GT 09 Trabalho e educação - 38ª Reunião Anual a Anped
Democracia em risco: a pesquisa ea pós-graduação em contexto de resistência
Universidade Federal Fluminense Faculdade de Educação
Redação: R. Professor Waldemar Freitas Reis, s/n°, bloco D, sala 525, Gragoatá - São Domingos, Niterói - RJ, CEP 24210-201 - revistatrabalhonecessario@gmail.com
Lia Tiriba, Maria Cristina Paulo Rodrigues e José Luiz Cordeiro Antunes
Caridad Perez García (UCPEJV – Cuba), Celso Ferretti (UNISO - Brasil), Gaudêncio Frigotto (UFF/UERJ - Brasil), José Claudinei Lombardi (UNICAMP – Brasil), Maria Ciavatta (UFF - Brasil), Roberto Leher (UFRJ - Brasil), Tomás Rodrigues Villasante (UCM – Espanha), Sonia Maria Rummert (UFF) e Virgínia Fontes (UFF/EPJV / Fiocruz - Brasil).
Alexandre Maia do Bomfim (IFRJ), Ana Margarida Campello (EPSJV/FIOCRUZ), Ana Motta (UFF), André Feitosa (EPSJV/FIOCRUZ), André Martins (UFJF), Andrea Araújo Vale (UFF), Anita Handfas (UFRJ), Angela Siqueira (UFF), Angela Tamberlini (UFF), Aparecida Tiradentes (EPSJV/FIOCRUZ), Claudio Fernandes da Costa (UFF), Célia Regina Vendramini (UFSC), Daniela Motta (UFJF), Dante Moura (IFRN), Deise Mancebo (UERJ), Domingos Leite Lima Filho (UTFPR), Dora Henrique da Costa (UFF), Edison Oyama (UFRR), Edson Caetano (UFMT), Eneida Oto Shiroma (UFSC), Eraldo Leme Batista (UNIVAS-MG), Eunice Trein (UFF), Eveline Algebaile (UERJ), Filippina Chinelli (EPSJV/FIOCRUZ), Flávio Anício (UFRRJ), Francisco José Lobo Neto (FIOCRUZ), Guadelupe Teresinha Bertussi (UNAM e UFSC), Hajime Nozaki (UFMS e UFJF), Henrique Tahan Novaes, Ivo Tonet (UFAL), Jacqueline Botelho (UFF), Jaqueline Ventura (UFF), João dos Reis da Silva Jr. (UFSCar), José dos Santos Souza (UFRRJ), José Luiz Cordeiro Antunes (UFF), Júlio Cesar França Lima (FIOCRUZ), Justino de Souza Junior (UFC), Kátia Lima (UFF), Laura Souza Fonseca (UFRGS), Lea Calvão (UFF), Lia Tiriba (UFF), Lígia Klein (UFPR), Luciana Requião (UFF), Marcelo Lima (UFES), Maria Clara Bueno Fischer (UFRGS), Maria Cristina Paulo Rodrigues (UFF), Maria Inês do Rego Monteiro Bomfim (UFF), Maria de Fátima Félix Rosar (UNICAMP), Marcia Alvarenga (UERJ), Mariléia Maria da Silva (UDESC), Marisa Brandão (CEFET-RJ), Marise Ramos (UERJ,FIOCRUZ), Marlene Ribeiro (UFRGS), Myriam Feldfeber (UBA - Argentina), Ney Luiz Teixeira Almeida (UERJ), Olinda Evangelista (UFSC), Ramon de Oliveira (UFPE), Raquel Varela (Universidade Nova de Lisboa - Portugal), Roberto Leher (UFRJ), Ronaldo Lima (UFPA), Rosilda Benacchio (UFF), Rui Canário (Universidade de Lisboa – Portugal), Sandra Maria Siqueira (UFBA), Sandra Morais (UNIRIO), Sérgio Lessa (UFAL), Sonia Maria Rummert (UFF), Susana Vasconcellos Jimenez (UFC), Tatiana Dahmer (UFF), Valdemar Sguissardi (UFSCar), Vania Motta (UFRJ) e Zuleide Silveira (UFF)
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Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoatá/SDC/UFF Bibliotecária: Mahira de Souza Prado CRB-7/6146
Poderíamos iniciar este Editorial destacando o quanto nos sentimos desafiados e felizes em assumir a editoria da TrabalhoNecessário – revista criada em 2003 e que contou com o árduo trabalho dos editores e editoras que nos antecederam: José Rodrigues, Ronaldo Rosas, Francisco José da Silveira Lobo Neto, Luciana Requião, Maria Inês Bonfim e, desde 2013, Sonia Rummert e Jaqueline Ventura – e que tanto se empenharam para conquistar o reconhecimento acadêmico da TN.
Mas a noite de 14 de março deste 2018 nos atropelou de forma tão violenta que não é possível nos calar em relação a tal acontecimento: o assassinato de Marielle Franco, vereadora do PSOL e de seu motorista, Anderson Gomes, significa sim, mais duas das inúmeras vidas que vimos perdendo no Rio de Janeiro e no Brasil – de jovens, negros, pobres, da periferia, LGBTTs. Para além disso, esse crime é também um ataque à democracia, à defesa dos direitos humanos, dos grupos sociais explorados/dominados, a quem Marielle ousou representar.
Este crime, a nosso ver, não deve ser entendido senão como parte do atual momento de retrocesso político, em que se dá uma ofensiva neoliberal e fascista no Brasil, na América Latina e no mundo. É neste mesmo contexto que devem ser entendidos a intervenção militar no Rio de Janeiro e o mandado de prisão de Luiz Inácio Lula da Silva. Por isso, como novos editores da Revista TN, nos rebelamos contra o golpe midiático, jurídico e parlamentar, em 2016, que promoveu a descontinuidade do estado democrático de direito em nosso país. Rebelamo-nos contra o retrocesso dos direitos sociais (do trabalho, da saúde, da educação e da cultura), historicamente conquistados pela classe trabalhadora. Tampouco podemos conciliar com o neoextrativismo, com o agronegócio, com a revolução verde e a revolução azul, que ameaçam sobremaneira a vida da espécie humana e de outras espécies do planeta.
Passados os anos de chumbo da ditadura empresarial-militar, o ensino, a pesquisa e a extensão voltaram a ser perseguidos pela polícia política; sem falar da redução dos recursos públicos destinados à educação, que compromete a produção e socialização do conhecimento. Manteremos o
¹ DOI: https://doi.org/10.22409/tn.16i29.p4550
TrabalhoNecessário- www.uff.br/revistatrabalhonecessario: ano 16, Nº29/2018
compromisso ético-político com a educação da classe trabalhadora – uma educação pública, laica e socialmente referenciada na formação humana omnilateral e na construção de relações sociais que caminham na contramão do modo capitalista de produção da vida social. Para nós, do Núcleo de Estudos, Documentação e Dados sobre Trabalho e Educação – Neddate, este é um trabalho necessário, cada vez mais necessário!
Brasil, Argentina, Chile, Bolívia, Colômbia, Equador, Paraguai, Uruguai, México, Haiti, Cuba, Nicarágua...Os povos latino-americanos e outros povos do mundo reagem à sua maneira, contra o sistema capital. Diante de tantas lutas que o capital nos impõe, não podemos medir esforços para nos articular com os nossos pares dos movimentos sociais populares. Não menos importante é fortalecer a luta anti-mundialização do capital no âmbito da produção científica em nível nacional e internacional, especialmente, no âmbito latino-americano. Assim, sem desconsiderar a importância de outros periódicos do campo trabalho-educação, nossa intenção é sensibilizar os grupos de pesquisa sobre a importância de nossa revista eletrônica como meio de veiculação e mediação do pensamento crítico em relação ao mundo do trabalho, à formação humana e as relações históricas entre trabalho e educação.
A partir de 2018, na perspectiva de uma construção coletiva que caminha na contramão do individualismo e da competição proposta pelo capital, a Revista TrabalhoNecessário passa a editar Números Temáticos em conjunto com Grupos de Pesquisa em Trabalho e Educação que se substanciam no materialismo histórico e, ao mesmo tempo, dialogam com outros referenciais teóricos. Em outras palavras, serão organizados por grupos de pesquisa associados ao Neddate, tendo em conta sua afinidade com a Linha Editorial da TN, estabelecida desde o ano de sua criação.
Para elaboração desta proposta foi fundamental a interlocução com alguns grupos de pesquisa, em especial com os Profs. Drs. Marcelo Lima (UFES), Ronaldo Lima e Doriedson Rodrigues (UFPA), Maria Clara Bueno Fischer (UFRGS), Celia Vendramini (UFSC) e Maria Ciavatta (UFF), sendo a última, membro de nosso Conselho Editorial desde sua criação. Com estes pesquisadores e pesquisadoras e com os membros do Neddate, aprofundamos a reflexão sobre a importância de dar maior visibilidade à produção nacional e internacional e, em particular, à nova geração de pesquisadores/as espalhados
no Brasil e na América Latina. Sabemos que este processo vem sendo propiciado não apenas pelo GT 09 – Trabalho e educação da Anped, como também pelos encontros anuais do INTERCRÍTICA - Intercâmbio Nacional dos Núcleos de Pesquisa em Trabalho e Educação. A TN quer contribuir para fazer reverberar a voz desses pesquisadores e pesquisadoras.
Importante ressaltar que, além de artigos de autores convidados, a TN continuará a receber artigos de demanda contínua, sejam relativos à temática em questão ou a temáticas em geral.
Para iniciar a jornada como novos editores da Revista TrabalhoNecessário, elegemos a 38ª Reunião da Anped – Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Educação, com a temática “Democracia em risco: a pesquisa e a pós-graduação em contexto de resistência”, em particular os artigos apresentados no Grupo de Trabalho – Trabalho e Educação (GT 09). Foi organizado por Celia Vendramini (UFSC) e Mariléia Maria da Silva (UDESC), as quais, como sistematizadoras do número 29, fazem a apresentação dos autores e seus respectivos artigos, bem como das seções “Memória e Documentos” e “Teses e Dissertações” realizando comentários e considerações críticas.
Por fim, com alegria, queremos agradecer a todos/as que apoiam a Revista TrabalhoNecessário e, especialmente, aqueles que colaboraram para a edição da TN 29, pois acreditamos que ações coletivas são manifestações da luta por transformações sociais radicais, em suas diversas dimensões.
Boa leitura! Os Editores
Lia Tiriba Maria Cristina Paulo Rodrigues José Luiz Cordeiro Antunes
Publicado em: 13 de junho de 2018
APRESENTAÇÃO: O GT TRABALHO E EDUCAÇÃO DA ANPED¹
Célia Regina Vendramini2 Mariléia Maria da Silva3
Os trabalhos reunidos no número 29 da Revista Trabalho Necessário contam com artigos de demanda contínua e artigos que integram um número temático acerca de temas e questões que compõem os desafios dos estudos acerca da relação trabalho e educação. Há algumas décadas, as pesquisas no Brasil vêm acompanhando e analisando as transformações no mundo do trabalho e suas repercussões na educação e na escola. Tais pesquisas têm como pressuposto o trabalho como base sobre a qual se desenvolvem os diferentes e complexos elementos que constituem o ser humano, sua história, sociabilidade, cultura e, portanto, sua educação.
As pesquisas sobre as relações entre o mundo do trabalho e a educação dão suporte e também são estimuladas pelo GT Trabalho e Educação. Um dos Grupos de Trabalho (GT09) da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação – ANPED. Trata-se de um fórum de discussão que congrega pesquisadores do país visando a articulação dos mesmos, a socialização do conhecimento, o aprofundamento teórico-metodológico, o debate sobre questões relacionadas ao trabalho e à educação e o estímulo para o estudo de temas emergentes. Os pesquisadores do GT encontram-se nas reuniões regionais e nacionais da Associação, bem como em outros fóruns, como o Intercrítica – Intercâmbio Nacional dos Núcleos de Pesquisa em Trabalho e Educação. Os artigos que compõem este número temático foram apresentados e debatidos na 38ª Reunião Nacional da Anped, realizada em outubro de 2017 na Universidade Federal do Maranhão, em São Luís.
O tema da Reunião Nacional versou sobre a Democracia em risco: a pesquisa e a pós-graduação em contexto de resistência. Ela se realizou no contexto pós golpe parlamentar de 2016 contra a presidente Dilma Rousseff, do Partido dos Trabalhadores - PT, e foi seguido por uma sucessão de medidas
1 DOI: https://doi.org/10.22409/tn.16i29.p4551
ultrarreacionárias. O PT governou o país por 14 anos dentro do modelo da conciliação de classes e da teoria neodesenvolvimentista, não resultando na alteração do quadro de extrema desigualdade social do país. De acordo com Safatle3, “o lulismo não representou uma política de combate à desigualdade, mas uma política de capitalização dos pobres”. Entretanto, o que se seguiu foi um capitalismo ainda mais expropriador determinando um conjunto de contrarreformas trabalhista, previdenciária e educacional. Particularmente no campo da educação, podemos citar a contrarreforma do ensino médio, a qual rebaixa e fragmenta ainda mais a formação dos jovens, e o Projeto Escola Sem Partido, ou a “escola com mordaça”, o qual visa retirar da escola o conteúdo relacionado com a vida, o trabalho, as classes sociais, as religiões de diferentes matizes, as questões de gênero, entre outras, constituindo-se em afronta ao pensamento crítico4. Nesse contexto, o tema da democracia ganhou relevo, bem como a necessidade da resistência no campo político e acadêmico.
Os temas que circularam no GT Trabalho e Educação foram além do debate sobre a democracia burguesa e adentraram questões mais amplas e profundas, em correspondência com o contexto em que vivemos e a trajetória do GT. Nos 100 anos da Revolução Russa, refletimos sobre a educação socialista em termos de concepção e experiências históricas revolucionárias do século XX; no ano em que as mulheres realizaram um dia memorável de greve internacional (8 de março), debatemos as questões de gênero, trabalho, classe e patriarcado.
O trabalho encomendado à professora Helena Hirata - do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS), França - uma colaboradora de longa data do GT, versou sobre a relação entre Gênero, patriarcado, trabalho e classe, provocando uma profícua discussão entre os participantes da 38ª Reunião Nacional da Anped. Algumas das questões que se apresentaram no debate foram: a classe é uma categoria fundante que se expressa nas diferenças de gênero, raça, geração? Há ou não uma hierarquização destas categorias? A resposta a estas questões não é simples, e em seu texto Hirata expõe de maneira pormenorizada a complexidade que tal temática vem ganhando ao longo do
3 Vladimir Safatle, Só mais um esforço, Editora Três Estrelas, 2017.
4 Ver o livro organizado por Gaudêncio Frigotto: Escola “sem” partido: esfinge que ameaça a educação e a sociedade brasileira. Publicado pelo Laboratório de Políticas Públicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Disponível em:http://bit.ly/2vzqPn6.
tempo. Apresenta, e ao mesmo tempo problematiza, conceitos e categorias desenvolvidos por pesquisadores e pesquisadoras no Brasil, na França e em outros países, sublinhando seus pontos de divergências e de complementaridades. Dividido em três partes, a autora inicia o seu artigo definindo brevemente o que seria o materialismo feminista, abarcando em seguida a temática do trabalho entre as mulheres, bem como a relação entre trabalho e gênero no contexto do que entende como o de “um capitalismo patriarcal”. Posteriormente, apresenta a discussão em torno do paradigma da interseccionalidade no qual está proposto a interdependência e a não- hierarquização das relações de poder de gênero, raça e classe social. Sem dúvida, são proposições extremamente instigantes, que nos impelem ao debate.
O minicurso sobre a Pedagogia Socialista, ministrado no fórum do GT Trabalho e Educação, foi desenvolvido pelas professoras Maria Ciavatta da Universidade Federal Fluminense e Carmen Sylvia Vidigal Mores da Universidade de São Paulo, as quais analisaram a questão conceitual da educação socialista, bem como algumas concepções e iniciativas educacionais de objetivos emancipatórios, considerando experiências históricas revolucionárias e outras vinculadas a movimentos sociais e políticos. Como resultado do minicurso, contamos com dois artigos para este número temático.
O artigo da Maria Ciavatta sobre os Caminhos da educação socialista procura evidenciar que a educação socialista não é uma abstração, sua concepção tem raízes históricas no conjunto das relações que a determinam no tempo e no espaço dos processos revolucionários. A autora vai buscar em Marx e Gramsci os princípios básicos da pedagogia socialista ou da ideia de “seres humanos plenamente desenvolvidos”. A apresentação e reflexão sobre os caminhos da educação socialista parte de uma contextualização dos grandes processos revolucionários onde se gerou a ideia da emancipação humana e da pedagogia socialista. Em seguida, são abordadas algumas experiências realizadas na Revolução Russa, na Revolução Cubana e na perspectiva da pedagogia socialista do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST) no Brasil. Segundo Ciavatta, a “pedagogia socialista, além de ser um ideário nascido das ideias de emancipação, das revoltas e de grandes revoluções, é uma concepção de ser humano e de educação”.
Na esteira da reflexão sobre a educação de caráter emancipatório, temos o artigo de Carmen Sylvia Vidigal Moraes e Doris Accioly e Silva intitulado Circuitos educativos: a Escola Moderna N. 1 e os Ginásios Vocacionais Noturnos, um estudo comparativo. O foco volta-se para a sociedade brasileira, buscando evidenciar propostas educacionais que se contrapunham aos modelos hegemônicos de escolarização, particularmente de iniciativa do movimento operário e sindical (no caso, os anarco-sindicalistas). O percurso do ideário anarquista apresenta-se na organização da Escola Moderna n. 1 (1912 a 1919) e no projeto pedagógico dos Ginásios Vocacionais Noturnos (anos 1960) destinados a jovens e adultos trabalhadores.
As autoras trabalham com fontes primárias e secundárias do Centro de Memória de Educação, da Faculdade de Educação da USP e do Centro de Documentação e Informação Científica “Professor Casimiro dos Reis Filho” - Cedic, da PUC de São Paulo. O artigo resgata práticas educacionais operárias, sejam as escolares ou a imprensa anarquista e operária, a qual assume, segundo as autoras, “forte dimensão educadora do operariado por meio da divulgação tanto dos ideais anarquistas quanto das teorias da educação racionalista, promovendo um campo de disputas em torno do modelo escolar operário”.
O debate fomentado pelos dois artigos acima sobre a pedagogia socialista revela a existência de importantes iniciativas emancipatórias de educação e a disputa em torno de projetos pedagógicos diferenciados. Eles são inspiradores para nossa ação política e prática pedagógica no enfrentamento necessário diante de uma educação e escola hegemonicamente marcada pela dualidade estrutural, pela formação unilateral sem conexão com a vida e o trabalho.
Quanto aos trabalhos apresentados no GT Trabalho e Educação, dos quais alguns compõem este número temático, eles versam sobre a formação em diferentes contextos na relação com o trabalho. Com base em uma concepção de formação integral, analisam a práxis e formação política de trabalhadores, as contradições da educação em cursos de formação de profissionais da saúde, na formação de soldados, nos Institutos Federais de Educação e seu desafio na integração curricular, na escola de educação básica e na formação docente.
Hellen Cristina Sthal e Cátia Regina Assis Almeida Leal, com base no materialismo histórico-dialético, abordam as Concepções de homem, sociedade e
mundo do trabalho em projetos de formação de cursos da área da saúde. As autoras partem do pressuposto que a finalidade do trabalho em saúde deve ser o cuidado com o ser humano, um cuidado holístico e multidimensional. Entretanto, observam os limites da formação dos profissionais da saúde na sociedade moderna, delineada pelo poder do capital e pelo fetichismo da mercadoria. O modelo de saúde do SUS abre um cenário de mudança na perspectiva da atenção integral à saúde. Da mesma forma, as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) para os cursos de graduação da área da saúde estabelecem o perfil de um profissional com formação generalista, humanista, crítica e reflexiva, capacitado para atuar nos diferentes níveis de atenção à saúde. Em contraposição, ao analisarem as concepções de homem e de sociedade que embasam os projetos de formação dos cursos de graduação da área da saúde da Universidade Federal de Goiás – UFG – Regional Jataí, as autoras observam que a concepção de homem predominante nos projetos de formação é a de um ser condicionado pelo meio físico-social, produtivo e adaptado à sociedade e ao mercado de trabalho.
Seguindo as análises sobre a perspectiva de uma formação integral e articulada ao trabalho, Egídio Martins e Valdiléia Carvalho da Silva apresentam o artigo A práxis política como atividade formativa dos trabalhadores da pesca da Colônia Z-16 de Cametá-PA. Os autores partem da seguinte questão: qual a concepção de formação que se materializa no contexto das relações de produção-formação e práxis política dos pescadores da Colônia Z-16? Com base em autores do campo marxista (Marx, Engels, Thompson, Gramsci, Vasquez), abordam a práxis política dos pescadores, visto que no seu cotidiano organizam- se para dar conta de sua subsistência e nessa articulação revelam elementos que se contrapõem ao poder instituído.
Celia Cristina Pereira da Silva Veiga e José dos Santos Souza abordam a Formação inicial de soldados da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro no contexto da reforma gerencial do Estado. Visando explicitar as interfaces entre as ações e formulações no campo da política de segurança pública e a política pedagógica, os autores tomam como objeto de análise o Curso de Formação de Soldados (CFSd) da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ). O artigo está organizado em três seções: a reforma do Estado e da propagação do ideário gerencialista; as interferências da reforma gerencial na política de
segurança; e, por último, a forma como as mudanças na política de segurança pública decorrentes da reforma gerencial se materializam nas ações e nas formulações da PMERJ para a formação inicial de seus soldados. Após análises documentais e fontes empíricas, sustentadas por denso aporte teórico, os autores concluem que a política de segurança pública explicitada em documentos no estado do Rio de Janeiro não se materializa na política pedagógica do CFSd. Observam, ainda, a adoção de práticas inadequadas destinadas à manutenção e reprodução dos padrões tradicionalistas, uma pedagogia que forja profissionais submissos e minimamente reflexivos, e um currículo aplicado por meio de uma pedagogia da coerção, a partir de punições e excessiva prática de atividades físicas.
Maria da Conceição dos Santos Costa, no artigo Trabalho docente na educação básica: as condições e a jornada de trabalho na educação física na educação de jovens e adultos trabalhadores do estado do Pará, examina, mediante pesquisa com docentes da rede municipal de Belém do Pará, a configuração do trabalho do docente de Educação Física atuante na EJA. As condições precárias de trabalho e jornadas extenuantes são elementos importantes abordados pela autora. O artigo compõe-se de três partes: na primeira apresenta brevemente a intrínseca relação entre trabalho e trabalho docente na sociedade capitalista, buscando situar neste debate a especificidade do docente da Educação Física que atua na EJA. Na segunda parte procura evidenciar, partindo de depoimentos dos próprios professores de Educação Física, as péssimas condições de trabalho como um forte impeditivo para o desenvolvimento do trabalho com os jovens e adultos trabalhadores na escola, que leve em conta uma dimensão mais ampla da Educação Física. Também revela, entre outros aspectos, o impacto que tal condição de trabalho apresenta na constituição da subjetividade docente. Por fim, reforça a existência de um intenso processo de degradação das condições de trabalho do docente de Educação Física que atua na EJA.
Ainda na esteira da discussão sobre a precarização das condições de trabalho, o artigo de Regis Arguelles da Costa, intitulado O Programa Mais Educação e a gestão do trabalho escolar: um estudo em Duque de Caxias/RJ, analisa o processo de implantação e gestão do Programa Mais Educação (PME)
em uma unidade escolar de Duque de Caxias, município do Estado do Rio de Janeiro. O autor problematiza sobre a forma como se dá a incorporação pela gestão local das novas determinações advindas com o PME e seus desdobramentos na administração da escola pública e no cotidiano do trabalho escolar. Sua análise funda-se na compreensão de que o modelo gerencial, ao ser incorporado no setor público, impõe a presença de parcerias com o setor privado, a utilização do voluntariado, a focalização da pobreza e controle social. Tais medidas são a expressão do estágio de desenvolvimento do programa neoliberal da Terceira Via no Brasil. Dividido em duas partes, o artigo apresenta os objetivos do PME e as novas modalidades de gestão da escola pública ali presentes, bem como, mediante entrevistas com professores e equipe diretiva de escolas, procura evidenciar o processo de implementação do Programa, atentando para as suas fragilidades, inconsistências, mas também os elementos contraditórios vivenciados por seus entrevistados.
No artigo A formação do licenciado nos Institutos Federais do Nordeste e o ensino médio integrado à educação profissional, Olívia Morais de Medeiros Neta, Ulisséia Ávila Pereira e Nina Maria da Guia de Sousa Silva abordam as licenciaturas ofertadas nos Institutos Federais, na região Nordeste, e o Ensino Médio Integrado à Educação Profissional. As autoras objetivam apreender, nos cursos de licenciatura em Letras, Matemática, Química e Geografia dos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia da região Nordeste, as concepções de formação docente voltadas à formação para a Educação Básica, particularmente o Ensino Médio Integrado (EMI). O estudo, de caráter documental e empírico, com aplicação de questionários a professores e estudantes concluintes dos cursos supracitados, revela que as concepções de formação docente e EMI constantes nos Planos de Desenvolvimento Institucional e nos Projetos Políticos Pedagógicos dos IFs estão associados aos princípios norteadores do currículo das licenciaturas de Letras, Matemática, Química e Geografia voltados à formação para a Educação Básica, tangenciando a formação de docentes para atuação no EMI.
Os autores Marcelo Lima, Renan dos Santos Sperandio, Samanta Lopes Maciel e Zilka Teixeira no artigo Integração curricular no IFES: limites e possibilidades da pesquisa-ação investigam, por meio de uma pesquisa-ação
realizada no IFES, o fortalecimento da integração curricular do ensino médio à educação profissional técnica de nível médio na Rede Federal. Com uma duração de quatro anos (2013-2016), abrangendo diversos campi, envolvendo os cursos técnicos integrados em Agroindústria, Administração, Mecânica, Eletrotécnica e Edificações, os autores relatam de forma pormenorizada esta experiência de pesquisa e ao mesmo tempo de intervenção. Ressaltam seus limites e as possibilidades de pensar uma ação integradora, sobretudo no campo do diagnóstico e da formação docente, cujas consequências são ainda pouco visíveis no momento da pesquisa. No entanto, os autores apontam as tensões e contradições presentes neste processo, com destaque para aquilo que consideram como uma “resistência muda” quando estava em jogo a necessidade de uma mudança efetiva na prática docente.
Além dos artigos que compõem o número temático, a Revista conta com mais três artigos de demanda contínua. O primeiro deles, intitulado Intensificação e precarização social do trabalho de professores de escola pública: um estudo exploratório na região da Baixada Fluminense (RJ), foi escrito por Luiz Armando Arouca Morais, Katia Reis de Souza e Gideon Borges dos Santos. O objetivo do artigo foi analisar as relações entre o trabalho e a saúde de professores do ensino fundamental em escola pública. Por meio de entrevistas com professores, os autores observam o aprofundamento da intensificação e precarização social das condições do trabalho docente em escolas públicas, com implicações na saúde dos professores.
Abelardo Bento Araújo apresenta o artigo O produto do trabalho educativo na política de monitoramento da qualidade da educação: notas de economia política. Este desenvolve uma análise de cunho teórico, com base na economia política, sobre as especificidades do trabalho educativo tendo em vista o monitoramento da qualidade da educação por meio de escores de rendimento em testes em larga escala. Trata do trabalho humano em seu sentido geral, do trabalho humano sob a égide do capital e tece considerações sobre a noção de produto do trabalho educativo. Apresenta questões fundamentais sobre a adequação da política de monitoramento, tendo em conta a especificidade da atividade educativa e dos próprios fins da educação.
O artigo de Wanderson Pereira Araújo aborda A maquinaria e o aumento na produtividade pelo trabalho intelectual: observações a partir de Karl Marx. O propósito de autor é analisar o trabalho intelectual na complexidade da atividade docente, inserido na formação profissional dos trabalhadores e na produção e aplicação da ciência e da tecnologia no campo da agricultura. A análise parte de observações de atividades docentes nos Institutos Federais (IFs) com o aporte de categorias desenvolvidas por Karl Marx na obra O Capital, no que diz respeito especialmente à teoria do valor e ao trabalho produtivo/improdutivo.
Em Teses e Dissertações, o presente número da revista TN traz o Resumo expandido da tese de doutorado de Vítor Bemvindo, intitulada Por uma história da educação politécnica: concepções, experiências e perspectivas. Nele, o autor apresenta as questões centrais de sua tese, organizadas em torno da análise histórica do conceito de educação politécnica, em permanente disputa por distintos grupos e classes sociais que deram ao termo diferentes sentidos políticos-pedagógicos, associados aos projetos de sociedade defendidos por cada um destes grupos. A partir de tais análises, Bemvindo destaca os casos da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV) e do Instituto Politécnico da UFRJ em Cabo Frio (IPUFRJ), como experiências bem-sucedidas de ensino médio integrado referenciadas na politecnia
Na seção Memória e Documentos, o material em destaque é o Memorial apresentado pela professora Eunice Schilling Trein, no seu processo de progressão para professora titular da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF). Intitulado Um Tributo à Escola Pública, o memorial faz, ao mesmo tempo, um rigoroso e afetivo resgate da trajetória pessoal e coletiva de uma educadora que, nas variadas esferas dos espaços educativos – ensino, pesquisa e extensão – procura reforçar “a construção integral do ser humano e a construção de uma sociedade emancipada”, reconhecendo o espaço escolar como aquele em que se explicita a disputa de diferentes projetos societários, e como essa disputa se desdobra no mundo do trabalho, inclusive com consequências socioambientais – duas áreas às quais se dedicou e ainda se dedica a conhecer e atuar, na defesa de experiências de educação referenciadas socialmente e que se propõem públicas, democráticas e transformadoras.
Para finalizar, lembramos que em 2018 comemoram-se os 200 anos de nascimento de Karl Marx, um dos mais importantes pensadores de nossa história. Sua obra constitui a essência fundamental não apenas para compreender o modo de produção capitalista, mas a sua superação. Dedicou toda a sua vida na construção de uma teoria social com forte impacto nos movimentos revolucionários das gerações do passado até os dias atuais. Comemorar esta data é manter vivo o seu pensamento, não no plano da nostalgia, mas no plano da práxis. Neste sentido, encerramos esta apresentação com a compreensão de que os artigos ora apresentados perfilam-se a seu modo, mesmo que por diferentes entradas e níveis de aprofundamentos, dentro do que consideramos uma tentativa de entender a realidade à luz de uma teoria crítica, que sinalize para a compreensão e transformação da realidade, posição esta tão cara ao nosso GT!
Publicado em: 13 de junho de 2018
Helena Hirata3
A conjunção das palavras-chave que compõem o título desse artigo remete imediatamente ao conjunto de reflexões e práticas do que se convencionou denominar “feminismo materialista” Assim, esse texto apresenta, de início, o feminismo materialista para, em seguida, abordar o tema do trabalho das mulheres e, mais geralmente, a relação entre trabalho e gênero, no contexto de um capitalismo patriarcal. Discute, enfim, o paradigma da interseccionalidade, que propõe a interdependência e a não-hierarquização das relações de poder de gênero, raça e classe social.
Linking the key words present in the title of this article remind us immediately to all the ideas and practices of we call today “materialist feminism”. Firstly, the article discusses the concept of materialist feminism. Secondly, it refers to the question of female labour and, more generally, to the relation between work and gender, in the context of patriarchal capitalism. Finally the article discusses the intersectional paradigm that states the interdependency and no-hierarchization of gender, race and class power relations.
Key-words: materialist feminism; gender and class; intersectionality.
A conjunção das palavras-chave que compõem o título desse artigo remete imediatamente ao conjunto de reflexões e práticas do que se convencionou denominar “feminismo materialista”.
O feminismo materialista se interessa pelas relações de poder, pelas relações de exploração, opressão, dominação entre homens e mulheres e é, ao
1DOI: https://doi.org/10.22409/tn.16i29.p4552
2Esse artigo resulta de uma comunicação (“Trabalho encomendado” pelo GT Trabalho e Educação) apresentada no dia 03/10/2017 durante a 38° Reunião Nacional da ANPED em São Luis.
3 Diretora de pesquisa emérita no Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS), França e professora visitante internacional no Depto de Sociologia da USP.
mesmo tempo, uma teoria e uma prática. Teorias feministas e movimentos feministas enquanto movimentos sociais são indissociáveis.
Para o feminismo materialista o trabalho é central em sua materialidade e enquanto prática social. A divisão sexual do trabalho profissional e do trabalho doméstico subjacente à divisão sexual do poder e do saber também é central para essa corrente do feminismo materialista. Ele critica a partir de uma perspectiva de gênero a teoria marxista das classes sociais (DELPHY, 1977; HIRATA E KERGOAT, 1994) porque ela não permite apreender o lugar das mulheres na produção e na reprodução social. Delphy (1977) mostrou como a classe social das mulheres é construída em referência exclusiva aos homens (marido, pai, etc) nos estudos de estratificação. Também Kergoat demonstrou em seus escritos como as relações de classe são sexuadas e as relações sociais de sexo são atravessadas por pontos de vista de classe – relações de sexo e relações de classe organizam, como diz Kergoat, a totalidade das práticas sociais. Não é so em casa que se é oprimida, nem só na fábrica que se é explorada.
Também é necessário se referir aqui à ideia do trabalho como “atividade paradigmática” (KERGOAT) isto é, afirmar a centralidade do trabalho contra os que preconizam o “fim do trabalho” (André Gorz, Jeremy Rifkin, Claus Offe, Dominique Méda, etc.)3 No marxismo, as classes sempre foram tratadas como se o gênero não implicasse nenhuma heterogeneidade em sua composição (SOUZA LOBO, 2011 [1990], HIRATA e KERGOAT, 1994): “a classe operária tem dois sexos”, como consta no título do livro póstumo de Elisabeth Souza Lobo e no artigo de Hirata e Kergoat.
As mulheres, no Capital, não têm existência enquanto sexo social, mas fazem parte, com outras categorias, do exército industrial de reserva (cf. crítica à categoria exército industrial de reserva, HIRATA, 2002). As atividades de trabalho estão sendo expulsas para a periferia do mundo capitalista. Bruno Lautier (1998) se refere aos cortadores de cana do Nordeste brasileiro.
Ao mesmo tempo assiste-se, sobretudo desde os anos cinquenta, ao desenvolvimento acelerado do setor de serviços e à conceitualização emergente de classes populares (Schwartz, 2011) para englobar o conjunto dos setores
3 Para a apresentação da posição desses/as autores/as na controvérsia fim do trabalho x centralidade do trabalho, cf. Hirata, 1998.
assalariados proletarizados que não são abarcados pelo conceito de classe operária.
Enfim, é interessante o comentário de Alexis Cukier (2016), que mostra como Danièle Kergoat politiza o conceito de trabalho, junto com Christine Delphy e Silvia Federici. Segundo Cukier, essas autoras apontam para a “função política central do conceito de trabalho”. A ideia de base dessas autoras seria, segundo ele, a indissociabilidade entre as funções econômicas (produção de bens e serviços) e politicas (reprodução e transformação das relações sociais), o que permite, segundo Cukier, “renovar a crítica marxista da economia politica” e pensar o trabalho como “alavanca da emancipação coletiva”. Para esse autor, o feminismo materialista permite opor ao neoliberalismo a perspectiva de um trabalho feminista, pós-capitalista e democrático. A própria Danièle Kergoat afirma que é o “potencial crítico e subversivo dessa sociologia (crítica) que se trata de evidenciar (GALERAND, KERGOAT, 2014)”. Ela dá preeminência às relações sociais e ao trabalho, no que se diferencia das sociologias das “diferenças entre os sexos” ou dos “gender studies”, que não analisam conjuntamente trabalho e exploração, dominação e emancipação.
Apresentaremos a seguir, em traços amplos, a situação atual do trabalho das mulheres no quadro de um capitalismo patriarcal, entendendo por patriarcado “uma formação social em que os homens detêm o poder, ou ainda mais simplesmente o poder é dos homens". Ele é assim, quase sinônimo de “dominação masculina” ou de “opressão das mulheres” (DELPHY, 2009 [2000], p. 172). Para nós não existe uma formação social “patriarcado”, separado do “capitalismo”. Preferimos falar em capitalismo patriarcal. Ou, como bem formulou Danièle Kergoat, “Patriarcado e capitalismo se combinam e exploram dominando e dominam explorando” (KERGOAT, 1978, p. 44).
Se as mulheres sempre trabalharam, como mostram as historiadoras do trabalho feminino, a porcentagem de mulheres trabalhadoras passou, no caso da França, de um terço a metade no conjunto da população ativa em um século (MARUANI e MERON, 2012). No Brasil, considerando apenas a década passada, observa-se “um incremento de 24% na atividade feminina” (OLIVEIRA COSTA,
2013, p. 400). Portanto, uma convergência notável entre a França e o Brasil, no que diz respeito à divisão do trabalho profissional, é que a despeito da crise econômica mundial e da austeridade, a despeito da recessão econômica no Brasil, as mulheres se mantêm no mercado de trabalho e aumentam a sua participação.
Embora possamos constatar esse aumento nas taxas de atividade femininas, também se deve assinalar a persistência das desigualdades, tanto entre sexos, quanto entre raças e entre classes, na medida em que partimos do ponto de vista segundo o qual as relações sociais de gênero, de raça e de classe são interdependentes e indissociáveis.
Um indício de desigualdade está na segregação horizontal e vertical: as mulheres não têm acesso às mesmas profissões que os homens, estão limitadas a um número restrito de atividades, tanto na França quanto no Brasil e têm poucas perspectivas de promoção (o fenômeno do glass ceiling, o teto de vidro) e a polarização do emprego feminino. A segregação dos empregos e das atividades em todo o mundo é o que Danièle Kergoat (2012) chama o princípio da separação (distinção entre trabalho masculino e feminino).
Se as taxas de atividade aumentam, os empregos criados são vulneráveis e precários, com o desenvolvimento do trabalho informal no Sul. E, sobretudo, a coexistência da “expansão do mercado formal de trabalho” (CARNEIRO ARAUJO, LOMBARDI, 2013: p.473) com o informal absorvendo mais mulheres do que homens, mais negros do que brancos (idem, ib. 2013).
O desemprego feminino é maior do que o masculino na maioria dos países industrializados, e as mulheres são majoritárias no desemprego oculto pelo desalento (INSEE, Enquête Emploi, 2005.a). Na França, em 2012, a taxa de desemprego feminina é, em 2012, ligeiramente mais elevada (10%) que a taxa de desemprego masculina (9,7%), mas esse diferencial foi mais importante em todos os anos passados, chegando a ser de 4% (em 1980 e em 1990); e de 3% (em 2000).
Outra similitude entre a situação das mulheres ao nível internacional: elas têm sempre salários inferiores aos dos homens. Os salários femininos são inferiores aos salários masculinos, e há desigualdade salarial entre homens negros e brancos, mulheres negras e brancas. Segundo o INSEE, a desigualdade de salários entre mulheres e homens na França não tem variado nas últimas
décadas, o diferencial de salários permanecendo em torno dos 25% (Silvera, 2014). Esse diferencial diminui no setor público e varia segundo as categorias sócio-profissionais. Assim, o diferencial mais significativo se observa entre os executivos, e o menor na categoria de empregados. Em 1950, o diferencial de salários era, como no Japão hoje, de 50% mas ele se estabilizou em torno de 25% desde a metade do século passado. No Brasil, o diferencial de salários está, hoje, em torno de 30% (OLIVEIRA COSTA, 2013), após um longo período em que esteve em torno de 35%.
Quanto ao trabalho precário, sem proteção social e sem direitos, ele diz respeito a 30% das mulheres ocupadas, contra 8% dos homens ocupados (LOMBARDI, 2010). O exemplo paradigmático do trabalho precário é o emprego doméstico, sobretudo o emprego de diarista, majoritariamente exercido sem vínculo empregatício, sem proteção social e sem direitos. 16% das mulheres brasileiras ocupadas são empregadas domésticas.
Enfim, quanto à divisão sexual do trabalho doméstico: se indicamos desigualdades gritantes no que diz respeito ao trabalho profissional, pior ainda parecem ser as desigualdades no âmbito do trabalho doméstico: o que é atribuído a um e a outro sexo é um fator imediato de desigualdade e de discriminação. A atribuição do trabalho doméstico às mulheres permaneceu intacto em todas as regiões do mundo, com diferenças de grau na sua realização, dos modelos tradicionais aos modelos de delegação. A delegação às empregadas domésticas e diaristas é muito mais importante no Brasil do que na França, pois se há cerca de 1 350 000 mulheres trabalhando nos serviços domésticos e de cuidados na França (INSEE, Enquête Emploi, 2005.b), no Brasil, segundo o recenseamento da população de 2010, há 7 000 000 de pessoas no emprego doméstico, das quais cerca de 5% do sexo masculino.
Podemos concluir essa apresentação sumária das desigualdades entre mulheres e homens no trabalho, nos referindo à constatação feita sistematicamente hoje a partir das pesquisas empíricas em ciências sociais: a posição das mulheres e dos homens na hierarquia social, em termos de repartição do trabalho doméstico, de hierarquia profissional ou de representação politica não é a mesma nas sociedades contemporâneas. O paradoxo dessa desigualdade persiste, a despeito do fato de que as mulheres têm níveis de
educação superiores aos dos homens em quase todos os níveis de escolaridade e em praticamente todos os países industrializados.
Por exemplo, na França, segundo os dados para 2012 da Pesquisa Emprego do INSEE, 87% de mulheres e 82% de homens, na faixa etária de 20-24 anos, possuem diplomas do ensino superior, do 2° grau e equivalentes. Inversamente, entre os que não completaram os estudos e não obtiveram diplomas do 2° grau, há mais homens (18%) do que mulheres (13%), segundo a mesma Pesquisa Emprego do INSEE. Na maioria das vezes, os desempenhos escolares das meninas são superiores aos dos meninos em escala mundial (Baudelot, Establet, 2013). Entretanto, a despeito do melhor desempenho escolar das mulheres em relação aos homens em quase todos os países industrializados, a situação de inferioridade das mulheres no mercado de trabalho permanece. O que coloca uma série de questões sobre justiça e ética, conhecimento e ação politica, sobre os quais o paradigma interseccional tem avançado proposições que discutiremos a seguir.
Pode-se situar a gênese do paradigma interseccional nas elaborações teóricas do blackfeminism. Patricia Hill Collins (1990), Audre Lorde (1980), Angela Davis (1981), bell hooks (2015 [1982]), todas teóricas e militantes negras, afirmaram, desde 1981-1982, a natureza interseccional da opressão das mulheres negras (HILL COLLINS, 1990; cf. também Combahee River Collective, 1979). Mas é uma jurista negra, Kimberlé Crenshaw (1989a), que é conhecida como a teórica da interseccionalidade, a partir do seu objetivo de melhor formular os termos da ação jurídica para defender as mulheres negras contra a discriminação de raça e de sexo (e de classe). O que abarca o conceito de interseccionalidade?
A extensão desse conceito a outras categorias, como a sexualidade e a orientação sexual, a idade, a nação, a etnicidade, a deficiência, etc. faz parte central do debate (HIRATA, 2014). Creio que gênero contém a dimensão “sexualidade” e, portanto, a interseccionalidade deve apontar para a imbricação de gênero/sexualidade, raça e classe.
Embora a gênese do conceito de interseccionalidade possa ser situada, como dissemos acima, no final dos anos setenta, com o blackfeminism, cuja
crítica coletiva se voltou de maneira radical contra o feminismo branco, de classe média, heteronormativo, a vasta literatura existente em língua inglesa e mais recentemente também em francês aponta o uso, pela primeira vez desse termo para designar a interdependência das relações de poder de raça, sexo e classe, num texto da jurista afro-americana Kimberlé W. Crenshaw (1989.b).
A problemática da “interseccionalidade” foi desenvolvida nos países anglo- saxões a partir dessa herança do blackfeminism, desde o início dos anos noventa, dentro de um quadro interdisciplinar, por Kimberlé Crenshaw e outras pesquisadoras inglesas, americanas, canadenses e alemãs. Entretanto, a ampla difusão e controvérsias em torno desse conceito na literatura feminista data da segunda metade dos anos 2000. Com a categoria da interseccionalidade Crenshaw (2005.a [1994]) focaliza, sobretudo, as interseções da raça e do gênero, abordando parcialmente ou perifericamente classe ou sexualidade, que podem contribuir para estruturar suas experiências (as das mulheres de cor) (CRENSHAW, 2005.b, p. 54).
A interseccionalidade é uma proposta para “levar em conta as múltiplas fontes da identidade” embora não tenha a pretensão de propor uma nova teoria globalizante da identidade (id. ibid.). Crenshaw propõe a subdivisão em duas categorias: a “interseccionalidade estrutural” (a posição das mulheres de cor na intersecção da raça e do gênero e as consequências sobre a experiência da violência conjugal e do estupro e das formas de resposta a tais formas de violência) e a “interseccionalidade política” (as políticas feministas e as políticas antirracistas que têm como consequência a marginalização da questão da violência em relação às mulheres de cor) (id. ibid). Essa formulação do início dos anos noventa, desenvolvida posteriormente pela própria Crenshaw e outras pesquisadoras, tem hoje, na definição de Sirma Bilge (2009), uma boa síntese:
A interseccionalidade remete a uma teoria transdisciplinar que visa apreender a complexidade das identidades e das desigualdades sociais por intermédio de um enfoque integrado. (BILGE, 2009).
Ela refuta o enclausuramento e a hierarquização dos grandes eixos da diferenciação social que são as categorias de sexo/gênero, classe, raça, etnicidade, idade, deficiência e orientação sexual. O enfoque interseccional vai
além do simples reconhecimento da multiplicidade, dos sistemas de opressão que opera a partir dessas categorias e postula sua interação na produção e a reprodução das desigualdades sociais (BILGE, 2009, p. 70).
É interessante notar que a problemática da “consubstancialidade” de Danièle Kergoat foi elaborada a partir do final dos anos setenta em termos de articulação entre sexo e classe social, para ser desenvolvida, mais tarde, em termos de imbricação entre classe, sexo e raça. Embora ambas partam da intersecção, ou da consubstancialidade, a intersecção, mais visada por Crenshaw no ponto de partida da sua conceptualização é aquela entre sexo e raça, enquanto a de Kergoat é aquela entre sexo e classe o que fatalmente terá implicações teóricas e políticas significativamente diferentes. Um ponto maior de convergência entre ambas é a proposta de não hierarquização dos tipos de opressão.
O desenvolvimento das pesquisas feministas na França, o contato com as ideias vindas de outro lado do Atlântico, as interpelações das feministas negras em países onde a opressão racial foi objeto de análise bem antes da França, como é o caso do Brasil, certamente contribuíram para uma sensibilização crescente às relações de poder ligadas à dimensão racial e às praticas racistas.
Embora pesquisadoras como Colette Guillaumin (1972, 1992) tivessem conceptualizado o racismo desde o início dos anos setenta e a “raça” desde os primeiros momentos da existência da revista Questions Féministes na França, no fim dos anos setenta, essa conceptualização não se fez em termos interseccionais ou de “co- extensividade” da raça, do sexo e da classe social.
O interesse teórico e epistemológico de articular sexo e raça, por exemplo, fica claro nos achados de pesquisas que não olham apenas para as diferenças entre homens e mulheres, mas as diferenças entre homens brancos e negros e mulheres brancas e negras, como fica claro nos trabalhos de Nadya Araujo Guimarães, no Brasil, mobilizando raça e gênero para explicar desigualdades salariais ou diferenças quanto ao desemprego (GUIMARÃES, 2002 e GUIMARÃES e ALVES DE BRITTO, 2008). A partir dos dados da PNAD 1989 e 1999, Araujo Guimarães mostra que, considerando sexo e raça, veem-se os homens brancos com os mais altos salários; em seguida, os homens negros e as mulheres brancas; e, por último, as mulheres negras com salários significativamente inferiores (GUIMARÃES, 2002, p.13).
Também considerando sexo e raça, a partir de levantamentos via Agência Nacional de Empregos (ANPE) 1995 e 1998, da França e via questionário suplementar à Pesquisa de Emprego e Desemprego (PED) da SEADE/DIEESE 1994 e 2001, Araujo Guimarães mostra que os imigrantes estrangeiros estão em formas mais precárias de emprego em relação aos franceses; que as mulheres negras e brancas na França estão mais representadas na inatividade, mas que há peso maior das mulheres negras em relação às brancas no desemprego e nas formas precárias de ocupação. No caso do Brasil, as mulheres brancas e negras têm trajetórias duradouras nas ocupações de menor prestígio e más condições de trabalho, como o emprego doméstico, as mulheres negras sendo mais numerosas nessas ocupações. Ambas estão também sobrerepresentadas no desemprego.
Homens brancos e negros estão sobrerepresentados nas trajetórias de emprego formal e de trabalho autônomo, embora os últimos em menor proporção. Eles têm trajetórias marcadas pela instabilidade de forma mais marcante que os homens brancos, indicando vulnerabilidade maior (GUIMARÃES, 2008, p. 51 e seg.).
O interesse jurídico de articular sexo e raça é cabalmente demonstrado por Crenshaw (2008) quando ela se refere ao caso de um contencioso jurídico na fábrica da General Motors nos Estados Unidos, que ilustra bem o que é interseccionalidade: o tribunal desagregou e recusou a acusação de discriminação racial e de gênero da parte de mulheres afro-americanas, afirmando que a GM recruta afro-americanos para trabalhar no chão de fábrica e que também recruta mulheres. O problema sublinhado por Crenshaw é que “os afro-americanos recrutados pela GM não eram mulheres e que as mulheres que a GM recrutava não eram negras. Assim, embora a GM recrutasse negros e mulheres, ela não recrutava mulheres negras” (CRENSHAW, 2008, p.91).
Enfim, o interesse político de articular sexo e raça como elementos indissociáveis para uma luta unitária tem sido demonstrado pelas teóricas da interseccionalidade e da consubstancialidade que situam a prática no prolongamento da teoria embora a questão do véu islâmico na França tenha, ao mesmo tempo, indicado as dificuldades dessa conjunção e o surgimento de controvérsias relacionadas à opressão de raça e à opressão de sexo.
A ideia de articular relações sociais de sexo e de classe foi proposta na França desde final dos anos setenta por Danièle Kergoat (1978), que quis
“compreender de maneira não mecânica as práticas sociais de homens e mulheres frente à divisão social do trabalho em sua tripla dimensão: de classe, de gênero e origem (Norte/Sul)” (KERGOAT, 2010, p. 93). A ideia de “genrer” a classe e “classer” o gênero foi desenvolvida ao longo da sua trajetória desde o artigo de 1978 e esteve na origem da criação de um laboratório, o Grupo de Estudos sobre a Divisão social e sexual do trabalho (GEDISST) no CNRS, consagrado aos eixos temáticos de gênero e trabalho na França, em 1983.
Propusemos (Hirata e Kergoat, 1984) um apanhado crítico sobre classe e gênero num artigo que retomava a herança teórica de Christine Delphy (1977) no seu texto clássico sobre as mulheres nos estudos sobre estratificação social e discutia as teses de Eric Olin Wright. Proposta similar foi feita no Brasil, também desde os anos oitenta, por Elisabeth Souza-Lobo (2011[1991]).
A crítica da categoria de interseccionalidade é feita explicitamente por Danièle Kergoat pela primeira vez em conferência no congresso da Associação Francesa de Sociologia (AFS) em Grenoble em 2006, publicada sob forma de artigo em 2009 e traduzido no Brasil em 2010. No artigo citado, ela critica a noção “geométrica” de intersecção. Segundo Kergoat:
Pensar em termos de cartografia nos leva a naturalizar as categorias analíticas ( ... ) Dito de outra forma, a multiplicidade de categorias mascara as relações sociais. ( .. ) As posições não são fixas; por estarem inseridas em relações dinâmicas, estão em perpétua evolução e renegociação. (KERGOAT, 2010, p. 98).
Essa crítica é aprofundada na introdução do seu recente livro, Se Battre, disent-elles (2012), pelos pontos seguintes: 1) a multiplicidade de pontos de entrada (casta, religião, região, etnia, nação, etc e não apenas raça, gênero, classe) leva a um risco de fragmentação das práticas sociais e à dissolução da violência das relações sociais com o risco de contribuir à sua reprodução; 2) não é certo que esses pontos remetem todos a relações sociais e talvez não seja o caso de colocá-los todos num mesmo plano; 3) os teóricos da interseccionalidade continuam a raciocinar em termos de categorias e não de relações sociais, privilegiando uma ou outra categoria, como por exemplo a nação, a classe, a religião, o sexo, a casta, etc, sem historicizá-los e por vezes não levando em conta as dimensões materiais da dominação (KERGOAT, 2012: 21-22).
O ponto essencial, a meu ver, da crítica de Kergoat ao conceito de interseccionalidade é que ele não parte das relações sociais fundamentais (sexo, classe, raça) em toda sua complexidade e dinâmica. Entretanto, me parece que outra crítica, nem sempre explícita, é a de que a análise interseccional coloca em geral em jogo mais o par gênero-raça, deixando a dimensão classe social em um ângulo menos visível.
De uma maneira mais global, cremos que a controvérsia central quanto às categorias de interseccionalidade e consubstancialidade se refere ao que denominamos a “interseccionalidade de geometria variável”. Assim, se para Danièle Kergoat existem três relações sociais fundamentais que se imbricam, e são transversais, o gênero, a classe e a raça, para outras (cf. a definição de Sirma Bilge, supra) a intersecção é de geometria variável, podendo incluir, além das relações sociais de gênero, de classe e de raça, outras relações sociais como a relação social de sexualidade, de idade, de religião, etc. Deve-se atentar, sobretudo no que se refere à metodologia de pesquisa, quais os elementos determinantes da intersecção que devem ser analisados na sua conjunção, atentando sempre à ideia de não hierarquização das relações de poder de gênero, de raça e de classe social, ideia desenvolvida e argumentada por teóricas supracitadas, como Danièle Kergoat e Patricia Hill Collins.
Essa ideia é, por exemplo, contrária à tese de uma sobredeterminação da classe sobre as outras dimensões da intersecção, pois o paradigma interseccional critica a ideia de uma determinação em última instância pela classe social. A tese da indissociabilidade entre gênero, raça e classe também vai contra uma análise unicamente a partir da categoria de gênero, pois tratar as relações de poder unicamente a partir de uma perspectiva de gênero pode reduzir a pertinência de tal análise apenas às mulheres brancas e burguesas.
Também é necessário enfatizar a tese segundo a qual a interseccionalidade pode ser vista como uma das formas de combate às opressões múltiplas e imbricadas e, portanto, como instrumento de luta politica. É nesse sentido que Patricia Hill Collins considera a interseccionalidade ao mesmo tempo como um “projeto de conhecimento” e uma “arma política”.
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Recebido em: 07 de fevereiro de 2018. Aprovado em: 26 de fevereiro de 2018. Publicado em: 13 de junho de 2018.
Maria Ciavatta 2
O objetivo principal deste texto foi situar a pedagogia socialista no contexto histórico das sociedades onde se realizaram algumas experiências. Abordamos o tema em três momentos: questões conceituais e sua historicidade; o contexto dos processos revolucionários onde gerou-se a ideia também revolucionária da emancipação humana e da pedagogia socialista; por último, algumas experiências realizadas segundo esse ideário de homem e de sociedade, na Revolução Russa, na Revolução Cubana e no Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST).
The main objective of this text was to situate the socialist pedagogy in the historical context of the societies where some experiences were realized. We approach the theme in three moments: conceptual questions and their historicity; the context of the revolutionary processes where the revolutionary idea of human emancipation and socialist pedagogy was generated; and finally, some experiments carried out according to this ideology of man and society, in the Russian Revolution, in the Cuban Revolution and in the Landless Workers' Movement (MST).
A história da humanidade percorreu um longo caminho até chegar ao que hoje chamamos de educação socialista. Esta concepção da educação dos mais jovens pelas primeiras gerações não surgiu como uma abstração intelectual. Sua origem enraíza-se na história dos povos, nas formas de lavrar e plantar a terra, de
1 DOI: https://doi.org/10.22409/tn.16i29.p4553
2 Licenciada em Filosofia, Doutora em Ciências Humanas (Educação-PUC-RJ, 1990); Pos- doutorado na Universitá di Bologna (1995-96) e na Università di Roma (2017); Professora Titular de Trabalho e Educação, Associada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, RJ; Pesquisadora do CNPq. Coordenadora do Grupo THESE – Projetos Integrados de Pesquisa em Trabalho, História, Educação e Saúde (UFF- UERJ-EPSJV-Fiocruz.
colher os frutos e produzir a sobrevivência humana. Em linhas gerais, podemos registrar o trabalho na terra, a produção agrícola e os instrumentos rudimentares, o artesanato e a arte, a manufatura e o nascimento das fábricas.
Em todos esses processos, o ser humano usou as mãos, o corpo, o cérebro, constituindo a unidade trabalho manual, trabalho intelectual. A predominância aparente de uma ou outra capacidade de pensamento e de ação foi introduzindo diferenciações entre os gêneros, homens e mulheres, e entre os do mesmo gênero, constituindo diferentes classes de indivíduos na sociedade e nas famílias. Estaria aí, em uma análise muito simplificada, sem considerar a posse da terra e outros meios de produção, o nascimento da divisão do trabalho, assegurando a uns ou a outros os trabalhos necessários à sobrevivência, e a educação para as funções transmitidas de geração em geração.
O fim do feudalismo e o nascimento das fábricas, a Revolução Industrial a partir do século XVIII e o desenvolvimento do modo de produção capitalista vão introduzir novos meios e critérios de relações produtivas. Não se trata apenas do poder da máquina de potencializar o trabalho humano. A própria palavra trabalho adquire novo significado, deixa de indicar uma atividade penosa, ligada à pobreza, para se tornar fonte de riqueza com acesso diferenciado pelos servos e senhores.
Foi um admirável processo de criar ciência, tecnologia, beleza e acenos de bem-estar pela redução dos trabalhos penosos, com o advento das máquinas, esperança que não se confirmou para todos. Foi, também, uma nova forma de “organizar e disciplinar o trabalho através de uma sujeição completa da figura do próprio trabalhador” (DEDDECA, 1985, p. 8-10).
A educação não esteve alheia a esses processos, que se desenvolveram pari passu com a organização das classes, frações de classes e grupos sociais na apropriação diferenciada e desigual dos produtos da riqueza social. Aos donos dos meios de produção ficou reservado o planejamento, o mando na organização do trabalho e a apropriação do tempo excedente do trabalho empregado nas atividades produtivas.
Aos trabalhadores que vendem sua força de trabalho, cabem os salários estimados, na melhor das hipóteses, para suprir as necessidades básicas da sobrevivência. Nestas primeiras décadas do século XXI, com o agravamento da submissão dos trabalhadores às exigências do capital (vínculos precários,
subemprego, desemprego, baixas condições de vida), nem mesmo as necessidades básicas (alimentação, saúde, educação, moradia, saneamento, segurança, previdência) estão sendo asseguradas.
Desde a socialização para o aprendizado das artes e dos ofícios na família e nas corporações, a educação foi se tornando mais complexa. Sob a produção capitalista, gerida com o apoio do Estado, os processos educacionais se institucionalizaram até a atual mercantilização da educação sob as empresas corporativas e a privatização que conduziu a educação ao mercado de ações. Sob a existência da desigualdade das classes sociais, prevalece a distinção básica entre os que, supostamente, pensam e aqueles que executam.
Marx (1980), na sua obra magistral, O Capital, responde aos pensadores do aperfeiçoamento das atividades laborais no sentido do disciplinamento dos trabalhadores, da formação estrita para atividades funcionais à produção e à acumulação do capital. Resume em poucas linhas o que deveria superar essa distinção de classe, o que seria um princípio básico da educação socialista:
Do sistema fabril, como expõe pormenorizadamente Robert Owen, brotou o germe da educação do futuro que combinará o trabalho produtivo de todos os meninos além de uma certa idade com o ensino e a ginástica, constituindo-se em método para elevar a produção social e de meio de produzir seres humanos plenamente desenvolvidos (MARX, 1980, p. 554, [grifo nosso]).
A ideia de “seres humanos plenamente desenvolvidos” no ideário socialista foi denominada educação politécnica ou tecnológica por Marx. Na mesma sintonia de princípios, Gramsci (1981, entre outros), fala no trabalho como princípio educativo, em educação omnilateral, em uma escola unitária, para todos. Em termos aproximados a essas concepções, no Brasil, traduziu-se no ideário socialista na busca de uma educação democrática, de qualidade, com base no conhecimento dos fundamentos histórico-sociais e científico-tecnológicos do trabalho, na defesa da formação integral do ser humano, pela educação politécnica ou tecnológica, pelo ensino integrado entre a formação geral e a educação profissional.2
Em qualquer uma dessas denominações, prevalece a ideia da superação das desigualdades e das classes sociais geradas pela divisão social do trabalho e
2 Para a gênese histórica dessa concepção, ver Frigotto, Ciavatta e Ramos, 2005.
pela reprodução e acumulação capitalista da riqueza social pelas classes abastadas. Mas a ideia da educação socialista será uma abstração, se não a concebermos na sua historicidade, no tempo e no espaço da vida de cada povo e de cada situação em que foi tentada sua implementação, com vistas a uma educação emancipadora. Por isso, o delineamento dos caminhos da educação socialista, nesta apresentação, se fará em três momentos: no primeiro, questões conceituais e sua historicidade; segundo, o contexto dos grandes processos revolucionários onde gerou-se a ideia, também revolucionária, da emancipação humana e da pedagogia socialista; por último, algumas experiências realizadas segundo esse ideário de homem e de sociedade na Revolução Russa, na Revolução Cubana e na perspectiva da pedagogia socialista do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST).
Mesmo no Brasil, onde as traduções em língua portuguesa costumam sofrer alguma defasagem de publicação em relação aos originais e traduções em línguas de maior difusão (inglês, francês, espanhol), o tema pedagogia socialista não é novo na literatura. Ainda mais porque sua fundamentação teórica está em alguns escritos de Marx, de Gramsci e de Lukács, publicados nas últimas décadas no Brasil. Sobre a educação socialista, as primeiras publicações tornaram-se livremente acessíveis nos últimos anos da Ditadura e após seu final (1964-1985).3
A concepção de trabalho4 constitui um princípio básico da educação socialista. Trata-se de entender a importância fundamental do trabalho como princípio ontológico, fundante da constituição do gênero humano que, como ser da natureza e distinto dela, não prescinde, pela atividade física e mental, de retirar da natureza os meios de vida. É o que o torna um ser social que produz e compartilha com os demais o conhecimento, a cultura, os bens e a sociabilidade
3 Em português, a exemplo de: Rossi (1981 e 1982); Pistrak (1981); Makarenko (1985); Capriles
(1989); Nogueira (1990); Manacorda (1990); Nosella (1992). São mais recentes: Pistrak (2009); os verbetes sobre pedagogia socialista, educação politécnica, escola única do trabalho, escola unitária em Caldart et al. (2012); Shulgin (2013); Krupskaia (2017); Abreu (2017). Em espanhol, alguns exemplos: Gramsci (1981); Castles e Wüstenberg (1982); Botello (1987).
4 Algumas destas reflexões constam de Frigotto e Ciavatta, 2012.
gerados pelo trabalho na produção e na reprodução da existência (LUKÁCS, 1978). “O momento essencialmente separatório é constituído não pela fabricação de produtos, mas pelo papel da consciência” que produz a ideação de cada gesto, de cada produto, o que Marx considera um resultado que já existia de modo ideal na “representação do trabalhador” (idem, p. 4).
Nesse ato fundamental, em tempo- espaços determinados, Marx baseia sua concepção de história dos indivíduos, dos grupos e classes sociais (MARX; ENGELS, 1979). Na relação entre o trabalho e a educação em todas as suas formas, afirma-se o caráter formativo do trabalho e da educação como ação humanizadora através do desenvolvimento de todas as potencialidades do ser humano (CIAVATTA, 2009).
Em uma concepção dialética, o trabalho humano é a forma mediante a qual, em qualquer tempo histórico, define-se o modo humano de existir. Dado seu potencial de formação humana, mesmo nas formas mais brutais da escravidão, o trabalho não é pura negatividade. De modo que o escravo, ainda que não reconhecido como tal, tratado como simples meio de produção, é um ser humano e não se reduz a um objeto, resiste, inventa e cria espaços de vida espiritual, de cultura, de liberdade e de humanização (entre outros, MATTOS, 2009). Não fosse assim, teria sido impossível superar as relações de servidão, as escravocratas e as novas formas de opressão e mercantilização do modo capitalista de produção.
Neste nível de realização estariam todos os valores de uso. Na análise da gênese do capital, Marx (1980) vai opô-los aos valores de troca, os bens que também servem à reprodução da vida humana, mas estão sujeitos a apropriação por outros, à situação de compra e venda como mercadorias. Inclui-se aí o trabalho como força de trabalho, sujeita à divisão técnica e social do trabalho, vendida como tempo de trabalho aos donos dos meios de produção. O salário ou remuneração recebida pelo trabalhador exclui o tempo de trabalho excedente ao valor contratado para a produção, que é apropriado pelo dono do capital.5
Em ambas as situações, como valor de uso ou como valor de troca, o trabalho é educativo no sentido que gera disposições físicas e mentais, relações sociais que operam na sua positividade ou na sua negatividade, na dependência
5 Marx (1980) aprofunda a compreensão desse fenômeno na análise do fetiche da mercadoria em que o trabalhador é alienado do produto do trabalho, do conhecimento e da sociabilidade gerados pelo trabalho coletivo.
do contexto do trabalho executado e de sua apropriação pelo próprio trabalhador ou por outrem. Quando falamos em educação ou pedagogia socialista remetemos o termo à sua historicidade, aos processos de resistência à dominação e, principalmente, aos processos revolucionários que buscam a transformação das estruturas sociais de dominação nas suas formas servis, escravocratas, assalariadas, desregulamentadas e precarizadas progressivamente, nas últimas décadas.
Karl Marx, como analista agudo de seu tempo, no coração do nascente capitalismo industrial, na Inglaterra, sensibiliza-se com as condições penosas, insalubres dos trabalhadores, onde se incluíam também as crianças em trabalhos exaustivos. Nos esparsos textos em que o autor escreve sobre a educação, juntamente com Engels, volta-se para as experiências dos socialistas utópicos, particularmente Robert Owen. Como industrial, Owen desenvolveu ações públicas junto ao governo e no interior de suas indústrias, de proteção e regulamentação do trabalho das crianças, a criação de creches para crianças a partir de dois anos (ABREU, 2017).
O socialismo de Marx e Engels, que Engels chamou de socialismo científico, contrastava com os ideais dos socialistas utópicos que propunham modelos de ordem social transcendentes à sociedade de seu tempo e que haveriam de realizar-se um dia. Marx (1980) reconhece o caráter inovador, revolucionário da indústria moderna “que nunca considera, nem trata como definitiva a forma existente de um processo de produção. Sua base técnica é revolucionária, enquanto todos os modos anteriores de produção eram essencialmente conservadores” (MARX, 1980, p. 557).
Não é de se estranhar que ele considere as escolas politécnicas e agronômicas como “fatores desse processo de transformação”, assim como “as escolas de ensino profissional onde os filhos dos operários recebem algum ensino tecnológico” e a iniciação nos instrumentos produtivos. Mas, talvez, o argumento principal de sua defesa da educação politécnica seja entender que “A legislação fabril arrancou ao capital a primeira e insuficiente concessão de conjugar a instrução primária com o trabalho na fábrica” (op. cit., p. 559).
