grande motivador de Beto na direção da realização de documentários é a seguinte questão: como levar o conhecimento gerado na universidade, através da pesquisa científica, para os trabalhadores e trabalhadoras? Como fazer com que o conhecimento gerado não fique sob o domínio apenas de quem o produziu ou o financiou: os pesquisadores ou as agências financiadoras, públicas ou privadas?
Para Beto, o produto da pesquisa científica, ao tomar a forma de relatórios, livros ou artigos científicos, disponíveis apenas em bibliotecas ou para assinantes, confina o conhecimento produzido aos próprios produtores do conhecimento, ou aqueles que os financiam. Mas o conhecimento científico deve ser disponibilizado à população: os trabalhadores e trabalhadoras. Esta proposta motivará Beto a dirigir sua trajetória acadêmica à pesquisa sobre o trabalho rural e à transformação do resultado da pesquisa acadêmica, sua e de outros pesquisadores, em um material acessível: documentários, em suas diferentes formas (filmes, vídeos, fotografias etc), que possam ser acessados, entendidos e debatidos livremente pelos trabalhadores e trabalhadoras, em seus locais de trabalho e moradia.
Motiva Beto, na realização de documentários, o fato de saber que os trabalhadores e trabalhadoras, em sua maioria, no Brasil, são analfabetos ou semialfabetizados e não têm condições de ler um livro ou um artigo científico, que são escritos numa linguagem acessível a poucos. Portanto, o documentário, é um meio de poder fazer chegar a eles o enorme acervo científico produzido pela academia. Para que isso se torne efetivo, são necessárias duas coisas: primeiro, transformar o resultado da pesquisa em documentário; segundo, criar condições para que esse material esteja ao alcance dos trabalhadores e trabalhadoras. Para dar conta do primeiro problema, é necessário traduzir a pesquisa, que foi produzida numa determinada língua e linguagem acadêmica para uma outra língua e linguagem, acessíveis aos trabalhadores, que não são letrados e não são treinados para leitura, em especial leitura de textos acadêmicos. Os documentários não podem ser uma espécie de manual, do tipo “faça você mesmo”, que são, em sua grande maioria, chatos e pouco claros. Eles devem ter características próprias que os tornem, ao mesmo tempo, compreensíveis, isto é, que possam ser entendidos pelos trabalhadores e disponíveis. E, para isso, é necessário pesquisar e até inventar possibilidades de difundir o documentário. É na difusão que o documentário chega aos trabalhadores e a partir daí poderá vir a ser usado para a reflexão sobre a realidade ali mostrada. Essa reflexão é que irá gerar os elementos necessários à transformação social. Dessa forma, a divulgação dos vídeos tomou e toma até hoje uma parte da preocupação de Beto Novaes.
Nos vários e diferentes documentários realizados por Beto ao longo de sua carreira, há quatro preocupações permanentes: 1) o compromisso com o conteúdo da
pesquisa científica; 2) os trabalhadores e trabalhadoras que, através de suas falas, de seus corpos, são os protagonistas da narrativa; 3) a fala está subordinada à imagem e 4) não há a indicação de caminhos para a superação dos problemas sociais apresentados.
A primeira preocupação, volta-se para o fato de que o que é mostrado no documentário é resultado de pesquisa e, portanto, é cientificamente comprovado. Não é uma narrativa casual, não é mentira (chamadas modernamente de fakenews), portanto tem compromisso com a verdade. A segunda preocupação vai na direção de mostrar a realidade através dos próprios trabalhadores, tornando-os protagonistas da narrativa. Se eles são os protagonistas, podem e devem ser os responsáveis pela mudança. A terceira se refere à característica estética do documentário perseguida por Beto. Ele acredita que uma imagem bem colocada vale mais do que mil palavras e se a imagem está posta, ela dispensa a palavra. A quarta preocupação é muito importante, porque o documentário não deve apresentar soluções aos problemas apresentados. Ou seja, ele deve apresentar problemas, apresentar alternativas, mas não pode apontar soluções, porque a solução de problemas sociais só é alcançada por meio da luta social que deve ser empreendida pela sociedade e pela classe social que é vitimizada pelo problema. Portanto para haver solução é necessário que haja luta e é nessa luta, empreendida pelos trabalhadores e trabalhadoras, que as alternativas vão se dando. As escolhas devem ser feitas pelos trabalhadores.
Lembro de uma vez em que Beto e eu estávamos participando da exibição e discussão de um documentário para um conjunto de estudantes interessados em estudar as condições de vida e trabalho dos trabalhadores rurais. Apresentamos o documentário Migrantes, que realizamos juntos. Quando dávamos andamento ao debate, uma aluna perguntou, dirigindo-se ao Beto: “Professor, por que você não mostrou a solução do problema, porque você mostrou apenas que eles são obrigados a migrar, quando chegam no destino, têm péssimas condições de trabalho, que algumas vezes os leva à morte ou à incapacidade física permanente. Afinal, por que você não diz se eles devem migrar ou não?” Beto respondeu: “eu não tenho a resposta, se é melhor ir, ou ficar, porque as duas alternativas colocadas pela sociedade são ruins. Uma o livra da fome, migrando, a outra o aproxima da morte: o trabalho na cana. As duas matam. Apontar uma das alternativas seria escolher uma das possibilidades de morrer e isso, além de muito difícil, não me cabe. A alternativa
não é ficar naquelas péssimas condições nem ir e migrar e enfrentar também péssimas condições de vida e trabalho. Isso não quer dizer que não haja saída; significa apenas que a alternativa é uma outra além dessas duas e essa deve ser construída pelos trabalhadores”.
O início da trajetória de Beto como documentarista se dá junto com sua formação como professor e pesquisador. Essa história começa, para valer, em 1977, quando ele ingressa como docente na UFPB, campus de Campina Grande (hoje Universidade Federal de Campina Grande, UFCG), para compor a equipe do recém- criado Mestrado em Economia Rural. A ida de Beto para a UFPB se deu a partir de um convite formulado pelo diretor, à época, da COPPE/UFRJ (Coordenação dos Programas de Pós-Graduação em Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro), Professor Nelson Maculan. Beto recebeu o convite, porém, condicionou a aceitação à possibilidade de levar com ele uma equipe de docentes, composta por ele, sua companheira, Regina Reyes Novaes, e mais três amigos. Eu era um deles. Portanto, Beto nos convenceu a embarcar com ele nesse projeto de vida: tornar-se professor da UFPB/CG.
Assim que chegamos em Campina Grande e ingressamos na Universidade, Beto nos persuadiu a elaborar um projeto de pesquisa acadêmica e nos tornamos professores e pesquisadores, praticando a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão. Ele nos propôs como objeto de estudo um tema de grande relevância para a cidade e para o estado da Paraíba: a comercialização do algodão. Campina Grande era a segunda cidade mais importante do estado e, na época, tinha uma população quase do mesmo tamanho que a da capital, João Pessoa. Outrora fora conhecida como a Liverpool do Brasil, porque teve, desde o século XIX até meados da década de 1960, papel fundamental na comercialização de todo o algodão, produzido no Sertão nordestino (Bahia, Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará) para o Brasil e para o mundo. Daí a comparação com Liverpool. Quando o algodão nordestino entrou em decadência, devido ao desenvolvimento de novas variedades, como o herbáceo, substituindo o nativo arbóreo, de fibra longa, levou junto toda a estrutura de beneficiamento e de comercialização do algodão de
Campina Grande e essa decadência estava sendo expressa naquele momento, década de 1970. Beto teve a percepção de pegar para estudar um objeto de grande importância local e regional e cujos impactos estavam se dando naquele momento.
Portanto, por conta de Beto, mal desarrumávamos as malas e nos dávamos conta da nova realidade de vida e trabalho, numa cidade estranha, nos envolvemos numa atividade de pesquisa, sobre um produto e um assunto que nenhum de nós conhecia. Para isso tudo foi necessário muito estudo, aprendizagem e vivência.
Logo no início da pesquisa, ainda em 1977, em nossas idas e vindas ao campo, com as descobertas que fazíamos sobre a produção e comercialização do algodão, Beto nos convenceu a realizar um novo produto da pesquisa. Insistia que o resultado dela não poderia ser apenas um relatório ou as dissertações de mestrado, que estávamos fazendo, ou os artigos científicos, que fazíamos para apresentar nas reuniões do Projeto de Intercâmbio de Pesquisa Social em Agricultura (PIPSA). A pesquisa deveria gerar um outro resultado acessível aos trabalhadores, produtores do ouro branco paraibano: um documentário. Isso porque este, repleto de imagens e falas, poderia ser exibido diretamente aos trabalhadores, em qualquer lugar, até nos grotões mais remotos do Sertão Nordestino. Bastava energia elétrica, o que um gerador à gasolina poderia fornecer, uma parede ou um lençol no varal e público. Com esses meios, baratos e acessíveis, os trabalhadores teriam contato com um conhecimento que ajudaram a consolidar. Ver na tela a imagem de suas vidas e seu trabalho permitiria reflexões sobre suas realidades e ações para a melhoria dessas condições.
Para a realização desse documentário, nos debruçamos sobre duas questões: as formas de fazê-lo e o tipo e características estéticas do produto. Naquela época, década de 1970, o único meio de gravação de imagens em movimento e com som era o acetato, isto é, um filme gravado em fotogramas. A questão a decidir era a bitola a ser utilizada. Havia disponíveis, naquele momento, três bitolas: 35mm, 16 mm e 8mm e o super 8. A de 35 mm era usada pelo cinema comercial, tinha uma melhor qualidade de captação de imagem, porém, era mais cara de operação e cópias e exigia um equipamento sofisticado de exibição, com salas apropriadas. A bitola de 16 mm, empregada também em filmes comerciais, era a mais usada para documentários. Ela tinha inúmeras vantagens sobre a de 35mm, em que pese a mais baixa resolução de imagem: menor custo de gravação, exigia equipamento menos sofisticados e mais
leves e era de fácil exibição (um projetor pequeno e uma tela). A bitola de 8 mm, mesmo na sua versão mais avançada, o super 8mm, era de pior resolução e era usada, fundamentalmente, como meio de gravação de eventos, mas também em documentários. A dúvida sobre bitolas gerou um longo processo de discussão de inúmeros documentários que assistimos. Durante um longo tempo, nosso grupo, realizava dois trabalhos: a pesquisa sobre as bitolas a serem usadas e seus pontos a favor e contra e a característica documental do produto a ser realizado.
Nesse processo foi fundamental a iniciativa de Beto de integrar à nossa equipe de pesquisa profissionais da área de cinema de Campina Grande. Dessa forma, o grupo passou a ser de seis pessoas, coordenadas por Beto: quatro faziam a pesquisa acadêmica sobre a comercialização do algodão na Paraíba e dois se integravam para a realização do documentário.
Esse movimento de buscar outros profissionais é uma grande característica de Beto: saber trabalhar em grupo e saber montar equipe de trabalho. A escolha de equipe técnica de qualidade será sempre um dos pontos altos de todo o trabalho de Beto. Seus documentários são de elevada qualidade técnica no que tange às imagens e som. São também de alta qualidade estética e elevada sensibilidade. São documentários bons de se ver, não cansam o espectador. São bonitos, o som é bom. As imagens falam sozinhas, não é necessária a narração. Imagens e falas se complementam e isso vai se tornando mais evidente na trajetória de documentarista de Beto Novaes. Ao longo de sua carreira, Beto passa a fazer documentários mais curtos, onde a fala e a narração dos fatos vão perdendo o poder de condução, que passa a ser exercido pelas imagens. Dessa forma, os documentários de Beto perdem aquela característica acadêmica de vários filmes dessa natureza dos quais jocosamente se dizia: “É um filme bom: dá até prá ouvir no rádio”. Nos documentários de Beto, fundamentalmente nos mais recentes, as imagens contam a trama, mostram o problema, as falas complementam. Dessa forma, o espectador é presenteado pelo conjunto imagem/som e ambos de excelente qualidade estética.
Tendo essas preocupações como norte, Beto vai dedicar sua carreira acadêmica à pesquisa científica com dois objetivos: entender as condições de vida e
trabalho dos trabalhadores e trabalhadoras rurais, que é o objeto da maior parte de suas publicações científicas, além dos documentários, e o estudo das inúmeras possibilidades de produzir documentários com aquelas duas características ditas anteriormente: documentários que os trabalhadores entendam e que estejam disponíveis. A disponibilidade para os trabalhadores é a possibilidade de eles terem acesso fácil ao documentário. Disponível não é apenas dispor de um exemplar numa biblioteca ou videoteca, que é o básico, mas é tê-lo no seu bairro, no seu sindicato, na sua igreja, para exibi-lo aos companheiros e discutir o seu conteúdo.
Beto vem há anos trabalhando, estudando e inventando formas de divulgar esse vasto material, não apenas dele, mas de um grande número de documentaristas, que produzem obras fantásticas, mas que se deparam com a impossibilidade de mostrá-los a quem realmente importa: os trabalhadores e trabalhadoras, que poderão fazer uso deles para refletir e mudarem suas realidades de trabalho e vida. Ele conseguiu recentemente disponibilizar sua filmografia no YouTube, após conseguir digitalizar todo o material, que havia sido produzido em diferentes meios, desde filmes em acetato a DVDs, passando pelos inesquecíveis vídeos-cassetes. Essa disponibilização deu uma enorme visibilidade ao material e avançou na sua difusão. Não é mais necessário escrever e esperar pelo correio a remessa. Mas essa alternativa atual ainda é tímida, frente às necessidades de difusão, porque nem todos os trabalhadores conhecem o YouTube, nem todos dispõem de acesso à internet e nem todos sabem como operá-lo. O YouTube, por outro lado, é também uma alternativa instável, na medida em que não é público, é privado e objetiva lucro.
No contexto anteriormente mostrado, de chegada à Paraíba e da pesquisa sobre um objeto novo, a comercialização do algodão, foi feito o primeiro filme documentário de Beto Novaes. Ele foi realizado por uma equipe, porém a coordenação era exercida por ele, que, na sua extrema modéstia, preferiu que o trabalho fosse creditado a toda a equipe, apresentada nos créditos em ordem alfabética. Nesse processo, foi concluído, em julho 1979, O que eu conto do sertão é isso, lançado na reunião anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência
em Fortaleza, Ceará. Depois foi apresentado no 8º. Festival Jornal do Brasil/Shell de documentários e recebeu o primeiro prêmio.
Esse documentário mostra o processo de mudança da relação de trabalho em curso na Paraíba naquele momento: do morador parceiro para o trabalhador assalariado. O morador parceiro realizava toda a produção de algodão, do preparo do solo ao plantio e colheita, naquela terra que recebia do proprietário. Metade da produção pertencia ao parceiro e a outra metade ao proprietário. Este, o “patrão”, comercializava toda a produção e descontava da metade que pertencia ao morador, todos os adiantamentos por ele recebidos, durante a realização da produção. Isso criava um sistema de endividamento, que tornava o trabalhador e sua família semiescravos, escravidão por dívida. Essa relação de trabalho foi sendo substituída pela relação de trabalho assalariada e os moradores foram expulsos das propriedades e passaram a morar nas periferias das cidades do Sertão paraibano, criando um novo problema social. Há, hoje em dia, poucos registros dessa relação de trabalho, que perdurou por séculos no Sertão nordestino. Por isso, esse documentário passou a ser um documento histórico.
Todos os documentários contam histórias de vida, trabalho e luta de trabalhadores, homens, mulheres, crianças e idosos, grande parte deles invisíveis aos olhos da sociedade. A começar por O que eu conto do Sertão é isso caracterizam-se por mostrar trabalhadores e trabalhadoras operando o trabalho. Dessa forma, o trabalho é o objeto de análise de quase todos os filmes de Beto Novaes, que mostra sua dureza e as lutas dos trabalhadores e trabalhadoras para a melhoria das condições de vida e trabalho. O trabalho e a luta estão presentes, preenchendo todo o espaço do segundo documentário de Beto que colocamos em destaque: Califórnia à Brasileira, de 1989. Este é o primeiro feito no meio de videocassete. Nesse documentário, sobre a greve de Guariba, a dura repressão policial ocorrida, nesta greve e em outras de trabalhadores rurais, emociona o espectador, que vê aflorar no pacato e próspero interior paulista as péssimas condições de trabalho e brutal repressão policial contra os que reivindicam apenas o que está na lei.
A repressão policial de um lado, as péssimas condições de trabalho, de outro, e a modernização chegando ao campo, com máquinas substituindo o trabalho humano, formam um universo, tratado por Beto nesse documentário e em vários outros. Com essas obras sobre o trabalho e a luta dos cortadores de cana, ele se
torna o cineasta dos boias-frias. São sete filmes sobre a temática do trabalho na cana, iniciando com Califórnia à Brasileira, depois Por trás dos Verdes Canaviais, Guariba 1984, A Memória em nossas mãos, Migrantes, Quadra Fechada, Conflito e, fechando a série, Linha de Corte. Com extrema sensibilidade e profundidade, revela ao mundo, as péssimas condições de trabalho prevalecentes num ramo de atividade que projetava o Brasil no comércio internacional de combustíveis. São evidenciadas as mudanças que se davam no processo de trabalho e as lutas empreendidas pelos trabalhadores por melhorias nas condições de trabalho. Desse embate entre capital e trabalho, retratado nas obras, emerge a agudização do processo de exploração, que ultrapassa os limites da vida e leva à morte por excesso de trabalho, ou à incapacidade permanente para a realização de qualquer trabalho, como mostrado em Linha de Corte.
Dentre os inúmeros trabalhos de Beto Novaes, vale a pena comentar dois outros de enorme significado na sua filmografia: Os Rurais da CUT e Mulheres das águas. O primeiro, de 1992, merece ser lembrado por três motivos: sua importância por abrir um canal direto de interação entre Universidade e mundo do trabalho; por mostrar o processo de assassinato e morte de dirigentes sindicais e, finalmente, por explicitar a cara dos trabalhadores e trabalhadoras rurais brasileiros: são negros, além de pobres, se não, não seriam trabalhadores.
Como foi explicitado ao longo deste texto, Beto é um professor que exerce com desenvoltura as três dimensões indissociáveis da função: ensino/pesquisa/extensão. Os rurais da CUT foi uma demanda apresentada ao Beto pelo então recém-criado Departamento Nacional de Trabalhadores Rurais da CUT. Esse Departamento tinha, na época, uma enorme importância política para a CUT, uma Central sindical relativamente nova, que tinha uma grande presença no meio sindical urbano, mas ainda pequena junto aos trabalhadores rurais, em grande parte, representados nacionalmente, pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag). A importância desse documentário é estabelecer um canal de parceria e de trabalho entre as universidades brasileiras e a Central Única dos Trabalhadores, constituindo-se num trabalho de extensão, que saía dos moldes até então existentes de parceria entre universidades e empresas. O segundo motivo é que um dos entrevistados é Expedito Ribeiro, Presidente do Sindicato de Rio Maria no Pará, que faz um depoimento emocionante, mostrando que era um “cabra marcado para morrer”,
porque os grandes proprietários rurais do Pará haviam decretado sua sentença de morte. Alguns meses após esse depoimento, Expedito foi morto, como havia prenunciado no documentário. Anos depois Beto fará, com Aída Marques e Padre Ricardo Rezende, o longa metragem Expedito, em busca de outros nortes, no qual, através de belas imagens e fortes depoimentos, mostrará a vida e a obra desse sindicalista poeta, ou poeta sindicalista. O terceiro motivo da importância desse documentário é que Beto o abrirá com uma imagem sorridente de um trabalhador rural negro. Essa imagem é carregada de simbolismo, porque mostra que os negros são predominantes entre os trabalhadores rurais e esse aspecto de negro e trabalhador aparecerá em todos os filmes de Beto. Embora Beto não trate, diretamente, em seus documentários da questão racial, nas imagens de trabalhadores em ação como trabalhadores, no espaço da produção, no espaço da reprodução e da luta há o predomínio de negros.
A importância do documentário As mulheres das águas está no fato de ser o primeiro em que Beto entra e nos mostra o universo feminino. As mulheres, tanto crianças, quanto jovens, adultas ou idosas, sempre estiveram presentes nos documentários de Beto. Em vários deles os principais depoimentos são de mulheres, desde O que que conto do sertão é isso, no qual quem abre o filme é uma mulher, em prantos, mostrando porque foi expulsa do campo e veio morar na cidade. Em outros, como Migrantes, os principais e mais fortes depoimentos sobre a dureza da migração para o trabalho na cana são de mulheres. Porém, nesses documentários a problemática das mulheres não era tratada diretamente. Em As mulheres das águas as protagonistas são mulheres, trabalhadoras das águas e é na água e da água que elas tiram o seu sustento e de suas famílias. É um documentário belíssimo em imagens e depoimentos, mostrando um trabalho exercido, em sua maioria por mulheres e que dessa forma nos mostram as duras condições de vida e trabalho nessa atividade e como ela tem a ver com o universo feminino. São trabalhadoras que atuam nos manguezais e esses são o espaço da vida e da recriação da vida. A água e mulheres representam vida, portanto mulher, água e vida são partes inseparáveis da existência da vida no planeta.
Um artigo para um dossiê requer considerações que deem fecho à narrativa. Em geral, eu deveria encerrar com um resumo de tudo que foi mostrado em cadeia, item por item, e terminar apontando novas hipóteses e alternativas para os outros trabalhos e investigações a serem realizadas por mim, ou por outros, que se interessem pelas temáticas aqui tratadas. Mas, como esse artigo tem a pretensão de apenas mostrar uma pequena parte da produção documental de Beto Novaes, vou terminar esse texto fazendo um convite para que vejam, difundam e discutam os documentários da enorme filmografia de Beto Novaes.
Encerro contando uma pequena prática que Beto e eu fazíamos, quando participávamos de debates e discussões com os trabalhadores personagens dos documentários. Não me lembro de quem foi a autoria da ideia, mas acho que foi do Beto: ao final da exibição e discussão, que, em geral, era longa, sorteávamos entre os presentes alguns exemplares dos documentários, que levávamos para os debates. Usávamos uma forma de sorteio rápida e que não criava dúvidas sobre sua lisura, que era pedir a alguém para dizer um número de um a 100, dependendo do número de presentes. Tendo esse número, iniciávamos a contagem dos presentes, iniciando por um até chegar ao número escolhido, que era o do sorteado. Este ficava muito contente em receber o documentário como prêmio. Nós o entregávamos e fazíamos uma advertência, que era a “maldição do pirata”. Como a cópia que levávamos era pirata e nós defendíamos e praticávamos a pirataria, advertíamos que esta tinha uma maldição, dado que nas histórias de piratas sempre há uma maldição. Era ela: todos os premiados eram obrigados a exibir o documentário para pelo menos dez pessoas. Se os guardasse na gaveta e não exibisse para outros, no mínimo dez, teriam dez anos de azar. Façam o mesmo.
ANO | TÍTULO | TEMA | LINK PARA ACESSO |
2020 | Varredeiras | Trabalho das mulheres da limpeza urbana | Indisponível |
2019 | O Diagnóstico Legenda oculta - vários idiomas | Intoxicação por agrotóxicos na lavoura de fumo | https://www.youtube.com/watch?v=fKD2_Bbt8 PY&t=2068s |
2018 | Agrofloresta é mais Legenda oculta - vários idiomas | A produção agroflorestal em acampamento do MST | https://www.youtube.com/watch?v=epPE7XO Ma3o |
2016 | Mulheres das Águas | Trabalho das mulheres nos manguezais | https://www.youtube.com/watch?v=- tHBujQGKYA&t=351s |
2015 | Eletricitários | Precarização do trabalho setor elétrico | https://www.youtube.com/watch?v=hWwPuadc mVU&t=7s |
2015 | As Sementes Legenda oculta - vários idiomas | Mulheres e agroecologia | https://www.youtube.com/watch?v=0b2zqiaT8 Wc&t=86s |
2015 | É isso aí | Estatuto da Juventude | https://www.youtube.com/watch?v=NxseAtDX- Qs |
2014 | Pé no Formigueiro | Congresso Juventude – DF | |
2013 | Linha de Corte Versão: português | Precarização trabalho e saúde dos trabalhadores da cana em SP | https://www.youtube.com/watch?v=lkzKFL- IYLQ&list=PL0eyusBZZVSrkRgtURi5Xw6xwSn fmTicP |
2013 | Linha de Corte Legenda: inglês | Precarização trabalho e saúde dos trabalhadores da cana | https://www.youtube.com/watch?v=5xPzMKKO vtM&t=568s |
2013 | Linha de Corte | Precarização trabalho e saúde dos | https://www.youtube.com/watch?v=7eFK78s6P sc&t=6s |
Legenda: espanhol | trabalhadores da cana | ||
Nuvem de Veneno Legenda: espanhol | Agrotóxico, saúde coletiva e meio ambiente | https://www.youtube.com/watch?v=vuBNRGb8 JwE&t=5s | |
2013 | Nuvem de Veneno Legenda: inglês | Agrotóxico, saúde coletiva e meio ambiente | https://www.youtube.com/watch?v=yVFRxsPf5i o&t=359s |
2013 | Nuvem de Veneno Versão: português | Agrotóxico, saúde coletiva e meio ambiente | |
2012 | Uma árvore bonita | Juventude negra: luta pelos direitos | |
2011 | Conflito Legenda português | Luta pelos direitos: greve dos canavieiros | https://www.youtube.com/watch?v=ANVc3udW A_k |
2009 | Diálogos Legenda espanhol | Congresso de Juventude Latino americano | https://www.youtube.com/watch?v=w9nHir3nz _g |
2009 | Diálogos Legenda Português | Congresso de Juventude Latino americano | https://www.youtube.com/watch?v=IcZxjR4Y6v M |
2009 | Diálogos Legenda inglês | Congresso Latino Americano de Juventude | https://www.youtube.com/watch?v=iyeQF8oRP _w&t=15s |
2009 | A Rota do Pescado | Pesca artesanal em Arraial do Cabo | https://www.youtube.com/watch?v=6mU02Dl3k Rw |
2007 | Expedito: em busca de outros nortes” Legenda oculta - vários idiomas | Migração e assassinato na Amazônia | https://www.youtube.com/watch?v=rH45C_1JZ 7o |
2007 | Migrantes | Migração e trabalho na | https://www.youtube.com/watch?v=5JecKSPeh 0Q&t=1187s |
Legenda oculta – vários idiomas | safra da cana – NE/SP | ||
2007 | Mamulengo | Migração: trabalho na safra da cana –NE/SP | https://www.youtube.com/watch?v=qyq1VfpsfS c&t=25s |
2007 | Violeiro | Migração: trabalho na cana – NE/SP | https://www.youtube.com/watch?v=gOvMtooM ouw |
2006 | Quadra Fechada | Controle da produção pelos trabalhadores da cana | https://www.youtube.com/watch?v=dxGNE9x4I oo |
2002 | Memória e nossas mãos | Resgate de memória: trabalhadores da cana | https://www.youtube.com/watch?v=Z3qGSNAF aKU&t=238s |
2002 | Guariba 84 | Greve de trabalhadores da cana em Guariba | https://www.youtube.com/watch?v=3aLBbG6iI qI |
1999 | Meninas Mulheres | Crianças e adolescentes na periferia de Campinas | https://www.youtube.com/watch?v=Wl1NDL_- CWs&t=20s |
1998 | Conversas de Crianças | Trabalho infantil em Acampament os do MST | |
1994 | Meninos da Roça | Trabalho Infantil na lavoura da cana | https://www.youtube.com/watch?v=DkocNgPU 8HQ |
1994 | Sonhos de Crianças | Trabalho infantil agricultura de Goiás - GO | https://www.youtube.com/watch?v=9MPPll8LF Nw&t=850s |
1993 | Por trás dos Verdes Canaviais | Trabalho precário na safra da cana | https://www.youtube.com/watch?v=8N- zuwhFIJg |
1992 | Rurais da CUT: Imagens e Memória | A CUT no campo e o sindicalismo rural no Brasil | https://www.youtube.com/watch?v=FzTb5- ZCtaM |
1991 | Califórnia à Brasileira | Trabalho precário nos canaviais | https://www.youtube.com/watch?v=KvVMU9GJ M04 |
1988 | Campo de Batalha | Ocupações de terra urbana em Campina Grande | Indisponível |
1981 | Até quando | Trabalho precário nos canaviais | indisponível |
1978 | O que eu conto do sertão é isso Legenda: português | Mudança na estrutura produtiva dos latifúndios – PB | https://www.youtube.com/watch?v=M2L3iUeW 0LA&t=66s |
V.20, nº 41, 2022 (jan-abr) ISSN: 1808-799 X
CONTRARREFORMA AGRÁRIA, VIOLÊNCIA E DEVASTAÇÃO NO BRASIL1
Paulo Alentejano2
Resumo
O presente artigo apresenta um balanço da contrarreforma agrária em curso no Brasil na última década e aprofundada no governo Bolsonaro, com métodos violentos de intimidação de povos do campo e movimentos sociais, bem como a proposição de um conjunto de medidas legais que incentivam a grilagem de terras e a devastação ambiental, favorecendo a expansão do agronegócio. Por sua vez, os movimentos sociais inventam novas formas de resistência enquanto aguardam uma virada na conjuntura que permita a recuperação de direitos conquistados a duras penas e que estão sendo destruídos em ritmo acelerado.
Palavras-chave: Reforma agrária; agronegócio; conflitos no campo.
CONTRARREFORMA AGRARIA, VIOLENCIA Y DEVASTACIÓN EN BRASIL
Resumen
Este artículo presenta un balance de la contrarreforma agraria en marcha en Brasil en la última década y profundizada en el gobierno de Bolsonaro, con métodos violentos de intimidación a los pueblos rurales y movimientos sociales, así como la propuesta de un conjunto de medidas legales que incentiven la ocupación ilegal de tierras y la devastación ambiental, favoreciendo la expansión del agronegocio. A su vez, los movimientos sociales inventan nuevas formas de resistencia a la espera de un cambio de situación que permita la recuperación de derechos ganados con tanto esfuerzo que se están destruyendo a un ritmo acelerado.
Palabras clave: Reforma agraria; agronegocio; conflictos en el campo.
AGRARIAN COUNTERREFORM, VIOLENCE AND DEVASTATION IN BRAZIL
Abstract
This article presents a balance of the agrarian counter-reform underway in Brazil in the last decade and deepened in the Bolsonaro government, with violent methods of intimidation of rural peoples and social movements, as well as the proposal of a set of legal measures that encourage the illegal occupation of land and environmental devastation, favoring the expansion of agribusiness. In turn, social movements invent new forms of resistance while awaiting a change in the situation that allows for the recovery of hard-won rights that are being destroyed at an accelerated pace.
Keywords: Agrarian reform; agribusiness; field conflicts
1Artigo recebido em 30/11/2021. Primeira Avaliação em 06/01/2022. Segunda Avaliação em 19/01/2022. Aprovado em 01/02/2022. Publicado em 28/03/2022.
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v20i41.52451
2 Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Professor Associado do Departamento de Geografia da Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (DGeo/FFP/UERJ). E-mail: paulinhochinelo@gmail.com.
Lattes: https://lattes.cnpq.br/9607379381524239. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0630-8164.
Introdução
O objetivo do presente texto é fazer um balanço das disputas em torno da reforma agrária no governo Bolsonaro, apontando como esta tem sido cada vez mais convertida em contrarreforma pelo governo e como os movimentos sociais do campo estão se movimentando em meio a uma conjuntura tão adversa.
Por definição, reforma agrária é um processo através do qual ocorre a democratização da distribuição da terra numa sociedade, com a transferência de terras até então sob o controle do latifúndio para trabalhadores rurais sem terra ou com pouca terra. Este processo produz também distribuição da riqueza e do poder, com a melhoria das condições de vida e o fortalecimento político do campesinato frente aos latifundiários. São várias as modalidades de reforma agrária implementadas mundo afora nos últimos séculos (STÉDILE, 2020)
Quando, ao contrário, a política agrária fortalece o latifúndio, aumenta a concentração da terra e amplia a expropriação de camponeses, indígenas e quilombolas, estamos diante de seu oposto, a contrarreforma agrária, processo em curso no Brasil na última década e que se acentuou sob o governo Bolsonaro (ALENTEJANO, 2020).
Consideramos que o cenário no Brasil atual, do ponto de vista da questão agrária, aponta para uma nova rodada expropriatória (FONTES, 2010; BARTRA, 2014), através da qual o capitalismo em crise visa, através de processos espoliativos (HARVEY, 2004), recuperar fôlego. Sob a hegemonia do agronegócio, processos históricos como a concentração fundiária, a expansão da monocultura, a prioridade conferida à agroexportação, a superexploração do trabalho, a devastação ambiental e a violência são exacerbadas (ALENTEJANO, 2020a), reforçando a inserção subordinada do país na divisão internacional do trabalho e bloqueando a superação de sua condição dependente e periférica (FERNANDES, 2020; MARINI, 2012).
Na contramão deste processo, movimentos sociais do campo, indígenas e quilombolas buscam resistir à barbárie, construir laços de solidariedade e buscar formas de preservar as condições mínimas de sobrevivência enquanto almejam uma virada na conjuntura que favoreça suas lutas (MEDEIROS, 2020).
Este artigo, além desta Introdução e da Conclusão é composto por duas partes. Na primeira apontamos os elementos que caracterizam a contrarreforma agrária em marcha no Brasil, enfocando, sobretudo, as políticas do governo Bolsonaro, sem
deixar de apontar as continuidades em relação a governos anteriores. Na segunda parte indicamos algumas ações dos movimentos sociais do campo na tentativa de se contrapor a tais políticas num cenário extremamente adverso para as lutas sociais no campo. Na Conclusão buscamos apontar possibilidades de desdobramento do cenário atual.
As dimensões da contrarreforma agrária
Mais do que nunca, sob o governo Bolsonaro, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) faz valer um dos apelidos a ele atribuído por militantes dos movimentos sociais do campo, o de Instituto Nacional de Contrarreforma Agrária3. A contrarreforma agrária envolve quatro dimensões que analisaremos neste item do texto: (1) paralisação total das desapropriações; (2) relutância em criar assentamentos (3) titulação privada das terras dos assentamentos;
(4) avanço da grilagem de terras.
Os números evidenciam o total abandono desta política. Segundo dados oficiais do Incra (2021) foram apenas 11 assentamentos criados em mais de 2 anos e meio de governo, o que dá a ridícula média de um assentamento a cada 3 meses e menos de 4 assentamentos por ano, distribuídos por sete (7) unidades da federação: Bahia, Distrito Federal, Mato Grosso do Sul, Paraná, Rio Grande do Norte e Sergipe.
Porém, quando olhamos mais detidamente esses números vemos que ainda são inflados, pois quatro (4) deles são ações de reconhecimento4, sendo três deles territórios quilombolas que a justiça obrigou o Incra a reconhecer. Apenas sete (7) foram criados a partir de processos de desapropriação, sendo que nenhum iniciado no governo Bolsonaro. Ou seja, o presidente cumpriu à risca a promessa feita durante sua campanha de não desapropriar um hectare sequer para destinar à reforma agrária. A maioria desses processos de desapropriação foi iniciada na década de 2010, três no governo Dilma e dois no governo Temer, mas um foi iniciado ainda no governo Lula e um no governo FHC, na década de 1990, ou seja, se arrastava há décadas.
3“Incravado” é outro apelido comum, relacionado à morosidade das ações do órgão. 4Reconhecimento é uma ação do Incra atestando a condição de assentamento rural de uma área criada por outro órgão, como os institutos estaduais de terra, por exemplo.
Os cinco assentamentos criados na Bahia foram resultados de processos de desapropriação iniciados em 2004, 2010, 2011, 2012 e 2016, respectivamente. Os assentamentos criados em Mato Grosso do Sul e Rio Grande do Norte são resultados de desapropriações iniciadas, respectivamente, em 1998 e 2016. Já os assentamentos do Distrito Federal, Goiás, Paraná e Sergipe, não foram criados pelo Incra, mas reconhecidos, sendo que os dos três últimos são territórios quilombolas.
A comparação do número de famílias assentadas por governo demonstra que a política de reforma agrária – que já vinha definhando na última década – praticamente foi abandonada no atual governo.
Gráfico 1 – Famílias Assentadas por Governo – Brasil – 1985-2020
Fonte: Incra – Organização do Autor.
Há ainda dados mais impressionantes. Uma comparação entre os dados divulgados pelo Incra em 2019 e 2021 na sua página eletrônica (Tabela 1) revela que o número de assentamentos diminuiu de 9.478 para 9.432, ou seja, 46 assentamentos desapareceram. Ainda mais espantosos são os dados relativos à área dos assentamentos que caiu de 89.502.605 hectares para 87.535.184 hectares, uma redução de quase 2 milhões de hectares. E a redução do número de famílias assentadas é ainda mais impressionante, pois caiu de 1.349.689 para 966.115, ou seja uma diminuição de 383.574 famílias. É como se mais de ¼ das famílias tivesse evaporado dos assentamentos.
Tabela 1 – Assentamentos, Área e Famílias Assentadas – 2019- 2021
2019 | 2021 | Diferença | |
Assentamentos | 9.478 | 9.432 | - 46 |
Área (ha) | 89.502.605 | 87.535.184 | - 1.967.421 |
Famílias Assentadas | 1.349.689 | 966.115 | - 383.574 |
Fonte: Incra 2019 e 2021 – Organização do Autor.
A redução do número de assentamentos, da área total destes e do número de famílias é um mistério para o qual não há uma só explicação na página do Incra.
Outro indicativo da paralisação completa da reforma agrária no governo Bolsonaro é a recusa sistemática do Incra em dar continuidade a processos de desapropriação iniciados em governos anteriores. Em São Paulo, por exemplo, o Tribunal Regional Federal negou a desistência do Incra em dar continuidade a um processo de desapropriação iniciado em 2016 em São José dos Campos, determinando que a realização de desapropriações para fins de reforma agrária em casos de descumprimento da função social da terra é atribuição legal do órgão.5
O Incra se nega até a retomar áreas griladas, como em Mato Grosso, onde a Justiça Federal concluiu, em 2020, que a fazenda Araúna, de 14,7 mil ha, localizada no município de Novo Mundo, no norte do Mato Grosso pertence à União e foi grilada. A Justiça determinou ao Incra a retomada da terra e a criação de um assentamento no local, porém, o Incra afirma que não pode cumprir a ordem judicial por conta da suspensão da reforma agrária pelo governo Bolsonaro.6
Outra ação do Incra que chama atenção é a recusa sistemática em assentar famílias acampadas em áreas onde estão sendo criados assentamentos. No Rio de Janeiro, no município de Quatis, famílias vinculadas ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) que desde 2006 fazem parte do acampamento Irmã Dorothy, estão sendo preteridas por outras selecionadas de forma articulada entre o Incra e a prefeitura local. Processo semelhante está ocorrendo nas antigas terras da falida Usina Cambahyba, em Campos dos Goytacazes, onde em maio de 2021 a justiça ordenou que o Incra assentasse famílias nas terras adjudicadas em função das inúmeras e volumosas dívidas da antiga usina. Para pressionar o Incra a realizar o
5https://www.conjur.com.br/2021-jul-19/trf-determina-incra-analise-reforma-agraria-area-ocupada-
acessado em 08 de outubro de 2021.
6CAMARGOS, Daniel e MAGALHÂES, Ana.https://reporterbrasil.org.br/2020/12/apos-despejos-e- ameacas-sem-terra-tem-decisao-favoravel-da-justica-pela-reforma-agraria-e-governo-nao-cumpre/ - acessado em 29de setembro de 2021.
assentamento, o MST reocupou a área, onde já antes haviam existido os acampamentos Oziel Alves nos anos 2000 e Luis Maranhão nos anos 2010, dando ao novo acampamento o nome de Cícero Guedes. liderança do MST na região, assassinado em 2013 no acampamento Luis Maranhão. O Incra então passou a pressionar as famílias acampadas afirmando que só assentaria as famílias que abandonassem o acampamento, estimulando a divisão entre os acampados e acampadas.
A contrarreforma agrária não se limita aos parcos assentamentos criados, à não abertura de processos de desapropriação e à recusa em cumprir ordens judiciais relacionadas à política de reforma agrária, envolve também a titulação privada de lotes nos assentamentos rurais criados em governos anteriores com o intuito de recolocar estas terras no mercado. Sauer et al (2019) citam entrevista do presidente do Incra, Geraldo Melo Filho ao Valor Econômico em 2019, no qual este afirmou que
O Brasil tem pronta uma nova fronteira agropecuária para trabalhar: os assentamentos. São 88 milhões de hectares”, que serão titulados para viabilizar o “potencial gigantesco de produção... (SAUER et al., 2019: 9).
Estudo da ONG Grain (2019) aponta números mais modestos, considerando que uma parte dos assentamentos rurais não pode ser objeto de titulação privada, por serem Reservas Extrativistas (Resex), Projetos de Desenvolvimento Sustentável (PDS) e outras modalidades que só podem ser tituladas coletivamente com emissão do título de Concessão do Direito Real de Uso (CDRU) para as famílias assentadas, sendo, portanto, terras que não podem ser objeto de compra e venda. De todo modo seria nadam desprezíveis 5% do território nacional, ao redor de 40 milhões de ha de assentamentos de reforma agrária que poderiam ser reinseridos no mercado de terras. (GRAIN, 2019: 4)
A prioridade atribuída à titulação é tanta que o Incra criou em 2020 um setor específico para tratar do tema - a Divisão de Titulação de Assentamentos - e em 2021 lançou o Titula Brasil, programa destinado a acelerar a titulação de lotes em assentamentos e a regularização fundiária em terras da União com a colaboração de prefeituras. O programa baseia-se no Decreto 10.592 de 24/12/2020 que regulamenta os procedimentos para regularização fundiária previstos na Lei nº 11.952, de 25 de junho de 2009. Packer (2021: 147) afirma que o objetivo do programa é "legitimar uma
privatização massiva de terras públicas federais com subsídios estatais, de forma acelerada e barata."
Segundo o Incra, 1.935 municípios poderiam aderir ao programa, com destaque para a Bahia (171 municípios), o Maranhão (137 municípios) e Pernambuco (116 municípios). Através de processos de cooperação técnica entre o Incra e as prefeituras seriam criados núcleos municipais de regularização fundiária que passariam a realizar a coleta de requerimentos, declarações e documentos relacionados aos processos de regularização e titulação, as vistorias nos imóveis e o georreferenciamento das terras. Ou seja, o Incra transfere praticamente toda as suas atribuições para as prefeituras, combinando "municipalização da regularização, autodeclaração sem verificação de conflitos, cumprimento da função social ou sobreposição com terras públicas ou comunitárias" (PACKER, 2021: 147/148).
Avançando na política de contrarreforma agrária, em outubro de 2021 o Incra lançou a Plataforma de Governança Territorial para simplificar e acelerar a titulação das ocupações em terras públicas e assentamentos da reforma agrária. Publicou ainda uma listagem com 738 assentamentos aptos para regularização, onde vivem mais de 56 mil famílias. Na ocasião o presidente do Incra afirmou que só em 2021 foram emitidos 100 mil documentos de titulação.7 O gráfico abaixo aponta o número de assentamentos que podem ser objeto de titulação por unidade da federação.
Assentamentos que Podem Ser Titulados por UF - Brasil - 2021
94
91
74
67
74
52
12 16
28 24
29
35
31
2
11
0
8
3
12 18 20
22
14
1
0
0
0
Gráfico 2 - Assentamentos que podem ser titulados por unidade da federação8
AC AL AM AP BA CE DF ES GO MA MG MS MT PA PB PE PI PR RJ RN RO RR RS SC SE SP
Fonte: Incra, 2021 – Organizado pelo Autor.
7Disponível em https://www.gov.br/incra/pt-br/assuntos/noticias/plataforma-de-governanca-territorial- disponibiliza-servicos-do-incra-pela-internet - acessado em 11 de outubro de 2021.
8 Obs.: DF abrange também áreas de Goiás e Noroeste de Minas que estão sob a jurisdição da Superintendência Regional do Incra de Brasília. PA soma das Superintendências de Belém e Marabá. PE soma das Superintendências de Recife e do Médio São Francisco.
Quando organizamos os dados por região, o Centro-Sul lidera o percentual de assentamentos que podem ser titulados, com 44%, contra 31% da Amazônia e 25% no Nordeste.
Gráfico 3 - Assentamentos que podem ser titulados por região
Fonte: Incra, 2021 – Organizado pelo Autor.
Nesta regionalização a Amazônia corresponde aos estados da região Norte junto com Maranhão e Mato Grosso. O Nordeste corresponde aos estados da região Nordeste, com exceção do Maranhão. O Centro-Sul corresponde aos estados das regiões Sudeste, Sul e Centro-Oeste, com exceção do Mato Grosso. Consideramos essa regionalização mais adequada para a compreensão dos processos agrários em curso no país. Ver a este respeito ALENTEJANO; LEITE; PORTO-GONÇALVES, 2013.
A comparação entre os assentamentos que podem ser titulados e os existentes deixa ainda mais evidente esta situação, pois a única região cujo percentual de assentamentos que podem ser titulados supera o percentual de assentamentos existente é o Centro-Sul, área onde o agronegócio9 está mais consolidado, as terras possuem maior valor de mercado e praticamente não há mais terras devolutas para onde o agronegócio possa se expandir, como é o caso da Amazônia e do Matopiba (parte na Amazônia e parte no Nordeste). Assim, no Centro-Sul, as terras dos assentamentos são a maior parte das terras que estão fora do mercado, o que explica o esforço do Incra em disponibilizá-las.
9Compreendemos o agronegócio como a articulação entre a grande propriedade fundiária e o grande capital agroindustrial e financeiro, com sustentação política, econômica e jurídica do Estado e ideológica da grande mídia empresarial. A este respeito ver DELGADO (2012) e ALENTEJANO (2020a).
Assentamentos Rurais por Região - Brasil - 1985-2020
Centro-Sul 25%
Amazônia 40%
Nordeste 35%
Gráfico 4 - Assentamentos por região
Fonte: Incra, 2021 – Organizado pelo Autor.
Packer (2021) sustenta ainda que o Programa Titula Brasil criou um mecanismo para acelerar ainda mais a recolocação das terras dos assentamentos no mercado, pois
autoriza a venda de lotes de até quatro módulos fiscais em assentamentos criados ou desmembrados até 22 de dezembro de 2014, já a partir da emissão do título provisório e não mais do título definitivo, o que abrange 80% dos assentamentos e 37 milhões de ha (PACKER, 2021: 147).
O processo de incorporação de novas áreas é condição fundamental para a dinâmica do agronegócio, ampliando o domínio territorial e abrindo novas fronteiras para a acumulação de capital. Esse processo é denominado por Harvey (2004) de acumulação por espoliação, para distingui-lo do processo de acumulação primitiva tal qual analisado por Marx.
Todas as características da acumulação primitiva que Marx menciona permanecem fortemente presentes na geografia histórica do capitalismo até os nossos dias. A expulsão de populações camponesas e a formação de um proletariado sem-terra tem se acelerado em países como o México e a Índia nas três últimas décadas; muitos recursos antes partilhados como a água, têm sido privatizados (com frequência por insistência do Banco Mundial) e inseridos na lógica capitalista da acumulação... (HARVEY, 2004: 121)
Fontes (2010) polemiza com Harvey (2004) em torno da adequação da sua noção de acumulação por espoliação, por considerar que a expropriação é sistemática
no capitalismo, dado seu caráter desigual e combinado. Outra crítica feita a essa noção é a da Bartra (2014), para quem:
O problema como recente e resgata do conceito de “acumulação por despossessão”, está em que é puramente descritivo, alude a um só tipo de acumulação primária e por si mesmo não esclarece qual é a articulação deste momento com a acumulação produtiva ou ampliada. E expropriação não é acumulação de capital, mas premissa da acumulação; premissa histórica se nos referimos à originária e premissa lógico-estrutural se fazemos referência à permanente. Sem valorização do capital mediante a exploração do trabalho assalariado não há acumulação, de modo que o complemento da acumulação primária - seja primitiva ou recorrente - é a valorização capitalista e ampliada do expropriado. (BARTRA, 2014, 105)10
De todo modo, denominemos tal processo de acumulação por espoliação, expropriações ou expropriação permanente, trata-se de dinâmica fundamental do capitalismo contemporâneo e evidencia seu caráter violento, do qual o avanço do agronegócio é parte essencial.
Aguiar e Bastos (2012) afirmam que a relação do capital com a natureza baseia- se no tripé expropriação-apropriação-mercadorização. Através da expropriação dos camponeses o capital gera ao mesmo tempo o trabalhador livre para ser explorado e a terra para ser apropriada. Este movimento de expropriação-apropriação- mercadorização é recorrente no capitalismo. Nesta perspectiva, áreas de preservação ambiental, terras indígenas, quilombolas, de assentamentos rurais e de uso comum são obstáculos a serem removidos, visando ampliar a oferta de terras no mercado como parte do movimento do capital para se apropriar de terras, especialmente na América Latina e na África.
Relatório da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) de 2012 estimou que até 2050 haverá um avanço de cerca de 70 milhões de ha da fronteira agrícola no mundo, mas com uma redução de 63 milhões de ha nos países desenvolvidos e, portanto, com um aumento da destinação de cerca de 132 milhões de ha para os agronegócios nos países em desenvolvimento do Sul global. (PACKER, 2021: 141)
Essa busca incessante por terras ganha nítidos contornos espaciais no mapa elaborado pelo Grupo de Inteligência Territorial da Empresa Brasileira de Pesquisa
10 Tradução do autor.
Agropecuária (GITE/Embrapa)11 com dados até janeiro de 2017 que apresenta a distribuição espacial das terras públicas e comunitárias no Brasil e defende o argumento de que o Estado brasileiro não tem como administrar tantas terras e deveria privatizá-las.
Mapa 1 - Áreas Públicas e Comunitárias no Brasil
Fonte: Embrapa.
Através do mapa podemos perceber por que a Amazônia é o principal foco do interesse do agronegócio, pois é nela que se situa a maior parte das áreas públicas e comunitárias no país. Este processo de expansão do agronegócio pode ser evidenciado pelos dados do Censo Agropecuário do IBGE de 2017, segundo o qual os estabelecimentos agropecuários com mais de 1.000 ha aumentaram ainda mais a
11https://www.embrapa.br/gite - acessado em 25 de maio de 2020.
área sob seu controle, passando de 45% segundo o Censo de 2006 para 47,5% em 2017. Isso para um total de apenas 1% dos estabelecimentos, pouco mais de 50 mil de um total de mais de 5 milhões. Foram 16,5 milhões de ha incorporados pelos latifúndios, enquanto os menores estabelecimentos, que têm até dez hectares, representam 50,2% do número total de estabelecimentos, mas ocupam apenas 2,3% da área.
Já os dados do Cadastro Rural do Incra de 2018 apontam a existência no Brasil de 6.574.830 imóveis com 775.523.405 ha. Os minifúndios – que são os imóveis com menos de 1 módulo fiscal – são 65,1% do total de imóveis, mas ocupam apenas 7,7% da área e os latifúndios – que são os imóveis com mais de 15 módulos fiscais – representam apenas 2,3% do total de imóveis, mas controlam 60,8% da área. Vale acrescentar que somente 887 imóveis que possuem mais de 600 módulos fiscais controlam 166.093.941 ha, o que corresponde a 21,4% da área total.
Assim, a concentração fundiária se amplia no rastro da expansão do agronegócio. Herdada do período colonial, inaugurada com as sesmarias, intensificada pela Lei de Terras de 1850, mantida intacta pelos sucessivos bloqueios à reforma agrária na história do país, agora se intensifica com o avanço do agronegócio.
Historicamente, um dos mecanismos de expansão do latifúndio é a grilagem de terras. Tudo indica que essa adquire hoje novos contornos. Os gráficos 4 e 5 comparam os dados do SNCR dos anos de 2003, 2010, 2016 e 2018. No primeiro gráfico consta o número de imóveis cadastrado por classes de área, expresso em módulos fiscais (MF) que é a medida utilizada pelo Incra para classificar os imóveis como Minifúndios (menos de 1 MF), Pequenas Propriedades (1 a 4 MFs), Médias Propriedades (4 a 15 MFs) e Grandes Propriedades (mais de 15 MFs). No segundo gráfico são apresentados os dados referentes à área, seguindo as mesmas classes de área.
2003 2010 2016 2018
5,77
5,18
4,29
6,45
8
6
4
2
0
775,53
800 571,74 521,84
600 418,45
400
200
0
2003 2010 2016 2018
Gráficos 5 e 6 – Número e Área dos Imóveis Rurais – Brasil – 2003/2018
Fonte: SNCR/Incra. Organizado pelo Autor.
No caso dos imóveis houve um crescimento em todos os anos, mas no caso da área houve um aumento expressivo entre 2003 e 2010, uma pequena redução entre 2010 e 2016, seguida de um grande aumento entre 2016 e 2018.
Quando consideramos a variação média anual (Gráficos 6 e 7) observa-se que nos sete anos entre 2003 e 2010 o número de imóveis rurais cresceu em média 127 mil por ano; entre 2010 e 2016, o aumento foi de 98 mil por ano, já nos dois anos entre 2016 e 2018, houve um aumento de 340 mil imóveis/ano, ou 931 novos imóveis por dia!!! Portanto, no período 2016/2018 tivemos um crescimento 2,7 vezes maior que no período 2003/2010 e 3,5 vezes maior que no período 2010/2016.
Variação Média Anual do Número e da Área dos Imóveis Rurais - Brasil - 2003-2018
Média Anual Nº
Média Anual Área
16,35
3,83
1,72
5,25
2,46
2003/2010
2010/2016
-1,46
2016/2018
Gráficos 7 e 8 – Variação Média Anual do Número e da Área dos Imóveis Rurais – Brasil – 2003-2018
Fonte: SNCR/Incra. Organizado pelo Autor.
Em relação à área dos imóveis rurais houve um aumento de 21,9 milhões de ha por ano entre 2003 e 2010, uma queda de 8,3 milhões por ano entre 2010 e 2016 e um impressionante crescimento de 126,8 milhões de ha por ano entre 2016 e 2018, 5,8 vezes maior que o do período 2003/2010.
Foram 126,8 milhões de ha a cada ano, sendo que o maior crescimento se deu na faixa acima de 15 MF, com uma média anual de 111,8 milhões. Significa dizer que em apenas 2 anos os latifundiários auto declararam ter se apropriado de mais 223,5 milhões de hectares, quase ¼ do território brasileiro.
Em termos relativos o maior crescimento se deu na classe acima de 15 módulos fiscais, com 14% de aumento, como o surgimento de mais de 10 mil grandes propriedades por ano. Mas o dado mais impressionante (Gráfico 8) é que na classe acima de 15 módulos fiscais o crescimento da área atingiu 47,5%, ou seja, quase dobrou.
Em termos relativos, isto significa um crescimento de 2,46% ao ano no número de imóveis e de 3,83% ao ano na área entre 2003 e 2010. Nos seis anos entre 2010 e 2016, o crescimento médio anual do número de imóveis foi de 1,72% e a área dos imóveis caiu em média 1,46% ao ano. Já nos dois anos entre 2016 e 2018 o crescimento médio anual do número de imóveis foi de 5,25%, mais do que o dobro da média anual do período 2003/2010, e mais do que o triplo do período 2010/2016. Em relação à área a diferença é ainda mais espantosa: a média anual de crescimento entre 2016 e 2018 foi quatro vezes maior que o crescimento verificado entre 2003 e 2010.
Gráficos 9 e 10 – Variação Média Anual da Área e do Número dos Imóveis Rurais (%) - Brasil - 2003-2018
Crescimento Médio Anual da Área | Crescimento Médio Anual do Número de Imóveis Rurais - Brasil - 2003/2018 400.000 340.000 300.000 127.000 200.000 100.000 98.000 0 2003/2010 2010/2016 2016/2018 | |||
dos Imóveis Rurais (Milhões de ha) - | ||||
Brasil - 2003/2018 | ||||
126,8 | ||||
100,0 | ||||
50,0 | ||||
21,9 | -8,3 | |||
0,0 | ||||
-50,0 | 2003/2010 | 2010/2016 | 2016/2018 | |
Fonte: SNCR/Incra. Organizado pelo Autor.
Também impressiona o crescimento da área dos imóveis em relação ao território brasileiro (Gráfico 9). Em 2003, a área dos imóveis rurais correspondia a 49,1% da área do território brasileiro. Em 2010 essa proporção passou a ser 67,2% e em 2016 caiu para 61,3%. Já em 2018 atingiu impressionantes 91,1%.
Ora, o território Brasil tem 851,5 milhões de hectares, o que significa que em 2016 a área total dos imóveis rurais cadastrados no Incra correspondia a 61,3% da área total do território brasileiro, já em 2018 essa participação aumentou para 91,1%. Em dois anos, um aumento espantoso de 30%.
Área dos Imóveis Rurais em relação à Área territorial do Brasil (%)
100
91,1
80
67,1
61,3
60
49,1
40
20
0
2003
2010
2016
2018
Gráfico 11 – Área dos Imóveis Rurais em relação à Área Territorial do Brasil (%)
Fonte: SNCR/Incra. Organizado pelo Autor.
Ocorre que no território brasileiro não existem apenas imóveis rurais, há também áreas indígenas, unidades de conservação, cidades, estradas, rios, lagos, lagoas, hidrelétricas, etc. Considerando apenas as unidades de conservação terrestres de proteção integral (UCPIs – onde não pode haver imóveis rurais) e as terras indígenas (TIs – onde também não podem existir imóveis rurais) temos um total de 183,4 milhões de hectares. Mas se somarmos 775,1 milhões de ha (dos imóveis rurais cadastrados no SNCR em 2018) a 183,4 milhões de ha (de UCPIs e TIs) temos um total de 958,5 milhões de ha, uma área 107 milhões de ha maior que a área do território brasileiro. Isso, sem contabilizar as áreas das cidades, estradas, lagos, lagoas, hidrelétricas, etc.
A conclusão é óbvia: estão sendo declaradas no cadastro do Incra como propriedades privadas, pelo menos, 107 milhões de ha de áreas que são públicas. É
provável que esse montante seja ainda superior a estes 107 milhões de ha, pois, há, por exemplo, 31,4 milhões de ha de Florestas Nacionais, Estaduais e Municipais que também são áreas públicas e não são UCPIs, mas unidades de conservação de uso sustentável, assim como 15,6 milhões de ha de Reservas Extrativistas e 11,2 milhões de ha de Reservas de Desenvolvimento Sustentável, o que daria mais 58,2 milhões de ha. Portanto, é provável que as irregularidades no SNCR atinjam 165,2 milhões de ha, o que equivalente a 19,4% do território brasileiro e a 21,3% da área autodeclarada dos imóveis rurais.
Trata-se de uma aberração que se deve a dois fatores: (1) a grilagem de terras
– como o cadastro do Incra é autodeclaratório, é comum a declaração como propriedades ou posses particulares de áreas que são públicas, como forma de tentar legalizar a grilagem de terras; (2) a inépcia do Estado brasileiro em estabelecer mecanismos de controle sobre o território, o que, óbvio, interessa aos grileiros, e ao agronegócio em seu movimento de expansão. Este processo de grilagem cadastral de terras se casa com uma série de medidas propostas nos últimos anos que visam legalizar a apropriação irregular de terras no país.
O governo Bolsonaro apresentou, diretamente ou através de sua base parlamentar, vários projetos incentivando a grilagem de terras. A primeira delas foi a Medida Provisória (MP) 910, em 10 de dezembro de 2019, propondo alterar dispositivos das Leis nº 11.952/2009 (que dispôs sobre a regularização fundiária de terras da União), nº 8.666/1993 (institui normas para licitações e contratos da administração pública) e nº 6.015/1973 (que trata dos registros públicos), com o objetivo de favorecer "a titulação de grandes posses irregulares de terras não destinadas da União, portanto, mais uma tentativa de legalizar a grilagem."(SAUER et al. 2019: 2)
Vale lembrar que em 2009, quando o governo Lula apresentou ao Congresso Nacional a Medida Provisória nº 458, justificou a necessidade da mesma com o intuito de pacificar o campo. A MP 458 virou a Lei nº 11.952/2009, que instituiu o Programa Terra Legal, que visava conceder os títulos definitivos“aos posseiros com áreas de até 15 módulos fiscais e não superiores a 1.500 ha, que ocupavam essas terras desde dezembro de 2004 na Amazônia” (TRECCANI et al, 115).
Com justificativa semelhante, a da "segurança jurídica", a MP 910 ampliava a possibilidade de regularização para todo o território nacional, aumentava a área máxima passível de ser regularizada (para 2.500 ha), dispensava de vistoria a área
objeto da solicitação - prevendo apenas uso de tecnologias de sensoriamento remoto
e alargava o prazo para os pedidos de regularização. Além disso, foi suprimida a limitação de uma área regularizada por pessoa física ou jurídica, de forma que uma mesma pessoa ou empresa “poderá ser beneficiaria de mais de um imóvel, ainda que a soma deles ultrapasse 2.500 hectares” (SAUER et al., 2019: 4).
Talvez a maior aberração tenha sido a proposição de que a regularização de posses de terras da União fosse feita apenas com base na autodeclaração do pretenso proprietário. A MP também propôs alterar o marco temporal para os pedidos de regularização, adiando para 2014 o prazo que era originalmente 2004. Mas se o pretenso proprietário quiser comprar a área pelo valor de mercado o prazo vira 2018 (SAUER et al., 2019: 6).
A MP 910 ou MP da Grilagem ainda possibilitava que, mesmo com comprovados danos ambientais, o processo de regularização fosse realizado, desde que o solicitante tivesse aderido ao Programa de Recuperação Ambiental (PRA) ou assinado Termo de Ajustamento de Conduta TAC.
a MP 910 flexibiliza as regras já frouxas da Lei 13.465/2017, ampliando as possibilidades de grilagem de terras públicas, portanto, de privatização ilegal de bens comuns (terra, floresta, etc.). (SAUER et al. 2019: 7).
Com essa MP, o governo Bolsonaro dava sua contribuição para ampliar a grilagem de terras a exemplo do que já fizera o então presidente Temer que editou a MP 759/2016 para agilizar a regularização de terras, posteriormente convertida na Lei 13.465/2017, que ampliava o limite das terras que podiam ser regularizadas para2.500 ha, no caso de ocupações anteriores a 22 de julho de 2008 (TRECCANI et al, 115). Calcula-se que as novas regras permitiriam legalizar até 65 milhões de ha no país, sendo 53 milhões na Amazônia e Matopiba (SAUER et al., 2019:4).
Apesar das já frouxas regras houve quem quisesse ainda mais, uma vez que das 542 emendas à MP 910, por iniciativa de parlamentares de vários partidos, cerca de 130 propunham regras ainda mais tolerantes para a grilagem de terras públicas. Porém, a pressão contra a aprovação da MP foi grande, fruto da articulação de movimentos sociais do campo e entidades ambientalistas, o que acabou redundando em pressões internacionais contra a MP por sua potencial contribuição para o desmatamento da Amazônia. Com o avento da pandemia de covid-19 e a paralisação das votações no Congresso durante boa parte de 2020, a MP caducou.
Diante disso a base parlamentar ruralista bolsonarista apresentou o Projeto de Lei 2633/2020, logo apelidado de PL da Grilagem por herdar trechos da MP da Grilagem. Este PL foi aprovado em julho de 2021 pela Câmara em caráter de urgência e está para ser votado no Senado. Com as alterações que o PL sofreu para tentar reduzir as resistências, 19 milhões de hectares de áreas federais devolutas (não destinadas) poderiam ser regularizadas só na Amazônia, segundo cálculos do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon).12
Outro projeto que facilita a grilagem é o PLS 510/2021 que dispõe sobre a regularização fundiária de terras da União ocupadas, amplia a titulação dessas terras e dispensa vistoria prévia da área a ser regularizada. A proposta que ainda será analisada em audiência nas comissões de Agricultura e de Meio Ambiente do Senado, anistia ocupações ilegais feitas até 2014 e permitiria regularizar 43 milhões de ha, sendo 24 milhões de ha de florestas públicas não destinadas.13
Outro foco dos ataques bolsonaristas são as terras indígenas (TIs). As ameaças são inúmeras. O mais grave é o PL 490/2007 que autoriza a exploração econômica, acaba com as demarcações e impõe a revisão de terras indígenas criadas até hoje no país. Foi aprovado em junho deste ano na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, por 40 votos a 21, e está pronto para a votação em Plenário.
O interesse pelas terras indígenas do ponto de vista do agronegócio é duplo: de um lado, nas TIs já existentes e sobre as quais não se vislumbra a possibilidade de revisão, trata-se de franqueá-las para a exploração por não-indígenas, possibilitando, por exemplo o arrendamento dessas terras para a implantação de monoculturas de grãos; de outro lado, visa impedir que novas TIs sejam demarcadas e algumas demarcações sejam revistas, ampliando as terras para onde o agronegócio pode se expandir, ou assegurando sua presença em áreas reivindicadas por povos indígenas.
Vale dizer que no caso da autorização para exploração das TIs por não indígenas, essa é uma agenda que interessa não só ao agronegócio, mas também a mineradoras e às grandes construtoras de obras de infraestrutura.
12Disponível em https://infoamazonia.org/2021/10/11/congresso-projetos-caos-fundiario-amazonia/ - acessado em 10 de novembro de 2021.
13Disponível em https://infoamazonia.org/2021/10/11/congresso-projetos-caos-fundiario-amazonia/ - acessado em 10 de novembro de 2021.
Segundo dados do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), existem 1.296 terras indígenas no Brasil, sendo que 530 sem qualquer ação do Estado brasileiro visando sua demarcação, as terras demarcadas são 401 e outras 306 tiveram o processo demarcatório iniciado, mas não concluído. Há ainda 65 terras indígenas que não se enquadram na categoria de terra tradicional.14
A paralisação das demarcações de terras indígenas, anunciada pelo presidente da República ainda durante a sua campanha eleitoral, continua sendo uma diretriz de seu governo.
Todo este conjunto de iniciativas legislativas e ações ou omissões do executivo somam-se à falta de mecanismos mais precisos de controle sobre o território brasileiro como fatores de estímulo à grilagem de terras públicas e devolutas no país, assim como para expulsar da terra aqueles que nela vivem, mas que não possuem títulos de propriedade.
Tanto os dados dos censos como dos cadastros de terras são tabulares, ou seja, as informações sobre os imóveis não são acompanhadas da localização geográfica precisa (geo-espacial) das glebas de terra descritas. Análises espaciais, como sobreposições entre glebas e destas glebas com outras categorias fundiárias como Unidades de Conservação ou Terras indígenas não são registradas nos dados tabulares. (PINTO, et al., 2020: 3)
Apesar dos autores considerarem que houve melhorias nos últimos anos no sistema nacional oficial de gestão de terras (Sigef/Incra) e na implementação de um cadastro ambiental rural (CAR), que aumentaram a qualidade dos dados sobre a posse e a localização geográfica de imóveis rurais no Brasil, persistem incertezas, pois o CAR é um cadastro autodeclarado e o Sigef defasado e incompleto.
Pinto et al. (2020) citam estudos de Spavorek et al. (2019) que combinaram dados do Sigef e do CAR com outras 12 bases de dados oficiais para elaborar um mapa da distribuição da terra do Brasil, no qual foram identificados4.486.584 polígonos, sendo 377.998 imóveis rurais cadastrados no SIGEF em 2018, 102.368 imóveis rurais titulados do Programa Terra Legal do ano de 2015, 3.998.671 imóveis
14Disponível em https://cimi.org.br/terras-indigenas - acessado em 03 de novembro de 2021.
rurais cadastrados no CAR em 2018 e 7.547 assentamentos rurais cadastrados no Incra.15
Esse mapa identificou 5,3 milhões de imóveis ocupando uma área de 422 milhões de ha, com área média de 102 ha contra 5 milhões de estabelecimentos rurais ocupando 350 milhões de ha, com área média de 99 ha do Censo do IBGE de 2017 (PINTO et al., 2020: 7). Segundo tal estudo, os 15.686 maiores imóveis do país (0,3% do total) detêm 25% de toda a terra agrícola.
Esta incerteza básica sobre a situação fundiária e a geografia do uso da terra e da produção agropecuária dificultam a formulação e a aplicação das políticas agrária, agrícola e ambiental. Um cadastro unificado, georreferenciado e validado é uma urgência e uma condição para se propor antes de qualquer medida de regularização fundiária no país. (PINTO et al., 2020: 17).
Em pleno século XXI, com todas as ferramentas tecnológicas disponíveis, a pergunta fundamental que se coloca é: a quem interessa essa persistência da falta de controle do Estado brasileiro sobre o território se não aos grileiros que se valem desta situação para seguir se apropriando ilegalmente de terras públicas e devolutas.
Estudo da ONG Grain (2019) destaca os processos que estão em curso de regularização ambiental e fundiária como parte da privatização massiva de terras públicas e coletivas no Brasil. Estes processos remontam ao novo Código Florestal, aprovado em 2012 e que permite
tornar legal cerca de 58% do desmatamento ilegal no Brasil, permitindo o avanço da fronteira agrícola sobre cerca de 29 milhões de hectares; também permite a compensação da Reserva Legal (RL) do agronegócio sobre áreas com menor valor de custo em se manter a floresta em pé, em geral, nos territórios tradicionais de povos e comunidades tradicionais e assentamentos de reforma agrária, que passam a assumir a responsabilidade, inclusive penal, por danos ambientais sobre a área compensada. (GRAIN, 2019: 1).
Além disso, o Código Florestal também previu o CAR (Cadastro Ambiental Rural), cujo Sistema Nacional de Cadastro Ambiental Rural (Sicar) poderá regularizar até 175 milhões de ha. O CAR é um registro público eletrônico, obrigatório para todos os imóveis rurais do país, com o objetivo de integrar as informações ambientais das propriedades e posses rurais públicas e privadas. a previsão era de que todos os
15Na época do estudo o Incra informava a existência de 9.374 assentamentos com 88 milhões de hectares, mas somente 7.547 assentamentos rurais georreferenciados, com uma área de 46 milhões de hectares.
imóveis rurais deveriam estar inscritos no CAR até 31/12/18, mas essa obrigatoriedade foi adiada pelo governo Bolsonaro, sob alegação de que muitos proprietários não tiveram condições de fazer o cadastro e seriam prejudicados, uma vez que o CAR
passa a ser o passaporte do imóvel para acesso ao sistema bancário e todas as políticas públicas ligadas ao meio rural, inclusive para acesso à benefícios da previdência social, a emissão de guia para venda da mercadoria produzida na área e etc. (GRAIN, 2019: 2).
Este sistema está diretamente associado à lógica do capitalismo verde, ao prever o uso do CRA (Certificado de Regularização Ambiental) para alavancar recursos junto à Bolsa de Valores Ambientais - BVRio, onde
1 CRA ou 1 ha de vegetação nativa pode variar entre R$ 3 mil reais (U$760 dólares) e R$ 50 reais (U$ 20 dólares), a depender do bioma, do estado e do valor da terra, o que significa um mercado de no mínimo 9 bilhões de reais (cerca de 2,2 bilhões de dólares). (GRAIN, 2019: 2).
Packer (2021: 145) afirma que o Código Florestal além de promover perdão do desmatamento, financeirização e “grilagem verde” "permitiu o desmatamento legal e a incorporação de mais 88 milhões de ha de vegetação nativa para o aumento da fronteira agrícola."
Mas há outros problemas com o CAR. A maioria das instituições públicas e financeiras vem se negando a reconhecer o CAR coletivo, ou seja, a inscrição de todo o perímetro da área do assentamento ou território coletivo para se acessar as políticas públicas, o que faz com que algumas famílias busquem a realização de cadastros individuais sobre áreas coletivas, gerando conflitos internos nas comunidades.
Até 01/03/2019, apenas 0,03% dos cadastros realizados no Sicar eram de território de povos e comunidades tradicionais, somando 1.952 cadastros com 34,8 milhões de ha. Havia ainda 15.136 cadastros em áreas assentamentos de reforma agrária, com um total de 50,6 milhões de ha (GRAIN, 2019: 6).Por sua vez, nota técnica do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) de março de 2021 apontou o crescimento de 55% terras indígenas onde há áreas registradas irregularmente como propriedade privada no CAR no período entre 2016 e 2020 (TRECCANI et al, 2021: 114), assim,
o CAR está sendo empregado para legitimar a ocupação ilegal de terras indígenas, na esperança de que o atual governo diminua essas
áreas para reconhecer a ocupação irregular. (TRECCANI et al, 2021: 116).
Segundo Treccani et al. (2021), levantamento feito pelo observatório “De olho nos ruralistas”, apontou 297 terras indígenas que, apesar de demarcadas, possuem parte de seus territórios registrados no CAR em nome de pessoas físicas ou jurídicas. Por sua vez, o MPF identificou quase 10 mil CAR em áreas destinadas a povos indígenas. Assim,
embora tenha finalidade apenas ambiental, o CAR (...) vem sendo amplamente utilizado de forma fraudulenta como instrumento de grilagem, gerando inúmeras sobreposições em áreas públicas e territórios coletivos. Essa prática resultou em, até março de 2019, 30% de área a mais cadastrada do que o território brasileiro passível de cadastramento, expondo o caos fundiário do país e legitimando um mercado de terras de títulos podres. (PACKER, 2021: 145/146).
Desta forma, Packer (2021: 146) lembra que embora dados oficiais apontem que aproximadamente 43% do território brasileiro seria pertencente a imóveis privados, 78% do território foi declarado como imóveis rurais particulares no CAR, além de 91% no SNCR do Incra, como visto acima.
regularização ambiental, com o CAR individual (grilagem verde), e regularização fundiária, com a titulação individual de domínio, conjugam-se para fomentar a maior transferência massiva de terras públicas, devolutas e territórios tradicionais coletivos para a iniciativa privada, em verdadeira legalização da grilagem de terras, como também uma contra-reforma agrária no país. (GRAIN, 2019: 9).
Contrarreforma agrária esta que, ao mesmo tempo, é promovida pelo agronegócio e se constitui numa das bases para seu fortalecimento. A voracidade com que esse processo se dá obedece à lógica de um capitalismo cada vez mais ancorado no rentismo e na financeirização.
Bartra (2014, 119) sustenta que o modelo de desenvolvimento extrativista baseado no saque dos recursos naturais é a forma rentista, especulativa, parasitária e predadora do capitalismo de escassez que realiza um triplo movimento: saque dos despojados dos bens, saberes e condições de vida produtiva, social e espiritual; exploração dos trabalhadores; rentismo a partir da apropriação dos bens naturais privatizados.
...se a acumulação primitiva analisada por Marx é premissa histórica da acumulação ampliada propriamente capitalista, o saque
permanente é premissa estrutural da acumulação ampliada rentista... (BARTRA, 2014: 120).
O rentismo se sobrepõe cada vez mais ao investimento produtivo, seja as rendas diretamente financeiras ou as derivadas da privatização de bens naturais e sociais.
O capitalismo dos tempos da grande crise é de novo um capitalismo ferozmente territorial, porque em tempos de escassez a privatização dos recursos naturais promete enormes rendas; porém é também um capitalismo radicalmente desterritorializado pois quando caem os ganhos do investimento produtivo não há melhor negócio que a especulação financeira. (BARTRA, 2014: 121).
O capital dos tempos da grande crise é financeiro-rentista e segue buscando mecanismos de subordinar à sua lógica coisas que não são mercadorias: as pessoas, a natureza e o dinheiro.
Diante da brutalidade da lógica capitalista rentista e das profundas desigualdades que produz, a violência torna-se parte consubstancial do sistema. Assim como as formas primitivas de apropriação da riqueza se entrelaçam com a formas modernas de acumulação, a vida institucional regulada pelo direito se articula com as práticas extralegais.
assim como no terceiro milênio temos um capitalismo descerebrado que recorre sistematicamente à economia violenta da “acumulação por despossessão”, temos também uma ordem burguesa brutal e autoritária que tanto no plano global como no nacional, recorre sistematicamente à violência política primária permanente, quebrando vez por outra o Estado de direito. (BARTRA, 2014: pág. 128)16
Tal qual o governo Bolsonaro e seu sistemático incentivo ao armamento, à violência, ao desprezo pelos povos e comunidades tradicionais. Vale lembrar que o governo propôs a Lei 13.870/2019 que chancela o armamento rural (SAUER et al., 2019: 3) e que deu inúmeras declarações racistas contra indígenas e quilombolas. Não resta dúvida de que por declarações, ações e propostas legislativas o atual governo alimenta e valida o tripé grilagem – desmatamento – violência.
Em 2020, segundo os dados da CPT, em plena pandemia de covid-19, tivemos o maior número de conflitos por terra desde 1985, ano em que a CPT começou a registrar de forma sistemática os dados sobre conflitos no campo brasileiro. Foram
16 Tradução do autor.
1.576 conflitos, envolvendo 171.625 famílias e 77.442.957 ha, um crescimento, respectivamente de 25,7% no número de conflitos, de 19,8% no número de famílias envolvidas e de 45,3% na área em disputa entre 2019 e 2020.
Treccani et al. (2021) apontam a concentração dos conflitos na Amazônia, com 58,7% dos conflitos, embora possua apenas 13,9% da população brasileira. Essa região lidera expulsões, grilagem e desmatamento ilegal. Destacam ainda, em sua análise, que a partir de 2009, os povos e comunidades tradicionais passaram a ser o principal alvo da violência.
As cinco categorias que mais foram vítimas de agressões entre 2009 e 2020 foram: sem-terra, com 2.804 ocorrências (24,85% do total); posseiro, 2.470 (21,89%); indígenas, 2.010 (17,82%); quilombolas,
1.470 (13,03%); e assentados, 861 (7,6%). Quando, porém, analisamos os números dos últimos dois anos, podemos verificar que as duas categorias com o maior número de ocorrências são os indígenas e os quilombolas, que aumentaram, respectivamente, 2,67 vezes e 1,93 vezes. (TRECCANI et al, 2021: 121).
Essa conclusão é reforçada pelo relatório "Violência contra os Povos Indígenas no Brasil" publicado anualmente pelo Cimi, segundo o qual em 2020, 182 indígenas foram assassinados, um número 61% maior do que o registrado em 2019, quando foram contabilizados 113 assassinatos.
Quando a análise recai sobre os responsáveis pela violência, os dados da CPT apontam que os “fazendeiros” foram responsáveis por 3.934 conflitos (34,87%), seguidos de “empresários nacionais e internacionais”, protagonistas de 2.428 conflitos (21,52%) e o “Poder Público”, envolvido em 1.562 conflitos (13,75%)
Nessa última categoria, inserem-se o governo federal, com 1.115 ocorrências, os governos estaduais, com 316, e municipais, com 131. Comparando os dados de 2019 com 2020, o governo federal destaca- se, passando de 103 para 519, um aumento de cinco vezes. (TRECCANI et al, 2021: 121).
Evidencia-se assim o papel cada vez mais ativo do governo na promoção de conflitos no campo. Ao contrário do que se esperaria do Estado, numa visão liberal, o de moderador dos conflitos sociais, evidencia-se aqui o caráter de classe do Estado agindo a favor dos interesses do capital no campo com uma brutalidade cada vez maior. Mas é sempre bom lembrar que a promessa de que as políticas de regularização fundiária levariam paz ao campo foi feita pela primeira vez pelo governo Lula em 2009 quando justificou a criação do programa Terra Legal. Porém, ao
contrário de paz no campo, as políticas de regularização fundiária provocaram aumento dos conflitos (TRECCANI et al, 2021: 118).
é urgente abandonar qualquer forma de regularização fundiária que possa favorecer a expansão da fronteira agrícola, a busca de ganhos patrimoniais rápidos, a grilagem de terras pública, a concentração da riqueza e o aumento da exclusão social. (TRECCANI et al, 122).
Na próxima seção do texto buscaremos apontar como os movimentos sociais do campo estão buscando meios de se contrapor a conjuntura tão adversa para as lutas sociais.
A resistência dos movimentos sociais do campo à contrarreforma agrária
Os inúmeros ataques e ameaças do governo Bolsonaro aos movimentos sociais do campo e aos povos originários e comunidades tradicionais se somaram a partir de 2020 à política genocida do governo diante da pandemia de covid-19.
Desde 2019, quando se inicia o governo Bolsonaro, os movimentos parecem estar acuados, premidos pela ausência de possibilidades de diálogo e pelas ameaças de violência e, mais recentemente, tolhidos pelo necessário distanciamento social, relacionado à expansão da pandemia da covid-19. (MEDEIROS, 2020: 492).
Entre declarações absurdas sobre ineficácia de máscaras e vacinas e campanhas sistemáticas contra o distanciamento físico, o governo negou assistência prioritária a populações sabidamente mais vulneráveis, como os indígenas.
De acordo com dados da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (2021) foram registrados 60.490 casos de covid-19 entre os indígenas, comum total de 1.228 mortes e 162 povos afetados pela pandemia. O Amazonas foi o estado com maior número de mortes, 254, seguido do Mato Grosso com 161 e Mato Grosso do Sul com
128. Os povos com maior número de mortes foram o Xavante com 79 e o Terena com 65.17
Cenário não muito diferente se delineou em relação às comunidades quilombolas, também vitimadas em larga escala pela pandemia. Segundo a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (2021) até 04 de novembro de 2021 foram registrados 6.656 casos de covid-19 entre
17https://apiboficial.org/ - acessado em 03 de novembro de 2021.
quilombolas com 310 mortes.18Chama atenção no caso dos quilombolas o altíssimo índice de mortalidade no Rio de Janeiro, onde houve 44 mortes num universo de 14.857 quilombolas, ao passo que na Bahia, estado com maior população vivendo em áreas quilombolas, com 268.573 pessoas19, houve apenas 9 mortes, ou seja, o índice de mortalidade nos quilombos do Rio de Janeiro foi88 vezes maior que nos da Bahia. Diante disso, inúmeros povos indígenas e comunidades quilombolas se organizaram para promover bloqueios sanitários visando impedir o acesso a suas
terras, de forma a evitar a contaminação generalizada nessas áreas.
Diante da grave omissão do governo federal no combate à COVID-19, os povos, sobretudo indígenas e quilombolas, realizam movimento autônomo de bloqueio aos acessos dos seus territórios, para evitar a entrada do vírus nas comunidades e impedir atividades ilegais como caça, garimpo, extração ilegal de madeira, grilagem, turismo etc. (CPT, 2021: 13).
Essa prática acabou também sendo replicada por outros povos e comunidades tradicionais, como caiçaras do litoral fluminense que bloquearam os acessos a praias da região de forma a impedir o contágio sobretudo dos anciãos dessas comunidades. Segundo a CPT foram registrados 370 conflitos no campo brasileiro em 2020 envolvendo barreiras sanitárias comunitárias, sendo 314 relacionadas a povos indígenas, 40 a comunidades quilombolas e 12 a comunidades de caiçaras e pescadores, entre outras.
A resistência dos movimentos sociais do campo também se traduziu em ações de solidariedade durante a pandemia com distribuição de alimentos nas periferias das cidades. Só o MST distribuiu 5 mil toneladas de alimentos e 5 mil cestas de produtos.20 Outra iniciativa do MST foi a produção e distribuição de marmitas para a população de rua e motoristas de aplicativas através da rede Armazém do Campo, espaços de comercialização que o Movimento possui em diversas cidades brasileiras, e que aliás se expandiu durante a pandemia como forma de escoar a produção dos
18Disponível em http://conaq.org.br/ - acessado em 18 de novembro de 2021.
19Os dados sobre população vivendo em áreas indígenas e quilombolas foi calculado de forma experimental pelo IBGE em 2021 - disponível em https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/populacao/31876-dimensionamento-emergencial-de- populacao-residente-em-areas-indigenas-e-quilombolas-para-acoes-de-enfrentamento-a-pandemia- provocada-pelo-coronavirus.html - acessado em 18 de novembro de 2021.
20Disponível em https://mst.org.br– acessado em 17 de novembro de 2021.
assentamentos. De acordo com o MST foram produzidas e distribuídas 1 milhão de marmitas, além de 50 mil máscaras.21
Entre as 1.348 manifestações de luta sistematizadas pela CPT em 2020, 965 (71,6%) foram “Ações de solidariedade”, cujo objetivo principal foi a doação de alimentos para famílias, do campo e da cidade, em situação de vulnerabilidade agravada pela COVID-19.
Medeiros (2020) também destaca a importância dessas ações, mas indaga acerca de seus limites para enfrentar a brutalidade dos ataques proferidos pelo governo e seus aliados.
É animador ver a difusão de ações de solidariedade, com distribuição de alimentos a populações carentes, a afirmação de bandeiras por meio de transmissões ao vivo em seminários com número expressivo de participantes, apontando a apropriação da comunicação virtual como forma de expressão e resistência. Resta saber até onde vai a eficácia de um repertório de ações que tem que se fazer por meio de ações remota, num contexto em que as construções democráticas dos últimos 40 anos encontram-se seriamente ameaçadas. (MEDEIROS, 2020: 518).
Outra ação de grande relevância observada durante a pandemia foi o acampamento indígena realizado em Brasília por ocasião do julgamento no STF do chamado marco temporal que ameaçava não só impedir novas demarcações de TIs como poderia possibilitar a revisão de TIs já realizadas. Diante de tão grave ameaça
6.000 indígenas de 176 povos acamparam por uma semana na capital federal na maior mobilização indígena em 30 anos no país. Além do acampamento em Brasília, foram realizadas manifestações concomitantes em 12 estados brasileiros.22
Em texto publicado em 2020, ALENTEJANO (2020) afirmava que
Avaliar um governo apenas por seu primeiro ano é um exercício que envolve algum risco, pois mudanças de rumo podem ocorrer ao longo dos mandatos, ainda mais no contexto atual, afetado por uma pandemia de proporções inéditas. Entretanto, no caso das políticas do governo Bolsonaro para o campo parece haver poucas dúvidas de que os rumos seguirão os mesmos, nitidamente delineados desde os tempos de campanha e reafirmados ao longo desse primeiro ano:
21Idem.
22Disponível em https://cimi.org.br - acessado em 18 de novembro de 2021.
prioridade total para o agronegócio e ataques aos movimentos sociais, em especial o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), povos indígenas e comunidades tradicionais, com destaque para os quilombolas. (ALENTEJANO, 2020, 355).
Agora que o governo Bolsonaro se aproxima de seu fim, podemos dizer que a previsão estava correta e o governo de fato cumpriu suas promessas de campanha no que diz respeito à política agrária, infelizmente...
Como aponta Medeiros (2020) os movimentos sociais do campo encontram-se diante de um impasse, na medida em que suas formas tradicionais de mobilização, como as ocupações de terra, acampamentos, marchas, passeatas foram duplamente afetadas, pela recusa sistemática do governo de atender qualquer reivindicação, mas também pela pandemia que impôs o isolamento e inibiu aglomerações.
Se, ao longo dos anos, os movimentos desenvolveram um conjunto de ações voltadas para dialogar com o Estado (não excluindo a oposição e o enfrentamento em alguns momentos), surge um grande impasse no momento em que o Estado se fecha à interlocução, nega-se a receber as representações dos grupos em luta, desqualifica-os como interlocutores e os ameaça. Num contexto como esse, os movimentos perdem seu mais forte instrumento para expressão de suas demandas: as manifestações públicas, na medida em que a mobilização se torna difícil, arriscada ou, na melhor das hipóteses, é ignorada. (MEDEIROS, 2020: 510).
O resultado é a perda de direitos que haviam sido conquistados a duras penas, a extinção de políticas que se não haviam alterado profundamente as estruturas sociais, em especial a agrária, haviam assegurado algumas melhorias para a vida dos povos do campo.
No Brasil, após um período de amplas mobilizações, de obtenção de políticas públicas que refletiram o reconhecimento de novos sujeitos políticos, seguiu-se outro de crescentes dificuldades para esses atores até mesmo para manter direitos já conquistados. O governo Bolsonaro mostra-se como a expressão extrema desse processo de perdas de direitos, às quais se somam a desqualificação e criminalização das lutas sociais e dos sujeitos que as levam adiante, a tolerância e estímulo ao recurso à violência privada, em especial quando se considera tanto a liberação das armas e sua posse nas áreas rurais, e estatal, quando se abrem as portas para o uso das operações de GLO. (MEDEIROS, 2020: 517).
A violência estimulada e praticada por agentes públicos e privados contra camponeses, indígenas e quilombolas, se soma à devastação ambiental e à grilagem como expressões da contrarreforma agrária, em curso no país desde o final dos anos
2000, mas brutalmente acentuada no governo Bolsonaro, em consonância com os interesses do agronegócio, esse amálgama do latifúndio com o grande capital agroindustrial e financeiro, sustentado pelo Estado e glorificado pela grande mídia empresarial, que superexplora a natureza e o trabalho, produzindo devastação e miséria.
Ao erodir aceleradamente as premissas naturais e sociais da vida humana, o capitalismo nos leva ao precipício. Disto se dão conta os governos, os organismos multilaterais e até os capitalistas. Porém, o capital enquanto tal é cego para tudo o que não seja lucro e os mercados que incentivam a ganância trabalham contra o sentido comum que chama a moderar o saque, a contaminação, a pobreza. Para o capital o fim do mundo é um bom negócio. (BARTRA, 2014: 124).
Mesmo diante de tantas dificuldades, camponeses, indígenas e quilombolas seguem resistindo e inventando novas formas de luta, como as barreiras sanitárias e as ações solidárias de distribuição de comida e máscaras contra a pandemia combinada de corona vírus e fome, praticadas por movimentos como o MST. e se há luta, resistência e criatividade, há esperança de um outro mundo para além da lógica suicida do capital.
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V.20, nº 41, 2022 (jan-abr) ISSN: 1808-799 X
Douglas Ribeiro Barboza2
Resumo
O presente artigo busca analisar como se desenvolveram as políticas de terra e de trabalho no período pré-republicano brasileiro, partindo da premissa de que a questão agrária é decisiva para a compreensão das formas históricas assumidas pelo Estado ante a permanente presença dos interesses vinculados à propriedade territorial na composição política do poder, interferindo nas grandes transformações operadas na vida da nação.
Palavras chaves: Questão Agrária; Trabalho; Brasil.
POLÍTICAS AGRARIAS Y LABORALES EN EL PERÍODO PRERREPUBLICANO: ELEMENTOS PARA PENSAR LA CUESTIÓN AGRARIA EN BRASIL
Resumen
Este artículo busca analizar cómo se desarrollaron las políticas agrarias y laborales en el período pre republicano brasileño, partiendo de la premisa de que la cuestión agraria es decisiva para comprender las formas históricas asumidas por el Estado frente a la presencia permanente de intereses vinculados a la propiedad territorial en la composición política del poder, interfiriendo en los grandes cambios en la vida de la nación.
Palabras clave: Cuestión Agraria; Trabajo; Brasil.
LAND AND LABOR POLICIES IN THE PRE-REPUBLICAN PERIOD: ELEMENTS FOR THINKING ABOUT THE AGRARIAN QUESTION IN BRAZIL
Abstract
This article seeks to analyze how land and labor policies were developed in the Brazilian pre-Republican period, starting from the premise that the agrarian question is decisive for understanding the historical forms assumed by the State in the face of the permanent presence of interests linked to property territorial power in the political composition of power, interfering in the major changes in the life of the nation.
Keywords: Agrarian Question; Work; Brazil.
Artigo recebido em 06/12/2021. Primeira Avaliação em 10/01/2022. Segunda Avaliação em 07/01/2022. Terceira Avaliação: 18/01/2022. Aprovado em 20/02/2022. Publicado em 28/03/2022. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v20i41.52504.
Doutor em Serviço Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil (PPGSS/UERJ - Brasil). Professor do Departamento de Serviço Social da Universidade Federal Fluminense (UFF-Niterói
Brasil) e Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e Desenvolvimento Regional (PGSSDR-UFF/Niterói, Brasil). Coordenador do Grupo de Estudos Marxismo e Realidade Brasileira (GEMARB/UFF/Niterói). E-mail: douglasrb@id.uff.br.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/./2399194165302453. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8151-8511.
O exemplo brasileiro de sistema colonial responde por traços decisivos na constituição e estruturação das classes sociais, no universo cultural e no padrão produtivo das atividades econômicas que deixaram como herança inalterada o papel que o Brasil viria a ocupar na divisão internacional do trabalho capitalista: um país exportador fundado no latifúndio de monocultura extensiva (PRADO JR., 2008).
Ligada umbilicalmente ao processo histórico de colonização do país, a estrutura de ocupação da terra baseada na existência de latifúndios atravessou os diversos ciclos econômicos sem grandes alterações. Nestes marcos, a questão da estrutura fundiária sempre esteve presente no cenário político nacional, formando as bases de uma política de extrema concentração social da propriedade da terra que, não apenas gerou o latifúndio, como também demarcou as estruturas de monopolização do poder por reduzidas elites (MARTINS, 2010).
Ou seja, tratar da questão agrária brasileira significa considerarmos a complexidade da nossa formação sócio-histórica, com as inúmeras transformações sofridas pela agricultura, sem negligenciar todo o histórico de luta pela terra e a grande dimensão territorial do país (OLIVEIRA, BARBOZA, ALENTEJANO, 2020). Constituída pelo selo do mundo rural, a complexidade da nossa formação social vai imprimir à luta de classes uma dinâmica particular, principalmente no tocante às determinações que influenciarão na conformação do capitalismo no país e na formação das classes urbanas que, em seu surgimento, mostram-se alinhadas aos setores dominantes rurais. A questão agrária emerge, aqui, infligindo grande concentração fundiária, ao mesmo tempo em que arranca da terra aqueles que dela vivem e trabalham e impele a miséria aos trabalhadores rurais. Conforma-se por meio de “um padrão de ‘modernização agrária’ onde a função pública do Estado na regulação da propriedade fundiária tem seus elos com o mercado cada vez mais acirrados ao longo da história da formação social brasileira” (BARBOZA et al, 2019, p. 61-62). Conforme destaca Alentejano (2020, p. 225):
A história da questão agrária no Brasil é a história da não realização da reforma agrária, fazendo da história agrária deste país a história do predomínio absoluto do latifúndio nas suas várias facetas: base do poder e da violência no campo; bastião da improdutividade da terra no
Brasil; celeiro da recente modernização agrícola, conservadora, brasileira, da qual resultou mais recentemente o agronegócio3.
Considerando estes aspectos, o presente artigo busca analisar como se desenvolveram as políticas de terra e de trabalho no período pré-republicano brasileiro, partindo da premissa de que a questão agrária é decisiva para a compreensão das formas históricas assumidas pelo Estado ante a permanente presença dos interesses vinculados à propriedade territorial na composição política do poder, interferindo nas grandes transformações operadas na vida da nação. Nossa “via não clássica” de transformação capitalista teve como uma de suas protagonistas a velha oligarquia agrária – dos proprietários de terras e de escravos – que se modernizou e se recompôs economicamente e reconstruiu alianças para garantir a sua manutenção no bloco de poder, influenciando de forma decisiva os pilares conservadores da dominação burguesa4.