O trabalho como princípio educativo em termos gramscianos (GRAMSCI, 1981) constitui-se em uma alternativa pedagógica em favor da educação omnilateral, completa no sentido de desenvolver toda a potencialidade dos
alunos. No mundo moderno e contemporâneo, as escolas assumem o trabalho como princípio pedagógico que se realiza em uma dupla direção. Sob as necessidades do capital, da formação de mão de obra para as empresas, o trabalho educa para a disciplina, para a adaptação às suas formas de exploração ou, simplesmente, para o adestramento nas funções úteis à produção.
Mas sob a contingência das necessidades dos trabalhadores, o trabalho não deve somente preparar para o exercício das atividades fabris, técnicas ou tecnológicas, no campo e na cidade. Deve propiciar o acesso à compreensão e ao uso qualificado dos processos técnicos, científicos e histórico-sociais que lhe são subjacentes, que sustentam as artes, a comunicação, a introdução das tecnologias e da organização do trabalho (FRIGOTTO; CIAVATTA, 2012).
É importante acrescentar nestas últimas notas sobre questões da educação socialista, o conceito de totalidade social que organiza internamente toda obra de Marx, e tem sua argumentação clássica no Método da Economia Política (1977). “ A população é uma abstração se desprezarmos, por exemplo, as classes de que se compõe. Por seu lado, “as classes são uma palavra oca se ignorarmos os elementos em que repousam, por exemplo, o trabalho assalariado, o capital etc.” (MARX, 1977, p. 229). Poderemos alcançar o conhecimento de uma determinada população, não na abstração da semântica do termo, mas como “totalidade viva”, como “síntese de múltiplas determinações” (idem, p. 228-29).
Assim, também, a historicidade da educação e da pedagogia socialista somente pode ser compreendida no conjunto das relações que a determinam no tempo e no espaço dos processos revolucionários. Estes abalaram o mundo em diferentes lugares e temporalidades, nas lutas pela transformação de todas as estruturas de opressão econômica, política, social, educacional.
Não se pode compreender, em profundidade, as partes, independente do todo que lhe dá sentido e significado. Assim, também, não se pode entender o movimento dos povos e grupos sociais em direção a um mundo emancipado dos grilhões que prendem a vida humana, fora do contexto das grandes mobilizações, das revoltas populares e das revoluções que tiveram curso no mundo ocidental onde vivemos.
A história registra processos lentos como a longa duração das estruturas de Braudel (1982) e processos de tempos médios e breves. Não cabe, nas dimensões e nos objetivos deste texto, uma digressão sobre a história das revoltas no mundo. Mas é ilustrativa a menção às grandes revoluções, sejam as de pensamento, sejam as de luta armada. Todas se realizam mediante grandes inversões dos poderes políticos, instituídos sob diversas formas de dominação, de modo predominante, escravidão e servidão, pobreza, mas também de inconformidade, de ideias mobilizadoras para a transformação.
Nesta seção, trataremos, brevemente, de alguns desses grandes movimentos de transformação: o Renascimento, a Revolução de Copérnico, a Reforma Protestante, a Revolução Científica de Darwin, a Revolução Inglesa, a Revolução Francesa e a Revolução Russa.6
Começamos por um dos fenômenos mais polêmicos entre os historiadores, o sentido do momento histórico do Renascimento, cujo contexto está associado à crise do feudalismo e ao surgimento do capitalismo na Europa Ocidental, a partir do século XIV. O Renascimento, o Humanismo, a Reforma Protestante teriam sido expressões dessa crise que assinala a ascensão de grupos sociais que buscavam contestar as explicações católicas e feudais e explicar seu papel no universo. O ápice do movimento de Renascimento nas letras e nas artes “foi na Itália rica, comercial e urbanizada”, com os grandes artistas do período, Michelangelo e Rafael, entre outros (SILVA, 2005, p. 359-62).
Nos movimentos econômicos e culturais que se sucedem e se completam ao longo dos séculos, outras grandes inversões de pensamento e de poder político podem ser ilustrativas dos avanços e percalços da humanidade na sua dialética da transformação. A Revolução de Copérnico (1473-1543), segundo a qual a Terra gira em torno do Sol, e não o contrário, desafiou a verdade da Igreja Católica, detentora do saber último e da explicação divina sobre as origens dos processos que regem a vida humana. Pelos seus estudos de astronomia, sustentados arduamente por Kepler, Copérnico desafiou e inverteu os poderes constituídos, abrindo espaço para a ciência moderna (JAPIASSÚ, 1985).
6 Pelas dimensões deste texto, não trataremos das guerras de libertação dos países da América Latina no século XIX, de outro importante processo revolucionário, a Revolução Mexicana, que tomou o ideário da educação socialista como base para a organização do sistema educacional do México na primeira metade do século XX.
Também pela Reforma Protestante (1517), Martinho Lutero (1483-1546) afrontou as autoridades eclesiásticas em defesa do direito do livre exame da palavra dos livros sagrados, subtraindo sua interpretação à autoridade máxima católica, o papa.
Não menos importante foi o fenômeno do Iluminismo (século XVII – XVIII). Surgiu na França e defendia o domínio da razão sobre a visão teocêntrica. Tratava-se de eliminar as “trevas” que obscureciam o pensamento e a sociedade desde a Idade Média. Também chamado “Século das Luzes”, os filósofos iluministas (citem-se John Locke, Voltaire, Rousseau entre outros), reafirmavam que, pela razão e pelo conhecimento, o homem, centro do mundo, seria capaz de buscar respostas para seus problemas.
Na mesma linha de confronto, mas sem apelo popular na época, salvo a polêmica nos meios eclesiais e científicos, a Revolução Científica de Charles Darwin (1809-1882), em meio a uma vida de viagens, de estudo e de temores pela repercussão das próprias ideias, afirmou a evolução das espécies, negando, ipso facto, o mito bíblico da criação do ser humano. Com seu rigor na descrição das espécies nos lugares mais primitivos da terra, como as Ilhas Galápagos, gerou a oposição que perdura até hoje em diversas denominações religiosas.
Citando as revoluções armadas no mundo ocidental europeu, o fenômeno mais geral das “revoluções burguesas”, estaria datado nos séculos XVII e XVIII, entre 1640, marco inicial da Revolução Inglesa, e 1789, marco da Revolução Francesa.7 São revoluções que tinham por inspiração as ideias iluministas de liberdade, dos direitos do homem em oposição ao absolutismo, à monarquia, à aristocracia, aos títulos de nobreza.
Christopher Hill (1987), em seu livro clássico sobre a Revolução Inglesa de 1640, fala em The world upside down8 e dá os elementos mais gerais de uma revolução: “Durante muitos séculos as revoltas populares constituíram uma característica essencial da tradição inglesa, e as décadas centrais do século XVII presenciaram a maior revolução que já ocorreu na Grã-Bretanha” (HILL, 1987, p.
7 https://pt.wikipedia.org/wiki/Revolu%C3%A7%C3%A3o_Industrial; Acesso em 010-10-2017
8 Falando sobre a tradução, Renato Janine Ribeiro, o tradutor, explica: “O termo poderia ser traduzido de diversas formas: o mundo de ponta-cabeça, mas também o mundo de cabeça para baixo, o mundo girado de cabeça abaixo, o mundo de pernas para o ar. Todas aparecem no texto. Todas são uma só” (p. 21). Como paulista que é, o tradutor escolheu o termo comum no estado e o mais expressivo do sentido amplo dessa Revolução, o mundo de ponta-cabeça.
29). E explicita a gênese da Revolução Inglesa: “as tentativas de vários grupos, formados em meio à gente simples do povo, para imporem as suas próprias soluções aos problemas de seu tempo” (idem, p. 30-31). Identifica, mais adiante, os interesses e os sujeitos sociais daquela época, propondo soluções políticas, econômicas, religiosas, sociais, educacionais. Sua história é escrita sobre as ideias e ações dos setores populares.
Outra grande transformação foi a passagem do sistema doméstico para o de fábrica, sobre a qual convencionou-se o nome de Revolução Industrial, na segunda metade do século XVIII. Foi a transição do artesanato e dos ofícios para os processos de manufatura, por máquinas, processos químicos, produção de ferro, uso de novas fontes de energia (água, vapor), máquinas-ferramenta (IGLÉSIAS, 1982). Registra-se seu início na Inglaterra e nos Estados Unidos, alimentada também pelo jugo e colonização de outros povos, expandindo o livre mercado para outros continentes e seus países, em busca de matérias primas.
A Revolução Francesa, em 1789, eclodiu em um período de extrema agitação política e social na França, sob a influência das grandes transformações de vida do povo com o fim do feudalismo, as novas relações de produção que expandiam a urbanização e a organização do trabalho sob o poder político e econômico da burguesia ascendente (DEDDECA, 1985).
Hobsbawn (1982) situa a Revolução Francesa como a grande revolução (1789-1848), como “um levante gêmeo” da Revolução Industrial nos dois Estados rivais, França e Grã-Bretanha. Para o autor, não teria sido:
“o triunfo da ‘indústria’, mas da indústria capitalista; não da liberdade e da igualdade em geral, mas da classe média ou da sociedade ‘burguesa’ liberal; não da economia moderna ou do Estado moderno, mas da economia e Estados em uma determinada região geográfica” (HOBSBAWN, 1982, p. 17, grifos do autor).
Não nos deteremos nas Guerras de Libertação que, bem ou malsucedidas, atravessaram todos os continentes nos países colonizados pelos europeus. Citem-se a independência das colônias latino-americanas, do México à Argentina; as africanas, a exemplo de Angola e Moçambique, as lutas antirracistas na África do Sul.
O outro abalo político e social de grande repercussão foi a Revolução Socialista, a Revolução Russa que tem seu marco simbólico em 1917 e, no ano de 2017, completou 100 anos. Deve ser vista no contexto do mundo em transformação pelo capitalismo. Hobsbawn (1988), em A era dos impérios, detalha vários acontecimentos que sinalizam os movimentos em marcha que são parte do contexto de onde emerge a grande Revolução Socialista. Mencionaremos apenas alguns deles.
“O fato maior do século XIX é a criação de uma economia global única que atinge progressivamente as mais remotas paragens do mundo”. São transações econômicas, comunicações e intercâmbios de bens, dinheiro e pessoas que dos países “ligando os países desenvolvidos entre si e ao mundo não desenvolvido” (op. cit., p. 95).9 Com o novo imperialismo do capital – não apenas dos títulos de nobreza da autocracia – surgem também os movimentos operários, as políticas democráticas e “a tentativa de utilizar a expansão imperial para diminuir o descontentamento interno por meio do avanço econômico ou reforma social, ou de outras maneiras” (idem, p. 105).
Na Rússia czarista, quem se mobilizava para a ação política, “em partidos e movimentos de explícita base de classe”, eram as massas operárias, mediante alianças, coalizões e “frentes populares”. (id., p. 131). Mobilizavam-se, também, “grupos de cidadãos unidos por lealdades setoriais, como as de religião e as de nacionalidade” (id., p. 133). A classe operária crescia e, com ela, a ameaça “sobre a ordem estabelecida na sociedade e na política. Que aconteceria se os operários se organizassem politicamente como classe?” (id. p. 169).
Foi precisamente o que aconteceu, em escala europeia e com extraordinária velocidade. Onde quer que a política democrática e eleitoral o permitisse, apareciam em cena, crescendo com rapidez assustadora, os partidos de massas baseados na classe operária, em sua maior parte inspirados na ideologia do socialismo revolucionário (pois todo socialismo era, por definição considerado revolucionário) e liderado por homens – e às vezes por mulheres – que acreditavam nessa ideologia (HOBSBAWN,1988).
9 Sobre mundo não desenvolvido, v. Hobsbawn (1982), cap. 3 (indicação do autor).
A pedagogia socialista, além de ser um ideário nascido das ideias de emancipação, das revoltas e de grandes revoluções, é uma concepção de ser humano e de educação. Por princípio, contesta as formas de dominação, exploração e degradação a que povos, classes e grupos sociais podem ser submetidos. Mas a concepção de educação do homem, como ser plenamente desenvolvido em todo seu potencial, realiza-se na dependência da história das diferentes sociedades. Sua elaboração teórica e prática sempre teve vínculos orgânicos, com experiências de luta social e política, concepções particulares de formação humana, tendo à frente a concepção hegemônica do capital que impõe a forma mercadoria “como marco de construção de sua subjetividade e materialidade histórica” (CIAVATTA; LOBO, 2012, p. 561).10
Este pressuposto é vital para entendermos os caminhos da construção da pedagogia socialista na Rússia após a Revolução de 1917 e em Cuba após a Revolução Cubana, vitoriosa em 1959. Sua historicidade permite compreender a gênese do ideário da educação socialista no Brasil,11 país que não passou por processos semelhantes, apenas teve muitas revoltas populares obscurecidas pela história. Recuperamos também alguns aspectos de uma análise crítica sobre a educação socialista e a perspectiva da pedagogia socialista do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra.
A relação dialética entre a consciência e o modo de produzir a vida está no cerne dos processos revolucionários. A Revolução Russa vitoriosa em 1917 teve grandes embates na dinâmica das estratégias de organização da sociedade e da educação. Neste trabalho, será considerado apenas o período que vai até 1929, sob a ação do Comissariado do Povo para a Educação, sob o comando dos
10 Esta seção tem por base Ciavatta e Lobo (2012).
11 Referimo-nos à proposta de educação politécnica da Projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação na segunda metade dos anos 1980 (entre outros, SAVIANI, 1997) e à proposta de formação integrada pelo Decreto n. 5.154/2004, incorporada à LDB n. 9.394/96 pela Lei n. 11.741/2008, subsumida na contra-reforma do Ensino Médio pela Lei n.13.415/2017 e, praticamente, inviabilizada pelo contexto dos conteúdos da Lei e pela situação de corte de recursos com a aprovação do “Teto do Corte de Gastos”, EC n. 95/2016.
primeiros educadores revolucionários: Krupskaia, Lunacharsky, Schulguin; as experiências de Pistrak e a Escola Comuna; Makarenko e as instituições educacionais correcionais.12 Tratava-se de para implantar a “nova sociedade” pelos ideais da “educação do futuro”, a educação do “homem novo” que deveria crescer com a sociedade comunista.
Não foi a aplicação de um modelo, mas o trabalho de busca das melhores respostas aos problemas da Revolução, em um projeto que se iniciou com a “a contradição histórica da primeira revolução socialista [que] teve lugar, não no mais avançado país capitalista, mas em um país atrasado onde as forças produtivas e a estrutura da sociedade eram ainda semifeudais”. Não havia ensino formal para a maioria dos operários e dos camponeses; ao menos três quartos da população eram analfabetos; os professores não estavam capacitados, tinham baixos salários e baixa posição social. A Igreja Ortodoxa dirigia a maioria das escolas (CASTLES e WUNSTEEMBERG, 1982, p. 66-69).
A população foi informada sobre as mudanças pretendidas: “educação geral, livre e obrigatória para todas as crianças e cursos especiais para os adultos”; “escola secular, unitária com diferentes níveis, para todos os cidadãos”; apoio para “o movimento educativo e cultural das massas trabalhadoras”, assim como para “organizações de soldados e operários”; “os professores deveriam cooperar com outros grupos sociais” e se tomariam medidas imediatas para a “miserável situação material” dos mais pobres, os mais importantes trabalhadores culturais e os professores das escolas elementares. Cabia a Krupskaia a tarefa de projetar um novo sistema educativo e a Lunacharsky, a administração de todos os tipos de educação.
Ao Estado cabia assumir as escolas privadas e confessionais; entre outras medidas, fez-se a “separação entre Estado e Igreja e entre Igreja e escola”; buscando-se a “transformação de todas as escolas em escolas unitárias de trabalho”, cuja estrutura fixava duas etapas: dos oito aos 13 anos (cinco anos de
12 Sua metodologia de trabalho sofreu oposição do grupo Petrogrado de Educadores, liderado por Blonsky, “que aceitava a escola unitária de trabalho, mas pedia que se mantivessem a divisão entre as matérias, a forma de ensino sistematizada, um programa de estudos definido, e a diferenciação em diversos ramos do conhecimento no oitavo e no nono ano” (CASTLES e WUNSTEEMBERG, 1982, p. 75). A partir de 1931, com a ascensão de Joseph Stalin ao posto maior de comando do governo da URSS, adota-se uma política de desenvolvimento econômico que passa a exigir uma política educacional com base na formação técnica. A primeira equipe do Comissariado é desfeita ou se afasta de suas funções.
estudo); e dos 13 aos 17 anos (mais quatro anos); e jardim de infância articulado às escolas para crianças de cinco a sete anos (id.p. 72-73).
O trabalho produtivo combinado à aprendizagem escolar era um elemento essencial da educação. Para Krupskaia, o princípio do trabalho deve ser “educativo e gratificante, e deve ser levado a cabo sem efeitos coercitivos sobre a personalidade da criança e organizado de forma social e planejada”, para que desenvolva “uma disciplina interna, sem a qual o trabalho coletivo planejado racionalmente seria impensável”. Ela e Lunacharsky enfatizavam que “a educação socialista não era somente uma questão de conteúdos, mas também de métodos. Rejeitavam a escola livresca e exigiam que as crianças aprendessem tomando parte no trabalho e na vida social” (id., p. 74-75, grifo nosso).
Com Schulguin (2013), defendiam o método complexo: “os professores não deviam ensinar seguindo um programa rígido, por matérias acadêmicas. Em vez disso, os aconselhava a tomar como ponto de partida os problemas das crianças, da produção local e da vida cotidiana e examiná-los, simultaneamente, à luz das várias disciplinas” (CASTLES e WUNSTEEMBERG, 1982, p. 74-75, grifo nosso). “O conceito de trabalho socialmente necessário” de Schulguin, “abre outras dimensões para o entendimento ampliado do trabalho como princípio educativo.” Sua concepção articula ensino com trabalho produtivo desde a educação infantil (FREITAS, 2013, p. 9).
O livro de Schulguin (op. cit.) mostra as controvérsias com pedagogos dos países capitalistas (a exemplo de Kerchensteiner, Dewey)13, especialmente na relação da escola com o trabalho nas sociedades burguesas. Schulguin fala em “trabalho social”, “aquele que produz algum resultado”, que é “concreto”, “tem valor pedagógico”, “orientado para a melhoria da economia e da vida, para elevar o nível cultural do meio”, que “está em conformidade com as forças dos adolescentes e com as particularidades de sua idade” (id., p. 89-91).
Outro nome memorável entre os grandes educadores do ideário pedagógico socialista é Pistrak. Ele tinha uma visão educacional concomitante à ascensão das massas na Revolução, “a qual exigia a formação de homens
13 Georg Kerchensteiner (1854-1932), pedagogo alemão contemporâneo dos autores socialistas, defendia a escola do trabalho para desenvolvimento da inteligência prática e superação do intelectualismo livresco; John Dewey (1859-19524), filósofo e pedagogo norte-americano, era defensor da escola pública, do pragmatismo, da Escola Ativa, uma das bases da Escola Nova no Brasil.
vinculados ao presente, desalienados, mais preocupados em criar o futuro do que em cultuar o passado, e cuja busca do bem comum superasse o individualismo e o egoísmo” (TRAGTENBERG, 1981, p. 8-9).
O documento mais importante legado por Pistrak (1981) é o livro Fundamentos da Escola do Trabalho, prefaciado pelo autor em 1924. Pistrak fala das “dificuldades práticas” e da descoberta de uma “pedagogia social” pelo seu coletivo. As ideias “foram se tornando cada vez mais sólidas no processo de luta e nos encontros com professores primários em diversos momentos e em diferentes lugares, permitindo-nos que tomássemos consciência de experiência de outras escolas e demais instituições infantis” (PISTRAK, 1981, p. 26).
Os trabalhos de tradução do russo para o português de Luiz Carlos de Freitas com Alexey Lazarev e Natalya Pavlova têm permitido a ampliação da compreensão dos processos escolares em que se gerava a pedagogia socialista. Trazem também a discussão de questões específicas, como o caso da educação pelo trabalho, o politecnicismo, segundo Schulguin (op. cit.). Também a tradução do livro de Krupskaia (2017) traz novos elementos sobre os estudos e a prática da coordenadora do grande projeto coletivo que foi A construção da Pedagogia Socialista ao longo de mais de dez anos de atividade.
Um trabalho, até recentemente, desconhecido entre nós, é uma obra coletiva de Pistrak (2009) e dos professores que trabalhavam com ele na Escola- Comuna, uma escola experimental de demonstração, do Ministério da Educação. A Escola do Trabalho é detalhada nas questões relativas a uma pedagogia do trabalho educativo, tais como questões de direção, de política da juventude comunista e das diversas disciplinas escolares (Matemática, Física, Ciências Naturais etc.).
Makarenko tem uma trajetória particular. Era ucraniano e iniciou suas atividades ainda no período czarista. Mas seu legado para a pedagogia socialista vem de 1920, quando passou a dirigir instituições educacionais “correcionais” para crianças e adolescentes abandonados: a Colônia Maxím Gorki (1920 a 1928) e a Comuna Dzerzinski (1927 a 1935). Sua inserção no projeto educacional da Revolução ocorreu no momento em que o Estado soviético proporcionou todas as condições para a educação, inclusive com a redução do horário de trabalho em duas horas para todos os que estudavam. E “era permitido aproveitar as Casas
do Povo, igrejas, clubes, casas particulares e locais adequados nas fábricas, empresas e repartições públicas para dar aulas” (CAPRILES, 1989, p. 30-31).
Desses autores, Makarenko parece ter sido o único a permanecer à frente de instituições educativas depois de 1930, mantendo os princípios pedagógicos que sustentaram o êxito de suas atividades: o trabalho coletivo de educação e de gestão da instituição e o reconhecimento da “criança real, concreta, as diferentes personalidades e o modo pelo qual se desenvolve cada uma delas de forma diferenciada no processo de autogestão” (LUEDMANN, 2002, p. 19). Sua obra principal é o Poema Pedagógico (MAKARENKO, 1985) onde, de forma literária, ele expõe os princípios educacionais e suas experiências práticas nos coletivos das duas instituições que dirigiu.
Como outras revoluções, a Revolução Cubana, quando foi vitoriosa no final do ano de 1959, iniciou o seu processo revolucionário das instituições, dos poderes, dos sujeitos sociais revolucionários de primeira hora, daqueles que os apoiaram e dos que contestavam o novo poder que se instalava no país. O governo revolucionário coerente com o ideário do socialismo do legado marxista e conhecedor de sua realização na URSS, levou adiante as medidas de desapropriação urbana e rural, coletivização inicial da agricultura, alimentação básica, alfabetização universalizada para toda a população, serviços de saúde públicos, nova Constituição, organização dos poderes executivos, legislativos e judiciários.
A história da Revolução Cubana faz parte do contexto dos países da América Latina, primeiro submetidos à colonização predatória da Espanha e de Portugal e, depois, submetidos ao capitalismo europeu e norte-americano. Cuba era um país secularmente dominado por ditaduras, gangsters, policiais, militares neocoloniais, conservadores escravistas, reformistas falsos. Houve momentos cruciais de disputa com o mundo capitalista, particularmente, os Estados Unidos que se opuseram desde sempre, a perder seu espaço de dominação, exploração e de lazer na ilha de Cuba.
14 Esta seção tem por base Ciavatta (1992) e Ciavatta e Lobo (2012).
Mas os povos da América Latina tiveram no movimento cubano um exemplo de lutas de libertação, vitoriosas no empenho de implantar o ideário socialista. Foram lutas que alimentaram os sonhos e os movimentos políticos pelo fim das ditaduras no Brasil, no Chile, na Argentina, no Peru. Mas, talvez, nas condições de ausência de organização política, sob a tutela do autoritarismo e as condições de pobreza, a população brasileira se manteve embalada pelas promessas políticas e pelo medo à repressão.
Não obstante os avanços conseguidos após a redemocratização representativa do Brasil, nos anos 1980, prevalece a acomodação aos projetos desenvolvimentistas. Estes têm como referência as exigências do mercado produtivo e financeiro, e não o atendimento às necessidades básicas de subsistência da população (saúde, educação, moradia, trabalho, alimentação etc), fundamentais na construção de um regime socialista.
O historiador Pablo González Casanova (1987) relata que a Revolução Cubana “ocorreu em um país onde todos os projetos reformistas e nacionalistas tinham fracassado sistematicamente”. Mas, desde os anos 1920, o país contava com “um dos partidos comunistas mais combativos e melhor armados ideologicamente para a luta de libertação e a luta operária”. Trabalhadores assalariados, operários industriais e camponeses, “constituíam uma força potencialmente socialista”. Homens “morais e valentes” tais como José Martí, Céspedes, e os mais novos, Fidel Castro, Carlos Rafael Rodriguez e outros, começaram uma nova história sobre três linhas de conduta: “uma democrática, uma humanista e uma comunista” (CASANOVA, 1987, p. 187).
Fidel Castro e os companheiros haviam estudado o marxismo e o leninismo e sabiam "que a revolução devia contar com as massas e estas precisavam estar conscientes – como ator coletivo – dos requisitos do sucesso”. Mas, também, desde 1956, o grupo revolucionário ligou-se ao “setor mais atrasado e combativo”, aos camponeses da serra, que queriam terras (CASANOVA, op. cit., p. 188-189)
O desenvolvimento da luta na serra, da luta de guerrilhas, não foi feito apenas na serra, nem só com armas. O grupo rebelde repartiu terra enquanto combatia, fundou escolas e hospitais, praticou uma educação política e militar dos camponeses combatentes e de seus próprios quadros (ibid., p. 190).
A educação das massas foi uma das metas principais da Revolução Cubana desde o seu início em 1959. Seus princípios norteadores foram: o princípio do caráter massivo da educação, ou “a educação como um direito e um dever de todos é uma realidade em Cuba”; o que significa a educação para crianças, jovens e adultos, em todas as idades, sexo, grupos étnicos, religiosos, por local de residência ou por limitações físicas ou mentais, de modo a alcançar a universalização do ensino primário inicialmente e, progressivamente, o ensino secundário e superior (Pedagogia,93, 1993, p. 12, grifo nosso).
A nova educação teve início com uma ampla campanha de alfabetização que se iniciou logo após a Revolução, envolvendo toda a sociedade e contando com o deslocamento de jovens e maestros de outros países da América Latina para alfabetizar onde houvesse analfabetos, nos lugares mais distantes do país (MURILLO ET AL., 1995; ROSSI, 1981; BISSIO, 1985). Sistematizou-se o
princípio da combinação estudo e trabalho, que tem profundas raízes no ideário pedagógico de José Martí.
Segundo o Ministério da Educação (MINISTÉRIO, 1984), “O problema de como levar à prática na escola cubana a aplicação do princípio politécnico e laboral foi resolvido mediante o enfoque politécnico nos diferentes planos de estudo, o trabalho socialmente útil, as atividades extraescolares e a vinculação do estudo com o trabalho” (p. 111). Pelo princípio da participação de toda a sociedade nas tarefas da educação do povo, reconhece-se a sociedade como uma grande escola.
Não obstante a pressão internacional e, particularmente, o bloqueio econômico e político conduzido pelos Estados Unidos, Cuba tem, até hoje, os mais altos índices de universalização e qualidade da educação, em todos os níveis, comparáveis aos países ricos capitalistas.
Na história da educação brasileira, a dualidade educacional é uma constante. Quando o desenvolvimento da indústria exigiu trabalhadores com alguma instrução, as elites no poder e seus intelectuais organizaram instituições educacionais para a assistência e o disciplinamento dos pobres e desvalidos; depois vieram sucessivas leis e reformas educacionais, destinando às classes de
baixa renda, aos trabalhadores, a rede primário-profissional, e às classes média e alta, a rede de ensino secundário-superior (CUNHA, 1998). Estudos mais recentes e atuais reafirmam até hoje, como o regime de acumulação capitalista, “ao aprofundar as diferenças de classe, aprofunda a dualidade estrutural como expressão cada vez mais contemporânea (...)” conservando o dualismo na educação (KUENZER, 2007, P. 1154).15
Este contraponto é importante para entender a análise de Puiggrós (op. cit.) e a presença inovadora da educação socialista pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST) no Brasil. Sobre o socialismo, diz a autora que “todo objeto de estudo é construído a partir de posições ideológicas e políticas que necessariamente outorgam um determinado rumo à análise”. E é inevitável “considerar que a sociedade socialista” é superior à capitalista pelos ideais de justiça social e de relações mais democráticas, ressalvando as contradições históricas de sua pretensa “infalibilidade pragmática, sobretudo com respeito à evolução autoritária que tiveram seus sistemas políticos” (p. 109-10).
A universalização da alfabetização e do acesso progressivo à escolaridade básica e científico-tecnológica até o nível superior deu às populações da URSS e de Cuba padrões só alcançados pelos países de capitalismo central.16 Eles são inspiradores para as mudanças que se pretende na educação pública nas escolas geridas com a participação do MST, que completa 30 anos de criação do setor educação nos estados como uma de “suas tarefas políticas”. Roseli Caldart (2017) 17 ressalta o novo ciclo de atuação “que se projeta pela inserção das escolas na construção da Reforma Agrária Popular” (CALDART, 2017, p. 262).
A autora apresenta quatro pressupostos que orientam a pedagogia socialista como horizonte prático e teórico do Movimento. Primeiro, “como o conjunto de esforços ‘de associação e de teorização de práticas educativas protagonizadas pelos trabalhadores ao redor do mundo” de um ponto de vista de classe, para a “construção de novas relações sociais de caráter socialista”
15 Basta citar a recente lei da Reforma do Ensino Médio, Lei. n. 13.415 de 2017, que retorna aos idos da Reforma Capanema nos anos 1940.
16 Entre outros, ver Puiggrós (op. cit.), sobre detalhamento dos avanços do sistema educacional cubano (p.114 e ss.).
17 Neste texto, trazemos apenas algumas notas sobre a pedagogia socialista do MST, de Roseli Caldart (2017) na comemoração dos 100 anos da Revolução Russa. Seu trabalho e de outros autores, a exemplo de Luiz Carlos de Freitas, Dermeval Saviani, Gaudêncio Frigotto, Roberto Leher, é parte do Seminário “Construção histórica da Pedagogia Socialista: legado da Revolução Russa de 1917 e desafios atuais”, realizado em Guararema, S. P., 24 a 27 de maio de 2017.
(FREITAS, 2009, apud CALDART, 2017, p. 263). Segundo, a pedagogia do MST é entendida “como um esforço particular de construção concreta da pedagogia socialista”. O MST “tem buscado vincular a educação às lutas de transformação social, desde a realidade atual do campo” (ibid.).
“Terceiro, a pedagogia socialista não cabe na escola. É muito mais ampla e se refere aos processos de formação dos lutadores e construtores do socialismo nos diferentes tempos e espaços educativos da vida social” (PISTRAK, 2015, apud CALDART, p. 264). A escola deve ter em conta a sintonia com "as circunstâncias de cada momento histórico, a formação social concreta (realizando as transformações e (as insubordinações) necessárias” (CALDART, ibid.).
Em quarto lugar, “os caminhos da transformação da escola na direção da pedagogia socialista implica enfrentar as contradições e os dilemas metodológicos da relação educação/escola e trabalho (...) Dar centralidade a esta relação em uma direção emancipatória exige uma nova lógica de organização do trabalho pedagógico” (ibid.).
Teoricamente, o MST iniciou seu trabalho com a leitura da Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire e as palavras geradoras. Mas logo foi introduzida a leitura de Pistrak, Ensaios sobre a escola politécnica (2015) “que traz a organização de estudos pelo sistema de complexos”. Pistrak também reivindica “uma escola que não fique aquém das exigências da vida” (apud CALDART, id.,
p. 265-66). Com Marx e Engels, aprofundou-se “a compreensão sobre o princípio educativo do trabalho” (id., p. 274).
A autora ainda chama a atenção para o trabalho do MST junto às escolas das áreas de reforma agrária; o II Congresso do MST, em 1990, que definiu como estratégia de luta “ocupar, resistir, produzir”, a partir de dois diferenciais importantes, “o protagonismo dos trabalhadores rurais sem terra e suas organizações de luta pela terra e a organização coletiva do trabalho nos assentamentos, que se chamou de cooperação agrícola”. De 1990 a 1991, a proposta de educação do MST firmava “a relação entre escola e trabalho (produção)” que remete às “formulações dos pedagogos russos sobre a auto- organização dos estudantes e a participação das crianças e dos jovens no trabalho produtivo” (id., p. 267, grifos da autora).
No momento, o trabalho educativo da escola está intimamente vinculado à
Reforma Agrária Popular (RAP) que:
Assume o ‘enfrentamento dos sujeitos trabalhadores contra as forças do capital’. É popular porque não se destina apenas aos trabalhadores sem-terra, mas visa todo o povo e somente será realizada por uma aliança do conjunto da classe trabalhadora, como tática vinculada a estratégia de luta contra o capitalismo e acúmulo de forças para mudanças estruturais na sociedade (MST, 2014, p. 46, apud CALDART, id, p. 276, grifos da autora).
Retomamos nestas breves considerações, a exigência da historicidade na análise crítica do tema para que se possa compreender o papel das grandes revoluções do mundo ocidental e o ideário do conjunto de projetos educacionais da Rússia e de Cuba e, por último, do MST. Fundamentalmente, queremos significar a necessidade de situar os acontecimentos – fatos ou fenômenos, segundo outras interpretações teóricas – no contexto do tempo-espaço e das sociedades em que ocorrem, sob a ação dos sujeitos sociais que atuam segundo suas concepções de homem e de sociedade. Também significa assumir que toda ação, assim como toda apreciação crítica, contém as posições ideológicas e políticas dos sujeitos envolvidos nos processos, nas ações e na reconstrução histórica dos acontecimentos.
Todas as grandes revoluções são controversas pelos ideais que alimentaram e pela historicidade dos limites e características positivas, umas, negativas, outras, de sua realização. Todas influenciaram os povos e seus projetos de vida, entre os quais, os de educação. Foram sempre processos de luta pela reversão dos poderes constituídos, o que Christopher Hill chamou de “o mundo de ponta-cabeça”, ao relatar e analisar a Revolução Inglesa de 1640.
No mundo ocidental, outras grandes revoluções tiveram consequências semelhantes na transformação dos poderes constituídos e no ideário legado para outros povos. Foram as revoluções de pensamento e de cultura, o Renascimento e o Iluminismo, a Revolução de Copérnico, a Reforma Protestante, a Revolução Científica de Darwin. Foram as revoluções de massas, a Revolução Francesa, a revolução liberal no contexto da Revolução Industrial. Afirmou os princípios de cidadania universal e o lema de Liberdade, Igualdade e Fraternidade, que permaneceu como um ideário sob o poder da burguesia, a submissão do trabalho
ao capital, a prevalência do mercado em todo o mundo, hoje, globalizado na economia, na comunicação, na cultura.
Outra grande revolução foi a Revolução Russa, revolução socialista que destituiu os poderes constituídos aristocráticos. Inicialmente, deu voz e poder aos trabalhadores, camponeses e operários. Opôs-se ao imperialismo capitalista e universalizou a educação e a elevação do padrão de vida de toda a população, mas desenvolveu a economia com base no capitalismo de Estado, no autoritarismo e repressão. Deu inspiração e apoio à Revolução Cubana que, embora de menor abrangência, trouxe um novo ideário revolucionário, emancipador, principalmente, aos países dependentes do capitalismo na América Latina e na África.
Dentro de nosso tema principal, a pedagogia socialista, Puiggrós (1992) sintetiza a historicidade necessária à crítica: “A investigação pedagógica realizada sob o foco dos grandes paradigmas contemporâneos tende a estabilizar seus resultados, e a inclusão da visão histórica desordena o consenso imaginado no interior do sistema” (p. 97), do ideário alimentado pelos estados onde ocorreram as revoluções. A desorganização do consenso, aludida pela autora, é resultado de uma visão dialética dos processos sociais e educacionais, na perspectiva histórica das transformações como “síntese de múltiplas determinações” (MARX, 1977, aspas nossas).
Os projetos capitalistas de educação remetem sempre a uma educação dual, diferenciada em humanidades, letras e artes para os filhos das classes abastadas, encaminhados para o ensino superior e destinados aos postos de alto nível nos poderes executivo, legislativo e judiciário, além das carreiras de maior status e remuneração, a medicina, a engenharia e o direito.18 As revoluções socialistas caracterizam-se por processos diferenciados de participação das massas, sob o ideário democrático, dando-lhes acesso à educação, aos benefícios da riqueza social produzida pelo trabalho.
18 No Brasil, entre as primeiras providências de D. João VI, quando veio para o Brasil, em 1808, foi a criação dos cursos de medicina, engenharia e direito. No Brasil, as universidades foram proibidas durante toda Colônia e o Império. Apenas em 1920, criou-se a Universidade do Brasil na lei.
Concordando com Puiggrós, não significa que ela, nem nós, desconheçamos os rumos diferenciados da pedagogia socialista, face aos reducionismos mercantis da educação capitalista, mas que também a primeira também deve ser vista nas contradições engendradas por seus processos sociais, antes e depois da revolução.
Ao longo dos seus trinta anos de existência, o MST tem se destacado pela visão política democrática, pelo sentido de ampla participação dos trabalhadores na emancipação de todas as formas de exploração do trabalho e da desigualdade social; na conquista dos direitos básicos a uma vida digna (educação, saúde, alimentação, moradia, previdência, segurança); na posse da terra para a “soberania alimentar” com proteção à natureza, no direito social ao trabalho e efetiva participação social no projeto de país. No Brasil, a reforma agrária popular e a educação socialista são frentes de luta, cada vez mais árduas diante da ruptura institucional operada pelo golpe parlamentar, jurídico e midiático impetrado em agosto de 2016.
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Recebido em: 06 de dezembro de 2017. Aprovado em: 27 de fevereiro de 2018. Publicado em: 13 de junho de 2018.
Carmen Sylvia Vidigal Moraes (FEUSP-Brasil)3 Doris Accioly e Silva (FEUSP – Brasil)4
O trabalho apresenta resultados iniciais de projeto de pesquisa mais amplo sobre práticas culturais e educativas desenvolvidas pelo movimento operário ou direcionadas aos trabalhadores pelos setores dominantes no decorrer do século XX, especificamente no estado de São Paulo. É nosso objetivo específico localizar/destacar o percurso do ideário anarquista, traduzido num conjunto de prescrições práticas para a organização da denominada Escola Moderna n.1 por grupos anarquistas, entre 1912 e 1919, tomado comparativamente ao projeto pedagógico dos Ginásios Vocacionais Noturnos, uma iniciativa de política pública de educação, nos anos 1960, destinada a jovens e adultos trabalhadores.
El trabajo presenta resultados iniciales de proyecto de investigación más amplio sobre prácticas culturales y educativas desarrolladas por el movimiento obrero o dirigidas a los trabajadores por los sectores dominantes a lo largo del siglo XX, específicamente en el estado de São Paulo. Es nuestro objetivo específico localizar / destacar el recorrido del ideario anarquista, traducido en un conjunto de prescripciones prácticas para la organización de la denominada Escuela Moderna
n. 1 por grupos anarquistas, entre 1912 y 1919, tomado comparativamente al proyecto pedagógico de los Institutos Vocacionales Nocturnos, una iniciativa de política pública de educación, en los años 1960, destinada a jóvenes y adultos trabajadores.
1 DOI: https://doi.org/10.22409/tn.16i29.p4554
2 A temática, aqui desenvolvida, constituiu um dos tópicos do programa do Minicurso “Educação socialista e emancipação social: concepções e experiências ao longo do século XX”, ministrado na 38ª Reunião Nacional da ANPEd – 01 a 05 de outubro de 2017 – UFMA – São Luís/MA. Com algumas modificações, o texto baseia-se no trabalho apresentado em VII Jornadas Científicas de la SEPHE e V Simposio Iberocamericano: Historia, Educación, Patrimonio Educativo, realizado em San Sebastian, País Basco, entre os dias 29 de junho e 1 de julho de 2016, e publicado nos Anais do Colóquio.
3 Professora livre-docente da Faculdade de Educação –USP . moraescs@usp.br
4 Professora doutora da Faculdade de Educação –USP . daccioly@usp.br
O propósito do artigo consiste em apresentar as considerações iniciais de projeto de pesquisa mais amplo sobre práticas culturais e educativas desenvolvidas pelo movimento operário ou direcionadas aos trabalhadores pelos setores dominantes no decorrer do século XX, especificamente no estado de São Paulo, uma das regiões do Brasil em que tais iniciativas se manifestam com maior força e onde a documentação historiográfica apresenta-se mais rica.
É nosso objetivo específico localizar/destacar o percurso do ideário anarquista, a influência produzida por este ideário relativamente às ações educativas, traduzida num conjunto de prescrições práticas para a organização da denominada Escola Moderna n. 1 por grupos anarquistas (no caso anarco- sindicalistas) entre 1912 e 1919, tomando-o comparativamente ao projeto pedagógico dos Ginásios Vocacionais Noturnos, uma iniciativa de política pública de educação, nos anos 1960, destinada a jovens e adultos trabalhadores. Experiência pedagógica diferenciada e de caráter emancipatório, extinta pelo governo civil militar (1964 – 1985), opunha-se à estrutura dual do ensino médio, concebia a formação geral integrada à formação para o trabalho, não dissociava educação e cultura e, tampouco, educação e trabalho.
A construção do inventário dessas duas propostas educacionais que se contrapunham aos modelos hegemônicos de escolarização pretende possibilitar a discussão das formas de apropriação de estratégias educativas que circulavam na sociedade brasileira, tanto no âmbito dos governos quanto no de grupos de trabalhadores, no movimento operário e sindical, contribuindo para restituir à história educacional do período a dimensão das disputas em torno de projetos pedagógicos diferenciados e a mobilização de dispositivos que serviram a uma pluralidade de propósitos distintos e/ou antagônicos.
Com essa perspectiva de análise, pretende-se evitar um equívoco recorrente na historiografia brasileira, o da visão demiúrgica do Estado, do Estado onipotente e onipresente, que antecipa as classes para poder criá-las e promover o capitalismo tardio (CHAUÍ, 1978, HARDMAN, 1983). Nesse esquema empobrecido, a luta de classes não é constituinte do processo histórico, mas apenas o seu resultado, uma vez que nenhuma das classes em presença, nenhuma das frações de classe apresentaria os requisitos para elaborar projetos
próprios e apropriar-se do poder, vazio preenchido pelo poder do Estado. No que diz respeito à historiografia educacional no período estudado queremos evitar igualmente outro equívoco: era dominante o recurso à figura do transplante cultural como um lugar-comum, que explicava o abismo alegado entre os bons propósitos ilustrados de uma elite convencida do poder democratizador e liberalizador da educação e os resultados efetivos desses propósitos. Os projetos educacionais dessas ilustres elites não se teriam transformado em realidade porque inspirados em ideologia forjada no estrangeiro, como entende, por exemplo, G. Bastos Silva (1983).
Uma questão paralela e importante neste trabalho de pesquisa consiste em demarcar que, no domínio de investigação dirigido à história das relações entre trabalho e educação, os esforços relativos aos procedimentos de método procuram, em primeiro lugar, superar análises que reduzem o seu objeto de estudo - o das relações entre as duas esferas da atividade social - a dois termos pensados separadamente: educação e divisão do trabalho, escola e empresa, ou ensino geral e ensino profissional. Entende-se que apenas a análise histórica possibilita superar equívocos presentes em abordagens que apreendem isoladamente estas categorias. A compreensão da realidade social, que se enraíza necessariamente no passado e se projeta no futuro, consiste em exigências de conhecimento e inteligibilidade que permitem objetivar situações concretas, singulares.
Com essas preocupações e a partir de fontes primárias (fontes documentais textuais, aliadas às iconográficas e complementadas pelas fontes orais) e secundárias pretende-se contribuir para alargar a compreensão da dimensão política destas escolas, contextualizando-as; indicar as suas especificidades relativas à renovação metodológica que empreenderam no campo pedagógico; analisar interfaces possíveis em suas práticas e concepções; e, por fim, apresentar contribuições para o repensar do ensino público na atualidade brasileira.
Como já foi explicitado, a comunicação baseia-se em dois trabalhos de pesquisa histórica e arquivística4, realizados por grupo de pesquisadores, professores e alunos bolsistas (Iniciação Científica, Mestrado e Doutorado) do Centro de Memória de Educação, da Faculdade de Educação, da Universidade de São Paulo/Brasil, os quais consistem no recolhimento, organização, acondicionamento e referenciação das fontes de dois Acervos que se encontram, hoje, sob a guarda daquele Centro de Memória da Educação/CME: o Acervo João Penteado e o Acervo Maria Nilde Mascelani, este último ainda em processo de organização e análise.
O Arquivo Escolar João Penteado consiste em conjunto documental inédito, de interesse substantivo para a reconstrução histórica das práticas educativas, composto de documentos produzidos e acumulados por uma das organizações escolares criadas e mantidas por anarquistas no país, a Escola Moderna Nº. 1, e pelas posteriores instituições educacionais que funcionaram a cargo do educador João Penteado (1912 a 1961), bem como o seu Arquivo Pessoal, que incluem documentos escritos pelo professor, os quais expressam com relevante ineditismo o pensamento deste importante militante da educação libertária no Brasil.
É bastante conhecida a importância atribuída à educação pelo movimento anarquista, vinculada intimamente à concepção de “revolução social” que defendiam, ao processo de consolidação da ordem social libertária que pretendiam instaurar (LUIZETTO, 1987). É possível observar, nesse sentido, entre as diversas iniciativas culturais de natureza pedagógica (imprensa, teatro, literatura etc), a criação e a manutenção de escolas, centros de estudos e universidades populares. No entanto, apesar do esforço de alguns
4 Projeto “Pesquisa sobre Educação e Cultura Anarquistas em São Paulo: o Arquivo João Penteado”, realizado pelo grupo interdisciplinar de estudos e pesquisas sobre Cultura e Educação Anarquistas, financiado com auxílio do CNPq e FAPESP. Finalizado em 2012, produziu o livro “Educação Libertária no Brasil”, publicado em 2014 (EDUSP e FAP-Unifesp), contendo o Inventário de Fontes do Acervo João Penteado e análises sobre os documentos levantados. E o Projeto “O Ensino Renovado em São Paulo: Classes Experimentais, Ginásios Vocacionais e Escolas de Aplicação (1950-1970)”, em andamento no CME-FEUSP, com a participação dos professores Carmen S.V. Moraes-FEUSP (coord.), Angela de Barros Tamberlini-UFF e Doris Accioly e Silva-FEUSP.
pesquisadores5, no âmbito das atividades educacionais desenvolvidas pelo anarquismo no Estado de São Paulo, as práticas relacionadas à educação escolar permanecem as menos conhecidas. Em grande parte, como observa Luizetto (1987), os problemas têm residido nas lacunas de informação causadas pela ausência de fontes e/ou dificuldade de se reunir séries documentais completas. A esse respeito, entende-se que o acesso a documentos inéditos dos arquivos das escolas dirigidas por João Penteado, no largo período de quase 50 anos, pode propiciar a abertura de novas perspectivas de conhecimento a respeito das práticas educacionais libertárias propostas e implementadas pela Escola Moderna, bem como sobre a história do ensino no estado.
O acervo, doado por parentes de João Penteado6, possui cerca de 37.610 documentos administrativos e pedagógicos; 900 fotografias soltas e 24 Álbuns de formaturas e outros eventos escolares, num total de 4800 fotos; filme sobre eventos comemorativos e atividades esportivas; 300 exemplares dos jornais elaborados por professores e alunos; 200 manuscritos do fundador; e cerca de 167 peças museológicas, como quadros, objetos do antigo Laboratório para o ensino de ciências, da geografia, maquinário das aulas de datilografia, projetor de imagens de 16 mm, entre outros, além de móveis utilizados na escola, como estantes e carteiras. Algumas peças contêm identificação de sua procedência ou ano de fabricação, indicando as marcas Bender (BRA), Burroughs (USA), Waller (BRA), Remington (BRA), entre outras.
O Arquivo constitui-se de séries documentais completas acumuladas no estabelecimento de ensino ao longo de quase 50 anos, entre 1912 e 1961, contendo informações relevantes sobre a vida institucional nos diferentes momentos de sua história nos quais esteve sob a direção do referido educador anarquista: Escola Moderna n. 1 (1912 – 1919); Escola Nova (1920 – 1923): Academia de Comércio Saldanha Marinho (1924 - 1943); Escola Técnica de Comércio Saldanha Marinho (1944 – 1947); Ginásio e Escola Técnica Saldanha Marinho (1948 – 1961). A denominação e cronologia das escolas, criadas pelo educador após a extinção da Escola Moderna, estão relacionadas não apenas às suas atribuições pedagógicas, aos níveis e modalidades de cursos ofertados, mas
5 Entre esses pesquisadores, podem ser citados Flávio Luizetto (1984, 1986, 1987,), Edgar
Rodrigues (1992), Silvio Gallo (1995).
6 A esse respeito, consultar Moraes, Carmen S.V. (org.), 2012.
também à necessidade de obedecer a denominações e regras prescritas pelas normas legais, frequentemente modificadas pelos governos estadual e federal7.
O Arquivo Pessoal, organizado separadamente, reúne 751 documentos: fotografias, correspondências e produção intelectual de João Penteado (livros, peças de teatro, poemas, discursos, textos didáticos). O Centro de Memória da Educação tem sob sua guarda parte da biblioteca escolar que estava alocada no prédio do Colégio Saldanha Marinho, constituída por 120 volumes, 14 periódicos, e 03 apostilas elaboradas na escola. Essa parte da biblioteca inclui obras pedagógicas, de conteúdo didático, técnico - voltado ao ensino comercial e da contabilidade, e outras relacionadas ao campo do espiritualismo, principalmente ao espiritismo kardecista e ao espiritualismo de krishnamurti.
As propostas educacionais libertárias chegaram ao Brasil, trazidas pelo movimento anarquista já no final do século XIX. A partir dos anos 1890, as concepções socialistas e anarquistas difundem-se com a expansão urbana e industrial, o aumento do fluxo imigratório e o consequente aumento no número de trabalhadores e operários. Entre as ações educacionais desenvolvidas pelos militantes e simpatizantes anarquistas encontra-se a abertura de várias escolas no Estado de São Paulo, duas delas na capital, as chamadas Modernas, situadas nos bairros operários do Belenzinho e do Brás, e dirigidas, respectivamente, por João Penteado e Adelino Pinho. O primeiro passo foi a constituição de um Comitê organizador da Escola Moderna de São Paulo, em 1909, encarregado de programar a Escola Moderna n.1 e providenciar os recursos econômicos indispensáveis8. Em 1912, após obter autorização do Diretor Geral da Instrução
7 Ao mesmo tempo, não deixa de despertar interesse a escolha dos nomes que lhe foram atribuídos, seja o de Escola Nova, referência provável ao expressivo movimento pedagógico em curso no país, na época; seja o de Saldanha Marinho, que homenageia importante ‘republicano histórico’ de São Paulo, dos momentos da Propaganda, e o primeiro Grão mestre da Maçonaria Republicana, eleito por voto secreto pelos maçons, em oposição à ala maçônica que apoiava o Governo Imperial, liderada pelo Visconde do Rio Branco (Moraes, 2006).
8 Conforme observa Edgar Rodrigues (1992), inúmeras outras iniciativas ocorreram, no país e no estado de São Paulo, antes e depois da criação das Escolas Modernas. Uma ocorrência primeira foi a Escola União Operária, fundada no Rio Grande do Sul em 1895, provavelmente originária da iniciativa dos ex-integrantes da Colônia Cecília, como indica Edgar Rodrigues, seguida da criação, também naquele estado, na cidade de Porto Alegre, de uma outra escola fundada em homenagem ao Eliseé Reclus, a Escola Eliseé Reclus, local que o militante anarquista teria visitado em sua passagem pelo Brasil. Em São Paulo, a Escola Liberária Germinal surgiu em 1903, e seguia o método da Escola Moderna de Barcelona. Na cidade de Santos, a União Operária dos Alfaiates teria fundado, em 1904, a Escola Sociedade internacional, e a Federação Operária, a Escola Noturna, em 1907. Há, ainda, o registro das chamadas Escolas Livres, como as de Campinas, fundada, em 1909, pela Liga Operária; a Escola da Liga Operária de Sorocaba, criada em 1911; a Escola da União Operária de Franca, fundada por Teófilo Ferreira, em 1912; e o
Pública do Estado para instalar e fazer funcionar o estabelecimento, o Comitê decidiu entregar a direção da Escola a uma pessoa identificada com a doutrina libertária e portadora das qualidades pedagógicas necessárias ao exercício pedagógico. A escolha recaiu no professor João Penteado, partidário da corrente kropotkiniana do anarquismo (comunista libertária) e admirador da obra de Francisco Ferrer Guardia, pedagogo espanhol fundador das Escolas Modernas de Barcelona (LUIZETTO, 1986; 1987).
João de Camargo Penteado nasceu em Jaú, interior do estado de São Paulo, em 04/08/1877, e faleceu, na capital, em 31/12/1965. Autodidata, iniciou a carreira de professor concursado no magistério municipal de Jaú, tendo lecionado, depois, em outras cidades do interior do estado. Nos anos 1900, ainda em Jaú, associou-se ao Centro Operário da cidade, tornando-se redator do jornal “O operário”, “órgão das classes trabalhadoras”, fundado provavelmente em 1905. É difícil afirmar em que época exatamente João Penteado teria entrado em contato com os escritos de Kropotkin, Reclus, Grave e outros comunistas libertários, cujos livros podem ser encontrados em sua biblioteca. Para Romani (2002), Penteado teria conhecido as propostas da educação libertária e a pedagogia de Ferrer em uma das conferências realizadas por Oreste Ristori em Jaú. De qualquer maneira, como assinala Luizetto (1986), seus textos publicados na imprensa operária9 revelam familiaridade com as ideias próprias daquela concepção do anarquismo. As pesquisas realizadas pelo grupo de estudo João Penteado revelam também as afinidades desse educador com as concepções do cristianismo anarquista de Tolstói (ACCIOLY e SILVA, D.; SANTOS, L., 2013, p. 200).
As Escolas Modernas de São Paulo foram fechadas em 1919, por ordem da Diretoria da Instrução Pública do Estado de São Paulo, após acidente provocado pela explosão de uma bomba no bairro do Brás, no qual perderam a
surgimento de uma Escola Moderna, em São Caetano, em 1919. Rodrigues (1992) menciona, ainda, a Escola Nova, fundada em 1912, no bairro da Mooca, em São Paulo, por Florentino de Carvalho, e a existência em 1920, também na capital, da Escola Joaquim Vicente. O levantamento existente sobre as escolas anarquistas e sua organização é bastante incompleto, fazendo-se urgente o necessário trabalho de mapeamento dessas instituições e a localização das fontes documentais a elas relacionadas, visando sua preservação e organização.
9 João Penteado contribuía regularmente com a imprensa operária, escrevendo artigos em jornais anarquistas como “A Plebe”, “A Lanterna”, “A Rebelião”, entre outros (Arquivo Edgar Leuenroth/Unicamp e Arquivo Escolar João Penteado, CME-FEUSP). A esse respeito, consultar Santos, Luciana 2007.
vida quatro militantes anarquistas, entre eles José Alves, diretor da Escola Moderna de São Caetano 10.
No que se refere aos Ginásios Vocacionais, de acordo com os objetivos propostos, estamos trabalhando com documentos pertencentes a dois acervos: o do Centro de Documentação e Informação Científica “Professor Casimiro dos Reis Filho” - Cedic, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, constituído nos anos 1990 por iniciativa de Maria Nilde Mascellani; e o do Centro de Memória da Educação - CME, da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, organizado em 2009, a partir dos documentos doados por Silvana Mascelani, irmã de Maria Nilde, após a morte da educadora.
No final dos anos de 1950 e início da década seguinte, em um período de ampla discussão de ideias, propostas de desenvolvimento nacional e preocupação com a formação oferecida aos estudantes no então ensino secundário (médio), organizado em dois ciclos – o ginasial e o colegial - e marcado por uma formação dualista que cindia a formação geral e a preparação para o trabalho, um grupo de gestores públicos e educadores procuraram adequar o ensino secundário ao que consideravam como exigências de uma sociedade em transformação.
No ano de 1961, por meio da Lei 6.052, foram aprovadas as reformas do ensino industrial no Estado de São Paulo, que se anteciparam à promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional em 20 de dezembro do mesmo ano. A partir de uma brecha nesta lei estadual, educadores que questionavam a dualidade do ensino, conseguiram criar o Serviço de Ensino Vocacional - SEV e viabilizar uma nova concepção de educação. A partir da promulgação da Lei nº
10 Excerto do Relatório do Interior de São Paulo no ano de 1919, apresentado em anexo por Luizetto, 1984. Documentos manuscritos de João Penteado, 1919 (Arquivo João Penteado/CME- FEUSP). A respeito do episódio, consultar também Marques, A. s/d. As experiências das escolas libertárias, as de São Paulo e as organizadas por todo o país, sugerem que o movimento libertário alcançou mais densidade do que geralmente faz supor a história do anarquismo brasileiro, centrado nas greves e reivindicações trabalhistas. As iniciativas e os esforços empreendidos para promover a educação, sobretudo em sua forma escolar, indicam que segmentos expressivos de trabalhadores, ainda que de modo incipiente, organizaram-se vislumbrando alcançar mudanças profundas na sociedade. As iniciativas de cunho educacional agregaram tanto militantes imigrantes – como Orestes Ristori, Gigi Damiani, Adelino de Pinho, Florentino de Carvalho, e Neno Vasco – quanto militantes brasileiros – como Edgard Leuenroth, Octavio Brandão, João Penteado, José Oiticica, Rodolpho Felipe e Zeferino Oliva, entre outros. Destes, João Penteado, Adelino de Pinho e Florentino de Carvalho estiveram diretamente relacionados ao funcionamento de escolas libertárias, sobretudo em São Paulo (LUIZETTO, 1986; SANTOS, 2007).
4.024/61, a LDB de então, os ginásios vocacionais passaram a se respaldar na lei federal.
No início da década de 1960, surge o SEV e são implementados os três primeiros ginásios vocacionais nas cidades de São Paulo, Americana e Batatais. Ao todo foram criadas seis escolas estaduais, uma na capital e cinco no interior do Estado. Vivenciávamos, então, um dos momentos mais ricos e fecundos de nossa história, marcado por inúmeras iniciativas no campo social, político e cultural, entre as quais se destacavam as ações de jovens universitários, trabalhadores organizados e educadores comprometidos com a ampliação da escolaridade das classes populares. Nesta perspectiva de atuação engajada, voltada para a democratização das oportunidades educacionais, para a difusão, em espaços formais e não formais, da cultura e da educação para a população marginalizada, surge a proposta de formação humana e emancipatória elaborada pela professora Maria Nilde Mascellani e sua equipe.
A proposta nasce inicialmente em caráter experimental, com o intuito de construir escolas públicas diferenciadas, caracterizadas por nova concepção formativa, tanto no que diz respeito à renovação metodológica, quanto aos fundamentos que norteiam a construção da prática pedagógica. Com visão arrojada e projeto pedagógico consistente, a educadora Maria Nilde, coordenadora do SEV, e sua equipe, iniciaram a concretização da proposta escolhendo diferentes locais para a instalação das escolas. Um planejamento minucioso foi efetuado a partir de estudo sobre os moradores do local onde cada unidade se implantaria: havia interesse em diversificar a experiência educacional em comunidades diferentes, uma com característica mais cosmopolita, outra situada em região agrícola, outra em área industrial, e assim por diante, visando adequar a proposta de trabalho dos ginásios à realidade local.
Com essas orientações, o Ensino Vocacional passou, ao longo do tempo, a implementar programas de formação de professores para difundir a metodologia das escolas entre os licenciandos das universidades públicas, e a oferecer estágios a universitários, visando alcançar efeito multiplicador via propagação das experiências vivenciada. Pretendia-se, assim, expandir paulatinamente estas escolas em toda a rede pública paulista, ministrando sempre formação teórica articulada à prática por meio de programa desenvolvido em tempo integral, de quatro anos, que contemplasse as múltiplas dimensões da experiência humana.
Com esta concepção e abrangência também foram criados, em março de 1968, junto ao Ginásio Vocacional do Brooklin, na capital, o período noturno e o segundo ciclo do então ensino secundário, hoje correspondente ao ensino médio, ambos com programas fortemente voltados ao mundo do trabalho. Em 1969, a Sociedade de Pais e Mestres do Ginásio Vocacional de Rio Claro também reivindicou da Secretaria de Educação do Estado o período noturno, seguido pelos Ginásios Vocacionais de Rio Claro e Barretos. Importantes e únicas experiências de ensino integrado para jovens e adultos no país, tiveram – no entanto – duração efêmera, menos de dois anos.
Em 1964, ocorre o golpe civil/ militar e tem início o governo ditatorial que suprimiu as liberdades democráticas. Em 1968, com o Ato Institucional nº 5, houve o recrudescimento do regime e várias ações discricionárias, com o aumento das perseguições políticas, cassações de mandato e de direitos políticos, prisões, inquéritos policiais militares, proibições de reuniões e de associações. Toda sorte de restrições foi aplicada aos opositores do governo. No campo da educação, as perseguições se voltaram, de início, aos que se dedicavam à educação popular e ao trabalho com jovens e adultos, estendendo- se em seguida aos professores universitários e aos docentes da educação básica, considerados subversivos pelo regime vigente.
Em um contexto de grande repressão e violência, mais precisamente no dia 12 de dezembro de 1969, as seis escolas e a sede do SEV foram invadidas por agentes da polícia federal e por militares e seus professores, funcionários e alunos detidos. Todos os setores das escolas e do SEV foram vasculhados e seus livros, textos de estudo, relatórios e material pedagógico apreendidos e levados por agentes policiais. A professora Maria Nilde Mascellani foi cassada e aposentada com base no AI-5, e a experiência vocacional, que já vinha sofrendo perseguições, será oficialmente extinta pelo Decreto nº 52.460, de 05 de junho de 1970. As escolas passaram, então, a seguir os padrões oficiais de ensino dominantes na rede estadual.
Conviveu-se, por muitos anos, com um hiato na história da educação brasileira: enquanto perdurou a ditadura civil militar, os protagonistas desta rica experiência sentiram-se ameaçados em sua integridade física; muitos documentos foram queimados e houve o silenciamento da memória do Ensino Vocacional. As fontes que restaram, guardadas na residência de professores,
coordenadores pedagógicos e diretores, prudentemente esquecidas em baús e gavetas, só puderam ser recuperadas e compiladas em alguns poucos acervos após o fim do regime militar.
O conjunto de documentos doados, que constitui o Arquivo Pessoal da profa. Maria Nilde corresponde à sua vida profissional nos períodos em que atuou como orientadora pedagógica nas duas classes experimentais instaladas no Instituto de Educação da cidade de Socorro; como educadora da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, participando da comissão especial de elaboração do anteprojeto de lei para a criação dos Ginásios Vocacionais do Estado de São Paulo; como coordenadora geral do Serviço de Ensino Vocacional (SEV), que funcionou entre os anos de 1962 a 1969. Constam, ainda, o processo de sua aposentadoria em 1969, por meio do Ato Institucional n. 5 (AI5), e manuscritos pessoais, reflexões reunidas em um diário (na forma de crônicas, cartas e poesias) que a própria autora nomeou de “Crônicas do Cárcere”, escrito no período que esteve presa (no DOPS- Departamento de Ordem Política e Social). Fazem, também, parte deste Arquivo documentação relativa ao período em que prestou serviço para as Secretarias de Educação de São Paulo, Diadema e Rio Claro, e contribuiu na concepção de projetos em educação popular.
Neste momento em que fazemos a participação pública dos resultados parciais da pesquisa, toda a documentação já recebeu o necessário tratamento de higienização e acondicionamento, e passa agora pelo processo de análise para elaboração do plano de classificação. O arquivo corresponde a 32 caixas com, aproximadamente, 900 documentos entre livros, periódicos, cartões postais, fitas k7 com entrevistas realizadas com ex-alunos e ex-professores dos vocacionais, recortes de jornais, imagens e material didático produzido para trabalhadores, cópias de documentos oficiais de diferentes unidades dos Ginásios Vocacionais e do Serviço de Ensino Vocacional. É importante ressaltar que foram também localizados aproximadamente 800 documentos relacionados ao ensino vocacional, cedidos por ex-professoras e diretoras das escolas, distribuídos em diferentes arquivos que constituem o Acervo do Centro de Memória da Educação/FEUSP (MORAES; TAMBERLINI; ZAIA, 2012).
Na vasta documentação dos acervos do Cedic/ PUC de São Paulo e do CME – FEUSP encontram-se documentos pedagógicos, relatórios, legislação estadual, federal e documentos internos do SEV, textos produzidos por
professores e diretores, prestação de contas ao governo, registros das reuniões de planejamento, dos encontros de orientadores educacionais, impressos de circulação interna, textos, programas e avaliações das mais diferentes disciplinas, objetivos que as escolas almejavam alcançar na formação do alunado, fichas de observação do aluno com registros do percurso escolar de cada um e áreas do conhecimento em que as crianças e jovens se destacavam, buscando descobrir a sua vocação, documentos do departamento de publicações, textos de autoria dos professores apresentados nos encontros nacionais da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, atas das Associações e da Federação de Pais e Amigos dos Ginásios Vocacionais, além de teses e dissertações que versaram sobre estas escolas. Constam também, nestes acervos, os livros dos autores utilizados como referência nas concepções de homem que se pretendia formar nestas instituições, com destaque para as obras do socialista cristão Emmanuel Mounier.
Os acervos ainda contêm várias pastas com recortes de jornais e revistas da época, com os diferentes posicionamentos dos órgãos de imprensa sobre as escolas e suas práticas inovadoras. Há também ricas fontes iconográficas, além de inúmeras fotos presentes nos acervos das associações de ex-alunos das diferentes escolas, hoje digitalizadas e com acesso facilitado na internet.
O exame de várias fontes documentais torna possível resgatar, compreender e interpretar a construção e o sentido da pedagogia vocacional. Prisões, perseguições, exílios, conduziram à dispersão de pessoas e documentos desta experiência pedagógica que, por ter sido extinta abrupta e precocemente, não teve tempo de ser estudada e avaliada pelos seus realizadores.
O trabalho com fontes documentais escritas e iconográficas, aliadas à história oral, permite-nos preencher lacunas, romper com a tentativa de apagamento deste período histórico e trabalhar na perspectiva da totalidade da história, tal como concebida por Vilar (1992). Investigar a história de experiências significativas da educação pública no Brasil também nos permite despertar na juventude o interesse pela historiografia da educação, já que, como observa Hobsbawn (1995, p.13), grande parte da juventude atual cresce “numa espécie de presente contínuo sem qualquer relação orgânica com o passado público da época em que vivem”.
A proposta de resgatar as práticas educacionais operárias presentes no ensino racionalista desenvolvido nas Escolas libertárias, em particular na Escola Moderna n. 1 dirigida pelo educador anarquista João Penteado, e a dos Ginásios Vocacionais, instituição da rede estadual paulista dos anos 1960, visa possibilitar discussão mais ampla das formas de apropriação das estratégias pedagógicas que circulavam na sociedade brasileira, desde o século XIX, e irão assumir novos sentidos no movimento operário e sindical no início do século XX, e, mais tarde, entre os educadores democráticos e setores progressistas da Igreja Católica alinhados à Teologia da Libertação e ligados aos movimentos sociais populares no Brasil, os quais protagonizaram a organização dos Vocacionais. Nessa direção, pretende-se contribuir para restituir à história educacional do período a dimensão das disputas em torno de projetos pedagógicos diferenciados e a mobilização de dispositivos que serviram a uma pluralidade de propósitos distintos e/ou antagônicos (MORAES, GIGLIO, HILSDORF, 2008).
Nessa direção, o texto não propõe apresentar estudo detalhado comparativo das práticas pedagógicas dessas iniciativas educacionais. Interessa demarcar nas escolas em estudo a existência de algumas interfaces em suas práticas pedagógicas e nas concepções teóricas que as informam.
No que se refere às Escolas Modernas, é importante enfatizar que a imprensa anarquista e operária, nas duas primeiras décadas do século XX, assume forte dimensão educadora do operariado por meio da divulgação tanto dos ideais anarquistas quanto das teorias da educação racionalista, promovendo um campo de disputas em torno do modelo escolar operário recomendado pelos Congressos Operários Brasileiros e influenciando as experiências de educação escolar operárias a partir da pedagogia racionalista (MORAES, GIGLIO, HILSDORF, 2008). Além das notícias da imprensa anarquista e operária da época, a escola mantinha dois periódicos, por meio dos quais mantinha comunicação permanente com os alunos e seus pais: O Início – publicação de propaganda e órgão dos alunos da escola moderna, e o Boletim da Escola Moderna – publicação coordenada pelo diretor João Penteado.
Como foi observado anteriormente, os documentos indicam que a pedagogia libertária assimilou os pressupostos da educação integral, defendidos por Bakunin, Kropotkin e sistematizados por Paul Robin no Orfanato de Cempuis e Sebastien Faure, em La Rouche, ambos na França, e do ensino racional, organizado e difundido por Ferrer na Escola Moderna de Barcelona (1901). O Programa de Ensino Integral foi elaborado por Paul Robin para ser apresentado nos Congressos da Internacional de Trabalhadores em Lausane (1867) e em Bruxelas (1868), sendo, finalmente, incorporado ao Programa Educacional do Comitê para o Ensino Anarquista, de 1882, após o encerramento da Internacional (1876) (LUIZETTO, 1986; MORAES; CALSAVARA; MARTINS, 2013).
A concepção de educação integral e igualitária, assumida consensualmente como exigência prioritária pela Primeira Internacional, por Bakunin e Marx, e pelas tendências que ambos representavam, opunha-se à existência de dois tipos de ensino – um “aprimorado”, reservado aos burgueses, e outro “simplificado”, destinado aos trabalhadores, que expressa a dominação de classe.
A essa concepção, Paul Robin irá enfatizar, na apreensão de seu significado, a existência de três dimensões necessariamente integradas: física, moral e intelectual. Francisco Ferrer y Guardia, na direção das formulações de Robin, defende a educação integral para possibilitar “o pleno desenvolvimento de todas as capacidades do indivíduo”, “integrando o trabalho manual e o intelectual” (FERRER y GUARDIA, 1978). Nesta perspectiva, propõe a utilização de métodos ativos, a coeducação social e de sexo, e a integração da escola com seu entorno físico e social (MORAES et al., 2011).
Dessa maneira, a pedagogia racionalista vai formular, da perspectiva do movimento libertário, um modelo próprio de educação escolar que leva em conta os três elementos que marcam o quadro do debate internacional no período e que pode ser aplicado por todos (comunistas, anarquistas, socialistas), pois tem na escola um instrumento da revolução: a educação das mulheres, o ensino científico e racional e a educação leiga (MORAES, GIGLIO, HILSDORF, 2008).
É possível afirmar que tais concepções compõem uma perspectiva de renovação da sociedade, “de aposta na educação escolar como modelo civilizatório, e não mais nas formas não escolares de educação tais como a família, a igreja, as corporações de ofícios”. Ou seja, “a partir desse ideário
anarquista os comunistas libertários irão negar o estado como organizador do sistema escolar de educação, mas não irão rejeitar a ideia da forma escolar” (idem, p.7).
As Escolas Modernas de São Paulo aplicaram em suas práticas cotidianas os princípios do ensino racionalista e da pedagogia anarquista. A documentação existente, os jornais escolares em particular, permite conhecer a organização curricular, os métodos de ensino e compêndios utilizados.
De acordo com notícia publicada em A Lanterna, (05/09/1914)11, na Escola Moderna “o ensino deve ser integral, exercitando o aluno progressivamente em todos os conhecimentos intelectuais e físicos”, propondo-se “a fazer da criança um homem livre e completo, que sabe por que estudou, por que refletiu, por que analisou, por que fez a si mesmo uma consciência própria”. A concepção e importância do trabalho no processo de ensino das escolas dirigidas por João Penteado manifestam-se nos aspectos organizacionais e administrativos das instituições e em suas variadas dimensões/atividades pedagógicas – público alvo, corpo docente, cursos ofertados, conteúdos e métodos de ensino (MORAES; CALSAVARA; MARTINS, 2013, p. 152-154). No anúncio publicado em A Plebe, lê-se que a instituição pretendia proporcionar:
Ensino teórico e prático, segundo os métodos da pedagogia moderna, com os quais se ministra aos alunos uma instrução que os habilita para o início das atividades intelectuais e profissionais, assim como uma educação moral baseada no racionalismo científico (A Plebe, 1917).
Na Escola Moderna n. 1, criada em 1912, havia uma aula diurna, das 11 às
16 horas (aos sábados, das 11 às 13 horas, após o retorno do “passeio campestre”) e outra noturna, de segunda à sexta-feira, das 19 às 21 horas. A grade curricular compreendia as seguintes matérias: leitura, caligrafia, português, aritmética, geografia, história do Brasil, noções de história e princípios de ciências naturais12. A Escola Moderna N.º 2, criada provavelmente em 1913, mantinha apenas uma aula diurna, das 12 às 16 horas. A grade curricular estava constituída das seguintes matérias: leitura, caligrafia, gramática, aritmética, geometria, geografia, botânica, zoologia, mineralogia, física, química, fisiologia,
11 . A Lanterna, jornal anticlerical, estava sob a direção de Edgar Leuenroth, na época.
12 Peres, 2004, p. 122; Germinal! 13/7/1913; A Lanterna, 22/08/1914; A Lanterna, 15/04/1916.
história, desenho, etc. Em seus comunicados, o Comitê Pró - Escola Moderna comunicava às famílias, as grandes linhas que deveriam orientar a oferta das disciplinas nestas escolas: “Educação artística intelectual e moral; conhecimento de tudo quanto nos rodeia; conhecimento das ciências e das artes; sentimento do belo, do verdadeiro e do real; desenvolvimento e compreensão sem esforço e por iniciativa própria” (MATE; SANTOS; PERES; ZAIS, 2013, p. 63-64).
Atividades extra-classes eram valorizadas como complementares: as excursões campestres com objetivos “pedagógicos” e os passeios na cidade (origem de temas para os exercícios escolares cotidianos), as visitas aos museus, exposições e monumentos considerados importantes à história do país ou da humanidade. Além dos jogos e das práticas esportivas, outras práticas pedagógicas eram vivenciadas na escola: o grêmio estudantil, o cine-educativo, o teatro-educativo e a biblioteca escolar. Tais instrumentos eram destinados aos alunos, mas permitia-se a participação de outras pessoas, como ex-alunos e os moradores do bairro que não eram alunos. A relação da escola com a comunidade, sua “face pública”, manifestava-se nos exames finais abertos ao público, nos festivais de encerramento das aulas, entrega de diplomas e prêmios e nas exposições de trabalhos de alunos; e também nas festas de colação de grau, nos álbuns atividades de formatura e nos convescotes de despedida da vida escolar (Idem, p. 66).
Guardadas as suas especificidades, tanto históricas quanto filosóficas, a proposta dos Ginásios Vocacionais apresenta convergências significativas com a das escolas anarquistas no que se refere a concepções e práticas de ensino. O Vocacional constitui experiência única na história da educação pública no país: questionava a formação dual realizada na escola média, a separação entre a formação intelectual, de caráter acadêmico, voltada às classes dirigentes, e a formação para o trabalho, dirigida à população de baixa renda, bem como buscava oferecer ao seu alunado uma educação de qualidade. Valorizando o trabalho, concebido como importante dimensão da formação humana, não aceitava a divisão entre pensar e fazer. A sua proposta pedagógica, marcada por uma concepção ampla de educação, inspirada no socialismo cristão de Emmanuel Mounier, em experiências educacionais como a realizada na Escola Bibiana, organizada pelo padre Don Lorenzo Milani para os filhos dos camponeses de Bibiana, Itália, e interagindo com o ideário emancipador presente
nas discussões da época, entre eles o de Paulo Freire, logrou edificar uma das propostas mais completas realizadas na escola pública de nível médio em nosso país. Mais tarde, como Maria Nilde Mascelani irá explicitar na tese de doutorado em que resgata a história da implementação dos Ginásios Vocacionais, novas aproximações teóricas haviam sido feitas no decorrer da vivência cotidiana dos desafios educacionais, com a inclusão de autores marxianos, em particular, de Gramsci, e do próprio Marx (MASCELANI, 2010; MORAES; TAMBERLINI; ZAIA, 2012).
Os Vocacionais se valiam dos métodos ativos, constitutivos do ensino renovado: tratava-se de proposta de cunho transformador, que buscava capacitar o aluno para atuar na comunidade em que vivia. Na direção da pedagogia libertária, concebendo a formação geral integrada à formação para o trabalho, estas escolas diferenciadas não dissociavam educação e cultura, nem tampouco educação e trabalho. De acordo com o local em que a escola estava localizada, aulas das disciplinas de caráter teórico eram ministradas articuladamente a conteúdos das áreas técnicas. A elaboração do currículo de cada unidade era precedida da realização de uma pesquisa de comunidade, cujo objetivo consistia em investigar as várias características da localidade onde a escola estava localizada: economia local, escolaridade da população, perfil dos moradores, nível cultural, nível de aspiração em relação à formação das crianças, perfil do alunado, etc. O ginásio mantinha forte interação com a comunidade e o planejamento pedagógico escolar levava em conta as suas expectativas e demandas, com o propósito de também melhorar o nível cultural da população local, tornando-se assim um polo irradiador de cultura.
Para formar o aluno crítico, atuante, participativo e engajado, era de capital importância a adoção de uma metodologia que contribuísse para o desenvolvimento destas atitudes. E, assim como na Escola Moderna, o recurso ao estudo do meio era a principal técnica pedagógica utilizada nos Vocacionais, ao lado do estudo dirigido, do trabalho em grupo, dos métodos ativos ligados à coordenação das disciplinas e do planejamento geral. A proximidade com a realidade da comunidade local e o estudo de “atualidades” tinham o intuito de facilitar a compreensão inicial da sociedade e do processo histórico, e despertar no aluno o compromisso social e a perspectiva de uma participação cidadã. A concepção de que a educação transcende os muros da escola, aliada ao
profundo enraizamento na vida da comunidade local, orientava a valorização das vivências e experiências dos alunos, já que esta pedagogia concebia o ser humano situado no tempo e no espaço, compreendendo que o aluno iria elaborar o seu conhecimento a partir de suas vivências, para extrair de situações concretas a construção de formas de agir, sentir e organizar conceitos.
A proposta pedagógica dos Ginásios Vocacionais Noturnos, assentada na mesma filosofia que orientou os Ginásios Vocacionais de tempo integral, seguia orientações comuns à pedagogia libertária na sua relação com a cidade e o entorno escolar. Destinada a jovens e adultos trabalhadores que retomavam os estudos escolares, seu planejamento foi realizado por meio de pesquisa diagnóstica do meio social em que se organizava. Coerentemente com o conceito de currículo vigente nas escolas vocacionais diurnas, definido “como trajetória de experiências vividas pelos alunos e orientadas por objetivos definidos pelos educadores”, o planejamento curricular do noturno foi elaborado a partir “das necessidades dos jovens e adultos”, e estabelecia “como linhas orientadoras o debate sobre o trabalho e suas implicações econômicas, políticas e culturais” (MASCELANI, 2010, p. 141).
O core-curriculum, “ideia central que viabiliza os demais componentes curriculares”, foi assim formulado: “o trabalho humano como instrumento de transformação da natureza, da sociedade e do próprio homem”. Segundo Maria Nilde (2010, p. 141):
A proposta pedagógica foi pensada como um campo rico de experiências, de promoção humana e social e de formação da consciência crítica, condição básica para o homem intervir na realidade de modo pensado e planejado. A proposta coloca o coletivo acima do individual, a comunicação grupal e intergrupal como meio de sociabilidade e de coesão social, a intervenção como prática de cidadania, situações voltadas permanentemente sobre a realidade econômica, política e cultural (NILDE, 2010, p.141.
Em todos os Ginásios Vocacionais Noturnos as primeiras abordagens dos professores e orientadores caminharam no sentido de resgatar a experiência e o conhecimento trazido pelos alunos trabalhadores. A partir daí, articulava-se às metodologias e aos conteúdos de cada área. O currículo integrado, além das áreas de língua portuguesa, matemática, estudos sociais (história, geografia e
antropologia), ciências físicas e biológicas, inglês, era constituído pelas de educação física, artes industriais, práticas comerciais e/ou agrícolas, educação musical, artes plásticas e economia doméstica.
A prática pedagógica foi se estruturando em dois momentos básicos complementares: o trabalho no bairro e o estudo no Ginásio. O bairro consistia o espaço do trabalho de campo – do estudo do meio e da ação comunitária, - e o Ginásio, o lugar do estudo, da análise da realidade e do planejamento das ações a serem implementadas no bairro ou na escola. Nessa trajetória, os alunos contavam não só com os seus professores, mas também com a participação de “colaboradores do Ensino Vocacional”, os pais e professores das mais diversas áreas profissionais. Segundo informações de Mascelani (2010, p.149):
O trabalho no bairro atingiu também mulheres, jovens e crianças. Foram montados projetos especiais para cada segmento. As alunas do noturno tiveram papel decisivo entre as mulheres. No primeiro ano de trabalho foram organizados vários grupos de trabalhadores por bairros. (MASCELANI, 2010, P.149).
Cabe destacar que nos finais de semana ocorriam, nas escolas, muitas atividades culturais como, por exemplo, a organização de uma galeria de arte no Ginásio Estadual Vocacional Cândido Portinari, de Batatais, pelos seus alunos, pais e moradores da cidade. A família do pintor, cujo nome foi utilizado para batizar a escola, emprestou algumas obras do artista para a realização da mostra no colégio. O dramaturgo Jorge Andrade também ministrou aulas de teatro para os alunos do Ginásio Vocacional Embaixador Macedo Soares, em Barretos, onde professor e estudantes exibiam peças de teatro nos finais de semana para a comunidade local.
Em disputa com os projetos da elite dominante, mesmo enfrentando diversos obstáculos e perseguições políticas, muitas foram as contribuições das Escolas Modernas e dos Ginásios Vocacionais, que, em sua curta existência, inovaram a educação brasileira implementando e difundindo concepções e práticas pedagógicas valorizadas ainda hoje no campo da educação democrática.
Propondo-se a viabilizar a apropriação, pela classe trabalhadora, do saber socialmente constituído e distanciando-se das escolas de ensino médio profissional, organizadas segundo o modelo da dualidade escolar e que com poucas variações marcaram a história da educação para os trabalhadores no Brasil, essas experiências nunca formaram para o mercado. Ao se proporem a formar os educandos pelo trabalho e para o trabalho – compreendido não só como valor de troca, mas também como valor de uso, atividade vital do homem -, desenvolveram um tipo de formação humana e emancipatória, destinada a trabalhadores jovens e adultos, vistos como seres integrais que, por meio da educação e do trabalho, poderiam construir sua autonomia - individual e coletiva - frente aos poderes econômicos e políticos.
Como expressão concreta dos laços que unem no tempo tais iniciativas emancipatórias de educação, encontramos entre os protagonistas do ensino Vocacional um antigo professor proveniente da escola libertária de João Penteado, o professor Luiz Contier. No início dos anos 1960, ao lado da profa. Maria Nilde Mascelani, fez parte da “equipe coesa de reformadores do ensino” (TAMBERLINI, 2001, p. 47) que esteve no Liceu de Sèvres, instituição implementada por educadores participantes da resistência francesa ao nazismo com o objetivo de formar a nova geração para a democracia (idem, p. 47).
O Liceu, moderno e bem equipado, aplicava, entre outras inovações, os “métodos ativos” que visavam adaptar a pedagogia à democratização do ensino. Segundo Tamberlini (2001, p. 46-7), os métodos ativos abrangiam o “aprender também fazendo”, os desenhos e trabalhos manuais, trabalho em equipe, o estudo do meio humano natural e social, e manifestava-se contra a dualidade no ensino, tendo por pressuposto a democratização do ensino médio, que não mais deveria estar dirigido aos meios sociais privilegiados.
A visão da escola como centro irradiador de transformação social, a proposta de currículo integrado, o trabalho como princípio educativo e os recursos pedagógicos do estudo do meio na aproximação entre escola e cidade (polis), a participação coletiva, o trabalho em equipe, a autogestão e a autoavaliação conformam o ensino destas escolas em sua tentativa de construção da escola unitária – proposta que, como pretendemos indicar, faz parte das lutas do movimento operário desde o século XIX.
Mas, nesse processo, além de interagir com o ideário emancipador presente nas discussões da época, como Mounier e Paulo Freire, por exemplo, há ainda a existência de interfaces entre as propostas do Ensino Vocacional e as concepções do movimento escolanovista que impregnaram fortemente o debate educacional no Brasil, nos anos 1930, e lançaram as bases para os temas discutidos nas décadas de 1950 e 1960 e os “métodos ativos” do Liceu de Sèvres. Pode-se mesmo supor também a existência de pontos de contato entre as Escolas Anarquistas e as concepções da Escola Nova, em particular na vertente de John Dewey, cujo pensamento já se encontrava difundido nos EUA e em diversos países europeus no início do século XX, inclusive na URSS no seu período revolucionário13. Mesmo levando em conta as controvérsias entre os educadores liberais e a esquerda em relação à escola ativa, é interessante demarcar, por exemplo, a supressão por Stalin das metodologias dos chamados “Pioneiros do ativismo espontaneísta”, como Anatoly Lunacharsky, Pavel Blonsky, Moisey Pistrak, Nadezhda Krupskaya (JOVINE, 1997, apud DORE, R., 2014, p. 305).
A esse respeito, o educador libertário João Penteado que dirigiu a Escola Moderna n 1, também parece ter se preocupado com as ideias sobre educação difundidas no período e agregou à sua biblioteca obras como “Como pensamos- A Pedagogia Moderna”, de John Dewey (MATE, SANTOS, CALSAVARA, 2013, p.95). Da mesma maneira, seria possível indagar como hipótese – no âmbito da circulação das ideias – o movimento inverso: partindo-se da heterogeneidade existente nas formulações teóricas do ensino “renovado” é possível supor a apropriação também diferenciada, pelas suas diferentes vertentes, das concepções pedagógicas de correntes pedagógicas originárias do movimento
13 A esse respeito, é interessante mencionar, conforme indicam as pesquisas de Sheila Fitzpatrick (1970, p.29-30), que a seletiva biblioteca sobre “a escola do trabalho” publicada pela Filial de Petrogrado da Narkompros (Comissiariado do Povo para a Educação), na União Soviética, em 1918, incluía August Lay, John Dewey, Kerchensteiner, Ferriere, Montessori e a educadora russa contemporânea K.N. Ventsel. Ao mesmo tempo, a filial de Petrogrado do sindicato de professores não bolcheviques – (VOUS) – que não era próximo do Narkompros- publicou quase idêntica bibliografia sobre o mesmo assunto, com a adição de trabalhos de Tolstoy, do tolstoyano S.T. Shatsky, de Kropotkin e Ushinsky. Krupskaya era amiga do tolstoyano Gorbunov-Posadov e publicou artigos dele em seu jornal Svobdnoe vospitanie antes da revolução. A escola experimental de Shatsky continuou sob o patrocínio do Narkompros, que se estendeu também à escola tolstoyana em Yasnaya Polyana, administrada pela filha de Tolstoy. Krupskaya recomendou a publicação do trabalho de Kropotkin sobre educação.
operário internacional e de correntes políticas anarquistas e socialistas, antagônicas ao Estado capitalista.
Em resumo: foram aqui apresentadas, em recorte parcial e inicial, as estratégias educativas anarquistas e as do Ensino Vocacional com o objetivo de apontar a relevância do conjunto dessas experiências e indicar relações de continuidade entre elas como formas escolares concorrentes àquelas que predominaram na chamada “escola republicana” (MORAES, GIGLIO, HILSDORF, 2008), definida pelas políticas governamentais de educação no Brasil. Essas e outras hipóteses estão sendo problematizadas no decorrer da pesquisa em desenvolvimento.
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Recebido em: 05 de novembro de 2017. Aprovado em: 22 de fevereiro de 2018. Publicado em: 13 de junho de 2018.
Hellen Cristina Sthal2 Cátia Regina Assis Almeida Leal3
A reorientação da formação profissional em saúde no Brasil tem ganhado espaço crescente no debate científico. Buscou-se contribuir com esse debate investigando as concepções de homem e de sociedade que embasam os projetos de formação dos cursos de graduação da área da saúde da UFG - Regional Jataí, e a abordagem sobre o mundo do trabalho presente nesses projetos. Os dados, analisados, à luz do materialismo histórico-dialético, revelam concepções acríticas e individualistas de homem e de mundo/sociedade; e uma proposta de formação voltada, em grande parte, ao mercado de trabalho.
La reorientación de la formación profesional en salud en Brasil ha ganado un espacio cada vez mayor en el debate científico. Se buscó contribuir con el debate al investigar las concepciones de hombre y de sociedad que basan los proyectos de formación de los cursos de pregrado del área de salud de la UFG - Regional Jataí, y la perspectiva respecto al mundo del trabajo presentes en estos proyectos. Los datos analizados a la luz del materialismo histórico dialéctico revelan concepciones acríticas e individualistas de hombre y de mundo/sociedad; y una propuesta de formación, en gran parte, direcionada
al mercado de trabajo.
1 DOI: https://doi.org/10.22409/tn.16i29.p4555
A medicina científica ocidental passou por um processo de rápido desenvolvimento, principalmente a partir do século XIX, gerando otimismo quanto ao poder da ciência e da tecnologia na resolução dos problemas humanos (QUEIROZ, 1986). A formação da medicina moderna se deu a partir de sua subordinação ao desenvolvimento capitalista, o que gerou profundas transformações políticas, econômicas e sociais (BATISTELLA, 2007). Em função disso, o campo da saúde vem sendo marcado pela constante presença de grupos de pressão, devido à variedade e magnitude dos interesses envolvidos.
Nesse contexto, consolidou-se o favorecimento do setor privado na saúde que, no Brasil, predominou até a década de 1980. De acordo com COHN et al (2010, p. 18): “esse processo de privatização da esfera pública, não exclusivo da saúde, tem como consequência o prevalecimento da lógica do lucro e da capitalização nos investimentos do setor”. Exemplo dessa lógica de capitalização e lucratividade é a supervalorização e apologia a um modelo de assistência à saúde de alta densidade tecnológica, fundamentada basicamente nos procedimentos diagnósticos e terapêuticos.
Conceitualmente, a finalidade do trabalho em saúde deve ser o cuidado com o ser humano, um cuidado holístico e multidimensional, mas na sociedade moderna, delineada pelo poder do capital e pelo fetichismo da mercadoria, a tecnologia, mais que um meio, tem sido considerada como um fim em si mesma. “Há uma autonomização da tecnologia, os seres humanos perdem o governo da técnica e tornam-se altamente dependentes da tecnologia” (LORENZETTI et al., 2012, p. 437).
É possível identificar o desenvolvimento de uma cultura que vincula satisfação, segurança, dignidade e qualidade de vida ao acesso às tecnologias modernas. Isso gera nas pessoas uma falsa necessidade de consumo do novo, incluindo desde um telefone de última geração ou um veículo até o consumo de medicamentos ou exames sofisticados.
A consolidação do modelo biomédico no Brasil alimentou consideravelmente o fenômeno da medicalização, que pode ser entendido como “a crescente e elevada dependência dos indivíduos e da sociedade para com a
oferta de serviços e bens de ordem médico-assistencial e seu consumo cada vez mais intensivo” (BARROS, 2002, p. 77).
Ainda, segundo o autor citado:
Na medida em que o acesso ao consumo foi convertido no objetivo principal para o desfrute de níveis satisfatórios de bem- estar, bons níveis de saúde passaram a ser vistos como possíveis na estreita dependência do acesso a tecnologias diagnóstico- terapêuticas. A eficácia e efetividade das mesmas passam a confundir-se com seu grau de sofisticação (BARROS, 2002, p. 76).
Assim, durante muitas décadas, a atenção à saúde foi centrada na supervalorização da rede hospitalar, na hiperespecialização profissional, na fragmentação do cuidado, na desarticulação entre os diferentes profissionais de saúde, na falta de autonomia e engajamento dos sujeitos e na fragmentação da formação profissional (PAIM, 2009).
Esse cenário começou a sofrer as primeiras mudanças a partir da década de 1970, visando um novo modelo de atenção à saúde. Esse modelo foi influenciado pela Declaração de Alma-Ata, de 1978, que definiu a atenção básica ou primária como estratégia de promoção de saúde para todos; pelos movimentos reformistas no Brasil, que culminaram na criação do Sistema Único de Saúde (SUS) em 1988; e pela lei 8080/90 que determina, dentre outras questões, a mudança nas formas de realizar ações de saúde, mudanças no campo da formação dos profissionais de saúde e consolidação de um novo contexto de saúde no país (BRASIL, 2002a; GIL, 2005).
O SUS, provavelmente em decorrência de sua idealização no seio de movimentos populares, representa, em vários aspectos, uma proposta contra hegemônica baseada em princípios de justiça social. Para Gouveia e Palma (1999, p. 141), apesar das dificuldades encontradas na operacionalização do sistema, o SUS constitui “[...] a mais importante e avançada política social em curso no país. E seu caráter público, universal, igualitário e participativo é um interessante exemplo [...] de uma proposta democrática e popular de reforma do Estado”.
Esse novo contexto de atenção à saúde exige mais do que um mero prestador de serviços de saúde, exige um profissional capaz de compreender as
concepções e diretrizes do SUS e considerá-las de fato em sua prática diária. O SUS defende a formação de um profissional apto a atuar de forma crítica, articulando a dimensão técnica à dimensão política e social no atendimento às necessidades de saúde das pessoas e das populações, incentivando o desenvolvimento da autonomia e a emancipação dos sujeitos.
Nesse cenário de mudança, o papel do profissional de saúde tem sido resignificado na perspectiva da atenção integral à saúde e, consequente, a formação em saúde passou a ser cada vez mais questionada a partir da constatação de que grande parte das instituições de ensino ainda prioriza o conhecimento científico fragmentado em disciplinas e/ou especialidades, a racionalidade, o desempenho individual e a dicotomia entre teoria e prática (BRASIL, 2008).
Em sintonia com a perspectiva de atuação desejável no âmbito do SUS, o Ministério da Saúde (MS) tem apresentado iniciativas de aproximações com as instituições formadoras, buscando contribuir com propostas na reorientação da formação profissional em saúde. Segundo o MS, a formação de profissionais para atuar na área da saúde deve ter como objetivo a capacidade de prestar cuidado às várias necessidades de saúde das pessoas e das coletividades. A melhor síntese para esta designação à educação dos profissionais de saúde é a noção de integralidade.
A atenção integral à saúde implica na ampliação dos referenciais com que cada profissional de saúde trabalha na construção de seu repertório de compreensão e ação; pressupõe práticas inovadoras em todos os espaços de atenção à saúde, práticas em diferentes cenários e conhecimento da realidade de vida das pessoas, das determinações sociais do processo saúde-doença, bem como de todos os âmbitos do sistema de saúde (BRASIL, 2004a).
Partindo da afirmação de que as diversas instâncias relacionadas com a construção e consolidação do SUS, entre elas as instituições de ensino, devem contribuir com as mudanças no campo das práticas e da formação profissional (CECCIM; FEUERWERKER, 2004) e que a articulação e cooperação entre os campos da educação e da saúde são indispensáveis para que se possam formular estratégias organizativas entrelaçadas com os princípios de mudanças no âmbito da formação de profissionais para o SUS, torna-se importante a
realização de trabalhos que investiguem os fundamentos dessa formação, a fim de fortalecer o debate sobre as mudanças necessárias na formação profissional em saúde.
A presente pesquisa buscou contribuir com esse debate e teve como objetivo geral identificar e compreender as concepções de homem e de sociedade que embasam os projetos de formação dos cursos de graduação da área da saúde da Universidade Federal de Goiás – UFG – Regional Jataí, assim como a abordagem sobre o tema mundo do trabalho presente nesses projetos.
Trata-se de uma reflexão originada dos resultados obtidos na dissertação de mestrado, uma pesquisa documental, que teve como objeto de estudo os Projetos Pedagógicos de Curso (PPC) dos cursos de graduação da área da saúde da UFG - Regional Jataí. O Projeto Pedagógico de um curso é o planejamento de como se deve organizar, estruturar e conduzir o processo de formação, para que se alcance o objetivo de formar os alunos numa determinada perspectiva desejada. Então, para a construção do Projeto Pedagógico de um curso, faz-se necessário questionar sobre que indivíduo se quer formar e para o que se quer formar, e o projeto definirá como formar.
Por este caráter atribuído ao PCC, de norteador da formação, optou-se pela análise desse documento na dissertação. Considerando que o Projeto Pedagógico de Curso não é um elemento neutro, tornou-se possível apreender dele as concepções que balizam a formação e sua intencionalidade explicita e implícita, ou seja, o projeto de formação de um curso.
Optou-se por estudar os cursos de graduação da área da saúde da UFG Regional Jataí, partindo do pressuposto de que as singularidades podem refletir a universalidade. A Regional Jataí da Universidade Federal de Goiás constitui um dos marcos da descentralização do ensino superior no estado de Goiás. Criada em 1980, reúne em 2017 25 cursos de graduação, nas áreas de humanas, exatas, biológicas, agrárias e mais recentemente, da saúde, além de cursos de Pós-Graduação (especialização, mestrado e doutorado).
Foram, então, incluídos na pesquisa documental os Projetos Pedagógicos de Curso (PPCs) dos cursos de graduação da área da saúde da UFG Regional Jataí: Biomedicina (UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS, 2010a); Educação Física – modalidade Bacharelado (UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS,
2010b); Fisioterapia (UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS, 2011a);
Enfermagem (UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS, 2011b); e Medicina (UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS, 2015).
Foram consultadas também as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) para os cursos de graduação da área da saúde que, legalmente, devem embasar os projetos de formação destes cursos: Graduação em Biomedicina (BRASIL, 2003); Graduação em Educação Física (BRASIL, 2004b); Graduação em Enfermagem (BRASIL, 2001a); Graduação em Fisioterapia (BRASIL, 2002b); e Graduação em Medicina (BRASIL, 2001b; 2014). Todos os documentos analisados são de domínio público.
Considerando que o desejo desde o início era a compreensão do objeto em sua história, movimento, essência, complexidade e totalidade, optou-se pelo método do materialismo histórico-dialético.
No método escolhido, todas as análises foram guiadas pelo entendimento de que a realidade só poderá ser compreendida, sem o risco de reducionismo ou superficialidade, por meio da compreensão das relações materiais que lhe deram origem, ou seja, não se pode separar o objeto da dinâmica sócio-histórica que definiu seus contornos, dos condicionamentos históricos que influenciaram as relações sociais dos homens na produção material da existência:
Os pressupostos de que partimos não são arbitrários, nem dogmas. São pressupostos reais de que não se pode fazer abstração a não ser na imaginação. São os indivíduos reais, sua ação e suas condições materiais de vida, tanto aquelas por eles já encontradas quanto as produzidas por sua própria ação. Esses pressupostos são, pois, verificáveis por via puramente empírica (MARX; ENGELS, 2009, p.13).
Foi a partir da interrogação do objeto, em sua essência, que surgiram as categorias de análise, ou seja, o método guiou a investigação do objeto apontando os percursos metodológicos necessários para sua compreensão concreta:
Essa reflexão é sempre uma reflexão crítica, porque submete toda interpretação preexistente à análise. Na medida em que uma explicação adere ao objeto e é absorvida por este, passando a fazer parte intrínseca dele, ela também precisa ser submetida à
análise. Não se trata simplesmente de opor ou substituir interpretações. Trata-se de ir até ao fundo das relações, processos e estruturas, apanhando, inclusive e necessariamente, as representações ideológicas ou teóricas construídas sobre o objeto e impregnadas nele (IANNI, 1988, p. 15).
Na pesquisa em questão, no percurso de compreensão do objeto, mostrou- se necessária a pesquisa documental sobre os cursos de graduação. Assim, a partir da análise dos documentos, da reflexão e abstração de suas concepções e a partir do movimento dialético do objeto e de seu contexto sociohistórico, a pesquisa foi tomando corpo.
As Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) para os cursos de graduação da área da saúde especificam como perfil de egresso um profissional com formação generalista, humanista, crítica e reflexiva, capacitado para atuar nos diferentes níveis de atenção à saúde. Este perfil de egresso foi citado nos PPCs dos cursos de Biomedicina, Enfermagem, Fisioterapia e Medicina. Contudo, as contradições são evidentes, e as concepções que embasam os projetos não favorecem essa formação ‘generalista, humanista, crítica e reflexiva’.
A concepção de homem predominante nos projetos de formação é a de um ser condicionado pelo meio físico-social, em que o homem ideal é aquele produtivo e adaptado à sociedade e ao mercado de trabalho. Seguem exemplos retirados do PPCs do Curso de Biomedicina:
Atuar multiprofissionalmente, interdisciplinarmente e transdisciplinarmente com extrema produtividade na promoção da saúde baseado na convicção científica, de cidadania e de ética (UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS, 2010a, p. 10, grifo
nosso).
O projeto de curso estará em contínua avaliação pelo Núcleo Docente Estruturante que deverá apresentar propostas de readequação sempre que se fizer necessário. A percepção dos alunos, as novas perspectivas de mercado, os avanços tecnológicos e também as novas legislações deverão sempre pautar a atualização do projeto de curso (UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS, 2010a, p. 16, grifo nosso).
Cabe destacar outro trecho desse mesmo projeto de formação, em que há menção da expressão ‘mundo do trabalho’:
A elaboração deste projeto teve como fonte inspiradora princípios educacionais básicos que consideram a educação um instrumento de transformação social, preparando o indivíduo para o mundo do trabalho, sempre considerando o desenvolvimento de sua consciência crítica frente aos problemas da sociedade (UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS, 2010a, p. 83, grifo
nosso).
Aparece a ideia de que mundo do trabalho é concebido no projeto como sinônimo de mercado de trabalho, pois ambas as expressões são alternadas no texto aleatoriamente. Contudo, a essência dos projetos denuncia uma formação voltada aos interesses de mercado e não traz elementos que sugiram a possibilidade de abordar a dimensão e complexidade do mundo do trabalho.
Excetua-se o projeto de formação do Curso de Educação Física, que se apresenta uma concepção de homem diferente da dos demais cursos ao defender enfaticamente o respeito à multiculturalidade, a valorização dos diferentes saberes, a emancipação dos sujeitos, e a ênfase na formação humana, como se percebe no trecho a seguir:
Trata-se de uma proposta de formação que visa assegurar o domínio de conhecimentos ético-político-cultural, voltados para formar homens e mulheres com autonomia para agir profissional e socialmente, sendo capazes de atuar conscientemente em defesa de uma formação humana que leve em conta a vida pessoal e social (UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS, 2010b, p.7).
A concepção de mundo/sociedade é, de modo geral, individualista, inculcando a ideologia de que as desigualdades podem ser superadas a partir do esforço individual, do estudo e trabalho, de modo que, a partir desse esforço individual, todos poderiam galgar posições no mercado de trabalho e alcançar o tão sonhado sucesso pessoal e profissional. Seguem exemplos retirados, respectivamente, dos PPCs dos Cursos de Enfermagem e Medicina:
Comprometer-se com o autodesenvolvimento e o processo de formação e qualificação continuada dos trabalhadores de
enfermagem, tendo em vista a excelência do exercício profissional (UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS, 2011b, p. 7).
Os profissionais devem estar aptos a tomar iniciativas, fazer o gerenciamento e administração tanto da força de trabalho quanto dos recursos físicos e materiais e de informação, da mesma forma que devem estar aptos a serem empreendedores, gestores, empregadores ou lideranças na equipe de saúde. (UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS, 2015, p. 63, grifo nosso).
Essa visão não reconhece o mundo/sociedade enquanto espaço contraditório, de relações sociais historicamente tecidas, não reconhece a luta de classes e a relação oprimido-opressor. É uma visão que dificulta a real compreensão da concepção ampliada de saúde, pois a partir dela a tendência é conceber a saúde enquanto bem individual, passível de ser “adquirido” pelos sujeitos desde que se esforcem e se adequem aos estilos de vida saudáveis, desconsiderando que as compreensões e ações no campo da saúde são resultantes de relações conflituosas e de múltiplas determinações.
Cabe destacar o projeto de formação do Curso de Biomedicina, que embora também faça menção à adoção de uma formação com caráter humanista, é o que mais se distancia dessa formação. É o único curso, dentre os pesquisados, que não possui na grade curricular nenhuma disciplina da área de ciências humanas e sociais e é o projeto que apresenta o maior alinhamento com a formação para o mercado de trabalho, para o empreendedorismo, para a adaptação à sociedade:
O curso de Biomedicina propõe uma formação pautada em princípios éticos e na compreensão da realidade social, cultural e econômica do seu meio, dirigindo sua atuação para a transformação da realidade em benefício da sociedade através da interação harmônica com os vários segmentos da comunidade local, regional e nacional (UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS, 2010a, p. 9, grifo nosso).
Essa sugestão de transformação social por meio da interação harmônica entre os vários segmentos da sociedade ignora as relações historicamente tecidas e a luta de classes. Não se trata de transformação e sim de adaptação. Essa visão dificulta a real compreensão do conceito ampliado de saúde e tende a afastar a formação de um caráter humanista e crítico.
As metodologias de ensino presentes nos projetos de formação buscam se alinhar, de modo geral, à proposta das DCN, fundamentada na pedagogia das competências e nas metodologias ativas de ensino-aprendizagem.
De acordo com Martins (2012), a definição de competência é imbuída de vinculação entre a construção do conhecimento e a realidade e a prática social, o que é positivo; por outro lado pretere a base valorativa dessa prática social, abrindo espaço para que predominem os valores do mercado, o que, na realidade, implica na produção de um modelo de competências às avessas.
Desse modo, a pedagogia das competências possui uma dupla face: é válida enquanto incentivadora da autonomia e protagonismo do aluno, enquanto valorizadora da articulação da realidade e da prática como base para a construção do conhecimento; contudo, quando se constrói competências sem antes definir claramente para que e a serviço de quem, há uma grande possibilidade de que estas vislumbrem apenas o atendimento às novas demandas do mercado e o ajuste dos indivíduos à exploração capitalista.
A tensão já mencionada em relação à noção de competência estende-se às próprias funções da educação, que indiscutivelmente não pode perder de vista a tarefa de preparar os indivíduos para a produção social, mas, da mesma forma, não pode perder de vista a tarefa de preparar os indivíduos para a produção de si mesmos como seres universais e livres, ou seja, preparados para a luta contra a produção social alienada (MARTINS, 2012, p. 70).
O problema não é a formação para o trabalho em si, uma vez que é por meio do trabalho que o homem garante a existência não só da vida individual, mas também da vida coletiva, social. O homem é parte da natureza e só pode sobreviver por meio do constante metabolismo com ela, por meio do trabalho (MARX; ENGELS, 2009). A perspectiva gramsciana também toma o trabalho como princípio educativo, considerando que ao mesmo tempo em que se produz trabalho, se produz cultura. O problema, então, é a formação voltada para o mercado de trabalho, para o capital, para o trabalho alienado e desumanizador.
A tendência que tem se apresentado mais forte na pedagogia das competências é a que enfatiza o desenvolvimento de sujeitos que privilegiam seus projetos pessoais de profissionalização em detrimento de outra perspectiva,
em que a profissionalidade resulta de construções e compromissos coletivos dos trabalhadores.
Comparece, então, uma formação que apresenta o mercado de trabalho como sendo o mundo do trabalho em si, como sendo a totalidade e tudo o que é possível e desejável. Percebe-se nos trechos abaixo, extraídos dos PPCs dos Cursos de Enfermagem, Medicina e Fisioterapia, que a lógica de mercado e de sucesso profissional individual está presente, encoberta pelo véu da ideologia do empreendedorismo.
Um dos princípios norteadores da formação: os profissionais devem estar aptos a tomar iniciativas, fazer o gerenciamento e administração tanto da força de trabalho quanto dos recursos físicos e materiais e de informação, da mesma forma que devem estar aptos a serem empreendedores, gestores, empregadores ou lideranças na equipe de saúde (UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS, 2011b, p. 8; UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS,
2015, p. 63, grifo nosso).
Capacitar o futuro profissional para o exercício de competências e habilidades gerais de atenção à saúde, tomada de decisão, liderança, gestão e empreendedorismo e educação permanente, relacionados à prática da Fisioterapia (UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS, 2011a, p. 11, grifo nosso).
Duarte (2010) destaca que a pedagogia das competências é imbuída de uma visão idealista de educação. Idealista na medida em que concebe os problemas sociais como resultados de equívocos aleatórios, levando a crença de que a mera difusão de novas ideias entre os indivíduos, por meio da educação, é capaz de resolver os problemas sociais. Ou seja, não há nenhuma perspectiva de compreensão e possibilidade de superação do modo de reprodução capitalista. Ainda de acordo com o autor, “Esse idealismo chega ao extremo de acreditar ser possível formar, no mesmo processo educativo, indivíduos preparados para enfrentar a competitividade do mercado e imbuídos do espírito de solidariedade social.” (p. 35).
O modelo de competências é uma via de mão dupla e há uma significativa tendência de que as competências sejam desenvolvidas para atender apenas ao mercado de trabalho. Diverge, portanto, da concepção dialética de educação presente no SUS, que propõe o desenvolvimento das múltiplas capacidades do
ser humano, o fortalecimento da consciência de classe para intervir de modo crítico, organizado e criativo na transformação estrutural da sociedade.
Todos os projetos de formação analisados falam em formação ética, com ênfase na humanização, solidariedade e reconhecimento da função social do profissional de saúde. Contudo, De Sordi e Bagnato (1998) alertam que, no contexto da formação hegemônica, para o mercado, a grande maioria dos egressos da área da saúde saem da universidade capacitados para demonstrar suas habilidades cognitivas e técnicas e, ao mesmo tempo, sua pequena familiaridade com as questões sociais. A maioria deles mostra-se desapegada dos compromissos éticos e bem adaptados a uma hierarquia social na qual o que importa é competir, vencer individualmente e ter sucesso na carreira.
A racionalidade que conduz as relações sociais, na perspectiva da manutenção da ordem capitalista, reifica os sujeitos e intensifica a destruição de vínculos entre eles. Nesse cenário, as subjetividades se constroem focadas no imediatismo, no efêmero, no fragmentário e na insensibilidade perante o outro. É importante que os profissionais de saúde em formação compreendam esse cenário, concebendo o individualismo como um produto da sociedade capitalista, em que o valor está centrado na produção de mercadorias.
Essa ideologia individualista dificulta a compreensão da dimensão, da complexidade e da importância do trabalho em equipe e multiprofissional. Para além do individualismo há ainda o corporativismo profissional que, seguindo a mesma lógica, incentiva que as diferentes categorias profissionais se apoiem internamente, mas entrem em competição com outras categorias por reconhecimento, por direito de executar procedimentos privativamente, dentre outros.
O individualismo e o corporativismo dificultam a construção da cidadania, pois se perde a noção de coletividade e de interdependência; confrontam diretamente a compreensão do conceito ampliado da saúde, uma vez que a tendência é a culpabilização dos indivíduos, como únicos responsáveis por suas condições de saúde ou de doença, dificultando aos alunos a compreensão dos conceitos de determinação social do processo saúde-doença, de saúde coletiva, de corresponsabilidade, de vínculo, de construção coletiva, de solidariedade, de integralidade.
Assim, embora os projetos de formação analisados abordem como desejável a formação política dos alunos e tragam a formação ética e a função social do profissional como um dos princípios norteadores da formação, apresentam concepções de homem e de sociedade que contradizem essa formação e deixam transparecer as ideologias de produtividade, sucesso individual e empreendedorismo, características estas que tendem a alinhar a formação com o mercado de trabalho da sociedade capitalista e encobrir a real dimensão do mundo do trabalho.
A educação pode ser utilizada como meio de promoção da dominação ou libertação dos indivíduos. No âmbito da dominação interessa formar indivíduos dependentes, não críticos, não questionadores, acomodados ao modelo de sociedade e de produção vigentes. No âmbito do incentivo à libertação espera-se uma formação de indivíduos críticos, independentes, questionadores, capazes de refletir e atuar sobre a realidade. Assim, a formação crítica exige tomada de consciência, tomada de posição.
O fortalecimento do pensamento crítico e político na formação em saúde é indispensável para a ampliação da visão de mundo dos futuros profissionais da saúde, ultrapassando o conhecimento técnico-científico e resgatando conceitos como cidadania, justiça social e solidariedade. É necessário apresentar ferramentas para que estes futuros trabalhadores da saúde possam refletir sobre sua própria prática, conceber um projeto de sociedade e lutar por ele, incluindo a luta pelo direito a uma assistência à saúde pública e de qualidade, pois dificilmente haverá mudanças nas práticas de atenção a saúde sem a participação ativa dos profissionais enquanto sujeitos comprometidos com a cidadania, com a ética, com a democracia, com a coletividade e com o fortalecimento do sistema público de saúde.
Mesmo reconhecendo as iniciativas legais de mudança e reestruturação da formação em saúde como um importante avanço, é preciso ponderar que a proposta de modelos diferenciados, por si só, não altera paradigmas, se as concepções continuarem arraigadas nas formas antigas, como: relação
assimétrica e hierárquica professor e aluno, e entre profissional e indivíduo/comunidade; valorização apenas do saber profissional; abordagem centrada nos aspectos biológicos do ser humano e nas doenças; e visão individualista do ser humano e da sociedade.
São necessárias condições para que os alunos possam se apropriar de elementos que os qualifiquem a partir de uma formação duplamente densa: tanto no plano técnico, quanto no plano ético, humano, social e político. Assim, para que se possa efetivar uma formação em saúde coerente com os princípios e propostas do SUS, preparando de fato os alunos para atuarem nesse sistema de saúde, são necessárias rupturas profundas, na essência e estrutura da formação, repensando, primeiramente, sobre as concepções que tem balizado a formação em saúde e a práxis no SUS.
Além disso, a instituição universitária, tida como espaço de formação, de debate, de pensamento crítico e de compromisso com a sociedade tem, muitas vezes, desempenhado papel oposto, ao ser conivente com uma formação acrítica, que atende em grande parte aos interesses de mercado em detrimento do real comprometimento com a formação humana e com a sociedade. Diante destas diversas iniciativas de aproximação, dos diversos estudos apontando a necessidade de reorientação da formação em saúde para atuação profissional no SUS, os avanços materializados nesse sentido ainda são incipientes, denunciando a dificuldade da instituição universitária em atuar numa perspectiva contra hegemônica e abrindo um leque de possíveis reflexões e questionamentos sobre a complexidade das determinações envolvidas nesse processo.
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Recebido em: 27 de dezembro de 2018. Aprovado em: 20 de março de 2018. Publicado em: 13 de junho de 2018.
Egídio Martins2 Valdiléia Carvalho da Silva3
O presente artigo é parte de resultado de pesquisa do doutorado da linha Políticas Públicas Educacionais do Programa de Pós-Graduação em Educação do Instituto de Ciências da Educação da Universidade Federal do Pará. Pautou-se no materialismo histórico dialético, tendo uma abordagem qualitativa, com ênfase no estudo de caso. Coletaram-se os dados através da entrevista semiestruturada e análise documental. O tratamento dos dados seguiu as orientações da análise de conteúdo. A práxis política dos pescadores da Z-16 é construída a partir da organização socioeconômico, político e formativo ao longo do processo histórico, materializada no cotidiano das relações interna e externa da entidade. São ações que possibilitam os pescadores garantirem suas subsistências, ao mesmo tempo em que se contrapõem a lógica da classe dominante.
This article is part of a result of the doctoral research on Educational Public Policies of the Postgraduate Program in Education of the Institute of Education Sciences of the Federal University of Pará. It was based on dialectical-historical materialism, the approach is of qualitative character with emphasis on the case study. The data collection was performed from the semi-structured interview and document analysis. The data handling followed the guidelines of the content analysis. The political praxis of the fishermen of Z-16 is built from the socioeconomic, political and formative organization throughout the historical process, materialized in the internal and external relations routine of the entity. Those are actions which allow the fishermen to guarantee their subsistence, and which at the same time they counteract the logic of the ruling class.
1 DOI: https://doi.org/10.22409/tn.16i29.p4556
2 Dr. em educação. Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Trabalho e Educação- GEPTE/UFPA. Docente da UFPA-Campus Universitário do Tocantins- Cametá/Pará.
O presente artigo defende a tese de que os pescadores da Colônia3 de Pescadores Artesanais Z-16, entidade situada no interior da Amazônia Tocantina, no município de Cametá, Estado do Pará, Amazônia, Brasil, desenvolvem ações que ultrapassam as atividades da pesca, produzindo relações de produção- formação que no movimento contraditório de suas práticas também os revela enquanto sujeitos de uma práxis política que no cotidiano do trabalho com a pesca vai lhes tornando sujeitos conscientes da necessidade de transformação da realidade, como também da sempre necessidade do envolvimento e engajamento nos processos de luta em prol de conquistas sociais que lhe faculte a construção de uma existência digna e socialmente possível.
Visto por essa perspectiva, a práxis política desses pescadores se articula com as ideias de Thompson (2012, p. 17) quando esse, ainda no final do século XVIII e alvorecer do século XIX, ao analisar a formação da classe operária inglesa afirmava que:
[...] o fato relevante do período entre 1790 e 1830 é a ‘formação da classe operária’. Isso é revelado, em primeiro lugar, no crescimento da consciência de classe: [...] entre todos esses diversos grupos de trabalhadores contra os interesses de outras classes. (THOMPSON, 2012, p.17).
Marx e Engels (2013), ao se reportarem sobre as comunas rurais da Rússia do século XIX, destacam que “[...] a luta de classe trabalhadora contra a sociedade de exploradores está estreitamente ligada com a luta dos povos oprimidos por sua libertação nacional”. As análises tanto de Thompson quanto de Marx e Engels demonstram que a luta de classe é produto das articulações dos
3 Embora o termo colônia possa suscitar a imagem de um coletivo de pescadores vivendo da pesca à margem de um rio, a Colônia de Pescadores Artesanais Z-16 é bem mais que isso. Ela se constitui na entidade representativa de classe [dos sujeitos pescadores do município de Cametá- Pa], reunindo [...] associados de diferentes comunidades do município [...], com sede na Travessa Porto Pedro Teixeira, nº 165, bairro de Brasília, cidade de Cametá. Sua fundação data de 1923. Destaque-se que a presente pesquisa foi desenvolvida a partir da Colônia de Pescadores Artesanais Z-16, presente no município de Cametá, situado na região Nordeste. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE (2010), o município de Cametá apresenta uma população de 120.896 habitantes, dentre os quais 52.838 habitantes encontram-se na zona urbana e 68.058 estão na zona rural. Em termos percentuais, 56,29% da população é rural enquanto que 43,71% é urbana. Ou seja, um grande percentual da população cametaense reside nas ilhas e setor de estradas, que acabam, não raro, constituindo a zona rural do município cametaense.
trabalhadores em diversas situações, situações essas que são produzidas e impostas pelo modo de produção vigente que tem na dominação e exploração os pressupostos de sua sustentação.
Os trabalhadores/pescadores não se organizam politicamente para lutar diretamente contra a lógica da classe dominante, mas no cotidiano de suas experiências, se organizam para dar conta de sua subsistência e nessa articulação revelam elementos que se contrapõem ao poder instituído, embora numa relação de contradição, ou melhor, de luta de classe.
Harnecker (1983) ao citar Lênin (1967) demonstra que a luta de classe se materializa no cotidiano dos trabalhadores/operários:
[...] só quando cada operário se considera membro de toda classe operária, quando vê em sua pequena luta cotidiana contra um patrão ou funcionário uma luta contra toda a burguesia e contra todo o governo, só então sua luta se transforma em luta de classe (HARNECKER,1983).
Nessa mesma direção Gohn (2012, p. 21) destaca que “[...] a cidadania coletiva se constrói no cotidiano através do processo de identidade político- cultural que as lutas cotidianas geram”.
Em uma correlação ao exposto por Harnecker (1983 apud LÊNIN, 1967) e Gohn (2012) sobre o movimento de luta de classe forjada no interior das ações cotidianas de trabalho, válido é aqui destacar que, no caso dos pescadores da Colônia Z-16, a luta de classe empreendida por esses sujeitos se materializa na experiência histórica de uma ação contra hegemônica que entre outros objetivos tem na busca cotidiana pela garantia da sobrevivência, a matriz central da produção dialética de um conjunto de elementos, entre os quais: saberes, atitudes, costumes, relações socioeconômicas, políticas, entre outros, que no movimento da realidade se inter-relacionam com suas atividades de pesca produzindo assim nesses trabalhadores uma consciência crítica de compreensão da sempre necessidade de organização e luta em defesa da transformação da realidade.
Isso, do ponto de vista da compreensão do movimento que aqui nos propomos a analisar, (qual seja, da produção de uma práxis política por parte dos pescadores enquanto resultado das lutas cotidianas travadas por esses, principalmente aquelas que estão a se dar no processo de garantia de
subsistência mediado pelo trabalho da pesca) o que aqui nos interpela é a busca pela compreensão, entre outras questões, da compreensão de: qual a concepção de formação que está a se materializar no contexto das relações de produção- formação e práxis política dos pescadores da Colônia Z-16?
Como hipótese, destaca-se que os pescadores, sujeitos do presente estudo, ao desenvolverem suas atividades de subsistência, materializam relações de produção-formação e práxis política numa perspectiva ontológica tendo o trabalho como categoria central. Como objetivo buscou-se compreender a concepção de formação materializada no contexto das relações de produção- formação e práxis política dos pescadores da Z-16, ao mesmo tempo; analisando as atividades desses sujeitos a partir da práxis política num processo formativo historicamente construído.
Do ponto de vista metodológico, a discussão aqui feita se pautou no materialismo histórico dialético (MARX, 2008) tendo os dados coletados a partir da orientação da aplicação de entrevistas semiestruturas (THIOLLENT, 1985), fazendo-se uso ainda da análise documental (EVANGELISTA, 2012). As entrevistas foram direcionadas a partir de dois eixos temáticos, são eles: A atuação política da Colônia para com seus afiliados e a luta da Colônia no cotidiano da práxis política dos pescadores da Z-16. Tais eixos estão relacionados com os objetivos e com a problematização da pesquisa.
O texto está estruturado em três tópicos. No primeiro destaca as aproximações conceituais sobre práxis; no segundo analisa as noções conceituais de práxis política; no terceiro aborda as relações de produção-formação e práxis política dos pescadores da Colônia Z-16.
Marx (2010) compreende o ser humano como um ser de ações, de relações consigo mesmo, com outros homens, com a natureza, com a sociedade e com a história numa relação de contradição, ao mesmo tempo em que esse mesmo ser humano pelo trabalho se afirma, mas também se nega. Nesse sentido, esse ser humano vai se constituindo enquanto um ser de práxis, uma práxis que, conforme Gadotti (1995, p. 44) é:
[...] eminentemente histórica, e a maneira pela qual os homens se relacionam e buscam preservar a espécie é o trabalho. É pelo trabalho que o homem se descobre como ser da práxis, ser individual e coletivo (unidade de contrários). (GADOTTI,1995, p.44).
Para Konder (1992) Marx destacou três momentos essenciais do trabalho ao atingir uma meta, são eles: o trabalho, seu objetivo e o meio para atingir essa meta.
[...] Marx apontou três “momentos” essenciais no processo de trabalho: “atividade de acordo com uma meta, ou trabalho propriamente dito; seu objetivo; e seu meio”. A atividade de acordo com uma meta é a atividade teleológica, aquela que passa por uma antecipação do resultado visando na consciência do sujeito que pretende alcançá-lo. Sem essa experiência que lhe permite prefigurar seu télos (o ponto onde quer chegar), o sujeito humano não seria sujeito, ficarei sujeito a uma força superior à sua e permaneceria tão completamente preso a uma dinâmica objetiva como uma folha seca levada por um rio caudaloso (KONDER, 1992, p. 106, grifos do autor).
A concepção de trabalho em Marx, analisado por Konder, se articula com o posicionamento de Vázquez (2011) quando esse destaca que a ação humana inicia com um resultado ideal, para em seguida ser transformado em resultado real. Sendo assim:
[...] para que se possa falar de atividade humana é preciso que se formule nela um resultado ideal, ou fim a cumprir, como ponto de partida, e uma intenção de adequação, independentemente de como se plasme, definitivamente, o modelo ideal originário (VÁZQUEZ, 2011, p. 223).
A atividade humana se orienta para a realização de determinado fim, idealizado primeiro, na sua consciência.
Atividade propriamente humana apenas se verifica quando os atos dirigidos a um objeto para transformá-lo se iniciam com um resultado ideal, ou fim, e terminam com um resultado ou produto efetivo, real. Nesse caso, os atos não só são determinados casualmente por um estado anterior que se verificou efetivamente
– determinação do passado pelo presente-, como também por algo que ainda não tem uma existência efetiva e que, no entanto, determina e regula os diferentes atos antes de desembocar em
um resultado real, ou seja, a determinação não vem do passado, mas, sim, do futuro (VÁZQUEZ, 2011, p. 222).
O fim da qual menciona Vázquez (2011) requer a atitude do sujeito diante da realidade. Os pescadores da Colônia Z-16, nesse caso em particular, se mostram como um exemplo de luta para a realização de um determinado fim, que seria o de garantir sua subsistência, materializada na práxis política, ultrapassando a dimensão técnica do trabalho da pesca. Uma postura que se inter-relaciona uma vez mais com o posicionamento de Vázquez (2011, p. 226) quando esse destaca que “[...] o conhecimento humano em seu conjunto integra- se na dupla e infinita tarefa do homem de transformar a natureza exterior, e sua própria natureza”.
Também contribuindo com essa discussão de práxis, Tom Bottomore (2012, p. 430) advoga que:
A expressão práxis refere-se em geral, a ação, a atividade, e, no sentido que lhe atribui Marx, à atividade livre, universal, criativa e auto-criativa, por meio da qual o homem cria (faz, produz), e transforma (conforma seu mundo humano e histórico e a si mesmo; atividade específica ao homem, que o torna basicamente diferente de todos os outros seres). Nesse sentido, o homem pode ser considerado um ser da práxis, entendida a expressão como o conceito central do marxismo, e este como a “filosofia” (ou melhor, “pensamento”) da “práxis”. (BOTTOMORE, 2012, p.430).
A práxis está relacionada com quase todas as atividades humanas, como por exemplo, a criação, a produção-formação e transformação social, por isso o homem é o ser da práxis, porque possui as faculdades específicas para interferir na natureza. Marx e Engels (2009, p. 124) na terceira tese sobre Feuerbach apresentam uma concepção de atividade humana, demonstrando que “a coincidência entre a alteração das circunstâncias e a atividade humana só pode ser apreendida e racionalmente entendida como prática revolucionária”.
Revolucionar a realidade requer um homem ativo, sujeito capaz de intervir no processo histórico da sociedade. Marx (2010) destaca nos Manuscritos Econômico-Filosóficos, que o homem é um ser genérico não somente prática e teoricamente, mas também um ser de relações consigo mesmo e com os outros, um ser universal, livre, e consciente de sua atividade, um ser capaz de construir
relações de produção-formação, proporcionando um mundo objetivo, de afirmação e negação de si.
A atividade da consciência em si tem um caráter que podemos denominar teórico, uma vez que não pode conduzir por si só, como era atividade da consciência, a uma transformação da realidade, natural ou social. Quer se trate da formulação de fins ou da produção do conhecimento, a consciência não ultrapassa seu próprio âmbito, isto é, sua atividade não se objetiva ou materializa. Por essa razão, tanto uma como outra são atividades; não o são de modo algum, atividade objetiva, real, isto é, práxis (VÀZQUEZ, 2011, p. 226-227).
O homem é um ser de atividade, que se manifesta no trabalho, na atividade artística, na práxis evolucionária e em outras ações humanas, sempre direcionadas para um determinado fim, ou melhor, para a transformação do mundo natural ou social, no sentido de satisfazer suas necessidades:
Não há como pretender explicar o ser humano, esgotá-lo numa interpretação teórica, reduzir seus movimentos a qualquer lógica (por mais sofisticada que seja), porque sua atividade desborda de qualquer conhecimento, na medida em que ele está sempre inventando algo novo e introduzindo elementos “causais” nos melhores esquemas interpretativos. O ser humano nunca pode ser suficientemente conhecido em sua realidade imediata, que é uma realidade que estar sendo constantemente superada (KONDER, 1992, p. 107, grifos do autor).
O homem é um ser em constante transformação, porque modifica a natureza e a si mesmo, humanizando-se ao longo do processo histórico, construindo objetividade como ser subjetivo, uma transformação necessária, porque precisa viver, sem produção a vida seria impossível. A produção é uma atividade natural do ser humano e ao mesmo tempo eterna, porque a existência humana depende das relações de produção. Essa intervenção no mundo, modificando a natureza externa e interna, Konder (1992) chama de práxis.
A práxis é a atividade concreta pela qual os sujeitos humanos se afirmam no mundo, modificando a realidade objetiva e, para poderem alterá-la, transformando-se a si mesmo. É a ação que, para se aprofundar de maneira mais consequente, precisa da reflexão, do autoquestionamento, da teoria; é a teoria que remete à ação, que enfrenta o desfio de verificar seus acertos e desacertos, cotejando-os com a prática (KONDER, 1992, p. 115).
Konder (1992, p. 116) chama atenção ainda para a importância da teoria ao se reportar sobre práxis, de modo que a teoria possibilita a intenção da práxis com atividade mecânica, com ação repetitiva.
[...] práxis e teoria são interligados, interdependentes. A teoria é um momento necessário da práxis; e essa necessidade não é um luxo: é uma característica que distingue a práxis das atividades meramente repetitivas, cegas, mecânicas, ‘abstratas’. (KONDER, 1992, p.116).
A práxis não é somente a união da teoria com a prática ou da teoria com a ação, mas atividade política do cidadão, sua participação nos debates, sua atitude perante aquilo que incomoda, que não aceita, é mudança e transformação.
Apesar de Vázquez (2011) apresentar vários tipos de práxis, o presente artigo centra-se em torno da práxis política, de modo que a Colônia Z-16 é um movimento social, com organização própria dos sujeitos inseridos nessa entidade, por isso que a práxis política ganha relevância. Para melhor compreender essa práxis no contexto das atividades dos pescadores da Z-16, destacou-se um tópico específico para isso.
Vázquez (2011, p. 232) afirma que:
[...] num sentido mais restrito, a práxis social é a atividade de grupos ou classes sociais que leva a transformar a organização e a direção da sociedade, ou a realizar certas mudanças mediante a atividade do Estado. Essa forma de práxis é justamente a atividade política. (VÁSQUEZ, 2011, p.232).
Nesse conceito duas categorias são fundamentais: a primeira é a transformação e a segunda é a luta coletiva, presente na práxis política dos pescadores da Z-16, de modo que ambas as categorias se articulam coletivamente para construir espaço de luta perante uma sociedade que predomina a lógica da classe dominante.
Destaca ainda Vásquez (2011, p. 233) que “[...] nas condições da sociedade dividida em classes antagônicas, a política compreende a luta de
classe pelo poder a direção e estruturação da sociedade de acordo com os interesses e fins correspondentes”.
A iniciativa dos pescadores de se organizarem como fração de classe em torno de uma entidade representativa, demostra o descontentamento para com a realidade socioeconômico e político de um modelo de sociedade excludente.
Gramsci (1978, p. 14) chama atenção que “[...] não se pode separar a filosofia da política e, pelo contrário, pode demonstrar-se que a escolha e a crítica de uma concepção do Mundo (sic) constituem também um facto político”. Vázquez (2011) destaca que a práxis política é uma teoria que proporciona as transformações sociais, possibilitando compreender a sociedade em sua totalidade. Ainda Gramsci (1978, p. 107), ao se reportar sobre práxis, menciona que “[...] trata-se de uma filosofia que é também uma política e de uma política que é também uma filosofia”.
Assim, a práxis política se materializa a partir de organizações de grupos, como por exemplo, a entidade coletiva Colônia de Pescadores Artesanais Z-16 de Cametá, organização essa que não está ausente de disputa de ideias, de concepções no próprio movimento da realidade. Porém, o que predomina nesse movimento são as influências exercidas pela organização, que se materializa na luta em prol de seus interesses. Para Vázquez (2011, p. 233)
[...] o caráter prático da atividade política exige formas, meios e métodos reais, efetivos, de luta; assim, por exemplo, o proletariado em sua luta política vale-se de greves, manifestações, comícios e inclusive de métodos violentos. (VASQUEZ, 2011, p.233).
Gramsci (1988, p. 49) também reitera que “[...] no desenvolvimento de uma classe nacional, ao lado do processo de sua formação no terreno econômico, deve-se levar em conta o desenvolvimento paralelo nos terrenos ideológico, jurídico, religioso, intelectual, filosófico [...]”. Dessa forma, a práxis política dos pescadores em análise se articula para além da atividade técnica da pesca, englobando os aspectos socioeconômicos, políticos e formativos num movimento do todo inter-relacionado. Um posicionamento que se articula com os escritos de Marx (2012, p.81) quando esse afirma que:
[...] a liberdade política é a precondição indispensável para a libertação econômica das classes trabalhadoras. A questão social é, pois, inseparável da questão política: sua solução depende da solução desta última e é possível apenas no Estado democrático (MARX, 2012, p.81).
Os pescadores da Z-16 se organizam numa entidade representativa para conquistar seus direitos materializados em projetos de criação de alevinos, acordo de pesca, cooperativas de gelo entre outros, que compõem a entidade, beneficiando seus afiliados. Para Vázquez (2011, p. 233) “[...] a práxis política pressupõem a participação de amplos setores da sociedade. Persegue determinados fins que correspondem aos interesses radicais das classes sociais [...]”. Evidentemente que a luta para a conquista de determinados fins, requer o conhecimento da ação no contexto da realidade, de modo que possa construir estratégias no sentido de evitar possíveis derrotas.
Nas estratégias das lutas dos trabalhadores, como da Colônia Z-16, é de fundamental importância às articulações dos intelectuais na concepção de Gramsci (2011, p.210), de modo que “[...] todo o desenvolvimento orgânico das massas camponesas, até certo ponto, está ligado aos movimentos dos intelectuais e deles depende”. Esse intelectual tem a função de direcionar, de coordenar as ações da entidade, um movimento também educativo. Esses intelectuais seguem a partir da organização dos trabalhadores, com capacidade de compreender a realidade vigente, por isso se propõem ser dirigente orgânico no sentido de proporcionar lutas em benefício do grupo que participa.
Assim, a práxis política requer ação ativa do homem, com capacidade de pensar, construir estratégia de organização de um determinado grupo, construindo nesse grupo uma concepção crítica e orgânica a respeito da realidade vigente. Um homem que é intelectual, filósofo ao mesmo tempo político, como desta Gramsci (1978, p. 52) “[...] o verdadeiro filósofo é, e não pode deixar de ser, o político, isto é, o homem activo (sic) que modifica o ambiente, entendendo-se por ambiente o conjunto de relações de que cada indivíduo singular passa a fazer parte”. Destaca ainda o autor citado, que as mudanças não se referem a grandes revoluções, mudanças de mentalidade de todos, ao contrário a própria mudança de personalidade, ou melhor, a forma de se relacionar com a natureza já caracteriza mudança. Em suas palavras (1978, p.