Até às vésperas da Independência vigorou no Brasil o regime de sesmarias, o regime colonial de propriedade instituído a partir do Governo Geral, em que a concessão de terras disponíveis a particulares (pois elas eram consideradas como patrimônio pessoal do rei) baseava-se em requisitos estamentais que implicavam a avaliação do status social, das qualidades pessoais e dos serviços prestados à Coroa pelo pretendente a estas terras5. Apesar de regulamentada pela lei, a aquisição de terras derivava do arbitrium real, o que dificultava a legalização da ocupação indiscriminada dos terrenos para aquele que não fosse branco (“puro de sangue”), católico (“puro de fé”) e senhor de escravos (MARTINS, 2003; 2010).
Em meados do século XVI, em decorrência dos interesses comerciais da Coroa, ocorreu uma redefinição na política de terras: declarou-se que a terra para a plantação de cana e construção de engenhos não poderia mais ser doada
Sobre as polêmicas em torno dos sentidos da questão agrária e dos diferentes projetos de reforma agrária no Brasil, cf. Stédile (2005a, 2005b) e Delgado (2005).
Sobre a via repressiva de contenção das reivindicações populares por parte do Estado, ver Barboza e Andrade (2020).
A esse respeito, cf. Cirne Lima (2002).
indiscriminadamente, mas sim àqueles que pudessem provar ter recursos para explorá-la e construir fortificações, limitando o número de doações a um lote por pessoa. Apesar da intenção da Coroa em evitar a concentração de terra nas mãos de poucos (e o surgimento de uma nova ordem feudal na colônia), os proprietários de engenho recorreram a vários expedientes para conseguir aumentar suas propriedades e acumular terras (COSTA, 2010) 6.
Considerando que nem toda a terra era utilizada para fins comerciais, o proprietário mantinha como moradores nas áreas menos férteis de sua propriedade uma quantidade de arrendatários e meeiros, que se dedicavam à economia de subsistência (caça, pesca) e, eventualmente, trabalhavam na plantação e nas obras necessárias à manutenção da propriedade, como conservação de caminhos, construções várias etc. Tal estratégia contribuiu para a criação de uma rede de relações pessoais nas quais o proprietário - cujo poder assentava-se na propriedade da terra - funcionava como mediador entre os arrendatários, os meeiros e a Coroa. Com a utilização dos trabalhadores escravizados africanos na plantação, o prestígio social do proprietário passou a ser fundamentado sobre o poder que ele exercia sobre estes negros escravizados e sobre os homens livres que viviam na periferia da grande fazenda. Ou seja, o sistema de relações sociais que emerge deste poder (junto com a importância da economia de subsistência) explica a sobrevivência das concepções tradicionais sobre a terra (COSTA, 2010) 7.
Em 1822 o regime de sesmarias foi suspenso, o que, juntamente com a ausência de uma legislação fundiária, contribuiu para a suspensão dos obstáculos que impediam a ocupação indiscriminada das terras, criando uma situação anárquica no sistema da propriedade rural (já que os direitos dos ocupantes não foram reconhecidos pela lei).8 A ocupação das terras seguia dois caminhos distintos: “de um lado, o pequeno lavrador que ocupava terras presumivelmente devolutas; de outro, o senhor de escravos e grande fazendeiro que, por via legal, obtivera cartas de sesmarias”. Como a carta de sesmarias possuía precedência sobre a mera posse, “o sesmeiro ou comprava a roça do ocupante, ou o expulsava, ou, era a regra mais geral,
Adquirindo doações em nome de membros de suas famílias ou de amigos, por exemplo.
7Condição que está assentada na lavoura de subsistência, que produzirá novas determinações posteriormente, com a intensificação da mercantilização das atividades produtivas e das outras relações econômicas.
Sobre a história fundiária brasileira, cf. Linhares e Silva (1981) e Cardoso (1979).
em tempos mais recuados, o incorporava como agregado de suas terras” (MARTINS, 2010, p. 40). Aumentaram, assim, incontrolavelmente, as “posses” resultantes da ocupação, concentrando grandes extensões de terras (que eram livremente compradas, vendidas e avaliadas) nas mãos dos posseiros. Este cenário se agravou com a expansão das plantagens9 em decorrência do aumento da demanda de produtos tropicais no mercado internacional.
O desfecho do ciclo de mineração e de exploração diamantífera desencadeou vários processos de mobilidade espacial e econômica, de deslocamento de fronteiras econômicas e “incorporação de novas fronteiras” à economia de plantagem, com sucessivas experiências sob as quais os senhores tentaram descobrir um “gênero colonial” que pudessem explorar e exportar. Desencadeiam-se diferentes tentativas de substituir a lavoura de subsistência pela grande lavoura10 e de descobrir um novo eixo econômico para o modo de produção escravista11. A perpetuação e fortalecimento da escravidão mercantil era condição essencial para a manutenção e ampliação da vitalidade crescente da economia de plantagem, o que se caracterizou como o fato mais destacado de um contexto histórico próprio criado pela fase neocolonial da evolução do sistema de produção e de dominação econômica (FERNANDES, 2010, p. 42-56).
O declínio do antigo sistema colonial no Brasil foi condicionado por fatores internos que se associavam às forças exteriores e gerais. O domínio de uma Metrópole empobrecida, com mínimos recursos econômicos, tornava-se cada vez mais pesado para o Brasil-colônia. Por outro lado, se, durante muito tempo, os conflitos entre produtores e comerciantes, entre comerciantes e burocratas ou entre os vários mercadores que disputavam entre si o usufruto dos monopólios e
Gorender (2010, p. 119) recomenda substituir o anglicismo plantation pelo vocábulo plantagem: “As grandes explorações agrícolas com trabalho escravo, surgidas no contingente americano à época do mercantilismo, têm sido designadas, na literatura de língua portuguesa, pelo nome de plantation, vocábulo emprestado ao inglês e sempre impresso em itálico. Mas os ingleses [...] tomaram termo emprestado aos franceses. [...] o esdrúxulo consiste em que escritores de língua portuguesa precisem desse vocábulo estrangeiro a fim de indicar uma forma de organização econômica que Portugal teve muito antes da França e da Inglaterra (nas ilhas atlânticas) e que, no Brasil, apresentou-se sob um modelo clássico e de duração mais prolongada do que em outras regiões. Em lugar de plantation, alguns autores empregam ‘plantação’ ou ‘grande lavoura’. Ambas expressões linguísticas sofrem de desvantagem de carência de univocidade, prestando-se a confusões”.
Cabe ressaltar que a agricultura de subsistência era subsidiária à grande lavoura.
Desde a transmigração da corte lusa para o Brasil e a abertura dos portos, inaugura-se um circuito histórico novo: a economia de plantagem e o comércio interno passam a adquirir vínculos diretos com o mercado mundial. As consequências desse processo são analisadas em Fernandes (2010, p. 86).
privilégios12 eram sentidos como conflitos de interesses entre os súditos de uma mesma Coroa (que fazia o papel de mediadora entre as partes), a partir do século XVIII esses atritos tomaram um novo vulto. Os colonos perceberam a incompatibilidade entre os seus interesses e os interesses metropolitanos e passaram a encarar o Pacto Colonial como um contrato unilateral entre colônia e metrópole, no qual esta última era a única beneficiária.
A parte política do antigo sistema colonial entra em colapso com a Independência. Mas ocorre apenas uma redefinição do resto do sistema, sob a qual a aristocracia agrária e os estamentos de que esta dependia para controlar o Estado senhorial e escravista passam a monopolizar as funções administrativas, legais e políticas da Coroa. O controle direto e a mediação econômica da Metrópole seriam suprimidos, esvaecendo, assim, a superposição da apropriação colonial sobre a apropriação escravista. Assim, por um lado, a apropriação do produto do trabalho se transformava numa relação econômica específica, definida a partir de dentro e controlada pelos interesses coletivos da aristocracia agrária; por outro, os senhores assumiam o controle do Estado e passavam a construir a sua política econômica de autodefesa dos interesses escravocratas e de fortalecimento do setor escravista da emergente economia colonial (FERNANDES, 2010).
A expansão interna do capital comercial era dinamizada e ampliada pela parte do excedente econômico gerado pela produção escravista que permanecia no Brasil e alimentava o crescimento do “novo setor da economia”. À medida que a renda nacional experimenta um patamar de crescimento, desenvolvem-se, no mesmo ritmo, o comércio de produtos manufaturados, as atividades artesanais, o setor fabril e o setor de serviços (IANNI, 2004).
O período que se abre a partir dos anos 1850 é marcado pelo encaminhamento de modificações que buscavam mudar a fisionomia do país: a redução e a extinção do tráfico de escravos,13 com a consequente liberação de capitais para investimentos
12 A esse respeito, ver Costa (2010, p. 25), Gama (1977, IV, p. 54-330) e Holanda (1960, I, v 2, p. 383-
386).
É preciso, no que se refere a este processo, ressaltar a importância dos elementos externos e internos. No tocante à pressão internacional, os esforços britânicos para abolir internacionalmente o
produtivos em outros setores; a promulgação da Lei de Terras; a centralização da Guarda Nacional; e a aprovação do primeiro Código Comercial. Assim, se a primeira metade do século XIX configura-se como uma fase transitória de ajustamento à nova situação criada pela independência e autonomia nacional, ao longo de toda a segunda metade do mesmo século conforma-se um cenário de franca prosperidade e larga ativação da economia brasileira, decorrente tanto pelo progresso continuado da cafeicultura, quanto pelos variados surtos de prosperidade ocorridos com a cana-de- açúcar, o algodão, a borracha etc.
A expansão econômica resulta numa progressiva diferenciação interna das ocupações e das relações sociais. Com o crescimento do capital gerado na agricultura e com a expansão dos setores manufatureiro e de serviços, desenvolve-se aceleradamente a divisão do trabalho tanto no plano das unidades produtivas (agrícolas, comerciais, artesanais, fabris e de serviços) quanto nas organizações públicas (federais, provinciais e municipais), onde além de se multiplicarem as ocupações preexistentes, também se criaram novas, emergindo outros grupos sociais não identificados com o fazendeiro. Com a intensificação da mercantilização das atividades produtivas e das outras relações econômicas, vislumbra-se, também, “diferentes concepções sobre a economia e a sociedade, a política e a cultura, a indústria e a agricultura, a economia do país e a economia mundial etc.” (IANNI, 2004, p. 15).
Com o impacto da cessação do tráfico na economia brasileira, o problema do suprimento de cativos após 1850 foi temporariamente atenuado por meio do tráfico interprovincial, sob a forma da venda e do deslocamento forçado de trabalhadores escravizados entre as diferentes regiões do país. Nestes marcos, a crise do tráfico negreiro se refletiu primeiramente na velha economia açucareira, pois a elevação dos preços dos cativos foi a sua manifestação imediata. Mas o prejuízo certo com essa elevação foi transformado, com o tráfico interprovincial, em lucro extraordinário, com a desmobilização da renda capitalizada na pessoa do trabalhador escravo.
tráfico de escravizados formaram um contraponto à expansão da escravidão em Cuba, nos Estados Unidos e no Brasil. A esse respeito, ver Tomich (2011) e Willians (2012). Sobre as pressões internas, Moura (1983; 1988) destaca a importância das lutas dos escravos como um fenômeno de resistência e negação do conjunto de elementos que sustentavam o regime escravista. Para o autor, os atos de rebelião negra sempre desgastaram a ordem social em diferentes níveis e devem ser compreendidos dentro do sentido global de um processo de transição da escravidão para o trabalho livre; ou seja, pressionaram historicamente na direção de dinamizar o processo de abolição e a abertura das portas para a emergência do trabalho livre.
Assim, nas fazendas do Nordeste, começou-se a substituir o escravizado negro pelos antigos agregados,14 os chamados moradores. Estes se compunham principalmente por populações mestiças de índias e brancos; indígenas que há várias gerações haviam sido domesticados e escravizados, e, quando juridicamente libertos, passaram a ser mantidos como agregados dentro de terras (muitas delas que inclusive haviam sido das tribos a que eles pertenciam); assim como por mestiços de negros e brancos, negros libertos e brancos empobrecidos.
Ou seja, os moradores eram trabalhadores teoricamente livres que precisaram permanecer, ao longo das gerações, como moradores de favor das grandes fazendas de cana-de-açúcar, em decorrência do regime de propriedade fundiária e seus diversos mecanismos de exclusão e discriminação que vigoraram durante todo o período colonial. Para que continuassem a ter permissão de plantar suas roças, os moradores passaram a ter que pagar um foro aos fazendeiros, sob a forma de dias de serviço no canavial - o chamado cambão, a renda da terra em trabalho (MARTINS, 2010).
Entretanto, não era possível disseminar essa fórmula por todo o país, já que os fazendeiros de diversas regiões (particularmente os de café) nem sempre dispunham de mecanismos sociais e econômicos que transformassem, em seu benefício, o trabalho dos pequenos lavradores livres e pobres em trabalho compulsório. Além disso, havia outras importantes diferenças entre a cana-de-açúcar e o café, que se refletiram diretamente na maneira pela qual foram incorporados os lavradores livres e pobres à agricultura de exportação:
[...] enquanto no Nordeste canavieiro o agricultor livre e pobre permaneceu no interior da fazenda, como agregado, sujeito ao pagamento periódico e permanente de uma renda em trabalho, de dias de foro no canavial, no Sudeste cafeeiro, o foro também foi cobrado em trabalho, na formação do cafezal, mas de forma diferente, uma única vez, sem constituir vínculo de agregação nem, portanto, agregar permanentemente a figura desse trabalhador ao latifúndio. Enquanto no Nordeste o lavrador livre e pobre foi incorporado no próprio processo de produção da cana e, portanto no processo de reprodução da economia canavieira, no Sudeste o lavrador pobre foi incorporado “exteriormente” na formação da fazenda, mas não na produção do café. (MARTINS, 2010, p.122)
Sobre as particularidades dos agregados, cf. Franco (1997, p. 98-113).
Ou seja, é no âmbito da cafeicultura (principalmente daquela florescente no oeste paulista, a partir da metade do século XIX) que o fenômeno da efetiva fome de braços (que aparecia também no setor artesanal e fabril) emerge com mais nitidez e relevância. Nesta região pioneira, a racionalidade inerente à economia mercantil progrediu da esfera da comercialização para a da produção, penetrando progressivamente a unidade produtiva e impondo o modo capitalista de organização15. A fazenda paulatinamente adquire a fisionomia de empresa, no sentido de empreendimento capitalista; e o fazendeiro, para poder enfrentar os problemas relacionados à organização eficaz dos elementos da produção16, transformou-se em empresário (IANNI, 2004).
Concluída sua etapa de gestação, a economia cafeeira, já no final do terceiro quartel do século XIX, encontrava-se em condições de autofinanciar sua extraordinária expansão subsequente e permitir ao país se reintegrar nas correntes em expansão do comércio mundial, a qual seria liderada por uma nova classe dirigente cujos quadros se formaram numa luta que se estende em uma frente ampla:
[...] aquisição de terras, recrutamento de mão-de-obra, organização e direção da produção, transporte interno, comercialização nos portos, contatos oficiais, interferência na política financeira e econômica. [...] Desde cedo [os dirigentes da economia cafeeira] compreenderam a enorme importância que podia ter o governo como instrumento de ação econômica. Essa tendência à subordinação do instrumento político aos interesses de um grupo econômico alcançará sua plenitude com a conquista da autonomia estadual, ao proclamar-se a República. (FURTADO, 2007, p. 171-172)
Mas ainda restava resolver o problema da mão-de-obra. Por um lado, o empresário busca retardar a abolição; por outro, elabora toda uma política de busca
Não se pode ignorar a polêmica em torno da racionalidade do empreendimento escravista. Os autores vinculados à chamada Escola de Sociologia da USP - como Cardoso (1962), Ianni (2004), Fernandes (1976) e Costa (1998) - difundiram (com diferenças particulares entre eles) a afirmação de uma incompatibilidade do trabalho escravo com as melhorias tecnológicas da produção cafeeira, e que o sistema de produção escravocrata era economicamente menos racional do que o trabalho livre. Em outra direção, autores como Versiani (1994), Mello e Slenes (1980) recusaram a incompatibilidade entre escravidão e racionalidade econômica, compreendendo a escravidão a partir de uma análise restrita ao comportamento racional dos seus agentes econômicos (os proprietários de escravos). Gorender (2010), Prado Jr. (2008) e Tomich (2011) desvelam as limitações e o caráter mecanicista destas argumentações da Teoria Econômica da escravidão. Apesar de concordarem que os proprietários de escravos agiam racionalmente, demonstraram que essa racionalidade não se configurava como uma característica natural dos proprietários, mas sim determinada pelas próprias condições dos processos históricos do período.
Elementos da produção estes tais como terra, capital, técnica, mão-de-obra, além do financiamento, transporte, crédito etc.
de braços para a lavoura. O recrutamento desta mão-de-obra através da mobilização dos trabalhadores nacionais dispersos no interior da economia de subsistência era uma tarefa de difícil realização: o estoque significativo de trabalhadores da região do Nordeste, único em condições de abastecer a cafeicultura da região sul (o que seria hoje o Sudeste), já havia sido atraído pela demanda crescente da exploração da borracha, na região amazônica. Além disso, tal deslocamento era dificultado pelos vínculos de tipo patrimonial que prendiam o roceiro ou o caboclo ao dono da terra (IANNI, 2004, p. 34). Nestes parâmetros, tal recrutamento só seria realizável se obtivesse a decidida cooperação da classe de grandes proprietários de terra, o que, por sua vez, colocava em jogo “todo um estilo de vida, de organização social e de estruturação do poder político” (FURTADO, 2007, p. 179).
Após ventilar-se várias hipóteses (como as tentativas de seguir o exemplo das Índias Ocidentais inglesas e holandesas e incorporar a imigração asiática para trabalhar em regime de semisservidão), os cafeicultores e os poderes públicos provinciais e federal passaram a fomentar uma corrente de imigração maciça de trabalhadores estrangeiros (cujo apogeu se realiza entre 1880 e 1914) como solução alternativa ao problema da fome de braços, através da qual entraram no Brasil centenas de milhares de trabalhadores de origem alemã, espanhola, italiana, portuguesa, russa, polonesa, entre outras17. As condições sociais e culturais da integração desses trabalhadores europeus à situação de exploração de mão-de-obra na fazenda de café não se realizaram sem tensões e atritos graves18. Com a escravidão do negro progressivamente suprimida e finalmente abolida, foram também eliminados os mecanismos de exploração compulsória da força de trabalho. Com o crescimento do trabalho livre a partir da chegada desses imigrantes, tornou-se indispensável criar e desenvolver novos mecanismos sociais e econômicos da incorporação submissa do trabalho do imigrante à economia do café.
Já nos anos 1840, o Senador e fazendeiro paulista Nicolau Vergueiro foi o pioneiro em trazer grupos de imigrantes (90 famílias portuguesas) para trabalhar sob o regime de parceria em sua fazenda Ibicaba. Anos depois, ele contratou mais 80 famílias alemães, além de suíços e belgas, e também fundou a Vergueiro & Cia, a primeira empresa privada responsável por estabelecer contratos de fazendeiros diretamente com o governo, com a função de trazer imigrantes estrangeiros (STOLCKE; HALL, 1983), demonstrando o papel extremamente importante do Estado imperial em facilitar a vinda de mão de obra estrangeira para o Brasil, principalmente a partir de 1870. Não podemos desconsiderar também a existência de dados - sobre as iniciativas de imigração de estrangeiros - que indicam uma incipiente política de formação de núcleos coloniais já praticada entre os anos 1820 e 1830 (GONÇALVES, 2014; COTRIM, 2002).
A esse respeito, cf. Davatz (1980).
Ou seja, no regime de trabalho escravo a modalidade de coerção que o senhor exercia sobre o escravo na extração do seu trabalho já era definida pela condição cativa e era o lucro do fazendeiro que regulava crua e diretamente a jornada de trabalho e o esforço físico do trabalhador. Porém, o mesmo processo não pode ser assimilado à condição do trabalhador livre, o qual só cederia a outrem sua capacidade de trabalho se fosse inserido em mecanismos outros de coerção, já que era considerado juridicamente igual ao seu patrão. Assim, era necessário tornar de alguma forma o trabalho do imigrante livre também compulsório, de maneira a forçá- lo a ter que, para garantir a sua sobrevivência, não apenas oferecer o seu trabalho ao fazendeiro de café, como também sujeitar-se ao ritmo e à disciplina da fazenda cafeeira (MARTINS, 2010). Era necessário, então, regularizar a propriedade da terra de acordo com as novas necessidades econômicas e os novos conceitos de terra e de trabalho.
Nestes marcos, à crise do trabalho escravo plantada com a suspensão do tráfico negreiro e à ameaça de que essa crise poderia estender à grande lavoura relaciona-se estritamente o nascimento da nova legislação fundiária, a Lei de Terras de 1850, com a instauração das regras de propriedade. Isto é, comprova-se a constante relação entre a política de terras e a política de mão de obra; ambas dependentes das fases do desenvolvimento econômico.19
Com o desenvolvimento do café como o mais importante produto da economia brasileira no século XIX, a ocupação de novas áreas pelos fazendeiros da cafeicultura fez brotar a necessidade de legalizar a propriedade rural e de resolver os problemas derivados da escassez de mão de obra para lavoura, o que, consequentemente, compeliu os setores dinâmicos da elite brasileira a reavaliar as suas políticas.
Costa (2010, p. 173-174), revela um conflito entre duas diferentes concepções de propriedade da terra e de política de terras e de trabalho – as quais representavam uma maneira moderna e outra tradicional de encarar o problema: “O conflito entre esses dois diferentes pontos de vista reflete a transição, iniciada no século XVI, mas concluída apenas no século XX, de um período no qual [...] a propriedade da terra significava essencialmente prestígio social, para um período no qual ela representa essencialmente poder econômico. A mudança de atitudes em relação à terra correspondeu à mudança de atitudes em relação ao trabalho: escravidão e certas formas de servidão foram substituídas pelo trabalho livre”.
Nas circunstâncias de uma região com fácil acesso à terra, onde a escravidão era a melhor forma de compelir as pessoas a trabalhar nas fazendas, a única maneira de obter trabalho livre seria criar obstáculos ao acesso à propriedade rural, de modo que o trabalhador livre seria obrigado a trabalhar nas fazendas devido à impossibilidade de adquirir terras (COSTA, 2010, p. 178-179). Neste cenário, a Lei de Terras (promulgada em setembro de 1850, duas semanas após a extinção do tráfico negreiro), e a legislação subsequente, estabeleceram normas para legalizar a posse de terras e buscaram forçar o registro das propriedades, instituindo, assim, um novo modelo em que a aquisição de terras não seria mais mediante concessão da Coroa Portuguesa ao sesmeiro ou mediante apossamento.20A partir de então, até mesmo as terras livres que, no regime anterior, estavam sujeitas à ocupação, não poderiam ser legitimamente adquiridas por outro título que não fosse o de compra. A condição de proprietário das terras públicas não dependia somente da condição de homem livre, mas de possuir pecúlio suficiente para a sua aquisição, ainda que ao próprio Estado.21 Ou seja, por meio da criação de um instrumento legal e jurídico, a Lei de Terras
surge colocando o peso do Estado do lado dos interesses econômicos do grande fazendeiro, assegurando um monopólio de classe sobre a terra em todas as regiões do país. Conseguia-se, assim, interditar o acesso do lavrador pobre à terra, impedindo-o de trabalhar para si e obrigando-o a trabalhar para terceiros, especialmente para os grandes proprietários. Artificialmente criava-se “a superpopulação relativa de que o café necessitava na real escassez relativa de mão de obra” (MARTINS, 2010, p. 51).22
Tornava-se necessário, então, para a continuidade da expansão do café, a abundância de mão de obra de trabalhadores livres dispostos a aceitar o mesmo trabalho que era realizado, até então, pelo trabalhador escravizado. A fórmula definida
A fase de gestação da Lei de Terras se realizou com as primeiras discussões realizadas no Conselho de Estado em 1842, que formulou um projeto de lei (baseado nas teorias do empresário Edward Gibbon Wakefield) apresentado à Câmara dos Deputados no ano seguinte.
É importante destacar que a questão da propriedade não foi regulamentada na Constituição de 1824. Sobre a questão fundiária no Império, cf. Silva (1996).
Sodré (1983, p. 77) afirma que as leis que consideravam “devolutas” as terras cujos ocupantes não possuíssem os títulos de propriedade legitimavam os processos de expropriação: “[...] a expansão cafeeira exige a expulsão dos posseiros: os posseiros são atingidos pela grande lavoura, o latifúndio os expele sem pausa. Esses trabalhadores sem-terra, exímios mateiros quase sempre, especialistas no desbravamento de novas áreas, representarão reserva ponderável de mão-de-obra, aproveitada ocasionalmente, seja nas tarefas em que se especializavam, seja na fase intensa das colheitas, seja nas tropas de transporte”.
para integrá-los era a de que o imigrante deveria ser previamente trabalhador da grande fazenda para que, posteriormente, viesse a se transformar em proprietário de terra, o que dependeria dos ganhos que assim obtivesse (condicionados pelos interesses do fazendeiro). Assim, com a recriação das novas condições de sujeição do trabalho, engendrava-se, um sucedâneo para a coerção predominantemente física do trabalhador: a coerção predominantemente ideológica e moral, por meio do imaginário da ascensão social pelo trabalho (MARTINS, 1973; 2010).
O tipo de trabalhador exigido nas novas relações de produção e coerção não apareceria tão facilmente numa sociedade fundada até então nas relações entre senhor e escravo. Nas relações sociais da sociedade escravista, o despojamento de toda e qualquer propriedade (incluindo a de seu próprio corpo) é a pré-condição para que o trabalhador apareça, na produção, como escravo. Assim, quando da abolição da escravidão, o que ganhara o escravo fora a propriedade de sua força de trabalho, que ele poderia negar a outrem. Sua liberdade, na maioria das vezes, significava o abandono das antigas ocupações, sua substituição, quando possível, por outras atividades menos degradadas pela escravidão, ou até mesmo “o direito de dispor de tempo ou da pessoa de acordo com a própria vontade” (FERNANDES, 2008a, p. 69). A liberdade não era, para ele, o resultado imediato do seu trabalho, mas sim “o contrário do trabalho, a negação do trabalho” (MARTINS, 2010, p. 34). A abolição da escravatura não libertava o escravo do seu passado de escravo, o que será uma das determinações da sua nova condição de homem livre.
Já no cenário em que a produção é diretamente organizada pelo capital, a condição para que o trabalhador livre seja lançado como vendedor da mercadoria força de trabalho é ter preservado a única propriedade que lhe restou quando e porque expulso ou desprovido dos meios de produção: a da sua própria força de trabalho (MARX, 1996). Assim, para este trabalhador agora “livre como pássaro”, o seu trabalho era a condição da sua liberdade; “era no trabalho livremente vendido no mercado de trabalho que o trabalhador recriava e recobrava a liberdade de vender
novamente a sua força de trabalho” (MARTINS, 2010, p. 34). Ao ser desprovido da situação de proprietário das suas condições de trabalho, o homem livre também não se libertava de sua liberdade anterior, “a liberdade de se realizar no trabalho independente, ainda que sob o preço de um tributo em trabalho, em espécie ou em dinheiro” (MARTINS, 2010, p. 34).
A condição material do trabalhador despossuído de todo meio de produção e que não pode viver senão da venda de sua força de trabalho é uma condição primeira do desenvolvimento do capital. Considerando que os fundamentos ideológicos e políticos da produção capitalista são ao mesmo tempo condições e resultados da reprodução do capital, a violência e a coerção ocupam sempre uma posição determinante nas origens da produção diretamente organizada pelo capital (MARX, 1996, p. 245-381).
Nestes marcos, os novos mecanismos de coerção que sustentavam as novas relações de produção só puderam emergir quando se realizou, com a Abolição, não apenas a mera transformação da condição jurídica do trabalhador, mas a transformação do próprio trabalhador, a troca de um trabalhador (o negro escravizado) por outro (o imigrante livre). Não era o homem que se emancipava, mas sim o capital.
Enquanto o trabalho escravo se baseava na vontade do senhor, o trabalho livre teria que se basear na vontade do trabalhador, na aceitação da legitimidade da exploração do trabalho pelo capital, pois, se o primeiro assumia previamente a forma de capital e de renda, o segundo assumiria a forma de força de trabalho estranha e contraposta ao capital. [...] Mais do que a emancipação do negro cativo para reintegrá-lo como homem livre na economia de exportação, a abolição o descartou e minimizou, reintegrando-o residual e marginalmente na nova economia capitalista que resultou do fim da escravidão (MARTINS, 2010, p. 35)23.
Era preciso eliminar o trabalhador da esfera dos meios de produção para que fosse possível o progresso do sistema econômico-social, não somente na direção da abolição da escravatura, como também na direção de criação de um mercado efetivo
“De fato, a lei 13 de maio nada concedeu ao elemento negro, além do status do homem livre. O processo de transformação real dos antigos escravos, e dos seus descendentes, em cidadãos, iria começar então, descrevendo uma trajetória que não foi, nem poderia ser, modelada por medidas de caráter legal. No plano econômico [...], esse processo se caracteriza pela lenta reabsorção do elemento negro no sistema de trabalho, a partir das ocupações mais humildes e mal remuneradas. Isso se explica por várias razões que não se ligam à constituição biopsíquica dos negros, mas à herança negativa deixada pela escravidão” (FERNANDES, 2008a, p. 71).
de mão-de-obra, baseada no trabalhador livre (IANNI, 2004)24. A imigração maciça de trabalhadores estrangeiros vincula-se, assim, às transformações das relações de trabalho na cafeicultura, para as quais era necessário um tipo de trabalhador que considerasse o trabalho como uma virtude da liberdade, isto é, trabalhadores provindos de outros lugares em que a condição de homem livre tivesse um sentido diferente do que o existente na sociedade brasileira, longamente fundada nas relações escravistas.
Conforma-se, neste cenário, a circunstância histórica que diferenciará as condições de expansão e desenvolvimento do capitalismo na sociedade brasileira em comparação àquelas seguidas nos moldes definidos como “clássicos”. O trabalhador livre será recebido pela sociedade brasileira sem que esta tenha feito a acumulação responsável por tal liberação: para a maioria dos trabalhadores livres emigrados, a vivência pessoal e subjetiva do processo básico de acumulação primitiva, com toda a violência característica de expropriação de seus meios de produção, ocorreu em suas sociedades de origem - e a emigração que veio a se consumar no Brasil foi episódio dela. Ao serem absorvidos aqui como força de trabalho desprovida de meios próprios para trabalhar nas fazendas de café, esses trabalhadores livres imigrantes vivenciaram uma relação entre o homem e a terra e entre o trabalhador e o proprietário que, em sua terra nativa, havia se tornado complicada25. Consequentemente, este processo passou a ser interpretado pelo próprio imigrante a partir de um caráter conservador, pois assumia um certo conteúdo restauracionista de relações sociais que haviam sido historicamente derrotadas em seu país de origem (MARTINS, 2010, p.196).
Esse ponto de conciliação ideológica, sobre o qual se sustentou a ideia de que um estilo de vida prévio ao advento do modo de produção caracteristicamente
De acordo com Silva (1981, p. 47), “Se, de um lado, a ‘abolição progressiva’ evitava que o valor da massa de escravos desaparecesse de um dia para outro, de outro lado ela mantinha o quadro escravista e retardava a passagem ao trabalho assalariado, inclusive e em particular a transformação dos homens livres e ex-escravos em trabalhadores assalariados. Em outros termos, a ‘abolição progressiva’ não implicava em uma ‘introdução progressiva’ do trabalho assalariado; e na medida em que isso não acontecia, ela retardava na mesma proporção o desenvolvimento do capitalismo”.
Dentre várias ações, pode-se destacar o caráter bárbaro dos “cercamentos” das terras comunais
dos camponeses, seja com a expulsão destes últimos pela violência brutal de proprietários fundiários para a transformação das terras em pastagens de ovelhas, seja pelo castigo imposto pelas legislações “sanguinárias” aos camponeses que resistissem a tal processo.
capitalista26 poderia ser um bom objetivo para o capitalismo, sustentou a política de seleção de imigrantes. Estes deveriam ser “morigerados, sóbrios e laboriosos” e a possibilidade de obterem recursos para posteriormente garantirem acesso à pequena agricultura familiar seria a compensação merecida pelos primeiros momentos de trabalho árduo e de sofrimentos e privações. A escolha de colonos de sociedades em que a economia ainda estava baseada em relações pré-capitalistas, socializados em culturas de sujeição, organizados em família e não imigrados individualmente - o que os tornavam temerosos de ficarem sem trabalho -, eram as diversas técnicas sociais utilizadas para a seleção social, cultural e nacional dos trabalhadores livres que seriam implantados no Brasil, o que sugere que a potencial acumulação capitalista que dela resultaria exigia, como contrapartida, a instituição de uma espécie de “índice de amansamento e sujeição do trabalhador” (MARTINS, 2010, p. 56-82)27.
Com o incentivo econômico à expansão dos cafezais através da imigração subvencionada, a constante reclamação da “falta de braços para a lavoura” por parte dos fazendeiros constituiu-se como um permanente instrumento de pressão para uma constante obtenção do subsídio disfarçado, que ampliava a oferta de trabalhadores em relação à procura.
A expansão do capitalismo promove um conjunto de transformações econômicas, sociais e institucionais que redefinem categorias sociais não caracteristicamente capitalistas (como o camponês), que passam a se determinar pelas mediações fundamentais desta sociedade. Baseada na compreensão de Martins (1973) e Rudé (1982) acerca dos dilemas da constituição da consciência camponesa, Marilda Iamamoto (2006) afirma que, se a produção da imigração é social, mediada pelos quadros complexos da crise do Brasil agrário, é exatamente por tal fato que “nem todos os aspectos da situação são apreendidos e desvendados pela
O fato de que o modo de produção vigente na era colonial tivesse sido posto e reposto pelo movimento internacional do capital abriu uma ampla polêmica sobre o caráter capitalista ou não do conjunto da economia ocidental (e, consequentemente, do próprio mercado mundial) nos séculos XVI a XVIII. A esse respeito, ver as diferentes argumentações expostas por Prado Jr. (2000; 2008), Novais (1975), Wallerstein (1994), F. H. Cardoso (1962), Mello (1986), C. F. S. Cardoso (1975) e Gorender (2010).
Porém, as relações entre fazendeiros e trabalhadores livres foram, desde o início, permeadas de fortes tensões, frequentemente muito explícitas. Não se pode ignorar as formas de resistência dos colonos, seja por meio de ações de revolta individual esporádica, como o assassinato de fazendeiros; seja através de ações coletivas, como as greves que ocorriam com alguma frequência, sem contar os permanentes conflitos relacionados à área destinada ao plantio de alimentos (nas ruas dos cafezais ou em áreas separadas). A esse respeito, cf. Allier e Hall (1978), Stolcke e Hall (1983) e Truzzi (2000).
consciência dos personagens” (Ibidem, p. 96, itálicos da autora). Não é mais pela relação direta com a natureza que se estabelece a existência do camponês, mas sim pela renda territorial capitalizada que envolve o conjunto das relações da sociedade capitalista. Porém essa mediação não é apreendida por esse trabalhador, que continua a laborar a terra sem perceber as mudanças sociais que ocorreram.
As condições nas quais ocorreu a imigração no Brasil situava objetivamente o camponês como um proprietário potencial, destinado a viver a pauperização – expropriação e exploração – nos quadros da crise da sociedade agrária brasileira. Todavia, no nível da consciência, o imigrante-camponês interpretava a sua situação de vida a partir do modo de vida camponês: a conservação de sua comunidade, marcada pelas relações diretas de pessoa a pessoa, sem apreender as mediações pelas quais o seu contexto de vida já foi historicamente redefinido. (IAMAMOTO, 2006, p. 97)28.
A síntese derivada destas formulações nos ajuda a revelar como as ideologias se transformaram em realidade material nas circunstâncias predominantes e na experiência vivida pelas classes em conformação na particularidade histórica brasileira, assim como nas transformações ocorridas em decorrência das necessidades sociais e dos objetivos políticos daqueles que compuseram estas classes e seus diferentes estratos29.
O objetivo para o qual a sociedade brasileira esteve basicamente orientada determinou, de um extremo ao outro, sua organização. No tocante aos homens livres e pobres, embora tenham permanecidos apartados da produção para mercado, este setor localizou-os na estrutura social e definiu o seu destino. Vimos que uma das mais
Iamamoto (2006, p. 197) ressalta a importância das estratégias mobilizadas pelos trabalhadores para enfrentar o castigo do trabalho: o seu consentimento e rebeldia perante as condições materiais e sociais que emolduram a experiência desse trabalho.
Essa questão ressalta a importância de se discutir a relação entre trabalho e formação humana de forma articulada ao debate sobre as ideologias e os processos de formação da consciência. Barboza (2013, p. 120) afirma que “[...] é preciso destacar o trabalho como relação social de tensão entre classes sociais, em que o mecanismo de resistência ou ‘rebeldia’ do trabalhador diante do trabalho é capaz de acumular elementos políticos fundamentais para a organização dos trabalhadores contra a situação de opressão vivenciada no espaço de trabalho”. Sobre o caráter ontológico do trabalho na constituição do ser social, ver Marx (2010) e Lukács (2012, 2013). Sobre o trabalho como princípio educativo e os fundamentos histórico-ontológicos da relação trabalho e educação, cf. Frigotto (1985), Ciavatta (2009) e Saviani (2007).
importantes implicações de uma economia sob bases escravistas foi que o sistema mercantil se expandiu condicionado a uma fonte externa de suprimento de trabalho, cujas razões estavam distantes de se relacionarem a uma duradoura carência interna (efetiva de início) de uma população livre que poderia virtualmente ser transformada em mão-de-obra. Esta situação originou uma formação sui generis de homens livres e expropriados que não foram integrados à produção mercantil e cuja constituição está relacionada à forma como se organizou a ocupação do solo, concedido em grandes extensões e objetivando culturas onerosas.
Numa sociedade permeada pela concentração dos meios de produção, onde os mercados cresceram de forma paulatina, porém progressiva, formou-se, paralelamente, um conjunto de homens livres e expropriados que não conheceram os rigores do trabalho forçado e que não haviam se proletarizado. Isto é, a agricultura mercantil fundada na escravidão abria espaço para a formação de um grupo de homens que cresceu e vagou durante quatro séculos desvinculados dos processos essenciais à sociedade. As atividades a eles relegadas emergiram nas margens do sistema econômico organizado para a produção e comercialização do café, na forma de serviços residuais que na maior parte não podiam ser realizadas por escravos e não interessavam aos homens com patrimônio30.
O caráter dispensável desse “homem livre” e pobre do século XIX levou-o, em última instância, a conceber sua própria situação como imutável e fechada, na medida em que as suas necessidades mais elementares dependeram dos favores de seus superiores. Desprovida de marcas exteriores, sua sujeição foi suportada “como benefício recebido com gratidão e como autoridade voluntariamente aceita” (FRANCO, 1997, p. 111-112).
No tocante aos trabalhadores escravizados e ex-escravizados, em conexão com a desorganização do trabalho e com a desintegração da ordem social escravocrata processou-se a eliminação parcial dos negros do sistema de trabalho, os quais passaram a viver dentro da cidade, porém sem poder progredir com ela e através dela, pois haviam sido relegados à margem ou se viram excluídos da propriedade em geral, bem como de seus proventos políticos, partilhando em comum apenas uma existência árdua, obscura e muitas vezes deletéria (FERNANDES,
Todavia, é importante assinalar o papel que essa parcela da população exerceu na produção de alimentos que viriam a abastecer os pequenos centros urbanos, o trabalho autônomo em pequenas manufaturas etc.
2008b). Para estes, a liberdade significava em grande parte a renúncia às antigas ocupações - e, quando possível, sua substituição por outras atividades menos degradadas pela escravidão - além do “direito de dispor do tempo ou da pessoa de acordo com a própria vontade” (Idem, 2008a, p. 69). Mas quando o negro, libertado, fazia valer sua liberdade, era acoimado de vagabundo, “porque, para o branco, querer de negro era querer de sujeição, embora para o negro fosse afirmação e consciência de liberdade” (MARTINS, 2010, p. 51).
Com relação à massa imigrada, incorporou rapidamente os padrões discriminatórios dominantes da sociedade brasileira, considerando-se diferente e melhor que a massa de escravizados e ex-escravos, buscando distinguir-se e valorizar-se muito mais do que esta última (IANNI, 2004, p. 17). O imigrante que viera a ser integrado na produção de café estava essencialmente em antagonismo com o cativeiro, que temia e repudiava, se não para o negro, ao menos para si. Igualmente repudiava qualquer identificação com o negro. Condenado a trabalhar, na interpretação do imigrante o seu trabalho é radicalmente diferente do trabalho do negro cativo. E por isso a condição de homem livre para ser concebida como condição compatível com o trabalho tinha que passar por redefinições ideológicas radicais (MARTINS, 2010, p. 52).
Por oposição ao escravo, o colono [imigrante] entrou na produção de café pela valorização moral do trabalho, não só porque o trabalho fosse uma virtude da liberdade, mas porque era condição da propriedade. Essa vinculação ideológica entre trabalho e propriedade, essa identificação básica entre a colônia e a casa-grande, terá repercussões na vida da fazenda e na elaboração das relações de produção com base no trabalho livre.
Para as elites latifundiárias, a construção do trabalho livre sobre as ruínas da escravidão tornou possível a junção do máximo de atraso possível nas relações de trabalho com o máximo de adianto possível no emprego capitalista do capital delas extraído. Dessa forma puderam alcançar a maior acumulação de capital que calculadamente seria possível e, ao mesmo tempo, realizar um salto histórico em direção à modernidade do capitalismo industrial. Nestes marcos, as relações de trabalho contiveram um potencial de atualização, em face do desenvolvimento capitalista, permitindo antecipações políticas das inovações sempre que as tensões trabalhistas viessem a ultrapassar os limites impostos por essa prudência empresarial (MARTINS, 2010, p. 56).
Estes são alguns elementos da formação social brasileira que remetem à constituição ideo-política e cultural de suas classes sociais as quais se somaram aos elementos do sistema político nacional que corroborou para a constituição de “revoluções dentro da ordem” (FERNANDES, 1976). Quando se analisa detalhadamente as vicissitudes que possibilitaram a consolidação, aqui, da instituição de um autogoverno de uma sociedade civil constituída ou hegemonizada pelos proprietários de terras e escravos (fortemente decididos a não tolerar interferências no seu poder político, de maneira muito mais enraizada que nos marcos europeus e sem que o desenvolvimento capitalista fosse obstaculizado), percebemos como a velha oligarquia agrária foi, aqui, uma das protagonistas da via não clássica de nossa transformação capitalista, modernizando-se e recompondo-se economicamente, refazendo alianças para se manter no bloco de poder e influenciando decisivamente as bases conservadoras da dominação burguesa.
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V.20, nº 41, 2022 (jan-abr) ISSN: 1808-799 X
Thereza Cristina Cardoso Menezes2
Resumo
O artigo propõe refletir sobre as ações para a promoção de queimadas na região amazônica ocorridas a partir de 2019 e seus efeitos sociais. Busca-se identificar como discursos públicos sinalizaram uma inflexão no imperativo da proteção socioambiental amazônico e legitimaram práticas de devastação ambiental. Examina-se ainda os distintos impactos desta nova dinâmica sobre terras destinadas e não destinadas, buscando apontar que tal processo impacta fortemente pequenos agricultores e comunidades tradicionais. Finalmente, analisa-se como tal configuração está ancorada em um conjunto de transformações recentes no marco legal da regularização fundiária que vem incentivando ocupações ilegais de terras na expectativa futura formalização do estoque de terras públicas da Amazônia.
Palavras-chaves: Amazônia, queimadas, mercado de terras, conflitos territoriais, assentamentos rurais.
PILARES DE FUEGO, CORTINAS DE HUMO Y NARRATIVAS INFLAMABLES: MULTIPLICACIÓN DE INCENDIOS FORESTALES Y LAS NUEVAS DINÁMICAS SOCIALES DE LA EXPANSIÓN DE LA FRONTERA AGRÍCOLA AMAZÓNICA
Resumen
El artículo propone reflexionar sobre las acciones de promoción de incendios en la región amazónica ocurridas a partir de 2019 y sus efectos sociales. Busca identificar cómo los discursos públicos señalaron una inflexión en el imperativo de protección socioambiental amazónica y prácticas legitimadas de devastación ambiental. También examina los diferentes impactos de esta nueva dinámica en las tierras destinadas y no destinadas, buscando señalar que este proceso tiene un fuerte impacto en los pequeños agricultores y las comunidades tradicionales. Finalmente, analiza cómo esta configuración está anclada en un conjunto de transformaciones recientes en el marco legal de regularización de tierras que ha venido fomentando ocupaciones ilegales de tierras en la expectativa de una futura formalización del stock de tierras públicas en la Amazonía.
Palabras clave: Amazonía, incendios, mercado de tierras, conflictos territoriales, asentamientos rurales.
1 Artigo recebido em 13/11/2021. Primeira Avaliação em 24/01/2022. Segunda Avaliação em 07/01/2022. Aprovado em 14/02/2022. Publicado em 28/03/2022.
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v20i41.52255.
2 Doutora em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social/Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGAS-UFRJ). Professora do Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Agricultura, Sociedade e Desenvolvimento da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA-UFRRJ). Email: therezaccm@uol.com.br. ORCID: https://orcid.org/ 0000-0003- 2452-0433. Lattes: http://lattes.cnpq.br/1961922404233305.
PILLARS OF FIRE, SMOKE CURTAINS AND FLAMMABLE NARRATIVES: MULTIPLICATION OF FOREST FIRE AND THE NEW SOCIAL DYNAMICS OF THE EXPANSION OF THE AMAZON AGRICULTURAL FRONTIER
Abstract
The article proposes to reflect on the actions to promote fires in the Amazon region that occurred from 2019 and their social effects. It seeks to identify how public discourses signaled an inflection in the imperative of Amazonian socio-environmental protection and legitimized practices of environmental devastation. It also examines the different impacts of this new dynamic on destined and non-destined lands, seeking to point out that this process has a strong impact on small farmers and traditional communities. Finally, it analyzes how this configuration is anchored in a set of recent transformations in the legal framework of land regularization that has been encouraging illegal land occupations in the expectation of future formalization of the stock of public lands in the Amazon.
Keywords: Amazon, fires, land market, territorial conflicts, rural settlements.
O período compreendido entre agosto de 2019 e julho de 2020 foi particularmente dramático para a preservação da floresta amazônica, registrando um aumento de 85,3% nos índices de desmatamento em comparação com aqueles medidos em 2018 e somando o maior desmatamento registrado na região nos últimos cinco anos. O sul do Pará e do Amazonas, o norte de Rondônia e a área central de Roraima foram drasticamente atingidos, constituindo áreas críticas de concentração de queimadas. Historicamente, o uso do fogo é um dos estágios finais do processo de desmatamento seguindo-se a etapa do corte raso da floresta. Na Amazônia, porém o ano de 2019 representou um divisor de águas no largo emprego desta prática, observando-se um salto de 30% nas queimadas neste bioma, em relação ao ano anterior3.
As cenas da floresta amazônica em chamas ganharam o mundo a partir de julho de 2019 e provocaram comoção e repercussão internacional. A explosão dos índices de desmatamento na região denota uma reorientação da política ambiental brasileira praticada nas últimas décadas e consideradas de relativo sucesso na adoção de iniciativas como o Plano de Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAM), aumento da fiscalização e do monitoramento, que se
3 Total de 68.345 focos registrados em 2018 e 89.178 em 2019, segundo dados obtidos no Portal do Monitoramento de Queimadas e Incêndios Florestais do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), fonte de todas as cifras mencionadas adiante. Disponível em http://www.inpe.br/queimadas.
expressaram em uma década de queda acentuada das taxas anuais do desmatamento da Amazônia Legal no período entre 2004 e 20144.
Este artigo propõe apresentar alguns elementos que permitam a compreensão da explosão de queimadas na região amazônica, ocorridas a partir de 2019 e refletir sobre seus efeitos sociais sobre comunidades rurais. Busca-se identificar como os discursos públicos do governo federal promoveu uma narrativa sobre um novo destino para a Amazônia e como esta repercutiu no âmbito local, encorajando uma corrida pela exploração de recursos naturais e o avanço sobre terras públicas. Examina-se ainda os distintos impactos desta dinâmica sobre terras destinadas e não destinadas, buscando-se relacionar tal processo com conjunto de transformações na esfera do desenvolvimento capitalista e nos marcos legais do país na última década.
Os dados apresentados foram obtidos mediante o cruzamento de dados disponíveis publicamente sobre desmatamentos, queimadas e Cadastro Ambiental Rural (CAR) produzidos pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE)5, bem como material publicado pela imprensa e informações coletadas especialmente com agentes sociais residentes ou que acompanham as dinâmicas sociais dos municípios do sul do Amazonas, área que tenho pesquisado desde 2007.
Segundo dados do INPE, onze municípios situados na faixa do Sul do Amazonas, Norte do Mato Grosso e Sudoeste do Pará, concentraram 40,5% do desmatamento alarmante registrado na Amazônia entre agosto de 2019 e julho de 2020. Liderando a lista da devastação amazônica estão os municípios de Altamira (PA), São Félix do Xingu (PA), Porto Velho (RO), Lábrea (AM), Novo Progresso (PA), Itaituba (PA), Apuí (AM), Pacajá (PA), Colniza (MT), Portel (PA), Novo Repartimento (PA) que ao todo somaram 3.963,75 km² de desmatamento.
Dentre os municípios listados acima constam alguns que reúnem os maiores rebanhos bovinos do país e que vem registrando um aumento muito significativo de
4 A queda do desmatamento entre 2004 e 2014 explica-se por muitas outras variáveis que interferiram ao longo do período relacionadas a dinâmica do mercado (redução no preço das commodities entre 2005 e 2008, mudanças no câmbio com valorização do real frente ao dólar, por exemplo), proibição do Banco Central para a concessão de crédito rural a proprietários com multas por corte ilegal, decreto proibição a compra de gado de áreas ilegalmente desmatadas, aumento do número de multas pelos órgãos ambientais.
5 Os dados utilizados foram obtidos nos portais do INPE: Monitoramento da Floresta Amazônica Brasileira por Satélite (PRODES), Programa Queimadas, Portal TerraBrasillis (Desmatamento/Queimadas e Cadastro Ambiental Rural).
pastagens desde o Censo Agropecuário de 20066. Tal fato aponta para o progressivo avanço da fronteira agropecuária em direção à região amazônica, reproduzindo uma tendência em vigor desde a década de noventa, especialmente no Mato Grosso (expansão dos cultivos de soja, milho, algodão e pecuária bovina) e no Pará (criação bovina), que impactaram os índices de desmatamento na região entre 1990 e meados da década de 2000.
Frequentemente, os municípios com maior número de focos de queimada aparecem também nas listas dos mais desmatados, visto que são etapas de um mesmo processo da dinâmica de avanço da fronteira agropecuária na região amazônica, que se inicia com o desmatamento, exploração madeireira, seguido do uso de fogo para a limpeza, seja para o plantio de pasto e lavouras, seja como estratégia para agregar valor à terra no mercado.
Destaco que as queimadas ocorridas em 2019 anunciaram uma tendência que vem se consolidando. Os dados divulgados em meados de 2021 pelo sistema Deter7 (INPE), apontam para o terceiro ano consecutivo com taxas de desmatamento acumulado da Amazônia, somando cerca de 10 mil km2, uma marca histórica de devastação8.
Alguns dias após a explosão de focos de queimadas na região amazônica em agosto do 2019, o presidente Jair Bolsonaro insinuou no seu twitter em 21 de agosto, que seria das ONGs a culpa pelos focos de incêndio afirmando: “pode estar havendo, não estou afirmando, ação criminosa desses ongueiros” ou mencionando uma conspiração estrangeira interessada nas riquezas da floresta brasileira. A narrativa de representantes do governo federal pautou-se em questionar a credibilidade dos dados oficiais sobre desmatamento divulgados pelo INPE, acusando a entidade de divulgar dados alarmantes e dificultar negociações comerciais brasileira com outros países,
6 Exemplares desta correlação entre desmatamento e aumento de pastagens são os municípios de Altamira, com elevação de 46% de pastagens e Novo Progresso com 64%.
7 O INPE possui dois programas para monitoramento da floresta: o Programa de Cálculo do Desflorestamento da Amazônia (Prodes), e o sistema de Detecção de Desmatamento em Tempo Real (Deter).
8 O período 2020/2021 totalizou 8.712 km2 desmatados. Em 2021, o Pará foi estado como maior desmatamento no período (1.886,59 km²), seguido do Amazonas (1.237 km²), Mato Grosso (841 km²) e Rondônia (689 km²).
levantando-se inclusive a suspeita de que o diretor do INPE estaria "a serviço de alguma ONG”9.
Uma outra justificativa propagada pelo governo para explicar a multiplicação de focos de incêndio na Amazônia foi uma suposta mudança no ritmo de chuvas. O presidente Bolsonaro ressaltou que “a floresta é úmida, mas que isso não impediria em um ano de muita seca, que o fogo se espalhe pelo chão da floresta”10. No entanto, do ponto de vista meteorológico, o ano de 2019 foi considerado "normal" em relação aos anos anteriores no norte do Brasil. Ressalta-se que o ambiente florestal amazônico é extremamente úmido e incêndios não ocorrem naturalmente, ou seja, precisam ser iniciados pela ação humana11.
Em seu discurso de abertura na 76ª sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU) em 2021, o presidente brasileiro afirmou que o Brasil era "vítima" de uma campanha "brutal" de desinformação sobre a Amazônia e o Pantanal e que organizações brasileiras e "impatrióticas" se aliaram com instituições internacionais para prejudicar o país. Para Bolsonaro, tal complô estaria em curso porque o Brasil despontou como o maior produtor mundial de alimentos, existindo muitos interesses em divulgar desinformações sobre o meio ambiente nacional.
Bolsonaro salientou ainda no evento que a floresta amazônica é úmida e “só pega fogo nas bordas” e que os focos de incêndio registrados na região “acontecem praticamente nos mesmos lugares, ou seja, no entorno leste da floresta, onde “o caboclo e o índio” queimam seus roçados para sobreviver avançando sobre áreas previamente desmatadas”.
Narrativas semelhantes foram insistentemente proferidas durante toda a campanha eleitoral de Bolsonaro à presidência em 2018, sinalizando sempre que possível que, caso fosse eleito, haveria uma drástica mudança na política vigente para
9 Apesar das recorrentes bravatas, Bolsonaro cedeu temporariamente às pressões nacionais e internacionais e ameaças de possíveis sanções econômicas resultantes da “crise internacional” na Amazônia e assinou um decreto de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), autorizando as Forças Armadas a combater o fogo na Amazônia por um mês.
10 O então ministro do Meio Ambiente em uma interpretação equivocada e tentando atribuir a causas naturais a multiplicação de focos de incêndio na Amazônia, comparou incêndios da região àqueles ocorridos na Sibéria e na Austrália, publicando no seu twitter no início de 2020: “Sibéria queimou 3 vezes mais que a Amazônia. Na Austrália, quase 6 vezes mais. Mas certas ONGs e alguns jornalistas só se importam em falar mal de seu próprio país e, claro, sempre contra o Governo”.
11 Há incêndios motivados por descargas elétricas de raios, ou seja, por causas naturais. Estes costumam ocorrer na transição da estação seca para a estação chuvosa. Na faixa oeste da Amazônia, este período ocorre entre setembro e outubro, e na faixa leste, entre outubro e novembro.
a Amazônia e subversão da pauta ambiental dominante para a região. Sempre que possível, Bolsonaro salientava que a política ambiental e indigenista em curso na Amazônia constituía um entrave ao desenvolvimento do país.
Dentre as promessas de campanha direcionadas aos setores do agronegócio, Bolsonaro salientou que se eleito fosse “não demarcaria nem um centímetro de terra indígena”12 e que considerava “multas e fiscalizações feitas pelos órgãos ambientais federais” uma forma de “sufocar o agronegócio” ou que pretendia “retirar o Brasil do Acordo de Paris sobre as alterações climáticas”13.
Uma vez vitorioso, Bolsonaro manteve a promessa de campanha de redução de fiscalizações sobre crimes ambientais ao cortar drasticamente os recursos para órgãos ambientais, reinando a partir de então um ambiente de impunidade entre fazendeiros, garimpeiros, madeireiros e traficantes de animais exóticos que atuam na região amazônica. O ambiente de transgressão da ordem motivou ainda práticas cada vez mais recorrentes de ameaça e hostilidade contra funcionários de órgãos ambientais e a depredação do patrimônio de instituições de fiscalização em diversas cidades brasileiras. Tal configuração favoreceu desde o primeiro ano de governo de Bolsonaro, a multiplicação de queimadas, ainda que se observasse ao mesmo tempo uma queda vertiginosa em números de autuações ambientais.
Logo no primeiro mês de seu governo, Bolsonaro extinguiu os colegiados que formavam a base do Fundo Amazônia sem qualquer negociação com os doadores, medida que comprometeu gravemente o seu funcionamento. O desmonte do Fundo teria sido motivado, segundo o então Ministro do Meio Ambiente, pelo questionamento de sua eficácia e a necessidade de mudanças nas regras para coibir supostos “indicativos de irregularidades” de contratos firmados pelo fundo com ONGs. Dentre as mudanças propostas nas regras do fundo, o governo brasileiro sugeriu, por exemplo, a indenização de proprietários que tiveram terras desapropriadas com a criação de unidades de conservação.
12 Afirmação feita na primeira semana de novembro de 2018, no Programa de TV Brasil Urgente apresentado por José Datena.
13 O Presidente Bolsonaro disse “Eu saio do Acordo de Paris se isso continuar sendo objeto. Se nossa parte for para entregar 136 milhões de hectares da Amazônia, estou fora sim". Tal afirmação foi feita a jornalistas em 3 de setembro de 2018, antes de um almoço com empresários do setor de seguros no Rio de Janeiro. https://noticias.uol.com.br/politica/eleicoes/2018/noticias/reuters/2018/09/03/bolsonaro-diz-que-pode- retirar-brasil-do-acordo-de-paris-se-for-eleito.htm
O Fundo Amazônia foi criado em 2008, tendo como principais doadores a Noruega e a Alemanha. O Fundo tornou-se ao longo de seu período de atuação uma referência em termos de operacionalização, governança e resultados obtidos, tendo se tornado um dos mais importantes mecanismos financeiros da política climática brasileira. Destaco que o Fundo Amazônia contribuiu para a efetivação do Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento no bioma (PPCDAm), através do qual o Brasil instituiu uma política com resultados muito expressivos, alcançando em 2012 a redução de 83% no controle do desmatamento. A estagnação do Fundo Amazônia em 2019 teve a intenção de sinalizar internacionalmente a reorientação da política ambiental da Amazônia, sinalizando a paralisação de parte muito significativa das iniciativas de cooperação internacional para o enfrentamento dos desmatamentos adiante.
Em novembro de 2011, durante discurso oficial na Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas, em Glasgow, o Ministro do Meio Ambiente do Brasil, Joaquim Leite, afirmou que “onde existe muita floresta também existe muita pobreza” e que "o futuro verde já começou no Brasil”. De fato, no final de 2020, o Ministério da Economia e Banco Central do Brasil publicaram a resolução 4.883, que concede crédito rural para propriedades na Amazônia sobre as quais recaem embargos. A resolução permitiu que fazendeiros com histórico de infrações perante o IBAMA obtivessem empréstimos do BNDES com juros subsidiados para compra de maquinas agrícolas14. Os discursos antiambientalistas em arenas internacionais miram no futuro ano eleitoral e na reafirmação de um compromisso com as elites ruralistas e especuladoras de terras. A reeleição presidencial é uma garantia de manter e aprofundar o modelo desenvolvimentista predatório do meio ambiente para a Amazônia, focado no vetor da privação de terras públicas e desenvolvimento agropecuário. As eleições municipais de 2020 nos municípios da Amazônia repercutiram profundamente os discursos presidenciais e expressaram o empoderamento e apoio ruralista ao governo nos municípios situados na faixa do arco do desmatamento amazônico. Caso exemplar é o do prefeito eleito em Apuí, município do sul do Amazonas campeão em queimadas em 2019. O prefeito eleito Marcos Lise (PSC) é pecuarista, proprietário de 630
14 BNDES e John Deere financiaram R$ 28,6 milhões em maquinário para cinco produtores com embargos em seu nome emitidos pelo Ibama por desmatamento. Ver: https://noticias.uol.com.br/meio- ambiente/ultimas-noticias/reporter-brasil/2022/02/14/bndes-empresta-desmatadores-amazonia- tratores.htm?cmpid=copiaecola
cabeças de gado e de um sítio avaliado em R$ 1,6 milhão, segundo autodeclaração feita ao TSE (Tribunal Superior Eleitoral).
Marcos Lise foi eleito com 59% dos votos válidos e anunciou em seu Instagram “um novo tempo, uma nova história sendo escrita em Apuí”, apontando mudanças no perfil do município que sediou alguns anos antes ações para a constituição de um importante mosaico de Unidades de Conservação no Sul do Amazonas15. Marcos Lise foi o vice-prefeito na legislatura encerrada em 2019 e possui um histórico de diversas multas por desmatamento.
Segundo dados do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM, 2020), 71% das queimadas em imóveis rurais ocorridas entre janeiro e junho de 2020 destinavam-se ao manejo agropecuário, sendo que metade dos focos de calor detectados no primeiro semestre deste ano ocorreram em imóveis rurais de médio e grande porte16. Outros 24% foram incêndios florestais e 5% decorrentes de desmatamento recente, ou seja, queima de árvores que foram derrubadas após desmatamento.
A sobreposição de dados disponíveis sobre florestas (Prodes) e do Projeto de Mapeamento Anual do Uso e Cobertura da Terra no Brasil (MapBiomas), permite identificar áreas de desmates e perceber que parte significativa de queimadas e desmatamentos decorrem de ampliações de pastos preexistentes ou abertura de novas pastagens, que avançam em áreas que são oficialmente terras públicas, especialmente florestas públicas ainda não destinadas e terras devolutas.
Tal dinâmica torna-se compreensível se resgatamos o episódio que em 2019 ficou conhecido na imprensa mundial como “dia do fogo”, nome atribuído à ação orquestrada de promoção de incêndios criminosos ocorrida nos dias 10 e 11 de agosto de 2019, especialmente no Pará. A organização de uma ação orquestrada de incêndios simultâneos foi anunciada em publicação noticiada no dia 5 de agosto pelo
15 O mosaico de Apuí (AM) possui aproximadamente 2.467.243,619 de hectares, reunindo nove unidades de conservação com diferentes propostas de manejo, tais como parques, reservas de desenvolvimento sustentável e reservas extrativistas.
16 Por lei, as propriedades privadas devem ter uma área destinada a preservação denominada reserva legal. De acordo com o Código Florestal em vigor a partir de 2012, a área de reserva legal na Amazônia é corresponde a preservação de 80% das terras.
jornalista Adécio Piran, do site Folha do Progresso, publicado na cidade paraense de Novo Progresso. Piran relatou a multiplicação de mensagens trocadas entre líderes de produtores rurais da cidade mencionada a respeito da organização coletiva para realizar incêndios florestais no dia 10/8. Cinco dias após a reportagem, o município de Novo Progresso registrou o surgimento de 124 focos de incêndio ativos, um aumento em 300% em relação ao dia anterior17.
“(Os produtores) querem o dia 10 de agosto para chamar atenção das autoridades. (...) Na região, o avanço da produção acontece sem apoio do governo. 'Precisamos mostrar para o presidente que queremos trabalhar e o único jeito é derrubando. Para formar e limpar nossas pastagens é com fogo'".18 (Folha do Progresso, 05/08/2019).
A publicação da primeira notícia anunciando um possível "dia do fogo" alertou o Ministério Público Federal, e a Procuradoria em Itaituba (PA) enviou um alerta no dia oito de agosto solicitando urgência ao Ibama no reforço da fiscalização de unidades de conservação. Roberto Lacava e Silva, Gerente Executivo Substituto do Ibama, respondeu ao MPF dois após o início das ações do “dia do fogo”, afirmando que solicitou o reforço da Força Nacional que não respondeu ao chamado. Devido aos diversos ataques simultâneos e à ausência do apoio da Polícia Militar do Pará, as ações de fiscalização no estado foram prejudicadas, sobretudo pelos riscos relacionados à segurança das equipes de campo".19 Cabe ressaltar que Novo Progresso não tem um Corpo de Bombeiros e a brigada mais próxima fica em Itaituba, a cerca de seis horas de viagem.
Após o anúncio do "dia do fogo" no jornal de Novo Progresso, a delegacia da cidade chamou para depor os envolvidos e averiguou a existência da denúncia de ação orquestrada, considerando o enquadramento na lei 9.985 que prevê multa e prisão de dois a cinco anos para quem promover incêndio na mata ou floresta. Dentre os depoentes intimados a depor estavam o jornalista que redigiu a matéria20 e
17 Tal movimento aconteceu em muitos outros municípios do Pará como Altamira que registrou 154 focos de queimadas entre os dias 6 e 8 de agosto e três dias que se seguiram (9 a 11 de agosto) uma elevação de 179% em três dias. São Félix do Xingu também teve aumento importante entre 6 e 8 de agosto, o município registrou 67 focos e nos três dias seguintes, aumento de 329%
18 Trecho reproduzido de https://www.bbc.com/portuguese/brasil-49453037
19 Informações disponíveis em várias fontes da imprensa, com destaque para a BBC Brasil que acompanhou detalhadamente o dia do fogo.
20 Após a publicação, o jornalista Piran se ausentou da cidade por dois meses devido a ameaças de morte. Em 2020 Piran tornou-se é o Secretário de Meio Ambiente da prefeitura de Novo Progresso.
Agamenon Meneses, presidente do Sindicato dos Produtores Rurais de Novo Progresso, acusado de liderar os incêndios. Posteriormente, em entrevista telefônica à BBC News, Agamenon negou completamente a existência do "dia do fogo" e descartou qualquer responsabilidade dos agricultores da região sobre tal fato:
"É uma mentira. Um infeliz de um jornaleco, que não gosta da cidade e faz oposição ao governo (Bolsonaro), colocou essa notícia no ar, sem provas. O que houve aqui foram queimadas como ocorrem todos os anos. A seca foi maior esse ano e ocorreram esses incêndios, natural.”
O fato é que nos dias 9 e 10 de agosto, uma rede de grupos de Whatsapp, organizou a jornada de incêndios que se multiplicaram em uma vasta região amazônica do Sudoeste do Pará. Tal ação envolveu centenas de pessoas em vários municípios e, possivelmente, como foi amplamente noticiado pela imprensa paraense, contou com arrecadação coletiva para compra de combustível e contratação de motoqueiros para espalharem as chamas21.
O INPE registrou uma elevação de 1.923% de focos de calor no estado do Pará no mês de agosto de 2019, em comparação com o mesmo período no ano anterior ao do “dia do fogo”. O Greenpeace Brasil analisou os Cadastros Ambientais Rurais (CAR) dos municípios onde se concentram os focos de calor, ou seja, Novo Progresso, São Félix do Xingu, Itaituba, Altamira, Jacareacanga e Trairão e concluiu que aproximadamente metade (49,96%) dos focos de calor registrados durante ocorridos no Dia do Fogo, aconteceram dentro de propriedades rurais cadastradas no sistema fundiário do Pará22. Quase totalidade destas áreas (99,37%), já apresentavam pastagens previamente mapeadas e classificadas pelo MapBiomas em 2018.
Apesar de dados, provas e testemunhos, de acordo com o inquérito concluído pela delegacia de Polícia Civil de Novo Progresso, a explosão de incêndios simultâneos ocorridos nos dois dias do mês de agosto foi resultado do tempo seco. A polícia concluiu que as queimadas são comuns, acontecem todos os anos e o inquérito não aponta suspeitos ou responsáveis.
21 Reportagens do jornalista Ivaci Matias na Revista Globo Rural mostraram que as investigações da Polícia Federal descobriram 3 grupos de WhatsApp nos quais empresários, grileiros e produtores rurais planejaram as queimadas ao longo da BR-163 no Pará.
22Dados obtidos pelo Greenpeace Brasil no sistema público da Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Pará (Semas/PA) apresentados em https://www.greenpeace.org/brasil/florestas/dia-do-fogo-completa-um-ano-com-legado-de- impunidade/
As investigações do “dia do fogo” foram conduzidas de formas bastante diversas nos municípios afetados pelos incêndios. Enquanto os investigadores da delegacia de Novo Progresso tomaram depoimentos de fazendeiros e empresários locais, o delegado de um distrito de Altamira chamado de Castelo dos Sonhos, por exemplo, prendeu três trabalhadores rurais residentes em assentamentos rurais durante as investigações, sob alegação de que eles eram suspeitos de serem os responsáveis pelas queimadas florestais.
Em decorrência destas acusações, três trabalhadores rurais ficaram presos por cinquenta dias e só foram libertados por determinação judicial e após uma intensa pressão da imprensa. Na ocasião, uma assentada foi presa e considerada suspeita quando foi realizar uma denúncia sobre a presença de madeireiros no assentamento em que vivia.
Ainda que municípios do Sudoeste do Pará tenham se destacado na deflagração de queimadas durante o “dia do fogo”, fenômenos com características muito semelhantes ocorreram em outros municípios da Amazônia, apontando uma ampla articulação organizada através de redes sociais para queimar a floresta em diversos estados. Exemplar da articulação foi o município de Apuí, no Sul do Amazonas, que no primeiro semestre de 2019 chegou a liderar o ranking dos municípios da Amazônia com maiores concentrações de focos de calor. Segundo dados do INPE, em agosto de 2019, Apuí alcançou cerca de 2.500 focos de calor.
Em Apuí, município de grande expansão agropecuária situado às margens da Rodovia Transamazônica (BR-230) e presença constante nos rankings dos munícipios mais desmatados do Amazonas, as queimadas de 2019 foram também previamente planejadas conforme o modelo de organização do “dia do fogo”. No entanto, Apuí teve seu dia do fogo antes das queimadas do Sudoeste do Pará. Elas aconteceram no dia
24 de julho, ou seja, duas semanas antes dos grandes incêndios de em Novo Progresso. O dia do fogo de Apuí foi noticiado na imprensa e precedido pela vinda de um caminhão-tanque de combustível e a chegada no município de dois ônibus lotados com homens munidos com motosserras. As motosserras derrubaram as árvores nativas e alguns dias depois espalhou-se combustível na área desmatada, iniciando- se em seguida os numerosos incêndios (GALUCH & MENEZES, 2020).
No primeiro semestre de 2020, o município de Apuí voltou a arder, registrando 837 focos de calor, o maior a maior incidência da última década para o período entre
janeiro-junho. Os focos de calor de Apuí atingiram áreas de florestas (51%), seguidas de áreas destinadas à pecuária (31%), segundo dados do IDESAM (2020).
Tem sido apontada com frequência a correlação entre os pronunciamentos de Bolsonaro e a explosão dos incêndios criminosos de 2019. Certamente os discursos presidenciais criticando a ação de ambientalistas ao longo de 2019, combinado a promessa de paralização da demarcação de novas áreas de proteção e terras indígenas e criação de unidades de conservação na Amazônia repercutiram fortemente nos municípios amazônicos.
Os municípios localizados nos limites da fronteira agropecuária amazônica acumulam um enorme passivo de tensões sociais entre as elites fundiárias, instituições e promotores de ações socioambientais. As entidades representativas de comunidades indigenistas, extrativista e de agricultores experimentaram nas últimas décadas um período prolongado de processos de territorialização e grande fortalecimento e empoderamento local como resultado de processos de reconhecimento pelo Estado e investimentos em capacitação promovidos por organizações socioambientais.
Este conjunto de iniciativas alterou radicalmente o histórico equilíbrio de forças entre patronatos locais e populações amazônicas, subvertendo o domínio privado sobre o território. Esta reconfiguração de poder foi constituindo ao longo dos últimos anos um campo fértil para as narrativas autoritárias, ataques às instituições do Estado e legitimidade aos atos de desobediência legal (MENEZES, 2020).
A mobilização e engajamento digital teve também papel relevante. Caetano (2021) investigou, por exemplo, a possível relação entre as palavras de Bolsonaro em suas críticas contundentes à Alemanha e Noruega e seus investimentos no Fundo Amazônia. Os incêndios que culminaram no “dia do fogo” foram precedidos por um aumento significativo de buscas na web por termos relacionados aos ataques do presidente aos financiadores estrangeiros da Floresta Amazônica. O levantamento mapeou palavras-chaves como ‘Alemanha’, ‘Noruega’, ‘Altamira + Fogo + BR-163’, ‘fogo + Amazônia’ através do Google Trends, uma ferramenta que analisa a frequência as palavras que aparecem nas buscas dos usuários da internet. As buscas por esses termos elevaram-se exponencialmente nos dias que precederam as queimadas. Entre os dias 2 e 9 de agosto de 2019, Bolsonaro deflagrou sucessivos ataques contra a
chanceler alemã Angela Merkel e nos dias 10 e 11 de agosto eclodiu o dia do fogo no Sudoeste do Pará.
Destaco ainda o papel que a crise e instabilidades do governo produziram. O ambiente agonístico entre governo e o poder judiciário, o tensionamento permanente da ordem democrática, os constantes rumores de um possível impeachment também produziram efeitos para acelerar práticas de desmatamento. As avaliações locais sobre sucesso ou derrocada do governo Bolsonaro, os boatos sobre a retomada da fiscalização e a criminalização de infrações ambientais, geram um ambiente de incertezas e influenciaram sobre acelerar a marcha do desmatamento.
As queimadas aconteceram em um período dramático da pandemia de Covid- 19, que teve efeitos particularmente devastadores sobre as populações amazônicas, que historicamente tem parco acesso aos serviços de saúde. O processo de mobilização na Amazônia é encarecido por custos e enormes dificuldades de deslocamento, situação que foi agravada pelo medo e as dificuldades de deslocamento impostas pela pandemia. Destaco, sobretudo, a redução substancial de recursos para a circulação de lideranças e a redução de parceiros que apoiam com recursos de projetos socioambientais as associações e mobilizações de comunidades tradicionais.
Decerto houve uma explosão de mobilizações online contra as queimadas que alcançaram repercussão dentro e fora do Brasil e chegaram a interferir pontualmente na marcha do desmatamento23. A decisão de envolver as Forças Armadas para atuar no combate das queimadas, em 2020, ocorreu na sequência de numerosos protestos contra as queimadas na Amazônia. Organizações não governamentais, ambientalistas, estudantes e celebridades brasileiras e internacionais se posicionaram de forma veemente contra a postura de Jair Bolsonaro e multiplicaram mensagens nas redes sociais como a hashtag #PrayforAmazonas (Ore pela Amazônia), que ficou em primeiro lugar nos assuntos mais comentados durante as semanas posteriores ao dia do fogo na rede social Twitter.
23 Houve mobilizações em mais de 60 cidades do Brasil e do mundo após o dia do fogo, particularmente no período 23 e 25 de agosto de 2020, contra as queimadas na região da Amazônia. Houve manifestações agendadas em cerca de 17 cidades de 12 países, tais como Alemanha, Espanha, Estados Unidos, Itália, México e Uruguai. No topo dos trending topics do Twitter, internautas criticaram duramente a atuação de Bolsonaro usando #ActForTheAmazon.
Entidades como a Comissão Pastoral da Terra (2020) e o Observatório do Clima24, entre outras, publicaram notas contundentes de protesto e denúncia que circularam e obtiveram ampla adesão de dezenas de signatários-representantes de entidades e movimentos sociais. Destaco particularmente a iniciativa “Articulação Agro É Fogo”, que se constituiu como uma reação as queimadas ocorridas no dia do Fogo e dos incêndios que devastaram o Pantanal. A articulação reúne aproximadamente 30 movimentos, organizações e pastorais sociais com longo histórico de atuação na defesa da Amazônia, Cerrado e Pantanal, bem como seus povos e comunidades tradicionais.
Gostaria de lembrar que a multiplicação de incêndios em 2019 e 2020 envolveram também diversas áreas de assentamentos rurais na região amazônica. Em Novo Progresso e Altamira, municípios que tiveram destaque no ranking de municípios paraenses com grande quantidade de focos de calor registrado por satélite, o Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS) Terra Nossa (Incra), situado entre os dois municípios acima mencionados foi duramente atingido pelos incêndios criminosos.
Este PDS atualmente abriga 300 famílias e teve seu território atingido por 197 focos de incêndio, uma elevação de 319% em relação a agosto de 2018, quando ocorreram 47 focos. Esta foi a terceira área mais incendiada na região em agosto de 2019, em comparação com outros assentamentos, terras indígenas e unidades de conservação do Pará. Em geral, os incêndios se iniciaram no interior das fazendas situadas dentro ou no entorno do PDA, sobretudo em áreas que ainda apresentavam cobertura vegetal contíguas aos pastos. Porém, as queimadas avançaram e atingiram também as parcelas, pastos e casas de agricultores residentes no PDS. A queima da floresta neste PDA atingiu ainda muitas áreas de babaçuais e castanhais, recursos
24 É uma coalizão de organizações da sociedade civil brasileira direcionada para debates sobre mudanças climáticas, que surgiu em 2001 no Pará e reúne um conjunto expressivo de entidades com importante atuação nas questões ambientais do país.
25 As terras públicas são divididas em terras destinadas como unidades de conservação, áreas militares, terras indígenas, quilombos ou não destinadas como as florestas públicas e demais áreas sob a responsabilidade da União ou dos estados que ainda não foram designadas algum um uso particular.
florestais fundamentais para as atividades extrativas das comunidades e importante fonte de renda para a população da região.
Este PDS está na área de influência da Rodovia Cuiabá (MT)-Santarém (BR- 163), um dos corredores centrais de escoamento de soja do país e região de forte incidência de queimadas no Pará. Em uma vistoria realizada pelo INCRA em 2018, identificou-se 76 fazendas ilegais no interior deste PDS, que já deveriam ter sido retomadas pelo patrimônio da União e redistribuídas para agricultores e que atendem aos critérios para serem beneficiados pela política de reforma agrária.
Outros três projetos de assentamentos localizados no município de Anapu, nomeados Projeto de Assentamento (PA) Pilão Poente II e III, Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS) Esperança e Virola-Jatobá, no Pará, foram também bastante atingidos por queimadas, registrando respectivamente 155, 102 e 75 focos de calor. Nos três casos, os dados de queimadas detectadas apenas em outubro de 2020 representam cerca de 65% de todos os focos registrados em 2020 nesses assentamentos, conforme dados de satélite da Nasa.
Os conflitos nos assentamentos rurais de Anapu são conhecidos e persistentes no tempo. Foram amplamente noticiados após o assassinato da missionária Dorothy Stang, em 2005, tornando este município um emblema de disputas pela terra na Amazônia. A região é caracterizada por numerosos conflitos violentos motivados por uma ampla rede de grilagem que opera historicamente na região, além de crimes ambientais e dados alarmantes de violência contra lideranças comunitárias. Desde o assassinato de irmã Dorothy houve 21 assassinatos relacionados a conflitos de terra no município, segundo informações da Comissão Pastoral da Terra.
Os atuais incêndios criminosos e a ausência de investigação e punição destes atos estão operando como recurso de intimidação contra os territórios de assentamentos rurais e aqueles que lutam pela reforma agrária nas regiões amazônicas marcadas por conflitos por terra. O caso do PA Pilão Poente é revelador, tendo em vista que as terras deste assentamento chegaram a ser registradas por grileiros no Cadastro Ambiental Rural (CAR), em março de 2020 e em outubro, numerosos incêndios foram usados para queimar residências no assentamento, promovendo-se em seguida práticas violentas de impedimento da circulação de pessoas pelas vicinais do assentamento.
O desmatamento e as queimadas recentes atingiram também os Projetos de Desenvolvimento Sustentável (PDS) Esperança e Virola-Jatobá, ambos criados em 2002 e sucessivamente atingidos por invasões, a partir de 2017 e 2018, por pessoas armadas, grileiros e madeireiros que desmatam e demarcam irregularmente a área da reserva legal com objetivos de loteamento e venda.
As queimadas e o desmatamento avançaram também sobre as reservas extrativistas (RESEX) da Amazônia. Destaco o caso da Resex Guariba-Roosevelt situada unidade de conservação no noroeste de Mato Grosso, que abriga cerca de 80 famílias extrativistas de látex e castanha. A Resex vem sendo desmatada há anos e já perdeu 11% da sua área com desmatamentos entre sua criação em 1996 e 2019, principalmente por invasores em busca de madeira e, mais recentemente, para criação de pastos. Em 2020, esta Resex tornou-se a terceira sob gestão estadual com mais focos de calor, em todo o território nacional.
A maior parte desta Resex está no município de Colniza, onde foram contabilizados em 2020, 1.917 focos de calor (3.85% do total de toda Amazônia). Em Aripuanã, município vizinho que também sedia parte desta reserva, somaram-se 1.895 focos (3.81% do total), situando os dois municípios entre os dez com mais alertas de queimadas em toda a Amazônia.
As Terras Indígenas foram também seriamente atingidas pela devastação das queimadas. Em 2019, mais de 300 grileiros invadiram o território indígena Trincheira- Bacajá, situado no Pará e ocupado pelos povos Mebêngôkre Kayapó e Xikrin. O avanço do desmatamento, grilagem e mineração ilegal, somados à multiplicação de queimadas, colocou a TI Trincheira Bacajá no topo do ranking das mais desmatadas na Amazônia em 2019, com aumento exponencial de queimadas após a paralização de ações de fiscalização de órgãos ambientais.
O ano de 2020 manteve este padrão, registrando-se mais de 115 mil focos de incêndio em Terras Indígenas da Amazônia entre janeiro e outubro de 202026. Os dados de satélites apontam que neste período as terras indígenas mais afetadas foram Xingu (MT), Parque do Araguaia (TO) e Kayapó (PA).
Liderando o ranking das queimadas em 2020, com 10.502 registros de focos de incêndio está a TI Parque do Xingu, que reúne 16 etnias em 500 aldeias, registrando um aumento de 251% dos focos de calor em 2020 em relação ao ano
26 O levantamento foi realizado pela Global Forest Watch.
anterior. Ainda que o território conte com cerca de 60 brigadistas treinados, os indígenas do Parque do Xingu assistiram a uma explosão sem precedentes de focos de incêndio provocados por inúmeras fazendas que aumentaram suas áreas sobre os limites do território indígena.
Situação semelhante foi vivenciada pela TI Parque do Araguaia, no Tocantins, que aparece em segundo lugar no levantamento de focos de incêndio acima mencionado, com 8.792 focos provocados para limpar e produzir pastos. A crescente proximidade do fogo das aldeias provocou o abandono de casas e avanço do fogo para territórios vizinhos, no caso, um grupo de indígenas em isolamento voluntário que habitavam a Ilha do Bananal.
Embora, o fogo provocado pelo manejo agropecuário seja o mais frequente na Amazônia, conforme salientado, os focos de calor registrados em áreas recém- desmatadas cresceram, assim como os incêndios florestais. Em 2019, um em cada três focos de queimadas não tiveram relação com a limpeza de pastagens, mas sim com queimadas que sucederam o corte de áreas de floresta. No primeiro trimestre de 2021, estas áreas tornaram-se alvos de 33% do desmatamento.
Analiso a seguir o processo de devastação em terras não destinadas, ou seja, florestas públicas ou áreas da União que não foram delimitadas como unidade de conservação, área quilombola ou terras indígenas e não estão no Cadastro Ambiental Rural (CAR),27 ou seja, áreas cuja situação fundiária se desconhece, porque faltam registros. Estas categorias concentram 28% do bioma amazônico.
Dados do INPE referentes ao período entre agosto de 2019 e setembro de 2020 apontaram que as terras públicas sem destinação foram atingidas por 75.884 focos de queimada, correspondente a 31,7% de todas as queimadas no bioma amazônico, dados que comprovam que esta modalidade de terras vem se destacando e tornando- se um alvo crescente de grilagem. O Amazonas é o estado que mais concentra esse tipo de categoria fundiária e, historicamente, se notabilizava pelos mais baixos índices de desmatamentos na região amazônica. No entanto, recentemente o estado despontou no ranking, assumindo o protagonismo entre estados com maior elevação dos desmatamentos e queimadas avançando por áreas não destinadas.
27 O INPE disponibilizou uma plataforma denominada TerraBrasillis, que permite o cruzamento de dados de desmatamento, focos de queimada e os imóveis rurais do Cadastro Ambiental Rural (CAR), mantido pelo Serviço Florestal Brasileiro.
Recentemente tem se multiplicado a declaração destas áreas públicas como particulares no Sistema Nacional de Cadastro Ambiental Rural (Sicar). O Código Florestal de 2012 criou o Cadastro Ambiental Rural (CAR) como uma estratégia de regularização ambiental, prevendo-se o cadastro através de autodeclaração de todas as propriedades ocupadas até 2014 com posterior validação ou cancelamento de registros irregulares. O prazo para finalização do cadastro foi protelado inúmeras vezes, assim como o início da análise das informações depositadas no sistema28. O CAR tornou-se uma ferramenta que permitiu o cadastro irregular de terras públicas como propriedade particular, conferindo uma aparência de formalidade para terras griladas.
Apesar do cadastro em si não significar a titularidade da terra, uma área com CAR cadastrado tem maior valor agregado nas negociações realizadas no mercado informal, com possibilidades para a obtenção de financiamentos, que por sua vez viabilizam o desmatamento. Entre 2016 e 2020, tanto o desmatamento quanto os focos de calor dentro das florestas públicas não destinadas foram mais elevados nas áreas com CAR em comparação às áreas sem cadastro.
Uma investigação da BBC News29 encontrou anunciados na plataforma Facebook, dezenas de anúncios de venda de terras situadas em unidades de conservação, terras indígenas ou em áreas recém-desmatadas da Amazônia, indício de que o mercado ilegal de terras amazônicas está aquecido. As terras eram oferecidas através do Facebook Markeplace, espaço virtual através do qual os usuários podem anunciar a venda de itens das mais diversas naturezas. O documentário mapeou e investigou ofertas de terra situadas, por exemplo, em
28 Até meados de 2021 a análise dos dados do CAR era realizada manualmente por uma equipe técnica e aproximadamente 3% dos cadastros da base do Sicar passaram por algum tipo de análise. Em maio de 2021, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) lançou uma ferramenta desenvolvida pelo Serviço Florestal Brasileiro (SFB), em parceria com a Universidade Federal de Lavras, chamada AnalisaCar, que permite a análise dos dados declarados no Cadastro Ambiental Rural (CAR) de forma automatizada para maior agilidade do processamento de sete milhões de registros cadastrados até o final de 2020.
29 Investigação que originou o documentário Amazônia à venda: o mercado ilegal de áreas protegidas no Facebook, disponível no canal da BBC News Brasil no YouTube.
unidades de conservação como a Floresta Nacional do Aripuanã, no Amazonas ou a Terra Indígena Uru Eu Wau Wau, em Rondônia.
Em Apuí, um hectare de terra com pastagem pode ser avaliado com um valor vinte vezes maior que a mesma área coberta de floresta. A recente supervalorização de terras na região explica-se pelos projetos de infraestrutura, principalmente a repavimentação da rodovia BR-319 (Manaus-Potro Velho), bem como a construção de frigoríficos, significando uma perspectiva de grande transformação para a pecuária local, que comercializa majoritariamente o gado vivo e ainda enfrenta enormes obstáculos para o transporte até Manaus.
Anteriormente, o desmatamento de áreas públicas envolvia maiores incertezas, pois os controles ambientais mais estritos aumentavam os riscos, reduziam a demanda e o valor da terra no mercado ilegal. Com a recente supressão da fiscalização ambiental e o aumento na expectativa de ampliação da flexibilização da legislação ambiental no sentido facilitar a regularização fundiária, a invasão e venda de terras públicas tornaram-se um bom investimento, pois o risco de punição por infração ambiental tornou-se reduzido e a demanda de possíveis compradores aumentou face ao cenário otimista de ampla regularização.
O aquecimento do mercado de terras está fortemente vinculado às expectativas de anistia a punições ambientais e dispositivos que apontam para uma crescente flexibilidade e futuro promissor para a regularização fundiária no curto prazo. Um marco neste processo de mudanças foi a aprovação do novo Código Florestal, sancionado por Dilma Rousseff em 2012 e considerado por representantes dos setores ruralistas como a senadora Katia Abreu como uma lei que colocava “o fim à ditadura ambiental”. A nova lei flexibilizou as normas de proteção florestal com o perdão das multas para quem desmatou até o ano de 2008 e apostas na extensão de anistias.
Resolver o caos fundiário amazônico tornou-se fundamental na agenda dos últimos governos desde 2009, em consonância com o cenário de crescimento da produção de commodities agrícolas na região amazônica e uma progressiva tendência de destinação de terras públicas da União para a administração dos governos estaduais da Amazônia Legal. Tal cenário tornou imperativa aceleração da destinação regularizada das terras públicas e a partir desta perspectiva foi lançado o Programa Terra Legal em 2009, com o objetivo de promover a regularização fundiária de
ocupações baseadas em posses mansas e pacíficas dentro de terras federais na Amazônia Legal. O programa se fundamentava na Lei 11.952, sancionada pelo ex- presidente Lula em 2009.
Imerso em uma trajetória de suspeitas de irregularidade desde o início de sua implementação, em 2014, o Programa Terra Legal tornou-se alvo de uma auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU) e teve sua orientação normativa alterada no sentido de promover uma crescente flexibilização e desburocratização, tornando possível, por exemplo, regularizar as posses consolidadas em glebas sem que os perímetros fossem georreferenciados.
A seguir, a Medida Provisória (MP) 759, conhecida como MP da Grilagem, foi sancionada pelo Presidente Michel Temer como Lei 13.465/2017, atendendo muitas demandas para ampliar significativamente a legalização de terras e recriar um “Programa Terra Legal sem burocracia”. Esta lei dispõe sobre a regularização fundiária rural e urbana, sobre a liquidação de créditos concedidos aos assentados da reforma agrária e sobre a regularização fundiária no âmbito da Amazônia Legal, permitindo a regularização de áreas contínuas até 2,5 mil hectares e permitindo que ocupações anteriores a julho de 2008 participem do processo.
Em 2021, surgiu uma nova proposta de mudança do marco legal que dispõe sobre a regularização fundiária das ocupações incidentes em terras situadas em áreas da União: o Projeto de Lei 510/21, conhecido como PL da Grilagem. A proposta altera a legislação atual sobre a ocupação de terras que não possuem proprietários legais e facilita que terras públicas desmatadas de modo ilegal sejam legalizadas por quem as utiliza.
O Projeto de Lei derivou da Medida Provisória (MP) 910/19, também apelidada como MP da Grilagem, assinada pelo presidente Bolsonaro, no ano de 2019. Entretanto, a medida deveria ser validada pelo Congresso Federal até maio de 2020 e devido a impasses, a MP perdeu a validade e foi reapresentada em 2021 como proposta semelhante, tramitando como Projeto de Lei 2.633/2020 no Congresso e PL 510/2021 no Senado. A PL muda a lei 11.952/2009, que trata da regularização fundiária. O texto estabelece novas regras para a Lei 11.952/09, que valerão para imóveis da União e do Incra em todo o país em vez de apenas os localizados na Amazônia Legal, como ocorria até então.
Dentre as propostas com importantes impactos da PL da grilagem destacam- se: a) dispensa de vistoria presencial do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária para a titulação de médias propriedades rurais, ou seja, aquelas com no máximo 660 hectares ou seis módulos fiscais, exigindo-se do ocupante apenas documentos como o CAR (Cadastro Ambiental Rural), declarações de não existência de imóvel rural no país e que não foram beneficiários de programa de reforma agrária ou de regularização fundiária rural. O relatório da PL cria ainda o conceito de “imóvel em regularização”, legitimando a mera inscrição da posse no CAR como regular do ponto de vista ambiental e permitindo sua futura regularização fundiária. Cabe ressaltar como mencionado anteriormente que a maior parte dos cadastros ainda não foi validada pelos órgãos competentes e sabe-se que um grande número deles é fraudado.
No que que tange às Terras Indígenas, Quilombos e Unidades de Conservação, um novo dispositivo permite que os órgãos fundiários regularizem nestes territórios terras para particulares, quando ainda em processo de oficialização. As regras atuais preveem que quando uma gleba de terra é disponibilizada para regularização e há nela populações indígenas e tradicionais ou demanda por conservação, os órgãos competentes têm de manifestar interesse. Segundo o relator da PL, além da manifestação de interesse, a PL propõe um “estudo técnico conclusivo” para justificá-lo. No caso de não conseguirem apresentar o levantamento sobre a área em até 180 dias, ela poderia ser titulada para terceiros.
As frequentes propostas de mudanças na legislação sobre o tema da regularização fundiária brevemente apresentadas, produziram demandas permanente de produtores rurais e políticos locais para que o Congresso Nacional e o governo mudem a lei de forma a facilitar a legalização de ocupações ilegais. O cenário favorável às reformas legislativas, por sua vez, produz um intenso movimento por novas alterações nas normas sobre o tema.
Este é o caso do marco regulatório para a regularização fundiária no país que vem tendo sucessivas propostas para aumentar o tamanho de módulos fiscais regularizáveis de terras da União sem vistoria prévia e altera as datas de comprovação da ocupação. O marco temporal das regularizações previa que o interessado deveria provar “o exercício da ocupação e exploração direta e pacífica com até 2,5 mil hectares anterior a 22 de julho de 2008. Através da PL 510/2021, propôs-se prorrogar
tal prazo para 25 de maio de 2012”, bem como através da PL 2.633/2020, uma nova proposta foi realizada para alteração do tamanho das terras passiveis de regularização, que passariam de quatro para seis módulos fiscais de terras da União. Conforme salientou Brenda Brito, pesquisadora do em Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (IMAZON) para a Agência Senado (2021):
“Vamos mover mais uma vez o ciclo da grilagem e desmatamento, com ocupação de terra pública e desmatamento para sinalizar ocupação, pedido de titulação e lobby pra mudança da lei. Esse é o momento que estamos vivendo. E se a lei é alterada, é mais um estímulo para as ocupações.”
A ocupação ilegal e o desmatamento em áreas públicas na Amazônia são impulsionados pela especulação de terras. Para além das dinâmicas políticas particulares e interesses locais, a dinâmica fundiária na Amazônia inscreve-se ainda em uma “corrida mundial por terras”, ou seja, uma reação por parte de países, empresas e fundos de investimentos às crises de alimentos, energética, ambiental e financeira dos anos 2000, que se aprofundaram em 2007/2008.