52) “[...] se a própria individualidade é o conjunto destas relações, tornar-se uma personalidade significa tomar consciência destas relações e modificar a própria personalidade significa alterar o conjunto de tais relações”.
Sendo assim, o que aqui já vai ficando claro em relação aos trabalhadores da pesca afiliados a Colônia de Pescadores Artesanais Z-16 de Cametá é que esses sujeitos são homens e mulheres que compreenderam a partir da sua realidade a necessidade de construir espaços de sobrevivência para além da atividade da pesca, ampliando esses – espaços – nos aspectos socioeconômico, político e formativo. Nesse sentido, aqui corrobora Gramsci (1978, p. 64) quando afirma que “[...] transformar o mundo exterior e as relações gerais, significa valorizar-se a si mesmo, desenvolver-se a si mesmo”.
Assim, a práxis política requer também mudança de atitude política de cada homem e de cada mulher, para avançar na mudança das relações sociais. Vázquez (2011, p. 233) frisa que “[...] a práxis política, enquanto atividade prática transformadora alcança sua forma mais alta na práxis revolucionária como etapa superior da transformação prática da sociedade”.
A práxis política requer uma concepção de homem, de sociedade e de educação que contemple as dimensões socioeconômicas, político formativo numa relação indissociável. Para Gutiérrez (1988, p. 11) “[...] o homem que devemos formar é um ser relacional, condicionado política, social, e economicamente por uma sociedade cheia de contradições”. Essa concepção de homem fica difícil formar em um modelo de educação estruturado sob as bases do modo de produção capitalista, isso porque suas finalidades e objetivos estão presos numa estrutura socioeconômica que visa apenas uma formação abstrata e adestradora demandadas de acordo com as orientações e necessidades do mercado.
O professor, em vez de explicar, ele mesmo, a seus alunos, a ciência que se propõe ensinar-lhes, pode ler para eles um livro sobre o assunto e, se o livro estiver escrito em língua estrangeira e morta, interpretará seu conteúdo na língua dos próprios alunos; ou então – o que dará ao professor ainda menos trabalho – fará com que os alunos interpretem o texto para ele; e, fazendo de vez em quando uma observação ocasional sobre o texto, poderá jactar-se de estar ministrando uma prelação. Basta um grau mínimo de conhecimento e aplicação para poder recorrer a isso, sem expor-se ao desprezo e à zombaria, nada dizendo que seja realmente tolo, absurdo ou ridículo. Ao mesmo tempo, a disciplina do colégio pode dar-lhe a possibilidade de forçar todos os seus
alunos a frequentarem com a máxima regularidade essas prelações simuladas, e a manterem o comportamento mais decente e respeitoso durante todo o tempo das aulas (SMITH, 1988, p. 54).
Daí a importância das organizações políticas dos movimentos sociais como a Z-16 de Cametá-PA, para ultrapassar essa formação mecânica, dogmática, sem possibilidade dos formandos construírem sua concepção de homem e de sociedade, com perspectiva de transformação. Os movimentos sociais desenvolvem práxis política inter-relacionada com o processo educativo, de modo que são elementos que compõem a natureza humana.
De acordo com Gutiérrez:
[...] a política como uma das mais importantes dimensões do ser humano, deve ser parte integrante do processo educativo, se é que queremos que o homem desenvolva capacidades para edificar sua própria personalidade e para realizar-se [...]. (GUTIÉRREZ, 1988, p.13).
A práxis política é uma dimensão inerente ao ser humano, presente na sua personalidade, na atitude frente às injustiças sociais. Ao mesmo tempo é um processo educativo, de modo que não se toma um posicionamento sem compreender a realidade vigente, é uma ação conscientemente humana frente uma realidade desfavorável às condições sociais.
Porém, essa atitude que o homem se posiciona contra o contexto histórico vigente, não é para qualquer homem, mas para aquele que está disposto a transformar a sociedade. É um homem que construiu ao logo de sua formação uma concepção de sociedade, por isso requer transformação de acordo com sua concepção, isso é uma ação política ao mesmo tempo em que é pedagógica4. Ainda conforme Gutiérrez (1988, p. 21) “[...] promover um tipo de homem, de cultura, de crença política, desprezando outras concepções humanas, outras culturas e crenças, é uma clara ação política”.
4 Talvez a mais importante ação política levada acabo pelos escritórios do governo, a julgar pelos custos desembolsados e pelo imenso aparelho burocrático montado com tal finalidade. É uma ação política não só de tipo administrativo, como também na acepção mais ampla do termo, referente ao projeto global da sociedade. Por isso, diga-se abertamente, ou não, esteja-se ou não de acordo, a ação educativa não pode deixar de ser política, da mesma maneira que a política – a boa política – tem de ser pedagógica (GUTIÉRREZ, 1988, p. 21).
É uma ação consciente de homens e mulheres que analisam criticamente a realidade vigente, na perspectiva da transformação. Compreende-se ainda que a transformação não se materializa na ação isolada, mas na organização e participação dos sujeitos comprometidos com as melhorias das condições sociais. A crítica para com o modelo socioeconômico e político da sociedade vigente significa construir alternativa de relações de produção que proporcione interações entre homens e mulheres que garantam condições básicas de existência, proporcionando a eliminação da desigualdade entre as classes, suprimindo o mercado como centro das atenções, e priorizando o homem como parâmetro fundamental.
Rodrigues (2012, p. 14) destaca que os pescadores da Z-16 produzem conhecimentos na materialidade de suas relações cotidianas, inter-relacionados com suas atividades, “[...] ao objetivar a realidade, transformando-a, [vão] também constituindo suas subjetividades, transformando-se em seres sociais conhecedores de rios, peixes, processos de pesca que assim vão se forjando materialmente ‘no cotidiano da vida do pescador’”
Eu acho que foi a partir de doze, quatorze anos que o meu pai comprou a primeira malhadeira5, daí eu foi prestando atenção no momento que ele ia concertar quando rasgava, prestava atenção, quando ele ia tecer um matapi, quando ia tecer uma tarrafa e eu tava lá perto, aprendi e não tive dificuldade, foi fácil, muito fácil mesmo. Hoje eu já ensino para outras pessoas, para meus filhos. Tem pessoas que vem comigo pedir para ensinar fazer uma cabeça de tarrafa, eu começo a fazer a cabeça de tarrafa para ele, eu digo: é assim cada carreira de fio, você não pode passar para outra malha, você tem que levar até no pé da tarrafa, então a pessoa que presta atenção em poucos dias aprende mesmo (PESCADOR 4).
Uma formação que se materializa na relação histórica com seus pares e com suas atividades, direcionando para atingir determinados fins, os elementos necessários para suprir suas necessidades. A formação do pescador não
5 Artefato de pesca utilizado na captura de peixes.
acontece aleatoriamente, mas direcionado para a objetivação de suas necessidades. A formação humana a partir da perspectiva marxiana coincide com a realidade do próprio homem.
A doutrina materialista de que os homens são produtos das circunstâncias e da educação, de que homens modificados são, portanto, produto de outras circunstâncias e de uma educação modificada, esquece que as circunstâncias são modificadas precisamente pelos homens, e que o próprio educador tem de ser educado [...] (MARX & ENGELS, 2009, p. 124).
O conhecimento não está centrado num único sujeito, mas nas relações consigo mesmo, com os outros, não de forma linear, mas nas relações dialética entre sujeito e objeto e vice-versa. Uma relação que considera o homem não somente como ser que pensa, mas que age, construindo a realidade de sua existência numa relação de totalidade. O questionamento de Marx e Engels (2008, p. 37) presente no Manifesto do Partido Comunista de 1844, referindo-se a classe burguesa contribui para demonstrar sua concepção de formação “[...] a sua educação também não é determinada pela sociedade? Por acaso vocês não educam através de relações sociais, através de ingerência direta ou indireta da sociedade, com ajuda das escolas? “
São questionamentos que nega uma concepção de formação apenas em âmbitos escolares e individual, reconhecendo que os homens desenvolvem suas capacidades nas relações sociais como um todo.
Rodrigues (2012, 149) destaca que os saberes dos pescadores
[...] não são saberes que resultam de um aprendizado formal, no sentido escolar, mas da relação do homem com a natureza; de uma relação que lhe exige criatividade para produção de conhecimentos a fim de superar dificuldades, vencer desafios [...] (RODRIGUES, 2012, p.149).
Dificuldades e desafios chamam atenção na fala do autor, porque são sujeitos que constroem conhecimentos, saberes numa relação dialética com seus pares, com a natureza.
Thompson (2011), conforme já destacado na introdução deste estudo, ao analisar a formação da classe operária londrina, reconhece as relações de
conflitos, de transformações dos trabalhadores em suas organizações coletivas. Assim observa aquele pesquisador:
[...] a história intelectual da Dissidência é composta de choques, cismas, mutações; muitas vezes sentem-se nela os germes adormecidos do radicalismo político, pronto para germinar logo que semeados num contexto social promissor e favorável (THOMPSON, 2011, p. 43).
Gramsci (1988, p142) também se reporta que a educação é uma luta do homem consigo mesmo e com a natureza, mencionando que ao mesmo tempo em que o homem interfere na natureza, através do trabalho, produzindo cultura também se educa. “[...] a educação é uma luta contra os instintos ligados às funções biológicas elementares, uma luta contra a natureza, a fim de dominá-la e de criar o homem ‘atual’ à sua época”. Assim, compreende-se a materialização da formação nas atividades dos pescadores da Z-16, como expressa o pescador 2:
O que aprendi através da atividade da pesca, foram os apetrechos de pesca, não conhecia, fui vendo, como sim como não, nessa altura pegando uma experiência, envolvendo também meus amigos que são afiliados [na Colônia]. (PESCADOR 2).
Para saber fazer os instrumentos da pesca, os pescadores da Z-16 não participaram de escola, nem de curso direcionado para essa atividade, aprendem observando, experimentando, fazendo como seus pares, uma relação entre o desenvolvendo intelectual, através de suas observações, análises, e prática, fazendo, experimentando e vivenciando suas atividades. Conforme Manacorda (2013, p. 231) “[...] produção e trabalho constituem o ponto de referência também para a estruturação das instituições intelectuais e morais”.
A atividade da pesca por si só, não seria suficiente para garantir a vida dos pescadores, de modo que o homem é um ser cultural por natureza. A pesca se tornou para os pescadores da Z-16, uma atividade fundamental para garantir sua existência, ao mesmo tempo formação como ser histórico. Nas palavras do pescador 4: “[...] em mil novecentos e noventa e quatro entrei na pesca, com vinte e dois anos arrumei minha esposa, tenho cinco filhos, daí parti para o trabalho, para criar meus filhos, a pesca foi o principal”.
Rodrigues (2012, p. 149), em sua tese de doutorado cita o pescador José Pedro Alves de Pimentel sobre a construção do matapi e seu uso no processo de captura do camarão, “[...] trata-se de um conhecimento sobre a produção de uma tecnologia em correlação com sua funcionalidade, demonstrando unidade teórico- prática no domínio de seu ofício de pescador”.
Para Marx e Engels (2009, p.125) a formação do homem está inter- relacionada com sua essência construída nas relações sociais. “Feuerbach dissolve a essência religiosa na essência humana. Mas a essência humana não é uma abstração intrínseca ao indivíduo isolado. Em sua realidade, ela é o conjunto das relações sociais [...]”. Nesse sentido, o homem é um processo que se materializa nas relações da existência, em outras palavras, nas relações dos fatos reais, nas relações materiais de produção.
Sem produzir é impossível a vida humana. Somente através do trabalho o homem produz os elementos necessários para sua vida, sem trabalho não há vida, por isso a essência humana é o trabalho. Para desenvolver o trabalho, o homem necessita de um conjunto de elementos, como por exemplo, a natureza, os instrumentos e outros homens, por isso que o homem não é um ser isolado, mas um ser de relações, que depende do coletivo para a sua constituição. A formação é um conjunto de relações que envolvem a dimensão intelectual e o trabalho como princípio educativo, esse por sua vez se materializa quando o ser que pensa se apropria dos elementos produzidos historicamente pela humanidade, como por exemplo, as relações culturais fundamentais para a constituição humana.
Uma concepção de formação mais ampla possível compreende que a aprendizagem faz parte da vida, por isso não se aprende em um único espaço, possibilitando ao homem problematizar a realidade em busca de melhores condições de existência, denunciando tudo que aliena que impede o homem ser rico, na expressão de Marx e Engels (2009). De acordo Mészáros:
[...] apenas a mais ampla das concepções de educação nos pode ajudar a perseguir o objetivo de uma mudança verdadeiramente radical, proporcionando instrumentos de pressão que rompa a lógica mistificadora do capital. (MÉSZAROS, 2005, p.48).
O educador precisa ser educado, uma educação que ultrapassa os âmbitos institucionais formais, compreendendo a formação como um processo histórico que se materializa nas relações sociais, Gramsci (2011, p. 212) chama atenção que a formação se efetiva na:
[...] escola, academia, círculos de diferentes tipos, tais como instituições de elaboração colegiada da vida cultural. Revistas e jornais como meios para organizar e difundir determinados tipos de cultura. (GRAMSCI,2011, p.212).
A formação humana se materializa no movimento de participação, de discussão, de debate, de articulação no contexto do movimento como fazem os pescadores da Z-16 dizem:
Através da participação a gente aprende muita coisa, graças a Deus muita coisa, muitas amizades, muitos colegas que a gente não conhecia passa a conhecer. Então cada vez mais crescer as amizades, crescer a família, a família não é somente aquela que a gente deixa em casa, mas crescer fora de casa também, eu tenho graças a Deus um conhecimento maior, porque não paro somente na minha comunidade, quando paro muito na minha comunidade é uma semana, duas semanas, outros dias estou fora, visito as comunidades, assim dentro desse percurso, dentro de um ano a gente anda muito (PESCADOR, 8).
A formação construída a partir da práxis política dos pescadores da Z-16 se pauta no desenvolvimento integral de suas capacidades, de modo que no contexto de suas organizações não há elementos que proporcione a fragmentação, pelo contrário, ao mesmo tempo em que se mobilizam para planejar suas ações, esses por sua vez estão imbrincadas de relações socioeconômica, política e formativa, que proporciona sua resistência como fração de classe, para com as ideologias da classe dominante.
Antes de analisar a práxis política dos pescadores da Z-16, apresentou-se as aproximações conceituais sobre práxis, compreendendo essa como atividade pela qual os sujeitos se afirmam no mundo, ao mesmo tempo proporcionando transformação da realidade vigente. Além disso, apresentou-se o conceito de
práxis política, uma postura consciente de sujeitos comprometidos pelas transformações sociais.
Apresentados esses conceitos, destacou que as relações de produção- formação e práxis política dos pescadores da Z-16, inter-relacionam-se com os aspectos socioeconômico, político e formativo, destacando que a luta dos pescadores no cotidiano de suas atividades, em prol de sua subsistência produz espaço formativo, ultrapassando seus trabalhos como atividade técnica da pesca.
São nas atividades cotidianas que os pescadores materializam sua produção-formação, essa por sua vez embrincadas de uma concepção de mundo que requer transformações das condições de sua realidade, como defende Marx (2008b) e Mészáros (2005). São nas relações de produção, intermediada pelo trabalho, que os pescadores constroem sua consciência crítica da realidade.
A práxis política dos pescadores da Z-16 estão inter-relacionados com suas organizações no contexto da entidade, como movimento social. São espaços de discussões que proporcionam desenvolvimentos da práxis política dos pescadores, ao mesmo tempo formação crítica da realidade por eles experimentada.
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Recebido em: 25 de outubro de 2017. Aprovado em: 28 de março de 2018. Publicado em: 13 de junho de 2018.
Célia Cristina Pereira da Silva Veiga3
José dos Santos Souza4
O objeto de investigação deste artigo é o Curso de Formação de Soldados (CFSd) da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ), condicionado pelas mudanças na política de segurança pública a partir da reforma gerencial do Estado. O objetivo do texto é explicitar contradições existentes na configuração do CFSd determinadas pela atual política de segurança pública. Os resultados da pesquisa permitem afirmar que as mudanças ocorridas na política de segurança pública, a partir da Reforma do Estado, sofisticaram o discurso de mediação do conflito de classes propondo modelos de policiamento pautado na concepção de polícia cidadã, embora a formação dos policiais da PMERJ continue pautada na coerção.
The object of investigation of this article is the Training Course of Soldiers (TCSd) by Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ), determined by the current configuration of the public security policy from the managerial reform of State. The objective of this paper is to explain contradictions in the TCSd determined by the current configuration of the public security policy. The results of the research allow us to affirm that the changes occurred in the public security policy, in the state’s
1 DOI: https://doi.org/10.22409/tn.16i29.p4557
2 Esta é uma versão revisada do trabalho originalmente intitulado"Aspectos políticos e pedagógicos da formação inicial de soldados e suas interfaces com a política de segurança pública no Rio de Janeiro",apresentado no GT-09 Trabalho e Educação da XXXVIII Reunião da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação, ocorrida de 01 a 05 de outubro de 2017, em São Luiz (MA).
3 Licenciada em Pedagogia pela UFRRJ; Mestre em Educação pela UFRRJ; Doutoranda em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação, Contextos Contemporâneos e Demandas Populares (PPGEDUC) da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Atua como Professora Substituta do Departamento de Educação e Sociedade do Instituto Multidisciplinar da UFRRJ. É membro do Grupo de Pesquisas Sobre Trabalho, Política e Sociedade (GTPS), e-mail: celiacveiga@gmail.com.
4 Doutor em Sociologia pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), com Pós-Doutorado em Educação pela Faculdade de Educação da UNICAMP. Atua como Professor Associado do Departamento de Educação e Sociedade do Instituto Multidisciplinar da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), onde integra o quadro docente do Programa de Pós-Graduação em Educação, Contextos Contemporâneos e Demandas Populares (PPGEduc). É líder do Grupo de Pesquisas sobre Trabalho, Política e Sociedade (GTPS). E-mail: jsantos@ufrrj.br
reform context, sophisticated the discourse of mediation of class conflict, proposing models of policing based on the conception of citizen police, although police training of PMERJ continues based on the coercive model.
A reforma do Estado desencadeada pela crise do capital, a partir da década de 1970, provocou alterações nas ações e nas concepções da política de segurança pública. Nesse contexto, organismos multilaterais e financeiros internacionais influenciaram na proposição de alterações da política de segurança no país sob a perspectiva gerencial. Alterações essas demonstradas nas diretrizes da atual política de segurança pública que vem sendo adotada no estado do Rio de Janeiro.
A partir deste contexto, tomamos como objeto de investigação a política pedagógica do Curso de Formação de Soldados (CFSd) da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ). Nosso objetivo é explicitar as interfaces entre as ações e formulações no campo da política de segurança pública e a política pedagógica do CFSd. Trata-se de uma pesquisa básica, de análise qualitativa, de caráter explicativo, que se insere na categoria de uma pesquisa documental, embora se utilize de entrevistas semiestruturadas com gestores da educação profissional da PMERJ e questionários aplicados a 983 policiais militares que concluíram o CFSd, a fim de aprofundamento da análise.
Neste trabalho, sistematizamos análises dos resultados da pesquisa que nos permitem afirmar que as mudanças ocorridas na política de segurança pública a partir das investidas do Bloco no Poder para empreender a Reforma do Estado e reorientar o uso do fundo público sofisticaram o discurso e as práticas para mediação do conflito de classes, propondo modelos de policiamento baseados na predominância de estratégias de persuasão e convencimento, embora a política pedagógica aplicada no CFSd continue pautada na coerção e na violência, onde o controle social é obtido por meio da repressão armada. A análise empreendida aponta que a propagação do ideário gerencialista na gestão da política de segurança pública condiciona significativamente a formação inicial dos soldados, o que faz emergir limites e contradições.
Neste sentido, o texto desenvolve a abordagem do tema a partir de três seções: uma, que trata da reforma do Estado e da propagação do ideário gerencialista; outra, que trata das interferências da reforma gerencial na política de segurança; e a terceira, que trata da forma como essas mudanças na política de segurança pública, decorrentes da reforma gerencial, se materializam nas ações e nas formulações da PMERJ para a formação inicial de seus soldados.
A crise estrutural do capital, desencadeada a partir da década de 1970, foi impulsionada pelo esgotamento das bases de acumulação do modelo fordista e a crise do modelo keynesiano, o que levou à recomposição burguesa para retomada das bases de acumulação corroídas pela crise estrutural instalada (Cf.: HOBSBAWN, 1977; HARVEY, 2007; SOUZA, 2015). Tal recomposição
configurou-se em duas frentes de ação: o desenvolvimento do regime de acumulação flexível e a reforma do Estado para reorientar o uso do fundo público (SOUZA, 2016a). Como uma dimensão da reforma do Estado, a ofensiva ética e moral ao modo de regulação social keynesiano ganhou materialidade na crítica ferrenha à burocratização do serviço público e na apologia a uma Nova Gestão Pública, mais flexível, enxuta, pautada em resultados e nos princípios da accountability.
A reforma administrativa empreendida no serviço público é composta por estratégias tais como: apologia à lógica mercantil, combate ao modelo de bem- estar social, racionalização e cortes orçamentários, privatização, parcerias público-privadas e reforma gerencial (SOUZA, 2016a). Esse processo tem como base o ideário neoliberal com a mediação da Terceira Via. Seu propósito central é reorientar o uso do fundo público para garantir a estabilidade do grande capital, sobretudo porque o Estado é agente institucional orientado pelas instituições financeiras internacionais (CHOMSKY, 1999).
Bresser-Pereira (1997), um dos idealizadores da reforma do Estado no Brasil, relatou que o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) facilitaram empréstimos para promoção da reforma do Estado e a Organização das Nações Unidas (ONU) promoveu assembleia geral para tratar de administração pública, o que desencadeou ajustes no papel do
Estado e na sua relação com a sociedade civil, em vários países. No Brasil, esse processo de reforma foi iniciado com a eleição de Fernando Collor de Melo, em 1989, embora tenha sido em meados da década de 1990, no início do Governo Fernando Henrique Cardoso, que esta reforma ganhou contornos mais evidentes. Um marco desse processo foi a criação do Ministério da Administração e Reforma de Estado (MARE) (BRASIL, 1995), capitaneado por Luís Carlos Bresser Pereira, um dos fundadores do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB).
Ressaltamos que a ideologia capitalista que sustenta o consentimento ativo das massas à reforma do Estado é o gerencialismo. O termo gerencialismo, hoje, significa a proposição de um jeito mais flexível e pretensamente menos burocrático de gerenciar o serviço público. Considerando que gerenciar é o fazer daquele que é gerente, que administra algo, portanto, que é responsável pela gestão, o termo gerencialismo agrega a este ato o pragmatismo, o tecnicismo, o controle e a premiação/punição a fim de obter os resultados estabelecidos. O alcance de resultados está relacionado à ação prática, à resolução de problemas, à proatividade, ao individualismo e à competição.
Para isso, a ideia de profissionalização (formação, capacitação e qualificação) se torna imprescindível para eficiência no processo. O estímulo para os “gerentes” é a premiação ou punição pelos resultados alcançados, fomentando a competição. Para possibilitar o conhecimento e parametrização dos resultados é fundamental medir a produção. Portanto, o fomento ao uso de instrumentos tecnológicos e desenvolvimento de ferramentas gerenciais também é preponderante para o alcance e contabilização de resultados. Além disso, se de um lado está o “gerente”, do outro está o “cliente” a quem será prestado o serviço (Cf.: BRESSER-PEREIRA, 1997; 2001; 2010; e ABRUCIO, 1997).
Ao situar os atores nesse processo, a partir de uma lógica consumista, o prestador de serviço e o cliente mediados por um bem de consumo, que seria o serviço público, o gerencialismo caracteriza as instituições públicas como empresas regidas pela lógica mercantil. Assim, ideias de enxugamento de custos, qualidade do produto ou serviço, publicidade e produção tornam-se presentes nas atividades desenvolvidas pelas instituições públicas da mesma forma como estariam presentes nas empresas privadas. A adoção dessa ideologia para o serviço público está presente em diversos elementos da reforma do Estado, sobretudo, na reforma gerencial, impulsionando a mudança de concepção acerca
de conceitos tratados nos setores públicos que antes eram compreendidos por outra lógica social.
De acordo com Souza (2016b, p. 01):
Os termos “Gerencialismo” ou“Nova Gestão Pública”se referem às reformas governamentais de diversos países para superar a velha burocracia estatal por meio da propagação de nova cultura organizacional no serviço público, a qual identifica seus usuários como clientes de mesma natureza que aqueles de empresas privadas. O principal argumento do “gerencialismo” é a necessidade de superação do modelo burocrático de administração pública com foco nos procedimentos, cuja missão básica de servir a sociedade estaria comprometida, para instituir um novo modelo de administração pública com foco em resultados. Nesse sentido, esta nova perspectiva de administração pública se propõe a ir além do serviço burocratizado, pautado na mera execução de tarefas, segundo normas e procedimentos rígidos. Seu propósito é estabelecer um conjunto de procedimentos mais flexíveis e menos normatizados, orientados por dados mais precisos sobre os resultados alcançados por determinado órgão público ou empresa por ele contratada, de modo a garantir a prestação de contas dos governantes sobre o seu próprio desempenho – accountability – oferecendo aos usuários (ou clientes) maior visibilidade dos resultados concretos do serviço público prestado, a pretexto de maior controle social. (SOUZA,2016b, p. 01).
A difusão do gerencialismo como paradigma para administração pública fomentada na reforma do Estado alcançou também a segurança pública, desde seu conceito. Reiner (2004) menciona que, a partir da década de 1970, as mudanças políticas e sociais incorreram em implicações profundas na segurança pública nos Estados Unidos e na Inglaterra e, a partir da década de 1990, o conceito gerencialista predominava para segurança pública.
O policiamento orientado para gestão de conflitos e o policiamento comunitário surgiram com base nesse conceito. A junção dos modelos foi encampada pela ONU (2009) no desenvolvimento do conceito de Segurança Cidadã., a segurança pública é um mecanismo de controle social a serviço da classe dominante que atua na aparelhagem estatal a fim de manter o status quo. Na medida em que avança o estágio de desenvolvimento do capital, a necessidade de sofisticar suas estratégias de mediação do conflito de classes também se vê expressa nessa nova concepção de segurança pública, onde o equilíbrio entre coerção e consenso passa a substituir a ideia de manutenção da
ordem pública por meio do uso da força bélica4. A essência não muda, mas muda a estratégia de atuação para o alcance do mesmo objetivo: a manutenção do status quo.
No Brasil, o termo segurança pública foi adotado na Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988). Antes disto, o termo utilizado era segurança nacional. O deslocamento do nacional para o público aponta para demandas sociais da sociedade civil no lugar de demandas exclusivas da sociedade política a serem supostamente atendidas pelas polícias, assim, a atuação dos órgãos de segurança pública passa a ter como suposto foco a garantia do exercício dos direitos individuais e coletivos estabelecidos legalmente, a proteção das pessoas e do patrimônio público e privado e a prevenção e o controle de ações criminosas.
Passa-se a evocar a ideia de prestação de serviço de segurança, de modo que o cliente é a própria sociedade civil. O deslocamento do público-alvo da condição de inimigo a ser combatido para a condição de cliente, o qual deve receber segurança, altera a concepção conservadora tradicional que pautava a atuação das instituições de segurança pública até então. Logo, a preservação da vida e da incolumidade e a proteção da pessoa concebem o uso de estratégias de mediação entre coerção e consenso e não apenas coerção, embora o Estado continue detendo o monopólio da violência.
Por outro lado, a concepção de que os profissionais de determinada atividade são gerentes também foi adotada no que chamamos de conceito conservador progressista de segurança pública5. Nesta perspectiva, os policiais se tornariam responsáveis por gerir conflitos; seriam, portanto, gerentes na prestação do serviço de segurança pública; da complexidade presente nessa tarefa emerge a demanda de profissionalização (formação inicial e continuada) fomentada pelo gerencialismo.
4 “Enquanto a interiorização pode fazer o seu bom trabalho, para assegurar os parâmetros reprodutivos abrangentes do sistema capitalista, a brutalidade e a violência podem ser postas de parte (embora de modo algum permanentemente abandonadas) como modalidades dispendiosas de imposição de valor, como de facto aconteceu no decurso dos desenvolvimentos capitalistas modernos. Apenas em períodos de crise aguda se dá de novo projecção ao arsenal da brutalidade e da violência com o objectivo de impor valores” (MÉSZÁROS, 2005, p. 14).
5 Denominamos como conservador progressista tomando por empréstimo a concepção gramsciana de frações de classe (GRAMSCI, 1980). O conceito conservador progressista de segurança pública agrega ideias gerenciais para segurança pública e adota modelos de policiamento orientado para a gestão de conflitos, como a polícia comunitária. A nomenclatura da ONU para esse tipo de policiamento é Segurança Cidadã (ONU, 2009).
Nesse sentido, a formação policial torna-se elemento fundamental para atuação desse profissional. As exigências para esse profissional têm aumentado a partir de então, tanto para o ingresso nas instituições policiais, quanto para a continuidade de atuação daqueles que ingressaram sem muitas exigências, o uso de equipamentos e tecnologias sofisticados nas instituições de segurança pública, bem quanto a própria sofisticação das ações criminosas, são elementos que demandam profissionalização e desenvolvimento profissional.
Além disso, há relação com o próprio desenvolvimento das atividades das instituições de segurança pública, que passaram a ser geridas segundo as diretrizes e estratégias típicas do modelo gerencialista, com vistas ao alcance de resultados.
Enfim, a partir da reforma gerencial, o profissional de segurança pública é conduzido ao status de gerente, sua atuação ao status de produção, a sociedade ao status de cliente e a segurança pública ao status de produto, contudo, o policiamento mediado entre coerção e consenso é o mínimo a ser feito no que diz respeito ao fomento dos direitos humanos. Por outro lado, é importante ressaltar que esse é o limite a ser alcançado pelas instituições de segurança pública no Estado capitalista. Limite esse que ainda está longe de ser realidade no Brasil.
As pressões internacionais que resultaram no desenvolvimento de políticas para segurança, em âmbito nacional e, em âmbito estadual, no Rio de Janeiro, levaram à implementação de ações para formação policial no sentido de efetivar a reorientação da política de segurança pública. Citamos como exemplo o Projeto de Cooperação Técnica Internacional BRA/04/029 – Segurança Cidadã, iniciado em 2004, que além da proposta de implementação do Sistema Único de Segurança Pública (SUSP)6, teve como objetivo o apoio às ações de formação e de valorização profissional para segurança pública. Assim, surgiu a demanda pela criação de um currículo que uniformizasse a formação dos profissionais de
6 Os Projetos de Lei nº 3734/2012 e PL 3735/2012 que tratam da implementação do SUSP ainda estão em tramitação.
segurança em território nacional. O desenvolvimento de tal currículo proposto nesse acordo foi finalmente implementado em 2009.
A Matriz Curricular Nacional (MCN) para ações formativas dos profissionais da área de segurança pública (BRASIL, 2009) desenvolvida no ano de 2009 e revisada no ano de 2014 (BRASIL, 2014) visa a formação, capacitação e qualificação profissional na área de segurança pública em âmbito nacional. Já no estado do Rio de Janeiro, em 2011, foi regulamentado o exercício de encargos referentes às atividades de ensino no âmbito da segurança pública (RIO DE JANEIRO, 2011), a partir do qual foi criado o Programa Banco de Talentos; em 2012, foi criada a Subsecretaria de Educação, Valorização e Prevenção (SSEVP) (RIO DE JANEIRO, 2012b) e desenvolvido o currículo para os cursos de formação de praças da PMERJ (RIO DE JANEIRO, 2012a). Em 2015, a institucionalização, planejamento e controle da política de pacificação no estado do Rio de Janeiro (RIO DE JANEIRO, 2015a) ratifica a relação entre tal política pública e o conceito de segurança cidadã da ONU.
A implementação dessas medidas tem como objetivo a difusão da política pública, a conformação social a essa política e a reprodução do conceito de segurança pública sob viés gerencialista, a fim de superar o tradicionalismo e assim estabelecer-se hegemonicamente em um contexto mais complexo das relações entre Estado e sociedade civil.
Embora não tenhamos encontrado um documento denominado Projeto Político Pedagógico (PPP) para as atividades de ensino na PMERJ, encontramos a orientação ou proposta político pedagógica em alguns documentos normativos dos processos educativos na PMERJ. A Diretriz Geral de Ensino e Instrução – DGEI-D9 (PMERJ, 2004), como a MCN (BRASIL, 2009; 2014) e também o
Currículo de Soldados, Cabos e Sargentos (RIO DE JANEIRO, 2012a) fomentam aspectos políticos e pedagógicos para a formação profissional.
Esse último documento foi desenvolvido em ação conjunta com a SSEVP, órgão criado para orientar a formação policial dos efetivos que atuam principalmente na atividade fim, sobretudo praças e agentes da polícia civil, ou seja, agentes que atuam na base das instituições de segurança pública, além de instituir o Banco de Talentos que tem relação direta com a implementação da
política de segurança pública7. Nesse sentido, observamos que a DGEI-D9 (PMERJ, 2004), a MCN (BRASIL, 2009; 2014) e o Currículo de Soldados, Cabos e Sargentos (RIO DE JANEIRO, 2012a) são elementos fundamentais para compreensão da política pedagógica desenvolvida para formação policial militar no Rio de Janeiro.
A DGEI-D9 (PMERJ, 2004), desenvolvida no mesmo ano do Acordo de Cooperação Técnica Internacional mencionado anteriormente, propõe a “adoção de um novo modelo de gestão calcado, dentre outros atributos, na capacidade gerencial altamente qualificada, com vistas à adoção de novas rotinas de pronta resposta em face do anseio da sociedade” (PMERJ, 2004, p. 2). Assim, logo no início do documento fica clara a proposta política para formação dos profissionais de segurança da PMERJ, voltada para a formação de um policial militar capacitado para gestão, prevenção, mediação e resolução de conflitos.
Além disto, percebe-se clara proposição de substituição do caráter militarista, imbuído no ideal da força, pela demanda de prestação de serviço à sociedade, conforme descrito a seguir:
[...] significa a superação do paradigma histórico de natureza militarista, fortemente alicerçado na crença de que a ideia de serviço deva necessariamente se subordinar à ideia de força. A noção exata que justamente traduz o sentido de ser da organização policial como instituição destinada a proteger e a servir a sociedade e de garantir a ordem democrática é diametralmente oposta ao preceito mencionado, ou seja, na busca legítima dos requisitos legais e técnicos inerentes ao exercício da autoridade moral e policial a ideia de força deve, necessariamente, estar subordinada à ideia de serviço (PMERJ, 2004, p. 3).
O objetivo principal dos processos de ensino-aprendizagem na PMERJ, de acordo com a DGEI-D9 (PMERJ, 2004, p. 3), é o desenvolvimento profissional e humano dos policiais militares, com vistas à valorização e ao reconhecimento profissional. O Art. 3º da DGEI-D9 (PMERJ, 2004, p. 6) esclarece que a atividade de ensino e instrução na PMERJ
7 A atividade docente é elemento central na formação do policial, com poder de desenvolver ou de frustrar a política pedagógica adotada. Nesse sentido, a contratação de professores por um órgão externo às polícias, os quais são avaliados a partir do currículo mínimo delineado pela SSEVP, torna-se uma medida política vista como estratégica na garantia de efetivação da segurança cidadã.
[...] tem por finalidade o pleno desenvolvimento das qualidades e das aptidões intelectuais, psicológicas, físicas, éticas e morais, inerentes às atribuições funcionais do profissional de segurança pública, seu preparo para fazer cumprir a Lei e garantir o exercício da cidadania e sua qualificação continuada para o trabalho (PMERJ, 2004, p. 6).
A MCN (BRASIL, 2009; 2014) serve para orientar a construção de currículos para ações formativas por parte das instituições de segurança pública, a partir de eixos articuladores e áreas temáticas, buscando o desenvolvimento de “competências específicas necessárias para responder aos desafios sem precedentes das ações concretas da área de segurança pública” (BRASIL, 2014,
p. 17). Desse modo, propõe “ser um referencial teórico-metodológico que orienta as Ações Formativas dos Profissionais da Área de Segurança Pública [...] independente da instituição, nível ou modalidade de ensino” (BRASIL, 2014, p. 17). O objetivo geral da MCN é:
[...] favorecer a compreensão do exercício da atividade de segurança pública como prática da cidadania, da participação profissional, social e política num Estado Democrático de Direito, estimulando a adoção de atitudes de justiça, cooperação, respeito à Lei, promoção humana e repúdio a qualquer forma de intolerância (BRASIL, 2014, p. 40).
De acordo com o delineamento dado à MCN (BRASIL, 2014), a formação para segurança pública deve estar imbricada à ideia de autonomia intelectual, conceituada como capacidade de adaptação, de ação e de gestão frente a diversas situações a que o profissional de segurança pública é submetido no exercício da profissão. Essa autonomia seria produto de um processo de aprendizagem para crítica da cultura consolidada nas instituições (BRASIL, 2014). Assim, a MCN visa o desenvolvimento das “capacidades de análise, síntese, crítica e criação” (BRASIL, 2014, p. 52), de modo que o profissional de segurança pública alcance competências cognitivas, operativas e atitudinais, a fim de que seja capaz de pensar crítica e criativamente sobre a própria atuação profissional e sobre sua interação e convivência com o outro, nos ambientes onde atua (BRASIL, 2014).
No ano de 2012, a partir de ação conjunta com a PMERJ, a SSEVP desenvolveu o Currículo para os cursos de formação de soldados, cabos e
sargentos (RIO DE JANEIRO, 2012a). Logo no início, está claro no documento que a motivação para sua confecção está relacionada à implementação da política de segurança pública:
Essa proposta é uma reflexão que tem como ponto de partida a atual política de segurança pública adotada pela Secretaria de Estado da Segurança do Rio de Janeiro, na qual os processos de aprendizagem passam a ter contornos de uma ponte entre as atividades policiais e as dinâmicas e demandas da sociedade (RIO DE JANEIRO, 2012a, p. 4).
Nesse contexto, o documento toma a formação de policiais militares como elemento fundamental, porquanto são os reais executores da política de segurança pública desenvolvida pelo governo. Por isso, a proposta da SSEVP é para formação inicial e continuada realizada pelo Centro de Formação e Aperfeiçoamento de Praças (CFAP):
Este cenário exige, por parte do Centro de Formação e Aperfeiçoamento de Praças, CFAP 31 de Voluntários - instituição responsável pela formação técnico-profissionalizante e continuada da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ) que oferece a formação para Soldados, Cabos e Sargentos, bem como cursos de aperfeiçoamento - a implementação de novas ações organizativas e pedagógicas referentes a otimização de tempos e espaços de formação. Numa dimensão politicamente mais ampla, essas demandas estão alinhadas às diretrizes da SESEG, que elegeu a educação como princípio norteador das mudanças a serem realizadas (RIO DE JANEIRO, 2012a, p. 6).
O documento aponta como referencial as diretrizes estabelecidas pela ONU para o desenvolvimento da Segurança Cidadã (RIO DE JANEIRO, 2012a, p. 19), mencionando também a importância das parcerias com setores privados para a diminuição da violência. Tal currículo busca alinhar a formação policial militar à proposta político pedagógica para formação dos profissionais da segurança pública em âmbito nacional (BRASIL, 2014) e à política de segurança pública do estado do Rio de Janeiro. Assim, o objetivo geral para formação de praças, tanto para os cursos de formação inicial, quanto para os cursos de formação continuada é “criar condições para que os policiais em formação possam: ampliar conhecimentos; desenvolver habilidades técnicas e cognitivas; e fortalecer
atitudes pessoais e corporativas necessárias à sua atuação como operadores de segurança pública” (RIO DE JANEIRO, 2012a, p. 11).
Desenvolvendo um perfil profissional de “policiais militares reflexivos, conscientes e participativos, capazes de interagir e intervir na realidade” (RIO DE JANEIRO, 2012a, p. 9). Para isso, as ações educacionais “devem estar voltadas para o desenvolvimento das competências profissionais necessárias à atuação do operador de segurança pública no contexto social atual, considerando a indissociabilidade com os Direitos Humanos” (RIO DE JANEIRO, 2012a, p. 7).
O currículo está dividido em quatro módulos: Módulo Comum – 184h; Módulo Profissional – 430h; Módulo Jurídico – 128h; e, Módulo Complementar – 440h, com carga horária total de 1182 h, distribuídas em 30 disciplinas a serem concluídas em aproximadamente 27 semanas no CFSd. A maior carga horária do currículo é dispensada ao Módulo Complementar (37,2% da carga horária do curso). Neste módulo, a metade da carga horária é destinada à realização de avaliação (100 horas) e “coordenação pedagógica8” (120 horas).
A análise preliminar do currículo aponta contradições com a política pedagógica descrita no próprio documento (RIO DE JANEIRO, 2012a) e com os demais documentos que toma como referenciais – DGEI-D9 (PMERJ, 2004) e MCN (BRASIL, 2009; 2014). A ênfase no Módulo Complementar o põe como foco principal para formação policial militar. Entendemos que a flexibilidade que tal condição infunde à formação possibilita que o currículo siga por direções contrárias à política pedagógica sem burlar o planejamento estabelecido. Não estão delimitadas, por exemplo, as abordagens contidas nas “atividades extracurriculares – palestras” (80h); tampouco, informa quais atividades são desenvolvidas na “coordenação pedagógica” (120h).
Observamos ainda que a disciplina “Educação Física” recebe a maior carga horária dentre as demais disciplinas do curso (10,1%), seguida de “Tiro Policial” (5,9%). Considerando que a disciplina “Método de Defesa Policial Militar” (2,5%) tem conteúdo relacionado à prática de atividades físicas, as disciplinas voltadas à atividade física abrangem 12,6% da carga horária total. Além disso, agregando a disciplina “Armamento” (4,2%) à disciplina “Tiro Policial” (5,9%), temos 10,1% da carga horária total, dispensados ao uso de armas de fogo. Portanto, as quatro
8 O currículo não conceitua o termo, tampouco estabelece a que se destina.
disciplinas da MCN (BRASIL, 2009) relacionadas ao “Uso da Força” (5%), na matriz curricular do CFSd (RIO DE JANEIRO, 2012a) compreendem 22,7% da carga horária do curso. Além disso, o “Módulo Jurídico” compreende 10,8% da carga horária total, muito embora, duas disciplinas de teor jurídico estejam dispostas no módulo profissional, a saber, “Legislação Aplicada a PMERJ I” e “Legislação Aplicada a PMERJ II”, que juntas somam 3,2% da carga horária total - se agregadas ao Módulo Jurídico, compreenderiam 14% do curso. Somando a carga horária dispensada à atividade física (22,7%), ao conhecimento jurídico (14%) e ao módulo complementar (37,2%) concluímos que 73,9% da carga horária total do curso é dispensada, a tais conhecimentos.
A ênfase da carga horária para atividades físicas reforça a ideia de que o bom profissional de segurança pública tem o perfil próprio para o combate e está inserto em um determinado padrão de força e resistência próprio de “guerreiros”. O ideal de policial super-herói é agravado ainda pela ideia deturpada de direitos humanos presente nas instituições policiais, baseada no discurso de que é “coisa de defesa de bandido” (GUIMARÃES, 2000, p. 48) e contrária aos interesses dos policiais. Tal compreensão retroalimenta a ideia de desumanização do policial, pois se ele é “homem-máquina”, herói, não é humano, logo, Direitos Humanos não são seus próprios direitos.
Enfim, tanto a DGEI-D9 (PMERJ, 2004), quanto o Currículo para Soldados, Cabos e Sargentos (RIO DE JANEIRO, 2012a) estão alinhados à proposta político-pedagógica presente na MCN (BRASIL, 2009; 2014a), no que diz respeito aos objetivos da formação policial militar e o perfil profissional que se pretende alcançar. O policial deve ser capacitado para gestão de conflitos, seja pela prevenção, seja pela mediação, seja pela resolução. Além disso, essa proposta político-pedagógica está alinhada ao novo conceito de segurança pública.
Portanto, delineia um perfil policial militar voltado à prestação de serviço, que cumpre a lei e que seja um promotor dos direitos humanos. Contudo, a materialização de tal proposta não chegou a promover alterações substanciais no currículo dos cursos de formação policial militar. O máximo alcançado até o momento foi a inserção de uma carga horária para a disciplina Direitos Humanos, mesmo assim, abaixo do proposto pela Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP).
Além da criação de órgãos, programas, propostas legais e currículos para formação dos policiais militares sob a concepção de segurança pública conservadora progressista, é importante esclarecer as influências da política pedagógica no discurso dos gestores da formação policial militar e do próprio policial militar formado a partir dessa concepção. Para tanto, trazemos alguns dados coletados durante pesquisa de campo (VEIGA, 2016).
A partir de entrevistas com os gestores da formação de soldados – o comandante do Centro de Formação e Aperfeiçoamento de Praças (CFAP); o diretor da Diretoria Geral de Ensino e Instrução (DGEI) e o superintendente de educação da SSEVP, da Secretaria de Estado de Segurança (SESEG) – concluímos que estão alinhados com a concepção de segurança pública adotada pelo estado do Rio de Janeiro. Houve unanimidade acerca da demanda de adoção do conceito de segurança pública norteado pela prestação de serviço e gestão de conflitos pela mediação entre coerção e consenso.
Nós já saímos da era dessa questão de meter o pé na porta, isso não existe mais… de jogar bomba… dizem que é tiro, pancada e bomba, isso daí já… ultrapassamos essa esfera. Temos que evoluir e agora caminha para esse aspecto social de preparação, de diálogo, de conversa, de um verdadeiro resolvedor de problemas (Diretor da DGEI).
[...] eu imagino que a Secretaria pense que o soldado formado, ele é, antes de tudo, um prestador de serviço e um administrador de conflitos; acho que se fosse pra resumir, eu resumiria dessa forma, né (Superintendente de educação da SSEVP).
[...] o produto que se forma aqui é o grande projeto da Secretaria de Segurança Pública. [...] prá gente, enfim, tentar formar um policial aqui com essa inclinação, com uma inclinação mais é humana, de dignidade, de proximidade, então, eu tento que primar por isso. [...] aliás, se em torno de 65% das nossas ocorrências são assistenciais, por que que eu quero que saia daqui um policial um exímio atirador? Ele tem que saber tratar gente, ele tem que saber dirimir conflito (Comandante do CFAP).
Além disso, foram mencionadas, durante as entrevistas, as demandas de modernização das atividades desenvolvidas pela PMERJ e de profissionalização dos policiais militares propagadas pela ideologia gerencial. Entretanto, foram evidenciados alguns fatores que emperram o desenvolvimento desse modelo de gestão, de acordo com os entrevistados: a) ausência de investimentos financeiros adequados à demanda da formação policial de modo amplo; b) demanda de
medidas de qualificação e capacitação de todo quadro efetivo; c) política de contratação e seleção e valorização profissional. Tais fatores têm implicação direta no projeto estatal para difusão de um novo conceito de segurança pública.
Aplicamos questionário a um grupo de 983 policiais militares do estado do Rio de Janeiro que realizaram o CFSd em algum momento de suas carreiras. Nesse questionário com 58 perguntas, coletamos dados a respeito do CFSd e características do público pesquisado. É importante esclarecer que o perfil dos sujeitos investigados é homogêneo: formado por policiais militares que ingressaram pelo concurso de soldados no período de 1980 a 2015 e estavam na ativa no ano de 2016; e diversificado de acordo com as características profissionais existentes na instituição: quanto ao gênero, idade, grau hierárquico, área de atuação, escolarização, tempo de profissão, etc. Considerando os limites desse artigo, analisamos um único aspecto coletado durante a aplicação dos questionários: a prática pedagógica adotada.
Estipulamos questões referentes à carga horária praticada; à carga horária praticada para atividades físicas e o tipo de atividades praticadas para condicionamento físico; à prática de punições; ao uso de canções e jargões militares e aspectos culturais coletados em duas questões discursivas.
No que diz respeito à carga horária praticada durante o CFSd, 60% dos sujeitos investigados informaram que o curso não era realizado em regime de internato ou semi-internato, contudo, mais de 60% informaram que o horário de início das atividades diárias era até seis horas da manhã. Não foram poucas as queixas de que o curso exige demais dos alunos, expondo-os a cargas horárias diárias superiores a 12 horas.
Considerando que a carga horária estabelecida no currículo do CFSd é de
1.182 horas, distribuídas em 27 semanas, isso equivale a 43,77 horas semanais e 8,75 horas diárias (de segunda à sexta). Se o aluno cumpre uma carga horária diária de 12 horas, o curso é aumentado em mais de 400 horas, o que representa um aumento de quase 30% da carga horária estabelecida. Tendo em vista que todas as disciplinas do currículo têm carga horária estipulada, tais horas a mais poderiam ser utilizadas para reforçar algum conhecimento específico presente ou não no currículo ou seriam utilizadas para práticas de atividades físicas e treinamento militar.
Por outro lado, segundo coletado durante a pesquisa, as atividades físicas ainda contam com práticas degradantes, como a exposição ao sol por mais de 2 horas e realização de exercícios em solo quente. A evidência dada às atividades físicas e ao treinamento militar impactou o grupo pesquisado, de modo que 50% dos sujeitos respondeu que esse foi o conhecimento mais importante durante o CFSd, seguido de uso da força. Segundo esse entendimento, é provável que a carga horária extra seja utilizada para realização de alguma atividade física, que já tem carga horária expressiva no currículo, conforme mencionado anteriormente.
Esse fato demonstrado pelos sujeitos pesquisados quando solicitado que dissessem uma frase que marcou o CFSd e as respostas foram: “cai”, “paga”, “correndo”, “de pé 1, 2”, “para posição de flexão”, “flandu” e até “tortura” foram mencionadas, além de que a palavra “suga” foi a mais registrada nesse espaço do questionário. Em outra questão aberta, além das críticas à excessiva carga horária e ao esgotamento físico durante o CFSd, ainda houve referências ao emprego de alunos para limpeza das instalações no horário do curso:
Infelizmente, o que mais aprendi, nos meus 6 meses de curso foi pegar em uma vassoura.... (ANÔNIMO, em 01/06/2016, às 18:13:11h).
Tempo de treinamento deveria ser melhor empregado, ou seja, menos suga + profissionalismo (ANÔNIMO, em 2016/05/19, às 9:41:10h).
Quando questionamos quais as disciplinas menos importantes durante o CFSd, 50% dos sujeitos investigados responderam direitos humanos e, em segundo lugar, treinamento militar, a evidência da polarização entre direitos humanos e treinamento militar é notada pela repulsa de uma e exaltação da outra, com a mesma proporção pelo mesmo grupo.
A tensão entre duas concepções de segurança pública é evidente aqui: a concepção conservadora tradicional valoriza a militarização, enquanto a concepção conservadora progressista faz emergir o debate acerca de direitos humanos. Quando os sujeitos investigados apontam esses dois conhecimentos como menos importantes, é evidenciada a tensão e disputa por hegemonia entre as duas concepções de segurança pública apresentadas. Esse fato demonstra, sobretudo, a tensão entre a prática pedagógica tradicional adotada no CFSd e a
política pedagógica progressista presente nas propostas de mudança na segurança pública explicitadas em outdoor na entrada do CFAP dizendo que: “a pacificação começa aqui”. Contradição também observada nos trechos:
O curso necessita que seja realizado uma formação que privilegia a formação profissional e menos militar (ANÔNIMO, em 08/06/2016, às 18:02:04h).
Deve-se pensar em formar verdadeiros policiais, e não um grande número de guerrilheiros urbanos (ANÔNIMO, em 01/06/2016, às 20:44:52h).
A formação policial deve ser mudada, não somos máquinas de guerra que defendem o Estado (ANÔNIMO, em 01/06/2016, às 22:29:20h).
Penso que nos preparam para enfrentarmos bandidos e a sermos sanguinárias. Porém, na verdade, não é isso que acontece aqui fora. No curso te ensinam a bater; aqui fora, se vc bate vc vai preso (ANÔNIMO, em 02/06/2016, às 00:32:27h).
Existe uma cultura que impõe a dualidade no pensamento do aluno, pois, por vezes, ele é incentivado a agir como um verdadeiro servidor público garantidor da cidadania; mas, paradoxalmente, é preparado e incentivado a ser um infante implacável na luta contra os ""inimigos"", normalmente os traficantes de entorpecentes e ladrões em geral (ANÔNIMO, em 02/06/2016, às 16:49:59h).
Além disso, mais de 50% dos sujeitos investigados informaram que sofreram uma ou mais punições9 durante o CFSd. Contudo, mais de 60% informaram que os alunos realizavam exercícios físicos e mais de 30% informaram que os alunos eram submetidos à extensão do horário de saída como formas de punição aplicadas durante o CFSd. O uso do Regulamento Disciplinar como instrumento pedagógico para moldar o policial militar é incrementado pelas diversas possibilidades de punição dada a falta de regulação de direitos trabalhistas da categoria. O uso de exercícios físicos, escalas extra, aumento da carga horária diária pela alteração de horários de entrada e saída são exemplos dessas estratégias coercitivas de uma prática pedagógica tradicional.
[...] infelizmente o maior aprendizado no curso era o medo dos oficiais e dos policiais mais antigos, pois, por qualquer motivo
9 Consideramos nesta questão apenas punições elencadas no Regulamento Disciplinar da PMERJ (advertência verbal e escrita, detenção e prisão).
pagava-se flexão, éramos esculachados verbalmente na frente de todos e ficávamos de LS, ou seja, detidos aos finais de semana a troco de nada (ANÔNIMO, em 01/06/2016, às 19:22:01h).
[...] bem, infelizmente, o curso de formação de praças contribui muito pouco para a formação de um profissional de segurança pública, infelizmente. Onde, ao invés de preparar o aluno para tal, ficam utilizando o militarismo de uma forma negativa. [...] utilizam- se do militarismo para abusar do aluno em faxinas, serviços extras (muitos deles sem necessidade e sem propósito) e tratamento desrespeitoso à figura do aluno. sendo o aprendizado técnico ficado em último plano. Ou seja, formando profissionais despreparados, que vão adquirir qualificação, na vivência policial (ANÔNIMO, em 06/06/2016, às 16:45:43h).
Carga horária de 13h por dia e quando era meio expediente, liberavam-nos às 14h. Desfile militar após as 18:30, horário regulamentar de expediente até às 17:40, no entanto, fomos liberados após às 20h apenas com alimentação do almoço às 11h, após esses desfiles (ANÔNIMO, em 09/10/2016, às 12:26:48h).
Outro aspecto que demonstra a prática pedagógica adotada é o uso de canções e jargões militares. Cerca de 50% dos sujeitos investigados informaram que as letras das canções “incentivavam a sobrevivência” e a “guerra contra os inimigos”. Além de outros 30% que informaram que as letras das canções traziam “temas sobre morte”. Os percentuais apresentados demonstram o conceito de segurança pública conservador presente no uso dessas canções.
Os sujeitos investigados que ingressaram na década de 2010 relataram proporções menores acerca de temáticas sobre combate aos inimigos, violência e morte, o que representa alguma mudança nesse aspecto no período.
Por fim, também foi relatado o uso de xingamentos e expressões como “você foi voluntário”, “não está satisfeito, pede pra ir embora”, “o cachorro é mais antigo que você”, “você é um número”, “recruta maldito”, “imagem do cão”, “bisonho”, “lixo”, “animal”, “monstro”, “FEM maldita”, “louco”. Tais práticas impactaram negativamente o momento do ingresso dos sujeitos investigados na PMERJ, a ponto de 70% dos sujeitos investigados terem informado que o momento de maior aprendizagem profissional se deu após o CFSd.
[...] o uso de violência nos cursos de especialização acredito não somar nada ao profissional, pois sempre ouvi falar que aprende apanhando ensina batendo, logo, nos cursos de especialização são a base a porrada, afogamento e tortura. Então, para que ser submetido a esse tipo de tortura se não podemos aplicar sobre o público alvo? (ANÔNIMO, em 6/2/2016, às 10:34:05h).
Sofri grandes pressões psicológicas e físicas durante o curso, que só serviram para me influenciar negativamente. E me causar danos até hoje! Passei dificuldades financeiras devido a falta de pagamento dos primeiros meses de curso e recorri a empréstimos consignados, que sangram meu orçamento até hoje. O ensino é péssimo e em poucos momentos, segundos, foi voltado prô meu serviço policial que desempenharia...e sim uma lavagem cerebral de como a polícia é boa #sqn, e disseminação do medo dos seus superiores (ANÔNIMO, em 6/2/2016, às 10:21:51h)
A primeira palavra de chamamento no primeiro dia foi "Animal" (ANÔNIMO, em 01/06/2016, às 19:48:34h).
Foi possível obter junto aos sujeitos investigados que a carga horária praticada é significativamente superior à estabelecida, como também a carga horária praticada para atividades físicas. Além disso, o tipo de atividades praticadas para condicionamento físico inclui práticas degradantes. A prática de punições de modo expressivo e o uso de canções, jargões militares e expressões voltadas ao “enquadramento” do policial em um determinado ethos guerreiro são fatos que demonstram uma prática pedagógica voltada à coerção.
Concluímos que a política de segurança pública explicitada em documentos no estado do Rio de Janeiro não se materializou na política pedagógica do CFSd. A ausência de padrões normatizados institucionalmente para sistematizar o desenvolvimento da política pedagógica de acordo com a política de segurança contribui para adoção de práticas inadequadas destinadas à manutenção e reprodução dos padrões tradicionalistas. Por outro lado, a política pedagógica adotada serve para forjar um profissional submisso e minimamente reflexivo. O currículo é aplicado por meio de uma pedagogia da coerção, a partir de punições e excessiva prática de atividades físicas. Assim, a submissão produzida coercitivamente capacita o policial militar a cumprir sua função na condição de agente do aparelho repressivo do Estado em favor do capital, para garantia da manutenção e reprodução do status quo. Desse modo, a sofisticação das estratégias de mediação de conflitos e construção do consenso para obtenção de hegemonia, desenvolvidas a partir da perspectiva gerencial, não chegou a interferir na pedagogia tradicional utilizada para formação inicial do policial militar do Rio de Janeiro.
Nossa compreensão é de que ficou bastante explícita a contradição entre a política de segurança pública pautada na perspectiva da mediação de conflitos proposta nos documentos analisados e aquela pautada na perspectiva da ação coercitiva verificada na prática pedagógica dos CFSd. Esta contradição expressa a tensão vivida no interior da própria classe dominante. Trata-se de uma contradição intraclasse na concepção e na política de segurança pública que perpassa toda as ações gerenciais dos órgãos de segurança, a relação entre as forças policiais e a sociedade e, obviamente, na formação inicial dos policiais militares. O fato é que, em pleno processo de recomposição burguesa diante da crise orgânica do capital, a fração mais moderna do bloco no poder enfrenta o desafio de suplantar as forças tradicionais ainda vivas em seu interior para fazer valer seus esforços de renovação dos mecanismos de mediação do conflito de classes, com vistas na manutenção de sua hegemonia em condições renovadas.
Tal contradição se expressa na própria existência de uma polícia militar em nossa sociedade em um regime democrático instalado após a ditadura civil-militar. Outro exemplo é nossa legislação, que expressa um discurso em que predomina a perspectiva da mediação de conflitos para obtenção de consenso, pautada em ideais democráticos, mas sua aplicação, em especial quando se trata das camadas mais pobres, se dá predominantemente pelo uso de ações coercitivas e autocráticas.
Em outro aspecto, esta contradição também pode ser compreendida como uma “cortina de fumaça” para ofuscar a natureza autoritária e coercitiva de um sistema social de produção e reprodução da vida material fundado na exploração de uma classe por outra, mas que necessita do consentimento ativo da sociedade civil para se estruturar e se reproduzir. Em um sistema como esse, em última análise, a política de segurança pública funciona para a manutenção do status quo, ainda que determinada pela contradição entre consenso e coerção, o que se percebe claramente na formação inicial do policial militar investigada.
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Recebido em: 20 de outubro de 2017. Aprovado em: 10 de março de 2018. Publicado em: 13 de junho de 2018.
Maria da Conceição dos Santos Costa2
Este estudo analisa a configuração do trabalho docente em Educação Física na Educação de Jovens e Adultos a partir das condições e jornada de trabalho materializadas na Educação Básica do Município de Belém - Pará. A pesquisa foi realizada com oito docentes da Rede Municipal de Ensino e fundamentada na teoria crítica dialética. As condições e jornada de trabalho têm se caracterizado como aspectos que medeiam a configuração de um trabalho precário e intensificado na escola pública. Ao mesmo tempo, os docentes resistem e apontam a relevância da EF para a formação dos jovens e adultos trabalhadores.
This study analyzes the configuration of the teaching work in Physical Education in Youth and Adult Education from the conditions and day-work materialized in the Basic Education of the Municipality of Belém – Pará. The research was carried out with eight teachers from the Teaching Municipal Network and based on critical dialectical theory. The conditions and Day-work have been characterized as aspects which mediate the configuration of precarious and intensified work in the public school. At the same time, teachers resist and point out the relevance of Physical Education to forming young and adult workers.
Nos últimos anos têm avançado no Brasil os estudos sobre trabalho docente (OLIVEIRA, 2010; DUARTE, 2011; KUENZER e CALDAS, 2009)
enquanto uma categoria central para compreensão dos processos de trabalho dos
1 DOI: https://doi.org/10.22409/tn.16i29.p4558
2 Doutora em Educação (PPGED/UFPA). Instituto de Ciências da Educação. Faculdade de Educação Física. Grupo de Estudo e Pesquisa em Educação do Campo na Amazônia (Geperuaz). E-mail de contato: concita.ufpa@gmail.com
docentes que atuam na educação básica mediante as mudanças provocadas no campo da organização e gestão da educação, oriundas das reformas educacionais no Brasil.
De acordo com Oliveira e Vieira (2012), no Brasil a discussão sobre as condições e jornada de trabalho tem sido integrada aos assuntos sobre a valorização dos profissionais da educação, tema de grande atualidade para o conjunto do movimento docente no país.
É nesse contexto que essa pesquisa se insere e tem como centro de discussão o trabalho do docente de Educação Física (EF) que atua na Educação de Jovens e Adultos (EJA) na Rede Municipal de Ensino de Belém-PA (RMEB). Nessa direção a partir de um recorte realizado, este estudo foi norteado pela seguinte questão: como se configura o trabalho do docente de EF que atua na EJA na RMEB a partir das condições e jornada de trabalho materializadas na educação básica, na realidade concreta do Município de Belém do Pará?
Esse debate nos instiga a pensar sobre o trabalho docente em EF na EJA como campo de discussão desafiador, marcado por contradições, resistências, possibilidades e lutas que os trabalhadores da EF experienciam na escola pública. Partindo desse entendimento, nosso objetivo foi analisar a configuração do trabalho do docente de EF que atua na EJA a partir das condições e jornada de trabalho materializadas na educação básica, na realidade concreta do Município de Belém do Pará.
Para compreender a complexidade das condições e a jornada de trabalho dos docentes dessa modalidade de educação, optamos por utilizar a entrevista semiestruturada como instrumento de coleta de dados envolvendo 8 professores de EF da educação básica, atuantes na EJA da RMEB. Ressaltamos que, aqui, empregaremos nomes fictícios aos sujeitos docentes para resguardar sua identificação e atender aos princípios éticos exigidos às pesquisas com seres humanos.
O tratamento dos dados foi realizado tomando como base a técnica de análise de conteúdo (BARDIN, 2011), o processo analítico também foi fundamentado à luz das ideias de autores do campo da teoria crítica dialética.
Organizamos o texto em três momentos nos quais abordaremos o trabalho docente em EF na EJA, as condições e jornada de trabalho destes trabalhadores na RMEB e as considerações finais.
O mundo do trabalho tem sido marcado nas últimas décadas por fortes e profundas mudanças. A exploração do trabalhador pelo trabalho tem sido um campo fundamental para a lógica de perpetuação do sistema capitalista. De acordo com Harvey (2014), o trabalho é um dos aspectos centrais que alarga o campo lucrativo capitalista pela sua forma de controle do trabalho, pela remuneração e pelos processos de trabalho no modo de produção do capital, hegemonicamente.
Contraditoriamente, ainda que condicionado pelas estruturas sócio- produtivas do capital, o trabalho é uma atividade que faz parte da construção histórica da humanidade. Por meio do trabalho, o homem se constitui enquanto ser social e histórico diante dos processos que realiza com a natureza. Encontramos em Marx (2013) o sentido de trabalho que traduz a raiz do modo como os seres humanos produzem a si mesmos. Ele traz o sentido ontológico do trabalho:
Antes de tudo, o trabalho é um processo entre o homem e a natureza, um processo em que o homem, por sua própria ação, medeia, regula e controla seu metabolismo com a natureza. Ele mesmo se defronta com a matéria natural como uma força natural (MARX, 2013, p. 31-32).
O trabalho é uma atividade fundante da existência humana e por ele o homem vai se construindo diante da relação com a natureza e com os demais sujeitos sociais. Frigotto (2010) salienta que é no próprio processo histórico de tornar-se humano que surge a atividade que denominamos de trabalho como algo específico do homem.
Sobre a compreensão do trabalho docente em EF na EJA, nosso entendimento é de que este é uma categoria que parte da totalidade do trabalho e que possui relações com o modo de produção do sistema capitalista. Ressaltamos que o trabalho docente integra a totalidade constituída pelo trabalho no capitalismo, no qual se submete à lógica e às contradições sociais do capital (DUARTE, 2011).
O trabalho constitui-se em ato de transformação da natureza pelo homem para sua própria sobrevivência, o que resulta também e, ao mesmo tempo, na transformação do homem pelo trabalho. É possível considerar que o trabalho é detentor de um caráter educativo. Educação e trabalho são elementos fundamentais da condição humana, indispensáveis à socialização e determinantes de nossas experiências (OLIVEIRA, 2010).
Nessa mesma direção, Kuenzer e Caldas (2009, p. 22) ressaltam que o trabalho é parte da totalidade constituída pelo trabalho no capitalismo, mas que é submetido à sua lógica e contradições. Isto representa dizer que “o trabalho docente não escapa à dupla face do trabalho: produzir valores de uso e valores de troca”.
Para produzir valores de uso no processo de trabalho, a atividade do homem realiza uma transformação sobre o objeto de sua ação, subordinada a um determinado fim: a realização de um produto ou de um serviço para atender as necessidades humanas. Uma parte da natureza será adaptada às necessidades do homem por meio da mudança de sua forma. Esse processo não tem como finalidade produzir excedentes para acumular riqueza (id., ibid., p. 22).
As autoras destacam que, sob a égide do capitalismo, a característica do processo de trabalho passa a ser a produção de valor de troca, valor que se autoexpande, com a finalidade de acumular riqueza por meio da produção do trabalho excedente. Por outro lado, reafirmamos o trabalho enquanto ponto central e ontológico nas sociedades humanas, pois “sem trabalho não há humanidade” (GUIMARÃES, 2014, p.44) e como bem destaca este autor, o trabalho docente se localiza como fração do trabalhador coletivo, embora “por outro lado evidenciamos que na sociedade capitalista o trabalho deve ser reduzido à mercadoria para que possa produzir mais-valia” e isso pressupõe, organicamente, processos educacionais voltados para a formação do trabalhador. (GUIMARÃES, 2014, p.44).
Neste estudo a categoria trabalho docente é compreendida a partir do seguinte conceito:
Trata-se de uma categoria que abarca tanto os sujeitos que atuam no processo educativo nas escolas e em outras instituições de educação, nas suas diversas caracterizações de cargos, funções,
tarefas, especialidades e responsabilidades, determinando suas experiências e identidades, quanto às atividades laborais realizadas. O trabalho docente não se refere apenas à sala de aula ou ao processo de ensino formal, pois compreende a atenção e o cuidado, além de outras atividades inerentes à educação. De forma genérica, é possível definir o trabalho docente como todo ato de realização no processo educativo (OLIVEIRA, 2010, p. 1).