Sauer e Leite (2012), a partir de dados de relatório do Banco Mundial30, apontam um salto significativo na comercialização de terras, passando-se da média anual de negociações com terras no mundo de aproximadamente 4 milhões de hectares até 2008, para cerca de 43 milhões de hectares 2009. Tal fenômeno vem sendo amplamente pesquisado a partir do conceito de land grabbing (apropriação de terras), noção que segundo White et al. (2012, p. 621), teria sido inspirada em termo empregado por Karl Marx (1985) ao examinar a “acumulação primitiva” e a dinâmica de apropriação privada de largas porções de terra, como deflagrador da agricultura em larga escala e processos de expropriação.
A reprodução ampliada de processos semelhantes de apropriação de terras e trabalho abordadas por Marx examinada por Harvey (2013, p. 121), a partir do conceito de “acumulação por espoliação”, que enfatiza a “mercadificação, a privatização da terra e a expulsão violenta de populações camponesas” e conversão de várias formas de direitos de propriedade comum, coletiva ou do Estado em direitos de propriedade privada. Tal ajuste espacial mitigaria a crise capitalista ao permitir a
30 Relatório de 2010 do Banco Mundial, publicado como Rising Global Interest in Farmland – can it yield sustainable and equitable benefits? (DEININGER et al., 2011). Tal relatório informava a existência de 446 milhões de hectares cultiváveis e não florestais, ou seja, lacunas produtivas.
liberação de ativos a baixo custo tornando-os lucrativos, conforme sugere Boechat et al ( 2017, p.86), apontando “a possibilidade de entender os fenômenos de land grabbing como parte de um ajuste espacial de economias centrais com capitais superacumulados”.
No Brasil, entidades patronais vinculadas ao agronegócio, agentes e instituições que lhes dão suporte formaram uma poderosa coalizão que vem se empenhando em propagar as potencialidades do mercado de comoditities, exaltando a necessidade de remoção de entraves fundiários, tributários e trabalhistas, que impedem o país de cumprir seu potencial agrícola e alimentar todo o planeta. Estas agroestrátégias têm sido bem-sucedidas politicamente, alcançando progressivamente a remoção de obstáculos para a uma expansão territorial da atividade e desconsiderando as lógicas de utilização de recursos naturais da agricultura familiar e comunidades tradicionais (ALMEIDA, 2009, p.105) .
A partir do ano de 2008, observou-se a ampliação da entrada de capital estrangeiro na Amazônia Legal, destacando-se uma elevação importante do volume em hectare em posse de pessoas jurídicas. O Mato Grosso destacou-se como um dos campões de terras apropriadas por estrangeiros, tornando-se uma área muito competitiva para investimentos (PEREIRA, 2016, p. 91)31. No entanto, o Pará tem sido área focal destas iniciativas, registrando uma elevada taxa de aquisição de terras por empresas estrangeiras entre os anos 2007 e 2014 (HERRERA, 2016).
Cabe ressaltar a reprodução na região amazônica do impulso da imobilização do capital em terras produtivas ou improdutivas, ou seja, a terra tem funcionado tradicionalmente como reserva de valor, a partir de apostas futuras no avanço tecnológicos, investimentos públicos, alta do preço de commodities agrícolas, redefinição legal de direitos territoriais e facilidades para a apropriação da terra.
31 Em 2009, um parecer da Controladoria-Geral da União limitou a venda de terras brasileiras para empresas nacionais constituídas ou controladas por estrangeiros. Em 2019, foi aprovado no Senado Federal e enviado para votação na Câmara dos Deputados, o projeto de lei 2.963/2.019 que pretendia alterar as regras para que estrangeiros possam comprar e arrendar terras no país. O autor da matéria foi o senador Irajá (PSD-TO).
Ao longo deste texto buscou-se situar socialmente as grandes queimadas de 2020 e 2021 na Amazônia. Apontou-se o esforço do governo vigente em “retomar o domínio da narrativa sobre a Amazônia”32, opondo-se ao imperativo da proteção ambiental das políticas territoriais direcionadas para a região em vigor nas últimas décadas, quase sempre objeto de forte oposição por parte das elites fundiárias amazônicas.
O presidente Bolsonaro reiterou a necessidade de exploração econômica da região em consonância e com forte apoio das elites locais, acelerando um processo em curso na última década de flexibilização da legislação fundiária e ambiental, pautada na desburocratização da regularização fundiária e no avanço da formalização do mercado de terras. Tal dinâmica acontece em consonância com um processo de “corrida mundial por terras” e relaciona-se com ajustes espaciais de economias centrais com capitais acumulados.
As queimadas eclodiram em meio a um ambiente pandêmico, que impactou fortemente a população amazônica e impôs fortes limitações as formas tradicionais de mobilização social, que na Amazônia sempre enfrentaram grandes desafios mesmo em tempos normais. A mobilização digital contra as queimadas foi intensa, mas exerceu um impacto pontual e limitado na redução do desmatamento e processos de expropriação em marcha.
Finalmente, examinamos o impacto das queimadas sobre terras destinadas e não destinadas, apontando como estas se traduzem na intensificação de ações violentas e aceleram processos de expropriação de pequenos agricultores e comunidades tradicionais.
32 Em setembro de 2020, em entrevista ao vivo com o professor Carlos Alberto Di Franco, transmitida pelo Youtube, o vice-presidente Hamilton Mourão disse que o governo federal “perdeu o domínio da narrativa relacionada à Amazônia” por causa da pressão de grupos políticos que se opunham ao presidente Jair Bolsonaro; de grupos econômicos, identificados com interesses internacionais; e de grupos ligados a agricultura e ambientalistas, que, “exacerbam a sua paixão pela questão do meio ambiente”.
ALMEIDA, A. W. B. de. Agroestratégias e desterritorialização- direitos territoriais e étnicos na mira dos estrategistas dos agronegócios. In. Almeida, A.B de. et. al. Capitalismo globalizado e recursos territoriais – fronteiras da acumulação no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Editora lamparina, 2010.
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V.20, nº 41, 2022 (jan-abr) ISSN: 1808-799 X
Luiz Eloy Terena2
Resumo
O texto oferece um panorama do contexto da política indigenista brasileira, bem como as articulações que o movimento indígena brasileiro, liderado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), está empreendendo na atualidade. Ao mesmo tempo, deixa claro como as lutas dos povos indígenas pela defesa de seus direitos, especialmente o territorial, estão conectadas às demais lutas sociais. Para tanto, chamamos a atenção para o modelo de desenvolvimento que afeta de maneira negativa os territórios tradicionais, por meio das estruturas políticas e econômicas do capital.
Palavras-Chaves: Resistência Indígena; Lutas Sociais; Política Indigenista.
MOVIMIENTO Y RESISTENCIA INDÍGENA EN CONTEXTO DE PANDEMIA EN BRASIL
Resumen
El texto ofrece un panorama del contexto de la política indígena brasileña, así como de las articulaciones que el movimiento indígena brasileño, liderado por la Articulación de los Pueblos Indígenas de Brasil (APIB), está realizando actualmente. Al mismo tiempo, queda claro cómo las luchas de los pueblos indígenas por la defensa de sus derechos, en especial los derechos territoriales, se conectan con otras luchas sociales. Para ello, llamamos la atención sobre el modelo de desarrollo que afecta negativamente a los territorios tradicionales, a través de la estructura política y económica del capital.
Palabras clave: Resistencia Indígena; Luchas Sociales; Política Indígena.
INDIGENOUS MOVEMENT AND RESISTANCE IN THE BRAZILIAN PANDEMIC CONTEXT
Abstract
The text offers an overview of the context of Brazilian indigenous policy, as well as the articulations that the Brazilian indigenous movement, led by the Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), is currently undertaking. At the same time, it is made clear how the struggles of indigenous peoples to defend their rights, especially territorial rights, are connected to other social struggles. Therefore, we draw attention to the development model that negatively affects traditional territories, through the political and economic structures of capital.
Keywords: Indigenous Resistance. Social Struggles. Indigenous Policy.
1 Artigo recebido em 19/01/2022. Primeira Avaliação em 06/02/2022. Segunda Avaliação em 09/02/2022. Aprovado em 24/02/2022. Publicado em 28/03/2022.
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v20i41.52886.
2 Pós doutorado na École des Hautes Études em Sciences Sociales – França. Doutor em Antropologia Social pelo Programa de Pós-graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGAS/MN/UFRJ) – Rio de Janeiro / Brasil. Advogado Indígena da APIB – Articulação dos Povos Indígenas do Brasil. E-mail: advluizeloy@gmail.com; ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9073-6086; Lattes: http://lattes.cnpq.br/9277948314977.
A luta dos povos indígenas não pode ser vista de maneira desconectada das questões políticas, econômicas e sociais que afetam o país. Não há dúvida de que o fundamento jurídico da proteção aos territórios indígenas e demais direitos sociais irradia a identidade étnica, configurando direitos identitários. No entanto, temos observado que os desafios postos para a efetivação dessa proteção constitucional3 e seus entraves estão justamente no conflito com os interesses políticos e econômicos que recaem sobre tais territórios.
Vivenciamos um contexto extremamente adverso aos povos indígenas, no que tange a implementação da política indigenista, marcado especialmente pela conduta autoritária e colonial da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), que vem atuando na contramão dos direitos e interesses dos povos indígenas, não promovendo a proteção territorial, facilitando a exploração dos territórios, perseguindo e criminalizando lideranças indígenas e abandonando a defesa judicial de comunidades indígenas, entre outros4. Em grande medida, problemas estruturais que afetam os territórios indígenas recrudesceram nos últimos anos, aliados à postura da atual gestão do presidente Jair Bolsonaro, o qual desde o início adotou medidas que privilegiaram o mercado e o agronegócio em detrimento dos direitos indígenas e da proteção ao meio ambiente. Em nome de um suposto desenvolvimento, tem-se incentivado a exploração nos territórios indígenas5, fato que está intimamente relacionado ao aumento das invasões, atividades ilegais de garimpo, aumento do desmatamento, queimadas ilegais e grilagem de terra pública.
Aliado a isto, deve-se levar em consideração a pandemia da Covid-19, que afetou imensamente as comunidades indígenas e expôs as vulnerabilidades do subsistema de atenção à saúde indígena, os aspectos estruturais da falta de demarcação dos territórios tradicionais e a negação aos direitos identitários dos povos originários, não só no campo do direito territorial (tendo como exemplo o
3 A Constituição Federal dispõe de um capítulo específico dedicado à proteção dos territórios e modos de vida dos povos originários. Ver artigos 231 e 232 da CF/88.
5 Em fevereiro de 2020, o presidente Jair Bolsonaro enviou para o Congresso Nacional o Projeto de Lei Nº 191/2020, que autoriza a exploração mineral em terras indígenas.
marco temporal), mas também, no que tange aos direitos sociais (acesso à saúde, educação escolar indígena, assistência social, dentre outros) e aos direitos e garantias fundamentais dos indígenas presos e processados.
Em tempos tão difíceis que marcaram a humanidade, os povos indígenas demonstraram profunda capacidade de articulação e trânsito entre práticas e saberes. É a partir deste pressuposto que queremos chamar atenção para alguns elementos iniciais: a) a capacidade do movimento indígena brasileiro se articular e se reinventar frente ao contexto e às estruturas opressoras; b) o formato de incidência a partir da prática da advocacia indígena; c) a eleição de casos para litigar estrategicamente perante o Supremo Tribunal Federal; e, d) a busca constante de diálogo entre os anseios do movimento indígenas e a academia.
A capacidade do movimento indígena de se reinventar e se apropriar de novos signos e instrumentos para fazer frente às violações de direitos de povos e comunidades tem sido objeto de reflexão no campo da antropologia e da ciência política. Citam-se expressamente os trabalhos de Pacheco de Oliveira (1988), Bicalho (2010), Oliveira (2010), Ferreira (2013, 2018) e Verdum & Paula (2020). Também se confere atenção especial para trabalhos produzidos por pesquisadores indígenas Gersem Baniwa (2007), Tonico Benites (2014) e Eloy Terena (2019).
Quando se aborda o movimento indígena é comum tomar como marco o movimento ocorrido nos idos da década de 1970 e 1980. Embora seja inegável a mobilização indígena e os avanços conquistados nesta situação histórica, costumo chamar atenção para a necessidade de frisar que o movimento indígena brasileiro nasceu desde o primeiro momento em que um líder indígena fez oposição ao processo colonial, ainda no período da Coroa Portuguesa. De lá para cá, em cada situação histórica6 houve variadas formas de resistência indígena, cada qual com seus agentes políticos, agendas e estratégias próprias.
6 De acordo com Pacheco de Oliveira (2015, p. 49): “Duas observações são necessárias para concretizar a ideia de situação histórica, caracterizando o tipo de modelo que exige. Em primeiro lugar, não se trata de um modelo que descreve o funcionamento idealizado de uma sociedade, no sentido p. ex., do trabalho dos antropólogos ingleses em African political systems (1975). Também não se trata de um modelo ideológico, correspondendo à visão de um grupo sobre o funcionamento da sociedade. O modelo implicado pela situação histórica traça um quadro explicativo da distribuição de poder numa sociedade, abrangendo tanto normas gerais acatadas por seus grupos componentes quanto visões particulares e manipulações dessas normas atualizadas apenas por um dos seus segmentos. Nesse sentido, o modelo referido é, então, uma construção do observador com intuitos analíticos, não se restringindo à ordem jurídica (legal, constitucional) ou ao plano da consciência dos atores, mas procurando apreender a capacidade ordenadora efetiva desses elementos em relação aos processos sociais concretos”.
Nesta reflexão incipiente, faz sentido tomar como ponto de análise o movimento indígena pós-constituinte de 1988. As configurações da mobilização indígena pós União das Nações Indígenas (UNI), passando pelo Conselho de Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Brasil (CAPOIB), até o formato atual de Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), pode ser objeto de estudo próprio, que não se comporta neste ensaio curto7. Entretanto, é perceptível que a forma de organização indígena vem se reinventando e se apropriando de vários símbolos e instrumentos. Isto ficou visível no ano de 2020 e 2021, quando o mundo foi assolado pela pandemia de Covid-19.
Em outro trabalho (ELOY AMADO e RIBEIRO, 2020), fez-se um sobrevoo sobre as primeiras ações engendradas pela APIB no início da pandemia. Enquanto muitos duvidavam da violência viral, situação agravada pela postura negacionista do governo brasileiro, a coordenação executiva da APIB decidiu suspender o Acampamento Terra Livre (ATL)8, como forma de resguardar suas lideranças, convocando sua realização para um novo formato – o on line. Este fato por si só já é contra hegemônico, tendo em vista que está no auge a discussão sobre o direito à identidade cultural. Ver indígenas com celulares, ocupando as redes sociais e até mesmo usando tênis Nike, por incrível que pareça, ainda é objeto de discussão capaz de colocar em xeque a identidade étnica de pessoas indígenas no Brasil. Além de realizar o ATL on line, as lideranças organizaram a Assembleia Nacional da Resistência Indígena9, que reuniu lideranças de diversos lugares do país, autoridades estatais e pesquisadores de vários centros de pesquisa. Com o avanço do vírus nas comunidades, as incidências indígenas foram difusas, desde o contexto
7 Sobre isto, ver Eloy Amado (2019).
8 A respeito do Acampamento Terra Livre: “A instância superior da APIB é o Acampamento Terra Livre (ATL), a maior mobilização indígena nacional, que reúne todo ano, na esplanada dos ministérios, em Brasília-DF, a capital do Brasil, mais de 1000 lideranças de todas as regiões do país, sob coordenação dos dirigentes das organizações indígenas regionais que compõem APIB. O ATL permite o intercâmbio de realidades e experiências tão distintas, a identificação dos problemas comuns, a definição das principais demandas e reivindicações, e a deliberação sobre os eixos programáticos e ações prioritárias da APIB (APIB. Quem somos? Disponível em
<https://apiboficial.org/sobre/>. Acesso em: 23 fev. 2022).
9 A APIB realizou nos dias 08 e 09 de maio de 2020, a Assembleia Nacional da Resistência Indígena, com o objetivo de reunir lideranças indígenas e pesquisadores das mais diversas áreas, e junta elaborar o plano de enfrentamento à pandemia. Na carta de chamada, a APIB pontuou que “a atuação das instituições públicas não é apenas ineficiente como irresponsável, pois houve casos de contaminação causados por pessoas a serviço da Sesai nos territórios. Em paralelo à pandemia, os povos indígenas continuam enfrentando, dentro dos seus territórios, ataques de criminosos já conhecidos, como grileiros, garimpeiros e madeireiros. Ou seja, além da pandemia estão precisando lidar com aumento de criminalidade que, muitas vezes, encontra incentivo e apoio no discurso e nas medidas institucionais do atual governo” (APIB, 2020).
local frente às prefeituras, até globais, nos organismos internacionais, abordando dimensões políticas, judiciais, administrativas e junto à sociedade civil.
Dentre as inovações perpetradas pelo movimento indígena destaca-se a prática da advocacia indígena. Refletir sobre esta categoria analítica requer um espaço maior e não é um objetivo final deste texto, mas tal dimensão de atuação deve ser levada em consideração neste momento atual em que os povos indígenas demandam cada vez mais o direito de participação. Falar da advocacia indígena nos remete a analisar o processo de chegada dos indígenas no ensino superior, extremamente relacionada à decisão política das lideranças de enviar seus jovens para as universidades10.
As lideranças indígenas foram visionárias ao estabelecer a “luta com a caneta, não mais apenas com o arco e flecha”. O trabalho da pesquisadora indígena Simone Eloy Amado (2018), nos ajuda a entender essa dimensão a partir da experiência do Mato Grosso do Sul. Atualmente existe um número considerável de advogados e advogadas indígenas que estão atuando nos departamentos jurídicos da APIB, COIAB, APOINME, Conselho Terena e outras organizações indígenas de base. A prática da advocacia indígena é executada de forma alinhada com as orientações das lideranças indígenas. Tais orientações podem ser de ordem política e até mesmo espiritual, por meio dos ancestrais. O local vai desde o chão batido da aldeia ou retomado, até os mais variados tribunais. Nem sempre são compatíveis com os procedimentos positivistas da ciência jurídica ou da ortodoxia dos tribunais. Por isso, em muitos aspectos, a prática se aperfeiçoa como método contra hegemônico e seu sentido só é perceptível ao final, quando os encantados proclamam a vitória indígena, nem sempre bem compreensível pela tradicional prática jurídica11.
A eleição de casos estratégicos está relacionada à advocacia indígena e às formas de atuação do movimento indígena. Pensar a litigância estratégica é levar em consideração vários fatores que indicam o sucesso da demanda judicial proposta. No contexto em questão neste trabalho, a situação de agravamento da crise sanitária e as sondagens feitas junto a especialistas que observam os
10 Sobre educação superior indígena, ver os seguintes autores: Souza Lima (2007, 2008, 2016, 2018) Souza Lima & Barroso (2013a); Souza Lima & Barroso-Hoffmann (2007), Souza Lima & Paladino (2012a, 2012b), Vianna et al. (2014), Amado (2016), Eloy Amado & Brostolin (2011) e Guimarães & Villardi (2010, p. 19).
11 Sobre este tema, ver: Alfinito, Ana Carolina & Eloy Amado (2021).
Tribunais foram decisivas para eleger e construir o caso da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 709, proposta pela APIB no Supremo Tribunal Federal (STF). Além de pensar o litígio em termos jurídicos e políticos, foi necessário adentrar outros campos de conhecimento, notadamente o da saúde coletiva, prestação de assistência à saúde indígena, proteção territorial, monitoramento ambiental e aspectos específicos referentes aos povos indígenas isolados e de recente contato. Na mesma senda, podemos falar da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6622, proposta pela APIB no STF, questionando dispositivo da Lei n.14.021/2112 que permitiu a presença de missões religiosas em terras com presença de povos isolados e de recente contato13.
Ademais, aliado a tudo isso se encontra a capacidade de transitar entre os anseios do movimento indígena e a academia. Os saberes produzidos pelos cientistas, aliado à estratégia política e tradicional, servem de base para a incidência do movimento indígena. A prática da pesquisa-ação nesta situação é preponderante, haja vista a constante reivindicação para que os cientistas deixem suas torres de marfim e conectem o conhecimento à prática social. Este aspecto tem mão dupla, pois exige, de igual modo, por parte dos indígenas, a disposição para transitar entre os saberes tradicionais e os saberes que estão sendo produzidos intramuro das universidades.
O principal aspecto que marca a atual conjuntura da política indigenista brasileira é o contínuo processo de violação aos direitos dos povos indígenas. A questão indígena está na agenda política e econômica do país. Em fevereiro de 2021, com a eleição dos novos presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, o Governo Federal, na gestão do presidente Jair Bolsonaro, apresentou
12 “Art. 13. Fica vedado o ingresso de terceiros em áreas com a presença confirmada de indígenas isolados, salvo de pessoas autorizadas pelo órgão indigenista federal, na hipótese de epidemia ou de calamidade que coloque em risco a integridade física dos indígenas isolados. § 1º As missões de cunho religioso que já estejam nas comunidades indígenas deverão ser avaliadas pela equipe de saúde responsável e poderão permanecer mediante aval do médico responsável”.
13 Para saber mais, leia o texto “O indigenismo de exceção: o planalto e suas novas normativas”, de Luiz Eloy Terena, Miguel Gualano de Godoy e Carolina Santana. Disponível em:
<https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-indigenismo-de-excecao-o-planalto-e-suas-novas- normativas-20022021>. Acesso em 23 de fevereiro de 2022.
novo pacote de pautas prioritárias para serem aprovadas14. Dentre elas, inclui-se o Projeto de Lei n. 191/20, o qual basicamente trata de priorizar, em plena pandemia, a abertura das terras indígenas à exploração minerária.
O problema da mineração e do garimpo em terras indígenas (que traz consigo toda sorte de mazelas, como poluição ambiental e violência) já existe, mesmo sem a sua regulamentação em lei. A despeito disso, o presidente Jair Bolsonaro insiste em buscar essa autorização legislativa, subvertendo a hierarquia de valores inscrita no direito constitucional brasileiro e no direito internacional. Com tal prioridade em sua agenda econômica, desconsiderando as manifestações de vontade dos povos afetados15, constrói-se o quadro dos direitos indígenas como entraves à prosperidade econômica dos brasileiros, jogando a sociedade brasileira contra os povos indígenas e fornecendo um claro estímulo institucional à invasão de suas terras, o que tem por consequência o acirramento dos conflitos.
Um exemplo disso é que, no dia 25 de março de 2021, a Associação de Mulheres Munduruku Wakoborun, no município de Jacareacanga, no Pará16, foi alvo de ataque perpetrado por garimpeiros e seus aliados, tendo sua sede depredada e incendiada. Há a invasão massiva de garimpeiros ilegais na Terra Indígena (TI) Yanomami, alcançando cifras assustadoras de mais de 20 mil garimpeiros, com devastação de uma área equivalente ao tamanho de 500 campos de futebol17.
14 As propostas do presidente Jair Bolsonaro foram amplamente noticiadas pela imprensa nacional. Conferir em: BRANT, Danielle; MACHADO, Renato; PUPO, Fábio. Prioridades de Bolsonaro para o Congresso incluem reformas econômicas e privatização da Eletrobras. Folha de S. Paulo. 03 fev. 2021. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2021/02/prioridades-de-bolsonaro- para-o-congresso-incluem-reformas-economicas-e-privatizacao-da-eletrobras.shtml>. Acesso em 23 de fevereiro de 2022.
15 Conferir: SUDRÉ, Lu. “Projeto de morte”, diz Apib sobre PL que autoriza mineração em terras indígenas. Brasil de Fato. 07 de fevereiro de 2020. Disponível em:
<https://www.brasildefato.com.br/2020/02/07/projeto-de-morte-diz-apib-sobre-pl-que-autoriza mineracao-em-terras-indigenas>. Acesso em: 23 fev. 2022; APIB. Nota de repúdio contra o Projeto de Lei nº 191/20, que regulamenta exploração de bens naturais nas terras indígenas. 12 de fevereiro de 2020. Disponível em: <https://apiboficial.org/2020/02/12/nota-de-repudio-contra-o-projeto-de-lei-no- 19120-que-regulamenta-exploracao-de-bens-naturais-nas-terras-indigenas/>. Acesso em 23 de fevereiro de 2022.
16 Conferir: MPF. Ataque de garimpeiros ilegais à sede da associação Wakoborun, de mulheres indígenas Munduruku, no município de Jacareacanga (PA), em 25 de março de 2021. Disponível em:
<http://www.mpf.mp.br/pa/sala-de-imprensa/documentos/2021/ataque-garimpeiro-sede-associacao- mulheres-munduruku-jacareacanga-pa-25-03-2021/>. Acesso em 23 de fevereiro de 2022.
17 Conferir o relatório: Hutukara Associação Yanomami; Associação Wanasseduume Ye'Kwana. Cicatrizes na floresta: evolução do garimpo ilegal na TI Yanomami em 2020. Boa Vista, 2021. Disponível em: <https://acervo.socioambiental.org/acervo/documentos/cicatrizes-na-floresta- evolucao-do-garimpo-ilegal-na-ti-yanomami-em-2020>. Acesso em 23 de fevereiro de 2022.
A destruição de biomas, a invasão de terras indígenas e a sua contaminação do solo e de rios são implementadas, sobretudo, como um projeto de eliminação dos povos indígenas. Trata-se de um projeto comum aos governos populistas nacionalistas, os quais impõem uma visão excludente e homogênea sobre quem deve ser considerado “povo brasileiro”. Quem não for, deve ser eliminado ou destruído18. Neste sentido, por mais de uma vez o presidente Jair Bolsonaro disse que povos indígenas só teriam direitos se fossem “assimilados”, ou seja, se tivessem sua identidade indígena destruída19.
Outra ilustração dessa pretensão é que, na contramão do debate internacional, a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) publicou a Resolução n. 4/2021, que objetiva “definir novos critérios específicos de heteroidentificação que serão observados pela FUNAI, visando aprimorar a proteção dos povos e indivíduos indígenas, para execução de políticas públicas”. A definição de novos critérios específicos de heteroidentificação pretendida pela FUNAI contraria o pluralismo e os direitos inscritos tanto na Constituição brasileira quanto em tratados internacionais de direitos humanos, além de abrir espaço para o Estado brasileiro chefiado pelo presidente Jair Bolsonaro, desaparecer com os povos indígenas sob a unidade homogênea almejada em sua retórica populista nacionalista. Por isso, a APIB reagiu20 e a resolução foi suspensa por força de decisão do STF.
No âmbito da questão ambiental, o governo federal emitiu a Instrução Normativa Conjunta n.1/2021, pela FUNAI e pelo Instituto Brasileiro do Meio
18 De acordo com um Relator Especial sobre formas contemporâneas de racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata da ONU: ”§8. In its most dangerous variants, populism deploys a monolithic exclusionary vision of who qualifies as ‘the people’. Those groups and individuals depicted as excluded from forming a part of ‘the people’ then also become targets of populist antagonism, even if those groups and individuals have no elite status [...] §11. [...] The strategy, then, is not just to target elites, but also to target multiculturalism and members of minority races, ethnicities, and religions as all part of the problem. Racial, ethnic and religious minorities are relegated to the status of illegitimate interlopers whose interests are characterized as oppositional to those of the group exclusively designated as constituting ‘the people’. Thus, when nationalists populists appropriate the language of democratic legitimacy and representation of ‘the people’, this language masks exclusionary and typically racialized conceptions of the nation that are odds with liberal conceptions of democracy” (ONU, A/73/305 Report of the Special Rapporteur on contemporary forms of racism, racial discrimination, xenophobia, and related intolerance, 2018, par. 8 e 11).
19 “Vamos integrá-los à sociedade. Como o Exército faz um trabalho maravilhoso tocante a isso, incorporando índios, tá certo, às Forças Armadas”. Globo News, 3 de agosto de 2018; “Com toda a certeza, o índio mudou, tá evoluindo. Cada vez mais o índio é um ser humano igual a nós.” UOL Notícias, 23 de janeiro de 2020.
20 APIB. APIB aciona MPF contra Resolução n. 4 da Funai. 09 de fevereiro de 2021. Disponível em:
<https://apiboficial.org/2021/02/09/apib-aciona-mpf-contra-resolucao-n-4-da-funai/>. Acesso em 23 de fevereiro de 2022.
Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (IBAMA)21. Seu conteúdo “dispõe sobre procedimentos a serem adotados durante o processo de licenciamento ambiental de empreendimentos ou atividades localizados ou desenvolvidos no interior de Terras Indígenas cujo empreendedor seja organizações indígenas”. Trata-se da possibilidade de exploração do agronegócio dentro das terras indígenas, visando fragilizar a proteção ambiental e abrir espaço para que não indígenas venham a explorar atividades de interesse econômico no interior desses territórios22.
Nos meses de junho e julho, a base aliada do presidente Jair Bolsonaro no legislativo começou a analisar o PL 490/2007, que busca alterar as regras de demarcação de terras indígenas, adotando como parâmetro legislativo a tese do marco temporal, segundo a qual se deixa de reconhecer terras indígenas não ocupadas por povos indígenas no dia 05 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal vigente, proibindo a ampliação de terras indígenas já demarcadas, flexibilizando as possibilidades de contato de indígenas isolados ou de contato recente e permitindo a exploração de terras indígenas por garimpeiros23. A APIB promoveu protestos contra a votação do PL 490/2007 e os povos indígenas foram reprimidos com violência pela polícia em Brasília.
Existe tamanha promiscuidade do governo federal com interesses econômicos favorecidos, manejados e articulados com a política anti-indígena de Jair Bolsonaro, a ponto de o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, ter sido denunciado criminalmente por facilitar a comercialização de madeira ilegal, fruto de desmatamento e invasões a terras indígenas. Como todo membro do governo de Jair Bolsonaro, Ricardo Salles também serviu à política anti-indígena. Renunciou ao
<https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/instrucao-normativa-conjunta-n-1-de-22-de-fevereiro-de-2021- 304921201>. Acesso em 23 de fevereiro de 2022.
22 O Instituto Socioambiental (ISA) produziu um Relatório Técnico sobre desmatamento e invasões em sete terras indígenas na Amazônia brasileira. Nele, o ISA registra o avanço dos invasores nas terras indígenas brasileiras, com destaque para alguns casos prioritários, nos quais se enquadram as Terras Indígena Araribóia, do povo Guajajara, no Maranhão; a Terra Indígena Munduruku, no Pará e a Terra Indígena Yanomami, em Roraima. A atualização demonstra que o desmatamento e as invasões avançaram durante a pandemia. Conferir: OVIEDO, Antônio; BATISTA, Juliana de Paula; LIMA, Michelle Araújo. Relatório Técnico atualizado (março de 2021) sobre desmatamento e invasões em sete terras indígenas na Amazônia brasileira. Brasília: ISA, 2021.
cargo em 23 de junho de 2021 e a imprensa internacional repercutiu seus crimes ambientais.
A política anti-indígena do Presidente Jair Bolsonaro segue seu curso. Jair Bolsonaro, que prometeu “não demarcar nenhum centímetro de terra indígena e quilombola”, tem feito a defesa da tese de que os povos indígenas, para terem suas terras preservadas e demarcadas, deveriam estar em ocupação da mesma em 5 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição Brasileira (chamada de tese do “marco temporal”). Tal exigência probatória para a proteção de terras indígenas teria duas principais consequências: a legitimação de invasores violentos que haviam deslocado de forma forçada os povos indígenas durante anos de assimilacionismo de Estado; e a impossibilidade de provar posse em um dia específico há 33 anos. O impacto da admissão da tese do marco temporal, uma interpretação inconstitucional, é a inviabilização da demarcação de centenas de terras indígenas originariamente atribuídas ao usufruto de seus respectivos povos de ocupação tradicional.
O Relator Especial sobre os direitos dos povos indígenas da Organização das Nações Unidas, Francisco Cali Tzay, já realizou apelo para que o Supremo Tribunal Federal rejeite a tese do marco temporal. Segundo Tzay, trata-se de “argumento legal promovido por agentes comerciais com o fim de explorar recursos naturais em terras tradicionais”. Ainda, o relator afirmou temer que uma decisão favorável ao marco temporal legitime a violência contra os povos originários e aumente os conflitos na Floresta Amazônica24.
A referida tese está em análise na corte constitucional brasileira e foi pautada para julgamento no Supremo Tribunal Federal. Desde a publicação da pauta e durante o julgamento, que durou entre 26 de agosto de 2021 e 15 de setembro de 2021, o presidente Jair Bolsonaro fez pressão e ameaças aos povos indígenas e à Suprema Corte, sugerindo que não cumpriria a decisão caso a mesma fosse favorável aos indígenas.
Em entrevista dada a uma emissora de rádio, em 4 de agosto de 2021, o Presidente Jair Bolsonaro disse:
24 ONU NEWS. Relator da ONU pede à Suprema Corte no Brasil para rejeitar marco temporal. 23 de agosto de 2021. Disponível em: <https://news.un.org/pt/story/2021/08/1760692>. Acesso em 23 de fevereiro de 2022.
"Por que o campo está feliz com a gente? Nós não marcamos mais terra indígena. Já temos 14% demarcados por terra indígena. Chega. Você fica pensando como é que pode 10 mil índios terem uma área equivalente a duas vezes o estado do Rio de Janeiro, como os ianomâmis. Chega, não dá mais porque a intenção disso é inviabilizar a agricultura, inviabilizar o agronegócio do Brasil e virar um conflito".25
Na mesma entrevista, o Presidente Jair Bolsonaro alegou que se mais terras indígenas forem demarcadas, "acabou o Brasil". Reforçando uma vez mais sua visão autoritária e integracionista que imputa aos povos originários do Brasil o papel de inimigos do país, continuou:
"Não demarcamos mais quilombolas e por que quilombolas? Já foi demarcado o suficiente. Se demarcar tudo que está na Justiça, acabou o Brasil. Nós já temos pouco mais de 60% de terras preservadas, incluindo terras indígenas, Apas (Áreas de Proteção Ambiental), chega disso daí".
Poucos dias depois, em dois de setembro de 2021, o Presidente Jair Bolsonaro se manifestou novamente de forma favorável ao marco temporal durante live realizada em suas redes sociais. De forma desonesta, o Presidente brasileiro afirmou que “No campo de futebol da sua cidade, se aparecer um índio deitado, vai ter que ser terra indígena”. Não fosse suficiente, Bolsonaro afirmou explicitamente que se o marco temporal não for considerado válido, “acaba o Brasil”. Em seguida, realizou apelo para que o Supremo Tribunal Federal tivesse “bom senso”, caso contrário “vamos entregar o Brasil para o índio”. Finalmente, expressou seu desejo de que os ministros “aceitem ou peçam vista, o que costuma acontecer e sentam em cima do processo (sic)”. A intenção de impedir a demarcação de qualquer terra indígena é explícita e inclui também ameaças de descumprir a decisão judicial caso ela fosse favorável aos povos indígenas: “tenham certeza, caso seja aprovado (sic), tenham certeza, eu tenho duas opções, não vou falar agora quais, mas tenham certeza, é aquela que interessa ao povo brasileiro”26.
Iniciado o julgamento no STF, este contou com dois votos e logo foi suspenso por pedido de vista. Os dias de julgamento também foram acompanhados de intensa
26 Conferir declaração à imprensa em vídeo: Record News. Bolsonaro diz que não aceita demarcar terras de índios ocupadas depois da Constituição. 28 de agosto de 2021. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=8RbZ0KCNulM>. Acesso em 23 de fevereiro de 2022.
mobilização por parte dos movimentos indígenas. Entre os dias 22 e 28 de agosto de 2021, a APIB organizou o Acampamento Luta pela Vida, com o objetivo de viabilizar que os povos indígenas de todas as regiões do Brasil pudessem acompanhar a decisão acerca do futuro das terras indígenas. A mobilização contou com aproximadamente seis mil indígenas acampados na Esplanada dos Ministérios, na cidade de Brasília. Durante os dias em que houve sessões de julgamento, os povos indígenas se deslocaram para frente da Corte Constitucional, a fim de assisti- las na Praça dos Três Poderes, na capital do país. Como o julgamento se estendeu por semanas, os eventos acabaram por coincidir com outra manifestação de âmbito nacional: a II Marcha das Mulheres Indígenas. Contando com aproximadamente cinco mil pessoas acampadas, a Marcha das Mulheres Indígenas foi organizada pela APIB e pela Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (ANMIGA). Tratou-se da maior mobilização indígena nacional desde a Assembleia Constituinte, em 1986-1987.
Em outra ação, de outubro de 2021, ajuizada pela Defensoria Pública da União e pela APIB, solicitou-se a retirada de Marcelo Xavier da presidência da Funai por conduzir a autarquia a uma política anti-indígena, isso justamente no órgão cuja razão de ser é promover políticas públicas de proteção aos povos indígenas. No dia 1º de dezembro, a Justiça Federal, no entanto, negou o pedido de forma liminar. Dessa forma, mesmo diante dessas alegações, o presidente da FUNAI segue no cargo. Trata-se de evento explícito das dinâmicas envolvidas no que vem sendo autointitulado pela atual gestão de “Nova FUNAI”.
Outro exemplo evidente refere-se aos Piripkura, povo indígena isolado que vem sofrendo graves ataques. Ao ser provocada pela Justiça para dar andamento ao moroso processo de demarcação desta terra indígena, a FUNAI elencou como servidores responsáveis técnicos sem aptidão comprovada e visível conflito de interesses, incluindo Joany Arantes, um dos autores do Projeto de Lei n. 490/2007 supramencionado. Em novembro de 2021, a Justiça Federal determinou a alteração dos servidores nomeados.
É importante ainda trazer para esse contexto a existência da CPI da Covid-19 que ocorreu no parlamento brasileiro. Após quase seis meses de funcionamento da Comissão Parlamentar de Inquérito, em 26 de outubro de 2021 foi publicado o Relatório Final da CPI (BRASIL, 2021), data na qual o Brasil atingiu a triste cifra de
603.521 óbitos decorrentes da covid-19. A conclusão do procedimento indicou de maneira clara e direta que o governo federal foi omisso e optou por agir de forma não técnica e desidiosa no enfrentamento da pandemia do novo Coronavírus, deliberadamente expondo a população a concreto risco de infecção em massa. As investigações comprovaram a existência de um gabinete paralelo, a intenção de imunizar a população por meio da contaminação natural, a priorização de um tratamento precoce sem amparo científico de eficácia e o desestímulo ao uso de medidas não farmacológicas, tudo acompanhado do deliberado atraso na aquisição de imunizantes e da propagação constante das chamadas fake news, cujo conteúdo, patrocinado pelo governo, apresentava afirmações contrárias a evidências técnicas e científicas. O quadro levou à constatação de que o Presidente da República Jair Bolsonaro foi o principal responsável pelos erros de governo cometidos durante a pandemia da Covid-19.
As investigações e seus resultados demonstraram que o Presidente se utilizou da pandemia de Covid-19 para aprofundar sua política anti-indígena, que já estava em curso, conclusão esta que foi expressamente reconhecida pelo documento. Assim, o Relatório consignou que o resultado da forma como o governo federal tem conduzido a política indigenista, de modo geral, e, particularmente, suas atitudes de ataque e desprezo contra os povos indígenas durante a pandemia de Covid-19, contribuíram para produzir, de modo deliberado, condições aptas a destruir total ou parcialmente esses grupos, além de gerar intenso sofrimento e o desaparecimento de importantes referências culturais, dadas as mortes de anciões e figuras centrais às comunidades.
Por fim, destaca-se o contínuo processo de criminalização e perseguição a lideranças e organizações indígenas. No dia 26 de abril de 2021, uma das coordenadoras executivas da APIB, Sônia Guajajara, uma liderança indígena conhecida internacionalmente por sua luta em defesa dos direitos indígenas, foi intimada a depor junto à Polícia Federal. A motivação se deu em razão da APIB produzir a série Maracá - Emergência Indígena em 2020, a qual denunciou as violações do direito à saúde dos povos indígenas, por parte do governo federal brasileiro. No dia 30 de abril de 2021, a liderança Almir Suruí, um renomado defensor dos direitos dos povos indígenas, também foi inquirido a se manifestar pela Polícia Federal.
A gestão do Presidente Jair Bolsonaro criminaliza quem quer que o critique publicamente, conforme também tem feito com o influencer Felipe Neto e o ex- candidato à Presidência da República, Guilherme Boulos. Ambos estão sendo perseguidos por se manifestarem em suas redes com críticas ao Presidente Bolsonaro, enquadrados na Lei de Segurança Nacional, um instrumento normativo produzido durante a ditadura civil-militar vigente no Brasil entre 1964-1985. Trata-se de um contexto sistemático de violação do direito fundamental à liberdade de expressão, corolário básico das democracias modernas.
A justificativa para a intimação de Sônia Guajajara foi à instauração do Inquérito Policial n. 2020.0104862, o qual acusa a APIB de difamar o governo federal e de incutir no crime de estelionato, em razão de suas campanhas de arrecadação de fundos para combater as mazelas da Covid-19 junto aos povos indígenas. Além de ser inerte, ineficaz e negligente com as políticas de proteção à saúde dos povos indígenas, conforme é de conhecimento do Supremo Tribunal Federal e da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, o governo Bolsonaro opta por criminalizar as ações da APIB para combater a pandemia de Covid-19.
Por ser um inquérito policial envolto em ilegalidades, como (i) investigação sem justa causa de condutas não tipificadas como crimes, (ii) afastamento do Ministério Público como órgão externo fiscalizador da atividade policial, e (iii) o carecer de critérios mínimos de procedibilidade para investigação sobre difamação e estelionato, de acordo com a Convenção Americana de Direitos Humanos, a Constituição Federal e as leis brasileiras; a APIB ingressou com uma ação de Habeas Corpus em favor de Sônia Guajajara, solicitando o trancamento do inquérito policial. O juízo, ao avaliar o pedido de Habeas Corpus, concedeu a ordem e determinou o trancamento do inquérito imediatamente.
É preciso ainda ressaltar a importância da Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas ocorrida em 2021 (COP26). O evento recebeu a maior delegação indígena da História de suas edições. A sociedade civil brasileira, organizada por meio dos povos indígenas, participou intensamente das atividades durante a conferência. Com o governo federal do Brasil atuando em cumplicidade com o desequilíbrio climático, como ficou provado pela sua omissão dos dados sobre o desmatamento 2020/2021 durante a COP26, os povos indígenas foram mostrar à comunidade internacional os ataques sistemáticos às políticas ambientais
no Brasil. Em represália a isto, três mulheres lideranças indígenas foram vítimas de retaliações: i) Alessandra Munduruku; ii) Txai Suruí; e iii) Glicéria Tupinambá.
No dia 12 de novembro de 2021, Alessandra Munduruku estava em sua casa, na cidade de Santarém, estado do Pará. Pela manhã, um homem, identificando-se como técnico da companhia que fornece eletricidade no local, informou que seria necessário fazer o desligamento momentâneo da rede elétrica no bairro, em razão de ajustes de manutenção. Por volta das 12 horas, pediu ao seu marido que telefonasse à companhia para saber o horário que o estabelecimento de energia seria retomado. Então foram informados de que não havia nenhuma previsão de manutenção na rede elétrica no local. Diante do indício de fraude e sem saber que ameaças isso poderia significar, uma vez que Alessandra Munduruku já está inclusa no Programa de Proteção a Defensores de Direitos Humanos em razão de ser ameaçada de morte, ela e a família se retiraram da casa indo pernoitar em outro local. Na manhã do dia 13 de novembro, seu marido foi à casa e encontrou o portão arrombado. Ao entrar, verificou que a casa foi invadida. Do local foram subtraídos: i) uma pasta com farta documentação, ii) aproximadamente R$ 4.000,00 que foram arrecadados para a realização da assembleia do povo Munduruku, e iii) a memória interna de uma câmera de segurança. Imediatamente, Alessandra Munduruku fez o registro de ocorrência na delegacia de polícia e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos também foi comunicada.
No dia 01 de novembro de 2021, Txai Suruí, do povo Paiter Suruí foi a única brasileira a discursar na abertura da COP26. Em seu discurso, conclama que a comunidade internacional se comprometa imediatamente com o combate às mudanças climáticas. Em razão disso, o presidente Jair Bolsonaro, sem nominá-la especificamente, depreciou seu discurso. Em seguida, Txai Suruí relatou que passou a sofrer muitos ataques das milícias virtuais que atuam em favor de Bolsonaro. Ainda durante a COP26, Txai Suruí e outras lideranças indígenas ouviram recados de que “não deveriam falar mal do Brasil”, por parte de representantes oficiais do Estado brasileiro.
No dia 12 de novembro de 2021, Glicéria Tupinambá, liderança do povo Tupinambá de Olivença, no estado da Bahia, estava retornando ao seu território, pela estrada BR-101. Um carro em alta velocidade faz uma ultrapassagem perigosa, freia bruscamente, obrigando que o condutor do veículo no qual ela estava também
precisasse frear imediatamente, quase forçando um acidente. Em seguida, o carro acelera e foge. Poucos quilômetros à frente, em um município próximo, o carro foi encontrado abandonado. Há indícios de que foi um ato de intimidação.
Esses atos, observados em conjunto, parecem indicar uma ação sistemática de repressão às defensoras de direitos humanos que participaram da COP26, em prol dos direitos climáticos, o que afronta os princípios de cooperação internacional que garantem a livre participação de ativistas que atuam pela promoção dos direitos humanos internacionalmente protegidos. É preciso destacar que essa conjuntura de criminalização da luta indígena por parte do Estado brasileiro é o que cria terreno fértil para outras violações de direitos humanos, como foi o caso da queima da casa de Maria Leusa Munduruku, conforme já mencionado acima. Ainda como desdobramento da violência de Estado, mencionamos também as queimas das casas de reza do povo Guarani Kaiowá, os quais foram vítimas frequentes nesse ano de atentados de cunho racista, que ganham força em um Brasil no qual a diversidade é combatida com o poder autoritário de um governo federal que se pretende policialesco.
O movimento indígena brasileiro está estruturado em comunidades e organizações locais, regionais e nacional, tendo como instância máxima de aglutinação a APIB. Ela é a organização que representa nacionalmente os povos indígenas e é formada pelas organizações indígenas regionais: Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (APOINME); COIAB; Articulação dos Povos Indígenas do Sul (ARPINSUL); Articulação dos Povos Indígenas do Sudeste (ARPIN-SUDESTE); Conselho do Povo Terena; Aty Guasu Guarani Kaiowá e Comissão Guarani Yvyrupa. A APIB foi criada no Acampamento Terra Livre (ATL) em 2005, em uma mobilização nacional que é realizada anualmente, desde 2004, para tornar visível a situação dos direitos indígenas e reivindicar do Estado brasileiro o atendimento das demandas dos povos indígenas. A missão da APIB é a promoção e a defesa dos direitos indígenas, a partir da articulação e união entre os povos e organizações indígenas das distintas regiões do país'.
Como vimos, quando a OMS declarou a situação de pandemia, a primeira deliberação da APIB foi suspender o ATL. Essa grande assembleia reúne caciques e lideranças de diversos povos de diferentes regiões do país, constituindo-se no principal ato da mobilização indígena. Entretanto, ciente da gravidade da situação, as lideranças indígenas não hesitaram em questionar as recomendações das autoridades sanitárias e suspenderam a realização do encontro no formato presencial.
Por outro lado, não deixaram passar em branco o abril indígena e organizaram o primeiro ATL online, com mesas e discussões que ocorreram entre os dias 27 e 30 de abril. No âmbito do ATL on line, as mesas foram organizadas com vista a contemplar as várias lideranças indígenas que se esforçaram para se conectar nas lives abertas nas redes da APIB. Nesse sentido, ocorreram falas da coordenação da APIB sobre o ATL e diálogos referentes à gestão dos territórios, retirada de direitos e à pandemia. Também foram feitas análises de vulnerabilidade, impactos e enfrentamentos à Covid-19 no contexto das comunidades indígenas. Houve participação da juventude indígena, falando das estratégias de comunicação, e ocorreram também painéis jurídicos abordando a questão do marco temporal e a proteção dos direitos humanos no plano internacional. Ainda foram desenvolvidas análises voltadas para a situação dos povos indígenas em situação de isolamento voluntário e contato inicial no contexto do novo Coronavírus, focando especialmente na vulnerabilidade epidemiológica e territorial.
Seguindo a agenda de mobilização e diante do crescente número de casos de Covid-19 entre indígenas, como vimos, a APIB organizou a Assembleia Nacional da Resistência Indígena, com o objetivo de reunir lideranças e pesquisadores das mais diversas áreas para, juntos, elaborarem um plano de enfrentamento à pandemia. Foi a partir dessa dimensão que a coordenação do movimento indígena promoveu a assembleia, objetivando “coordenar as estratégias de combate à disseminação do novo Coronavírus de forma unificada e respeitando as diferenças regionais e culturais”27. É importante salientar a visão transdisciplinar com que as lideranças organizaram e promoveram a agenda para construir um plano de enfrentamento, buscando envolver lideranças regionais e especialistas não indígenas de diferentes
27 APIB. Lideranças indígenas organizam assembleia para construir plano de enfrentamento à pandemia. 07 de maio de 2020. Disponível em: <http://apib.info/2020/05/07/assembleia-resistencia- indigena/>. Acesso em 23 de fevereiro de 2022.
segmentos para compartilhar diagnósticos locais de danos causados pela disseminação do vírus, a fim de compreender como as comunidades estavam lidando com os casos e se estavam tendo acesso a equipes de saúde.
Na linha de combate à subnotificação, a APIB, a COIAB, a APOINME e o Conselho Terena adotaram instrumentos próprios de levantamento de casos junto às lideranças, comunidades e organizações locais. Tais instrumentos constituíram uma iniciativa fundamental para denunciar o descaso do governo federal. Em âmbito nacional, foi lançado o Alerta APIB, um boletim diário com informações de indígenas infectados, quantidade de mortos, suas localidades e seus povos. Tais dados foram fundamentais para entender o avanço da pandemia sobre as TIs e entre os indígenas que vivem próximos aos ou nos centros urbanos.
Outro instrumento fundamental foi o lançamento do site http://quarentenaindigena.info/apib/, organizado e mantido pela APIB, em que são postados, além dos monitoramentos de casos, notas das organizações indígenas, relatos de casos e material informativo. Este site depois foi renomeado como https://apiboficial.org/emergenciaindigena/. Na produção desses materiais informativos está a rede de comunicadores indígenas Mídia Índia, que produz materiais e traduz as informações para várias línguas indígenas. Essas orientações eram repassadas às comunidades e lideranças indígenas por meio de rádios comunitárias, boletins das associações locais e grupos de Whatsapp.
As barreiras sanitárias implementadas pelas comunidades indígenas e por suas lideranças constituíram-se em verdadeiros movimentos autônomos com vistas a impedir o acesso de pessoas ao território. Tais medidas foram adotadas por várias comunidades que, valendo-se de sua autonomia organizacional, efetivaram tais ações, as quais, sem dúvida, tiveram efeito prático imediato. Comunidades indígenas de diversas regiões e contextos territoriais fecharam os seus territórios, restringindo de forma eficaz as incursões às TIs. Em alguns casos, a restrição se estendeu até para indígenas residentes nas cidades, mesmo que trabalhadores ou estudantes temporários.
Na seara judicial, a APIB, a COIAB, o Conselho Terena e o Aty Guasu, em conjunto com várias outras entidades indigenistas (Conselho Indigenista Missionário
CIMI, ISA – Instituto Socio Ambiental e Centro de Trabalho Indigenista - CTI, dentre outras), lograram êxito ao peticionar ao STF solicitação de suspensão nacional de
todos os processos e recursos judiciais que tratem de demarcação de TIs até o final da pandemia de Covid-19 ou até o julgamento final do Recurso Extraordinário (RE) nº 1017365, cuja repercussão geral foi reconhecida no STF28. No dia 6 de maio, o ministro relator Edson Fachin deferiu o pedido feito pelas organizações indígenas e indigenistas, suspendendo todas as ações de reintegração de posse movidas contra comunidades indígenas, enquanto perdurar a pandemia29. Ao deferir a suspensão, o ministro relator salientou que, em razão da pandemia, que não tem prazo para acabar, a OMS vem orientando governos e populações a adotar o isolamento social, entre outras medidas, a fim de impedir a disseminação da infecção. O ministro Edson Fachin ainda frisou que os indígenas sofrem há séculos com doenças responsáveis, muitas vezes, por dizimar etnias inteiras pelo interior do país, diante da falta de preparo do seu sistema imunológico.
No campo político legislativo, o movimento indígena participou ativamente da tramitação do Projeto de Lei (PL) nº 1.142/2020, de autoria da deputada professora Rosa Neide (PT/MT) e que teve como relatora a deputada federal Joênia Wapichana (Rede-RR). Esse PL foi analisado e votado na Câmara dos Deputados no dia 21 de maio de 2020, e previu a instituição de medidas para prevenir a disseminação de Covid-19 junto aos povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais. Um projeto substitutivo foi apresentado pela deputada Joênia, preceituando que as medidas de saúde farão parte de um plano emergencial coordenado pelo governo federal, mas deverão ser adotadas também outras ações para garantir segurança alimentar. As ações previstas no PL que foi aprovado na Câmara e no Senado incluíam medidas voltadas aos indígenas aldeados ou que vivem fora das suas terras em áreas urbanas ou rurais e aos povos indígenas oriundos de outros países e que estejam provisoriamente no Brasil.
No que tange à lei que fora aprovada, não há dúvida que muitas ações contemplam as necessidades concretas dos povos indígenas. Entretanto, houve
28 Também conhecido como “Caso Xokleng”, este processo é um caso importante para os povos indígenas, pois tem repercussão geral reconhecida pelo STF, e a decisão que se tomar servirá de diretriz para todas as terras indígenas do país.
29 “A suspensão nacional abrange, entre outros casos, ações possessórias, anulatórias de processos administrativos de demarcação e recursos vinculados a essas ações, sem prejuízo dos direitos territoriais dos povos indígenas, até o término da pandemia da Covid-19 ou do julgamento final recurso, o que ocorrer por último” (STF. Relator suspende tramitação de processos sobre áreas indígenas até fim da pandemia. 06 de maio de 2020. Disponível em:
<http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=442822&ori=1>. Acesso em 23 de fevereiro de 2022.
manifestação por parte do movimento indígena em relação ao dispositivo que trata dos povos isolados, que foi inserido no último momento da votação, a partir de lobby feito por deputados ligados aos interesses da bancada evangélica. A COIAB publicou nota de repúdio contra o que classificou como uma tentativa de legalizar missões religiosas em territórios ocupados por indígenas em isolamento voluntário. Segundo a nota, tal ação foi uma “inclusão sorrateira [...], ao autorizar a entrada de terceiros e de garantir a permanência de missionários nestes territórios durante a pandemia, claramente coloca em risco a vida dos povos em isolamento voluntário”.30 A entidade concluiu afirmando que historicamente os missionários proselitistas têm invadido territórios indígenas e forçado o contato com os povos em isolamento voluntário, ferindo, assim, os princípios de autodeterminação e autonomia aos povos indígenas isolados que são garantidos pela legislação brasileira através da política do não contato. O PL foi aprovado no Congresso Nacional e sancionado com vetos pelo presidente Jair Bolsonaro. O dispositivo que permitiu a permanência de missionários nas TIs com presença de povos isolados está sendo questionado pela APIB no STF por meio da ADI nº 6622, sob relatoria do ministro Luís Roberto Barroso.
Os povos indígenas, por meio do movimento organizado, têm demonstrado uma profunda capacidade de resistência frente a violações em diferentes contextos. Como vimos até aqui, em tempos de pandemia de Covid-19 isso não foi diferente. O plano de enfrentamento elaborado a partir da Assembleia Nacional da Resistência Indígena nos indica esse caminho. Num cenário de crescentes e inaceitáveis ataques aos direitos dos povos indígenas, a APIB elaborou esse plano, que consolidou 58 propostas apresentadas pelas lideranças de base. O plano articula ações emergenciais, judiciais, internacionais e de comunicação. As propostas buscaram evidenciar e construir respostas à omissão do Estado brasileiro no enfrentamento da pandemia de Covid-19 junto aos povos indígenas, que se agravou num cenário de desmonte dos direitos indígenas e da política indigenista, e de enfraquecimento de órgãos e instituições públicos responsáveis pela implementação e execução de assistência aos povos indígenas, a proteção de seus territórios e promoção de seus direitos.
30 COIAB. Nota de repúdio contra a tentativa de legalização de missões religiosas em territórios ocupados por indígenas em isolamento voluntário. 21 de maio de 2020. Disponível em:
<https://coiab.org.br/conteudo/1590113259203x242154533360238600>. Acesso em 23 de fevereiro de 2022.
Os quatro objetivos que demandavam ações emergenciais, judiciais, internacionais e de comunicação, pautados pelo movimento indígena, foram:
cobrar respostas adequadas bem como medidas urgentes para salvar vidas indígenas e garantir a subsistência em todo o território nacional, sem discriminação, assim como medidas estruturantes considerando o impacto prolongado da pandemia, e a participação e consulta aos povos indígenas por parte dos órgãos públicos responsáveis pelas políticas de atendimento aos povos indígenas;
denunciar a situação de genocídio dos povos indígenas que se agrava no Brasil e exigir em todas as instâncias cabíveis todas as medidas preventivas possíveis, bem como a responsabilização do Estado brasileiro frente à omissão que ameaça a existência de indivíduos, comunidades, povos e culturas inteiras, seja com relação a ações de saúde, de assistência e/ou de proteção das terras indígenas contra a entrada de invasores e outras pessoas não- indígenas que podem transmitir a doença;
monitorar os casos de Covid-19 entre os indígenas, denunciando a subnotificação de casos e colaborando com informações, orientações e boas práticas que ajudem os povos indígenas a se manterem protegidos em isolamento social em suas casas, aldeias e territórios e a adotar medidas de prevenção e de cuidado contra a Covid-19, evitando a circulação fora das terras indígenas; e
reforçar a articulação e solidariedade de aliados e parceiros da APIB, reunindo conhecimentos e contribuições médicas, técnicas, artísticas, logísticas e financeiras para o enfrentamento da Covid-19, com ampla visibilidade nacional e internacional da situação dos povos indígenas, de nossa resistência e luta.
O ponto central do debate foi recolocado pelos povos indígenas: “a mãe terra enfrenta dias sombrios. O mundo atravessa sua maior crise social, econômica e política provocada pela pandemia do Covid-19, colocando a humanidade em profunda reflexão e resistência pela preservação da vida” (APIB, 2020). Mais uma vez foi preciso refletir sobre o importante papel que os territórios tradicionais cumprem no equilíbrio da humanidade. Assim, o documento final da APIB revela um sentido preciso, ao expressar que “é hora de refletir sobre o modo de vida que temos cultivado até os dias atuais, pois as diversas crises e catástrofes ambientais são fruto de ações de fortes impactos no meio ambiente que nos levam ao avanço do aquecimento global, à perda de vegetação e a profundas mudanças na natureza” (APIB, 2020). O alerta de hoje e sempre, os povos originários têm nos dado: a relação estabelecida com a mãe terra precisa ser repensada urgentemente.
O texto nos oferece um sobrevoo muito rápido da situação dos povos indígenas no atual contexto político. São desafios que já estavam postos, mas que com o advento da pandemia de Covid-19, piorou sobremaneira a vida dos povos e comunidades indígenas. Não resta dúvida que as medidas estatais que afetam os povos originários estão alinhadas a interesses políticos e econômicos que recaem sobre tais territórios e seus recursos naturais. A violência e a sistêmica negativa do direito desses povos, especialmente o direito à terra, estão a serviço do modelo de desenvolvimento que não contempla os povos indígenas e suas formas próprias de ver e entender o mundo. A pandemia escancarou essa constatação que há muito tempo é denunciada pelo movimento indígena.
Por outro lado, resta clara a forma como os indígenas se movimentam, por meio de suas organizações e formas próprias de incidir no âmbito político e judicial. Este é um elemento que deve ser levado em consideração, pois tais condutas são capazes de apontar para caminhos possíveis de serem percorridos na defesa da luta pela vida. Os indígenas são agentes sociais em constante interação com as lutas sociais. Portanto, apoiar seu protagonismo e forma própria de fazer política é ato de resistência qualificada.
Por fim, é preciso olhar atento e contínuo (vigilante) aos sinais e pautas que o movimento indígena propõe à sociedade envolvente. Os efeitos sentidos na aldeia, por meio da mãe terra, são sinais que antecedem o “mal-estar” da sociedade como um todo. As lutas são indissociáveis.
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V.20, nº 41, 2022 (jan-abr) ISSN: 1808-799 X
Regina Bruno2
Resumo
Reflete sobre o processo de construção da hegemonia do patronato rural e do agronegócio no Brasil nas últimas décadas. Indica que a busca de uma coesão mais ampla se respalda em vários aspectos: a elaboração de reivindicações unificadoras; o fortalecimento dos espaços de representação de interesses; a escolha de aliados confiáveis; a construção de uma imagem de si portadora de capacidades e potencialidades necessárias ao desempenho da hegemonia; o empenho na elaboração de uma retórica de legitimidade e de poder na qual todos se identifiquem; e a ofensiva contra os adversários políticos e de classe – ações e discursos que visam sobretudo à violência física e simbólica e à desqualificação de pessoas, de grupos e de movimentos sociais que questionam as posturas do patronato rural e de seus aliados e estabelecem limites à construção da hegemonia patronal rural e do agronegócio.
Palavras-chave: agronegócio; patronato rural; hegemonia.
EL PROCESO DE CONSTRUCCIÓN DE LA HEGEMONÍA AGROINDUSTRIAL EN BRASIL: RECURRENCIAS HISTÓRICAS Y HABITUS DE CLASSE
Resumen
Reflexiona sobre el proceso de construcción de la hegemonia Del mecenazgo rural y la agroindústria en Brasil en las últimas décadas. Indica que la búsqueda de una mayor cohesión se sustenta em varios aspectos: la elaboración de demandas unificadoras; el fortalecimiento de los espacios de representación de intereses; elegir aliados de confianza; la construcción de una imagen que llevelas capacidades y potencialidades necesarias para el desempeño de la hegemonía; el compromiso con la elaboración de una retórica de legitimidad y poder en la que todos puedan identificarse y la ofensiva contra los adversarios políticos y de clase. Es decir, acciones y discursos que apuntan sobre todo a la violencia física y simbólica y a la descalificación de personas, grupos y movimientos sociales que cuestionan las posturas Del mecenazgo rural y sus aliados y establecen límites a la construcción Del mecenazgo rural y la hegemonía agroindustrial.
Palabras llave: agroindustria; mecenazgo rural; hegemonía.
1 Artigo recebido em 13/12/2021. Primeira avaliação em 12/01/2022. Segunda avaliação em 08/02/2022. Aprovado em 21/02/2022. Publicado em 28/03/2022. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v20i41.52566.
2 Doutora em Ciências Sociais pela Unicamp. Mestre em Sociologia pela UnB. Diplome de d’ Étude. Approfondies pela Université de Paris III IHEAL-Paris III. Professora associada do Programa de Pós- graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA/DDAS/UFRRJ). E-mail: regina_bruno@yahoo.com.br.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/1929904545619303. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6675-8082.
THE CONSTRUCTION PROCESS OF AGRIBUSINESS HEGEMONY IN BRAZIL: HISTÓRICAL RECURRENCES AND CLASS HABITUS
Abstract
It reflects on the process of construction of the hegemony of rural patronage and agribusiness in Brazil in recent decades. It shows that the search for greater cohesion is supported by several aspects: the elaboration of unifying demands; the strengthening of interest representation spaces; choosing trusted allies; the construction of na image that carries the capabilities and potentials necessary for the performance of hegemony; the commitment to the elaboration of a rhetoric of legitimacy and power in which everyone identifies and the offensive against political and class adversaries. That is, actions and discourses that aim above all at physical and symbolic violence and the disqualification of people, groups and social movements that question the postures of rural patronage and its allies and establish limits to the construction of rural patronage and agribusiness hegemony.
Keywords: agribusiness; rural patronage; hegemony.
Na dinâmica da construção da hegemonia as classes patronais rurais e agroindustriais, hoje identificadas como “o agronegócio”, investem prioritariamente em dois principais campos de atuação política: a união e identidade de interesses entre seus pares e aliados; e a ofensiva contra todos(as) aqueles(as) que eles consideram seus adversários(as) políticos(as) e de classe.
O artigo tem como objetivo refletir sobre esse processo. Procuramos mostrar que a hegemonias se apoia em uma diversidade de ações e de propósitos, dentre eles a defesa de pleitos e reivindicações unificadoras do conjunto do patronato rural e do agronegócio; a ampliação e fortalecimento dos espaços de representação de interesses; a eleição de aliados confiáveis; a construção de uma imagem de si e da classe como portadoras de capacidades, qualidades e potencialidades necessárias ao desempenho da hegemonia realimentadas do sentimento de superioridade. E na elaboração de uma retórica de legitimidade e de poder na qual todos(as) se identifiquem, guiada por uma identidade ruralista, cujos fundamentos consistem na visão da propriedade fundiária como direito absoluto situado acima das regras sociais e na violência como prática de classe. São habitus que moldam a concepção de mundo das elites patronais rurais e do agronegócio, orientam discursos e práticas e procuram definir o perfil do processo de construção da hegemonia.
Habitus é aqui entendido como sistema de predisposições socialmente constituídas que orienta o pensar e o agir. Segundo Bourdieu, o habitus funciona como saber social incorporado. São “estruturas estruturadas e estruturantes. (...) E constituem o princípio gerador e unificador do conjunto das práticas e das ideologias
características de um grupo de agentes” (BOURDIEU, 1987, p. 191). O habitus é sempre produto de uma aquisição pretérita, que pode ser feita, seja através da família, seja através do convívio em determinados grupos sociais, mas, sobretudo no sistema de ensino.
O habitus é também concebido, por Bourdieu, como “objetividade interiorizada”, ou seja, algo adquirido de fora para dentro e, ao mesmo tempo, “interioridade exteriorizada”, como predisposição para agir em função daquele habitus. São basicamente as situações em que o sujeito ou os grupos sociais trazem o subjetivo para fora. Já que o habitus possui essa dupla dimensão e como todo agente social é portador de um habitus, então, o consenso, para Bourdieu, seria a confluência, não necessariamente de habitus, mas desse duplo movimento. Nesse sentido, o consenso em Bourdieu difere do conceito de hegemonia em Gramsci para quem o consenso passaria por uma questão modal: a produção da hegemonia. No entanto, os dois têm em comum a ideia de que o consenso é sempre construído.3
Bourdieu, ao operar a noção de habitus, também diferencia a história incorporada da história reificada. Esta última significaria, como o próprio nome aponta, a história materializada em emblemas e signos. Já a história incorporada seria a que todo sujeito social traz dentro de si, adquirida por vivências e representações pretéritas (MENDONÇA,1993).4
Antes de Bourdieu, Norbert Elias já havia recorrido à noção de habitus, entendido como saber social incorporado ou estrutura da personalidade social dos indivíduos. O conceito de habitus em Elias foi pensado sobretudo com o objetivo de contornar a dicotomia indivíduo e sociedade. E o habitus permitia fazer a ligação entre as duas dimensões. Elias vê na individualidade “a expressão da maneira particular, bem como o grau, em que a forma de comando psíquico de um indivíduo se distingue
3 Para Bourdieu o consenso é sempre construído a partir das relações entre os agentes de um mesmo campo em função do poder simbólico, do poder de conhecer e de construir o mundo. E a condição de existência do poder simbólico está exatamente no fato de ser ignorado, o que significa ser reconhecido: o efeito de des-conhecimento do poder simbólico é, ao mesmo tempo, a condição de seu reconhecimento, diz Bourdieu (Bourdieu,1998).
4 Comentando sobre o assunto durante uma aula aberta no CPDA-UFRRJ Sonia Mendonça afirma que em certo sentido Bourdieu opera com os mesmos pressupostos de Marx do 18 Brumário quando afirma que ‘os mortos comandam os vivos’. Entretanto, no caso de Bourdieu, os que comandam os vivos no sentido da história incorporada são, simultaneamente, agentes de fantasmas e ao mesmo tempo atores presentes. Ou seja, os indivíduos e grupos sociais atuariam esses fantasmas pelo habitus e, nesse processo, os transformariam no seu próprio devir.
dos outros (...). De sorte que a sociedade não é somente o fator de caracterização e de uniformização, é também o fator de individualização” (ELIAS,1994, p. 51).
Cada pessoa singular, por mais diferente que seja de todas as demais, tem uma composição específica que compartilha com outros membros da sociedade. Possuem um habitus. Esse habitus, a composição social dos indivíduos, como que constitui o solo de que brotam as características pessoais mediante as quais um indivíduo difere dos outros membros de sua sociedade (...). Alguma coisa brota da linguagem comum que o indivíduo compartilha com outros e que é, certamente, um componente do habitus social – um estilo mais ou menos individual inconfundível que brota da escrita social (ELIAS,1994, p. 151-171).
Elias enfatiza que o habitus, apesar de se remeter ao passado, não é estático, implica continuidades e rupturas: “O habitus muda com o tempo, precisamente porque as fortunas e experiências de uma nação (ou de seus agrupamentos constituintes) continuam mudando e acumulando-se” (ELIAS, 1997, p. 9).
Norbert Elias é essencialmente o pensador da interdependência dinâmica entre os processos sociais – o fio condutor do conceito de “configuração social”. Tal postura lhe possibilita incorporar à reflexão uma conjunção de fatores sociais e políticos, conjunturais e estruturais como, por exemplo, o peso da dinâmica de constituição das classes sociais e dos Estados nacionais no processo de formação do habitus. Ao mesmo tempo, lhe permite operar com várias dimensões e manifestações advindas do habitus, tais como as noções de “habitus partilhado”, “habitus nacional” e “habitus tradicional”; o “efeito trava” de determinados habitus em momentos de mudanças sociais não programadas e a imensa dificuldade em se erradicar ou denunciar a desigualdade social, quando naturalizada pelo habitus. Para Elias, quanto mais a desigualdade se torna natural pelo habitus, mas ela parece “normal”, e logo difícil de erradicar e até de denunciar
Por sua vez, a ofensiva patronal rural e do agronegócio contra os adversários políticos e de classe, consiste em lançar mão dos mais variados meios e modos, ações e discursos que visam principalmente à desqualificação de pessoas, de movimentos sociais e seus aliados que lutam por direitos, reivindicam a democratização da terra, defendem o território como lugar de pertencimento e de identidade, são a favor da preservação do meio ambiente e são contra a violência.
Eis o cerne da questão: a construção da hegemonia é indissociável das relações entre adversários políticos e de classe (GRAMSCI, 1984). Dessa perspectiva, no Brasil, como veremos, mesmo diante de uma desigualdade extremada e excludente, a presença ativa de atores e de movimentos sociais populares que unidos questionam o projeto do agronegócio e reivindicam direitos muito contribuiu para estabelecer limites à hegemonia patronal rural e do agronegócio – essencial ao florescimento de uma contra-hegemonia.
Como diria Norbert Elias (2001), para quem o poder é uma característica estrutural das relações humanas, ninguém possui um poder absoluto e ninguém é destituído completamente de poder. “O próprio rei é prisioneiro da etiqueta e das chances de prestígio”.
As relações entre grupos sociais dominantes se, por um lado, são marcadas por tensões, antagonismos, rivalidades e disputas, por outro, historicamente prevalecem acordos, alianças, afinidades eletivas, relativizações de posições e reafirmação de lealdades como garantia da reprodução econômica, social e política e quando se veem face a face com seus adversários políticos e de classe. Um primeiro estratagema do agronegócio é a prioridade na definição de pleitos e de reivindicações a partir dos quais todos(as) se identifiquem e que contribuam para relativizar as divergências e diferenças existentes entre os setores e grupos.
A defesa do monopólio da terra e da concentração fundiária historicamente concebida como direito absoluto sem limites e sem fronteiras, fundamentada no “casamento” entre a renda fundiária e o lucro do capital (MARTINS, 1980, 1994), apresenta-se como principal bandeira na construção da união, identidade e hegemonia das classes e grupos dominantes do Brasil.5 Historicamente é quando as divergências e contradições entre classes e grupos dominantes são relativizadas e transformam-se em “um lamento menor”, como afirma um dos entrevistados patronais
5 A posição dos grandes proprietários de terra, empresários rurais e seus aliados contra a democratização da propriedade da terra foi um dos motivos do golpe empresarial militar de 1964. Naquela conjuntura, as lutas por terra e a reivindicação de uma reforma agrária “na lei ou na marra”, principal bandeira das Ligas Camponesas, ameaçavam o projeto das elites patronais rurais, além de unificar o conjunto das lutas pelas reformas de base do governo João Goulart. Sobre as Ligas Camponesas, ver: BASTOS,1984; NOVAES,1997; MEDEIROS,1989; AZEVEDO, 1982.
ligado às associações por produto e multiproduto (BRUNO; SEVÁ; CARNEIRO, 2008).6 A defesa da concentração da terra é o sustentáculo do pensamento conservador; respalda um ethos da propriedade fundiária; constitui-se em um dos critérios na definição dos adversários e aliados; alimenta uma concepção de mundo marcadamente ruralista, “justifica” o uso da violência física e simbólica e a criminalização dos movimentos sociais populares (LOPES, 2019) e molda uma concepção de mundo elitista. “Si tienes caballo, eres caballero, se tienes espada, eres guerrero; pero, se tienes tierras, ah. eres rey”, anunciam as elites patronais rurais7
de Ribeirão Preto (SP), cidade conhecida como Califórnia brasileira.8
Durante a Nova República, o temor diante das ocupações de terra pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) e da possibilidade de implementação do I Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA), multiplicam-se as organizações patronais rurais em defesa da propriedade da terra e contra a mobilização dos Sem Terra.9 Ao mesmo tempo foi se conformando, junto às elites patronais rurais e o agronegócio, o argumento de uma reforma agrária concebida como um retorno ao passado – uma política retrógrada e fora do lugar, a desapropriação enquanto sinônimo de miséria e o discurso da incapacidade dos trabalhadores rurais sem terra (BRUNO, 2002, p. 144)
Mais recentemente, a ofensiva patronal rural e do agronegócio concentra-se contra as bandeiras luta e reivindicações dos movimentos sociais de lutas por terra e por direitos e seus desdobramentos como a reforma agrária; pela regularização fundiária e direito ao território dos povos indígenas (FREITAS, 2018; RAUBER, 2021), o reconhecimento das comunidades quilombolas, territórios pesqueiros,10
6 Na Constituinte de 1988 não havia unidade entre os parlamentares ruralistas sobre a nacionalização do subsolo e a proteção da empresa nacional. Entretanto todos(as) votaram contra a reforma agrária juntamente com a maioria dos constituintes que votou com e como se grande proprietário de terra fosse. Sobre o assunto, ver DIAP, 1988.
7 Revista Dirigente Rural, n.7, v. XXIV, julho de 1985.
8 "’Califórnia brasileira’ era o apelido de Ribeirão Preto, devido à combinação de uma economia baseada no agronegócio e alta tecnologia, riqueza e tempo ensolarado durante todo o ano. Hoje a cidade é conhecida como a ‘Capital do Agronegócio’ pela sua ótima produtividade nesse setor”. Disponível em: https://www.fearp.usp.br/international/sobre/ribeirao- preto.html#:~:text=%22Calif%C3%B3rnia%20brasileira%22%20era%20o%20apelido,sua%20%C3%B 3tima%20produtividade%20nesse%20setor.
9 União Democrática Ruralista (UDR); Pacto de União e Resposta Rural (PUR); Comando Democrático Cristão (CDC); Pastoral da Propriedade; Milícia Rural da Região do Araguaia, bem como inúmeras Associações de Defesa da Propriedade, dentre outros (BRUNO, 2002, p. 141). Sobre o tema ver, também, RUA, 1989.
10 Sobre territórios pesqueiros, ver: “Educação popular e povos tradicionais”. Licenciatura em Educação do Campo. LEC-UFRRJ – Diálogos de LEC: 100 anos de Paulo Freire. Disponível em:
quebradeiras de coco, ribeirinhos, faxinaleiros, comunidades de fundo de pasto, entre outros grupos sociais (BRUNO, 2021, p. 462). Um dos caminhos para enfrentar essa situação, é a ampliação das instancias de representação da classe. Por exemplo, a Associação dos Produtores Rurais de Mato Grosso (APR-MT) e o Movimento Nacional dos Produtores (MNP) foram criadas como resposta às ocupações de terra no momento da vitória de Luiz Inácio da Silva à Presidência da República (BRUNO; SEVÁ; CARNEIRO, 2008). Segundo a Abag, “a luta do campesinato” e “a existência de um pensamento crítico essencialmente campesino e ideologizado sem a contrapartida de uma massa crítica que expressasse os interesses patronais”, pesou muito na criação da entidade (BRUNO; SEVÁ; CARNEIRO, 2008, p. 81). Como desdobramentos da defesa absoluta da concentração fundiária acima das leis a das normas, o argumento é que a função social da terra gera insegurança e instabilidade a quem está produzindo.
Hoje, o empenho no fortalecimento da representação de interesses patronais rurais e do agronegócio é uma das alternativas diante das críticas ao monopólio fundiário e à concentração de terras que ressurgem nas reivindicações em defesa do território dos povos indígenas, quilombolas e populações pesqueiras, na luta pela preservação do meio ambiente e por direitos dos assentados, dos Sem Terra e das demais comunidades tradicionais, e refundam a problemática fundiária em nosso país. Mesmo quando as elites patronais rurais, o agronegócio e seus intelectuais orgânicos insistem em declarar a inexistência e/ou superação de uma questão agrária no Brasil, as reivindicações dos movimentos sociais e a ampliação do campo de conflitividade existentes expressam e reafirmam a atualidade da questão da terra no Brasil, dão visibilidade aos artifícios políticos do patronato e desvendam seus temores diante desse processo de luta por terra e direitos.
A eficácia da dominação simbólica é tão forte que nunca é demais relembrar que a atualidade da questão da terra se, de um lado, é a condição fundante da união de todos e a relativização das divisões, das disputas, das contradições e das diferenças existentes entre classes e grupos dominantes, de outro, constitui o calcanhar de Aquiles na construção da hegemonia do agronegócio hoje no Brasil, porque recria e potencializa uma contra-hegemonia. Outros pleitos também
https://www.facebook.com/Lecrural/videos/439462381129805/?comment_id=439586081117435¬if
_id=1638315732391637¬if_t=feedback_reaction_generic&ref=notif.
contribuem para o fortalecimento da identidade de interesses do conjunto do patronato rural e do agronegócio. Por exemplo, a rolagem ou o perdão das dívidas referente a créditos oficialmente disponibilizados (SAUER, 2006; GRAZIANO, 2005), projetos de lei demandando a isenção do ITR, isenção de IPTU para os templos evangélicos, unindo parlamentares ruralistas e evangélicos, isenção do PIS/Pasepe da contribuição Confins, isenção de tributos de ração para bovinos, que conta com o apoio de vários segmentos integrantes das classes e grupos patronais dominantes. Ou, então, contra os direitos trabalhistas.11 Entretanto, são interesses negociáveis. Mas, quando a pauta questiona a defesa do monopólio e da concentração fundiária, não há negociação possível.
Enfim, é fundamental não esquecermos que, no Brasil, o modelo do agronegócio reforça a estrutura de dominação das elites (e) mistura a modernidade técnica com o atraso das relações sociais (SAFATLE; PARDINI, 2004, p. 42).
Guilherme Delgado avalia:
A realidade do agronegócio brasileiro é, na verdade, uma grande contradição, porque realiza a associação do grande capital agroindustrial e financeiro com a grande propriedade fundiária, perseguindo um projeto de expansão agrícola e territorial (lucro + renda da terra) de caráter fortemente excludente: dos índios, da reforma agrária, do emprego da força de trabalho não qualificada, do meio ambiente protegido (...). Macroeconomia à parte, o velho tripé – pata de boi, esteira do trator, rifle do jagunço – que pavimentaram a modernização conservadora do período militar poderá ser relançado nu e cru se, à sociedade se impuserem todos os ônus e à elite todos os bônus deste estranho negócio do agro. (2004, p. 1-2).
A organização e a representação de interesses é considerada pelas elites patronais rurais e pelo agronegócio fundamentais na dinâmica das relações de poder, de dominação e na construção da hegemonia (POMPEIA, 2020). É o lugar privilegiado de intensificação de laços econômicos, sociais e políticos e a reafirmação de valores e de construção de projetos de vida.
11 Na Constituinte de 1988, a grande maioria dos parlamentares ruralistas votou contra a redução da jornada de trabalho, a estabilidade, a Comissão de Fábrica, o direito de greve, entre outras matérias (DIAP,1988).
Um dos traços históricos das classes e grupos dominantes no Brasil é a multirrepresentação caracterizada por uma intrincada rede de relações políticas, sociais, econômicas, entre outras, que tanto incorpora as entidades formais como espaços informais e seus porta-vozes. Destaca-se a filiação nas estruturas de representação sindical patronal legal (Confederação, Federações e Sindicatos), o que automaticamente lhes garante a presença em vários órgãos da administração pública: fóruns, conselhos deliberativos, ministérios, institutos etc. (GALVÃO, 2020). Além da presença ativa nas associações por produto e multiproduto que se constituíram juntamente com a modernização da agricultura e a formação dos Complexos Agroindustriais (CAIs) e das cadeias produtivas crescentemente globalizadas12 – locus empresarial de grande importância política. E também nos espaços tradicionais de representação como a Sociedade Rural Brasileira (SRB), a Sociedade Nacional de Agricultura (SNA) e a Organização das Cooperativas do Brasil (OCB).13
Tais entidades de representação foram e são importantes espaços de representação na defesa dos interesses patronais e na construção da hegemonia do agronegócio, mas a Associação Brasileira do Agronegócio (Abag) teve um significado especial ao preparar o terreno e pavimentou o caminho para a consolidação ideológica e política do agronegócio. Criada em maio de 1993, numa conjuntura que anunciava a possibilidade de uma revisão constitucional, a Abag irrompe no cenário político nacional reivindicando para si uma “missão” e uma “visão”, conscientizar os segmentos decisivos da nação para a importância do agronegócio e constituir-se como a instituição representativa dos interesses comuns aos agentes das cadeias agro econômicas, de modo que possam expressar-se de maneira harmônica e coesa nas questões que lhes são comuns. Ao mesmo tempo se propunha a elevar a agricultura ao nível estratégico, contribuir para a reconstrução de um novo pacto político do conjunto do empresariado em torno da definição e novas alternativas de desenvolvimento e formalizar um espaço próprio do agronegócio brasileiro (BRUNO, 1997).
12 Dentre as mais representativas destacam-se: Associação Brasileira do Agronegócio (Abag), Associação Brasileira de Citricultura (Abecitrus), Associação Brasileira de Frango (Abef), Associação Brasileira de Óleos Vegetais (Abiove), Associação Brasileira da Indústria de Fumo (Abifumo), União da Agroindústria de Cana-de-açúcar (Única), Conselho Nacional do Café (CNC), Associação dos Produtores de Soja (Aprosoja), União Brasileira de Avicultura (UBA), Associação Brasileira dos Criadores de Zebu (ABCZ), Associação Nacional de Difusão de Adubos (Anda), Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e Equipamentos (Abimaq).
13 Sobre a CNA, ver GALVÂO, 2020. Sobre OCB, ver MENDONÇA, 2005.
Estava se constituindo com a criação da Abag uma retórica que procurava produzir novos símbolos e novas identidades políticas e visava homogeneizar, sob um mesmo código – o do agribusiness e o sistêmico –, todos os agentes, ações, instituições, interesses e processos. E, para isso, era fundamental que todos (elites empresariais rurais e grupos dominantes) se unissem e jogassem as mesmas regras do jogo. O encadeamento de tudo e de todos seria a condição para o êxito do agronegócio.
Três aspectos marcam a entidade desde a sua criação: a preocupação com a produção de bens simbólicos com vistas ao fortalecimento político; a busca incessante pela formalização de um espaço próprio de representação para o agribusiness brasileiro (fóruns, comissões, colóquios, debates, presença na Organização Mundial do Comércio – OMC, entre outros eventos) e prioridade na elaboração de uma proposta estratégica de desenvolvimento.14 São também espaços de representação política e da hegemonia, as mobilizações de ruas, como o tratoraço (CARNEIRO, 2008; GRAZIANO, 2005), o caminhonaço, o movimento Vistoria Zero15 (DA ROS, 2007), o Maio Verde em reação ao Abril Vermelho,16 as caminhadas, as manifestações em frente ao Congresso Nacional em momentos emblemáticos de votações de “interesse da classe”, como argumentam na mídia. Além das feiras agropecuárias e Agrishow,17 dentre outros.
Ainda como parte da construção da hegemonia, há um acordo implícito pela garantia de permanência de antigas lideranças patronais na instancias de representação da classe. Pessoas portadoras de um capital social e político adquirido no decorrer de suas atividades e experiências transformam-se em conselheiros “perenes”.
14 Sobre a Abag, ver: BRUNO, 1997; SEVERINO, 2004; MORUZZI, 1996; LACERDA, 2009; MENDONÇA, 2019; FERNANDES, 2021.
15 Em 1998, pecuaristas gaúchos organizados nos Sindicatos Rurais inauguraram uma forma de enfrentamento e reação às vistorias para verificação do cumprimento da função social das propriedades rurais realizada pelo Instituto de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Mediante a formação de barreiras, com a participação direta dos pecuaristas, eles impediam a presença dos técnicos do Incra em suas propriedades. Esse movimento foi denominado de “movimento vistoria zero” (...) fomentando bastante a unidade do produtor rural neste estado contra esse tipo de ação governamental. Tanto assim que, a partir desse momento, a reforma agrária praticamente não mais vingou no estado do Rio Grande do Sul por meio da desapropriação de imóveis rurais (DA ROS, 2007, p. 221-222).
16 Em 17 de abril de 1996: 19 trabalhadores sem-terra são assassinados pela Polícia Militar do estado do Pará. O massacre transformou-se em símbolo de luta e representação dos conflitos agrários.
17 A Agrishow é essencial à valorização do modelo do agronegócio e de integração entre seus agentes, pois tanto contribui para a construção do consenso como se constitui em espaço para determinadas demandas e reivindicações (MENDONÇA, 2019, p. 176). Ver também LACERDA, 2009.
“Lideranças que saíram das cúpulas e das presidências das federações e dos sindicatos patronais rurais (...) e como dispõem de um imenso capital político acumulado durante anos e conhecem os corredores informais do Estado, ainda detêm um expressivo poder de representação. São os representantes da “boa estirpe rural”, argumentam. Sabem-se eficazes na defesa do monopólio fundiário e acreditam na “segurança” da lei e na “capitulação” dos tribunais que lhes garantem o direito ao monopólio da terra. Como diria um de nossos entrevistados, são de sua responsabilidade “cuidar do substantivo: fundus, humus, miserário”. Dos adjetivos, cuidam os outros. (BRUNO, 2002, p. 145).
Vemos também a participação crescente de representantes das elites patronais rurais e do agronegócio em Frentes Parlamentares18 que foram se constituindo e se multiplicando nas últimas décadas como espaços institucionais de pressão, de negociações, de troca de favores, e de poder. Identificamos ainda algumas práticas políticas consideradas importantes à coesão e à identidade de interesses patronais rurais e do agronegócio: a defesa do “parlamentar militante”, corporativo, que se situa acima dos programas partidários e a valorização da representação direta da classe nas instâncias institucionais e políticas do Estado. Por exemplo, figuras como Ronaldo Caiado, Blairo Maggi, Katia Abreu, Homero Pereira e Tereza Cristina, Roberto Rodrigues, Onyx Lorenzoni, Nabhan Garcia.
Observamos, ainda, como prática patronal rural a presença de forças extraparlamentares sobrepondo-se às funções parlamentares. Por exemplo, no decorrer dos debates sobre reforma agrária na Constituinte de 1988, Ronaldo Caiado, pela União Democrática Ruralista (UDR), e Roberto Rodrigues, pela Organização das Cooperativas do Brasil (OCB), instalados em um dos gabinetes do Congresso Nacional, participaram ativamente das negociações.
Mais recentemente, a mídia chamou a atenção para reuniões da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) numa mansão do Lago Sul em Brasília, não por acaso denominada de “o endereço do poder agro”, nas quais são debatidas e deliberadas algumas tramitações sem a presença de parlamentares integrantes de comissões do Congresso Nacional:
18 Frentes Parlamentares são “associações suprapartidárias” compostas por “pelo menos um terço” do Poder Legislativo Federal. Têm como objetivo “promover o aprimoramento do legislativo sobre determinado setor da sociedade”. Ato da Mesa no 69, de 10 de novembro de 2005 (BRASIL, 2005).
Todas as terças, a partir do meio-dia, o entra e sai de carros na mansão 19 do conjunto 08 da QI 10 do Lago Sul, bairro nobre de Brasília, agita a vizinhança. Deputados, senadores, dirigentes de instituições do agronegócio e jornalistas se encontram na mansão para, saboreando uma deliciosa comida caseira, discutir temas que preocupam o setor e a economia do País. O tradicional almoço promovido pela Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) é um dos principais pontos de encontro do poder do agronegócio em Brasília. Ali se reúnem parlamentares de quase todos os partidos, ministros de Estado, dirigentes de entidades setoriais, produtores e empresários. Até presidentes da República já passaram pela mansão para participar do convescote. Esse pedacinho do Lago Sul poderia até ser batizado de “Agro Sul”, por abrigar boa parte do PIB do agronegócio na capital federal. (BRUNO, 2021, p. 464).
Como parte da construção da representação de interesses e da hegemonia há também uma grande afinidade entre as Frentes Parlamentares da Agropecuária, Evangélica e da Segurança, mais conhecidas como “Bala, Bíblia e Boi”, que tanto apoiam uma e outra como votam juntas nos temas de interesse comum às três. Bala, Bíblia e Boi simbolizam a política a serviço do negócio, a lógica empresarial alimentando a fé e as indústrias de armas e artefatos orientando as regras de segurança da sociedade. Ou seja, o controle das armas. O controle dos bens da salvação e o controle da terra – elementos fundantes de uma sociedade.
São ainda espaços da política, a participação do patronato rural e do agronegócio em redes de sociabilidade e de poder (Lyons, Rotary, Maçonaria). Igualmente importantes são os portais, sites e redes virtuais com suas orientações políticas e disponibilização de assessorias.
O discurso das elites patronais rurais e do agronegócio foi se constituindo ao longo do tempo em meio a um processo de modernização da agricultura e de mudanças sociais, econômicas e políticas da sociedade brasileira. É uma retórica que tanto incorpora habitus, experiências históricas, normas, valores e costumes, como expressa uma determinada concepção de mundo (GRAMSCI, 1972) e se alimenta do próprio sistema de dominação e de exploração – fundamento das relações de poder. Argumentos que procuram apresentar o agronegócio como sinônimo de sucesso e de êxito. Indissociável da ideia de competência e garantia de geração e de riqueza e
lucro: “o agronegócio é o lucro, é o dinheiro entrando no caixa”, declara um dos representantes da Associação Mato-grossense dos Produtores de Algodão (AMPA).
Dependendo do momento, ora ressaltam o agronegócio como projeto de nação e única alternativa possível, ora denunciam a discriminação do campo pela urbes, ora se vangloriam como “os desbravadores”, portadores da civilização. Em comum, o suposto da ausência de alternativas históricas e a ideia de que para ser moderno é necessário ser grande. Como diria Nazareth Baudel Wanderley, minha mui cara orientadora, a escala como elemento-chave de legitimação ideológica, transformando- se em exigência do agronegócio e encobrindo o caráter conservador da modernidade. Quando necessário, as elites patronais rurais e o agronegócio lançam mão de outras identidades: “Nós, os produtores rurais”, resgatado por Ronaldo Caiado da UDR durante a Nova República em resposta à imagem de improdutividade e à visão do latifúndio como obstáculo estrutural à modernização da agricultura. No portal do Congresso Nacional os parlamentares ruralistas costumam recorrer à identidade nós os “empresários rurais”. E mais recentemente, durante debates sobre a Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas de 2021 – COP26 (FURTADO, 2021), se autoproclamam “produtor rural legal” que cumpre o Código Florestal, combate o desmatamento, tem o nome registrado no Cadastro Ambiental Rural (CAR) e agrega
valor de sustentabilidade.
Uma imagem de si indissociável de outros traços de classe, por exemplo, a ostentação como recurso de poder, possuir uma camionete Hilux, a preferência pelo avião particular ao invés do avião de carreira, considerar o ataque como a melhor defesa, a política como negócio de família (MONTEIRO, 2017) – os Caiado, os Maggi, os Junqueira Junior, expressão de uma sociedade predominantemente clânica e patriarcal, defensora do “entrelaçamento” entre o conservadorismo e a modernidade; entre a antiga e a nova ordem como “traço” constitutivo da realidade brasileira (FERNANDES, 2000; MARTINS, 1994). Além disso, são os arautos do anticomunismo e do antipetismo.
Também contribuem na construção da hegemonia e da reprodução da classe patronal rural e do agronegócio, pessoas, entidades, instituições e intelectuais orgânicos (GRAMSCI, 1972), voltados para os mais variados perfis de assessoria como o Instituto de Estudos do Comércio e Negociações Internacionais (Ícone) e o Instituto Agronegócio Responsável (Ares) (LACERDA, 2009), o Programa de Estudos
dos Negócios do Sistema Agroindustrial (Pensa-USP) (MENDONÇA, 2016; BRUNO, 2021) e mais recentemente o Instituto Pensar Agropecuária (IPA), (POMPEIA, 2021)19 dentre outros.
O Pensa-USP20, um dos principais intelectuais orgânicos do patronato rural – procura fundamentar a defesa do monopólio e da concentração fundiária no Brasil e estruturara crítica ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Segundo seus ideólogos estaríamos vivendo em uma nova fase de desenvolvimento caracterizada pela perda do valor estratégico da terra como fator de produção. A tecnologia se tornou mais relevante que o trabalho e a terra na agricultura. Um momento de mudanças nos direitos de propriedade para quem a ‘complexidade das transações’, recoloca no centro das discussões a análise do direito de propriedade. Portanto, é fundamental a proteção do Estado diante das tentativas de “captura” da propriedade. Além disso, os direitos “informais” são conflitantes com os direitos formais e fonte de insegurança e de risco para quem está produzindo. Defendem que o direito de propriedade deve ser visto sob o prisma do recurso e da riqueza e argumentam que a pessoa só é sujeito de direito quando é proprietário de um bem. Portanto os sem-terra estão excluídos do direito à propriedade fundiária.