Nesta compreensão, ressaltamos que o trabalho docente em EF na EJA traduz a necessidade de uma leitura política sobre as reais condições de trabalho e jornada a ser desenvolvida com jovens e adultos trabalhadores; sobre os processos educativos desenvolvidos com estes sujeitos; sobre a dinâmica da sala de aula e sobre o conjunto de atividades, ações que ocorrem e interferem no trabalho docente em EF na realidade da RMEB.
Partimos da perspectiva que o trabalho docente em EF na EJA envolve a especificidade do binômio Jovens e adultos trabalhadores (as) e Cultura Corporal, evidenciando o direito à educação destes que vivem do próprio trabalho (VENTURA, 2008), integrantes da classe-que-vive-do-trabalho (ANTUNES, 2005) e que como possibilidade histórica de humanização para a classe trabalhadora, a EF e Cultura Corporal apresenta-se nos espaços escolares e sociais como uma síntese científica e filosófica para o enfrentamento à lógica do modo de produção vigente (FRIZZO, 2012).
A EJA representa um campo político da educação que integra enquanto sujeitos históricos e culturais, o conjunto de jovens e adultos, docentes e todos (as) os (as) demais membros da classe trabalhadora que atuam com esta modalidade da educação direta ou indiretamente, nos espaços sociais da contemporaneidade e que de forma histórica e dialética vem lutando pelo direito, acesso e permanência à educação pública, socialmente referenciada na sociedade. Compreendemos, ainda, que este campo político agrega a diversidade da classe trabalhadora, quer seja mulheres e homens, trabalhadores e trabalhadoras, jovens, sujeitos do campo, da cidade que pautam suas lutas históricas pelo acesso da produção material e imaterial acumulada historicamente pela humanidade.
Após a breve análise sobre o trabalho docente em EF na EJA, inclinamo- nos agora sobre a questão das condições e jornada de trabalho na RMEB, na tentativa de compreender como está configurado este trabalho com jovens e adultos trabalhadores, frente a conjuntura da sociedade capitalista.
De acordo com Frizzo (2012), a questão condição de trabalho vem sendo amplamente discutida no campo científico com estudos que apontam críticas à organização atual da escola e por aqueles que sinalizam a defesa de educação a partir do modelo hegemônico como caminho objetivo para a construção de políticas para o campo da educação e trabalho do professor.
Compreendemos que as condições de trabalho e jornada de trabalho são um dos elementos de mediação que implicam no campo do trabalho docente em EF e que para além destes desdobramentos também impactam na formação do
(a) jovem e adulto trabalhador (a) da EJA.
Kuenzer e Caldas (2009, p. 31) definem as condições de trabalho como o “conjunto de recursos que possibilita uma melhor realização do trabalho educativo e que envolve tanto a infraestrutura das escolas, os materiais didáticos disponíveis, quanto os serviços de apoio aos educadores e à escola”.
O conceito de condições de trabalho está intimamente vinculado às condições de vida dos trabalhadores e que “a necessidade de assegurar melhores condições de trabalho é uma luta contínua para a qual os trabalhadores não poderão ceder ao movimento de acumulação do capitalismo sem resistir continuamente” (OLIVEIRA e VIEIRA, 2012, p. 156).
As condições de trabalho dão suporte ao exercício do trabalho docente na escola e, consequentemente, ao amplo acesso às experiências e conhecimentos acumulados historicamente pela humanidade no campo da EF, por outro lado também aponta os perigos de adoecimento e condições de segurança nos ambientes educacionais, tanto para os (as) docentes como para estudantes e demais sujeitos que integram a realidade escolar. As condições de trabalho compreendem também,
[...] aspectos relativos à forma como o trabalho está organizado, ou seja, a divisão das tarefas e responsabilidades, a jornada de trabalho, até as formas de avaliação de desempenho, horários de trabalho, procedimentos didático-pedagógicos, admissão e administração das carreiras docentes, condições de remuneração, entre outras. A divisão social do trabalho, as formas de regulação,
controle e autonomia no trabalho, estruturação das atividades escolares, a relação de alunos por professor, também podem ser compreendidas como componentes das condições de trabalho docente (OLIVEIRA e VIEIRA, 2012, p. 157)
Aos sujeitos docentes solicitamos que respondessem questões relacionadas às condições de trabalho na entrevista relacionando à unidade educacional que atuam com a EJA. Eles apontaram suas críticas e problematizações sobre as condições do trabalho docente na EF, como mostramos nos seguintes excertos:
Quanto à infraestrutura, devido à situação da quadra e do telhado quebrado, se fores olhar tá todo molhado a quadra e a vizinhança corre em cima da telha da quadra atrás de papagaio ou fugindo da polícia; não sei; aí quebram. A quadra tá sem iluminação por quê? Porque roubaram o refletor. Quer dizer… imagina a comunidade roubar o material que é pra eles usarem, né (PROFESSOR EMANUEL).
Infraestrutura, eu tenho uma certa infraestrutura por ter uma quadra, mal iluminada e mal preservada também, material pedagógico é muito insuficiente e mesmo solicitando o material, dificilmente chega da maneira que eu gostaria, os equipamentos na escola, eles não são voltados para atividades de EF, normalmente eu tenho dificuldade de conseguir alguns equipamentos. E os recursos financeiros eu não vejo sendo voltados para a prática da atividade física dentro da disciplina de EF (PROFESSOR RUY).
A quadra vai para o fundo, entendeu? No período de chuva, fica tudo alagado e quando tem sol, um calor terrível. O tempo da aula de 40 minutos também não ajuda. Pra gente começar o trabalho já está na hora de voltar para começar o resto das aulas (PROFESSORA JOANA).
Essas situações que norteiam o trabalho docente em EF na EJA expressam aspectos de insatisfação, o que agudiza a docência no espaço escolar. Em relação a isso o professor Emanuel destaca “quando a quadra está molhada eu não levo os alunos, por que? Eles podem escorregar no chão molhado, podem cair e quebrar a cabeça, um braço, eu não levo. Fico na sala de aula e explico que a culpa não é minha”. Já o professor Raimundo aprofunda suas reflexões sobre as condições de trabalho que enfrenta na escola relatando que: “Infraestrutura e material pedagógico é ridículo. Tem escolas com somente bolas furadas, as quadras são mal feitas para uma cidade que chove todo dia, toda vez
a quadra alaga, quando não tá alagada, não tem rede ou algo tá quebrado na quadra, demora demais pra consertar as coisas”.
Fica evidente nas falas que as condições de trabalho impedem o desenvolvimento do trabalho docente com os (as) jovens e adultos trabalhadores na escola. Os docentes apontam que a má iluminação do espaço escolar como um todo e da quadra no ensino noturno inviabilizam a promoção de experiências corporais nas aulas, condicionando o uso exclusivo da sala de aula para as aulas de EF. A RMEB possui 199 escolas municipais e somente 68 escolas possuem quadra esportiva.
Do conjunto de situações mencionadas acima, identificamos outro elemento que está ligado à condição de trabalho, a aquisição por conta própria de materiais pedagógicos para as aulas. Os docentes testemunham:
A dificuldade eu resolvo do meu bolso, quando não há possibilidade na escola, eu não vou parar meu trabalho, meu planejamento, eu uso meus recursos próprios. Compro o material desde quando eu iniciei o meu trabalho. Se for fazer uma culminância, a escola não garante todo o material, sempre os professores entraram com seus recursos, e isso também ocorre na EF (PROFESSOR ANDRÉ).
O material que eu utilizo é material próprio, que eu levo de escola pra escola, saio de uma escola e levo meu material pra outra escola porque o material é meu (PROFESSOR RUY).
Com relação a material pedagógico alguns eu confeccionava, comprava material e construía material mesmo, pesquisava, fazia atividades de leituras, mas relacionadas a EF, caça palavras e joguinhos para conseguir levar o trabalho (PROFESSORA LEILA).
A busca pela qualidade do trabalho, mesmo com todos os desafios e contradições encontrados na escola pública, tem movido os docentes a solucionarem as necessidades materiais da escola retirando de seu próprio salário para a compra de materiais pedagógicos necessários às aulas. Ao mesmo tempo, é necessário reconhecer que o trabalho, no capitalismo, passa a ser gerador da condição alienante “[...] e degradação humana à medida que esses homens se veem obrigados a reproduzir suas condições de existência vendendo sua força de trabalho em troca de um salário” incompatível com condições dignas de sobrevivência (MEDEIROS & REIS, 2012, p. 76).
Na tentativa de produzir novas experiências educativas na EJA, os docentes de EF se esbarram com a falta de recursos. Para o professor Raimundo,
O grande problema que a gente tem em aliar a tecnologia ao nosso trabalho é justamente a falta de recursos, pouquíssimas escolas do Município têm internet, quando tem internet não tem computador, quando tem computador não tem data show, quando tem data show não tem a sala para ministrar a aula. Então, a gente fica resumido ao pincel atômico e ao quadro, se você quer fazer um trabalho melhor, você leva o computador pra escola e ao mesmo tempo você corre o risco de ser assaltado.
Oliveira e Assunção (2010) consideram que as condições de trabalho designam o conjunto de recursos que possibilitam a realização do trabalho, envolvendo as instalações físicas, os materiais e insumos disponíveis, os equipamentos e meios de realização das atividades e outros tipos de apoio necessários, dependendo da natureza da produção.
A análise dos dados sobre as condições de trabalho nos indica um cenário preocupante em que urgem medidas que possam garantir as condições necessárias e dignas para o desenvolvimento da docência da EF na EJA, que também se estende ao conjunto de ensino da realidade escolar. Imperioso, também, torna-se o empoderamento do docente enquanto um intelectual, um sujeito histórico com condições para a construção de possibilidades teórico- metodológicas para as aulas na escola, uma leitura crítica sobre as correlações de forças para a construção da autonomia docente, para a construção de um currículo que ajude na formação crítica e emancipadora dos jovens, adultos e idosos.
As falas dos docentes supracitadas apontam o descaso, o desmonte da escola pública, o esvaziamento de condições dignas para a realização do trabalho docente em EF. A existência da quadra é um elemento importante para o conjunto de práticas pedagógicas que podem ser realizadas na EF na escola, mas as condições em que a quadra se encontra juntamente com e os materiais pedagógicos são fundamentais para o desenvolvimento do trabalho docente.
Em concordância com Oliveira e Assunção (2010, p. 1), é pertinente considerarmos que as condições de trabalho são derivadas da forma determinada pela organização do trabalho no capitalismo, e que
[…] as condições de trabalho não se restringem ao conjunto de meios necessários à realização de uma atividade, mas contemplam relações específicas de exploração, já que o processo de trabalho no capitalismo é o meio pelo qual matérias- primas e insumos são transformados em produtos, constituindo- se, ao mesmo tempo, em processo de produção de valor. É justamente por essa dupla função que o processo de trabalho é considerado o lócus da exploração capitalista e relação fundamental do mesmo.
Esta ideologia implica uma sobrecarga de trabalho, de responsabilidades para o docente, imprimindo neste o sentimento de fracasso por não dar conta dos dilemas da escola pública, dos desafios da sala de aula e das atribuições que lhe são impostas no cotidiano da escola. As demandas do sistema educacional brasileiro impõem uma responsabilidade grandiosa, intensa e incoerente/contraditória para o trabalho docente, trazendo para o docente de EF, além da materialidade do trabalho pedagógico, uma impressão de que “precisa dar conta” das práticas da cultura corporal para os jovens e adultos trabalhadores da EJA. As condições objetivas deste trabalho reforçam uma lógica que culmina no adoecimento do docente, pois resistir à lógica do capital é desafio complexo e sub-humano na conjuntura do capitalismo.
A jornada de trabalho é um elemento que também impacta o trabalho docente em EF na EJA, cuja modalidade de educação é utilizada pelos docentes para completar a carga horária de trabalho, outro aspecto que sinaliza o aumento da jornada de trabalho em EF. A cultura docente em EF na EJA tem se materializado como um incremento à carga horária, ocorrendo um “jogo de disputa” entre os docentes para o complemento de suas rendas.
Segundo Dal Rosso (2010, p. 1) a jornada de trabalho é caracterizada pelo “tempo gasto pelo indivíduo em atividade laboral durante o dia, semana, mês, ano ou vida”. Para esta concepção, que estabelece “o critério de trabalho como parâmetro, a vida de um indivíduo pode ser dividida entre tempo gasto em trabalho e tempo gasto na realização de outras atividades” (id., ibid.).
Os sujeitos docentes em EF apontam algumas características sobre a jornada de trabalho na EJA:
A EJA tem uma carga horária muito reduzida, o professor ele tem que se deslocar muito para conseguir suprir uma carga horária mínima que possa ser satisfatória financeiramente. Tem que ter
muitas turmas, tem que ter muitas escolas diferentes e consequentemente a qualidade do trabalho cai e não consegue ter uma qualidade ideal. Me sinto cansado, me sinto desgastado e não era a ideia que eu tinha quando entrei na Rede. (PROFESSOR RUY).
É muito cansativo, é muito desgastante. O professor de EF trabalha [em] três ou quatro escolas, pega carro pra ir pra uma, pega carro pra ir pra outra e, quando tem carro próprio, tem quatro festas juninas pra dar conta, tem que ensaiar quinze turmas pra se apresentar, a gente fica sobrecarregado e acaba não se identificando com as escolas, por que a gente pisa na escola [e] sai de novo, isso não favorece. Minha saúde que nesses três anos que tô na EJA, tenho só 29 anos, já passei três vezes por diagnóstico de estafa. Porque dar aula no Jurunas, vou pro Guamá, vou pra Terra Firme no mesmo dia. A gente é refém da HP, eu não posso montar meu horário, sou refém da HP da professora aqui (PROFESSOR RAIMUNDO).
Em relação à jornada de trabalho, Oliveira (2004) afirma que as mudanças decorrentes das reformas educacionais têm resultado na intensificação do trabalho docente, na ampliação do seu raio de ação e, consequentemente, em maiores desgastes e insatisfação por parte desses trabalhadores. Ainda para a mesma autora, o fato de o docente ter de assumir na escola pública múltiplas funções que não são próprias de sua formação profissional implica diretamente o processo de precarização do trabalho docente.
Muitos docentes também se submetem a horas de trabalho não pago na preparação de aulas, correção de provas, no atendimento a familiares dos alunos e em atividades coletivas nas escolas. A jornada é uma questão relevante por uma razão adicional, a saber, a luta pelo tempo livre. Dispor de tempo livre significa alargar o espaço de escolhas e de decisão para realizar atividades edificantes (DAL ROSSO, 2010, p. 1).
Durante a pesquisa, indagamos o que os sujeitos docentes consideram sobre seu trabalho. O resultado apontou que 90% dos docentes entrevistados caracterizam o trabalho como desgastante, desafiador, desvalorizado e repetitivo e 10% apontam como prazeroso e dinâmico.
Tais razões ocasionam o processo de intensificação do trabalho docente, considerado por Del Pino, Vieira e Hypólito (2009) como consequência das novas mudanças no processo de trabalho escolar e nas políticas educativas recentes, o que indica que a tese da intensificação vem apresentando cada vez mais um
efeito esmagador no trabalho docente. Os autores conceituam o processo de intensificação levando em conta os seguintes aspectos: a) conduz à redução do tempo de descanso na jornada de trabalho; b) implica falta de tempo para atualização e requalificação em habilidades necessárias; c) implica uma sensação crônica de sobrecarga de trabalho (mais e mais para ser feito em um tempo cada vez menor para fazer o que deve ser feito), o que reduz áreas de decisão pessoal, envolvimento e controle sobre planejamento, aumenta a dependência de materiais e especialistas externos ao trabalho, provocando maior separação entre concepção e execução, entre planejamento e desenvolvimento, dentre outros.
A EF na EJA se constitui do tempo de 30 a 40 minutos, sendo para as turmas de 1ª e 2ª totalidade, 2 (duas) vezes na semana e 1 (uma) vez por semana para 3ª e 4ª totalidade (CME, 2011). Os docentes apontam o desafio da diminuta carga horária da disciplina EF na EJA, explicitam que este é um elemento que também impacta no trabalho docente na escola.
À noite, tenho 40 minutos para trabalhar, alguns alunos chegam atrasados. Os alunos reclamam do tempo de aula, mas eu não posso fazer nada, isso é muito prejudicial. Tenho que simplificar minha aula, às vezes nem bem consigo organizar a turma, a aula termina (PROFESSOR RAIMUNDO).
Para a 1ª e 2ª totalidade, trabalham com duas aulas semanais e 3ª e 4ª totalidade, com uma aula somente, o que corresponde à 5 horas cada aula. Com a redução do tempo da hora aula, no turno da noite para 35, 40 minutos, praticamente inviabiliza um trabalho adequado (PROFESSOR JAIR).
O curto tempo da aula já consegue frustrar o profissional na atividade que ele gostaria de exercer e [na] atividade que ele efetivamente acaba exercendo (PROFESSOR RUY).
Os aspectos apontados pelos professores demonstram a condição objetiva e subjetiva do trabalho docente no que tange ao espaço e tempo da aula e ao sentimento sobre seu trabalho. O professor Tadeu, destaca que: “A minha disciplina tem um histórico prático, mas também tem uma riqueza muito grande teórica, então pelo fato de ser apenas trinta e cinco minutos por semana de aula, essa parte prática fica prejudicada. O fato de você ter uma carga horária muito curta dificulta você colocar em prática até mesmo assuntos que você viu em sala”
Notamos que o processo de precarização tem ocorrido tanto para o campo do trabalho docente quanto para o processo de formação humana dos jovens e adultos trabalhadores (as) da EJA, quando o trabalho educativo não tem proporcionado o alcance de seu objetivo sobre o debate e socialização da Cultura Corporal e, suas diversas manifestações com o mundo do trabalho da classe trabalhadora. No quadro a seguir, apresentamos as características do regime de trabalho docente dos sujeitos entrevistados:
Quadro I: Regime de Trabalho dos docentes de EF
Professor/ a | Regime de Trabalho na RMEB | Quantas escolas trabalha na RMEB | Quanto tempo trabalha na unidade educacional | Regime de Trabalho em outros espaços |
Emanuel | 40 horas | 2 escolas | 25 anos | 20h – rede estadual de ensino (Ciências) |
Ruy | 25 horas | 3 escolas | 3 anos e 2 meses | |
André | 20 horas | 2 escolas | 15 anos | 40h – rede estadual de ensino (EF) |
Raimundo | 30 horas | 3 escolas | 3 anos | 20h – rede estadual de ensino (Educação Especial) |
Jair | 20 horas | 1 escola | 3 anos | 20h– rede estadual de ensino (EF) |
Tadeu | 15 horas | 2 escolas | 2 anos | 40h -Academia |
Joana | 20 horas | 2 escolas | 19 anos | Atualmente aposentada-rede estadual de ensino (EF) |
Leila | 40 horas | 3 escolas | 6 anos |
Fonte: Elaborado pela autora
Do conjunto dos docentes entrevistados a maior parte (75%) tinha uma jornada de trabalho igual ou superior a 40 horas semanais, exceto uma docente que atua somente na Rede Municipal e outra docente que alcançou a aposentadoria em outra rede de ensino. O professor Emanuel por ter uma segunda formação (Licenciatura e Bacharelado em Biologia) atua em outra Rede de ensino com o ensino de Ciências, já o professor Raimundo por ter Pós- Graduação em Educação Especial foi aprovado em um concurso específico para Educação Especial na Rede Estadual de Ensino, no município de Belém.
A justificativa dos docentes por uma ampla jornada de trabalho é a condição objetiva devido aos baixos salários na Rede Municipal de Ensino de Belém-PA. A árdua jornada envolvendo não somente as redes públicas de ensino de Belém, mas outros espaços sociais como academias, constituem um contexto de intensificação do trabalho docente, tendo em vista a necessidade objetiva de sobrevivência.
Os docentes apresentam preocupações com relação a desgastante jornada de trabalho. O professor Tadeu destaca que: “O maior empecilho na verdade é você colocar em prática uma aula bem elaborada com essa carga horária semanal de trabalho”. O professor Jair, relaciona que: “É uma carga horária grande pela quantidade de turmas, pela quantidade de pessoas que eu encontro durante a semana. Porque se fosse as mesmas 40 horas, mas com uma quantidade menor de turmas, a possibilidade do trabalho poderia fluir melhor”
O conjunto de aspectos apresentados acima aponta para um processo de precarização do trabalho docente (MARIN, 2010) decorrente das mudanças do trabalho e encontramos flexibilização; intensificação; desprofissionalização; degradação; sobrecarga; cobranças; fragilização; desvalorização; competitividade; condições de trabalho e de pesquisa; perda de autonomia; ausência de apoio à qualificação; e, ainda, algumas especificações da esfera pedagógica, tais como valorização do saber da experiência em detrimento do pedagógico; ação docente pouco sólida em termos de conhecimento; envolvimento dos professores em trabalhos burocráticos, cansaço excessivo; sofrimento; desistência; resistência; adoecimento; isolamento dentre outros.
O professor Jair menciona que o processo de condição e jornada de trabalho impacta no seu trabalho tanto objetivo quanto subjetivamente:
Vou pegar um exemplo, um problema que é meu, problema pessoal e que tem implicações práticas, que é a questão do planejamento geral e do plano de aulas que eles ocorrem de uma forma bem informal com um caderno que eu costumo usar, que são meus cadernos de anotações, diário de bordo, ou eles passam estritamente pela cabeça. Amanhã vou trabalhar com a turma tal e eu vou trabalhar isso, isso e isso, o que cria debilidades importantes, né? De pensar nos recursos, de pensar nas especificidades da turma. Então, embora eu opte por trabalhar com um referencial crítico, que propõe a transformação social, a partir dos elementos reais que são impostos, tudo isso acaba
interferindo e sobrepõe minhas escolhas, mesmo políticas, isso me causa angústia.
As condições e jornada de trabalho têm aumentado assustadoramente a precarização do trabalho docente (HYPOLITO, 2012) e é inegável o aumento da carga de trabalho por parte dos docentes entrevistados, bem como seus desdobramentos na subjetividade docente, como vimos no depoimento do Professor Jair. Coadunamos com Hypolito (2012, p. 227) quando afirma que: “Não se pode falar em educação de qualidade, porquanto as condições de produção do trabalho de ensinar persistam precárias”.
Os elementos traçados acima apontam mudanças e implicações no processo de trabalho na escola básica de forma objetiva e subjetiva, o que afeta a identidade docente em EF na EJA e na formação humana de jovens e adultos trabalhadores da escola pública. Sobre esses aspectos Frizzo (2012, p. 104) destaca que para o contexto da escola capitalista é imprescindível a existência destas “caracterizações precárias para que a formação pretendida por ela seja alcançada”.
Ou seja, para formar um ser humano de maneira flexível e abstrata a partir da lógica do mercado e adaptável a qualquer situação decorrente da instabilidade e volatilidade do atual quadro de desemprego estrutural é preciso que a “qualidade” do ensino seja balizada pela resposta que os indivíduos dão frente a este quadro (FRIZZO, 2012, p. 104).
As precárias condições de trabalho encontradas nas escolas vêm evidenciando o avanço do desmonte da escola pública, com o esvaziamento de condições dignas para a realização do trabalho docente. A jornada de trabalho tem se caracterizado como um processo desgastante da ação docente e, em muitas situações, os trabalhadores em EF encontram-se em estado de insatisfação, desmotivação e desvalorização de seu trabalho no contexto da educação básica da Rede Municipal de Ensino de Belém-PA.
O conjunto de elementos apresentados neste estudo nos possibilita evidenciar o processo de precarização que o trabalho docente em EF na EJA se
encontra. Os trabalhadores de EF apresentaram elementos de desgaste, desmotivação e insatisfação no trabalho, pois há um processo de degradação intenso e de desrealização do ser social (ANTUNES, 2005), como vimos nos depoimentos dos docentes.
As condições e jornada de trabalho têm se caracterizado como aspectos que medeiam a configuração de um trabalho precário e intensificado, contraditoriamente os docentes vêm resistindo e apontam a relevância da EF como contributo social e histórico para a formação dos jovens e adultos trabalhadores da modalidade de educação, EJA.
Notamos, assim, um processo histórico no qual os docentes em EF vêm enfrentando, nas condições de trabalho, na jornada de trabalho e em tantos outros campos, exclusão, desvalorização e invisibilidade do componente curricular na formação humana na escola pública, que implicam baixo nível de qualidade do trabalho docente e aprofundam a precarização deste trabalho na realidade da EJA da RMEB.
A falta de condições objetivas que possibilitem a realização de um trabalho de qualidade em EF na EJA afeta também as condições subjetivas de trabalho em EF. Isso se agrava pela dificuldade de estabelecer relações com a diversidade sociocultural encontrada na EJA; ausência de gestão democrática na escola; ausência de acompanhamento pedagógico para os docentes e estudantes da EJA, entre outros elementos que contribuem para o mal-estar docente em EF.
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Recebido em: 29 de novembro de 2017. Aprovado em: 29 de março de 2018. Publicado em: 13 de junho de 2018.
Regis Argüelles da Costa2
O objetivo geral desse artigo é contribuir para a compreensão crítica dos rebatimentos de políticas de inspiração neoliberal de Terceira Via na gestão do trabalho escolar docente, ao nível da rede escolar municipal. Analisamos a implantação e gestão do Programa Mais Educação (PME) em uma escola de Duque de Caxias, município do estado do Rio de Janeiro. Concluímos que as condições estruturantes para a ampliação da jornada ao nível da gestão do trabalho escolar – financiamento da política, formação do profissional e condições do espaço escolar – foram bem articuladas pela escola pesquisada, ainda que com limitações.
The general objective of this article is to contribute to the critical understanding of the neo-liberal policies inspired by Third Way in the management of schoolwork at the level of the municipal school network. We analyzed the implementation and management of the More Education Program (PME) in a school in Duque de Caxias, municipality of the state of Rio de Janeiro. We conclude that, at the level of the schoolwork management, the structuring conditions for the extension of the workday - policy financing, professional training and conditions of the school – were properly articulated by the researched school, albeit with limitations.
O modelo gerencial proposto pela classe dominante para administração pública no Brasil, a partir dos anos de 1990, concebe o braço social do Estado fundamentalmente como um provedor de serviços que deve sujeitar-se às leis do mercado. A descentralização, o foco no cliente, o estabelecimento de metas, e a avaliação são, nesse sentido, entendidas como medidas capazes de gerar
1 DOI: https://doi.org/10.22409/tn.16i29.p4559
2 Professor da Faculdade de Educação da UFF. Doutor em Educação (PPGE/UFRJ). É pesquisador associado ao Laboratório de Investigação Escola, Poder e Estado (IM-UFRRJ), ao Núcleo de Estudos – Tempos, Espaços e Educação Integral (UNIRIO) e ao Grupo de Pesquisa Estado, Trabalho, Educação e Desenvolvimento (UFF). E-mail: rarguelles@gmail.com.
padrões de eficácia a um serviço público tomado pela burocracia, pela baixa qualidade do atendimento oferecido, pelo desperdício, e pela corrupção.
Herdado da teoria da administração de empresas, o modelo gerencial sugere ao setor público a realização de parcerias com o setor privado, a utilização do voluntariado como força de trabalho, o foco das ações na população em situação de extrema pobreza, e o controle social dessas ações. Para Melo e Falleiros (2005), tais medidas caracterizam o estágio de desenvolvimento do programa neoliberal da Terceira Via no Brasil, que almeja a reconstrução do Estado Social, mediante a transferência de recursos e responsabilidades públicas para instituições privadas.
Sendo a educação uma prioridade das frações comprometidas com a difusão do programa da Terceira Via, as políticas para o setor passaram por importantes inflexões. A orientação neoliberal do aparelho de Estado foi incorporada ao texto e aos desdobramentos da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei nº 9.394/96), ainda que com contradições (LEHER, 2010). A União, mormente através do Ministério da Educação, reforçou sua participação nas políticas para a escola de ensino fundamental, como é o caso do Programa Dinheiro Direto na Escola (PDDE), do FUNDEF/FUNDEB, e dos programas de avaliação em larga escala, como a Prova e a Provinha Brasil, e o Índice de desenvolvimento da educação básica (Ideb).
Tais políticas vêm reestruturando a profissão docente, especialmente a gestão do trabalho escolar, trazendo consigo elementos de precarização e flexibilização para o cotidiano da escola pública (OLIVEIRA, 2004). Políticas semelhantes vêm sendo aplicadas em diversos países da América Latina (CASSASUS, 2001), intensificando as responsabilidades e as atividades cotidianas de docentes e, de em diversos graus, fragilizando suas condições de trabalho. Esse trabalho procura avaliar os impactos de uma política federal deveras representativa nesse sentido – o Programa Mais Educação (PME), de 2007 – na rede municipal de educação de Duque de Caxias, município da Baixada Fluminense, dando especial atenção aos processos locais de implantação e gestão. Considerando que o PME impõe novas tarefas para as Secretarias de Educação e para as escolas municipais, como a gestão local do trabalho docente incorpora essas determinações? Quais são as tensões e
adaptações que elas imprimem à administração da escola pública e ao trabalho escolar cotidiano?
Para tentarmos responder tais questões realizamos, no ano de 2015, entrevistas semiestruturadas com as equipes diretivas de diversas escolas municipais de Duque de Caxias (RJ). Nesse artigo iremos apresentar os resultados da pesquisa de campo na Escola Beta, localizada em Imbariê, 3º distrito municipal.2 A escola foi indicada pela Secretaria Municipal de Educação de Duque de Caxias (SMEDC) como exemplo satisfatório de experiências do PME na rede.3 Adotamos questionários como instrumentos de pesquisa, que foram previamente remetidos aos entrevistados. As perguntas propostas no instrumento de pesquisa trataram das mais diversas responsabilidades que envolvem a implantação e gestão do contraturno nas escolas, com foco em suas relações com a gestão do trabalho docente escolar. Para tanto, problematizamos a gestão do trabalho docente escolar a partir da análise de alguns condicionantes presentes no PME: a contratação e remuneração de pessoal, a utilização e prestação de contas das verbas repassadas, a formação oferecida, e a utilização dos espaços para além da sala de aula. Após a gravação e transcrição, o material foi submetido à análise de conteúdo. Incorporamos ao material de análise documentos referentes aos mais diversos níveis administrativos que envolvem o PME.4
O trabalho está dividido em quatro itens, contando com esta introdução. A seguir, veremos como desenho do Programa Mais Educação procura interferir em diversas dimensões da gestão escolar. As características da rede municipal caxiense, e os reflexos da implementação e gestão do PME na escola serão, então, apresentados e analisados no próximo item. Por último, teceremos algumas considerações finais, à guisa de conclusão do trabalho.
2 Essa pesquisa é parte de um projeto de Tese de doutorado, concluído em 2016. Realizamos investigações semelhantes em outras quatro escolas, e também na SMEDC.
3 Tal critério metodológico se explica pelo fato de imaginarmos que experiências precárias da política seriam vazias de significados para o pesquisador, dado a superlotação e precariedade da maioria dos espaços escolares caxienses.
4 Os nomes atribuídos às entrevistadas e à escola são fictícios.
Conforme afirmamos na introdução, a educação é uma das prioridades de setores comprometidos com a difusão do programa neoliberal da Terceira Via, os quais adquiriram maior proeminência a partir do governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002). O governo de Lula da Silva (2003-2010), em teoria de oposição ao de seu antecessor, manteve relações orgânicas com o empresariado na definição de políticas, causando tensões com suas bases originárias. Dessa forma, as proposições da Terceira Via não encontraram no governo Lula da Silva um adversário – em verdade, foram ali ampliando sua área de influência e sedimentando-se (NEVES, 2008; MARTINS, 2009).
Saviani (2007) viu no Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE, Dec. nº 6.094/07), lançado para o período de 2007-2022 pelo MEC, um dos principais expoentes da relação mais orgânica entre o PT e a classe empresarial. Para a elaboração do PDE foram privilegiadas as interlocuções com a última, o que é atestado pelo próprio texto do programa, o qual afirma assumir integralmente a agenda do Movimento Todos pela Educação.5
Uma das ações mais salientadas do PDE pelo governo federal foi o Programa Mais Educação (PME), cujo objetivo é oferecer formação integral aos alunos do nível fundamental, através de oficinas no contraturno escolar. A oferta do PME destina-se, preferencialmente, às escolas localizadas em territórios de ‘vulnerabilidade social’, de baixo desempenho no Ideb, e com índices iguais ou superiores a 50% de estudantes pertencentes a famílias participantes do Programa Bolsa Família. Além dessas premissas, o PME atende a cidades com população igual ou superior a 18.844 mil habitantes.6
5 O Compromisso Todos pela Educação foi um movimento lançado em setembro de 2006, em São Paulo. Identificando-se como uma iniciativa da sociedade civil, o movimento conta com representantes importantes empresas ou fundações a elas ligadas, como o Grupo Pão de Açúcar, Fundação Itaú Social, Fundação Roberto Marinho, Instituto Ayrton Senna, Instituto Ethos, Instituto Itaú Cultural, entre outros. (Cf. Saviani, 2007).
6 O atual governo instituiu o Programa Novo Mais Educação, através da Portaria nº 1.144, de 10 de outubro de 2016. Trata-se de uma versão mais pragmática de seu antecessor, com ênfase destacada na utilização da ampliação da jornada para aulas de reforço em Língua Portuguesa e Matemática, as “competências” definidas internacionalmente como sinônimos de qualidade da educação escolar. Houve também uma maior centralização da gestão, que agora está sob responsabilidade de uma empresa prestadora de serviços ao MEC.
As ações socioeducativas indicadas para o contraturno escolar não se limitam ao currículo mínimo do ensino fundamental, contemplando os campos das artes, da cultura, do esporte e do lazer; contudo, as atividades de ‘acompanhamento pedagógico’ em língua portuguesa e matemática são obrigatórias. Elas podem acontecer em espaços não escolares, agregando o ‘compartilhamento comunitário’ das responsabilidades educativas, em uma ‘dinâmica de redes’ (PI 17/2007, art. 1º).
As oficinas de contraturno devem ocorrer semanalmente, de modo a garantir aos participantes 7 horas diárias de atividades, ou 35 horas semanais de turno e contraturno. A escolha e desenvolvimento das oficinas pelas unidades escolares devem integrar-se o Projeto Político-Pedagógico dessas últimas. São ministradas por profissionais denominados oficineiros, que podem ser alunos de licenciaturas ou educadores sociais. Esses profissionais têm status de voluntários7 e recebem uma ajuda de custo mensal para a realização das ações no contraturno, que cobre os gastos de deslocamento. Segundo o MEC, em 2014 o PME atingiu cerca de 50.000 escolas públicas, ampliando sua cobertura em mais de 300% em apenas dois anos.8
Apesar de reafirmarem sua dívida com os ideais e as experiências históricas de ampliação da jornada escolar, é possível mapear alguns elementos originais que compõem as propostas do PME, como a possibilidade de desconcentração das atividades desenvolvidas no contraturno. Essa intenção vem a reboque das metas de reorganização da gestão e da oferta da educação pública, a partir da presença mais ativa de outros setores governamentais públicos e privados (secretarias de esporte, cultura e saúde; empresas, Igrejas, ONGs, fundações privadas).
O convite à realização de atividades em outros espaços para além da escola se baseia no juízo que, sozinha, esta não dá mais conta da demanda
7 A Lei do Voluntariado (nº9.608/1998) considera que o serviço voluntário é atividade não remunerada e sem vínculo empregatício, que tenha objetivos cívicos, culturais, educacionais, científicos, recreativos ou de assistência social (art. 1º). O voluntário pode vir a ser ressarcido pelas despesas oriundas do desempenho das atividades (art. 3º).
8 Estes números devem ter sofrido uma redução considerável dados os cortes no orçamento federal, que vêm sendo praticados com maior intensidade desde 2015. Na rede municipal de Duque de Caxias várias escolas suspenderam o contraturno, por conta do não repasse das verbas do PDDE-Educação Integral. Parece que o mesmo vem ocorrendo em outros municípios da Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Todavia, não conseguimos encontrar publicações do MEC ou estudos a respeito desse problema.
ampliada por educação dos jovens da sociedade do conhecimento; em contrapartida, as cidades oferecem uma série de espaços públicos e privados que podem ser utilizados em atividades formativas para os alunos.
Em um trabalho bastante elucidativo sobre os objetivos do terceiro setor para a ampliação da jornada escolar, Guará (2003) qualifica a escola como espaço possuidor de especificidade dentro do processo educativo, chamando atenção para o fato de que “nenhuma instituição pode ou consegue hoje, isoladamente, responder por toda a formação da criança e do adolescente” (GUARÁ, op. cit., p. 39). As ONGs reúnem, por sua vez, características tais como a “flexibilidade e a liberdade curricular” (GUARÁ, idem, p.40) e a proximidade com a comunidade, o que as permite associar o conhecimento às demandas da vida prática com maior facilidade que escolas, dada a rigidez curricular dessas últimas. A junção da educação escolar com os projetos socioeducativos desenvolvidos pelo poder público e pelas ONGs resulta, segundo a autora, em uma política pública que combina educação e proteção. Essa é marca de uma concepção de educação integral voltada especialmente para àqueles em “situação social vulnerável” (GUARÁ, ibid., p. 37), campo em que as ONGs
possuem larga experiência, muitas vezes fazendo uso de trabalho voluntário.
Ao se integrarem ao PME, esse conjunto de proposições demonstra a força da articulação política do terceiro setor ligado ao empresariado, no sentido de pautar o debate sobre a ampliação da jornada nas escolas públicas. Há o estímulo às parcerias com ONGs para execução da política, dada a sua alegada capacidade de diálogo com crianças e jovens em situação de vulnerabilidade. A sua flexibilidade, por sua vez, garante maior capacidade de adaptação às diferentes demandas das comunidades atendidas. Por outro lado, as escolas públicas são categorizadas como instituições burocráticas enrijecidas e apartadas do cotidiano da comunidade em que atuam. Trata-se, sobretudo, da crítica ao Estado como o locus do arcaico e da ineficiência, que precisa ser oxigenado através de relações amplas com a “sociedade civil”, retratada como espaço asséptico de produção do consenso e da paz social (FONTES, 2010).
A solução do voluntariado para a questão do trabalho docente indica a opção pelo aprofundamento do processo de precarização dos profissionais da educação, com respaldo ativo do empresariado. O oficineiro está sujeito a um estágio profissional que conjuga remuneração baixíssima com grandes desafios
didáticos-pedagógicos, tais como a condução de oficinas em turmas multisseriadas, compostas por alunos com distorção idade/série e dificuldades de aprendizagem. Isso sem contar a provável dificuldade de integração do planejamento de oficinas com o trabalho desenvolvido pelos docentes do turno, elemento fundamental na tomada de decisões, e em possíveis correções de rumo do contraturno.
No PME, o questionamento da centralidade pedagógica da escola é contrabalançado pelo estímulo ao controle burocrático de secretarias de educação e unidades escolares. Elas são corresponsáveis pela adesão, coordenação e controle dos recursos sob a rubrica do PME, através do Sistema Integrado de Monitoramento e Controle (SIMEC/MEC); pela gestão de pessoal; e na contribuição com parte dos recursos destinados à gestão da política. Destacamos, por exemplo, as tarefas de escolha dos estudantes que devem participar das oficinas, de busca por parcerias na vizinhança para o desenvolvimento do contraturno, de condução do processo seletivo e de contratação dos oficineiros.
É deveras importante para o andamento da política nas escolas a atuação do Professor Comunitário, que na rede municipal de Duque de Caxias é conhecido como Coordenador de Escola do Mais Educação, doravante Coordenador. Esse profissional cuida do acompanhamento pedagógico e administrativo do PME na unidade escolar, devendo ser professor(a) desta; a sua seleção e remuneração são parte da contrapartida acordada com o governo municipal quando da adesão à política federal (SEB/MEC, 2014).9
Afora a mencionada contrapartida dos governos locais, a maior parte dos recursos que financiam o Programa Mais Educação provêm do FNDE/MEC. Os repasses são recebidos na conta bancária de cada escola em três parcelas anuais, discriminadas em verbas de custeio e de capital, sob a rubrica PDDE/Educação Integral. O montante de repasses varia de acordo com as atividades escolhidas, e com o número de alunos nelas inscritos. As unidades escolares, por intermédio de seus Conselhos Escolares, devem utilizar os recursos na compra de materiais pedagógicos e de apoio às oficinas (os kits), na
9 O MEC estabelece alguns critérios para algumas ações, como é o caso da escolha dos alunos das escolas que devem participar do PME. Contudo, a escola conta com forte autonomia nessa, e em outras decisões, naturalmente.
ajuda de custo aos oficineiros, e até na aquisição de bens permanentes, desde que se ateste, nesse último caso, a sua necessidade no desenvolvimento das atividades de contraturno. Vale sublinhar que, nesse processo, também é função do Conselho Escolar propor ações e fiscalizar o uso dos repasses do PME.
Esse conjunto de responsabilidades demanda da equipe diretiva, Conselho Escolar e Coordenador uma considerável capacidade de articulação de tarefas essenciais para a ampliação da jornada escolar. Não nos restam dúvidas que o PME intensifica em tempo e em complexidade o trabalho destes profissionais, que envolve se informar, planejar, executar e avaliar a política. Além disso devemos considerar que, na maioria dos casos, suas escolas não se encontram preparadas para receber alunos em contraturno. Nessa realidade, muitas vezes agravada por um contexto político que exige resultados em curto prazo, aumentar o tempo de escolarização pode significar mais precarização, ao invés de mais educação.
O que fica patente em um programa com as características do PME é a necessidade de articulação subordinada da escola com outros centros de poder (Poulantzas, 1985), especialmente com as secretarias municipais, ONGs, os Ministérios e Secretarias executivas. Tal necessidade se torna mais urgente quando é a escola mínima que o recebe, pela sua previsível carência de espaços e de pessoal habilitado para prover o contraturno, ainda que apenas para parte de seus alunos. Sem esse suporte, dificilmente o cotidiano precário do turno não será reproduzido no contraturno do Mais Educação, empobrecendo a experiência como um todo (Cavaliere, 2009). Vejamos, a seguir, como a implantação e gestão do PME em Duque de Caxias procurou lidar com essas questões.
Duque de Caxias é um município da Região Metropolitana do Rio de Janeiro. De acordo com os dados do último censo do IBGE, possui com população de cerca de 880.000 hab., distribuídos em 467 km². O município está dividido em quatro distritos administrativos: Duque de Caxias, 1º distrito; Campos Elísios, 2º distrito; Saracuruna, 3º distrito, e Xerém, 4º distrito. Destaca-se por abrigar um dos polos-petroquímicos mais importantes da Região Sudeste, além de outras indústrias. Possui uma das maiores receitas de impostos do Brasil (arrecadação em 2015 superou a casa de 1,3 bilhões de reais) e, por
conseguinte, verbas próprias para a educação na casa de 450 milhões de reais.10 A despeito desse orçamento, o município ocupa apenas o 52º lugar em termos de IDH no Estado do Rio (0,711), e figura entre os municípios mais violentos da Baixada Fluminense (Cano e Santos, 2007). Os resultados nas avaliações em larga escala promovidas pelo governo federal são tampouco animadores, com maior gravidade nos anos finais do ensino fundamental (INEP/MEC, 2014).
O município administra 143 escolas e 34 unidades de educação infantil, onde são distribuídas 79.200 matrículas. Trata-se de uma rede de escolas marcada por problemas de infraestrutura – especialmente os da falta d’água, da exiguidade de espaços e da superlotação. Algumas escolas ainda dividem seu dia letivo em quatro turnos (INEP/MEC, op.cit.).
A partir das análises de Souza (2014) entendemos que a distribuição de escolas pelo território caxiense obedeceu, historicamente, a trâmites que pouco respondiam às reais necessidades da população local. A construção ou não de um prédio escolar em um bairro dependeu de uma série de fatores de caráter estritamente político, tais como capacidade de articulação do vereador com o prefeito, ou se a localidade em questão estaria sob influência de lideranças afinadas com quem ocupava o executivo e/ou o legislativo municipal. A luta por melhoria das existentes e pela abertura de novas escolas esteve na agenda dos movimentos sociais caxienses, que em diversos momentos se organizaram para garantir o direito à educação pública.
Em Duque de Caxias, o PME está sob a responsabilidade da Departamento de Projetos Educacionais (DPE), que está subordinado à Subsecretaria de Planejamento e Projetos Educacionais, uma das quatro subsecretarias existentes na estrutura da SMEDC. Uma equipe de três professoras da rede coordena todas as ações do Programa, dividindo sua atuação por distrito administrativo, o que dá pouco mais de 40 escolas sob a responsabilidade de cada professora. O Núcleo de Atendimento aos Conselhos Escolares, também lotado na SMEDC, cuida da gestão de recursos financeiros, orientando as direções de escola e gestoras pedagógicas em relação à prestação de contas das verbas recebidas após a adesão.
10 Fonte: FNDE/SIOPE/RREO, disponível em ftp://ftp.fnde.gov.br/web/siope/RREO/RREO_Municipal_330170_1_2015.pdf, acessado em 02 de fev. de 2017. O município ainda não disponibilizou as informações do ano de 2016.
Trata-se de uma unidade escolar trabalhando no limite da capacidade. A Escola Beta funciona em 4 turnos, nos quais se distribuem 1.236 matrículas, conforme a Tabela 1 abaixo. Para se ter uma ideia da superlotação, basta lembrarmos que a Escola Alfa, um CIEP, atende apenas 890 matrículas nos dois níveis do EF. Na Escola Beta, o PME é oferecido a 150 alunos, ou seja, 1,21% do total de matrículas.
Só o Mais Educação, então, usa a capacidade toda da escola? Toda. Porque é uma escola de quatro turnos. E além dos quatro turnos na sede, mais dois turnos no anexo. (...). Como é que você vai ampliar mais alguma coisa em uma escola que já funciona de 7 às 11, 11 às 3, 3 às 7, 7 as 10? (SORAYA, op.cit.)
E aí você não tem banheiro para essas crianças, vestiário dentro da escola. (ANA MARIA, op.cit.)
Nível/Modalidade de ensino | Matrículas |
Pré-escola | 216 |
Séries iniciais do EF | 818 |
EJA | 199 |
Educação Especial | 3 |
Total | 1.236 |
Fonte: Censo Escolar, INEP/MEC, 2014.
A professora Soraya, pedagoga com especialização em gestão escolar, 18 anos de rede municipal, e há 12 anos ocupando a direção da Escola Beta, sua única escola na rede, alegou que a superlotação se dá por conta da carência de outras unidades na região. Assim, o tipo de interferência que a escola sofreu em seu espaço construído, ao longo dos anos, foi determinado pela necessidade de se inaugurar novas salas de aula. Outras benfeitorias, tais como quadra de esportes, sala de leitura, e sala de direção não foram contempladas nas obras.
O PME chegou em 2010 na Escola Beta. Quanto à formação para a gestão da política, recordou-se a Orientadora Pedagógica:
Nós tivemos, na realidade quando nós recebemos o PDE-Escola, a primeira vez em 2008, cujo o Programa Mais Educação faz parte do Plano de Desenvolvimento da Educação, nós recebemos sim uma boa formação de técnicos do MEC, para que pudéssemos ter um embasamento técnico, para prepararmos o nosso PDE. Isso se deu em 2008, depois em 2009, em 2010 chegou o Programa – se não me engano – em 2010, o PME. (CAMILA, orientadora Pedagógica da Escola Beta, 2015).
Eles formaram antes?
É, a nossa formação, digamos assim, ela começou antes realmente de recebermos o projeto. Agora, especificamente, formação específica para receber o Programa Mais Educação, não me recordo. (SORAYA, diretora-geral da Escola Beta, 2015).
Apesar de não haver formação oferecida pelo MEC, todos da equipe confirmaram que a SMEDC, à época, mantinha um grupo responsável pelo PME, trabalhando em conjunto com as escolas. A formação era, nesse caso, de responsabilidade do governo municipal que, conforme a orientadora pedagógica Clara, oferecia formação aos monitores, que também tinham reuniões periódicas com os Coordenadores. Por volta de 2011 as formações se restringiram às videoconferências, segundo a diretora.
Desde o início do PME, a gestão local entendeu que a verba oferecida pela adesão seria irrecusável por parte da escola.
E os professores aqui sabem também o quanto esse recurso do Mais Educação ajuda toda a escola. É importante que o professor saiba disso. Houve uma época de final de gestão agora mais recente, que o município foi abandonado.11 Nós não tínhamos
11 O andamento do PME sofreu um forte impacto negativo quando a SMEDC, em fins de 2012, determinou a suspensão do cargo de Coordenador do Mais Educação em todas as escolas. Essa suspensão da contrapartida do governo local para com o Programa foi mais uma ação que compôs a crise do serviço público municipal, nos três últimos meses do mandato de José Camilo Zito frente à prefeitura (2009-2012). Com maior gravidade a partir da confirmação de que o ex- prefeito não iria disputar o segundo turno nas eleições daquele ano, várias escolas tiveram que funcionar em meio período, devido à falta d’água, já que os carros-pipa que as abasteciam suspenderam o fornecimento por atraso no pagamento, ou devido à falta de pessoal de limpeza, também por conta de atrasos nos repasses da prefeitura às empresas prestadoras de serviços. Em: http://odia.ig.com.br/portal/rio/escolas-com-as-bicas-secas-1.435943 e http://www.caxiasdigital.com.br/blog/escola-municipal-bom-retiro-em-duque-de-caxias-tem- condicoes-precarias/ e http://www.jornalmassa.com.br/2012/08/107838-estudantes-de-duque-de-
nada, nós não tínhamos nem pagamento, nosso pagamento ficou atrasado. Os funcionários de apoio, que são os mais castigados, que ganham muito pouco, estavam sem receber pagamento. Nós não tínhamos folha de ofício, não tinha nada no depósito. Foi a verba do Mais Educação que nos ajudou. (SORAYA, op.cit.).
As verbas contribuíram principalmente na construção de espaços para atividades pedagógicas, como a Sala de Filosofia12 e uma área coberta no pátio da escola. A cobertura nos chamou atenção logo em nossa primeira visita à unidade, pois sobre o telhado construído existe um painel onde se lê “Espaço do Mais Escola”13. Por conta de a escola ter poucas áreas de sombra, em uma região que faz muito calor o ano todo, a cobertura é usada como abrigo no recreio pelos alunos, e também em atividades de educação física. Em um município em que os recursos são centralizados em outros centros de poder, ter recursos, ao nível da escola, foi considerado fundamental por toda equipe diretiva.
As oficinas oferecidas à época eram recreação, horta/sustentabilidade, karatê, artesanato, letramento e matemática, 3 vezes por semana. Antes de oferecer o PME, a Escola Beta mantinha aulas de reforço para alunos com dificuldade de aprendizagem. No primeiro ano, as atividades eram de segunda a sexta; com a autorização da SMEDC por dias intercalados, os 150 alunos foram distribuídos em 5 turmas de 30 cada, que se revezam nos espaços da horta escolar, no “Espaço Mais Escola”, na Sala de Leitura, e na Sala de Filosofia (ver Imagem 1, abaixo).
caxias-ficam-sem-aula-segundo-a-prefeitura-devido-a-falta-dagua.html. Acessados em: 03 de novembro de 2015.
12 O projeto do Núcleo de Estudos Filosóficos da Infância (NEFI/UERJ), denominado “Em Caxias a filosofia em-caixa? A escola pública aposta no pensamento’, possui financiamento pelo CNPq e está na Escola Beta desde 2009. Coordenado pelo Prof. Dr. Walter Kohan (FE/UERJ), o projeto se propõe a encontros filosóficos com os alunos, com objetivo de repensar a educação através da filosofia (Júnior, 2013). Na Escola Beta esse projeto possuiu uma sala própria que também é utilizada em atividades do PME.
13 Mais Escola foi a versão caxiense do PME durante a gestão de José Camilo Zito (2009-2012). Tratou-se apenas de mudança de nome, à medida que nada substancial foi efetivamente incluído ou suprimido.
Imagem 1 – Oficina de Letramento do PME (Escola Beta)
Fonte: Equipe diretiva da Escola Beta (2015).
A relação com os oficineiros, que foi ressaltada como problemática pela SMEDC, mormente por conta da adequação ao horário de trabalho e as frequentes desistências, não foi detectada nessa escola. Ao contrário, toda a equipe ressaltou uma relação positiva com toda a equipe de voluntários. Alguns, inclusive, estão na unidade desde o início do PME ali.
As visitas de pesquisa à escola, num total de quatro, nos deixaram a impressão que a figura da diretora da Escola Beta é essencial para a manutenção do Programa. Seu engajamento na condução do Programa, aliado ao fato de estar há quase 20 anos na escola, dá à política possibilidades adequadas de desenvolvimento, contrastando com outras direções, que parecem entender a presença do PME como mais um problema para a gestão escolar, que já enfrenta batalhas diárias na rede municipal caxiense. Dessa forma, esse achado de pesquisa confirma as considerações de Maurício, Melo e Gonçalves (2015), que associam o andamento do Programa ao nível de engajamento e de formação da direção.
A despeito de tal característica ser uma vantagem para a Escola Beta e, provavelmente, para outras unidades dirigidas por profissionais capazes de dirigir e potencializar a experiência de ampliação da jornada, há de se ponderar que tal determinação e empenho por parte da gestão denota as deficiências no suporte às escolas na implantação e gestão do PME, indo de encontro às contrapartidas dos Ministérios e Secretarias federais, bem como à própria contrapartida municipal, que poderia atuar no sentido de apoiar efetivamente as direções na
condução do Programa, mais ainda após a extinção do cargo de Coordenador do Mais Educação. Ademais, a dependência de gestores(as) que se debrucem sobre os problemas cotidianos do PME para sua satisfatória efetivação no cotidiano da unidade, indica a ampliação das funções sociais da escola, conforme caracterizada por Algebaile (2009).
O governo municipal também não adotou uma conduta que se possa avaliar como colaborativa na manutenção do Programa. As ações mais cobradas nesse sentido foram a presença do Coordenador Escolar do Mais Educação, e a questão da carência de espaços escolares.
Por exemplo, não nos permitiram nem o Coordenador. Nós conseguimos encontrar alternativas, percebe, dentro da escola, para fazer com que o programa ande e aconteça. Porque a figura do coordenador, ela é fundamental. Essa seria uma das contrapartidas da rede municipal, que foi retirada. E a outra contrapartida, seria o quê? O próprio prédio. (SORAYA, ibid.).
A extinção da função de Coordenador do Mais Educação foi bastante negativa para o desenvolvimento do PME na Escola. Sobrecarregou o trabalho da equipe diretiva, que precisou se utilizar de diversas estratégias para manter as atividades semanais de contraturno, mesmo elas ocorrendo em dias alternados. Além disso, as escolas perderam a ponte de contato com a SMEDC, que também funcionava como espaço de troca de experiência entre os Coordenadores. A solução encontrada pela SMEDC foi contratar “Articuladores”: profissionais de ensino médio que percorrem algumas escolas semanalmente para levar e entregar relatórios de controle das atividades do PME nas escolas, um caso que aponta para um processo de precarização e fragilização da política. Estes relatórios devem ser preenchidos mensalmente pelas equipes diretivas, algo bastante próximo de uma prestação de contas.
Para fins de síntese destacamos alguns achados de pesquisa que podem servir como exemplos cuja extrapolação nos parece razoável, no sentido de contribuir para o esclarecimento da problemática desenvolvida neste trabalho. Em primeiro lugar, que a ação em rede envolvendo diversos níveis e atores dos
setores público e privado, uma das premissas de gestão do PME, apresentou diversas inconsistências no caso de Duque de Caxias. Exemplos nesse sentido foram a progressiva burocratização das relações entre o MEC e as escolas, reduzidas ao SIMEC, e a substituição das formações presenciais por cursos à distância. À medida que a Escola Beta possui acesso precário à rede mundial de computadores, a proposta de formação on-line parece-nos inócua.
A extinção do cargo de Coordenador de Escola do Mais Educação, em fins de 2011, foi fundamental para a precarização da experiência. Ampliou a quantidade de trabalho sob responsabilidade da equipe diretiva das escolas e determinou a redução dos dias de oferta do contraturno. A solução encontrada pelo governo municipal foi a contratação de profissionais denominados Articuladores, cuja função era basicamente entregar e receber das direções um relatório de controle das atividades do PME. Assim, uma função que poderia ter importante papel pedagógico no desenvolvimento das atividades nas escolas ficou eclipsada por outra meramente burocrática e não-especializada.
A herança histórica de investimento mínimo na educação básica fica explicitada na Escola Beta na questão dos espaços para as atividades do PME. Trata-se de uma escola superlotada que precisa abrigar, além dos 4 turnos diários, 3 contraturnos por semana. E tudo isso sem parceiros públicos ou privados de espaço para dividir esse contingente de alunos. É fundamental destacar, nesse sentido, que as propostas de parceria com o terceiro setor para ampliação da jornada escolar impõe maiores obstáculos às periferias das grandes cidades, como é o caso de Duque de Caxias, à medida que as ONG’s concentram seu raio de ação no município do Rio de Janeiro.
Os repasses financeiros vinculados ao PME foram valorizados por toda equipe diretiva da Escola Beta. Considerando que as escolas municipais de Duque de Caxias não recebem verba própria por parte do governo, a diretora declarou achar curioso algum gestor negar o contraturno em suas escolas. Com esse montante foram feitas obras e melhorias das quais toda a comunidade escolar passou a se beneficiar, e não apenas os matriculados no PME. E, mesmo com a baixíssima ajuda de custo, a Escola Beta afirmou não ter maiores problemas com a contratação e manutenção dos oficineiros. Pareceu-nos que a questão do sucesso do PME na Escola Beta está ligada à formação do diretor e sua equipe, bem como as suas longevidades nos respectivos cargos.
Os dados reforçaram que, ao nível da gestão do trabalho escolar, as condições estruturantes para o desenvolvimento de uma proposta de ampliação da jornada na escola pública são o financiamento da política, a formação do profissional e as condições do espaço escolar. Todas, aliás, organicamente associadas ao trabalho docente, em suas diversas dimensões constituintes. Conforme essa pesquisa e parte da literatura sobre o tema aponta, o trato adequado dessas condições pode resultar em boas experiências como a da Escola Beta, ainda que esta sofra com limitações oriundas de sua posição de poder no campo educacional, o que ficou patente na questão do espaço escolar, muito citada ao longo das entrevistas. Não as levar em consideração ou trata-las de forma tangencial pode resultar em desperdício de dinheiro público, precarização e intensificação do trabalho realizado no cotidiano da escola pública. Portanto, as escolas que aderem ao PME são, em essência, dependentes de ajudas das instâncias de poder superiores.
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Recebido em: 05 de novembro de 2017. Aprovado em: 28 de março de 2018. Publicado em: 13 de junho de 2018.
Olivia Morais de Medeiros Neta3
Ulisséia Ávila Pereira4 Nina Maria da Guia de Sousa Silva5
Este trabalho objetiva analisar, nos cursos de licenciatura em Letras, Matemática, Química e Geografia dos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia da região Nordeste (IFs), as concepções de formação docente voltadas à formação para a Educação Básica, especialmente o Ensino Médio Integrado (EMI). Foram analisados questionários aplicados junto a professores e estudantes concluintes dos cursos citados acima. Concluiu-se que as concepções de formação docente e EMI presentes nos documentos dos IFs associam-se com os princípios orientadores do currículo das licenciaturas e que possuem aproximação com a concepção de formação de futuros docentes.
Este trabajo analizar, en los cursos de licenciatura en Letras, Matemática, Química y Geografía de los Institutos Federales de Educación, y en el marco de la educación básica, en particular la Enseñanza Media Integrada (EMI). Se analizan cuestionarios aplicados junto a profesores y estudiantes concluyentes de los cursos citados arriba. Se concluyó que las concepciones de formación docente y EMI presentes en los Planes de Desarrollo Institucional y en los Proyectos Políticos Pedagógicos de los IFs, en la región Nordeste, se asocian con los principios orientadores del currículo de las licenciaturas de Letras, Matemáticas, Química y Geografía, formación para la Educación Básica, con aproximación de la formación de futuros docentes a la actuación en el EMI.
1 DOI: https://doi.org/10.22409/tn.16i29.p4648
2 Este artigo é parte integrante da pesquisa financiada pelo CNPq, realizada pelo Núcleo de Pesquisa em Educação (NUPED-IFRN): Licenciaturas Oferecidas pelos Institutos Federais na Região Nordeste e o Ensino Médio Integrado à Educação Profissional: buscando nexos.
3 Doutora em Educação pela UFRN, professora do PPGED/UFRN e PPGEP/IFRN. Email: olivianeta@gmail.com
4 Doutora em Educação pela UFRN, pesquisadora do NEPED/IFRN. Email: ulisseia.avila@ifrn.edu.br
5 Doutora em Educação pela UFRN, pesquisadora do NEPED/IFRN. Email: nina.sousa@ifrn.edu.br
A Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica vem se expandindo no Brasil, principalmente a partir de 2005, abrangendo, atualmente, todos os Estados da Federação. Sua criação remonta a 23 de setembro de 1909, quando, mediante a crescente urbanização e os problemas gerados por ela na Primeira República, o então Presidente do Brasil, Nilo Peçanha, assinou, nessa data, o Decreto nº 7.566.
Nessa trajetória, as escolas de formação profissional da Rede Federal receberam várias denominações: escolas de aprendizes artífices, liceus industriais, escolas industriais, escolas técnicas federais, escolas agrotécnicas federais, os centros federais de educação profissional e tecnológica (Cefets) e os institutos federais de educação, ciência e tecnológica (IF). Além disso, passaram por muitas mudanças no que diz respeito aos seus objetivos e foco de atuação. Essas transformações estão relacionadas ao contexto histórico e socioeconômico brasileiro e as imposições feitas pelo capital em contexto global.
Assim, uma das grandes mudanças na educação profissional e tecnológica no Brasil ocorreu em fins de 2008, quando o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, por meio da Lei nº 11.892, de 29 de dezembro de 2008, que instituiu a Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica, criou os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IFs), mencionados no Plano de Desenvolvimento de Educação (PDE), publicado em 2007.
De acordo com o Artigo 1º da Lei nº 11.892/08, a referida Rede é constituída pelas seguintes instituições: I – Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia; II – Universidade Tecnológica Federal do Paraná – UTFPR; III – Centros Federais de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca – CEFET-RJ e de Minas Gerais – CEFET-MG; IV – Escolas Técnicas Vinculadas às Universidades Federais; e V – Colégio Pedro II. (BRASIL, 2008).
Por outro lado, os Institutos Federais, conforme Artigo 2º da referida Lei, são vistos como
[...] instituições de educação superior, básica e profissional, pluricurriculares e multicampi, especializados na oferta de educação profissional e tecnológica nas diferentes modalidades de ensino, com base na conjugação de conhecimentos técnicos e
tecnológicos com as suas práticas pedagógicas, nos termos desta Lei (BRASIL, 2008, p. 1).
Nos parágrafos 1º, 2º e 3º do Artigo 2º, os IF são equiparados às universidades federais, podendo certificar competências profissionais, e são autônomos para criar e extinguir cursos, nos limites de sua área de atuação territorial, bem como para registrar diplomas dos cursos por eles oferecidos, mediante autorização do seu Conselho Superior.
Com relação aos objetivos dos IF, encontramos, no artigo 7º da Lei nº 11.892/08:
ministrar educação profissional técnica de nível médio, prioritariamente na forma de cursos integrados, para os concluintes do ensino fundamental e para o público da educação de jovens e adultos; II. ministrar cursos de formação inicial e continuada de trabalhadores, objetivando a capacitação, o aperfeiçoamento, a especialização e a atualização de profissionais, em todos os níveis de escolaridade, nas áreas da educação profissional e tecnológica; III. realizar pesquisas aplicadas, estimulando o desenvolvimento de soluções técnicas e tecnológicas, estendendo seus benefícios à comunidade; IV. desenvolver atividades de extensão de acordo com os princípios e finalidades da educação profissional e tecnológica, em articulação com o mundo do trabalho e os segmentos sociais, e com ênfase na produção, desenvolvimento e difusão de conhecimentos científicos e tecnológicos; V. estimular e apoiar processos educativos que levem à geração de trabalho e renda e à emancipação do cidadão na perspectiva do desenvolvimento socioeconômico local e regional; e VI. ministrar em nível de educação superior: a) cursos superiores de tecnologia visando à formação de profissionais para os diferentes setores da economia;
b) cursos de licenciatura, bem como programas especiais de formação pedagógica, com vistas à formação de professores para a educação básica, sobretudo nas áreas de ciências e matemática, e para a educação profissional; c) cursos de bacharelado e engenharia, visando à formação de profissionais para os diferentes setores da economia e áreas do conhecimento;
d) cursos de pós-graduação lato sensu de aperfeiçoamento e especialização, visando à formação de especialistas nas diferentes áreas do conhecimento; e) cursos de pós-graduação stricto sensu de mestrado e doutorado, que contribuam para promover o estabelecimento de bases sólidas em educação, ciência e tecnologia, com vistas no processo de geração e inovação tecnológica (BRASIL, 2008, p. 4).
Esses objetivos vêm sendo alcançados, possibilitando que a Rede Federal de Educação Profissional e Tecnológica não mais se restrinja à oferta de cursos
técnicos, mas também ofereça cursos de tecnologia em nível superior, licenciaturas e pós-graduações lato e stricto sensu. Isso se deve, em grande medida, à transformação dessas instituições em Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia, em franca expansão desde princípios do século XXI.
Desse modo, considerando que é prioritária a atuação dos IFs no Ensino Médio Integrado (EMI) e na formação de professores para a educação básica (anos finais do ensino fundamental e ensino médio), decidiu-se investigar se a formação que vem sendo proporcionada aos licenciados por essas Instituições os habilita a atuar no EMI, tanto nos próprios Institutos como em outras redes públicas de ensino, principalmente na esfera estadual, que é a principal responsável, constitucionalmente, pela oferta do Ensino Médio.
Para delimitar o campo empírico de realização da pesquisa, partiu-se dos dados do Censo da Educação Superior de 2010 (BRASIL, 2011), referentes à matrícula em cursos de licenciaturas nas disciplinas específicas da educação básica oferecidas pelos Institutos Federais.
Identificou-se, com a análise dos dados do mencionado Censo, que, no âmbito dos IFs, os cursos de licenciatura em Letras, em Matemática, em Química e em Geografia são os de maior matrícula em cada uma de suas respectivas áreas de conhecimento, a saber: Linguagens, Matemática, Ciências da Natureza e Ciências Humanas.
Ainda quanto aos dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (2009), observou-se que a região Nordeste apresenta os indicadores mais baixos no que se refere ao Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB), quando comparado às demais regiões do país. Assim, optou-se por essa investigação com tema voltado às Licenciaturas oferecidas pelos Institutos Federais na Região Nordeste e o Ensino Médio Integrado à Educação Profissional.
Nesse sentido, definiram-se as seguintes questões orientadoras da investigação: a) quais as concepções de formação docente e Ensino Médio Integrado presentes nos Planos de Desenvolvimento Institucional e nos Projetos Políticos Pedagógicos dos Institutos Federais na Região Nordeste? b) quais os princípios orientadores dos currículos das licenciaturas de Letras, em Matemática, em Química e em Geografia dos IF da região Nordeste, voltados à formação para
a Educação Básica, especialmente o Ensino Médio Integrado e c) qual a perspectiva de integração nas licenciaturas em Matemática, em Química, em Letras e em Geografia ofertadas pelos Institutos Federais da região Nordeste, tendo como referência a formação de futuros docentes habilitados à atuação no EMI na perspectiva da formação humana integral?