Sobre o MST procuram estabelecer alguns argumentos predominantemente desqualificadores: i- é um “grupo de interesse” que apoia a intensificação do conflito em torno de alocações dos direitos de propriedade com fins políticos e lança mão de um discurso anticapitalista; ii- As ocupações de terra são consideradas invasões e não se diferenciam do assalto a mão armada; iii- consideram paradoxal o sucesso do Movimento, já que se trata de um grupo não que não recebe votos ou, aparentemente, fundos que poderiam ser usados para eleger políticos que lhes são favoráveis; iv- e chamam a atenção para o apelo jornalístico dos estrategistas do MST que sabem
19 O Instituto Pensar Agropecuária (IPA), “criado em 2011 por entidades do setor agropecuário com o objetivo de defender os interesses da agricultura e prestar assessoria à Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA). (...) O IPA cumpre o propósito de representar a cadeia agropecuária brasileira junto às três esferas do poder (Legislativo, Executivo e Judiciário), sendo responsável por divulgar informações do que é interesse do setor com transparência e alcance social, para que dessa forma o entendimento do processo seja compreendido pela sociedade”. Disponível em: https://www.pensaragro.org.br/historia-do-ipa/.Sobre o IPA, ver POMPEIA, 2021.
20 “O Pensa é um programa institucional da Fundação Instituto de Administração – FIA, dedicado à Governança e Gestão de Sistemas Agroindustriais, atuante no contexto nacional e internacional do Agronegócio. Tem como missão o desenvolvimento de excelência em pesquisas acadêmicas aplicadas, capacitação e consultoria. (...) A Atuação do PENSA se dá em forma de rede, tendo como parceiros múltiplas lideranças ligadas às organizações atuantes no agronegócio: pesquisadores, consultores, empresários, executivos, formadores de opinião e formuladores de políticas públicas”. Disponível em: http://pensa.org.br/pensa/.
muito bem que um acampamento provisório à beira de uma rodovia ou em frente ao palácio do governo tem maior visibilidade.
A ofensiva ruralista procura por todos os meios e modos controlar os adversários e impedir que suas reivindicações, críticas e questionamentos estabeleçam limites ao projeto de dominação e de exploração patronal rural e do agronegócio e atrapalhe o processo de construção da hegemonia. Como parte da ofensiva contra os adversários e seus aliados, vemos violência física e simbólica como constitutivas da prática de classe.
No período da Nova República, diante da demanda por uma reforma agrária e das ocupações de terras pelo Movimento dos Sem Terra (MST), os integrantes da União Democrática Ruralista (UDR) apregoavam: “Para cada fazenda invadida, um padre morto”.21 E o representante da Federação da Agricultura e Pecuária do Estado de São Paulo (Faesp) anunciava: “Se é para imolar gente, que comecemos logo”(BRUNO, 2002).
Em 2007, o então diretor do Instituto de Estudos do Agribusiness da Abag ao discorrer sobre os movimentos sociais de luta pela terra, argumentava:
Pelo menos você leva para o necrotério as teses campesinas; as teses de reforma agrária; as teses do MST. São teses que... morreu! Não enterraram, estão enterrando; está sendo feito o velório. (BRUNO; SEVÁ; CARNEIRO, 2008, p. 84).
Alceu Moreira, parlamentar ruralista, em audiência pública sobre demarcação de terras indígenas em Vicente Dutra (RS), declarou:
Nós, os parlamentares, não vamos incitar a guerra, mas lhes digo: se fartem de guerreiros e não deixem um vigarista desses [povo kaingang] dar um passo na sua propriedade. Usem todo o tipo de rede. Liguem um para o outro imediatamente e expulsem do jeito que for necessário, a própria baderna, a desordem, a guerra é melhor do que a injustiça”. (PMDB-RS).22
21 Revista Senhor, 3 jun. 1986.
22 Disponível em: http://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2014/02/em-video-deputado-diz-que- indios-gays-e-quilombos-nao-prestam.html.
É também quando lançam mão do critério da superioridade de uns e inferioridade de outros como fundamento para desigualdade, de que nos fala Elias e Scotson (2000) no livro Os estabelecidos e os outsiders. Sociologia as relações de poder. O homem superior é aquele para quem “a miséria e a dor alheias não constituem problema”, diz Renato Janine Ribeiro ao discorrer sobre da sociologia dos afetos (cf. ELIAS, 1990, p. 10).
Atribuir valor humano inferior a outro grupo é uma das armas usadas pelos grupos superiores nas disputas de poder, como meio de manter sua superioridade social. A crença na superioridade humana dos grupos mais poderosos faz com que os menos poderosos sintam-se humanamente inferiores. Mais ainda, em todos esses casos, os indivíduos “superiores” podem fazer com que os próprios indivíduos “inferiores” se sintam, eles mesmos, carentes de virtudes – julgando- se humanamente inferiores. (ELIAS; SCOTSON, 2000, p. 20-23).
No Brasil, um exemplo emblemático de prática coercitiva dá-se no âmbito das relações entre os empregadores e os trabalhadores rurais escravizados. São situações nas quais a humilhação ocupa um lugar privilegiado, dividindo espaço com condições subumanas de trabalho e a retenção de trabalhadores, seja por meio de dívidas fraudulentas contraídas com gato”, arregimentador dos trabalhadores, “...seja pela violência física exercida por pistoleiros, seja ainda pelo isolamento geográfico e dificuldade de locomoção na região” (VIEIRA, 2007).
São considerados adversários das classes patronais rurais e do agronegócio, toda e qualquer pessoa ou grupo social que consiga organizar-se na luta por direitos seja rural ou urbano, no campo ou na cidade, defendam a democratização da propriedade da terra, critiquem o trabalho escravo contemporâneo, denunciem formas brutais de exploração do trabalho,23 reivindiquem uma identidade cultural própria e defendam a preservação e a valorização da cultural dos povos indígenas e comunidades tradicionais, defendam a preservação do meio ambiente, os que lutam pelo território, entre outros. Adversários são o MST – inimigo histórico –, os povos indígenas e as populações tradicionais, que conseguiram destituir a “sacralidade” da tradição –expressão dos privilégios da Casa Grande e da dominação tradicional – ao reivindicar o respeito à ancestralidade, como também são aqueles que não se sujeitam às regras draconianas dos contratos de integração de empresas como a Sadia e a Perdigão, que delegam aos pequenos agricultores a responsabilidade pelos
23 Sobre exploração do trabalho, ver FONTES, 2020.
prejuízos e perdas na criação, e os que questionam o modelo de cooperativismo empresarial instituído pela Organização de Cooperativas do Brasil (OCB)como o fizeram em documento na Constituinte de 1988.
As classes patronais rurais e o agronegócio recorrem a duas principais estratégias de grande eficácia simbólica: a que procura destituir o outro de sua humanidade e a que defende a identidade de interesses entre patrões e trabalhadores, grandes e pequenos proprietários e produtores. Quanto à defesa da suposta identidade de interesses, todos seriam indistintamente discriminados pelo brilho das urbes que não consegue perceber a diferença tecnológica entre uma caneta esferográfica e o ovo na gôndola do supermercado, como diria um dos porta-vozes da Abag (BRUNO; SEVÁ; CARNEIRO, 2008, p.180)
O discurso do agronegócio procura ressaltar que não existiriam diferenças e divergências de propósitos entre seus pares, pois “agronegócio” é um termo de união, é relação entre cadeias, é todo mundo envolvido, já anunciava a Federação da Agricultura e Pecuária do Estado do Mato Grosso (Famato). É aproximar a indústria de quem produz dentro da porteira e de quem compra no supermercado, afirmava um representante da Abag para quem
Agronegócio é a relação entre essas cadeias. É um termo de união; não é um termo de separação. É aproximar a indústria da semente ou da máquina agrícola, desse cara aqui que está produzindo dentro da porteira da terra, lá da gente que está comprando da gôndola do supermercado. Então está todo mundo envolvido nisso. Agronegócio não é aquele conceito, não é o grande; não! A agricultura orgânica está inserida dentro do agronegócio por quê? Porque você tem que fornecer insumos para a agricultura orgânica, que ela pode usar efetivamente. (BRUNO; SEVÁ; CARNEIRO, 2008, p. 185).
É também a terra como lugar onde, indistintamente, todos enterram seus mortos. Um discurso que procura apagar as desigualdades existentes. Por exemplo, enquanto os trabalhadores rurais e pequenos agricultores enterram seus mortos em valas comuns, as elites patronais o fazem em cemitérios privados de suas fazendas, próximos às capelas da Casa Grande.
O discurso da solidariedade entre as classes ora é respaldado na ideia de um Brasil cordial, pacífico e ordeiro, ora é fundamentado na tradição imemorial das relações pessoais e patriarcais por eles considerada “naturalmente” solidária. Dentre as justificativas legitimadoras da solidariedade, a alegação que são todos do campo e
vivem os mesmos problemas. São pressupostos de grande eficácia por força da dominação simbólica, reconhecida por ser desconhecida (BOURDIEU, 1989).
Para o agronegócio, o suposto da solidariedade objetiva o “alinhamento de interesses” e se expressa dos mais variados modos. Dentre eles: a lógica da incapacidade e do despreparo: “Trabalhador rural não se adapta às novas tecnologias”. “É capaz, mas é despreparado”. A negação da alteridade, ou seja, o outro só existe como continuidade e semelhança do agir patronal rural, concebida como expressão da racionalidade capitalista: “O peão não conhece a palavra produtividade; “Trabalhador rural ganha e gasta tudo”; “Não tem cultura de poupança”; “Não tem iniciativa” (VIEIRA, 2007, p. 128).
Trabalhadores rurais também são considerados gente miúda, os indesejáveis, os desclassificados. Gente que gosta de dormir ao relento e pegar chuva, pois faz parte da cultura (OIT, 2011). Ou seja, uma ofensiva que se expressa em práticas e discursos desqualificadores, mas que ao mesmo tempo expõe o medo e o temor das elites patronais rurais e do agronegócio; dá visibilidade à complementariedade existente entre dominação e exploração e sinaliza para amplitude e diversidade da organização e mobilização das classes e grupos sociais dominados e explorados, na luta por direitos. Lutas que estabelecem limites à construção da hegemonia.
Como parte da construção da hegemonia, da dominação e da exploração, o patronato rural e o agronegócio também procuram se apropriar dos cânticos e da ritualista própria dos movimentos sociais de luta por terra, pela proteção do meio ambiente e por direitos. E assim agindo, versam os poemas de Cora Coralina, uma das principais referências do MST,24 e montam mesas com “produtos da terra”. Ou quando Kátia Abreu, ruralista e então presidente da CNA, na tentativa de atacar os adversários com as armas dele cita os seus autores, versa os seus versos, empunha suas palavras de ordem, apoia seus aliados e denuncia suas denúncias. Assim fazendo, busca imprimir novas significações ao discurso crítico – amiúde desqualificador.
24 Ao dirigir-se aos trabalhadores para falar sobre a terra e os perigos do Código Florestal, o Movimento Sou Agro busca se apropriar dos poemas de Cora Coralina (1889-1985), em especial “O cântico da terra” – referência histórica dos movimentos camponeses e populares de luta pela terra e por direitos rurais no Brasil. Poema “O cântico da terra”, de Cora Coralina: mim tu voltarás. E no canteiro materno de meu seio tranquilo dormirás. Plantemos a roça. Lavremos a gleba. Cuidemos do ninho, do gado e da tulha. Fartura teremos e donos de sítio felizes seremos.” Disponível em: https://gilvander.org.br/site/%EF%BB%BFpoema-o-cantico-da-terra-de-cora-coralina.
Mesmo diante de uma situação de desigualdades extremadas, da violência, do mando, chama a atenção a resistência e a história de luta por direitos das classes e grupos dominados e explorados no campo. Hoje, como parte de uma nova configuração da sociedade, há uma diversidade de grupos, movimentos sociais populares e seus mediadores presentes no território nacional25 que conseguem a duras penas estabelecer limites ao processo de construção da hegemonia patronal, fundamento da dominação e poder das classes e grupos dominantes no Brasil.
A emergência dos trabalhadores rurais na cena política, constituindo- se progressivamente como sujeitos sociais (...) eles marcaram sua presença através de grandes manifestações coletivas – encontros, atos públicos, greves, acampamentos, ocupações de terra – que trouxeram a luz grupos sociais diferenciados, portadores de reivindicações distintas, mas que tinham algo em comum: o questionamento do lugar que lhes fora imposto no interior da sociedade! (...) Através de suas práticas, mais do que de suas palavras impuseram novas questões a sociedade, e problematizaram os espaços e mecanismos instituídos de poder. (MEDEIROS, 1989, p. 211).
Faz parte da resistência e da luta por direitos, a postura daquela camponesa sozinha, rodeada de fazendeiros e de jagunços diariamente resistindo e lutando por seu pedaço de chão. Também fazem parte da luta por direitos, as mobilizações dos povos indígenas usando suas vestimentas nas manifestações diante do Congresso Nacional como símbolo de um povo e de sua luta. Povos indígenas, Sem Terra, populações tradicionais que rompem a fronteira da invisibilidade ao exigirem a demarcação de terras e a preservação do meio ambiente, reivindicam o direito ao território, quando denunciam as estratégias do agronegócio de apagamento de suas histórias e experiências de vida e quando lutam pelo resgate da memória histórica com a interpretação sobre os colonizadores oposta ao discurso dominante, “o pioneiro
25 Por exemplo, Agro é Fogo, Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreira da Ancestralidade, Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), Coordenação Nacional das Comunidades Quilombolas do Brasil – Conaq, Fórum Popular da Natureza, Levante Popular da Amazônia, Marcha das Margaridas Mobilização dos Povos Indígenas do Cerrado (Mopic), Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB), Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM), Movimentos de Mulheres Camponesas (MMC), Rede de Agroecologia do Maranhão (Rama), além de inúmeras Articulações de Povos Indígenas, por todo o país, dentre outros.
entre aspas”, retirando povos indígenas de seus territórios, a valorização da diversidade, a resistência dos quilombos, o resgate da religiosidade (BENITES, 2021). Quando criticam os interesses patronais transformados em políticas públicas ou quando se posicionam contra o bloqueio dos direitos coletivos e o avanço da lógica privada, defendem novas formas de valorização da terra e procuram conectá-la com suas tradições (KATO, 2021).
Um questionamento e resistência assumem outras faces. Uma das principais razões alegadas pelos trabalhadores para fugirem das fazendas é o tratamento recebido pelos empregadores e gatos, em especial, o desrespeito, a humilhação, a “grosseria sem razão” e os “maus-tratos”. Eles se sentem excluídos das relações de sociabilidade e do reconhecimento social, “o que indica uma escala de valores onde as relações baseadas na reciprocidade, consideração e reconhecimento do outro são profundamente valorizadas. A consciência da humilhação simboliza para os trabalhadores a percepção dos limites da exploração na relação de emprego” (VIEIRA, 2007, p. 61).26
E diante da intolerância e violência das ações de reintegração de posse, a postura crítica dos assentados da reforma agrária revela a luta por direitos:
Todas as famílias sabem que não poderão resistir à ação da Polícia Militar, quando a ordem de despejo for determinada. Não existem armas, a polícia tem a força e as crianças precisam ser protegidas. O fato de passarem o Natal e, quem sabe, mais alguns dias nas terras de Assis Bandeira e ainda negociar com o governo é uma grande vitória. “– Quando a polícia voltar as costas, depois do despejo, estaremos na fazenda de novo”, promete Ney Speroto, um dos líderes dos sem-terra. Um detalhe aparentemente insignificante mostra que todos os equipamentos, desde panelas até bancos de madeira, foram numerados cuidadosamente. Ninguém quer perder nada depois que a polícia for embora. Tudo será montado como antes. (VIEIRA, 2011, p. 14).
Enfim, foi possível perceber que a construção da hegemonia é indissociável do habitus. O princípio ordenador da noção de habitus em Elias é a ideia de interdependência e pertencimento para quem o habitus permite-nos pensar a maneira
26 “No código moral dos trabalhadores, maus-tratos e xingamentos são formas de desrespeito e, portanto de humilhação. O relacionamento sem consideração e respeito por parte do empregador, os xingamentos e a agressividade, são considerados sinônimos de escravidão. A categoria humilhação “sintetiza esta condição que afronta a dignidade humana, que significa ser tratado “como animal”, “como cachorro”. Uma condição que desqualifica e submete moralmente o trabalhador à vontade do outro e, neste sentido, priva-o de sua autonomia, mesmo quando não o prende fisicamente” (OIT, 2011, p. 29).
como são individualmente incorporadas as modalidades de percepção e de ação coletivamente desenvolvidas no sistema de interações. Dessa perspectiva, o habitus compreende tanto os comportamentos individualizados como os partilhados pelos outros membros de um mesmo grupo, depositários e atores de uma identidade coletiva (ELIAS, 1994, p. 51). O habitus social de uma pessoa encontra-se diretamente ligado ao perfil da sociedade na qual ela está inserida e faz parte. Nesse sentido, aquilo que parece ser uma característica de um determinado grupo social envolve, na realidade, características mais abrangentes.
No Brasil, as elites patronais e seus aliados cultivam a desigualdade e a exerce em todas as suas dimensões. Historicamente movidas pelo princípio da exclusão, as elites patronais rurais e o agronegócio não incorporam as reivindicações das classes subalternas – uma das condições da construção da hegemonia. Não conseguem assumir a “direção intelectual e moral” em sua plenitude (GRAMSCI, 1972), contribuindo assim para o fortalecimento de uma contra-hegemonia.
Por sua vez, as classes subalternas e seus aliados se, de um lado, não conseguem modificar a estrutura fundiária brasileira, eliminar a exploração das relações de trabalho nem acabar com a imensa desigualdade histórica de nosso país, de outro estabeleceram limites à hegemonia do patronato rural e do agronegócio. Um processo de importância ímpar, naturalizado pela dominação simbólica que amiúde naturaliza e desqualifica quem questiona as elites patronais rurais e o agronegócio. Agradecimentos
Agradeço a todas as pessoas que contribuíram para a reflexão e elaboração deste artigo em especial Leonilde Medeiros (CPDA/UFRRJ) colega e parceira das reflexões sobre relações de dominação e de poder, ao Delcio Junior (Revista Estudos Sociedade e Agricultura – CPDA/UFRJ), Julia Dolce (repórter socioambiental), Vania Santiago (revisão). Agradeço também aos(às) discentes das disciplinas IH1514 – Organização, Política e Poder (CPDA/UFRRJ) e IH510 – Política e Relações de Poder no Campo (LEC-UFRRJ) pela troca de ideias e aprendizados. Sem esquecer as lives que tive oportunidade de participar. Além disso, foi fundamental ampliar a escala histórica e revisitar os(as) precursores da reflexão. Por fim, meus agradecimentos às observações e sugestões dos(as) avaliadores(as) do artigo.
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V.20, nº 41, 2022 (jan-abr) ISSN: 1808-799 X
Tássia Gabriele Balbi de Figueiredo e Cordeiro2
Resumo
Neste artigo analisamos a inserção do agronegócio na educação, especificamente, a campanha De Olho no Material Escolar e seus atravessamentos com os procedimentos do Escola sem Partido. Para tanto, realizamos pesquisa bibliográfica e documental acerca das temáticas em questão. Como resultado, observamos indícios de que o De Olho no Material Escolar compõe uma frente de expansão político-ideológica do agronegócio que busca, por meio da combinação entre força e consenso, interferir nos rumos da educação brasileira, reproduzindo de forma mais sofisticada os métodos desenvolvidos pelo Escola sem Partido.
Palavra-chave: Agronegócio; Questão Agrária; Educação.
¿"AGRO SIN PARTIDO"? COERCIÓN Y CONSENSO - LA INSERCIÓN DE EL AGRONEGOCIO EN LA EDUCACIÓN BRASILEÑA.
Resumen
En este artículo analizamos la inserción del agronegocio en la educación, en concreto, la campaña De Olho no Material Escolar y sus articulaciones con los trámites de la Escola sem Partido. Para ello, realizamos una investigación bibliográfica y documental sobre los temas en cuestión. Como resultado, observamos evidencias de que De Olho no Material Escolar es parte de una expansión político- ideológica del agronegocio que busca, a través de la combinación de fuerza y consenso, interferir en la dirección de la educación brasileña, reproduciendo de manera más sofisticada los métodos desarrollados por la Escola sem Partido.
Palabra clave: Agronegocio; Cuestión agraria; Educación.
"AGRI WITHOUT PARTY"? COERCTION AND CONSENSUS - THE INSERTION OF AGRIBUSINESS IN BRASILIAN EDUCATION.
Abstract
This article analyzes the insertion of agribusiness into education, specifically, the campaign De Olho no Material Escolar and its crossings with the procedures of Escola sem Partido movement. To this end, we conducted bibliographical and documentary research on the topics in question. As a result, we observed compelling evidence that De Olho no Material Escolar is part of a political-ideological expansion of agribusiness that seeks to influence Brazilian educational practices, through the combination of strength and consensus, reproducing the strategies applied by Escola sem Partido in a more sophisticated way.
Keyword: Agribusiness; Agrarian question; Education.
1 Recebido em 15/11/2022. Primeira avaliação em 12/01/2022. Segunda avaliação em 26/01/2022. Aprovado em 18/02/2022. Publicado em 28/03/2022. DOI.org/10.22409/tn.v20i41.52265
2 Doutoranda em Políticas Públicas e Formação Humana e Mestra em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Brasil. Docente do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense (IFFluminense).
E-mail: tassia.cordeiro@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/7242021042865818. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2972-9797.
Introdução
Este artigo traz uma análise da investida do agronegócio sobre a educação, mais especificamente as táticas utilizadas pela campanha De Olho no Material Escolar (DOME)3. A ação se apresenta como uma iniciativa original de mães, autointituladas “mães do agro”, que se sentiram impelidas a responder a uma suposta inadequação dos materiais escolares, acerca, principalmente, dos conteúdos que tratam do meio rural e da agropecuária no Brasil. No entanto, uma análise mais atenta demonstra que a discordância concerne, fundamentalmente, aos temas que dizem respeito e interessam diretamente ao agronegócio.
Desse modo, mesmo se apresentando como um empreendimento de pais e mães, observa-se uma relação, direta ou indireta, entre seus principais articuladores e o agronegócio, bem como uma rede de colaboração entre entidades do setor e a campanha. Além disso, a organização passou a contar com o apoio explícito de representantes da sociedade política, notadamente integrantes da Frente Parlamentar da Agricultura (FPA), conhecida como bancada ruralista, e ministros de Estado.
Tais desdobramentos indicam a força e a penetração do De Olho no Material Escolar e seu potencial de interferência na condução de políticas públicas educacionais, envolvendo a defesa de interesses setoriais que se sobrepõem aos interesses públicos e/ou os ignoram. A dimensão e o nível de alastramento da campanha acendem um alerta sobre a necessidade de pesquisas que investiguem, reflitam e deem retorno à sociedade acerca de seus possíveis impactos.
Diante desse contexto, damos aqui um passo na direção de inventariar e analisar a atuação do agronegócio na educação, em uma tentativa de demonstrar que o De Olho no Material Escolar é uma iniciativa muito singular, mas que se assemelha, no quadro mais geral, à organização Escola sem Partido (ESP). Para tanto, em termos metodológicos, realizamos uma pesquisa bibliográfica e documental sobre os temas em questão. Primeiramente, situamos e definimos o agronegócio no Brasil e seu movimento de expansão em diferentes setores da sociedade. Em seguida, apresentamos um resumo do histórico e das principais características do De Olho no Material Escolar. Por fim, tratamos os possíveis espelhamentos e as afinidades entre
3 Parte das discussões apresentadas sobre a inserção do agronegócio na educação e a ação De Olho no Material Escolar são resultados parciais da pesquisa de doutorado pelo Programa de Pós- Graduação em Políticas Públicas e Formação Humana da UERJ (CORDEIRO, 2022).
a campanha e o Escola sem Partido, para defender que ela se comporta como uma ramificação ou decalque desta organização, mesmo que de forma indireta e mais sofisticada.
De início, optamos por definir o conceito de agronegócio, visto que seu significado envolve acentuadas disputas. Guilherme Delgado (2012), ao esquematizar o processo de transformações da agricultura capitalista e a ascensão do agronegócio no Brasil, demarca três períodos, a saber: 1º) Modernização conservadora (1965- 1985), com a financeirização da agricultura capitalista; 2º) Transição (1986-1999); e, 3º) Economia do agronegócio (anos 2000). Nesse esquema, a modernização conservadora e a economia do agronegócio são dois períodos de aliança do poder agrário com o Estado, separados por uma breve fase de transição (DELGADO, 2013). Na última e atual fase, ocorre a reorganização da estratégia do período militar,
mas com diferenças substanciais, tais como o caráter político do pacto e a primazia da economia primário exportadora. Por isso, é somente no terceiro período que de fato há a consolidação do que chamamos de agronegócio. Em resumo, podemos afirmar que o setor tem como marca a expansão da “produção agropecuária centrada na grande propriedade, articulada ao grande capital transnacional e sustentada política e economicamente pelo Estado brasileiro e ideologicamente pela mídia empresarial” (ALENTEJANO, 2020, p. 252). Fica evidente que o estudo do agronegócio não pode ser apartado da questão agrária em sua amplitude, já que o setor acaba por se estabelecer enquanto um pacto político e econômico que envolve diferentes esferas, que são sustentáculos para a construção de sua hegemonia no campo.
Conforme Sergio Leite e Leonilde Medeiros (2012), o uso do termo agronegócio no Brasil, geralmente, se refere ao conjunto de atividades de produção e distribuição de produtos agropecuários. Para esses pesquisadores, no entanto, a análise desse setor precisa estar articulada às políticas implementadas pelo Estado brasileiro que subsidiam e promovem sua expansão. Além disso, importa pensar a validade do seu contraponto, isto é, o conjunto de atividades e atores sociais que não estão
representados/legitimados pelo termo - tais como os agricultores familiares, os assentados da Reforma Agrária e as comunidades tradicionais, muitas vezes identificados como obstáculos e/ou atraso.
Em vista disso, vale demarcar os sentidos políticos do agronegócio:
Desde que seu uso se impôs, o termo agronegócio tem um sentido amplo e também difuso, associado cada vez mais ao desempenho econômico e à simbologia política, e cada vez menos às relações sociais que lhe dão carne, uma vez que opera com processos não necessariamente modernos nas diferentes áreas e regiões por onde avança a produção monocultora.
Dessa perspectiva, a generalização do uso do termo agronegócio, mais do que uma necessidade conceitual, corresponde a importantes processos sociais e políticos que resultaram de um esforço consciente para reposicionar o lugar da agropecuária e investir em novas formas de produção do reconhecimento de sua importância. Ela indica também uma nova leitura de um mesmo processo de mudanças, acentuando determinados aspectos, em especial sua vinculação com o cotidiano das pessoas comuns. (LEITE; MEDEIROS, 2012, p. 83, grifos dos autores).
Partindo das “relações sociais que lhe dão carne”, o perfil do agronegócio pode ser caracterizado pelo controle de áreas extensas, pela concentração e verticalização de empresas com controle internacional, além de sua relação com a alta tecnologia agrícola. No que pesem os avanços tecnológicos e a presença de uma mão de obra qualificada, tem como marca a reprodução de formas e técnicas de trabalho degradantes. No mais, a despeito da alta produtividade, tem por necessidade a constante disponibilidade de terras para a sua expansão e reprodução (LEITE; MEDEIROS, 2012).
Segundo Adalberto Martins (2017), a matriz produtiva do agronegócio está centrada na produção de commodities e, portanto, na produção monocultora em larga escala baseada em relações sociais de assalariamento, o que determina uma matriz tecnológica demandante de capital, que poupa mão de obra e destrói a biodiversidade. Este modelo tecnológico é focado na mecanização, no uso intensivo de insumos químico-sintéticos e na aplicação de sementes altamente produtivas, como híbridos e sementes transgênicas. Como resultado, as relações sociais de produção e as relações técnicas implícitas no agronegócio são incompatíveis com as relações estabelecidas na produção camponesa de base familiar e na agroecologia.
De fato, a hegemonia do agronegócio gera graves consequências para o campo brasileiro, tais como o avanço do desmatamento, a pressão sobre as terras
públicas e acentuados índices de violência no campo, decorrentes do acirramento da concentração fundiária. A novidade a ser investigada em nossa pesquisa é o que chamamos de dupla expansão do agronegócio: uma ascensão econômica que contém desdobramentos no campo político-ideológico (CORDEIRO, 2022). Procuramos destacar o avanço do setor sobre o plano educacional na busca de consenso, de modo a reconstruir sua imagem degradada e forjar um suposto vínculo com o cotidiano das pessoas.
O processo de construção da imagem do agronegócio oculta seu caráter concentrador, predador, expropriatório e excludente para dar relevância somente ao caráter produtivista, destacando o aumento da produção, da riqueza e das novas tecnologias. Todavia, a questão estrutural permanece. Do trabalho escravo à colheitadeira controlada por satélite, o processo de exploração e dominação está presente, a concentração da propriedade da terra se intensifica e a destruição do campesinato aumenta. [...] A agricultura capitalista, ou agricultura patronal, ou agricultura empresarial, ou agronegócio, qualquer que seja o eufemismo utilizado, não pode esconder o que está na sua raiz, na sua lógica: a concentração e a exploração. (FERNANDES, 2013, p. 216).
Diante desse contexto, percebemos a necessidade de um tratamento adequado da questão da hegemonia, tão perseguida pelo setor. Antonio Gramsci nos ajuda a entender o quanto a hegemonia que compõe o Estado integral - ou ampliado, isto é, tanto a sociedade política quanto a sociedade civil4 - tem por característica a presença de elementos de violência e elementos de persuasão, inclusive como suporte ao uso da força:
O exercício “normal” da hegemonia, no terreno tornado clássico do regime parlamentar, caracteriza-se pela combinação da força e do consenso, que se equilibram de modo variado, sem que a força suplante em muito o consenso, mas, ao contrário, tentando fazer com que a força pareça apoiada no consenso da maioria, expresso pelos chamados órgãos da opinião pública - jornais e associações -, os quais, por isso, em certas situações, são artificialmente multiplicados. (GRAMSCI, 2014, p. 96).
A construção e a manutenção dessa hegemonia5 têm como forma de estabelecimento a difusão da ideologia através de intelectuais orgânicos, ação que
4 De acordo com Gramsci (2014, p. 73), nos Estados mais avançados, “a ‘sociedade civil’ tornou-se uma estrutura muito complexa e resistente às ‘irrupções’ catastróficas do elemento econômico imediato (crises, depressões, etc.); as superestruturas da sociedade civil são como o sistema das trincheiras na guerra moderna”.
5 Importante também demarcar que, segundo Gramsci, “O fato da hegemonia pressupõe indubitavelmente que sejam levados em conta os interesses e as tendências dos grupos sobre os quais
ocorre de forma privilegiada nos chamados aparelhos privados de hegemonia (APHs)6 que compõem a sociedade civil (GRAMSCI, 2014). O que defendemos é que o agronegócio busca consolidar e fortalecer sua hegemonia no país por meio dessa combinação complexa e contraditória entre coerção/dominação e consenso/direção. Para tanto, vem mobilizando, cada vez mais, sua frente política-ideológica que tem uma atuação estabelecida na sociedade política, mas busca avançar sobre a indústria cultural (CHÃ, 2018) e a educação brasileira7.
Nesse cenário, o setor passa a investir e a se contrapor, fundamentalmente, ao projeto emancipatório da Educação do Campo8 e à luta pela terra. Em nossos estudos, registramos que, no campo educacional, essa influência tem como reflexo o acentuado fechamento de escolas rurais e a inserção nas escolas públicas por meio de parcerias público-privadas em educação (CORDEIRO, 2021, 2022). Um dos efeitos desse último fenômeno é a invasão de estabelecimentos de ensino por programas pretensamente educacionais, que, em última instância, buscam inserir nas escolas a ideologia do agronegócio9. No entanto, desde 2020, uma nova via de ação começa a se desenvolver com a campanha De Olho no Material Escolar, trazendo novos elementos e direcionamentos, além de uma operacionalização de novo tipo.
a hegemonia será exercida, que se forme um certo equilíbrio de compromisso, isto é, que o grupo dirigente faça sacrifícios de ordem econômico-corporativa; mas também é indubitável que tais sacrifícios e tal compromisso não podem envolver o essencial, dado que, se a hegemonia é ético- política, não pode deixar de ser também econômica, não pode deixar de ter seu fundamento na função decisiva que o grupo dirigente exerce no núcleo decisivo da atividade econômica” (GRAMSCI, 2014, p. 49). Fica evidente, portanto, que a coerção é fator incontornável de um projeto hegemônico.
6 Em relação aos APHs, importante entender o contexto no qual “[...] o Estado tem e pede o consenso, mas também ‘educa’ este consenso através das associações políticas e sindicais, que, porém, são organismos privados, deixados à iniciativa privada da classe dirigente” (GRAMSCI, 2014, p. 121).
7 No que se refere à estratégia midiática, vale mencionar que o setor investe pesado em propagandas e campanhas de marketing, tal como a publicidade “Agro - a indústria-riqueza do Brasil”, veiculada desde 2016 na Rede Globo. Nota-se a busca pelo posicionamento do agronegócio como o salvador da economia brasileira, com o objetivo de criar empatia, confiança, conquistar corações e mentes, impondo sua presença no cotidiano da população (MITIDIERO JUNIOR; GOLDFARB, 2021).
8 Nas palavras de Roseli Caldart: “A Educação do Campo (EdoC) se constitui, no final da década de 1990, como uma articulação nacional das lutas dos trabalhadores do campo pelo direito à educação, materializando ações de disputa pela formulação de políticas públicas no interior da política educacional brasileira que atendam aos interesses sociais dos trabalhadores do campo, em especial, dos camponeses ou das famílias e comunidades vinculadas ao trabalho de base camponesa” (2016, p. 319, grifos da autora).
9 Entendemos ideologia no sentido gramsciano mais amplo de concepção de mundo que busca conservar uma unidade e organizar as massas, cimentando todo um bloco social, podendo ser “arbitrárias” ou orgânicas/historicamente necessárias (notas dos cadernos do cárcere 7 - §19 e 11 -
§12) (GRAMSCI apud COUTINHO, 2020).
De Olho no Material Escolar: breve histórico e contexto geral
Apresentada como uma iniciativa supostamente orgânica das “mães do agro”,
o De Olho no Material Escolar visa denunciar “imagens distorcidas” do campo nos materiais didáticos, com ênfase na representação do produtor rural e da agropecuária no contexto do agronegócio. No entanto, um rastreamento mais detido da campanha e de suas principais porta-vozes demonstra que essa é uma retórica frágil. Apesar de eventualmente divulgarem que os pais e mães ligados ao surgimento do De Olho no Material Escolar trabalham na atividade agropecuária, percebemos que esta relação é bem mais profunda do que aparenta.
Primeiramente, é relevante destacar que dentre suas principais interlocutoras, estão: sua vice-diretora, que também é diretora executiva da Associação de Produtores de Sementes do Mato Grosso (Aprosmat) e consultora e CEO da “Agro b”; e uma de suas fundadoras, que é vice-presidente do Núcleo Feminino do Agronegócio, diretora da ZJ Investimentos e produtora de cana-de-açúcar10. Além disso, a pesquisa sobre suas ações indica uma relação direta com o recente movimento Todos a uma só voz, que busca superar a fragmentação do setor “agro”, articulando uma base de apoio composta por diversas entidades representativas e empresas11, com protagonismo da Associação Brasileira do Agronegócio (ABAG) e forte inserção do De Olho no Material Escolar e sua pauta.
10 Informações disponíveis em: <https://esquerdaonline.com.br/2021/10/25/o-reino-do-agronegocio-e- a-perseguicao-aos-livros-didaticos/>. Acesso em 31 de outubro de 2021.
O De Olho no Material Escolar chama a atenção pelo seu potencial em articular intelectuais orgânicos e entidades/mídias do agronegócio, que se mobilizaram por meio da publicação de documentos que mesclam denúncia e a intencionalidade de fiscalizar e incidir nos conteúdos dos materiais escolares. Observa-se a atuação em rede de diferentes aparelhos privados de hegemonia do agronegócio, que visam mobilizar, construir e fortalecer um consenso acerca da imprescindibilidade do setor para a economia e a sociedade brasileira.
A inciativa teria surgido espontaneamente face ao incômodo com o material escolar dos filhos das “mães do agro”, material este utilizado por uma rede privada de ensino de Barretos/SP (Sistema Anglo). Disto resulta uma carta (DE OLHO NO MATERIAL ESCOLAR, 2020), que aponta exemplos de tratamento “inadequado e preconceituoso” em relação à agropecuária, mas que, na verdade, dizem respeito à cadeia do agronegócio. Este foi o ponto de partida para a organização da campanha que vem ganhando cada vez mais adesão e inserção no meio político. Desde então, constata-se um certo deslocamento que parte dos materiais escolares da rede privada e alcança os materiais didáticos da rede pública, tendo como alvo prioritário o Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD).
Cabem algumas considerações acerca do teor da carta. Suas/seus signatárias/os denunciam a exposição dos discentes a conteúdos políticos e ideológicos que estariam imiscuídos no programa educacional. Fundamentalmente, os materiais/apostilas reduziriam a agropecuária ao “papel de vilão nacional”, a despeito de sua importância econômica e social para a prosperidade do país. A partir daí são elencados exemplos de discordância com os conteúdos, como o argumento de que não apresentariam nenhum contraponto a questões como o desmatamento e ao sofrimento indígena. A seguir a produção de cana-de-açúcar é exaltada e a seguinte conclusão é apresentada: “Devemos nos orgulhar dessas marcas, não incentivar as crianças a repudiá-las. Infelizmente, há quem enxergue a agropecuária brasileira por lentes sujas, antigas e tendenciosas, que remontam ao período colonial” (DE OLHO NO MATERIAL ESCOLAR, 2020, n.p.).
Há discordância também em relação à definição de que na agricultura comercial patronal o proprietário da terra não cultiva e sim contrata trabalhadores. Alega-se que, na realidade, ele trabalharia mais do que “sol a sol” em diferentes frentes. Outro ponto apresentado é sobre o tratamento do trabalho escravo, com a
defesa de que seria comum há 100 anos, mas longe da realidade atual da região, marcada por oportunidades e salários justos. Já a relação entre a degradação de terras, o uso de “defensivos agrícolas”, os latifúndios e as monoculturas seria reflexo de uma “visão atrasada, carregada de ideologia e que expressa a opinião pessoal do autor do texto”, sendo, portanto, uma abordagem enviesada, unilateral e sem qualquer base. Na conclusão, afirma-se que:
Como é da natureza humana, qualquer professor passará o conteúdo disciplinar, em algum grau, influenciado por suas ideologias e por suas crenças. É papel da Escola minimizar tal influência, disponibilizando ao professor e ao aluno conteúdos factuais, isentos e verdadeiros. Trata-se de construção de conhecimento. (DE OLHO NO MATERIAL ESCOLAR, 2020, n.p.).
Não obstante o tom da carta e os argumentos utilizados, a ascensão da campanha pode ser considerada meteórica, pela grande penetração nos meios de comunicação ligados ao setor, pela interlocução com seus principais intelectuais e pela formalização enquanto associação12 da sociedade civil em 2021. Ao mesmo tempo, a participação de forma efetiva no De Olho no Material Escolar é seletiva, com a cobrança de uma mensalidade de R$ 150,00 para pessoas físicas e R$ 500,00 para pessoas jurídicas13. A própria autodenominação enquanto “mães do agro” revela o vínculo fundamental desse projeto, não com a agropecuária em geral, mas, com o agronegócio.
Atualmente, o principal meio de interlocução e comunicação direta com a sociedade é um perfil da rede social Instagram14, com cerca de 4,5 mil seguidores
12 No estatuto, seu objetivo é “Promover inciativas e trabalhos de natureza educacional, de pesquisa e desenvolvimento, buscando a produção e divulgação de informações e conhecimentos técnicos e científicos”. Disponível em:<https://www.instagram.com/p/CUvMSQOlsdN/>. Acesso em 7 de outubro de 2021.
13 Ficha cadastral disponível em: <https://docs.google.com/forms/d/e/1FAIpQLSeKW- Omr30ZPoa7Y0jpCRWszhdH_DpfUCAtN1SKARG221hPog/viewform>. Acesso em 7 de outubro de 2021.
14 No perfil, verificamos que as primeiras postagens são vídeos de divulgação de apoios e interlocução com intelectuais ligados ao agronegócio, com destaque para vídeos com análises de Xico Graziano, denunciando a presença de posicionamentos ideológicos e políticos sobre o setor rural; de José Luiz Tejon, que pontua as generalizações de procedimentos de desmatamentos relacionados ao agronegócio e uma visão presa ao passado; e de Marcos Favas Neves. Além disso, chama a atenção a presença de apoios de representantes da sociedade política, como o Deputado Federal Jerônimo Goergen, que pede esclarecimentos ao Ministro da Educação, Milton Ribeiro, acerca do “conteúdo ideológico” de materiais e escolares; o ex-ministro do governo Dilma Rousseff, Aldo Rebelo, que afirma que os matérias denunciados contém inverdades e injustiças; como também o diálogo direto com a FPA, que recebe o DOME para a exposição dos materiais didáticos que reduzem a “agropecuária” ao papel de “vilão nacional”. Registramos a veiculação de notícia com a denúncia da questão realizada pela Ministra da Agricultura, Tereza Cristina, sobre a desinformação sobre o setor nas escolas e a
(jan/2022) e a descrição “Plantando verdade e colhendo conhecimento”, por meio do qual são divulgadas suas ações. Destaca-se também a participação em lives tanto no Instagram quanto no YouTube, que tratam de temas relacionados à educação brasileira. Tudo indica que o De Olho no Material Escolar é mais uma engrenagem da hegemonia do agronegócio que, conhecido pela defesa feroz da intocabilidade da propriedade privada da terra, parece projetar um consenso que visa, ao fim e ao cabo, a sua própria intocabilidade ou blindagem no que se refere aos conteúdos escolares.
A organização Escola sem Partido15 surgiu em 2004, por iniciativa do advogado Miguel Nagib, tendo como premissa o entendimento da educação como um serviço e o objetivo de coibir uma “doutrinação ideológica” nas escolas públicas do país, com base no Código de Defesa do Consumidor. Para tanto, um site foi criado para disponibilizar anteprojetos de lei para as esferas municipais e estaduais e um canal para a denúncia de docentes.
Fernando Penna (2017) defende que o Escola sem Partido é uma chave para a leitura do fenômeno educacional, tratando-o como um discurso que mobiliza com mais ênfase quatro elementos: uma concepção de educação, uma desqualificação do professor, estratégias discursivas fascistas e a defesa do poder total dos pais sobre seus filhos.
Esse discurso utiliza-se de uma linguagem próxima a do senso comum, recorrendo a dicotomias simplistas que reduzem questões complexas a falsas alternativas e valendo-se de polarizações já existentes no campo político para introduzi-las e reforçá-las no campo educacional. (PENNA, 2017, p. 35).
Nesse contexto, Eveline Algebaile (2017) defende que a organização pressupõe a disseminação de práticas de vigilância, controle e criminalização, e busca criar mecanismos de monitoramento das atividades escolares e dos materiais
notícia de que no dia 2 de dezembro de 2020 a organização foi recebida pelo Ministro da Educação e a equipe técnica do MEC, com a participação da FPA. A organização também foi recebida pela Esalq/USP, que se disponibilizou a elaborar pareceres técnicos para as reuniões com editoras e grupos educacionais. Informações em: <https://www.instagram.com/deolhonomaterialescolar/?hl=pt>. Acesso em 7 de outubro de 2021.
15 Para aprofundamento acerca do Escola sem Partido recomendamos o livro Escola “sem” partido: esfinge que ameaça a educação e a sociedade brasileira (FRIGOTTO, 2017).
educativos, difundindo um clima de suspeição sobre a prática docente. A pesquisadora destaca que a vigência jurídica da organização é prescindível para a produção dos efeitos desejados, como a autocensura e o controle prévio das atividades escolares.
[...] [O Escola sem Partido] mostra uma nítida preocupação com a presença, no processo formativo, de discussões que problematizem as concepções políticas, socioculturais e econômicas hegemônicas, especialmente as relativas às questões de gênero, orientação sexual e modelos familiares, bem como de perspectivas críticas ao capitalismo e à educação conservadora. (ALGEBAILE, 2017, p. 67).
Portanto, fica notório que a forma de operacionalização e as técnicas mobilizadas pela organização partem de uma postura que busca a interdição da liberdade de expressão e de cátedra nas escolas públicas do país, tendo por pretexto a alegação de que haveria uma doutrinação ideológica de esquerda nesses espaços. Com isso, o objetivo é a criminalização do debate crítico e das discussões políticas, de gênero e de orientação sexual no âmbito da educação pública. Nota-se, com precisão, o teor de base predominantemente repressivo da organização que, no entanto, busca forjar um consenso acerca de sua legitimidade.
Procuramos aqui estabelecer se a campanha De Olho no Material Escolar utiliza os mesmos procedimentos e lógicas de atuação, no sentido de se comportar como uma espécie de ramificação setorizada do Escola sem Partido. Isto porque, apesar de observamos que o De Olho no Material Escolar é uma iniciativa singular e diferenciada, especialmente dentro da frente político-ideológica do agronegócio, ele parece integrar o rol de atuação da organização Escola sem Partido por sua via argumentativa baseada na acusação de doutrinação, com ênfase em um tom de denúncia e perseguição. Ao mesmo tempo, procura disputar os conteúdos no sentido de transformar recursos didáticos em plataformas de divulgação de uma imagem positiva do agronegócio, de acordo com a ideologia do setor.
Nesse sentido, o De Olho no Material Escolar alarga uma atuação na educação até então relativamente difusa e fragmentada no país, predominantemente via parcerias público-privadas em educação, com o intuito de modificar uma política que tem um alcance nacional - o Plano Nacional do Livro e do Material Didático - além do material escolar específico de redes privadas de ensino. Tudo indica que essa mobilização pode significar um salto qualitativo na ofensiva do agronegócio na
educação pública, em articulação com entidades representativas e a sociedade política.
Por um lado, o procedimento parece ser mais refinado do que o Escola sem Partido por procurar conformar de forma mais elaborada o consenso, convencendo a sociedade de que há uma inadequação dos materiais escolares. Para isto, opta por métodos que envolvem a provocação da sociedade política e a aliança com órgãos do Estado, bem como reuniões com editoras de livros didáticos e redes privadas de ensino. Por outro lado, essa roupagem sofisticada parece esconder o mesmo arsenal e objetivos do Escola sem Partido, com o diferencial de se utilizar discursivamente mais do consenso, como tática de disfarce do seu teor coercitivo, ideológico e conservador, mas também como forma de conquistar adesão. Combinam-se, assim, de forma contraditória e complexa elementos de coerção e consenso, indispensáveis para a hegemonia.
Finalmente, identificamos a partir de documentos e materiais ligados ao De Olho no Material Escolar que sua intenção é interditar o pensamento autônomo e a liberdade de cátedra. Não é nada mais do que uma forma de proibição e criminalização do tratamento de conteúdos críticos e embasados cientificamente referentes à cadeia do agronegócio, ou seja, a interdição de um processo formativo que envolva a discussão dos impactos do setor.
Vejamos como a organização e seus intelectuais buscam forjar esse consenso. Apesar dos discursos que visam criar uma aliança e desresponsabilizar os docentes, quase que retirando deles a autonomia de seu fazer pedagógico, o caráter repressivo de obstrução da liberdade de cátedra - que teria como contraponto a “liberdade do aluno para aprender” - fica claro na própria carta-denúncia:
[..] não podemos concordar com o fato de que, ainda que não seja intencional, até porque seria inconstitucional, em função de um material didático, o professor acabe por atuar como instrumento de cooptação política ou ideológica. [...]
Assim, compreendemos que os professores de nossos filhos não estejam intencionalmente doutrinando-os, mas entendemos que, ao tratar de questões políticas, socioculturais e econômicas, o professor apresente a eles de forma justa - isto é, com a mesma profundidade e seriedade -, as principais versões, teorias, opiniões e perspectivas atuais concorrentes a respeito.
Buscamos então da maneira em que nos expressamos aqui encontrar a melhor coerência para um ensino real e atual, mas de mãos dadas com os educadores a quem confiamos nossos filhos. [...]
Acreditamos que os professores, mesmo abordando temas conflitantes, devem fazê-lo despertando a consciência crítica dos alunos, sem que, no entanto, confundam nossos filhos em relação à sua posição na sociedade, oriundos que são de uma classe trabalhadora, produtiva, consciente de suas responsabilidades perante o mundo e que contribui de maneira relevante para o desenvolvimento e para a economia deste país. (DE OLHO NO MATERIAL ESCOLAR, 2020, n.p.).
O conteúdo societário, no sentido de pertencimento à cadeia do agronegócio, fica evidente no conteúdo da carta. Observa-se a defesa intransigente de uma posição social e de classe que está sendo tensionada pelo tratamento crítico de conteúdos escolares. Nessa narrativa, os docentes seriam meros instrumentos de “cooptação política ou ideológica”, já que, mesmo sem essa intenção, poderiam estar sendo induzidos ao erro, por materiais didáticos inadequados.
Em seguida, também analisamos o documento “O novo mundo rural e a produção de alimentos no Brasil” (GRAZIANO; NEVES, 2021), que sugere a atualização dos conteúdos e uma nova abordagem dos materiais didáticos no que diz respeito ao “agro”. A partir da análise de conteúdos de materiais escolares denunciados, os autores apontam a presença de um viés político e generalizações, o que justificaria tanto a revisão quanto a proposição de temas alinhados à imagem moderna do setor, tais como a inovação tecnológica e a suposta complementaridade entre agronegócio e agricultura familiar.
De acordo com os autores, seis objeções comuns são apresentadas a partir dos questionamentos de um movimento de pais e mães ligados à moderna agropecuária, que seria o De Olho no Material Escolar. Destacamos as seguintes:
[...] c) Estimula-se uma falsa dicotomia entre o agronegócio e a agricultura familiar, como se aquela fosse do “mal” e esta fosse do “bem”, quando na verdade se trata de conceitos complementares, um fala sobre a integração no mercado, outro sobre o tamanho da área de produção. A agricultura de pequeno, médio e grande porte, todas elas, fazem parte do agronegócio. Famílias que produzem no campo e negociam na cidade são inerentes ao agronegócio. Existe o agronegócio empresarial e existe o agronegócio familiar. Somente não participa do agronegócio quem produz para subsistência.
d) Encontra-se, não raramente, inconcebível viés político em textos relacionados à reforma agrária, ao trabalho rural e aos povos indígenas, induzindo os alunos a acreditar que os agricultores sejam opressores dos pobres do campo, como se fossem malvados. A ideologia não deveria fazer parte do ensino infantil e médio, pois deturpa o conhecimento factual. (GRAZIANO; NEVES, 2021, p. 2).
De forma a corrigir e atualizar os materiais didáticos, dez temas16 são sugeridos: cooperativismo no agro, aproveitamento dos alimentos, matas ciliares, bem-estar animal, novos alimentos, bioeconomia, agricultura digital, melhoramento genético, agro colaborativo e atividades secundárias (GRAZIANO; NEVES, 2021). Com isso, observamos uma tentativa de absorção, temporal e espacial, da agricultura como um todo pelo agronegócio, de forma que tudo seja convenientemente considerado “agro”, interditando-se a discussão dos problemas e das contradições inerentes ao modelo (CORDEIRO, 2021).
A publicação alega que seu objetivo é “promover uma melhoria, no sentido da atualização histórica e do embasamento técnico/científico, no conteúdo dos materiais escolares relacionados ao campo e ao agro” (GRAZIANO; NEVES, 2021, p. 3). Nessa direção, sugere uma nova abordagem de ensino, pautada na curiosidade, no empreendedorismo e no progresso, que garantiria o futuro do país. Em síntese, defende que “É necessário que as crianças e jovens conheçam e adquiram bom conceito do setor agropecuário” (GRAZIANO; NEVES, 2021, p. 3), ficando evidente o direcionamento dado pela campanha do De Olho no Material Escolar.
Partindo da análise da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), três disciplinas são consideradas essenciais na conformação desses objetivos - história, geografia e ciências - sendo elencadas as habilidades relacionadas ao setor. No entanto, os autores demarcam a contraposição à “ideologia intervencionista- estatizante” que caracterizaria a BNCC e defendem uma visão mais liberal, favorável ao empreendedorismo econômico e social e condizente com o século XXI. Por isso, a defesa da necessidade de se adequar as normativas educacionais aos requisitos da contemporaneidade por meio de uma revisão da BNCC, o que libertaria os estudantes do passado.
Graziano e Neves (2021) ainda afirmam que os materiais didáticos apresentam os temas relacionados à agronomia e à agropecuária de forma unilateral. A crítica presente nesses materiais, considerada severa e generalizada, impediria o senso crítico e a valorização da diversidade. Para que a BNCC fosse cumprida de forma
16 O movimento Todos a uma só voz publicou esse material na cartilha “O Agro para estudantes: 10 temas para tornar o ensino mais atrativo”, assinada pelos mesmos autores, em parceria com dezenas de entidades e empresas e com um destaque para a campanha De Olho no Material Escolar. Disponível em: <chrome-
extension://oemmndcbldboiebfnladdacbdfmadadm/https://todosaumasovoz.com.br/site/wp- content/uploads/2021/05/TUV_COMPENDIO_10_TEMAS_L.pdf>. Acesso em 28 de maio de 2021.
“isenta”, os autores apresentam, em resumo, as seguintes ponderações “técnico- científicas” sobre certos conteúdos:
Desmatamento - Considerado parte de um histórico processo civilizatório em benefício da humanidade, que na atualidade é justificável na fronteira agrícola, dentro dos marcos do Código Florestal;
Uso de agrotóxicos (defensivos agrícolas) - Apresentados como “medicamentos/remédios” para as plantas, com argumentações que buscam refutar ou minimizar seus potenciais perigos;
Produção orgânica de alimentos - Vista como uma reação naturalista à quimificação da agricultura, contestando-se a confiabilidade da certificação no Brasil, o mito do controle fitossanitário biológico e a alegação que seriam mais saudáveis. Por fim, afirma-se que poderiam gerar inflação, desabastecimento e fome;
Agricultura familiar e agronegócio - Caracterizada como de gestão familiar, independentemente do tamanho, enquanto o agronegócio seria um conceito econômico; é considerada superestimada no país, mas entendida como parte fundamental do agronegócio. Além disso, a expressão do antagonismo entre esses dois polos de poder no “agro” seria de cunho político e moral;
Questão agrária - Apresentada como um assunto delicado e sujeito a manipulações e deformações políticas, compreenderia três temáticas complexas: a reforma agrária (enorme e ineficiente); a generalização do trabalho escravo (uma deformação da realidade); e os conflitos com indígenas (localizados e provenientes da retirada de indígenas de suas terras, utilizadas por décadas com boa-fé pelos agricultores).
A relativização de problemas e impactos socioambientais diretamente ligados ao setor, juntamente com a disputa pelo significado da agricultura familiar e da questão agrária, são pontos centrais. Nas argumentações finais, os autores fazem o seguinte balanço:
Por fim, recomenda-se também uma maior proximidade dos professores do ensino infantil e médio com os empresários do setor, das entidades de classe, para que os alunos possam receber palestras destas pessoas em sala de aula, falando da produção, bem como visitarem estas empresas, junto com seus professores e terem
ampliada sua noção sobre o que é empreender, as dificuldades de se trabalhar numa fábrica a céu aberto e uma salutar interação com quem faz acontecer. Visitas e palestras inspiradoras jamais serão esquecidas.
O caminho aberto para a nossa sociedade, uma de nossas boas chances para o futuro, é o de ser fornecedor mundial sustentável de alimentos, bioenergia e outros agroprodutos. Crianças e jovens devem conhecer e embarcar nesta causa coletiva, ajudando a promover o desenvolvimento do nosso Brasil naquilo que é a sua vocação. (GRAZIANO; NEVES, 2021, p. 44-45).
Tendo por base a acusação de que os materiais didáticos generalizam condições que foram superadas pelos avanços tecnológicos, de fato, os autores buscam absorver toda a agricultura sob o preceito do agronegócio, com a exceção da “agricultura de subsistência”. Pressupõem a universalização dos interesses particularistas do setor, em conjunto com a exaltação da modernização e do apagamento de seus impactos e contradições. Por conta desse entendimento e de sua fragilidade teórica, a publicação afirma que o país se encontra em uma situação de total segurança alimentar, graças aos avanços propagados pelo setor, que alimentaria o povo e ajudaria a combater a fome no mundo, contribuindo para a geração de renda no país. Diante disso, a “história verdadeira” deveria ser contada às crianças e aos jovens ao invés de se menosprezar sua importância econômica.
Consideramos que o De Olho no Material Escolar expressa, por meio dos documentos analisados e de sua atuação ampliada, um ideal persecutório e um conteúdo panfletário, que carece de fontes científicas ou as apresenta de forma enviesada, incompleta e restrita, e desconsidera a totalidade, a contradição e a historicidade. Nota-se o caráter propagandístico de exaltação acrítica do desenvolvimento tecnológico do setor e de uma suposta superação do passado, relacionado à agricultura latifundiária e à origem colonial. Soma-se a intencionalidade explicita de inserção do empresariado rural na educação básica, tanto por meio dos materiais didáticos em consonância com o setor quanto pelas sugestões de parcerias com as escolas17. Tais reflexões nos permitem concluir que a campanha busca institucionalizar a máxima publicitária do Agro é pop, agro é tech, agro é tudo18, de
17 No perfil do Instagram do no Material Escolar, dois direcionamentos são dados nesse sentido: o “Projeto vivendo na prática”, que consiste em visitas à cadeia do agronegócio, e o “Na estrada pela atualização do material escolar”, que visa a integração entre “campo” e materiais escolares, com a visita a editoras, instituições, fazendas e agroindústrias.
18 Slogan da Campanha Agro, a indústria-riqueza do Brasil, veiculada pela Rede Globo de Televisão. Segundo Mitidiero Junior e Goldfarb (2021, p. 5), um tratamento mais adequado consistiria em entender
forma gratuita e pretensamente isenta, nos materiais de ensino e nas escolas de todo o país.
Como forma de propor o debate acerca dos desdobramentos da referida campanha, o Grupo de Estudos, Pesquisas e Extensão em Geografia Agrária - GeoAgrária (FFP/UERJ) e o Grupo de Trabalho sobre Assuntos Agrários - GTAgrária das seções Rio de Janeiro e Niterói da Associação dos Geógrafos Brasileiros (AGB), publicaram o manifesto “A nova ofensiva do agronegócio sobre a educação” (2021). Segundo o documento, a campanha foi organizada nas seguintes frentes de trabalho:
(1) produção de dossiês contra materiais didáticos, a partir do envio de vídeos de “mães do agro”; (2) Frente nacional das escolas particulares, com o objetivo de pressionar a rede particular para alterar os seus materiais próprios; (3) parceria com a Sociedade Rural Brasileira (SRB) para incentivar a produção de material didático próprio e pressionar o mercado editorial; (4) parceria com professores e profissionais do agronegócio para a realização de palestras em escolas e visitas a empresas e propriedades rurais; (5) criação de uma biblioteca virtual sobre o agronegócio voltada para a formação de professores. (GEOAGRÁRIA; GTAGRÁRIA AGB-RIO/NITERÓI, 2021, n.p.).
É possível observar uma cadeia articulada de ações e um funcionamento em rede, envolvendo parcerias e interlocuções que formam um emaranhado complexo, com grande potencial e capilaridade. A operacionalização também se caracteriza pela diversidade de frentes de atuação, dificultando em parte um rastreamento mais preciso de suas agendas e impactos.
As informações [...] obtidas a partir de pesquisas realizadas em redes sociais, revelam uma profunda articulação de setores do agronegócio para disputar o sentido da educação realizada no Brasil. Trata-se de uma disputa ideológica profunda, cujo objetivo é aprofundar a hegemonia do agronegócio, afirmando-os como um dos pilares da economia e da sociedade brasileira, e silenciando qualquer perspectiva crítica sobre as implicações econômicas, sociais e ambientais. Buscam, através da campanha “De olho no material escolar” a todo custo impedir que nas escolas públicas e particulares se debata sobre desmatamento e queimadas, sobre trabalho escravo e superexploração do trabalho, sobre concentração fundiária, da riqueza e da renda, sobre a violência no campo, como se tudo isso
que o “agronegócio possui pouquíssima tecnologia nacional (não é tech), que não gera emprego e renda para a população (não é pop) e está longe de ser tudo”.
fosse coisa do passado e não existisse mais no campo brasileiro, no qual reinaria o agro pop, tech, tudo... (GEOAGRÁRIA; GTAGRÁRIA AGB-RIO/NITERÓI, 2021, n.p., grifos nossos).
Mitidiero Junior e Goldfarb (2021, p. 3) avaliam que a campanha procura “censurar livros didáticos que associem a imagem do setor à devastação ambiental e exploração degradante do trabalho”. Não bastasse isso, o De Olho no Material Escolar trabalha ativamente no sentido de conseguir indicar “representantes, ao estilo de censores, no Programa Nacional do Livro e do Material Didático e na revisão da Base Nacional Comum Curricular (BNCC)” (MITIDIERO JUNIOR; GOLDFARB, 2021, p. 3). Diante desse contexto e guardadas as devidas proporções, o movimento da campanha nos remete aos riscos de instrumentalização ou censura dos materiais escolares, conforme casos já devidamente registrados e analisados.
No Brasil, podemos nos referir à pesquisa de Nosella (1981) que examinou a transmissão da ideologia da classe dominante nos materiais didáticos no período da ditadura empresarial-militar no Brasil. Fenômeno semelhante e ainda mais expressivo e complexo é o tratamento da questão palestina nos livros didáticos israelenses, analisados por Peled-Elhanan (2019). A filósofa constatou os seguintes usos dos livros didáticos, enquanto instrumentos de dominação: propagação da falsificação da verdade, apresentação de opiniões como fatos, legitimação da violência e de práticas colonialistas, disseminação de uma comunidade imaginada e homogênea, negação de memórias e identidades outras e a celebração de uma geografia do desenvolvimento. Chama a atenção, nesses casos, a retórica de um discurso aparentemente científico.
De acordo com a pesquisadora, os perigos são evidentes: tais livros acabam tornando-se “propagadores da memória coletiva popular, em vez de produtos da investigação histórica ou geográfica [...] não introduzem os estudantes nos modos de investigação [..] mas induzem-nos a ‘dominar’ a narrativa principal” (PELED- ELHANAN, 2019, p. 262), além de terem um tom autoritário que não convida ao debate e só receberem “autorização para publicação quando reproduzem a narrativa patrocinada pelo Estado” (PELED-ELHANAN, 2019, p. 263). Não é difícil encontrar similitudes com as intencionalidades e procedimentos do De Olho no Material Escolar, tais como a relativização ou distorção da ciência e a interdição do debate com a anuência do Estado.
Nesse sentido, a investida do agronegócio sobre o conteúdo dos materiais escolares/didáticos parece ganhar novas dimensões e desdobramentos possivelmente alarmantes. Por isso, defendemos que, apesar de roupagens e discursos aparentemente distintos, Escola sem Partido e De Olho no Material Escolar guardam de fundo um mesmo conteúdo: a tentativa de criminalização, fiscalização e controle da prática docente e a interdição do debate crítico nas escolas, por meio de dispositivos normativos e de procedimentos indiretos de convencimento e ameaça/repressão.
Compreendemos que a frente político-ideológica do agronegócio expressa seu projeto de hegemonia tendo por base o programa e o horizonte ideológico do setor e, por isso, pretende desorganizar e inviabilizar os projetos que lhe são concorrentes. Como toda hegemonia, carrega em si elementos de força e de consentimento, como buscamos evidenciar ao logo do texto. O De Olho no Material Escolar parece ser uma expressão bem acaba do par coerção-consenso, sendo de certa forma difícil delimitar um e outro devido aos seus artifícios relativamente elaborados.
Entretanto, em última instância, seus procedimentos violentam o pensamento crítico, o saber científico e a autonomia docente, podendo ser enquadrados no âmbito de um negacionismo aparentemente refinado. Em resumo, a campanha se comporta como um Agro sem Partido, uma ramificação independente do Escola sem Partido que se utiliza de seus métodos e táticas de forma mais sofisticada, isto é, com discursos que não são diretamente relacionados a “estratégias discursivas fascistas” (PENNA, 2017, p. 42). Além disso, percebemos que a abordagem em relação aos docentes se desloca do discurso da desqualificação em direção ao de desresponsabilização, no sentido de forjar uma aliança que parece acobertar uma tentativa de cooptação e uma relação paternalista. Ainda assim, a retórica da intimidação não é descartada, havendo uma dupla abordagem que gera confusão e falta de clareza acerca de seu teor altamente repressivo. Não é demais pontuar que a insígnia “sem partido” é um simulacro para disfarçar seu teor originário: sua atuação como partido do agronegócio, no sentido gramsciano de mobilizar, organizar e unificar consensos, dirigindo um projeto político de sociedade.
Defendemos que os resultados aqui expressos demonstram indícios robustos de que o sistema educacional está sendo utilizado para interesses privados do agronegócio, materializados principalmente por meio de parcerias entre entidades do setor e pela campanha De Olho no Material Escolar. As discussões apresentadas demonstram que o agronegócio vem disputando o papel de indutor e promotor de políticas de formação de professores e discentes e de influência na produção de materiais didáticos.
No mais, a atuação original da campanha ganha relevo por sua capacidade de mobilização e pela distinção de suas práticas. Esta nova vertente de ação do agronegócio parece ter como elemento mais predominante a repressão/intimidação. Objetiva uma construção forjada de consensos apassivados, o que sugere que as táticas empreendidas estão em consonância com uma modalidade derivada do Escola sem Partido.
Por sua capacidade de mobilização, é possível que tal vertente tenha o potencial de deslocar o raio de ação do agronegócio no campo da educação de uma atuação relativamente difusa e segmentada a uma possível unidade orgânica de interesses expressos em escala nacional. Ademais, sugere um movimento de superação da busca da hegemonia predominantemente pela via da concertação na esfera educativa, passando a absorver de forma mais contundente elementos de coerção e controle, condizentes com outros movimentos autoritários que se tornam cada vez mais extremados no contexto de ascensão do bolsonarismo (CORDEIRO, 2022).
Pelo demonstrado até então, a ofensiva do agronegócio sobre a educação, no que diz respeito a ações como o De Olho no Material Escolar, parece ter como intencionalidades i) direcionar os rumos da educação pública - currículos, organização escolar, materiais didáticos e o fundo público; ii) influenciar a formação de professores (capacitações, formações continuadas, etc.) e, consequentemente, a formação dos discentes; iii) Criar um ambiente persecutório e de caráter denuncista, com o objetivo de impedir o dissenso e qualquer crítica ao agronegócio, interditando, assim, a autonomia docente e o desenvolvimento do pensamento crítico.
Por fim, pontuamos que o que chamamos aqui de Agro sem Partido pode ser entendido como um conjunto de mecanismos mobilizados por entidades do agronegócio, que tem por base a combinação entre coerção e consenso no exercício
da hegemonia, com um protagonismo mais recente do primeiro. Caracteriza-se, assim, como parte de uma rede de atuação que se comporta como uma pedagogia do agronegócio (CORDEIRO, 2022), pressupondo uma concepção sectária de educação. Nesse quadro, o De Olho no Material Escolar desponta como um aparelho privado de hegemonia que entrelaça de forma original, no plano ideológico, o projeto de poder do agronegócio e os procedimentos e intencionalidades do Escola sem Partido. Para isto, opera uma atualização deste de acordo com suas intencionalidades e especificidades setoriais, promovendo um deslocamento qualitativo que se traduz em uma forma de Escola sem Partido do Agronegócio, que pressupõe um repertório discursivo e procedimental mais eficaz e apresentável.
ALENTEJANO, P. R. R. A hegemonia do agronegócio e a reconfiguração da luta pela terra e reforma agraria no país. Caderno Prudentino de Geografia, Presidente Prudente, Dossiê “Conjuntura no Brasil: retrocessos sociais e ações de resistência, n. 42, v. 4, p. 251-285, dez. 2020.
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V.20, nº 41, 2022 (jan-abr) ISSN: 1808-799 X
Heraclito Santa Brigida da Silva2
Resumo
Com base nas discussões acerca da conjuntura e temas contemporâneos, especificamente no que se refere ao atual contexto de crise do capitalismo e de profundas transformações societárias no mundo, com ênfase no Brasil, em especial na Amazônia, é que o presente trabalho se propõe em discutir o avanço do grande capital na região amazônica, por meio do agronegócio. Discorre sobre as diversas ordens de conflitos, e a negação de direitos dos povos do campo.
Palavras-chave: Amazônia. Agronegócio. Conflito. Território.
AGROINDUSTRIA EN LA AMAZONIA Y AVANCE DE CAPITAL: ATAQUE A LOS PUEBLOS DEL CAMPO
Resumen
A partir de discusiones sobre la situación actual y los temas contemporáneos, específicamente en lo que respecta al contexto actual de crisis del capitalismo y profundas transformaciones sociales en el mundo, con énfasis en Brasil, especialmente en la Amazonía, este trabajo propone discutir el avance del gran capital. en la región amazónica, a través de la agroindustria. Discute los diferentes órdenes de conflictos y la negación de derechos de los pueblos rurales.
Palabras clave: Amazon. Agroindustria. Conflicto. Territorio.
AGRIBUSINESS IN THE AMAZON AND THE ADVANCE OF CAPITAL: ATTACK ON THE COUNTRYSIDE PEOPLE
Abstract
Based on discussions about the current situation and contemporary issues, specifically with regard to the current context of capitalism's crisis and profound societal transformations in the world, with an emphasis on Brazil, especially in the Amazon, this paper proposes to discuss the advance of big capital in the Amazon region, through agribusiness. It discusses the different orders of conflicts, and the denial of rights of rural peoples.
Keywords: Amazon. Agribusiness. Conflict. Territory.
1 Artigo recebido em 24/11/2021. Primeira avaliação em 08/12/2021. Segunda avaliação em 18/01/2022. Aprovado em 01/02/2022. Publicado em 28/03/2022.
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v20i41.52365
2 Bacharel (2017) e Mestre (2021) em Serviço Social pela Universidade Federal do Pará. Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas “Sociedade, Território e Resistências na Amazônia'' (GESTERRA), da Universidade Federal do Pará. E-mail: heraclito.ufpa@gmail.com.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/6409333833533353. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5336-7736.
A atual conjuntura econômica, política, social e cultural da sociedade brasileira, vem sofrendo com os desmontes em todas as esferas indicando fortes ameaças à garantia dos direitos positivados na Constituição Federativa Brasileira que vigora desde 1988. A Amazônia, considerada uma das maiores e mais ricas regiões do continente americano, expressa, em seu processo histórico, econômico e social a contradição entre a riqueza natural e a pobreza social em que o território amazônico, ao longo dos anos, foi sendo formado.
Ao longo dos anos, os recursos previstos para as políticas públicas, as quais garantem a efetivação da dignidade humana, sofreram reajustes que impactaram e impactam principalmente a população que vive no campo, nas comunidades ribeirinhas, quilombolas e tradicionais. Como exemplo desse processo de retirada de financiamento das políticas públicas, no ano de 2018, no governo do Presidente Michel Temer, foram realizados cortes significativos em áreas como saúde, educação, assistência social e saneamento, esta restrição orçamentária compromete a efetivação e continuidade de serviços, programas e projetos sociais. Um dado que chama atenção, foi que o Fundo Nacional de Assistência Social perdeu mais de 90% de seus recursos, prejudicando desta maneira, principalmente as famílias que precisam deste recurso para sobreviver.
Além das políticas de saúde, educação, previdência, assistência, outras políticas e segmentos societários são atingidos cotidianamente com o desmonte da garantia e efetivação dos direitos sociais, provocados pela política econômica pautada na ideologia neoliberal. Um exemplo é a questão dos povos e comunidades tradicionais que estão sendo visivelmente atacados com as ações do atual governo.
O processo de retrocessos que o país vivência tem contribuído diretamente com a desigualdade social entre a população, tal desigualdade está atrelada com a distribuição assimétrica da riqueza socialmente produzida por meio do trabalho humano. Partindo de tais relações, regidas, principalmente, pelo sistema capitalista que transformou as relações sociais e modificou as condições de vida da sociedade,
especialmente, a brasileira, este sistema visa cada vez mais a concentração de renda para aqueles que são donos dos meios de produção.
Neste sentido, elabora-se alguns questionamentos que servem como nortes para entender essa realidade regional, tais como: Que elementos autorizam a degradação do ecossistema amazônico levada a cabo pelas cadeias produtivas do agronegócio? Por que a integração da região Amazônica à nação brasileira, ocorre de forma subordinada ao grande capital nacional e estrangeiro? Por que o Estado brasileiro assume nas relações interiores e exteriores um papel subordinado e dependente ao capital?
Com o objetivo de sistematizar os conceitos abordados no constructo do respectivo artigo, Amazônia, capitalismo, povos e comunidades tradicionais, realizou- se um levantamento bibliográfico sobre a temática em questão, o qual permitiu uma compreensão global sobre os temas discutidos, bem como as influências para as populações locais. Outro sim, o respectivo artigo está dividido em quatro seções a contar com uma introdução, realiza-se uma discussão acerca da relação da Amazônia, povos, comunidades tradicionais e os megaprojetos, a terceira seção trata sobre os direitos humanos, conflitos e interesses, e por último traça-se as considerações finais.
O avanço do agronegócio na Amazônia é, claramente, uma consequência de um contexto mundial, no qual mercados externos pressionam e incentivam a produção de determinados produtos. Neste sentido, a Amazônia vem sofrendo diversas mudanças de várias ordens e aspectos, que provocam imensuráveis rupturas e conflitos entre o grande capital e as populações que em sua maioria são os mais atingidos pelos empreendimentos pensados e instalados nas regiões. Além da ruptura com as raízes tradicionais, os megaprojetos desencadeiam o desequilíbrio no espaço territorial acentuando desta maneira as lutas pela garantia ao uso dos bens naturais e ao direito à terra.
Inicia-se esta inflexão com uma afirmativa, quando se pensa em desenvolvimento local, regional, nacional, internacional e continental, é impossível pensar a Amazônia brasileira, fora e ou à parte deste projeto de desenvolvimento, que tem como objetivo transformar esta região em um grande celeiro de portas abertas
para o investimento do capital exterior em troca das riquezas naturais, a partir de uma falsa lógica de desenvolvimento.
Nesta perspectiva, Porto-Gonçalves (2017, p. 53), ressalta que:
Se desde os anos de 1960/1970 podemos falar do início da fase dos megaprojetos sobre a Amazônia, estamos, agora, diante de um megaprojeto que estrutura vários megaprojetos. Um novo padrão geográfico que Paul Little denomina “industrialização da selva” e que trará enormes consequências ecológicas, culturais e políticas não só para a região, mas para todo o planeta.
Um exemplo que caracteriza esta “industrialização da selva” é a UHE de Tucuruí, a chamada “Hidrelétrica da Ditadura” Pinto (2012), construída em 1970/1980, que foi um dos empreendimentos pensados neste período, conhecido como ditadura militar que visava a produção de energia elétrica para manter em funcionamento as grandes empresas de mineração instaladas no respectivo período no Estado do Pará. Por conseguinte, era disseminada a cultura de que os grandes projetos proporcionariam mudanças qualitativas nos moldes e relações sociais, bem como no bem-estar da população que habitavam no entorno dos empreendimentos. Apesar do ínfimo desenvolvimento proporcionado pelos grandes projetos, a literatura nos faz lembrar que os maiores beneficiados com a construção dos megaprojetos, foram e são as grandes empresas que administram os projetos de infraestruturas, nas ordens
de energia, agropecuária, mineração, extrativismo e etc.
Logo, a autora Loureiro (2012, p. 531) entende que:
[...] como que a forma atual e predominante como se estabeleceu nos últimos séculos o contrato social nas sociedades ocidentais, imposto pelo sistema democrático-liberal, visando apenas a reprodução do capital, gerou uma grave crise no sistema-mundo. Essa crise reside no fato de que predominam cada vez mais fortemente os processos de exclusão social sobre os processos de inclusão social. As populações tradicionais são povos atrasados, primitivos, portadores de uma cultura inferior, que obstaculizam o desenvolvimento e só têm a ganhar integrando-se à sociedade urbana e “civilizada”, desocupando suas terras para atividades ditas modernas.
Nesta perspectiva, verifica-se que as estratégias engendradas pelo governo e o capital empresarial para a Amazônia, demonstram um significativo aumento do interesse pela “exploração dos recursos naturais da região para além de suas fronteiras políticas.” Castro (2012, p. 45). Tal afirmativa, reforça a compreensão que se tem sobre o real e obscuro objetivo dos grandes projetos de infraestrutura para a região supracitada.
Castro (2012, p. 45), contribui inferindo que:
Empresas transnacionais e organismos multilaterais, como atores globais, têm pressionado a esfera política para modificar dispositivos legais e instituições a fim de adequá-los à nova economia. Os estados nacionais continuam a ter papel importante na regulação social, política e econômica, e permanecem protagonistas, mas sob uma lógica liberalizante do capital, tendo inclusive sucumbido a certos acordos de agências reguladoras internacionais e penalizado as relações de trabalho, [...].
É possível identificar por meio da fala da respectiva autora, que o Estado é o ator principal na manutenção das relações e regulamentação social, porém, são obrigados a se estruturarem nesta nova lógica do capital financeiro que enseja um pseudodesenvolvimento para as comunidades locais. Nesta relação, em que o capital nega os acordos nacionais, bem como as legislações locais, o maior prejudicado é o sujeito - classe trabalhadora, que está na ponta da cadeia produtiva, exército reserva de mão de obra, os quais são aniquilados pela negação de direitos.
Não obstante Bourdieu (1989, p. 386-387), explica que:
o número de práticas fenomenalmente muito diferente, organiza-se objetivamente, sem ter sido explicitamente concebidas e postas com relação a este fim, de tal modo que essas práticas contribuem para a reprodução do capital possuído.
Compreende-se que, quando se pensa em megaprojetos para as regiões com a promessa de mudança e desenvolvimento, são ínfimos os benefícios para a comunidade local. A região Amazônica está cerceada nesta lógica, pois, ao serem desenvolvidos, os projetos já chegam todos definidos, não levam em consideração as diversidades, personalidades e individualidades das comunidades que serão atingidas direta ou indiretamente pelos empreendimentos, acarretando desta maneira inúmeros conflitos.
Esses conflitos geralmente são violentos, atingindo principalmente os povos indígenas e as comunidades tradicionais, pois são estes os protagonistas que atuam em defesa do direito da natureza como um bem de todos, porém, mais uma vez esses povos e comunidades estão na mira de ameaça do atual desgoverno do Presidente Bolsonaro que, segundo Rubens Valente (2018, p. 12):
Confirmando temor de indigenistas e indígenas, o presidente Jair Bolsonaro (PSL-RJ), em um de seus primeiros atos na Presidência, esvaziou a FUNAI (Fundação Nacional do Índio) ao destinar ao Ministério da Agricultura uma das principais atividades executadas
pelo órgão indigenista nos últimos 30 anos: a identificação, delimitação e demarcação de terras indígenas no país. [...] Na prática, as demarcações passam agora às mãos dos ruralistas, adversários dos interesses dos indígenas em diversos Estados.
Este fato reforça a questão da ideologia neoliberal instruída pelo governo atual, que serve como ponte para o grande capital, em que se estrutura a abertura para o mercado externo, entretanto, esta política de mercado desconsidera todas as formas leais de garantia de direitos dos sujeitos e das comunidades e povos tradicionais que estão inseridos nos territórios em que o processo de capitalização se instala.
Neste prisma e tendo como base o decreto n° 6.040 de 07 de fevereiro 2007, em seu Artigo 3º, compreende-se por povos e comunidades tradicionais grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, e que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica utilizando conhecimentos, inovações e políticas geradoras e transmitidas por tradição. Verificou-se que as políticas públicas voltadas para os povos e comunidades tradicionais são recentes no âmbito do Estado brasileiro e tiveram como marco a convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que foi ratificada em
1989 e trata dos direitos dos povos indígenas e tribais no mundo.
No Brasil as comunidades tradicionais são classificadas por diferentes formas de organização populacional tais como: quilombolas, ciganos, matriz-africana, seringueiro, castanheiros, quebradeiras de coco-de-babaçu, comunidades de fundo de pasto, faxinalenses, pescadores artesanais, marisqueiras, ribeirinhos varjeiros, caiçaras, praieiros, sertanejos, jangadeiros, ciganos, açorianos, campeiros, vazanteiros, entre outros.
De acordo com a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR, 2018), que considerando os dados do programa das nações unidas para o desenvolvimento (PNUD), concluiu que:
[...] as comunidades tradicionais constituem aproximadamente 5 milhões de brasileiros e ocupam 1 ⁄ 4 do território nacional. Por seus processos históricos e condições especificas de pobreza e desigualdade, acabaram vivendo em isolamento geográfico e/ou cultural, tendo pouco acesso a políticas públicas de cunho universal, o que lhes colocou em situação de maior vulnerabilidade socioeconômica, além de serem alvos de discriminação racial, étnica e religiosa.
Estes dados explanam de maneira quantitativa de aproximadamente 5 milhões de quilombolas e que ocupam uma dimensão espacial de quase ¼ do território brasileiro. Reforçam e ilustram as condições de desigualdades vivenciadas diariamente por esses grupos, que são cotidianamente imbuídos pelas desigualdades sociais que contribuem para o isolamento do seu espaço geográfico e das suas manifestações culturais, pois, não acessam de maneira equânime as políticas públicas, acentuando desta forma as condições de pobreza e marginalização sócio espacial.
Nesta perspectiva o autor Ricardo Gilson da Costa Silva (2014, p. 148) explana
que:
Na agricultura científica globalizada esses mesmos mecanismos encontram-se em mutações, dado o peso da tecnologia e da engenharia genética no processo produtivo, que em função dos progressos científicos tende a reduzir a influência biológica, a influência da natureza, no desenvolvimento da planta, passando certos metabolismos ao controle científico das forças do capital. A paisagem do agronegócio é cada vez mais cientificizada e artificializada pelas técnicas imersas na produção.
A expansão do agronegócio na Amazônia tem sido objeto de debate tanto no campo acadêmico quanto no cenário econômico, de todo modo tem provocado debates pró e contra a esta atividade da indústria mundial. Se por um lado é uma atividade econômica de grande importância para o país, por outro lado pode levar a diversos impactos ambientais e, assim, comprometer o desenvolvimento sustentável da região. No campo das atividades agroindustriais, além da expansão de áreas de pastagens para criação de bois para produção de carne voltada para exportação, outra atividade vem se apresentando como uma nova ameaça à Amazônia: a expansão da soja. Bickel (2004) descreve que “a expansão da soja no Brasil parece desenfreada”.
Nesta perspectiva o desmatamento na Amazônia apresentou acentuado crescimento a partir do início da década de 90, com a principal mudança do uso do solo se dando em razão da enorme expansão da área ocupada por pastagens, as quais correspondiam a cerca de 70% das áreas desmatadas em 1995 (Margulis, 2003). No mesmo sentido, Kaimowitz (2004) afirma que “a avassaladora maioria das áreas desmatadas acaba convertida para pastagens”. Neste sentido, é importante entender que o desenvolvimento não ocorre ao acaso, mas como resultado de uma trajetória construída a partir das decisões e ações tomadas.
Em vista disso, o autor Gilberto de Souza Marques (2019), ressalta que “a luta pela preservação da floresta não pode ser desconectada da percepção de que necessitamos de um novo modelo de sociedade”. O autor acredita que esse novo modelo não deve mais ser assentado na busca do lucro, mas do verdadeiro e integral desenvolvimento humano, na qual os seres humanos tenham a possibilidade de se desenvolverem plenamente e construir relações não contraditórias e/ou degradantes com a natureza.
É possível identificar que ao longo da história as regiões, em especial a amazônica, sofreram diversas mudanças em nível micro e macro no campo social, geográfico, econômico e político por causa do pseudodesenvolvimento disseminado nas populações pobres. Essas mudanças além de acentuarem as desigualdades sociais, provocaram inúmeros conflitos, que vão desde o direito pela terra até o uso dos recursos naturais.
Porto-Gonçalves (2017, p. 51-53), ressalta que:
O acesso à terra, à água ao subsolo e seus minérios, petróleo e gás é disputado por setores com poder desigual, pois os EIDS e seus corredores atraem grandes capitais que se apropriam da renda da terra, impõem sua dinâmica espaço-temporal explorando grandes volumes de produção, e ainda atraem localmente setores ligados ao pequeno comércio e á especulação imobiliária e outras (drogas, prostituição).
Verifica-se, que além do ínfimo desenvolvimento que o capital proporciona, traz consigo um vasto desequilíbrio para as regiões, principalmente nas áreas rurais, onde se instalam, pois, a região é obrigada a se moldar às novas transformações, as quais provocam a sua desigual inserção no mercado global, o qual desencadeia uma reconfiguração territorial e de relações sociais de grande amplitude. Carvalho (2004,
p. 2), ressalta que, “os empreendimentos que estão sendo executados, ou que ainda serão implementados na Amazônia buscam, entre outros objetivos, garantir o acesso de poderosos grupos econômicos àqueles recursos”.
É importante ressaltar que os respectivos projetos acentuam os números de conflitos, pois, só o fato de eles serem anunciados já provocam o deslocamento dos moradores entorno dos empreendimentos, e esse deslocamento para as áreas em
que serão implantados os megaprojetos acarretam a procura pelos serviços e dispositivos sociais que em sua maioria não atendem a população local, ocasionando desta maneira a precarização e o ineficiente atendimento aos atingidos pelos projetos. Embora seja oferecido um ineficiente serviço às populações locais, os movimentos sociais lutam e relutam para garantir o mínimo de direito constitucional aos atingidos pelas atividades do agronegócio, pois os respectivos projetos disseminam uma cultura de conflitos na Amazônia. Neste sentido, Carvalho (2004), explica que os conflitos ocorrem, entre outras pressões, a partir do: aumento da demanda mundial por proteínas e vegetal; aumento da demanda por energia; produção de agro combustíveis; aumento da demanda por minério e pela demanda
por madeira e o esgotamento de estoques na Ásia.
Uma outra forma decorrente desses conflitos é a violência física e armada provocada pela disputa territorial, reforma agrária, e uso dos bens naturais pelas populações locais. Essas violências são expressas e ocasionadas de várias maneiras, tais como: repressão do Estado, extinção de pequenas empresas locais, desmobilização dos movimentos sociais e a desqualificação das lideranças.
Os dados do relatório da Comissão da Pastoral da Terra (2020, p. 26-27) destacam que:
[...] o ano no qual se manifestou maior número de ocorrências de conflitos por terra foi 2020, em seguida 2019, ou seja, os dois anos de governo de Jair Bolsonaro foram os de maior registro de ocorrências de conflitos por terra na série histórica. [...] observa-se que as regiões que mais se destacam em ocorrências de conflitos são Norte e Nordeste. Entre os Estados, em primeiro lugar, está o Maranhão, com 1.772 ocorrências, seguido de Pará, com 1.169; [...]. Em 2020, a Amazônia Legal chama a atenção no tocante às ocorrências de conflitos por terra. Observa-se maior concentração dos conflitos exatamente nessa região, com destaque para o norte Maranhense, sul do Pará, Acre, norte de Mato Grosso e de Tocantins. Entre 2011 e 2016, período de governo de Dilma Rousseff, a média de famílias em conflitos foi de 83.209 famílias – lembrando que Dilma deixou o governo ainda em agosto de 2016. Em 2017 e 2018, governo de Michel Temer, houve queda no número de famílias, em relação a 2016, estabelecendo a mesma dinâmica das ocorrências nesses anos. Já entre 2019 e 2020, período de governo de Jair Bolsonaro, o número de famílias em conflitos elevou-se drasticamente, atingindo a média de 157.432.
Para além dessa abordagem, das causas de conflitos que ocorrem na Amazônia, é imprescindível ressaltar acerca dos direitos humanos que cotidianamente são negados a esses sujeitos. Adotada e proclamada pela Assembleia Geral das
Nações Unidas (resolução 217 A III) em 10 de dezembro 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos estabelece como parâmetros universais a defesa intransigente do direito da pessoa humana, tendo no bojo da sua elaboração o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis.
Neste sentido, a autora Candau (2008), ressalta que a discussão dos direitos humanos, antes entendida pelo viés do direito exclusivamente individual e fundamentalmente civis e políticos, amplia-se e afirma-se a importância de se pensar nos direitos humanos, ao mesmo tempo em: coletivos, culturais e ambientais.
Destarte, os conflitos que ocorrem nas suas diversas ordens, provocados pelos megaprojetos no campo de agronegócio, minério-metalúrgico e, agroindústria negam a construção social e aniquilam os direitos humanos. Santos (2006, p. 441), “[...] enquanto forem concebidos como direitos humanos universais em abstrato, os Direitos Humanos tenderão a operar como um localismo globalizado e, portanto, como uma forma de globalização hegemônica [...]”. Tal afirmativa, ratifica a concepção de que uns, possuem direitos garantidos, dentro de um processo globalizado – mundo capitalista – em detrimento de outros que têm seus direitos sucumbidos, restando- lhes “acostumar-se” à exploração dos bens coletivos, pelo mundo do trabalho, que é alienante, alienado e alienador.
Carvalho (2004, p. 2), ressalta que, “os empreendimentos que estão sendo executados, ou que ainda serão implementados na Amazônia buscam, entre outros objetivos, garantir o acesso de poderosos grupos econômicos àqueles recursos”. Outro sim, o autor Milton Santos (1996, p. 189-190) afirma que o território é: “O Estado-Nação [...] essencialmente formado de três elementos: 1) o território; 2) um povo; 3) a soberania. A utilização do território pelo povo cria o espaço”.
Neste sentido o teórico Haesbaert (2006a p. 75 -76) considera não ser tarefa fácil “agrupar” todos esses territórios em um único,
[...] dificilmente encontramos hoje um espaço capaz de “integrar” de forma coesa as múltiplas dimensões ou lógicas econômicas, política, cultural, natural. [...] Sobrariam então duas possibilidades: ou admitir vários tipos de territórios que coexistiriam no mundo contemporâneo, [...] ou trabalhar com a ideia de uma nova forma articulada/conectada, ou seja, integrada.
Nesta lógica compreende-se claramente que a visão integradora do território parte do pressuposto de uma imbricação de múltiplas relações de poder entre
sociedade, natureza, política, economia, cultura, materialidade e idealidade, todas numa interação espaço-tempo. Tais relações são desenvolvidas pelos sujeitos, os quais são diariamente descaracterizados, pois não são considerados, pelos grandes empreendimentos, partes integrantes do território.
O modelo agropecuário brasileiro, historicamente sustentou-se e expandiu-se mediante a apropriação extensiva de novas áreas territoriais que foram sendo, ao longo dos anos, apropriadas de maneira irregular e transformadas em expressos celeiros de atividades no campo da produção de commodities. Trata-se de um modelo dependente da oferta elástica de terras, que exige a manutenção de um estoque de terras ociosas e não exploradas sem qualquer restrição de uso.
O processo de modernização da agricultura, ao invés de atenuar e ou diminuir as contradições entre o desenvolvimento econômico e as condições de vida dos sujeitos que vivem no campo, agravou esse traço estrutural, acentuando desta maneira a disparidade entre econômico e social. Além disso, nas últimas décadas, esse modelo foi reforçado pelo crescimento das atividades agroindustriais controlada por grandes corporações.
Compreende-se que os projetos no campo do agronegócio, tensionados pelo grande capital e pela lógica neoliberal, desencadeiam diversas expressões da “questão social”. Nesta lógica, as populações diretamente afetadas, são os povos e comunidades tradicionais que são solapados pelos tentáculos do capital estrangeiro que ganhou nos últimos anos extensa flexibilização por parte do Estado, este fato ganha neste atual governo um incentivo a mais, pelo fato de terem como ideologia econômica o neoliberalismo de extrema direita.
Por fim, compreende-se que o agronegócio, os projetos de desenvolvimento econômico, produção de commodities, agroindústria, e projetos na área minério metalúrgico, pensados para a Amazônia, sucumbem e descaracterizam a história, cultura e, relações sociais construídas pelos povos do campo. Logo, faz-se necessário que se instale outra relação entre sociedade e natureza e que se construa uma nova relação entre os seres humanos, desta vez pautada na equidade social, compreendendo desta maneira, a nossa forma de atuação em defesa dos direitos sociais resistindo de forma otimista os conflitos gerados pelo capital.
Nesta perspectiva, é necessário construirmos caminhos mais democráticos e justos para esses sujeitos, articulando com movimentos sociais e populares, entidades e organizações, estratégias de intervenção que ultrapassem a ação imediatista, focalizada e fragmentada das políticas públicas e sociais, que visem à integralidade entres elas, objetivando a concretização da proteção integral dos povos e comunidades do campo.
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V.20, nº 41, 2022 (jan-abr) ISSN: 1808-799 X
Gessiane Nazario2
Resumo
O presente artigo aborda os conflitos fundiários e a luta pela terra na comunidade quilombola da Caveira, situada no município de São Pedro da Aldeia, no estado do Rio de Janeiro. Enfatiza o evento por mim designado como “revolta do cachimbo”, pois ele marca a ruptura do pacto moral entre fazendeiros e moradores (descendentes de escravizados) da Fazenda Campos Novos, que estabeleceu novos padrões de subordinação da força de trabalho e ocupação da terra. Esse evento ocorre no contexto de loteamento da Fazenda Campos Novos e inaugura os esforços constantes (e violentos) dos fazendeiros de expulsão dos moradores que pagavam arrendamento para ter acesso à terra e casa. Apresenta também os desdobramentos históricos que culminaram na etnização do conflito fundiário, nos anos 1990, com a transformação das formas de expressão política fundamentadas na luta pela reforma agrária em luta pela reparação histórica dos danos coletivos causados pela escravidão.
Palabras-chave: Revolta do Cachimbo; conflitos fundiários; etnização; danos coletivos.
LA REVUELTA DE LAS TUBERÍAS Y LA LUCHA POR LA TIERRA EN QUILOMBO DA CAVEIRA
Resumen
Este artículo aborda los conflictos agrários y la lucha por la tierra em la comunidad quilombola Caveira, ubicada en el municipio de São Pedro da Aldeia, en el estado de Río de Janeiro. Destaca el hecho designado por mí como la "revolta do cachimbo", ya que marca la ruptura del pacto moral entre campesinos y residentes (descendientes de esclavos) de la Finca Campos Novos, que estableció nuevos estándares de subordinación de la mano de obra y ocupación de la tierra. Este evento se desarrolla em el contexto de la subdivisión de la Finca Campos Novos e inaugura los constantes (y violentos) esfuerzos de los agricultores por expulsar a los residentes que pagaron arrendamientos para acceder a tierras y casas. También presenta los desarrollos históricos que culminaron com la etnicización del conflicto agrário em la década de 1990, com la transformación de formas de expresión política basadas em la lucha por la reforma agraria em la lucha por la reparación histórica del daño colectivo causado por la esclavitud.