Após a definição dessas questões, elencou-se o objetivo geral: analisar, nos cursos de licenciatura em Letras, em Matemática, em Química e em Geografia em funcionamento nos Institutos Federais da região Nordeste, as concepções de formação docente voltadas à formação para a Educação Básica, especialmente ao Ensino Médio Integrado, considerando a habilitação dos futuros docentes para atuar no EMI.
Esse objetivo sinaliza na direção de que a pesquisa será realizada em duas fases. Em um primeiro momento, serão realizados estudos de aprofundamento teórico, por meio de revisão bibliográfica e análise documental. Quanto ao caminho metodológico a ser percorrido, ressalta-se que a pesquisa, enquanto atividade básica da produção científica, vincula pensamento e ação, constituindo- se num procedimento racional e sistemático, cujo objetivo é responder a um problema inicialmente proposto. A metodologia é, pois, o caminho do pensamento revelado na escolha da melhor maneira de abordar o problema, tal como indicam os estudos de Gil (1991), Minayo (1993), Silva e Menezes (2001), Lakatos e Marconi (1993) e Diehl e Tatim (2004).
Desse modo, optou-se por realizar um estudo exploratório, de cunho qualitativo, por possibilitar ao pesquisador fazer uma análise crítica e reflexiva da realidade a ser estudada, descrever a complexidade do objeto de estudo e, a partir daí contribuir para viabilizar uma intervenção fundamentada no conhecimento desta realidade (YUNI; URBANO, 2005).
Com relação ao enfoque qualitativo da pesquisa, este diz respeito à relação indissociável entre a realidade analisada e os sujeitos envolvidos no processo, cuja relação dinâmica exige interpretação e atribuição de significados.
Essa escolha possibilita ao pesquisador partir da compreensão dos pressupostos teóricos que fundamentam a formação docente e das condições dadas historicamente, permeadas por conflitos de valores e perspectivas, incluindo um forte componente axiológico e ético, no intuito de contribuir com
ações de intervenções na própria prática pedagógica docente, inclusive na busca de novos sentidos para essa prática, o que resultará na construção de uma autonomia e identidade do profissional docente.
Pelo exposto, compreende-se que essa forma de abordagem está calcada na necessidade de se trazer uma contribuição qualitativa às mudanças sociais e à (re)construção do conhecimento científico, na medida em que teoria e prática são questionadas de forma dialética em um movimento dinâmico de ação reflexiva ou de reflexão atuante.
Diante desse contexto, definiram-se algumas categorias empíricas prévias, as quais poderão apontar para elementos facilitadores do processo de formação docente, como também poderão assinalar possíveis entraves à formação. Essas categorias são formadas pelas concepções de formação docente, de currículo e de Ensino Médio Integrado.
Como fase prévia ao desenvolvimento da pesquisa de campo, realizou-se uma análise dos documentos institucionais e legais relacionados ao objeto de estudo, além de revisão bibliográfica.
Para os documentos legais e institucionais estabeleceram-se os seguintes procedimentos metodológicos: análise dos documentos legais vigentes que tratam da formação de professores para a educação básica e para a educação profissional, especialmente a Lei nº 9.394/1996 e suas regulamentações relacionadas com o objeto de estudo, as Resoluções do Conselho Nacional de Educação CNE/CP nº 02/1997 e CNE/CP nº 01 e nº 02/2002, além da Resolução CNE/CP nº 2, de 1º de julho de 2015 que define as Diretrizes Curriculares Nacionais para a formação inicial em nível superior (cursos de licenciatura, cursos de formação pedagógica para graduados e cursos de segunda licenciatura) e para a formação continuada; análise dos documentos legais relacionados com o EMI, notadamente a Lei nº 11.741/2008, os Decretos nº 5.154/2004, nº 5.478/2005, nº 5.840/2006, nº 6.302/2007 e o documento base da educação profissional técnica de nível médio.
Em relação aos sujeitos da pesquisa, professores e estudantes vinculados aos 11 IFs da região Nordeste, distribuídos nos cursos investigados, foram aplicados questionários com o objetivo de apreender elementos que contribuam ao aprofundamento da análise, uma vez que a reflexão desses sujeitos acerca de
sua própria realidade implica na busca de respostas para compreender as relações entre as circunstâncias, as ações e as consequências dessas ações.
Ressalta-se que, nos 11 Institutos Federais da região Nordeste, mapearam-se 3 cursos de Letras, 31 cursos de Química, 27 cursos de Matemática e 4 cursos de Geografia, perfazendo um total de 67 cursos distribuídos em 55 campi dos IFs no Nordeste.5
Ao longo dos anos 2000, no Brasil, apesar do pensamento neoliberal continuar sendo hegemônico, alguns avanços na esfera educacional foram sinalizados pelo governo Lula da Silva. Especificamente no campo da educação básica, a possibilidade de sua integração com a educação profissional aponta para o rompimento da histórica dualidade estrutural entre elas, especialmente no que se refere ao ensino médio e aos cursos técnicos de nível médio.
Nesse sentido, não há como formar o professor de novo tipo sem prepará- lo para a pesquisa, a extensão e a articulação entre teoria a e intervenção na realidade. Diante disso, compreendemos que a educação deve ser um direito social e, ao mesmo tempo, humanizadora, que forme o ser humano integral, possibilitando aos sujeitos condições de efetiva participação política, social, econômica e cultural na sociedade. Isso significa gerar processos de inovação e mudança adequadas à formação de professores.
Pari passu, urge a necessidade da formação de professores para o Ensino Médio Integrado, inclusive na modalidade da Educação de Jovens e Adultos, em
5 A seguir apresentamos os Institutos Federais, os campi e os respectivos cursos em análise. A nomenclatura dos cursos está abreviada com a letra inicial dos nomes, exemplo: Letras (L), Matemática (M), Química (Q), Geografia (G). IFAL – Maceió (L, Q e M). IFBA – Porto Seguro (Q), Vitória da Conquista (Q), Eunápolis (M), Barreiras (M), Salvador (M e G), Valença (M), Camaçari (M). IF BAIANO – Catu (Q), Guanambi (Q), Santa Inês (G). IFCE – Crateús (L e M), Canindé (M), Iguatú (Q), Cedro (M), Maracanaú (Q), Fortaleza (M), Quixadá (Q), Juazeiro do Norte (M). IFMA – Açailândia (Q), Zé Doca (M e Q), Codó (Q e M), Buriticupu (Q), Monte Castelo (M), Bacabal (Q), Caxias (Q), Maracanã (M). IFPE – Barreiras (Q), Ipojuca (Q), Vitória de Santo Antão (Q), Pesqueira (M), Recife (G). IFPB – Sousa (Q), João Pessoa (Q), Cajazeiras (M), Campina Grande (M). IF Sertão Pernambucano – Petrolina (Q), Floresta (Q) e Ouricuri (Q). IFPI – Parnaíba (Q), Picos (Q), Teresina (Q e M), Angical (M), Corrente (M), São Raimundo Nonato (M), Floriano (M), Piripiri (M) e Uruçuí (M). IFRN – Apodi (Q), Ipanguaçu (Q), Pau dos Ferros (Q), Natal Central (L, M e G), Santa Cruz (M) e Mossoró (M). IFS – Aracaju (Q e M).
que haja articulação entre a formação inicial e continuada de forma consistente, fundamentada e crítica, além de relações com a educação básica e superior.
Os Institutos Federais da região Nordeste em seus Planos de Desenvolvimento Institucional (PDI) e nos Projetos Políticos Pedagógicos (PPP) trazem concepções concernentes à formação docente, ao currículo, à formação humana integral e ao Ensino Médio Integrado. Em conformidade com o seu objetivo e com a ênfase em discutir a formação de professores para o Ensino Médio Integrado, este trabalho volta-se às concepções de formação docente e EMI.
Na nova institucionalidade, os Institutos Federais, a formação docente ganha lugar de destaque e, nesse sentido, os PDI e PPP discorrem acerca dessa concepção como eixo articulador da oferta de ensino. O IFCE em seu PDI, por exemplo, discorre sobre a formação docente em articulação com as dimensões pedagógica, cidadã e técnico-científica:
Preparar o discente para enfrentar de forma compartilhada os desafios de um mundo em constante mudança. Capacitar o discente para intervir criticamente na realidade, como condição para a prática da cidadania. Formar para o trabalho, visando à consequente inserção do homem no sistema produtivo. Formar e qualificar profissionais no âmbito da educação profissional e tecnológica, nos diferentes níveis e modalidades de ensino, para os diversos setores da economia, bem como realizar pesquisa aplicada e promover o desenvolvimento tecnológico de novos processos, produtos e serviços, em estreita articulação com os setores produtivos e a sociedade, especialmente de abrangência local e regional. (IFCE, PDI, 2009, p. 47-48).
Na análise dos PDI e PPP dos Institutos Federais do Nordeste foi recorrente a associação da concepção de formação docente à concepção de formação integrada como consta no PDI do IFRN e no PPP do IFPE, por exemplo. No entanto, a formação docente também ganha espaço nos textos dos PDI e PPP como uma demanda da nova institucionalidade, como foi ressaltado anteriormente. Nesse sentido, o IFPB trouxe em seu PDI diz que a formação docente nos cursos de licenciatura “[...] visa ao atendimento a Lei 11.892/2008 e foi criada com o objetivo de minimizar a falta de profissionais de educação para exercer a docência nas Escolas de Educação Básica.” (IFPB, PDI, 2010, p. 2010, p. 27).
Considerando a demanda de formação docente à educação básica por parte dos IFs, ainda se pode questionar: como se dá a formação para atuação no Ensino Médio Integrado? Mas, há de se pensar sobre a concepção de Ensino Médio Integrado nos PDI e PPP dos Institutos Federais na região Nordeste. Com isso, a formação docente é associada à educação profissional.
Foram mapeados dois grupos de concepções referentes ao Ensino Médio Integrado nos PDI e PPP dos Institutos Federais do Nordeste: um voltado à filosofia da práxis como no PPP do IFRN e outro grupo voltado à ênfase do EMI como modalidade de ensino com pouca discussão sobre a perspectiva de formação, como expresso nos PDI do IF Baiano e do IFS, para exemplificar.
No caso do primeiro grupo, foi recorrente a discussão sobre o EMI vinculada à concepção de formação humana integral, da politecnia e formação omnilateral. Observe-se o texto do PPP do IFRN:
Em âmbito filosófico, a concepção institucional de formação técnica alicerça-se na teoria da Práxis. [...] a construção de um currículo para a educação profissional fundamentado em tal filosofia embasa-se na compreensão do ensino como uma totalidade concreta em movimento e no tratamento da organização curricular perspectivado nas dimensões teleológica, histórico-antropológica e metodológica. Tal embasamento implica: desenvolver o ensino técnico integrado ao ensino médio na perspectiva da visão unitária e dialética dos processos formativos escolares [...]. (IFRN, PPP. 2012, p. 97).
Os cursos técnicos de nível médio na forma integrada regular fundamentam-se, teórico-metodologicamente nos princípios da politecnia, da formação omnilateral, da interdisciplinaridade e da contextualização. Alicerçam-se também nos demais pressupostos da formação técnica integrada à educação básica. (IFRN, PPP. 2012, p. 103).
Corroborando com essa concepção de EMI, há concordância com Machado (2008, p. 18) quando esta ressalta que o professor da educação profissional deve ser capaz de
[...] permitir que seus alunos compreendam, de forma reflexiva e crítica, os mundos do trabalho, dos objetos e dos sistemas tecnológicos dentro dos quais estes evoluem; as motivações e interferências das organizações sociais pelas quais e para as quais estes objetos e sistemas foram criados e existem; a evolução do mundo natural e social do ponto de vista das relações humanas com o progresso tecnológico; como os produtos e
processos tecnológicos são concebidos, fabricados e podem ser utilizados; métodos de trabalho dos ambientes tecnológicos e das organizações de trabalho.
Além desse perfil profissional, torna-se relevante saber desenvolver comportamentos proativos e socialmente responsáveis com relação à produção, à distribuição e ao consumo da tecnologia. Nesse contexto, do ponto de vista curricular, essa formação deve ser voltada para a integralidade entre formação específica e formação pedagógica, visando à formação dos docentes para a autonomia escolar, tendo a pesquisa como princípio educativo integrado ao ensino e a extensão.
Para a discussão como se dá a formação para atuação no Ensino Médio Integrado, aplicaram-se questionários junto a professores e a estudantes concluintes dos cursos de licenciatura em Letras, Matemática, Química e Geografia dos Institutos Federais da região Nordeste, sendo 198 questionários com professores e 431 com estudantes.
Os questionários trataram do grau de importância que professores e estudantes atribuíam ao currículo na perspectiva da formação integral, sistêmica, cultura clássica, necessidades requeridas pelo mercado de trabalho ou dos arranjos produtivos locais para a formação dos licenciandos do Instituto Federal,
Nesses termos, 92,4% dos professores, quando perguntados sobre o currículo na concepção de formação integral, exprimiram que este possui alta ou muito alta importância para a formação dos estudantes nas licenciaturas nos Institutos Federais do Nordeste. No que concerne à visão sistêmica do currículo, 89,2% dos professores destacaram que esta representa alta ou muito alta importância para a formação dos estudantes. Quanto à concepção de currículo voltada às necessidades requeridas pelo mercado de trabalho, 60,9% dos professores consideraram ser alta ou muito alta essa ênfase à formação do licenciando. Essas concepções apresentam vinculação com o entendimento de formação docente presente no PDI, a exemplo do apresentado anteriormente do PDI do IFCE.
Associando os entendimentos do currículo à formação docente com ênfase ao EMI, destaca-se que os professores participantes da pesquisa enfatizaram que 88,7% dos conhecimentos ou conteúdos relativos à educação básica presentes
na licenciatura na qual atuam, possuem alta ou muito alta ênfase na integração entre trabalho, ciência, tecnologia e cultura. De igual modo, registramos que 73,5% dos professores destacaram que os programas das disciplinas em que atuam nas licenciaturas dos Institutos Federais contemplam conhecimentos ou conteúdos voltados para o Ensino Médio Integrado.
Nessa perspectiva, considerando que essas respostas remetem ao currículo integrado, torna-se mister destacar que este se contrapõe à racionalidade técnica caracterizada pelo pensamento instrumental, à dualidade entre conhecimento científico e formação pedagógica, à articulação mínima entre os saberes científicos, técnicos, tácitos e pedagógicos, assim como à falta de valorização das demandas dos contextos profissionais para os quais se formam os estudantes. Dessa forma, esse currículo pensado à luz dos princípios da formação integral dá prioridade aos percursos de formação de docentes para a educação básica voltados, também, para a educação profissional.
Moura (2008, p. 35) destaca que o conteúdo da formação de docentes para a educação profissional “deve incluir, além das questões didático-pedagógicas, a discussão relativa à função social da EPT em geral e de cada instituição em particular”.
De tal modo, essa formação não estará meramente voltada para atender às novas configurações do mercado de trabalho e à mera difusão de conhecimentos empíricos, mas, sim, ao desenvolvimento do trabalho didático-pedagógico por meio dos saberes científico-tecnológico-culturais, em que o próprio professor pode ser o pesquisador de sua prática pedagógica, para, a partir daí, melhorá-la em um “movimento dialético entre o fazer e o pensar sobre o fazer” (FREIRE, 1996, p. 38). Isso está expresso no PPP do IFRN, citado em outro trecho desse trabalho, o qual remete à formação no EMI com bases na omnilateralidade e na politecnia.
No que se refere às concepções dos licenciandos dos IFs do Nordeste sobre a formação docente e a formação para a atuação no EMI, ressalta-se que suas formações nos IFs possuem ênfase em conhecimentos vinculados à dimensão disciplinar e pedagógica, prioritariamente. Assim, 84,2% dos estudantes responderam que seus currículos possuem ênfase alta ou muito alta na dimensão
disciplinar – valor muito próximo do atributo à ênfase alta e muito alta na dimensão pedagógica, 82,1%.
Mas, mesmo considerando as ênfases disciplinar e pedagógica nos currículos, os estudantes dos cursos de Letras, Química, Matemática e Geografia entrevistados registram que a formação docente nos Institutos Federais está direcionada à articulação entre teoria e prática em uma perspectiva transformadora da realidade e para um fazer permanente que se refaz constantemente na ação-reflexão-ação. 91,6% dos registros são referentes à articulação entre teoria e prática na perspectiva transformadora da realidade nas ênfases alta e muito alta, e 82,1% entendem que a formação docente como um fazer permanente que se refaz constantemente na ação-reflexão-ação nas ênfases alta e muito alta.
A materialização dessa formação que inclui ação-reflexão-ação se dará, inicialmente, por meio de uma política pública de formação de professores para a educação básica e profissional que seja perene e avaliada permanentemente, voltada para a educação de qualidade referenciada, inclusive para a formação de formadores, como os bacharéis que lecionam nos Institutos Federais, sem a formação pedagógica.
Nessa particularidade, Machado (2008, p. 17), quando se refere à atuação do docente nas diversas formas de articulação da educação básica com a educação profissional, enfatiza que:
no ensino técnico integrado ao médio, ele deve saber integrar os conhecimentos científicos, tecnológicos, sociais e humanísticos, que compõem o núcleo comum de conhecimentos gerais e universais, e os conhecimentos e habilidades relativas às atividades técnicas de trabalho e de produção relativas ao curso técnico em questão; b) no ensino técnico concomitante ao médio, ele deve saber articular o planejamento e o desenvolvimento dos cursos, de modo a aproveitar oportunidades educacionais disponíveis; e c) no ensino técnico subsequente ao médio, ele deve saber lidar com um alunado heterogêneo que já concluiu o ensino médio e reforçar a formação obtida na educação básica paralelamente ao desenvolvimento dos conteúdos específicos à habilitação.
Essa formação implica uma nova forma de organização pedagógica, fundamentada em princípios que não se limitem a conhecimentos empíricos e a
métodos e técnicas pedagógicas, mas que favoreçam os professores no sentido de desenvolverem as suas atividades didático-pedagógicas unindo a ciência, a tecnologia, o trabalho, a cultura, o social e o político, favorecendo a qualidade da formação e do exercício profissional.
Nas palavras de Kuenzer (2008, p. 33),
Esse professor deverá estudar o trabalho na dimensão ontológica, como ser constituinte do ser social capitalista; há de estudar como as bases materiais cimentadas pela ideologia conformam subjetividades que não se reconhecem como excluídas. Isso sugere a sistematização do trabalho coletivo e interdisciplinar que assegure a unidade entre teoria e prática nas diversas áreas do conhecimento, além de uma sólida formação teórico-prática interconectada com a produção e a socialização científica.
Isso se reflete na forma de organizar e de gerir o processo ensino- aprendizagem pelos percursos da formação integrada e com uma base comum nacional, uma das especificidades da licenciatura para a educação profissional.
Coadunando-se com as concepções sobre a formação docente dos estudantes dos IFs do Nordeste entrevistados para este trabalho, os quais registraram uma articulação entre teoria e prática em uma perspectiva transformadora da realidade, estes, quando questionados sobre os conhecimentos ou conteúdos relativos à educação básica presentes na licenciatura que cursam nos Institutos Federais, enfatizaram a integração entre trabalho, ciência, tecnologia e cultura e os conhecimentos necessários à participação social, política, econômica e cultural na sociedade. Registraram, assim, que 62,1% das ênfases na integração de conhecimentos entre trabalho, ciência, tecnologia e cultura são alta ou muito alta e que, de maneira correlata, 61,6% dos conhecimentos necessários à participação social, política, econômica e cultural na sociedade possuem ênfase alta ou muito alta.
Igualmente, favoreceu-se o diálogo entre os diversos campos de conhecimento, bem como entre as relações sociais de produção, política, cultural e educacional. Nesse particular, concorda-se com Damis (2002, p. 128) quando ele afirma que
A formação teórica consistente, a unidade teoria/prática, o trabalho coletivo interdisciplinar, o compromisso social da
educação e a formação continuada não se constituem em tópicos a serem definidos e inseridos apenas como novos conteúdos incluídos no projeto acadêmico de cada curso de licenciatura. Constituem-se, sim, abordagens a serem incorporadas na totalidade do processo teórico-prático de tratamento dos saberes que compõem a formação docente.
Nessa direção, torna-se relevante a reflexão sobre o papel social e a expansão da Rede Federal de Educação Profissional e Tecnológica, sobretudo no que diz respeito à formação pedagógica dos professores que atuam em seus cursos de licenciatura.
No que se refere, especificamente, à presença de conhecimentos ou conteúdos voltados para o Ensino Médio Integrado nos programas das disciplinas que os estudantes cursaram nas licenciaturas dos Institutos Federais do Nordeste, 63,7 registraram a presença de conteúdo ou conhecimento. Ainda ressalta-se que 16,3% responderam não saberem da presença ou não desses conteúdos relativos ao EMI e 19,8% responderam que não há a presença desses nos programas das disciplinas cursadas.
Destaca-se que há dois movimentos importantes de aproximação entre a educação profissional e a educação básica no que se refere à formação docente. Um relacionado com o docente das disciplinas consideradas específicas da formação profissional e que deve contribuir para sua formação didático-político- pedagógica e para a compreensão de que, no EMI, a formação geral e a formação profissional não estão separadas, ao contrário, são integradas.
O outro movimento está relacionado à formação de licenciados em disciplinas da educação básica que atuarão no EMI no sentido de que possam compreender as relações entre a disciplina objeto da licenciatura e as demais disciplinas do Ensino Médio Integrado, tanto aquelas denominadas de formação geral como as de formação profissional, a partir da concepção de formação humana integral que tem como eixo estruturante a integração entre trabalho, ciência, tecnologia e cultura. Este movimento está presente na formação do licenciando nos Institutos Federais da região Nordeste, conforme análise dos
documentos legais e dos questionários realizados com professores e estudantes dos cursos de licenciatura de Letras, Química, Matemática e Geografia.
Diante do exposto e tendo em vista que, nesta investigação, o objeto de estudo está circunscrito ao segundo caso, ou seja, à formação de licenciados para a educação básica (últimos anos do ensino fundamental e ensino médio) e que o campo empírico são os IFs, pode-se afirmar que as principais contribuições científicas desta pesquisa estão relacionadas diretamente às respostas a serem encontradas para as questões norteadoras da investigação.
Importa salientar que apesar de o campo empírico estar restrito aos IFs da região Nordeste, a discussão acerca da concepção de licenciaturas para a educação básica voltadas à formação de docentes que possam atuar no ensino médio na perspectiva da formação humana integral é relevante e abrange um universo bem mais amplo do que a Rede Federal de Educação Profissional, uma vez que está em andamento no país um movimento de ampliação da oferta da educação profissional em geral e, em particular, do EMI nas redes públicas dos estados.
Além disso, a discussão sobre a concepção de formação docente aqui enfocada pode contribuir para tencionar o próprio modelo de formação de professores para a educação básica predominante nas instituições de educação superior do país, os quais não consideram como objetos centrais de estudos as relações entre trabalho e educação de uma forma geral e, em particular, a educação profissional, nem tampouco a educação de jovens e adultos, mesmo sabendo-se que cerca de 80 milhões de brasileiros entre 18 e 59 anos de idade não concluíram a educação Básica (MACHADO, 2010).
Nesses termos, considera-se que as concepções de formação docente e Ensino Médio Integrado presentes nos Planos de Desenvolvimento Institucional e nos Projetos Políticos Pedagógicos dos Institutos Federais na Região Nordeste associam-se com os princípios orientadores dos currículos das licenciaturas em Letras, em Matemática, em Química e em Geografia desses Institutos, voltados à formação para a Educação Básica, com aproximação da formação de futuros docentes à atuação no EMI.
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Recebido em: 08 de novembro de 2017. Aprovado em: 28 de abril de 2018. Publicado em: 13 de junho de 2018.
Marcelo Lima3 Renan dos Santos Sperandio4 Samanta Lopes Maciel5
Zilka Teixeira6
Neste trabalho, foi analisado a pesquisa-ação no contexto da integração curricular do ensino médio à educação profissional na Rede Federal. Identificou-se a emergência de uma “resistência muda” dos sujeitos envolvidos que por meio de discursos e práticas destoantes apoiaram, mas também boicotaram a pesquisa- ação, resultando na descontinuidade da mobilização e do envolvimento dos grupos focais. De todo modo, houve êxito no campo do diagnóstico e da formação docente e os resultados futuros são promissores para os objetivos do estudo.
In this work, the action research was analyzed in the context of the curricular integration of secondary education to professional education in the Federal Network. It was identified the emergence of a "silent resistance" of the involved subjects that by means of discourses and distoantes practices supported, but also they boycotted the action research, resulting in the discontinuity of the mobilization and the involvement of the focal groups. However, there has been success in the field of teacher diagnosis and training, and future results are promising for the study objectives.
A oferta universal do ensino médio de qualidade integrado à educação profissional técnica de nível médio à escolha dos estudantes como opção formativa representa avanço na “luta pela superação do dualismo estrutural da
1 DOI: https://doi.org/10.22409/tn.16i29.p4649
2 Texto originalmente apresentado no GT09 na 38ª reunião anual da anped em outubro de 2017.
3 Doutor em educação pela UFF, Membro do PPGE-UFES e coordenador do LAGEBES.
4 Graduado em Pedagogia pela UFES e Mestrando em educação no PPGE-UFES.
5 Graduada em Pedagogia pela UFES, Mestra em educação e pedagoga do IFES – campus São Mateus.
6 Graduada em Pedagogia pela UFES e Mestranda em educação no PPGE-UFES – Gerente de educação profissional do Senai-ES.
sociedade e da educação” que engendra um currículo escolar calcado na divisão social e técnica do trabalho “em defesa da democracia e da escola pública” (CIAVATTA; RAMOS, 2012, pág. 308).
Essa forma curricular, inviabilizada nos anos 1990 e atualmente combatida pela reforma do ensino médio (Lei nº 13.415) ainda vigente nas escolas pelo Brasil, representa importante travessia de uma escola segmentadora e diferenciadora para construção de um currículo escolar baseado na politecnia. Conforme Saviani, embora literalmente a politecnia seja definida como uma “multiplicidade de técnicas”, a politecnia que se almeja na concepção de escola e de currículo “diz respeito ao domínio dos fundamentos científicos das diferentes técnicas que caracterizam os processos produtivos modernos” (SAVIANI, 1989, pág. 16) e seu desdobramento político pressupõe uma formação ominilateral que ao contrário de uma formação unilateral, não dicotomiza saberes e sujeitos. Essa concepção se opõe a uma formação exclusiva e restritiva ao trabalho manual ou ao trabalho intelectual; transita, portanto, do trabalho simples ao trabalho complexo para formar o técnico e o cidadão.
A formação omnilateral leva em conta todas as dimensões que constituem a especificidade do ser humano e tem como contexto as condições objetivas e subjetivas reais dos educandos para seu pleno desenvolvimento. Essas dimensões envolvem sua vida corpórea material e seu desenvolvimento intelectual, cultural, educacional, psicossocial, afetivo, estético e lúdico” (FRIGOTTO, 2012, pág. 267).
Uma escola politécnica deve operar no horizonte da superação das polaridades e hierarquias presentes no currículo escolar entre conhecimento geral e conhecimento específico, entre saber técnico-prático e saber político-humanista. Para tanto, faz-se necessária a construção de eixos curriculares e nexos integradores capazes de estabelecer ou encontrar possíveis pontos de articulação e organização dos saberes escolares presentes na mesma totalidade concreta. Para realizar uma formação omnilateral, processos, métodos, espaços e tempos de ensino “não podem ser determinados nem pela unilateralidade da teoria nem da prática, mas na unidade dialética de ambas, ou seja, na e pela práxis” (FRIGOTTO, 2010, pág. 192).
Desse modo, o currículo para ser integrado não deve ser compartimentalizado e disciplinar, ou fragmentado em conteúdos isolados. Para
Ramos (2012) a integração deve permitir uma apreensão da realidade em sua totalidade, pois saberes escolares isolados entre si e desprendidos da realidade concreta podem comprometer uma visão mais ampla da produção material e da sociedade (RAMOS, 2012, p. 117). Ou seja, para forjar uma compreensão crítica, científica, filosófica e criativa da realidade exige-se o acesso amplo e articulado dos saberes escolares que representam acervos da humanidade, aos quais devemos ter acesso para construirmos a nossa própria humanidade. Tal possibilidade exige uma escola pública de qualidade que ofereça um currículo integrado com matrícula única na mesma unidade de ensino onde prática, teoria, tecnologia, ciência, história, cultura, linguagem, estética e ética se imbriquem nos espaços e nos tempos, configurando um currículo escolar onde o aluno seja reconhecido em suas múltiplas dimensões tendo em vista seu contexto, mas também no seu vir-a-ser. Para tanto, é necessário conceber o homem como ser histórico e social já que a história da humanidade é a história da produção humana da existência e “a história do conhecimento é a história do processo de apropriação social dos potenciais da natureza, mediada pelo trabalho” e pela educação (RAMOS, 2012, pág. 115).
Nesse entendimento, o trabalho é tomado como princípio educativo, no sentido de que é pelo trabalho que o homem modifica e transforma a natureza e a si mesmo e, nesse intuito, ele é elemento criador da vida humana e como tal apreende, desde a infância, de que é pelo trabalho que o ser humano transforma a natureza em bens úteis à sua sobrevivência. Isso implica a formação do trabalhador numa perspectiva crítica da produção capitalista, afirmando o princípio educativo e emancipador do processo histórico-ontológico da produção material. A partir desses pressupostos, podemos afirmar que a integração emerge de um currículo que se organiza como uma totalidade orgânica que não se reduz à soma das partes. Essa proposta e prática educativa deve se dar numa escola eminentemente pública e unitária, que se baseia na universalidade do direito ao ensino médio e ao ensino técnico cujo público é, e deve ser, heterogêneo (nos seus aspectos social, econômico, geográfico, etário, étnico e cultural). O seu conteúdo tem o trabalho como princípio educativo e deve se organizar e se estruturar por meio de uma matriz curricular politécnica cuja finalidade é a formação omnilateral dos educandos.
Apesar do contexto atual, em que as mudanças na legislação educacional inseridas com a reforma do ensino médio que indicam em sentido contrário, o ensino médio integrado tem suas bases ainda fundamentadas na Constituição Federal (CF), na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), na lei de criação dos IFs, nas Diretrizes Curriculares Nacionais e no Plano Nacional de Educação (PNE - Lei n. 13.005/14). Para a Constituição de 1988, a educação visa “ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho” (artigo 205). Segundo a LDB (Lei n. 9394/96), “a educação escolar deve se vincular à prática social e ao mundo do trabalho” (artigo 2º). Também nesta lei afirma-se que o ensino médio terá como finalidade “prosseguimento de estudos” e a “preparação básica para o trabalho” de modo a que o educando continue “aprendendo, de modo a ser capaz de se adaptar com flexibilidade a novas condições de ocupação” e que possa compreender “os fundamentos científico-tecnológicos dos processos produtivos” (Incisos de I – IV do artigo 35).
No PNE, a formação integrada aparece como consequência de algumas metas e estratégias. Neste aspecto ganham destaque as estratégias 3.7 (fomentar expansão de matrículas gratuitas de ensino médio integrado à EP),
10.2 (articular EJA e EP para aumentar a escolarização do trabalhador), 10.3 (fomentar a integração EJA e EP) e 11.9 (expandir o EM integrado à EP para as populações do campo, indígenas e quilombolas) que não só legitimam a integração como apontam para sua expansão.
A lei de criação dos IFs (Lei Nº 11.892/08) assumiu dentre suas principais finalidades: “promover a integração e a verticalização da educação básica à educação profissional” (artigo 6). Cabe então aos IFs “ministrar educação profissional técnica de nível médio, prioritariamente na forma de cursos integrados, para os concluintes do ensino fundamental e para o público da educação de jovens e adultos” (artigo 7).
Esse artigo tem como fito analisar e problematizar o processo metodológico da pesquisa-ação num Instituto Federal, tendo em vista a necessidade de realização de ações de diagnóstico e de formação, sobre o ensino médio
integrado. Este estudo vincula-se a uma das ações do projeto de pesquisa que desenvolvido no laboratório de gestão da educação básica do Espírito Santo e do Programa de pós-graduação em Educação da UFES no período de 2013 a 20166. Trata-se de uma análise que buscou fortalecer por meio da pesquisa-ação- formação (primeira fase) e do projeto de intervenção (segunda fase) as práticas de integração (e ou interdisciplinares) no processo ensino-aprendizagem do EM integrado à EPTNM. Além de avaliar e promover atividades coletivas de ensino, pesquisa e extensão, com vistas à convergência dos sujeitos (alunos, professores
e gestores) e dos saberes nos espaços e nos tempos.
A pesquisa-ação (formação e intervenção) se desenvolveu por quatro anos (2013-2016), abrangeu sete campi (Vitória, Venda Nova do Imigrante, São Mateus, Cariacica, Guarapari, Barra de São Francisco e Colatina), tendo em vista os cursos técnicos integrados em Agroindústria, Administração, Mecânica, Eletrotécnica e Edificações do ES. Durante o estudo foram realizadas mais de 20 reuniões dos grupos focais e aplicado formulário de diagnóstico da integração para 300 docentes em evento promovido pela pesquisa.
A pesquisa contou com a participação de um coordenador, dois bolsistas7 e três mestrandos que durante seu desenvolvimento acumularam mais de 12 horas de gravações, dois relatórios de iniciação científica, tendo sido percorridos mais de 4000km nas visitas aos municípios onde localizam os campi pesquisados.
A instituição em questão, em 2011, possuía 17 campi com uma oferta diversificada que totalizava 16.431 alunos matriculados (BRASIL, 2011). Hoje, com 20 campi, atinge aproximadamente 20 mil matrículas, no entanto, a distribuição das matrículas e das vagas entre os campi e as modalidades é muito diversa. Os dados de novas vagas estimados em 2015 para oferta em 2016 reiteram essas assimetrias e indicam que a consolidação da oferta do ensino médio integrado à educação profissional não está garantida, conforme observar na tabela 01.
6 Registro na Pró-Reitoria de pesquisa pós-graduação da UFES - nº 4198/2013 e 6068/2015 - Registro na Plataforma Brasil - nº 14819813.3.3001.5072 - Aprovada pela CEP-UFES em 01/07/2013 - Financiado pelo PIIC 2013-2014/ 2015-2016.
7 Agradecemos a colaboração das bolsistas de IC Caroline de Abreu Lourenço e Daniele da Silva Pereira
Tabela 1 – Oferta de vagas no Ensino Médio Integrado por campi do IFES (2016)8
CAMPI | VAGAS | CAMPI | VAGAS |
Alegre | 226 | Aracruz | 120 |
Cachoeiro de Itapemirim | 80 | Cariacica | 220 |
Centro-Serrano | 120 | Colatina | 144 |
Guarapari | 104 | Ibatiba | 144 |
Itapina | 180 | Linhares | 128 |
Montanha | 80 | Nova Venécia | 144 |
Piúma | 108 | Santa Tereza | 180 |
São Mateus | 64 | Venda Nova do Imigrante | 180 |
Serra | 0 | Viana | 80 |
Vila Velha | 0 | Vitória | 200 |
Total: 2502 |
Fonte: Instituto Federal do Espírito Santo (2016).
Vale lembrar que a função social da rede federal, ainda, se alicerça juridicamente e politicamente na oferta prioritária do ensino médio integrado à educação profissional técnica de nível médio. Outras redes também oferecem essa forma curricular, mas não possuem, na sua maioria, as mesmas condições financeiras e estruturais da rede dos IFs.
Nesta pesquisa partimos do pressuposto de que o EM integrado à EPTNM é o formato pedagógico mais adequado para formação integral dos educandos e que a rede federal está mais vocacionada para esta oferta. Não obstante, consideramos que a materialização dessa oferta é complexa e problemática, razão pela qual emerge essa pesquisa comprometida com a viabilização de um currículo politécnico que busca uma formação omnilateral.
Ou seja, apesar das dificuldades implicadas no desenvolvimento da integração curricular e dos riscos de justaposição e fragmentação, essa forma curricular possibilita o fortalecimento da reciprocidade entre os saberes escolares e pode propiciar uma formação mais ampla aos educandos. Além de conectá-los à realidade do mundo do trabalho. Ao ensejar a vinculação entre saberes profissionais e conteúdos escolares teóricos e práticos, estimulam uma fundamentação científica e humanista articulada. Esse tipo de currículo permite uma interação orgânica dos saberes articulados como totalidade histórica engendrada na práxis humana.
Longe de ser uma proposta ou prática curricular que atenda plenamente a uma educação emancipatória, esse modelo representa a possibilidade mais efetiva de enfrentamento do dualismo histórico que preconiza uma formação
8 Os campi de Vila Velha e de Serra passaram a ofertar cerca de 40 vagas cada em 2017.
humana não unilateral subserviente à divisão social e técnica do trabalho na sociedade capitalista. No entanto, muitas são as questões estruturais, pedagógicas e ideológicas que envolvem o sucesso da integração, bem como sua generalização e consolidação como política pública.
Bremer e Kuenzer (2012), afirmam que a implantação do ensino médio integrado apresenta numerosos “desafios existentes para que a proposta conceitual seja de fato materializada na prática escolar” (p. 01). Silva (2011, p.03) aponta que ainda existem limitações presentes no processo de ensino “derivados, em parte, de interpretações divergentes do que seja integração curricular e da multiplicidade de significados atribuídos à ideia de trabalho como princípio educativo”.
Os Institutos Federais, pelas suas características de educação pública de qualidade, representam um lócus privilegiado para implementação e difusão dessa oferta integrada de ensino médio e técnico, razão pela qual esse tipo de estabelecimento tornou-se objeto dessa pesquisa que, fundamentada no materialismo histórico-dialético, assumiu o caráter de pesquisa-ação, especialmente em razão do engajamento dos pesquisadores e autores deste trabalho. Pois a intenção não foi de contemplar e diagnosticar a situação, mas de intervir por meio do diálogo com os profissionais da rede federal, a fim de transformar a realidade educativa.
A construção teórica-metodológica que orienta o processo de pesquisa em tela, parte da concepção de que a ciência é uma produção histórica dos homens inseridos em determinada forma social e de que os homens, ao produzirem os seus meios de sobrevivência e intervirem sobre a natureza, produzem a si e toda a humanidade. Tendo em vista o compromisso com a construção de uma educação politécnica buscou-se, neste estudo, realizar uma investigação referenciada na perspectiva da pesquisa-ação com vistas ao fortalecimento do ensino médio integrado no IFES.
Esse campo de pesquisa, tomado como aspecto do real, estrutura-se como síntese de múltiplas determinações, como materialidade complexa e ponto de partida e de chegada da totalidade histórica e social (CIAVATTA, 2014). Nesse sentido, buscou-se captar as categorias de estudo nas suas relações com a totalidade e com sua concretude historicamente construída, sem perder de vista determinações, tensões e contradições que nela residem:
Cabe precisar o sentido das “determinações”: Determinações são traços pertinentes aos elementos constitutivos da realidade [...] Por isso o conhecimento concreto do objeto é o conhecimento de suas múltiplas determinações – tanto mais se reproduzem as determinações de um objeto, tanto mais o pensamento reproduz a sua riqueza (concreção) real (NETTO, 2011, p. 45).
Para tanto, consideramos o materialismo histórico-dialético mais que um método de investigação e de leitura da realidade. Nesse sentido, intencionamos colocar o método de ação para o pesquisador, tendo em vista o compromisso com a transformação da realidade, razão pela qual elegemos a pesquisa-ação como forma privilegiada de investigação. Essa forma de pesquisa se mostra ainda mais coerente com o materialismo histórico-dialético na medida em que se propõe a superar a visão dicotômica sujeito-objeto, propondo aos envolvidos o compromisso ético-político de transformação da realidade pesquisada.
De acordo com Barbier (2007), a pesquisa-ação pressupõe uma mudança de atitude no que se refere a postura acadêmica, levando a uma mudança de atitude filosófica do pesquisador com o mundo. Deste modo, a pesquisa-ação adota um encaminhamento de servir de instrumento de mudança social (BARBIER, 2007, p. 53), possuindo, segundo Thiollent (2003), potencial gerador de conhecimento sobre pesquisador e pesquisados, que figuram juntos como protagonistas do processo de pesquisa na tentativa de esclarecer um problema, com acompanhamento contínuo das partes envolvidas, pretendendo aumentar seu conhecimento sobre esse problema de modo a produzir mudanças.
Para Tripp (2005), a pesquisa-ação configura-se em tentativa permanente e sistematizada de aprimoramento da prática. Essencialmente tem como finalidade o desenvolvimento do sujeito pesquisador a fim de aprimorar sua prática. Por se pretender incidir sobre a prática e envolver os sujeitos da pesquisa, não se deve abrir mão dos rigores teóricos e metodológicos. Ao contrário, recorre-se a esses mesmos elementos de exigência científica para informar e incidir sobre a prática que está em movimento, pois para se produzir a ação ao mesmo tempo em que se pesquisa, e pesquisar ao mesmo tempo em se que age, é necessário manter postura crítica e sistemática.
Zeichner e Diniz-Pereira (2005) afirmam que a pesquisa-ação tem potencial para trazer uma contribuição genuína à melhoria da prática profissional e ao bem
comum, se reforçados os elos da pesquisa-ação com as lutas por justiça social, política e econômica, contendo assim potencial transformador. No caso desta pesquisa, esse potencial transformador concentra-se justamente em pôr em movimento e em reflexão os seus participantes. Na ação-reflexão-transformação de sua própria prática, os educadores tornam-se os agentes genuínos da transformação social. Neste caso, os sujeitos da pesquisa, ao incorporem o conhecimento numa transformação de baixo para cima, podem conciliar os interesses em disputa, potencializando a transformação: fortalecimento do ensino médio integrado no IFES. Assim, o materialismo histórico-dialético como referencial teórico, que afasta metodologias situadas na perspectiva contemplativa, dialoga com a metodologia da pesquisa-ação, como possibilidade metodológica que compromete o pesquisador no processo de produção de conhecimento e na transformação da realidade.
Depois de uma fase de estudos e primeiros contatos com o IFES, iniciou- se, nos primeiros meses de 2013, um trabalho de mobilização e organização dos grupos focais em cada curso técnico tomando como base o campus Vitória nos cursos técnicos em Eletrotécnica e em Edificações.
No segundo semestre de 2013, em função de demanda de formação apresentada pelo campus Vitória, foi organizado um seminário de formação pedagógica sobre o tema da integração curricular que contou com a participação de mais de 300 professores e gestores do IFES que fortaleceu o processo de pesquisa possibilitando produção de material de formação sobre o tema.
No ano de 2014, as ações da pesquisa foram ampliadas para o campus Venda Nova do Imigrante, onde foi constituído um grupo focal com docentes dos cursos técnicos integrados em Administração e em Agroindústria. Nesse mesmo ano, as atividades da pesquisa também foram iniciadas em São Mateus onde também foi composto um grupo com os docentes dos cursos técnicos integrados em Eletrotécnica e em Mecânica.
A partir de 2015, a pedido dos campi Cariacica e Barra de São Francisco iniciamos o trabalho de formação e de pesquisa também nesses campi. Finalmente no ano de 2016, o trabalho de pesquisa foi ampliado para os campi de Guarapari e Colatina.
As reuniões realizadas nos campi e os questionamentos decorrentes foram fundamentais para a construção do entendimento do movimento do real da
implantação da integração curricular a partir das concepções e avaliações da integração realizadas por parte dos participantes. Foi fundamental ainda para discutirmos o processo de pesquisa a partir das demandas dos participantes e das tentativas de intervenção produzidas. No processo de pesquisa foram realizadas 07 Reuniões em Vitória, 06 em São Mateus, 04 em Venda Nova do Imigrante, 03 em barra de são Francisco, 02 em Cariacica e 01 em Guarapari.
Iniciamos o trabalho de pesquisa-ação articulando com a equipe pedagógica e coordenação dos cursos em cada Campi e posteriormente solicitamos autorização para a pesquisa aos diretores dos campi de Vitória, Venda Nova do Imigrante, Colatina, São Mateus e Guarapari para dar início a pesquisa. Além disso, no decorrer da pesquisa recebemos o convite dos diretores dos campi de Barra de São Francisco e Cariacica.
Além das reuniões com os grupos focais realizamos ações de formação a pedido dos campi. Promovemos um seminário aberto no campus Vitória em outubro de 2013 (convidados Marise Ramos, Dante Moura, Suzana Bournier, Carlos Artexes Simões e Maria Ciavatta) e aplicação de formulário sobre integração dos sujeitos e disciplinas. Também realizamos seminários internos de formação pedagógica sobre a integração em São Mateus (2014), Venda Nova do Imigrante (2014) e Guarapari (2016). Houve a difusão do conhecimento sobre o tema com filmagem das palestras (you tube) e indicações de literatura específica com transcrição das palestras e publicação de dossiê no caderno de pesquisa do PPGE-UFES.
Durante as reuniões dos grupos focais compostos em cada campus, foram levantadas várias questões que buscavam compreender os processos de construção da integração. Os relatos coletados nos encontros expressam diversas concepções sobre a educação integral, a função social da integração e as dificuldades encontradas para a implementação da integração nos cursos ofertados pela instituição.
Ao analisarmos o funcionamento da integração curricular com base na aplicação dos formulários e dos relatos, constatamos que o conhecimento recíproco dos profissionais da área técnica e propedêutica é frágil. Segundo as falas dos docentes, isso tem a ver com a rotatividade de professores do núcleo básico que atuam em vários lugares ao mesmo tempo, o que dificulta a participação, pois não possuem foco no curso em que atuam, como declara um
docente. Ou seja, quando se troca muito de professores na área propedêutica ou se atua em vários cursos, a integração entre as pessoas fica prejudicada, e o ensino integrado fica fragilizado.
Não sei nem quem é. Por que a gente tem alguns problemas aqui que em algumas disciplinas muda quatro vezes o professor de matemática durante o ano [...], é meio complicado a gente tentar fazer uma integração se as pessoas estão atuando em muitos locais. Então eles nunca estão aqui pra discutir por que tem as suas atribuições em outros locais [...].
Além disso, a configuração híbrida do IFES, na qual os profissionais atuam em cursos muito diversos (da pós-graduação aos cursos qualificação, passando pela graduação e pelos cursos técnicos, além da pesquisa e da extensão) colabora com um possível movimento de descontinuidade na convivência e na continuidade dos trabalhos desenvolvidos no EM integrado à EPTNM.
Embora as matrizes curriculares dos planos pedagógicos dos cursos sejam documentos acessíveis nos quais estão explicitados os conteúdos de ensino dos cursos técnicos integrados, segundo as respostas dos formulários, nem todos os docentes informam saber que conteúdos os seus respectivos alunos estão aprendendo numa determinada turma/curso/ano/série. Infere-se, com base nos relatos e informações dos formulários que há uma tendência do professor se preocupar apenas com o seu fazer individual, compartilhando pouco suas sequências didáticas com os demais docentes que ensinam nas mesmas turmas.
De outro lado, para a administração, a oferta do EM integrado à EPTNM exige uma postura administrativa diferente que instaure práticas mais coletivas e colaborativas no sentido de integrar e mobilizar a todos em torno do mesmo projeto educativo, indagando e avaliando permanentemente como o currículo se desenvolve na prática.
Na ausência de uma gestão comprometida com a integração, os docentes vendo as dificuldades, ficam isolados em seus esforços contra e a favor da integração. Deste modo, os docentes se esforçam e apresentam, por meio de suas visões e de suas práticas, o valor que conferem à integração.
Para revelar estes aspectos, primeiro buscamos trazer quais eram as concepções dos professores sobre a integração e como enxergavam esse tema.
A integração não significa ensino médio integrado ao ensino técnico. Integração acontecia quando você tinha um mesmo cientista que faz matemática, música, escrevia livros, etc. Hoje em dia a integração acontece nas universidades dos Estados Unidos e Europa com pessoas que aprendem desde a física até cozinhar. Isso é integração. (Grupo focal 01 - Vitória / Eletrotécnica - 13/03/2013).
A fala acima, proferida na reunião registrada na imagem 01, reflete uma compreensão de integração em uma perspectiva de formação omnilateral; ou seja, formar um sujeito com uma amplitude de saberes.
Imagem 1 – Grupo focal realizado no campus Vitória/Cursos de Eletrotécnica
Fonte: Acervo fotográfico do grupo de pesquisa. (13\03\2013)
Para os sujeitos da pesquisa, a prática da integração surge ainda como uma possibilidade para facilitar a compreensão dos alunos sobre temas das disciplinas, como observamos no relato que segue:
Trabalhei com os alunos no ensino médio esse bimestre a integração das etapas do projeto arquitetônico inseridas na química, na física, na matemática, no português então eles enxergavam o que tinha de química quando eu faço um projeto arquitetônico e o que tinha de física, e eles conseguiam enxergar bastante coisa até mais que eu (Grupo focal 02 - Vitória / Edificações - 27/03/2014).
Para promover a integração, os professores por meio de suas aulas vão estimulando os alunos para que este faça mentalmente a relação entre os conteúdos aprendidos de todas as outras disciplinas, produzindo uma integração
a ser articulada pelos próprios alunos o que não assegura que essa articulação seja feita da forma esperada.
Ainda nesse sentido, um docente afirmou que mesmo ministrando disciplinas em separado, as coisas se juntam no final: “A gente deixa para a cabeça do aluno fazer o processo inverso, de juntar. Esse juntar aí é que pra mim é integrar. É algo bem amplo” (Grupo focal 01 - Vitória / Eletrotécnica - 3/12/2014).
Paradoxalmente os docentes identificam que a “desarticulação” dos saberes traz problemas para apropriação do conhecimento. Alguns relatos indicam que os alunos após formados, quando se inserem no mercado de trabalho, possuem dificuldades em compreender determinado processo no seu todo e alguns até voltam para pedir orientações.
O aluno ele é formado e um ou dois meses depois ele volta pra pedir que a gente faça alguma coisa que ele aprendeu e que era básico, dizendo que não sabe fazer (Grupo focal 01- Vitória / Eletrotécnica – 03/12/2014).
Isso mostra o quanto a falta de integração entre os conteúdos pode gerar lacunas na formação dos alunos, pois se espera que eles façam as interconexões entre as disciplinas escolares por conta própria. Durante a pesquisa surgiram falas que evidenciaram a importância da integração da vida escolar com a vida profissional e pessoal dos alunos. Muitos professores afirmaram que apesar da importância das disciplinas previstas na matriz curricular, havia outras vivências e experiências que o instituto garantia aos alunos e que se constituíam em saberes a serem levados para a vida.
As visões sobre a integração curricular, manifestas nos grupos focais, informam as muitas dificuldades de compreensão dos conceitos relativos a esse tema tão debatido no âmbito da produção acadêmica. Trata-se do conceito de trabalho no sentido ontológico.
Quando eu falei no conselho de classe da concepção ontológica do trabalho né, que é.... ai os meninos riram né. - Que diabo de ontológica é isso? A importância que esse fazer manual também tem na vida do sujeito. O sujeito vai ser médico e fica fazendo bolinho de assar? Mas isso tem uma importância na vida dele enquanto sujeito, enquanto cidadão, essa é a concepção. O ser
humano se dá pelo trabalho (Grupo focal 03 - Venda Nova - 23/03/2013).
Alguns acreditam que a validade da integração passa por outro caminho que tem como prioridade formar o cidadão, formado em sua plenitude o que ultrapassa uma formação meramente técnica:
O objetivo nosso aqui não é desenvolver o menino aqui pro mercado de trabalho, é desenvolver o cidadão. Se ele for pro mercado de trabalho beleza, se ele não for, que ele seja um cidadão... (Grupo Focal 04 - São Mateus -01/12/2014).
Imagem 2 – Grupo focal realizado no campus São Mateus (2014)
Fonte: Acervo fotográfico do grupo de pesquisa. 1\12\2014)
Ganha relevância na avaliação da integração a gestão da integração. Para os sujeitos da pesquisa, presentes na reunião registrada pela imagem 02, esse aspecto pode interferir no processo de integração curricular favorecendo ou não a integração das pessoas, dos tempos, dos espaços e dos conteúdos de ensino na instituição.
Como se sabe, a oferta de cursos técnicos integrados está amparada tanto na Constituição Federal, na LDB, nas Diretrizes Curriculares Nacionais, quanto, na Lei que cria os IFs. De modo mais particular, do ponto de vista local também há uma série de prescrições apresentadas em plano de ensino, regimento e estatuto da instituição. Mas, segundo os relatos, em nenhum lugar há orientações mais claras de como fazer a integração, como ela deve ser gerida, incentivada e quais procedimentos a gestão deve adotar para que ela seja fortalecida. Ou seja, não está explicitado, nem com base nas experiências nem há diretivas mais
objetivas sobre quais procedimentos adotar para viabilizar no dia a dia o EM integrado à EPTNM.
Além da falta de orientações sobre o como da fazer da integração, os relatos indicam situações que dificultam a sua viabilidade, de modo a fazer convergir as pessoas, os tempos, os espaços e os conteúdos. O primeiro obstáculo refere-se a não saberem integrar os conteúdos de diferentes campos do saber escolar. Segundo uma docente do curso de edificações que afirma “A gente tem que aprender a integrar... eu não sei integrar com a educação física, por exemplo...isso pode acontecer com outras disciplinas também”.
Em paralelo, ou outro docente, mais antigo da instituição, afirma que
“na época da escola técnica, só havia oferta de cursos técnicos e todos os professores e alunos estavam envolvidos como docentes e ou discentes de cursos técnico – profissionalizante de 2º grau. Hoje trabalhamos com vários tipos de cursos diferentes” (Grupo focal 02 - Vitória / Edificações – 21/11/2013).
Uma reclamação constante dos professores é a falta de oportunidade de encontros entre eles: “a gente só tem esses encontros no conselho de classe que é só nota e falta, nota e falta, a parte do conteúdo a instituição não propicia esses momentos de encontro” (Grupo focal 01 – Vitória / Eletrotécnica - 13/03/2013).
Ou seja, a escassez de encontros impede maior integração e desse modo fica difícil fazer confluir os tempos, os espaços e os conteúdos de ensino no sentido da construção coletiva de iniciativas que levam à interdisciplinaridade e à integração. Por outro lado, a administração não tem mobilizado de maneira eficaz os docentes neste sentido, de modo que cada um vai desenvolvendo o seu conteúdo sem necessariamente relacionar-se com os colegas. Faz-se sobreposição de conteúdos e as avaliações demandam cada vez mais dos alunos que precisam saber administrar 14 disciplinas por ano/série com provas e atividades desconectadas entre si.
A tendência que percebemos nos relatos é que a operacionalização da matriz curricular integrada combina dois processos: a fragmentação e a justaposição. A fragmentação tem a ver com os tempos, os conteúdos, as pessoas e os espaços. Isso ocorre quando cada docente, por sua formação e por sua rotina de trabalho, cuida do que ensina fazendo a partir de uma sequência didática que se enquadra nos limites de tempos e espaços. A justaposição tem
mais a ver com os conteúdos e avaliações que se empilham, se juntam na cabeça dos alunos, mas não se articulam se não pelo esforço dos discentes em fazer as relações entre os diversos saberes que compõem a totalidade da realidade.
A própria administração dos campi também está multifocada tendo que administrar um grande número de alunos e diversos tipos de curso. Os gestores e docentes se perguntam o que fazer para criar estratégias de trabalho de gestão que fortaleçam os cursos integrados. Se a instituição tornou-se uma entidade pública híbrida, com atribuições em todos os níveis e que atende a muitas demandas diferenciadas, a coordenação e corpo pedagógico, em conjunto com os docentes, precisam traçar estratégias para dar conta desse processo.
Além disso é notável a necessidade de valorização das práticas integradoras já mobilizadas por alguns docentes, reconhecendo a importância das iniciativas particulares como forma de romper o isolamento assim como a necessidade da realização de pesquisas que se propõem a promover a formação para produção da integração.
Por demanda dos participantes dos grupos focais foram emergindo solicitações de intervenção para realização da integração. Ao longo das reuniões os participantes, reconhecendo os limites e a necessidade de avançar em direção a uma prática mais integrada, foram demandando ações mais concretas chegando a indicarem algumas propostas, ainda que difusas: “Eu pensei em a gente fazer um seminário. Dois dias... Porque tem muita coisa” (Grupo Focal 04 - São Mateus – 29/07/2014).
Assim, no ano de 2015 o campus São Mateus, em colaboração com a pesquisa, foi realizado o evento “Formação Pedagógica 2015: Diálogos sobre a Educação Profissional e Tecnológica”, como objetivos proporcionar espaços de formação continuada com vistas a qualificar o ensino ofertado pelo campus. O evento realizado em dois dias teve a participação de uma média de cem pessoas em cada dia e envolvendo público externo e interno do município onde se localiza o campus.
Apesar de verificarmos inúmeras práticas de integração já realizadas pelos professores dos diversos campi, muitos posicionamentos indicavam a necessidade de mudanças na gestão para fazer evoluir a integração. Os docentes passaram a demandar da pesquisa uma atuação mais diretiva e não apenas formativa, de modo a trazer uma proposta que viabilizasse no ensino e no
currículo praticado avanços na integração. Tais posicionamentos se repetiram na realização das reuniões dos grupos focais nos diversos campi com destaque para os campi São Mateus e Vitória onde a pesquisa-ação se desenvolveu de modo mais participativo e por mais tempo, com mais reuniões e de forma mais orgânica. Majoritariamente os grupos focais afirmavam que: mesmo que a integração pudesse se dar na cabeça do aluno ou que existissem iniciativas pontuais de trabalho interdisciplinar ou mesmo que as matrizes curriculares previssem o ensino uma ou outra disciplina denominada como projeto integrador, isso era insuficiente. Pois, não havia uma proposta mais elaborada e mais sistêmica para fazer a integração e que fosse capaz de tirá-los do comodismo de trabalhar de
modo isolado:
Eu compreendo a angústia que nos é causada por não saber fazer. A gente não sabe fazer e o comodismo do lugar quentinho que a gente já é acostumado é difícil tirar a gente dali. Eu compreendo. Mas se tiver como fazer, tem que fazer (risos) (Grupo Focal 04 - São Mateus – 01/12/2014).
Acho que pra funcionar teria que ter alguém cuidando dessa integração. (Grupo focal 01 - Vitória / Eletrotécnica – 03/12/2014).
Vamos fazer um projeto para isso...nós precisamos que haja a integração dos conteúdos (Grupo focal 01 - Vitória / Eletrotécnica - 03/12/2013).
Assim, a partir da identificação da demanda elaboramos uma proposta de intervenção que consistia em um projeto de integração. Tal movimento da pesquisa nos colocaria numa nova situação de fazer não apenas uma pesquisa- ação formação, mas uma pesquisa intervenção.
O passo seguinte foi a apresentação aos participantes de um projeto que não se propôs em momento algum a ser uma receita para dar conta da integração do ensino médio com o ensino técnico no IFES. Com base nos elementos trazidos pela pesquisa foi elaborada uma dinâmica colaborativa para realização da integração que continham diretrizes gerais resumidas em 10 ações que visavam fazer a gestão organizar e fomentar ações de integração no sentido de dar mais sistematicidade, às inciativas concretas de integração, colocando alunos e professores como protagonistas dessas experiências de ensino e aprendizagem.
Em síntese, a proposta consistia ações necessárias à integração e que deveriam nortear a experimentação da integração através de atividades a serem
desenvolvidas em equipes compostas por docentes de diversas áreas a serem coordenadas pelo setor pedagógico de cada campus:
- Fazer diagnóstico e avaliação da integração curricular no campus e no curso integrado no contexto dos indicadores do curso (candidato- vaga, fluxo escolar - retenção escolar, nº de disciplinas e nº de avaliações);
- Realizar estudos e debates sobre as bases teóricas e legais da integração curricular com aprofundamento de estudos sobre os conceitos de: - Currículo como Totalidade Orgânica / - Trabalho como princípio Educativo; - Pesquisa como princípio pedagógico / Eixos curriculares (Cultura, Trabalho, Ciência, Tecnologia, Sociedade e Meio Ambiente); - Interdisciplinaridade; - Temas Problematizadores e globalizantes / Nexo Integrador;
- Sortear e montar equipes interdisciplinares com 04 professores (02 da educação geral e 02 da educação técnica) que atuam nas mesmas turmas e nos mesmos anos-séries dos mesmos cursos;
- Escolher e elaborar proposta de atividade de integração - Envolver as disciplinas e professores envolvidos (sorteados), pode ser: - Atividade de ensino (Desenvolvimento de processos e ou Geração de produtos a serem desenvolvidos com a participação dos alunos - Projeto de pesquisa / Projeto de extensão - Visitas técnicas / Relato de experiências;
- Elaborar plano de trabalho com cronograma, equipe de trabalho (professores e alunos), material de consumo e recursos financeiros e logísticos necessários;
- Apresentar as propostas de trabalho das equipes para 2015 para avaliação e discussão no grupo com todos os docentes da educação geral (propedêutica) e da educação específica (técnica) e gestores do IFES;
- Providenciar recursos e dar início as atividades integradoras propostas; aprofundar os estudos em sala de aula dos conteúdos das disciplina na sua relação com o tema, eixo e ou nexo integrador;
- Realizar atividade de integração, produzir relatório e realizar coletivamente avaliação das 04 disciplinas verificando a aprendizagem das turmas participantes;
- Realizar exposição, seminário, feira, apresentação de pôster e relatos das atividades de integração;
Na essência, a proposta buscava criar a oportunidade para que equipes compostas aleatoriamente por docentes da base nacional comum, da parte diversificada e do ensino técnico realizassem, em uma turma, uma vez por ano,
um projeto integrador que deveria permitir aos alunos a participação em atividades comuns de ensino, pesquisa ou extensão.
Uma vez implementada a proposta em cada série-curso-ano de cada campus dever-se-ia incorporar todos os docentes os quais deveriam se automobilizar com ajuda das coordenadorias, setores pedagógicos e de apoio ao aluno bem como diretoria de extensão para viabilizar os projetos interdisciplinares/integradores, as visitas técnicas, os projetos de pesquisa e ou de extensão. Para tanto seria necessário propiciar espaços tempos no cotidiano dos campi para integração das pessoas e dar suporte aos projetos que deveriam emergir das equipes que seriam montadas por sorteio.
No entanto, logo na apresentação da proposta nos deparamos com as primeiras tensões do processo de pesquisa-ação que sinalizaram que não bastaria existir uma proposta considerada razoável e exequível de integração. Era preciso que os professores e gestores se envolvessem no aprofundamento teórico sobre os fundamentos da integração curricular, pois a medida que o prosseguimento da pesquisa passou a exigir o protagonismo desses profissionais nos grupos focais a integração necessária entre alguns indivíduos se mostrou pouco promissora e as agendas de reunião começaram a ser reduzida.
Assim, apenas nos campi Vitória e São Mateus o trabalho evoluiu para a montagem das equipes (Ação 3), mas o critério de composição das equipes foi contestado, demonstrando os limites de integração entre as pessoas, e em alguns casos uma recusa à proposta, o que de certo modo refletia a dificuldade dos participantes em pensar o trabalho com profissionais de outras áreas.
então eu penso que se alguns desses problemas que nós já identificamos não poderiam guiar essa construção das equipes invés do sorteio, por que o sorteio eu penso que talvez a gente corresse mais esse risco...então se a gente pudesse seguir as afinidades talvez o efeito fosse mais rápido mais sensível nesse primeiro momento. (Grupo focal 02 - Vitória / Edificações - 13/11/2014).
Outro elemento nos chamou a atenção foi a inquietação de alguns participantes diante da possibilidade de ter que abrir mão de parte da sequência didática, da carga horária e dos conteúdos de suas próprias matérias de ensino para a realização do projeto de integração.
eu na minha aula vou ter que estar voltado para esse projeto, falando desse projeto, desenvolvendo esse projeto naquele determinado período? [...] tá correto, agora a minha pergunta é: eu sou professor de química do primeiro ano, no nosso curso de edificações...nós temos duas aulas, a gente já corre e sofre pra dar pra conseguir contemplar a disciplina né do primeiro período, isso foi pensado? [...] minha preocupação é essa de não conseguir fechar o conteúdo (Grupo focal 02
- Vitória / Edificações - 13/11/2014).
A preocupação expressa na fala carrega uma tradição historicamente construída que se preocupa muito com o cumprimento dos conteúdos e menos com a qualidade com que são aprendidos. Refletem ainda uma dificuldade de compreensão de que na integração os conteúdos continuariam a ser ensinados, mas numa forma diferente da que vinha sendo realizada habitualmente.
Outro elemento que provocou tensões no grupo e que demonstrou o quanto a organização hierarquizada dos saberes configura-se como uma barreira a ser transposta no processo de integração foi a demanda de mobilização de uma série de conceitos que diferiam da forma como estes estavam organizados nas ementas das disciplinas, pressupondo quebrar a sequência e a forma com a qual os participantes estavam acostumados trabalhar.
Após a montagem dos grupos, a etapa seguinte consistiria no planejamento da atividade de integração (Ações 4 e 5) que deveria ser supervisionada e orientada pela equipe pedagógica dos campi. Após a finalização dessa atividade, retornaríamos as reuniões do grupo de pesquisa para que as equipes socializassem (Ação 6).
Nesse momento surgiram mais dificuldades, pois se antes nosso trabalho nos campi era demandada pelos participantes, a partir desse momento o retorno passou a não ocorrer da mesma forma. Tanto os docentes quanto a equipe pedagógica, quando solicitados a elaborarem as atividades (o que pressupunha rever os planejamentos das disciplinas, fazer o reposicionamento de conteúdos e alterações em sequências didáticas pré-estabelecidas, ou seja, o movimento de fazer aquilo que não estava dentro de sua rotina) afastaram-se do processo de pesquisa e em alguns campi chegaram a esvaziá-lo.
Nesse contexto optamos pela interrupção da pesquisa e propomos uma avaliação do processo e dos rumos da mesma, dado que para a pesquisa-ação é fundamental pesquisadores e sujeitos participem de maneira equiparada. Buscamos realizar reuniões com essa finalidade e, para nossa surpresa, permanecia a vontade de uma intervenção sobre a questão da integração, no
entanto permanecia a resistência em abrir mão do que já estava planejado ou do que já era habitual no cotidiano dos docentes e pedagogos.
Ao final dessa etapa, consideramos que a ansiedade de encontrar uma solução que auxiliasse na ruptura de uma cultura de desintegração praticada no ensino médio integrado, natural entre aqueles que almejam a transformação dessa modalidade a serviço de uma formação mais humana e integral, nos conduziu ao equívoco de não avaliarmos que a resistência praticada pelos participantes era o reflexo de uma tradição de desintegração inscrita na história escolar e na vida acadêmica que cada um daqueles sujeitos carregava.
Para sistematizar os resultados da pesquisa elencamos os seguintes aspectos: O pressuposto da pesquisa, o diagnóstico gerado pela pesquisa, os resultados da pesquisa-ação-formação, os resultados pesquisa-ação-intervenção e a produção acadêmica.
Pressuposto da pesquisa - Relação efetiva entre frágil formação pedagógica do corpo docente e improvisação da prática de integração e consequente tendência de queda ou restrição da oferta de matrículas do ensino médio integrado: integração X verticalização (heterogeneidade para cima e para baixo – Ver Lima 2016); e falta de identidade docente.
Diagnóstico: Falta de sintonia, de sinergia e de conhecimento do andamento do ensino desenvolvido pelos outros docentes de outras disciplinas com as mesmas turmas dos cursos técnicos integrados; dispersão, pouca visibilidade e valorização das experiências de integração das disciplinas dos cursos técnicos integrados; e prática de ensino fragmentada e processo de aprendizagem em justaposição (empilhamento de conteúdos/sobrecarga avaliações).