Palabras clave: Revuelta de tuberías; conflictos de tierras; etnización; perjuicios colectivos.
1Artigo recebido em 28/12/2021. Primeira Avaliação em 03/01/2022. Segunda Avaliação em 17/01/2022. Aprovado em 30/01/2022. Publicado em 28/03/2022.
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v20i41.52713
2 Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro/UFRJ/Brasil. É professora dos anos iniciais do Ensino Fundamental da Rede Municipal em Armação dos Búzios. Pesquisadora e escritora da área de Educação Escolar Quilombola, Relações Étnico-raciais na escola, alfabetização de crianças quilombolas e formação de professoras(es)para uma educação multicultural e antirracista. Atua nos coletivos de Educação da CONAQ (Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Quilombola) e ACQUILERJ (Associação das Comunidades Quilombola do Estado do Rio de Janeiro). Quilombola da Rasa, em Armação dos Búzios, RJ.
E-mail: gessiane.ambrosio@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/9026694135300954. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5472-8107.
THE PIPE REVOLT AND THE STRUGGLE FOR LAND IN QUILOMBO DA CAVEIRA
Abstract
This article adresses land conflicts and the struggle for land in the Caveira quilombola community, located in the municipality of São Pedro da Aldeia, in the state of Rio de Janeiro. It emphasizes the event that I have designated as “revolta do cachimbo”, as it marks the rupture of the moral pact between farmers and residents (descendants of slaves) of Fazenda Campos Novos, which established new patterns of subordination of the work force and occupation of the land. This event takes place in the contexto of the subdivision of the Campos Novos Farm and inaugurates the constant (and violent) efforts of farmers to expel residentes who paid leases to gain access to land and houses. It also presentes the historical developments that culminated in the ethnicization of the land conflict in the 1990s, with the transformation of forms of political expression based on the struggle for agrarian reform into a struggle for the historical repair of the collective damage caused by slavery.
Keywords: Pipe Revolt; land conflicts; ethnization; collective damages.
À margem da rodovia Amaral Peixoto, na região dos Lagos do RJ, está a comunidade quilombola da Caveira, no município de São Pedro da Aldeia. Seu nome intrigante, Caveira, é parte de sua envolvente história vivida por pessoas descendentes de escravizados que encontraram no trabalho da terra o sentido para suas sobrevivências. A própria história de construção dessa rodovia se confunde com a luta dos quilombolas da Caveira pelo seu território. A estrada é o caminho principal que liga as cidades do Rio e Niterói às cidades da Região dos Lagos e a Campos dos Goytacazes no norte fluminense. Os turistas que passam por ela rumo aos seus destinos de lazer nas cidades litorâneas do Rio mal sabem o que sucedeu às famílias descendentes de escravizados décadas atrás, hoje reconhecidos como quilombolas. Como me lembrou o Sr. Afonso em entrevista para a minha pesquisa de doutorado: “Só as bananeiras sabem das lutas que se travaram ali”. Nas margens dessa estrada, vemos os quintais do Sr. Afonso e do Sr. Genil. Paralela a ela, encontramos a casa da grande liderança, já falecida, Dona Rosa Geralda da Silveira, uma das importantes protagonistas da luta pela terra na Região dos Lagos.
Falar da luta pela terra na Caveira, enfatizando o evento da revolta do cachimbo, é falar da trajetória daquelas famílias que por sua persistência permaneceram até hoje naquela localidade. O processo de urbanização e turistificação das cidades da Região dos Lagos custou a vida e dignidade de muitos lavradores e quilombolas. Essa história pouco contada, ou seja, a história dos
3 Este artigo é uma versão de uma parte da minha tese de doutorado sobre a Comunidade Quilombola da Caveira, no contexto da sua luta pela terra e pelo direito a educação defendida em Junho de 2020 (NAZARIO, 2020).
considerados vencidos, é silenciada nos veículos de divulgação como sites de prefeitura e turismo. Escrever sobre eles é como voltar a esse tempo e trazer à tona a verdade sobre os acontecimentos históricos, ocultada pela versão oficial da história na região. Caveira foi assim nomeada, pois naquela região se enterravam cadáveres de pessoas e animais em covas rasas que, com o tempo, suas caveiras ficavam expostas. Caveira é uma das fazendas que faziam parte da grande Fazenda Campos Novos no antigo Cabo Frio. Esse local é o berço da luta pela terra dos quilombolas na Região dos Lagos do Rio de Janeiro. Uma luta que é travada ainda hoje. Para entender sua trajetória histórica pela terra, precisamos entender o que foi a Fazenda Campos Novos.
O presente texto então foi organizado de forma a apresentar ao leitor a historicidade da luta pela terra na Comunidade Quilombola da Caveira, em São Pedro da Aldeia, na Região dos Lagos, no Rio de Janeiro. Os conflitos de luta pela terra se desenrolaram no antigo complexo agrícola da Fazenda Campos Novos. Nesse sentido, procurei iniciar o texto com o episódio que deflagra os conflitos entre o Marquês e os trabalhadores o qual designei como “A Revolta do cachimbo”. Na sessão seguinte, procuro realizar uma reflexão sobre os processos de ruptura do pacto moral que havia entre os ex-escravizados e os fazendeiros desde o pós-abolição e os desdobramentos que essa ruptura provocou nas relações de trabalho vigente. Também descrevo os processos de mudança nas categorias identitárias reivindicadas pelo próprio grupo até se autodesignarem enquanto quilombolas a partir do artigo 68 da Constituição de 1988.
As terras da fazenda Campos Novos foram doadas aos padres da Companhia de Jesus (os jesuítas), em 1617, pelo então capitão-mor de São Pedro de Cabo Frio, Estevam Gomes. Inicialmente, os padres recrutavam indígenas para trabalharem na fazenda de gado que se formava naqueles “novos campos”. Nesse mesmo período, com a chegada dos africanos cativos ao longo dos séculos XVII e XIII, a mão de obra escrava é intensificada na região de Cabo Frio. Com a expulsão da Companhia de Jesus pelos portugueses em 1758, a fazenda e as famílias negras que ali viviam foram colocadas “na lista de bens e utensílios apreendidos pela Fazenda Real”. Nessa
ocasião, a fazenda é renomeada como Fazenda D’EL Rey e posta para leilão público, sendo arrematada por Manoel Pereira Gonçalves em 1759. A partir desse momento, é iniciado o processo de desmembramento daquelas terras estabelecendo lotes em menor escala administrados por foreiros e outros tipos de concessões como Itahua, Angelim, Fazendinha e Piraúna. Essas fazendas são importantes para a compreensão da história local, pois foram fundamentais para a configuração da estrutura do tráfico ilegal de escravizados na região (LUZ, 2013).
Na segunda metade do século XIX, grande parte da fazenda Campos Novos, que já estava bem fragmentada, pertencia ao Reverendo Joaquim Gonçalves Porto. Com a desarticulação do tráfico ilegal de escravizados, a fazenda segue como um grande complexo agrícola que abastecia a cidade do Rio de Janeiro com a utilização da mão de obra cativa. Com a morte do reverendo, os processos de apropriação da fazenda se intensificaram e assim prosseguiu até o início da década de 1920, quando Eugenio Honold adquire a vasta propriedade e agrega ao patrimônio de sua empresa: a Companhia Odeon. Eugenio Honold manteve os descendentes daqueles escravizados como seus “colonos”4, pagando o dia para morar e fazer roça. Honold submeteu a fazenda a várias negociações, atraindo posseiros e trazendo muitos problemas para os descendentes dos escravizados. A fazenda era administrada por seu filho George Honold, que falece em 1949 num acidente de carro. Eugenio falece no ano seguinte. Sendo assim, seu neto Luiz Honold Reis, em 1952, passa a direção da fazenda para Antônio Paterno Castelo, “o Marquês”, lembrado com muito pesar pelos mais velhos das comunidades quilombolas. Desde a construção da Rodovia Amaral Peixoto, rodovia que liga o município de Niterói a Campos dos Goytacazes, a Região dos Lagos passou a ser frequentada por veranistas, o que impulsionou a Companhia Odeon a intensificar a venda dos lotes (ACCIOLI, 2018; NAZARIO, 2020). A Fazenda Caveira fazia parte do complexo agrícola Campos Novos. Campos Novos foi comprada pelo alemão Eugenio Honold na década de 1920, muito lembrado pelos anciãos das comunidades quilombolas que por ele foram explorados como “colonos” “pagando o dia para morar” (ACCIOLI, 2018, p. 27). No ano de 1952, acontece uma Assembleia Geral da Companhia Agrícola de Campos Novos, dirigida por Luiz Honold Reis. Ali foi lido um instrumento de ajuste lavrado com a companhia
4 “Colonos” era o termo utilizado pelo fazendeiro, Honold, nos documentos de negociação de compra e venda das terras da fazenda Campos Novos para designar os arrendatários.
Odeon que pertencia a Otávio Monteiro Reis, pai de Luiz Honold Reis. Nessa transação, a administração da Fazenda foi passada para Antonino Paterno Castello, italiano, e José Victor Rodrigues, brasileiro. Caveira ficou sob o comando de Antônio Paterno Castello, lembrado como Marquês pelos trabalhadores negros que possuem tristes lembranças sobre esse período.
Quando o Marquês comprou a fazenda, ele chegou aqui querendo colocar um clima de... de escravo. Qual é o clima de escravo dele? Ele começou logo proibindo as pessoas de fumar, coisa que na roça quase todo mundo fumava cachimbo e cigarro. Entendeu? E com um monte de exigência. E cê vê que daqui ia um grupo de Botafogo fazer renda lá e chegou lá o Marques mandou que um velho chamado Marcelo [inaudível] botasse o cachimbo fora, ele não queria que fumasse. Aí o pessoal foi…não, o pessoal foi não, proibido fumar, tô acostumado fumar. E aí o que que fizeram? Reuniu um grupo, no outro dia quando foram pagar renda, na outra semana, quando foi pagar renda, aí foi todo mundo… mesmo aquele que não fumava levaram cigarro. Se ele mandar embora um, vai mandar todos. Chegou lá ele… aí digo oh, então o senhor vai mandar embora a todos. Aí conclusão, ele não aceitou, aí vieram todo mundo embora. Se eles viessem embora e não pagasse a renda daria condições dele despejar a gente da terra. Então um órgão em Cabo Frio, uma receita, uma coisa assim, uma coletoria federal. Antes de receita federal era coletoria federal, se não me falha a memória. E que então… E em Botafogo, no caso, era um lugar que a gente era atacado por fazendeiro, mas tinha aqueles político dentro de Cabo Frio que sempre vinha em defesa das pessoas. Era uma defesa que defendia na hora, mas quando cabava dali ninguém resolvia nada o problema da terra. Aí o Marquês vendo que ele… aí ele vendo que se a gente não pagasse a renda era um caminho pra que ele pudesse botar... então o político arrumô pra que nós pudesse botar o dinheiro lá na coletoria e convidar o Marquês pra receber o valor real dos dois dias por mês em dinheiro que era o valor dos dia que ele pagava a cada cidadão. Entendeu? Só que o Marquês não quis receber, pra poder ocasionar o direito dele vim e criar o despejo. Como ele não foi receber, aí o prefeito da época falou “já que ele não quer receber”. Pagamos durante dois anos esse dinheiro. Aí ele mandou o pessoal ir lá e o pessoal repanharam o dinheiro que tinha depositado. Ele vendo que não tinha condições mais de tirar o povo, o que que ele fez, ele começou a soltar boi na roça do povo, a roubar a carga do povo, criou um grupo de jagunço que perseguia o povo. Entendeu? (Sr. João, entrevista concedida a Gessiane Nazario, em 09/10/2019)
Na década de 1950, havia muitas plantações de banana e café segundo a memória oral dos mais antigos da comunidade quilombola da Caveira. A principal atividade econômica na região de Cabo Frio e seus distritos era a agricultura e não a
pesca como rezam as companhias de turismo de Armação dos Búzios. Os episódios de conflito com os fazendeiros e tentativas de expulsão, muitas vezes bem sucedida, aconteceram com mais intensidade e crueldade durante a gestão do Marquês, que queria expulsá-los para iniciar o processo de loteamento das terras e inseri-las no mercado imobiliário. As recordações sobre esses episódios permanecem vivas na mente desses mais velhos que lembram, com muito pesar nos olhos e riqueza de detalhes, a forma como tinham de ir de um lugar para outro em busca de um local de refúgio e subsistência. A tentativa de expulsão ocorreu através de várias estratégias como atear fogo nas roças, soltar bois nas roças e nos quintais das casas e jagunços andando nus nos quintais das famílias para intimidá-los. Existem vários relatos sobre tais conflitos que esses mais velhos vivenciaram. Na comunidade quilombola da Rasa, em Armação dos Búzios, muitos tiveram de deixar suas terras e ir embora para outras cidades mais próximas em busca de trabalho: quando não saía a família inteira, pelo menos um membro saía para buscar outros meios de subsistência (NAZARIO, 2015). Algumas famílias da Rasa que foram expulsas foram viver junto aos moradores da Caveira e Botafogo (na região conhecida como restinga). Já na comunidade da Caveira, houve uma peculiar resistência das famílias, pois eles se organizaram e fundaram o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de São Pedro da Aldeia e Cabo Frio, tendo a figura de dona Rosa Geralda da Silveira como uma importante liderança na construção dessa resistência aos ataques dos fazendeiros.5
“Fizemos a associação dos lavradores pra poder fugir do cativeiro. Nós fomos fazer o grupo pra tirar a corda do pescoço, que ser escravo de fazendeiro e pagar quantia por mês não é brincadeira, não” (Dona Rosa). Observamos aqui a memória da escravidão articulada a categorias do sindicalismo rural. A linguagem política da reparação histórica ainda não se sobrepõe ao vocabulário de demandas pela reforma agrária. É preciso assinalar que esse depoimento da Dona Rosa é bem anterior ao quadro institucional instaurado com a Constituição Federal de 1988, quando critérios
5 Na comunidade da Caveira, antes de reivindicarem seu território como quilombola, já havia uma unidade de organização que era a Associação dos Moradores da Caveira e o Sindicato dos Trabalhadores Rurais do qual muitos eram filiados. A principal liderança da comunidade foi uma mulher que ainda hoje é saudosamente lembrada, seu nome era dona Rosa Geralda da Silveira. Foi a primeira mulher a integrar o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de São Pedro e Cabo Frio e a primeira a ir à feira vender seus produtos diretamente, eliminando a figura do atravessador. Informações retiradas de uma entrevista de Dona Rosa à Revista do Conselho Estadual dos Direitos da Mulher (CEDIM) como parte do projeto Memória Viva; Documentário “A Conquista- Projeto Autodoc do IPHAN-RJ na Região dos Lagos” e de conversas com alguns quilombolas da comunidade registradas em meu caderno de campo.
étnicos de mobilização e representação política reconfiguraram os conflitos fundiários que envolviam o campesinato negro.
Dona Rosa se refere a “abençoada luta da terra” em contraposição aos “amaldiçoados grandes grileiros”, enfatizando a perseguição que sofriam nomeando os seus algozes -Antônio Paterno, Dácio Pereira, Félix Valadares e João Zeca – e aqueles companheiros de luta que foram assassinados como Sebastião Lan, Manoel Mangueira e Elísio. Foi a partir dos anos 1950 que se iniciou o processo de expulsão das famílias dos agricultores sob o comando do Marquês, mas não podemos esquecer que o Marquês era empregado da companhia Odeon que pertencia a uma rica família da alta sociedade do Rio de Janeiro. A companhia Odeon pretendia iniciar o loteamento das terras da fazenda para o mercado imobiliário, pois a abertura da Rodovia Amaral Peixoto, na década de 1940, havia facilitado o acesso à região aumentando o número de visitantes (ACIOLLI, 2018).
O patriarca da família Honold morre em 30/06/1950 (Correio da Manhã, 08/07/1950). Seu filho George Honold, a quem o pai havia atribuído à administração da fazenda, faleceu um ano antes, em 09/02/1949. A administração de Campos Novos passa então ao neto de Eugenio, Luiz Honold Reis, filho de Octávio Reis e Regina Honold Reis. Luiz Honold era mais um típico playboy burguês, mergulhado até a alma na vida mundana da elite capitalista brasileira, despreocupado com o “árduo” trabalho de acumulação do capital econômico familiar. Seus investimentos privilegiados destinavam-se mais a conservar e ampliar o patrimônio simbólico (o nome) da família, através da ostentação de uma ociosidade aristocrática, na esfera das redes de sociabilidade e consagração (festas, cerimônias) das marcas de distinção da alta burguesia.
A morte de George Honold é um marco tanto na história quanto na memória da relação dos entrevistados da Caveira com os fazendeiros. Inclusive, delimita dois períodos: um no qual havia uma relação “harmoniosa” com os Honolds (“Ele não incomodava aqui”) e outro marcado por violências e arbitrariedades na época do Marquês. Quando digo “harmoniosa” não me refiro a ausência de conflito ou subordinação da força de trabalho, mas a um tempo em que imperava um pacto moral de convivência entre fazendeiro e os moradores da fazenda que tinham acesso à terra (a casa e a roça) em troca de serviços prestados ao dono.
O Sr. Genil Silveira Dutra guarda a seguinte lembrança de George Honold:
Seu Marquês comprou de seu Jorge, filho do Sr. Honold. seu Jorge morreu de acidente de carro. Seu Jorge cheguei a lembrar dele. Dizem que ele era muito devoto. Ele sentava pra orar... na época de festa de Campos Novos, ele ajudava muito na festa de Santo Inácio. Campos Novos era uma vila. Quem acabou com a vila de dentro de Campos Novos foi esse italiano Sr. Marquês. [...]
Seu Marquês veio da Itália. Sr. Jorge morreu... eu não sei quem que vendeu a terra... Seu Marquês veio pra cá pra dar serviço a muita gente. Então, o que ele fez: ele arrumou um tal de contrato, pra o pessoal assinar um contrato e... aí saíram com aquele contrato. Algumas pessoas assinaram... muita gente assinaram! Todo aqueles que assinaram o contrato, ele botou todo mundo na rua! Botou boi na roça... botou todo mundo na rua! Só quem não assinou esse contrato foi o veio Negozinho, meu tio, e Sílvio [Silveira]. Sílvio, na época, ele tinha, ele tinha ido ao Rio e aprendeu muitas coisas lá... algumas coisas com as pessoas que sabiam o que era direito. Quando ele casou veio morar aqui, e na época a gente... o Marquês botou placa de loteamento de lá Santa Margarida, em Unamar, até ali, ó! Pra lotear. As únicas pessoas que não assinaram contrato foi o pessoal daqui de Botafogo. Todos aquele que assinou, ele botou tudo na rua! Botou boi na roça, pintou o sete.(Entrevista concedida a Gessiane Nazario, em 30/09/2019 apud Nazario, 2020, p. 103 e 104).
O Sr. Genil fala de George Honold como alguém integrado com a comunidade, que participava das festas de Santo Inácio e demonstrava uma conduta devota com o santo. A esfera religiosa é mencionada como lócus de aproximação entre fazendeiros e colonos. Nessa entrevista, o Sr. Genil já desenha a nova situação com o loteamento e a imposição de novas relações de trabalho na fazenda: “Ele arrumou um tal de contrato”; como também a estratégia de expulsão ao soltar “os bois na roça”, destruindo as plantações. Ele aponta Botafogo como a origem da resistência, o “pessoal de Botafogo” que não assinaram contrato; e como personagens principais nesse ato de insubmissão, o seu tio Negozinho e Sílvio, seu cunhado e presidente da associação de lavradores, que “sabia o que era direito” por ter morado no Rio de Janeiro, onde aprendeu muitas coisas. A organização em moldes associativistas, em torno da categoria de lavrador, remete a uma percepção dos conflitos em termos de sentimentos de injustiça e indignação diante de direitos violados.
O tempo do Marquês é caracterizado pela ruptura unilateral com esta economia moral que legitimava vínculos e relações de obrigação e favores assimétricos (um sistema de subordinação da força de trabalho), expressos no direito à moradia e roçado nas terras do patrão (THOMPSON, 1998). A socióloga Leonilde Medeiros
(2018) aponta este fenômeno em um plano mais geral das lutas camponesas no Brasil. Mediadores elaboram uma linguagem política na qual as privações locais são universalizadas em demandas por direitos.
São situações diferenciadas no tempo e no espaço que confluem para um rápido processo de expropriação, onde concepções de direito à terra eram constantemente colocadas em questão. É recorrente, tanto nos depoimentos colhidos ao longo da pesquisa quanto na bibliografia, a menção à quebra de relações estabelecidas e sentimento de indignação e revolta. Potencializando esses sentimentos e contribuindo para conformar noções de justiça e injustiça, bem como do que era legal e ilegal e da necessidade de resistir às transformações em curso, foi fundamental a ação de mediadores políticos vários, com destaque para o Partido Comunista Brasileiro (PCB), organizações ligadas à Igreja Católica, agentes da política institucional (governadores, deputados), grupos de advogados etc. Essas mediações forneceram uma linguagem comum a partir da qual as demandas e estratégias se expressaram, condições materiais e intelectuais para que a resistência se fizesse, articularam os conflitos particulares a bandeiras e lutas nacionais (MEDEIROS, 2018, p. 52).
Sendo assim, o tempo do Honold é idealizado, pois os conflitos são esquecidos diante de uma memória potente e arrasadora, que sustenta uma narrativa de conflitos pretéritos urdida em uma linguagem de direitos fundiários, enunciados em torno das categorias de grileiro e posseiro. As violências perpetradas pelo Marques, por Dácio e seus seguidores eram não só materiais, mas também simbólicas, pois abalavam os parâmetros cognitivos e éticos de sustentação do mundo da vida cotidiana herdados desde a pós abolição e que ditavam os termos costumeiros da permanência nas terras onde moravam e da experiência social de ex-escravos e seus descendentes. A representação política e mobilização coletiva em torno das categorias posseiro, lavrador e trabalhador rural, sob a forma de associação civil e sindicato, forneceu uma linguagem pública para expressão de sentimentos de privação e sofrimento, assim como repertórios de ação e alianças, diante da ruptura dos padrões morais de subordinação da força de trabalho e acesso à terra.
Um fato culminante na história dos moradores da Caveira que mudou a forma como o trabalho estava configurado foi quando, na década de 1950, o Marquês queria impor regras mais duras e proibir os lavradores6 que fumassem o cachimbo e
6 Termo usado por Dona Rosa para se referir ao seu próprio grupo, categoria social de mobilização constituída no âmbito do movimento sindical rural.
estabelecer horários até mesmo para urinar e beber água. Em ato de resistência, os mais velhos retiraram o cachimbo do bolso e começaram a fumar. O Marquês ordenou que eles retirassem o cachimbo da boca e voltassem ao trabalho e, um deles, o Sr. Marcelino, respondeu que ele estava em seu tempo de descanso e que não iria retirar o cachimbo da boca. O Marquês ao se reportar em direção ao Sr. Marcelino parou quando percebeu os outros lavradores se posicionarem ao lado dele, do senhor Marcelino, para defendê-lo. O fazendeiro, raivoso, ordenou que ele não pisasse mais em suas terras. Quando foram embora, eles se reuniram e, juntos, decidiram não mais pagar suas terras cultivando as do fazendeiro, mas sim, pagando em dinheiro o dia de trabalho. A proibição do fumo do cachimbo foi a gota d’água, somada às outras regras mais duras e, também, ao fato do Marquês não querer dar o recibo do dia do arrendamento, como eles começaram a exigir. A proibição ao cachimbo foi o estopim para deflagrar a organização e união do grupo que culminou na criação da associação.
Sr. Genil Silveira Dutra fez um relato impressionante sobre este evento:
O pessoal saía daqui pra pagar renda lá! E, ele botou uma lei pra que ninguém podia fumar no serviço. O pessoal de lá de Campos Novos respeitaram. De outra região respeitaram... só quem não respeitou foi o pessoal daqui. Aí reuniu todo mundo pra ir pagar renda e foram todo mundo. Aí, meu tio Negozinho, os filhos não fumava, então ele disse assim: ó, criança, vocês nunca fumaram na minha vida, mas toma cada um, acende seu cigarro, pode fumar! Aí quando viram o jipe do Marquês vindo lá, o velho Severino acendeu o cachimbo, o velho Marcelo que morava lá, acendeu o cachimbo... e cada um tá tocando o serviço acendia, fumava o cigarro. Ele tinha um filho chamado José… Giusepe, em italiano é Giusepe: Severino tira o cachimbo da boca! [diz seu Genil imitando o sotaque dele]. Aí o velho Severino: Eu não tiro o meu cachimbo! Aí o velho Marcelo: Marcelino tira o cachimbo! “não tiro!”. Tira! Não tira! Tira! Não tira...
Todo mundo pro escritório! Aí foi. Aí todo mundo fechando na porta do escritório. Chegou lá: Marquês! Você é italiano, Marquês! Nós somos brasileiros! Você não tá pensando que tá na Itália, não, Marquês? O senhor tá aqui no Brasil! Aí subiu todo mundo, invadiram o escritório. Invadiu, invadiu e o Marques, ó, pá! [faz sinal de escape, batendo a mão uma na outra]. Se escondeu. Aí de lá ele falou pra secretaria dele, que era a dona Regina, filha do Joaquim Português: Regina, dá recibo a todo mundo. Dá recibo. Não quero saber de mais ninguém aqui! Teve que dar o recibo a todo mundo, mandou todo mundo embora!
Aí, nós tinha o professor Edilson Duarte (...) Edilson Duarte ele era advogado e era professor. Então, ele era muito conhecido daqui. Ele entrou e falou pro pessoal daqui fazer o seguinte: vocês fazem o seguinte, ele não quis receber a renda de vocês, vocês depositam o dinheiro no banco! Naquela época, não sei quanto era por dia... cada dia era negócio de cinco, dez mirreis por dia. Então, a pessoa tinha que pagar 4 dias por mês. É um dia de semana, quatro dias por mês.
Então as pessoas pegava aquele dinheiro, ia no Banco do Brasil depositar pra ele retirar lá. [...] (Entrevista concedida a Gessiane Nazario, em 30/09/2019).
Os quilombolas da Caveira possuíam uma noção legitimadora, apoiada na crença de que estavam defendendo um costume, de fumar o cachimbo, mobilizando o consenso mais amplo da comunidade. As queixas operavam dentro de um consenso popular a respeito do que eram as práticas legítimas e ilegítimas, havia um pacto moral tácito, orientando as atitudes recíprocas entre fazendeiros e lavradores. O diálogo com a noção de economia moral do historiador E. P. Thompson (1998) é pertinente para elaborar um quadro analítico que permita compreender melhor a significação sociológica deste evento na construção social de disposições contestatórias e como fator de mobilização, pois percebi que tal episódio é paradigmático na memória das lutas pela terra. É importante também destacar que E. P. Thompson (1998) opera com reformulações do conceito de cultura e tradição, opostas a uma abordagem estática e a-histórica dos fenômenos sociais. O costume é a cultura, sendo conscientemente mobilizada e objetivada (pela noção de hábitos ou usos legitimados pela antiguidade), em contextos de lutas sociais normativamente configuradas. A cultura é subjacente ao conflito, mas o conflito também é subjacente à cultura, ambos se determinam mutuamente.
[…] Por isso o costume não codificado – e até mesmo o codificado – estava em fluxo constante. Longe de exibir a permanência sugerida pela palavra “tradição”, o costume era um campo para a mudança e a disputa, uma arena na qual interesses opostos apresentavam reivindicações conflitantes. […] Mas uma cultura é também um conjunto de diferentes recursos, em que há uma troca entre o escrito e o oral, o dominante e o subordinado, a aldeia e a metrópole; é uma arena de elementos conflitivos, que somente sob uma pressão imperiosa – por exemplo, o nacionalismo, a consciência de classe ou a ortodoxia religiosa – assume a forma de um “sistema”. E na verdade, o próprio termo “cultura”, com sua invocação confortável de um consenso, pode distrair nossa atenção das contradições sociais e culturais, das fraturas e oposições dentro do conjunto. [Aspas do autor] (THOMPSON, 1998, p. 16-17).
Valores e crenças que regem os conflitos também podem se tornar objeto de disputas, enquanto outros operam silenciosamente, mas não de modo homogêneo, enquanto senso prático do jogo. Sendo assim, os costumes ou tradições (nos seus significados sociais historicamente estabelecidos) podem ser incorporados (ou confrontados) pela legislação, o chamado direito formal, conscientemente
reivindicados para a afirmação da cidadania. É muito próximo do uso teórico e metodológico do historiador marxista Eric Hobsbawn (1984) ao conceito de tradição. O tradicional (ou costumeiro) não se opõe à modernidade, pois o que é considerado tradicional (comportamentos, crenças, instituições) pode ser produzido ou reivindicado no presente como uma resposta a mudanças percebidas difusamente como aceleradas, abruptas, impostas e injustas; em tempos concebidos como “modernos”, gerando uma sensação coletiva de continuidade com o passado que legitima direitos pela sua presumida antiguidade. Tradições, costumes e memórias são produzidos como políticas identitárias de grupos em situações de conflito para fortalecer laços de solidariedade e senso de pertencimento que mobilizam sentimentos e razões para a resistência e a luta.
O tempo do Marques é um tempo de ruptura com a economia moral da época dos Honolds e de estabelecimento de um regime de terror que será prolongado com a atuação de Dácio Pereira de Souza, outra personagem proeminente na memória dos conflitos fundiários na Caveira e em toda região da Campos Novos. No final dos anos 1950 e 1960, se consolida a percepção pública sobre a concentração da propriedade fundiária como um problema e novas categorias de apreensão do mundo rural emergem: como lavrador, posseiro e grileiro. A reforma agrária adquire ampla importância no debate público e o sindicalismo rural, como forma organizativa das lutas pelo acesso à terra e por direitos trabalhistas, assume uma força considerável no cenário político nacional.
Os lavradores de Botafogo-Caveira se organizam primeiro em associação e depois em sindicato. Nos anos 1950 e 1960, os camponeses e trabalhadores rurais surgem como atores políticos e sujeitos de direitos, portanto, como categoria de mobilização coletiva ligados a noções de injustiça social (GRYNSZPAN; DEZEMORE, 2007, p. 217). Nos anos 1960, continuaram as denúncias contra as arbitrariedades cometidas contra os lavradores. O presidente da recém criada Associação de Lavradores de São Pedro da Aldeia, Sílvio Silveira, denunciava, num jornal de grande circulação, as pressões dos fazendeiros concretizadas através de destruição de plantações com a conivência da polícia militar (Jornal do Brasil, 26/08/1961). Em 1961,
foi criado o Sindicato de Trabalhadores Rurais (STR) de Cabo Frio e São Pedro da Aldeia, substituindo a Associação de Lavradores criada dez anos antes (MAIA, 2018). Com o Golpe de 1964, o sindicato é fechado e reaberto nos anos 1970, porém não mais unificado, mas em duas organizações com áreas de atuação distintas: uma para São Pedro da Aldeia e outra para Cabo Frio.
Os conflitos fundiários na Fazenda Campos Novos tiveram uma nova configuração com o Golpe de 1964 e a ditadura militar, agravando mais ainda o regime de terror, pois as violências cometidas pelos fazendeiros tiveram a colaboração das autoridades policiais e militares. Nesse cenário, a repressão sobre os camponeses se justificava, segundo os grileiros, pela atribuição a eles do rótulo de “comunista. Nesse contexto histórico, a violência e a repressão (prisões, torturas e assassinatos) tornaram-se políticas de Estado e o estado de exceção se tornou regra, se institucionalizou. O trabalho do tempo ainda está se operando na consciência dos sujeitos envolvidos (quilombolas da Caveira), fazendo oscilar a narrativa sobre as lutas e sofrimentos do passado entre o dizível e o indizível, o lembrado e o silenciado (POLLACK, 1989). Falar sobre aqueles embates para algumas pessoas na Caveira ainda é uma forma de vivenciá-los novamente, portanto, a expressão dessa memória não é fácil, são emotivamente carregadas, principalmente para aqueles que foram presos e torturados. Essa memória é personificada nesses mais velhos e celebrada nas festas de aniversário e homenagens que são feitas para eles. A memória de traumas coletivos pode fundamentar identidades coletivas através de narrativas políticas e morais socialmente construídas, no presente, na linguagem de direitos etnicamente diferenciados (POLLACK, 1989).
Meses depois da instalação da ditadura militar, o Última Hora (04/07/1964) já destaca na sua manchete sobre a situação do conflito fundiário em Campos Novos como um “regime de terror” imposto por “grileiros” e “capangas” chefiados pelos “pretensos donos” Dácio Pereira [de Souza] e José Gringo. O cenário descrito é extremamente grave, implicando a continuidade de um repertório de ação no qual o uso sistemático da violência, com a conivência de delegados e policiais militares, realmente corresponde a imposição de um regime de terror: incêndio de casas, tratores e gado destruindo roças, espancamento de adultos e crianças, prisões arbitrárias, tortura… Podemos pensar nesse regime de terror como um padrão de relacionamento imposto por grileiros a posseiros (enquanto categoriais que remetem
a posições sociais) que marcam a existência social na Fazenda Campos Novos, pelo encadeamento de experiências e narrativas de sofrimento que rompem frequentemente com o cotidiano.
As Comunidades Quilombolas da Região dos Lagos configuram sua origem étnica a partir de uma memória ligada aos processos de escravização nas terras da Fazenda Campos Novos. Após a abolição da escravidão, a Fazenda Campos Novos passa por um intenso processo de fragmentação e desmembramento de seu território tendo sucessivos donos. Os nomes mais evocados pelos mais antigos das comunidades quilombolas em questão são o de José Gonçalves, o alemão Eugene Honold e o italiano Antônio Paterno, este último lembrado pelos mais velhos como Marquês. Segundo a memória oral da referida comunidade, após a abolição da escravidão, as famílias negras passaram a morar nas terras da Fazenda pagando arrendamento com um dia de trabalho por semana a esses fazendeiros. Esse processo em que famílias de trabalhadores negros explorados em regime de arrendamento consolida um campesinato negro sob um regime de dependência e subordinação das condições de reprodução socioeconômicas dos grupos domésticos.7 A partir da história da comunidade da Caveira, é possível refletir sobre a questão da construção e ressignificação do termo “quilombola”. A construção identitária dos quilombolas da Caveira está inserida no campo acadêmico das questões de conflitos agrários que remetem a agentes que se atribuem um passado comum em situação de escravidão e a formas diferenciadas do uso dos recursos naturais. Os conflitos agrários vão se dar em diferentes aspectos de acordo com a particularidade histórica de cada lugar.
O cenário pós 1988 apresentou, então, um quadro institucional favorável a luta das comunidades negras rurais (e urbanas também) em defesa da manutenção das terras que ocupavam ou da recuperação daquelas que lhes foram expropriadas. Os conflitos fundiários envolvendo tais coletivos adquiriram outra configuração, pois agora tinham como elemento central as demandas morais de reconhecimento identitário sustentados na busca por reparação histórica. No relatório antropológico de identificação da área quilombola da Caveira, temos a informação sobre as assembleias que ocorriam em 2004, quando ainda existia a Associação de Moradores de Botafogo-Caveira, na qual reivindicaram a titulação do seu território. Em 1998,
7 Para maiores informações sobre campesinato negro cf. GOMES, 2015; e ALMEIDA, 2008.
foram realizados estudos de reconhecimento étnico promovidos pela Fundação Cultural Palmares (FCP) e Instituto de Terras e Cartografia do Estado do Rio de Janeiro (ITERJ). Exatamente naquele ano das assembleias da associação, a FCP emite a certificação de autorreconhecimento da Comunidade Caveiras/Botafogo como “remanescentes de comunidades quilombolas” em 17/06/2004. Nessas assembleias, aconteceu o ritual político (o batismo) de conversão pública dos posseiros e lavradores em quilombolas da Caveira, ou de etnização8 definitiva do conflito fundiário na Fazenda Campos Novos. Os estudos antropológicos de identificação e delimitação do território da comunidade de remanescentes de quilombo da Caveira aconteceram nos anos de 2008 e 2009 (LUZ, 2009).
O direito de fumar o cachimbo é um símbolo da ruptura do pacto moral que regia as relações entre fazendeiros e o campesinato negro na Fazenda Campos Novos: “Ele começou logo proibindo as pessoas de fumar, coisa que na roça quase todo mundo fumava cachimbo e cigarro”. O conflito é deflagrado pela agressão a um costume apreciado coletivamente (um valor moral), uma afronta à dignidade camponesa. É um expediente verbal de enunciação da memória da resistência camponesa, mas é também o recurso simbólico de expressão e compreensão do confronto entre duas modalidades de (re)produção da vida social. Por isso, nos relatos orais sobre tal acontecimentos, os camponeses da Caveira se referem a ele como o “tempo do Marquês”, o “tempo do cativeiro”, “o tempo do loteamento” em contraposição ao “tempo dos Honold”, “tempo da harmonia”, “tempo da fartura”. Também são tempos opostos em termos de autonomia e dependência: “Nós não fomos empregados deles aqui, não. O pessoal só pagava a renda”. A metáfora da escravidão, a alegoria moral de injustiça, é acionada não para o período logo posterior a abolição, marcado pela ausência ou baixa frequência dos fazendeiros até a morte de George Honold e “venda” da fazenda, feita por Luiz Honold ao Marquês. Na
8 “O que estou chamando de etnização refere-se a esse congelamento da identidade no âmbito de ideologias étnicas que podem inscrever-se na ossatura institucional do Estado e das redes de movimentos sociais e organizações civis. Tais ideologias étnicas baseiam-se em uma consciência reflexiva da cultura e fundamentam esforços deliberados de revitalização cultural em comunidades argumentativas em que a “ancestralidade” precisa ser representada convincentemente diante de interlocutores difusos” (PERES, 2013, 36).
memória dos quilombolas da Caveira é quando foi inaugurado o conflito com os fazendeiros e todas as violências e crueldades cometidas contra eles. É quando a solidariedade dos grupos se expressa mais incisivamente, depois assumindo uma forma associativa de organização política. “Então tira o cachimbo da boca! Tira o cachimbo da boca!”, o cachimbo como signo dos direitos (nesse caso, ao descanso) agressivamente atacados pelo fazendeiro, como o Outro antagonista, categoria informada e incorporada na memória pela experiência sindical passada. “Era os 15 minutos que ele... a lei daria o direito a ele”, cabe destaque às referências ao direito e a lei. Na verdade, trata-se do direito e lei no sentido costumeiro (usos ou hábitos), mas no seio de uma memória perpassada pela experiência sindical na qual o quadro normativo estatal (sistemas legislativo e judiciário) eram acionados nos conflitos.
Nos depoimentos também observamos a reação camponesa a imposição pelo Marquês de um “clima de escravo” por meio de contratos formais e procedimentos disciplinares rígidos (segundo os critérios dos sujeitos) de controle do tempo e do trabalho. “E ele botou uma lei pra ninguém fumar no serviço”, “Por que ele queria obrigar o pessoal a ficar no regime deles!”. Lei/Regime significa um padrão de subordinação considerado opressivo porque fora das bases morais de legitimidade então vigentes, proporcionando, então, as condições para a emergência de disposições de protesto, sentimentos coletivos de indignação. Então, eles resolvem radicalizar, não pagando mais a “renda” em trabalho, mas em dinheiro, depositando no Banco o valor correspondente. Tal ação corresponde a uma manifestação de autonomia frente ao patrão, sendo o pagamento em dinheiro uma sinalização de libertação. Mas a reação do fazendeiro (enquanto uma posição social) resultou na substituição de uma economia moral do arrendamento por uma economia política do terror, a partir da venda para o Dácio Pereira e da criação de gado como principal forma de investimento capitalista nas terras da fazenda em detrimento da lavoura. A partir daí, os patrões impõem uma política de expulsão em vez de exploração / subordinação da força de trabalho. “Aí o Marquês passa essa briga pro Dácio”. Essa fórmula é reveladora do processo em tela: a emergência da categoria de “grileiros” (engendrada e incorporada na luta) como fato marcante na memória do conflito fundiário. A proibição do fumo do cachimbo foi a gota d’água, somada às outras regras mais duras e, também, ao fato do Marquês não querer dar o recibo do dia do
arrendamento. A proibição ao cachimbo foi o estopim para deflagrar a organização e união do grupo que culminou na criação da associação.
Nos anos 1980, os conflitos continuavam. Não mais uma associação de lavradores (os sindicatos rurais de São Pedro e de Cabo Frio já haviam voltado a funcionar em 1974 e 1978), mas uma forma de expressão organizativa local, da comunidade da Caveira, a Associação de Moradores de Caveira-Botafogo, que já tinha uma referência territorial e comunitária, foi importante para a transição de uma forma organizativa sindical para uma de caráter étnico. Nos anos 1990, no contexto de um processo de etnização do conflito fundiário na Fazenda Campo Novos, as categorias de posseiro e lavrador são substituídas pelas categorias de “remanescente de comunidades de quilombo”, firmada na Constituição Federal de 1988. Novas categorias de mobilização e representação política surgem e se consolidam, que acionam múltiplos critérios (étnicos, de gênero, regionais e consciência ecológica), dando visibilidade pública a formas de ocupação e uso comum da terra e dos recursos naturais antes ignorados pelo Estado brasileiro. Em vez de camponês ou trabalhador rural, o termo “povos ou comunidades tradicionais” assume alta relevância política na construção de demandas coletivas de direito. A base empírica dessa nova gramática moral dos conflitos fundiários é a diversidade de situações concretas que serão designadas por alguns estudiosos como territorialidades específicas. Nesse cenário, o conceito de “ocupação tradicional” torna-se uma categoria jurídica e político- administrativa do Estado brasileiro, correspondendo a outro enquadramento institucional de manufatura dos direitos a recursos fundiários, como instrumento de promoção e defesa de um modo de vida coletiva, vinculado a um território próprio.
O direito a terra é enunciado na linguagem da permanência no lugar onde ancestrais viveram a experiencia da escravidão, uma terra que os descendentes têm o dever de deixar como herança para gerações futuras, porque foi consagrada com o suor e o sofrimento inerentes ao cativeiro. Por isso que muitos deles associam o tempo do Marquês com a implantação de um novo regime de escravidão, porque essa memória e narrativa do passado fornece a referência temporal central para uma nova gramática moral das lutas pela terra. Antes a memória do cativeiro, perpassava os relatos dos conflitos fundiários, mas eram ofuscadas por outras metáforas privilegiadas pelo discurso militante da reforma agrária: trabalho e posse como categorias de justificação do acesso à terra e uso dos recursos naturais.O “Povo da
Caveira” é a autodesignação de um coletivo cujo eixo central são as três famílias (Silveira, Santos e Souza), “os troncos originais”, que formam uma rede de parentes, que descendem daqueles que foram escravizados na antiga fazenda homônima e que se contrapõem aos “de fora” e aos “infiltrados” (LUZ, 2009). Com o fim da escravidão, seus antepassados permaneceram nas terras da fazenda sob uma nova modalidade de subordinação e exploração da força de trabalho, o arrendamento, legitimado por um pacto moral com os novos donos que viabilizava as condições para a reprodução social do campesinato negro depois da abolição na Fazenda Campos Novos. Essa economia moral não é rompida pelos Honolds, mas o Marquês inaugura o regime de terror e coercitivamente tenta impor a expulsão. Ele abalou os alicerces materiais e simbólicos dos padrões de convivência entre donos e moradores, gerando o conflito que desaguou na revolta do cachimbo. A estratégia de destruir plantações e casas desmontava um sistema mais amplo de relações entre latifúndio e campesinato. O gado em confronto com a lavoura também não deixa de ser uma referência simbólica do embate entre dois sistemas de dominação, de classe e racial.
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V.20, nº 41, 2022 (jan-abr) ISSN: 1808-799 X
Elaine Martins Moreira2
Fruto de uma rica pesquisa, a obra traz análise e depoimentos dos sujeitos do processo de expansão do MST no Nordeste, bem como o cenário político vivenciado pelo país em cada contexto histórico retratado. Isto é precedido por uma exposição das condições históricas da questão agrária no Brasil: desde a forma que se deu a abolição do trabalho escravizado, a particularidade da apropriação privada da terra no século XIX, as ideias de reforma trazidas à baila e suas implicações contemporaneamente. Com o terreno assim preparado, a autora parte para apresentação das informações obtidas na sua pesquisa e, na análise delas, que envolvem as distintas gerações do Movimento e suas incursões no Nordeste.
O MST foi criado oficialmente em 1984, mas ele é decorrente da luta de uma série de organizações e revoltas camponesas que o antecedem. Mais, proximamente vinha ocorrendo algumas experiências estaduais de desapropriação de terras, em especial no Rio Grande do Sul no governo de Leonel Brizola. É mister destacar, ainda, o papel de entidades parceiras como sindicatos e igrejas para o surgimento do MST e o apoio disponibilizado para que suas ações fossem possíveis. Não caberá neste sucinto texto detalhá-las, mas, no livro, a autora discorre sobre o que só pudemos mencionar brevemente. Todas essas situações e relações são permeadas por contradições políticas, particularidades regionais e culturais.
1Resenha recebida em 16/03/2022. Aprovado pelos editores em 21/03/2022. Publicado em 28/03/0222. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v20i41.53454.
2 Doutora em Serviço Social pelo Programa de Pós-graduação em Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) - Brasil. Mestre em Serviço Social pelo Programa de Pós-graduação em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – (UFRJ) – Brasil. Graduada em Serviço Social Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE/Campus Toledo – Paraná / Brasil. Professora da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ESS – UFRJ) – Brasil. E-mail: e.moreira@ess.ufrj.br; ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1025-7446.
Lattes: htpps://lattes.cnpq.br/8268627279348886.
Apesar das experiências pontuais, o governo da Nova República não avança na possibilidade de concretização da reforma agrária e essa apatia faz com que o MST defina a ocupação de terras como sua tática de luta, ainda nos anos 80. Com pouco tempo de existência, a organização observa a predominância sulista entre seus quadros e suas ocupações de terra, fazendo com que comece a pensar o processo de sua nacionalização. Em seu primeiro congresso, em 1985, se percebe que as ocupações não estavam ocorrendo no Nordeste e, a partir disso, decide enviar militantes para contribuir com a operacionalização dessa tática de luta que vinha se mostrando efetiva em outras regiões.
Antes, a autora faz um diálogo com a literatura publicada sobre o MST para descrever como se construiu uma identidade "sem terra". Desde a influência dos “colonos de Nonoai” (RS), que já praticavam as ocupações e acampamentos a outros estudos que analisam os elementos que conformaram essa identidade. Mais do que criar novos códigos culturais, "os Sem Terra" promovem um estilo de militância, uma maneira de fazer a luta social, que passa por processos educativos e "culturais", para além da dimensão política stricto sensu.
Uma questão importante é o habitus militante, que pressupõe um engajamento integral. Se constitui em um espaço formativo importante para essas pessoas a vivência no acampamento, porém, ele não é exclusivo. A cultura política do MST interlaça elementos aprendidos do modo de vida campesino/gaúcho com a metodologia das pastorais cristãs.
Uma característica importante desses militantes que migram diz respeito a sua idade, majoritariamente, jovens e solteiros (as). Considerados mais disponíveis ao aprendizado da militância pelo acesso a instrução formal. Os militantes de primeira geração foram aqueles que chegaram ao Nordeste entre os anos de 1985 e 1988, durante o governo Sarney. A região ainda não era vista em suas particularidades, com o passar do tempo o movimento começa a observar a organização estadual. A segunda geração chega depois que a organização estava mais avançada e já tinha alguns assentamentos, esse período vai até 1997. Além das mobilizações contribuem também, com a formação interna nos assentamentos. Neste período começou o deslocamento de militantes entre os estados da própria região nordeste. A terceira geração se forma a partir de 1997 e já conta com militantes de outras regiões do país, apesar da predominância do Sul, esses grupos tinham como atribuição ajudar em
dificuldades políticas organizativas, mas de forma pontual. Alguns acabaram se fixando nesses estados, entretanto era necessariamente um dos objetivos das tarefas recebidas. Na década seguinte, que é quando a autora realiza sua pesquisa, se localiza a quarta geração, composta por “brigadas militantes” que têm por atribuição atuar na formação política e junto à organização do movimento com suas bases, ajudando na formação de núcleos e de novas lideranças. Elas têm um período definido para essa atuação.
No livro, a autora apresenta a trajetória dos militantes das duas primeiras gerações. Bahia, já havia recebido militantes em 1985 e, o sul do estado foi uma espécie de laboratório para a expansão do Movimento. A primeira geração parte fundamentalmente do Rio Grande do Sul e Santa Catarina. A segunda, inclui paranaenses, capixabas e de estados vizinhos do próprio Nordeste. Entre as pessoas que migraram para desempenhar essa tarefa política, algumas retornam anos mais tarde ao sul para acessar um pedaço de terra, já outras se estabelecem na região. Cabe destaque a diferença dos migrantes sulistas militantes do MST dos demais agricultores, especialmente, gaúchos que migram pelo país reproduzindo sua cultura. No caso da militância, se observa uma grande integração com a cultura dos locais a que foram enviados, incluindo, por exemplo, mudanças alimentares e relações afetivas como casamentos. Demonstram respeito e procuram diminuir os distanciamentos culturais. Todavia, dirimir completamente era impossível.
Essa “migração” não é apresentada isenta de contradições. Ao longo do processo, o Movimento nota que a estratégia das cooperativas inspirada no campesinato europeu, implementado no Sul, não funcionou no Nordeste, por exemplo. De outro modo, elementos da cultura nordestina foram incorporados nacionalmente, influenciando os gaúchos, acostumados com andanças altivas e protagônicas pelo país. Para a autora, nas considerações finais, essa interação gerou “novo tempo” no MST que colocou contradições internas, mas também promoveu mudanças, em territórios e em pessoas. Ao longo de sua trajetória, o Movimento passou a usar permanentemente essa prática das “brigadas”, nacionais e até internacionais, em que militantes assumem tarefas políticas e de solidariedade de classe.
A partir das entrevistas e do trabalho de campo desenvolvido, apresenta no capítulo seguinte aspectos do chamado “caráter modernizante” da luta desenvolvida pelo MST. Para ela, duas questões são relevantes para entender o que orienta o
trabalho político do MST: envolve o modelo de produção agrícola e o incentivo à educação continuada. Este debate, sobre o caráter modernizador do MST é deveras relevante. Pensar como esses deslocamentos contribuem para levar a essas regiões um racionalismo pragmático à produção econômica da agricultura que acabou por inserir muitas dessas famílias, antes sem terra, na sociedade de consumo, portanto, na lógica capitalista de produção. Por outro lado, o incentivo à formação e a instrução formal, poderia fazer um contraponto por meio de uma "modernização emancipadora" que além da inclusão nas instituições educacionais também produza formação de consciência. Isso se expressou, notadamente, no início dos anos 2000 quando o estudo de “todas e todos os sem terras” foi uma bandeira central do movimento. Vale conferir estes elementos aí apresentados e seus desdobramentos à luta social.
Fechando o livro, a autora incluiu um texto mais recente sobre a questão agrária nos governos do Partido dos Trabalhadores (PT). Embora a Constituinte de 1988 determine que a terra precisa ter uma função social, poucos desdobramentos desse princípio foram operados, passados mais de 30 anos. Certamente a chegada de Luís Inácio Lula da Silva à presidência foi a que mais expectativa por avanços gerou, tendo em vista a relação histórica do partido com o MST. Todavia, a política agrária do petista e de sua sucessora no governo federal, ficou bastante aquém do desejado e, do necessário, para alterar a estrutura fundiária e incidir no modelo agrícola hegemônico no Brasil. Sobre isso, a autora apresenta algumas pistas do que chama de “limitação da política agrária dos governos do PT”, a qual tendeu, segundo ela, para um processo de silêncio em relação a reforma agrária, preferindo referir-se à agricultura familiar. Por outro lado, não omitiu seu nítido apoio e incentivos ao agronegócio que está no outro lado da moeda, por exemplo, nomeando para ministro da agricultura Roberto Rodrigues, uma das maiores lideranças do agronegócio. Ainda que os governos petistas tenham criado políticas públicas que fortaleceram economicamente a agricultura familiar camponesa, especialmente, no incentivo à comercialização de seus produtos e no incremento do financiamento bancário, elas não tiveram impacto central na política empreendida. Estas e outras questões são analisadas com detalhe nesta obra fruto da pesquisa de tese de doutorado da autora.
Se recomenda fortemente a leitura porque apresenta importantes contribuições para o campo das ciências sociais, a qual conta também com prefácio do reconhecido autor latino-americano Miguel Carter, professor da School of International Service da
American University, em Washington, que entre outras obras publicou: “Combatendo a desigualdade social: O MST e a reforma agrária no Brasil”. Lendo o livro de Lerrer, se notará uma densidade e diversidade de informações sobre a organização do MST, sobre como as relações de poder atravessam de modo particular a questão da terra no Brasil e os desafios colocados à possibilidade de realização da reforma agrária. Se tornará certamente uma fonte de consulta para pesquisadores da área.
LERRER, Débora Franco. MST: Como um movimento de gaúchos se enraizou no Nordeste. Curitiba: Appris, 2021. 1ª. Edição.
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Ricardo Braga Brito2 É provável que o leitor já esteja familiarizado com a série de afirmações de que
o “agro” é “tech”, “pop” e “tudo”, presente em propagandas, reportagens e falas de especialistas e políticos vinculados ao setor. Trata-se, como aponta Caio Pompeia em seu muito oportuno livro Formação política do agronegócio, de uma “sinédoque política” que projeta “um imaginário superenglobante do agronegócio” e permite “justificar o pacto da economia política que se aprofundava” a partir de 2016 (p. 308), quando a campanha “Agro: a indústria e a riqueza do Brasil” foi lançada pela Rede Globo, corporação que faz parte do Instituto Pensar Agropecuária (IPA).
O processo histórico de formação e consolidação do agronegócio no Brasil, por meio de seus múltiplos atores individuais e coletivos, está no centro do livro de Pompeia. A publicação é fruto das pesquisas de doutorado em Antropologia Social, concluído na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), com período como Pesquisador Visitante na Universidade de Harvard, e de pós-doutorado na Universidade de São Paulo (USP). Ao longo desse tempo o autor analisou amplo material empírico: jornais e revistas nacionais e internacionais de ampla circulação, documentos e publicações das entidades de representação patronal, documentos públicos, filmes e materiais jornalísticos e publicitários e entrevistas com representantes políticos, intelectuais e agentes públicos vinculados ao campo do agronegócio.
A partir desses documentos e do enquadramento teórico da Sociologia Pragmática francesa, o autor destaca a multiplicidade de entidades criadas para
Resenha recebida em 05/01/2022. Aprovada pelos editores em 10/01/2022. Publicada em 28/03/2022. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v20i41.52759.
Doutorando do Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – Brasil (CPDA/UFRRJ).
E-mail: ricardobraga.brito@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/2742939826813262. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0220-7377.
evidenciar e estabelecer os interesses compartilhados de amplos setores que estariam articulados em torno do que hoje se convenciona chamar de “agronegócio”. Pompeia revela um conjunto de mecanismos de organização e estratégias discursivas de enunciação para criação de consensos e espaços de socialização que serão, ao longo do tempo, responsáveis pela aparente homogeneidade de interesses, discursos e práticas do campo do agronegócio.
Um dos grandes méritos do livro é o esforço de mapear a multiplicidade e fragmentação das representações e interesses dos agentes do agronegócio, fragmentação que, a partir de 2010, receberá elevados investimentos materiais, simbólicos e organizacionais para construir um consenso sobre pautas e políticas públicas a serem demandadas. A construção desses consensos indica nova etapa da formação política do setor, capaz de ampliar sua representação, transformando-a, discursivamente, de “particular” e “setorial” em “nacional”, e aumentando a quantidade de representantes políticos dentro do Legislativo e do Executivo, cada vez mais alinhados em suas falas e demandas. Essas estratégias são também ações e mecanismos que transformam o agronegócio em Estado, direcionando recursos públicos do orçamento, cargos da administração pública, remodelação de Ministérios e Secretarias, criação e desmonte de políticas públicas e elaboração de um projeto de nação que se subsome ao setor.
Contudo, o livro não se resume aos anos recentes. Dividido em nove capítulos, os cinco primeiros reconstroem a formação do conceito de “agribusiness” entre 1950 e 1990, desde o seu surgimento nos Estados Unidos até suas incorporação e adaptação no Brasil. Criado na Escola de Negócios de Harvard, o conceito tinha como intuito refletir e intervir nas relações entre pesquisa, agricultura, funções secundárias e terciárias e delimitação do papel do Estado. O termo foi criado para constituir um novo paradigma esclarecedor dessas relações, fundado em dados macroeconômicos que sinalizavam a importância da intersetorialidade entre agricultura, indústria e serviços que compõe o agribusiness, incluindo, para além da agropecuária em si, os processos de armazenamento, transporte, produção e beneficiamento de sementes, uso e produção de máquinas, processamento de alimentos, produção e uso de fertilizantes e agrotóxicos, entre outros.
Ao longo da obra, o autor identifica os principais elementos do paradigma: crença na modernização tecnológica; orientação para os ganhos de produtividade;
papel do setor para resolver os desequilíbrios de oferta e demanda de produtos alimentícios e de fibras; valorização das grandes unidades produtivas; discurso competitivo e de marginalização da produção familiar; delimitação e direcionamento das intervenções do Estado. Entretanto, a construção do conceito e sua incorporação por acadêmicos, intelectuais, técnicos estatais, representantes políticos, empresários, produtores e mídia não está descolada de projetos políticos e embates públicos. No Brasil, o conceito encontra um contexto de disputa entre modelos de política agrícola e agrária. Junto à repressão aos movimentos populares que demandavam a realização da reforma agrária, os governos da ditadura deram amplo apoio às políticas de modernização e mecanização do setor, beneficiando grandes produções e setores mais internacionalizados e integrados ao mercado, oferecendo-lhes subsídios e incentivos de crédito e aquisição de terra.
O conceito de “agribusiness” recebe ampla divulgação nos debates da Constituinte e na formação do projeto neoliberal, sobretudo pelos esforços de assessores e representantes da empresa Agroceres. Em diálogo com os criadores do conceito, esses atores o divulgaram através, entre outras ações, da criação do Programa de Estudos dos Negócios do Sistema Agroindustrial (Pensa, atualmente Centro de Conhecimento em Agronegócios), ligado à USP. Posteriormente a Agroceres participaria, junto de outros, da criação da Associação Brasileira de Agronegócio, competindo, e em muitos casos se articulando, com organizações que tiveram vidas mais ou menos curtas, destacando-se a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil e a Sociedade Nacional de Agricultura como as mais antigas.
Essas múltiplas estratégias não são gratuitas. Elas são formas de criar legitimidade para um setor que não deixou de receber críticas de movimentos sociais, intelectuais, representantes políticos e alguns setores acadêmicos e do governo. As modificações e estratégias para tornar pública a categoria, a criação de agendas direcionadas ao governo e/ou aos presidenciáveis e a formação de associações e institutos responsáveis por esses trabalhos servem na divulgação e transformação do agronegócio em fato público. Para tanto, ainda é um elemento característico de sua estratégia o uso dos dados macroeconômicos, como a participação no Produto Interno Bruto, a quantidade de empregos criados, a geração de divisas internacionais e o caráter tecnológico e, portanto, “moderno” do setor.
Esses elementos econômicos têm impacto político, evidenciado pela crescente participação do setor nos governos da Nova República, como indicado nos últimos quatro capítulos. Indica-se, assim, o quanto a disputa pelo conceito é também uma disputa pela percepção da realidade que influenciará nos modos de intervenção do Estado. A expansão internacional do agronegócio em meio ao boom das commodities dos anos 1990 e 2000, complexificaram as relações públicas e privadas do setor através da ampliação da Frente Parlamentar do Agropecuária (FPA), da multiplicação de associações e pela presença no Executivo. Nos governos do Partido dos Trabalhadores (2003-2016), essa valorização foi coadunada com políticas públicas voltadas para a agricultura familiar.
Os recorrentes conflitos relacionados à reforma agrária, comunidades indígenas, tradicionais e quilombolas, a índices de desmatamento, queimadas e grilagem, a ameaças ao meio ambiente e associação ao aquecimento global e às investigações e denúncias de trabalho análogo ao escravo criaram tensões entre o campo do agronegócio, o governo e setores da sociedade civil. As tensões e os esforços de articulação política, de pautas e estratégias de atuação do campo do agronegócio podem ser percebidas no prefácio da antropóloga e professora da USP, Manuela Carneiro da Cunha, sobre as relações entre o agronegócio e os povos indígenas, quilombolas e comunidades territoriais, tema que articula disputas em torno da própria Constituição.
Esses conflitos também estiveram na base do apoio do agronegócio ao impeachment de Dilma Rousseff em 2016, sobretudo da FPA. As relações estabelecidas com os governos Temer e Bolsonaro, contudo, devem ser vistas junto do contexto de organização e articulação do agronegócio ao qual aludimos no começo desta resenha. O que está por trás é um amplo trabalho de institucionalização da representação do agronegócio, com profissionalização de assessores e funcionários, com estabelecimento de reuniões e encontros periódicos, com racionalização e sistematização de temas e discursos, trabalho em grande medida realizado pelo IPA, mas antecedido e feito junto a inúmeras organizações. Contudo, a radicalização do discurso de Bolsonaro e a atual sensibilidade pública para as questões indígena e ambiental indicam que o trabalho de construção do consenso não só não se realizou plenamente em todos os temas, como pode sofrer abalos e rupturas.
De modo significativo, a pesquisa apresenta uma escolha teórica distinta de outros trabalhos referenciados pelo autor. Entretanto, é preciso indicar que essa opção teórica não é tão explícita, salvo algumas explicações presentes em notas de rodapé. Essa ressalva não desqualifica o livro, porém seria mais uma contribuição aos debates do campo acadêmico, visto que as escolhas teóricas e o material empírico permitem que Pompeia revele o intricado jogo de constituição do agronegócio enquanto termo aglutinador que constrói a identificação de um grupo marcado por disputas políticas e econômicas. Analisando o papel de organizações e atores que há décadas têm se empenhado na construção de consensos, discursos e interesses que compõem o setor e seus apoiadores, a obra nos permite entender e acompanhar o trabalho político de formação do agronegócio enquanto força social ativa e hegemônica na sociedade brasileira.
POMPEIA, C. Formação política do agronegócio. São Paulo: Elefante, 2021, 388p.
V.20, nº 41, 2022 (jan-abr) ISSN: 1808-799 X
Jesús Jorge Pérez Garcia2
Resumen
Este ensayo presenta resultados de experiencias de investigación doctoral realizadas de 2010-2015 en Cuba y en la Amazonía Tocantina Paraense (Brasil), desde 2020, siendo el trabajo comunitario y las necesidades sentidas de la comunidad los objetos de estudio. Con base materialista histórico-dialéctica utiliza relevamiento de literatura, observaciones libres y notas de campo. La articulación de estas investigaciones indica que las comunidades rurales están movilizadas por necesidades sentidas comunes, permeadas por la cultura, que las hacen seguir luchando, resistiendo y viviendo.
Palabras-clave: Comunidades rurales; Trabajo comunitario; Necesidades sentidas.
NECESSIDADES SENTIDAS: ENSAIO SOBRE LUTAS COMUNITÁRIAS EM TERRITÓRIOS RURAIS EM CUBA E NA AMAZÔNIA TOCANTINA PARAENSE- BRASIL
Resumo
Este ensaio apresenta resultados de experiências de pesquisa de doutorado realizada de 2010 a 2015 em Cuba e na Amazônia Tocantina Paraense (Brasil), desde 2020, tendo o trabalho comunitário e as necessidades sentidas da comunidade como objetos de estudo. De base materialista histórico-dialética, são utilizados revisão de literatura, observações e anotações de campo. A articulação destas pesquisas indica que as comunidades rurais se mobilizam por necessidades sentidas comuns, permeadas de cultura, que os fazem continuar lutando, resistindo e vivendo.
Palavras-chave: Comunidades rurais; Trabalho comunitário; Necessidades sentidas.
FELT NEEDS: ESSAY ON COMMUNITY STRUGGLES IN RURAL TERRITORIES IN CUBA AND IN THE AMAZON TOCANTINA PARAENSE- BRAZIL
Abstract
This essay presents the results of doctoral research experiences carried out from 2010-2015 in Cuba and in the Tocantina Paraense Amazon (Brazil), since 2020, with community work and the felt needs of the community being the objects of study. With a historical-dialectical materialist base, it uses literature surveys, free observations and field notes. The articulation of these investigations indicates that rural communities are mobilized by common felt needs, permeated by culture, which make them continue fighting, resisting and living.
Keywords: Rural communities; Community work; felt needs.
1 Recebido em 26/22/2021. Primeira avaliação em 05/01/2022. Segunda avaliação em 23/01/2022. Aprovado em 18/02/2022. Publicado em 28/03/2022. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v20i41.52512.
2 Doctor en Ciencias Pedagógicas por el Instituto Central de Ciencias Pedagógicas (ICCP, Cuba). Gestor de projetos em educação popular e EJA pelo NEAd, Pontifícia Universidade Católica PUC-RJ. Brasil. E-mail: jerjor2014@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/4393462117070720.
ORCID https://orcid.org/0000-0003-3691-8262.
En este ensayo reflexiono sobre “necesidades sentidas” a partir de experiencias vividas, percibidas y modificadas (THOMPSON, 1981) en comunidades rurales en la provincia de Pinar de Río3 (Cuba) y en la Amazonia Tocantina (Pará, Brasil)4. La primera experiencia fue registrada en una investigación doctoral5 realizada de 2010 a 2015 en la Universidad Hermanos Saiz Montes de Oca. La segunda, todavía en proceso (2020-2021), ha sido construida con quilombolas, con la Universidad Federal de Pará, Campus Cametá – Proyecto de Extensión e Investigación Cartografía Social y Prácticas Educativas: Memoria e Identidad en las Comunidades Remanentes de Quilombos en la Amazonía Tocantina6 , coordinado por el Profesor Dr. Edir Augusto Dias Pereira. Y fundamentalmente a partir de las experiencias adquiridas en el Asesoramiento Voluntario Técnico-Metodológico-Pedagógico, realizado con la Coordinación de Formación de Educación Escolar Quilombola, Secretaría Municipal de Educación, Deporte y Cultura - SEMEC, municipio de Mocajuba/PA.
Al intentar hacer la relación entre la investigación realizada en Cuba y la Amazonía Tocantina, partí de la comprensión de que la noción-concepto en construcción que denomino de “necesidades sentidas” tiene como materialidad de las experiencias de trabajo en curso, que según Marx (2013) son las formas como los hombres y las mujeres transforman la naturaleza, se transforman a sí mismas, es
3 Pinar del Río, provincia con grandes y hermosos paisajes naturales, ocupa el extremo más occidental de Cuba, principal productora de tabaco en el país; comprende 11 municipios con una población de 591, 931 habitantes. Las comunidades donde se realizó el estudio son: Comunidades del Crucero de Echevarría, Planta de Asfalto, el Cuchillo y la Comuna (Municipio de Consolación del Sur. 88, 950 hab.), Comunidad Carabela (Municipio Los Palacios. 38, 636 hab.), Comunidad 10 de Octubre (Municipio Pinar del Río. 190, 337 hab.) y Comunidad Martí (Municipio Sandino. 37, 891 hab.).
4 Región entendida, según Pereira (2014, p.22) como la “configuración territorial de la Amazonía brasileña, que actualmente comprende los territorios constituidos en torno al eje de circulación del río Tocantins, debajo de la Central Hidroeléctrica instalada en Tucuruí, en el noreste de Brasil, el estado de Pará, que abarca municipios como Baião, Cametá, Mocajuba, Igarapé-Miri, Limoeiro do Ajuru, Abaetetuba y Barcarena”. Para los propósitos de este ensayo, el foco está en el municipio de Mocajuba
/ PA, y sus 11 (once) Comunidades Quilombolas: Vizânia, Santo Antônio do Vizeu, São Benedito do Vizeu, Itabatinga, Uxizal, Mangabeira, Porto Grande, Mojutapera, São José de Icatu, Bracinho do Icatu, Tambaí-Açu.
5 Titulad: “Estrategia de Formación en Educación Ambiental para los Directivos de la Empresa Transporte Agropecuario de Pinar del Rio. Orientadores: Dra. C. Caridad Pérez García, Dr. C. Juan Alberto Mena Lorenzo y Dr. C Jesús Torres Domínguez.
6 Aprobado por el Campus Universitario de Tocantins - CUTINS / Campus Cametá, mediante ordenanza 094/2020, 3 de agosto de 2020.
decir, procesos dialécticos de construcción histórica, de un devenir constante, según Thompson (1987).
Así procuro responder a la indagación: ¿De qué forma las experiencias de territorios rurales tanto en Cuba como en la Amazónia Tocantina Paraense - Brasil, se hacen común en relación las necesidades sentidas? Por ello, en busca de respuestas, he realizado un relevamiento de la literatura y observaciones libres anotadas en un cuaderno de campo, según Triviños (1987).
En este contexto, es necesario registrar dos situaciones. Primero que la perspectiva de las "necesidades sentidas" aquí tratadas, no se impregna en la comprensión del deseo y la emoción que le precede, sino su contrario, es decir, la comprensión de que no es la conciencia lo que constituye la vida, pero sí la vida llena de necesidades la que constituye la conciencia, es decir, el sentir, lo que se percibe (MARX, ENGELS, 2009) materialmente, en la totalidad histórico-dialéctica. En segundo lugar, entiendo el territorio según Santos (1994, p. 16), a partir de la realidad total, es decir, el territorio que es forma, “pero el territorio utilizado, que construye objetos, acciones, sinónimo de espacio humano, espacio habitado”, así como, a que territorio no es “un espacio abstracto del planeta” (NOSELLA, 2011, p. 7). El Territorio es, por tanto, espacio-tiempo del todo imbuido por la producción de vida, la totalidad humana y no humana.
En este sentido, en teoría, las comunidades rurales en Cuba se entienden como espacios-tiempos en el proceso dialéctico constituido por la reforma agraria, tras la Revolución Cubana, en 1959. De esta manera, al buscar interrelacionarse con las vivencias de los quilombos rurales7 de Pará, buscamos pensar en la comunidad como un espacio-tiempo donde las raíces históricas, culturales, producidas por el trabajo, que también producen memorias, tradiciones, educación, conocimiento, habilidades, creatividad, resistencia, pensamiento crítico, toma de decisiones producción de estrategias y tácticas para la resolución de problemas.
7Se entiende también que hay quilombos urbanos en Brasil. Así, los quilombos urbanos son: “comunidades de quilombos que ocupan zonas urbanas, superando la idea de que estas están restringidas a zonas rurales”. Estos quilombos también se configuraron en la lucha por la supervivencia. Eran espacios de intercambio entre los trabajadores negros y la ciudad. Tiempos-espacios de “resistencia en la lucha abolicionista. Con el fin de la esclavitud, los quilombos urbanos no desaparecieron del paisaje de las ciudades” y permanecen presentes en varias ciudades de Brasil hasta la época histórica (BRASIL, 2012, p.27).
Con eso en mente, la comunidad no es solo una forma de vida; es un movimiento social, es decir, es un sentido de la vida - de las familias, del trabajo, con sentimientos de amor que crecen, se articulan y generan fuerzas endógenas a partir de las necesidades sentidas atendidas colectivamente en el territorio, por el bien común de todos sus integrantes. Todo interactúa, forma, educa, incluso con agentes externos, contradictoriamente en una perspectiva para, por y con la comunidad. Por tanto, cada comunidad es diferente y al mismo tiempo tiene aspectos comunes, que las identifican como tales, las unen e integran y tienen que ser respetadas.
El respeto es un valor primordial en las comunidades entre todos los valores y costumbres que producen, como dijo un quilombola en el territorio de Uxizal, Mocajuba
/PA, "no dejemos que nuestra lucha caiga, el respeto es uno de nuestros mayores valores, por lo tanto, respetemos para no caer8”.
Como se ve, los quilombos como comunidades tienen la fuerza de las necesidades sentidas que remiten a toda su ascendencia africana, por lo tanto, formas de comunidad y especificidad con sentido de vida entrelazadas con elementos de cosmovisión de respeto a la diversidad. Según Santos (2015, p. 65) hay una historia arraigada en la ascendencia, incluyendo una base politeísta, es decir, la “elaboración del conocimiento que organiza las diferentes formas de vida y resistencia de estas comunidades, expresada en su relación con los elementos de la naturaleza que fortalecieron a estas poblaciones en la lucha contra la colonización”. Y ha sido la base de la lucha-resistencia que mantiene vivos estos territorios.
Ampliando así, en el contexto brasileño, el concepto de comunidad puede entenderse como aquellas comunidades que, además de términos geográficos espaciales de campo y ciudad, también están constituidas por pueblos/comunidades tradicionales, es decir, se comprende que siendo este concepto cargado de ambigüedad y polisemia, el precisa ser considerando tanto como “categoría de analice”, en cuanto “categoría da acción política” (CRUZ, 2012, p. 596), pues observo que entre los quilombolas, el sentido de la vida como comunidad quilombola está
8 FUENTE: Informe sobre el III Putirum de Formación en Educación Quilombola y Educación Escolar, realizado por/con pueblos / comunidades quilombolas en el municipio de Mocajuba, en alianza con SEMEC y otros colaboradores y socios, el 13 y 14 de agosto de 2021, en Quilombo Porto Grande.
también en lo que expresan - “decir que soy quilombola es también un acto político” (María José, líder del Quilombo São José de Icatú, notas de campo9, 2021).
Así, considerando los propósitos de este ensayo, es decir, la relación de experiencias en Cuba y Brasil, adelanto el entendimiento de que las “Comunidades Rurales” son espacios-tiempos para vivir-pensar-sentir de manera integrada. “Resistencia para seguir existiendo”, como vienen pensando los pueblos afrolatinoamericanos, no es solo un concepto, sino una experiencia práctica, política, social y cultural.
A partir de estos planteamientos, este ensayo está compuesto por dos secciones que se articulan. En el primer apartado se discute la noción-concepto “necesidades sentidas”, problematizándola a partir de Marx y Engels (2009), a través de la unidad categórica trabajo-educación, que permite comprender la construcción histórica de mujeres y hombres, en mediación con la naturaleza, en contradicción con el capital. En el segundo apartado se analizan las necesidades sentidas desde los procesos educativos-comunitarios, que hacen sentir, pensar, actuar, transformarse en una dimensión sociocultural, que expresa los deseos de las comunidades y saberes de mediar y participar activamente en las transformaciones necesarias, con una perspectiva integral de identidad, cultura y trabajo formativo. Por tanto, se concluye con algunas consideraciones para seguir problematizando las necesidades sentidas que mueven a los pueblos campesinos10 de nuestros mundos.
La noción-concepto pensada como “necesidades sentidas”, en este ensayo analítico, se ha abordado de manera general, con el relevamiento de las literaturas, más en el campo/perspectivo de los estudios de psicología11. Así, el sentimiento
9 FUENTE: Informe III, sobre las Visitas Técnico-Pedagógicas de la Coordinación de Formación de Educación Escolar Quilombola, SEMEC / Mocajuba-Pará.
10 Se entiende a los trabajadores de campo con sus diversidades, pero a aquellos trabajadores que están volcados a las luchas de la clase trabajadora, es decir, sujetos específicamente trabajadores rurales y / o rurales (CALDART, et al, 2012).
11 Cinco (5) estudios fueron reevaluados y analizados por el autor de este ensayo hasta el momento: Maron (2015); Bernardo (2016); Andrade (2013); Braz (2013); Primerano (2015). Están relacionados con el período de 2013 a 2016.
basado en necesidades se ha centrado en el deseo inconsciente, la subjetividad, el ser biológico, las emociones. De esta manera, investigaciones basadas en Maslow (1970) presentan, según su pirámide, algunas características como elementos inconscientes que motivan al ser, sus “necesidades fundamentales”. De tal manera, siguiendo el campo del psicoanálisis, también existen estudios sobre las necesidades humanas, en los que el deseo inconsciente es central y la base para comprender lo que también llaman motivación. Estos estudios se basan principalmente en Sigmund Freud (1856-1939), señalando que las necesidades humanas preceden a las acciones inconscientes, movilizadas por voluntades e impulsos creados a partir de emociones involuntarias.
Sin embargo, aunque es la categoría “necesidades humanas” más estudiada en el campo de la Psicología, el campo de la Sociología también ha buscado profundizar, aunque todavía de forma incipiente. Así, los estudios sobre "necesidades humanas" en el campo de la sociología han buscado fusionar el asunto con el tema "emoción" y estudiosos como Bernardo (2016) se han centrado en pensar en el tema "necesidades humanas" desde la "sociología de las emociones", sus conclusiones indican que:
Sin descalificar los numerosos avances y particularidades en otros ámbitos, ni desconocer los impactos neurobiológicos de las emociones en nuestro cuerpo, las Ciencias Sociales plantean que esta no es la única forma de concebir y percibir lo que sentimos. Por tanto, se puede decir, teniendo en cuenta la concepción variable de las emociones en función de cada sociedad y cultura, que nuestras emociones son, por tanto, provenientes de un proceso educativo, y por tanto, resultantes de las más diversas modalidades de socialización social y particular de la sociedad, cada individuo. (BERNARDO, 2016, pág.170).
En este sentido, entiendo la preocupación de Bernardo (2016) por demostrar la importancia de considerar las emociones en el campo de la sociología y estoy de acuerdo en que no se pueden concebir las motivaciones como seres sociales solo a través de la neurobiología, ya que las emociones a nuestro juicio están determinadas por procesos sociales, económicos y culturales. Asimismo, todos los estudios son importantes y aportan luces en asunto tan complejo, pero para los propósitos de este ensayo, me centro en aquellos que se han acercado a la percepción de lo que es la "necesidad humana" según Marx y Engels (2009), es decir, históricos y sociológicos, en los que se considera la totalidad.
Los estudios de Braz (2013) sobre lo que él ha llamado “necesidades radicales” se encuentran entre los estudios reanalizados, como los más cercanos desde este objetivo, es decir, construir la noción-concepto que puede llegar a ser: “necesidades sentidas” en una perspectiva histórica, dialéctica. De tal modo, el concepto de “necesidad radical” nos ayuda a pensar en las “necesidades sentidas” desde el núcleo categórico de “necesidades” de Marx y Engels (2009), pero entendiendo que esta categoría no puede entenderse solo como:
[…]categoría estrictamente económica en el circuito de producción, distribución e intercambio de bienes, característica de la reproducción de las relaciones sociales capitalistas. Es evidente que, teniendo como horizonte las sociedades contemporáneas, cuyo modo de producción capitalista alcanzó el proceso de "destrucción creativa permanente", las necesidades eran [y siguen siendo] las necesidades para la producción de plusvalía y, por tanto, para la valorización del capital, es decir, de valorar los valores ya creados (BRAZ, 2013, p. 124).
Por tanto, es necesario considerar que la categoría "necesidades" presupone también producciones culturales, luchas y resistencias de la agencia humana Thompson (1998), es decir, es necesario considerar otros procesos además de los económicos, para poder pensar en las "necesidades sentidas". Y también, considerar en este viaje de comprensión, elementos de valores, costumbres, tradiciones, en el sentido de la producción de la vida. De ahí que la categoría “necesidad radical” nos ayude, pues las necesidades aquí sentidas tratadas según Braz con base en Heller (1978), están ligadas a las praxis.
[capaz] de aprehender el carácter mutable de la esencia humana, inextricablemente, emancipando a través de la demanda política de una nueva forma de vida que presupone la reestructuración global de la vida cotidiana, incluida la de las propias necesidades. (BRAZ, 2013, p. 132).
Así, entendemos las necesidades sentidas también como un tema que, además de los aspectos psicológicos del individuo, también tiene un elemento social que va de lo individual a lo colectivo, con una perspectiva integradora en cuanto a su dimensión de vivencias, comprendidas, identificadas y socializadas por comunidades rurales. Estos elementos, contribuyen al buen vivir de los pueblos.
De esta forma, la investigación en el sentido de "necesidades radicales" ha permitido sostener las "necesidades sentidas", que estamos pensando, como un elemento movilizador que tiene que ver con los problemas cotidianos de las
comunidades, mediados por acciones de la vida diaria, lucha-resistencia para superar situaciones individuales, que las desarticulan, para la resolución de problemas, que afectan al colectivo.
Por tanto, las necesidades sentidas, son expresiones de impulsos sociales, no solo por querer, desear, es decir, no son expresiones centradas en el ser individual, empírico y metafísico tan solo, sino en actuar en nombre del otro, comprendiendo como parte del conjunto de la comunidad. Impulso social de necesidades, pero con el objetivo de la utopía de otro mundo posible, más alla del capitalismo. De esta manera, no como un retorno, sino como un reencuentro con “nuestra naturaleza precapitalista”, es decir, con nuestro ser colectivo, nuestra ascendencia, recordando como Thompson (1998, p. 23) “[...] cómo eran nuestros códigos, expectativas y necesidades alternativas que pueden renovar nuestra percepción de posibilidades implícitas en el ser humano” y conducirnos a otra posibilidad.
Y esto presupone organización, capacitación, caminos a seguir en la solución de tareas en lo laboral, cultura, alimentación, educación, entre otras necesidades sentidas, que de alguna manera orientan los procesos de desarrollo de las comunidades rurales y necesitan un enfrentamiento colectivo de las fuerzas internas, o buscan algún tipo de intercambio fuera de la comunidad que facilite el proceso, sin comprometer la identidad y sus fuerzas de luchas comunes.
Las necesidades sentidas de las comunidades rurales, tanto en Pinar del Rio- Cuba como en la Amazonía Tocantina Pará-Brasil, necesitan ser guiadas por la comprensión de la realidad, es decir, “no puede salir ni permanecer en el mundo de las ideas” (MARX, ENGELS, 2009, pág.12). Idealizar comunidades en territorios rurales como si no tuvieran problemas, contradicciones, en mediación con el capital es una visión simplista de lo concreto.
En este sentido, según Marx y Engels (2009, p. 40) las necesidades presuponen lo primordial para la existencia humana, “[...] y por tanto, también de toda la historia”, es decir:
[...] la suposición de que todos los hombres (y mujeres) deben poder vivir para hacer historia. Pero comer y beber, la vivienda, la ropa y algunas otras cosas son parte de la vida por encima de todo. El primer acto histórico es, por tanto, la producción de los medios para satisfacer estas necesidades, la producción de la vida material misma, y lo cierto es que se trata de un acto histórico, una condición fundamental de toda la historia, que aún hoy, como existe. miles de años, tiene que llevarse a cabo día a día, hora a hora, para al menos mantener con vida a
hombres (y mujeres). (MARX, ENGELS, 2009, p. 40,41, (grifos del autor).
Esta lucha histórica por la vida, como dicen Marx y Engels (2009), es lo que moviliza a todos los seres humanos. Y en los territorios rurales y sus comunidades, la cosa no es diferente, los pueblos son impulsados por sus necesidades sentidas, es decir, sus necesidades vitales, tanto a nivel individual como colectivo. Por cuanto, cuando se mapean las necesidades sentidas de las comunidades rurales a través de DRP (Diagnóstico Rápido Participativo), por ejemplo, y este documento se enfrenta a necesidades comunes, que van desde las necesidades de comer, beber y otras cosas como dicen Marx y Engels (2009). Cabe señalar, que en estas Comunidades hay muchos problemas, muchas ansiedades, muchas resistencias y luchas por solucionarlos. A veces no pueden resolverlo por sí mismos, buscan ayuda, a veces no encuentran ayuda, pero continúan luchando, al menos para mantener la vida.
En los territorios rurales y sus comunidades, he observado en estos casi 12 (doce) años de investigación (2010-2021) que los problemas e inquietudes que los movilizan son necesidades sentidas, ¿y por qué se construyen en estos términos?
¿Cómo se construyen las necesidades sentidas?
Para responder a estas preguntas anteriores, parto de lo que Marx y Engels (2009, p. 41) presentan como el segundo punto sobre las necesidades, una vez satisfechas las necesidades vitales, “la acción de satisfacción y el instrumento de satisfacción ya adquirido, conduce a nuevas necesidades - y esta producción de nuevas necesidades es el primer acto histórico”. Por tanto, lo que sienten, cómo sienten estas necesidades, lo hacen para satisfacerlas, es lo que entienden por el acto educativo en sí, porque a medida que transforman la naturaleza, las forman, transformándose a sí mismos (MARX, 2013).
A la luz de estas consideraciones, aprovecho mis experiencias para decir, que cuando llegas a una comunidad en la primera etapa y estás hablando con ellos y estas haciendo una entrevista abierta con toda las personas y todos empiezan a hablar, algunas veces antes de preguntar, ellos sin saber lo que quieres te dicen tenemos muchos problemas con Internet, por ejemplo, muchos problemas con la escuela, nuestra escuela se está cayendo, la escuela está tan mal y eso es lo primero que tratan; ¿por qué será?.
Otros te dicen que necesita un sistema de riego para poder aumentar la producción e incluso en una familia, pero hay una necesidad sentida de todas esas
cosas, aun cuando estén resolviendo de manera rudimentarias o no. Es muy probable que el proceso este asociado con la conciencia, no de esa conciencia que se establece en la filosofía, es más bien una perspectiva consciente de que hay un problema que de alguna manera hay que afrontar y solucionar; antes que otros observadores externos puedan considerar o no, más importantes.
De esta manera, las necesidades sentidas se construyen en los territorios de las comunidades rurales, tanto en las experiencias de Cuba como en la Amazonia Tocantina Paraense - Brasil, cuando el sentimiento individual es coincidente con el sentimiento de la mayoría, es decir, las necesidades sentidas pueden solo ser consideradas colectivamente, aunque un problema individual de una familia puede virar de la comunidad, cuando todos toman conciencia de él y trabajan en colectivo para resolverlo.
El sentimiento de la comunidad, son necesidades sentidas, ya que presupone el conjunto y no de una familia concreta, o alguien individualmente, son cuestiones que afectan a todos y que todos se movilizan para solucionarlos. Necesidades sentidas son movimientos, están sucediendo constantemente, entonces no son vivencias consolidadas, percepciones, modificaciones, sino vivencias continuas, pues las necesidades siempre generarán nuevas necesidades, esto es humano, es histórico, es dialectico.
Las necesidades sentidas se construyen a través de experiencias percibidas, vividas, modificadas, pero no pueden confundirse con las mismas experiencias que las construyen, pues comparar las necesidades sentidas como si fueran experiencias ya consolidadas sería un error, ya que las necesidades sentidas, aunque verificadas, siempre estarán en constante búsqueda de soluciones, y esto es lo que mantiene vivas tanto a las comunidades rurales en Cuba cuanto a las comunidades rurales quilombolas en la región Amazónica Tocantina Paraense.
Por tanto, las necesidades sentidas están muy ligadas a los problemas propios que se generan por diferentes causas en la comunidad, los que se asocian a situaciones, que también son vitales para poder tener una mejor calidad de vida resolver los problemas desde el colectivo y el talento local. Sentimos las necesidades, como concepto en construcción, parte de la realidad concreta vivida, incluso en términos de investigación, al tener lugar a nivel de colectivo, movilizar con soluciones comunitarias que en Brasil les llaman mutirão y putirum, y en Cuba juntas de vecinos.
En esta exposición, analizo las necesidades sentidas desde los procesos educativos-comunitarios-formativos, que según Marx (2013) como los hombres y las mujeres transforman la naturaleza, se transforman a sí mismas y hacen que las personas sientan, piensen, actúen, se transformen en una dimensión sociocultural, que exprese los deseos de las comunidades, sus saberes como mediación y participar activamente en las transformaciones necesarias, con una perspectiva integral de identidad, cultura y trabajo formativo.
Estas luchas comunitarias tanto en Cuba como en Brasil se nutren de los legados y tradiciones de las familias campesinas, ya sea en comunidades rurales o quilombos como según Santos (2015) hay su historia arraigada en la ascendencia, donde la identidad y la alimentación fueron determinantes para la continuidad de la historia de luchas y resistencias en la formación de generaciones hasta hoy. En este sentido es importante “[…] la creatividad de las personas como estilos y formas de conductas que posibiliten un aprendizaje vivencial y de cooperación donde la educación este unida a la práctica social […]” (GARCIA 2018).
La valoración anterior es clave a la hora de intercambiar y producir procesos de construcción colectiva con las comunidades rurales o áreas quilombolas para crear un clima de confianza y alianzas que propicien el desarrollo y la articulación con las personas de las comunidades, parafraseando a Paulo Freire (1978) nadie sabe más o menos, solo tenemos saberes diferentes. Este es un principio indispensable para utilizar los conocimientos de todos los participantes y que se sientan parte del proceso participativo de construcción colectiva de los conocimientos y las transformaciones.
Respecto a Cuba, se destacan las experiencias alcanzadas por el Movimiento Agroecológico Cubano Campesino a Campesino12, a partir de su metodología de
12 En el Movimiento Agroecológico Campesino a Campesino en Cuba, fueron claves para su implementación de manera progresiva, masiva y exitosa el apoyo político, financiero y social de la ANAP (Organización de Pequeños Agricultores Rurales). Este proceso se inició desde el año 1997, pero tomo su mayor fuerza a partir del año 2001 en la formación, aprendizaje y sistematización, en los cuales también hubo colaboración de diferentes ONG como “Pan para el mundo” y la Oxfam que financiaron el proyecto en la etapa inicial. Después de lo cual, el estado asumió la continuidad.
trabajo adecuada a las condiciones y vivencias de cada comunidad rural o quilombo. Fueron creadas las condiciones para trabajar, en cada contexto, articulando las actividades de los criterios comunitarios, compartidos con el proceso revolucionario:
La revolución alfabetizó a los campesinos, para que pudieran estudiar y aplicar mejor la ciencia y la técnica, sus hijos pudieron estudiar carreras universitarias y prepararse para las urgencias de la sociedad, les garantizó asistencia médica. Su organización, la ANAP se convirtió en un espacio de análisis en sus asambleas y congresos desde el nivel de base hasta la nación donde discutieron sus problemas y surgieron soluciones de la sabiduría legada durante muchos años de luchas y prácticas colectivas del campesinado cubano (GARCIA, 2018, p. 3).
Los aspectos expuestos anteriormente fueron considerados para poder avanzar con los campesinos en la aplicación de la técnica, la ciencia y la socialización de sus saberes agrícolas heredados de las generaciones anteriores de campesinos. Ello para poder ser libres y dueños de las tierras que trabajaban, así tener una mejor calidad de vida con las tierras y las producciones entregadas por la revolución con la primera Ley de Reforma Agraria 1959 y en los quilombos por la ley de la Constitución de 1988. A la vez, en Brasil, en otro contexto y en condiciones históricas diferentes, los quilombos también han luchado y resistido, organizados en las Asociaciones de Quilombos13. Como en la ANAP en Cuba, esas asociaciones organizan y protegen los derechos de los trabajadores en la perspectiva de lograr una soberanía alimentar.
El trabajo comunitario en las comunidades rurales en Cuba, en muchos casos se organizan a partir de proyectos socioculturales, a decir de Santos (1994) que construye objetos, acciones, sinónimo de espacio humano. Y en este sentido, con un peso significativo a partir de la cultura se trabaja la formación de las personas aprovechando las aptitudes que tienen las campesinas y campesinos para las artes.
Un ejemplo de la situación anterior es el Proyecto Cultural Comunitario Patio de Pelegrín en el municipio de Consolación del Sur en el cual, en visitas de campo, tuvimos la oportunidad de intercambiar con uno de sus principales colaboradores:
13 Movimiento Social Quilombola de Mocajuba / PA. Asociaciones Quilombolas, Organizaciones Quilombolas, Colectivos de Mujeres Quilombolas. La cual tiene entre sus funciones luchar por la implementación de los Lineamientos Curriculares Nacionales para la Educación Escolar Quilombola - Resolución 08/2012 del Consejo Nacional de Educación - CNE, municipio de Mocajuba. Así como la demarcación de territorios quilombolas, su cuidado y protección (MIRANDA, COSTA, GARCÍA, 2021).
Carlitos14 (el pintor, como se conoce en el barrio). En la entrevista realizada sobre su trabajo en este proyecto, nos dijo:
El Proyecto Cultural Comunitario Patio de Pelegrín, funciona en el poblado de Puerta de Golpe, municipio de Consolación del Sur provincia de Pinar del Rio. Cuba. Está estructurado por una biblioteca, galería de arte, café literario, taller de danza y taller de artes plásticas. Dentro del proyecto se encuentra un organopónico de verduras atendido por la comunidad, así como canteros de plantas medicinales. En un pequeño terreno se cultivan viandas como el boniato y la yuca alimentos tradicionales que fueron muy usados en la alimentación de los negros del Palenque, que le dio nombre a esa comunidad hasta hoy. Pasando a las artes, la galería ofrece un espacio a los jóvenes talentos de la plástica. El coordinador del proyecto Mario Pelegrín realiza su actividad también como instructor de artes plásticas e imparte su taller los sábados a los niños. Las piezas de cerámica, se comercializan (para autosustentarse) y esos fondos son destinados para materiales que van a usar los mismos niños de la comunidad, para enriquecer el nivel cultural de la comunidad. (NOTAS DE CAMPO, 2020).
Esta manera de construir los proyectos a partir de la cultura, también tiene un peso importante en los principios que rigen el programa Campesino a Campesino en Cuba, los cuales fueron construidos de manera participativa y actualizados para su utilización en la formación de las comunidades rurales quilombolas. En ello, se evidencia el considerar los nuevos conceptos, de la agroecología, las experiencias existentes de este movimiento y de los saberes de los propios campesinos cubanos y quilombolas, construidas en las prácticas y socializadas en contactos, intercambios y en las reuniones de socios de la ANAP y Asociaciones de Quilombos y en sus asambleas o putirum15, siguiendo los criterios metodológicos expresados y practicados. (SOSA et al, 2013).
14 Carlos Alberto Crespo Concepción vive en Consolación del Sur, Pinar del Río. Cuba. Graduado de la Escuela Nacional de Artes Plásticas en el curso 1992-1993. Habana. Con la temática ecológica que representa los Mogotes de Viñales, vegas de tabaco que son parte de los valores naturales que permitieron declarar por la UNESCO a Viñales como: “Patrimonio Mundial como Paisaje Cultural de la Humanidad”. En el año 2016 fue llamado para dirigir el taller de cerámica en el Proyecto Cultural Comunitario Patio de Pelegrín en el pueblo de Puerta de Golpe, municipio de Consolación del Sur. Pinar del Río. Cuba.