Pesquisa-ação-formação - Mobilização e Discussão dos grupos focais nos campi de Vitória, Venda Nova do Imigrante, Colatina, São Mateus, Barra de São Francisco, Cariacica e Guarapari nos cursos de Agroindústria, Administração, Eletrotécnica, Mecânica e Edificações; debate sobre a oferta de matrículas do ensino médio integrado: tendências, objetivos, dificuldades e potencialidades; problematização sobre a integração dos docentes, dos conteúdos, dos espaços e do tempos dos cursos técnicos integrados; ampla aceitação e concordância sobre necessidade da formação, mas pouca continuidade do processo de debate sobre a integração curricular; desmobilização dos grupos focais nos campi Venda Nova
do Imigrante e Colatina; e Relativo envolvimento dos campi de São Mateus e Vitória.
Pesquisa-ação-intervenção - Demanda dos grupos focais pela elaboração de uma metodologia de integração curricular abrangente; projeto de intervenção: montar semestral ou anualmente várias equipes aleatórias (por sorteio) compostas de 02 a 04 docentes e disciplinas pertencentes a um determinado curso e turma a fim de realizar de modo planejado atividades integradas (aula de campo, pesquisa, extensão, visitas técnicas), abrangendo ensino-aprendizagem- avaliação. Aceitação inicial nos campi de Vitória, Venda Nova do Imigrante, Colatina e São Mateus.
Produção acadêmica - Promoção de várias reuniões para debater a integração (questões legais, fundamentação e diagnóstico); Evidência das práticas integradoras e reconhecimento dos docentes da complexidade da integração com mobilização incipiente dos professores do ensino médio e técnico em torno do tema; Discussão da relação entre as demandas e desempenho discentes com a falta de integração com destaque das demandas escolares sobre a gestão dos cursos e campi; e apresentação de trabalhos em eventos (Anped, Histedbr, Rede Estrado, Colóquio de Natal-IFRN); Publicação de 02 artigos em revista B2 (Boletim Senac e Revista Brasileira-Argentina do IFBA).
O desenvolvimento da pesquisa realizada no IFES foi atravessado por várias questões que impactaram a capacidade da investigação para fortalecer o processo de integração nos cursos ofertados. Tais questões limitaram, mas não impediram reflexos positivos do processo de pesquisa-formação que pautou nas unidades de ensino o tema da integração, contribuindo para a superação dos processos de fragmentação e justaposição curricular.
Destaca-se a importância do comprometimento da equipe de gestão pedagógica de cada campus no desenvolvimento da pesquisa-ação. O trabalho dessas equipes foi fundamental na mobilização dos docentes e da comunidade escolar em geral em torno do tema. Nos campi em que houve um enfraquecimento do trabalho desse setor, a pesquisa perdeu força e viabilidade.
A grande limitação da pesquisa-ação refere-se as dificuldades que os docentes manifestaram no momento em que tinham que mudar a sua rotina curricular, bem como em trabalhar com os outros colegas segundo a proposta de formação das equipes interdisciplinares, realizada por sorteio.
Ou seja, mesmo relatando seu desconhecimento sobre como integrar, ou suas experiências exitosas, ou, ainda, admitindo o isolamento de sua ação pedagógica, os docentes apresentaram dificuldades em realizar o projeto de integração da pesquisa que eles mesmos demandaram.
Desse modo, no momento em que a participação na pesquisa-formação passou a exigir alterações naquilo que habitualmente costumavam fazer, os docentes exerceram uma resistência muda, demonstrando que não basta querer integrar ou saber seus fundamentos. Permanece na prática o isolamento no processo de trabalho docente que reforça a fragmentação do ensino.
A descontinuidade dos encontros também se colocou como problema, acrescido da rotatividade dos presentes nas reuniões, o que se deve em parte ao maior prestígio de outras atividades acadêmicas vinculadas a demais modalidades de ensino (graduação, pós-graduação e pronatec), gerando dificuldades no processo de mobilização e envolvimento dos docentes.
Entende-se que muitos são os caminhos a serem percorridos para a construção da verdadeira integração do EM à EPTNM. No entanto, os desafios encontrados não constituem impeditivo para o alcance dessa meta nem mesmo depõem contra a pesquisa-ação e ou contra a perspectiva teórica pautada no materialismo histórico-dialético. Ao contrário, a situação em tela fornece pistas para a compreensão da viabilidade de um projeto de integração pautado no comprometimento de todos envolvidos.
Apesar dos méritos intrínsecos da proposta teórico-metodológica que se constituiu na relação da pesquisa-ação, com o compromisso ético-político de transformação da realidade (fortalecimento da integração curricular), a efetivação do ensino médio integrado demanda (no interior da realidade estudada): reconstrução das identidades docente e institucional; valorização do ensino médio integrado como modalidade estruturante dos campi dos IFs; protagonismo de docentes e discentes na integração curricular; e, compromisso das gestões em promover a formação permanente a fim de superar as dicotomias e distanciamentos entre as pessoas, disciplinas, espaços e tempos escolares.
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Recebido em: 23 de outubro de 2018. Aprovado em: 18 de março de 2018. Publicado em: 13 de junho de 2018.
Luiz Armando Arouca Morais2 Katia Reis de Souza3 Gideon Borges dos Santos4
O estudo teve como objetivo principal investigar as relações entre o trabalho e a saúde de professores do ensino fundamental em escola pública. A metodologia adotada foi de caráter qualitativo e exploratório. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas individuais com cinco professores. Quanto à interpretação dos materiais, utilizou-se a análise de conteúdo, mais especificamente a técnica de análise temática. No que tange aos resultados, confirmou-se a ideia segundo a qual a intensificação e a precarização social das condições do trabalho docente, em escolas públicas, passa por um processo de aprofundamento, o que gera efeitos na saúde dos professores.
This papers aims to investigate the relationship between work and health of elementary public school teachers. The methodology was qualitative, in which five teachers were interviewed by means of individual semi-structured interviews. To analysis of the dates, we used the content analysis technique, more specifically thematic analysis. It agrees with the idea that work teaching in public schools, it through of intensification and precarization process of work condition, which creates effects in health's teachers.
1 DOI: https://doi.org/10.22409/tn.16i29.p4641
3 Doutorado em Política Pública e Formação Humana, Pesquisador do CESTEH/ENSP Fundação Oswaldo Cruz, contato: gidborgess@gmail.com
A temática alusiva ao trabalho e à saúde de professores da rede pública, configura-se como uma importante matéria para as áreas da educação e da saúde coletiva, bem como para as organizações dos trabalhadores da educação (Souza, 2014; Souza, Brito, 2013; Santos, 2006; Gomes, Brito, 2006). Segundo alguns estudos, os problemas de saúde dos profissionais da educação, em escolas públicas brasileiras, se devem, principalmente, a um conjunto de fatores relacionados à intensificação e à precarização do trabalho que, além de comprometer a saúde desses profissionais, põe em risco a qualidade da educação e a finalidade do projeto da escola pública (ASSUNÇÃO, OLIVEIRA, 2009; BRITO, ATHAYDE, 2003; NEVES, SILVA, 2006).
Sabe-se que as condições de trabalho dos profissionais da educação da rede pública são adversas, muito particularmente dos docentes de escolas da periferia, que convivem com situações ainda mais especiais. Aspectos relativos à situação social das crianças e adolescentes que, insidiosamente têm reflexos no aprendizado, a falta de infraestrutura, desinvestida pelos órgãos públicos por não oferecer aos docentes condições de trabalho adequadas, são alguns exemplos (FERREIRA, 2010). Ademais, como observam Ludke e Boing (2007) deve-se ter presente que críticas externas ao sistema educacional cobram dos professores cada vez mais trabalho, como se a educação, sozinha, tivesse que resolver todos os problemas sociais.
Estudos como os de Assunção e Oliveira (2009) mostram como o professor tem experimentado frustrações diante dos desafios colocados pela situação social dos alunos, sentindo-se impossibilitado de desenvolver plenamente seu trabalho o que pode afetar, diretamente, a sua saúde mental (ASSUNÇÃO; OLIVEIRA, 2009).
Gasparini, Barreto e Assunção (2005) afirmam que os índices de afastamento de professores do trabalho, por transtornos mentais, são gerados sob condições laborais e circunstâncias às quais os docentes desgastam-se física, cognitiva e afetivamente ao exercer suas atividades no cotidiano escolar. Ouvir, intervir e conviver com os problemas dos alunos gera carga excessiva de
trabalho, que deveria ser partilhada com outros profissionais de diferentes especialidades (OLIVEIRA, 2006).
Se esses fatores podem tornar o professor um profissional insatisfeito com o seu trabalho, a alternativa, por certo, não se limitaria a melhorias das condições salariais, mas também a mudanças na organização do trabalho em escolas, diminuição da burocracia, índices de indisciplina toleráveis e, sobretudo, uma gestão escolar de caráter participativo (ASSUNÇÃO; OLIVEIRA, 2009).
O materialismo histórico, principal corrente de pensamento que dá suporte às análises e interpretações do campo da Saúde do Trabalhador, afirma que as resistências desenvolvidas no trabalho são pontos vitais para entender como os trabalhadores enfrentam e suportam, individual e coletivamente, o processo de trabalho. Considera-se o trabalho como o espaço de dominação e submissão do trabalhador ao capital, mas também de resistência e da ação dos trabalhadores (MENDES; DIAS, 1991).
O campo da saúde do trabalhador reconhece que os trabalhadores constroem conhecimentos e saberes a respeito da relação saúde e trabalho advindos da própria experiência. A incorporação desses conhecimentos e saberes é condição para compreender os processos de trabalho e produzir mudanças na realidade frente aos problemas que afetam a saúde dos trabalhadores (ODDONE et al, 1986; GOMEZ, 2011; LACAZ, 2007).
Decerto, a intensificação e precarização das condições de trabalho dos professores de escolas públicas expressam um fenômeno de caráter macrossocial, cujas relações e contradições são geradas pelo modo de produção dominante, no contexto de reestruturação do trabalho e do modelo de gestão neoliberal (MÉSZÁROS, 2005; DRUCK, 2011). O efeito, portanto, é claramente observado não apenas na qualidade da educação, por meio das estatísticas oficiais e das condições de penúria em que muitas escolas se encontram, mas também na saúde dos professores que, diariamente, precisam se reinventar e construir formas de resistências que lhes permitam extrair algum sentido da atividade que realizam (SANTOS, 2009).
No que tange à saúde, a determinação social do processo saúde-doença é parte do contexto histórico, o que reafirma a necessidade de revisitar, a cada vez, o conhecimento acerca das relações que podem se estabelecer com o trabalho,
em seu ambiente real (LAURELL; NORIEGA, 1989). Nesse sentido, buscou-se investigar as relações entre o trabalho e a saúde dos professores de ensino fundamental, de escola pública na região da baixada fluminense, segundo a perspectiva dos próprios docentes. Pretende-se, portanto, refletir sobre aspectos contemporâneos da organização do trabalho do professor, no que se refere especialmente à precarização e intensificação, que o tem levado ao adoecimento e à desistência da profissão. Embora autores como Druck (2011) afirmem que a intensificação constitui-se como um tipo de precarização, neste estudo, esses conceitos serão tratados independentes, porém relacionados entre si, dada a importância, no plano teórico e empírico, para análise do trabalho do professor.
Trata-se de uma pesquisa social de cunho qualitativo e de caráter exploratório, cuja finalidade é proporcionar visão geral e aproximativa com o objeto de estudo, de maneira a torná-lo mais específico e explícito (GIL, 2008). Nesse sentido, objetivou-se a produção de conhecimento que representasse a perspectiva dos professores sobre as relações existentes entre trabalho e saúde, em escola pública, na região da baixada fluminense (RJ).
Foram realizadas entrevistas individuais semiestruturadas, que combina perguntas fechadas e abertas em um roteiro de questões que serve de guia aos pesquisadores. Nesse tipo de pesquisa, o entrevistado tem a possibilidade de discorrer mais livremente sobre o tema em questão, enquanto os pesquisadores não precisam se prender todo o tempo ao roteiro de perguntas (MINAYO, 2013). A ideia foi buscar durante o processo de coleta de dados uma interação entre o pesquisador e os sujeitos pesquisados. Nas entrevistas, foi solicitado aos participantes que falassem sobre o trabalho que realizam, a participação nas decisões da gestão da escola, satisfação e mudanças necessárias à organização do trabalho escolar.
A escola está situada na região da Baixada Fluminense, periferia do Rio de Janeiro, e à época do estudo, contava com 91 professores e 1173 alunos. Adotou-se como critério de inclusão, professores que estavam ativos em sala de aula, devido à facilidade de acesso a esses docentes que foram convidados e
cinco deles se disponibilizaram a participar. A falta de tempo dos professores, pelo fato de residirem em outros municípios, foi um obstáculo à pesquisa.
Na análise dos dados utilizou-se a técnica de análise temática que, segundo Minayo (2013) é considerada a mais apropriada para investigações qualitativas em saúde. Procedeu-se, então: leitura exaustiva dos materiais advindos das transcrições das entrevistas; seleção e escolha das falas mais significativas em relação ao propósito desse estudo pela sua pertinência e relevância; classificação das falas por grupos temáticos, adotando como critério a aproximação dos significados em relação ao objetivo da pesquisa.
O estudo recebeu aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP), da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca da Fundação Osvaldo Cruz - Ensp/Fiocruz sob o número 30439214.8.0000.5240.
Ao agruparmos os excertos por significação, confirmou-se duas principais categorias temáticas de análise, quais sejam: “Intensificação e sobrecarga de trabalho” e “Precarização social do trabalho em escolas públicas”. Tendo em vista que o tema da precarização do trabalho escolar emergiu durante as entrevistas de modo recursivo e de variadas formas, optou-se pela organização da análise dos materiais dessa seção em três partes, a saber: precarização das condições de trabalho; precarização das relações de gestão escolar e mudanças coletivas; e por último, precarização do trabalho docente e saúde: sofrimento e resistência no trabalho.
A intensificação do trabalho, segundo Pina e Stotz (2014) “é entendida como uma dimensão social particular da exploração do trabalhador, resultado do processo histórico de obtenção de um maior quantum de trabalho por unidade de tempo” (PINA; STOTZ, 2014, p.159). O ponto central a ser destacado é aquele segundo o qual a intensificação do trabalho, sob o enfoque do campo da saúde do trabalhador, pode ser definida nas configurações específicas de exploração
dos trabalhadores e que levam, sobretudo, ao enfraquecimento da sua capacidade coletiva de organização para questionar os agravos à sua saúde.
Durante as entrevistas, ganhou destaque falas com queixas relacionadas à sobrecarga de trabalho, principalmente, aquelas decorrentes da superlotação das salas de aulas e da indisciplina dos alunos.
É cansativo, porque tem muito compromisso; é muito puxado, porque são muitos alunos. Você quer estudar para melhorar e você não tem disponibilidade de tempo.
Muito difícil. É que não tem tempo pra nada. Não tem tempo pra fazer nada! Só com os alunos, as turmas são enormes, entendeu? E assim, bagunceiros, a gente tem que ficar em pé o tempo inteiro, não tem outra pessoa pra ajudar, né? Na sala, no corredor... Até porque não têm funcionários suficientes para isso.
De fato, estudos como os de Santos (2006) referem-se a inúmeras adversidades enfrentadas pelos professores de escolas públicas no cotidiano de suas atividades. Para o autor, o comportamento indisciplinado dos alunos, a falta de material didático pedagógico, o cansaço ou a indisposição para ministrar as aulas, são exemplos concretos que levam o professor ao desgaste e à depreciação do processo educacional. Segundo Assunção e Oliveira (2009), as reformas educacionais e as políticas públicas de universalização do ensino fundamental suscitaram maior contingente de alunos nas escolas e maior complexidade de demandas sem, no entanto, terem sido criadas as condições necessárias para oferta de uma educação de qualidade, sobretudo, no que diz respeito aos aspectos sociais dessas demandas, resultando na sobrecarga e intensificação do trabalho docente, que provocam consequentemente, desgaste físico e mental do professor, levando-o ao adoecimento.
O estudo de Pina e Stotz (2014) mostra que a problemática atinente à intensificação do trabalho e à saúde do trabalhador situam-se no centro da determinação social do processo saúde-doença dos trabalhadores. De acordo com os autores, a intensificação do trabalho se expressa como uma dimensão social particular de exploração do trabalhador, que se efetiva pela expropriação do conhecimento técnico e social no processo de trabalho. Observa-se que tal conhecimento é condição básica de proteção da saúde dos trabalhadores.
[...] Então, você vê que têm crianças que têm problemas sociais. Criança que vem para escola sem um banho, sem alimentação. A roupa... você vê que tem dificuldade. Você chama, você tenta conversar dentro daquilo que eu posso.
Durante as entrevistas, verificaram-se aspectos do trabalho do professor que não são vistos como sendo parte da atividade de trabalho docente, mas que geram excedentes e sobretensão no trabalho.
Então, é excesso de papel. Burocracia pura. Porque você vai encaminhar um aluno pro NAE [núcleo de apoio ao estudante], você tem que preencher relatório, você tem que fazer entrevista, isso e aquilo. Tudo são coisas que gastam muito tempo.
Aqui o que vale é a papelada e não o que você faz, entendeu? É muito papel, uma pasta imensa, relatórios, coisas que ninguém lê. A gente escreve, escreve, escreve como uma “besta” e ninguém lê nada.
Constatou-se excesso de serviços burocráticos, contribuindo para a sobrecarga de trabalho e sofrimento do professor, o que segundo Assunção e Oliveira (2009) reflete a carência de profissionais para dar apoio administrativo aos docentes nas unidades escolares.
Alves (2009; 2013) afirma que a precarização do trabalho surge como um novo modo de precariedade das relações salariais e trabalhistas vigente no capitalismo global. Segundo o autor, a precarização do trabalho atinge a totalidade do viver das pessoas, suscitando incerteza e instabilidade que incluem, dentre outros aspectos, o excesso de tempo dedicado ao trabalho face ao estabelecido na legislação trabalhista, a crise de sociabilidade que dilacera os laços sociais, bem como a corrosão da autoestima do trabalhador que diz respeito ao estranhamento ou alienação pessoal e de classe.
Nessa mesma linha interpretativa, Bauman (2001) assegura que a precariedade é a marca atual de condição da vida humana. O trabalho se tornou excessivamente frágil e como resultado percebe-se, também, o enfraquecimento
e a decomposição dos laços humanos. O autor chama atenção para o aspecto imprescindível da cooperação que, apesar de não ser valorizada atualmente e ter se tornado aparentemente renegada nas relações humanas, contribui para transformação dos esforços individuais diversos em resultados produtivos coletivos, contrapondo-se à lógica competitiva e individualizante que leva à lenta desintegração da cidadania.
Ricardo Antunes (2001; 2003) desenvolve a tese de que a “classe-que- vive-do-trabalho” tem adoecido por se encontrar em situação de intensa exploração. De acordo com Ricardo Antunes (2001), num cenário de competição global, as organizações não somente se apropriam da dimensão manual do trabalho, mas também do seu caráter intelectual, como nas épocas taylorista e fordista, visto que o conhecimento do trabalhador normalmente se traduz em maior produtividade e lucro.
Nas entrevistas, ganhou destaque a ideia da total precariedade das condições laborais, expressa, sobretudo num amplo vocabulário de sinônimos relativos à deficiência das condições de trabalho tais como “falta”, “insuficiência” e “mendicância”. Na perspectiva dos professores, a precariedade das condições de trabalho interfere na realização de um bom trabalho. Constatou-se, ainda, uma naturalização do quadro desfavorável para realizar um trabalho de boa qualidade em escolas públicas.
…E são várias coisas que acontecem que fazem igual ao que eu estou te falando: no verão, a escola quente demais, a educação física na quadra, um barulho danado (...) como você pode realizar um bom trabalho se você não tem meios pra isso?
Eu entro na minha sala de aula, eu tenho que mendigar para tirar uma, num mundo de tecnologia. Meu aluno chega na sala de aula com tablet, com isso e com aquilo e, eu, às vezes, tenho que pegar o mimeógrafo.
Porque era giz, mas nem o giz a gente tinha numa época. A gente já teve que fazer vaquinha pra comprar carga. Várias vezes. Agora que melhorou um pouco, mas muitas vezes a gente passou ali na Compactor e comprou uma caixinha de carga, porque senão você não dá aula.
De acordo com Souza (2014), as políticas educacionais a partir dos anos de 1990 resultaram em sucateamento da escola pública e precarização das relações de trabalho. Quanto ao trabalho docente, a concepção de magistério, como sacerdócio, que vem gradativamente dando lugar ao entendimento de que o professor é um trabalhador e que se reconhece como trabalhador assalariado do setor público, tendo o Estado como patrão. Existe, portanto, uma luta constante entre o professor, que resiste no cotidiano de trabalho enfrentando as precárias condições de trabalho e as políticas educacionais, que não levam em consideração as dificuldades do trabalho docente em escolas públicas.
Para Alves (2013), a precariedade das condições de trabalho suscita a degradação da vida social, desorganizando a vida pessoal, uma vez que condições precárias de trabalho implicam em vida precária (ALVES, 2013, P.174). Além disso, estudos como o de Sampaio e Marin (2004) evidenciam que as precárias condições de trabalho do professor interferem no desenvolvimento do trabalho escolar. É inegável que os baixos salários e a falta de tempo para investir em qualificação e acesso a bens culturais, como cinema e teatro, entre outros, comprometem a qualidade do trabalho docente. A precarização do trabalho do professor em escolas públicas pode ser identificada e analisada a partir de diferentes situações desfavoráveis, como: falta de material didático; pouca atenção a estrutura material da escola e ao mobiliário escolar; ausência de pausas durante a jornada de trabalho; relações hierárquicas excessivas e ausência de espaços de diálogo e de participação na escola.
A escola inchou, está inchada. Todo mundo está aqui dentro, que é o certo... Mas a qualidade caiu muito. Então, eu vejo isso pro professor, é um trabalho penoso, porque nós ficamos sem saber o que fazer.
De acordo com Sato (1995), o trabalho penoso, aqui entendido como uma das faces da precarização, ocorre em contextos de trabalho geradores de incômodo, assim como de esforço e de sofrimentos físico e mental. Verifica-se que os professores convivem com diversas limitações para o desenvolvimento de suas atividades no cotidiano escolar e isso acaba levando ao desgaste emocional,
que se manifesta com sentimentos de preocupação, frustração, angústia, ansiedade e desmotivação.
[...] complicado quando tem algum adolescente que está envolvido com droga [...] e aí ele já chega querendo mandar em você, aí é a hora que você se desgasta mais. Você tem que enfrentar aquele aluno de forma que você tem que pensar duas vezes antes de falar, porque você não sabe o que vai te esperar do lado de fora.
[...] Hoje nós temos medo, que tudo da família vem. O pai sempre vem pra questionar, pra te agredir, pra ir no conselho tutelar, pra te fazer uma denúncia. Esse atrito da escola com a família tá virando uma guerra.
Nesse ponto, devemos nos voltar para a legislação vigente no país, especificamente sobre o tema da penosidade, sinalizando para a necessidade de debate junto à categoria e suas organizações sindicais. De acordo com a Lei n.º 3.087, de 26 de agosto de 1960 da Previdência Social, a função de professor é considerada penosa e, portanto, assegura ao profissional a aposentadoria especial, ou seja, o tempo de serviço mínimo necessário para adquirir direito à aposentadoria por tempo de contribuição é diminuído em cinco anos. Os professores têm que cumprir 30 anos e as professoras tem que cumprir 25 anos.
Já a Constituição Federal de 1988 que, segundo Boskovic (2010), foi um marco no que se refere aos direitos sociais, prevê no inciso XXIII do artigo 7º o adicional por trabalho em atividades consideradas penosas, que na prática não tem sido aplicado por faltar regulamentação específica, apesar de inúmeros projetos de lei terem sido apresentados. Ao examinar o texto da lei, compreende- se a necessidade de aprofundar o debate político sobre os direitos dos profissionais da educação, mormente no que diz respeito a relação trabalho e saúde, com a realização de novos estudos que propiciem elementos para se ampliar a capacidade de luta e resistência desses trabalhadores.
Outro aspecto que sobressaiu nas entrevistas diz respeito à relação entre a gestão escolar e a saúde dos profissionais da educação. As entrevistas
evidenciaram uma estrutura organizacional hierárquica e autoritária, com pouco espaço para a colaboração e o exercício da criatividade coletiva no trabalho.
Às vezes, nós somos participados com relação a decisões que são tomadas. Outras, já vem tomadas, porque elas já vêm de uma instância maior, que são passadas pra eles e acaba sendo o cumprimento de decisões. Vai sendo uma cadeia, têm que ser cumpridas.
Nenhum professor tem participação de gestão nenhuma. Nós ainda somos mais antigos, a gente ainda tenta argumentar alguma coisa, mas decisão mesmo, a gente não participa de nada.
(...) a direção até evita de ir na sala dos professores, justamente para você não argumentar nada com ela. A gente fica solto [...] eu já trabalhei em várias escolas do município, todas agem da mesma forma. Nenhum professor participa de nada. Não tem opinião nenhuma.
Em experiência relatada por Souza e Brito (2013), a respeito da gestão do trabalho em escolas públicas, chama atenção a descrição do modo como foram implementadas formas de suporte ao professor. Segundo as autoras, o gestor escolar detinha-se na análise de questões concretas sobre o trabalho, voltando-se para o funcionamento da escola e, com isso, pôde compreender o processo de trabalho para intervir sobre o trabalho real, em conjunto com os trabalhadores. Defendeu-se a ideia segundo a qual o desenvolvimento de algumas dimensões da gestão do trabalho, que têm por base a experiência de quem vive o cotidiano dos problemas no chão da escola, pode suscitar novas normas construídas de forma compartilhada, produzindo resultados positivos na vida e na saúde dos trabalhadores e alunos.
(...) eu acho de fachada, hipócrita, essas eleições que chamam de eleições de direção para a escola, principalmente da Secretaria de Educação. Isso porque, primeiramente, eu acho que as direções deveriam ser menos burocráticas, as gestões deveriam ser menos burocráticas e mais pedagógicas.
De acordo com Souza e Brito (2013), a gestão que realmente valoriza os profissionais da educação, investe na criação de espaços coletivos de discussão sobre o trabalho. Para Brito e Athayde (2003) o diálogo, a confrontação de pontos de vista e a circulação de informações e ideias são fundamentais para que o
trabalho em escolas seja mais bem compreendido e não se constitua numa oposição à conquista da saúde. Trata-se de se afirmar uma tradição no campo da Saúde do Trabalhador, buscando um modo de produção de conhecimento que se efetive a partir da construção de espaço de diálogo crítico sobre o trabalho nas escolas (MARCHIORI; BARROS; OLIVEIRA, 2005).
Com efeito, verificou-se que os profissionais entrevistados sentem-se despreparados para lidar com algumas situações de trabalho e reivindicam formas de suporte de gestão de caráter psicológico e pedagógico para exercerem suas atividades.
Consoante Souza e Brito (2013) é imprescindível a criação de espaços dialógicos de reflexão coletiva nas escolas, possibilitando que se tenha realmente uma equipe docente, com projetos e soluções grupais que deem coerência, organização e sentido ao trabalho, podendo contribuir, também, para que cada professor possa encontrar apoio e saídas para muitos impasses e sofrimento vivenciados no cotidiano na sala de aula.
É você estar sozinha e não conseguir resolver o problema e não ter ninguém para te apoiar. Tudo bem, tem o orientador educacional e o orientador pedagógico, mas nem eles conseguem te ajudar, porque eles têm um monte de papel pra preencher e eles não têm tempo para estarem com você.
[...]Apoio da Secretaria de Educação, apoio da escola, da orientadora pedagógica, do orientador educacional. Pessoas que de fato ajudasse os professores e não deixassem o professor na sala resolvendo tudo. Porque você não consegue resolver todos os problemas de sala de aula; é muito complicado.
Pôde-se observar a necessidade de apoio e orientação, bem como de preparo para o atendimento às demandas escolares, de modo que o professor enfrente as dificuldades pedagógicas, psicológicas e sociais no desenvolvimento das atividades docentes, que tanto acarretam desgastes e preocupações, assim como podem suscitar sofrimento e doenças.
Contudo, defende-se que mudanças realizadas nos locais de trabalho, sob a égide da participação coletiva, carecem de articulação com os órgãos da categoria, mormente os sindicatos de classe, como o SEPE-RJ (Sindicato Estadual dos Profissionais da Educação), de modo a se tornarem uma luta
política na área da educação, conforme a perspectiva do campo da Saúde do Trabalhador, consoante a qual a valorização e a defesa da saúde vão depender do poder de organização política e de luta dos trabalhadores (LACAZ, 1996). Ressalta-se que, como lembra Druck (2011), a ausência de organização dos trabalhadores e de formas de luta traduzem outro tipo de precarização do trabalho.
Consoante Druck (2011), o ponto referente à situação de saúde no trabalho é um importante tipo de precarização social a ser melhor compreendido.
Era como se nada fosse fazer mais efeito, que eu era incapaz. E foi aí que o médico me tirou, porque eu começava a chorar. Porque eu nem conseguia dar aula mais, de tamanho desespero. Você quer ensinar, não está achando os meios e não tem ninguém para te ajudar.
Se você deixar as crianças sozinhas na sala, também não pode, porque elas vão se matar, né? E aí o que que faz? Aí você não vai ao banheiro, você não come, você não faz nada, não pode fazer nada! O principal é ir ao banheiro, né, e beber água, aí nem isso você pode fazer.
Para Codo (1999) o desgaste emocional gerado pelo trabalho do professor, pode relacionar-se à síndrome da desistência – burnout -, expressão de exaustão emocional ligada ao trabalho. De acordo com o autor, trata-se da ambiguidade de sentimentos entre dor e sofrimento no trabalho. Desse modo, o professor no seu trabalho, do ponto de vista da saúde, está continuamente sob pressão e entre limites (HARVEY, 2013). Nenhuma estratégia parece inteiramente viável e, por isso, as relações sociais no trabalho envolverão, continuamente, equilíbrio e tensão.
Não estava no meu normal, muitos alunos estavam reclamando de mim, que eu estava muito agitado, gritando muito com eles[...]Ele [neurologista] chegou à conclusão que eu estava, dentre outras coisas, com depressão. Depressão, ansiedade, transtorno bipolar, uma série de coisas, provocadas principalmente pelo meu trabalho. Aí, ele me deu de imediato 30
dias, para ficar em casa, pra começar a me tratar, fazer um tratamento. [...]a psicóloga também falou outra coisa: que eu tenho a Síndrome de Burnout, uma doença que vários professores adquirirem ao longo do tempo no magistério.
Não obstante o fato de muitos professores afastarem-se do trabalho por motivos de saúde, o estudo de Gomes e Brito (2006), realizado com professores de escola pública, mostra que alguns docentes, embora já pudessem estar aposentados, preferem manter-se trabalhando, o que deveria ser objeto de novas investigações. Decerto, o papel que o trabalho exerce na vida desses trabalhadores é um tópico a ser destacado, porquanto, embora existam muitas adversidades e excesso de atividades no trabalho do professor, constata-se seu comprometimento em manter-se ativo no trabalho. Por outro lado, deve-se estar atento aos custos dessa escolha para a saúde, podendo resultar em adoecimento psicossomático, quando os professores não encontram motivação ou sentido na realização de suas atividades.
Eu já tive gosto pelo que eu realizava, eu hoje não tenho praticamente gosto nenhum. Muitas vezes eu vou para escola forçado, porque a escola é barulhenta, porque não tem ventilador, os alunos não querem estudar. Muitas vezes os pais não te dão apoio.
Embora paradoxais, as atividades docentes são reconhecidamente capazes de permitir sofrimento na mesma proporção em que conferem satisfação aos professores. Neves e Silva (2006) concluem que o prazer no trabalho não está relacionado à ausência de sofrimento, já que consideram que são sentimentos que podem coexistir, na medida em que tanto um pode se transformar no outro, quanto podem existir simultaneamente. Se os objetivos educacionais propostos são alcançados, os professores experimentam o sentimento de prazer, isto é, sentem-se realizados ao constatar que o aluno progrediu, aprendeu o conteúdo e os valores ensinados em sala de aula.
Quando um aluno aprende a ler, a escrever, quando ele dá um retorno pra você [..] isso, enquanto professora, é uma coisa que me satisfaz muito.
Ser um canal de despertar conhecimento, se apropriar de toda essa cultura que a humanidade já produziu, essa cultura letrada, porque eu acho que a educação não deve servir só de fator econômico, pra melhorar a economia de um país. A educação, ela vem pra te embelezar. O ser humano fica mais bonito quando ele sabe mais.
De acordo com Garcia (1989), quando não existem as condições objetivas e subjetivas para que o trabalho seja estímulo das potencialidades, este pode converte-se em doenças. Todavia, o trabalhador é considerado sujeito ativo de transformação, não sendo passivo ante as adversidades e sofrimento decorrentes da organização do trabalho. Nessa linha de interpretação, compreende-se que os docentes buscam alternativas para amenizar o sofrimento e o desgaste físico e mental.
Eu aprendi a me isolar mesmo. De não aceitar... Só que assim, foi todo um preparatório, né? Fui ao psicólogo, fui ao psiquiatra, então pra aprender a encarar isso como não sendo um problema meu. Não vou resolver os problemas do mundo. Então, o que que eu faço? eu separo esse material? Esse material eu vou trabalhar, trabalhei. Teve alcance? Não sei. Então, se alcançou os objetivos daquela aula, bom. Se não alcançou, o que que eu posso fazer?
[...] eu preciso falar primeiro a questão espiritual. Eu sou protestante. Em primeiro lugar eu conto muito com a ajuda de Deus.
Segundo Santos (2006), frequentemente os professores demonstram um sinal de responsabilidade, de resistência e de criatividade ao transformar a adversidade em possibilidades de aprendizagens.
Faço tudo com calma pra fazer bem feito. E a sala de aula? Eu procuro tentar levar, né? Eu sei que não é como eu gostaria, isso acaba me deixando mal, piora minha doença, mas eu procuro tentar dar minha aula da melhor maneira possível.
Aí tem que fazer né? Vai ficando adestrada, no ano seguinte você já faz sem ter que te pedirem. E aí vai indo. Aí você escuta comentários, e já faz porque sabe no que que vai dar. E aí vai, entendeu? Porque tem que aparecer o bonito, o feio não pode aparecer.
Barros, Marchiori e Oliveira (2005, p.155) verificaram que os docentes veem-se constantemente imersos em um conflito cotidiano entre “o que é exigido, o que desejam e o que realmente é possível fazer” diante dos obstáculos, das condições e da organização atual do trabalho na educação. Em termos concretos, a questão da saúde dos professores não se constitui como problema individual e não deve ser tratada pelo prisma único de abordagens de caráter estritamente biomédicas, já que conforma-se, seguramente, como um problema de saúde pública que vem se aprofundando, o que demanda mudanças sob a perspectiva do debate coletivo dos trabalhadores.
Diante do atual cenário social e econômico e das exigências de ensino, são diversos os fatores que afetam a saúde do professor. Tais fatores justificam a construção de políticas de saúde voltadas para o trabalho em escolas.
De acordo com as falas dos professores, constatou-se na escola investigada a precarização do trabalho por meio de condições inadequadas do ambiente físico, falta de material para desenvolver as atividades docentes, bem como a intensificação do trabalho, com horários que extrapolam o expediente e invadem o tempo que deveria ser reservado ao descanso e lazer. Tratam-se de fatores que ameaçam o sentido da escola e do trabalho docente.
Os professores entrevistados também demonstraram insatisfação com a falta de participação no processo decisório da escola. Ademais, sentem-se pressionados pela gestão e secretaria de educação diante do insucesso dos resultados obtidos.
Convém lembrar ainda que o professor sente-se frustrado diante dos desafios colocados pela situação social dos alunos e pela impossibilidade de desenvolver plenamente seu trabalho. Sabe-se que mudanças não são tão simples. Contudo, os professores reivindicam formas de suporte de gestão, de caráter coletivo, como a criação de espaços participativos nas escolas para se dialogar a respeito do trabalho e encontrarem saídas para que se mitiguem
aspectos da organização do trabalho do professor que leva ao adoecimento e a desistência da profissão.
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Recebido em: 29 de maio de 2017. Aprovado em: 17 de março de 2018. Publicado em: 13 de junho de 2018.
Abelardo Bento Araújo3
Com base na economia política, este artigo traz uma discussão teórica sobre as especificidades do trabalho educativo, tendo em vista os problemas de compreensão do que seja seu produto. Colocam-se em pauta as consequências do monitoramento da qualidade da educação, quando esse conjunto de políticas pretende tornar avaliável o trabalho educativo por meio de escores de rendimento em testes em larga escala.
Based on political economy, this article presents a theoretical discussion about the specificities of educational work, considering the problems of understanding what their product is. The consequences of monitoring the quality of education are highlighted when this set of policies seeks to make educational work feasible through large-scale test scores.
Desde os anos 1990, as políticas educacionais nas esferas federal, estaduais e municipais no Brasil têm sido marcadas pelo aumento e aperfeiçoamento de sistemas de avaliação de alunos em larga escala e de responsabilização de agentes educacionais. Neste artigo, denomina-se esse conjunto de políticas como monitoramento da qualidade da educação. O monitoramento reforça a naturalização dos testes como instrumentos capazes de demonstrar objetivamente os resultados do trabalho realizado por escolas e
1 DOI: https://doi.org/10.22409/tn.16i29.p4642
2 Este artigo consiste na ampliação de reflexões realizadas na disciplina “Economia Política da Educação: a teoria do valor em Marx e a Educação”, ministrada pelo professor Vitor Henrique Paro, na Faculdade de Educação da USP, no segundo semestre de 2014.
3 Doutor em educação pela Universidade de São Paulo (USP). Pedagogo do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (CEFET-MG) em Belo Horizonte.
educadores. Nesse sentido, à luz da discussão sobre a natureza do trabalho educativo, como trabalho humano concreto, este texto coloca em questão as medidas adotadas na política educacional que têm por objeto a avaliação desse trabalho.
Parte-se do pressuposto que o monitoramento da qualidade da educação no Brasil tem na incompreensão da noção de “produto” do trabalho educativo um de seus principais óbices. A partir de uma leitura da política de monitoramento da qualidade que considere a natureza do trabalho educativo, é possível evidenciar algumas implicações da tentativa de se “apanhar plasmado” como resultado de testes um suposto produto da atividade educacional, por meio do qual se possa avaliar objetivamente essa atividade.
O texto está organizado em cinco partes, incluindo esta introdução. A segunda parte trata do trabalho humano em seu sentido geral. A terceira parte é uma discussão sobre a especificidade do trabalho educativo no âmbito da Economia Política aplicada à Educação. A quarta parte traz uma análise sobre o monitoramento da qualidade e suas relações com a noção de produto do trabalho educativo. As considerações finais abordam questões fundamentais sobre política educacional, no sentido de refletir sobre a adequação dos meios adotados na política à especificidade da atividade educativa e aos seus fins.
O trabalho se constitui como mediação na produção da existência humana. É o metabolismo que liga o homem à Natureza e por meio do qual ele retira desta o que necessita para viver. De acordo com Marx (2014, p. 211), “o trabalho é um processo de que participam o homem e a Natureza, processo em que o ser humano, com sua própria ação, impulsiona, regula e controla seu intercâmbio material com a Natureza”. É por meio do trabalho que o homem coloca em jogo suas próprias forças, para “apropriar-se dos recursos da Natureza, imprimindo- lhes forma útil à vida humana”.
Todavia, o trabalho está presente também em outras formas de vida. Outras formas de vida também fazem uso de atividades que lhes permitem retirar
da Natureza aquilo de que necessitam para viver. O que distingue, então, o trabalho humano?
Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e a abelha supera mais de um arquiteto ao construir sua colmeia. Mas o que distingue o pior arquiteto da melhor abelha é que ele figura na mente sua construção antes de transformá-la em realidade. No fim do processo de trabalho aparece um resultado que já existia antes idealmente na imaginação do trabalhador. Ele não transforma apenas o material sobre o qual opera; ele imprime ao material o projeto que tinha conscientemente em mira, o qual constitui a lei determinante de seu modo de operar e ao qual tem de subordinar sua vontade. (MARX, 2014, p. 211-212).
Distingue o trabalho humano o fato de ele se voltar para a consecução de um objetivo, de uma finalidade, que já estava presente na representação antes de se realizar. Por isso, Marx o define como “atividade orientada a um fim” (MARX, 2014, p. 212). Essas constatações, no entanto, não permitem a dicotomia humano versus natureza. Como se verifica no final da citação, há um caráter dialético no trabalho. Como explica David Harvey (2013, p. 114): “Não podemos transformar o que se passa ao nosso redor sem transformar a nós mesmos. Inversamente, não podemos transformar a nós mesmos sem transformar o que se passa ao nosso redor.”
Convém destacar, então, que o que distingue o trabalho humano é a subordinação dessa atividade a um propósito. A subordinação do trabalho a um propósito nega a ideia de o trabalho ter de ser necessariamente uma atividade prazerosa. O objetivo anteriormente estabelecido pode levar à necessidade de grande esforço e disciplina. David Harvey (2013) explica que nessa parte da obra, como querem alguns críticos, Marx não se esqueceu do materialismo, ao explicitar a anteposição do ideal, dos propósitos da consciência. Isso não iria ocorrer justamente n’O capital. Harvey sustenta que não há nada de estranho ao materialismo no fato de antepor o propósito, porque a origem das ideias continua a ocorrer na relação metabólica com a natureza material.
O trabalho exerce uma função contraditória: ao mesmo tempo em que exige dispêndio de energia humana, tem como objetivo possibilitar sua reprodução. É por meio dele que o homem produz o que necessita para viver e,
portanto, para repor suas energias. É por meio do trabalho que o homem produz o que lhe é útil. Assim, ele produz valores de uso. Esse pressuposto liga diretamente o produto do trabalho ao seu motivo. O trabalho se converte em mediação para realizar um objetivo prévia e conscientemente estabelecido. Desde que o homem atua sobre a natureza para produzir sua própria existência, não há nada de novo em relação à produção de valores de uso. É quando a produção de valores de uso ocorre para troca que isso vem se colocar como problema a ser compreendido.
Em todos os estágios sociais, o produto do trabalho é valor de uso, mas só um período determinado do desenvolvimento histórico, em que se representa o trabalho despendido na produção de uma coisa útil como propriedade “objetiva”, inerente a essa coisa, isto é, como seu valor, é que transforma o produto do trabalho em mercadoria. (MARX, 2014, p. 83).
No modo de produção em que isso ocorre, o processo de trabalho como mediação para apropriação de elementos naturais, tornando-os úteis à vida humana, sofre algumas interferências. Primeiro, o produto do trabalho pertence ao capitalista e não ao trabalhador que o produziu. Segundo, o capitalista cuida para que o trabalho se realize da melhor forma possível e que se faça o melhor aproveitamento dos meios de produção, assim como a melhor aplicação da força de trabalho que ele compra.
A separação do trabalhador de seus meios de produção e a conversão destes em capital são as condições básicas de existência do capitalismo. Essa diferenciação entre detentores de meios de produção e detentores apenas de força de trabalho tem origem na acumulação primitiva de capital e na expulsão de produtores diretos de suas terras, não lhes restando alternativa de subsistência que não a venda da força de trabalho. O trabalho livre e assalariado, por sua vez, atuou como condição superestrutural que permitiu o desenvolvimento do capital. Surgem, assim, duas classes detentoras de mercadorias distintas, antagônicas, mas que se completam. A consequência formal do fato de o trabalhador não trabalhar para si mesmo, mas para o capitalista, é o comando do capital sobre o trabalho; seu controle, portanto. No entanto, essa subsunção decorre apenas da
forma social como ocorre o trabalho; e dizer “apenas” não relativiza o que isso implica: a alienação do produto do trabalho de seu produtor. O “apenas” advém de um olhar sobre o processo de trabalho. A subsunção formal do trabalho ao capital não se dá de forma separada da subsunção real do trabalho ao capital, mas a expressão é utilizada didaticamente para explicar um primeiro nível de subsunção do trabalho ao capital. Assim, com a expressão subsunção formal do trabalho ao capital, Marx quer dizer que o trabalhador não usufrui do produto do trabalho que realiza, mas pode, ainda, ser o conhecedor do processo de trabalho, deter a perícia da produção, por exemplo. Ou seja, conhecer a intensidade do trabalho necessária à produção, assim como as ações necessárias para a efetivação do produto.
O fato distintivo da subsunção formal do trabalho é a forma social do trabalho: o trabalho que ocorre em determinado modo de produção, com base em relações sociais de produção que são determinadas pela propriedade dos meios de produção (MARX, 2014). É a separação entre o motivo e o produto do trabalho a característica que define a subsunção formal do trabalho, como diz Alexis Leontiev (2004).
Ao analisar as transformações qualitativas que se processaram no psiquismo humano em face das mudanças nas relações econômicas, Leontiev (2004) ratifica as observações de Marx, dizendo que as relações de trabalho sob o capitalismo fizeram com que o produto e o motivo do trabalho não mais coincidissem. Na inteireza do processo de trabalho, o homem trabalha tendo como motivo o produto do seu trabalho. A coisa produzida é o próprio motivo do trabalho. Sob o capital, embora o produto do trabalho continue o mesmo, o motivo do trabalho é o salário. “A ‘alienação’ da vida do homem tem por consequência a discordância entre o resultado objetivo da atividade humana e o seu motivo.” Ainda de acordo com o autor, essa transformação das relações econômicas tem a seguinte consequência: o sentido do trabalho “para o operário não coincide com sua significação objetiva” (LEONTIEV, 2004, p. 130). Por exemplo, doze horas de trabalho de fiação não têm para um trabalhador da indústria têxtil o significado de fiar, “mas o de ganhar aquilo que lhe permita sentar-se à mesa, dormir na cama” (p. 131, grifo no original).
A gerência como controle do trabalho vem de tempos pré-capitalistas, mas sob o capitalismo adquire funções de baratear os custos do trabalho, dissociar concepção e execução, etc. Na concepção de Frederick W. Taylor, resumida por Harry Braverman,
[...] tanto a fim de assegurar o controle pela gerência como baratear o trabalhador, concepção e execução devem tornar-se esferas separadas do trabalho, e para esse fim o estudo dos processos do trabalho devem reservar-se à gerência e obstado aos trabalhadores, a quem seus resultados são comunicados apenas sob a forma de funções simplificadas, orientadas por instruções simplificadas o que é seu dever seguir sem pensar e sem compreender os raciocínios técnicos ou dados subjacentes (BRAVERMAN, 1987, p. 107).
As palavras de Marx resumem a necessidade que o capital tem da gerência enquanto controle do trabalho:
Se o modo de produção capitalista se apresenta como necessidade histórica de transformar o processo de trabalho num processo social, essa forma social do processo de trabalho se revela um método empregado pelo capital para ampliar a força produtiva do trabalho e daí tirar mais lucro. (MARX, 2014, p. 388).
A cooperação é o modo inicial pelo qual o controle do processo de trabalho passa às mãos do capital, em direção a uma subordinação que vai além da forma social, sendo que decorre dessa própria forma social. “A transformação que torna cooperativo o processo de trabalho é a primeira que esse processo experimenta realmente ao subordinar-se ao capital.” (MARX, 2014, p. 388)
Se a consequência do trabalho alienado é o comando do capital sobre o trabalho, uma decorrência da forma social que o trabalho assume, com a cooperação, forma fundamental pela qual se realiza o capital, esse comando torna-se condição necessária da produção. A subsunção se torna a condição sem a qual o próprio processo de trabalho não se realiza. “O comando capitalista no campo da produção torna-se tão necessário quanto o comando de um general no campo de batalha.” (MARX, 2014, p. 383)
Algumas condições determinam a exigência da gerência pelo capital. Em primeiro lugar, o objetivo do processo de produção capitalista não é a mera
realização de um produto; é a produção da mais-valia, a ampliação do capital. Disso decorre a necessidade da maior exploração possível da força de trabalho. Além disso, a multiplicação do número de trabalhadores aumenta sua resistência e, consequentemente, a pressão do capital para dominar essa resistência. Em suma, a principal razão de existir da gerência, como controle do trabalho alheio – acepção de Harry Braverman (1987) –, é “o antagonismo inevitável entre o explorador e a matéria-prima de sua exploração” (MARX, 2014, p. 384).
Sob a cooperação de vários assalariados como forma de realização do capital, a unidade das ações individuais realizadas só existe no coletivo de trabalhadores. A conexão entre seus trabalhos aparece aos trabalhadores “idealmente como plano, e praticamente como autoridade do capitalista, como o poder de uma vontade alheia que subordina a um objetivo próprio a ação dos assalariados” (MARX, 2014, p. 385). A separação entre a concepção e a execução torna-se fato palpável, mas não apenas; o trabalho se torna subsumido de tal forma que só pode realizar-se sob o controle e organização do trabalho. O trabalhador se torna apenas mediação para a consecução de um processo que ele já não concebe. Do ponto de vista do capitalista, o processo de trabalho ocorre entre coisas que ele “comprou, entre coisas que lhe pertencem”. Ele só pode consumir a força de trabalho “adicionando-lhe meios de produção” (MARX, 2014, p. 219).
Na subsunção real do trabalho ao capital, o trabalho abstrato é fato concretizado. Os trabalhos são reduzidos a gestos, meros dispêndios de energia humana. Isto é, deixa de ser necessário encontrar entre os tipos de trabalho concreto um “algo comum”, expresso no conceito de trabalho abstrato. Agora, todos os trabalhos tendem concretamente ao trabalho abstrato. Eles se tornam todos iguais. O desenvolvimento dos princípios da gerência deixa claro que é possível produzir mercadorias sem a necessidade de interesse do trabalhador no produto de seu trabalho. O controle embutido no processo produtivo capitalista e o controle da gerência são capazes de substituir o vínculo, necessário à produção. Mesmo o trabalho reduzindo-se a trabalho abstrato, a produção e o objetivo do capital – o lucro – conseguem se realizar.
Embora de uma perspectiva diferente, mas, em diversos momentos utilizando também o referencial marxista, Tardif e Lessard (2005, p. 24) trazem a seguinte contribuição ao debate: “a escola moderna reproduz no plano de sua organização interna um grande número de características tiradas do mundo usineiro e militar do Estado”. Como consequência, ela “trata grande massa de indivíduos de acordo com padrões uniformes por um longo período de tempo, para produzir resultados semelhantes. Ela submete esses indivíduos (educadores e educandos) a regras impessoais, gerais, abstratas fixadas por leis e regulamentos.” (TARDIF; LESSARD, 2005, p. 24)
No processo de produção e reprodução do capital, e ainda que a política educacional seja um espaço de embates que resultam em hibridismos, concessões, etc., no plano governamental em geral, a escola é vista como um investimento no sentido econômico-financeiro. Associado a isso, os modos de organização e gestão do trabalho educativo provêm dos ambientes em que o capital entra como investimento, para gerar lucro. Os governos “visam simultaneamente a aumentar sua eficácia e sua ‘imputabilidade’ através de práticas e normas de gestão e de organização do trabalho provenientes diretamente do ambiente industrial e administrativo”. (TARDIF; LESSARD, 2005,
p. 25) “Em suma, pode-se dizer que a escola e o ensino têm sido historicamente invadidos e continuam a sê-lo, por modelos de gestão e de execução do trabalho oriundos diretamente do contexto industrial e de outras organizações econômicas hegemônicas.” (TARDIF; LESSARD, 2005, p. 25, grifo no original)
É nesse ponto que se encontram as principais questões em relação à gerência ou ao monitoramento aplicados à atividade educativa. Nesse conflito entre as especificidades da produção de mercadorias e do processo de produção pedagógico estabelecem-se algumas questões relativas à política de monitoramento. Na produção de mercadorias, a gerência assume o papel de efetivar, manter e aumentar a produtividade. No entanto, seria a gerência, enquanto controle do trabalho alheio tal como concebida por Harry Braverman (1987), adequada para levar a escola a realizar mais eficientemente aquilo a que se propõe? Quais seriam, então, as consequências práticas da aplicação, por meio da política educacional, da gerência análoga à da produção de mercadorias
(objetos) ao trabalho educativo (constituição de sujeitos)? Essas questões são debatidas a seguir. No entanto, antes de abordá-las especificamente, é necessário tratar do trabalho educativo. Que tipo de trabalho é esse?
Como ser histórico, que adquire suas características determinantes não pela via biológica, mas culturalmente, o homem desenvolveu processos específicos voltados para a apropriação e realização desse caráter humano- histórico (LEONTIEV, 2004; PARO, 2010). É essa a função da educação que necessita ser analisada como processo de trabalho concreto, se se quiser compreender a validade das medidas que a têm como alvo. A atividade educativa, além de constituir uma relação pedagógica, é um processo de trabalho (PARO, 2013). Pode-se apontar aí a realização de uma atividade adequada a um fim e um trabalho concreto, manifesto sob uma atividade técnica determinada (MARX, 2014), em que pese o fato de se compreender que a atividade educativa é precisamente uma atividade política (PARO, 2010). Conforme Paro (2013), o conceito de trabalho como atividade orientada a um fim aplica-se sem dificuldade à atividade educativa, desde que se compreenda sua natureza pedagógica.
O processo de trabalho humano se compõe de: a) força de trabalho – energia humana despendida durante o processo de trabalho; b) objeto de trabalho
– aquilo que é transformado durante o processo de trabalho c) instrumentos de trabalho – meios de transformação do objeto de trabalho. Para se realizar, o processo produtivo requer meios de produção (objeto de trabalho + instrumentos de trabalho) e força de trabalho (MARX, 2014). No trabalho educativo, de acordo com Paro (2013), não há resistência quanto à denominação dos instrumentos de trabalho (materiais, recursos e espaços utilizados na escola). No entanto, com relação ao objeto de trabalho, é necessário considerar que o objeto do trabalho educativo, o aluno, não entra nesse processo apenas como objeto, mas principalmente como coprodutor desse processo; portanto, como alguém que aí desempenha um verdadeiro “trabalho”. Tanto o aluno quanto o professor
“despendem sua energia humana (força de trabalho) na realização do produto”
(PARO, 2013, p. 962, grifo no original).
O desenvolvimento mais aprofundado e ampliado da noção de objeto de trabalho é crucial na discussão do processo de trabalho educativo. No entanto, para os objetivos deste texto, focaliza-se a noção de produto desse trabalho.
Na especificação da natureza do processo de produção pedagógico, Paro (2012) alerta para a insuficiência das tentativas de encontrar a especificidade desse tipo de trabalho na distinção entre trabalho produtivo e trabalho improdutivo. Tal como o próprio Marx já havia mostrado, Saviani (1991) e Paro (1986; 1993; 2012) também demonstram que o trabalho educativo pode configurar-se como trabalho produtivo, no sentido de produzir diretamente mais- valia. Na escola privada, a questão é diferente, uma vez que o trabalho educativo serve à produção de excedente de que se apropria o dono da escola, que exerce, nesse caso, a função de dono do capital. Na escola pública não há produção direta de mais-valia. Não obstante, a aplicação de técnicas provenientes da gerência capitalista ocorre na escola pública, obviamente não sem consequências para os objetivos da educação, se entendidos os fins dessa atividade como possibilitar a constituição de sujeitos, de humano-históricos.
Saviani (1991) e Paro (2012) salientam que a conclusão de que o trabalho educativo pode se configurar como trabalho produtivo não permite a identificação entre a fábrica e a escola. As regras do capital perpassam as mais diversas instâncias e inclusive incorpora o trabalho improdutivo, transformando-o em trabalho produtivo. Isso, no entanto, não implica que “tais instâncias, ou as instituições aí presentes, se convertam integralmente em autênticas unidades de produção capitalista” (PARO, 2012, p. 180).
Insuficiente a polarização trabalho produtivo/trabalho improdutivo para definir a natureza e a especificidade do trabalho educativo, Saviani (1991) parte para a discussão da relação entre produção material e produção imaterial. Mediante a verificação da educação como trabalho inscrito na produção imaterial, o autor explicita que a produção não se separa do produto, entendendo a aula como produto e processo de produção da educação. Em análise posterior, Paro (1986; 1993; 2012) avança na discussão, ressaltando que seria mais adequada a
compreensão de que “o produto da escola é o que resulta da educação, ou seja, da apropriação da cultura pelo aluno, pela qual ele forma sua personalidade viva.” (PARO, 2012, p. 182, comentário 39).
É no que se refere ao papel do educando no processo de produção pedagógico e ao conceito de produto da educação escolar que se encontra o avanço da tese de Paro (2012) em relação à de Saviani, que apenas esboçou essa questão em dois textos: a) na apresentação do livro de Maria de Fátima Costa Félix, intitulado Administração escolar: um problema educativo ou empresarial? (FÉLIX, 1984) e b) no livro Ensino público e algumas falas sobre a universidade (SAVIANI, 1991). Paro (1986; 2012) deixa claro que, embora o que se negocie e se remunere na compra de educação seja a aula, existe algo que permanece para além dela. A aula é a atividade por meio da qual se busca realizar determinados objetivos.
O produto da escola é o aluno com sua personalidade transformada por meio da apropriação da cultura – ainda que essa transformação nunca se encerre e que a escola seja apenas uma das instâncias formativas (PARO, 2012). Para o autor, a produção e o consumo do produto da educação também não ocorrem simultaneamente, uma vez que o consumo se daria não quando o aluno participa da aula, mas quando ele dispõe da transformação de sua personalidade, no exercício da cidadania, da sua condição humana na sociedade.
Esclarecido esse primeiro nó teórico que envolve a concepção da educação como um processo de trabalho e entendida a finalidade da atividade educativa como formação do homem como humano-histórico, por meio da apropriação da cultura, convém passar à análise das demais dimensões desse trabalho. Primeiro, não se pode classificar professor e aluno, respectivamente, como produtor e consumidor do produto da educação (PARO, 2012; 2013), pois é necessário compreender que ambos são trabalhadores na efetivação dos objetivos educativos. Portanto, são eles que “despendem sua energia humana (força de trabalho) na realização do produto” (PARO, 2013, p. 962, grifo no original). São, por isso, os trabalhadores desse processo.
De acordo com Marx, os componentes do processo de trabalho são a atividade orientada a um fim ou o trabalho mesmo [a força de trabalho], o objeto
de trabalho ou matéria-prima e os instrumentos de trabalho – sendo que estes dois últimos constituem juntos o que se denominam meios de produção (MARX, 2014, p. 212). Os meios de produção se compõem de todos os elementos materiais que direta ou indiretamente participam do processo de produção, ou seja, dos instrumentos de trabalho e dos objetos de trabalho. O instrumento de trabalho (em algumas passagens chamados de meio de trabalho por Marx) “é uma coisa ou um complexo de coisas que o trabalhador insere entre si mesmo e o objeto de trabalho e que lhe serve para dirigir sua atividade sobre esse objeto” (MARX, 2014, p. 213).
O objeto de trabalho, por sua vez, é aquilo sobre o que atua o trabalhador. É o que se modifica no processo de produção. A matéria-prima também é objeto de trabalho, mas já contém trabalho humano incorporado, contém o trabalho humano empregado para a sua retirada da natureza e preparação para utilização. “Toda matéria-prima é objeto de trabalho, mas nem todo objeto de trabalho é matéria-prima. O objeto de trabalho apenas é matéria-prima depois de já ter experimentado modificação efetuada por trabalho.” (MARX, 2014, p. 212).
Ao considerar o processo de produção inteiro, tendo em vista o produto dele, Marx classifica como meios de produção o conjunto formado por instrumentos de trabalho e objeto de trabalho, além da força de trabalho. A propriedade desses meios de produção determina as relações sociais de produção, que, mediadas pelas forças produtivas, configuram o modo de produção. Sob o capitalismo, essa propriedade é privada, o que determina que o não proprietário de meios de produção, mas apenas de força de trabalho, necessite vender sua força de trabalho para poder produzir sua própria sobrevivência.
Sabendo que, no processo de produção pedagógico, aluno e professor são trabalhadores, resta compreender os demais componentes desse processo. Quanto a esse assunto, Paro (2013) afirma que parece não haver resistência quanto à classificação dos instrumentos de trabalho (materiais, recursos e espaços utilizados na escola). Já no que se refere ao objeto de trabalho, não é a mesma coisa. O autor desenvolve o tema da participação do educando no
processo de produção pedagógico (PARO, 2012), permitindo visualizar a impropriedade da concepção do aluno como consumidor do produto da educação. Como realidade a qual se visa transformar, o aluno pode ser comparado ao objeto de trabalho, mas apenas para fins didáticos, porque é essencialmente um sujeito, opondo-se radicalmente ao conceito de objeto. Tem-se, com isso, que três aspectos ditam a natureza do trabalho educativo: o objeto de trabalho ser um sujeito; o produto do trabalho ser precisamente o humano educado, que não é produto, mas sujeito, ser humano-histórico, e, por fim, a relação pedagógica (a
relação com o objeto de trabalho).
A característica principal eleita por Tardif e Lessard (2005) para o estudo da docência como trabalho peculiar é a interatividade entre humanos. Segundo os autores,
todo trabalho sobre e com seres humanos faz retornar sobre si a humanidade de seu objeto: o trabalhador pode assumir ou negar essa humanidade de mil maneiras, mas ela é incontornável para ele, pelo simples fato de interrogar sua própria humanidade. O tratamento reservado ao objeto não pode mais se reduzir à sua transformação objetiva, técnica, instrumental; ele levanta as questões complexas do poder, da afetividade, da ética, que são inerentes à interação humana, à relação com o outro. (TARDIF; LESSARD, 2005, p. 30, grifo no original).
Alegar uma peculiaridade do trabalho educativo não é, pois, apelar para uma essencialidade em detrimento da historicidade do processo de trabalho. É compreendê-lo como “forma particular de trabalho sobre o humano, ou seja, uma atividade em que o trabalhador se dedica ao seu ‘objeto’ de trabalho, que é justamente outro ser humano, no modo fundamental da interação humana” (TARDIF; LESSARD, 2005, p. 8, grifo no original). Para Tardif e Lessard (2005), não apenas a docência ou o trabalho educativo possui essas características, mas todas as profissões que se defrontam com o outro como seu objeto de trabalho tornam-se “suficientemente originais e particulares que permitem distingui-las das outras formas de trabalho, sobretudo o trabalho com a matéria inerte” (p. 11).
O que se se pode acrescentar à discussão apresentada por Tardif e Lessard (2005), como especificamente concernente ao trabalho educativo, é o fato de essa atividade voltar-se para a constituição do ser humano-histórico, para
a afirmação da condição deste como sujeito histórico. Acrescenta-se, ainda, que a interatividade destacada por Tardif e Lessard (2005) precisa ser qualificada como uma interatividade entre sujeitos.
A partir da década de 1980, as políticas educacionais em vários países da América Latina passaram por profundas reformas, em relação ao currículo, à avaliação e às formas de financiamento. Essas reformas foram pautadas especialmente por agentes econômicos internacionais, como o Banco Mundial, num contexto de crescente neoliberalismo e avanço do gerencialismo, este como ideologia que fundamenta a confusão entre o público e o privado e, por decorrência, a transferência de formas de gestão do âmbito privado para o âmbito público.
No Brasil, concretamente, as medidas ligadas à avaliação e responsabilização começam com a criação do Sistema Brasileiro de Avaliação da Educação Básica (Saeb), no final da década de 1980. De acordo com Bonamino e Franco (1999), em três ciclos (três aplicações de testes), esse sistema passou de uma perspectiva mais participativa, que levava em conta a colaboração estadual de professores e especialistas na elaboração e correção das provas, para uma perspectiva centralizada. A partir do terceiro ciclo, a elaboração e a condução da avaliação foram terceirizadas. No quarto ciclo, criaram-se as chamadas matrizes de referência curricular – que listam habilidades e competências, em detrimento de conteúdos (BONAMINO; FRANCO, 1999). Da ideia de criar uma cultura avaliativa nas escolas, tornou-se definitivamente estratégia de monitoramento.
Atualmente, as avaliações em larga escala no Brasil são operacionalizadas no âmbito nacional por meio da Prova Brasil e da Provinha Brasil (esta última voltada para a Alfabetização). Em 2007, o então presidente do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), Reinaldo Fernandes, propôs, a criação do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), na gestão de Fernando Haddad como Ministro da Educação. O Ideb combina dois indicadores: escores de rendimento dos testes padronizados ao final de
determinada etapa da educação básica e taxa média de aprovação dos estudantes dessa mesma etapa de ensino. Para o ex-presidente do Inep, o índice atacaria uma das fragilidades decorrentes do monitoramento baseado em escores: a possibilidade de reprovação em massa, para que os estudantes dos finais das etapas fossem os que obtêm melhores médias. Nas palavras dele, “o indicador torna claro o quanto se está disposto a perder na pontuação média do teste padronizado para se obter determinado aumento na taxa média de aprovação” (FERNANDES, 2007, p. 8).
Desde então, o Ideb se tornou o indicador utilizado como base em diversos documentos da política educacional brasileira, entre eles o conjunto de medidas que ficou conhecido como o Plano de Aceleração do Crescimento (PAC) da Educação, em referência ao programa de mesmo nome implementado no segundo governo de Luiz Inácio Lula da Silva, na área de infraestrutura (BRASIL, 2007a; 2007b; 2007c; 2007d; 2007e; 2007f).
O monitoramento da qualidade da educação tem especialmente duas inspirações, em termos de política pública: o quase-mercado e a responsabilização. Sob o quase-mercado, combinam-se financiamento e gestão públicos com mecanismos de mercado; as medidas se baseiam na competitividade por público-alvo entre instituições públicas que realizam o mesmo tipo de serviço. Pensa-se que, assim, as instituições aperfeiçoarão continuamente seus serviços. Não se leva em conta que as instituições em pior condição dificilmente conseguem competir com outras pelos recursos de que justamente necessitam para conseguir prestar adequadamente seus serviços. Isso pode cair num círculo vicioso perigoso que termina como justificativa para a privatização. No que se refere aos trabalhadores, individualmente, o quase-mercado inclui metas de produtividade, bonificações, etc., assim como redução da estabilidade dos contratos de trabalho.
Com a responsabilização [accountability], a ideia "é introduzir na gestão pública mecanismos que permitam aos usuários e gestores responsabilizar os 'prestadores' de determinado serviço por aquilo que é oferecido à sociedade" (ADRIÃO; GARCIA, 2008, p. 781). Essa responsabilização, por sua vez, baseia- se em padrões pré-estabelecidos com base na ideia da competição contida no
quase-mercado. Lüdke (1984) explica que, em sua origem, nos anos 1960, o princípio da responsabilização previa que ninguém poderia ser responsabilizado por resultados, se as condições necessárias para os atingir não fossem garantidas. No entanto, é Diane Ravitch quem traduz o significado de responsabilização nas políticas atuais: “Por responsabilização, os políticos queriam dizer que eles pretendiam que as escolas mensurassem se os seus estudantes estavam aprendendo, e eles queriam recompensas e punições para os responsáveis por isso.” (RAVITCH, 2011, p. 115)
Houve uma espécie de reestruturação do trabalho educativo (OLIVEIRA, 2004), em que as medidas adotadas para avaliá-lo convergiram para a tentativa de objetivação do produto desse trabalho educativo. Ao construir projetos que se voltam para o alcance das metas, esquece-se do verdadeiro produto da educação. Ele se torna as habilidades e competências a serem objetivadas nos testes. A política educacional coloca em prática uma concepção de que o professor ensinou e o produto de seu trabalho é uma habilidade por parte do aluno, supostamente objetivável num teste.