15 La palabra Putirum se usa por respeto a nuestros hermanos originarios (pueblos indígenas). Por tanto, la palabra Putirum, de origen tupi-guaraní, significa trabajo en unión, trabajo en equipo, fiesta, alegría, es decir, el Mutirão mismo. Así, reconociendo que gran parte de la cultura quilombola en los quilombos de Mocajuba/PA tiene una importante herencia cultural de los pueblos originarios, se decidió en conjunto que los encuentros de formación se llamarían: Putiruns (MIRANDA, COSTA, GARCÍA, 2021).
Este movimiento de formación socio - político – cultural – económico posibilitó la preparación de las familias campesinas e quilombolas a partir de sus saberes agrícolas, prácticas culturales, musicales que se articularon y permitieron introducir y construir nuevos saberes en espacios horizontales donde lo fundamental fue la construcción colectiva y participativa a partir de sus experiencias.
Así pensando, la educación y formación como un acto político y libertador (FREIRE, 1978). En en el caso de las comunidades quilombolas se sustenta no respecto de la Consulta Previa y Aclarada, de conformidad con el Convenio 169 de la OIT (2002, p. 4), que en su artículo 6, garantiza, entre otros derechos, que los pueblos y comunidades tradicionales deben ser consultados, antes, durante y después de cualquier acción, que puede ocurrir o no en sus territorios.
Y cabe señalar, que estas especificidades también se han construido como "reconocimiento público de una orientación educativa específica dirigida a las comunidades quilombolas ante la presión de los Movimientos Quilombolas, para el reconocimiento en la CONAE, por el Consejo Nacional de Educación y por la Unión" (BRASIL, 2012, pág. 41). En este contexto, como nos dijo la profesora quilombola Valdirene R. Costa, inspirada en los debates e intercambios producidos con las personas que participaron en los talleres de construcción colectiva, interpretó el sentir de la gente cuando dijo, ¿cuál es la escuela quilombola que todos quieren?:
La escuela que queremos Se queda en el bosque, si!
Sin obstáculos y llena de vida Y eso retrata mucho de mí ahí es donde queremos estar
A partir de ahí estarán los profesores Preparados para así transformar Respetando nuestros valores Presentamos nuestra propuesta-plan Y queremos salir adelante pronto
No estaremos solos en esta lucha Contigo queremos contar
en este día de entrenamiento Es necesario participar
Estamos abiertos a sugerencias.
Es en el colectivo donde vamos a trabajar.
¿Y la escuela que tenemos en el quilombo?
¿Es la escuela que realmente queremos? Maestros y otros líderes presentes
Nuestro Quilombo, somos nosotros los que sabemos. Necesitaremos ser vistos como somos
Respetando nuestras costumbres e identidades
Reclamaremos que sí, por nuestros derechos Porque vivimos en Quilombos, no en la ciudad. No es momento de desigualdades
Es hora de incluir
Es en el colectivo que continuaremos la lucha
Y de esta manera, nunca nos daremos por vencidos ... (MIRANDA; COSTA, 2021).
Las mismas estrategias metodológicas utilizadas en Cuba en la formación de los campesinos fueron adaptadas a las condiciones de los quilombos y presentadas a los participantes en las visitas técnicas pedagógicas, siendo aprobados por el colectivo y resultaron efectivos para la participación y evaluación de los diferentes procesos desarrollados. Lo que en una etapa inicial se consideró como incorporar a sus prácticas elementos claves como: el terreno, los testimonios, las demostraciones didácticas, las exposiciones de productos, las dinámicas de animación, poesías y canciones, así como sociogramas (SOSA 2013; GARCIA, 2018, p. 5).
Esta metodología se utilizó en las diferentes actividades con el fin de motivar, animar, llamar a la reflexión para obtener un mayor entendimiento, participación y en ese sentido pensar como dijo José Martí (2015): “ser culto, es la única forma de ser libre", en el sentido de estar preparados y tener los conocimientos para enfrentar los desafíos; lo que se articula con lo referido por Marx y Engels (2009), a través de la unidad categórica trabajo-educación, elemento fundamental para todo el proceso de formación de los campesinos.
Los elementos anteriores fueron ampliamente aceptados y se desarrollaron procesos de aprendizaje, aunque las comunidades rurales son muy sensibles a la mirada externa y eso no es casual. Ello porque históricamente fueron burladas y engañadas, expropiadas, explotadas y aprendieron a defenderse del opresor, por eso para llegar a ellos, se pudiera seguir un proceso, a partir de las experiencias obtenidas en comunidades rurales del municipio de Consolación del Sur / Pinar del Río en Cuba y en los quilombos del municipio de Mocajuba / Pará, en Brasil. Por supuesto, este proceso comienza con la formación que como afirmó Fidel Castro Ruz16, ex presidente
16 El presidente Fidel Castro Ruz, fue dirigente estudiantil universitario, graduado como abogado, dirigió el asalto al Cuartel Moncada de Santiago de Cuba, contra la tiranía batistiana, fue preso en esta acción y escribió en prisión la autodefensa de él y sus compañeros, con el programa del Moncada: “La Historia me Absorberá”. Absueltos se exiliaron en México, donde organizó con 82 hombres la expedición del Yate Granma. Como Comandante Jefe, después de dos años de intensos combates, consiguió ganar
de Cuba, la educación debe estar dirigida a “[…] preparar al hombre para la vida y el trabajo social […]” (CASTRO 2003).
Pedro, campesino de la comunidad del municipio Consolación del Sur (Cuba), que tuvo con su padre trabajando en la vega en el gobierno anterior a la Revolución, y recuerda que tenían que dar casi toda la producción a los terratenientes; apenas les daba para estar vivo. Por otra parte, mis hermanos y toda la familia éramos analfabetos o semianalfabetos, mi padre firmaba los documentos poniendo tinta en el dedo. Después del triunfo revolucionario todos estudiamos; yo mismo soy técnico medio en agroecología y mis hermanos menores uno es médico y el otro profesor, realmente nuestras vidas mudaron; además somos dueños de las tierras que trabajamos, de los medios de producción y de los frutos del trabajo colectivo (Notas de campo 2014).
¿Qué es el trabajo comunitario? Primero pensamos que el trabajo que hacemos en la comunidad lo identificamos como trabajo comunitario y es un proceso, una vía de construcción de saberes de manera participativa vinculadas a proyectos de desarrollo local o no, en los cuales las personas de las comunidades tienen derecho y autonomía para proponer, realizar sus análisis, ser considerados y que respondan a sus necesidades sentidas como vía de transformación a partir de la fuerza y potencialidades existentes en las comunidades, organizados en grupos de trabajo. La comunidad es el punto de partida, de unión y articulación de las políticas públicas y sociales.
Es por ello que la comunidad tiene necesidad de sentirse integrada, fuerte, la comunidad precisa de un grupo de factores de identidad, tradiciones, formas de vida, cultura; ellas se articulan con los tipos y formas de necesidades sentidas que son esenciales para trabajar, formar una unidad colectiva de esperanzas y deseos prioritarios que deben ser consideradas cuando existe una intervención desde fuera.
Las necesidades sentidas son elementos básicos para la vida de la comunidad, ellas son parte, esencia y se constituyen en retos a alcanzar para mejorar sus condiciones de convivencia, son incentivo de vida para la comunidad a partir de la
la guerra de todo el pueblo y consolidar el triunfo de la Revolución Cubana el 1 de enero del año 1959. (RAMONET, 2016).
cuales se puede y debe trabajar por el bien común, con los aportes de todos sus miembros en la medida de sus capacidades.
En estos procesos complejos hay muchas experiencias, cuyas actividades formativas tienen puntos de coincidencia con el sociólogo cubano Antonio Blanco (1997) cuando expresó la importancia de partir de una caracterización de la comunidad para lo cual sugiere un sistema de dimensiones17 que pueden ser modificados según los intereses concretos de la investigación, la comunidad y a partir de esta información se elaboran los planes de acciones para enfrentar de manera conjunta la solución de los problemas que requiere la comunidad con la participación de ese pueblo, utilizando como uno de los métodos de trabajo la investigación-acción. Y pudiéramos pensar, sí estos datos son suficientes. ¿Cómo trabajar en una comunidad? Cómo realizar la preparación de los encuentros cuando nunca la hemos visitado, o prácticamente no la conocemos. Claro aquí es importantes considerar la percepción de lo que es la "necesidad humana" según Marx y Engels (2009), es decir,
históricos y sociológicos, en los que se considera la totalidad.
Claro, que también es indispensable considerar los factores sociales, políticos, culturales y del propio trabajo para poder dar una atención integrar a ese proceso, a partir de esa visión integral y sobre todo al intercambio de las personas de la comunidad, presentamos algunas ideas de la experiencia práctica durante el desarrollo de las visitas y talleres en Cuba, así como las visitas técnicas pedagógicas y putirum en los quilombos de Mocajuba, que nos muestran algunos caminos:
Preparación del encuentro antes de la visita a la comunidad:
Investigar con antecedencia sobre las características: geográficas, históricas, culturales, poblacionales, educacionales, sociales, religiosas, económicas y sobre los principales problemas que afectan a la comunidad.
Considerando estas informaciones elaborar un diseño del encuentro con el grupo de investigadores; considerando cuáles pudieran ser las necesidades sentidas y los objetivos de las propuestas del trabajo a realizar.
Estudiar cuál será la metodología de trabajo, las técnicas participativas a utilizar, los medios de trabajo, los medios técnicos, los
17 Dimensiones: Geográficas, históricos, culturales, económicos, sociales, demográficas, religiosas, políticas, salud y espirituales. Cada una aplica un grupo de indicadores que permiten conocer y caracterizar la comunidad, complementado con la observación y el intercambio con las personas.
materiales de trabajo para los participantes, número de personas que participaran y el tiempo del encuentro.
Medios de transporte, alojamento, alimentación, divulgación.
Escribir el diseño del encuentro según el momento de formación. Taller de: 1. Familiarización, 2. diagnóstico y caracterización, 3. Capacitación, 4. Transformación. 5. Evaluación de resultados y rediseño de las nuevas acciones. (GARCIA, 2016 p. 91 y anexo 19).
Primer encuentro en la comunidad. (Familiarización 1)
Llegar el día y a la hora combinada con las lideranzas y la población de la comunidad.
Organizar un espacio de trabajo circular, o en forma de rombo que facilite la comunicación, con un mismo nivel jerárquico.
Usar técnica participativa para que cada participante se presente, iniciando por los visitantes, dándole elementos claves como:
1. Nombre, 2. qué actividad realiza en la comunidad?, 3. cuáles son sus expectativas del encuentro? y 4. caracterizar con una palabra que más y que menos le gusta de las personas.
4. Realizar técnica participativa y en un papelógrafo, registrar todos los criterios de los participantes. (GARCIA, 2016 p. 99 y anexo 18).
Primer encuentro en la comunidad. (Familiarización 2)
Al concluir, el facilitador realizará un análisis y socialización de la información y valorará las características del grupo considerando las 4 preguntas realizadas en la presentación.
Se pedirán criterios a los participantes y se caracterizará al grupo y sus potencialidades para el trabajo que se desea realizar de conjunto.
Se presentará en un papelógrafo el diseño del encuentro, sus objetivos, las expectativas, propuestas y se relacionará con los resultados del diagnóstico anterior de los participantes. (GARCIA, 2016 p. 91-101).
Primer encuentro en la comunidad. (Familiarización 3)
Se le pedirán criterios a las personas y se socializaran. Cómo es el primer encuentro quizás no haya mucha participación, por lo que:
Con técnicas participativas se realizarán 4 o 5 grupos de trabajo.
En cada grupo, ellos mismos seleccionaran un coordinador.
Tendrán 10 minutos para analizar el Diseño del Encuentro y escribir en un papel sus criterios y nuevas propuestas.
Al terminar, cada equipo presentará en 5 minutos al colectivo, los criterios del grupo, auxiliándose de dramatizaciones o cualquier método que ayude a la mejor comprensión; los organizadores del encuentro lo irán registrando en un papelógrafo y socializando.
Al concluir todos los equipos, se hará un análisis de los criterios, se compararán con el diseño y el mismo se llevará a aprobación del
colectivo, considerando las observaciones realizadas por los participantes. (GARCIA, 2016 p. 98 y anexo 18).
Primer encuentro en la comunidad. (Familiarización 4)
Aprobado el diseño del encuentro, los organizadores leerán como quedó el mismo y se comenzaran a desarrollar otras actividades de familiarización y conocimiento de la comunidad utilizando diferentes técnicas participativas.
Recorrido por las diferentes áreas de la comunidad, aprovechando para hacer observaciones, entrevistas, encuestas con las personas en las áreas visitadas.
Pedir visitar los lugares más bellos e interesantes de la comunidad.
Visita a los lugares con más problemas ambientales, sociales o de otro tipo si la comunidad lo desea. (GARCIA, 2016 p. 100 y anexo 20).
Las diferentes actividades anteriores y otras que sean necesarias, crean condiciones para un clima de trabajo favorable a partir del cual se podrán debatir los temas de formación que también previamente serán obtenidos de la consulta con las personas a partir de la caracterización realizada y sus necesidades sentidas o no. Aquellos que son solicitadas por la mayoría de las personas participantes, articulándola con los objetivos y fines de la formación.
Los estudios de bibliografías relacionadas con el tema, así como el intercambio y la construcción colectiva con las personas de las comunidades tanto en Cuba como en Brasil, nos permitieron entender como la comunidad es donde están las raíces de su historia, cultura, memoria, tradiciones, la educación comunal y experiencias de conocimientos, aptitudes, creatividad, resistencia, con pensamiento crítico, reflexivo para la toma de decisiones con habilidades para resolver los problemas.
Por eso consideramos que la comunidad no es una forma de vida; “sino, un sentido de la vida”; de las familias, del trabajo con sentimientos de amor, que crecen, articulan y generan fuerzas endógenas a partir de las necesidades sentidas conceptuadas y atendidas de manera colectiva en un territorio geográfico por el bien común de todos sus miembros; lo que interactúa con agentes externos en una perspectiva para, por y con la comunidad. Claro, cada comunidad es diferente y al mismo tiempo tiene aspectos comunes que las identifican, las unen e integran.
Por lo que, el trabajo comunitario realizado con las comunidades esta imbuida en la construcción de saberes de manera participativa, vinculadas a proyectos de desarrollo local o no, donde las personas de las comunidades tienen derecho y autonomía para realizar sus propias propuestas, que respondan a sus necesidades sentidas como vía de transformación a partir de la fuerza y potencialidades existentes en las comunidades, organizados en grupos de trabajo. La comunidad como punto de partida, de unión y articulación de las políticas públicas y sociales.
La integración de las percepciones teóricas sobre necesidades, necesidades radicales, necesidades humanas, necesidades vitales, motivaciones, las emociones, la socialización, los aspectos psicológicos y la cultura entre otros aspectos de los autores analizados en el texto y sobre todo las vivencias, anotaciones de campo y la construcción colectiva con las personas de las comunidades, nos permitió el entendimiento de que las necesidades sentidas entran en la misma red de relaciones, pero conforme se abordó en la introducción, se problematizado y fundamento en diferentes partes del ensayo.
Entonces, las necesidades sentidas son un proceso que interactúa y parte de los elementos ya mencionados que componen una comunidad, así como también el trabajo comunitario, en un -sentido de la vida- impregnado en las familias, en los pobladores. Con un fuerte componente de la cultura, el trabajo, la memoria histórica social, la identidad y las tradiciones, con fuertes motivaciones y convicciones en una perspectiva colectiva de producción de la vida por el bien común, preservación de los valores y el cuidado de la naturaleza, en lucha-resistencia contra el gran capital que les asecha, así como con sus propias contradicciones internas.
El estudio realizado en los territorios rurales tanto en Cuba como en la Amazónia Tocantina Paraense – Brasil, nos permitió percibir varias aproximaciones con las luchas de las comunidades. Como los procesos de esclavismo y explotación llevados a cabo por portugueses en Brasil y españoles en Cuba tienen características muy parecidas en la crueldad denigrante, despojo inhumano y el no respeto a los derechos más elementales de las personas como la libertad, educación y salud. Esta situación produjo gran resistencia de los negros, que consiguieron con mucha inteligencia y valor huir de las haciendas hacia los lugares más inhóspitos e inaccesibles, donde crearon espacios de libertad, llamados quilombos en Brasil y palenques en Cuba.
Otro elemento importante identificado en ambas experiencias, en Cuba y Brasil, fueron las semejanzas en la cultura, expresada en la música, las danzas, los alimentos, la culinaria, las músicas con crónicas de sus vivencias. Así como los ritmos y los toques de tambor muy parecidos, lo que induce al parecer que en ambos países llegaron de culturas, pueblos y países similares, lo que se ve también con mucha claridad en la percusión de la samba en Brasil y el son, la rumba y el guaguancó en Cuba.
Con respecto a las comunidades en Cuba, país de alta tradición agrícola, también es aplicable a los quilombos de Mocajuba, Martí afirmó que el conocimiento de la naturaleza es fundamental: "A las aves, alas; a los peces, aletas; a los hombres que viven de la naturaleza, el conocimiento de la naturaleza; esas son sus alas ". (Martí, 2015, p. 22).
Para seguir pensando. ¿De qué países proceden los negros que fueron esclavizados y traídos a la fuerza para Brasil y para Cuba?, ¿Cuáles son los elementos culturales semejantes o parecidos que conforman la cultura de los mismos? ¿Cuáles son las semejanzas en los instrumentos de trabajo, de música, alimentos, formas de cultivar, idioma? ¿Cuáles necesidades sentidas se construyen a partir de eses saberes culturales, producidos por el trabajo y la vida?
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1Entrevista recebida em 24/03/2022. Aprovada pelos editores em 25/03/2022. Publicada em 28/03/2022. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v20i41.53633.
2 Doutora em Serviço Social pelo Programa de Pós-graduação em Serviço Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro e Mestre em Políticas Públicas e Formação Humana pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Professora da Escola de Serviço Social da Universidade Federal Fluminense. Coordenadora do Núcleo de Pesquisa e Extensão sobre Projetos Societários, Educação e Questão Agrária na Formação Social Brasileira. Pesquisadora permanente do Núcleo de Documentação e Dados em Trabalho e Educação da Universidade Federal Fluminense. Integrante do Grupo THESE - Trabalho, História, Educação e Saúde. Coordenadora do Grupo de Estudos sobre Educação Popular e Movimentos Sociais.. E-mail: botelho.jacque@gmail.com;
Lattes: http://lattes.cnpq.br/7423332568707388; ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1989-5089.
3 Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas e Mestre em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (1983). Professora titular no Programa de Pós-graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Coordenadora do Núcleo de Pesquisa, Documentação e Referência sobre Movimentos Sociais e Política Públicas no Campo, do CPDA/UFRRJ e membro do Observatório de Políticas Públicas para a Agricultura da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. E-mail: leonildemedeiros@gmail.com; ORCID: https://Orcid.org/0000-0001-5030-8044; Lattes: http://lattes.cnpq.br/6874717097891723.
Jacqueline: Beto, queremos mais uma vez agradecer sua participação, como dirigente do MPA – Movimento dos Pequenos Agricultores, para uma entrevista que faz parte do número 41 da revista Trabalho Necessário com a temática Questão agrária e lutas no campo: experiências camponesas. É importante sua fala para que possamos conhecer os desafios hoje impostos para a questão agrária no Brasil, neste número em que estamos abordando o tema a partir da perspectiva das experiências e lutas camponesas. Esse momento de entrevista nos permite conhecer os processos de luta e resistência na atualidade e também as análises que os próprios movimentos sociais vêm fazendo em relação a essa temática, para nós tão importante. Mais uma vez muito obrigada por estar conosco. Espero que possamos estar também juntos em outras oportunidades. Eu sou Professora da Escola de Serviço Social da UFF, coordeno também o NEPEQ – Núcleo de Pesquisa e Extensão sobre Projetos Societários, Educação e Questão Agrária na formação social brasileira – da Universidade Federal Fluminense.
Passo para a Leonilde fazer a apresentação da relação deste trabalho nosso na revista com o grupo de pesquisa que ela coordena. É uma forma de estreitarmos os laços enquanto pesquisadoras, mas especialmente na revista.
Leonilde: Também agradeço muito, Beto, seu aceite a nosso convite. Meu primeiro contato com a Jacqueline foi na Jornada Universitária em Defesa da Reforma Agrária - JURA, em 2018 ou 2019, não lembro bem. A partir daí, começamos algumas conversas que resultaram no convite para participar da edição deste número da revista Trabalho Necessário. Sou professora do Programa de Pós-graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA/UFRRJ) e lá coordeno o Núcleo de Documentação, Pesquisa e Referência sobre Movimentos Sociais e Políticas Públicas no Campo (NMSPP). É um grupo de pesquisa, mas também um núcleo que reúne documentação
e a disponibiliza no site http://r1.ufrrj.br/cpda/nms/, onde é possível acessar planilhas, com sínteses documentais, para que os interessados saibam o que temos e possam fazer consulta dos documentos in loco.
Beto: Tenho 36 anos. Sou baiano, do município de Bibas, da região de Vitória da Conquista, bem na divisa de Minas. É uma região de transição da Mata Atlântica para a Caatinga e tem um clima que a gente chama de “Mata do Cipó”: é uma região em que faz muito frio. Frio para a gente... 14 graus (risadas). É uma região que produz muito café, é um planalto, na verdade...
Minha origem é camponesa, agricultora e lavradora. Minha família, no caso mãe e pai, é um misto de rural e urbano. Até eu ter sete anos de idade, mais ou menos, minha família ficava migrando entre São Paulo e Bahia. Meu pai trabalhava em São Paulo e minha mãe acompanhava. Ficava seis meses em São Paulo, meu pai trabalhando, minha mãe em casa e depois mais seis meses na Bahia. Era muita instabilidade e minha mãe resolveu se separar do meu pai, também por essa razão de não se fixar muito num território. A gente ficou na Bahia, na roça.
Sou da região do rio Gavião. Eu falo do rio Gavião, porque, para compreender o MPA na região, tem que entender que houve a construção de uma barragem...
Nos anos 80, entre 85-88, houve a construção de uma barragem pelo DNOCS
- Departamento Nacional Contra a Seca, no rio Gavião, e houve uma luta de resistência contra a barragem. Como não foi possível impedir, houve uma luta pelo reassentamento e indenização por causa da inundação pelas águas. Minha família toda se envolveu, minha avó, minhas tias. Minha mãe participou pouco. Como ela ficava entre São Paulo e Bahia, pouco conseguia participar.
Cresci ouvindo essa história. Foram 40 dias de ocupação dos canteiros de obras da Andrade Gutierrez, que já era uma grande construtora nos anos 80. As famílias camponesas da região ocuparam o canteiro de obras e pararam por 40 dias as obras, enquanto não houvesse uma negociação para poder garantir minimamente
uma indenização das benfeitorias. Já que todo mundo era posseiro, ninguém tinha propriedade da terra, então só seria pago o que estava construído e plantado e a construção das casas. A casa da minha mãe, onde cresci, foi fruto dessa luta. Eu cresci ouvindo essa história, a história da comunidade.
Essa luta dos anos 80 foi impulsionada pelas Comunidades Eclesiais de Base
-CEBs, pela CUT – Central Única dos Trabalhadores. Na época, a CUT de Vitória da Conquista deslocou pessoas para acompanhar esse processo. Essa luta virou uma das principais dos anos 80 na Bahia. Houve muitas romarias da terra durante esses 40 dias, com eventos regionais e estaduais.
Cresci nesse ambiente religioso também, da Teologia da Libertação, de uma Igreja Católica comprometida com as lutas comunitárias camponesas. O sindicato dos trabalhadores rurais na época também estava envolvido com as lutas. Cresci ouvindo essas histórias, em uma comunidade muito marcada por essa organização comunitária vinculada à Teologia da Libertação. Para além de orar e crer em Deus, agir também. A terra onde corre leite e mel era a terra existente e não aquela que se tem quando a gente morre... Foram muitos missionários, padres e freiras que atuaram nesse território nos anos 80. Desde criança, no trabalho da comunidade, a forma de organização era a Igreja Católica: era o espaço social que tínhamos para nos reunir e discutir, desde a infância até a adolescência. Meu primeiro espaço de organização foi dentro da Igreja Católica, nas Comunidades Eclesiais de Base.
Posteriormente, nos anos 2000, quando já estava entrando na adolescência, nós organizamos uma associação de agricultores local. Então a gente saiu do espaço religioso e foi para o espaço político-social e econômico também, com a construção de uma associação local da comunidade e de agricultores dali da região com pautas locais. Eu lembro que a primeira pauta foi energia elétrica, isso no final dos anos 90 e início dos 2000. Não tinha energia elétrica e a gente se organizou em associações na comunidade para poder reivindicar.
Existia na região um trabalho, que eu diria partidário, do Partido dos Trabalhadores, muito vinculado aos núcleos de base. Parte da minha família, meus tios, era vinculada ao PT, um PT do território da base e que tinha como princípio fazer a luta direta, vindo da ocupação dos anos 80. Na luta da energia elétrica, por exemplo, a gente, a associação de moradores, ocupou a prefeitura várias vezes. Então, nossa
comunidade era inimiga dos prefeitos, não é... Todos os prefeitos odiavam nossa comunidade, porque era o pessoal que chegava e ocupava, no caso, a prefeitura.
Cresci nesse ambiente de organização comunitária vinculada à Igreja... Na igreja e associação. E nós começamos a organizar neste território, no município de Caraíba, todas as comunidades de base. Isso nos anos 2000. Enquanto, no geral, a Teologia da Libertação estava em descenso, a gente estava mobilizando lá. E, depois eu descobri, há uns 5 anos, que um dos padres que ajudou depois construir o MPA, acompanhava esse processo desde os anos 80, o Padre Picolle, um italiano, que foi do CEAS - Centro de Estudos e Ação Social, da Bahia, em Salvador. Depois eu descobri que ele vinha da Ação Popular - AP4. Ninguém sabia disso. E ele estava lá fazendo trabalho. Temos que aprender muito com esse pessoal!
Nós tínhamos 28 comunidades eclesiais de base no município e reuníamos mensalmente as 28 comunidades. Construímos uma cartilha junto com a Diocese, um livrinho, Cadernos de Reflexões. É uma estrutura, que eu diria que é muito leninista, de organização. Tinha um caderno de campo que era uma passagem da Bíblia com perguntas para discutir o cotidiano. Tinha grupos de reflexão por família, não tinha muito celular. Tinha mais de 30 famílias e tinha três grupos de reflexão, que se reuniam semanalmente e uma vez por mês se juntavam para poder socializar. Era uma metodologia muito interessante. Funcionou muito...
Beto: Rurais. Todas rurais. Na cidade tinha duas só. Deve ter hoje, sei lá, dez mil pessoas na cidade. É uma cidade bem pequena, no interior. Então a gente reunia uma vez por semana os núcleos por comunidade e uma vez por mês juntava todas as
4 A Ação Popular foi uma organização política nacional, fundada em 1962 em um congresso da Juventude Universitária Católica (JUC) em Belo Horizonte. Seu objetivo era formar quadros que pudessem “participar de uma transformação radical da estrutura brasileira em sua passagem do capitalismo para o socialismo”. Seu primeiro coordenador nacional foi Herbert José de Sousa, e seu principal ideólogo, o padre Henrique Vaz. A AP propunha-se a desenvolver seu trabalho prioritariamente junto aos setores operário e rural. Atuou nas universidades, nos centros populares de cultura, no Movimento de Educação de Base (MEB), movimento de alfabetização e conscientização das camadas populares, e nas campanhas de sindicalização rural do Nordeste. Seus militantes foram duramente perseguidos durante a ditadura, mas alguns continuaram atuantes (http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/acao-popular-ap, consulta em 21 de março de 2022).
comunidades para fazer a socialização das reflexões e tirar as ações. Essas ações é que permitiram, por exemplo, a ocupação da prefeitura na luta pela energia elétrica.
No ano de 2001, 2002 é quando o MPA5 chega nessa região. O MPA nasceu em 96 e quem trouxe o MPA para a região do sudoeste da Bahia foram justamente essas lideranças que já tinham uma articulação com a Comissão Pastoral da Terra - CPT. O Padre Daniel Picolle era um dos que tinha um mapa de todas as lutas na região. Já tinha tido também uma greve dos cafeicultores nos anos 80, em Vitória da Conquista. Ele também estava envolvido. Eu lembro que o Daniel era uma figura muito importante. O Padre Vasco também. E uma liderança que é dos anos 80 lá da comunidade: o Diacísio Ribeiro, que foi um interlocutor com o MPA nacional e o Daniel, porque já havia um processo de tentar organizar a central de associações.
Já existia um movimento nacional que tinha uma perspectiva de organização também em função da AP e o MPA fez essa interface entre o movimento nacional e esse processo de organização da comunidade. Na época, foi uma pessoa do MPA para lá, para fazer a rodada e já tinha um trabalho de mobilização nos municípios. O MPA chegou com uma pauta muito bem precisa. Foi um período que tinha muitos endividados em função do PRONAF6. O governo Fernando Henrique, quando criou o PRONAF, criou da pior forma possível. Tinha mais agricultores endividados do que agricultores que tinham tido sucesso com o PRONAF. O MPA chegou com luta para reivindicar a negociação da dívida dos agricultores. Fazer a negociação das dívidas e lutar por políticas públicas ali na região. Isso no governo Lula também, em 2003.
Eu ouvi falar do MPA pela primeira vez em 2002, pelo meu tio, que também era da associação (nesse período era vice-presidente)... Também pela liderança da comunidade católica, o Nilson. E quando o MPA chegou, as nossas dificuldades eram de estar lutando sozinho. Não era só da nossa comunidade, ou seja, lutar por energia elétrica, não era só um problema daquela região, era de todas as comunidades, era da região inteira. Por exemplo, lutar por renegociar a dívida não era problema só de uma associação.
O MPA chegou juntando essas reivindicações que estavam pulverizadas nos municípios do sudeste da Bahia e fez um grande encontro em 2002, uma mobilização.
5 MPA – Movimento dos Pequenos Agricultores - mpabrasil.org.br
6 PRONAF - Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar, um programa de crédito voltado para a agricultura familiar criado pelo decreto 1.946, de junho de 1996. Era uma antiga reivindicação dos então chamados “pequenos agricultores” e contemplava agricultores com até quatro módulos rurais.
Foi meu primeiro espaço de conhecer a mobilização de rua e eu fui para essa mobilização e saí de lá encantado! Eram 800 agricultores, que se encontraram por dois dias no Centro Diocesano de Vitória da Conquista. O sujeito aí tem um vínculo muito forte com a Igreja Católica. Ou seja, fui assim, nesse trabalho, de trabalho de massa do Movimento, de levar as pessoas que iam para mobilização. Na mobilização tinha pessoas endividadas e eu fui destacado para poder ir representando a associação de produtores da comunidade. E eu saí de lá apaixonado pelo MPA!!!!
A principal luta foi a ocupação do Banco do Nordeste, que era o agente do Governo Federal que implementava a política de crédito. Quando eu vi o pessoal ocupando o banco, eu saí maravilhado, por que não tinha um político! Era o povo revoltado, não é? Ocupando com facão, com foice... Lembro até que quebraram os vidros do banco, porque foi a forma do gerente descer para negociar.... Ou seja, o pessoal tinha protocolado antes com o gerente, mas ele não foi, só depois eu entendi isso. Não foram só dirigentes sindicais para negociar com o gerente do banco, foram 200 agricultores. Então essa é uma diferença também.
O MPA também surge numa tentativa de mudar o modelo de movimento sindical da região. Anteriormente iria o presidente do sindicato, o secretário e o tesoureiro. No máximo três pessoas para conversar com o gerente do banco, para negociar. Então a forma que o MPA trouxe ali também rompeu isso. Rompeu com essa lógica de negociação sindical, dos sindicatos de trabalhadores rurais - STRs da região. Foi tirada uma comissão em uma assembleia, uma pessoa por município, umas 20 pessoas. É claro que na comissão tinha militância que estava mais instruída sobre a negociação em si e sobre o que estava sendo discutido no Congresso Nacional, como deveria se implementar... E eu vi 800 pessoas negociarem juntas... Depois que o gerente recebeu o movimento, depois da ocupação do banco, houve a negociação e ali mesmo já houve uma assembleia em frente ao banco. Então a cidade nesses dias virou lugar de muito trânsito. Tinha um governo lá em Vitória da Conquista que era do PT. Se fosse agora, teria tropa de choque… Eu achei interessante aquilo e a formulação política da luta... Não tinha ainda, por exemplo, a literatura, diria, mais marxista. Era mais leitura da Teologia da Libertação: Frei Betto, Leonardo Boff era o que a gente estudava. Então achei fantástico aquilo ali!!! Todo mundo foi negociar juntos, não foram dois ou três e depois deram retorno.
Saí de lá muito animado!!! Estava no segundo grau também e meu tio estava muito nos encontros. Em 2003 participei já de um encontro de formação regional do MPA, como curioso. Estava indo porque também queria aproveitar o fim de semana com as pessoas... Em 2004, houve a Conferência Terra e Água, em Brasília, que foi uma grande conferência dos movimentos sociais do campo e sindical, com a ideia de construir uma plataforma para apresentar para o governo Lula. Da minha comunidade foram várias pessoas. Uma delas fui eu, porque eu já era da associação de agricultores e era um jovem que não tinha muitos compromissos, né? Meu compromisso era com a roça, com a escola.
Cheguei lá também fiquei encantado, tinha quinze mil pessoas. Foi quando eu conheci todos os demais movimentos do campo, MST, MMC7, ou seja, outras organizações. Foi um momento muito… foi assim meio... porque eu saí lá da roça... as minhas relações eram muito restritas e não conhecia o mundo, não é? Tinha delegações internacionais. Fiquei apaixonado pelo MPA, mas era o meu último ano no segundo grau e comecei a participar, ainda em 2004, de encontros regionais do MPA. E num desses encontros fiquei como interlocutor do município com a regional do MPA. Estava no final de 2004... Entre 2004 até março, mais ou menos, de 2005, o MPA da Bahia estava fazendo um mutirão que era para reunir todas as comunidades, para poder fazer um processo de organização do MPA no município.
Beto: A negociação das dívidas, energia elétrica e acesso ao PRONAF B8. Eram as três coisas que juntavam as comunidades. O que acontecia com o PRONAF? O agricultor tinha uma renda, lá, de dez mil reais por ano, e não podia pegar um crédito… O banco implementava um crédito para o agricultor que ele não tinha condição de pagar... E ele tinha que pagar com a terra no final. Também tinha um trabalho com os agricultores sobre a que linha de crédito iriam ter acesso. Então, na
7 O Movimento de Mulheres Camponesas (MMC) se autodefine como pertencente à classe trabalhadora e engajado na luta pela causa feminista e transformação da sociedade. Disponível em < Quem Somos e Nossa Missão - MMC - Movimento de Mulheres Camponesas (mmcbrasil.org) > Acesso em 19 março de 2022.
8 Linha do PRONAF voltado para agricultores(as) familiares com renda bruta anual familiar de até R$ 20.000,00.
época, era o PRONAF B, o PRONAF que enquadrava na renda. Ou seja, isso foi um erro que o movimento sindical teve na época, que foi de organizar a linha de crédito para famílias que não conseguiam pagar, pois a renda era incompatível com pagar aquilo lá. Então tinha esse trabalho também de organização para receber o PRONAF
B. O PRONAF virou uma bandeira de uma luta, nas condições econômicas das famílias.
Eu vou contar para vocês também quando eu comecei a me ver nisto. Eu, até então, era admirador do Movimento. Então o Movimento em 2004, 2005 estava fazendo mutirões. Nos mutirões sempre dois militantes iam para os municípios. Então, vinha um militante mais experiente, com o militante que estava chegando. Era em dupla. Um companheiro e uma companheira. E eu era a pessoa do município responsável por organizar a agenda de reuniões no fim de semana com as associações. Todas as associações tinham uma comunidade eclesial de base. As reuniões que nós marcamos sexta, sábado e domingo (eram três reuniões por dia) eram para apresentação do MPA e para levantar os problemas da comunidade. Eram sempre depois dos cultos nas comunidades. Então, era tudo muito misturado, o trabalho religioso com trabalho das associações. Às vezes, tinha reunião da associação e depois já era o culto. Ou vice-versa: tendo culto, algumas pessoas iam embora e outras chegavam. Eu fiquei nessa etapa de organizar e, no dia que estava marcado para essa agenda, chegou uma companheira que veio de Vitória da Conquista, chamada Estela, ela estava recém chegando no MPA. Era o primeiro trabalho dela. O outro companheiro que era o militante mais velho e já tinha mais experiência do que a gente, não foi e aí eu me desesperei!! Liguei para a secretaria do MPA: “Ele não está aqui, só está a Estela e a Estela não tem experiência nas redes e eu vou cancelar!”. Aí a liderança da regional, que era a Maria, falou assim: “Não cancela não! Vai você e a Estela. Vai e conversa com as comunidades. Ou seja, vê o que tem na cartilha do movimento para militância, e vai”. Aí fomos a Estela e eu, dois inexperientes, para nossa rodada de reuniões.
Beto: Foi o fim de semana inteiro, intensivo. A gente montou um roteiro... A gente estava numa comunidade e não tinha carro. Não tinha veículo do Movimento. A
comunidade é que garantia toda a logística. A gente chegou na comunidade, fez a reunião, outra comunidade ia buscar a gente, de cavalo. Então rodamos nessas nove comunidades... uma era na sede do município, na casa paroquial. Aconteceu na casa paroquial, já criando uma coordenação municipal do MPA para fazer um levantamento da energia elétrica, da renegociação de dívidas, de novos PRONAFs e começar a organização de uma coordenação do MPA no município. Enfim, eu diria que vi que eu poderia ser militante do Movimento. Depois a gente começou a fazer um trabalho no município, fomos em outras comunidades, enfim... Comecei a participar de espaços de formação e, em meados de 2005, acho que em junho, mais ou menos, esse trabalho em Caraíbas já estava acontecendo, já tinha uma coordenação acontecendo e aí tinha um militante nessa coordenação municipal. E ali os coordenadores dos grupos de base do MPA iam fazer as reuniões mensais nas comunidades e depois voltavam. Tinha um fluxo de reuniões mensais entre as comunidades, a coordenação municipal e a coordenação regional do MPA. Isso é a estrutura política do movimento. Mais ou menos em junho de 2005, o MPA estava indo para uma região da Bahia na Chapada Diamantina, que é Rio de Contas. Cheguei em Livramento de Nossa Senhora. Fui deslocado para Rio de Contas. O MPA precisava mandar alguém para lá, para poder fazer esse trabalho de organização. E lá quem nos recebeu foi a Igreja Católica também.
Beto: Nós estávamos na diocese de Caetité, na região de Caraíbas, e a diocese de Brumado é em outro município. É outra diocese. Depois eu descobri que naquela região teve padres muito progressistas! Só que ficava muito camuflado nos anos 90 em função dos traumas do pós-ditadura... E quando o MPA chegou, esses padres abriram as portas para o MPA. Então, eu fui ficando lá no centro diocesano, e a dona Maria, que era a liderança de lá, uma liderança da Pastoral da Saúde, conhecia todas as comunidades. E na primeira reunião que teve do município, a gente usou uma metodologia diferente. Ia ter uma reunião das comunidades no centro diocesano e uma das pautas era o MPA. Tinham 23 municípios que era Livramento de Nossa Senhora, Rio de Contas e Dom Basílio Isso fica mais ou menos a umas quatro horas
de viagem. Nesse processo, fui deslocado para lá, para morar lá. Fiquei lá um ano
mais ou menos, quase um ano e meio, acompanhando lá. Nesse processo, fui às assembleias marcadas nas comunidades. Cheguei lá em Itanajé. Tinha comunidade quilombola. Então, foi meu primeiro trabalho, foi quando eu me tornei de fato militante… Meu primeiro trabalho de base mesmo, enquanto militante que tinha todas as responsabilidades de um militante, foi nessa época e foi muito mais com os quilombolas, em Rio de Contas e Livramento de Nossa Senhora. A gente usou essa metodologia de rodar as comunidades, fazer as reuniões, criar as coordenações do MPA em cada comunidade e, posteriormente, a coordenação municipal. Nesses municípios, a pauta era energia elétrica e reconhecimento dos territórios quilombolas, o autorreconhecimento. Foi no boom também da Fundação Palmares. Eu acho que um dos grandes acertos dos governos do PT foi o autorreconhecimento. Criou o imbróglio jurídico entre a Fundação Palmares e o Incra, porque a Fundação Palmares criou um dispositivo legal sobre como se autorreconhecia. Independentemente do INCRA dizer que era ou não, depois o INCRA tinha dizer que era. Criou uma luta ali tremenda entre a Fundação Palmares e o INCRA.
A pauta era o reconhecimento das comunidades. Entre 2005, 2006, essa era pauta principal: energia elétrica, o autorreconhecimento das comunidades, e o Programa P1+29, um sistema das comunidades para ter água potável para beber e água para a agricultura. Isso era o que mobilizava nas comunidades. Viemos fazer um trabalho de mobilização e de formação política a partir dessas pautas.
Em 2005, 2006, 2007 queriam me mandar para o Rio Grande do Norte para poder criar o MPA lá. Então saí da minha condição de camponês, liderança local, não é? Fui promovido, já com trabalho de organização política do Movimento. Minha relação com a terra era uma vez por mês, quando eu estava uma semana na casa da minha mãe. Minha renda praticamente já não vinha mais da roça. Eu tinha minhas ovelhas, que minha família tocava, mas a minha renda já não vinha mais cem por cento da roça. Eu virei um liberado do MPA. A minha renda vinha do trabalho político. E minhas ovelhas se acabaram: depois de 2008, vendi tudo. Não dava mais conta de deixar lá, sem eu poder cuidar.
9 Programa Uma terra, duas águas, criado pela ASA - Articulação do Semiárido Brasileiro, em 2007, com o objetivo de ampliar o estoque de água das famílias, comunidades rurais e populações tradicionais para dar conta das necessidades dos plantios e das criações animais. Os objetivos são promover a soberania e a segurança alimentar e nutricional das famílias agricultoras e fomentar a geração de emprego e renda para as mesmas, estimulando a processos participativos para o desenvolvimento rural do Semiárido brasileiro
(https://www.asabrasil.org.br/acoes/p1-2#categoria_img, consulta em 22 de março de 2022).
Fui para o Rio Grande do Norte, teve um problema lá. Eu fui lá para poder fazer um diagnóstico, passei acho que dois meses, entreguei o diagnóstico para a direção do Movimento no Nordeste e fiquei atuando ainda em 2007, acompanhando.
Minha esposa estava em Livramento ainda, mas eu não morava mais lá. Passava 15 dias lá e 15 rodando por outras regionais da Bahia. Bastante gente, dado um processo de avançar na organização política. Eu ficava rodando as regionais e fui também contribuir no coletivo de formação do MPA. Então eu acabei virando um formador também, em outros municípios.
Em 2008, nós tínhamos uma brigada da Via Campesina na Venezuela (MPA, MST, MAB10 e os movimentos da Colômbia e do México).
A Via Campesina fez um convênio em 2006 com o governo da Venezuela, convênio que foi assinado no Fórum Social Mundial de 2005, para construir uma universidade camponesa na Venezuela. Uma universidade de Engenharia Agroecológica. Seria a primeira universidade de Engenharia Agroecológica! É a única da América Latina! A Via Campesina construiu com o governo da Venezuela as condições para a universidade e para os estudantes. A meta era formar dez mil engenheiros em dez anos. E foi uma turma de estudantes de 14 países.
Em 2008 o MPA tinha que enviar alguém para poder ajudar essa universidade, o IALA - Instituto Latino-Americano de Agroecologia Paulo Freire. E aí fui deslocado para a Venezuela para coordenar, ou seja, fazer parte da comissão político- pedagógica da universidade. Existia uma proposta também com o reitor sobre a estrutura de uma universidade: era uma outra proposta pedagógica, dos movimentos sociais, era uma relação do Ministério da Educação Superior da Venezuela com uma coordenação político-pedagógica da Via Campesina e aí dentro tinha uma estrutura organizativa que envolvia os estudantes, um tempo escola, um tempo comunidade, ou seja, não era ficar cem por cento dentro da sala de aula, mas partir da pedagogia da alternância: ir para as comunidades estaduais brasileiras, poder fazer o trabalho também de organização, não é? Aí eu fui para a Venezuela em 2008 e voltei no início de 2011. Nessa volta me casei também com uma companheira que era do MST. A
10 O MAB - Movimento dos Atingidos por Barragens - nasceu na década de 1980, por meio de experiências de organização local e regional, frente às ameaças geradas pela implantação de projetos de hidrelétricas. Tornou-se uma organização nacional que luta pelos direitos dos atingidos e por um Projeto Energético Popular. Ver: https://mab.org.br/quem-somos/
gente teve uma filha na Venezuela. Nasceu na Venezuela nossa filha. Minha companheira era do Rio de Janeiro.
Antes de ir para a Venezuela, eu tinha passado pelo Rio em 2007, num encontro da Articulação Nacional de Agroecologia em Santa Teresa, no Colégio Assunção. Foi quando conheci a Claudinha Schmitt pessoalmente, a Nívea do MST. Tinha um pessoal da CPT, que eu não lembro mais o nome, que falou que, se desse para eu vir para o Rio, tinha umas demandas para o MPA em Valença. Que eu poderia chegar também para assistir uma ocupação e tinha umas comunidades no entorno. Eu devolvi isso para o MPA na época, mas, até 2013, o MPA não via o Rio como uma possibilidade, por um tremendo desconhecimento da realidade. Inclusive não conseguia ver camponeses no Rio de Janeiro. Porque a luta camponesa no Rio ficou bem invisibilizada nos anos 2000, ou seja…
Beto: Sempre foi, não é? Mas até se pega alguma coisa nos anos 80. Nos anos 60 vai encontrar coisas, referências, mas nos anos 2000 não aparecia mais nada. Ou seja, o MST fez algumas lutas, de voltar para o campo, mas de pequenos agricultores não se tinha notícias. As notícias que se tinham era que o movimento sindical estava fragilizado também. Então, o MPA não deu muita atenção para isso. O foco da organização era o Nordeste, trabalho de organização de massa. Quando eu voltei, já com família, demorou pensar para onde iríamos. Nos oferecemos: “Estão voltando agora duas pessoas, três pessoas e a gente pode ir para qualquer região que o movimento indicar”. O Movimento demorou a chegar a um consenso do que seria e nós tomamos uma definição familiar de que nós iríamos ficar no Rio de Janeiro. Daqui eu iria contribuir no Coletivo Nacional de Formação do MPA e no Coletivo de Relações Internacionais. Cheguei em janeiro de 2011 e depois o MPA queria me convencer a ir fazer um trabalho na Tríplice Fronteira, região de Foz do Iguaçu, que é uma região em que a gente nunca conseguiu chegar e é muito estratégica, porque tem muito camponês e tem tensões permanentes, conflitos que a gente não vê, mas estão acontecendo e vão acontecer, em função das águas11.
11 O entrevistado refere-se a conflitos em torno do acesso à água.
Eu tinha tomado a decisão de ficar no Rio e em 2011 fui para a universidade que nós construímos: a Via Campesina, junto com o MST, construiu uma turma de Serviço Social com a UFRJ. E eu virei estudante do PRONERA12. Passei no processo seletivo e fui fazer Serviço Social na UFRJ. De 2011 até 2015 fiquei também estudando. Entre 2011 e 2012, sobretudo. E eu ficava, quando não estava estudando, nas tarefas do coletivo de formação do MPA. Acompanhava as escolas de formação nacional, ajudava a coordenar. A gente fez umas três ou quatro escolas de formação nacional e, inclusive, fui morar lá em Campos dos Goytacazes. Cheguei bem no boom da luta dos agricultores lá do Porto do Açu13, que, para mim, foi uma das maiores violências dos governos do PT, violências do projeto de desenvolvimento. Ou seja, é claro que, quando o desenvolvimento chega, não dialoga com as comunidades. Mil famílias estavam sendo expulsas.
Quando cheguei lá, a CPT nos procurou. Como Campos é muito perto do Espírito Santo, então o Espírito Santo deu um suporte no trabalho de acompanhamento da luta do Porto do Açu. Minha avaliação, no caso o movimento social, a pauta que seria do MPA era construir uma resistência para as pessoas não perderem suas terras, que é a pauta do Movimento. Chegamos muito atrasados em termos históricos, já no final das coisas. A LLX, junto com a empresa, já tinha feito um trabalho de cinco anos de desmobilização da comunidade, colocou o medo nas comunidades. Então as pessoas estavam amedrontadas, com receio de se organizar, porque a violência ali foi tremenda. Era tropa de choque, cachorro e trator para tirar as famílias... A minha avaliação é que nós chegamos já em um período que era muito difícil organizar e resistir. E aí ficou o grupo, um bravo grupo pequeno, resistindo. Até hoje tento acompanhar... Poucas lideranças conseguiram resistir, não vender seu sítio. São poucas, e quase cem por cento das famílias foram expulsas... Hoje é um
12 Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA) surgiu e foi formalizado em 16 de abril de 1998, por meio da Portaria nº 10/98, o Ministério Extraordinário de Política Fundiária, vinculado ao Gabinete do Ministro. a partir de uma demanda das organizações do campo, consolidadas no I Encontro Nacional das Educadoras e Educadores da Reforma Agrária – ENERA, realizado em julho de 1997. (https://antigo.incra.gov.br/pt/educacao.html?id=230, consultado em 22 de março de 2022). A política foi posteriormente regulamentada pelo decreto 7.352, de 04 de novembro de 2010. Hoje o Programa envolve além do ensino básico, cursos de Licenciatura em Educação no Campo, Agronomia, História, Geografia, Direito etc.
13 O Porto do Açu localiza-se em São João da Barra, no Norte Fluminense. Foi projetado como porto- indústria que atrairia empresas de vários setores para o distrito industrial que seria instalado a sua volta, em função das desapropriações propostas, que expulsaram da terra centenas de lavradores (https://oglobo.globo.com/rio/porto-do-acu-um-megaempreendimento-cercado-de-impasses- 20197027#ixzz7OI968SpQ, acesso em 22 de março de 2016).
deserto aquela região, praticamente só se vê pastos. Uma região que era muito produtora.
Então, o meu primeiro contato com o Rio, com a questão agrária, foi essa expulsão. Aí eu falei: “Opa!”. Comecei a ficar curioso, não me aguentava e comecei a pesquisar para poder entender o que eram esses três por cento dos dados oficiais que tem de população no campo. Depois a gente descobriu que esses três por cento é muita gente e eu comecei a convencer o MPA que nós tínhamos que prestar um trabalho aqui no Rio de Janeiro, porque é um estado politicamente muito ativo. Todas as pressões políticas estão no Rio de Janeiro, todas as pautas aqui têm maior possibilidade de se popularizar, de se nacionalizar.
Então, fui fazer um trabalho de base interna no MPA e em 2013 para 2014 fui morar na Baixada. E por que a Baixada? Porque eu conhecia a Leonilde, o CPDA14. E o MPA já tinha uma relação com o CPDA, pois, para nós, o CPDA foi fundamental no início da construção da coleção da História Social do Campesinato. Nós já tínhamos feito umas reuniões, não sei se a Leonilde lembra, com as companheiras do MPA, para discutir aquele último livro15. Acho que foi ali em 2013, 2014.
Beto: Sim... Veio uma companheira do Rio Grande do Sul, uma de Brasília, uma do Espírito Santo e eu fiquei na mediação, acompanhando, para fechar o livro das mulheres. Seria o último livro da coleção, não é?
Beto: Então, por eu estar estudando, Campos era muito longe. E aí a minha companheira da época, pediu transferência para trabalhar em Itaboraí e nós compramos um terreno em Nova Iguaçu, na região de Tinguá, um lote urbano, com a
14 CPDA – Programa de Pós-graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.
15 O entrevistado se refere à coleção História Social do Campesinato, composta por nove volumes, publicados pela Editora da Unesp, com apoio do Nead/MDA – Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento do extinto Ministério do Desenvolvimento Agrário. Após o lançamento dos primeiros volumes, as mulheres do MPA cobraram um volume adicional, em sua atuação tivesse protagonismo. Assim foi desenvolvido o volume Mulheres Camponesas, organizado por Delma Pessanha Neves e Leonilde Medeiros, publicado em 2013 pela editora Alternativa.
casa. E aí conheci algumas lideranças de Nova Iguaçu, além de também pessoas ligadas à CPT.
Não consigo ficar em casa parado vendo as coisas acontecerem... Então me meti para conhecer as pessoas, é uma coisa que a gente chama de mística, não é? Para a UFRJ, nós construímos um projeto de extensão, na época do estágio. Uma das brigas que eu tive dentro da universidade, que a turma teve, é que nós achávamos que nosso estágio não era só fazer relatório ou pesquisa. Tinha que ser um estágio que vinculasse ao processo de organização militantes, junto com a universidade. E nós não iríamos para fazer o estágio ou pesquisa e extensão só enquanto universitários. Nós iríamos como militantes também e, como a profissão prega nas suas diretrizes, nós nos sentimos enquanto parte da classe, não é? Ou seja, enquanto profissionais, uma das profissões em que nós somos parte da classe trabalhadora. O Serviço Social tem muito disso. Nós batemos o pé que nós íamos transformar o estágio em processo de organização e os professores ficaram muito bravos com a gente na época. Ou seja, aproveitar a estrutura do estágio e da extensão para fazer trabalho de organização na área.
Beto: E a universidade queria fazer feira dentro do campus, que trabalha a extensão. E nós entendemos que a região que teria condição de atender isso seria a Baixada. Tinha um assentamento do MST também na Baixada, o Terra Prometida, tinha outros no entorno dele e nós descobrimos que tinha uma estudante do Serviço Social que era filha de um assentado da Fazenda Alpina, em Teresópolis. E aí, resolvemos fazer dois estágios, um na Baixada e um em Teresópolis. O na Baixada foi focado nas sementes, para a gente fazer um experimento de sementes. A gente fazia o lote do estágio. E o da região serrana seria um trabalho de identificar as condições sócio produtivas do assentamento. Então nós viemos fazer a pesquisa e estágio ao mesmo tempo e aí organizamos na universidade uma feira, uma feira da reforma agrária e da cultura camponesa. O MPA mandou produto, o MST mandou e nós trouxemos a produção do MST do estado e desses agricultores.
Beto: Isso. No caso da Fazenda Alpina, havia um assentamento de reforma agrária que não tinha uma organização política, diria assim, tinha uma organização comunitária. E quando eu falo político, eu falo a FETAG – Federação dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura do Estado do Rio de Janeiro. Ou seja, tinha uma mesma política do território. Nós começamos esse trabalho na Fazenda Alpina trazendo os camponeses para essa feira da UFRJ, ainda em 2015, e, nesse processo, a gente começou a criar um grupo de agricultores que começou a falar do MPA tanto em Nova Iguaçu, quanto na região serrana, e em Campos, em São João da Barra. Aí começaram a aparecer organizações urbanas querendo contribuir politicamente no movimento, querendo ser militante. Essa é uma coisa também nova do Movimento: militantes de origem urbana que querem ser militantes de movimento camponês. A gente viu que no Rio tínhamos que fazer isso (o MPA sempre teve uma resistência a isso). No Rio, seria impossível não incorporar pessoas urbanas da militância no movimento camponês. E nós chegamos à conclusão de que esse processo tinha sérios limites organizativos, porque, quando chove, ninguém sai de casa, não é? Ou seja, então não tinha feira e tinha chuva, voltavam tristes para casa porque não venderam, endividados.
Em algum momento teve apoio da universidade para logística. A universidade financiou o combustível para o carro. Depois começou a feira a se viabilizar. Nós já tínhamos um diagnóstico de que a Baixada, a região serrana, não sei se estou correto, ficaram muito desarticuladas politicamente. Ou seja, nós temos o MST no Rio, que faz a articulação dos acampados e assentados, nós temos o movimento sindical que tem dentro pequenos agricultores e assentados com muita dificuldade.
Em função de várias questões, uma das razões que eu acho, está vinculada a estruturas partidárias: os partidos não estão por dentro da questão agrária e camponesa, não é o centro da sua organização política. Seja PT, seja PCdoB não trabalham para mobilizar o campo, não têm uma tática de organização política para o campo. E o movimento sindical, que não tem esse vínculo partidário, acaba não tendo apoio da estrutura do partido para fazer o trabalho. Ou seja, quem está no movimento sindical aqui no Rio são bravos guerreiros, guerreiras que fazem um trabalho muito difícil, já que a organização política deles não dá o suporte necessário no que é dar o apoio, quando tem lutas urbanas, por exemplo.
É uma autocrítica que eu faço da esquerda no Rio de Janeiro. No Rio não, no Brasil inteiro. Se não tivessem surgido os movimentos sociais como MST, o MPA, o MAB, que foram estruturas de movimentos sociais não tão vinculados à estrutura partidária, eu acho que nós estaríamos com muito mais dificuldades. De alguma forma nós rompemos com a organização do campo vinculada à estrutura dos partidos. Os partidos, de alguma forma, deram visibilidade para as lutas camponesas. Depois contribuíram em alguns processos. Então isso viciou de alguma forma também a organização no campo, por não dar autonomia para os territórios se organizarem e ter pautas a partir da sua realidade. É o debate do marxismo na questão agrária sobre o que resultam das percepções quando vai pensar em formas de organização.
Então nós identificamos a pauta comum dos agricultores do Rio para o MPA chegar, ou seja, pensando no que, de alguma forma, une a classe. O que poderia ser a bandeira para a gente conseguir juntar agricultores que não se encontram? A minha experiência era a que eu falei anteriormente. Luta pela energia elétrica, pela água… Você tem que ter alguma coisa que mobilize, ou seja, vocês, por exemplo, têm alguma coisa entre os professores e junta todo mundo para fazer a luta. E aqui no Rio a gente viu que esse ponto em comum seria o que nós estamos chamando de agroecologia e abastecimento popular. Seria a parte de como organizar o processo da comercialização camponesa para chegar na cidade. Então, pensando organização camponesa, seria o ponto comum da classe. Mas, para os camponeses começarem a virar classe social, a pauta é a gente chegar na comunidade, com a produção agroecológica, a comercialização. É o vai fazer as pessoas pararem para escutar o MPA... Como é? E tem interesse pelo Movimento, pela forma de organização. Então esse foi o diagnóstico.
A gente começou a adentrar a Baixada Fluminense. Quando falo de Baixada, estou falando de Queimados, estou falando de Nova Iguaçu, de Mesquita, Magé e Caxias. Não conseguiam ter pernas ainda. Tem outra pauta que mobiliza em Japeri, que é a memória. Essa é outra pauta de Japeri para a qual a gente não conseguiu ainda dar forma. Lá misturam as duas pautas...
Beto: Pedra Lisa. Conversando com o pessoal de Japeri, ali tem muita memória de luta pela terra, para além de Pedra Lisa. Tem muitos assentamentos que foram feitos para poder também não deixar crescer nossa luta, não ganhou outro por ter outra conotação. Deu uma segurada. Dá a impressão que foi para poder conter o sujeito, ou seja, para o pessoal ficar quieto e depois eles não se organizarem mais. Então, são esses municípios da Baixada, Região Serrana, Petrópolis, Teresópolis, Duas Barras, já depois de Friburgo. Essa é a pauta que junta os agricultores.
Dentro da agroecologia tem o debate das sementes, tem o debate da produção de insumos. É o que mobiliza. Então, com essa pauta, começamos a organizar e o MPA começou a fazer um debate também, já nos final do ano de 2015, de que nós tínhamos que, de fato, construir uma aliança com a cidade pensando numa formulação de que ou a gente converte a soberania alimentar numa luta brasileira ou não tem soberania nacional.
E aí a gente começa a colocar a soberania alimentar dentro de uma plataforma política para poder pensar a revolução brasileira, para pensar a democracia brasileira, não tem como pensar a democracia sem pensar produção de comida. Não dá, não tem como pensar uma revolução brasileira se não pensar na produção de alimento. Os camponeses e camponesas tentam discutir isso. É um debate que a gente faz para a esquerda partidária inclusive: o agronegócio não tem nenhum compromisso com o Brasil, de produzir comida para o Brasil. Então quem tem compromisso histórico e quem foi produzir a comida no Brasil é quem estava às margens do agronegócio, não é? As grandes fazendas nunca produziram comida. Quem produzia comida para as grandes fazendas eram os posseiros. Descobri que esse sujeito social que produz alimento para o Brasil são os pequenos agricultores e quem pensa na luta política e soberania alimentar seriam eles, ou seja, não tem como a gente avançar no processo de organização e de transformação sem organizar comida e distribuição, haja vista o processo de distribuição de alimentos das grandes multinacionais. E, sendo só esse pessoal, em algum momento pode nos desabastecer. Ou seja, a gente avança, eles desabastecem. Isso foi feito em todos os lugares que tentou somar, em mudar parte da realidade, não é?
A gente falou sobre essa formulação do abastecimento popular, essa pauta, com a cidade. Como o MPA vai chegar na cidade? Pela comida. O MPA vai chegar no campo pela comercialização, pelo abastecimento, tentar criar um circuito de
distribuição direto, com isso fazendo um movimento político e fazendo movimento econômico também. Uma das nossas contradições é que nós não vamos organizar a economia. Tem todo um debate que a gente faz, um debate sobre a economia camponesa. Existe uma economia aí. Até dentro do marxismo há possibilidade de discussão disso … é possível uma economia camponesa dentro do capitalismo? Estamos nesse debate. Nós estamos achando que há espaços de que a gente não pode abrir mão. Ou seja, enquanto, por exemplo, alguns setores do movimento sindical defendem a integração com a agroindústria, a gente não defende. Vamos organizar a nossa base social para se integrar às grandes empresas?? Existe uma orientação partidária, inclusive de alguns partidos, algumas tendências partidárias de que esse é o caminho da organização no campo. Veja, isso não é nos anos 60 não, é de agora, da segunda metade deste século. Algumas tendências presentes nas organizações políticas acham que, para avançar a organização camponesa, tem que aumentar o processo de proletarização. Então tem que integrar os camponeses e as camponesas. Há um modelo vertical proposto pelo núcleo duro que pensa no Brasil e no mundo. E junta setores de esquerda e de direita nessa mesma formulação, de que falar de agricultura camponesa é algo atrasado. Ou seja, a pessoa discutia a fome no Brasil e falava que a agricultura camponesa é coisa do passado, que a gente tem que integrar de fato os agricultores à agroindústria. Mas enfim, isso é para outra conversa.
Então, a gente começou a formular um pouco essa ideia de que, no Rio, a pauta comum não é a luta pela energia elétrica, nem a luta para negociar dívida, nem a luta pelo crédito, porque não soa entre os agricultores. Se aqui tem pouca gente endividada é porque não teve acesso [a crédito]. E sobreviveu, não é? Sobreviveu a todas as condições, houve várias tentativas de expulsar, inclusive… Quem não pegou o crédito é um vitorioso, inclusive, por que, senão, teria perdido a roça. Então, o MPA não iria chegar aqui no Rio com a pauta de crédito, já que historicamente os camponeses também se negaram. E naquela desconfiança camponesa, de não pegar uma coisa que sabe que não vai pagar. E a pauta comum seria essa: organizar a produção agroecológica ou fazer a transição e organizar a cidade na distribuição.
Então, a partir dessa pauta é que nós estamos organizando o MPA aqui no Rio, estamos chegando nas comunidades. Aí é que surge o Raízes do Brasil16.
Beto: É aí que surgiu Raízes, porque a gente criou a cesta camponesa como esse instrumento. E aí começamos a pensar no seguinte também: é um espaço…é onde tem uma intelectualidade que debate alimentação saudável. É onde existe um grupo muito forte de gourmetização da comida saudável. Então a gente tem que fazer ou tentar, a partir da nossa perspectiva, a perspectiva que é do movimento social. Tentar dialogar inclusive com essas construções, fortalecer algumas narrativas ou com outras narrativas também. É aí que surge o Raízes do Brasil, uma primeira experiência de ser um espaço de encontro entre campo e cidade, a partir da comida e da cultura.
Beto: Existe no Piauí, foi tirado este ano, um em Sergipe que não abrimos um espaço por conta da pandemia, mas já existe.
Beto: Foi o primeiro. Foi o primeiro.
E qual é o espaço físico na cidade? Esse espaço de encontro, um espaço de logística que a gente consegue de alguma forma. A gente viu que nós não tínhamos algumas estruturas de entreposto. Então o Raízes funcionaria como entreposto para facilitar a logística. Ponto de encontro entre a cidade e o campo, a partir da comida e um espaço também em que se poderia oferecer formação. Ter um espaço de encontro de outras organizações também. Então, o Raízes se transformou entre 2017 e 2020.
16 O Raízes do Brasil é um espaço organizado para integrar “agroecologia camponesa e a sociedade urbana, através da alimentação saudável, atividades culturais e hospedagem. Está localizado no Bairro de Santa Tereza e abriga atividades culturais e seminários. Ver https://raizesdobrasil.org.br/rj/. Para uma exposição sobre o que é o Raízes, ver vídeo onde Beto Ribeiro narra brevemente a experiência: https://www.youtube.com/watch?v=wNZLNUzAB7Q.
Conseguiu cumprir bem esse papel. Esse espaço de encontro para o qual a gente conseguiu dar visibilidade e atingir setores em cada lugar, no papel de ser um propagandista das bandeiras do MPA em outros setores intelectuais, dos artistas, que nós não tínhamos contato... Nosso contato era muito restrito anteriormente... Ser um espaço que permitiria aos camponesas ter uma estrutura. Uma terceirização direta que permitisse dormir e ter um maior planejamento também da produção. Então Raízes foi se tornando isso.
E ele só foi possível também em função da relação com os operários urbanos. Vou dar um passo atrás para voltar depois: nós começamos a debater entre 2013 e 2015 com alguns setores do movimento sindical. Começamos a nos aproximar politicamente dos metalúrgicos, enquanto categoria, e dos petroleiros. O que nós achávamos e achamos é que eles têm uma capacidade de influenciar maior do que a nossa. Então, na nossa avaliação, eles têm o poder, pela sua posição no mundo do trabalho, que pode irradiar pautas, não é? E nós começamos. Eu participei de dez reuniões com os petroleiros para eles entenderem o que era soberania alimentar, por exemplo. Foram várias reuniões que eu fui acompanhar, falar da pauta, de eles entenderem a Petrobras. Eles não conseguiam fazer essa vinculação, porque a comida é cara, porque o combustível... ou seja, como a Petrobras influencia a agricultura... E eles entenderam isso, os metalúrgicos entenderam também e nós começamos a ensaiar. E isso a gente precisava documentar em algum momento. Não foi documentado, não foi sistematizado. Nós começamos a ensaiar entre 2013 e 2015, foi um negócio muito interessante, que eram essas duas categorias incluindo em seu acordo coletivo o debate da agroecologia e da alimentação. Nós começamos a debater com os metalúrgicos do Sul, de São Paulo, da Bahia e de Rondônia para incorporar a alimentação saudável. Para incluir na pauta aquela ideia do PAA e PNAE e que os restaurantes das fábricas comprassem alimentação do agricultor familiar17.
22 de março de 2022). O PNAE oferece alimentação escolar e ações de educação alimentar e nutricional a estudantes de todas as etapas da educação básica pública. Com a Lei nº 11.947, de 16/6/2009, 30% do valor repassado pelo Programa Nacional de Alimentação Escolar – PNAE deve ser investido na compra direta de produtos da agricultura familiar, medida que estimula o desenvolvimento
Nós fizemos a conta de que seria a maior política de Estado se acontecer com essas duas categorias. Nós chegamos a desenhar com os petroleiros, onde tinha Petrobras, onde tinha restaurante, onde a gente poderia abastecer. Nós temos que ir para a porta da fábrica com petroleiros, com os metalúrgicos. Tinha as assembleias deles no Espírito Santo, na Bahia, em São Paulo. Nós íamos e chegávamos com um carro cheio de comida para vender e fazer o debate, com café, farinha e verdura. E fizemos debates sobre alimentação saudável e a vida deles enquanto trabalhadores. Isso pegou ao ponto de que, no acordo coletivo da greve de 2015 dos petroleiros, por exemplo, existe uma cláusula que a Petrobras aceitou porque a Petrobrás também não entendeu muito... Ou seja, não era pauta principal: que em toda unidade da Petrobras deveria ter uma feira de agricultura familiar. E que devia comprar 30% da agricultura familiar. Isso não foi para frente, porque houve o golpe e a gente sabe o resto da história, não é? O desmonte... Mas essas duas categorias entenderam isso. Então, no caso do Raízes, os petroleiros ajudaram, pois eles entenderem e ofereceram a logística e estrutura. Ou seja, a forma de ser solidário: a gente oferece uma estrutura para vocês... Então eles bancaram grande parte do aluguel, por exemplo, que é o custo maior do Raízes daqui de Santa Teresa. É esse movimento econômico do Raízes para conseguir se autosustentar. Então, o Raízes também é fruto dessa aliança com urbanos. E os urbanos, nesse caso, é uma categoria pequena, mas que tem um poder econômico grande, que é a categoria petroleira, enquanto
movimento social e sindical. O Raízes é fruto dessa aliança com os petroleiros.
Então, nós passamos a transformar o Raízes nessa integração campo e cidade: distribuir cestas, vender e comercializar cestas e ser um espaço cultural e espaço de formação. E também ser um espaço de encontro de outras organizações. Então o CPDA fez encontro aqui, a ANA - Associação Nacional de Agroecologia fez encontro aqui, a ABA - Associação Brasileira de Agroecologia fez encontro aqui, o MST. Até os funcionários do BNDES - Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social fizeram encontro aqui na associação, virou espaço de encontro de outros sujeitos que conheciam o MPA a partir do espaço também. Ou seja, porque a comida toda era a comida direta dos agricultores, tinha lojinha... E espaço de música também, era vinculado à cultura popular. E nós do Raízes construímos uma relação: nós não
econômico e sustentável das comunidades rurais (https://www.gov.br/fnde/pt-br/acesso-a- informacao/acoes-e-programas/programas/pnae, acesso em 22 de março de 2022).
sabíamos que no Rio tem um movimento de viola muito forte. Existe um movimento forte de violeiros no Rio e ninguém sabia disso... E o Raízes permitiu um encontro desse movimento que se chama Rio de Violas.
Então o Raízes se transformou nesse espaço de encontro do campo e da cidade, pela comida e pela cultura, eu diria. Politicamente nós achamos que deu certo, economicamente precisa dar certo também, porque não pode ser só uma política. Tem que dar certo no econômico, porque, no caso dessa estrutura, nós imaginamos que poderia ser uma estrutura pensada a partir de uma política de Estado. Ou seja, para poder criar uma infraestrutura e logística tem que ser política pública. Coisa que o movimento social não tem, que é essa logística básica de espaços.
Aqui no Rio tem casarões antigos. Quando falo em política de Estado é isso: converter alguns casarões desses em espaços como o Raízes, numa relação de concessão de uso. É onde há subsídio do Estado para essas estruturas, haja vista que aluguel no Rio é mais caro que em qualquer outro lugar. São muitas dificuldades. Aqui no Rio, o Raízes permitiu à gente ampliar essa demanda de comercialização ao ponto de que o que aconteceu aqui não aconteceu em outro lugar. Tem um professor que a gente conhece, que é da Universidade Rural, e que também já vem de movimentos agroecológicos parceiros. Ele ligou para a gente: “Olha, eu faço um trabalho aqui no assentamento em Queimados e a pauta do pessoal é essa da comercialização e acho que vocês têm que conversar com eles”. “Tá, vamos marcar”. E aí chegou aqui um dia em Santa Teresa uma Kombi cheia de agricultores de Campo Alegre, para conversar com o MPA, para a gente falar do MPA para eles. Acabou acontecendo o reverso, ou seja, os agricultores ficaram sabendo do Raízes e do MPA pela mediação, ou seja, por outros parceiros. Para conversar, para ver como é que a gente funcionava, como é que organizava, como eles poderiam participar ou não. O
trabalho está acontecendo em função disso.
Hoje voltou a ser a principal questão que permite ao MPA chegar nos territórios camponeses: agroecologia e abastecimento popular. Na agroecologia a gente coloca o tema das sementes e o tema da produção de insumos. E quando eu falo de abastecimento, eu falo de pensar as formas por fora dos tradicionais de comercialização, que são as CEASAs18 ou as feiras que existem. E há uma
18 CEASA é a sigla e denominação popular das centrais de abastecimento, que são empresas estatais ou de capital misto destinadas a promover, regular, dinamizar e organizar a comercialização de produtos da hortifruticultura a nível de atacado em uma região de ação.
possibilidade também de, em algum momento, a gente abrir diálogo para essa política pública de comercialização. É uma coisa que não puxamos, pois a gente não tem pernas ainda para poder dar conta. Seria pautar de outra forma as chamadas públicas. Em algum momento nós conversamos com a Prefeitura do Rio, quando o César Benjamin teve sua pequena passagem pela Secretaria de Educação.
Tinha algumas coisas para resolver. Inclusive, quem me atendeu foi o Jean Marc [Van der Weid, da ASPTA19], que é bem amigo dele, tem relações históricas... Se a Prefeitura do Rio estruturasse para poder incorporar a agricultura familiar, o estado do Rio não daria conta... Se existe uma pessoa, das figuras políticas, que teve no Rio uma visão mais estratégica de pensar na produção do que o Brizola, eu não conheço. Na época do Brizola tinha uma empresa pública, a gente descobriu isso, uma logística para distribuir comida. E isso acabou, não é? Assim, não tem como entrar e pensar na distribuição pelo MPA, porque não tem logística. O Estado não subsidia isso. Então, a gente nunca consegue entrar. Tem um edital, está lá, a gente não consegue entrar porque a gente não tem condições de entrega. E tem umas empresas que já tem tudo montado, não é? Ou a gente faz negócio com as empresas ou a gente não consegue pensar... Talvez consiga fazer uma coisa pontual em duas escolas, três escolas. Para nós, por exemplo, seria impossível hoje fazer isso. E quando a gente vai para o campo, aí... A gente está começando um trabalho há um ano já da pandemia... Quando chega a pandemia, está finalizando lá em Magé no assentamento [Cachoeira Grande]. As pessoas têm é que ter alguma esperança. Durante o governo Brizola permitia a gente fazer a luta, não é? E permitiu ter diálogo, mas um diálogo menos autoritário. Isto em todas as regiões, as pessoas falam isso. Então, o que aconteceu? A gente vem em 2018, 2019, o Raízes em 2017.
Então, eu tenho que dar um impulso no MPA do Rio de Janeiro. Até então nós não tínhamos uma estrutura de organização política. Aí nós passamos 2018, 2019 nessa parte da visão política do que é criar coordenações territoriais, as formulações de militância. Fazer encontros comunidades. E isso tudo acumulou no nosso primeiro encontro estadual que foi no final de 2019, com 120 pessoas. Dessas, 90% eram agricultores e agricultoras. Os outros 10% era quem contribuiu na mobilização, é parceiro que foi contribuir na sistematização, a militância que não é camponesa, que
19 A AS-PTA Agricultura Familiar e Agroecologia é uma associação de direito civil sem fins lucrativos que, desde 1983, atua para o fortalecimento da agricultura familiar e a promoção do desenvolvimento rural sustentável no Brasil (https://aspta.org.br/, consultado em 22 de março de 2022).
é urbana. Foi em dois de novembro. Nesse encontro, já viemos com processo de diagnóstico dos territórios, nós temos um grande planejamento de trabalho territorial. E, nesse processo, nós já tínhamos, começamos em dois quilombos, o quilombo em Mangaratiba e um quilombo em Quatis. E esses dois trazem, além dessas pautas de que eu falei, a luta pela defesa do território, que não está nas outras comunidades. Essas duas pautas dos quilombos devem ser um processo de organização de luta de outro nível, porque são tensões que começam a acontecer agora, porque pode ser que haja desapropriação de parte desse território. Estou falando de Mangaratiba se enfrentar com a especulação imobiliária. Ou seja, os coronéis ali do Sul Fluminense que ainda resistem lá e arcaicamente estão lá... Seria enfrentar esse latifúndio do Sul fluminense. Então, são dois territórios que trazem uma outra pauta, que é a defesa do território, e que passa pela comida, mas realmente passa por questões jurídicas e por formas de organização que as pessoas não querem. Há mais de duzentos anos. Só que assim, chega a um limite também da resistência: ou se resiste para vencer ou vai embora, não é? E essas 12 regiões pode ser que tenham conflitos dessa natureza, e dentro desse diagnóstico que nós estamos fazendo, pensamos em como podemos contribuir.
E aí veio essa questão da pandemia e esse planejamento do encontro foi por água abaixo... Planejar, fazendo reuniões territoriais, fazendo formações, avançando na produção de insumos, de semente, ou seja, implementar o que nós chamamos de Plano Camponês nas comunidades... A pandemia veio e parou tudo! Não fizemos em 2020 nenhuma ação, não fizemos nenhuma atividade presencial, não é? Então, a pandemia meio que deu uma parada nesse movimento político do MPA no Rio. Só teve alguns territórios em que a gente teve contato com algumas famílias e lideranças em função da comercialização, ou seja, a estrutura econômica avançou. Mas tem coisas políticas, processos que a gente não conseguiu fazer. Esse movimento da comercialização, a gente conseguiu manter: eles deixam em tal ponto, a gente chega tal hora lá para se encontrar. E fica duas horas conversando. Teve quilombos em que morreu muita gente, morreram tipo assim, 20% faleceram na comunidade. E é agricultor militante, mais difícil de ser substituído..., né? Morreu, não tem como colocar outro agricultor ali.
Nos cuidamos muito, não fazíamos encontros presenciais. Mantivemos mais as atividades econômicas. Só que aí está a questão da pauta de que eu falava, não é?
E nós avançamos em dois territórios, durante a pandemia, para a pauta da agroecologia. A gente começou a fazer um trabalho mais político lá no assentamento Fazenda Pau Grande, que nós conhecemos em março e abril de 2020. Com a pandemia, vários agricultores que tinham canais de comercialização... chegamos a mapear umas 600 famílias que não sabiam o que fazer com a sua produção. Porque o a CEASA diminuiu, as feiras fecharam e perdeu muita produção. E aí circulou não sei por onde que o MPA poderia contribuir nesse processo. E aí, literalmente, ligou um jovem, Mateus, que é filho do Zé Teixeira, uma liderança da luta pela terra da América Fabril. Alguém tinha passado o nosso contato e ele queria saber como funcionava. Eu que atendi o telefone: “Mateus o que é que você tem na sua roça que você vai perder?” “Por aqui, eu vou perder o milho...” Começou o processo de aproximação com ele ao ponto de que, na fazenda Pau Grande, nós fizemos a nossa primeira atividade presencial do MPA no Rio. Nós conseguimos mobilizar 22 pessoas. Fizemos um curso lá.
Beto: É Pau Grande, mas é na região da Cachoeira Grande. É bem próximo de onde está a fazenda. Na estrada.
Beto: Isso, isso.
Beto: Isso, o mesmo lugar. Nossa primeira atividade presencial este ano com os agricultores e com parte da militância foi lá no assentamento. Foi uma oficina de produção de fertilizante para 22 pessoas. Foram alguns vizinhos do Zé Teixeira, um agricultor de Rio D’Ouro, também ali de Magé, veio o pessoal do MPA de Petrópolis. Essa produção de biofertilizantes foi em função de um diagnóstico que nós tínhamos
feito a partir da comercialização: nós tínhamos que avançar na produção. Nas conversas com o Mateus, eu disse: “Vamos fazer uma experiência aqui, com o MPA”. Uma produção de feijão. Nessa experiência, a gente vive uma chamada dos insumos, para fazer o controle das pragas se fosse necessário. Já está na colheita desse feijão, vai dar pouca coisa, porque a chuva atrapalhou agora e nesse meio tempo nós tínhamos que produzir os insumos para a próxima safra. Essa foi nossa primeira atividade presencial no assentamento Pau Grande.
A segunda atividade presencial com agricultores foi em Teresópolis, uma conversa no vale dos Lúcios, que é uma comunidade camponesa com 70 famílias, no caminho para Friburgo. Parte dessas famílias são agroecológicas e com certificação orgânica, outras não. Eu conhecia uma liderança dessa comunidade da época da universidade, das extensões da vida, e uma semana antes de quando veio a notícia que tudo ia fechar, nós pensamos: se vai fechar tudo, a demanda por comida vai aumentar. É uma coisa muito do instinto, não é? Vamos ter que fechar o Raízes ao público por uma questão de segurança, mas a gente não pode deixar de organizar produção de comida, essa é nossa vida! Ou seja, começamos uma campanha “Fica em casa, a gente produz comida!”. Fiz contato com a liderança do Vale dos Lúcios para ir conversar, para falar do MPA e a primeira coisa que ela falou foi: “Eu estou muito preocupada porque a partir da segunda-feira ninguém vai conseguir comercializar mais na comunidade. Porque os caras da CEASA não vão mais e nós estamos preocupados se a pessoa passar fome também. Ou seja, vai comer o que produz que é da região. Não produz outras coisas”. Aí nós falamos do MPA, da cesta camponesa, começamos a conversar. É uma liderança que já tinha um trabalho comunitário fantástico. É da Associação dos Produtores do Vale dos Lúcios. É uma região que foi desmontada pela chuva de 2011 e eles reconstruíram a região e com muita produção. São 70 famílias, então a gente conseguiu fazer nossa segunda atividade presencial lá para 25 pessoas, agricultores. Os agricultores, nesse processo da pandemia, foram mobilizados para abastecer a cesta camponesa, eles participaram da oficina de produção de biofertilizantes e uma pessoa de Friburgo e de Petrópolis também. É uma região também estratégica para a gente, com muita produção, mas que usa muito veneno. E uma das pautas para os agricultores que produzem com veneno, “tá bom, eu produzo com veneno, mas o que que eu vou fazer, né?” Por isso, sistematizamos, no MPA, os biofertilizantes, que são produtos que têm
na roça, biofermentados, biocontroladores para substituir o agrotóxico. E então nós estamos apostando que nós vamos produzir biologicamente. Vamos produzir agora mil litros na região serrana e vamos distribuir para algumas famílias, para experimentar. Como a gente acha que o resultado vai ser positivo, a gente vai abrir a porta a outros agricultores que usam agrotóxicos e queiram fazer transição agroecológica. E também em todos esses lugares… Tem pouca produção de sementes aqui no Rio de Janeiro.
A terceira atividade nossa presencial foi numa favela, foi numa formação em uma horta urbana no morro de São Carlos. Foi uma oficina de produção de biofertilizantes. Eles têm problemas com controles de pragas e a gente fez uma oficina lá com o pessoal da horta e com o pessoal de outras hortas que a gente está contactando. Uma horta lá da Marcílio Dias, uma da Penha e uma horta do Catete.
Durante a pandemia também lançamos um mutirão contra a fome, que é uma campanha de solidariedade para levar comida para os territórios de favela. Nesse mutirão, o Raízes acabou sendo entreposto também. É uma proposta metodológica: não é só levar a cesta de alimentos para essas famílias. Isso muita gente já está fazendo. Nós tínhamos uma nova proposta de trabalho de organização comunitária. Nós não somos um movimento urbano, só que a gente viu também que seria injusto nós não querermos contribuir com algo. Não sabemos no que isso vai dar, mas estamos fazendo.
Beto: Então nós nos preocupamos em construir comitês populares de alimentos. Naquela nossa ideia anterior de que ou a alimentação vira pauta da sociedade, a soberania, ou a gente vai seguir perdendo todas para o agronegócio. Nós procuramos criar comitês populares de alimentação, mas deixamos claro que, nessa campanha de solidariedade, o nosso foco central não era entregar cestas básicas toda semana para uma família e sim tentar concentrar as distribuições para as mesmas famílias. Foi um debate que nós fizemos com algumas lideranças. Nós não queremos toda semana entregar cesta a umas 50 famílias diferentes, porque essas cestas não vão acabar com a fome das pessoas, vão aliviar. Não temos a esperança de que as cestas básicas vão acabar com a fome, mas a gente acha que
deve se aproximar dos territórios para debater também agroecologia, produção de alimentos e soberania alimentar. Ou seja, tentar construir nesse meio de favela e comunidade, espaços de diálogo para começar a entender também as questões da agricultura. E nós começamos, desde abril do ano passado, a construir os comitês do Plano de Alimentos. Um é na Rocinha, o maior, com 60 famílias. No Morro dos Prazeres, Morro dos Guararapes, Tavares Bastos no Catete, Morro dos Macacos, em Vila Isabel, Mangueira e estamos projetando em Niterói. Conseguimos organizar as saídas uma vez por mês, e são 300 famílias, no total, com as quais a gente está construindo essa relação. E uma dessas comunidades, Marcílio Dias, começou a construir uma horta na comunidade em função desse trabalho. Nós estamos acompanhando.
Depois de um ano, essa esquerda em que nós nos incluímos não construiu relações nesses territórios. Falar de produtos de alimentação saudável, de agroecologia, de direito à alimentação, enquanto um direito constitucional, está longe desses espaços. Nesses espaços está uma das piores experiências das igrejas neopentecostais. Ou seja, eu falo porque há experiências de igrejas neopentecostais boas e positivas. Nós temos uma experiência muito boa no Morro da Providência com o grupo Esperançar, grupo evangélico vinculado ao Instituto Caminhantes, que é ligado ao pastor Henrique Vieira. É um trabalho com 20 famílias, e construímos também durante a pandemia, agora com um curso com leitura popular da Bíblia.
Todas essas comunidades, tirando o morro dos Guararapes, são evangélicas. No Guararapes, as lideranças são de matriz africana, há poucas igrejas evangélicas. A religião das lideranças de matriz africana é a umbanda.
Então, nós fizemos um curso de leitura popular da Bíblia com o grupo Esperançar para também entender os códigos dos evangélicos, palavras que eles usam no cotidiano e que nós não sabemos, como “avivamento”. É outra linguagem... Eu vim dessa relação do cristianismo que se vinculou à luta política. Nós fizemos isso como parte desse processo também. Foi um curso nacional de que participaram as lideranças do Rio. Nós estamos, por exemplo, em um quilombo de Mangaratiba e no quilombo de Ipatinga, que são evangélicos. Isso acumula para nós. Eu falo: é diferente fazer um trabalho onde a comunidade vem de origem católica, da Teologia da Libertação, e onde a comunidade vem de tradição evangélica, Teologia da Prosperidade, não é? Ou seja, inconscientemente as pessoas dizem: “Ah, no
Quilombo trabalham para ficar ricas, porque a riqueza é fruto do trabalho, não é?” É assim que eles compreendem no trabalho da igreja... Então, com o pastor Henrique Vieira nós estamos construindo esses cursos nessas comunidades para poder transformar também a religião. A religião era um instrumento de trabalho de base.
As pessoas acreditam em Deus e tem fé em Deus ou tem fé nos orixás, mas também isso é um instrumento para a gente se aproximar e fazer organização popular. Então, nessa pandemia, a gente também falou: “Olha, se a gente não entende essa linguagem da prosperidade e do mundo neopentecostal, a gente vai ficar falando para os muros e para as pedras”. Na pandemia a gente conseguiu também desenvolver isso. Aqui no Rio estamos tendo que nos desafiar, ao contrário de outros estados do Brasil e só agora entendemos que estávamos com resistência. O desafio é entender esse mundo neopentecostal, estudar as linguagens... Nós estamos vendo um vazio organizativo nas periferias. Um espaço vazio que alguém vai ocupar. E aí nós fizemos um mutirão contra a fome aqui no Rio, nós vamos ter que ter um espaço para a gente poder... E se nós formos contribuir nas reflexões, a gente tenta sempre nas entregas. Nós fizemos agora em outubro atividade com as crianças... Só de alimentar com essas cestas alguns filhos dessas famílias, a gente já faz o trabalho....
Beto: Esse é, talvez, o principal desafio. Tirando o território dos quilombos, tem muito pouco jovem. Na região serrana têm jovens, mas eles não estão vinculados ao mundo da produção, estão vinculados ao mundo da logística. Quem é o motorista do caminhão? É o jovem. Em Magé tem uma exceção, a família José Teixeira: o filho dele, acho que tem 28 anos, fez escola agrícola, terminou, foi trabalhar na construção civil da Odebrecht e agora, do ano passado para cá, começou a voltar para a roça e não quer mais construção civil. Não se vê mais trabalhando tendo como renda principal a construção civil. Mas, segundo o relato, ele é o único jovem que está com essa perspectiva. Mas isso não é só do Rio, isso é do Brasil inteiro. Mas isso é mais
forte no Sul. No Rio Grande do Sul tem municípios que daqui a dez anos não têm mais ninguém. Os filhos não moram mais lá. Os pais já estão com 70 anos. A menos que acontecesse uma reforma agrária massiva para os jovens voltarem, alguns territórios vão ficar vazios. Vazios de produção camponesa.
Parte dessa juventude que saiu, para além das questões econômicas, saiu também por questões de relações familiares. No caso das mulheres, é muita dificuldade nas relações com o pai, sobretudo, sair e poder tentar avançar a liberdade. Aí entra no debate a questão LGBTQI+. Muito jovem saiu também para poder se emancipar afetivamente. Nós estamos debatendo tudo isso. Essa reprodução camponesa não é aquela família que deve se reproduzir, ou seja, no debate da nova geração camponesa nós estamos experimentando algumas experiências. Qual seria essa volta para o campo de uma juventude camponesa, que foi para a cidade e que não deu certo na cidade. Mas voltar para o campo da forma que ele sempre foi? Não vai voltar, não é?
Beto: Eu não falei muito da memória. O MPA surgiu nos anos 90 e isso é uma formulação bem mais recente, de uns dez anos. Uma das razões políticas pela qual o MPA surgiu é que a gente não conseguia se encontrar dentro do movimento sindical.
Tinha alguma coisa, por exemplo, com os mais velhos... Faltava alguma coisa... E o MPA surgiu oficialmente em 96, mas, para mim, a ideia de MPA surgiu em 92, no Congresso do Departamento Rural da CUT, que houve em São Bernardo do Campo. Politicamente, nós tínhamos a CONTAG –Confederação Nacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura que, em algum momento, ficou influenciada muito pelo PCB, nas suas estruturas. Aí o PT tentou, com o DNTR – Departamento Nacional dos Trabalhadores Rurais da CUT, disputar a CONTAG. Depois conciliou com a CONTAG, dividiu as diretorias, uma longa história, que a Leonilde sabe melhor do que eu... Tem um documentário, a Leonilde deve conhecer, Os rurais da CUT.
Leonilde: Beto, neste mesmo número da Trabalho Necessário, vai ser publicado um artigo sobre a produção de documentários do Beto Novaes.
Beto: Maravilha, são fantásticos esses documentários do Beto Novaes.
Beto: A carta final do congresso [da CUT] dá conta de uma dimensão que não abarca, por exemplo, as comunidades quilombolas. Abarca muito pouco esse campesinato que o MPA hoje organiza, que é um o campesinato roceiro e agricultor, que produz comida, que não está na luta pela terra e não está na contradição da luta salarial. O pessoal fala que estava naquele espaço porque não tinha outro, mas não se sentia bem, não se sentia completamente representado. Então, quando essa turma, os mais velhos, começaram a se encontrar em função das articulações da CPT e de uma liderança do PT chamado Geraldo Pastana, do Pará, de Santarém, começaram a ver que existia uma insatisfação. Aquela camisa não comportava outros corpos. O pessoal começou a ser firme, fazia uma coisa diferente, não estava muito contente também com aquela forma de negociação, feita por dois ou três. Aquela forma de movimento sindical. E não tinha maior participação efetiva, ou seja, uma estrutura mais pela sua estrutura... Ele consegue convergir uma forma que eu diria horizontal e vertical de organização. Nossa estrutura organizativa está mostrando que é possível ter espaços horizontais e espaços verticais dentro das organizações políticas, o compartilhamento da mesma estrutura de formas distintas. Esses territórios não entravam na pauta da CUT. Ou seja, inconscientemente, é isso que o
pessoal tentava dizer... O MPA não cabia dentro da CUT. E aí em 96 teve um fator climático que foi o estopim, que fez o povo se juntar e se mobilizar e construir um movimento nacional. Era uma percepção também de que ou a gente se juntava nacionalmente por essas dificuldades, pelo fato da pauta econômica e política do movimento, ou.... E a gente foi atrás, a gente foi estudar o campesinato, ou seja, começou a questionar também: nós somos lavradores e ser lavrador não se encaixava muito bem em alguns aspectos, quando só se falava de trabalhador rural. Não nos sentíamos incomodados com esse conceito. Depois, quando começou a falar muito de agricultura familiar, surgiu aquela desconfiança: nós não somos isso também. Somos isso, mas somos muito mais coisa.
Então, a gente começou a falar de campesinato. Fomos com o boné da Via Campesina. E o pessoal começou a se perguntar: o mundo inteiro fala de camponês, até a Europa fala de camponês, a América Latina inteira, nos movimentos, fala de camponês... Porque no Brasil os movimentos camponeses não falam de camponeses? A gente foi estudar um pouco e saiu uma sistematização bacana, de que a Leonilde participou, que é a coleção de livros História Social do Campesinato... Nós somos do movimento camponês, que se torna uma classe camponesa e luta e que tem memória... Se tem uma coisa que é fundamental para entender o que a família camponesa é, é a memória. Essa memória, infelizmente, é muito oral e se perde... Pensando na formação política: se as novas gerações não tiverem acesso a essa memória, não vai saber para onde vai. Então, em função dos 50 anos do golpe civil militar de 1964, nós retomamos o debate da luta camponesa antes do golpe. Ou seja, resgatar essa memória de luta dos anos 30 até os anos 60 no campo, porque você estuda muito pouco isso no ensino médio, na universidade, no Serviço Social não estuda nada... Nada, nada... Se for trabalhar no campo, não conhece a questão agrária, nem a questão agrícola. Ou seja, vai com a cabeça totalmente urbana, industrial, para intervir na questão social do campo. É uma crítica que eu faço.
Em 2014, nós fomos fazer a primeira escola camponesa da memória. Que é uma escola com jovens de 15, 17 a 25 anos, para eles irem estudar essa memória camponesa. Nós fizemos essa primeira escola em Brasília, por questões de logística na época, prestando atenção na juventude. Sempre estudar e fazer uma ação direta.
Foi quando a gente fez um escracho para aquele coronel, o Brilhante Ustra20. Ele estava vivo, a gente descobriu a casa dele e fomos lá, colocamos faixa, pintamos a frente da casa dele, como atividade para a juventude. Ou seja, é uma ação em que a juventude ia se sentir protagonista.