Alguns autores já abordaram o tema do produto da educação em pauta, conforme discutido na seção anterior. Ao lado dessas questões emerge a da tentativa de objetivação do trabalho educativo. Na produção material, “durante o processo de trabalho, o trabalhador se transmuta de ação em ser, de movimento em produto concreto” (MARX, 2014, p. 223). Nessa produção, a avaliação pode ser objetiva, por meio da análise do produto que resultou da ação do trabalhador. O trabalho educativo, por sua vez, requer outro olhar para ser avaliado. Por exemplo, ao considerar a aula como produto da educação, “a natureza complexa do processo pedagógico fica encoberta pela aparência de uma mercadoria que se supõe facilmente avaliável como outra qualquer”. (PARO, 1993, p. 106). Essa compreensão enseja propostas de avaliação equivocadas. Paro sugere que
talvez fosse importante se pesquisar até que ponto a utilização ‘fetichizada’ da aula tem a ver com a escamoteação da qualidade do ensino público. No ensino privado, na medida em que tal mercadoria é paga (ou melhor, explicitamente paga, já que no sistema público o ensino também é pago, só que indiretamente), supõe-se que os pais têm o direito de aferir sua qualidade. No
ensino público, entretanto, o não pagamento explícito pela ‘mercadoria aula supõe que seus usuários não têm o direito de contestar sua qualidade. (PARO, 1993, p. 106).
Se antes a perspectiva da cobrança pela qualidade da aula como uma mercadoria estava presente no ensino privado, nas recentes reformas das políticas educacionais brasileiras, os usuários dos serviços públicos são tomados como consumidores; a perspectiva da avaliação desses serviços segue padrões análogos aos da prestação de serviço pela empresa privada. A conclusão do autor sobre a fetichização da aula como produto da educação, em todas as situações citadas, leva ao desvio do entendimento crucial à educação, de que a especificidade do processo pedagógico de produção, enquanto “relação social, exige mecanismos muitos mais apurados e complexos para uma adequada avaliação. Na ausência de tal avaliação, culpa-se o usuário pela incompetência da escola” (PARO, 1993, p. 106). Não é diferente quando se tenta materializar o produto do processo pedagógico em resultados de testes aplicados a alunos. Neste último caso, transfere-se essa culpa para o âmbito individual e da competência profissional dos educadores. Em todo caso, quem termina excluído e tem seu direito à educação negado é o aluno.
Nestas considerações finais, colocam-se algumas questões à política educacional, a fim de fundamentar e qualificar o debate acerca da adequação dos meios adotados nessa política e a especificidade da atividade que ela visa regular. Embora autores como Oliveira (1993) tenham afirmado que o trabalho pedagógico se subsumi concretamente ao capital, tendo em vista a aquisição de sistemas apostilados e a adoção do controle em sistemas privados de ensino, por exemplo, o que ficou por dizer foi que essa subsunção não se dá sem prejuízo para o alcance dos reais fins da educação.
Pelo tipo de trabalho – relação – que se desenvolve entre o professor (trabalhador) e o aluno (objeto de trabalho que é também trabalhador no processo educativo e, portanto, sujeito), se algum desses dois tiver negada sua condição
de sujeito (que concebe e executa junto com o outro), não é possível sequer atingir os fins da educação. Menos possível ainda é, com isso, elevar a produtividade, acelerar a consecução desse produto, a menos que se tome “produtividade” por um sentido que desvincule processos e fins, caindo na performance, desempenho pelo desempenho. Na produção material capitalista, a consecução de metas e índices coincide com a ampliação do capital, realizando, portanto, seu objetivo. Isso é facilmente verificável, mesmo com todos os condenáveis prejuízos para o trabalhador. No entanto, em que medida a elevação de escores e o alcance de metas – quando se realizam – coincidem com os reais objetivos da educação?
O problema com a forma escolhida para realizar o monitoramento da qualidade não é a da simples derivação das medidas do modelo econômico e das consequências para o trabalhador da educação, mas também, consequentemente, a da ausência de conformidade entre as medidas adotadas e os fins do serviço ou da atividade a que elas se aplicam. É possível verificar a burocratização da atividade educativa enquanto práxis (SÁNCHEZ VÁZQUEZ, 2011) nesse transplante de modelos produtivos da produção de mercadorias (objetos) para o controle de uma atividade que tem como fim a constituição de sujeitos.
ADRIÃO, Teresa; GARCIA, Teise. Oferta educativa e responsabilização no PDE: o plano de ações articuladas. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 38, n. 135, p. 779-796, set./dez. 2008.
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Recebido em: 27 de janeiro de 2018. Aprovado em: 13 de março de 2018. Publicado em: 13 de junho de 2018.
Wanderson Pereira Araújo2
Este artigo analisa o trabalho intelectual na complexidade da atividade docente, inserido na formação profissional dos trabalhadores e na produção e aplicação da ciência e da tecnologia no campo da agricultura. Este estudo demonstra a relação do trabalho docente na reprodução ampliada do capital, que aparece ou que pode aparecer como expressão e condição geradora de valor, tendo como base observações de atividades docentes realizadas nos Institutos Federais (IFs). Nesse intento, utilizam-se algumas observações, a partir Karl Marx (em O Capital), em relação à teoria do valor, à categoria trabalho produtivo/improdutivo, bem como a outras, para compreender a dimensão dessa problemática na atualidade.
This article analyzes the intellectual work in the complexity of the educational activity, inserted in the workers' professional formation and in the production and application of the science and of the technology in the field of the agriculture. This study demonstrates the relationship of the educational work in the enlarged reproduction of the capital, that appears or that can appear as expression and generating condition of value, tends as base observations of educational activities accomplished at the Federal (IFs) Institutes. In that project, some observations are used, to break Karl Marx (The Capital), in relation to the theory of the value, to the category work productive / unproductive, as well as the other ones, to understand the dimension of that problem at the present time.
1 DOI: https://doi.org/10.22409/tn.16i29.p4644
2 Doutorando em Educação pela FaE/UFMG; Professor do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico da área de Fundamentos da Educação do Instituto Federal do Norte de Minas Gerais (IFNMG); membro do Grupo de Pesquisas e Estudos Marx, Trabalho e Educação (GEPMTE).
E-mail: wanderson_pa@yahoo.com.br
Nosso objetivo neste artigo é analisar o trabalho intelectual na complexidade da atividade docente no campo da ciência e da tecnologia aplicada à agricultura e às agroindústrias de alimentos. Analisamos a relação do trabalho intelectual com o processo de valorização, entendendo que a capacidade de trabalho do sujeito intelectual, em um processo contínuo de transformação das condições objetivas de trabalho, apresenta-se nas circunstâncias que aqui demonstramos como componente de um processo que produz e que transfere valor.
É à luz dessa questão que discutiremos a categoria trabalho produtivo em Marx, de maneira particular, com a nossa interpretação na fase contemporânea do capitalismo, sem anular de modo algum a perspectiva geral de Marx sobre a categoria trabalho produtivo.
Busca-se observar o trabalho docente em duas unidades dos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia, nas áreas das agroindústrias de alimentos e da mecanização na agricultura2, tendo em vista a ontologia do ser social em Marx, essa problematização põe em pauta a discussão sobre o caráter produtivo da atividade docente, verificando-se em que medida essa atividade incorpora valor ou não.
Para analisar a problemática do trabalho intelectual do docente, tomamos como objeto de análise a categoria trabalho produtivo no sistema de produção capitalista. Essa categoria é um elemento histórico e preciso para se compreender o germe da reprodução ampliada do capital.
Desse modo, organizamos, a priori, o texto em quatro pontos de reflexões, a saber: o primeiro diz respeito ao caráter do valor em Marx, e busca-se compreender alguns elementos sobre a teoria do valor, tais como o trabalho que cria valor de uso, o trabalho concreto e o trabalho que gera valor, o trabalho abstrato, entendendo a subordinação do primeiro em relação ao último no modo
2 Trata-se de uma pesquisa de doutorado em andamento, desenvolvida no Programa de Pós- Graduação em Educação da UFMG. Apresentamos, neste artigo, alguns elementos dessa pesquisa como pontos preliminares para uma reflexão crítica.
particular de produção capitalista, a partir da crítica ontológica que Marx desenvolve em contraposição à economia política clássica de Smith e de Ricardo.
No segundo ponto apresenta-se uma breve análise do trabalho produtivo e do trabalho improdutivo sob o capital; examina-se também a relação entre trabalho produtivo e trabalho intelectual, tendo-se em vista o conteúdo material da atividade.
O terceiro refere-se às observações realizadas por Marx dedicadas ao desenvolvimento da maquinaria, em O Capital, no livro I. Em Marx (2013), a máquina (mais precisamente como sistema automático) não é um meio de trabalho do trabalhador individual, nessa parte, atentamos para o fato identificado por Marx acerca da revolução do processo de produção tributário do desenvolvimento científico-tecnológico, que tem origem a partir da “invenção” humana.
Nas análises de Marx, a máquina é expressão do trabalho humano objetivado; já no modo de produção especificamente capitalista, a máquina e a aplicação técnica da ciência tornam-se um potencial para aumentar o capital, esse autor descreve com clareza que a maquinaria nas mãos do capital gera as condições que favorecem o capitalista a se apropriar do trabalho alheio.
Por fim, o quarto ponto remete a uma discussão sobre o trabalho intelectual e sobre o aumento na produtividade do trabalho no campo da agricultura e da agroindústria de alimentos, a partir dos elementos da observação empírica realizada em duas unidades do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia, constata-se que as atividades docentes no campo que estão inseridas, ao mesmo tempo em que humanizam a natureza, pela sua atividade produtiva e criativa, também transferem valor a um produto lucrativo para o capital.
Do ponto de vista da exposição, considerando-se o caráter produtivo do trabalho docente, verifica-se que sua atividade propicia, em certa medida, a transformação do valor de uso em grandeza do valor, aqui, chegamos à conclusão de que esse tipo de trabalho se manifesta também como trabalho produtivo subordinado à relação entre o trabalho e o capital.
No primeiro capítulo sobre a mercadoria, em O Capital, livro I, Marx (2013) esclarece a natureza da riqueza capitalista. Estudar a mercadoria não foi uma escolha ao acaso feita por Marx. O que ele procurava era mostrar de onde provinha a produção da riqueza capitalista. Na sua expressão, é a “imensa acumulação de mercadorias” que configura a forma elementar dessa riqueza.
Por essa razão, ele começa a sua análise a partir da categoria mercadoria. Marx, em sua busca pela compreensão da essência da riqueza capitalista, explica: “Um valor de uso ou um bem só possui, portanto, valor, porque nele está corporificado, materializado, trabalho humano abstrato” (MARX, 2013, p. 60), a sua constatação é de que a mercadoria (forma especial do produto do trabalho) é consequência do dispêndio de força de trabalho.
Marx enfatiza em sua obra o caráter histórico de toda a realidade econômica, e descreve que o valor de uso é o princípio fundamental para a constituição da estrutura do ser social; isto é, o valor de uso que se encontra fora da esfera de investigação da Economia Política é o pressuposto e o fundamento da existência da vida social. Marx parte do princípio de que “qualquer que seja a forma social da riqueza, os valores de uso constituem sempre seu conteúdo, que permanece em primeiro lugar, indiferentemente a essa forma” (MARX, 2008, p. 52).
Nesse sentido, o autor ressalta que o valor de uso fora do modo de produção capitalista é produto do trabalho como resultado do trabalho em geral; ou seja, o valor de uso constitui o “conteúdo material da riqueza”, qualquer que seja a formação social.
O valor de uso, ainda que seja objeto de necessidades sociais e que se articule com a sociedade, não expressa uma “relação de produção social”, diz Marx. O valor de uso, na expressão de Marx, indiferente a qualquer formação social, não tem valor senão para o uso, e não adquire realidade senão no processo de consumo. Esclarece Marx (2008, p. 53): “Os valores de uso são, de modo imediato, meios de existência”; estes são produtos da vida social, originários da força vital gestada pelo homem, de trabalho objetivado. Assim
representa a materialização da natureza pelo trabalho humano. Esta mediação universal do homem com a natureza representa a determinação ontológica fundamental da humanidade3. No entanto, na forma capitalista de produção, essa atividade produtiva é subsumida ao trabalho abstrato e está sujeita, por exemplo, às mediações “propriedade privada”, “intercâmbio” e “divisão do trabalho”, que se interpõem entre o homem e sua atividade (MÉSZÁROS, 2006).
O valor de uso, quando é “determinando de forma econômica”, torna-se diretamente base material de que se manifesta uma relação denominada de valor de troca. Para Marx, o valor de troca aparece “como uma relação quantitativa na qual os valores de uso são permutáveis” (MARX, 2008, p. 54).
Pergunta-se Marx: o que ocorrerá com o trabalho complexo que se eleva acima do nível médio como trabalho de maior intensidade e de peso específico superior? A lei que regula a redução do trabalho é valor de troca (um dia de trabalho complexo equivale a três dias de trabalho simples). Para Marx, está claro que essa redução tem lugar:
[...] pois, enquanto é valor de troca, o produto do trabalho mais complexo é, em proporção determinada, o equivalente do produto do trabalho médio simples; forma, portanto, equação com um quantum determinado desse trabalho simples (MARX, 2008, p. 56- 57).
Marx esclarece que o trabalho complexo é trabalho simples composto, ou seja, o trabalho complexo é trabalho simples de potência mais elevada.
Da análise do valor a partir de Marx, concluímos de forma breve que o valor de uso, substância indiferente à relação econômica formal, no capitalismo, se distingue. O fator determinante do valor é a quantidade do trabalho necessário para a produção de uma mercadoria, daí o trabalho se manifesta em valor de troca. Segundo Marx:
O tempo de trabalho do indivíduo é, desse modo, em realidade, o tempo de trabalho que a sociedade deve gastar para produzir um valor de uso determinado, isto é, para satisfazer uma necessidade determinada (MARX, 2008, p. 58).
3 Ver mais a respeito da teoria da alienação em Marx em: MÉZSÁROS, I. A teoria da alienação em Marx. São Paulo: Boitempo, 2006 (capítulo 2).
Em outras palavras, o valor de troca é uma determinação histórica, enquanto o valor de uso, independentemente de sua forma histórica, é, de modo imediato, meio de existência, como já evidenciamos; isto é, o dispêndio da força de trabalho humana é a substância social que faz o valor de uso manifestar valores. Segundo Marx (2013, p. 58), em O Capital: “Os valores de uso constituem o conteúdo material da riqueza, qualquer que seja a forma social dela”. O exame que Marx faz sobre o valor de uso independe do modo de produção capitalista e se refere à manifestação ou ao resultado do trabalho em geral, o trabalho na sua condição eterna da existência humana. O valor de uso, na forma capitalista de produção, forma histórica, é portador material do valor de troca (Idem).
Para Marx, o trabalho, em uma forma determinada da organização social do trabalho, numa forma de produção historicamente determinada, assume uma qualidade social nova: é trabalho abstrato4. Afirma Marx:
Ao desvanecer o caráter útil dos produtos do trabalho, também desaparece o caráter útil dos trabalhos neles corporificados; desvanecem-se, portanto, as diferentes formas de trabalho concreto, elas não mais se distinguem umas das outras, mas reduzem-se, todas, a uma única espécie de trabalho, o trabalho humano abstrato (MARX, 2013, p. 60).
Os produtos dos trabalhos no modo de produção capitalista representam a massa do dispêndio da força de trabalho humano, sem consideração pela forma como foi despendida; representam apenas a força de trabalho gasta em sua produção, trabalho humano armazenado. Assim, “como configuração dessa substância social que lhe é comum, são valores, valores-mercadorias” (Idem).
4 De acordo com Teixeira (1995, p. 71): “Mas o que se deve entender por trabalho abstrato? A resposta de imediato é a seguinte: por trabalho abstrato deve se entender uma forma histórica de igualação ou socialização dos diversos trabalhos privados, que se realizam independentemente uns dos outros. Na forma social capitalista, porque os homens se defrontam como produtores privados de mercadorias, seus produtos só podem participar do sistema de realização das necessidades sociais mediante a troca. Ao trocarem seus produtos uns pelos outros os produtos estão, na verdade, igualando entre si seus diferentes trabalhos, embora disso não tenham consciência. ‘ao equipararem seus produtos de diferentes espécies na troca, como valores’ esclarece Marx, ‘equiparam seus diferentes trabalhos como trabalho humano. Não o sabem, mas o fazem’ (O Capital, Liv. I, Vol. p. 72)”.
Em outras palavras, Marx explica que um valor de uso ou bem só passa a possuir valor porque nele está corporificado, materializado, o “trabalho humano abstrato”; portanto, a substância constituidora do valor só pode ser o trabalho. Mais adiante Marx abrevia: “O que determina a grandeza do valor, portanto, é a quantidade de trabalho socialmente necessário ou o tempo de trabalho socialmente necessário para produção de um valor de uso” (Ibidem, p. 61).
É importante salientar que, na mercadoria, encontramos simultaneamente trabalho concreto e trabalho abstrato. Não se trata de dois tipos de trabalho, “trata-se de apreciação do mesmo trabalho sob ângulos diferentes: do ângulo do valor de uso, trabalho concreto; do ângulo do valor de troca, trabalho abstrato” (NETTO; BRAZ, 2012, p. 118).
Fica esclarecido que, no modo de produção capitalista, o produto do trabalho representa um determinado volume de trabalho materializado; portanto, a substância do trabalho, ou seja, a atividade produtora ou o trabalho humano abstrato constitui a forma e o conteúdo do valor. A título de exemplo, tem-se hoje o trabalho intelectual envolvido na produção de técnicas e de metodologias (por exemplo, o método in vitro) que modificam as culturas de células e tecidos, utilizando-se da tecnologia do Ácido Desoxirribonucleico (DNA) recombinante para a produção e para a reprodução de plantas de milho e outras (por exemplo: o milho Bt5). Tal realidade representa um exemplo claro da questão do trabalho que produz a substância dos valores a partir da natureza.
Esse trabalho se constitui trabalho concreto, como fonte de riqueza material; em suma, é uma atividade produtora de valores de uso. Mas aqui reside uma questão importante do ponto de vista do capital. Os organismos geneticamente modificados (plantas, animais, microrganismos) por meio de técnicas criadas pela engenharia genética e pela biotecnologia têm sido considerados pelos grandes empreendedores do mercado como “alternativa fundamental” (LONDRES, s/d) para o aumento da produtividade, para a redução
5 Segundo a definição da Embrapa (2011), o milho Bt é o milho geneticamente modificado no qual foram introduzidos genes específicos da bactéria de solo, Bacillus thuringiensis (Bt), que promove na planta a produção de uma proteína tóxica específica para determinados grupos de insetos.
de custos de produção e para a maior extração de lucro; com isso, mantida a relação com o mercado internacional.
Na forma capitalista de produção, o trabalho concreto6 é subordinado ao trabalho abstrato7. O produto do trabalho intelectual docente assume um caráter determinado, uma nova forma social: a de mercadoria. No exemplo, o trabalho intelectual docente está incorporado no objeto do seu trabalho, materializa uma qualidade útil sobre a natureza. Determinada qualidade é a expressão do valor, ou seja, a atividade intelectual agrega valor a um produto que, sob o domínio do capital, se torna propriedade privada e não atende às necessidades imediatas da humanidade; meio de apropriar-se de mais capital, portanto, significa trabalho que valoriza o capital, “trabalho humano abstrato”.
O trabalho docente observado nos Institutos Federais (IFs) na formação dos trabalhadores direcionados à agricultura apresenta características importantes do ponto de vista da reprodução social, tanto do indivíduo quanto da sociedade. Além do envolvimento na formação da pretensa força de trabalho qualificada, está envolvido (o trabalho docente) na mediação e na transformação dos elementos naturais em meios de produção, tais como a utilização e o incremento da tecnologia de alimentos (professor da área de Processamento de Alimentos) e da tecnologia associada à agricultura mecanizada (professor da área de Mecanização e Automação). O trabalho docente desenvolve atividades constitutivas de uma dimensão ontológica que envolve a relação entre os indivíduos e a produção científica, por exemplo, formação de personalidades mais qualificadas, bem como a implementação e a criação de inovações tecnológicas, um dos elementos componentes da sua atividade, e liga-se substantivamente às forças produtivas do trabalho.
6 A categoria trabalho concreto é compreendida por Marx como a eterna necessidade natural de mediação do intercâmbio entre o homem e a natureza. Diz ele: “Como criador de valores de uso, como trabalho útil, é o trabalho, por isso, uma existência do homem, independente de toda forma de sociedade, eterna necessidade natural de mediação do metabolismo entre homem e natureza e, portanto, da vida humana” (O Capital, MARX, 2013, p. 120).
7 Aquele que gera o valor da mercadoria (O Capital, MARX, 2013).
Marx, no capítulo VI, inédito, de O Capital, em contraposição à economia política clássica de A. Smith, diz:
Só a tacanhez mental da burguesia, que tem por absoluta a forma capitalista de produção, e que, consequentemente, a considera forma natural da produção, pode confundir a questão do trabalho produtivo, e do trabalho produtivo do ponto de vista do capital, com a questão do trabalho produtivo em geral, contentando-se assim com a resposta tautológica de que é produtivo todo o trabalho que produz, em geral, ou que desemboca num produto, ou num valor de uso, em resumo: num resultado. (MARX, 2014, p. 109).
Marx chama a atenção para o fato de que o trabalho produtivo, na perspectiva do capital, é determinante, sendo que o produto por excelência da produção capitalista é a mais-valia; portanto, o elemento fundamental para tal efetivação é a capacidade de trabalho. Segundo Marx, do ponto de vista do processo capitalista de produção:
[...] é produtivo aquele trabalho que valoriza diretamente o capital, o que produz mais-valia, ou seja, que se realiza – sem equivalente para o operário, para o executante – numa mais-valia representada por um subproduto (MARX, 2004, p. 109).
Isto é, trabalho que se realiza num incremento excedente de mercadoria para o capitalista. Em síntese: trabalho produtivo é aquele que serve ao capital como meio da sua autovalorização, como meio para a produção de mais-valia.
A compreensão de Marx sobre o caráter histórico e prático da natureza humana, que se constitui por meio das relações sociais, é puramente materialista. Na concepção de Marx, o trabalho como categoria fundante da sociabilidade, antes de qualquer coisa, deve ser compreendido como condição universal da existência humana; revela-se como “um processo de que participam o homem e a natureza, processo em que o ser humano, com sua própria ação, impulsiona, regula e controla seu intercâmbio material com a natureza” (MARX, 2013, p. 211). Portanto, o trabalho aparece como atividade criadora e reprodutora da vida, independente da formação social.
No processo de trabalho, a atividade do homem transforma a natureza, “subordinada a um determinado fim”, no objeto. Daí o produto da sua atividade é um valor de uso, “um material da natureza adaptado às necessidades humanas através da mudança de forma” (Idem). O que se manifestava em ser inerte revela- se, depois da ação humana intencionada, em qualidade fixa, na forma de ser social. Nesse sentido, Marx abrevia que é diretamente trabalho produtivo aquele que produz valor de uso, mas deixa claro que caracterizá-lo de tal modo no capitalismo não é suficiente. Acrescenta:
No capítulo V, estudamos o processo de trabalho em abstrato, independentemente de suas formas históricas, como um processo entre o homem e a natureza. Dizemos: ‘observando-se todo o processo do ponto de vista do resultado, do produto, evidencia-se que meio e objeto de trabalho são meios de produção, e o trabalho é trabalho produtivo’. Na nota 7, acrescentamos: ‘Essa conceituação de trabalho produtivo, derivada apenas do processo de trabalho, não é de modo nenhum adequada ao processo de produção capitalista’ (MARX, 2014, p. 585).
Marx, ao longo de sua obra, vai explicitar essa questão, de modo que fica claro o seu sentido. Esclarece, por exemplo, que, no modo de produção capitalista, não basta produzir valor de uso. Para ser produtivo no processo de produção capitalista, o trabalho deve ser assalariado, e não só isso: o trabalho produtivo precisa também produzir valor de uso que seja veículo de troca. O trabalho produtivo, na acepção de Marx, corresponde a dois polos constituintes: efetiva uma riqueza material, é uma atividade produtiva para suprir a necessidade humana; por outro lado, toma forma social determinada historicamente, e se compreende pelo dispêndio de força de trabalho humano que valoriza o capital. Daí a crítica à “tacanhez mental da burguesia”, que não compreende a forma e o conteúdo da riqueza material, abstraída da forma capitalista.
Em Teorias da mais-valia, Marx esclarece que tanto os trabalhadores manuais quanto os trabalhadores intelectuais são produtivos para o capital:
Nessa categoria de trabalhadores produtivos figuram naturalmente os que, seja como for, contribuem para produzir a mercadoria, desde o verdadeiro trabalhador manual até o gerente, o engenheiro (distintos do capitalista). (MARX, 1987, p. 136).
A respeito da questão referente ao ato de “produzir mercadoria”, apresentamos alguns esclarecimentos, considerando a determinação do valor pelo dispêndio da força de trabalho a partir de Marx, que percebeu a confusão e a contradição de Smith, ao tratar o trabalho produtivo como “aquele que produz ‘mercadoria’, e o improdutivo sendo aquele que não produz mercadoria alguma”. Diferente de Smith, Marx considera a força de trabalho como uma forma de mercadoria, aquela cuja exteriorização é o próprio trabalho.
Ele chama a atenção para o fato de que a mercadoria é substância “dotada de existência diferente do próprio trabalho”, e diz: é “certo que, a mercadoria se patenteia trabalho pretérito, objetivado e que, por isso, se não aparece na forma de uma coisa, só pode aparecer na forma da própria força de trabalho” (Idem). Isto é, a mercadoria aparece em duas categorias: força de trabalho e as próprias mercadorias. Marx vê a mercadoria como determinada quantidade de trabalho social, e continua: “É possível que o trabalho concreto de que resulta, nela não deixe vestígio” (MARX, 1987, p. 151).
Em termos gerais, Marx toma como ponto de partida a forma social ou capitalista de organização do trabalho para definir ou qualificar o trabalho produtivo. Segundo Rubin (1987, p. 287): “A participação do trabalho na produção de bens de consumo (não necessariamente bens materiais) representa, para Marx, uma propriedade adicional do caráter produtivo do trabalho, mas não seu critério”.
O critério, para Marx, é exatamente a forma capitalista de organização do trabalho, “à sua concepção de que na sociedade capitalista a força motriz do desenvolvimento é o capital” (Idem). Em síntese, para Marx, trabalho produtivo é somente aquele que produz mais-valia, ou seja, trabalho produtivo é todo aquele que é empregado pelo capital e consumido no “processo de produção”, com vista à valorização do capital (MARX, 2014, p. 108).
Na concepção de Marx, há trabalhos que não são improdutivos para o capital. Segundo Marx: “A diferença entre o trabalho produtivo e o improdutivo consiste tão somente no fato de o trabalho trocar-se por dinheiro como dinheiro ou por dinheiro como capital” (MARX, 2004, p. 119). Marx chega à constatação de
que, no caso dos serviços, compra-se trabalho, mas se compra por seu valor de uso particular; trata-se de uma troca por dinheiro como dinheiro, ou seja, “na compra de serviços não está de maneira nenhuma contida a relação entre o trabalho e o capital” (Idem).
A partir de tal compreensão, chegamos à constatação de que a atividade científica do trabalho intelectual produz uma mercadoria que custa determinada quantidade de trabalho. Por exemplo, na agricultura, a forma adquirida da técnica mecanizada de produção de milho, trigo, arroz etc., por certo, é fruto de trabalho transmitido através de gerações e, em determinadas circunstâncias, o produto desse trabalho concreto e atual entra numa relação social de produção capitalista, como novos meios de produzir mais-valia.
Marx, ao explicar sobre o desenvolvimento da maquinaria, explicita o caráter ontológico de um estágio da produção e identifica a invenção científica como um elemento histórico-social originário da mediação do homem e da natureza. Noutras palavras, Marx vê como elemento do processo de trabalho a invenção científica como fator de contradição8 e de modificação do processo de produção.
Marx começa o capítulo XIII, intitulado “A maquinaria e a indústria moderna”, em O Capital, afirmando qual é o objetivo da maquinaria, sob o domínio do capital, ao fazer uma correção em um trecho da obra de John Stuart Mill, em que ele se referia ao fato de ser “duvidoso que as invenções mecânicas feitas até agora tenham aliviado a labuta diária de algum ser humano” (MILL, apud MARX, 2013, p. 427).
Segundo Marx (2013), não é esse o objetivo do capital, quando emprega a maquinaria. O desenvolvimento da maquinaria como força produtiva do trabalho, produto do trabalho humano, sob o domínio do capital, tem como finalidade
8 Segundo Marx (2013, p. 465): “Há, portanto, uma contradição imanente na aplicação da maquinaria para produzir mais-valia, pois, dos dois fatores da mais-valia obtida com um capital de magnitude dada, um fator, a taxa da mais-valia, só pode ser aumentado por essa aplicação se ela diminuir o outro fator, o número de trabalhadores”.
“baratear as mercadorias, encurtar a parte do dia de trabalho da qual precisa o trabalhador para si mesmo, para ampliar a outra parte que ele dá gratuitamente ao capitalista” (Ibidem, p. 427). Ou seja, a maquinaria no sistema capitalista é meio para produzir mais-valia. Depois dessa consideração, Marx, em nota de rodapé, faz uma correção na citação de Mill e escreve: “Mill deveria ter dito: De algum ser humano que não viva do trabalho alheio. As máquinas aumentam, certamente, o número dos abastados ociosos” (MARX, 2013, p. 427, nota 86).
A relação do homem com a natureza, em que as forças da natureza (vento, água, vapor etc.) são colocadas e controladas pelo homem a favor dos fins determinados pelo próprio homem, possibilitou a transformação de ferramentas manuais em máquinas. Assim, a força motriz exercida pelo homem é substituída por forças naturais. Todo esse desenvolvimento científico e técnico, ou seja, a aplicação da ciência como elemento da produção mecanizada, correspondia, para Marx, à revolução industrial.
Produzir tecnologia significa, na lei do mercado, diminuir os custos e aumentar a produtividade. Nesse sentido, Marx é atual, ao verificar que a dinâmica científica e tecnológica se tornava meio de expansão do capital. No campo da ciência natural, de modo particular, testemunhamos como se move o desenvolvimento científico sob o comando do capital. As observações acima nos permitem compreender a realidade atual como desdobramento da forma de produção social do homem, ou seja, como consequência do desenvolvimento histórico. Os pressupostos apresentados por Marx para a compreensão da realidade são fundamentais para a apreensão da dinâmica de acumulação de capital no estágio atual da sociedade capitalista.
Toda mudança de produção e de forma de apropriação de mais-trabalho é resultado das contradições entre forças produtivas e relações sociais de produção, com várias implicações e consequências. Tomamos como exemplo a aplicação da ciência e da tecnologia na agricultura e na agroindústria de processamento de alimentos, para demonstrar a continuidade do desenvolvimento do indivíduo social em determinadas atividades especializadas em que, ao se apropriar do conhecimento acumulado pelo gênero humano, cria, e não apenas reproduz novos métodos de produção.
Sem dúvida, são atividades que se efetivam a partir do intercâmbio do homem com a natureza, novas formas de ser. O homem regula e põe em movimento a natureza sob o seu domínio de forma cada vez mais complexa, desde o adestramento do animal até as mais sofisticadas máquinas (uso da energia, água, ar, processos químicos, minério etc.) e a automação.
O processo de produção de base técnica impulsiona uma contínua transformação do trabalho, modificando “[...] as funções dos trabalhadores e as combinações sociais do processo de trabalho” (MARX, 2013, p. 551). Marx destaca essa tendência mostrando que os processos de produção de base técnica, por sua natureza, exigem a variação do trabalho, isto é, novas funções vão surgindo com o desenvolvimento e com o aumento das forças produtivas, aperfeiçoando as formas de trabalho excedente. É uma contradição, pois esse processo, sob o domínio do capital, coloca em ameaça as condições de vida do trabalhador.
A produção de base técnica faz surgir formas diferentes e sucessivas de atividades9, e isto é um fator importante que levou à necessidade de especialização e de qualificação de trabalhadores para o aperfeiçoamento e para o desenvolvimento da produção moderna. Nesse sentido, as escolas profissionais e tecnológicas aparecem como fatores desse processo de transformação no curso da contradição posta pelo capital: quanto mais se aumenta a força da aplicação da ciência, a força produtiva das máquinas, “tanto maior o serviço gratuito que prestam” ao capital. Ao mesmo tempo, com os pressupostos da indústria moderna, “aprende o homem a fazer o produto de seu trabalho passado, o trabalho já materializado, [...]” (MARX, 2013, p. 444).
9 Na agricultura, por exemplo, na produção mecanizada, não se utiliza mais a figura do tratorista, e sim a do operador de máquinas [nota de observação no campo de trabalho docente em mecanização]. Conforme Molin, Amaral e Colaço (2015, p. 214): “A cana-de açúcar tem os sistemas de direção automática como potenciais aliados, por se tratar de uma cultura semiperene. O seu sistema de produção consiste em diversas operações mecanizadas, empregadas desde a sua implantação, com o preparo do solo e plantio, passando pelos tratos culturais durante o seu desenvolvimento até chegar à colheita durante o estádio de maturação”. Entretanto, o que os autores nos mostram é que o sistema operacional automático desenvolve na lavoura uma ação potencialmente produtiva, e que tal operação mecanizada depende de um operador de novo tipo. Nesse sentido, o cultivo e a colheita da cana-de-açúcar podem ilustrar a (re)produção e a aplicação do princípio automático.
O caráter revolucionário da indústria moderna modificou profundamente diversos setores de produção. Por ora, aqui, evidenciaremos alguns elementos da relação social de produção na agricultura, mais detidamente a relação dos professores inseridos na formação profissional e tecnológica dos trabalhadores ligados diretamente à aplicação da tecnologia e da ciência na agricultura.
Segundo Marx (2013, p. 570), o modo de produção capitalista “[...] cria as condições materiais para uma síntese nova, superior, para a união da agricultura e da indústria”. Na agricultura moderna, assim como na indústria, “o aumento da força produtiva e a maior mobilização do trabalho” se dão no progresso do despojamento do trabalhador, e esse é o progresso da agricultura capitalista.
Na atualidade, a dinâmica de exploração do trabalho tem se aprofundado com o desenvolvimento das forças produtivas do trabalho; um exemplo acentuado no campo da agricultura é, a expansão da forma de se produzir alimentos, que inclui a evolução da ciência, mecanismos de aplicação nas formas de processamento, bem como a industrialização de alimentos, o papel das agroindústrias de alimentos tem ampliado as formas de apropriação do lucro. A educação dos trabalhadores tem servido ao sistema capitalista como mediação social do desenvolvimento de habilidades e de ampliação dos meios de produção eficazes a novas formas de produção de natureza científica; nesse sentido, o trabalho docente aparece com a função social também de transferir ou de produzir valor de uso social. Podemos sinalizar como exemplo a atividade docente de um professor na área de Processamento de Alimentos, que envolve o ensino e a forma aplicada de como
Aumentar o período durante o qual o alimento permanece adequado para o consumo (vida de prateleira) por meio de técnicas de preservação que inibam mudanças microbiológicas e bioquímicas, permitindo o tempo necessário para distribuição, vendas e armazenagem caseira (FELLOWS, 2006).
Envolve também a manipulação, o controle, a regulação e as descobertas das formas de reprodução biológica do ser vivo fora dos seus padrões naturais (por exemplo: a biotecnologia na produção alimentícia); trata-se, nessa particularidade, de uma objetivação que envolve mãos e cérebro. Em outras
palavras, trata-se de uma atividade que transfere ao objeto uma sustância social, ou seja, dá origem a um ‘valor de uso social’ a partir do domínio das forças da natureza (Nota de observação n. 2; 2017).
Desse modo, verifica-se que a produção do trabalho docente não se restringe ou se limita, em dadas circunstâncias, à função de transmissão de conhecimentos científicos. Envolve também as modificações e a produção de instrumentos de trabalho em forma social, ou seja, em produtos inovadores que respondem satisfatoriamente às necessidades geradas no sistema produtivo. O conteúdo do trabalho docente, em determinada proporção, contribui para o desenvolvimento das forças produtivas e, consequentemente, amplia a produtividade do trabalho.
A produção na agricultura e sua inter-relação com a indústria é um dos ramos mais lucrativos para o capitalismo na atualidade. Isso incide sobre a dinâmica de trabalho do professor quanto à formação dos trabalhadores para esse e para outros ramos da estrutura produtiva e quanto mais se desenvolve, no sentido de se reproduzir o capital, mais se aumenta a necessidade de transformação da base técnica de produção.
Nesse sentido, as escolas preparatórias de trabalhadores para o mercado aparecem como grandes oficinas de criação de invenções científicas ou de produções de tecnologias, para atender aos interesses demandados pelo grande mercado. No campo da agricultura, as ciências e as tecnologias aplicadas ganham proeminência no processo social de produção, propiciando, em alguma medida, a evolução das forças produtivas.
Mostramos aqui, a partir de algumas observações de Marx, que as tendências cristalizadas pelo avanço das ciências aplicadas ao modo de produção têm favorecido o incremento do capital; de forma mais aperfeiçoada, as relações de produção existentes até então contam com a atividade intelectual no campo da agricultura não mais somente na ampliação da maquinaria, mas também de atividades voltadas para a aplicação de tecnologias da informação associadas à máquina.
As estratégias da tecnologia da informação e de automação visam propiciar o aumento da produtividade com o mínimo de custo e de mão de obra. Tais
estratégias respondem ao que os especialistas da área denominam de “potencial de resposta”, ou seja, para maior lucratividade e menos custos, para alcançar maior exatidão econômica, os indivíduos criam as condições concretas para tal.
Essa observação pode ilustrar o trabalho docente no campo da mecanização agrícola, que envolve, além do ensino da ciência da mecânica, além da formação do operador de máquinas, simultaneamente, o incremento da inovação tecnológica aplicada à agricultura – o desenvolvimento de meios ou de ferramentas de trabalho dessa natureza é objeto da atividade docente tanto em universidades quanto nos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia, onde as atividades de ensino e de pesquisa aplicada estão interligadas. O trabalho docente observado no ramo da mecanização agrícola no IF, mais detidamente no Norte de Minas Gerais, incorpora aos mecanismos de produção agrícola inovações associadas à ferramenta denominada de Agricultura de Precisão (AP), compreendida como um conjunto de tecnologias que promovem melhorias no sistema de produção, com o auxílio de mecanização e de automação.
As técnicas desenvolvidas pelo trabalho intelectual docente criam estratégias que envolvem novas dimensões e o desenvolvimento da mecanização no cultivo do solo e das culturas; ou seja, o esforço da atividade intelectual viabiliza novas operações mecanizadas, associadas com outras habilidades de caráter tecnológico, levando em conta as diferenças das áreas produtivas.
Nesse sentido, pergunta-se: quais as consequências dessa atividade para a sociedade? Tal atividade, por um lado, amplia o potencial das forças produtivas, no sentido de garantir maior produtividade no campo da agricultura; a aplicação dessa ferramenta parametriza o uso e a quantidade adequada de insumos, bem como a utilização de energia, sementes e água.
Por outro lado, isso, nas mãos dos capitalistas, representa um meio de absorver mais-valor, isto é, propicia a maximização do lucro e a redução dos custos de produção. A natureza dessa atividade aparece como conteúdo que configura ou que transfere valor a um dado importante na valorização do capital.
Compreende-se que, para a reprodução do capital, é necessária a constante reprodução da classe trabalhadora. Após o advento da indústria
moderna, o que importa aos capitalistas é uma classe trabalhadora, inclusive uma massa de trabalhadores qualificados, que, junto a uma massa de trabalhadores existentes ou desqualificados, impulsiona os processos de produção. Marx, em O Capital, na parte sétima, sobre a Acumulação de capital, diz:
O capitalista considera a existência de uma classe trabalhadora dotada de habilidade entre as condições de produção que lhe pertencem; vê nela a existência real de seu capital variável (MARX, 2013, p. 677).
A fim de assegurar a reprodução ampliada e constante do capital, o Estado e as empresas capitalistas viabilizam as condições propícias para tal comandando o processo de formação dos trabalhadores, ou seja, utilizam-se dos mecanismos sociais para reforçar a exploração do trabalho, seja ele de caráter qualificado ou não. De forma mediata, contribui para a produção da força de trabalho que cria a riqueza alheia – estamos falando da formação adequada dos trabalhadores para a atual demanda do mercado, em que o contínuo “progresso tecnológico” na produção requer sempre novas invenções.
A função social do trabalho docente em tela está inserida na estrutura produtiva; não só atende à necessidade de autorreprodução do indivíduo, mas também se manifesta e favorece as condições concretas dos elementos formadores da possibilidade de levar a cabo a luta pela emancipação humana. Tal pressuposto faz do proletário docente um trabalhador produtivo.
Não se trata apenas de um trabalho qualificado que, a propósito, é considerado superior ou complexo em relação ao trabalho social médio, por razão da força de trabalho constituir-se a partir de um custo de aprendizagem maior ou superior; essa é uma lógica de mensuração efetivada pelo mercado. Marx, nesse sentido, observou que o valor dessa força é maior; consequentemente, manifesta um trabalho superior e se materializa em valores proporcionalmente maiores10.
Verificamos que o trabalho docente, em determinadas circunstâncias, manifesta-se como trabalho que incorpora valor, na medida em que produz uma objetivação capaz de multiplicar o valor que possui. Um mecanismo ou uma
10 O problema do trabalho qualificado pode ser conferido em Rosdolsky (2001, p. 432), a partir de
O Capital, de Karl Marx.
ferramenta de trabalho incrementada pela atividade docente, que assegura economia de tempo e de insumos, supõe, para o capital, mais-valia.
Na visão de Carcanholo (2008), os trabalhos dos professores, quaisquer que sejam, desempenham apenas um papel: transformar força de trabalho simples em força de trabalho potenciada ou complexa.
O autor percebe um lado do trabalho dos professores de modo geral, segundo esse autor, todo o trabalho que produz uma força de trabalho mais qualificada, ou mesmo aquele que simplesmente produz a sua manutenção, seja ele do setor privado ou do público, deve ser qualificado de produtivo no nível de abstração mais concreto (CARCANHOLO, 2008, p. 14).
Na análise que fazemos, destacamos um duplo caráter do trabalho docente: a transmissão de um conjunto de determinados saberes e o incremento de novos meios de produção, por meio da aplicação da ciência e de tecnologias; além de propiciar a formação qualificada, o docente, em determinadas circunstâncias, aparece como indivíduo produtor de inovações tecnológicas e de condições objetivas de produção.
Nesse sentido, o trabalho docente manifesta-se em mais-trabalho, pois, em certa medida, ele extrapola o trabalho necessário e cria os meios pelos quais o capital se valoriza e se reproduz. Essa afirmação é possível em decorrência de uma apreensão marxiana:
A produtividade do trabalho é determinada pelas mais diversas circunstâncias, dentre elas a destreza média dos trabalhadores, o grau de desenvolvimento da ciência e sua aplicação tecnológica, a organização social do processo de produção, o volume e a eficácia dos meios de produção e as condições naturais. (MARX, 2013, p. 62).
A produtividade do trabalho humano, em intercâmbio com a natureza, realizada pela atividade docente, em parte, é capturada pelo capital. O constante incremento da inovação tecnológica, a produtividade expressa em mais-produto, mediante a relação de trabalho desenvolvida na docência no campo das ciências agrárias, revela-se como condição geral do processo de produção capitalista. A ciência aplicada às tecnologias na agricultura, engendrada pelo trabalho docente, potencializa a produtividade do trabalho, em relação ao valor das mercadorias.
Pode-se afirmar que o aperfeiçoamento e o incremento de meios de produção voltados, de modo particular, para o melhoramento e para o aumento da produtividade da agricultura, seja por meio da tecnologia de alimentos, seja pela mecanização agrícola, como objeto do trabalho docente, correspondem ao aumento das forças produtivas pelo trabalho intelectual.
Isto é, há trabalho qualificado cuja aplicação tecnológica constitui uma destreza especializada do trabalhador que, consequentemente, amplia a produtividade do trabalho. A inovação científica reduz a unidade de tempo de trabalho necessário, em função da implementação contínua da maquinaria. Isso intensifica a extração de tempo de trabalho, ou seja, isso significa extração de trabalho excedente, portanto, de mais-valia (valor excedente).
Nesse sentido, a força de trabalho do trabalhador docente tem a sua natureza alterada, modificada a partir da ampliação das forças produtivas, pois o valor que incorpora à mercadoria é qualitativamente maior que o valor no qual se baseia a sua força de trabalho que, por sua vez, define a sua remuneração.
Afirma Marx, em O Capital:
Os métodos rotineiros e irracionais da agricultura são substituídos pela aplicação consciente, tecnológica, da ciência. O modo de produção capitalista completa a ruptura dos laços primitivos que, no começo, uniam a agricultura e a manufatura. Mas, ao mesmo tempo, cria as condições materiais para uma síntese nova, superior, para a união da agricultura e da indústria, na base das estruturas que desenvolveram em mútua oposição (MARX, 2013, p. 570).
A síntese que fazemos da atividade intelectual no modo de produção capitalista moderno pode ser um exemplo do que Marx expressava quanto à produção capitalista levar, por um lado, ao aumento da força produtiva, como na indústria, e, por outro, ao progresso da agricultura moderna – assim como as fontes originais de toda riqueza, a terra e o trabalhador estariam aprisionados ao domínio do capital.
A revolução realizada pela indústria moderna na agricultura é, na atualidade, algo sobre a qual não era possível Marx escrever com precisão, mas é incrível verificar em seus textos que o modo de produzir a partir da aplicação consciente da tecnologia e da ciência modifica as relações sociais dos agentes de produção.
Retomando a um exemplo citado anteriormente, em relação ao trabalho docente ligado ao aperfeiçoamento da ferramenta Agricultura de Precisão, pode- se compreender que tal atividade é um exemplo das mais complexas consequências do desenvolvimento da indústria de máquinas agrícolas, de técnicas de agricultura que buscavam e que buscam lidar com “variabilidade espacial de características do solo” (MOLIN; AMARAL; COLAÇO, 2015).
Trata-se de uma busca de modo contínuo por criar novas técnicas ou meios de trabalho, bem como aperfeiçoar as técnicas de mapeamento da produtividade das lavouras de grãos e de aplicações de georreferenciamento na agricultura.
As primeiras atividades de utilização e de implementação da Agricultura de Precisão começaram a ser difundidas pelas universidades: Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz” da Universidade de São Paulo (Esalq/USP), Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e a Universidade Federal de Viçosa (UFV). Hoje, no Brasil, a Agricultura de Precisão está em implementação e aperfeiçoamento, outras instituições passaram a trabalhar com essa nova perspectiva inovadora, inclusive os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia.
Esse desenvolvimento tecnológico quanto aos sistemas de produção agrícola substitui os sistemas de produção anteriores, considerados uniformes, cujas técnicas de manejo não consideravam a grande variabilidade da produção e da qualidade hoje detectada; isso requereu uma nova formação da mão de obra e novas experimentações.
A Agricultura de Precisão é uma prática de agricultura em implementação, tendo como base um sistema de gerenciamento de informações de variabilidade do solo e do clima alinhado com processos de plantação e de colheita, a cada momento, essa técnica cresce em potencial, a partir da introdução de métodos e
de avanços tecnológicos, por meio da utilização e da criação de novas e aperfeiçoadas formas de operacionalização da produtividade da agricultura, tais como a inclusão do Sistema de Posicionamento Global (GPS) e as tecnologias de sensoriamentos remotos, ambos aplicados à agricultura.
Esse valor produzido pela capacidade do trabalho intelectual contribui diretamente para a elevação do montante total dos lucros do capital. As técnicas e as ferramentas produzidas pelo trabalho intelectual aparecem na sociedade como meios e condições do processo de trabalho que, sob o domínio do capital, constitui valores.
Ou seja, a inovação tecnológica, produto do trabalho, toma forma dominada pelas leis do mercado capitalista, que são utilizadas para a maximização do lucro e para o aumento da expropriação do trabalho alheio. O produto da atividade docente aparece como um valor de uso útil às determinações formais do processo de produção, com vista à valorização do capital.
O trabalho docente em análise aparece como elemento presente no desenvolvimento das forças produtivas sociais e constitui fator subjetivo de transformações no processo de valorização do capital. O que nos permite apreender que a sua essência, assim como demonstrado, configura novas formas de organização da produção material e social.
O trabalho docente, em determinadas circunstâncias, no processo social de produção, além de reproduzir valor, cria novos valores. Podemos afirmar que o trabalho docente, em relação à produção de inovação tecnológica, por exemplo, engendra o desenvolvimento das forças produtivas, especialmente na acumulação da massa material e na incrementação e no aperfeiçoamento da maquinaria.
Percebemos que o caráter técnico-científico da atividade docente altera a forma de se produzir mercadorias e, consequentemente, amplia as possibilidades
de apropriação de mais-valia, transformando os processos de trabalho, reduzindo em larga medida a intervenção humana no processo de produção social.
O resultado do trabalho docente, tanto no campo da agricultura quanto na agroindústria, de modo particular, tem contribuído para a ampliação da produção agrícola, a partir da aplicação da ciência e da tecnologia. O que, consequentemente, tem ampliado a velocidade da produção nesse setor, reduzindo os custos da fase produtiva. A invenção contínua, efetivada pelo trabalho docente, para além do papel de educar para o trabalho qualificado (conservação e reprodução da classe trabalhadora), propicia em larga escala o aumento da produtividade social do trabalho.
Em síntese, as invenções tecnológicas produzidas e em aperfeiçoamento, aplicadas no processo de produção, têm acelerado a produção crescente de alimentos e o incremento de matéria-prima para a indústria, além de terem ampliado os ramos das pesquisas de aplicação tecnológica na agricultura. Assim, toda essa produção, de modo geral, é convertida em instrumentos de apropriação de mais-valia.
Esses produtos do trabalho docente são convertidos em meios de acumulação do capital, ou seja, sob o domínio dos capitalistas, tais produtos são convertidos em mercadorias, o que pressupõe a sua reconversão em capital. Nesse sentido, a atividade intelectual é produtiva para o capitalista e para o Estado (MARX, 2013), pois se constitui em meio de produção da riqueza privada.
O trabalho docente na área da agricultura, nos exemplos apresentados, tem mostrado dimensões que possibilitam o incremento expressivo e potencialmente produtivo do ponto de vista social, o que expressa um caráter vantajoso para a reprodução ampliada do capital.
Os trabalhos intelectuais nesse setor têm engendrado novas formas de produzir, criando novas variedades de extração de mais-trabalho, por exemplo: o milho híbrido, o milho Bt, novas e aprimoradas formas de reprodução de animais, o plantio e a colheita mecanizada, etc; ou seja, aos velhos meios de trabalhos têm sido incorporadas novas funções, a partir da aplicação da ciência.
O incremento crescente da produção de valor de uso pelo trabalho intelectual possibilita o aumento da produtividade do trabalho, a produção dos
trabalhos que mostramos acima aparece como contradição da capacidade de produzir: por um lado, é a capacidade social de produzir valor de uso para suprir uma necessidade humana; por outro, é expressão da capacidade de produzir valor, esforço de trabalho usurpado pela necessidade de ampliar em proporção superior a forma de reprodução de capital.
A aplicação da tecnologia transforma a natureza em objeto útil à produção, ou seja, o dispêndio da força de trabalho intelectual é fonte para produzir riqueza em sua forma determinada.
A atividade intelectual do professor, para além da transferência de saberes e habilidades, torna-se um componente da produção material. Nesse sentido, concordamos com Cotrim (s/d, p. 4), quando afirma: “[...] o trabalho intelectual não somente é compatível com a produção em forma capitalista, como é posto como força produtiva central pelo próprio capital”.
Em relação ao trabalho docente em análise, enfatiza-se a contribuição do esforço intelectual para a construção de possibilidades concretas da transformação social, que se encontram na objetivação do trabalho, em última análise, o trabalho docente aparece consubstanciado à produção e à transferência de valor, o que faz, em determinadas circunstâncias, gerar mais- valia, esse caráter da atividade não só é compatível com a produção na forma capitalista, mas também demonstra potencialmente a possibilidade de existência do sujeito revolucionário diante da dinâmica atual do capital, o que, para nós, constitui a grande questão.
CARCANHOLO, Reinaldo A. Capitalismo contemporâneo e trabalho produtivo.
Revista de Economia, v. 34, n. especial, 2008.
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Recebido em: 28 de dezembro de 2018. Aprovado em: 21 de março de 2018. Publicado em: 13 de junho de 2018.
BEMVINDO, Vitor. Por uma história da educação politécnica: concepções, experiências e perspectivas. 2016. Tese de Doutorado em Educação, do Programa de Pós-graduação em Educação (Mestrado e Doutorado), da Faculdade de Educação, da Universidade Federal Fluminense – Niterói-RJ.1 2
É comum notar, nos trabalhos do campo Trabalho-Educação, o conceito de educação politécnica ou politecnia associado à concepção marxista de educação. De fato, Marx elaborou esparsas ideias de uma pedagogia na qual a politecnia teria um papel central. No entanto, esse mesmo conceito já havia sido apropriado por distintos grupos, com diferentes sentidos políticos-pedagógicos, associados aos projetos de sociedade defendidos por cada um desses grupos. A tese “Por uma História da Educação Politécnica: Concepções, Experiências e Perspectivas” consiste em um esforço de pesquisa e análise histórica do processo de (re)construção do conceito de educação politécnica.
Admitimos, portanto, que o conceito de educação politécnica está em disputa e remontamos esse processo de disputas às suas origens no século XIX. Observamos que as primeiras instituições a se valerem do termo “politécnico” surgiram na França, pouco tempo depois da Revolução de 1789. As primeiras escolas politécnicas tinham um forte caráter classista e eram voltadas para a
1 DOI: https://doi.org/10.22409/tn.16i29.p4645
2 Vitor Bemvindo é Doutor em Educação pela Universidade Federal Fluminense, Mestre em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e professor substituto do Departamento de Fundamentos de Educação da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Tese orientada pela Professora Dra. Maria Ciavatta, defendida no dia 24 de fevereiro de 2016. Foi indicada em 2017, pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da UFF, ao Prêmio Capes de Tese e ao Prêmio UFF de Tese.
formação de uma nova elite burguesa que assumira o poder. Além disso, essas escolas tinham uma preocupação fundamental com o desenvolvimento do processo produtivo capitalista na França e se voltavam para a formação de quadros técnicos que seriam responsáveis por dirigir a produção.
A escola politécnica mais representativa da concepção burguesa de politecnia do início do século XIX foi a École Polytechnique (Escola Politécnica de Paris), que desenvolveu um modelo de formação e que foi replicado em diversas outras escolas do mesmo tipo em várias partes da Europa, e até mesmo no Brasil. Entre as principais características das escolas politécnicas burguesas estava o rigoroso processo de admissão que restringia quase que por completo a possibilidade de acesso às classes trabalhadoras. A valorização da cultura e das ideologias da burguesia, a criação de um espírito de corpo (BOURDIEU,1989, p.110-111), com padrões de comportamento e de práticas pedagógicas, a valorização do positivismo e a crença na transformação social através da ciência também estão entre os atributos dessas escolas.
Apesar de haver uma evidente relação entre essas escolas politécnicas e a formação para o trabalho produtivo, as restrições às classes trabalhadoras fizeram com que essas instituições de ensino fossem responsáveis pela formação de uma tecnocracia capaz de dirigir tanto o processo produtivo como o processo político. Esse mesmo “modelo politécnico” foi importado para o Brasil a partir de meados do século XIX, sendo as principais representantes desse modelo as Escolas Politécnicas do Rio de Janeiro e de São Paulo, hoje incorporadas respectivamente à Universidade Federal do Rio de Janeiro e à Universidade de São Paulo.
O processo de apropriação do conceito de politecnia pelo campo crítico iniciou-se com os socialistas utópicos, que tentaram implementar escolas onde o trabalho produtivo e o ensino tivessem uma relação direta. O socialista utópico que levou essa ideia mais adiante foi Robert Owen, que implementou uma experiência em New Lanark, na Escócia, onde as relações de trabalho fugiam do padrão de exploração capitalista, típico da primeira metade do século XIX e onde os processos de formação a partir do trabalho eram valorizados.
Os anarquistas também construíram sua concepção de educação politécnica, a partir das contribuições de Pierre Joseph Proudhon, Mikhail Bakunin, Paul Robin, Sébastien Faure e Célestin Freinet. Os socialistas libertários entendiam o trabalho como um elemento fundamental para a formação da classe trabalhadora e, assim como os utópicos, eram críticos dos efeitos da divisão social do trabalho na educação. Defendiam uma concepção de educação que rompesse com a dicotomia entre trabalho intelectual e manual, no entanto, rechaçavam a intervenção estatal nos processos formativos.
As contribuições dos socialistas utópicos e libertários foram importantes para as formulações de Marx e Engels sobre a educação. Ambos defenderam a politecnia como um dos elementos da concepção socialista de educação, que deveria ter no trabalho um elemento central. Assim como os anarquistas, Marx defendia o fim da dissociação do trabalho intelectual e manual e pressupunha a transformação da sociedade.
O marxismo avançou nas formulações sobre a escola única do trabalho a partir das contribuições de Antonio Gramsci e suas reflexões sobre o trabalho como princípio educativo. As proposições do autor italiano apresentam um avanço em relação às ideias de Marx e Engels, pois Gramsci entende o trabalho como um elemento formativo a ser incorporado em todos os níveis de formação e não apenas dentro da fábrica. A proposta de escola única gramsciana rompe com a dualidade educacional imposta pelas propostas burguesas de educação e sugere uma escola desinteressada, na qual o trabalho não será um elemento de formação pragmática, mas sim de caráter emancipador. Há um elemento comum entre todas as concepções de educação politécnicas analisadas no primeiro capítulo da tese: o vínculo entre educação e trabalho.
No segundo capítulo, concentramo-nos no estudo de duas experiências do dito socialismo real, que se apropriaram da concepção marxiana-engeliana de educação politécnica: a União Soviética e Cuba. Em ambos os países, houve uma série de debates e controvérsias em torno das diferentes interpretações sobre o conceito.
Na União Soviética, o tema da politecnia foi alvo de ferozes disputas internas entre pedagogos da primeira geração de líderes revolucionários. Havia
um grande embate entre os defensores de uma educação centrada no trabalho, mas que desse ênfase aos aspectos da formação integral do trabalhador, e os que argumentavam em prol de um modelo formativo mais pragmático, que atendesse às demandas imediatas do desenvolvimento econômico do país. Essa segunda visão da educação foi a que prevaleceu com a ascensão do stalinismo, colocando as ideias de pedagogos como Krupskaia, Pistrak, Shulgin, entre outros, em completo ostracismo.
Por sua vez, em Cuba, a concepção marxista de educação politécnica ganha novo sentido, em especial pela conjugação desse conceito com as ideias de José Martí. O Apóstolo da Independência cubana defendia uma “educação para a vida” e via no trabalho, em seu sentido ontológico, um elemento importante para a formação integral e emancipação dos sujeitos. Após 1961, com a declaração do caráter socialista da Revolução Cubana, a politecnia assume papel primordial na formação dos cubanos. Atualmente os Institutos Politécnicos são exemplos bem-sucedidos da vinculação entre trabalho e educação.
No Brasil, as concepções críticas de educação politécnica só passam a fazer parte do debate educacional a partir dos anos de 1980, durante o processo de redemocratização do país. Os mais de vinte anos de ditadura impediram que esse tema fosse tratado na formulação de políticas públicas para a educação. Durante a Assembleia Constituinte, o conceito de politecnia passa a ser abertamente discutido entre educadores e as forças políticas daquele momento. Um projeto de Leis de Diretrizes e Bases da Educação foi redigido pelo professor Demerval Saviani, contemplando a formação politécnica como elemento balizador do ensino médio. Apesar de o projeto ter sido colocado em discussão, a proposta foi derrotada. Durante os anos de 1990, com a hegemonia do neoliberalismo, os temas relacionados à politecnia voltam a ser negligenciados nas formulações das políticas educacionais, restringindo-se aos debates nos campos políticos minoritários e acadêmicos. A aprovação do Decreto n. 2208, em 1997, robustece a hegemonia neoliberal, ao reforçar o dualismo educacional que desassocia a formação geral da educação profissional.
Somente na primeira década do século XXI as discussões em torno da educação politécnica voltam a tomar vulto, quando dos debates sobre o decreto
que revogaria o decreto 2208/97. Como principal contribuição, decreto 5154/2004 traz, a possibilidade de integração entre a formação geral e profissional, através do ensino médio integrado. No entanto, os efeitos práticos desse decreto são bastante tímidos, já que a maior parte das instituições de ensino promove uma integração meramente burocrática, admitindo na mesma matrícula os cursos de formação geral e profissional.
O caminho para o desenvolvimento de um ensino médio integrado à formação profissional, que realmente articule o trabalho manual e intelectual, os aspectos gerais e específicos da formação, é o caminho da luta e da disputa. É necessário impor ao projeto do ensino médio integrado a dimensão política presente na concepção marxista de educação politécnica.
Um aspecto importante dessa luta é o desenvolvimento de experiências bem-sucedidas de ensino médio integrado referenciadas na politecnia. Os casos da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV) e do Instituto Politécnico da UFRJ em Cabo Frio (IPUFRJ) são emblemáticos na perspectiva de luta para a construção de perspectivas para a formação integrada no Brasil.
A experiência do IPUFRJ, que recebeu especial atenção no último capítulo da tese, aponta para algumas perspectivas que podem ser replicadas, aumentando o alcance das transformações possibilitadas pelo ensino médio integrado à formação politécnica. O Instituto Politécnico da UFRJ em Cabo Frio, desde a sua criação em 2008, acumulou uma considerável experiência em práticas pedagógicas para o ensino médio integrado referenciado na politecnia. Na tese são analisados o processo de elaboração da concepção de educação do Politécnico, em suas dimensões ético-política e teórico-metodológica. Observamos que a concepção de formação humana do IPUFRJ pode ser resumida em: concepção marxista de educação politécnica, trabalho como princípio educativo – materializado e posto em prática a partir da apropriação crítica da metodologia de projetos – e a integração entre os aspectos da formação geral e da educação profissional.
Como vimos, as transformações metodológicas ocorridas ao longo do tempo possibilitaram ao Instituto Politécnico poder contar com uma metodologia de ensino-aprendizagem que viabiliza a materialização, nas práticas pedagógicas,
dos princípios que compõem a formação humana oferecida pela escola. Observamos também que a incorporação de elementos do materialismo histórico- dialético a essa metodologia e a observância do trabalho pedagógico, enquanto totalidade, a partir das suas múltiplas determinações, aproxima muito a proposta da UFRJ do método dos complexos (ou sistema dos complexos) desenvolvido pela Escola-Comuna, a partir da contribuição de Pistrak e Shulgin, nos primeiros anos da Revolução Bolchevique na Rússia. O IPUFRJ recebeu também a influência das experiências de educação politécnica cubanas, devido às contribuições do professor José Cubero2, que durante a elaboração da proposta da escola, bem como da formação dos professores, ao longo desses anos, colaborou para a estruturação de um modelo educativo crítico e de caráter emancipador.
Ainda assim, o movimento de lutas pela sua efetivação definitiva deve servir como exemplo de como é possível, mesmo diante de condições estruturais adversas, pautar debates em torno de perspectivas críticas de educação. A existência do Instituto Politécnico da UFRJ, mesmo que em condições adversas como as atuais, representa um alento na disputa pela hegemonia de projetos político-pedagógicos. A luta e a resistência características desta experiência foram exemplares e deveriam tornar-se um convite para que os intelectuais que se posicionam no campo do pensamento crítico assumam uma postura mais propositiva e combativa na intenção de construir iniciativas que possibilitem a difusão de concepções críticas de educação, como a politecnia.
Recebido em: 01 de fevereiro de 2018. Aprovado em: 25 de março de 2018. Publicado em: 13 de junho de 2018.
3 José Cubero Allende (1943-2016) é Doutor em Ciências Psicológicas pela Universidade de Havana e foi professor desta mesma universidade entre 1974 e 2003. Foi professor visitante da Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde coordenou o Grupo de Educação Multimídia e foi figura central no desenvolvimento das práticas pedagógicas do IPUFRJ
Apresentação
Neste número da revista TN selecionamos para a seção Memória e Documentos um material que, parafraseando sua autora, Profª Eunice Trein, nos “toca o coração”, ainda que também nos “bata no fígado”. Isso porque, como o conjunto dos artigos que compõem a revista podem atestar, não há como pensar e atuar no espaço da educação e da escola – mormente a pública – sem que uma vasta gama de sentimentos seja acionada.
É o que o Memorial apresentado por Eunice Schilling Trein, como parte de sua progressão para Professora Titular da faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense, nos permite desvelar. Intitulado Um Tributo à Escola Pública, o presente documento assume um caráter bem mais amplo que simplesmente o de recuperar sua trajetória particular de docente na referida universidade, mas procura articular esta trajetória com a luta e a constituição de experiências de educação referenciadas socialmente, que se propõem, no passado e no presente, públicas, democráticas, transformadoras – dos sujeitos e da sociedade.
Por isso, pensamos que ele cabe tão bem neste número da TN, que tem como temática central a 38ª Reunião Nacional da Anped, e cujos trabalhos apresentados no GT 09 - Trabalho e Educação, procuram analisar e problematizar questões candentes para pesquisadores, docentes, discentes e representantes de movimentos da sociedade que têm na formação humana, na educação, e na relação destas com o trabalho a sua ferramenta de intervenção no mundo, na busca de transformações radicais das relações sociais, em seus diferentes aspectos. Tal escolha se torna ainda mais especial quando vemos destacado, no texto de Eunice, a sua participação como coordenadora, no período de 1993 a 1996, exatamente do GT Trabalho e Educação, tendo assumido, logo depois, também a coordenação do Fórum de Coordenadores dos Programas de Pós Graduação da Anped, entre setembro de 1998 e setembro de 1999.
A história recuperada pela autora, desde a infância na região sul do Brasil até sua atuação nos 25 anos como docente da UFF, tem a coerência de não
¹ DOI: https://doi.org/10.22409/tn.16i29.p4646
anular o sujeito capaz de fazer escolhas – mesmo em situações desfavoráveis, na maioria das vezes, fora de seu controle – ao mesmo tempo que situa tal sujeito (e suas escolhas) num dado contexto histórico, político, social, que atua fortemente sobre as condições em que o mesmo age, potencializando ou impedindo/dificultando estas ações. Nesse sentido, o destaque que Eunice faz às experiências coletivas na defesa – teórica e prática – da educação como bem público torna-se exemplar para todas e todos que pretendemos continuar a luta por uma escola pública, laica e democrática.
Nem todas elas foram um sucesso, como nos lembra a autora; ou, até porque alcançaram ou ousaram contribuir para fazer avançar uma determinada concepção de educação e de escola, sofreram ataques diretos ou foram sendo neglicenciadas. Mas o que Eunice destaca como importante – e que permanece com os sujeitos nelas envolvidos – é a capacidade de atuação coletiva, atuação que a autora nos demonstra, não acontece apenas dentro da escola – seja a escola de que nível for. E é por isso que este Memorial foi escolhido para o presente número da TN: para que possamos conhecer um pouco mais da trajetória de uma docente que vem se dedicando à área Trabalho e Educação (e também à da Educação Ambiental), com contribuições significativas e importantes mas, para além disso, porque o seu trabalho recupera experiências e práticas educativas, coletivas, muito ricas, e que se tornam estratégicas que se mantenham vivas na nossa memória e nos nossos registros, a fim de que possamos resgatá-las (transformando-as, mediante os desafios atuais) na defesa intransigente e permanente de uma escola verdadeiramente pública e democrática.
Niterói, março de 2018 Maria Cristina Paulo Rodrigues
Recebido em: 23 de fevereiro de 2018. Aprovado em: 25 de março de 2018. Publicado em: 13 de junho de 2018.