Fizemos outras escolas, na Paraíba, na região de Sapé e já foi uma escola onde nós fomos visitar as regiões, fomos ao Museu das Ligas, tivemos um encontro com Elizabeth Teixeira.
Beto: E em 2015 a gente conseguiu levar o Clodomir dos Santos Moraes. E os dois se encontrarem... Eu me arrepio toda vez que lembro desse encontro. Foi muito emocionante! Ele conversou muito com a Elizabeth, ela já com a memória um pouco vaga... E eles contavam coisas que a gente não... esse processo da luta da organização que tem coisa escrita e coisa que não está escrita, porque eles falaram para a gente e a gente não gravou, ficou só na memória... A conversa com o Clodomir e com a Elizabeth foi fantástica!
Aí nós começamos a repetir duas vezes por ano essa escola da memória com a juventude, para os jovens que estão saindo do ensino médio, na idade entre 17 a 25 anos, porque essa geração não teve acesso e não participou de movimento de organização comunitária. Essa juventude pega um período muito ruim de organização no campo, não é? Foi um boom das políticas públicas de acesso à escola. Era o PROUNI, o FIES, um maior acesso do ensino público21... E esse processo não veio com junto com organização e formação política, conscientização. É ir para a universidade apenas. Não vem junto de um processo de contar a história de fato... Ter acesso à universidade é muita coisa...
Essa geração anterior a minha, não conhecia nada das Ligas Camponesas, da própria CONTAG, dos conflitos que tinha na Via Camponesa. Só dá o papel dos comunistas no campo nos anos 60 e os debates da questão agrária da época... Então,
20 Carlos Brilhante Ustra foi o primeiro militar condenado pela justiça brasileira pela prática de tortura na ditadura. Faleceu em 2015.
21 O PROUNI, Programa Universidade Para Todos, oferta bolsas de estudo, integrais e parciais, em cursos de graduação em instituições de educação superior privadas (https://acessounico.mec.gov.br/prouni). O FIES, Fundo de Financiamento Estudantil, é um programa do MEC destinado a financiar ensino superior a estudantes matriculados em escolas privadas, avaliadas pelo MEC (https://sisfiesportal.mec.gov.br/?pagina=fies).
essas escolas da memória cumprem esse papel de contar uma história não contada e o MPA é parte dessa história. Ou seja, para entender o MPA tem que entender essa história. Até as nossas escolhas políticas... O conceito escrito não explica a realidade em alguns aspectos. Então, para cuidar da memória tem sido boa essa ideia de que o conhecimento é contínuo... Mas, se a gente perde a memória, há um processo de ruptura que a gente não vai saber o que fazer. Isso que falei da comercialização dos operários é uma coisa do MPA. Mas eu fui descobrir depois que, em Niterói, as Ligas Camponesas, a ULTAB – União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil faziam isso com o movimento sindical. Isso nos anos 60.
Beto: Pureza fazia isso. O sindicalizado tinha um desconto na compra da produção. Isso era disputado no movimento político, nos partidos.
Quando a gente ouviu o Clodomir, a Elizabeth, a gente conheceu também o filho do Julião e, numa dessas histórias, ele participou também.
Beto: O Anacleto. Para além de filho do Julião e da Alexina22, que é outra pessoa que nós não conhecíamos e que era muito maior do que Julião... Julião era o falador, como diz o Clodomir [Moraes]. Mas quem formulava e articulava era a Alexina. E ninguém conhece a Alexina…
Leonilde: Você conhece o filme Memórias Clandestinas, não é?
Beto: Conheço o filme...
A gente viu que tem coisa que a gente tem que melhorar o que já foi construído, potencializar, ressignificar. Então, o papel da memória é muito forte dentro do MPA. As coisas não nasceram com a gente, já têm uma história, temos que continuar e
22 Alexina Crespo foi esposa de Julião e militante das Ligas Camponesas. Para conhecer sua trajetória, ver o documentário Memórias Clandestinas, dirigido por Maria Thereza Azevedo (https://www.youtube.com/watch?v=iaXDBoslmCY).
seguir, ou seja, um povo que perde a memória dificilmente sabe para onde vai, não é?
Leonilde: Eu acho que o trabalho que vocês fizeram, o estímulo que vocês deram à elaboração da História Social do Campesinato foi incrível! São nove volumes, e vocês conseguiram juntar os “pesos pesados” do mundo acadêmico. Para mim é uma obra essencial para quem quer conhecer a história do Brasil. Com os dois volumes sobre as mulheres, que acabaram sendo menos históricos, dá um total de onze volumes...
Beto: No aspecto da memória, o que a gente não conseguiu sistematizar ainda, e o Fabrício [Teló] começou, é o aspecto das formas de organização, que a ULTAB tinha e se perdeu muito isso. O Clodomir é uma das grandes lideranças camponesas desse período... Ele conta histórias que não estão nas histórias oficiais dos partidos. Por exemplo, o filtro entre o PCB e o PCdoB. Tinha uma parte do PCB que foi expulso, mas também que não foi aceita dentro do PCdoB, pelo debate da questão agrária... Tem coisa que não está sistematizada. ... precisa saber quais eram as discussões, não é? Como a gente vai fazer o trabalho de organização popular? Porque, às vezes, essas ditas novas formas organizativas, elas não são tão novas... Ou elas são formas que levam a outros caminhos da emancipação política e social dos trabalhadores.
V.20, nº 41, 2022 (jan-abr) ISSN: 1808-799X
SOUZA, William Kennedy do Amaral2. Trabalho-educação, economia e cultura em povos e comunidades tradicionais: a (re)afirmação de modos de vida como formas de resistência. 2020. 222f. Tese (Doutorado) Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal Fluminense, Faculdade de Educação. Niterói.
Povos e comunidades tradicionais caracterizam-se por sua organização sendo a luta em defesa pelo território uma condição básica para garantir suas vidas. Em coexistência ao modo de produção capitalista, os povos e comunidades tradicionais têm o território como um ambiente simbólico, político e econômico entendido como o lugar para além de suas fronteiras geopolíticas. Para eles, o significado do território norteia a vida das pessoas e constroem valores em suas experiências.
Além dos recursos materiais, o território mantém laços imateriais e simbólicos dos trabalhadores(as) que ali estão. Estas são características inerentes à cultura camponesa (THOMPSON, 1998), em que o território exerce fundamental papel na reprodução do modo de vida. Assim, saberes, conhecimentos, técnicas, valores, memória e identidade estão nos processos de manutenção territorial. Estamos discutindo identidade na concepção de Godelier (2012, p. 15) que a define como “a cristalização no interior de um indivíduo das relações sociais e culturais no seio das quais ele/ela está engajado(a) e que ele/ela é levado(a) a reproduzir ou a rejeitar”. Essa definição tem como base o que Godelier concebe por território. Ele diz:
Designa-se por território uma porção da natureza e, portanto, do espaço sobre o qual uma determinada sociedade reivindica e garante a todos ou a parte de seus membros direitos estáveis de acesso, de
1Resumo recebido em 17/12/2021. Aprovado pelos editores em 08/01/2022. Publicado em 28/03/2022. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v20i41.52619.
2 Doutor em Educação pela Universidade Federal Fluminense - UFF. Professor no Instituto Federal de Rondônia - IFRO. Integrante do grupo Nómade na linha de pesquisa sobre Trabalho-Educação, Economia e Cultura na Amazônia. E-mail: william.souza@ifro.edu.br;
Lattes: http://lattes.cnpq.br/0703023274968708. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6271-9422.
controle e de uso com respeito à totalidade ou parte de seus recursos que aí se encontram e que ela deseja e é capaz de explorar. (GODELIER, 1989, p. 107).
Nesse sentido, é importante apreendermos as relações entre economia e cultura, tendo em conta que “é essencial manter presente no espírito o fato de os fenômenos sociais e culturais não estarem “a reboque”, seguindo os fenômenos econômicos a distância: eles estão em seu surgimento, presos na mesma rede de relações” (THOMPSON, 2001, p. 208). As relações entre economia e cultura vão constituir os modos de vida.
A compreensão de como se constituem os modos de vida dos povos e comunidades tradicionais exige uma análise das mediações do capital, para compreendermos os conflitos e dilemas pelos quais passaram para chegar à atual situação, porque “a história do recente deslocamento da fronteira é uma história de destruição. Mas, é também uma história de resistência, de revolta, de protesto, de sonho e de esperança” (MARTINS, 2019, p. 132). Defender o modo de vida é defender a identidade de ser ribeirinho(a), beradero(a), extrativista, indígena, quilombola, enfim, é defender o seu território, que precisa de defesa porque “a história contemporânea da fronteira, é a história das lutas étnicas e sociais” (MARTINS, 2019, p. 132).
Nesse sentido, o objetivo da pesquisa foi analisar as relações educativas, econômicas, culturais, políticas e ambientais que conformam modos de vida em povos e comunidades tradicionais, tendo em conta as contradições entre capital e trabalho. Definimos 7 lócus da pesquisa. No Vale do Guaporé foram as Comunidades Quilombolas do Forte Príncipe da Beira e Santa Fé e a Reserva Extrativista do Rio Cautário (que tem no seu interior 6 comunidades), todas em Costa Marques. Em Porto Velho, beirando o rio Madeira, foram lócus a Reserva Extrativista do Lago do Cuniã, a Comunidade Ribeirinha de São Carlos do Jamari, e os Reassentamentos Morrinhos e Santa Rita. Com exceção dos reassentamentos todas as comunidades da pesquisa
são ribeirinhas. Em todas elas, os(as) moradores(as) praticam o extrativismo.
Começamos a problematizar o que entendemos como modo de vida e isto nos levou a definirmos algumas questões para o desenvolvimento da pesquisa.
A primeira questão é de ordem teórica e diz respeito à antropologia marxista. Pesquisamos sobre os apontamentos que, em um primeiro momento Marx e Engels e depois outros pensadores, sobretudo Thompson, nos indicam a possibilidade do materialismo histórico dialogar com e sobre povos e comunidades tradicionais.
Outra questão foi compreender em que medida os processos de reprodução da vida material e imaterial desses grupos de trabalhadores requerem a afirmação de modos de vida distintos do modo de produção capitalista. Isso nos levou a explicitar o que apreendemos como modos de vida.
Por modos de vida, compreendemos o conjunto de práticas sociais, econômicas e culturais compartilhadas por um determinado grupo social no processo de produção da vida material e simbólica. Como expressão da cultura, diz respeito aos costumes, tradições, valores, crenças e saberes que orientam as normas de convivência na vida familiar, no trabalho e na comunidade. Relaciona-se às maneiras de produzir, consumir e distribuir os frutos do trabalho, tendo em conta as formas de sentir e pensar a vida e o mundo. Os modos de vida manifestam as relações que seres humanos, mediados pela memória coletiva e por experiências vividas e herdadas, estabelecem entre si e com o território em que produzem sua existência. A afirmação de modos de vida é um elemento de resistência e negação de outros modos de produção da vida social.
A terceira questão estava relacionada à análise de como as relações educativas, econômicas, culturais, políticas e ambientais sustentam os modos de vida em povos e comunidades tradicionais, tendo em conta as contradições entre capital e trabalho na sua historicidade. Responder a essa indagação nos levou a constatar a relação que povos tradicionais têm com a natureza e o território e como o trabalho é o elemento mediador dessas relações. Embora havendo contradições, estas relações tendem a serem coletivas, baseadas em reciprocidade.
A última questão a nos preocupar era perceber como no cotidiano das comunidades se manifestam as contradições entre capital e trabalho, bem como as formas de afirmação/negação de seus modos de vida, enfim, como o modo de produção capitalista atravanca os processos de produção da vida material e imaterial das comunidades, na tentativa de tomar os territórios.
A hipótese desse trabalho é que para povos e comunidades tradicionais, a afirmação dos modos de vida é o elemento de estruturação de sua identidade e resistência frente às dificuldades da vida, e condição vital para a sua existência, a qual não pode ser pautada pela lógica dos processos de sociabilidade do capital. Portanto, se os agentes do empresariado capitalista conseguem interferir no modo de vida, isso enfraquece a resistência ao avanço do capital nos territórios.
Essa interferência se dá nas maneiras de produzir, consumir e distribuir os frutos do trabalho, dificultando a relação de povos e comunidades tradicionais com os seus territórios e com os que estão a sua volta. Ora, a relação com o território que são os rios, as terras, as florestas e tudo que há em seu entorno é central na constituição dos modos de vida dessas comunidades.
De acordo com os depoimentos recolhidos na pesquisa de campo, podemos afirmar que os modos de vida vão se constituindo como expressão da resistência ao capitalismo, cuja exploração do trabalho alheio é fonte de lucro. É uma outra possibilidade de estar no mundo. Por isso Toledo e Barrera-Bassols nos alertam,
Torna-se necessário volver o olhar para os povos originários, tradicionais ou indígenas, em cujos modos de vida é possível encontrar a memória da espécie. E é nessa memória que está boa parte das chaves para decifrar, compreender e superar a crise dessa modernidade, ao reconhecer outras formas de conviver entre nós e com os outros – entre os modernos e os pré-modernos e entre os humanos e os não humanos, isto é, a natureza ou as culturezas. (TOLEDO E BARRERA- BASSOLS, 2015, p. 18).
Sendo assim, devemos considerar os estudos sobre espaços/tempos das culturas milenares dos povos e comunidades tradicionais (TIRIBA; FISCHER, 2015) já que, embora submersas no contexto da acumulação flexível, suas práticas econômico-culturais preservam modos de vida calcada no trabalho coletivo e na apropriação coletiva de seus frutos.
Ao investigarmos as formas de resistência e afirmação dos modos de vida de povos e comunidades tradicionais, encontramos um movimento de luta pelo Comum e, a despeito daqueles que vaticinaram o seu fim, povos e comunidades tradicionais aí estão, mostrando-se mais firmes do que nunca.
Pelo que indicam os depoimentos a sociabilidade de homens e mulheres se constrói pelo espírito de coletividade, na perspectiva de garantir a reprodução ampliada da vida. Como diria Thompson (2001, p. 194), no cotidiano de vida e trabalho, vão se tecendo as relações entre economia e cultura.
Essa tese procurou entender a maneira como trabalhadores, utilizando-se de suas experiências e seus saberes anteriormente adquiridos, conseguem um movimento de produção da vida que, não necessariamente, está pautado pela lógica capitalista dominante. Assim, configuram-se modos de vida singulares que são estabelecidos por laços de reciprocidade em que a finalidade é o bem comum da comunidade. Povos tradicionais lutam pela manutenção dos seus territórios, lugares
em que vivem em uma relação de respeito com a natureza, com os outros e consigo mesmo, e afirmam que:
Nós extrativistas queremos viver da maneira que vivemos. Claro que queremos ter melhorias, mas não queremos morar na cidade e não queremos ser empregados de uma fazenda. Vamos supor que aqui tivesse acabado o seringal e não tivesse virado RESEX. Muitos não iam querer viver aqui. A gente ia procurar outro seringal, outra RESEX. Porque a gente foi criado e gosta de viver assim, cortando seringa, catando castanha, pescando, plantando uma roça, essas coisas que a gente faz (Renato, RESEX do rio Cautário).
GODELIER, M. Lo ideal y lo material: Pensamiento, economías, sociedades. Madri: Taurus Humanidades, 1989.
. Comunidade, Sociedade, Cultura. Três modos de compreender as identidades em conflito. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2012.
MARTINS, J. de S. Fronteira: a degradação do outro nos confins do humano. São Paulo: Contexto, 2019.
THOMPSON, E. P. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
. Folclore, antropologia e história social. In: NEGRO, Antônio Luigi; SILVA, Sérgio (orgs). As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Campinas: Editora da Unicamp, 2001.
TIRIBA, L. e FISCHER, M. C. B. Espaços/tempos milenares dos povos e comunidades tradicionais: notas de pesquisa sobre economia, cultura e produção de saberes. In: Revista de Educação Pública. Cuiabá, v. 24, n. 56, p. 405-428, 2015.
TOLEDO, V; BARRERA-BASSOLS, N. Memória biocultural - a importância ecológica das sabedorias tradicionais. São Paulo: Expressão Popular. 2015.
V.20, nº 41, 2022 (jan-abr) ISSN: 1808-799 X
SANTOS, Marisa Oliveira2. Memórias do trabalho familiar em casas de farinha: transformação dos modos de vida de homens e mulheres do campo. 2021. 241 f. Tese (Doutorado) Programa de Pós-graduação em Memória: Linguagem e Sociedade, Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. Vitória da Conquista.
O filósofo brasileiro, José Arthur Gianotti (1966), ao inferir atenção do homem para realidade e as ideias do seu tempo, enfatiza que os fenômenos sociais despertam naquele que o observa a simpatia ou aversão e, por esse motivo, exige dele a compreensão de seus motivos e seus fins, até que, num dado instante, esse percebe sua condição de sujeito e objeto da análise.
Em meio às aversões da vida em movimento, impostas pelo modo de produção capitalista e a simpatia atenta ao trabalho familiar em casas de farinha4, esta pesquisa teve como objetivo central analisar, por meio das memórias do trabalho familiar, as transformações no processo de trabalho e nos modos de vida de homens e mulheres
1 Resumo recebido em 10/01/2022. Aprovado pelos editores em 12/01/2022. Publicado em 28/03/2022. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v20i41.52791
2 Doutora em Memória, Linguagem e Sociedade pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – UESB. Membro integrante do Grupo de Estudo e Pesquisa História, Trabalho e Educação do Museu Pedagógico – UESB. Professora Adjunta do Departamento de Ciências Sociais Aplicadas – UESB.
E-mail: momarisa@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/8597629222043489. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6413-142X.
3 Tese defendida em 07 de abril de 2021, no Programa de Pós-graduação em Memória: Linguagem e Sociedade, pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, sob orientação da Profª. Drª. Ana Elizabeth Santos Alves, como Bolsa da FAPESB até abril de 2020, vinculada ao Grupo de Pesquisa História, Trabalho e Educação – Museu Pedagógico (UESB). Disponível em: https://sucupira.capes.gov.br/sucupira/public/consultas/coleta/trabalhoConclusao/viewTrabalhoCon clusao.jsf?popup=true&id_trabalho=11031054.
4As casas de farinha, como unidades processadoras, são responsáveis, artesanalmente, pela produção da farinha e de outros derivados da mandioca, como a goma, a farinha de tapioca, o beiju, o carimã, a puba, dentre outros. As farinheiras se qualificam de CASA por acolherem uma socialização assentada no trabalho familiar. Como unidade de produção familiar, demarca o estreitamento dos laços consanguíneos, da socialização do trabalho coletivo.
do campo mediadas pelas investiduras do capital em duas comunidades rurais, no sudoeste baiano, tradicionalmente reconhecidas pelo seu vínculo com a produção dos derivados da mandioca e com a presença de casas de farinha no cotidiano local, em municípios com destaque na produção de mandioca: Vitória da Conquista e Belo Campo5.
Esta pesquisa, também é reflexo de observações trazidas pela pesquisadora desde 2006, em que as produções das manufaturas de farinha eram bastante expressivas na região sudoeste baiana, conferindo-lhes identidade geográfica. Comparada ao marco temporal, constatou-se no decorrer desse tempo, um decréscimo em torno de 90% das casas de farinha em funcionamento em Campinhos6 (Vitória da Conquista-BA), primeira comunidade a compor os estudos acerca do fenômeno social de desarticulação e desapossamento do trabalho de homens e mulheres do campo.
Em 2018, inseriu-se o Povoado do Peri Peri, no município de Belo Campo (BA) distante 60 km de Vitória da Conquista (BA), ao trabalho de investigação. A inserção do Povoado do Peri Peri adveio da detecção da presença de treze Casas de Farinha em funcionamento na comunidade e seu estreito relacionamento com a vida cotidiana local.
Diante do fenômeno observável, a empiria ressoou algumas reflexões: estaria ali um regular funcionamento das Casas de Farinha por serem mais numerosas? Na centralidade do objetivo, levantou-se outras indagações e inquietações, dentre essas: Onde estariam os homens e mulheres do campo que viveram por muito tempo da produção dos derivados da mandioca? Por que as casas de farinha estavam fechando? A quem interessa o esmaecimento das farinheiras em comunidades rurais?
Mediante as observações, o movimento dialético ressoado pela empiria instigou a compreensão da realidade concreta, para tanto, elegeu-se o materialismo histórico como método norteador da análise. Tal escolha se justifica por entender que, as casas de farinha se contrapõem ao modo de produção capitalista, e a condição de homens e mulheres do campo encontra-se enfraquecida ou vulnerável como classe
5 Produção de Mandioca Bahia: Vitória da Conquista (5º produtor do Estado e 1º produtor do sudoeste); Belo Campo (27º produtor do Estado e 3º produtor da região sudoeste).
6 Em 2006 (SANTOS, 2007), catalogou-se 25 casas de farinha. Em 2020, três em funcionamento e apenas uma com produção regular em dois dias da semana.
trabalhadora. Perscrutava-se, ao certo, o desmonte do trabalho familiar nas farinheiras por meio da investidura do capital que são múltiplas nas duas comunidades.
Assim, foi importante destituir o modelo de manufatura ainda resistente: o trabalho familiar não impõe mais o ritmo de produção. Entende-se, pois, que, para o modo de produção capitalista, pouco se torna atrativa a rústica existência da manufatura simples revestida pelas casas de farinha, mas como bem ressalta Rosa Luxemburgo (1985), o capitalismo vem ao mundo e se desenvolve historicamente, em um meio social não capitalista, na marcha do processo de acumulação de riquezas e ampliação de domínio do capital, ampliando a inserção das formas de produzir, a produção se moderniza, a maquinaria concede o tom e a tecnologia impõe o ritmo.
Buscando o levantamento de dados, as comunidades de Campinhos e Peri Peri foram visitadas entre os anos de 2018 e 2020, cumprindo o cronograma de pesquisa. Como procedimentos auxiliares, julgou serem necessários na aproximação da realidade objetiva, as entrevistas, a roda de conversa, as fotografias.
Para sistematizar a discussão, a tese está dividida em quatro capítulos. No primeiro capítulo, uma síntese crítica da história de formação do povo brasileiro através de memórias marcadas por permutas e pela imposição de culturas, protagonizada por índios e colonizadores, demarcando vestígios iniciais das primeiras casas de farinhas e da cobiça dos europeus pela mandioca, desarticulados já àquele tempo os modos de vida dos gentios e a desarticulação da primeira base de trabalho familiar.
No segundo capítulo, estrutura-se os estudos sobre a memória. A memória é entendida como construto social e viés interlocutor com realidade concreta construída e “preservada” por homens e mulheres do campo, trabalhadores de casas de farinha, a tempo em que revela as transformações verificadas na produção da materialidade da vida em comunidade
No terceiro capítulo, o trabalho assume seu caráter fundante na produção da vida material (MARX, 1983). Desarticulados dos meios de produção, pelo desmonte do trabalho familiar, os respectivos trabalhadores e trabalhadoras veem-se cooptados pelo capital alterando sua relação como o meio em que vivem, e, portanto, alterando a dinâmica de seu modo de produção, de vida e de trabalho.
No quarto capítulo, o modo de vida abre-se como campo de exteriorização da vida material, desembocando as transformações da interpenetração do capital nos
modos de produção não capitalistas. A vida visível, é revisitada pelas transformações através das memórias sociais, coletivas e físicas, externando os impactos no modo de viver dessas populações em sobreposição aos interesses do capital no uso e exploração do território.
Os resultados e as considerações finais da pesquisa sustentaram a hipótese que a desarticulação do trabalho familiar é aporte viável da interpenetração do capital
– industrial ou comercial - na vida em comunidade, sendo, portanto, via de inserção e infiltração para apropriação dos saberes do trabalho, da força de trabalho no uso do território (SANTOS, 2002).
Nestes termos, conclui-se que: a) as casas de farinha que demarcaram a dinâmica e o cotidiano de Campinhos e Peri Peri, são as guardiãs de “migalhas de memórias” (MEDEIROS, 2015) do processo de trabalho que ajudaram a constituir a vida nas duas comunidades; mas atualmente denunciam como o esmaecimento das farinheiras clarificam as investiduras do capital cedendo novos contorno à vida qualificada. b) a precarização do trabalho, o parcelamento da terra, a especulação imobiliária, o abandono da roça, a introdução da fécula, a falta de modernização nos processos produtivos, a baixa remuneração, a presença de atravessadores, denotam a vulnerabilidade e o enfraquecimento do trabalho familiar que parcamente ainda orienta, mas já não se torna fulcral para a sustentação do trabalho nas casas de farinha. c) a empiria ressoou que o enfraquecimento do trabalho familiar permite o deslocamento da força de trabalho para outros centros, promovendo o desapossamento dos meios de produção, o desenraizamento do lugar de vida e trabalho (MARTINS, 1975) cedendo novos contornos ao modo de viver, importante para os interesses do capital. d) os modos de vida, infelizmente, não ressoam como armadura substancial da resistência e da persistência de um modo de viver e de produzir, mas pautá-los é entender e denunciar que sua modificação altera a vida de populações inteiras e as colocam sob ameaça. O movimento que modula as transformações, é o mesmo que instiga a pensar que defender o modo de vida é defender o enraizamento, a persistência, o direito ao território, o direito à cultura, o direito à terra e aos recursos naturais, ou seja, é ter o direito de lutar pela vida, pelo trabalho, que, quando desarticulados, apartam homens e mulheres do campo de sua identidade e do seu sentimento de pertencimento, fortalecendo os desejos de interpenetração do capital.
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V.20, nº 41, 2022 (jan-abr) ISSN: 1808-799 X
DIAS, Thaís Henriques2. O desastre de Fundão e a advocacia em questão. 2021, 176p. Dissertação (Mestrado em Sociologia e Direito) – Programa de Pós- Graduação em Sociologia e Direito, Universidade Federal Fluminense, Niterói.
Esta dissertação foi defendida no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense (PPGSD/UFF), cujo programa possui a desafiadora proposta de articular de forma interdisciplinar os campos da sociologia e do direito. A linha de pesquisa em que desenvolvemos este trabalho é denominada de “Conflitos Socioambientais, Rurais e Urbanos”, que se constitui como uma Escola de Pesquisa de Campo, Extensão e Assessoria na Teoria Crítica. Como aspecto coletivo do desenvolvimento desta pesquisa está o Grupo de Trabalho Ecossocial (GT Ecossocial)/Laboratório de Justiça Ambiental (LAJA) articulado ao Observatório Fundiário Fluminense (OBFF), ambos da UFF.
O objetivo da dissertação foi analisar a prática advocatícia no contexto do rompimento da barragem de rejeitos de mineração de Fundão, da empresa Samarco Mineração S.A e de suas controladoras Vale S.A e BHP Billiton, ocorrido no dia 5 de novembro de 2015, no município de Mariana, Minas Gerais. Trata-se do maior desastre envolvendo a barragem de rejeitos de mineração do mundo, em termos de volume de material liberado - cerca de 60 milhões m³ - e extensão atingida - 663 km,
1 Resumo recebido em 21/01/2022. Aprovado pelos editores em 31/01/2022. Publicado em 28/03/2022. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v20i41.52910.
2 Mestra em Ciências Sociais e Jurídicas, pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito, da Universidade Federal Fluminense/UFF. E-mail: thaishd@id.uff.br;
Lattes: http://lattes.cnpq.br/4503846668289636; ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2554-4915.
3 Este trabalho faz parte da dissertação defendida em 14/09/2021, no PPGSD/UFF, com bolsa CAPES, a partir de um trabalho de discussão e orientação entre Thaís Henriques Dias e os professores Wilson Madeira Filho, Ana Maria Motta Ribeiro, Tatiana Ribeiro de Souza (PPGD/UFOP) Cristiana Losekann (PPGCS/UFES). https://sucupira.capes.gov.br/sucupira/public/consultas/coleta/trabalhoConclusao/vie wTrabalhoConclusao.xhtml?popup=true&id_trabalho=10994136.
que fez também do rio Doce um depósito de rejeitos e uma extensão do complexo minerário da Samarco/Vale/BHP (MILANEZ e LOSEKANN, 2016, p. 11; WANDERLEY, GONÇALVES e MILANEZ, 2020, p. 569; LASCHEFSKI, 2020, p. 99-
100). Além disso, o rompimento da barragem matou 19 pessoas, de forma imediata, sobretudo trabalhadores terceirizados da empresa, centenas de animais criados na região, soterrou distritos próximos à barragem, incluindo áreas de preservação permanente, unidades de conservação da natureza e atingiu assentamentos rurais e as terras indígenas Krenak, Tupiniquim e Guarani. Os rejeitos de minério deixaram rastros de destruição ao longo dos rios Gualaxo do Norte e Carmo e desceram pelo leito do rio Doce, matando milhares de toneladas de peixe, até chegar ao Oceano Atlântico, por meio da foz do rio, em Regência Augusta, no litoral do Espírito Santo, onde, pela movimentação das correntes marítimas, espalharam-se pelo norte e sul do litoral.
Tem-se neste desastre diferentes usos do direito, observáveis nos desdobramentos jurídicos e institucionais do caso, onde tem se desenvolvido conflitos, que possibilitam um nicho fecundo de investigação.
Os aportes teóricos e metodológicos partiram da pesquisa empírica no Direito (MACHADO, 2017) a partir da Teoria Crítica (RIBEIRO et al., 2020), que parte da concepção do direito como um campo em disputa (THOMPSON, 1987). Este abrange os conflitos como lugar de tensionamento social, que comporta os diferentes significados e ordens jurídicas sobre os territórios e a realidade social. Utilizamos os métodos da pesquisa qualitativa, como o estudo de caso, conversas informais e entrevistas semiestruturadas com advogadas(os) que atuaram em diferentes momentos do desastre a partir de tipos de advocacia distintos; pesquisa e caderno de campo, nos territórios em conflito com a mineração e atingidos pelos desdobramentos do desastre, feitos entre os anos de 2016 e 2019; análise de documentos jurídicos referentes à litigância em torno da disputa por direitos das populações atingidas em tensão com os interesses das empresas por reduzir custos da reparação; análise de perfis e currículos de advogados empresariais, para identificar atributos comuns, contrapostos e divergentes, além da presença de elementos estruturais incorporados nos dados individuais; e leitura de fontes secundárias, como publicações oficiais e não-oficiais sobre o caso e contexto.
A partir da pesquisa exploratória realizada com a caminhada itinerante4 feita em uma disciplina conduzida no PPGSD/UFF, em forma de observação científica, chegamos à hipótese, que pondera como possível, de que o desastre tem propiciado a formação de um corpus procedimental de atuação de advogados na defesa do modelo minerário neoextrativista no Brasil, onde têm sido naturalizados graves desastres por parte das empresas de mineração. Ao analisarmos os arranjos jurídicos e institucionais mobilizados neste caso, levantamos algumas questões, como a capacidade das empresas e de seus escritórios de advocacia de negociar os desdobramentos da prática da extração mineral, tomando o Brasil, nestes desastres, como fonte para definir normativas territoriais e arranjos jurídicos favoráveis e até preventivos na defesa dos interesses do capital internacional, além de possibilitar a formação de quadros técnico-jurídicos profissionais neste campo. Daí, concebemos uma análise da trajetória desses grupos de advogados inseridos no contexto do desastre de Fundão.
No primeiro capítulo, apresentamos uma síntese das perspectivas teóricas escolhidas para entender a mineração no Brasil e a recorrência de desastres, como elemento estrutural do neoextrativismo. Dialogamos com as perspectivas sobre desastres e conflitos socioambientais, e na mineração, tendo em vista a produção dos desastres pelos modelos neoextrativistas de apropriação do território e as formas de sua (des)regulação socioambiental (VALENCIO, 2013; MANSUR, et al., 2016; RIBEIRO e CARNEIRO, 2019; SVAMPA, 2019; WANDERLEY e GONÇALVES, 2019; ZHOURI, et al., 2019; ARÁOZ, 2020; TROCATE e COELHO, 2020). Daí, formulamos
as seguintes perguntas: em que medida os desastres em decorrência da mineração no Brasil tem possibilitado a criação de modelos jurídicos e experimentais de ressarcimento de danos pelas empresas mineradoras? Como as empresas caracterizam os desastres e elaboram estratégias jurídicas de ressarcimento de
4 Em maio de 2019, percorremos caminhos marcados pelo extrativismo mineral em Minas Gerais, para conhecer os conflitos decorrentes e seus efeitos e danos socioambientais. A disciplina itinerante, conduzida pelo professor Wilson Madeira Filho, contou com três carros e um roteiro multidiverso durante dez dias corridos, em maio de 2019, contando com visita às mineradoras, reuniões com pessoas atingidas, visita programada à Renova, reuniões com a Defensoria Pública, Ministério Público, prefeituras, grupos de pesquisa, espaço de conciliação etc. Também participaram do projeto (em ordem alfabética): Bruno Henrique Tenório Taveira (doutorado), Larissa Pirchiner de Oliveira Vieira (doutorado), Lilian Regina Furtado Braga (mestrado), Luiza Alves Chaves (doutorado), Mara Magda Soares (mestrado), Marcelino Conti de Souza (doutorado), Marina Marçal do Nascimento (doutorado), Patrícia de Vasconcellos Knöller (doutorado) e Ubiratan Alves da Silva (especialização).
danos? Quais são as tendências e disputas relacionadas ao direito, em meio a este caso e contexto?
No segundo capítulo, analisamos parte dos arranjos jurídicos e institucionais construídos e disputados no contexto do desastre, com foco na tensão entre judicialização e governança. Para isso utilizamos as informações de alguns procedimentos jurídicos que entendemos como centrais à análise do processo de reparação do desastre e as entrevistas feitas com advogadas(os)5, para articularmos questões tratadas nelas com tais documentos e seus contextos. O objetivo consistiu em analisar os conflitos observáveis nos desdobramentos jurídicos e institucionais do caso, sobretudo, na tensão entre judicialização e governança e nas disputas sobre o processo de reparação do desastre. Não obstante os acordos e modelos extrajudiciais terem sido apresentados como vias alternativas à judicialização dos conflitos, as suas consequências, efeitos e repercussões nos territórios atingidos mostram que aprofundaram os conflitos e a vulnerabilização das diversas comunidades amplamente atingidas, que se intensificou durante a pandemia do novo coronavírus.
No terceiro capítulo, o foco foi no nosso objeto principal de estudo: a prática advocatícia no contexto do desastre de Fundão. Tendo em vista a diversidade de agentes e grupos específicos relacionados ao universo da advocacia neste desastre, buscamos identificá-los e discorrer sobre alguns apontamentos relacionados às consequências do desastre na trajetória político-profissional de algumas dessas advogadas(os), que dividimos em advocacia privada, pública e popular. Além disso, procuramos desvendar o campo da advocacia empresarial no contexto do desastre, por meio de dados empíricos produzidos, sobretudo, com o perfil de advogados empresariais, que atuaram e/ou atuam no contexto do desastre, feito através da coleta e análise de currículos profissionais. O objetivo foi entrever tendências no direito relacionadas ao campo empresarial voltado à agenda neoextrativista no Brasil, inseridas no contexto e caso do desastre de Fundão.
5 O uso de “advogadas(os)” ao invés de “advogados” tem o objetivo de problematizar o uso do masculino como gênero universal e exercitar uma linguagem inclusiva e não-sexista. No caso de advogados empresariais optamos por deixar no masculino, por ser um setor da advocacia predominantemente masculino, ao contrário da advocacia popular, por exemplo. Além disso, optei por utilizar o pronome pessoal no plural como forma de demonstrar que este projeto é fruto de uma trajetória de estudo e pesquisa desenvolvida em grupo, a partir de reflexões, materiais e fontes de pesquisa compartilhados.
Por fim, descrevemos e analisamos o conflito entre advogados das empresas e advogadas populares sobre os processos de reparação do desastre de Fundão, em meio a um processo judicial6. Como resultado, apontam-se agendas voltadas para o uso do direito enquanto instrumento de legitimação de eixos civilistas tradicionais, os quais, em última análise, auxiliam a sustentar a dinâmica econômica neoliberal e a pulverizar o crime ambiental, transmudando-o em quantificação de danos e desvalidando qualquer outro aspecto. Além dos usos do direito alinhados às tendências atuais de sua globalização, observam-se seus usos contra-hegemônicos, pela advocacia popular, que se aproximam da perspectiva dos conflitos socioambientais. Tal perspectiva trabalha com um direito mais equitativo e tem no discurso jurídico e da pretensa tutela ambiental e humana meios para disputar o processo de reparação. Assim, as sucessivas disputas epistemológicas e práticas no direito o evidenciam como campo de conflito e constitui uma das formas pelas quais se mantêm vivas as preocupações quanto ao direito à reparação integral e à indenização justa dos danos decorrentes do desastre.
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6 Trata-se de um caso judicializado para análise, dentro do caso maior do desastre, categorizado judicialmente como “Eixo Prioritário nº 7 - Cadastro e Indenização”, sob o processo judicial nº 1000415- 46.2020.4.01.3800.
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V.20, nº 41, 2022 (jan-abr) ISSN: 1808-799 X
Gaudêncio Frigotto2
No dia 02 de abril de 1962, João Pedro Teixeira, líder camponês e fundador da primeira Liga Camponesa no município de São Sepé, no Estado da Paraíba, foi alvo de uma emboscada e assassinado a tiros de fuzil perto de sua casa. Este pequeno texto, inspirado no filme-documentário “Cabra Marcado parra Morrer”, de Eduardo Coutinho, tem o objetivo de registrar a memória dos sessenta anos de seu assassinato em função de sua luta na organização dos camponeses explorados e humilhados, bem como de lideranças assassinadas pelas oligarquias latifundiárias do nordeste.
Trata-se de um registro, sessenta anos depois, que busca resgatar o contexto de seu assassinato articulando o passado com a continuidade, ao longo do tempo e na história do presente, de assassinatos de lideranças do campo, entre eles, indígenas marcados para morrer pela mesma causa de João Pedro Teixeira: a luta pelo direito à terra e à vida. O breve texto, portanto, não pretende ser uma resenha e nem uma análise do filme-documentário, mas destacar a importância de revê-lo com o intuito de alertar para o perigo que nos ronda no momento presente e para necessidade de retomar a agenda das reformas estruturais, no que as Ligas Camponesas foram o início de uma luta fundamental: a luta pela reforma agrária. Mas, em sua esteira também estavam implícitas as reformas jurídica, política e fiscal. Sem isto, a palavra democracia é oca de sentido humano real. Um alerta, por outro lato, pelo que engendra, desde 2019, a política absurda de liberação individual de armas e munições em nome da defesa da propriedade privada pelo atual governo.
1Artigo Recebido em 04/02/2022 Aprovado pelos editores em 18/02/2022. Publicado em 28/03/2022. DOI: org/10.22409/tn.v20i41.53203
2 Mestre e Doutor em Educação. Professor titular em Economia Política da Educação na Universidade Federal Fluminense (aposentado) e, atualmente, professor no Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas e Formação Humana, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
E-mail: gfrigotto@lwmail.com.br; Lattes: http://lattes.cnpq.br/4535332644982596. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2023-5654
A história da feitura do filme/documentário explicita o contexto social e político pré-ditadura empresarial militar de 1964. Tudo começou pelo trabalho militante do Centro de Cultura Popular (CPC) da União Nacional de Estudantes (UNE), que tinha uma equipe itinerante de filmagens sobre a realidade social e, particularmente, sobre as lutas dos camponeses na região dos estados da Paraíba, Pernambuco e Rio Grande do Norte. Lutas marcadas por mortes de lideranças camponesas a mando de latifundiários e com a conivência e, em muitos casos, com a participação da mão armada do Estado, como foi no caso do assassinato de João Pedro Teixeira.
Eduardo Coutinho, diretor do filme-documentário, expõe na abertura da exibição de Cabra marcado para morrer o início e o que se seguirá até a sua produção final. “Depois de passar por Pernambuco, a UNE - Volante chegou à Paraíba no dia 14 de abril. Duas semanas antes, João Pedro Teixeira, fundador e líder da Liga Camponesa de Sapé, tinha sido assassinado. No dia seguinte a nossa chegada, realizou-se em Sapé, a uns 50 km de João Pessoa, um comício de protesto contra o assassinato”3.
As filmagens não puderam ser feitas na região onde João Pedro Teixeira atuou e foi assassinado porque:
“(...) houve um conflito perto dos locais onde seriam feitas as locações, envolvendo policiais e empregados de uma Usina, de um lado, e camponeses, de outro. Morreram no confronto onze pessoas. A Polícia Militar da Paraíba ocupou a região, tornando impossível o prosseguimento do trabalho. Por este motivo, as filmagens foram transferidas para o Engenho Galileia (Município de Vitória de Santo Antão, Pernambuco), onde tinha nascido a primeira Liga Camponesa, em 1955”.4
Entre o testemunhar esse fato histórico e o início da filmagem passaram-se dois anos. As filmagens foram iniciadas em fevereiro de 1964 quando uma equipe do CPC/UNE dirigida por Eduardo Coutinho instalou-se no Engenho Galileia, um símbolo da vitória da luta dos camponeses pela sua desapropriação em 1959. Mas, também,
3 https://www.planocritico.com/critica-cabra-marcado-para-morrer/ Acessado em 24.01.2022
4 https://journals.openedition.org/nuevomundo/1520. Acessado em 26.01.2022
símbolo da reação truculenta do latifúndio que acusavam que as Ligas Camponesas estavam ligadas ao Partido Comunista e ameaçavam “a paz agrária”.
Dois registros ajudam a compreender a natureza desta reação:
Em uma cena do documentário Brazil: the troubleland, filmado em Pernambuco pela televisão americana ABC em 1961, aparece o deputado e senhor do engenho Constâncio Maranhão, exibindo um revólver como a garantia da lei e da ordem no trato com seus empregados. Um segundo registro, noticiado pela imprensa em janeiro de 1963, apresenta cinco trabalhadores assassinados no pátio da Usina Estreliana, localizada no município de Ribeirão. Estes se dirigiam ao escritório da Usina para entregar um ofício à Delegacia Regional do Trabalho (DRT) para a empresa efetivar o pagamento do 13º salário (grifos meus).5
O roteiro original era de um documentário para contar a história de João Pedro Teixeira e de sua luta na organização dos camponeses contra a exploração dos latifundiários e pelo direito à terra mediante a Reforma Agrária. Um documentário onde a viúva Elizabeth Teixeira faria o papel do João Pedro e os atores trabalhadores do Engenho Galileia. As filmagens duraram dois meses, pois em 31 de Março ou 01 de Abril, segundo outra versão, veio o golpe empresarial militar de 1964. O Engenho Galileia, símbolo da luta organizada dos camponeses, foi invadido pelo exército prendeu as lideranças dos trabalhadores e alguns da equipe de filmagem e recolheu os equipamentos e material que estava sendo filmado.
Somente arte tem a capacidade de reconstruir dramas sociais e humanos apreendendo a sua totalidade. É o que acontece com a retomada das filmagens, 17 anos depois, quando a ditadura era organizadamente contestada com as vitórias das lutas sociais e políticas para o retorno dos exilados, campanha das Eleições Diretas Já, organização do Partido dos Trabalhadores (PT) e da Central Única dos Trabalhadores (CUT), etc. Como intelectual militante, desde a juventude no CPC, Eduardo Coutinho vai reconstituir a memória do significado coletivo da luta de João Pedro Teixeira.
5 Ver MONTENEGRO, Antonio Torres: Lugares de memória dos trabalhadores: Engenho o Galileia, Vitória de Santo Antão (PE). Disponível em https://lehmt.org/lugares-de-memoria-dos-trabalhadores- 10-engenho-galileia-vitoria-de-santo-antao-pe-antonio-torres montenegro/#:~:text=Esta%20vit%C3%B3ria%20dos%20camponeses%20de,pelo%20fim%20 Acessado em 26 de janeiro de 2022.
Para reconstituição do filme-documentário, o diretor fez um longo caminho de buscar pessoas que haviam participado das filmagens originais, em parte resgatadas porque já estavam sendo editadas e não foram apreendidas pelo exército. Pistas para encontrar principalmente Elizabeth Teixeira, que para fugir da repressão, como mostra o filme, mudou de nome para Marta Maria da Costa e se escondeu num pequeno lugarejo, São Rafael, no Rio grande do Norte, onde ninguém sabia quem ela era de fato. Um exílio sem os filhos. Além de Elizabeth, Coutinho consegue alguns outros trabalhadores que estavam nas filmagens originais em 1964.
A descoberta de Elizabeth Teixeira e a forma de reconstituição da memória da luta representada por seu marido têm como um dos efeitos, de grande simbolismo, o resgate de sua identidade e a demonstração de que ela não era mera coadjuvante, mas líder e militante ativa pelas mesmas causas do marido. Nem o sofrimento de ver a sua família destroçada, vivendo dezessete anos escondida e impelida a trocar de nome para não ter o mesmo destino do marido, lhe tiraram a certeza da justeza da luta de João Pedro, a de sua luta e de todos os trabalhadores, do campo e da cidade, que até hoje são expropriados e se lhes negam direitos fundamentais. Com 90 anos e com rara lucidez nos interpela: “Enquanto houver a fome e a miséria atingindo a classe trabalhadora, tem que haver luta dos camponeses, dos operários, das mulheres, dos estudantes e de todos aqueles que são oprimidos e explorados”, disse num encontro com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 2017. “Não pode parar” 6.
O filme/documentário cumpre com maestria o que Walter Benjamim sublinha sobre a importância de reconstituir a memória do passado para evitar que sejamos coniventes e instrumentos da classe dominante.
Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo "como ele de fato foi". Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo. Cabe ao materialismo histórico fixar uma imagem do passado, como ela se apresenta, no momento do perigo, ao sujeito histórico, sem que ele tenha consciência disso. O perigo ameaça tanto a existência da tradição como os que a recebem. Para ambos, o perigo é o mesmo: entregar-se às classes dominantes, como seu instrumento (BENJAMIN, 1987, p.226).
6https://deolhonosruralistas.com.br/2020/02/05/de-olho-na-historia-ii-elizabeth-teixeira-95-anos-uma-
camponesa-marcada-pela-resistencia/ Acesso em 27 de janeiro de 2022.
A importância de revisitar o filme/documentário Cabra Marcado para Morrer, sessenta anos depois do assassinado de João Pedro Teixeira a mando de fazendeiros latifundiários em conluio com a mão armada do Estado, é de perceber que os assassinatos e chacinas continuaram de forma ampliada. Um latifúndio que se moderniza e se amplia em todo país tingido de sangue e com a mesma impunidade dos assassinos e seus mandantes.
A razão suprema é a defesa da propriedade privada. A justificativa do passado e ao longo do tempo até o presente é que a organização dos camponeses pela luta da terra é “coisa de comunistas” que atentam contra a propriedade privada e a liberdade. Um discurso que vem desde a luta pela libertação dos escravos e indenização dos libertos com direito à terra para de fato poderem se tornar livres.
O famoso escritor Jose de Alencar, em 1871, quando Deputado pela Bahia, porta voz dos escravistas latifundiários, advertia a Corte nos seguintes termos: “Tolerado semelhante fanatismo do progresso, nenhum princípio social fica isento de ser ele atacado mortalmente ferido. A mesma monarquia, senhor, pode ser varrida para o canto entre o cisco das ideias estritas e obsoletas. A liberdade e a propriedade, essas duas fibras sociais, caíram desde já em desprezo ante os sonhos do comunismo” (grifos meus) (DA SILVA, 2018, p.57).
As duas ditaduras que duraram um terço do Século XX usaram, para se estabelecer e afirmar, dos mesmos argumentos e para justificar a perseguição, a tortura e assassinados de lideranças de trabalhadores do campo e da cidade que lutavam contra a exploração e reivindicavam mudanças estruturais na sociedade brasileira. Reitera-se, também, o conluio dos latifundiários com o Estado para prender, torturar e assassinar trabalhadores. Assim, a chacina da Usina Estreliana vem se repetindo e de forma ampliada em todo o país, mas especialmente na região norte. Presentes sempre mandantes, como no passado em muitos casos latifundiários eleitos deputados, senadores ou prefeitos. Assim foi com a ocupação e chacina na Fazenda Santa Elina, em Rondônia.
No dia 09 de agosto de 1995, às três horas da madrugada, 300 pistoleiros e policiais investiram contra o acampamento na ocupação da Fazenda Santa Elina, em Corumbiara (RO), com bombas e tiroteio por cerca de quatro horas. Dois policiais morreram no confronto, diante da reação dos trabalhadores, pegos de surpresa enquanto dormiam.
Do lado dos sem-terra, aproximadamente 20 trabalhadores desaparecidos, 350 lavradores gravemente feridos, 200 presos e 8 mortos, incluindo uma criança.7
Um ano depois aconteceria o que foi conhecido como o Massacre de Carajás.
Era uma quarta-feira, por volta das 16h, do dia 17 de abril de 1996. Cerca de 1,5 mil pessoas estavam acampadas na curva do S, em Eldorado do Carajás, sudeste do Pará, em forma de protesto. O objetivo era marchar até a capital Belém e conseguir a desapropriação da fazenda Macaxeira, ocupada por 3,5 mil famílias sem-terra. A caminhada que tinha começado no dia 10 de abril foi parada com sangue em um ataque da Polícia Militar que ficou mundialmente conhecido como o Massacre de Eldorado do Carajás. Um total de 155 policiais militares estiveram envolvidos na operação que deixou 21 camponeses mortos, 19 no local do ataque, e outros dois que faleceram no hospital.8
Assassinatos de lideranças, chacinas e despejos com violência se multiplicam sessenta anos depois da morte de João Pedro Teixeira e, no presente, de forma alarmante. Pesquisa da Comissão Pastoral da Terra (CPT) mostra um aumento, de Janeiro a Agosto de 2021, de 1.044% de mortes, especialmente de líderes indígenas, em função de conflitos no campo9. Uma estatística absurda, mas que ganha compreensão no fato que as forças políticas que governam o país há três anos se pautam por uma agenda que estimula a expansão dos latifúndios do agronegócio e do neoextrativismo e demonizam os movimentos sociais do campo e da cidade que lutam por direitos.
Mas, o ovo de serpente que deve alertar as instituições que lutam pela efetiva retomada do Estado de direito situa-se no fato de que a exibição da arma em punho pelo deputado latifundiário Constâncio Maranhão símbolo da garantia da lei e da ordem, referida na citação da nota nº 5, com a nova lei sobre armas e munições do governo Bolsonaro passa a ser o signo de possibilidade de “justiça pelas próprias mãos”, especialmente dos proprietários dos latifúndios, de empresas ou de indivíduos.
O Decreto nº 9.685 de 15 de Janeiro de 2019 permite que cada cidadão maior de 25 anos possa ter quatro armas de fogo e mil munições por ano, no caso de arma
7 https://www.cptnacional.org.br/massacres/5306-25-anos-do-massacre-de-corumbiara-ro. Acessado em 31 de janeiro de 2022.
8https://www.brasildefato.com.br/2020/04/17/massacre-de-eldorado-do-carajas-completa-24-anos-um-
dia-para-nao-esquecer . Acessado em 01 de fevereiro de 2022.
9 https://deolhonosruralistas.com.br/2021/12/13/mortes-em-virtude-de-conflitos-no-campo-aumentam- 1-044-em-2021/ Acessado em 26 de janeiro de 2022.
de uso restrito, como o fuzil, e cinco mil para armas de uso permitido, tipo pistolas e revólveres. O teor e a justificativa dada pelo presidente Jair Messias Bolsonaro para criar o Decreto não deixa dúvida de que se trata de armar os proprietários para que defendam eles mesmos as suas propriedades. “O povo pediu por comprar armas e munições e nós não podemos negar o que o povo quis naquele momento. Em toda a minha andança pelo Brasil, ao longo dos últimos anos, a questão da arma sempre estava na ordem do dia. Não interessa se estava em Roraima, Acre, Rondônia, Rio Grande do Sul, Santa Catarina ou Rio de Janeiro”.10
Esta intencionalidade fica explicita quando se admite, em casos excepcionais, a possibilidade de liberar mais armas e munição para cidadãos acima dos 25 anos. “O limite de quatro armas pode ser flexibilizado caso o cidadão comprove a necessidade de adquirir mais, como, por exemplo, ser proprietário de quatro propriedades rurais ou urbanas” (grifos meus11). Mas no caso de atiradores esportivos podem comprar, atualmente, sem nenhum controle dos órgãos controladores, 60 armas por ano, os caçadores 30 armas e os colecionadores 10 armas. Somente precisam pedir autorização caso queiram mais armas, além desta cota. O mesmo corre com o aumento de munições que podem constitui-se num arsenal de guerra.
Trata-se de uma política de clara ameaça e de explícita intimidação aos movimentos sociais do campo que lutam pelo direito à terra e à Reforma Agrária, esta sim condição fundamental para que haja direitos e “paz social no campo”. Mas, o mais grave deste ovo de serpente liga-se ao futuro do Estado democrático de direito como, de forma clara e contundente, nos adverte Jânio de Freitas em artigo no Jornal Folha de São Paulo, de 30.01.2022, ao analisar as medidas de liberação de armas e o arsenal de armas e munições de guerra encontradas sob o registro de um único supostamente colecionador de armas. Destaco alguns trechos, os quais constroem os elos desta liberação com a afirmação de Bolsonaro de que “se não tiver voto impresso, não vai ter eleição” - uma das expressões que usa para justificar a continuidade, mesmo não ganhando no voto. Para isso a suspeição reiterada sobre o voto impresso, a perseguição do judiciário, etc.
10https://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2019-01/com-decreto-pessoas-acima-de-25-anos-
podem-ter-ate-4-armas-de-fogo. Acessado em 28 de janeiro de 2022.
11https://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2019-01/com-decreto-pessoas-acima-de-25-anos-
podem-ter-ate-4-armas-de-fogo. Acessado em 28 de janeiro de 2022.
As alternativas permitidas pelas liberações de Bolsonaro são tantas -- registros pessoais e comerciais sem limite, importações sucessivas, inexistência de fiscalização, entre outras - que um só operador pode armar para combater todo um contingente. É o que está acontecendo. (...) “Se não tiver voto impresso, não vai ter eleição" pode ser uma frase simbólica dos tantos avisos públicos de um propósito anti- eleitoral. Reforçado no que as atuais sondagens do eleitorado sugerem. E já sonorizado na volta à mentira de fraude nas eleições de 2018. Tal propósito não se consumaria no grito, nem deve contar com a sabotagem eleitoral de outro Sérgio Moro e de procuradores bolsonaristas à disposição de Augusto Aras. Armas potentes, porém, se ajustam bem ao propósito. As medidas de Bolsonaro para o armamento de civis obedeceram a um plano. (...) Essas medidas não vieram do nada para o à toa. São uma denúncia de si mesmas e de suas finalidades criminosas.12
Divulgar e, sobretudo neste contexto, debater com os jovens o filme- documentário “Cabra Marcado para Morrer” constitui-se numa dupla tarefa política. A primeira é a de mostrar que as forças de extrema direita que nos governam, dia após dia, violentam o Estado democrático de direito e apontam para um Estado totalitário.
O primeiro passo para estancar este ovo de serpente em crescimento é, pela via democrática do voto, derrotar neste ano de 2022 estas forças. Primeiro, porque o passo seguinte é de reconstruir e fortalecer as instituições científicas e culturais destroçadas e reunir forças sociais amplas para revogar o conjunto de contrarreformas que atingiram, de forma profunda, os direitos sociais do trabalho, da saúde, da educação e da cultura.
Tanto para o primeiro quanto para o segundo passo é condição necessária uma segunda tarefa política. Esta é a de unir forças, sindicais e movimentos sociais, e culturais do campo e da cidade, bem como instituições científicas para, coletivamente, perder o medo e fazer ecoar o que Elizabeth Teixeira traz como uma conclamação, acima citado e que reitero aqui: “Enquanto houver a fome e a miséria atingindo a classe trabalhadora, tem que haver luta dos camponeses, dos operários, das mulheres, dos estudantes e de todos aqueles que são oprimidos e explorados. Não pode parar”.
Esta também é a mensagem forte de mulheres e homens, adultos, jovens e crianças dos movimentos sociais do campo reunidos em Curitiba em Junho de 2018 na 17ª Jornada de Agroecologia.
12 https://www1.folha.uol.com.br/colunas/janiodefreitas/2022/01/as-eleicoes-armadas-apos-descaso- com-medidas-de-bolsonaro.shtml
Pensam que podem nos prender, mas seguimos livres e lutando! Pensam que podem nos matar, mas somos sementes! Em resposta à violência nos unimos. Em resposta à barbárie nos organizamos. Na unidade, venceremos. Não temos tempo para ter medo. Temos nossos punhos e o sentimento do mundo. Cuidando da Terra, cultivando biodiversidade e colhendo soberania alimentar.13
João Pedro Teixeira e todos os assassinados por organizarem os camponeses contra a violência e a exploração no campo e pelo direito a terra e à vida: presentes!
Uma homenagem aos 38 anos do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) por sua justa luta e especialmente às dezenas de lideranças de militantes assassinados por defenderem o direito à terra e à vida digna num país continental tomado pelo latifúndio.
BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras escolhidas. Vol. 1 São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 222-232.
DA SILVA, J. M. Raízes do conservadorismo brasileiro. A abolição na imprensa e no imaginário social. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2018.
13Carta da 17ª Jornada de Agroecologia, 9 de Junho de 2018.
https://www.google.com.br/search?source=hp&ei=nzztW_39F8XGwATMlbuoAg&q=Carta+da+17ª+Jor nada+de+Agroecologia%2C9+de+Junho+de+2018. Acesso em 20 de junho de 2018.
V.20, nº 41, 2022 (jan-abr) ISSN: 1808-799 X
Elydimara Durso dos Reis2
Felipe Alencar3
Resumo4
Na perspectiva do ensino médio integrado ao técnico e como educação permanente, o artigo discute que os programas Vence e Novotec, no Centro Paula Souza, anteciparam a reforma do ensino médio no Estado de São Paulo com tendência de serem modelo para a reforma em outras redes de ensino. Como metodologia utilizou-se fonte documental da legislação referente aos programas e arquivos institucionais. Conclui-se que estes programas tendem a aprofundar a dualidade na rede estadual de ensino, a preparar os estudantes para atividades laborais precárias e, ainda, ameaçam o futuro dos cursos integrados.
Palavras-chave: Centro Paula Souza; cursos integrados; Programa Vence; Programa Novotec; reforma do ensino médio.
EDUCACIÓN TÉCNICA PROFESIONAL DE SÃO PAULO EN LA ANTESALA DE LA REFORMA DE LA ESCUELA SECUNDARIA: VENCE Y NOVOTEC EN EL CENTRO PAULA SOUZA, 2012-2020
Resumen
En la perspectiva de la educación secundaria integrada como educación técnica y continua, el artículo argumenta que los programas Vence y Novotec, en el Centro Paula Souza, precedieron a la reforma de la educación secundaria en el Estado de São Paulo, tendiendo a ser un modelo de reforma en otras redes de educación. Se utilizó como metodología la fuente documental de la legislación referente a los programas y archivos institucionales. Se concluyó que estos programas tienden a profundizar la dualidad en la red estatal de educación, preparan a los estudiantes para actividades laborales precarias y también amenazan los futuros dos cursos integrados.
Palabras clave: Centro Paula Souza; cursos integrados; Programa Vence; Programa Novotec; reforma de la escuela secundaria.
1 Artigo recebido em 05/01/2022. Primeira Avaliação em 12/01/2022. Segunda Avaliação em 04/02/2022. Aprovado em 07/02/2022. Publicado em 28/03/2022.
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v20i41.52565.
2 Mestranda em Educação na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Membro do Grupo de Pesquisa em Trabalho e Educação da FEUSP.
Email: elydimara.reis@usp.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2947-5600. Lattes: http://lattes.cnpq.br/7722158072257786.
3 Mestrando em Educação na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Pedagogo da Universidade Federal do ABC. Membro do Grupo de Pesquisa em Trabalho e Educação da FEUSP, Grupo de Estudo e Pesquisa em Política Educacional e Gestão Escolar da Universidade Federal de São Paulo - Unifesp e da Rede Escola Pública e Universidade - REPU.
E-mail: felipealencar@usp.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2011-8941. Lattes: http://lattes.cnpq.br/8382339312873192.
4 Este artigo resulta da pesquisa Política educacional na rede estadual paulista (1995 a 2018), financiada pela FAPESP, coordenada pela Profa. Dra. Márcia Aparecida Jacomini e de estudo exploratório no Grupo de Pesquisa em Trabalho e Educação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, coordenado pela Profa. Dra. Carmen Sylvia Vidigal Moraes.
TECHNICAL PROFESSIONAL EDUCATION IN SÃO PAULO AT THE ANTECHAMBER OF HIGH SCHOOL REFORM: VENCE AND NOVOTEC PROGRAMMES AT THE PAULA SOUZA STATE CENTER FOR TECHNOLOGICAL EDUCATION, 2012-2020
Abstract
From the perspective of high school education integrated to technical and as permanent education, the article discusses that the Vence and Novotec programs, at Centro Paula Souza, anticipated the reform of high school in the State of São Paulo with a tendency to be a model for the reform in other educational networks. As a methodology, a documentary source of legislation referring to programs and institutional files was used. It is concluded that these programs tend to deepen the duality in the state education network, to prepare students for precarious work activities and, also, threaten the future of integrated courses.
Keyword: Centro Paula Souza; integrated technical education; Vence Program; Novotec Program; high school reform.
Não é novidade que a educação profissional técnica esteja em constante disputa no Brasil. Medidas recentes, em 2017, com a aprovação da Reforma do Ensino Médio e, em 2018 com a homologação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), referendam a separação entre os conteúdos de formação humanística e científica e uma parte destinada aos itinerários formativos dentre os quais se inclui a formação técnica e profissional. Elementos que asseveram a histórica dualidade do ensino, nas palavras de Frigotto (2016), trata-se de uma reforma “que legaliza o apartheid social na educação no Brasil”.5
Desta forma, tem-se que a legislação federal traz implicações no que se opera no âmbito dos sistemas de ensino, com destaque às redes estaduais que concentram a grande maioria das matrículas no ensino médio.
No caso do estado de São Paulo, o processo histórico da dualidade do ensino se confirma com o desmembramento do ensino regular e do ensino profissional em duas redes que apresentam relevantes diferenças organizativas, pedagógicas e administrativas, ambas marcadas por esvaziamento das atribuições sociais da qualidade no ensino a favor do gerencialismo que caracterizam a política educacional dos sucessivos governos do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), desde 1995, no estado de São Paulo. A rede regular estadual, mantida pela Secretaria de Estado da Educação (Seduc), apresenta em sua história programas de
5 FRIGOTTO, Gaudêncio. Reforma de ensino médio do (des) governo de turno: decreta-se uma escola para os ricos e outra para os pobres. ANPEd. Disponível em: <https://www.anped.org.br/news/reforma- de-ensino-medio-do-des-governo-de-turno-decreta-se-uma-escola-para-os-ricos-e-outra>. Acesso em 24 de agosto de 2021.
municipalização, contínua precarização do trabalho docente e acentuada participação de agentes privados na formulação de programas (GOULART; PINTO; CAMARGO, 2017; JACOMINI, 2019; CÁSSIO et al 2020).
Por seu turno, a rede técnica e profissional, com demanda atendida no Centro Paula Souza (CPS) autarquia vinculada à Secretaria do Desenvolvimento Econômico (SDE),6 tem sido um dos mais visíveis meios de propaganda do “êxito” do PSDB na educação paulista, cujo marco é o ano de 2006, quando houve expansão da rede de ensino técnico.7
Mas a ampliação física das unidades, entretanto, não ocorreu pela construção de novas escolas técnicas, e sim de forma bastante precária, por meio da criação de classes descentralizadas que consistem no aproveitamento de espaços físicos de escolas das redes municipais ou estadual já existentes no Estado de São Paulo.8 Com efeito, sem promoção de condições estruturais necessárias, o atendimento da demanda por cursos técnicos de nível médio acontece também de modo precário e voltado a ocupações cujos ambientes educativos não pressupõem a existência de condições que lhe conferem qualidade, como laboratórios e equipamentos específicos. Desse modo, a ampliação de matrículas ocorreu preponderantemente em cursos do eixo de negócios e empreendedorismo (QUINTINO, 2020; MORAES; REIS; ALENCAR, 2021 ahead of print, 2021).
No Centro Paula Souza (CPS), objeto deste estudo, em 2012 estabeleceu-se um programa de educação profissional “integrado”, sob a denominação de Programa Vence, que separava a formação geral, ofertada pela rede pública estadual de educação básica, da formação técnica, realizada pelo Centro Paula Souza e Instituto Federal de São Paulo (IFSP).
6 Atualmente, o CPS está presente em 322 municípios, administra 233 Escolas Técnicas Estaduais – Etec, com mais de 208 mil alunos matriculados. Conta também com 269 classes descentralizadas, sendo 144 em parceria com prefeituras do interior e 125 em parceria com a SEE, totalizando mais de 25 mil estudantes matriculados. No ensino superior, há 73 Faculdades Tecnológicas – Fatec e 85 mil alunos matriculados em 77 cursos (QUINTINO, 2020, p. 51).
7 A criação de novas unidades começa no governo Alckmin/Lembo (2001-2007), e intensifica-se no governo Serra (2007-2010): de 138 Etecs e 33 Fatecs, com 123.000 alunos e 11.000 trabalhadores, em 2007, a instituição passa a ter 198 Etecs e 49 Fatecs, com 196.000 alunos e 16.000 trabalhadores em 2010 (QUINTINO, 2020, p. 92).
8 Formato autorizado pelo Conselho Estadual de Educação de São Paulo, em 1999, como meio de expansão da oferta do CPS - Centro Paula Souza utilizando-se de outros espaços institucionais, o que caracteriza movimento tendencial de precarização das condições de ensino, cf Quintino (2020).
Este Programa pressupunha duas modalidades de oferta, conforme Resolução 78, de 30 de julho de 2012, que unificou as normas regulamentares de implementação do Programa Rede, a saber: a forma concomitante (que não será abordada neste estudo) onde os estudantes fariam o Ensino médio em escola da rede estadual e o técnico em uma escola parceira, pública ou privada, e a forma integrada (que será problematizada adiante), na qual o aluno frequentaria o ensino médio em escola estadual e a parte técnica em articulação com o Instituto Federal de São Paulo (IFSP) ou Centro Paula Souza (CPS).
É possível afirmar que o Programa Vence, como se propõe discutir ao longo deste texto, serviu como uma base de experimentação para o Novotec, em especial para a modalidade “integrada”, ambos compondo-se como uma antessala à atual Reforma do ensino médio, visto que o programa Novotec, implantado em 2019, foi adotado para o conjunto da rede estadual paulista como o itinerário formativo de educação profissional.9
Neste texto, o objetivo é compreender como os programas Vence e Novotec se relacionam com a reforma do ensino médio em distintos momentos: o Vence antecipando os parâmetros da reforma e o Novotec consolidando-a.
Argumentamos, na primeira parte do texto, que tais propostas consistem numa resistência, no âmbito da esfera governamental, em implementar cursos de ensino médio integrado, ainda que tenha se estabelecido na Constituição Federal de 1988 a ampliação do ensino médio como parte da educação básica no país. Defendemos, com base na perspectiva de educação permanente como política social, a importância dos cursos integrados na associação entre conhecimentos técnico-científicos e humanistas na formação de estudantes das classes subalternas.
Na segunda parte, apresenta-se breve histórico sobre o Programa Vence, sobretudo no Centro Paula Souza, relacionando-o, ao mesmo tempo, com o Novotec, que tem se mostrado como o seu mais atual substituto.
Para tanto, adotou-se como metodologia a análise documental (LAKATOS; MARCONI, 2001) da legislação referente aos programas e arquivos institucionais, assim como análise de dados de alunos matriculados, cidades e eixos tecnológicos cotejando com dimensões territoriais da abrangência dos programas, corroborando
9 Conforme site da Seduc: <https://novoensinomedio.educacao.sp.gov.br/> acesso em 03 set. 2021.
para debater a dimensão socioespacial da política pública (CÁSSIO; GIROTTO, 2018) e a iniciativa da reforma que ameaça o formato de cursos de ensino médio integrado.
A inclusão do ensino médio como parte da educação básica na Constituição Federal de 1988 consolida o reconhecimento de tendências já delineadas no atendimento da demanda por escolarização no país em anos anteriores ao estabelecimento legal tanto na Constituição de 1988 quanto na LDB/96. Para Beisiegel (2005, p. 167) a expansão do ensino médio como direito à educação para as classes subalternas deve ter como condição preliminar “a compreensão das implicações e da plena aceitação da legitimidade da presença de jovens das classes populares no ensino médio”, cabe também nessa condição a reivindicação que todos os estudantes tenham uma formação integral com currículo que associe conhecimentos científicos humanísticos e técnico-profissionais.
Dessa maneira a perspectiva de uma educação permanente como direito universal de cidadania, deve ser pautada pela dimensão propriamente pública das políticas públicas, em particular, as políticas de educação e formação profissional voltadas a jovens e adultos trabalhadores que articule os sistemas de proteção social e as políticas econômicas de caráter estrutural que promovam a autonomia dos indivíduos em relação ao acesso à garantia de renda. E, assim, “redefinir a qualidade da relação Estado-sociedade, tornando essas políticas promotoras de uma nova relação que fortaleça a esfera pública, democratize o Estado e permita o exercício autônomo da cidadania” (MORAES, 2006, p. 401).
Com isso, não cabe somente à escola construir-se de modo isoladamente pedagógico como via de formação para inserção profissional, mas ao conjunto de aparelhos estatais uma atuação conjunta. Portanto, a escola é parte da mediação de um conjunto de agências educativas, na qual cabe a ela a tarefa educativa de “promover um modelo educativo capaz de desenvolver e estender as capacidades de compreensão humana” (META, 2017, p. 246).
É nesse sentido que a proposta de um currículo integrado que tenha o trabalho como princípio educativo atribui um papel importante na educação emancipatória e comum a todos, no avesso da escola dualista reprodutora de desigualdades sociais,
que supere a fratura que distingue uma formação humanista-científica e uma formação técnica-profissional.
A crise terá uma solução que, racionalmente, deveria seguir esta linha: escola única inicial de cultura geral, humanista, formativa, que equilibre de modo justo o desenvolvimento da capacidade de trabalhar manualmente (tecnicamente, industrialmente) e o desenvolvimento das capacidades de trabalho intelectual. Deste tipo de escola única, através de repetidas experiências de orientação profissional, passar- se-á a uma das escolas especializadas ou ao trabalho produtivo. (GRAMSCI, 2000, p. 33-34).
Desde a redemocratização, o ensino médio e o técnico-profissional são alvos de disputa pelos seus rumos e finalidades, seja pela adequação para o ingresso no ensino superior, para o acesso ao trabalho qualificado, ou por um currículo integrado que tenha o trabalho como princípio educativo.
O atual momento que vivemos no Brasil, e precisamente no Estado de São Paulo, é mais um episódio dessa disputa: o Governo do Estado de São Paulo apresentou em 2020 para o conjunto da rede sua política de implantação do “novo” ensino médio, adequando-a às medidas recentes previstas na reforma do ensino médio, regulamentada pela Lei Federal nº 13.415/2017 e atualizada pela Base Nacional Comum Curricular do Ensino Médio e pelas Diretrizes Curriculares Nacionais do Ensino Médio. Na esteira de processos anteriores da disputa contra a integração do ensino médio, na qual agentes da sociedade política vinculados ao PSDB exercem influência, vemos uma história se repetir na contramão dos direitos constitucionalmente estabelecidos.
No bojo das modificações no âmbito da Reforma dos Aparelhos do Estado, conduzidas no governo de Fernando Henrique Cardoso e deliberadamente marcadas pelas políticas neoliberais, foram realizadas reformas na educação profissional, com o Decreto n. 2.208/1997 que promoveu um retrocesso ratificando o dualismo entre ensino científico e ensino técnico (MORAES, 2006) estabelecendo no artigo 5º que “a educação profissional de nível técnico terá organização curricular própria e independente do ensino médio, podendo ser oferecida de forma concomitante ou sequencial a este” (BRASIL, 1997) e tornando facultativo que o estudante cursasse ambas as formações de modo integrado. Com o Decreto, os cursos integrados foram praticamente proibidos, sendo tolerados apenas em escolas agrotécnicas. Esta desvinculação entre a educação média geral e o ensino técnico profissionalizante foi
tido pelo governo da época como um avanço democrático. Posteriormente foi concedida uma forma de concessão de certificados por módulos para quem concluísse o ensino médio e depois o ensino técnico, mas permanecendo o não reconhecimento de jovens e adultos trabalhadores que possuíam formação em nível fundamental (MORAES; NETO, 2005).
Naquele contexto, segundo Almério Melquíades de Araújo (2001), coordenador de ensino técnico do CPS, a instituição deu início à reestruturação de seus cursos, adequando-os ao Decreto 2.208/97, no formato de módulos, com a definição de qualificações e certificações intermediárias em cada itinerário de formação técnica no modelo das competências. O governo do Estado de São Paulo, na gestão Mário Covas (1995-2001), promoveu mudanças nas escolas estaduais com o bloqueio de matrículas nas séries iniciais dos cursos de 2º grau profissionalizantes, ao mesmo tempo em que determinou a separação entre ensino médio e ensino técnico. Este período de vigência do Decreto 2.208/97 em São Paulo é marcado pela obtenção de currículo próprio para o ensino técnico e de medidas de reorganização estrutural da rede que visavam à contenção do atendimento da demanda no CPS (SACILOTTO, 2016; MORAES; ALENCAR, 2020).
No Brasil, a trajetória das políticas de educação profissional possui um percurso controverso sobretudo na virada dos anos 1990 para os anos 2000, demarcado com a mudança de governo do PSDB para o PT. Frigotto, Ciavatta e Ramos (2005) ressaltam que de 1996 a 2003 houve resistência pela revogação das regulamentações de orientação conservadora apontando-se para a necessidade de serem construídas novas, mais coerentes com a transformação da situação de desigualdade brasileira.
Com o governo petista eleito, mudanças foram introduzidas nas políticas de ensino médio e da educação profissional no país, a partir do Decreto 5.154/2004, que trouxeram novo dilema para definições institucionais do CPS: manter o ensino médio regular nas Etec ou integrá-lo com o ensino técnico.
Embora a atribuição da instituição fosse a de ofertar a educação profissional em suas diferentes formas, assim como cabe à Seduc a oferta pública do ensino regular, a possibilidade de oferta do ensino técnico integrado ao ensino médio a partir do ano letivo de 2005, conforme estabelecido no referido Decreto, ocorre apenas em 2010 com a retomada de ensino integrado, com a habilitação profissional de Mecatrônica integrada ao ensino médio. Após 2005, contudo, as formas de oferta dos
cursos permaneciam idênticas àquelas disponíveis anteriormente, isto é, de ensino técnico nas formas concomitante e subsequente10 e de ensino médio, separadamente, com matrículas distintas.
De modo a responder ao governo federal petista, ao mesmo tempo em que se resistia para implementação de ensino médio integrado em São Paulo, a criação de novas unidades no CPS começa no governo Alckmin/Lembo (2001-2007) e se intensifica no governo Serra (2007-2010), adotando uma política de relativa priorização do ensino técnico. Em oito anos, de 2005 a 2012, quase duplica o número de escolas técnicas e a quantidade de Fatec triplica (SACILOTTO, 2016). Contudo, o aumento de unidades de ensino do CPS no período 2005-2012 decorre, em alguns casos, da transformação de classes descentralizadas em novas Etec cujo modelo de expansão se mantém mediante parcerias, especialmente com prefeituras municipais e com agentes privados para a formulação de currículos e de projetos de infraestrutura.11 Importante considerar que, entre 2012 e 2016, o acesso à educação profissional pública no Estado de São Paulo se ampliou mediante programas de subsídios à oferta de vagas em intuições da iniciativa privada, como os programas Vence do governo estadual e o Pronatec do governo federal, na gestão Dilma Rousseff (2012-2016). Enquanto programas, estes são desenvolvidos na proporção dos recursos disponíveis, dos quais também depende sua continuidade.
Com as modificações oriundas da Lei Federal n. 13.145/2017, que reformulou o Ensino Médio, já em 2018 o CPS implantou um novo modelo de Ensino Médio, com a previsão de itinerários formativos, constituídos por componentes curriculares da BNCC combinada com uma parte diversificada. Com o estabelecimento da reforma do ensino médio, o CPS formula o programa Novotec que passou a ser implantado como itinerário formativo de educação profissional no conjunto das escolas da rede estadual paulista cujo modelo prevê formação aligeirada e diretamente vinculada aos ditames do capitalismo global, que intervêm agora com o modelo das competências
10 O curso técnico concomitante permite o ingresso do estudante enquanto estiver no ensino médio. O curso técnico subsequente é destinado a alunos que já tenham concluído o ensino médio.
11 Conforme Deliberação CEE 8/1999: “classes que funcionam fora da sede de um estabelecimento de ensino, podendo estar localizadas tanto na área de jurisdição da escola vinculadora como em área de jurisdição diferente da escola à qual estão vinculadas. [...] somente se justifica mediante um projeto educacional destinado ao atendimento de uma demanda específica e por prazo determinado. […] sempre autorizadas em caráter especial, visto que seu funcionamento pressupõe um caráter provisório ou emergencial e uma demanda transitória” (SÃO PAULO, 1999, p. 9).
cognitivas somado ao das competências socioemocionais que buscam inserir o jovem na execução de trabalhos simples e desqualificados (PIOLLI; SALA, 2019).
Os programas mais recentes implementados no Estado de São Paulo, analisados a seguir, podem expor que parte da reforma do ensino médio já encontrava sua antessala no que diz respeito, sobretudo, à dissociação entre ensino técnico e ensino médio.
O Programa Vence, também denominado Rede e Retec, foi implementado no governo de Geraldo Alckmin, pelo Decreto nº 57.121, de 11 de julho de 2011 e regulamentado pela Resolução SE 47 de 12 de julho 201112, tendo sido alterado pelo Decreto nº 58.185, de 29 de junho de 2012.
De acordo com o discurso governamental, o Programa buscava contribuir para a expansão das matrículas no ensino médio articulado à formação técnica de nível médio e a consequente inserção dos alunos egressos qualificados para o mundo do trabalho o que encontra sinergia com o lema adotado para a divulgação do Programa nas Redes Sociais: “Na vida é assim: Quem se prepara Vence”.
Para tanto, o programa se estabeleceu com um arranjo interinstitucional no qual previa a articulação de diferentes instituições, a saber: CPS, Instituto Federal de São Paulo (IFSP), instituições privadas e a Seduc.
Sobre a forma integrada cabe comentar que esta ocorreu em acordo com a Resolução 78, de 30 de julho de 2012, em regime de experiência pedagógica e de modo a promover intercomplementaridade entre a Seduc, o IFSP e o CPS, o que quer dizer, dentre outros aspectos, que cada ente arcaria com os custos proveniente da oferta da parte que lhe foi incumbida.
Esta forma “integrada” utilizada para a oferta articulada do Programa Vence destoa do que foi estabelecido como ensino integrado, de acordo com o inciso I do artigo 36 C da Lei 9.394/1996 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional) que indica que a educação profissional técnica de nível médio integrada será “oferecida [...] sendo o curso planejado de modo a conduzir o aluno à habilitação profissional
12 O anexo desta resolução foi tornado sem efeito pela Resolução SE 31, de 16 de março de 2012.
técnica de nível médio, na mesma instituição de ensino, efetuando-se matrícula única para cada aluno”, trecho incluído pela Lei 11.747, de 2008.
Porém, esta forma integrada de oferta encontra respaldo no Parecer 12/2011 encaminhado à Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação, aprovado em 9 de novembro de 2011, tendo como relator Francisco Aparecido Cordão.
Na página 7 deste parecer faz-se uma apreciação do Programa Rede/Vence onde, dentre outras questões problematiza-se que, embora o Programa
assuma a forma concomitante de oferta, com matrículas distintas na escola de Ensino Médio da rede estadual de ensino e na correspondente escola técnica das redes públicas do Centro Estadual de Educação Tecnológica Paula Souza ou do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo, em regime de intercomplementaridade, esse programa possibilita a efetiva integração curricular, pelo planejamento, desenvolvimento e avaliação de “projeto pedagógico único”. (BRASIL, CNE/CEB, 2011, p. 7).
Ademais, no caso do CPS, é acrescido trecho extraído do Ofício Circular nº 26 do Grupo de Supervisão Educacional (GSE/GEVE) que afirma que “este Programa possibilitará a efetiva integração curricular, pelo planejamento, desenvolvimento e avaliação do Projeto Pedagógico Único, nos termos do artigo 81 da LDB – Lei nº9.394/1996, no regime de experiência Pedagógica”.
Ou seja, o Programa Vence poderia acontecer de forma integrada, com uma adaptação permitida pelo CNE, apropriando-se da política de ensino médio integrado para implantar uma política diversa. Assim, a forma integrada empreendida no programa passou a contar com matrículas distintas de modo que a integração se daria mais pelos aspectos pedagógicos associados à sua oferta.
Conforme Relatório de Gestão 2012-2016, no CPS a oferta dos cursos do Programa Vence se daria de duas formas: o estudante poderia cursar o ensino médio regular em uma escola estadual e o curso técnico na Etec ou cursar ambos na mesma escola estadual (CPS, 2016)
Em relação à oferta, o Programa Vence teve sua primeira turma no CPS em 2012 e o último ingresso se deu em 2020, conforme consulta feita aos materiais do vestibulinho disponibilizados pela Unidade do Ensino Médio e Técnico do Centro Paula Souza (Cetec) em seu site institucional.
O Programa Novotec foi lançado no primeiro semestre de 2019 na gestão de João Dória, como parceria entre as Secretarias de Desenvolvimento Econômico e de Educação e o Centro Paula Souza (GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO, 2019b, s/p.), sob argumento de ser esta uma instituição referência em educação de excelência no Brasil.
O objetivo da iniciativa seria o de “[...] oferecer o itinerário de formação técnica e profissional nas Etecs e nas escolas da rede estadual de ensino (GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO, 2019b, s/p.)”.
O Programa conta com quatro modalidades de cursos profissionalizantes:13 Novotec Integrado (médio e técnico realizados no mesmo período), Novotec Virtual (cursos online de qualificação profissional), Novotec Expresso (duração de 120 horas realizadas em um semestre), Novotec Móvel (Cursos de qualificação profissional com 80 a 100 horas em unidades móveis).
Sobre a oferta do Novotec, na forma integrada, cabe comentar que esta aparece associada à ideia de simultaneidade entre ensino médio e formação profissional na qual haveria “o compartilhamento da infraestrutura e talentos já existentes, utilizando escolas e professores da rede estadual e do Centro Paula Souza para trabalharem conteúdos de forma integrada (GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO, 2019a, s/p.)”.
Em comunicado sobre a escolha do Novotec na rematrícula de 2021, argumenta-se que fazer o curso do Novotec Integrado “é como ter a ETEC na sua escola!” (GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO, s/d, s/p), contudo, a chamada não esclarece o que haveria de similaridades e diferenças entre os cursos do Novotec Integrado e os integrados da própria Etec, os Etim,14 por exemplo.
Sobre as matrículas, conforme Resolução SE, de 18 de janeiro de 2019 que aborda a organização curricular de cursos do ensino médio articulados à Educação Profissional de Nível Técnico a serem oferecidos em escolas da rede estadual em parceria com o CPS, estes cursos necessitariam de duas matrículas distintas, uma na escola de ensino médio regular e a outra na instituição parceira. O Programa é
13GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO. Novotec. Disponível em:
<http://www.novotec.sp.gov.br/Modalidades>. Acesso em 07 de março de 2021.
14 Ensino Técnico Integrado ao Ensino Médio (Etim).
proposto como alinhado às tendências da juventude, ligando-se diretamente com o discurso utilizado na propaganda da reforma alegando uma demanda dos jovens
[...] por profissionalização mais rápida e do mercado de trabalho por mão de obra qualificada para as necessidades atuais. A grade de 6 aulas por dia possibilitará aos alunos um período disponível para trabalhar ou estagiar (GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO, 2019a, s/p.).
Piolli e Sala (2019) tecem considerações sobre a opção do governo em oferecer cursos mais alinhados a estas expectativas dentre as quais destaca-se que
Apesar de não explicitar quais são as ‘necessidades atuais’ de mão de obra qualificada, a sua associação com os cursos rápidos deixa bastante claro que se trata de uma qualificação aligeirada. Embora o mercado de trabalho também solicite uma força de trabalho qualificada, ele demanda, em volumes crescentes, uma força de trabalho embrutecida e adestrada apenas para o trabalho mais simples. Essa qualificação desigual da força de trabalho que o governo Paulista quer oferecer em massa (PIOLLI; SALA, 2019, p.185).
Entende-se, portanto, que os cursos do Novotec tendem a corroborar ainda mais com as desigualdades educacionais estabelecidas dentro do sistema de ensino estadual e também com a formação para profissões cada vez mais destituídas de direitos. Ou seja, no cerne da proposta não se propõe nenhum outro caminho para o jovem que não a rápida profissionalização em cursos aligeirados e não se menciona sobre a continuidade dos estudos na universidade ou mesmo qualquer citação em relação às distinções de raça, classe, gênero e sexualidade que marcam a diversidade das experiências juvenis.
O Programa Vence Integrado e o Programa Novotec Integrado se voltaram para o estabelecimento de acordos de cooperação entre os sistemas de ensino para concretizar o que se denominou ensino integrado, cuja chave da “integração” se deu pelo currículo. Desta forma, apesar de permanecer nos programas a ideia de única e indivisível matriz curricular constituída por componentes curriculares da Base Nacional Comum e por componentes da Formação Técnica e Profissional de Nível Médio na
parte diversificada, o que se verifica é a acentuação da separação entre formação geral e a técnica e profissional.
Observa-se que o Programa Vence aconteceu em regime de experiência pedagógica, tendo sido sua forma integrada um possível precursor do que se adota no Novotec e também, para o que se normaliza na Resolução CNE/CP n. 1, de 5 de janeiro de 2021, a qual define as Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a Educação Profissional e Tecnológica e passa a incorporar, além das formas de oferta já conhecidas - integrada, concomitante e subsequente - a forma concomitante intercomplementar, que é, conforme Artigo 16, inciso III: “desenvolvida simultaneamente em distintas instituições ou redes de ensino, mas integrada no conteúdo, mediante a ação de convênio ou acordo de intercomplementaridade, para a execução de projeto pedagógico unificado”.
Dito isso, cabe questionar: a integração proposta pelo programa Vence e, de maneira simultânea, pelo Programa Novotec não seriam apenas formas de ensino concomitantes ou mesmo maneiras de baratear o ensino destinado à população sem, de fato, promover a integração que o discurso oficial atribui como característica da modalidade?
No que se refere às parcerias, ao contrário do Programa Vence em que o IFSP e CPS compunham a oferta do ensino “integrado” propiciando-lhe maior pluralidade na visão pedagógica, no atual Novotec somente o CPS integra as ações.
É importante notar que, em 2020, o Novotec incorporou uma iniciativa que vigorava no CPS desde 2018, isto é, em uma boa parte de suas Escolas Técnicas já era ofertado o Ensino Médio com o V Itinerário Formativo Técnico e Profissional (MTec) (MAIA, 2021, p.146) e o Ensino Médio Técnico e Profissional (MQTec) (MAIA, 2021, p.187). A oferta deste formato propicia, comparativamente ao Vence, aumento no alcance das cidades atendidas15, como se observa no gráfico 1:
15 Para efeitos deste estudo e, como os dados contidos no Banco de dados da Cetec fazem associação entre os cursos MTec, MQtec e Novotec, adotou-se para análise os dados desde 2018, início da denominação conjunta.
Ano
180
160
140
120
100
80
60
40
20
0 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019 2020
Vence 24 31 36 40 34 26 19 17 16
MTec/MQtec/Novotec 0 0 0 0 0 0 24 40 158
Total de Municípios Atendidos
Gráfico 1: Total de Municípios atendidos pelos Programas Vence e Mtec/MQtec/Novotec, 2012-2020
Fonte: Elaboração própria com base nos dados da CETEC, 2021.
A diminuição da cobertura do programa Vence, no período, expõe a sua insuficiência como política pública, dado que o estado de São Paulo abrange 645 municípios e sua execução não teve o propósito de se generalizar para mais municípios.
No gráfico 1 constam dados de 2012 a 2020, não incluso o ano de 2021, posto que os dados deste ano ainda não estavam disponíveis para consulta no banco de dados da Cetec durante a elaboração deste texto16.
Contudo, conforme material do “Vestibulinho 2021”, sabe-se que não haverá mais oferta de vagas pelo Programa Vence no CPS, assim como aconteceu em anos anteriores, com a finalização da oferta integrada no IFSP e para a modalidade concomitante. O gráfico permite visualizar que, com a implementação do Programa Novotec, há uma redução de cidades atendidas pelo Programa Vence, e também há substancial aumento na quantidade de cidades que passam a ser atendidas pelo Programa Novotec.
A figura a seguir indica com maior clareza a abrangência de ambos os programas:
16 Todos os dados foram extraídos de: CENTRO PAULA SOUZA. Cetec. Mapeamento de Totais de alunos. Disponível em: < http://www.cpscetec.com.br/bdcetec/index.php?page=relTurmas >. Acesso em 07 de março de 2021.
Figura 1: Representação das cidades atendidas pelos programas Vence e Mtec/MQtec/Novotec no Estado de São Paulo, em parceria com o CPS, 2012-2020
Fonte: Elaboração própria com base nos dados da CETEC, 2021.
Conforme se observa na figura, a maioria das cidades atendidas pelo Programa Vence, realizado em parceria com o CPS, passou a contar também com o Novotec. Além disso, outras cidades que não tinham parceria com o Programa Vence passam a ter com o Novotec.
Cabe destacar, contudo, que em relação ao Programa Vence, a modalidade integrada, ofertada em parceria com o IFSP, e a modalidade concomitante contaram com abrangência em cidades não relacionadas neste estudo.
Refletir sobre aspectos da dimensão espacial das políticas públicas é fundamental para pensar na “geografização” da cidadania, pondo em diálogo o território e a política pública, como explicitado por Girotto e Cássio (2018). O programa Vence para educação profissional paulista tem uma abrangência residual, como visualizamos no mapa, denotando que sua implantação, por parte do Centro Paula Souza, ocorreu de modo pulverizado pelo estado de São Paulo. O que corrobora para sustentarmos a hipótese de que o programa tenha sido de caráter experimental. Os dados também revelam que a parceria entre Secretaria de Educação e CPS é mais notável no estado na cobertura do programa Novotec.
Outro aspecto relacionado ao alcance do Novotec e que merece destaque é o número de estudantes matriculados nos cursos como se verifica no gráfico 2
25000
20000
15000
10000
5000
Ano
0 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019 2020
Vence 1452 2443 3578 3618 3295 2802 2427 2404 1934
Mtec/Mqtec/Novotec 0 0 0 0 0 0 1645 5398 23496
Total de alunos
Gráfico 2: Total de alunos atendidos pelos Programa Vence e Mtec/MQtec/Novotec, 2012-2020
Fonte: Elaboração própria com base nos dados da CETEC, 2021.
O gráfico 1 em comparação ao gráfico 2 revela-nos que, no primeiro ano de oferta do Programa Mtec/MQtec/Novotec há uma expansão nas cidades atendidas, porém, o total de estudantes matriculados ainda é maior para o Programa Vence. Esse dado se altera a partir da segunda edição do programa, em 2019, e atinge patamares ainda mais elevados em 2020.
Dadas as limitações deste estudo, não será feito um aprofundamento nos cursos ofertados, mas observou-se os eixos tecnológicos que foram atendidos por ambos os programas, os quais se encontram relacionados no quadro a seguir:
Quadro 1: Eixos Tecnológicos atendidos pelos Progr. Vence e Novotec, 2012-2020
Fonte: Elaboração própria com base nos dados da CETEC, 2021.
Como se verifica no quadro, o Programa Vence em parceria com o CPS se restringiu apenas a cinco eixos tecnológicos: Gestão e Negócios; Informação e Comunicação; Controle e Processos Industriais; Ambiente e Saúde; e Produção Cultural e Design.
Desperta atenção, contudo, que estes cinco eixos tecnológicos ofertados pelo Programa Vence foram incorporados pelo Novotec, alguns com incidência, inclusive, durante o mesmo ano, o que revela uma sobreposição de programas. E em consonância com sua proposta de ampliação, o Novotec passa a contar também com outros seis eixos: Produção Industrial; Turismo, Hospitalidade e Lazer; Produção Alimentícia; Infraestrutura; Recursos Naturais; e Segurança.
Pelas breves considerações aqui feitas pode-se perceber que o Programa Novotec tem um alcance bastante amplo pelo estado de São Paulo.
Tendo como circunstância as disputas em torno do ensino médio integrado como política pública, o Estado de São Paulo mostra-se resiliente na dissociação entre ensino médio e técnico-profissional e “pioneiro” nas experimentações para a implantação da reforma do ensino médio.
Este texto buscou trazer breves contribuições acerca de aspectos similares entre o Programa Vence, recém encerrado no CPS, e o Programa Novotec, implementado mais recentemente, haja vista a inquietação provocada pela denominação atribuída aos cursos como sendo integrados, quando se observa que, na prática, não possuem a efetiva integração.
Nessa direção, cabe ressaltar que a simultaneidade dos cursos constantes no programa Vence não representa o mesmo que integração, assim como os cursos integrados do Novotec também se diferem dos cursos tradicionalmente integrados ofertados pelo CPS.
O Novotec tem sido anunciado como um programa que se volta para as “profissões do futuro”. Verifica-se que há uma abrangência de eixos compreendidos no mesmo, ainda que os números de estudantes em cada curso, ou mesmo em cada eixo não tenham sido objeto deste estudo. Contudo, tendo em vista uma formação instrumental que prepara trabalhadores para o exercício de atividades laborais
precárias e dada a natureza de oferta dos cursos, questiona-se: Não seria esta forma de oferta, supostamente integrada, apenas uma maneira de baratear o ensino ofertado à população?
Como observou-se com a análise empreendida no texto, o programa Novotec tem significativa abrangência no estado de São Paulo e é um programa que, pelo que os dados indicam, tende a aumentar sua participação. Portanto, é algo que necessita ser estudado em mais profundidade haja vista o impacto causado na vida dos estudantes e, também, à possibilidade de vir a ser este um modelo replicável a outros estados o que corrobora com a dualidade no interior das redes e coloca em risco a formação defendida pelo ensino médio integrado.
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V.20, nº 41, 2022 (jan-abr) ISSN: 1808-799 X
Sandra Regina de Oliveira Garcia2
Ceuli Mariano Jorge3 Patrícia da Silveira4
Resumo
A meta 10 do Plano Nacional de Educação – PNE 2014-2024 propõe a ampliação da oferta da EJA integrada à Educação Profissional nas etapas dos Ensinos Fundamental e Médio. A difícil tarefa para concretizar a meta é agravada pelas Novas Diretrizes Curriculares da EJA, alinhadas à BNCC, com mudanças curriculares que empobrecem e descaracterizam o currículo. Esta pesquisa considera o movimento histórico e as dimensões concretas das políticas que envolvem o objeto de estudo, com suporte em autores contemporâneos.
Palavras-chave: Educação de Jovens e Adultos; Integração; Educação Profissional.
EJA INTEGRADA A LA EDUCACIÓN PROFESIONAL: AVANCES EN PNE - RETROCESOS EN BNCC
Resumen
La Meta 10 del Plan Nacional de Educación - PNE 2014-2024 propone la ampliación de la oferta de EJA integrada a la Educación Profesional en las etapas de Enseñanza Básica y Media. La difícil tarea para lograr la meta se ve agravada por los Nuevos Lineamientos Curriculares de EJA, en línea con la BNCC, con cambios curriculares que empobrecen y descaracterizan el currículo. Esta investigación considera el movimiento histórico y las dimensiones concretas de las políticas que involucran el objeto de estudio, apoyado por autores contemporáneos.
Palabras clave: Educación de Jóvenes y Adultos, Integración; Educación professional.
1Artigo recebido em 25/08/2021. Primeira Avaliação em 09/01/2022. Segunda Avaliação em 20/01/2022. Aprovado em 07/02/2022. Publicado em 28/03/2022.
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v20i41.51327.
2 Doutora em Educação pela Universidade Federal do Paraná – UFPR. Professora Associada do Departamento de Educação da Universidade Estadual de Londrina – UEL / Paraná - Brasil. Coordenadora do Observatório do Ensino Médio UEL Paraná / Brasil. E-mail: sandragarcia@uel.br. Lattes: http:lattes.cnpq.br/6579411911362915. ORCID: http://orcid.org/0000-0002-6684-181X.
3 Doutora em Educação pela Universidade Federal do Paraná – UFPR / Paraná - Brasil. Professora da Rede Pública Estadual do Paraná. E-mail: ceulimariano@gmail.com. Lattes: http:/cnpq.br/2728531475883155. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7102-6839.
4 Doutoranda em Educação pela Universidade Estadual de Londrina –UEL / Paraná - Brasil. Professora do Instituto Federal do Paraná - Brasil, Campus avançado de Arapongas - IFPR.
E-mail: patricia.silveira@ifpr.edu.br. Lattes: http://lattes.cnpq.br/40374705571548058. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9017-6848.
EJA INTEGRATED TO PROFESSIONAL EDUCATION: ADVANCES IN PNE - SETBACKS IN BNCC
Abstract
Goal 10 of the National Education Plan – PNE 2014-2024 proposes the expanding of the offer of EJA integrated to Professional Education in the Elementary and High School stages. The difficult task to achieve the goal is aggravated by EJA's New Curriculum Guidelines, in line with the BNCC, with curricular changes that impoverish and mischaracterize the EJA´s Curriculum. This research considers the historical movement and the concrete dimensions of the policies that involve the object of study, supported by contemporary authors.
Keywords: Youth and Adult Education; Integration; Professional education.
O Plano Nacional de Educação - PNE (Lei nº 13.005/2014), aprovado em 2014, constitui-se um conjunto de 20 metas e suas respectivas estratégias que têm como objetivo o planejamento da educação brasileira por dez anos, superando, portanto, o período de uma gestão de governo. Estas metas são agrupadas a partir da temática que abordam: universalização da educação e da ampliação de oportunidades educacionais (1, 2, 3, 5, 6, 7, 9, 10 e 11); equidade e diversidade, com ênfase em um sistema educacional inclusivo e o acesso à educação (4 e 8); valorização dos profissionais de educação (15 a 18); educação superior (12 a 14); financiamento da educação (19 e 20). Dentre elas, destaca-se a meta 20, mais especificamente, a estratégia 20.11 que estabelece a criação da “Lei de Responsabilidade Educacional”, no período de um ano, após a aprovação do PNE.
Todavia, apesar de ser uma importante estratégia de controle social, que contribuirá para a efetivação do PNE, o projeto de Lei de Responsabilidade Educacional (PL nº 7420/2006) só foi aprovado pela comissão especial da Câmara de Deputados e encaminhado ao Plenário em meados de 2017, não contando, ainda, com um indicador principal que permita acompanhar adequadamente seu cumprimento e suas estratégias.
Se a aprovação da Lei de Responsabilidade Educacional, que dispõe sobre a qualidade da Educação Básica, prevista no Plano Nacional de Educação e a responsabilidade dos gestores públicos na sua promoção caminham a passos lentos no âmbito político, faz-se necessário utilizar outros mecanismos de controle do PNE, como, por exemplo, o incentivo e a divulgação de pesquisas sobre ele, o cumprimento de suas metas e a eficácia de suas estratégias.
Elegemos como foco de discussão neste trabalho a meta 10, que propõe a ampliação da oferta da Educação de Jovens e Adultos (EJA) integrada à Educação Profissional nas etapas dos Ensinos Fundamental e Médio.
O número de matrículas da EJA no Ensino Fundamental e Médio, entre 2007 e 2019, mostra um decréscimo, principalmente no Ensino Fundamental, conforme dados do Censo Escolar relativos ao período. Tal fato distancia a oferta dessa modalidade da demanda existente, como demonstra a PNAD contínua IBGE (2018) referente à população de 15 a 29 anos, mais de 11 milhões de pessoas, que não trabalhavam, estudavam ou se qualificavam para o mundo de trabalho. Além disso, as matrículas da EJA integrada à Educação Profissional (PROEJA), embora tenham apresentado crescimento no período avaliado, mostram-se ainda incipientes diante das necessidades de atendimento do público da EJA e das metas estabelecidas pelo PNE 2014. Diante disso, o cumprimento dos 25% de oferta de matrículas na EJA integrada à Educação Profissional, como prevê a meta 10 do PNE, torna-se um grande desafio.
Essa situação se agrava com a aprovação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) pela Resolução CNE/CP nº 2/2017, documento de caráter normativo que define as aprendizagens essenciais das etapas e modalidades de ensino da Educação Básica, e Lei nº 13.415/2017 que trata da reforma do Ensino Médio. Estas legislações apresentam-se de forma homogeneizante e ignoram a realidade educacional do país e as necessidades diferenciadas dos diversos públicos a serem atendidos, dentre eles, os trabalhadores jovens e adultos. Entretanto, sob a égide de tais documentos, foram elaboradas as novas Diretrizes Curriculares da EJA, instituídas em maio de 2021, numa perspectiva que descaracteriza e empobrece o currículo da EJA, além de limitar as possibilidades de participação dos trabalhadores por desconsiderar suas necessidades diferenciadas de atendimento para conciliar estudo e trabalho.
Conforme o cenário descrito, faz-se necessária a discussão sobre os desafios e possibilidades de execução, monitoramento e avaliação referentes à meta 10, assim como suas estratégias, trazendo à baila os caminhos já percorridos, as concepções norteadoras desse caminhar e as tendências para os próximos anos de vigência do PNE, diante das mudanças educacionais em curso.
Este trabalho pautou-se no método dialético, com suporte em autores críticos contemporâneos, com vistas a orientar o processo de investigação e análise qualitativa, considerando o movimento histórico e as dimensões teóricas e concretas das políticas que envolvem o objeto de estudo.
Como fonte dos dados, que compõem as cinco tabelas apresentadas no texto, foram empregadas as informações do Censo Escolar disponibilizadas nas Sinopses Estatísticas da Educação Básica do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE).
Além disso, buscou-se, nos documentos oficiais representados por Leis, Decretos e Portarias, a compreensão das políticas nacionais vigentes para EJA, com foco no PNE, Meta 10 e suas 11 estratégias. Para efeito desta análise, as 11 estratégias foram agrupadas em cinco blocos, quer sejam: expansão da oferta, currículo, atendimento às pessoas com deficiência, questões de infraestrutura e permanência dos estudantes.
O recorte temporal da pesquisa compreende os anos de 2007 a 2019, período que sinaliza a implantação efetiva da EJA integrada à Educação Profissional e o movimento da atual reforma do ensino (BNCC e Lei nº 13.415/2017), marcado por novas legislações e implantação de novos currículos escolares.
Ao buscar a compreensão do PROEJA enquanto política de formação e elevação da escolaridade dos trabalhadores jovens e adultos, assim como, o lugar que lhe é destinado nos documentos que vislumbram assegurar direitos aos sujeitos adultos, é necessário considerar as lógicas históricas, políticas e conceituais que estruturam a formação dos trabalhadores. Tal compreensão, remete aos fatos que historicamente relacionaram a formação de trabalhadores à formação de mão de obra para o mercado de trabalho, a partir de uma educação entendida como investimento em capital humano, que habilita as pessoas para competir pelos empregos disponíveis
(SAVIANI, 2008). A concepção estreita de relação com a empregabilidade, iniciada no período da industrialização, nos anos 1930, perdura até os dias atuais sob a égide do poder econômico.
Na contramão dessa tendência, a criação do PROEJA, pelo Decreto nº 5.478/2005, trouxe a possibilidade de uma educação emancipatória, crítica e de qualidade aos trabalhadores jovens e adultos, por meio de um currículo integrado que atendesse à formação para o trabalho sem perder de vista o direito constitucional ao conhecimento sistematizado, que deveria ser assegurado a todos cidadãos brasileiros. O PROEJA encontra respaldo nos principais documentos legais como a Constituição Brasileira de 1988 e Lei das Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei nº 9394/1996, está também alicerçado como oferta obrigatória nos Institutos Federais de Educação (Lei nº 11.892/2008), fatos que não salvaguardaram a sua oferta, uma vez que se encontra fragilizado e em vias de desaparecer. Situação que decorre do retrocesso educativo instalado desde 2016 com a retomada de uma concepção neoliberal e mercantilista da educação. O entendimento desse contexto, a partir de Gramsci (1994), indica a necessidade de desvelar essa realidade e mostrar as desigualdades históricas de construção de hegemonia na qual se utilizam discursos teóricos e poderes arbitrários que criam e excluem leis, impossibilitando aos sujeitos a participação social e política, e os colocando em situação de subalternidade.
A meta 10 do PNE propõe: “Oferecer, no mínimo 25% (vinte e cinco por cento) das matrículas de Educação de Jovens e Adultos, nos ensinos Fundamental e Médio, na forma integrada à Educação Profissional” (BRASIL, 2014).
Isso significa que deveria ocorrer um grande investimento financeiro e humano para que esta meta fosse alcançada, pois a realidade da oferta da integração na modalidade da Educação de Jovens e Adultos pública, apesar de alguns esforços para a sua efetivação, ainda está muito aquém do necessário.
Em 2005, pelo Decreto n° 5.478/2005, o governo instituiu o Programa de Integração da Educação Profissional ao Ensino Médio na Modalidade Educação de Jovens e Adultos (PROEJA), com o objetivo de atender à demanda de EJA por meio da oferta de Educação Profissional técnica de nível médio.
Para isso, foram investidos, em 2006, R$ 16.287.203,18, chegando ao montante de R$ 38.438.262,19 em 2010 (MACHADO; RODRIGUES, 2013). Tais
recursos foram destinados a subsidiar a infraestrutura e logística dos cursos ofertados,
assim como, financiar a pesquisa e a formação continuada dos profissionais atuantes neste segmento. Entretanto, apesar do investimento realizado pelo governo, o PROEJA não atingiu números expressivos e, ainda hoje, apresenta problemas acerca do cumprimento de sua oferta.
Segundo Machado e Rodrigues (2013), o PROEJA “não se materializou na realidade política e pedagógica das instituições que o implantaram ou que deveriam tê-lo implantado” (p.380). O que se observou foram ações pontuais de oferta nas redes federal, estadual ou municipal. As autoras pontuam que a dificuldade de implementação do programa já havia sido anunciada no documento base do PROEJA, criado para orientar sua implantação, posto que eram necessários a efetiva participação social e o engajamento dos diferentes atores.
Desafios políticos e pedagógicos estão postos e o sucesso dos arranjos possíveis só materializar-se-á e alcançará legitimidade a partir da franca participação social e envolvimento das diferentes esferas e níveis de governo em um projeto que busque não apenas a inclusão nessa sociedade desigual, mas a construção de uma nova sociedade fundada na igualdade política, econômica e social; em um projeto de nação que vise uma escola vinculada ao mundo do trabalho numa perspectiva radicalmente democrática e de justiça social. (BRASIL, 2007b, p.08).
Na contramão do PROEJA, foi criado em 2011 o Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (PRONATEC) – Lei nº 12.513/2011. Como o próprio nome sugere, o programa objetiva ofertar cursos técnicos distribuídos em doze eixos tecnológicos diferentes: 1- ambiente, saúde e segurança; 2- desenvolvimento educacional e social; 3- controle e processos industriais; 4- gestão e negócios; 5- turismo, hospitalidade e lazer; 6- informação e comunicação; 7- infraestrutura; 8- produção alimentícia; 9- produção cultural e design; 10- produção industrial, 11- recursos naturais e 12- segurança.
carga horária entre 160 a 240 horas. São 646 opções de cursos presentes no Guia
Dentre as características discrepantes entre o PROEJA e o PRONATEC, podemos citar a carga horária e a concepção de sujeito que se pretende formar. O primeiro pode ser ofertado na forma integrada ao ensino médio (EJA e Educação Profissional), com carga horária de 2.400 horas, ou na forma de qualificação profissional - FIC (formação inicial e continuada), com carga horária de 1.400 horas, divididas em 1.200 horas para EJA Ensino Fundamental e 200 horas para qualificação profissional, O segundo, oferta somente cursos de qualificação profissional – FIC, com
PRONATEC, dos quais, 607 com requisito mínimo para Ensino Fundamental, ou seja, mais de noventa por cento deles são destinados aos trabalhadores com baixa formação, reforçando o dualismo educacional.
Isto posto, é importante ressaltar que, no tocante à legislação referente à EJA integrada à Educação Profissional, recomendada nos últimos anos (Decreto nº 5478/05; Decreto nº 5840/06; Documento Base, 2007; Lei nº 11.892/2008;), a Meta 10, proposta no PNE, integra-se ao conjunto de tentativas de concretizar essa oferta e garantir o cumprimento da Lei.
Assim, para alcançar a meta 10 são apresentadas 11 estratégias, as quais veremos na sequência deste texto, reorganizadas em cinco blocos. O primeiro trata da expansão da oferta, o segundo de estratégias referentes ao currículo, o terceiro do atendimento às pessoas com deficiência, o quarto trata das questões de infraestrutura e o quinto traz à tona um dos principais problemas educacionais, a questão da permanência dos estudantes. A intenção com este reagrupamento das estratégias foi deixar mais claros o alcance e a suficiência da meta.
10.1- manter o programa nacional de Educação de Jovens e Adultos voltado à conclusão do Ensino Fundamental e à formação profissional inicial, de forma a estimular a conclusão da Educação Básica;
10.2- expandir as matrículas na Educação de Jovens e Adultos de modo a articular a formação inicial e continuada de trabalhadores com a Educação Profissional, objetivando a elevação do nível de escolaridade do trabalhador e da trabalhadora;
10.10- orientar a expansão da oferta da EJA, articulada à Educação Profissional, de modo a atender as pessoas privadas de liberdade nos estabelecimentos penais, assegurando-se formação específica dos professores e das professoras e implementação de diretrizes nacionais em regime de colaboração.
Mesmo considerando o esforço empenhado no cumprimento da meta 10, a partir dos Programas Brasil Alfabetizado e PRONATEC, identificamos resultados pouco expressivos no que se refere à ampliação do número de matrículas. Diante disso, é necessária uma reflexão acerca dos dois programas em relação ao sujeito da EJA que se busca atender, uma vez que, de acordo com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB – Lei nº 9.394/96), é assegurado a este público o direito
ao acesso à formação básica e a um ensino, a partir de “oportunidades educacionais apropriadas, consideradas as características do aluno, seus interesses, condições de vida, mediante cursos e exames” (art.37, §1º).
Destaca-se que os dois programas mencionados têm em comum o caráter assistencial e compensatório, ao invés de possibilitarem uma formação integral aos trabalhadores, ampliando o conjunto de ações e programas que vão postergando as discussões acerca das necessidades da EJA.
O Programa Brasil Alfabetizado foi criado pelo Ministério de Educação em 2003 pelo Decreto nº 4.834/2003, substituído pelo Decreto nº 5.475/2005 e reorganizado pelo Decreto nº 6.093/2007. Tem como objetivo proporcionar aos jovens e adultos que não tiveram acesso à escola, a oportunidade de aprender a ler e escrever, reduzindo as taxas de analfabetismo na população de 15 anos ou mais. Os alfabetizadores são professores com experiência em alfabetização ou membros voluntários da comunidade, que atuam em turmas de 7 a 25 alunos e carga horária de 10 horas semanais. Os cursos duram oito meses e totalizam 320 horas -aula.
Apesar de ser uma tentativa do governo de amenizar os impactos da desigualdade de ensino, no que tange às camadas mais pobres, possibilitando ao sujeito a continuidade de seus estudos na EJA (TUFANI, 2016), configura uma formação rasa e aligeirada. Tanto a reduzida carga horária destinada ao processo de alfabetização, quanto a desvalorização do magistério diante da oferta de formação de alfabetizadores “a toque de caixa” para atender ao programa e a vinculação dele ao PRONATEC, demonstram ser obstáculos a uma educação emancipatória, o que reforça a dualidade do ensino e a manutenção dos sujeitos em seus papéis no proletariado.
Na mesma perspectiva, cursos de qualificação profissional de 160 a 240 horas do PRONATEC apresentam-se desvinculados de escolarização e voltados a atender ao imediatismo capitalista (GARCIA, 2015) (MACHADO; RODRIGUES, 2013) (MOURA; LIMA FILHO; SILVA, 2012) (RUMMERT; CIAVATTA, 2010).
De acordo com o perfil do PRONATEC, além de possibilitar a destinação de recursos públicos a iniciativas privadas como o Sistema S e a parceria entre instituições públicas e privadas, no que diz respeito aos cursos concomitantes, o programa oferta cursos profissionalizantes de formação inicial e continuada (FIC). Cabe aqui, entretanto, alertar para o fato de que qualquer formação integradora,
alinhada aos interesses do capitalismo vigente, é a negação de todo um histórico de lutas em prol de uma educação unitária que favoreça a democracia e a justiça social, principalmente no que se refere à educação voltada aos jovens e adultos.
Neste sentido, tanto o programa Brasil Alfabetizado, quanto o PRONATEC podem ser observados a partir de sua abrangência numérica para atender ao mercado de trabalho, sem, todavia, preocupar-se com uma formação omnilateral do sujeito, sendo esta, essencial para a redução das desigualdades existentes. O primeiro propicia ao sujeito a competência mínima para leitura e escrita, enquanto que o segundo capacita profissionalmente em cursos compactos que o introduzirão no mercado de trabalho como mão de obra barata, a partir de uma formação aligeirada e conivente com a ordem societária capitalista.
Os 25% destinados à oferta de matrículas na EJA integrada à Educação Profissional, como consta na meta 10, podem significar o alcance de uma parcela expressiva dos trabalhadores que não tiveram acesso à escola na idade definida como adequada. Além disso, significam um importante avanço na perspectiva de superar a oferta do PROEJA como programa, passando-o à condição de política pública.
A Tabela 1 demonstra o grande desafio em relação ao atendimento da população brasileira que tem direito à educação, e que, por razões mais diversas, ainda não teve este direito garantido.
Tabela 1 – Nível de instrução considerando os ensinos fundamental e médio
Faixa etária | Sem instrução e fundamental incompleto | Fundamental completo e médio incompleto | Total |
15-17 | 4.427.496 | 5.159.151 | 9.586.647 |
18-24 | 6.149.543 | 6.147.813 | 12.297.356 |
25-29 | 4.821.684 | 3.161.596 | 7.983.280 |
30-35 | 6.936.738 | 3.125.243 | 10.098.161 |
36-49 | 16.814.443 | 5.717.044 | 22.531.487 |
50-65 | 15.732.818 | 3.208.825 | 18.941.643 |
> 65 anos | 10.160.423 | 991.544 | 11.151.967 |
Total | 65.043.145 | 27.511.216 | 92.554.361 |
Fonte: IBGE, 2010
EJA Ensino Fundamental e Médio entre 2007 e 2019. Da mesma forma, a EJA
Apesar do grande contingente de pessoas que não concluíram a Educação Básica (Tabela 1), observa-se na tabela 2 um declínio gradativo nas matrículas da
integrada à Educação Profissional - Ensino Fundamental e Médio apresentou número baixo de matrículas em 2007, com crescimento até 2011 e declínio, com oscilações, até 2019 (Tabela 2). Dados que se distanciam, portanto, das metas estabelecidas para essa modalidade no PNE 2014.
Tabela 2 - Matrículas na Educação de Jovens e Adultos por Etapa de Ensino
ANO | TOTAL | Ensino Fundamental | Ensino Fundamental integrado à Educação Profissional | Ensino Médio | Ensino Médio integrado à Educação Profissional |
2007 | 5.044.585 | 3.415.188 | - | 1.619.418 | 9.979 |
2008 | 5.010.153 | 3.338.349 | 5.174 | 1.651.459 | 15.171 |
2009 | 4.724.406 | 3.133.959 | 3.628 | 1.567.286 | 19.533 |
2010 | 4.378.748 | 2.898.206 | 14.997 | 1.427.381 | 38.164 |
2011 | 4.149.651 | 2.717.960 | 25.147 | 1.364.568 | 41.976 |
2012 | 4.017.341 | 2.615.710 | 19.423 | 1.346.215 | 35.993 |
2013 | 3.892.80 9 | 2.504.890 | 21.333 | 1.325.317 | 41.269 |
2014 | 3.706.254 | 2.344.484 | 9.849 | 1.309.046 | 42.875 |
2015 | 3.571.259 | 2.182.611 | 40.330 | 1.309.258 | 39.060 |
2016 | 3.555.201 | 2.105.535 | 38.525 | 1.376.639 | 34.502 |
2017 | 3.671.689 | 2.172.904 | 30.207 | 1.425.812 | 42.766 |
2018 | 3.614.852 | 2.108.155 | 26.689 | 1.437.833 | 42.175 |
2019 | 3.350.193 | 1.937.583 | 34.932 | 1.336.085 | 41.593 |
Fonte: INEP – Sinopses Estatísticas da Educação Básica 2020.
De acordo com o Censo Escolar (INEP, 2019), foram divulgadas apenas duas categorias de análise em relação ao número de matrículas da Educação Profissional. Uma referente ao número total de matrículas nesta modalidade, incluindo curso técnico concomitante e subsequente, integrado ao Ensino Médio regular, normal/magistério, integrado à EJA de níveis fundamental e médio, Projovem Urbano e FIC fundamental, médio e concomitante, e outra, referente à Educação Profissional técnica de nível médio, incluindo curso técnico concomitante e subsequente, integrado ao Ensino Médio regular, normal/magistério e integrado à EJA de nível médio.
Os números apresentados na tabela 3 contemplam a somatória das matrículas em cada ano no Brasil, nas cinco regiões e nos seguintes cursos: Curso Técnico (Ensino Médio) Integrado à EJA, Curso FIC Integrado na Modalidade EJA (Ensino
Fundamental), Curso FIC Integrado na Modalidade EJA (Ensino Médio) e Curso FIC Concomitante, conforme as Sinopses Estatísticas da Educação Básica.
O número de matrículas nas diferentes regiões brasileiras obedeceu praticamente à mesma sequência, ou seja, crescimento contínuo entre 2008 e 2012, seguido de diminuição gradativa e oscilações até 2019. Registra-se, porém, um diferencial em relação ao maior número de matrículas dessa modalidade na região nordeste. Embora os números tenham oscilado durante o período avaliado, mantiveram-se significativos até 2019. No entanto, o panorama geral de matrículas na EJA integrada à Educação Profissional mostra que o atendimento está longe da perspectiva dos 25% das matrículas da EJA, conforme previsto na Meta 10 do PNE (Tabela 3).
Portanto, de acordo com os dados apresentados e considerando a Meta 10, é possível verificar que não ocorreram mudanças significativas nas matrículas que pudessem indicar aproximação em direção à referida meta. (Tabela 3).
Tabela 3 – Número de matrículas na EJA integrada à Educação Profissional
Locais | Anos | ||||||||||||
200 7 | 2008 | 2009 | 2010 | 2011 | 2012 | 2013 | 2014 | 2015 | 2016 | 2017 | 2018 | 2019 | |
Brasil | 997 9 | 2034 5 | 2316 1 | 5316 1 | 6712 3 | 7604 6 | 6560 2 | 5272 4 | 7939 0 | 7302 7 | 7297 3 | 6886 4 | 7652 5 |
Norte | 121 5 | 1334 | 2881 | 3916 | 4893 | 6595 | 6976 | 5670 | 1029 8 | 8586 | 5325 | 6530 | 4712 |
Nordest e | 335 8 | 1017 4 | 9419 | 1859 2 | 3200 9 | 3451 4 | 4264 0 | 3473 5 | 4141 9 | 3804 2 | 4317 9 | 3791 6 | 4172 5 |
Sudeste | 331 5 | 4385 | 5997 | 2229 1 | 2162 7 | 8004 | 6988 | 7854 | 1575 3 | 1107 5 | 1014 7 | 1068 1 | 1145 8 |
Sul | 178 5 | 3720 | 3449 | 6346 | 6086 | 4070 | 3791 | 2681 | 8431 | 1128 1 | 9856 | 1015 4 | 1385 7 |
Centro- Oeste | 306 | 732 | 1415 | 2016 | 2508 | 2233 | 2207 | 1784 | 3489 | 4043 | 4466 | 3583 | 4773 |
Fonte: INEP – Sinopses Estatísticas da Educação Básica 2020.
A dinâmica das matrículas em todo o país mostrou pouca adesão inicial, seguida de recuo em todas as regiões do país em cada ano. Estes dados reforçam a discussão acerca da forma de oferta desta modalidade e a contradição entre a luta pelo direito à educação emancipatória, que promova transformação social, como pretendido no PROEJA, e a oferta de uma formação aligeirada e rasa, via Brasil Alfabetizado e PRONATEC. Vale lembrar que estas duas últimas se constituem a partir de cursos compactos e rápidos, induzindo o estudante da EJA a optar por um
caminho mais curto, de eficiência duvidosa na busca pela ilusória qualificação para o mercado de trabalho.
Percebe-se que, apesar da justificativa de que o estudante poderá dar continuidade aos seus estudos após concluir o curso de alfabetização, se assim o desejar, e que poderá qualificar-se para o trabalho, há um interesse velado em assegurar a manutenção de uma classe trabalhadora cada vez mais destituída de direitos e longe de diminuir as desigualdades sociais entre os sujeitos. Isso porque os dois programas ofertam o mínimo necessário de uma educação escolar de inclusão excludente, a qual não corresponde “aos necessários padrões de qualidade que permitam a formação de identidades autônomas intelectual e eticamente, capazes de responder e superar as demandas do capitalismo” (KUENZER, 2009, p.15).
Machado (2016) adverte sobre a necessidade de retomarmos a discussão acerca da escola que queremos para os jovens e adultos trabalhadores, enquanto concepções e formação em disputa, pois há
uma perda do sentido da escola como um espaço de aprender e ensinar, de acessar e produzir conhecimento, de aguçar o potencial do pensamento crítico e reflexivo. Para todas as gerações isto é um grande prejuízo, mas para jovens e adultos trabalhadores resulta na inviabilidade de seu retorno ao processo de escolarização, pois se perde o sentido da luta pelo acesso à escola, já que esta não consegue cumprir seu principal papel, que é o de produzir e lidar com o conhecimento transformador da realidade de desigualdades sociais numa perspectiva emancipatória dos trabalhadores. (MACHADO, 2016 p. 432).
Tal discussão se faz urgente uma vez que, diante da demanda de jovens e adultos apresentada neste estudo, os índices de matrículas da EJA no Ensino Fundamental integrada à Educação Profissional mostram baixo percentual, desde sua oferta inicial em 2008 com 0,2% (em 2007 não constam matrículas nessa modalidade), subiu em 2015 para 3,1%, e caiu bruscamente em 2017 para 0,5%. O dado mais recente, em 2019, apresentou o percentual de 0,6% (Tabela 4), o que em números absolutos representa 34.932 matrículas (Tabela 2).
Os percentuais que constam na tabela 4 decorrem da somatória das matrículas dos Cursos FIC Integrado na Modalidade EJA - Ensino Fundamental e Curso FIC Concomitante, os quais evidenciam uma grande distância do que foi aprovado em 2014 pelo PNE. O crescimento contínuo das matrículas no Brasil ocorreu apenas no intervalo de 2009 a 2012, tendo entrado em declínio de 2013 até 2019. O baixo
percentual de matrículas foi observado em quase todas as regiões brasileiras, com destaque para a região Nordeste que apresentou os melhores percentuais, sendo o seu ápice em 2016 com 4,7%, seguido de oscilações e queda acentuada até 2019 com 1,0% (Tabela 4).
Tabela 4 - Porcentagem de matrículas de EJA Fundamental integrada à Educação profissional
Localidade | 2007 | 2008 | 2009 | 2010 | 2011 | 2012 | 2013 | 2014 | 2015 | 2016 | 2017 | 2018 | 2019 |
Brasil | 0 | 0,2 | 0,2 | 0,5 | 0,9 | 2,8 | 2,6 | 2,5 | 3,1 | 2,9 | 0,5 | 0,3 | 0,6 |
Norte | 0 | 0,1 | 0,2 | 0,2 | 0,4 | 3,4 | 2,8 | 2,3 | 3,6 | 2,6 | 0,3 | 0,3 | 0,1 |
Nordeste | 0 | 3,0 | 0,2 | 0,5 | 1,4 | 3,5 | 3,7 | 3,7 | 4,4 | 4,7 | 0,9 | 0,4 | 1,0 |
Sudeste | 0 | 0,1 | 0,1 | 0,2 | 0,4 | 1,8 | 1,3 | 1,1 | 1,2 | 1 | 0,3 | 0,1 | 0,3 |
Sul | 0 | 0,2 | 0,2 | 0,6 | 1 | 1,4 | 0,6 | 0,7 | 0,7 | 0,9 | 0,1 | 0,1 | 0,3 |
0 | 0,1 | 0,1 | 0,1 | 0,3 | 2,3 | 1,8 | 2,4 | 3 | 2,1 | 0,2 | 0,1 | 0,3 |
Fonte: INEP – Sinopses Estatísticas da Educação Básica (cálculo dos percentuais) 2020.
A porcentagem de matrículas de EJA no Ensino Médio integrado à Educação Profissional (Tabela 5) mostra uma série histórica iniciada em 2007 com 0,6% do total de matrículas de EJA, o que corresponde, em números absolutos, a 9.979. O crescimento contínuo no Brasil, nesta etapa de ensino, foi observado somente no intervalo de 2007 a 2011, com oscilações a partir de 2012 (Tabela 5).
Em 2019, observa-se o percentual de 3,1%, que representa 41.593 matrículas, bem distante, portanto, dos 25% estabelecidos pela meta 10 do PNE. Destaca-se a região Nordeste com os maiores percentuais de matrículas, atingindo 8,5% em 2017, caindo para 7,9% em 2019. Os percentuais apresentados na tabela 5 foram calculados a partir da somatória das matrículas do Curso Técnico Ensino Médio Integrado à EJA e Curso FIC Ensino Médio Integrado na Modalidade EJA, por ano ofertado, e, nas cinco regiões brasileiras, conforme as Sinopses Estatísticas da Educação Básica – INEP.
Tabela 5 - Porcentagem de matrículas de EJA Ensino Médio, integrada à Educação profissional
Localidade | 2007 | 2008 | 2009 | 2010 | 2011 | 2012 | 2013 | 2014 | 2015 | 2016 | 2017 | 2018 | 2019 |
Brasil | 0,6 | 0,9 | 1,2 | 2,7 | 3,1 | 2,7 | 3,1 | 3,3 | 3 | 2,5 | 3 | 2,9 | 3,1 |
Norte | 0,9 | 1 | 1,6 | 2,2 | 2 | 2,9 | 2,9 | 3 | 2,4 | 2,4 | 1,8 | 2,1 | 1,9 |
Nordeste | 1 | 1,7 | 2,2 | 3,4 | 4,2 | 5,6 | 7,0 | 7,3 | 7,9 | 6,4 | 8,5 | 7,9 | 7,9 |
Sudeste | 0,4 | 0,5 | 0,7 | 2,9 | 3,2 | 1,2 | 1,2 | 1,4 | 0,7 | 0,5 | 0,5 | 0,5 | 0,6 |
Sul | 0,8 | 1,5 | 1,8 | 1,9 | 2,2 | 1,9 | 1,9 | 1,5 | 1,2 | 1,0 | 1,0 | 1,0 | 1,2 |
Centro-Oeste | 0,2 | 0,6 | 0,9 | 1,3 | 1,7 | 1,6 | 1,5 | 1,5 | 1,5 | 2,5 | 2,2 | 1,9 | 2,5 |
Fonte: INEP – Sinopses Estatísticas da Educação Básica (cálculo dos percentuais) 2020.
10.3- fomentar a integração da Educação de Jovens e Adultos com a Educação Profissional, em cursos planejados, de acordo com as características do público da EJA e considerando as especificidades das populações itinerantes e do campo e das comunidades indígenas e quilombolas, inclusive na modalidade de Educação a Distância.
10.6- estimular a diversificação curricular da EJA, articulando a formação básica e preparação para o mundo do trabalho e estabelecendo a inter- relação entre teoria e prática, nos eixos da ciência, trabalho, tecnologia e da cultura e cidadania de jovens e adultos articulada à Educação Profissional.
10.7- fomentar a produção de material didático, o desenvolvimento de currículo e metodologia específica, os instrumentos de avaliação, o acesso à equipamentos e laboratórios e a formação continuada de docentes das redes públicas que atuam na Educação de Jovens e Adultos articulada a Educação Profissional.
10.11- implementar mecanismos de reconhecimento de saberes dos jovens e adultos trabalhadores, a serem considerados na articulação curricular dos cursos de formação inicial e continuada e de cursos técnicos de nível médio.
Em relação ao currículo, consideram-se algumas estratégias em andamento, como o PRONATEC (10.3), grupos de pesquisa e teses sobre as temáticas (10.6 e 10.7) e a Rede Certific (10.11).
Mais uma vez o PRONATEC aparece como estratégia para alcançar a meta 10, todavia frisa-se a contradição entre o discurso presente na estratégia 10.3 e a estrutura dos cursos do PRONATEC, uma vez que, ao mencionar que os cursos devem ser planejados de acordo com as características do público da EJA e considerando as especificidades das populações itinerantes e do campo e das comunidades indígenas e quilombolas, inclusive na modalidade de Educação a Distância, entende-se que tais cursos precisam considerar as trajetórias históricas e sociais desses sujeitos, suas culturas e seus espaços, enquanto inseridos na sociedade em que vivemos.
Assim, para além de uma qualificação profissional, espera-se uma formação emancipatória, que possibilite ao sujeito da EJA um desenvolvimento crítico de si e da sociedade na qual está inserido. Entretanto, tal perspectiva torna-se enfraquecida com a oferta de cursos aligeirados como os propostos pelos PRONATEC.
Por fim, outra estratégia apresentada referente ao currículo é a Rede Certific – Rede Nacional de Certificação Profissional -, criada em 2009, pela Portaria Interministerial nº 1.082/2009 e reorganizada pela Portaria Interministerial 05/2014.
Tem como objetivo identificar, avaliar e reconhecer conhecimentos desenvolvidos a partir de aprendizagens ao longo da vida caracterizadas como não-formais ou informais.
De acordo com Lima e Cunha (2017), em sua orientação inicial, a proposta da Rede Certific seria vincular a certificação de saberes dos trabalhadores à elevação da escolaridade, permitindo a continuidade de seus estudos. Segundo as autoras,
o intuito era que os trabalhadores com baixo grau de escolaridade, após concluírem o processo de certificação, passassem a frequentar os cursos do Programa Nacional de Integração da Educação Profissional com a Educação Básica na Modalidade de Jovens e Adultos – Formação Inicial e Continuada (PROEJA-FIC). (LIMA; CUNHA, 2017 p.220).
Todavia, em 2014, a Rede Certific passou a vincular-se ao PRONATEC, ofertando cursos de qualificação profissional, independente da escolarização dos trabalhadores, esvaecendo a concepção inicial da rede em prol de atender às exigências do mercado de trabalho.
Observa-se que as estratégias referentes ao currículo que foram disponibilizadas, se distanciam da concepção gramsciana contida no Documento Referencial do PROEJA (BRASIL, 2007) a qual resgata a questão educativa а partir do conceito de trabalho como categoria histórica e criadora. Nessa concepção, o currículo se estrutura a partir de uma formação integrada que possibilita não somente os conhecimentos científicos, mas também a reflexão crítica sobre os padrões culturais que constituem as normas de conduta de um grupo social, assim como a apropriação de referências e tendências que se manifestam em tempos e espaços históricos.
10.4- ampliar as oportunidades profissionais dos jovens e adultos com deficiência e baixo nível de escolaridade, por meio do acesso à Educação de Jovens e Adultos articulado à Educação Profissional.
10.8- fomentar a oferta pública de formação inicial e continuada para trabalhadores e trabalhadoras articulada à EJA, em regime de colaboração e com apoio de entidades privadas de formação profissional vinculadas aos sistemas sindical e de entidades sem fins lucrativos de atendimento à pessoa com deficiência, com atuação exclusiva na modalidade.
De acordo com os dados apresentados pelo PNE, o número de matrículas de alunos com deficiência e/ou necessidades especiais na EJA integrada à Educação Profissional cresceu de 95, em 2007, para 332 em 2012, todavia, atualmente, este número é de 206 alunos, representando 0,4% do total de matrículas nesta modalidade da Educação Básica integrada à Educação Profissional.
No que tange às estratégias para atendimento a essas pessoas, é apresentado novamente o PRONATEC. Como já ressaltamos anteriormente, a ênfase reside no mercado capitalista, qualificando o trabalhador para atender às suas demandas especificas, sem considerar o direito à escolarização e a apropriação dos conhecimentos, historicamente, produzidos pela/na sociedade.
10.5- implantar programa de reestruturação e aquisição de equipamentos voltados à expansão e à melhoria da rede física de escolas públicas que atuam na EJA integrada à Educação Profissional, garantindo acessibilidade à pessoa com deficiência.
Em relação às questões de infraestrutura, não há nenhum programa específico para a melhoria das condições de oferta da EJA integrada à educação profissional, a não ser a ampliação da rede federal, através dos Institutos Federais que têm, já na sua criação a responsabilidade de disponibilizar tal modalidade.
Sabemos que um dos grandes desafios para a ampliação da oferta da Educação Profissional integrada à EJA tem sido a falta de financiamento para a estruturação das escolas e cursos, visando o atendimento adequado aos estudantes. Quando falamos em estrutura escolar é importante lembrar que as escolas públicas, de uma forma geral, são deficitárias em todos os aspectos, muitas vezes a começar pelo próprio prédio escolar, com carência de espaços físicos para salas de aula, laboratórios, bibliotecas e demais espaços culturais e esportivos. As dificuldades aumentam quando se trata de recursos tecnológicos. Conforme o censo de 2017, o acesso à internet e a presença de laboratórios de informática não fazem parte da realidade da maioria das escolas em nosso país. No ensino fundamental somente 46,8% das escolas dispõem de laboratórios de informática e 65,6% têm acesso à internet. Nas escolas de ensino médio esses recursos são encontrados em mais de 60%, porém, em sua maioria nas dependências administrativas e não para acesso
dos estudantes. Com relação à acessibilidade, observa-se que apenas 53,9% das escolas municipais de ensino médio apresentam banheiros adequados ao uso de alunos com deficiência ou mobilidade reduzida, na rede estadual esse percentual chega a 59,5%, nas escolas privadas é de 67% e nas federais chega a 92,9%. Portanto, uma disparidade se considerarmos as esferas educativas.
A ampliação da oferta da educação profissional exige uma estrutura própria na escola, para além da estrutura básica, as quais são imprescindíveis à qualidade da oferta dos cursos técnicos ou de qualificação profissional, tão necessários ao público da EJA. Entretanto, o financiamento para essa finalidade não ocorreu durante o período previsto no PNE, dificultando a expansão das matrículas dessa modalidade e a manutenção dos cursos já existentes.
10.9- institucionalizar programa nacional de assistência ao estudante, compreendendo ações de assistência social, financeira e de apoio psicopedagógico que contribuam para garantir o acesso, a permanência, a aprendizagem e a conclusão com êxito da EJA articulada à Educação Profissional.
No tocante a estratégia 10.9 também não ocorreu nenhum movimento para a sua efetividade em relação a projetos e/ ou a políticas voltadas para a assistência estudantil para esta modalidade nas redes municipais e estaduais, pois apenas foi mantido o que já vinha ocorrendo em relação à assistência aos estudantes da rede federal e às ações de FIC realizadas pelo PRONATEC.
Relativamente à meta 10 e o seu conjunto de estratégias, é preciso reforçar que esta não pode estar desarticulada da meta 8, que trata especificamente da EJA e seus desafios, para assegurar o direito de todos à educação escolar em qualquer tempo da vida.
ser o eixo norteador da educação no país, no entanto, foram delegadas a segundo
Evidencia-se uma desarticulação no cumprimento das metas do PNE vinculada ao próprio modelo de organização política no Brasil “que estabelece direitos ao cidadão, porém, os direitos não exprimem toda a sociedade, mas a classe dirigente, que impõe a toda a sociedade normas de conduta que são mais ligadas à sua razão de ser e ao seu desenvolvimento ”. (GRAMSCI, 1977, p.773). à luz das palavras de Gramsci fica claro a perda da legitimidade do PNE. As metas estabelecidas deveriam
plano dando lugar a outras agendas que representam mais diretamente os interesses da atual hegemonia dominante, desconsiderando o processo democrático no qual foram elaboradas e menosprezando os seus atores.
A falta de acompanhamento e seriedade das políticas educacionais contribuem para que grande parte da população permaneça à margem do processo de escolarização, tornando evidente que muito ainda se tem a avançar para que a Educação Básica seja universalizada, principalmente no que tange a educação de trabalhadores adultos.
A BNCC para Educação Infantil e Ensino Fundamental, aprovada em dezembro de 2017 e a parte complementar referente ao Ensino Médio, incluída em dezembro de 2018, compõem um documento de caráter normativo que define as aprendizagens essenciais que todos os alunos devem desenvolver ao longo das etapas e modalidades da Educação Básica. Destaca-se o fato de este documento sequer mencionar a EJA em suas orientações curriculares, ignorar a diversidade do público e suas necessidades educativas, deixando uma lacuna quanto ao atendimento da educação dos sujeitos que não puderam estudar na idade própria. Instaura-se em todos os Estados Brasileiros um processo mercantilizado que homogeneíza o ensino e favorece a oferta de forma aligeirada pelo setor privado.
Importante destacar que a elaboração da BNCC se deu em meio a conflitos e pouca discussão, envolvendo a sociedade como um todo, principalmente a comunidade escolar. A forma de participação se deu em audiências públicas nas cinco regiões do país, impossibilitando uma participação mais expressiva da população. Além disso, ocorreu por meio de ferramentas digitais, o que não proporcionou um diálogo efetivo com os professores e as famílias.
Numa leitura atenta das quatro versões elaboradas até a finalização do documento da BNCC, observa-se a ausência da EJA. Na segunda versão, “houve algum esforço para incluir a EJA no texto curricular, entretanto a solução encontrada foi bastante artificial. Onde antes se liam crianças e adolescentes, passou a figurar crianças, adolescentes, jovens e adultos (CATELLI JUNIOR, 2019, p. 1). Este autor
aponta a homogeneidade do currículo e o fato de desconsiderar as singularidades da EJA, sendo retirado de vez na terceira e quarta versão.
A abordagem da BNCC é explicitamente voltada aos jovens e ao protagonismo juvenil, na perspectiva de uma educação voltada especificamente ao público juvenil, principalmente para aqueles que não precisam trabalhar durante o processo de escolarização, e ignora a realidade brasileira. Grande parte dos estudantes do Ensino Médio já está inserida no mundo do trabalho, sendo que muitos são obrigados a deixar as classes regulares por não conseguirem conciliar estudo e trabalho. Portanto, da forma como estão apresentadas na BNCC, as aprendizagens a serem oferecidas a jovens e adultos são as mesmas das crianças e adolescentes que frequentam a Educação Básica, desconsiderando as especificidades da modalidade EJA, suas necessárias relações com a formação profissional e, tampouco, o aproveitamento dos conhecimentos adquiridos por esse grande contingente de brasileiros que ficaram à margem da escolarização.
Repetindo-se a mesma forma arbitrária, aligeirada e sem transparência que marcou a elaboração da BNCC, foram instituídas as Diretrizes Curriculares para a Educação de Jovens e Adultos, conforme Parecer CNE/CEB nº 06/2020 e Resolução nº 01/2021 de 25 de maio de 2021. As novas Diretrizes têm a finalidade de adequar as Diretrizes Nacionais da EJA aos preceitos da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e outras legislações e normas que amparam o processo de reforma ou contrarreforma da educação atual.
Importante destacar que esse documento foi elaborado sem a participação efetiva dos sujeitos que atuam na EJA ou estão a ela relacionados, contrariando os princípios da formação para a cidadania e para o trabalho em perspectiva democrática. As novas Diretrizes apontam o objetivo de assegurar a melhoria de vida e emprego para o público dessa modalidade, desconsiderando, porém, suas especificidades e finalidades próprias ao impor a mesma visão de homogeneidade da BNCC, que não reconhece a diversidade dos estudantes.
Os sujeitos da EJA são tratados, neste documento, de forma reducionista e simplista, exaltando-se a necessidade de inserção no mercado de trabalho e desvalorizando-se o processo histórico de produção do conhecimento como direito. As histórias de vida do público da EJA, marcadas por descontinuidades nos percursos escolares, são relacionadas no parecer como insucesso escolar dos próprios sujeitos,
de forma a isentar o sistema escolar que exclui os estudantes das classes menos favorecidas.
A articulação da EJA integrada à Educação Profissional no Ensino Médio que de acordo com a Lei nº 13.415/2017 e Diretrizes Curriculares da Educação Profissional e Tecnológica, definidas pela Resolução nº 01/2021 está restrita ao quinto itinerário formativo, as novas Diretrizes da EJA propõem as possibilidades: concomitante - na mesma instituição de ensino ou em instituições diferentes - mediante parcerias, e integrada com matrícula única na mesma instituição. Abre também a possibilidade de aproveitamento de qualificação realizada durante o Ensino Fundamental e destaca que os itinerários formativos serão determinados pelo projeto de vida. Assim como, as demais configurações impostas pela BNCC e Lei nº 13.415/2017.
No caso do Ensino Médio, os itinerários apontados como possibilidade e escolha dos estudantes se mostram inviáveis para a modalidade EJA, uma vez que podem significar a ida para outras instituições em horários diferenciados, incompatíveis com suas realidades de trabalho, moradia e deslocamento para estudar. Os projetos de vida foram inseridos como ponto central no currículo pela BNCC e reforma do Ensino Médio, no qual os estudantes estruturam seus sonhos e os redefinem ao longo de sua trajetória, numa construção que acompanha o desenvolvimento das suas identidades, visando à sua formação nos aspectos físicos, cognitivos e socioemocionais. Isso parece não se encaixar na situação de vida dos estudantes adultos com suas identidades já desenvolvidas, projetos em andamento ou realizados e, principalmente, pelas dificuldades colocadas. Apresenta as seguintes possibilidades de organização:
EJA Combinada: que tem como base o cumprimento da carga horária mínima nas formas direta e indireta, ambas reconhecidas como presencial, em que o professor cumpre carga horária presencial na escola e fica à disposição do estudante que tem dúvidas. Este modelo já existia nos anos 1980/1990 e foi superado por distanciar os estudantes da escola e do processo contínuo de conhecimento, além de inibir momentos de socialização entre os estudantes.
EJA Direcionada: que permite a redução do atendimento das horas presenciais da carga horária diária, em até cinco aulas por semana e em até cinco componentes curriculares diferentes, com substituição por atividades remotas ou não presenciais.
EJA Multietapa: que prevê a organização de turmas multisseriadas para atender a: sujeitos do campo, de comunidades indígenas e quilombolas; sujeitos privados de liberdade; população em situação de rua; sujeitos da educação especial, entre outros. Esta possibilidade de oferta, sendo destinada a pessoas que já se encontram à margem do processo escolar, potencializa ainda mais o caráter de exclusão, por caracterizar uma forma secundarizada de oferta a ser realizada de qualquer jeito.
EJA Vinculada: ofertas em outras instituições ou locais denominadas unidades acolhedoras vinculadas a uma unidade escolar, incentivando a oferta pelo setor privado.
Conforme as várias formas apresentadas, abre-se um leque de possibilidades para cursar a EJA, o que se entende como extremamente necessário, tendo em vista que as situações de vida dos estudantes trabalhadores não são as mesmas dos estudantes que não trabalham. É preocupante, entretanto, o fato de a oferta poder ocorrer 80% na forma EaD. Isso porque experiências realizadas mostram dificuldades dos estudantes quanto ao uso da tecnologia, além da falta de estrutura necessária ao acesso, caso da realidade da maioria das redes públicas de ensino.
Pelos apontamentos aqui realizados, podemos perceber que as novas Diretrizes Curriculares da EJA trazem mudanças que, além de empobrecerem e descaracterizarem o currículo da EJA, colocam obstáculos à participação dos trabalhadores, uma vez que desconsideram seus horários de trabalho, dificuldades para deslocamento e necessidades diferenciadas de currículo. Tais fatos, somados às dificuldades já existentes na EJA, além de outras instabilidades vivenciadas no atual contexto de pandemia, representam sérios agravos à escolarização dos trabalhadores adultos e, consequentemente, um distanciamento do cumprimento da meta 10 do PNE.
A integração da Educação Profissional resulta do processo de discussão que levou à elaboração do Decreto nº 5.154/04, hoje incorporado à LDB nº. 9394/96, pela Lei nº 11.741/08, e que tinha como escopo superar os limites da perspectiva do Decreto nº 2.208/97.
A discussão que permeou a mudança na LDB teve como propósito garantir a possibilidade da formação integrada, devendo esta contemplar o direito de jovens e trabalhadores de terem acesso a uma educação integral, omnilateral. A proposta tem como princípio romper com a dimensão da formação voltada diretamente ao mercado de trabalho. O compromisso desta perspectiva é com a formação humana, que requer a apreensão dos conhecimentos científicos, tecnológicos, histórico-sociais na sua totalidade, superando a fragmentação do conhecimento.
A intenção inicial da criação do PROEJA, de acordo com o Decreto nº 5.478/2005, foi de que a Rede Federal - os antigos Centros Federais de Educação Tecnológica – CEFETs, hoje quase todos transformados em Institutos Federais de Educação Profissional e Tecnológica, fossem os ofertantes, sendo, num primeiro momento, apenas para o Ensino Médio, na modalidade da EJA. Um ano depois, para ampliar tanto tais Instituições, como o oferecimento para toda Educação Básica, foi instituído o Decreto nº 5.840/2006 que revogou o anterior, corrigindo as limitações, principalmente em relação à ampliação das Instituições que passaram a estar aptas para a oferta: redes federais, estaduais, municipais e o Sistema S.
O PROEJA nasceu como um programa, sendo obrigatória a sua oferta na rede federal e, com a mudança na legislação, como possibilidade para as outras instituições o fazerem. Apesar desse movimento, a oferta é muito reduzida, não se constituindo como política pública, mas continuando como um programa. Veio atender a uma dimensão da EJA, por meio de uma formação plena que se contrapôs ao modelo de educação profissional com formação restrita ao mercado de trabalho.
A tentativa de assegurar no PNE 2014-2024 a integração da EJA com a Educação Profissional, assinala um movimento importante, mas não suficiente para a sua concretização. Isso porque os dados mostram a pouca efetividade da meta 10 em relação à garantia do direito conquistado a partir do Decreto nº 5154/2004 e dispositivos posteriores até a aprovação do PNE.
Embora a rede federal, até 2018, tenha mostrado um pequeno aumento na oferta de cursos de EJA integrada à Educação Profissional, existe um longo caminho para garantir o cumprimento da Lei nº 11.892/2008, ainda em vigor, assim como o termo de acordo de metas e compromissos dos Institutos Federais. Nas redes estaduais, o significativo movimento inicial de matrículas não se manteve, caracterizando um acentuado decréscimo com extinção de cursos em todos os
estados da federação. Não há atualmente nenhum movimento concreto para fortalecimento da meta 10, apontando a inviabilidade da sua concretização.
Outro aspecto que podemos observar é o distanciamento das concepções iniciais de sustentação das diretrizes estabelecidas pelo PNE em 2014. Tais concepções primavam pela diminuição das diferenças sociais a partir da Educação, e buscavam o desenvolvimento integral de sujeitos para que fossem capazes de atuar em uma sociedade mais justa e democrática. Todavia evidencia-se a retomada de caminhos desastrosos que visam à permanência da hegemonia capitalista, ofertando à classe trabalhadora migalhas de uma educação fragmentada e desumana, que perpetua a subalternidade dos trabalhadores, desapropriando-os do direito à Educação de qualidade.
Observamos o retrocesso das conquistas sinalizadas pelas metas do PNE, a partir da implementação da BNCC e demais documentos dela decorrentes, ao impor uma visão mercantilista e excludente da educação, que cerceia a EJA das suas características próprias. Prevalecem os conceitos tecnicistas de educação, numa abordagem reducionista na lógica do mercado que restringe o conhecimento e potencializa a exclusão e as desigualdades. Tais fatos, embora alardeados pelo governo como avanços, na verdade, colocam restrições à escolarização dos trabalhadores e distanciam-se do atendimento às metas do PNE.
Finalizando, afirmamos a importância do aprofundamento da discussão sobre educação em nosso país, bem como, a necessidade de estreitar o controle do acompanhamento do PNE e das ações escolhidas e aplicadas enquanto estratégias, fazendo emergir a participação efetiva da sociedade civil, principalmente das escolas e universidades, a partir das vozes dos professores, alunos e pesquisadores, com o objetivo de não desconstruir um caminho conquistado e trilhado historicamente a duras penas.
BRASIL. Ministério da Educação. Câmara de Educação Básica. Resolução 01/2021. Institui Diretrizes Operacionais para a Educação de Jovens e Adultos nos aspectos relativos ao seu alinhamento à Política Nacional de Alfabetização (PNA) e à Base Nacional Comum Curricular (BNCC), e Educação de Jovens e Adultos a Distância. Brasília, 2021.
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V.20, nº 41, 2022 (jan-abr) ISSN: 1808-799 X
Élida Cristina de Oliveira2 Marcos Antônio Andrade da Costa3 Wanderley Azevedo de Brito4
Resumo
Os direitos trabalhistas são frutos de uma luta intensa da classe trabalhadora contra as péssimas condições de trabalho. Entretanto, a história recente mostra uma paulatina mitigação desses direitos, principalmente, em decorrência da reestruturação produtiva. Nesse contexto, este artigo visa analisar como a educação jurídica, especificamente o conhecimento jurídico-trabalhista, pode contribuir para a formação integrada dos sujeitos trabalhadores diante do processo de precarização de direitos trabalhistas.
Palavras-chave: educação jurídica; direitos trabalhistas; educação de jovens e adultos; formação integrada; precarização do trabalho.
LA EDUCACIÓN JURÍDICA EN EL CONTEXTO DE LA FORMACIÓN INTEGRADA DE JÓVENES Y ADULTOS ANTE LA PRECARIZACIÓN DE LOS DERECHOS LABORALES
Resumen
Los derechos laborales son el resultado de una intensa lucha de la clase trabajadora contra las pésimas condiciones de trabajo. Sin embargo, la historia reciente muestra una mitigación gradual de esos derechos debido a la reestructuración productiva. En ese contexto, este artículo pretende analizar cómo la educación jurídica, específicamente el conocimiento jurídico-laboral, puede contribuir a la formación integrada de los trabajadores ante el proceso de precarización de los derechos laborales.
Palabras clave: educación jurídica; derechos laborales; educación de jóvenes y adultos; formación integrada; precarización del trabajo.
1Artigo recebido em 27/11/2021. Primeira avaliação em 22/12/2021. Segunda avaliação em 10/01/2022. Aprovado em 27/01/2022. Publicado em 28/03/2022.
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v20i41.52365.
2 Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Educação Profissional e Tecnológica (ProfEPT) pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás – Campus Anápolis – Goiás / Brasil. Bacharel em Direito com pós-graduação em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho.
E-mail: oliveira.elidacristina@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/6292491188142339. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7693-2582.
3 Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Educação Profissional e Tecnológica (ProfEPT) pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás – Campus Anápolis – Goiás / Brasil. Professor no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Brasília.
E-mail: marcos.costa@ifb.edu.br. Lattes: http://lattes.cnpq.br/6292491188142339. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6973-5580.
4 Doutor e Mestre em Educação. Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação Profissional e Tecnológica (ProfEPT) do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás – Campus Anápolis – Goiás / Brasil. E-mail: wanderley.brito@ifg.edu.br.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/6251986801937865. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0007-2496.
LEGAL EDUCATION IN THE CONTEXT OF INTEGRATED YOUTH AND ADULT EDUCATION IN THE FACE OF THE PRECARITY OF LABOR RIGHTS
Abstract
Labor rights result from an intense struggle of the working class against terrible working conditions. However, recent history shows gradual mitigation of these rights due to the restructuring of production. In this context, this article aims to analyze how legal education, specifically labor law knowledge, can contribute to the integrated formation of workers within the framework of the precarity of labor rights.
Keywords: legal education; labor rights; youth and adult education; integrated education; precarity of labor rights.
A reestruturação produtiva, a globalização dos mercados e o avanço da revolução tecnológica forçam as empresas a tornarem-se mais competitivas. Para isso, essas organizações buscam permanentemente a redução dos custos de produção, principalmente no que diz respeito aos gastos relativos ao trabalhador. A dinâmica da relação desigual entre capital e trabalho traz profundas transformações nas condições e relações de trabalho e, portanto, redução nos direitos dos trabalhadores, podendo atingir os direitos básicos fundamentais da classe trabalhadora como salário-mínimo, irredutibilidade salarial, limitação da jornada de trabalho, repouso semanal remunerado, entre outros, que se encontram assegurados no artigo 7º da Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988).
Como exemplo disso, pode-se citar a reforma trabalhista implementada pela Lei nº 13.467/2017 e que trouxe significativas mudanças na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), mudanças essas que debilitaram o arcabouço jurídico de proteção aos trabalhadores, dificultando, inclusive, novos avanços com o enfraquecimento das entidades sindicais.
Sendo assim, o que se vê atualmente é uma afronta à dignidade humana dos trabalhadores imposta pela sistemática do capital vigente, na qual os direitos trabalhistas são cada vez mais minimizados sob o argumento de combate ao desemprego e à crise econômica.
Cabe destacar que a origem da regulamentação estatal dos direitos dos trabalhadores remonta às penúrias impostas aos operários com o advento da Revolução Industrial. Esse período é marcado por jornadas de trabalho extenuantes, inexistência de intervalos para descanso e alimentação, exploração do trabalho de mulheres e crianças, altos índices de acidentes de trabalho e salários ínfimos, ou seja, a ausência de uma legislação trabalhista culminou na exploração dos
trabalhadores que laboravam em condições precárias e viviam em situação de miserabilidade.
Por meio da luta da classe operária e com o surgimento dos sindicatos, houve o reconhecimento de direitos trabalhistas mínimos pelo Estado, propiciando condições mais dignas de trabalho (NASCIMENTO, 2012). Percebe-se que os trabalhadores, aqui entendidos como força coletiva, como classe (ANTUNES, 2018), são os protagonistas na construção e formação de seus direitos, sendo capazes de transformar o universo jurídico a fim de atender as suas demandas, pois, como lembra Magda Biavaschi, direito é luta e organização, sendo essa a fonte material das conquistas sociais5, já que o direito é construído na historicidade que permeia as relações sociais e não se encontra pronto e acabado (LYRA FILHO, 1982).
Contudo, nas condições atuais do capitalismo, as conquistas dos trabalhadores são tidas como um empecilho para a plena vigência das leis do mercado e impediriam o desenvolvimento da economia. Sob essa perspectiva, o direito dos trabalhadores deve ser supostamente flexibilizado por não atender aos interesses do capital. Contudo, esse esvaziamento atinge as garantias que possibilitam a proteção da classe trabalhadora.
Nota-se, na atual conjuntura, um avanço de fenômenos como a terceirização, a pejotização6 e a uberização7 que contribuem para o enfraquecimento e, até mesmo, extinção das garantias consagradas aos trabalhadores ao longo do tempo. Essas novas formas de trabalho, impulsionadas pelas mudanças tecnológicas, fragilizam os direitos laborais oriundos das lutas da classe operária.
No entanto, o direito não é estático, encontrando-se em constante disputa em decorrência das transformações sociais que são o resultado da luta de classes. Sendo assim, mostra-se salutar que o trabalhador compreenda a precarização imposta pelo sistema vigente e a existência de um arcabouço jurídico que deve
5 Fala da desembargadora aposentada do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região, Magda Biavaschi, na reunião pública sobre o Dia da Trabalhadora Doméstica, realizada em 27/04/2021. Disponível em: https://www.recife.pe.leg.br/comunicacao/noticias/2021/04/reuniao-publica-marca-o- dia-da-trabalhadora-domestica.
6 Pode-se entender a pejotização como a situação em que a empresa empregadora exige que o empregado constitua uma pessoa jurídica e, posteriormente, formaliza um contrato com a pessoa jurídica aberta pelo empregado com intuito de mascarar a relação de emprego e diminuir os encargos incidentes sobre esse vínculo.
7 O termo uberização é uma nova forma de organização do trabalho decorrente da economia do compartilhamento em que o desemprego estrutural e a informalidade contam com um contingente de trabalhadores que não possui alternativa para geração de renda, submetendo-se a uma remuneração baixa e a longas jornadas de trabalho sem a garantia da proteção laboral propiciada pelo ordenamento jurídico.
protegê-lo para que, assim, possa colocar-se em contraposição às demandas que buscam reduzir as conquistas históricas da classe operária e lutar para que novos direitos trabalhistas se concretizem.
As mudanças decorrentes do sistema capitalista produzem, portanto, transformações na prática social e no trabalho e, consequentemente, no ordenamento jurídico. Sendo assim, não é possível uma prática educativa distanciada de conceitos fundamentais que dizem respeito aos direitos trabalhistas, especialmente no contexto em que os educandos são, em sua grande maioria, sujeitos trabalhadores, como é o caso da educação de jovens e adultos (EJA).
Dessa forma, torna-se premente a universalização de conhecimentos relativos aos direitos trabalhistas, uma vez que a educação jurídica se mostra como uma alternativa para conscientização e emancipação dos sujeitos que, assim, podem adquirir uma postura crítica na estrutura social e propiciar avanços com a conquistas de novos direitos para a classe trabalhadora. Este artigo busca compreender como a educação jurídica, no que concerne à disseminação dos direitos trabalhistas, pode contribuir para a formação integrada dos sujeitos trabalhadores no âmbito da educação de jovens e adultos (EJA).
Com o escopo de desvelar o processo de precarização dos direitos trabalhistas, é importante tratar da reestruturação produtiva e da reorganização do trabalho impostas pelo modo capitalista de produção e pelo neoliberalismo.
O início da década de 1970 é marcado por uma crise do capitalismo. Sendo assim, fez-se necessária a reorganização da produção e reprodução do capital e, do ponto de vista político, a efetivação do ideário neoliberal caracterizado pela “privatização do Estado, a desregulamentação dos direitos do trabalho e a desmontagem do setor produtivo estatal” (ANTUNES, 2009, p. 33). É nesse contexto histórico de intensa crise no regime de acumulação fordista que a vertente neoliberal surge com forte poder de persuasão nos campos político, jurídico, social, econômico e, também, educacional (GENTILI, 1996).
O mercado de trabalho foi fortemente reestruturado em função das necessidades de reorganização produtiva. Este processo foi facilitado, pois
encontrou sindicatos enfraquecidos e um exército de reserva de pessoas disponíveis para o trabalho, impondo a flexibilização dos contratos de trabalho. A mudança organizacional e tecnológica imposta pelo capitalismo implicou na mudança da dinâmica da luta de classes “no domínio dos mercados de trabalho e do controle do trabalho” (HARVEY, 2008, p. 169).
Nesse contexto, os empregadores acabaram por exercer um forte controle sobre a força de trabalho que se encontrava debilitada pela recessão e pelo desemprego, sendo esse período caracterizado pela atuação do Estado e da burguesia contra a classe trabalhadora e contra as condições oriundas da fase áurea do fordismo. Como consequência dessa reestruturação produtiva do capital, observa-se a precarização da força de trabalho ou mesmo a exclusão de um contingente de trabalhadores do processo produtivo, bem como a intensificação do desemprego estrutural (ANTUNES, 2009).
A reestruturação produtiva é marcada pelas inovações tecnológicas baseadas na microeletrônica e, com isso, passa-se da produção em massa, oriunda do fordismo, para a produção flexível, que permite adaptações rápidas em decorrência da automação para atender aos anseios do mercado. Esse modelo de produção flexível impõe que os direitos trabalhistas também sejam flexibilizados para que as empresas possam utilizar-se da força de trabalho na medida das demandas do mercado (BUSNELLO, 2013).
Exige-se que o trabalhador possua capacidade de realizar várias tarefas, ou seja, que o operário seja polivalente. Para isso, faz-se necessária a escolarização dos trabalhadores. Porém, o direito à educação é também objeto de disputa na luta de classes, pois não se encontra plenamente garantido aos trabalhadores, uma vez que não contam com políticas que assegurem o acesso e a permanência na escola e a oferta de uma educação de qualidade, fazendo com que a classe trabalhadora não usufrua dos direitos sociais em sua integralidade (ALVARENGA; MACEDO, 2019).
No cenário brasileiro, é possível verificar a adoção de práticas neoliberais no início da década de 1990 e a intensificação do processo de reestruturação produtiva que teve como consequência a precarização do trabalho com a elevação do nível de desemprego, a fragilização dos contratos de trabalho e a expansão da informalidade e da terceirização com o objetivo de reduzir os custos da força de trabalho (ANTUNES, 2009).
Acerca da precarização do trabalho, identifica-se dois fenômenos a ela inerentes: a informalidade e a flexibilização. O trabalho informal caracteriza-se como aquele em que o vínculo empregatício não está ao abrigo da legislação protetora do trabalho e, desse modo, o trabalhador encontra-se desprovido de direitos duramente conquistados ao longo da história. No que diz respeito à flexibilização do trabalho, existe uma relação formal de trabalho em que os direitos deveriam ser assegurados, mas esse instrumento busca afastar a concessão desses direitos garantidos pelo ordenamento juslaboral (ANTUNES, 2018).
As reformas neoliberais implementadas a partir de 1990 inserem o Brasil definitivamente na dinâmica da divisão internacional do trabalho de forma subalterna, submetendo-o à lógica da financeirização estabelecida pelo capitalismo global (ALVES, 2009). A estabilização monetária, oriunda do Plano Real com elevação juros para atrair capital estrangeiro, teve efeitos nefastos na economia e no mercado de trabalho com o crescimento significativo do desemprego.
Sabemos que na era da chamada globalização da economia, os capitais exigem dos governos nacionais a flexibilização (entenda-se precarização) da legislação do trabalho, isto é, o desmonte dos direitos que foram conquistados ao longo de muitas lutas e embates operários. Como a uma lógica capitalista claramente destrutiva, os governos nacionais estão sendo pressionados a adequar sua legislação social às exigências do sistema global do capital, destruindo profundamente os direitos do trabalho (ANTUNES, 2006, p. 86).
Nesse período, a política econômica trouxe propostas de mudança nas relações trabalhistas que objetivavam uma maior liberdade e autonomia na pactuação das condições de trabalho. Essas propostas de flexibilização dos direitos juslaborais possuíam como argumento a rigidez do direito do trabalho brasileiro, marcado pelo intervencionismo estatal, que inviabilizaria a regulamentação do trabalho apta a atender a dinâmica do mercado. Convém ressaltar que as alterações promovidas foram quase sempre feitas por meio de medidas provisórias e, consequentemente, sem um amplo debate com os atores impactados por essas mudanças (BUSNELLO, 2013).
Como exemplo, pode-se citar a Lei nº 8.949/1994 que acrescentou o parágrafo único ao artigo 442 da CLT e trouxe a previsão que não existiria vínculo empregatício entre a sociedade cooperativa de trabalho e os seus associados e nem entre estes e os tomadores de serviços da sociedade cooperativa. Com isso,
emergiram inúmeras sociedades cooperativas de trabalho como forma de burlar os direitos trabalhistas diante da disposição de inexistência de relação laboral (DELGADO, 2018).
Também exemplifica a situação a Lei nº 9.601/1998 que instituiu a contratação por prazo determinado com redução de encargos sociais e do FGTS e a criação do banco de horas, possibilitando que a jornada de trabalho semanal ultrapasse as 44 horas previstas na Constituição Federal. Evidencia-se, desse modo, a desregulamentação da legislação trabalhista com o objetivo de redução dos custos decorrentes das relações laborais no Brasil (DELGADO, 2018).
Em 2008, emerge uma nova crise do capital que contribuiu significativamente para a ampliação do processo de precarização estrutural do trabalho com a flexibilização das relações trabalhistas, ampliando as desigualdades socioeconômicas. Esse cenário propiciou uma diminuição da pactuação de contratos formais de trabalho e expandiu fenômenos como a terceirização e a informalidade, que incrementam a extração do sobretrabalho (ANTUNES, 2018).
O processo de flexibilização dos direitos trabalhistas também pode ser constatado nos períodos subsequentes. Como exemplo, pode-se citar a Lei nº 13.134/2015 que promoveu mudanças nas regras para que o trabalhador tivesse acesso ao seguro-desemprego, aumentando o tempo de carência para a primeira solicitação do benefício (VALENTIM, 2018).
A partir de 2017, foram adotadas medidas que aprofundaram ainda mais a exploração do trabalho e mitigaram as políticas sociais, tais como a reforma trabalhista e a reforma previdenciária. Essas alterações legislativas impactaram diretamente a classe trabalhadora, pois, com o desemprego crescente, a informalidade e as formas de contratação precárias mostraram-se como alternativas para a sobrevivência dos trabalhadores (VALENTIM, 2018).
Nesse sentido, Antunes (2018) relata que o governo nesse período trouxe como propostas a imposição do negociado sobre o legislado nas relações laborais, ou seja, prevalece o acordo firmado entre trabalhadores e patrões em relação às garantias asseguradas pelo ordenamento jurídico-trabalhista, a flexibilização total do pacto trabalhista com a aprovação da terceirização em todas as atividades da empresa como forma de redução dos custos e a eliminação do contrato de trabalho regulamentado, cumprindo, assim, com a imposição imposta pelo empresariado.
A reforma trabalhista afrontou a “lógica civilizatória, democrática e inclusiva do Direito do Trabalho, por meio da desregulamentação ou flexibilização de suas regras imperativas incidentes sobre o contrato trabalhista” (DELGADO; DELGADO, 2017, p. 41). O patamar civilizatório mínimo de cidadania social do trabalhador foi reduzido em decorrência da Lei nº 13.467/2017 e as mudanças consagraram a prevalência do poder econômico em face da relação de emprego, desprezando o postulado constitucional de centralidade da pessoa humana na ordem jurídica e na vida social (DELGADO; DELGADO, 2017).
A reforma trabalhista culminou na alteração de vários dispositivos da CLT, como a terceirização irrestrita e exclusão de direitos como horas in itinere8 e intervalo intrajornada de uma hora. Além disso, a alteração legislativa consagrou a livre negociação entre empregadores e empregados e introduziu a modalidade de trabalho intermitente (VALENTIM, 2018). Essas mudanças deturpam os direitos inseridos na CLT, pois a prevalência do negociado sobre o legislado subtrai o patamar civilizatório mínimo de direitos trabalhistas (ANTUNES, 2018).
Como exemplo, pode-se citar o caso do trabalho intermitente, que vai de encontro ao princípio da continuidade da relação empregatícia consagrado na CLT, pois flexibiliza a jornada de trabalho e o contrato individual de trabalho, já que a jornada é móvel e variável com alternância entre períodos de prestação de serviço e períodos de inatividade (D’OLIVEIRA, 2019). Percebe-se que o trabalhador fica sujeito ao arbítrio do empregador no cumprimento da jornada de trabalho e, consequentemente, no recebimento da remuneração, prejudicando o convívio familiar e social ante a incerteza dos horários de trabalho e da percepção do salário.
É importante destacar ainda o enfraquecimento dos sindicatos promovido pela reforma trabalhista. Isso pode ser demonstrado pela supressão da contribuição sindical sem a adoção de qualquer medida de transição temporal, impactando fortemente a questão financeira das entidades sindicais (DELGADO, 2018). O desmantelamento da representatividade sindical também é fruto da precarização do trabalho, uma vez que a falta de identidade coletiva impossibilita que os trabalhadores se reconheçam como força coletiva, como classe (ANTUNES, 2018).
8 As horas in itinere consistiam no tempo despendido pelo empregado até o local de trabalho de difícil acesso ou não servido por transporte público em transporte fornecido pelo empregador que eram computadas na jornada de trabalho e, portanto, remuneradas. Após a reforma trabalhista, esse tempo despendido pelo empregado não é mais computado na jornada de trabalho ao argumento de não ser tempo à disposição do empregador.
Como reflexo da reestruturação produtiva do capital, da consolidação do Estado neoliberal e da inovação tecnológica, ocorreu mais recentemente o surgimento das plataformas digitais de intermediação/contratação de trabalho e da economia compartilhada9 (SILVA, 2018). Observa-se que a era digital está deteriorando o trabalho em condições dignas, pois são crescentes os fenômenos como a terceirização nos mais diversos setores da economia, inclusive, na atividade- fim das empresas; a precarização e o desemprego estrutural, em clara afronta aos direitos oriundos da luta da classe trabalhadora (ANTUNES, 2018).
O que se verifica nas relações de trabalho inseridas no contexto do capitalismo de plataforma é que não se enquadram no conceito típico de relação de emprego delineada nos artigos 2º e 3º da CLT, que considera como empregador aquele que assume os riscos da atividade econômica e dirige a prestação pessoal de serviço e como empregado a pessoa física que presta serviço de natureza não eventual sob a dependência do empregador e mediante o pagamento de salário (BRASIL, 1943).
A forma como as tecnologias de informação e comunicação (TICs) estão sendo utilizadas pelo sistema capitalista transforma trabalhadores em escravos digitais, uma vez que estão sempre disponíveis para o labor sob demanda, que se caracteriza pela precariedade e pela ausência de direitos trabalhistas (ANTUNES, 2018). Nota-se o desmonte dos direitos trabalhistas conquistados ao longo do tempo sob o argumento de modernização. Além disso, o Estado Social esvazia-se com o objetivo de beneficiar o mercado e o capital e, desse modo, o ser humano é tratado como mercadoria em clara afronta ao princípio da dignidade humana (D’OLIVEIRA, 2019).
Percebe-se, portanto, uma necessidade de transformação da legislação trabalhista para albergar essas novas relações. Nesse sentido, Cassar (2014, p. 31) ressalta que o Direito deve se adaptar às “realidades econômicas e sociais da época, sem esquecer a figura do trabalhador, que deve ser protegida”. Faz-se necessário resistir ao processo de desmantelamento dos direitos trabalhistas, uma vez que a redução das proteções e garantias juslaborais possui dois efeitos deletérios, quais sejam: o robustecimento do discurso em defesa da necessidade de
9 A economia compartilhada decorre dos avanços tecnológicos que possibilitou novos modelos de negócios como as plataformas de compartilhamento (ex: Uber, AirBnB).
redução do patamar de direitos trabalhistas em vigor e a imposição de óbices para que melhores condições de trabalho se estabeleçam (TEIXEIRA, 2018).
Nesse contexto, a inserção de conteúdos juslaborais no âmbito de uma formação integrada pode revelar, sobretudo aos sujeitos trabalhadores que compõem a EJA, uma forma de oposição ao processo de desconstrução do arcabouço jurídico que protege os hipossuficientes no âmbito da relação de trabalho e a necessidade de luta para que novos direitos se estabeleçam e possibilitem a emancipação da classe trabalhadora.
A educação é um direito social assegurado pelos artigos 6º e 205 da Constituição Federal. Este último dispositivo destaca que se trata de direito garantido a todos os indivíduos. Além disso, é dever do Estado e da família promover o efetivo exercício deste direito em colaboração com a sociedade, “visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho” (BRASIL, 1988).
O ordenamento jurídico brasileiro assegura uma educação emancipatória, contrapondo-se à concepção de que a transmissão de saberes ocorre pela mera assimilação. A educação emancipatória pressupõe o desenvolvimento da consciência crítica dos educandos (SIQUEIRA, 2016) e constitui-se como um direito em si mesmo e como um mecanismo imprescindível para o acesso aos demais direitos fundamentais (FERNANDES; PALUDETO, 2010).
É preciso lembrar que o conhecimento decorre das relações sociais de trabalho e produção e, desse modo, não existe um saber neutro, uma vez que este se produz nas relações sociais, fazendo com que predomine os interesses das classes dominantes (FRIGOTTO, 2012). Nesse sentido, revela-se a importância da educação emancipatória:
[...] a educação representa o instrumento profícuo para provocar o rompimento da situação alienadora na qual se encontra o sujeito. É preciso investir, através de um processo formativo crítico, na conscientização do indivíduo em situação de exclusão e opressão social, para que este possa tomar consciência da posição subalterna que ocupa dentro da perversa estrutura capitalista-excludente, além de receber a devida orientação acerca dos institutos profícuos para pleitear sua emancipação social. (ROTONDANO, 2015, p. 100).
O direito à educação que se busca apresentar neste artigo diz respeito à possibilidade de desenvolvimento dos indivíduos para pensar criticamente, refletindo sobre “as estruturas de poder que revestem a sociedade” (ROTONDANO, 2015, p. 105) em contraposição à educação bancária (FREIRE, 1979). Sendo assim, o processo educativo possibilita a inserção do indivíduo no processo de tomada de decisões políticas no âmbito da sociedade brasileira por meio da reivindicação de direitos e a emancipação dos mais vulneráveis (ROTONDANO, 2015).
Desse modo, a disseminação do conhecimento jurídico mostra-se como uma alternativa que viabiliza a compreensão pelos sujeitos dos direitos fundamentais estabelecidos na Constituição Federal e nas demais legislações que compõem o ordenamento jurídico brasileiro, contribuindo para a concretização da justiça e para o exercício pleno da cidadania (DIAS; OLIVEIRA, 2015). E que são decorrentes de uma educação de qualidade, que forma cidadãos capazes de desempenhar seus direitos políticos, que são conscientes de seus direitos civis e garantem e/ou reivindicam os seus direitos sociais (LEONARDO, 2016).
O termo ‘educação jurídica’ não é utilizado, neste artigo, como sinônimo da educação fornecida ao longo do bacharelado em Direito, mas como o conhecimento necessário acerca dos direitos fundamentais que possibilitam uma vida digna e o exercício pleno da cidadania pelos indivíduos. Nessa mesma acepção, Rotondano (2015) utiliza a expressão ‘educação jurídica popular’ e defende que o conhecimento do direito não deve estar restrito aos muros das universidades, devendo romper com “o paradigma de que somente as elites se apropriam de tais informações” (ROTONDANO, 2015, p. 94).
A inserção de conteúdos jurídicos no âmbito escolar pode servir como um mecanismo de emancipação e desenvolvimento integral dos alunos, uma vez que possibilita que eles se reconheçam como sujeitos de direitos e deveres e, desse modo, participem criticamente na esfera social (LAMAS, 2019). Percebe-se, portanto, que a disseminação do conhecimento jurídico pode contribuir para o desenvolvimento de uma postura crítica capaz de fazer os indivíduos compreenderem a historicidade dos direitos atuais e a necessidade de luta para a manutenção e ampliação desses direitos.
O objetivo primordial do Direito é prevenir e dirimir conflitos e, dentro de uma sociedade de classes, o principal embate sobre o qual o Direito deve atuar é na luta
de classes que decorre das contradições inerentes ao modo de produção. Em decorrência da hegemonia ideológica da classe dominante, o jogo jurídico que deveria concretizar as demandas sociais é utilizado como instrumento de validação do consenso (SILVA, 2008).
A ausência de uma política pedagógica de inclusão de conteúdos jurídicos nas práticas escolares inviabiliza o exercício da cidadania plena (BROCHADO, 2010). Contudo, não se observa a inserção de uma disciplina de ensino jurídico no âmbito da formação básica e fundamental (SILVA, 2008). A inclusão da educação jurídica no currículo da educação formal traz uma perspectiva menos elitista do Direito, possibilitando a “[...] construção de um novo senso comum sobre o papel social do Direito e a sua efetiva utilização como instrumento de luta, não só pela classe dominante, mas também pela dominada” (SILVA, 2008, p. 83).
Rotondano (2015, p. 130) utiliza a expressão "desencastelando o saber jurídico" para defender a socialização desses conhecimentos e destaca a inclusão de disciplinas pedagógicas de direitos básicos na escola como um mecanismo para atingir esse objetivo que pode contribuir para a emancipação social das massas oprimidas.
Desse modo, a educação jurídica pode constituir-se como um meio para viabilizar a compreensão sobre o acesso à justiça, o exercício da cidadania plena e a concretização da justiça social. No que diz respeito especificamente aos educandos da EJA, que é composta, em grande parcela, por pessoas trabalhadoras, a disseminação dos direitos trabalhistas possibilita a contraposição diante das narrativas e das medidas de esvaziamento das conquistas da classe operária.
A concepção burguesa de trabalho é, segundo Frigotto (2012), um processo que está em construção ao longo do tempo, no qual o trabalho é reduzido a um objeto, a uma mercadoria e, nesse sentido, o trabalho é sinônimo de emprego ou de ocupação dentro de um mercado. Com isso, o entendimento acerca do trabalho como relação social que define o modo de existência dos homens e fonte de produção do conhecimento é abandonado, restringindo essa categoria vital como atividade produtiva.
Moura (2014, p. 40) afirma que “a categoria trabalho está posta para o sujeito adulto”, mas que existe uma discriminação contra aqueles sujeitos que possuem um baixo nível de escolarização na fase adulta. O autor, contudo, alerta sobre a importância desse sujeito na produção material da sociedade:
O sujeito adulto, que não tem uma elevada escolarização, não é um sujeito menor e nem menos importante na sociedade por causa disso. Ele é o sujeito que está produzindo. A produção material da sociedade é realizada por esse sujeito adulto, independentemente do nível de escolaridade que ele tenha. Olha-se mais para a escolaridade que ele não tem do que para o seu conhecimento material da sociedade deixando-se de ver o que ele possui e que potencialmente pode ser utilizado pela escola. (MOURA, 2014, p. 41).
Atualmente, o desemprego estrutural faz com que predomine as formas precárias de trabalho em que a classe trabalhadora é tomada como descartável e obsoleta (ANTUNES, 2018). Contudo, os trabalhadores são ainda hoje o centro da transformação social, em que pese a lógica destrutiva advinda do capitalismo contemporâneo, sendo essa categoria composta pela “totalidade dos assalariados, homens e mulheres que vivem da venda da sua força de trabalho e que são despossuídos dos meios de produção” (ANTUNES, 2018, p. 101), abrangendo aqueles que laboram na informalidade e os desempregados.
É indiscutível a necessidade de resistir às investidas contra o mundo do trabalho ante a precarização sofrida nos últimos tempos. Reconquistar o sentido de pertencimento de classe é preciso para que seja possível uma emancipação humana e social e isso somente será possível por meio da contraposição exercida pelos trabalhadores (ANTUNES, 2018).
De acordo com Saviani (1994), a questão educacional e o papel da escola trazem a marca da divisão da sociedade de classes e, com isso, existe uma discrepância entre as escolas destinadas às pessoas que compõem a elite, em que predomina uma formação intelectual, e as escolas para as massas, em que a instrução escolar se destina a atender os anseios do mercado de trabalho e a inserção no processo produtivo da sociedade capitalista. O conhecimento é força produtiva que possibilita que o trabalho intelectual seja materializado. Todavia, a classe dominante precisa deter de forma exclusiva os meios de produção e, dessa forma, o próprio saber, fazendo com que o trabalhador possua apenas a sua força de trabalho para colocá-la a serviço do capital (SAVIANI, 1994).
A formação integrada no âmbito da EJA é uma alternativa que se opõe à subserviência da classe operária e possibilita “ao adulto trabalhador o direito a uma formação completa para a leitura do mundo e para a atuação como cidadão pertencente a um país, integrado dignamente à sua sociedade política” (CIAVATTA, 2005, p. 2), sendo de fundamental importância a posição crítica do trabalhador frente à lógica imposta pelo capital.
No âmbito do sistema capitalista, a educação tornou-se um mecanismo que reproduz as desigualdades concernentes ao sistema de classes (FERNANDES; PALUDETO, 2010). Contudo, a formação integrada busca combater o dualismo estrutural da sociedade e da educação brasileira, a divisão de classes sociais, a divisão entre formação para o trabalho manual ou para o trabalho intelectual (CIAVATTA, 2014). Portanto, a EJA, no contexto da formação integrada, pode constituir-se em mecanismo de contraposição ao desmantelamento do ordenamento juslaboral, instigando nos educandos a consciência coletiva de classe trabalhadora.
O ordenamento jurídico brasileiro assegura a educação de jovens e adultos (EJA) como modalidade de ensino em alguns dispositivos da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Dentre eles, o artigo 4º, inciso VII, afirma que o Estado deve garantir no âmbito da educação escolar pública a oferta de educação escolar para jovens e adultos com as devidas adequações a esse público, garantindo-se aos trabalhadores as condições de acesso e permanência na escola (BRASIL, 1996).
Sendo assim, a legislação reconhece que a EJA é composta por sujeitos trabalhadores e, desse modo, faz-se necessário que o acesso e a permanência da classe trabalhadora na escola sejam resguardados, devendo primar pelo sujeito concreto que é uma pessoa adulta e dialogar com as experiências e historicidade desse sujeito trabalhador (MOURA, 2014).
É preciso lembrar que a desigualdade socioeconômica obriga a classe trabalhadora a inserir-se precocemente no mundo do trabalho, fazendo com que esses indivíduos com baixa escolaridade e qualificação contribuam para a valorização do capital. Contudo, a formação integrada colabora para que os sujeitos trabalhadores possam construir uma nova realidade, rompendo com a dualidade educacional (MOURA, 2013)
Acerca da educação de jovens e adultos (EJA), Moura (2014) destaca que essa modalidade de educação não pode ser tratada como uma ação educativa
remanescente por meio de programas e projetos pontuais. No mesmo sentido, o documento base do Programa Nacional de Educação Profissional com a Educação Básica na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos (PROEJA) afirma que
a educação de jovens e adultos (EJA) no Brasil [...] é marcada pela descontinuidade e por tênues políticas públicas, insuficientes para dar conta da demanda potencial e do cumprimento do direito, nos termos estabelecidos pela Constituição Federal de 1988. (BRASIL, 2007).
Dessa forma, faz-se necessário que as políticas destinadas ao público da EJA possuam um caráter perene a fim de que esses sujeitos trabalhadores possam usufruir de melhores condições de trabalho e renda propiciada pela elevação do nível de escolaridade.
O segmento Educação da Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílio Contínua (PNAD Contínua) 2019 traçou o cenário da educação no Brasil e apontou que mais da metade (51,2% ou 69,5 milhões) dos adultos não havia concluído o ensino médio. Os resultados mostraram ainda que 10,1 milhões de pessoas com idade entre 14 a 29 anos não haviam completado alguma das etapas da educação básica e que o principal motivo para a evasão entre os jovens é a necessidade de trabalhar10. Esses dados revelam a importância da EJA no contexto educacional do país, uma vez que existe um número significativo de pessoas que não concluíram todas as etapas da educação básica.
Apesar disso, os recursos do orçamento federal destinados à EJA estão cada vez mais escassos. De 2018 a 2021, houve uma redução dos recursos na ordem de 94%, tendo passado de R$ 76 milhões para apenas R$ 4 milhões11. Essa drástica redução de investimentos na EJA é apenas uma faceta dos vários ataques que essa modalidade de educação vem sofrendo nos últimos tempos. É preciso lembrar que:
O crescente esvaziamento das políticas educativas para jovens, adultos e idosos a partir de 2016 e a total invisibilidade da modalidade na agenda governamental fazem parte de um grande projeto, que é manter a subordinação política, econômica e social das camadas populares e destituir a potencialidade da educação
10Dados disponíveis em https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013- agencia-de-noticias/releases/28285-pnad-educacao-2019-mais-da-metade-das-pessoas-de-25-anos- ou-mais-nao-completaram-o-ensino-medio. Acesso em 14 de dezembro de 2021.
11Dados disponíveis em https://oglobo.globo.com/brasil/educacao/da-creche-ao-ensino-superior- gastos-do-ministerio-da-educacao-caem-em-todas-as-modalidades-25331484. Acesso em 27 de dezembro de 2021.
para a autonomia e a emancipação humana (BARBOSA; SILVA, 2020, p. 151).
Ao discutir o papel da ação educativa, Moura (2014) destaca a existência de um projeto político prevalente que possui como enfoque o aspecto econômico. Dentro desta perspectiva, a educação possui a função de formar o sujeito para o mercado de trabalho, atendendo aos interesses do capital. Dessa forma, a atribuição da educação profissional e da educação de jovens e adultos “é formar pessoas com a maior competência técnica possível para fazer esse mercado de trabalho funcionar da maneira mais ‘aceitável’ possível na perspectiva de manter a centralidade na dimensão econômica” (MOURA, 2014, p. 32).
Contudo, é possível uma formação que possua como foco a dimensão humana. Isso não significa que o aspecto econômico não seja importante, mas é necessário ir além. É preciso que a formação dos indivíduos não se limite à capacitação técnica, mas que os educandos compreendam as relações de poder que permeiam a sociedade (MOURA, 2014).
Dessa forma, a formação integrada busca despertar nos indivíduos a consciência acerca do dualismo estrutural presente na sociedade, que se reflete na educação brasileira, e a necessidade de suplantar essa situação. Para tanto, faz-se necessário que o processo formativo abranja as várias dimensões da vida como o trabalho, a ciência e a cultura (CIAVATTA, 2014).
A partir desse entendimento, afirma Ciavatta (2005, p. 2) que a “emancipação humana se faz na totalidade das relações sociais onde a vida é produzida” e, nesse contexto, a educação articulada ao trabalho é um mecanismo que contribui para essa emancipação dentro do contexto do sistema capitalista, pois esse processo formativo visa a formação integral dos trabalhadores, possibilitando a descoberta de potencialidades dentro de um paradigma humanista e emancipatório. Com isso, os trabalhadores serão capazes de pensar de acordo com as próprias concepções, podendo superar assim os processos de alienação inerentes ao sistema capitalista (RAMOS, 2014).
Para que a formação integrada se concretize, é necessário um projeto social em que a educação não se limite à formação para o mercado de trabalho, mas deve levar em conta que os indivíduos necessitam de meios para prover o próprio sustento, sendo parte do processo formativo a identificação das oportunidades de trabalho. É preciso também que exista um comprometimento dos educadores e dos
gestores com a formação geral e específica e uma garantia de investimento na educação (CIAVATTA, 2005).
Portanto, a emancipação da classe trabalhadora por meio de uma formação integrada possui como objetivo que os alunos se reconheçam como sujeitos autônomos e exerçam uma cidadania ativa (FRIGOTTO, 2001). Dessa forma, a formação integrada no âmbito da EJA pode proporcionar àqueles que se encontram excluídos ou marginalizados da maioria das benesses sociais as condições para o desenvolvimento do pensamento crítico, da apropriação dos seus direitos e da tomada de consciência dos embates sobre estes.
Nesse sentido, a educação jurídica pode servir como instrumento de oposição ao processo de desconstrução dos direitos trabalhistas, instigando a consciência coletiva da classe trabalhadora e contribuindo para a formação integral dos sujeitos trabalhadores que compõem a EJA.
Este artigo buscou apresentar o potencial transformador da disseminação de conhecimentos juslaborais no âmbito da educação de jovens e adultos trabalhadores (EJA). Tendo em vista os objetivos propostos, realizou-se uma revisão de literatura que articulou as temáticas da precarização dos direitos trabalhistas e da educação jurídica com os sujeitos trabalhadores da EJA no contexto da formação integrada.
Constatou-se que a precarização das condições de trabalho propicia uma maior exploração da força produtiva com a negação de direitos trabalhistas, atingindo mais fortemente a classe trabalhadora, como é o caso dos estudantes da educação de jovens e adultos (EJA). Assim, aproximar esses sujeitos do conhecimento jurídico-trabalhista potencializa o despertar do pensamento crítico diante do processo de esvaziamento dos direitos trabalhistas que a informalidade e a ausência do reconhecimento formal do vínculo trabalhista ocasionam.
Faz-se necessário que a classe trabalhadora assuma uma postura crítica em relação às alterações legislativas que buscam uma suposta flexibilização dos direitos assegurados aos trabalhadores que culminam na mitigação dessas garantias. Essa resistência pode contribuir para frear políticas públicas que se baseiam em discursos que defendem que a rigidez das normas trabalhistas impede a geração de trabalho e
renda e que a flexibilização é a solução para o desemprego e a informalidade, uma vez que as mudanças implementadas ao longo dos anos mostraram-se inócuas.
Diante disso, compreender aspectos fundamentais dos direitos trabalhistas pode ampliar a compreensão dos sujeitos trabalhadores de que existe uma disputa entre capital e trabalho no sistema vigente e que se faz necessário resguardar as garantias estabelecidas no ordenamento jurídico por meio de um posicionamento de contraposição da classe trabalhadora ao processo de desconstrução das normas que protegem a relação de trabalho e lutar para a concretização de novos direitos.
Por fim, propõe-se a realização de pesquisas futuras para examinar de que maneira a educação de jovens e adultos (EJA) no contexto da formação integrada aborda a questão dos direitos trabalhistas dentro do processo formativo dos sujeitos trabalhadores, bem como se os educandos possuem a percepção de que esses conhecimentos possibilitam o desenvolvimento de uma visão crítica sobre o processo de precarização do trabalho e a necessidade de novas conquistas para a classe trabalhadora.
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